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Abdias do Nascimento
nos Estados Unidos:
um “pintor de arte negra”1
DÁRIA JAREMTCHUK I
C
om significativa atuação política e produção intelectual, Abdias do Nas-
cimento se tornou referência incontornável para qualquer análise sobre
as lutas contra as desigualdades raciais no Brasil. Entretanto, a reflexão
aqui proposta se limita a examinar aspectos de sua produção visual diretamente
relacionados ao seu deslocamento para os Estados Unidos. A ideia desenvolvida
é a de que sua atividade como pintor foi intensificada quando passou a integrar o
meio acadêmico norte-americano no final da década de 1960. Desse modo, suas
pinturas podem ser observadas como uma contribuição intelectual específica ao
movimento negro.
Primeiramente, para a contextualização do problema, é preciso lembrar
que o deslocamento de artistas e intelectuais brasileiros nas décadas de 1960 e
1970 tem na ditadura militar brasileira um de seus motivadores mais bem iden-
tificados. Porém, para os propósitos desta análise, é necessário ainda lembrar
que, no mesmo período, instituições norte-americanas desenharam ações para se
aproximarem e aumentarem o seu campo de influências no meio cultural e artís-
tico na América Latina. Com isso, pretendiam contribuir para reverter a rejeição
e a imagem negativa dos Estados Unidos na região e impedir, acreditava-se, que
a experiência comunista de Cuba se repetisse (Jaremtchuk, 2017). Dentre as es-
tratégias e mecanismos frequentemente acionados por essas instituições, estavam
o intercâmbio, a concessão de bolsas de estudos, o apoio a eventos literários, ar-
tísticos e culturais e a promoção de exposições com obras de artistas norte-ameri-
canos em países latino-americanos. Particularmente, facilitar o deslocamento de
profissionais qualificados de diferentes “nacionalidades” para os Estados Unidos
tinha como propósito promover a formação de redes, que se tornaram instru-
mentos eficazes para dirimir resistências às atuações políticas, econômicas e mili-
tares norte-americanas no continente latino-americano na década de 1960.
Financiado pela Fairfield Foundation, Abdias do Nascimento foi em 1968
para os Estados Unidos com uma bolsa de dois meses direcionada a entidades
culturais negras.2 Em depoimento a Tulio Custódio, declarou ter sido a africa-
nista Judith Illsley Gleason, especialista em cultura africana, quem o ajudou a
conseguir a viagem após ela ter se sensibilizado com o seu estado de penúria
financeira (Custódio, 2011, p.69).
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Foto Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro)/ Itaú Cultural
Ainda sobre a produção pictórica de Abdias, sabe-se que suas primeiras te-
las, realizadas em 1968, conviveram com as obras do acervo do MAN guardadas
em seu apartamento em Copacabana. Esses trabalhos mantiveram-se conectados
ao imaginário específico das formas e figuras advindas da tradição imagética
religiosa afro-brasileira, sem que Abdias se preocupasse em aproximá-los dos
problemas específicos da trajetória da pintura, tradicionalmente apresentados e
discutidos no sistema da arte ocidental. Ele considerava inadequada qualquer
leitura a respeito das propriedades formais das pinturas porque para um africano
não fazia sentido captar a forma separadamente do que ela representava. Por ou-
tro lado, Abdias não era um iniciado em religiões afro-brasileiras e seus quadros
com referências visuais ao culto dos orixás, por exemplo, não se encontravam
sob o prisma da sacralidade.
Ele próprio reivindicava um lugar específico para suas pinturas. Em 1975,
quando veio ao Brasil e realizou uma mostra na Galeria da Caderneta de Pou-
pança Morada, no Rio de Janeiro, disse:
Foi em 1968 poucos meses antes de viajar que pintei alguns quadros que
nem sei se poderia classificar de pintura. Levei tudo comigo e nos Estados
Unidos, ao mostrá-los, revelaram-me que meu trabalho apresentava um as-
pecto completamente esmagado no processo da história do negro america-
no: as raízes africanas. [...] Sou apenas um pintor de arte negra. Não quero
me relacionar com os cânones de arte formal.19
Identificar-se como “pintor de arte negra” significava reafirmar o seu com-
promisso com a criação de imagens alinhadas à herança cultural africana no
Brasil e valorizar a permanência dessas raízes, que na cultura visual dos afro-
-americanos era mais rara. Nesse depoimento, concedido a um periódico em
plena ditadura militar no Brasil, percebe-se que ele valoriza sua nova função,
amadurecida nesses anos vividos no estrangeiro, pois como afirmou, o que fizera
no Brasil talvez “nem se pudesse classificar como pintura”. Chancelava também
suas imagens por rememorem um passado comum entre os negros, que na cul-
tura visual norte-americana tinham sido apagadas.
Mesmo que suas pinturas não participassem de rituais afro-brasileiros, Ab-
dias buscava conectá-las com esse universo, como demonstram suas reflexões:
O que são os orixás vivos da África? Eles corporificam o resultado pictórico
da tentativa de toda uma vida de restaurar os valores da cultura negra em
um nível isento de exotismo, folclorismo e domesticação cultural. [...] nos
meus quadros não me preocupam somente as formas estéticas, a distribui-
ção de volumes no espaço ou o teor das cores. De primeiríssima importân-
cia para mim é a peripécia espiritual e cultural do afro-brasileiro: os mitos,
a história religiosa, as lendas, os signos rituais, o canto e a dança litúrgicos,
a poesia e os conceitos de Ifá, o ritmo dos atabaques, enfim, a história e
os deuses da religião exilada com meus antepassados. Nas condições de
profunda adversidade e humilhação em que vivem os negros neste país,
não posso imaginar um verdadeiro artista negro preocupado em reproduzir
submissamente em seu trabalho as lições da arte convencional. [...]
Para finalizar, é importante ainda dizer que, após o término da bolsa rece-
bida pela Fairfield Foundation, Abdias optou por permanecer nos Estados Uni-
dos, possivelmente pelo receio diante dos desdobramentos da ditadura militar
brasileira e dos riscos que poderia correr se retornasse. Entretanto, o conteúdo
alentado da mala que carregava na ida, com suas pinturas e obras do acervo
do MAN, já indicava o desejo de estender a jornada para além dos dois me-
ses cobertos pela bolsa. Como um típico imigrante, sua bagagem levava o que
lhe parecia significativo naquele momento: “levei tudo comigo para os Estados
Unidos”, disse ele.27 Sua permanência bem-sucedida deveu-se às inúmeras opor-
tunidades oferecidas pelas universidades norte-americanas interessadas em con-
tratar profissionais negros qualificados. Do contrário, seu nome somente cons-
taria da lista de brasileiros que fizeram uma “viagem cultural” patrocinada por
instituição norte-americana. Como aqui se acompanhou, os estímulos à pintura
vieram justamente desses espaços acadêmicos que o levaram a se apresentar como
“pintor de arte negra”. Mesmo que essas imagens, relacionadas aos rituais afro-
-brasileiros, estejam desconectadas dos conflitos contemporâneos vividos pelos
negros brasileiros e norte-americanos rememoram nostalgicamente um conti-
nente africano compartilhado por todos aqueles que de lá foram violentamente
arrancados e escravizados. Assim, se no Brasil Abdias havia se notabilizado como
defensor da causa afrodescendente, quando viveu nos Estados Unidos ele am-
Notas
1 Este artigo foi escrito durante o Programa Ano Sabático do IEA/USP, 2016, período
em que foi desenvolvida a pesquisa sobre os artistas brasileiros que foram para os Es-
tados Unidos nas décadas de 1960 e 1970 com algum tipo de auxílio para a viagem.
2 No âmbito deste texto, o uso dos termos cultura negra e arte negra respeita as próprias
reflexões de Abdias do Nascimento realizadas nas décadas de 1960 e 1970.
3 The Harlem Art Gallery (1969, s.p.). Assinado com data de 13 mar. 1969. Material
localizado no arquivo do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro),
Rio de Janeiro (RJ).
4 Informação obtida em entrevista de Anna Bella Geiger concedida a esta pesquisadora
no dia 9 de julho de 2015, no Rio de Janeiro. Por outro lado, Abdias do Nascimento
parece ter circulado entre artistas brasileiros que se encontravam nos Estados Unidos
naquele mesmo período. Por exemplo, quando Amílcar de Castro abriu a sua mostra
individual na Kornblee Gallery, em setembro de 1970, Abdias esteve presente, como
se vê em fotografias guardadas pelo Instituto Amílcar de Castro.
5 Elisa Larkin Nascimento foi a terceira esposa de Abdias do Nascimento e com quem
ele teve um filho.
6 Abdias realizou diversas mostras nos Estados Unidos, das quais foram localizados os
seguintes catálogos: Abdias do Nascimento. The Harlem Art Gallery (New York, March
14 - April 6, 1969); Afro-Brazilian Paintings. Abdias do Nascimento. Crypt Gallery,
St. Paul’s Chapel, Columbia University (September 29 – October 31, 1969); Abdias do
Nascimento [Commemorating the birthday of Malcom X], Yale Art and Architecture
Building (May 18 -25 1969, New Haven); The Orixás. Afro-Brazilian Paintings and
Text by Abdias do Nascimento, Malcolm X House, Afro-American Institute, Wesleyan
University (1969); 13 Brazilian Artists, Center for the Humanities, Wesleyan Uni-
versity (Middletown, Connecticut, February 13 – March 27, 1970); Afro_Brazilian
Paintings. Abdias do Nascimento, Norton Hall Center Gallery, Gallery Without Walls,
State University of New York at Buffalo (November 3-14, 1970); Abdias do Nasci-
mento. A Brazilian Brother. Museum of the National Center of Afro-American Artists
(Dorchester, Massachusets, February 28 – March 1971); Afro-Brazilian Theogony.
Paintings by Abdias do Nascimento. Studio Museum in Harlem (New York, Sep. 9th
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resumo – Abdias do Nascimento foi para os Estados Unidos em 1968 com bolsa da
Fairfield Foundation, retornando ao Brasil somente uma década depois. Durante esses
anos, a pintura tornou-se atividade significativa, o que fez que ele precisasse elaborar
uma nova identidade e qualificar a produção dessas imagens. Nesse processo, acabou
por se considerar um “pintor de arte negra” e reafirmar seu compromisso com a criação
de obras alinhadas com a herança cultural africana.
palavras-chave: Abdias do Nascimento nos Estados Unidos, Pinturas de Abdias do
Nascimento, “Pintor de arte negra”.
abstract – Abdias do Nascimento first went to the United States in 1968 on a Fairfield
Foundation scholarship, returning to Brazil only a decade later. During that time, pain-
ting became a meaningful activity, which demanded that he create a new identity and
qualify the production of his images. In this process, he ended up declaring himself a