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Belém – PA
Maio de 2017
Universidade Federal do Pará – UFPA
Instituto de Filosofia e Ciências Humanos – IFCH
Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia – PPGSA
Belém – PA
Maio de 2017
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências da UFPA
Comissão Examinadora
_____________________________________________
Profa.Dra. Denise Cardoso (Orientadora). PPGSA/UFPA.
_____________________________________________
Noemi Sakiara Miyasaka Porro (membro externo). Professora do MAFDS/UFPA.
_____________________________________________
Gutemberg Armando Diniz Guerra (membro externo). Professor do MAFDS/UFPA.
_____________________________________________
Sérgio Cardoso de Moraes (membro externo suplente). Professor do NUMA/UFPA
_____________________________________________
Carmem Izabel Rodrigues (membro interno). PPGSA/UFPA.
_____________________________________________
Luciana Gonçalves de Carvalho (membro interno). UFOPA e PPGSA/UFPA.
_____________________________________________
Edila Arnaud Ferreira Moura (membro interno suplente). PPGSA/UFPA.
Esta tese estudou o esgotamento que determinados conceitos cunhados na modernidade trazem
para o trato da relação natureza e cultura em um fazer etnográfico e antropológico. Usou como
abordagem principal as discussões que Bruno Latour (2004 a, b; 2013 a, b) faz sobre o tema,
privilegiando a problematização ―natureza e cultura na modernidade‖, assim como relativizou os
conceitos de ―populações tradicionais‖, ―povos e comunidades tradicionais‖. O desenho da tese
se originou a partir da trajetória acadêmica e profissional do autor, à medida em que o mesmo, de
maneira paralela, desenvolvia pesquisas empíricas junto à coletivos de humanos e não humanos
entendidos pela teoria antropológica como populações povos ou comunidades tradicionais mas, à
medida que leituras eram aprofundadas sobre esses coletivos, segundo a teoria antropológica,
inconsistências eram encontradas. Este trabalho também problematizou os termos ―tradicional‖,
―moderno‖, ―cultura‖, ―natureza‖ e as PPCTS como pano de fundo. A pesquisa parte de
experiências etnográficas vividas no coletivo de Igarapé Grande e, a partir dela, reflete sobre
quais as críticas que se podem fazer à teoria antropológica que produziu os conceitos de
―populações tradicionais‖, ―povos e comunidades tradicionais‖ e ―natureza e cultura‖. Com
efeito, esta tese não é propriamente científica (a rigor, dentro das Ciências Humanas, nenhuma
tese é), assumindo contornos filosóficos, visto que não consegue provar sua hipótese principal, da
impropriedade do uso dos termos natureza e cultura, pois constrói abstrações, não se lança na
realidade, mas a partir de uma realidade (a ―cultura ribeirinha‖, a realidade dos moradores de
Igarapé Grande), criando um outro mundo possível para além do mundo moderno, entre tantos
outros mundos possíveis (VIVEIROS DE CASTRO, 2002 b, 2015). Digno de nota é que o
mundo moderno é caracterizado pela não continuidade entre humanos e não humanos, na medida
em que os modernos utilizam não humanos como mediadores de suas relações com outros não
humanos, sendo que esses não humanos mediadores nunca são localmente fabricados, criando
uma situação de total alienação dos modernos em relação ao ambiente de não humanos que os
cerca (verifique você, leitor, qual seu vínculo com os não humanos ao seu redor? Provavelmente
nenhum, até mesmo o ar que você respira foi refrigerado pelo aparelho de ar condicionado). Por
outro lado, os coletivos ―tradicionais‖ fabricam a grande maioria dos seus não humanos e,
quando esses não humanos não foram fabricados pelos seus próprios usuários, ao menos foram
por humanos que compõem a rede local, ou sofrem periódicas manutenções, reformas e
modificações por esses atores locais (penso, por exemplo, nas rabetas, não localmente
produzidas, mas que sofre manutenções periódicas por humanos da própria ilha). Assim, este
trabalho lançou mão de experiências etnográficas para criticar a teoria antropossociológica das
últimas décadas, retornando aos primórdios da antropologia para poder construir uma sociologia
da ciência antropológica analisando e posteriormente suspendendo a dicotomia entre cultura e
natureza. Esta dicotomia permitiu dar lastro à outras dicotomias explicativas, também analisadas
por este trabalho, como tradicionais e modernos (LATOUR, 2013a) e objetividade e
subjetividade (LATOUR, 2004a), que, por sua vez, dão origem a um extenso número de outras
dicotomias modernas, ou híbridos (LATOUR, 2013a), como rural e urbano, campo e cidade,
público e privado, ecologia humana, etnociências, socioambientalismo, entre outras, não
analisadas pela tese, mas ao menos citadas.
This thesis has studied the exhaustion that certain concepts coined in modernity bring to the
treatment of the relation nature and culture in an ethnographic and anthropological doing.
He used as a main approach the discussions that Bruno Latour (2004 a, b; 2013 a, b) makes
on the subject, favoring the problematization of "nature and culture in modernity", as well
as relativizing the concepts of "traditional populations", "peoples and Traditional
communities. The design of the thesis originated from the academic and professional
trajectory of the author, as the same, in parallel, developed empirical research with the
communities understood by the anthropological theory as traditional but, as readings were
deepened on these communities , According to anthropological theory, inconsistencies were
found. This work also problematized the terms "traditional", "modern", "culture", "nature"
and PPCTS as the background. The research is based on ethnographic experiences lived in
the community of Igarapé Grande and reflects on what criticism can be made of the
anthropological theory that produced the concepts of "traditional populations", "traditional
peoples and communities" and "nature and Culture "? In fact, this thesis is not scientific, it
is philosophical, since it can not prove its main hypothesis, of the impropriety of the use of
the terms nature and culture, because it constructs abstractions, it is not launched in reality,
but from a reality (the " The reality of the inhabitants of Igarapé Grande), generalizing it to
any and all non-modern way of life, being characterized by the continuity between humans
using nonhumans as mediators of their relations with other nonhumans, the former being
not Humans made by its own users. Thus, this work has used ethnographic experiments to
criticize the anthropossociological theory of the last decades, returning to the beginnings of
anthropology in order to construct a sociology of anthropological science analyzing and
later suspending the dichotomy between culture and nature. This dichotomy allowed to lend
weight to other explanatory dichotomies, also analyzed by this work, as traditional and
modern (LATOUR, 2013), objectivity and subjectivity (LATOUR, 2004), rural and urban,
ecological economics, socioambientalism.
1 INTRODUÇÃO 18
1.1 Apresentação e posterior explicação do problema 18
INTRODUÇÃO
Esta tese iniciou-se com o objetivo de etnografar o cotidiano dos moradores de Igarapé
Grande, local a ser detalhado adiante. Ocorre que no caminho de construção desse trabalho, a
pesquisa tomou novos rumos, levando-me não mais a buscar a construção de uma etnografia
por meio da orientação da Teoria Antropológica, mas, a partir das experiências que tive em
campo, construir uma crítica à própria Teoria Antropológica que o amparava. Assim, utilizo
neste trabalho a noção de ―experiências etnográficas‖ como um exercício de crítica à teoria, a
partir de experiências vivenciadas junto a um coletivo de humanos e não humanos1 com
modos de vida radicalmente diferenciados do meu modo de vida. Esta noção será detalhada
mais adiante, ainda nesta introdução.
Isto posto, posso dizer que este trabalho constitui-se em reflexões e críticas que são
feitas à Teoria Antropológica a partir de uma experiência etnográfica vivenciada junto a um
grupo de humanos passível de ser caracterizado pela Antropologia nacional como
―populações tradicionais‖ e/ou ―povos e comunidades tradicionais‖ (doravante PPCT). Essa
comunidade2 é conhecida como Igarapé Grande e se localiza na Ilha de João Pilatos,
município de Ananindeua, região metropolitana de Belém (doravante RMB), capital do estado
do Pará, estuário da Amazônia brasileira. O Mapa 01 permite situar o leitor quanto à
proximidade de Igarapé Grande em relação à RMB, assim como uma impressão inicial dos
arquipélagos que rodeiam a RMB.
1
Latour apresenta diversos conceitos para coletivo. Em essência, configura-se no agrupamento ou, talvez melhor
definindo, na coleta de humanos e não humanos em um grupo que permite associações entre esses dois tipos de
atores (humanos e não humanos), em oposição à usual ideia de social coligada exclusivamente à associação entre
humanos, isso quando não entendida como uma qualidade que seria imanente à todo grupo de humanos, uma
espécie de material social que define previamente as características de todo grupo social. Nas palavras de Latour
(2012, p 112): ―[...] a divisão aparentemente razoável entre material e social transforma-se naquilo que ofusca a
pesquisa sobre como é possível uma ação coletiva - se, é claro, não entendermos por coletivo uma ação encetada
por forças sociais homogêneas, mas, ao contrário, uma ação que arregimenta diversos tipos de forças unidas por
serem diferentes. Assim, doravante, a palavra "coletivo" substituirá "sociedade". Sociedade será apenas o
conjunto de entidades já reunidas que, segundo os sociólogos do social, foram feitas de material social. Coletivo,
por outro lado, designará o projeto de juntar novas entidades ainda não reunidas e que, por esse motivo,
obviamente não são feitas de material social‖.
2
Utiliza-se o termo ―comunidade‖ não do ponto de vista do que foi construído pela academia e os conhecidos
estudos de comunidades, mas a partir da denominação que os moradores da região das ilhas usam para nomear
seu local de morada. Eles utilizam o termo ―comunidade‖ para representar-se para as pessoas de fora, mas
internamente são outras as denominações. Tal fenômeno teve início por meio da necessidade de se criar as
associações de moradores locais que iriam em busca de políticas junto ao governo, utilizando o termo
―comunidade‖ no nome da associação, que assim se denomina: ―Associação de Moradores e Pequeno Produtores
Rurais de Igarapé Grande‖, ou ―Comunidade de Igarapé Grande‖.
19
As pessoas que vivem em Igarapé Grande desenvolvem diversos tipos de relação com
os não humanos3 locais, formando uma diferente rede de humanos e não humanos daquela
formada nas sociedades ditas modernas (LATOUR, 2014; 2013a; 2013b; 2004 a). Entre as
diferenças, citam-se duas em especial. A primeira refere-se ao fato de a rede de não humanos
dos modernos não dispor de energia vital, ou seja, os não humanos ativados são em sua
esmagadora maioria coisas e não seres vivos, enquanto que no coletivo de Igarapé Grande,
muitos dos não humanos ativados são seres vivos, como exemplo, cito os diversos recursos da
fauna e da flora local que circulam entre as várias ilhas de Ananindeua. Este contexto pode ser
entendido como um cenário rural da Amazônia paraense, marcado por atividades
agroextrativistas que, por sua vez, é permeado por uma rede de atores não humanos que pode
ser caracterizada como socioambiental4. No caso dos modernos, sua rede de não humanos é
composta por objetos, não englobando outros seres vivos, com raras exceções, formando o
cenário urbano, com muitos carros, computadores, celulares, empresas e comércios ligados à
rede financeira mundial, entre outros atores. Com efeito, apresento um conjunto de fotografias
que evidenciam a paisagem rural que perfila a comunidade.
3
A especificação dessa dicotomia será apresentada de forma detalhada nesta mesma introdução.
4
O apêndice A traz um apanhado sobre as leituras feitas sobre a temática do socioambientalismo e a dicotomia
entre rural e urbano na Amazônia, de modo a exaltar ao leitor o que se entende por estes conceitos.
21
É possível ver humanos e não humanos na fotografia. Entre os não humanos estão a
canoa, localmente construída, o rio, que funciona como uma via de locomoção utilizada pelos
humanos de Igarapé Grande, assim como o local em que se desenvolve a atividade da pesca
(ativando outros não humanos vivos), ademais da margem desse rio, habitada por não
humanos genericamente denominados de árvores ou modernamente flora. Segue painel 01,
dando continuidade à exposição imagética da relação entre humanos e não humanos em
Igarapé Grande.
5
No caso de outros povos que não se entendem como modernos, nós, os modernos, classificamos sua explicação
do mundo como mito ou mitológica, ou mesmo, para os antropólogos mais relativistas ou socialmente
combativos, como, respectivamente, culturais (para os relativistas) ou representações/construções sociais (para
os socialmente combativos), diferentemente da nossa, que é ―científica‖ (LATOUR, 2014; 2013a; 2013b; 2004a;
2004b).
6
Uso o termo mito em virtude da crença inabalável dos modernos nessa dicotomia, sendo a mesma o mito
fundador da modernidade (LATOUR, 2004 a, b, 2013 a).
24
7
Com efeito, destaco que Latour trabalha com as seguintes dicotomias: tradicional e moderno;
política/sociedade/cultura (vale destacar, cada uma responsável pelas matrizes disciplinares das Ciências Sociais,
respectivamente, Ciência Política, Sociologia e Antropologia) e natureza/Ciência.
25
8
Fazendo um jogo de palavras com o título da obra de Latour (2013a), ―Jamais fomos modernos‖.
9
Ainda que pareça repetitivo, mas em verdade visando esclarecer e conduzir o leitor em minha argumentação,
devo frisar que me refiro ao conceito de tradição dentro da matriz tradicional antropológica (ALMEIDA 1991;
BRITO, 2001; WEBER, 2009), onde essa categoria reforça a binaridade entre natureza e cultura para poder
construir a crítica sobre o mesmo mais adiante. Busco mostrar suas incoerências e inaplicabilidades para a atual
realidade vivida, na medida em que, como explanado por Latour (2004 a, 2013 a), esse conceito é purificador,
26
Assim, na sociedade moderna, toda relação entre humanos e não humanos é mediada
por outro ator não humano que foi fabricado em outro coletivo. Em termos mais coloquiais,
toda relação que estabeleço com outros atores não humanos (aquilo que outrora era chamado
de natureza, meio ambiente, recursos naturais e coisas em geral) é mediada por outro ator não
humano que não foi por mim fabricado (observe-se você, leitor, ao seu redor, entre ar
condicionado, piso, teto, mesas, cadeiras e livros, se existe algum ator não humano por você
fabricado). Pensemos nos alimentos, na saúde, nas vestimentas, nos transportes, na higiene
pessoal, tudo é mediado por não humanos que não foram construídos pelos humanos que os
manejam, alienando a tudo e a todos. De fato, há uma separação da natureza e da cultura, mas
tal separação é meramente consumista e não civilizatória e emancipatória, como queriam os
filósofos e cientistas dos séculos passados.
Existe então uma impropriedade na utilização dos termos natureza e cultura, na
medida em que são polissêmicos. Natureza pode ser instinto, meio ambiente, recursos naturais
vivos e não vivos, animais, vegetais, rochas, rios, mares, florestas etc. A natureza pode até
mesmo ser cultura, quando se utiliza o adjetivo selvagem com o substantivo cultura: cultura
selvagem, instintiva, que segue sua natureza.
Da mesma maneira, o termo cultura assume uma polissemia de maneira a perder sua
capacidade explicativa. Tudo é cultura. Do tradicional ao moderno, existe uma explicação
cultural. Cultura é educação (homem culto é sinônimo de homem educado), é história, é
tradição, é costume (mas esses costumes são curiosos, eles se comportam dessa maneira por
sua tradição, sua cultura é assim), cultura é arte, enfim, tudo é cultura, mas também tudo é
natureza, mas, já que tudo é natureza e cultura, nada também o é.
Assim, quando alguém suspira surpreso por alguma prática curiosa de algum grupo
social e outro alguém pondera: ―ah, isso é cultural, ou é uma questão cultural‖, essa qualidade
cultural pode ser facilmente substituída por ―isso é questão de educação, é social, histórico,
um costume, é típico ou tradicional das pessoas desse local, é seu instinto, isso é natural
deles‖. Nesse caso, quando opostos podem figurar como sinônimos, algo está descompassado.
Com efeito, a dicotomia entre humanos e não humanos suspende essa imprecisão, na
medida em que se estabelece um crivo diferenciativo entre ambos os termos: a qualidade
humana. Ou se é humano, ou não se é humano. Latour ainda permite que esses dois atores
tenham uma atuação dentro do coletivo, logo, o não humano, mesmo que seja um objeto, um
logo, sendo impossível existir de fato, na medida em que o mundo está permeado por híbridos de tradicionais e
modernos, de natureza e cultura.
27
animal, uma floresta cultural10, um espírito, seja o que for, detém uma capacidade de ação, de
influenciar e ser influenciado por outros atores, sejam eles humanos ou não humanos. Eis a
inovação da sociologia de Latour (2004 a, b; 2012; 2013 a, b), a possibilidade de dar a
qualidade de ator a coisas, objetos, animais, espíritos, conceitos, instituições e uma série de
outros elementos que antes ficavam obnubilados pela dicotomia entre natureza e cultura, não
sabendo se faziam parte da esfera cultural, ou da esfera natural, empacava-se na sua descrição
e análise.
Dito de outra forma, o que fazer com as florestas culturais na Amazônia? O que fazer
com as culturas tradicionais, rústicas, selvagens dos grupos sociais que são entendidos como
PPCT? Como estabelecer um protocolo de atuação e relacionamento com esses atores, ao
mesmo tempo naturais e culturais? Tal confusão é eliminada por meio da dicotomia entre
humanos e não humanos. Ainda que a floresta seja cultural, ou seja, produto da ação humana,
ela não é humana, ela continua sendo floresta. Ainda que as culturas tradicionais não
distingam natureza de cultura ou, se o fazem, não lhe dão muita importância, estes continuam
sendo humanos, mesmo sendo sua cultura ―integrada‖ com a natureza, estabelecendo relações
de simbiose com rios e florestas.
Em síntese, este trabalho constrói argumentos, reflexões e críticas à Teoria
Antropológica, entendendo a Antropologia como uma ciência que originalmente estudou
culturas tradicionais, ou seja, culturas que estão apartadas da cultura moderna. Gradualmente
essa ciência voltou seus olhares para sua própria cultura, iniciando primeiramente com as
margens mais distantes da modernidade, estudando camponeses, agricultores familiares, para
então, ir tomando outros grupos sociais localizados em uma margem mais próxima da
sociedade moderna, como estudos em periferias, de gênero, raça, entre tantas outras minorias
sociais. Somente nas duas ou três últimas décadas, a Antropologia voltou seus olhares para
questões como a produção de verdades no espaço público, a alteridade em processos judiciais,
produção de fatos científicos, entre outros possíveis temas de estudo que ocupam o coração da
sociedade moderna (LATOUR, 2013 b; 2004 b; VIVEIROS DE CASTRO, 2002 a, 2015).
Esta introdução segue seu curso fazendo uma breve descrição do coletivo de humanos
e não humanos de Igarapé Grande, assim como das técnicas de pesquisa utilizadas em campo
e a construção de uma percepção teórica do que seriam as experiências etnográficas vividas
10
Seriam florestas que se formaram sobre a influência e indução de ameríndios, surgindo a questão: seriam
florestas naturais ou culturais? Este paradoxo é fruto do mito moderno da natureza intocada, conforme descrito
por Diegues (1993, 1994, 1997, 2008). Para mais detalhes consultar Magalhães (2006), Adams (1994), Scoles
(2011), Balée (2008) e Ribeiro (1986). O antropólogo Darrel Adson Posey figura como um dos pioneiros desta
temática, também denominada de ―indigenização da paisagem‖, entretanto, não consegui mais localizar as
referências de suas obras em meus arquivos pessoais. De toda sorte, fica o registro.
28
11
Essa questão será tratada em minúcias, nos capítulos 2, 4 e 5 desta tese.
12
Os capítulos 4 e 5 tratam exclusivamente do cenário socioambiental vivido pelos habitantes de Igarapé
Grande, descrevendo esse cenário de maneira mais detalhada.
32
Este coletivo de humanos e não humanos foi ―fundado‖ pelo ―seu‖ Domiciano de
Farias e dona Maria dos Anjos de Farias, que se casaram e fixaram residência no local onde
fica a ―comunidade‖13 hoje, sendo seus descendentes os habitantes de Igarapé Grande14.
Atualmente existem 39 casas, dessas, 31 são residências fixas, 04 são residências de pessoas
13
Utilizo aspas nos termos ―fundador‖ e ―comunidade‖ para relativizá-los, pois Domiciano e Maria não
―fundaram‖ uma ―comunidade‖, apenas casaram-se e foram morar nas proximidades de suas residências
anteriores, posto que ambos já moravam na região das ilhas. O posto de fundadores de um coletivo que
posteriormente foi externamente nomeado como ―comunidade‖, soa estranho para seus netos, assim como a
própria denominação ―comunidade‖, já que Igarapé Grande é seu local de morada, herança de seus bisavós, mas
não uma ―comunidade‖. Estes termos serão novamente problematizados no decorrer da tese, assim como será
detalhado o cenário socioambiental ao qual fazem referência, especialmente nos capítulos 02, 04 e 05 desta tese.
14
Este histórico será detalhado no capítulo 04.
34
que não moram no local, mas visitam-na frequentemente, normalmente buscando atividades
de lazer (períodos de fins de semana, festas etc.)15. A situação das outras quatro casas
restantes é: a primeira foi recentemente alugada para uma família de fora da região das ilhas,
mas seu proprietário, ainda que não residindo em Igarapé Grande, é nascido, criado e continua
a residir na região das ilhas de Ananindeua, assim como é descendente do casal Farias, sendo
localmente conhecido como ―Picolé‖; a segunda está em construção e servirá de morada para
bisnetos do casal Farias; a terceira está vazia em virtude do recente óbito de seu morador; e
finalmente a quarta pertence à família de dona Bena16, todos residentes na cabeceira e
descendentes dos Farias. No local é possível encontrar uma escola municipal, nomeada
Domiciano de Farias17, um posto de saúde inaugurado no dia dezesseis de agosto de 2014, um
campo de futebol, dois barracões que funcionam, ora como sala de aula, ora como centro de
eventos, ademais de seus moradores e suas respectivas residências.
Buscando dar sentido e coerência descritiva, Igarapé Grande pode ser dividida em três
partes. A primeira refere-se aos espaços oficialmente institucionais e de uso comum lá
existentes, os quais chamarei de complexo público (a ser detalhado no capítulo 2). Este é
composto por: escola, posto de saúde, barracões da escola e da associação de moradores,
campo de futebol, igreja e o porto em formato de trapiche. Estes locais são de livre circulação
e, em regra, prestam algum tipo de serviço público ou de utilidade pública. Pode-se agregar a
este complexo a pequena venda do ―seu‖ Bené, localizada na lateral do campo de futebol, na
medida em que, apesar de ser um ―negócio particular‖, presta um serviço de utilidade pública,
por meio da venda de produtos alimentícios.
A segunda parte de Igarapé Grande refere-se às residências de seus habitantes,
localizadas ao fundo e ao lado da escola. A terceira parte é a ―Cabeceira‖, residências que
ficam afastadas do complexo público, próximas da cabeceira do Igarapé Grande. Para chegar
a essas residências, ou percorre-se uma trilha entre a mata por uma média de vinte minutos,
15
Dessas quatro famílias, todas têm alguma ligação com os descendentes do ―seu‖ Domiciano e da dona Maria
dos Anjos. Assim, duas casas são de propriedade de bisnetos (a), uma pertence ao seu Pelé, pai de filhas que são
casadas com bisnetos do casal Farias e a última residência pertence a um amigo de um tataraneto do casal Farias.
Novamente reforça-se essa informação: para se ter acesso à moradia em Igarapé Grande, deve-se ter algum tipo
de ligação com os descendentes do casal Farias.
16
Uma das moradoras mais antigas de Igarapé Grande e que eu tive o prazer de conhecer, mas que veio a falecer
antes do término do meu trabalho de campo. Também a ela dedico este trabalho. Vale registrar dois detalhes
sobre a dona Bena. O primeiro é que ela é irmã do ―seu‖ Dico, habitante mais antigo e mais velho de Igarapé
Grande, ambos netos do ―seu‖ Domiciano de Farias e da dona Maria dos Anjos de Farias, casal proprietário do
terreno onde hoje é Igarapé Grande, ascendente da maioria dos seus atuais moradores, como está sendo
detalhado por esta introdução e pelo capítulo 3 desta tese.
17
Ele consta como uma espécie de pai fundador de Igarapé Grande, figura chave que dá acesso à terra e às
relações socioambientais que se desenvolvem no local. Este fato será detalhado no decorrer da tese,
especialmente pelo capítulo 4.
35
ou desce-se o igarapé com alguma embarcação, em direção ao centro da ilha, por mais alguns
poucos minutos.
Assim, a ―Cabeceira‖ localiza-se a alguns metros depois do complexo público e das
residências ao seu redor (seu conjunto denominado de Igarapé Grande), ficando este mais
próxima da borda da ilha, consequentemente mais próxima do rio que a circunda, enquanto
que a ―Cabeceira‖ está mais próxima do centro da ilha, consequentemente, mais próxima da
―cabeceira‖ do Igarapé Grande, justificando assim o seu nome. Na sequência, segue a Figura
01 que expõe imagem do Google Maps onde é possível visualizar a Cabeceira (à esquerda da
folha) e Igarapé Grande (à direita da folha).
36
Figura 01: Imagem de satélite de Igarapé Grande. As áreas de mata dividem a cabeceira do rio, sinalizado de amarelo, das residências,
sinalizadas pelo círculo laranja
18
Coloco essa característica de ―fixos‖ pois, como será trabalhado no capítulo 05, existem pessoas que acessam
Igarapé Grande para atividades de lazer ou visitar parentes.
38
Fonte: Organizado por Thales Ravena, executado por Juliene Furtado, adaptação digital de Uriens Ravena.
41
Fonte: organizado por Thales Ravena, executado por Juliene Furtado, adapetação digital de Uriens Ravena.
190
186
No sentido de uma fonte de recursos financeiros, ou seja, a origem do dinheiro que circula no local.
191
lazer. Em síntese, para se ter acesso à terra e seus respectivos recursos naturais, deve-se ter
algum tipo de relação com os descendentes do casal Farias187.
O primeiro aglomerado de residências, à direita da imagem, é a comunidade de
Igarapé Grande. O segundo, disposto à esquerda, funciona como uma espécie de sua extensão,
denominada de Cabeceira, como explicado mais acima. Ao centro da imagem fica uma área
de mata cortada por algumas trilhas e ao fim fica o igarapé, localmente conhecido como
Igarapé Grande. Essetem sua nascente quase ao centro da ilha.
Os dados sobre Igarapé Grande, até o momento expostos, são o resultado de meu
trabalho de campo, desenvolvido nos anos de 2014, 2015 e 2016. O detalhamento das
condições em que se operacionalizou esse trabalho de campo, assim como a noção de
―experiência etnográfica‖, é exposto no tópico que segue.
187
Este modelo de comunidades que têm pais fundadores se repete em outros locais da região das ilhas. Como
exemplo cito a comunidade de Santa Rosa que teve como dono original o seu Joaquim Navegantes, sendo hoje
habitada por alguns de seus descendentes.
188
Clifford (1998) utilizou esta expressão em seu célebre livro, ―A experiência etnográfica‖, que critica as
proposições teóricas de Geertz (1993; 1997; 2001) e sua perspectiva interpretativista do trabalho de campo do
antropólogo. Ainda que exista algum tipo de ligação entre essas expressões, a utilizo aqui em um sentido não
diretamente ligado ao de Clifford (1998).
192
No meu caso específico, troco o sujeito de estudo ―indígena‖, por grupos humanos do
espaço considerado rural da Amazônia Oriental, amplamente conhecidos como PPCT´s,
inclusive fora dos meios acadêmicos. Não estou aqui comparando minha usual tese à singular
obra de Viveiros de Castro, autor de uma fina etnografia, que se desdobrou em irredutíveis
consequências teóricas para a Antropologia. O que faço é tentar aplicar a mesma operação por
ele realizada às conhecidas PPCT´s, ainda que de maneira rudimentar, na medida em que não
é uma operação tão comum dentro da Antropologia brasileira, permitindo pensar uma crítica à
essa Antropologia190.
Esta crítica também se estende para dois variantes do conceito de que a matriz
antropológica construiu ao longo dos anos: as culturas tradicionais e a cultura moderna. Esta
variação, assim como seu conceito inicial, é fundada na dicotomia natureza e cultura, também
pensada, fundamentada e legitimada pela Antropologia, mas também pelo próprio projeto
científico de humanidade que a mesma pressupõe, considerando que esses conceitos surgem
da dicotomia entre ―culturas tradicionais‖ e ―cultura moderna‖, ficando o tradicional relegado
ao plano dos instintos, do biológico, da natureza, enquanto que o moderno ao plano da cultura
em sua face civilizada, da razão.
Assim, procedeu-se uma experiência etnográfica composta por micro experiências
etnográficas em que se optou não por montar uma etnografia, mas sim metafísicas
189
Tomo a liberdade de utilizar essa expressão, no lugar de ―experimento‖ (verbo conjugado na primeira pessoa
do singular do presente do indicativo), com o intuito de remeter o leitor à ideia de experiência e não de
experimento (substantivo). Tal posicionamento se justifica na medida em que o segundo termo limita-se a uma
abordagem de experimentos físicos e sensoriais (experimento, substantivo), enquanto que o primeiro termo está
ligado à um contexto mais amplo (experiência, substantivo), englobando o segundo e adicionando novas
dimensões e possibilidades, como a ideia de experiência de vida, ligada a sentimentos e emoções, não se
limitando a experimentos físico-sensoriais.
190
Com efeito, deixo claro de início que não pretendo encontrar o perspectivismo ameríndio apresentado nos artigos de
Viveiros de Castro, mas apenas utilizar o seu procedimento de experimentar o pensamento do outro, para melhor entender
seu pensamento, para melhor imaginar sua imaginação.
193
As condições de coleta de dados se deram por constantes viagens a campo, que podem
ser dividias em três momentos.
O primeiro refere-se à minha inserção em campo, estabelecida no contato com a escola
municipal localizada em Igarapé Grande. As viagens foram feitas semanalmente, por meio da
condução escolar que atende a ilha, mas nesse momento eu ainda não havia estabelecido
morada em campo192. À época, os principais interlocutores foram os funcionários e
professores da escola, muitos dos quais eram nativos e residentes da ilha, assim como o ―seu‖
Antônio Farias, um dos moradores mais antigos de Igarapé Grande e neto do ―seu‖
Domiciano de Farias, ―fundador‖ do lugar. Durante três meses, ao menos uma vez na semana
eu fui a campo e empreendi algum tipo de entrevista. Nesse período inicial, cabe ressaltar o
medo que eu tinha de ser assaltado no percurso de acesso à Igarapé Grande, pois o porto do
qual sai a condução escolar é localizado em um dos bairros mais perigosos de Ananindeua193.
Nesse sentido, equipamentos eletrônicos não eram levados, restando somente notas do
caderno e do diário de campo.
O segundo período de pesquisa se deu a partir de 23 de julho, pois foi a primeira vez
que dormi na comunidade. Assim, entre 23 de julho de 2014 e 22 de abril de 2015,
acrescentou-se à dinâmica narrada anteriormente viagens em que dormi na casa do ―seu‖
Gilberto de Farias, atual presidente da associação de moradores de Igarapé Grande. Nesses
dois períodos iniciais muitas informações foram gradualmente desveladas, ligadas a
parentesco, história da comunidade, detalhamento geográfico da região das ilhas, relação com
os recursos naturais e com o mercado fora dessa região.
191
Seria um exercício similar ao que Da Matta (1987) denominou de antropological blues e Latour (2004 a) de
metafísicas experimentais, ou mesmo Castañeda (2013) no seu clássico ―A erva do diabo‖, no qual o autor
exprime o mundo possível de seu mentor indígena.
192
Considero morada a condição de dormir e compor um cotidiano junto aos moradores de Igarapé Grande.
193
No transcorrer de um ano e meio de trabalho de campo, tive conhecimento de incontáveis assaltos, tanto no
percurso até o porto, como no próprio porto e, especialmente, no percurso de barco entre as ilhas. A prática da
pirataria é comum nas regiões insulares da RMB.
194
A tese é composta por seis capítulos, ademais deste primeiro capítulo introdutório. O
capítulo 2 trata de maneira mais detalhada da construção do problema de pesquisa e suas
transformações ao longo das atividades de campo, permitindo demonstrar como cheguei ao
194
Aprendi de fato a andar nos caminhos de Igarapé Grande e Cabeceira no mês de julho de 2015, quando
efetivamente tive domínio de detalhes da mata que antes eram invisíveis para mim, mas que, após o cotidiano de
acompanhar os moradores, passei a internalizar suas explicações.
195
problema que constitui o centro da tese, proposto no início deste trabalho. Assim, esse
capítulo narra a construção e a transformação, ao longo do tempo, das propostas da tese, de
modo a elucidar o processo de construção da mesma, permitindo que o leitor entenda quais
eram as premissas teóricas iniciais, sendo estas transformadas no decorrer do trabalho de
campo. Com efeito, apresento ao leitor um pouco da minha trajetória acadêmica para então
elucidar meus pressupostos teóricos iniciais em minhas estadias em campo, para então narrar
suas transformações ao longo das experiências vividas junto aos moradores de Igarapé
Grande. Vale dizer que estas experiências tiveram como pano de fundo o cenário
socioambiental que é vivenciado pelo coletivo estudado.
No capítulo 3 descrevo o entendimento que a academia apresentou de um dos
―objetos/sujeitos‖ específicos da Antropologia no decorrer dos anos, forjando uma revisão
bibliográfica sobre a noção antropológica de ―populações tradicionais‖. Essa descrição é
repetida no capítulo 4, agora abordando o conceito de ―povos e comunidades tradicionais‖
dentro da Antropologia brasileira. Assim, me empenho em uma sociologia da ciência
antropológica (LATOUR, 2013 a, b; 2014), por meio do estudo de dois dos seus principais
meta-conceitos, que representam também um de seus principais objetos/sujeitos de estudos:
os grupos sociais denominados, pela Antropologia e sociedade brasileira, de―populações
tradicionais‖ e ―povos e comunidades tradicionais‖195.
O capítulo 5 apresenta algumas das saídas teóricas encontradas para a paralisia
epistemológica que as Ciências Sociais se deparam na atualidade, ao analisar as dicotomias
tradicional e moderno, cultura e natureza, advindas do cenário de constituição do conceito de
PPCT´s. Entre as saídas encontradas estão os diagnósticos e propostas de Latour (2014;
2013a; 2013b; 2004a, b), Viveiros de Castro (2002 a, b; 2004; 2012; 2015) e a disciplina
híbrida da Economia Ecológica com suas reflexões sobre os desdobramentos das leis da
termodinâmica. Vale destacar que Viveiros de Castro e Latour figuram como protagonistas de
uma profunda transformação da Antropologia nas duas últimas décadas. Finaliza-se este
195
Como explicado, este trabalho apresenta um capítulo específico em que se discute esta categoria de análise a
partir do prisma antropológico e jurídico. Por ora basta entender que o conceito de ―populações, povos e
comunidades tradicionais‖ divide-se em dois conceitos, a saber, ―populações tradicionais‖ e ―povos e
comunidades tradicionais‖, entendendo-os como sinônimos, ainda que apresentem algumas sutis diferenças. Para
efeitos desta introdução, lança-se mão do conceito vinculado ao decreto 6.040, de 07 de fevereiro de 2007 que,
em seu inciso I artigo 3o, conceitua esses grupos sociais como ―grupos culturalmente diferenciados e que se
reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e
recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando
conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição‖. Complementa-se este conceito com a
abordagem socioambiental formulada por Diegues (2008), a qual pensa esses grupos sociais com um modo de
vida diferenciado da sociedade maior, integrado ao ecossistema local sem impactá-lo com transformações
profundas a ponto de não permitir sua recuperação a curto prazo.
196
capítulo com reflexões construídas a partir da crítica que esses autores constroem à Teoria
Antropológica, refletindo também sobre os desdobramentos dessa crítica para a categoria
PPCT. Em outras palavras, finaliza-se o capítulo à luz da Antropologia praticada por Latour e
Viveiros de Castro, pensando as implicações da mesma para a atual Teoria Antropológica e
suas construções sobre as noções de PPCT. Com efeito, este capítulo também figura como o
construto teórico-conceitual de análise do cotidiano vivido em Igarapé Grande, exposto nos
dois últimos capítulos.
Os capítulos 6 e 7 ficam responsáveis por apresentar, respectivamente, a história de
formação do coletivo estudado e as relações entre humanos e não humanos do presente. Em
outras palavras, o capítulo 6 constrói um histórico de Igarapé Grande, iniciado em meados da
década de 1910 com o casamento do ―seu‖ Domiciano e da dona Maria dos Anjos,
desembocando no capítulo 7, que descreve o coletivo de Igarapé Grande no presente,
narrando as diversas experiências etnográficas vividas em campo e as diversas associações e
atuações entre atores humanos e não humanos. Nesses dois capítulos deixo claro os meios de
subsistência dos moradores, assim como uma boa parte de seu cotidiano e transformações ao
longo de sua história, evidenciando a crítica passível de ser feita à modernidade e à teoria
antropológica a partir desta etnografia, especialmente explicitadas na conclusão.
Em todos esses capítulos o cenário socioambiental amazônico, em especial o de
Igarapé Grande, figurou como ilustrador das críticas às contradições pensadas pela
modernidade e seu mito de criação e ordenamento do mundo, a ciência. Segue o texto da tese,
esmiuçando a estrutura aqui exposta.
197
Minha formação foi marcada por um ―ir e vir hermenêutico‖ (GEERTZ, 1997) entre o
Direito e as Ciências Sociais, especialmente a Antropologia e a Sociologia, sempre próxima a
uma temática que por si só já carece de abordagens interdisciplinares: as populações
tradicionais amazônicas, sua relação com a natureza, a sociedade nacional e o Estado.
Tal ―ir e vir hermenêutico‖ teve início em 2005, quando do ingresso nos cursos de
Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará e Direito da Universidade da Amazônia198.
196
Ainda que dentro da seara das Ciências Humanas não seja habitual o procedimento de teste de hipóteses, o
utilizo nesta tese na medida em que estou testando conceitos formulados pela Antropologia como ciência (PPCT
e ―cultura e natureza‖) junto à uma realidade física, palpável, passível de ser experimentada, que é a realidade
vivida pelos moradores de Igarapé Grande.
197
O capítulo passado explicitou o que se entende por coletivo e as críticas feitas à noção de comunidade.
Objetivando uma leitura mais dinâmica, o termo comunidade será utilizado como sinônimo de coletivo.
198
A rigor, eu poderia dizer que o início de fato se dá ainda em minha infância, com a influência dos valores
fornecidos pela família, permeados por uma valorização do espaço rural e da natureza, em seu sentido mais lato,
ou seja, o bem viver com o planeta e seus diversos habitantes. As credenciais de minha família são: avô e avó
paternos advindos de famílias camponesas do Chile (incluindo a infância e juventude de meu pai como um
habitante da área rural da grande Santiago dos anos 1960 e, posteriormente da cidade de Cayena, Guyana
198
Durante dois anos consecutivos frequentei os dois cursos mencionados, sendo que em janeiro
de 2007 optei por prosseguir apenas no curso de Ciências Sociais, pois priorizei a formação
acadêmica como caminho profissional. Ainda dentro da temática voltada à questão
socioambiental, ingressei no mestrado do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos
da Universidade Federal do Pará (PPGD/UFPA), no qual discuti os conceitos de PPCT para
essa área do conhecimento e em cenários amazônicos. Em 2012 ingressei no doutorado e,
entre 2012 e 2013 finalizei a graduação em Direito. Em 2014 ingressei na Escola Superior
Madre Celeste (ESMAC), como professor das disciplinas de Direitos Humanos e,
posteriormente, de Métodos e Técnicas de Pesquisa, para o curso de Direito. Assim, o ir e vir
hermenêutico se manteve durante todo o doutorado.
Nesse sentido, alguns questionamentos que permeiam este trabalho iniciam-se ainda
na graduação, quando se debatia nas aulas de Metodologia, Sociologia (weberiana,
durkheiminiana, marxista), Teorias e Metodologias da Antropologia, entre tantas outras
disciplinas, a questão da epistemologia das Ciências Sociais, em especial da Antropologia,
que se aprofundaram especialmente no doutorado. Como fabricar ciência? Como fazer
Antropologia? Como objetivar a multiplicidade de subjetivações que nos rodeiam nesse
―mundo social‖? Ou, mais especificamente, no caso da Antropologia, como fabricar um fato
etnográfico? Seria esse processo de fabricação objetivo o suficiente para ser classificado
como científico? Se a etnografia é um exercício de relatar a experiência de uma alteridade
radical, ou o relato do ―encontro etnográfico‖, com horizontes hermenêuticos tocando-se
(CARDOSO DE OLIVEIRA, 1993), seria possível capturar a cultura do grupo estudado?
Como construir esse relato de maneira objetiva?
Estas indagações, passando pela formulação de novas indagações que surgiam no bojo
das leituras, com descobertas de novos textos, com novas posturas, novos olhares, novos
autores, desenhavam um mundo de possibilidades teóricas, um número sem fim de teorias que
Francesa, ecossistema amazônico dos anos de 1980), avô e avó maternos advindos de famílias interioranas e
camponesas do estado de São Paulo. Minha mãe, paulista e habituada ao espaço rural do sudeste brasileiro, em
sua condição de antropóloga que estudou camponeses amazônicos, permitiu a descortinação do diferenciado
mundo rural amazônico, marcado pelo agroextrativismo e não por lavouras como se dava no sudeste brasileiro.
Posso citar, ainda, outros elementos, como o programa da TV Cultura denominado de ―Planeta Terra‖ (com
homônimo musical de entrada interpretado por Caetano Veloso), que passava nos fins de tarde dos dias de
domingo; as revistinhas da turma da Mônica, Chico Bento e Papa Capim,dos anos 1980e início de 1990, que
pude ler (doadas por meus primos paulistas mais velhos), escritas por pessoas que vivenciaram a urbanização do
rural paulista (elementos não humanos como árvores frutíferas, bairros com laguinhos para se tomar banho,
animais silvestres, lendas locais, foram desaparecendo com o passar dos anos, pouco sendo ativadas nos dias de
hoje nessas historinhas); o quintal da casa da minha avó materna, sendo composto por galinhas, patos, picotas,
goiabeiras, ingás, cacaueiros, hortas, um verdadeiro parque de diversões, localizado no centro urbano de Belém
da década de 1990 (rua Almirante Wandenkolk). Estes foram alguns dos elementos que, penso, me
influenciaram a percorrer a caminhada da pesquisa em áreas rurais.
199
serviam de lentes para melhor entender as múltiplas realidades que se colocavam diante de
mim, um verdadeiro caleidoscópio contraditório e de contradições, absoluto do ponto de vista
de quem vê, relativo no momento em que se move.
O que aprendi no curso de Ciências Sociais a princípio me pareceu, na imaturidade de
minha formação, uma proposta simples: a ciência é um tipo de conhecimento (como a
religião, filosofia, senso comum, entre outros), contudo, é o mais legítimo entre eles, na
medida em que resulta em verdades. Na rota de seu fazer, a ciência lança mão de três
elementos básicos: teoria, objeto e método (ALVES, 2007; DURKHEIM, 2002; MARQUES
NETO, 2001; BLANCHÉ, 1988; FERRAZ JUNIOR, 1977). Claramente delineados esses três
elementos, tem-se uma ciência. Assim, a Antropologia, para constituir-se em uma ciência,
teria a cultura como objeto, a observação participante, a descrição densa e a etnografia como
métodos, ademais de um vasto arsenal de teorias, que passavam por categorias e conceitos
como parentesco, campesinato, territórios, territorialidades, trabalhadores rurais, índios,
negros, quilombos, agricultores familiares, teorias culturais, estudos culturais, favelas,
morros, periferias, religiões, gênero, sexo, costume, tradição e assim segue o percurso dos
meta-conceitos explicativos da Antropologia.
Em outras palavras, a Antropologia tinha seu objeto (culturas tradicionais), seu
método (observação participante, descrição densa, resultando em uma etnografia) e sua teoria
(os meta conceitos recém citados, entre tantos outros). Aparentemente, a Antropologia podia
constituir-se como ciência, mas, qual o seu grau de objetividade, já que ela opera com objeto e
método de estudo que se constituem, eles mesmos, em metaconceitos de difícil definição,
generalização ou mensuração? A Antropologia logra ser fidedigna no relato da cultura alheia?
Para responder a tal conjunto de dúvidas e incertezas, dentro da Antropologia
contemporânea, o mais comum é acionar a figura de Clifford Geertz (1993; 1997; 2001) e
seus ensaios interpretativistas sobre as culturas humanas199, que trouxeram para a ordem do
dia da Teoria Antropológica o conceito de cultura como uma teia de significados construída
pelo homem, na qual ele se movimenta, sendo a função do antropólogo/a somente descrever
essa teia de significados, ainda que com uma postura relativizadora.
Essa maneira de entender a cultura e essa postura relativizadora permitiu, por algum
tempo, respostas importantes e instigadoras dentro da Antropologia. Ocorre que as
conjunturas de pressão sobre camponeses, quilombolas, indígenas e PPCT de forma geral, se
199
Apenas a título elucidativo vale salientar que a protocultura, compreendida como presente para a vida social
dos demais grandes símios, vem na atualidade sendo rediscutida e repensada, dado que a cultura, como uma
produção exclusivamente humana, figura como tema de estudos tanto da área antropológica, mas aparecendo
também na etologia.
200
200
Penso aqui no clássico livro de Velho (1976), ―Capitalismo autoritário e campesinato‖, que narra o avanço da
fronteira do grande capital para as vias campesinas.
201
Algo similar ao ocorrido com o processo de espoliação urbana, como narrado por Kowarick (1983), mas com
algumas adaptações, conforme esbocei em Ravena-Cañete e Ravena-Cañete (2010).
201
Como iniciante da vida acadêmica, atuei como voluntário durante sete anos (2005-
2012) em um projeto de extensão que teve como foco de intervenção uma área periférica de
Belém. A área lócus do projeto configurava-se em uma comunidade à margem de um corpo
d‘água, denominado de Igarapé Mata Fome (doravante IMF). Essa comunidade é formada por
uma população advinda de diferentes áreas do estado do Pará, mais especificamente do baixo
Tocantins e do Marajó, sendo caracterizada por práticas sociais específicas de relação com os
recursos naturais. Participei de outros projetos desenvolvidos nessa área, com o mesmo grupo
de pesquisa, dessa forma, durante este trabalho esses projetos serão referidos apenas como
Projeto IMF.
Outro projeto que influenciou e redirecionou meu olhar refere-se ao projeto ―Gestão
das águas na Amazônia: peculiaridades e desafios no contexto político-regional da bacia do
rio Purus‖ (CNPq/PPG7). Nele atuei inicialmente na condição de voluntário e posteriormente
como bolsista de iniciação científica e, finalmente, colaborador voluntário, ampliando minha
compreensão e proximidade com a temática socioambiental. Meu vínculo como bolsista
terminou em dezembro de 2007, no entanto, permaneci como colaborador voluntário no
projeto em questão, visto que meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) na graduação em
Ciências Sociais (com ênfase em Antropologia) voltou-se para as populações tradicionais do
rio Purus, em especial os ribeirinhos do percurso Lábrea/Canutãma/Tapauá (AM).
O projeto acima mencionado desdobrou-se em outros projetos que também abordavam
a relação entre sociedade e ambiente no contexto do rio Purus, oportunizando a somatória de
mais de seis anos de pesquisa sobre este rio e seus habitantes. Esses projetos serão referidos
no decorrer desta pesquisa apenas como Projeto Purus.
Vale observar que no decorrer desses seis anos, de forma paralela, atuei em outros
projetos de pesquisa. Assim, outra experiência marcante em minha trajetória acadêmica foi o
período de dois anos e meio como estagiário e, posteriormente, como assistente de pesquisa
em projetos coordenados pela Profa. Dra. Oriana Trindade de Almeida do Núcleo de Altos
Estudos Amazônicos (NAEA/UFPA), entre 2008 e 2010. Esses projetos abordavam a
temática da pesca na Amazônia paraense, possibilitando o contato com outros tipos de PPCT
amazônicas, a saber, os pescadores artesanais e ribeirinhos polivalentes no sentido colocado
202
por Furtado (1993), expandindo meu olhar sobre a realidade socioambiental da região.
Durante esse período pude conhecer colônias, associações e comunidades de pescadores,
assim como associações e comunidades agroextrativistas dos municípios de Igarapé Miri,
Cametá, Oeiras do Pará, Abaetetuba, Curuçá, São Caetano de Odivelas, Colares, Vigia, Viseu
e diversos outros municípios do litoral paraense e da mesorregião do Baixo Tocantins.
Buscando ampliar meu olhar de cientista social, de maneira paralela à minha trajetória
acadêmica, no ano de 2009 retornei parcialmente à graduação em Direito (cursando algumas
disciplinas) e ingressei no Escritório Técnico de Assistência Jurídica e Judiciária da UNAMA
(ETAJJ), possibilitando uma maior intimidade com a prática jurídico-processual,
especialmente na área cível. A experiência de pesquisa, aliada ao contexto da atuação na área
do Direito, me permitiu perceber padrões e especificidades nas práticas sociais de relação com
a natureza das populações tradicionais amazônicas, fruto de condições socioambientais e
históricas, treinando e ampliando meu olhar de pesquisador social. Essa experiência também
me permitiu conjugar a empiria da realidade socioambiental amazônica com as produções
acadêmicas e os instrumentos jurídico-legais da região, gerando um olhar crítico sobre tais
produções e instrumentos.
Finalmente, nos últimos três anos (2011 a 2013), duas experiências foram marcantes
para minha trajetória acadêmica e, consequentemente, para a construção desta pesquisa, a
saber: o mestrado em Direito que cursei e o trabalho desenvolvido junto à Superintendência
do Patrimônio da União (SPU).
Assim, a primeira destas experiências refere-se ao curso de mestrado que realizei no
Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPA, na linha de pesquisa em Direitos Humanos
e Meio Ambiente, durante o período de março de 2010 a março de 2012. Na referida
oportunidade desenvolvi uma dissertação voltada à análise da aplicabilidade dos conceitos de
populações, povos e comunidades tradicionais à realidade social das mesmas, construindo
uma revisão bibliográfica sobre os conceitos jurídicos e acadêmicos de ―populações
tradicionais‖ e ―povos e comunidades tradicionais‖, evidenciando suas diferenças, assim
como suas incongruências, ambivalências e inaplicabilidades às realidades tão diversificadas
desses grupos sociais. Utilizei como exemplo as comunidades ribeirinhas do Purus, no
percurso dos municípios de Lábrea, Canutãma e Tapauá (todos no estado do Amazonas),
assim como o caso da comunidade Bom Jesus I, localizada às margens do Igarapé Mata
Fome, um corpo d‘água da região urbana de Belém/PA, sendo estes cenários sociais já
conhecidos por mim em virtude de minha participação nos projetos Purus e IMF, como
relatado acima.
203
Em certo sentido, a dissertação serviu como um preâmbulo para a escrita desta tese,
pois sua argumentação principal era a de que a produção legislativa nacional era feita por
legisladores que tinham como plano ontológico a separação do ser humano da natureza, a
crença de que existe uma dimensão do mundo que é da natureza e outra que é da cultura.
Assim, uma série de legislações eram citadas e analisadas à luz da realidade socioambiental
da Amazônia, trazendo indícios de que essa legislação não se aplica à realidade
socioambiental de PPCT.
Com efeito, pude concluir que a elaboração da norma jurídica deve assumir uma
postura diferenciada ao tratar de PPCT, na medida em que estes grupos apresentam práticas
sociais de relação com a natureza específicas, diferenciadas da sociedade maior, assim como
identidades, valores e crenças culturais diversificadas entre si202 e novamente em relação à
sociedade maior. Consequentemente, diversas políticas públicas voltadas para estes grupos
sociais terminam por homogeneizar suas diferenças, transformando-se de políticas de inclusão
social203 para ferramentas políticas de exclusão ou homogeinização social, como foi o caso
das Reservas Extrativistas (doravante RESEX) que, criadas pelas demandas e com intensa
participação das próprias PPCT, inicialmente eram entendidas como uma solução, sendo que
atualmente podem ser entendidas como um problema (LOBÃO, 2006; ROSA, 2012;
RODRIGUES, 2011204).
Em 2012, logo após a conclusão do mestrado, entrei no doutorado do Programa de
Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia com um projeto de pesquisa que abordava a
diversidade da pesca artesanal e o atual tratamento que o Ministério da Pesca e Aquicultura
lhe despendia, contudo, como ainda não tinha sido disponibilizada bolsa de doutorado,
estabeleci relações profissionais junto à Superintendência do Patrimônio da União,
participando do projeto de pesquisa e extensão ―Caracterização dos Imóveis da União em
202
Estas práticas sociais de relação com a natureza expressam-se em uma diversidade de maneiras de cultivar o
solo, nas espécies cultivadas, nas formas de extração de recursos naturais das florestas e corpos d‘água, na
variabilidade de recursos extraídos assim como no próprio consumo desses produtos, permeado por regras
sociais que ditam a maneira de prepará-los e consumi-los. Como exemplo, cito a diversidade de técnicas de
roçado existentes na Amazônia, variando de ecossistema para ecossistema e de coletivo para coletivo. Moran
(1990), Maués (1999) e Hebette (2004), entre tantos outros autores e autoras, detalham essa diversidade
sociocultural e ambiental dos povos da Amazônia.
203
Entre essas políticas pode-se citar especificamente: políticas ambientais de áreas especialmente protegidas;
transferência de renda; reforma agrária; previdência social; políticas educacionais; políticas trabalhistas. No caso
do coletivo em estudo, pode-se adiantar que o posicionamento rígido das políticas de erradicação de trabalho
infantil e o acesso à escola vêm retirando a criança do ambiente familiar como uma unidade de produção,
dificultando a aprendizagem de práticas de uso da terra e exploração de recursos naturais desenvolvidas pelas
gerações anteriores; os projetos de produção rural não têm continuidade dentro de Igarapé Grande; a política de
transferência de renda vem apresentando um forte impacto no modo de vida local, na medida em que algumas
famílias limitam-se a essa renda, deixando de lado outras atividades produtivas.
204
Comunicação oral de Osmarino Amâncio Rodrigues, por meio de palestra do V SIINGA, VI SINGA 2011, 07
a 11 de novembro. Mesa redonda ―Formas de apropriação dos recursos naturais na Pan-Amazônia‖, 09.11.2011.
204
205
Para mais detalhes, consultar SPU (2008; 2014).
206
Termo de Autorização de Uso Sustentável. Instrumento administrativo utilizado pelo governo federal para
oficializar o uso de suas áreas por comunidades rurais e agroextrativistas. Para mais detalhes, consultar Souza
Filho (1999), Carvalheiro et al. (2010), Ravena-Canete (2014), Marques e Ravena-Canete (2014).
207
Citam-se alguns exemplos: Programa Bolsa Verde, que faz parte do Plano Brasil sem Miséria (seu nome
oficial é Programa de Apoio à Conservação Ambiental, mais detalhes consultar
http://www.mma.gov.br/desenvolvimento-rural/bolsa-verde); o Cadastro Único (ou CadÚnico), instrumento
governamental que identifica e caracteriza as famílias de baixa renda (mais detalhes:
http://www.mds.gov.br/bolsafamilia/cadastrounico); programa de financiamento habitacional desenvolvido pelo
governo federal, denominado de Minha Casa Minha Vida, em seu âmbito rural (mais detalhes em
http://www.caixa.gov.br/habitacao/mcmv/) ; Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, que
financia projetos individuais ou coletivos, que gerem renda aos agricultores familiares e assentados da reforma
agrária (mais detalhes: http://portal.mda.gov.br/portal/saf/programas/pronaf), entre outros.
208
Em apertada síntese, este ato administrativo consiste no processo de identificar se a ilha está em um rio
federal, separar as terras objeto de títulos de propriedades válidos dentro da ilha, para então arrecadá-la e
registrá-la como de propriedade da União.
205
209
Desde já deixo expresso meus agradecimentos aos funcionários da escola Domiciano de Farias, especialmente
ao seu diretor, o ―seu‖ Aureliano Junior, que frequentemente permite minha presença não só na escola, como na
lancha que leva os alunos até lá.
207
Na medida em que minhas idas a campo eram realizadas, pude notar como as
paisagens iam transformando-se no decorrer do percurso do porto do Surdo, as quais iam
gradualmente metamorfoseando-se de um ambiente urbano para uma Amazônia rural.
Dentro desse cenário, faz-se relevante observar que moro a poucos minutos de carro
do Porto do Surdo, e, como recém explicitado, na medida em que me aproximava do referido
porto, a paisagem urbana cedia lugar a elementos de uma vida rural. De uma rua cercada por
casas e intensamente permeada por carros, passa-se a ver inúmeras árvores de diversas
espécies; as casas passam a apresentar um traço mais rústico e mais simplificado, localizando-
se cada vez mais distantes umas das outras; a quantidade de carros sofre uma significativa
diminuição, assim como o número de pessoas andando na rua se apresenta como
inversamente proporcional à diminuição dos carros. É um cenário de transição. Chegando ao
porto do Surdo, a transição está quase completa, pois em suas proximidades é possível ver
algumas casas com criações de aves de pequeno porte, açaizais (Euterpe Oleracea), casas
pequenas, algumas feitas de madeira e no formato de palafita, com extensos quintais.
A sequência de fotografias, expostas a seguir, permite uma perspectiva visual do
caminho para o porto do Surdo e das mudanças relatadas.
placas com anúncios diversos, entre eles, festas de aparelhagens e de conclusão de obras
governamentais de urbanização. Minha residência localiza-se na rodoviado 40 Horas, há
poucos metros da esquinavista ao fundo da Fotografia 02. Na condição de um morador dessa
região há mais de vinte anos, sou testemunha do processo de ocupação dessa rodovia, que se
intensificou nos últimos oito anos, com a expansão do mercado imobiliário da Região
Metropolitana de Belém e o crescente número de condomínios populares que por aqui se
instalaram.
210
Digno de nota é o fato de que moro no referido condomínio há mais de vinte anos e fui testemunha das
transformações que o espaço dos arredores desse condomínio sofreu. Como exemplo, cito o fato de que no
período em que me mudei, meados de 1990, existia somente o condomínio que eu residia e a maior parte do
espaço restante era constituído por sítios e chácaras, ou seja, a rodovia do 40 horas era uma região rural. O
terreno que ficava ao lado do meu condomínio era um sítio com mata fechada, sendo que quando ainda era
criança, eu acordava com o barulho de macacos que ficavam nas árvores da referida mata. Esse sítio foi
transformado em outro condomínio e a mata foi derrubada, e, nesse mesmo período, meu condomínio encheu-se
de animais diversos que fugiam da devastação de suas matas. Entre esses animais posso citar especificamente
cinco espécies das quais me lembro: quatis, cobras, mucuras, lagartos, papagaios e periquitos. Ficarei por aqui na
narrativa de como a rodovia do 40 horas era rural, ainda que em minha lembrança existem muitos outros
exemplos.
210
Fotografia 02; passando pela rua Estélio Maroja (Fotografia 03), adjacência dos diversos
conjuntos habitacionais popularmente conhecidos como Cidade Nova, amplamente
urbanizados e já tendo sido objetos de processos de expoliação urbana (KOWARIC, 1983),
finalizando na avenida Independência, recém-construída, por isso ainda não tão urbanizada e
homogeneizada, permitindo o encontro com formas de uso e ocupação do espaço que se
confundem com características do espaço rural. Exponho a seguir algumas fotos desses
espaços de transição entre o mundo urbano e o mundo rural que ainda se manifestam na
avenida Independência.
Fotografia 07: Primeira parte da passagem que dá acesso ao porto do Surdo, ainda com
asfalto
Fotografia 08: Segunda parte da passagem que dá acesso ao porto do Surdo, já sem
asfalto
Fonte: Arquivo pessoal (2014)
213
Nesse sentido, vale esclarecer que os moradores das ilhas de Ananindeua estão
dispostos em diversas comunidades, sendo que nem toda ilha está ocupada, no entanto,
algumas apresentam mais de uma comunidade. Esse é o caso da ilha de João Pilatos, que
apresenta, ademais da comunidade de Igarapé Grande, as comunidades de Maritubinha I,
Maritubinha II, João Pilatos, Nova Esperança, e outras.
Como este trabalho limita-se à comunidade de Igarapé Grande, os próximos tópicos
descrevem o percurso fluvial e o coletivo estudado.
Fotografia 10: Moradores da região das ilhas circulando no porto do Surdo. Destaque para
uma das duas embarcações escolares do município de Ananindeua, que transporta os alunos
da região das ilhas para a escola municipal que fica em Igarapé Grande
importa a essas pessoas: um peixe pescado com o pai, um banho acompanhado de um boto,
um passeio na casa da avó, enfim, o rio faz parte do mundo físico e simbólico dessas pessoas.
Após aguardar todas as crianças e funcionários/as da escola embarcarem, parte-se para
navegar no rio, deixando para trás o porto e sua movimentação. No trajeto vê-se a extensa
várzea do rio Maguari, que equivale ao bairro do Curuçambá (Ananindeua/PA) de um lado e
do outro as ilhas do município de Ananindeua. Outrora rica em biodiversidade, hoje é
composta por algumas espécies de vegetais e crustáceos, mas ainda assim mais biodiversa que
as beiradas dos muitos igarapés urbanos transformados em canais no município de Belém e
mesmo Ananindeua. A Fotografia 11 permite uma perspectiva das beiradas do rio Maguari.
Fotografia 11: Beiradas do rio Maguari. Trajeto que sai do porto do Surdo e leva até Igarapé
Grande
Fonte: Arquivo pessoal (2014)
Nova Esperança e alguns alunos e alunas aguardando a condução escolar fluvial. A fotografia
foi tomada, vale dizer, da condução em questão.
Fotografia 12: Porto de entrada da comunidade de Nova Esperança e alguns alunos e alunas
aguardando a condução escolar fluvial
Para as pessoas que não são ―legítimas‖ ou ―tradicionais‖ da ilha, a porta de entrada da
comunidade é o trapiche que fica em frente à Escola Municipal Domiciano de Farias.
Vale ressaltar que coloco entre aspas os termos ―legítimas‖ e ―tradicionais‖ porque
foram utilizados por alguns moradores da comunidade, quando questionados sobre a história
de ocupação da mesma, lançando mão do fato de serem legítimos e tradicionais na medida em
que nasceram na localidade e são herdeiros do ―seu‖ Domiciano de Farias, fundador da
comunidade. Este discurso é repetido por moradores de outras ilhas e comunidades,
permitindo estender esse atributo de legitimidade e tradicionalidade à região das ilhas de
Ananindeua. Assim, a legitimidade e a tradicionalidade podem ser tanto em relação à
comunidade como em relação à região das ilhas211.
Nesse sentido, as pessoas legítimas e tradicionais, tanto da comunidade como da
região das ilhas, utilizam portos ou de sua propriedade, ou de parentes e amigos/as, assim
211
Considerando que este tópico refere-se à descrição estrutural de Igarapé Grande, este fenômeno de
―legitimidade‖ e ―tradicionailidade‖ será tratado em uma seção posterior e específica, detalhando a história local
e as relações de parentesco. Por ora basta entender que os habitantes de Igarapé Grande se veem como legítimos
na medida em que são herdeiros do ―seu‖ Domiciano de Farias e são tradicionais em virtude de ocuparem o local
já há mais de um século.
218
A Fotografia 14 tomada na hora da chegada das duas conduções escolares, por volta
de oito horas da manhã, sendo possível ver uma das embarcações da escola. A outra
embarcação estava preparando-se para atracar junto ao porto, aproximando-se do mesmo,
sendo que eu estava embarcado no referido meio de transporte. Ressalto ao leitor que observe
o nível do rio, que estava em seu nível mais baixo. Segue abaixo exposta uma fotografia do
horário da saída, por volta de meio dia, no qual as crianças estão adentrando a outra
embarcação da escola.
219
Fotografia 15: Saída das crianças da escola para retornarem para suas casas
Novamente chamo a atenção para o nível da água, que está próximo do seu máximo.
As duas fotografias acima expostas foram tomadas no mesmo dia, tendo como diferença o
horário e a perspectiva. Enquanto a primeira fotografia foi tomada no início da manhã, com o
nível da água em seu mínimo e da perspectiva de quem está chegando, ou seja, do centro do
rio para a comunidade; a segunda foi tomada no final da manhã, passadas as doze horas
iniciais do dia, com o nível da água em seu máximo e com a perspectiva de quem está saindo
da comunidade, mas ainda no caminho de embarcar. Assim, na primeira é possível visualizar
o trapiche do próprio barco, na segunda visualiza-se o barco e o trapiche ainda na entrada da
comunidade. Abaixo segue uma fotografia da perspectiva do trapiche para a comunidade,
visualizando as crianças chegando na escola no turno da manhã e, ao fundo, a Escola
Domiciano de Farias.
220
Fotografia 16: O trapiche com as crianças chegando pela manhã e a escola ao fundo
A fotografia permite ver as crianças chegando para seu horário escolar e ao fundo a
escola. Visualiza-se o trapiche em que as conduções escolares diariamente ancoram para
deixar os estudantes de outras ilhas e do próprio Curuçambá. No decorrer do trapiche estão as
crianças em direção às duas edificações que compõem a escola, ficando um barracão em cada
lado da escola, com a função de funcionar ora como sala de aula, ora como local de eventos
da comunidade. Segue a fotografia dos barracões para apreciação.
A escola funciona o dia inteiro, sendo o período da manhã reservado para os cinco
anos iniciais do ensino fundamental e a tarde reservada para os últimos quatro anos. Os alunos
dispõem de quatro refeições ao dia: um café da manhã e um frugal almoço no turno matutino,
sendo que este mesmo almoço é disponibilizado para os alunos e alunas da tarde,
posteriormente servidos de um lanche.
O posto de saúde dispõe de uma enfermeira, três agentes de saúde e uma médica. O
referido posto deve atender todas as ilhas de Ananindeua, ou seja, um público de mais de
seiscentas pessoas, entre crianças, jovens, adultos e idosos, segundo informações dos
moradores de Igarapé Grande.
O acesso inicial à ilha de João Pilatos se deu de maneira conturbada, pois as únicas
informações que dispunha sobre a referida ilha eram aquelas advindas da SPU/PA, que
estavam ligadas menos à sua localização e procedimentos de acesso do que referenciando os
procedimentos administrativos tomados para executar o ato de arrecadação da mesma para o
patrimônio da União. Em outras palavras, eu não fazia ideia de como chegar à ilha.
Ocorre que alguns meses após a decisão de tomar como lócus de pesquisa a ilha já
citada, fui convidado para uma banca de Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) que
abordava justamente uma comunidade da ilha. Por meio da aluna Cirlem Terezinha Moraes
do Nascimento, autora do TCC212, pude entrar em contato com o ―seu‖ Aureliano Rocha R. da
Costa Junior, diretor da única escola municipal da região das ilhas de Ananindeua. Essa
escola localiza-se na comunidade de Igarapé Grande, ilha de João Pilatos. Com efeito, o ―seu‖
Aureliano disse que eu poderia fazer a travessia até a comunidade com a lancha escolar, que
parte de segunda a sexta feira, aproximadamente às sete horas do porto do Surdo, bairro do
Curuçambá, município de Ananindeua/PA, assim como explicou quais eram os ônibus que
passavam nas proximidades do referido porto213.
Dessa forma, tive acesso à comunidade de Igarapé Grande somente em 15 de maio de
2014. Em minha primeira ida a campo tive a oportunidade de conversar com o próprio
Aureliano, alguns professores/as e funcionários/as da escola, assim como alguns moradores/as
212
―Contribuições da educação ambiental na ilha de João Pilatos: uma análise na escola Domiciano de Farias no
município de Ananindeua‖, monografia defendida em 18 de dezembro de 2013, no curso de Licenciatura em
Ciências Sociais do Programa Nacional de Formação de Professores da Educação Básica / PARFOR.
213
Seções posteriores deste trabalho estão reservadas para uma descrição mais detalhada da comunidade. Nesse
sentido, devo deixar claro que este tópico tem por objetivo somente esclarecer o processo de construção do
problema de pesquisa, na medida em que o mesmo foi transformado no decorrer de minhas idas a campo até
chegar à problematização atual.
222
da comunidade. Vale ressaltar que na época o tema de minha tese estava voltado
exclusivamente para a análise do TAUS, no sentido de entender se esse instrumento de
regularização fundiária levava em conta as especificidades dos diversos modos de vida
construídos pelas populações, povos e comunidades tradicionais da Amazônia.
A impressão inicial que tive foi aquela consultada nos livros e artigos científicos que
falam sobre comunidades caboclas214 e ribeirinhas amazônicas (ADAMS, MURRIETA,
NEVES, 2006; DIEGUES, 2008; LIMA, 1999; LIMA; POZZOBON, 2000; FURTADO,
1993), assim como aquela construída em minha própria experiência de campo pretérita junto a
outras comunidades rurais amazônicas: um povo que desenvolve práticas sociais de uso dos
recursos naturais diferenciadas da sociedade maior, com uma organização social fortemente
delineada por relações de parentesco e compadrio e que, nas últimas duas décadas, vem
lutando de maneira mais vigorosa por seus direitos territoriais e culturais, tentando manter a
essência de seu modo de vida, ainda que articulado com novas práticas advindas da interação
com o mercado e com políticas agrárias e de inclusão social do Estado (ALMEIDA, 2008b;
CUNHA; ALMEIDA, 2001).
De posse de impressões iniciais, conclui que os ribeirinhos, como de costume em
outras comunidades, desenvolviam as atividades da pesca artesanal, agricultura familiar
(especialmente a produção de farinha) e extrativismo vegetal, especialmente o açaí e, no caso
da região das ilhas de Ananindeua, a extração de madeira para a produção de carvão.
Para confirmar essa conclusão, lancei mão de conversas informais que tive com alguns
habitantes da ilha e funcionários/as da escola, perspectivadas com experiências de campo
pretéritas e leituras acadêmicas sobre o conceito de populações, povos e comunidades
tradicionais da Amazônia.
Como exemplo, cito o caso da entrevista que fiz com o ―seu‖ Antônio Farias, um dos
moradores mais antigos da comunidade. Ele relatou que a comunidade fora fundada por seu
avô, Domiciano de Farias, e, sua avó, Maria Cristina dos Anjos de Farias, sendo todos os
moradores atuais da ilha parentes ou afins do referido casal. Este modelo de colonização e
perpetuação do direito ao uso da terra é comum no interior amazônico, como relatado por
Ravena-Cañete (2005) e Almeida (2006), reproduzindo-se não só na comunidade em questão,
214
Lima (1999) discute de maneira mais aprofundada a categoria ―caboclo‖, como um conceito fruto do discurso
coloquial e acadêmico que, na maior parte das vezes, não encontra eco junto às comunidades estudadas, ou seja,
essas comunidades não se identificam como caboclas. Lima (1999), entretanto, propõe que esta categoria possa
ser entendida como um tipo ideal que funcione como conceito operacional para que a academia possa transitar
entre as características específicas de cada comunidade e as características mais gerais e comuns à maior parte
delas. Entre essas características está o fato de estes grupos sociais associarem-se a corpos d‘água, especialmente
rios, entendendo, assim como esta pesquisa, como sinônimas.
223
mas na maior parte das comunidades das ilhas de Ananindeua, fato este narrado por ―seu‖
Antônio Farias e confirmado pelos senhores Gilberto Farias e Bagre, entre outros moradores
das ilhas.
O ―seu‖ Antônio Farias ainda ratificou minha percepção quando narrou sua história de
vida, contando que seu avô chegou a coletar seringa nas décadas de 1930 e 1940, criou gado
leiteiro, produziu farinha de mandioca, vendeu e consumiu todo tipo de recurso florestal (açaí,
andiroba, jenipapo, mari-mari, carvão vegetal entre tantos outros frutos e recursos extraídos
da floresta) faunístico (veado, tatu, cutia, paca, mucura, entre outras caças comuns ao cenário
paraense, bem como jabuti, tartarugas de espécies variadas e jacarés) e pesqueiro (peixes de
espécies variadas, caramujos, camarão etc., entre diversos outros recursos), desenvolvendo
um modo de vida intensamente atrelado ao uso dos recursos naturais locais, característica essa
parcialmente215 preservada por ―seu‖ Antônio Farias e seu filho, atual presidente da
comunidade, o ―seu‖ Gilberto Farias.
Este discurso se repetiu na conversa com outros moradores, assim como foi
confirmada pelos professores/as da escola da comunidade. Eu estava maravilhado com o
contato com os ribeirinhos de Igarapé Grande, visualizando-os como aquele típico caboclo
amazônico: comedor de farinha, açaí e peixe; conhecedor das florestas, matas e rios das
redondezas; autores e usuários de técnicas tradicionais de práticas da caça, pesca, extração de
recursos florestais e práticas tradicionais de cultivo do solo.
Ocorre que ao longo de minhas idas a campo fui notando que esse perfil pertencia às
pessoas mais velhas, por volta dos seus trinta e cinco anos ou mais. Os adultos na casa dos
trinta e quatro anos para baixo, em sua maioria, atuaram por pouco tempo na roça e na pesca,
sendo a relação com os recursos naturais locais desenvolvidas, no presente, somente pela
extração do açaí e produção do carvão vegetal, sendo fortemente marcada por um caráter
econômico e ordenado pela lógica do mercado, ou seja, a natureza representa um recurso a ser
economicamente explorado. Assim, o modo de vida caboclo ao qual eu estava acostumado a
visualizar nas comunidades ribeirinhas amazônicas não se repetia em Igarapé Grande, na
medida em que seus moradores deixaram de interagir intensamente com os recursos naturais
locais, visualizando-os como recursos a serem economicamente explorados. Agrega-se a esta
situação o fato de que muitas pessoas da comunidade trabalham na cidade e moram na
215
Os senhores Antônio Farias e Gilberto Farias não chegaram a extrair seringa, tampouco criar animais de
grande porte na ilha, mas essas práticas fazem parte do imaginário local através do fundador da comunidade,
Domiciano de Farias.
224
2.5 Descompasso entre a teoria e a experiência vivida com os humanos e não humanos de
igarapé grande
A etnografia em Igarapé Grande foi pensada inicialmente para analisar as relações que
se desenvolviam com as ações de regularização fundiária do Instituto de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA) e outras políticas decorrentes das mesmas (como créditos rurais,
casas do INCRA, programa Luz para Todos, entre outros).
Nesse sentido, o projeto de qualificação da tese estava composto por dois capítulos e
um extenso apêndice (esboço daquilo que seria o capítulo III, responsável pelo
desenvolvimento da temática agro-fundiária), ademais de uma introdução. Na época, a
pesquisa apontava para caminhos que perscrutariam temáticas ligadas à regularização
fundiária, reforma agrária, títulos de terra e a intervenção estatal na comunidade de Igarapé
Grande. Com efeito, construiu-se um esboço sobre instrumentos de regularização fundiária,
formas de apropriação da terra na comunidade, história fundiária das ilhas da União. Ocorre
que, no decorrer das estadas de campo, a pesquisa tomou rumos que se afastaram da temática
agro-fundiária. Tal fenômeno ocorreu ora por opção do pesquisador217, ora por indicativos
que os próprios dados em campo lhe davam, ora por novas leituras realizadas no decorrer da
pesquisa.
Assim, o fazer etnográfico acaba tomando vida própria, guiando o etnógrafo para
trilhas inesperadas e inusitadas, tirando-o de seu caminho inicialmente projetado, sendo que
com este trabalho não foi diferente. De discussões que envolviam o atual uso da terra e as
relações da comunidade em seu tempo presente com o Estado, este trabalho passou para o
estudo das transformações culturais ao longo do tempo e as relações entre os humanos e não
humanos em Igarapé Grande (LATOUR; 2012; 2013a; 2013b; 2014), finalmente
desembocando em uma jornada por um espaço e um tempo muito diferentes daqueles
216
Desde já faço a observação que não penso que essas comunidades devam ficar culturalmente estáticas ou que
o governo deve promover políticas que preservem e protejam seu modo de vida como está agora, coibindo
qualquer tipo de mudança. A questão é que essas comunidades têm o direito de desenvolver seus modos de ver e
viver no mundo, mas a partir de seu ritmo e sua concepção de desenvolvimento, não sendo a mudança
obrigatória, tampouco proibida. Este direito está garantido nos artigos 215, 216 e 216A da Constituição Federal,
sendo que este processo de mudança deve ser realizado de maneira a considerar suas especificidades culturais,
modos de ser, viver e existir, sem impor nossos padrões e anseios de vida à eles. Em outras palavras, as políticas
devem considerar as necessidades da própria comunidade e não as necessidades do Estado e do mercado.
217
E aqui a experiência pessoal e profissional com certeza figuram como influências nessa mudança, como será
narrado mais adiante.
226
218
Como entendida por Latour (2013a), entendendo-a partir de três aspectos: o primeiro como o projeto de
humanidade que crê na dicotomia entre natureza e cultura em seus estados puros, ou seja, tudo que há no mundo
ou é natural ou é cultural, não existindo mesclas ou mesmo outros entendimentos; o segundo entendendo a
passagem do tempo de maneira linear e uniforme, ou seja, passando igualmente para todos e sempre para frente,
em um sentido apenas; a terceira entendendo que existe a possibilidade da eliminação do risco, este risco como
explicado por Beck (1998).
219
Posto entre aspas porque, na época, utilizou-se a noção de cultura proposta por Geertz (1993). Com novas
leituras e por meio de dados coletados em campo, essa noção foi ampliada, sendo utilizado, como será exposto e
explicado, para mudanças no coletivo de humanos e não humanos de Igarapé Grande.
220
Um ponto de vista que já ocupa o status de ―clássico-moderno‖ dentro da Antropologia mundial, na medida
em que Geertz figura como um antropólogo da modernidade (pós-Malinowski, logo moderno), já sendo
amplamente conhecido e majoritariamente aceito como um paradigma a ser utilizado na formulação de
etnografias.
227
ser produzidos a partir delas (LATOUR; 2013a; 2013b; 2014), no coletivo que compõe a
comunidade de Igarapé Grande, entendendo-a como um coletivo de humanos e não humanos.
Nas fotografias abaixo é possível visualizar humanos e não humanos do grupo em questão.
Fotografia 18: Embarcação navegando no rio Maguari, em meio à chuva e em frente à ilha de
João Pilatos. Ao fundo a ilha de Sororoca, com vegetação nativa e uma torre do linhão que
leva luz elétrica para a região das ilhas de Ananindeua. A luz elétrica chegou a
aproximadamente uma década nessa região
221
Relembrando: considerando a comunidade de Igarapé Grande como um coletivo de seres, de humanos e não
humanos, que não são puros, ou seja, são um híbrido entre o que as Ciências Sociais dicotomizam entre
tradicionais (do mundo natural, rural, campesino, privado, entre outros) e modernos (do mundo cultural, urbano,
citadino, público, entre outros) (LATOUR, 2013a), quais as semelhanças e diferenças entre as atividades de
relação com o mercado e com a natureza do passado e do presente?
229
nós jamais fomos modernos. Todos esses grupos constituem-se, assim como nós, em um
coletivo de humanos e não humanos que compõem uma rede maior que, em uma perspectiva
mais ampla, também será um novo coletivo de humanos e não humanos. Na medida em que o
zoom de coletivos estudados se amplia, chega-se ao coletivo-rede mais amplo – o planeta
Terra.
Com efeito, não se cai mais na dicotomia de argumentos: eles estão se
―modernizando‖ e isso é algo negativo porque estão perdendo suas características culturais
(tradicionais), devendo permanecer congelados, cristalizados, não podendo existir mudanças
em sua cultura; ou, eles estão se modernizando e isso é positivo, pois estão recebendo as
―benesses‖ dessa modernidade, podendo e devendo mudar, mas deixando de ser tradicionais.
Para melhor ilustrar essa questão, segue o Quadro 01, expondo o quadrante que estes dois
argumentos acaba formando, subdividindo-se em positivos e negativos.
Quadro 01: Quadrante de argumentos positivos e negativos de ser tradicional ou ser moderno
Discurso positivo Discurso negativo
Mudar/ Terão acesso à celular, internet, Perdem muito de suas características
Modernizar mídia, computadores e tecnologias ―culturais‖, transformando-se em
diversas, ―facilitando‖ sua vida, ―modernos‖, homogeneizando um modo
permitindo um maior bem-estar de vida, subjugando-se a ele, tendo
acesso a uma mídia totalitária e
enviesada, entrando na sociedade como
pobres.
Não mudar/ Irão manter seu modo de vida não Noção de que a ―cultura‖ não pode
permanecer moderno, garantindo uma maior mudar (ela é dinâmica, afinal), e os
tradicional diversidade ―cultural‖ de modos de outros têm o ―direito‖ de mudar pois, se
viver e de existir no coletivo maior, não mudarem, não terão acesso aos
que é o planeta Terra, garantindo, novos ―serviços da modernidade‖222.
também, uma maior biodiversidade.
Fonte: Elaboração própria
222
Aqui reside uma das principais hipóteses deste trabalho: a dinamicidade da cultura pode até existir, mas essa
dinamicidade não pode ser tão veloz como se verifica no contato com a maioria das comunidades não modernas.
Suas cosmologias, seus modos de ser, viver e existir não deveriam mudar tanto de uma geração para a outra. Isso
já seria violência simbólica, evidenciada, inclusive, pela transformação do adjetivo de ―tradicional‖ para
―periferia‖, ―pobres‖, entre outras, que são normalmente como essas comunidades adentram o mundo moderno.
Em outras palavras, quando elas se ―modernizam‖, assim o fazem ocupando a condição da margem da sociedade
moderna, a condição de uma comunidade pobre.
230
223
Quem não quer ter acesso à internet, usar um carro do ano, tomar fotos com iphones da última geração, morar
em condomínios luxuosos e assim por diante? Todos e todas têm esse direito, bradam os modernos, mas nem
todos têm esse desejo de vida, assim como não existem atores não humanos disponíveis para agenciar todos
esses atores humanos com seus anseios modernos.
231
sendo sua cara metade, também ocorre. Este seria o fato de essas ―culturas‖ perderem
algumas das características que as marcavam, as distinguiam como diferenciadas, ou seja,
para a Antropologia culturalista, ou elas perderam sua ―cultura tradicional‖ e passaram a ter
uma ―cultura moderna‖, ou ainda são tradicionais, mas incorporaram elementos da ―cultura
moderna‖.
Com efeito, abrem-se as portas para uma Antropologia comparativa entre a noção
antropológica de PPCT e as vivências do pesquisador em uma suposta PPCT, mediadas tanto
por suas práticas de pesquisa tradicional (―descrição densa‖, questionários, entrevistas,
fotografias etc.), mas também pela Antropologia proposta por Latour224. Em outras palavras,
por meio dos dados coletados na pesquisa de campo, foi possível construir os capítulos 6 e 7,
apontando, a partir do ponto de vista de quem vive na ilha de João Pilatos, as inconsistências
teóricas da Antropologia e seus meta conceitos aqui utilizados. Nesse sentido, as visitas e os
relatos de experiências junto aos moradores de Igarapé Grande servem menos ao propósito da
fabricação de um fato etnográfico em si mesmo, do que ao propósito de desenhar um pano de
fundo para evidenciar problematizações da atual sociedade moderna e seu projeto de
explicação de mundo, a atual ciência moderna. Utiliza-se o pleonasmo atual e moderno
com o propósito de evidenciar que já somos modernos há alguns anos, mas os problemas que
a modernidade (e sua sociedade e ciência) deveria solver, persistem, multiplicam-se,
transformam-se e intensificam-se, potencializando um futuro cada vez mais catastrófico e
apocalíptico para o planeta Terra, especialmente para a espécie humana (LATOUR, 2014;
VIVEIROS DE CASTRO, 2015).
Passa-se, assim, para os capítulos capítulo 3 e 4, no qual é especificado o construto
teórico deste trabalho, a construção feita sobre os conceitos de ―populações tradicionais‖ e
―povos e comunidades tradicionais‖
Esses conceitos pareciam interessantes na medida em que são conceitos abertos,
constantemente sendo acionados por grupos sociais diversificados e que desenvolvem práticas
sociais específicas de relação com a natureza, bem diferente da sociedade moderna, liberal,
capitalista e urbana, contudo, os mesmos acabaram apresentando uma série de limitações,
especialmente quando associados a conceitos como modernidade, sociedade e natureza. Com
efeito, a noção de PPCT é detalhada nos próximos dois capítulos.
224
Um capítulo seria adicionado, mas, dada a limitação temporal, não foi concretizado. A temática do capítulo
percorria a noção que o próprio coletivo apresenta de sua transformação (perspectivas do passado e do futuro
para os moradores de Igarapé Grande, articulando dados sobre recursos naturais e felicidade, ademais da
mobilidade interna das pessoas, segundo suas próprias opiniões).
232
225
Este capítulo e o próximo são fruto de um processo de amadurecimento sobre a temática dos PPCT, tendo
alguns de seus trechos publicados em anais de eventos, assim como resultado de trabalhos avaliativos de
disciplinas cursadas no mestrado do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará e
do curso de doutorado que originou esta tese. Entre algumas das publicações em anais de eventos, citam-se as
mais relevantes: ―Populações tradicionais amazônicas: revisando conceitos‖, apresentado no GT 10 do V
ENANPPAS, Florianópolis-SC, em 2010; ―Populações tradicionais da Amazônia: repensando conceitos‖,
apresentado no GT 34 da 27ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de agosto de
2010, Belém, Pará, Brasil; ―De populações a povos e comunidades tradicionais amazônicas: o debate se
esgotou?‖, apresentado no GT 10 do VI ENANPPAS, Belém, Pará, em 2012.
226
Como mencionado na Introdução e Capítulo 2 desta tese, seriam as culturas que não são modernas, ou seja,
não fazem a diferenciação entre natureza e cultura e, se o fazem, tal dicotomia pouca importância assume no
grupo social, enquanto que na sociedade moderna a diferenciação entre natureza e cultura é o que fundamenta a
própria noção de ser humano, na medida em que a natureza do mesmo é ser um ser cultural.
233
227
Vale destacar que essa discussão, no decorrer do tempo, adquiriu força e notoriedade social a ponto de
extrapolar os muros da academia, transformando-se em uma categoria política e, atualmente, uma categoria
jurídica, por meio da Lei 9.985/2000, detalhada mais adiante. Existe, ainda, uma possível diferenciação jurídico-
antropológica entre os termos ―populações tradicionais‖ e ―povos e comunidades tradicionais‖, sendo este último
conceituado pelo decreto 6.040/2007. No decorrer deste capítulo, essas diferenças serão evidenciadas.
235
para manter a vida dos indivíduos e a coesão dos bairros rurais; e Darcy Ribeiro,
que, empregando explicitamente a narrativa da miscigenação genética e cultural,
tipifica as cinco regiões histórico-culturais, variantes da cultura brasileira rústica: a
crioula, a caipira [...], a sertaneja, a cabocla e a dos ―brasis sulinos‖ – que reúne os
228
matutos, gaúchos e gringos (BARRETO FILHO, 2002, p. 11) .
Nesse sentido, vale observar que essas ―populações típicas‖ ocupam o meio rural,
deslocando a identidade brasileira para esse espaço, assim como emprestando para alguns dos
sujeitos de estudo da Antropologia a roupagem do campesinato, enriquecida pela diversidade
humana do meio rural brasileiro, tanto em virtude de seus contextos ambientais, como sociais.
Dessa forma, o conceito de campesinato se apresentou como mais uma via de análise, que
pode ser empregada de forma mais ampla, para a identificação de pequenas comunidades
rurais tratadas no meio acadêmico. Assim, tanto populações tradicionais podem ser entendidas
como camponeses como vice-versa (FLEURY; ALMEIDA, 2007)229.
Com efeito, até a década de 1970, a produção antropológica nacional não falava de
―populações tradicionais‖, mas de ―culturas tradicionais, típicas, indígenas, regionais‖. A
discussão sobre o termo ―população tradicional‖ nos moldes que se apresenta atualmente,
portanto, surge no seio da Antropologia brasileira somente em meados da década de 1980, no
âmbito dos debates sobre a presença humana em áreas protegidas230, ainda que tenha sido
derivada da noção de ―culturas tradicionais‖. Diegues (1994; 2008), de acordo com as
informações coletadas para este trabalho, foi quem incitou tais debates, procurando
problematizar a presença humana em áreas protegidas no sentido de pensar estes grupos como
promotores da conservação dessas áreas, posicionamento contrário àquele apresentado por
biólogos em geral. Tal posicionamento encontra fundamento no livro de Diegues, intitulado
228
Cumpre destacar que esse posicionamento é severamente criticado por Barreto Filho (2002), sendo esta crítica
apresentada no decorrer deste texto.
229
Não figura como objetivo deste texto discutir as diferenças e as semelhanças entre populações tradicionais e
campesinato, ainda que estes termos apresentem intensas semelhanças em sua formação como categoria analítica
e uma curiosa possibilidade de um comparativo mais detalhado. A título de citação, deixa-se registrada a
existência dessas semelhanças e a indicação de algumas leituras para uma discussão mais detida. Para o
comparativo específico entre os termos ―populações tradicionais‖ e ―campesinato‖, consultar Fleury e Almeida
(2007). Para mais detalhes sobre a formação do campesinato brasileiro e as lutas e tensões sociais que o
permearam, segundo a abordagem da Antropologia, consultar Almeida (2007b).
230
Segundo Souza Filho (apud BENATTI, 2001) espaço protegido é ―todo local, definido ou não por seus
limites, em que a lei assegura especial proteção. Ele é criado por atos normativos ou administrativos que
possibilitem a administração pública a proteção especial de certos bens, restringindo ou limitando sua
possibilidade de uso ou transferência, pelas suas qualidades inerentes‖. Este trabalho considera da mesma
maneira o conceito de áreas protegidas, assim como unidades de conservação. Vale observar que o tema sobre
áreas protegidas configura-se como transversal a este trabalho. Nesse sentido, será momentaneamente abordado
com o intuito de demonstrar a origem do termo populações tradicionais, sendo eventualmente reabordado no
decorrer do texto, tendo em vista a sua importância para a discussão da noção de população tradicional. Para
mais detalhes sobre a temática de áreas especialmente protegidas, consultar Ricardo (2004).
236
―O mito moderno da natureza intocada‖, sendo essa obra um marco na discussão da presença
humana em áreas protegidas dentro do campo acadêmico nacional.
O referido autor observa que o conceito de áreas protegidas surge nos Estados Unidos
da América (EUA) por meio da criação do Parque de Yellowstone e é importado para o Brasil
em meados do século passado (DIEGUES, 1993; 1997). Na visão de Diegues, o referido
parque foi criado sob a noção de wilderness231, pensando as áreas naturais como selvagens,
intocadas pelo ser humano. Tal visão desconsiderava a presença dos povos indígenas nas
regiões colonizadas, gerando um incontável número de conflitos entre o paradigma das áreas
protegidas e as populações nativas. Ainda segundo Diegues (2001, p. 27), o próprio Parque de
Yellowstone foi criado em uma região habitada por populações indígenas que não deixaram a
área de maneira espontânea, mas sob pressão do governo norte-americano. Reforçando o
argumento relativo à presença humana em áreas protegidas, o autor cita dados que indicam a
existência de sepulturas com mais de mil anos em Yellowstone, assim como em outros
parques americanos.
Sobre a intolerância de presença humana na criação do Parque Nacional de
Yellowstone, faz-se relevante citar as considerações de Lucila Vianna (2008) que chama a
atenção para o momento histórico pelo qual os EUA passavam, quando da criação das
primeiras áreas protegidas. O país estava em um processo de reordenamento territorial e de
expansão para a ocupação do Oeste. Desde então, as áreas naturais protegidas foram objeto de
política que apresentou, por objetivo principal, separar do desenvolvimento moderno as áreas
selvagens que deveriam ser protegidas. Nesse sentido, a criação do Parque de Yellowstone
levou ao extremo o nível de restrição ao uso humano e proibiu a existência
permanente no parque até mesmo das populações com formas de vida claramente
diferentes das do modelo urbano, associado à depredação e à usurpação da natureza.
Só se permitia a presença para fins de desfrute, visitação turística, pesquisas
temporárias etc. (VIANNA, 2008, p. 147).
231
Corresponde à noção de selvagem (tradução livre dos autores).
232
Vale destacar a diferença que Diegues (1993; 1994) faz sobre conservação e preservação. A primeira diz
respeito à possibilidade de presença humana dentro de áreas protegidas, enquanto que a segunda não permite. No
ordenamento jurídico brasileiro, a primeira visão dá origem aos modelos de Unidades de Conservação de Uso
Direto ou Sustentável e a segunda visão dá origem aos modelos de Unidades de Conservação de Uso Indireto.
Para mais detalhes consultar a Lei no 9.985/2000, assim como Ricardo (2004).
237
organizam em uma nova modalidade de conservação que dá lugar à luta pelo direito ―... de
acesso à terra e aos recursos naturais por camponeses, pescadores, ribeirinhos, povos da
floresta e de setores do ambientalismo do terceiro mundo‖ (DIEGUES, 2008, p. 40). Surgem,
dessa maneira, os movimentos socioambientais em meados da década de 1980,
contemporâneos ao processo de redemocratização e da constituinte, desempenhando um
importante papel nesse cenário político.
Nesse sentido, Diegues (2008) foi um dos primeiros a chamar a atenção para a
possibilidade das populações tradicionais atuarem como protagonistas na conservação da
biodiversidade, visto seu vasto conhecimento da biodiversidade local e modo de vida
relativamente sustentável233.
De maneira similar, Vianna (2008) também observa a possibilidade de se incorporar as
populações tradicionais ao processo de conservação da natureza. Contudo, a referida autora
chama a atenção para a necessidade de se entender sob duas perspectivas essa discussão
dentro do contexto ambientalista brasileiro. Uma refere-se àquela até aqui apresentada, em
que se coloca em perspectiva a possibilidade de populações ocuparem o território de unidades
de conservação de uso indireto, minimizando os impactos socioeconômicos e aproveitando as
características ―ecológicas‖ desses grupos para a conservação (VIANNA, 2008, p. 215).
A outra refere-se à perspectiva dos movimentos sociais rurais, lutando pela
sobrevivência garantida por meio do acesso aos recursos naturais e à terra (seu meio de
produção). Nesse sentido, Vianna apresenta a reflexão de que:
A primeira perspectiva incorpora as populações ao discurso conservacionista e a
segunda, pelo contrário, incorpora o discurso conservacionista ao movimento social,
fortalecendo as lutas para a garantia de seu território e de acesso a recursos naturais
(VIANNA, 2008, p. 215).
233
Esta visão sobre as populações tradicionais como protagonistas na conservação da biodiversidade é
problematizada por Adams (1994, especialmente 2000). Este trabalho tratará sobre esta problematização mais
adiante.
234
Mauro Almeida (2004) exemplifica este fato por meio do texto ―Direitos à floresta e ambientalismo:
seringueiros e suas lutas‖, onde narra o processo de apropriação dos seringueiros do termo ecologia, valendo-se
do mesmo na busca da garantia do direito ao seu modo de vida.
238
assim que Vianna observa que o termo ―populações tradicionais‖ surge associado ao contexto
ambientalista, indicando a gênese das duas perspectivas acima citadas:
Pode-se afirmar que essa discussão aparece pela primeira vez no poder público na
década de 1980, por dois caminhos paralelos e concomitantes. Um deles foi entre
técnicos da Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, pois os
ambientalistas foram incitados pelos questionamentos dos modelos de conservação,
a partir da defesa das ―populações tradicionais‖ feita por Diegues, da própria
dificuldade de gestão das áreas e de um olhar mais humanista sobre as práticas de
conservação. O outro foi o movimento dos seringueiros, que se aliou ao setor
ambiental na busca da garantia de acesso a suas terras. Não era um conflito com
unidades de conservação, mas essa foi a estratégia que usaram para conquistar seus
objetivos (acesso à terra e aos recursos naturais), resultando na proposta da Resex
(VIANNA, 2008, p. 216).
Nesse sentido, por não ser o histórico do surgimento das unidades de conservação no
Brasil o objeto deste estudo, importa somente citar que, de maneira paralela à discussão sobre
a presença humana em áreas protegidas, surge o movimento socioambiental no Brasil, que
inaugura as reservas extrativistas como a segunda categoria de área protegida que permite a
presença humana e o manejo da biodiversidade em unidades de conservação235.
De maneira paralela ao surgimento do movimento socioambientalista, e até mesmo
anterior a ele, os fóruns ambientalistas internacionais começam a discutir a noção de
desenvolvimento sustentável incorporando a contribuição de diversos documentos e encontros
de âmbito internacional. Dentre eles cita-se a Conferência de Estocolmo, Relatório Brudtland,
Eco-92 e a Convenção da Diversidade Biológica (CDB). Nesse sentido, vale observar que o
movimento socioambiental desempenhou um importante papel nas forças políticas presentes
no cenário internacional de discussão acerca da CDB236.
Finalmente, como resultado da tensão entre a luta por direitos territoriais, culturais e
ecológicos das populações tradicionais e a posição preservacionista, surge a Lei 9.985/2000,
utilizando o conceito ―populações tradicionais‖, mesmo que não apresentando umadefinição
para a mesma. Com efeito, nota-se que esse conceito, no decorrer do tempo, foi adquirindo
força e notoriedade social a ponto de extrapolar os muros da academia, transformando-se em
uma categoria política e, atualmente, uma categoria jurídica, por meio da Lei 9.985/2000.
Para efeito desta tese, entende-se que o conceito ―populações tradicionais‖ surge como uma
235
Para uma análise mais detida sobre o surgimento das Resex, consultar Almeida (1993; 2004), Santilli (2005),
Allegretti (2002) e Antonaz (2009).
236
A incorporação da CDB no ordenamento jurídico brasileiro pode ser consultada de forma detalhada no
endereço eletrônico criado pelo governo federal. Disponível em: <http://www.cdb.gov.br/>.
239
categoria acadêmica que, com o passar do tempo assume uma conotação política237, para,
posteriormente, adquirir uma conotação jurídica, por meio da Lei 9.985/2000.
Ainda que a exposição sobre a parte jurídica afeta a este termo seja feita em tópico
específico do próximo capítulo, vale tecer uma consideração preliminar, lançando mão das
ideias de Santilli (2004; 2005), especialmente no que se refere à reflexão jurídica feita acerca
do conceito de populações tradicionais. A autora demonstra a diferenciação jurídica entre
indígenas, quilombolas e populações tradicionais, assim como a vulnerabilidade jurídica das
populações tradicionais em seu sentido mais estrito, excluindo os indígenas e quilombolas, na
medida em que estes últimos grupos detêm dispositivos constitucionais e diplomas jurídicos
tratando especificamente de seus direitos, como será detalhado no próximo capítulo, enquanto
que as outras ―populações tradicionais‖ detêm instrumentos jurídicos que tratam sobre as
mesmas somente de maneira correlata, como é o caso da Lei 9.985/2000.
Os tópicos que seguem encarregam-se de desenvolver de maneira mais minuciosa a
questão sobre quem são essas outras ―populações tradicionais‖, ou as ―populações
tradicionais‖ em seu sentido mais estrito. Segue o tópico dois com o detalhamento da
construção do conceito de populações tradicionais como uma identidade pública a ser
habitada.
237
Entende-se essa conotação política no sentido de possibilitar, a estes grupos, o exercício ao direito de
autoidentificação. Cumpre destacar que essa conotação política não é formalizada pela lei, ou seja, não é
explicitamente declarada pela letra da lei, restando à academia interpretá-la e declará-la como um direito inerente
à este conceito. Esta temática será detalhada no decorrer do trabalho, especialmente no tópico que segue,
discutindo este termo como uma identidade pública a ser preenchida.
238
É relevante deixar claro que as noções de população tradicional e conhecimento tradicional vêm sendo
utilizadas dentro da literatura das Ciências Sociais desde antes de 1990. Contudo, a convergência entre o âmbito
jurídico com a seara das Ciências Sociais intensificou-se após a lei nº 9.985/2000, que institui o Sistema
Nacional de Unidade de Conservação-SNUC e conceituou, ainda que de maneira indireta, o termo ―populações
tradicionais‖.
240
seja, os autores demonstram que, com o encontro da metrópole com o ―outro‖239, termos são
criados para que esse ―outro‖ tome alguma forma e, em alguns casos, este termo garanta a
esse ―outro‖ uma posição política interessante, conferindo-lhe direitos sui generis. Os autores
citam exemplos como índio, indígena, tribal, negro, dentre tantas identidades. Dessa forma,
termos novos são criados para classificar esse ―outro‖, sendo que com o passar do tempo, e
dependendo da conveniência, estes termos são ou não preenchidos.
No caso das populações tradicionais, é possível identificar como o termo vem sendo
amplamente habitado por novos grupos, assim como vem transformando-se em uma bandeira
política para os seus componentes, visto que, como será comentado em momento posterior
deste trabalho, seus direitos, inclusive territoriais, são garantidos no âmbito do Sistema
Nacional de Unidades de Conservação. A definição construída pelas Ciências Sociais para
populações tradicionais não mais se apresenta, portanto, como unicamente extensiva, mas,
ainda que apresentado um avanço teórico para a definição desse objeto, permanece a
necessidade de uma análise crítica sobre o mesmo.
Nesse sentido, Cunha e Almeida (2001) finalizam seu artigo pensando populações
tradicionais como:
grupos que conquistam ou estão lutando para conquistar (por meios práticos e
simbólicos) identidade pública que inclui algumas e não necessariamente todas as
seguintes características: uso de técnicas ambientais de baixo impacto; formas
eqüitativas de organização social; presença de instituições com legitimidade para
fazer cumprir suas leis; e, por fim, traços culturais que são seletivamente
reafirmados e reelaborados (p. 192).
Na definição em tela é possível perceber que estes autores também agregam um viés
político à noção de populações tradicionais, pois demonstram como esta identidade pública
foi construída, sendo juridicamente e politicamente reconhecida, garantindo, assim, direitos
específicos às pessoas que preencherem essa identidade.
Mauro Almeida (2007a) contribui com outra reflexão relevante em conferência
intitulada ―Quem são os povos da floresta?‖, proferida na 59a Reunião Anual da Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)240. O autor lembra a formulação de Alfredo
Wagner, que pensa populações tradicionais como ―grupos sociais que se constituem sob o
rótulo de povos tradicionais na luta para conquistar territórios e que incorporaram novas
identidades em uma situação de mobilização acionada em contexto de conflito‖ (ALMEIDA,
239
Buscando não deixar o leitor à deriva, ressalta-se que o termo ―outro‖, aqui utilizado, figura com a mesma
conotação descrita no primeiro parágrafo deste texto, a saber, grupos minoritários e com pouca visibilidade
política dentro do cenário social ocidental.
240
Disponível em: <www.sbpcnet.org.br>.
242
2007a, p. 48-49). Nessa construção, a autoidentificação emerge como fator essencial, pois,
conforme comentado acima, a categoria população tradicional foi criada pela sociedade
nacional para classificar grupos que em outros momentos não se viam e não eram vistos
enquanto protagonistas. Também deve-se ressaltar o contexto de conflito em que muitas vezes
estas populações encontram-se inseridas, relacionando aos processos de territorialização e
identificação.
O autor desenha, ainda, as populações tradicionais como:
comunidades que, já sendo habitantes há algum tempo da região, estão entrando
num processo de desenvolvimento com baixo impacto ambiental, visando melhorar
sua qualidade de vida. É assim que o grupo se auto-identifica atualmente como
tradicional (ALMEIDA, 2007a, p. 49).
Por meio dessa formulação, o autor faz um link entre a necessidade de uma auto-
identificação destas populações tradicionais como pertencentes a tal categoria, assim como da
necessidade de se autoidentificarem como de ―baixo impacto ambiental‖.
3.3 Saberes tradicionais e práticas sociais de relação com o meio ambiente: populações
tradicionais “ecológico-culturais?”
Destacando a importância das práticas sociais de relação com o meio ambiente para a
preservação dos espaços naturais, Lima e Pozzobon (2000) enumeram diversas evidências que
permitem apresentar as práticas dessas populações tradicionais como de baixo impacto
ambiental. Esses autores fazem uma interessante exposição acerca dos ―pequenos produtores
tradicionais‖ da Amazônia, demonstrando o processo elaborado pelo governo colonial para
povoar a Amazônia, baseado em dispositivos legais que o respaldavam. Estes estimularam a
formação de um campesinato histórico produtivo e submisso, através da miscigenação entre
índios, negros e brancos, resultando daí um camponês neo-amazônida, constituído por
―tapuios‖, ―mamelucos‖ e ―caboclos‖ que sincretizaram elementos de culturas negras, índias e
brancas, produzindo uma caracterização cultural singular que permeia a Região Amazônica
(LIMA; POZZOBON, 2000, p. 13).
No transcorrer dos séculos, no processo de ocupação dessa região, surgiram ciclos
econômicos, culminando na formação de diferenciados quadros sociais e culturais. Como
exemplo mais notório é possível citar o ciclo da borracha que importou os chamados ―brabos‖
(nordestinos) – novos atores sociais que se integraram ao cenário amazônico – configurando-
se como atores exógenos ―caboclizados‖. Com o passar do tempo, foram gradualmente
integrados ao cenário socioambiental amazônico, caracterizado por uma ―cultura ecológica e
243
de hábitos regionais‖ (PARKER apud LIMA; POZZOBON, 2000, p. 14), denotando mais
uma vez a miscigenação de culturas que permeia a realidade amazônica.
Em função dessa mistura cultural, e por meio da herança indígena, essas populações
adquiriram seu caráter de sustentabilidade, produzindo saberes advindos de culturas indígenas
de tradição ecológica milenar. Estas resultam de práticas sociais caracterizadas pela interação
com o meio ambiente, desenvolvendo e reproduzindo um vasto conhecimento sobre os
recursos naturais. A ferramenta de controle sobre esse campesinato amazônico constituiu-se
na imposição de um padrão cultural de consumo de artigos manufaturados241, adquirindo a
necessidade de poder aquisitivo, transformando-se, desta forma, em produtores tradicionais
com economia familiar (LIMA; POZZOBON, 2000, p. 13-14).
Lima e Pozzobon (2000, p. 14) também enfatizam o baixo grau de relação com o
mercado que o ―produtor tradicional‖ estabelece. Isso se dá em função de sua orientação
como produtor de subsistência, vendendo o excedente para ter acesso a produtos e gêneros
alimentícios industrializados, caracterizando-se como uma relação ―consuntiva‖, ou seja, ―a
produção doméstica tem por objetivo garantir o consumo dos membros da família e desta
orientação consuntiva decorre a lógica da aplicação dos rendimentos do trabalho‖. Logo, é a
―satisfação das necessidades de consumo que orienta a produção e, portanto, influencia a
pressão de uso sobre o ambiente‖ (LIMA; POZZOBON, 2000, p. 15). Outro fator agravante
para esta orientação consuntiva seria o grande esforço físico que o processo de confecção
desses produtos exige242, somada à baixa remuneração pelo produto, denotando a penúria e o
esforço em relação ao benefício do consumo extra ao explorar a própria força de trabalho.
Lima e Pozzobon (2000) também evidenciam as limitações tecnológicas às quais essas
populações estão sujeitas, restringindo a sua capacidade de produção e acesso ao mercado.
A linha de raciocínio acima exposta configura-se como um link para a seguinte
reflexão: já que essas populações produzem para consumo próprio, utilizando-se de métodos
tradicionais, terminam por apresentar um sistema de reprodução social sustentável, visto que
necessitam dos recursos naturais para garantir a sua reprodução social e seu modo de vida,
logo, a necessidade de preservação desses recursos também é concebida, dando origem a uma
241
Esse processo de relação com o mercado não é exclusivo do campesinato amazônico. A literatura sobre esse
segmento da sociedade já evidencia essa condição, colocando-a como fundamental na formação do campesinato
de um modo geral (CHAYANOV, 1974; HEBETTE 2004; COSTA, 1992, 1993, 2000).
242
A produção da farinha como um importante produto de relação com o mercado, por exemplo, demanda um
processo de muita força física e envolvimento de quase todo o grupo doméstico. Na pesca artesanal, outra
atividade que marca a Região Amazônica e cujo produto garante a relação com o mercado, os perigos que
envolvem a atividade, o saber específico sobre o ambiente, o domínio sobre as variadas técnicas que desenham
essa atividade são engolfados e desvalorizados pela rede de atravessadores que domina o sistema da ponta de
produção, o pescador, até chegar ao mercado.
244
Este trabalho entende que o autor, no trecho acima citado, expõe seu posicionamento
sobre a necessidade de uma nova concepção de mundo para a sociedade ocidental, diante de
uma postura de exploração e conquista dos recursos naturais ao invés de sua integração com
estes. Essa visão da natureza como um espaço oposto ao ser humano, como algo intocado e
selvagem243, é desenvolvida por meio da noção de wilderness. Conforme observado
anteriormente, é essa noção que origina as unidades de conservação de uso indireto dos
recursos naturais, nos EUA, padrão posteriormente exportado para outros países, sendo desde
243
Selvagem, nas palavras do autor, corresponde a: ―áreas virgens, não habitadas permanentemente‖ sendo que
os parques wilderness (unidades de conservação estadunidenses orientadas por essa noção) serviriam como
―parque público ou área de recreação para benefício e desfrute do povo... em que o homem é visitante e não
morador‖ (DIEGUES, 1993, p. 226).
245
seu início criticado, principalmente por nações indígenas, que viam nas florestas ditas
―naturais‖ (wilderness) a sua própria sociedade e seu próprio lar (DIEGUES, 1993)244.
Diegues (1993; 1994; 1997; 2001) e Diegues et al. (2000) sugerem que algumas
sociedades e populações contribuem para o aumento da diversidade de espécies, de
ecossistemas e genética, pois desenvolveram uma relação de integração com a natureza
marcada pela manipulação dos recursos naturais com práticas que não causam impactos
negativos ao ambiente. É possível, portanto, notar que a biodiversidade não é um fenômeno
apenas natural, mas há nele uma interferência humana, caracterizando-se como processo bio-
cultural, já que, o que outrora era visto pelos cientistas como biodiversidade,
descontextualizada de um domínio cultural, foi desconstruído em virtude das culturas das
populações tradicionais que desenvolveram uma relação ecologicamente sustentável com o
ecossistema que habitavam.
A Floresta Amazônica figura como um exemplo para essa argumentação, pois, a
maioria das populações que tradicionalmente ocupam as áreas de ―terra firme‖245
desenvolvem práticas agrícolas que utilizam pequenas áreas de terra para o plantio, sendo que
para remover a vegetação existente, utilizam-se do fogo, provocando queimadas, ocorrendo o
abandono dessas áreas após o decréscimo da produção agrícola246. Este processo assemelha-se
à destruição das florestas produzida por causas naturais, dificultando a identificação e
diferenciação de áreas ―naturais‖ para áreas que sofreram a ação humana (DIEGUES, 1993, p.
240).
Seguindo essa mesma linha de raciocínio, Diegues (1993) cita os casos do México e
da América Central onde foi descoberto que a abundância de diversas espécies na ―selva
primária‖ resulta da ação de populações indígenas.
O autor também cita o exemplo da África central:
Por causa da longa história de pousio da agricultura itinerante, junto com os povos
nômades/pastores na África Central, todas as florestas atuais são realmente
patamares de vários estágios sucessivos de crescimento criados pelo povo e não
existem áreas que muitos relatórios e propostas chamam de ―prístinas―,
―intocadas―, ―primárias― ou ―florestas maduras―. Em resumo, essas florestas são
artefatos culturais humanos (DIEGUES, 1993, p. 242).
244
Standing Bear, chefe Sioux, assim afirmava a esse respeito: Nós não consideramos selvagens (wild) as vastas
planícies abertas, os maravilhosos montes ondulados, as torrentes sinuosas. Somente para o homem branco a
natureza era selvagem, e somente para nós ela era domesticada. A terra não tinha cercas e era rodeada de
bênçãos do Grande Mistério (MCLUTHAN apud DIEGUES, 1993. p. 227).
245
Do ponto de vista da ecologia, ―terra firme‖ pode ser definida como uma área alta de floresta, como por
exemplo, as Florestas Úmidas e o Cerrado (PANDOLFO, 1978). Segundo pesquisas junto à comunidades rurais
amazônicas, corroboradas por pesquisas bibliográficas (FURTADO, 1993, LIMA; ALENCAR, 2001), terra
firme configura-se, segundo o léxico dessas comunidades, às áreas altas de floresta não alagáveis.
246
Para mais detalhes sobre esta técnica, ver Ravena-Cañete (2005).
246
Diante dos dados acima expostos, Diegues formula diversos conceitos em suas obras
que merecem ser aqui problematizados. Para o autor em destaque, populações tradicionais são
aquelas que praticam um extrativismo historicamente construído, caracterizado por um
manejo florestal de baixo impacto ambiental. Diegues nomeia uma extensa e descritiva lista
de populações tradicionais (DIEGUES et al., 2000; 2001; 2002), assim como empreende o
mapeamento georreferenciado da bibliografia que trata da temática população tradicional
(DIEGUES et al., 2001). Em parceria com outros autores, Diegues assim define sociedades
tradicionais em relatório produzido para o Ministério do Meio Ambiente (MMA):
grupos humanos culturalmente diferenciados que historicamente reproduzem seu
modo de vida, de forma mais ou menos isolada, com base em modos de cooperação
social e formas específicas de relações com a natureza, caracterizados
tradicionalmente pelo manejo sustentado do meio ambiente. Essa noção se refere
tanto a povos indígenas quanto a segmentos da população nacional que
desenvolveram modos particulares de existência, adaptados a nichos ecológicos
específicos (DIEGUES et al., 2000, p. 25).
Importa salientar que na formulação acima o autor inclui populações indígenas como
populações tradicionais, pensando que, apesar de existirem diferenças culturais entre as
mesmas, o que importa são os traços culturais diferenciados desses grupos sociais perante a
sociedade maior. Vale ressaltar que o modo de vida específico de integração com a natureza
apresenta-se como uma constante na maior parte dos casos, permitindo pensar essas ―culturas
tradicionais‖ permeadas por práticas de manejo sustentado do meio ambiente.
Buscando contribuir para a definição do conceito em foco, Arruda (1999) infere que
populações tradicionais são aquelas que
apresentam um modelo de ocupação do espaço e uso dos recursos naturais voltados
principalmente para a subsistência, com fraca articulação com o mercado, baseado
em uso intensivo de mão de obra familiar, tecnologias de baixo impacto derivadas
de conhecimentos patrimoniais e, normalmente, de base sustentável [...] Em geral
ocupam a região há muito tempo e não têm registro legal da propriedade privada
individual da terra, definindo apenas o local de moradia como parcela individual,
sendo o restante do território encarado como área de utilização comunitária, com seu
uso regulamentado pelo costume e por normas compartilhadas internamente (p. 79-
80).
247
Coloca-se a expressão ―ciclos‖ entre aspas para que esta possa sofrer um processo de relativização no sentido
de entender que se constitui em visão generalizante, construída a partir da ótica das elites econômicas regionais e
247
de povoamento para outra área, deixando de lado a população que se vinculou ao ciclo, sendo
esta obrigada a desenvolver um sistema de reprodução socioeconômica baseado na produção
para consumo próprio. Nesse deslocamento, cada população tradicional findou desenvolvendo
uma relação específica com a natureza e o ambiente, tendo em vista as especificidades locais,
históricas, sociais e culturais que envolvem esse tipo de dinâmica (ARRUDA, 1999). Para o
autor em tela, são essas as chamadas ―populações tradicionais‖, sendo que o processo acima
descrito se configura como um dos motivos da dificuldade na construção de uma definição
consensual de populações tradicionais.
A análise que Barreto Filho (2002) desenvolve sobre os conceitos formulados pelos
dois autores acima citados (Diegues e Arruda) merece destaque. Para Barreto Filho (2002), os
referidos autores buscaram salientar que os grupos sociais impactados por espaços
especialmente protegidos eram detentores de características positivas para a conservação da
natureza, criando critérios supostamente técnicos e científicos para o exercício dessa
caracterização, ao invés de polemizarem sobre os direitos desses grupos que estavam sendo
violados (especialmente territoriais e culturais). Barreto Filho observa, ainda, que Diegues e
Arruda lançaram mão de uma tradição do pensamento social brasileiro que visualiza nos
―tipos culturais regionais‖ e nas ―regiões histórico-culturais‖, arquétipos imbuídos de noções
biológicas e culturais, retirando desses grupos sociais a influência que exercem sobre sua
identidade, congelando e naturalizando seus aspectos culturais a ponto de desconsiderar umas
das principais características que a noção de cultura apresenta: a sua dinamicidade
(BARRETO FILHO, 2002, p, 12-13). Com efeito:
O estabelecimento de uma tipologia de ―personagens histórico-culturais‖ leva à
definição de grupos sociais segundo uma combinação de traços substantivos,
restituindo, subreptipiciamente (sic), a noção de raça e, com esta, a ideia de um
código natural no qual cada espécie ou tipo – diferenciado tanto no tempo como no
espaço – ocupa uma posição biológico-cultural determinada numa escala evolutiva.
Trata-se, portanto, de uma noção que, por um lado, conspira contra a autonomia
destes grupos decidirem sobre seu futuro frente às aspirações modernas de níveis de
consumo e definição de bem-estar (cf. Lima, 1997), e por outro, implica uma relação
instrumental para com os mesmos ao torná-los reféns de uma definição exterior de si
248
próprios e dos problemas que vivem (BARRETO FILHO, 2002, p. 13).
sua referida história. Em outras palavras, tanto o formato como o conteúdo desses ciclos foi socialmente
construído e classificado, consequentemente, obedece prioridades e critérios de atores sociais dominantes.
248
Esta mesma posição é desenvolvida explicitamente por Viana (2008) e implicitamente por Almeida (2008a;
2002).
248
sendo o conceito formulado, mas ao mesmo tempo problematizado. Como exemplo, segue um
trecho no qual o autor reflete, ainda que de maneira implícita, a necessidade de politização da
referida categoria.
Um dos critérios mais importantes para a definição de culturas ou populações
tradicionais, além do modo de vida, é, sem dúvida, o reconhecer-se como
pertencente àquele grupo social particular. Esse critério remete à questão
fundamental da identidade, um dos temas centrais da Antropologia. [...]. O
surgimento de outras identidades sócio-culturais, como a caiçara, é fato mais
recente, tanto em estudos antropológicos quanto nos que visam o auto-
reconhecimento dessas populações como portadoras de uma cultura e um modo de
vida diferenciado de outras populações. Esse auto-reconhecimento é
frequentemente, nos dias de hoje, fruto de uma identidade construída ou
reconstruída, como resultado, em parte, de processos de contatos cada vez mais
conflituosos com a sociedade urbano-industrial, e com os neomitos criados por esta.
Parece paradoxal, mas os neomitos conservacionistas explícitos na noção de áreas
naturais protegidas sem população têm contribuído para o fortalecimento dessa
identidade sócio-cultural em populações como os quilombos do Trombetas, os
caiçaras do litoral paulista etc. Para esse processo tem contribuído também a
organização de movimentos sociais, apoiados por entidades não-governamentais,
influenciadas pela ecologia social, por cientistas sociais etc. (DIEGUES, 2008, p.
90).
Seguindo de forma similar aos autores até agora apresentados, Esterci (2007) observa
que populações tradicionais
é como têm sido chamados aqueles povos ou grupos que, vivendo em áreas
periféricas à nossa sociedade, em situação de relativo isolamento face ao mundo
ocidental, capitalista, construíram formas de se relacionar entre si e com seres e
coisas da natureza muito diferentes das formas vigentes na nossa sociedade (p. 223).
O conceito acima exposto contribui com a discussão na medida em que faz dialogar os
conceitos de Cunha e Almeida (2001) e Almeida (2007a) com os conceitos de Diegues
(2008), ao pensar as populações tradicionais como uma formulação criada por nós (mundo
ocidental capitalista) para classificar grupos e povos distintos da nossa sociedade e que
estabelecem relações distintas com a natureza.
Esterci (2007), assim como Diegues (1993) e Diegues et al. (2002), observam que
esses povos e grupos já eram conhecidos, antes mesmo da construção da denominação
populações tradicionais, por meio de uma ―multiplicidade de outros termos que, ora
indicavam sua atividade econômica mais visível, ora indicavam sua origem étnica, ora se
referiam a espaços que habitavam ou a aspectos de sua cultura e modo de vida‖ (p. 223).
Exemplifica o argumento por meio do caso dos pescadores e extrativistas para a ―atividade
econômica mais visível‖, quilombolas e caboclos para a ―origem étnica‖, ribeirinhos e
caipiras para ―espaços que habitavam ou a aspectos de sua cultura e modo de vida‖, entre
outras populações tradicionais.
250
A autora lança mão de variados exemplos para demonstrar a inserção das sociedades
indígenas no ecossistema local, demonstrando as influências que a biodiversidade recebe do
ser humano. Adams (1994) sugere a existência de florestas culturais, na medida em que as
sociedades pré-colombianas desenvolveram técnicas de manejo, cultivo e domesticação da
fauna e flora local, alterando a sua composição ―natural‖. Considerando tal argumentação,
grande parte da Floresta Amazônica, outrora considerada intocada, virgem, wilderness, na
realidade resulta de um processo de manejo desenvolvido pelas populações ameríndias e
continua sendo-o, pela ação das populações tradicionais, incluindo nesse contexto os povos
indígenas do presente.
Adams (1994) prossegue analisando o caso das florestas culturais do Brasil,
observando que pesquisas realizadas por antropólogos e arqueólogos ―têm demonstrado a
existência de um alto grau de manejo da floresta entre as populações habitantes da Amazônia,
num grau de interferência inimaginado há alguns anos‖ (p. 12). A autora destaca os exemplos
de florestas culturais, como as florestas de palmeiras (p. 12), as capoeiras e os campos da
floresta dos Kayapó (p. 13), cocais, matas de Caiaué, campinas abertas de areia branca do rio
Negro, matas de bambu, ilhas de mata no cerrado central, castanhais, matas de cipó (p. 14) e
as matas de babaçu no Maranhão (p. 15). Finalmente a autora a autora afirma:
As áreas comprovadamente reconhecidas como matas ―culturais‖ somam hoje
11,8% da terra firme da Amazônia, mas certamente este número é bem maior, se
levarmos em conta as matas ainda não levantadas e aquelas já destruídas pelo
desmatamento acelerado que ocorre na região (p. 14).
Uma vez mais, portanto, evidencia-se o fato de que a noção de natureza selvagem e
intocada é na verdade um mito, visto que para muitos povos a natureza se encontra em relação
direta com o seu modo de vida, alterando-o, manipulando-o e manejando-o, construindo um
vasto conhecimento de seu ambiente e dos ciclos e recursos naturais nele presentes,
resultando, portanto, em uma biodiversidade culturalmente construída249. Desmistifica-se,
nessa perspectiva, a visão de que a ação humana sobre a natureza é sempre uma ameaça à
biodiversidade (DIEGUES et al., 2000). Em outras palavras, natureza e cultura não são
249
Para mais detalhes sobre a influência das populações tradicionais na formação do ecossistema local, consultar
Magalhães (2006), Scoles (2011), Balée (2008) e Ribeiro (1986).
252
opostas e mutuamente excludentes, assim como também fica evidente o mito sobre a
existência de áreas wilderness, virgens e intocadas pela humanidade, ou, nas palavras de
Diegues (1993; 1994; 2001; 2008), fica evidente ―o mito moderno da natureza intocada‖.
Vale ressaltar, no entanto, o cuidado necessário para não se cair na armadilha do ―bom
selvagem‖, como salientado por Adams (2000). Ainda que a autora evidencie a importância
da interação das populações tradicionais na formação e manutenção da biodiversidade,
evidenciando-as como protagonistas na conservação dos recursos naturais, ela ressalva que o
cientista pode acabar deixando de analisar o caso concreto de maneira crítica, não se pautando
em critérios científicos-ecológicos, caindo no engodo de classificar apressadamente as
populações tradicionais como sempre agentes multiplicadores da biodiversidade, e com
práticas de baixo impacto sobre o ambiente, não causando nenhum tipo de degradação e sendo
sempre a alternativa correta de conservação. Em outras palavras, esses grupos sociais estão
lutando por seus direitos e podem em alguns casos apresentar-se como agentes de degradação
ambiental, mesmo que em pequenas proporções e sendo este caso a exceção, devendo o
cientista estar atento ao caso concreto, evitando generalizações apressadas250.
Do ponto de vista jurídico, Benatti (2003) formula uma abordagem, pautada em
considerações socioantropológicas, sobre a relação das populações tradicionais com os
recursos naturais focando especificamente seu território. O autor desenvolve o conceito de
posse agroecológica251, construindo uma reflexão articulada com questões de ordem legal, no
sentido de que as populações tradicionais, para terem seus direitos garantidos, necessitam de
uma reforma agrária que garanta o direito à territorialidades diferenciadas. Ou seja, propõe
que se visualizem os diversos tipos de territorialização desenvolvidos pelas populações
tradicionais. Esta ideia de territorialidade é desenvolvida no próximo capítulo, na medida em
que foi mais utilizada de maneira associada ao conceito de ―povos e comunidades
tradicionais‖, sendo este conceito o foco do capítulo seguinte.
250
Vale salientar que Diegues (2008, p. 99) também observa que ―[...] deve-se afastar a imagem do bom
selvagem que frequentemente conservacionistas românticos atribuem aos povos tradicionais‖.
251
―A forma por que um grupo de família camponesas (ou uma comunidade rural) se apossa da terra, levando em
consideração neste apossamento as influências sociais,culturais, econômicas, jurídicas e ecológicas. Fisicamente,
é o conjunto de espaços que inclui o apossamento familiar conjugado com a área de uso comum, necessários
para que o grupo social possa desenvolver suas atividades agroextrativistas de forma sustentável‖ (BENATTI,
2003, p. 115).
253
252
Modus é uma palavra latina que significa modo, somado à vivendi, outra palavra latina cujo significado é
viver, resulta no termo latino modus vivendi que significa o modo de vida ou modo de viver de determinada
população (DINIZ, 1998, p. 295; SILVA, 2004; LUIZ, 2002).
254
253
Como mencionado no texto, é imperioso que não se caia na armadilha do ―bom selvagem‖, como salientado
por Adams (1994, especialmente 2000).
254
Por meio da Convenção 169 da OIT, aqui ratificada pelo decreto 5.051/2004, como será detalhado no
próximo capítulo.
255
Coloco em negrito os dispositivos legais para destacá-los das utilizações acadêmicas.
255
256
O quadro está composto por duas colunas e 15 linhas. Na primeira coluna aparece o ano da publicação
original e na segunda coluna o ano da obra consultada. Exemplo: o livro de Viana (2008) é publicado em 2008,
entretanto resulta de sua dissertação de mestrado, apresentada em 1996. As publicações de Diegues que
aparecem na segunda linha, correspondentes ao ano de 1993, são todas originárias do mesmo estudo, tendo como
primeira publicação, segundo o levantamento realizado por esta pesquisa, o artigo de Diegues (1993).
256
objeto de pesquisa da Antropologia desde seu início: o ―outro‖, sociedades outras, que não as
nossas, que incitam e expõem o alto grau de diferença de modos de vida desenvolvidos pelo
ser humano, resultando inicialmente em ―populações nativas‖ (índios, indígenas, ―tribos‖
africanas etc.) para então serem agregados camponeses, agricultores familiares e pescadores,
chegando no espaço de habitação do mundo ocidental capitalista, a saber, o espaço urbano e
moderno em si, por meio não somente da vinda dessas populações para a cidade e do avanço
da cidade para o espaço dessas populações, mas também dos próprios ―outros‖ dentro da
nossa própria sociedade original, no caso, os pobres e a classe trabalhadora, descendente de
camponeses, índios, caboclos etc. Populações tradicionais, portanto, figura como mais um
termo que nós (antropólogos, cientistas sociais, brasileiros, cidadãos do mundo urbano,
liberal, capitalista, moderno etc.) damos aos ―outros‖, dentre outros termos já inventados.
A Antropologia brasileira conseguiu ser agente de um processo de criação de direitos
específicos, por meio da teorização sobre as ―populações tradicionais‖. Ainda que existam
severas críticas a este conceito, se faz imperioso destacar que o mesmo figurou como uma
vitória do movimento socioambiental, na medida em que cria uma identidade jurídica coletiva
e sujeitos de direitos, nunca antes pensados de maneira tão direta e específica pelo
ordenamento jurídico nacional.
Deve-se salientar que os conceitos analisados para o termo ―população tradicional‖
servem somente como instrumento de interpretação da realidade, mas não podem e nem
devem sobrepor-se a ela. Em outras palavras, muitas foram as transformações do conceito,
mas, mais importante que as transformações, são os atores sociais que demandam essas
transformações e suas próprias realidades e demandas sociais, ou seja, mais importantes que a
discussão conceitual sobre ―populações tradicionais‖, são os ribeirinhos amazônicos, os
quilombolas marajoaras, os pescadores artesanais e ribeirinhos impactados pela barragem de
Tucuruí, os seringueiros da RESEX Chico Mendes, os moradores de Igarapé Grande e assim
por diante. Quando esses atores sociais demandarem outro nome, outros direitos, outras
identidades, aí se buscam outros termos e conceitos.
Com efeito, a gênese conceitual das PPCT continua no próximo capítulo, responsável
por histórias de outra nomenclatura pensada para esses grupos sociais não modernos. Essa
nomenclatura é ―povos e comunidades tradicionais‖.
257
É possível evitar, assim, a confusão entre tradição e costume, não pensando tradição
como repetição e regularidade no modo de vida dos povos e comunidades ―tradicionais‖,
tampouco aplicar esta noção de tradição às práticas jurídicas que seriam correspondentes a
estas comunidades e povos. Nesse sentido, tradição
se atém a processos reais e sujeitos sociais que transformam dialeticamente suas
práticas, mesmo quando as convertem em normas para fins de interlocução,
redefinindo suas relações sociais e com a natureza. Tais processos reais nos levam a
pensar em comunidades dinâmicas [...] Sob este prisma é que estamos propondo
relativizar o peso da ―normatização consuetudinária‖ no significado das práticas
jurídicas dos povos tradicionais (ALMEIDA, 2006. p. 11).
Com efeito, outra contribuição de Almeida (2008a) refere-se à sua crítica sobre alguns
esquemas interpretativos da Amazônia que terminam por reduzir conceitos e definições.
Almeida observa que ―conceito não é exatamente dicionarizado e mais consiste num
instrumento de análise em tudo dinâmico e referido a autores que disputam a legitimidade de
acioná-lo‖, não podendo ser enquadrado numa definição frigorificada (ALMEIDA, 2008a, p.
167). Assim, leva a cabo a reflexão sobre os conceitos de degradação e natureza, observando
que esta não pode mais ser entendida como ―quadro natural‖ ou ―meio físico‖, tratando-se de
um significado ligado mais a uma
representação disposta num campo de disputas que, ao negar esta noção histórica
corrente, chama a atenção para uma construção social e um ato deliberado dos que
se empenharam de maneira direta em extrativismos e cultivos agrícolas com
unidades familiares, afirmando uma identidade coletiva (p. 20)
257
Neste trabalho vem-se utilizando o conceito de ator, acionado por Latour (2004a, 2012). A despeito das
diferenças teóricas será utilizado neste tópico o conceito de agente, na medida em que foi a opção teórica que
Almeida (2006; 2008a; 2008b) lançou mão. Não há prejuízos teóricos nessa mescla, na medida em que, ainda
que Almeida apresente muitas saídas para as tensões sociais vividas pelas PPCT, termina-se, como será visto ao
final do capítulo, em retornar à dicotomia entre tradicionais e modernos, permitindo, nesse momento, analisar
outra dicotomia complementar a essa, a saber, natureza e cultura.
259
258
Neste trecho se utiliza os termos como sinônimos com o objetivo de ampliá-los ao máximo.
259
Em nota de rodapé das páginas 36 a 37, Almeida observa que ―Para Foucault, caso se pretenda adicionar o
conceito de descontinuidade às histórias do pensamento intelectual: ‗É preciso se libertar de todo um jogo de
noções que estão ligadas ao postulado da continuidade. [...] Como a noção de tradição, que permite ao mesmo
tempo delimitar qualquer novidade a partir de um sistema de coordenadas permanentes e de dar um estatuto a
um conjunto de fenômenos constantes. Como a noção de influência, que dá um suporte – antes mágico que
substancial – aos fatos de transmissão e de comunicação. Como a noção de desenvolvimento, que permite
descrever uma sucessão de acontecimentos como sendo a manifestação de um único e mesmo princípio
organizador. [...] É preciso abandonar estas sínteses já feitas, esses agrupamentos que se admitem antes de
qualquer exame, esses laços cuja validade é admitida ao início do jogo; destruir as formas e as forças obscuras
pelas quais temos o hábito de ligar entre si os pensamentos dos homens e seus discursos; aceitar que só se trata,
260
elaborado quase vinte anos depois, em meados da década de 2000, e refere-se não somente às
terras comuns, mas também às autodenominações dos agentes sociais que ocupam estas
terras, assim como focaliza os fenômenos de luta e conflito protagonizados por estes agentes,
atrelando o termo ―tradicional‖ a fatos do presente e às reivindicações dos movimentos
sociais. Estes dois artigos são respectivamente citados e explanados a seguir, a título de
melhor entendimento a respeito dos atributos que compõem o conceito de povos e
comunidades tradicionais.
Almeida (2008b), em seu primeiro texto, leva a cabo a reflexão da existência de
peculiaridades de uso e acesso à terra por parte desses grupos sociais, evidenciando a
importância das áreas de uso comum para os mesmos. Dessa forma, Almeida (2008b) elenca
as seguintes formas de posse comum por parte desses povos e comunidades na relação com
seus territórios tradicionalmente ocupados: terras de preto, terras de santo, terras de índio, as
terras de herança e as terras soltas ou abertas. Todas estas se caracterizam pelo fato de serem
de uso comum da comunidade local. Nesse sentido, o uso e o acesso a essas terras se dá por
meio de ―um certo grau de coesão e solidariedade obtido face a antagonistas e em situações de
extrema adversidade, que reforçam politicamente as redes de relações sociais‖ (p. 134). O
autor ainda assevera que o acesso aos recursos básicos presentes nessas terras260 são
interditados quando não existirem ―relações de consangüinidade, estreitos laços de vizinhança
e afinidade ou rituais de admissão, que assegurem a subordinação de novos membros às
regras que disciplinam as formas de posse e uso da terra‖ (ALMEIDA, 2008b, p. 134).
Essas terras comuns acabam não recebendo a sua devida atenção, pois, segundo
Almeida (2008b), são erroneamente consideradas ―formas atrasadas, inexoravelmente
condenadas ao desaparecimento, ou meros vestígios do passado, puramente medievais, que
continuam a recair sobre os camponeses, subjugando-os‖ (ALMEIDA, 2008b, p. 136),
terminando por representarem resíduos ou formas ―residuais ou ‗sobrevivências‘ de um modo
de produção desaparecido, configuradas em instituições anacrônicas que imobilizam aquelas
terras, impedindo que sejam colocadas no mercado‖ (ALMEIDA, 2008b, p. 136). Nesse
sentido, Almeida (2008b, p. 137) assevera que estas análises por ele citadas são características
das análises econômicas deterministas, sendo estas indiferentes a ―quaisquer das
particularidades que caracterizam as formas de posse e uso comum da terra, visto que jamais
constituem um obstáculo insuperável ao desenvolvimento capitalista‖ (ALMEIDA, 2008b, p.
137).
260
Leia-se recursos naturais como corpos d‘água, florestas e campos de pastoreio, entre outros.
262
Em resumo, essas áreas comuns, quando ameaçadas por agentes externos, criam
processos de disputa que fortalecem os laços sociais e a identidade coletiva dos grupos que as
utilizam, dando-lhes uma coesão política mais vigorosa, assim como mecanismos de proteção
e permanência nas mesmas. Com isso, as normas de acesso e uso das terras e recursos naturais
nelas contidos são criadas, sendo estas normas socialmente consensuais e extraestatais
(Almeida, 2008b). Nesse sentido, mais adiante, o mesmo autor observa que essas terras
seriam o resultado histórico de um processo de ―desagregação e decadência de plantations
algodoeiras e de cana-de-açúcar.‖, representando ―formas que emergiram da fragmentação
das grandes explorações agrícolas, baseadas na grande propriedade fundiária, na monocultura
e nos mecanismos de imobilização da força de trabalho‖, compreendendo ―situações em que
os próprios proprietários entregaram, doaram formalmente ou abandonaram seus domínios
face à derrocada‖ (ALMEIDA, 2008b, p. 144).
Assim, este ―campesinato pós-plantation‖ passou a se autorrepresentar e a designar
suas extensões segundo denominações específicas atreladas ao sistema de uso comum. As
noções de terra comum, a saber, as ―terras de preto‖, ―terras de santo‖, ―terras de irmandade‖,
―terras de parentes‖, ―terras de ausente‖, ―terras de herança‖ (e/ou ―terras de herdeiros‖) e
―patrimônio‖, são acionadas, figurando como um elemento no processo de identificação
coletiva e, consequentemente, reivindicações sociais e políticas (ALMEIDA, 2008b, p. 146).
Dessa forma, Almeida conclui seu primeiro artigo observando que
Em termos gerais [...] parece que o grau de solidariedade e coesão apresentado pelos
camponeses nestas terras de uso comum tem sido forte o bastante para garantir a
manutenção de seus domínios. Os vínculos sólidos que mantém a estabilidade
territorial alcançada constituem a expressão de toda uma rede de relações sociais
construída numa situação de confronto e que parece ser reativada a cada novo
conflito exercendo uma influência destacada na resistência àquelas múltiplas
pressões. Esta disposição seria uma das razões pelas quais, com o acirramento dos
263
confrontos, tais domínios podem ser classificados hoje como uma dentre as zonas
mais críticas de conflito e tensão social na estrutura agrária brasileira (p. 168).
apropriação dos recursos é que preferi utilizar a expressão processo de territorialização‖ (p.
29), no sentido utilizado por Oliveira Filho (apud ALMEIDA, 2008b)261, sendo que Almeida
(2008b) concede-lhe uma noção prática, entendendo-o no sentido de uma territorialidade
específica, utilizada
para nomear as delimitações físicas de determinadas unidades sociais que compõem
os meandros de territórios etnicamente configurados. As ―territorialidades
específicas‖ de que tratarei adiante podem ser consideradas, portanto, como
resultantes de diferentes processos sociais de territorialização e como delimitando
dinamicamente terras de pertencimento coletivo que convergem para um território
(p. 29).
261
Vale ressaltar que Oliveira Filho (apud ALMEIDA, 2008b) faz distinção entre processo de territorialização e
territorialidade, este mais próximo à definição que a Geografia faz do conceito. Não é objetivo deste trabalho
estabelecer essa discussão, reservando a obrigação de apenas mencioná-la para situar o leitor sobre o debate.
265
262
Dentre esses movimentos sociais, citam-se seus atores (e algumas de suas terras tradicionalmente ocupadas):
povos indígenas (terras indígenas), quilombolas (terras de quilombo), seringueiros (seringais, em geral
protegidos por RESEX), castanheiros (castanhais, em geral protegidos por RESEX), quebradeiras de coco-
babaçu (babaçuais, em geral protegidos por RESEX e pelas leis do babaçu livre), pescadores (lagos, rios, mar e
corpos d‘ água em geral, comumente protegidos por RESEX), ribeirinhos(rios, em geral protegidos por RESEX),
e agro-extrativistas em geral (tendo suas terras geralmente protegidas por RESEX), atingidos por barragens,
atingidos pela base de Alcântara, fundos de pasto, faxinais.
266
Neste tópico são abordados os instrumentos jurídico-legais que tratam dos conceitos
de PPCT. De início, deve-se, observar a diferenciação jurídica entre as identidades de
populações tradicionais, indígenas e quilombolas, pois que a primeira, em sua perspectiva
acadêmica, pode englobar as duas últimas. Assim, a identidade indígena e das populações
tradicionais são juridicamente distintas, pois são regulamentadas por dois instrumentos
jurídicos distintos: a noção de identidade indígena e a garantia de seus direitos advêm da
267
Carta Magna de 1988, assim como do Estatuto do Índio263; por outro lado, a identidade de
população tradicional toma a proporção que apresenta atualmente por meio da Lei 9.985, de
18 de julho de 2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC),
combinados com alguns dispositivos da CF, elencados mais abaixo. Os quilombolas também
constam como populações tradicionais, porém com uma identidade jurídica diferenciada,
advinda do Art. 68 do ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), ademais do
Decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003264.
Juliana Santilli (2004; 2005), com foco nos aspectos jurídicos, trata da questão da
diferenciação entre populações tradicionais. A autora reconhece que os povos indígenas, os
quilombolas e as populações tradicionais assemelham-se, à medida que possuem modos de
vida que são ecologicamente sustentáveis, assim como no uso comum dos recursos naturais e
conhecimentos acerca destes, ou seja, todos têm uma ―cultura tradicional‖. A autora afirma,
também, que estas três identidades diferenciam-se no âmbito jurídico, principalmente em
relação ao reconhecimento constitucional de direitos territoriais especiais. Dessa forma,
Santilli (2005) reconhece os indígenas e os quilombolas como populações tradicionais,
contudo faz a ressalva de suas diferenças perante as leis que regem o ordenamento jurídico
brasileiro. A autora deixa claro que o mais importante a se ter em foco é que indígenas,
quilombolas e populações tradicionais, apesar de apresentarem direitos diversos e diferentes,
podem ser entendidos como populações tradicionais na medida em que apresentam uma
cultura diferenciada da sociedade do entorno, em regra apresentando um caráter sustentável,
decorrente do vasto conhecimento acerca dos recursos naturais e ciclos da natureza.
Assim, a Carta Magna de 1988 garante o direito coletivo de
povos indígenas e quilombolas de forma discriminada, ou
seja, estes povos têm uma identidade jurídica diferenciada de
qualquer outro cidadão. Todavia, nesse cenário a
Constituição Federal silencia ao tratar de outras minorias de
maneira específica, generalizando a proteção dos direitos
culturais da sociedade brasileira por meio do seu Artigo 215,
que assim se pronuncia:
Art. 215 - O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos
culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e
incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
263
Lei 6.001, de 19 de dezembro de 1973.
264
Para mais detalhes sobre a diferenciação jurídica entre populações tradicionais, quilombolas e indígenas,
consultar o livro ―Sociambientalismo e novos direitos‖ de Juliana Santilli (2005), assim como artigo da mesma
autora no livro ―O desafio das sobreposições‖ (SANTILLI, 2004).
268
tradicionais, protegidos e garantidos pelos artigos 215, 216 e 216 A da CF, com os
socioambiental ao seu modo de vida, visto que, como demonstrado ao longo deste
cultura relativizados e interligados pelo modo de criar, fazer e viver das populações
215, 216 e 216 A protejam o modo de fazer, viver e ser dessas populações, logo
protege o meio ambiente que as cerca, visto que este foi culturalmente construído.
garantido.
que o critério da autoidentificação seja adotado para que uma cultura seja classificada como
tribal ou indígena.
Aplicada ao contexto das populações tradicionais, a convenção em voga não teria
efeitos se fosse interpretada de maneira literal, contudo em análises mais profundas dessa
convenção, convencionou-se entender que as populações tradicionais estão alocadas dentro do
conceito de povos tribais (ALMEIDA, 2008b).
Vale observar que essa interpretação é no mínimo redundante, visto que um dos
principais objetivos da convenção era o de garantir o direito à autoidentificação, perfazendo-
se contraditório entender que as populações tradicionais não poderiam identificar-se como
tribais, ao mesmo tempo em que se identificam como ribeirinhos, extrativistas, seringueiros
etc. Outra observação a ser tecida seria a dimensão pejorativa que o termo ―tribal‖ traz, sendo
esta questão bastante debatida e controversa no âmbito da relação entre os ―povos tribais‖ e o
Direito Internacional.
Nesse sentido, o conceito de população tradicional toma
maior amplitude no âmbito jurídico nacional por meio da lei
federal número 9.985/2000, que regulamenta o artigo 225,
parágrafo 1, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal de
1988, instituindo o Sistema Nacional de Unidades de
Conservação da Natureza (SNUC), assim como dá outras
providências.
Esta lei assegura, por meio do artigo 4o, inciso XIII a
proteção dos ―recursos naturais necessários à subsistência de
populações tradicionais, respeitando e valorizando o seu
conhecimento e sua cultura e promovendo-as social e
economicamente‖ (BRASIL, 2000). Por meio do artigo
supracitado deve-se evidenciar como a lei em questão
protege não somente os recursos naturais e seu patrimônio
genético, como também garante direitos a populações
tradicionais, incorporando em seus objetivos não somente a
proteção à biodiversidade, mas também à sociodiversidade
presente no Brasil, inovando na medida em que pensa o ser
humano em integração com a natureza ao utilizar paradigmas
socioambientais, assim como reconhece as interfaces
existentes entre diversidade biológica e cultural (SANTILLI,
2005).
O SNUC, em sua forma sancionada, não chega a conceituar
populações tradicionais, contudo cita-as, formulando um
conceito sobre as mesmas, ainda que de forma indireta
(SANTILLI, 2005), quando define Reservas Extrativistas
(RESEX) e Reservas de Desenvolvimento Sustentável
(RDS).
As RESEX definem indiretamente ―populações extrativistas
tradicionais‖ como populações ―cuja subsistência baseia-se
no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de
subsistência, e na criação de animais de pequeno porte‖ (Lei
272
265
Escasseamento dos recursos naturais, conflitos diversos, melhores condições de acesso aos recursos naturais
etc. podem levar grupos a um movimento de sazonalidade, ou de fluxo que pode comprometer seus direitos
diante das restrições temporais propostas nessa definição. Um exemplo a ser citado seria o caso de ribeirinhos
que trocam o local de sua morada de uma margem do rio para a outra margem, na medida em que a margem que
habitavam estava erodindo.
273
A autora em tela acrescenta que as populações tradicionais podem ser vistas ―como
parceiros na conservação ambiental, legitimamente interessados em participar da concepção e
gestão de políticas publicas sócio-ambientais‖, considerando-as como ―populações que
tradicionalmente vivem em um determinado território e desenvolvem técnicas e práticas
sustentáveis de manejo de seus recursos naturais‖ sendo estas ―mais capacitadas e
interessadas em promover‖ a conservação de seus territórios, e não podendo ser excluídas do
manejo dos mesmos (SANTILLI, 2005, p. 130).
Contudo, uma das primeiras definições de população
tradicional dentro do âmbito jurídico advém da portaria
número 22 do ano de 1992 do Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), a
qual entende população tradicional como: ―comunidades que
tradicional e culturalmente têm sua subsistência baseada no
extrativismo de bens naturais renováveis‖ (IBAMA, 1992).
Esta portaria criava o Centro Nacional do Desenvolvimento
Sustentado das Populações Tradicionais. Nesse período a
maioria das populações tradicionais era ―habitada‖ por
seringueiros. Deve ser ressaltado que, apesar de conceituar
população tradicional, portarias não são consideradas como
instrumento jurídico, mas sim administrativo, logo não se
pode dizer que esta é uma definição legal, ou seja, advinda
de lei, entretanto fica claro, por meio desta definição
administrativa, o limite de atuação do referido centro.
Gradativamente o termo ―populações tradicionais‖ vem
sendo utilizado de maneira concomitante ao termo ―povos e
comunidades tradicionais‖. Este último conceito tem sua
definição mais recente dentro da legislação brasileira
formulado pela lei 13.123 de 20 de maio de 2015, conhecida
como lei de acesso ao patrimônio genético e conhecimento
tradicional ou lei da biodiversidade266. A referida lei apenas
repetiu o conceito já formulado pelo Decreto no 6040, de 07
de fevereiro de 2007, que institui a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades
Tradicionais, conceituando-os como:
grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem
formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos
naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e
econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos
pela tradição (BRASIL, 2007).
266
Regulamenta o inciso II do § 1o e o § 4o do art. 225 da Constituição Federal, o Artigo 1, a alínea j do Artigo
8, a alínea c do Artigo 10, o Artigo 15 e os §§ 3o e 4o do Artigo 16 da Convenção sobre Diversidade Biológica,
promulgada pelo Decreto no 2.519, de 16 de março de 1998; dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, sobre
a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado e sobre a repartição de benefícios para conservação
e uso sustentável da biodiversidade; revoga a Medida Provisória no 2.186-16, de 23 de agosto de 2001; e dá
outras providências. Esta lei foi regulamentada pelo Decreto 8.772 de 11 de maio de 2016.
274
267
Gostaria de enfatizar que esses autores abordam de maneira plena o tema das populações tradicionais,
contudo colocam em destaque os eixos de pensamento aqui tratados.
268
No sentido pensado pela Antropologia, ou seja, grupos sociais exóticos, selvagens, rústicos, entre outras
qualificações que se opõe ―modernidade‖.
269
Algumas dessas dicotomias: moderno/tradicional; rural/urbano; sociedades simples ou rústicas/complexas,
cultura/natureza.
276
populações tradicionais pode ser utilizado em sua dimensão acadêmica para abarcar os grupos
sociais localizados à margem do conceito ―povos e comunidades tradicionais‖ para serem
incluídos gradativamente. Ademais, estes termos podem ser utilizados como sinônimos, na
medida em que apresentam pouquíssimas diferenças e, principalmente, os agentes sociais que
demandam este conceito encaixam-se em ambos.
A seguir dois quadros sinópticos são apresentados de forma a demonstrar as alterações
no uso das terminologias aqui apresentadas em uma relação com o cenário acadêmico e
jurídico/legal270. Vale observar que o primeiro quadro foi parcialmente apresentado no
capítulo anterior, sendo aqui complementado com a Portaria 22 do IBAMA, de 1992. Sua
repetição se faz necessária não só para ser complementado, mas especialmente para uma
melhor comparação com o quadro que traça a utilização cronológica do conceito de ―povos e
comunidades tradicionais‖.
A única diferença que existe entre esses termos refere-se ao âmbito jurídico-formal.
Explica-se. ―Populações tradicionais‖ têm sua origem legal na Lei 9.985/2000, que, por sua
vez, surgiu da luta pelo direito à diferença e territorialidade de grupos sociais que estavam
sendo expropriados de suas terras em virtude da política ambiental decorrente da implantação
de áreas especialmente protegidas. ―povos e comunidades tradicionais‖ surgem no âmbito da
convenção 169, que reconhecia ―as aspirações desses povos a assumir o controle de suas
próprias instituições e formas de vida e seu desenvolvimento econômico, e manter e fortalecer
suas identidades, línguas e religiões, dentro do âmbito dos Estados onde moram‖
(CONVENÇÃO 169, Preâmbulo, sem página).
Assim, apesar da diferença jurídico-legal de formato entre os conceitos, entende-se
que, em termos práticos, estes se configuram como sinônimos, na medida em que estão
ligados à luta desses grupos em serem diferentes daquilo que a modernidade projeta para eles.
Dessa forma, este trabalho utiliza estes conceitos como sinônimos, entendendo o termo
―populações/povos e comunidades tradicionais‖ como grupos humanos que apresentam as
seguintes características272: a) A sua forma de reprodução socioeconômica deve ser marcada
por uma lógica consuntiva, portanto, de produção e de consumo onde o excedente é
comercializado com o mercado, mas não se constitui em fator determinante das escolhas do
grupo (LIMA; POZZOBON, 2000; 2005; ARRUDA, 1999); b) deve apresentar um modus
vivendi de integração com a natureza (DIEGUES, 1993; 1994; SANTILLI, 2004; 2005;
VIANA, 2008); c) suas atividades de reprodução social e econômica são marcadas por um
baixo impacto ambiental (ARRUDA, 1999; LIMA; POZZOBON, 2000; 2005; DIEGUES,
1993; 1994); d) baixa integração com o mercado (LIMA; POZZOBON, 2005; ARRUDA,
1999); e) ausência de documentos que legitimem a sua propriedade (ARRUDA, 1999;
BENATTI, 2003; LITTLE 2002; ALMEIDA, 2008a, 2008b) e consequente fragilidade social
no que concerne à garantia de suas terras (BENATTI, 2003; LITTLE 2002; TRECCANI,
2006; SHIRAISHI NETO, 2006; 2007; ALMEIDA, 2008a; 2008b); f) direta dependência dos
272
Essas características já foram apresentadas no capítulo anterior, sendo agora repetidas para fins de acréscimo
dos autores que utilizam o conceito de ―povos e comunidades tradicionais‖.
279
recursos naturais locais, tanto no sentido de conseguirem alguma renda que lhes dê um
mínimo de acesso a objetos e gêneros alimentícios diversos, como no sentido de sua
subsistência através do consumo direto dos mesmos (LIMA; POZZOBON, 2000, 2005;
DIEGUES, 1993; 1994; ARRUDA, 1999); g) práticas sociais específicas e variadas de
relação com a natureza (DIEGUES, 1993; 1994; 2001; 2008; CUNHA, ALMEIDA, 2001;
SANTILLI, 2004; 2005; SHIRAISHI NETO, 2006; 2007) e seu território (LITTLE 2002;
BENATTI, 2003; TRECCANI, 2006; SHIRAISHI NETO, 2006; 2007; ALMEIDA, 2008a;
2008b); h) luta por direitos territoriais e identitários, consequentemente, luta pelo direito às
terras tradicionalmente por eles ocupadas e os respectivos modos de acesso e uso das mesmas
e seus recursos naturais (TRECCANI, 2006; SHIRAISHI NETO, 2006; 2007; ALMEIDA,
2007a; DIEGUES, 2008; ALMEIDA, 2008a; 2008b); i) devem autodeterminar-se como
populações tradicionais ou minimamente como culturalmente diferenciados do padrão
societário nacional (DIEGUES, 1994; CUNHA, ALMEIDA, 2001; SHIRAISHI NETO, 2006,
2007; ALMEIDA, 2007a; VIANNA, 2008; ALMEIDA, 2008a; 2008b).
Partindo dessas características, PPCT seriam aqueles grupos sociais que apresentam
um modo de vida específico, marcado pela intensa simbiose e relativa harmonia com o meio
ambiente em que vivem273, desenvolvendo técnicas de baixo impacto ambiental, fraca
articulação com o mercado, intenso conhecimento da biodiversidade que as cerca e modo de
produção baseado na mão-de-obra familiar. Vale ainda ressaltar que este é um termo
socialmente construído, tal como descrito acima, e atualmente caracteriza-se como uma
categoria política-identitária, passível de transformações no decorrer do tempo.
É imperioso salientar que nem sempre essas populações se denominam tradicionais,
mas são denominadas por outros atores sociais como tais. Nesse sentido, os grupos sociais
ditos ―tradicionais‖ não precisam apresentar todas estas características e nem mesmo se
autoidentificarem como tais, mas minimamente visualizarem-se com um modo de vida
diferenciado da sociedade do entorno para acessarem os direitos inerentes a esta categoria,
marcados por práticas sociais específicas e variadas de relação com a natureza. Dessa forma,
estes grupos exercem o seu direito internacionalmente reconhecido de
autorreconhecimento274, possibilitando o acesso a outros direitos, direitos estes específicos
273
Deve-se evitar cair na armadilha do ―bom selvagem‖, como salientado por Adams (2000), quando não se
analisa o caso concreto de maneira crítica, pautado em critérios científicos-ecológicos. Frisa-se novamente que
esses grupos sociais necessitam somente ser culturalmente diferenciados e reconhecerem-se como tais, dessa
forma, como salientado por Viveiros-de-Castro (2006, p. 5), a respeito da autoidentificação indígena, esses
grupos sociais devem ―se garantir‖ como tais. O referido texto está disponível em:
http://pib.socioambiental.org/files/file/PIB_institucional/No_Brasil_todo_mundo_%C3%A9_%C3%ADndio.pdf.
274
Convenção 169 da OIT.
280
destas populações, que foram amplamente declarados por meio do ordenamento jurídico
pátrio (Lei 9985, Art. 225 da CF, Decreto no 6040, e diversos outros). Como prova de tal fato,
citam-se as incorporações que o ordenamento jurídico pátrio realizou na edição dos
instrumentos jurídicos que tratam da temática afeta a esses grupos sociais, ilustrada
cronologicamente nos quadros 08 e 09.
Com efeito, repisa-se o que foi dito na conclusão do capítulo passado: o mais
importante a se destacar refere-se ao fato de que as populações com ―cultura tradicional‖
não precisam apresentar todas estas características e nem mesmo se autoidentificarem como
tais, mas minimamente visualizarem-se com um modo de vida diferenciado da sociedade
do entorno para acessarem os direitos inerentes a esse conceito.
Assim, o adjetivo ―tradicional‖ trouxe para os conceitos aqui tratados um entrave: os
grupos humanos nele encaixados recebiam direitos peculiares, advindos de suas identidades
culturais específicas, diferenciados dos modernos. Se ―deixarem‖ de ser tradicionais, perdem
esses direitos. Como, então classificar os grupos que se encaixam como sujeitos desses
―direitos culturais tradicionais‖? Na medida em que se têm acesso a esses direitos, como
escola, posto de saúde, emprego, renda, não se começa a sair do que se entende por
tradicional? Como separar o tradicional do moderno?
Diante do entrave que a dicotomia tradicional e moderno criou, foi necessário buscar
alternativas teóricas e entender a origem desta. A mesma, como explicitado pela discussão
sobre o conceito de PPCT´s, tem sua origem na dicotomia entre natureza e cultura, na medida
em que os tradicionais são os portadores da cultura ecológica, com uma relação de intimidade
com a natureza, enquanto que os modernos são aqueles que detêm a cultura civilizada, da
razão, longe dos instintos e da natureza. Com efeito, essa dicotomia entre natureza e cultura
aponta para o coração da disciplina antropológica e constitui-se no eixo de reflexão do
próximo capítulo, que constrói algumas críticas decorrentes das leituras de Latour, Viveiros
de Castro e da disciplina científica da Economia Ecológica. Estas mesmas reflexões são
utilizadas nos capítulos etnográficos apresentados ao final desta tese, permitindo, assim,
consolidar a crítica feita à modernidade, seu conhecimento científico e à teoria Antropológica
dominante que vem, etnocentricamente, explicando outros mundos através de seus
pressupostos epistemológicos e ontológicos de existência. Nas palavras de Viveiros de Castro.
antropólogo e o nativo com suas culturas respectivas, e, portanto com suas culturas
recíprocas, é de tal ordem que a igualdade de fato não implica uma igualdade de
direito — uma igualdade no plano do conhecimento. O antropólogo tem usualmente
uma vantagem epistemológica sobre o nativo. O discurso do primeiro não se acha
situado no mesmo plano que o discurso do segundo: o sentido que o antropólogo
estabelece depende do sentido nativo, mas é ele quem detém o sentido desse sentido
— ele quem explica e interpreta, traduz e introduz, textualiza e contextualiza,
justifica e significa esse sentido. A matriz relacional do discurso antropológico é
hilemórfica: o sentido do antropólogo é forma; o do nativo, matéria. O discurso do
nativo não detém o sentido de seu próprio sentido. De fato, como diria Geertz,
somos todos nativos; mas de direito, uns sempre são mais nativos que outros.
(VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 114-115)
275
Essa era função dos sociólogos, os quais deveriam observar a Sociedade, entendida como o grupo de pessoas
que vivia sob a égide da modernidade. Colocando em outra perspectiva, a Antropologia era a ciência das
sociedades primitivas e a Sociologia a ciência da Sociedade moderna, ou, a Antropologia como subdivisão da
Sociologia, responsável por estudar o social, mas o social que era praticado nas sociedades tradicionais, não
modernas, estando a sociologia imbuída da função de estudar o social das sociedades modernas.
276
Sobre esse momento de passagem dos anos 1960 aos anos 1980, consultar excelente artigo de Ortner (2011).
277
Ainda que coloquial, faço uso da ideia de embaralhamento, importada de Viveiros de Castro (2002b, 2015).
283
maneira não unânime, pode-se nomear esse alinhamento como um movimento chamado de
―pós-estrutural‖ (VIVEIROS DE CASTRO, 2015)278.
Novamente a unanimidade não é atingida, mas pode-se, ainda que com algum esforço
e violência, caracterizar a Antropologia pós-estrutural como aquela que politiza a
epistemologia de maneira explícita e consciente, colhendo os frutos dessa ―politização
despolitizada‖. Utilizo este último termo, aparentemente tão contraditório, para tornar
explícita a politização que antes existia na epistemologia dos modernos por meio da crença na
existência do binômio objetividade/subjetividade e natureza/cultura. Viveiros de Castro279
bem explicita essa politização ao declarar o principal objetivo de seu último livro:
A questão axial d´O Anti-Narciso é epistemológica, ou seja, política. Se estamos
todos mais ou menos de acordo para dizer que a antropologia, embora o
colonialismo constitua um de seus a priori históricos, está hoje encerrando seu ciclo
cármico, é preciso então aceitar que chegou a hora de radicalizar o processo de
reconstituição da disciplina, levando-o a seu termo. A antropologia está pronta para
assumir integralmente sua verdadeira missão, a de ser a teoria-prática da
descolonização permanente do pensamento. (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p.
20)280
Assim, posso dizer que esta tese, em certo sentido, é o desdobramento de um dos
argumentos da minha dissertação de mestrado. Nela construí um ensaio de sociologia jurídica
das PPCT´s na Amazônia, explicitando a inaplicabilidade da lei à realidade socioambiental
desta região, na medida em que os grupos sociais da Amazônia não urbana (e até alguns
grupos da Amazônia urbana, como indígenas, quilombolas e caboclos que vivem na cidade)
não fazem a distinção ente natureza e cultura, como a lei o faz, já que produzida sob o manto
da ―cultura moderna‖, em oposição às ―culturas tradicionais‖.
Nesta tese, aprofundo esse cenário dicotômico entre ―tradicionais e modernos‖ e
―natureza e cultura‖, chegando a uma terceira dicotomia, a saber, objetividade e subjetividade.
Esse aprofundamento se deu por meio da leitura de dois autores em especial, Eduardo
Viveiros de Castro e Bruno Latour, respectivamente, etnógrafo de povos ameríndios e um dos
formuladores do conhecido ―perspectivismo ameríndio‖; filósofo/sociólogo/antropólogo das
ciências, um dos principais pensadores da teoria ator-rede (doravante TAR) e autor do livro
278
Tim Ingold; Marilyn Strathern; Philippe Descola; Roy Wagner talvez sejam seus pioneiros não intencionais.
No Brasil temos autores como Eduardo Viveiros de Castro, Mauro Almeida e Manuela Carneiro da Cunha como
autores que se alinham e originalmente contribuem ao pensamento em tela.
279
Para evitar cansativas repetições, doravante também citado como VDC.
280
Mais adiante, o autor em tela complementa a explicação dos propósitos de seu livro: ―Assim, o propósito do
título original do livro que (d)escrevemos é o de sugerir que nossa disciplina já está redigindo os primeiros
capítulos de um livro-manifesto que seria, para ela, ....‖ p25.
284
Esta formulação cosmológica não consegue ser explicada pela usual conceituação da
Antropologia moderna, a saber, dicotomia entre Natureza e Cultura, onde há uma unidade
natural entre a espécie humana e uma multiplicidade cultural (multiculturalismo).
281
Ainda que sua gênese tenha se dado em meados de 1960, com a obra de Georgescu-Roegen (2012), ―O
decrescimento: entropia, ecologia, economia.‖, estas abordagens somente foram retomadas de modo a tomar
algum espaço de concorrência com a doutrina econômica liberal ou marxista dominantes, na década de 1990
com o agravamento da crise ambiental (CAVALCANTI, 2010, 2004).
285
Para solucionar essa paralização proporcionada pela crítica etnológica a sua própria
teoria, VDC propõe o termo multinaturalismo (a partir do pensamento ameríndio), colocando
às avessas os pressupostos teóricos da antropologia moderna: não é a natureza que é comum e
universal enquanto que a cultura específica e múltipla, mas sim a cultura como universal e a
natureza como específica. Para melhor entender este postulado, cita-se as palavras do autor:
as categorias de Natureza e Cultura, no pensamento ameríndio, não só não
subsumem os mesmos conteúdos, como não possuem o mesmo estatuto de seus
análogos ocidentais — elas não designam províncias ontológicas, mas apontam para
contextos relacionais, perspectivas móveis, em suma, pontos de vista. (VIVEIROS
DE CASTRO, 2004, p. 226, destaque meu).
humanos são animais de presa (não humanos), sendo eles próprios humanos, praticando sua
cultura. Do ponto de vista dos animais de presa, nós humanos somos predadores, assim como
os animais predadores, sendo os frutos, insetos e plantas seus peixes, cerveja, carne,
percebendo-se eles mesmos como humanos, também praticando sua cultura (VIVEIROS DE
CASTRO, 1996, 2004, 2015).
Para melhor explicar, cita-se um exemplo: quando se encontra antas chafurdando em
possas, na verdade, elas estão promovendo um ritual; quando um urubu come um verme, ele
está, na sua forma, humana, comendo um peixe; quando um jaguar bebe o sangue de sua
presa, ele está, em sua forma humana, tomando cauim282, etc. Assim, os animais são gente
com roupa de animal, escondendo uma forma interna humana, normalmente visível somente à
sua espécie e a seres especiais, como os xamãs (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, 2004,
2015).
Vale ressalvar:
o perspectivismo raramente se aplica em extensão a todos os animais (além de
englobar outros seres); ele parece incidir mais freqüentemente (sic) sobre espécies
como os grandes predadores e carniceiros, bem como sobre as presas típicas dos
humanos,... uma das dimensões básicas, talvez mesmo a dimensão constitutiva, das
inversões perspectivas diz respeito aos estatutos relativos e relacionais de predador e
presa.
[...]
a ‗personitude‘ e a ‗perspectividade‘ — a capacidade de ocupar um ponto de vista
— é uma questão de grau e de situação, [...] A possibilidade de que um ser até então
insignificante revele-se como um agente prosopomórfico capaz de afetar os negócios
humanos está sempre aberta; a experiência pessoal, própria ou alheia, prevalece
sobre qualquer dogma cosmológico substantivo. (VIVEIROS DE CASTRO, 2004,
p. 228).
Com efeito, o autor lança mão da ideia de mito. Neste, os índios contam que no início
todos eram humanos, mas, com o passar do tempo, os animais assumiram outras formas,
contrariamente ao nosso mito originário moderno: segundo a ―teoria da evolução da
espécies‖, éramos animais, para então nos transformarmos em humanos. Nesse sentido, assim
se manifesta Viveiros de Castro:
Assim, se nossa antropologia popular vê a humanidade como erguida sobre alicerces
animais, normalmente ocultos pela cultura — tendo outrora sido ‗completamente‘
animais, permanecemos, ‗no fundo‘, animais —, o pensamento indígena conclui ao
contrário que, tendo outrora sido humanos, os animais e outros seres do cosmos
continuam a ser humanos, mesmo que de modo não-evidente.
...
Em suma, para os ameríndios ―o referencial comum a todos os seres da natureza não
é o homem enquanto espécie, mas a humanidade enquanto condição‖ (Descola
1986:120). Essa distinção entre a espécie e a condição humanas deve ser sublinhada.
Ela tem uma conexão evidente com a idéia (sic) das roupas animais a esconder uma
282
Bebida fermentada pelos índios. Em uma simetria com nossa sociedade, seria a nossa cerveja.
287
Assim, nossa sociedade toma como explicação de mundo possível o naturalismo, que
pressupõe uma ontologia dicotômica entre uma natureza, domínio das necessidades biológicas
universais e imanentes à natureza comum de todos os corpos, e cultura, domínio da
espontaneidade cultural/social, transcendente ao ser individual. Por outro lado, os ameríndios
entendem que o mundo é composto por uma cultura universal, transcendente à todos os seres
e imanente aos seus corpos:
O animismo pode ser definido como uma ontologia que postula o caráter social das
relações entre as séries humana e não-humana: o intervalo entre natureza e
sociedade é ele próprio social. O naturalismo está fundado no axioma inverso: as
relações entre sociedade e natureza são elas próprias naturais. Com efeito, se no
modo anímico a distinção ―natureza/cultura‖ é interna ao mundo social, humanos e
animais estando imersos no mesmo meio sociocósmico (e neste sentido a ―natureza‖
é parte de uma socialidade englobante), na ontologia naturalista a distinção
―natureza/cultura‖ é interna à natureza (e neste sentido a sociedade humana é um
fenômeno natural entre outros). O animismo tem a ―sociedade‖ como pólo não-
marcado, o naturalismo, a ―natureza‖: esses pólos funcionam, respectiva e
contrastivamente, como a dimensão do universal de cada modo. Animismo e
naturalismo são, portanto, estruturas hierárquicas e metonímicas [...] (VIVEIROS
DE CASTRO, 1996, p. 121).
Segundo Viveiros de Castro, para a Antropologia levar à sério seus nativos significa
não mais explicar o outro a partir do antropólogo como sujeito moderno, sua imagem, seus
conceitos, sua metafísica, buscando semelhanças. É necessário inverter a postura, de modo a
pensar com o outro o que nos faz diferente, o que diferencia o sujeito eu do outro sujeito,
permitindo dar sentido a outros mundos possíveis de sujeitos outros, como será visto mais
adiante. Esta escolha política de procedimento epistêmico teve como base a empresa de
considerar a cosmologia do nativo como conceitos filosóficos e metafísicos, chegando a
resultados no mínimo incomuns, esboçados a seguir.
Para nós (modernos), a forma do outro é a coisa, na medida em que para conhecermos
algo (ou alguém), objetivamos a realidade, tratando-a como coisa, reduzindo-a a um mínimo
ideal. Para o perspectivismo ameríndio, a forma do outro é a pessoa, ―Conhecer é
personificar, tomar o ponto de vista daquilo que deve ser conhecido‖ (VIVEIROS DE
CASTRO, 2004, p. 231). Assim, a ―... boa interpretação xamânica é aquela que consegue ver
o evento como sendo, em verdade, uma ação, uma expressão de estados ou predicados
intencionais de algum agente‖ (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 232). Então, um objeto
nada mais é que um sujeito mal interpretado, para o qual não se conseguiu alcançar seu ponto
de vista, sua forma intencional plena ou minimamente ter sua relação com algum sujeito
demonstrada, para poder ―aparecer no mapa‖ de algum agente (VIVEIROS DE CASTRO,
2004).
Em outras palavras, a própria concepção de sujeito, subjetividade e humanidade do
outro é outra que não a minha, consequentemente, não posso eu, antropólogo, utilizar a minha
concepção de sujeito para classificar (ou não) o outro estudado como sujeito. Como alerta
Viveiros de Castro, o problema não é ver o nativo como objeto, que ele seja um ―[...]sujeito,
não há a menor dúvida; mas o que pode ser um sujeito, eis precisamente o que o nativo obriga
o antropólogo a pôr em dúvida.‖ (VIVEIROS DE CASTRO, 2002b, 118-119). Assim, o
antropólogo deve se apropriar do discurso do outro sobre o que é ser um sujeito para então
explicar o que seria ser um sujeito para o sujeito que se estudo, despolitizando a episteme a
priori utilizada para estudar o outro (que é a do próprio antropólogo). Nada de espelhos,
encontro etnográfico, fusão de horizontes hermenêuticos. Nas palavras de Viveiros de Castro
(2002b, p. 119):
O problema é que o nativo certamente pensa, como o antropólogo; mas, muito
provavelmente, ele não pensa como o antropólogo. O nativo é, sem dúvida, um
objeto especial, um objeto pensante ou um sujeito. Mas se ele é objetivamente um
sujeito, então o que ele pensa é um pensamento objetivo, a expressão de um mundo
possível, ao mesmo título que o que pensa o antropólogo. [...] Tal confronto [de
pensamentos] não precisa se resumir a uma mesma equivocidade de parte a parte —
289
Esta última reflexão permite que Viveiros de Castro chame a atenção para a
ambiguidade dos artefatos que, apesar de não apresentarem subjetividades ou
intencionalidades, apontam para estas características de outros seres, na medida em que são
como ―ações congeladas, encarnações materiais de uma intencionalidade não-material.‖
(VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 233).
Retornando ao perspectivismo ameríndio, o predador comendo sua presa, pode estar
menos exercitando sua natureza primitiva, que exercitando sua cultura ao tomar sangue como
cauim (cerveja). Nas palavras do autor: ―o que uns chamam de ‗natureza‘ pode bem ser a
‗cultura‘ dos outros.‖ (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 233).
Com efeito, se a Antropologia é a Ciência Social dos tradicionais ou povos primitivos,
o que fazer quando estes ativam não humanos como animais e recursos ambientais, dando-
lhes a condição de humanos, inserindo-os em seu círculo social, ontológico e metafísico? O
que fazer para explicar o paradoxo etnográfico do perspectivismo ameríndio, que entende que
a cultura de uns é a natureza de outros?283
Viveiros de Castro propõe que o antropólogo não deveria nem explicar, nem
interpretar, mas sim multiplicar e experimentar as cosmovisões outras, de modo a imaginar
estas cosmovisões como práticas de sentido, estabelecendo relação de sentido entre o discurso
do antropólogo e o do nativo, nada de interpretações e descrições densas de sistemas culturais
ou de explicar, racionalizar o sistema de crenças do outro. Nas palavras de Viveiros de Castro:
[...] o plano do sentido não é povoado por crenças psicológicas ou proposições
lógicas, e o ‗fundo‘ contém outra coisa que verdades. Nem uma forma da doxa, nem
uma figura da lógica — nem opinião, nem proposição —, o pensamento nativo é
aqui tomado como atividade de simbolização ou prática de sentido: como
dispositivo auto-referencial ou tautegórico de produção de conceitos, isto é, de
―símbolos que representam a si mesmos‖ (Wagner 1986). (VIVEIROS DE
CASTRO, 2002b, p. 131)284.
283
Vale dizer, Viveiros de Castro assim explica esse paradoxo: ―[...]. O que faz do nativo um nativo é a
pressuposição, por parte do antropólogo, de que a relação do primeiro com sua cultura é natural, isto é, intrínseca
e espontânea, e, se possível, não reflexiva; melhor ainda se for inconsciente. O nativo exprime sua cultura em
seu discurso; o antropólogo também, mas, se ele pretende ser outra coisa que um nativo, deve poder exprimir sua
cultura culturalmente, isto é, reflexiva, condicional e conscientemente. Sua cultura se acha contida, nas duas
acepções da palavra, na relação de sentido que seu discurso estabelece com o discurso do nativo. Já o discurso do
nativo, este está contido univocamente, encerrado em sua própria cultura. O antropólogo usa necessariamente
sua cultura; o nativo é suficientemente usado pela sua.‖ (VIVEIROS DE CASTRO, 2002b, p. 114)
284
Latour apresenta um posicionamento similar sobre esses paradoxos etnográficos, sendo este posicionamento
expressado no tópico a seguir.
290
285
Nota de rodapé número 7: ―É assim que interpreto a declaração de Wagner (1981:35): ‗Estudamos a cultura
através da cultura, e portanto as operações, sejam quais forem, que caracterizam nossa investigação devem ser
também propriedades gerais da cultura.‘.
286
Nota de rodapé número 8: ―Ver, sobre isso, Jullien (1989:312). Os problemas reais de outras culturas são
problemas apenas possíveis para a nossa; o papel da antropologia é o de dar a essa possibilidade (lógica) o
estatuto de virtualidade (ontológica), determinando — ou seja, construindo — sua operação latente em nossa
própria cultura.‖
291
Em outras palavras, a Constituição dos modernos rezava que caberia à sua civilização
a cultura objetiva, descobrindo a natureza, enquanto que às outras culturas (os tradicionais),
ficariam apenas com construções culturais e subjetivas do mundo. Enquanto que estes
inventam seu mundo, aqueles o descobrem.
287
A noção de Constituição é emprestada do meio jurídico, para denominar uma espécie de ―contrato social‖
fictício, nos termos mesmos de Thomas Hobbes (O Leviatã), que iria orientar a visão de mundo dos modernos.
Conforme exposto em nota de rodapé número cinco: ―A noção de Constituição [...] encontra-se há muito tempo
desenvolvido em Latour (1991): trata-se de substituir a oposição do conhecimento e do poder, da natureza e da
sociedade, por uma operação prévia de distribuição dos direitos e dos deveres dos humanos e dos não-humanos.
É esta noção que permite a antropologia simétrica e que torna a modernidade comparável à outras formas de
organização pública.‖ (LATOUR, 2004 a, p. 32).
292
As duas últimas linhas do quadro são bem representativas dessa habilidade de transitar
entre os dois mundos. Nessas linhas estão colocadas o adjetivo cultural que se divide entre
modernos e tradicionais, onde fica expresso que os modernos conseguem objetivar o que são
os tradicionais, na medida em que se localizam abaixo da segunda coluna, mas não possuem
barreiras para retornar para a coluna anterior. Assim, os tradicionais ficam exclusivamente
com a parte da natureza, do instinto, selvagem, primitivo, sem ideia alguma do outro lado da
moeda, ocupado pelos modernos, sujeitos estes filhos da razão, pessoas civilizadas e que,
surpreendentemente, podem circular entre o outro lado da moeda livremente, pois saíram
desse estágio atrasado, protagonistas de grandes descobertas desse mundo natural, objetivo,
fatídico, empírico, somente por eles descobertos de forma legitima, verdadeira. Como
menciona Viveiros de Castro (2002 b), os modernos são nativos de fato e de direito, diferente
dos nativos tradicionais, apenas de fato, sem direito algum nessa velha Constituição.
Se, polidamente, assinalamos que a facilidade com a qual os sábios passam do
mundo social àquele das realidades exteriores, a comodidade com que fazem
experiência por esta importação-exportação de leis científicas, a rapidez com a qual
eles convertem o humano e o objetivo provam bem que não há ruptura entre os dois
mundos, e que se trata muito mais de um tecido sem costura, seremos acusados de
relativismo; dir-se-á que tentamos dar à Ciência uma "explicação social";
denunciarão em nós molestas tendências ao imoralismo; talvez nos perguntarão
publicamente se cremos ou não na realidade do mundo exterior ou se estamos
prestes a nos lançar do décimo quinto andar de um prédio, pois estimamos que as
leis da gravidade, elas também, sejam "construídas socialmente" (LATOUR, 2004
b, p. 30).
Obviamente que essas dicotomias nem sempre estão diretamente ligadas umas às
outras, sendo em alguns momentos necessário algum esforço de imaginação um pouco mais
intenso para estabelecer as ligações entre um e outro. Contudo, é inegável que há uma ligação
entre esses pares. Retorna-se ao paradoxo imobilizador dos modernos, de sua velha
Constituição que divide um mundo pronto, acabado, esperando ser descoberto (lado de fora da
caverna), em oposição a um mundo em eterna construção, sempre artificial, sempre mutável,
sempre dinâmico (interior da caverna). Em outras palavras, essas dicotomias são um paradoxo
nelas mesmas, como citado alguns parágrafos atrás (―Cada uma das câmaras ameaçava a outra
de exterminação.‖ LATOUR, 2004 a, p. 108).
Ocorre que com o passar dos anos esses paradoxos, ou como denominados por Latour,
esses híbridos foram multiplicando-se cada vez mais, a ponto de não mais poderem ser
desprezados, nem pelas redes científicas, menos ainda pelas redes de humanos e não humanos
do mundo comum. Cada vez mais híbridos de Natureza e Cultura, como o aquecimento
global, a vaca louca, as florestas culturais indígenas, máquinas com inteligência artificial,
recursos bióticos transgênicos, entre tantos outros, aparecem em jornais, revistas e na grande
294
mídia em geral, passando para espaços extramuros científicos, adentrando redes de humanos e
não humanos da vida comum.
O próprio meio científico apresenta um sintoma desse cenário dicotômico e paradoxal,
na medida em que até mesmo na Ciência, o espaço da objetividade, da sapiência, da
descoberta da Natureza e suas leis, começam a surgir híbridos científicos que dividiam uma
qualidade moderna em comum, a interdisciplinaridade. Elenquei alguns deles abaixo.
Ecologia Política
Economia Ecológica (ou Ecologia Econômica ou Bioeconomia)
Antropologia Ecológica
Ecologia Cultural
Ecologia Social
Ecologia Humana
Etnociências
História Ambiental
Socioambientalismo
Sociobiologia
Desenvolvimento Sustentável
Dentre outros.
Em todos esses híbridos, figura um termo representativo das Ciências Humanas e
outro que representa as Ciências Físicas ou da Vida. Ocorre que a interdisciplinaridade da
Ciência é impossível, segundo a própria concepção clássica de Ciência. Ela produz um
conhecimento a partir de procedimentos analíticos que destrincham a realidade, fragmentam-
na em pequenos compartimentos do saber, cada um com teoria, objeto e método próprios. A
filosofia tem por papel unir esses conhecimentos, por meio de operações dialéticas. Ocorre
que essa abordagem interdisciplinar, ou essa postura holística, rizomática, que junta e/ou
interliga as disciplinas, se faz necessária na medida em que temos produção de conhecimento
cada vez mais alienado do mundo, sem atender critérios funcionais ou mesmo importar-se
com justiça social, distribuição de renda, preservação do meio ambiente.
Com efeito, a ciência destrincha a representação desse mundo, ou seu conhecimento
sobre o mesmo, em sub províncias ontológicas, onde uma é de domínio da Ciência (a
Natureza) e a outra é de domínio da Política (a sociedade, a cultura). Com efeito, se não
houver um caminho de volta, um fio de Ariadne, que una novamente esses mundos, teremos
um mundo fragmentado e alienado, não mais um mundo comum, como quer Latour (2004a).
Este mundo será especialmente alienante, na medida em que este pensamento, alienado desde
295
sua criação, produz e reproduz (ou, nas palavras de Latour, compõe) esse mundo, alienando-o
desde o seu nascimento na medida em que o divide em dois opostos incomunicáveis, somente
tendo o Cientista como ente sobrenatural que consegue passar de um canto à outro.
Entre os desdobramentos reflexivos sobre essa situação de dois mundos, agregada à
ideia de sociedade de consumo, estaria o fato de que a própria composição do mundo comum
não se fazer mais pelas pessoas comuns, estas apenas reproduzem um mundo comum que já
chega pronto para ser reproduzido por meio do consumo, seja de bens materiais e imateriais
produzidos pela sociedade de mercado, seja das verdades produzidas pelo meio científico.
Com efeito, os atores humanos do meio científico (os cientistas) devem tomar
consciência dos limites de sua maneira de ver o mundo, do seu conhecimento sobre o mundo,
de sua crença inabalável nesse conhecimento. O cientista deve entender que a ciência
apresenta limites claros e definidos, não conseguindo ir além, passando para questões
metafísicas. Estas, por sua vez, podem levar em conta conhecimentos científicos para serem
explicadas, mas eles apenas não bastam, novamente entrando no terreno de suposições
metafísicas que escapam ao domínio da Ciência empírica ou racionalista. O paradoxo
paralisante está novamente armado. A Ciência não consegue mais descobrir a verdade, logo,
deixa de instruir a câmara dos humanos que, por sua vez, deixa de ouvi-la, mas tampouco
chega à consensos, na medida em que apoia-se em terreno de suposições sociais.
Como exemplo da limitação advinda da dicotomia paralisante do mundo moderno,
acima exposta, cito as abordagens que são realizadas sobre a noção de tempo, variável
incontestavelmente absoluta para os modernos até início do século XX288. O tempo é a chave
para se entender a concepção de mundo moderno. Segundo a explicação científica, o universo
foi criado por um não humano chamado de Big Bang (HAWKING, 2015), uma grande
explosão que dá origem à tudo, inclusive ao tempo, sendo sua passagem a responsável por
permitir que as coisas existam e aconteçam.
Este não humano pode ser entendido como uma ―variável invariante‖, pois existe e
passa para todos e todas (invariante), nunca podendo ―andar para trás‖, entretanto, pode
passar de maneira diferente para outros humanos e não-humanos (variável). Tal entendimento
pode ser tanto corroborado pela física, como pela própria sociologia. Pela física em virtude da
teoria da relatividade (HAWKING, 2015; LOBÃO, 2006) e pela sociologia através da ideia
de que a concepção de tempo muda de acordo com meu plano ontológico e metafísico
288
Einstein e sua teoria da relatividade demoveram do tempo sua qualidade de absoluto e igual para todos.
296
(HAWKING, 2015; LOBÃO, 2006; ALMEIDA, 2008). Segundo Hawking (2015), um dos
principais intérpretes da cosmologia moderna:
[...] era possível classificar qualquer evento por uma grandeza chamada ―tempo‖, de
maneira única, e todo bom relógio estaria de acordo quanto ao intervalo de tempo
entre dois eventos. No entanto, a descoberta de que a velocidade da luz parecia ser a
mesma para qualquer observador, a despeito de como ele estivesse se movendo,
levou à teoria da relatividade – e, baseados nela, tivemos de abandonar a ideia de
que havia um tempo único e absoluto. (HAWKING, 2015, p. 179)
Em outras palavras, até mesmo o tempo, a variável mais absoluta dos modernos, foi
relativizada na medida em que não passa mais de maneira igual para todos. Este situação é
explicada abaixo por Hawking.
[...]. Existem pelo menos três setas do tempo distintas. Primeiro, há a seta do tempo
termodinâmico, a direção na qual a desordem ou entropia 289 aumenta. Depois, há a
seta do tempo psicológico. Essa é a direção em que sentimos o tempo passar, a
direção em que nos lembramos do passado, mas não do futuro. Enfim, há a seta do
tempo cosmológico. Essa é a direção do tempo em que o universo está se
expandindo, em vez de se contrair. (HAWKING, 2015, p.181)
Essa linha do tempo, para os modernos, segue sempre para frente, nunca retorna.
Nesse percurso, agrega-se a ideia de que a vida vai evoluindo, passando de um estágio menos
evoluído (um estágio natural), para outro mais evoluído (um estágio cultural, civilizado) e
assim sucessivamente, como se tivéssemos uma linha de chegada, onde, um dia, todos
estariam evoluídos, ou, na alegoria originalmente utilizada por Platão, que Latour (2004 a,
especialmente capítulo 1) lançou mão, a humanidade um dia chegará ao mundo das luzes, fora
da caverna. Assim, o modelo de Ciência que encontra a verdade em formato de leis gerais tem
na Física, um dos seus pilares mais rígidos, um grande tropeço visto que perde a variável
absoluta que era o tempo.
Essa crença se repete quando se fala sobre os grupos humanos, especialmente quando
esses grupos assumem o formato de Estado-nação, podendo assumir a qualidade de
desenvolvido ou subdesenvolvido. Essa seria a análise tradicional da Economia, que é
popularmente difundida e que se sustenta na ideia de que um país para ser desenvolvido deve
escorar-se na produção de riquezas, em uma perspectiva monetarizada resultando em dinheiro
a ser investido em sua sociedade, estruturando-a e modernizando-a. À despeito da crítica
marxista, opta-se aqui pela crítica da epistemologia política de Latour e uma crítica ecológica,
advinda da junção dessa epistemologia política com a Ecologia Política moderna pensada a
289
Esta noção será detalhada mais adiante, neste mesmo capítulo. Por hora, basta entende-la como o nível de
energia dissipada no processo de troca de energia entre corpos. Exemplo. Ao ferver água em meu fogão, perde-
se energia em forma de calor dissipado para o ambiente. Não é toda a energia que sai da chama criada pelo fogão
que é absorvida pela panela e repassada para a água. Perde-se energia nesse processo.
297
partir do mesmo autor e esboçada a seguir, ademais de, no próximo tópico, lançar mão da
Economia Ecológica para uma crítica a essa ontologia a partir de seus próprios critérios
científicos.
A dicotomia entre dois mundo é resultado daquilo que Latour chama de epistemologia
(política), ou polícia epistemológica. Assim, formam-se dois tipos de epistemologia, a
Epistemologia política versus a epistemologia (política), a segunda resulta na paralisação da
episteme, pois divide natureza e cultura, a primeira entendendo que não há divisões, não cai
na armadilha de dicotomias paralisantes. Nas palavras de Latour:
É preciso poder contornar este sofisma dos filósofos das ciências, que fez calar a
política, há vinte e cinco séculos, logo que ela enfrentou a questão da natureza.
Convenhamos logo de saída: a dificuldade oculta é inevitável. Entretanto, a primeira
vista, nada deveria ser mais inocente que a epistemologia*, conhecimento do
conhecimento, descrição meticulosa das práticas sabias, em toda sua complexidade.
Não confundamos esta epistemologia aí, bastante respeitável, com uma outra
atividade, que designaremos pela expressão de epistemologia (política)*, colocando
a palavra entre parênteses, uma vez que esta disciplina pretende limitar-se à Ciência,
desde que ela não vise senão humilhar a politica.' Esta forma de epistemologia não
tem, por finalidade, de forma alguma, descrever as ciências, contrariamente ao que a
epistemologia poderia fazer entender, mas evitar toda interrogação sobre a natureza
das complexas ligações entre as ciências e as sociedades, pela invocação da Ciência
como única salvação contra o inferno social. A dupla ruptura da Caverna não se
funda em nenhuma pesquisa empírica, sobre algum fato de observação, ela é até
contrária ao senso comum, à prática cotidiana de todos os sábios; e se ela jamais
existiu, vinte e cinco séculos de ciências, de laboratórios, e de instituições de sábios,
desde há muito tempo a apagaram. Nada adianta, a polícia epistemológica anulará
sempre este conhecimento ordinário, criando esta dupla ruptura entre os elementos
que tudo religa, e peneirando aqueles que a põem em dúvida como relativistas,
sofistas e imorais, que desejam arruinar todas as nossas oportunidades de aceder à
realidade exterior e, assim, de reformar, por efeito reflexo, a sociedade. (2004 a, p.
30-32).
290
2004, 2003, sem ano) . Já crescimento seria: aumento ou expansão, ou segundo Daly,
aumento quantitativo da escala física. Para melhor elucidar essa questão, Cavalcanti cita o
exemplo de um lago que gradativamente vai sendo tomado pelo crescimento de algas em seu
interior.
Imaginemos que um lago contenha uma espécie de alga que, ao cobrir toda a
superfície do corpo d‘água, sufocará a vida nele existente. A comunidade de algas
dobra de tamanho a cada dia. Suponhamos que, em 30 dias, as algas tomarão o lago
todo. No 21.º dia, as algas cobrem tão somente 0,2% da superfície (menos de
0,0001% no 10.º dia). Em apenas mais oito dias, já [se] terá coberto a metade e, no
dia seguinte, o lago estará completamente tomado pelas algas, eliminando o
oxigênio disponível da água. (CAVALCANTI, 2012, p. 38).
290
Cavalcanti apresenta outros conceitos, como o de Sen (aumento de cidadania e de possibilidade de escolhas)
de Celso Furtado que incorpora a questão da distribuição de riquezas, admitindo a necessidade de incremento da
capacidade produtivo (um aspecto do crescimento), compreendendo a ideia de crescimento, mas superando-a.
Minha crítica particular à esses conceitos para Desenvolvimento Sustentável, reside no entendimento de que em
ambos a dicotomia Natureza e Cultura ainda perdura, caindo na armadilha da modernidade (seja no formato da
crença de um estágio de cidadania plena para todos, como é o caso de Sen, seja no caso do incremento da
capacidade produtiva, que é o caso de Furtado).
300
Assim, esta proposição, ao fim e ao cabo, entende que nada se perde, tudo se
transforma dentro da natureza, mas não dentro do sistema econômico, pois este precisa da
energia da natureza para funcionar, externalizando, nessa própria natureza, energia não mais
utilizável por seres humanos. Cavalcanti descreve o caso de um trem que leva toneladas e
toneladas de carvão de uma ponta a outra dos EUA. Este carvão, de recurso natural (baixa
entropia), passa para lixo (alta entropia). Nas palavras e representações do autor:
Figura 16: Extração de recursos (a natureza como fonte) e lançamento de dejetos (a natureza
como esgoto) pelo sistema
econômico.
291
Como explicado mais adiante, estes sistemas seriam aqueles que não recebem energia de fora, tampouco
externalizam energia, somente o universo pode ser considerado como sistema fechado.
301
executados pela máquina). Em outras palavras, essa energia (ou matéria em formato de
reserva de energia, como os combustíveis fósseis, por exemplo) entra invariavelmente no
formato de recurso natural, saindo em formato de resíduo inútil.
A EcoEco desdobra esse cenário em termos ecológicos e econômicos, observando que
[...] aquilo que entra no processo econômico consiste em recursos naturais de valor
e o que é rejeitado consiste em resíduos sem valor. Essa diferença qualitativa está
confirmada, embora em outros termos, por uma divisão particular e até mesmo
singular da física conhecida pelo nome de termodinâmica (GEORGESCU-
ROEGEN, 2012, p. 57).
calor, fumaça e cinza, ou seja, a reserva de energia livre e utilizável do carvão foi dissipada,
passando para o formato de energia presa ou não utilizável (calor, fumaça e cinza)292.
Portanto, é importante salientar que a energia dissipada gera o processo entrópico. Como já
mencionado, quanto mais energia dissipada, mais entrópico o processo de produção, por
exemplo.
Ao analisar o grau de entropia entre a sociedade moderna e grupos sociais agrícolas,
Georgescu-Roegen observa, ainda, que a substituição de animais e humanos por máquinas, do
ponto de vista entrópico é prejudicial, pois:
Em primeiro lugar a substituição do búfalo pelo trator, da forragem pelos
combustíveis para os motores, do estrume e do pousio pelos fertilizantes químicos,
equivale a substituir o elemento mais abundante de todos, a energia solar, por
elementos escassos. Em segundo lugar, essa substituição constitui também um
desperdício de baixa entropia terrestre, em razão de seus rendimentos fortemente
decrescentes293. Na verdade, as técnicas agrícolas modernas conseguem aumentar a
quantidade de fotossíntese numa determinada superfície de terra cultivada. Mas esse
aumento é compensado por um aumento mais do que proporcional no esgotamento
da baixa entropia de origem terrestre294, ou seja, o único recurso cuja escassez seria
problemática. (salientamos, no momento, que a obtenção de rendimentos
decrescentes em consequência da substituição de energia terrestre por energia solar
constituiria, ao contrário, um bom negócio energético). Isso significa que, se for
usada, a cada ano, a metade do input da energia terrestre (contado a partir da energia
mineral) exigido pela agricultura moderna por hectare de tricô, por exemplo, em
dois anos, uma agricultura menos industrializada produziria o mais que o dobro de
trigo na mesma superfície (GEORGESCU-ROEGEN, 2012, p.123-124).
Diante desse cenário, autores da Economia Ecológica observam que, com a produção
que temos hoje, não se precisa economicamente crescer, basta distribuir melhor a produção.
Se crescermos mais, estaremos transformando recursos com baixa entropia para recursos com
alta entropia. Ocorre que essa é uma tendência do mundo moderno, a sociedade de consumo.
Cavalcanti, ao criticar essa modo de vida, cita Furtado:
Aliás, sobre isso, Celso Furtado manifestava preocupação semelhante com três
décadas e meia de antecipação, ao enunciar que o desenvolvimento entendido como
a ―idéia de que os povos pobres podem algum dia desfrutar das formas de vida dos
atuais povos ricos‖ é simplesmente irrealizável. As razões para tanto seriam de
ordem ecológica: o sistema da natureza não suportaria a destruição implícita na
292
Esse é um dos mitos da ideia de reciclagem. A rigor, segundo a termodinâmica, não se consegue reciclar
energia. Para se produzir uma garrafa pet, gasta-se X energia. No processo de reciclagem gasta-se Y energia,
logo, não se recupera a energia X que foi gasta para a produção da garrafa, mas gastasse mais energia para
reciclá-la. Essa mesma lógica é aplicada à ideia de sustentabilidade. A rigor, ele é um mito, na medida em que a
energia humanamente utilizável disponível (recursos naturais e luz solar), a longo prazo, é limitada, logo, não se
pode ter uma sociedade sustentável na medida em que não se pode reutilizar uma energia já dissipada
(GEORGESCU-ROEGEN, 2012; CAVALCANTI, 2012, 2014).
293
Nota de rodapé de número 59 do capítulo 2 da obra de Georgescu-Roegen (2012): ―entre 1951 e 1966, o
número dos tratores aumentou 63%, os fertilizantes fosfatados aumentaram 75%, o fertilizantes (sic) azotados,
146% e os pesticidas 300%. Durante o mesmo tempo, as colheitas, que podem ser consideradas um bom índice
da produtividade, aumentaram somente 34% (The Ecologista, p. 40)‖.
294
O autor pensa duas possibilidades de fonte de energia para a utilização humana, a saber: a energia solar e
energias terrestres, como combustíveis fósseis, carvão mineral, vegeta, dentre outras.
305
proposta (Furtado, 1974, p.75). Daí porque, segundo Furtado (1995, p.76),
―Generalizar [a civilização industrial e o modelo de vida engendrado por ela] para
toda a humanidade, o que é a promessa do chamado desenvolvimento econômico,
seria apressar uma catástrofe planetária que, de toda forma, parece inevitável se não
se muda o curso dessa civilização‖. (CAVALCANTI, 2012, p. 43)
Assim, a diferença entre energia dissipada pelo meio de vida da nossa sociedade (no
caso, a sociedade americana) com a sociedade indígena é gritante, permitindo, assim pensar-
se em uma escala de sustentabilidade de modos de vida295, concluindo:
... A ideia tosca da minha comparação (de 1992, publicada em 1995) foi de sugerir
que há possibilidades ou saídas para o enfrentamento do desafio de como promover
a arte da vida, a prosperidade, o bem-estar dos povos, tendo noção de que a
economia estará sempre ―comendo‖ natureza, como na imagem de Georgescu-
Roegen (1971, p.303). E que, para fazer isso, tem-se que respeitar limites. Limites
que são biofísicos, do ponto de vista dos recursos naturais, que é o que interessa para
a discussão da sustentabilidade... Sustentabilidade, enfim, quer dizer manutenção do
sistema de suporte da vida; significa comportamento em obediência às leis da
natureza (Cavalcanti, 1995, p.165). (CAVALCANTI, 2012, p. 44)
295
Usa como critérios: consumo de energia, características econômicas, de demografia, cultura e cosmovisão de
ambos os grupos, consultando etnografias, historiografias, estudos econômicos, etc.
306
manejar os recursos comuns concedendo independência ao grupo de usuários para que, com
isso, eles possam excluir outros usuários em potencial e também possam regularizar uso e
usuários, minimizando problemas associados à subtração. Claramente o coletivo de Igarapé
Grande, no passado, não precisava se importar com esse ator não humano chamado de
tragédia dos comuns, menos ainda com esse outro, a modernidade.
Diante desse novo cenário, composto pela antropologia de VDC, pela Ecologia
Política de Latour e pela EcoEco, trago alguns conceitos para exposição, somente a título de
citação, visto os limites físicos e temporais de uma tese de doutorado. Assim o faço com o
intuito de demonstrar como os procedimentos, categorias, conceitos e posturas do
conhecimento científico tradicional vem se exaurindo frente à diversidade de humanos e não
humanos que estão compondo o mundo comum do presente.
Penso especificamente em alguns conceitos que vêm ganhando força nos últimos anos
dentro das disciplinas que estudam a relação entre sociedade e ambiente. Entre esses
conceitos estão a ideia de bem viver/boa vida/buen vivir/bien vivir (GUDYNAS, ACOSTA,
2011; BARZOTTO, 2010; GORDON, 2006, 2014), que se desdobrará no segundo, terceiro e
quarto, a saber, o conceito de desejo de vida para alcançar a felicidade. Como último
conceito, apresento a ideia de coviabilidade296. Vale dizer que esses conceitos não fazem
parte da tradição científica racional ou empirista, sempre permanecendo no plano da
investigação de fatos e não na construção de valores, território da ética, da moral e, em alguns
momentos, da filosofia, somente sendo ativados dentro da Ciência nos últimos anos,
considerando sua crise de incapacidade de explicação.
Com efeito, alguns desses conceitos, quando pensados dentro da sociedade moderna,
estão atrelados à ideia de consumo. Somente se vive bem, se é feliz, consumindo, logo, o ato
do consumo não é um meio, mas um fim em si mesmo. Por outro lado, nas sociedades
―tradicionais‖, o consumo aparece apenas como um meio para se alcançar o fim do bem viver
e da felicidade. O meu desejo de vida não está diretamente ligado ao consumo, perpassando-o
apenas instrumentalmente. Não se quer ter um carro do ano, um apartamento próprio e um
bom emprego. Se quer a garantia e segurança do acesso e uso à terra e aos outros não
humanos advindos da mesma.
296
Os conceitos desejo de vida, felicidade e coviabilidade estão em debate a partir de alguns espaços com os
quais tenho contato. O conceito desejo de vida vem sendo discutido no interior do grupo de pesquisa que integro
(Echomapa. Segue endereço eletrônico: https://echomapa.wordpress.com/). Felicidade veio das interlocuções
com o professor Clóvis Cavalcanti e alguns de seus textos (especialmente 2012 e s.d.). Coviabilidade aparece
como tema de publicação organizado por Barriere et al (2017).
308
A ideia de bem viver/boa vida está atrelada não ao consumo ou à ampla propriedade
de bens materiais, como dita a sociedade moderna de consumo, que atrela seu desejo de vida e
sua felicidade ao ato do consumir bens de circulação do mercado global, aproximando-se
mais à ideia de uma vida permeada por momentos felizes. Essa postura em relação à vida traz
a tona a ideia da coviabilidade.
A coviabilidade está ligada à perspectiva de se ter consciência de que nossa existência
deve ser coviável com a existência dos outros humanos (não modernos) e não humanos que
habitam nosso planeta. Isso porque, mesmo utilizando os padrões tradicionais de produção de
conhecimento, já vem-se observando como a sociedade moderna é insustentável. Muitos são
os documentos que atravessam essa perspectiva: Nosso Futuro Comum, o Relatório do Painel
Intergovernamental de Mudanças Climáticas - IPCC, Relatórios da Organização das Nações
Unidas para Agricultura e Alimentação - FAO, dentre tantos outros.
Como visto no transcorrer da tese, as saídas instrumentais não lograram o resultado
esperado para se pensar a relação humanos e não humanos em cenários híbridos, o que, de
fato, é a regra empírica. Estamos em um momento de mudança para novos conceitos,
extracientíficos, ainda que muitas vezes não nos damos conta dessa imposição. Com efeito,
ficam os próximos capítulos responsáveis por trazer a tona de forma detalhada o cenário
socioambiental, ou o cenário de humanos e não humanos de Igarapé de Grande, de modo a
elucidar as contradições que a modernidade e a Teoria Antropológica apresentam ao serem
perspectivadas com esse cenário.
309
Este capítulo descreve Igarapé Grande e seus habitantes, destacando suas práticas
cotidianas, histórias de vida, relações com não humanos e transformações ao longo do tempo.
Inicialmente descrevo a história do lugar, desde a chegada de seu ―fundador‖, ―seu‖
Domiciano de Farias e dona Maria dos Anjos de Farias, até os habitantes de hoje,
evidenciando as transformações que ocorreram entre os atores humanos e não humanos. Com
efeito, descrevo o cenário socioambiental que foi vivenciado em Igarapé Grande no passado,
deixando para o capítulo seguinte o cenário socioambiental vivenciado no presente.
Igarapé Grande é apresentada, portanto, em seus anos passados, focando
especialmente as atividade econômicas e as relações com os não humanos, em especial aquilo
que a sociedade maior entende por ―meio ambiente‖297 ou recursos naturais. Ainda que
destacando algumas datas do ponto de vista da cronologia ocidental298, este trabalho não toma
como prioridade essa marcação, na medida em que a mesma não tem grande influência sobre
o tempo social de Igarapé Grande, diferentemente da vida urbana e citadina, que atrela
rigorosamente seu tempo social à cronologia dos anos.
A escrita do capítulo se dá, em alguns momentos, de maneira literária, contando uma
história, em outros de maneira informativa, trazendo relatos locais. A coleta de dados se deu
por meio de entrevistas com os moradores de Igarapé Grande e Cabeceira. Faço aqui a
observação, para fins de registro, que a região insular é marcada por uma intensa circulação
de pessoas entra as várias comunidades das ilhas e sítios 299 ribeirinhos do continente,
marcadamente dos bairros do Curuçambá e do Maguari, distrito de Icoaraci, ademais de
Benfica, Murinim, Marituba, ilhas de Mosqueiro, de São Pedro e do Outeiro300.
297
Um bom exemplo deste conceito seria aquele formulado pela Lei no 6938/1982 (Política Nacional do Meio ambiente):
―meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite,
abriga e rege a vida em todas as suas formas‖.
298
Refiro-me ao calendário juliano que funciona como unidade de medida do tempo há dois milênios e que exerce alguma
influência sobre a comunidade estudada, como será visto mais adiante, mas não é uma unidade de medida determinante junto
à vida social da comunidade.
299
Sítio e terreno era como eram chamados as propriedades de terra na época. Atualmente, a maior parte dessas propriedades
deram lugar à comunidades, povoadas pelos descendentes do proprietário original da terra. Como exemplos citam-se a
própria comunidade de Igarapé Grande, Maritubinha, Bela Vista etc.
300
Tenho a intenção de, no futuro, fazer a reconstituição histórica desse aglomerado de pessoas, desde o início do século
passado aos dias de hoje. Com essa pesquisa pretendo fazer a reconstituição histórica de cada comunidade da atualidade, na
medida em que estas são frutos de um pai fundador, assim como o é a comunidade de Igarapé Grande. Assim, entrevistarei
velhos e velhas que narrarão, da mesma maneira que os velhos e velhas de Igarapé Grande, como foi sua vida e como era a
vida de seus pais e avós. Procurarei também os descendentes dessas pessoas que não moram mais nas ilhas, ou seja, primos,
primas, irmão e irmãs dos velhos e velhas das ilhas. Esse levantamento já foi por mim feito na comunidade de Igarapé
Grande e replicarei nas outras ilhas. Assim, o tempo em Igarapé Grande não é entendido como na sociedade moderna, de
forma linear, andando para frente e engendrando evolução (LATOUR, 2013a; 2004 a).
310
Consequentemente, não existem regras gerais para a relação com não humanos, como
na nossa sociedade em que essas regras são ditadas em parte pelo código civil, pela legislação
ambiental, pela ciência e reproduzidas pelas instituições de ensino e a grande mídia, mas
recomendações gerais, que serão testadas e aprimoradas de maneira particularizada a partir da
imaginação (SÁ, 2000) e prática de cada cientista do concreto que a receba (LEVIS-
STRAUSS, 1989).
Assim, eram os próprios seres humanos de Igarapé Grande que construíam seu mundo
comum (LATOUR, 2004 a), composto por humanos e não humanos que, em regra, foram por
eles mesmos pensados, criados, edificados, tanto no plano material (como roças, moradias,
utensílios de pesca, alguns utensílios de uso doméstico, alimentos em geral advindos dos
recursos naturais locais etc.) como no plano imaterial (lendas explicativas à realidade vivida,
códigos de conduta a serem seguidos, explicações sobre o ambiente que os cerca). Este
arsenal de metaconceitos que definiam o mundo comum, vale reprisar, era, em regra, por eles
mesmos criados, independentes das explicações que a razão ocidental criou para o nosso
mundo comum, justamente por isso, podendo serem entendidos, estes humanos, como não
civilizados ou, como prefiro nomeá-los, selvagens (LEVI-STRAUSS, 1989; VIVEIROS DE
CASTRO, 2015).
Em outras palavras, nossos ilhéus são selvagens não por não apresentarem
características racionais ou de uma civilização humana, mas sim porque não foram
domesticados pela razão ocidental, permitindo-se minimamente compor seu próprio mundo
comum, diferentemente dos humanos da sociedade moderna que apenas consomem os não
humanos de seu mundo comum, não sendo eles mesmos os construtores desse mundo. Como
já mencionado na introdução desta tese, verifique, você, leitor, no ambiente em que você vive,
quais não humanos (sejam materiais ou imateriais) foram por você criados?
Com os parágrafos acima, penso que foi possível jogar luz sobre as ideias de humanos
e não humanos, mundo comum (LATOUR, 2004 a), imaginação (SÁ, 2000) ciência do
concreto (LEVI-STRAUSS, 1989) e a dicotomia entre tradição e modernidade (a tradição
compõe seu mundo comum, a modernidade não) (LATOUR, 2004 a; 2013a) que são
utilizados para melhor apresentar o passar do tempo em Igarapé Grande, que se deu, de 1900
até os dias atuais. Segue essa narrativa.
312
A história deste coletivo tem início antes mesmo de sua constituição física e em um
ambiente talvez inusitado para alguns: uma festa em uma das ilhas do entorno da cidade de
Belém do Pará. O ano não foi precisado, algo por volta de 1900. O jovem agricultor e
seringueiro Domiciano de Farias havia sido chamado para sair de sua casa na ilha de
Mosqueiro301 e ir tocar trombone em uma festa que iria ocorrer na ilha de São Pedro,
colonizada por uma família de portugueses que, na figura de seus descendentes, ainda a habita
na atualidade.
As festas desse período duravam em torno de dois a três dias eram fartas. Imagine o
cenário: um ambiente paradisíaco, cercado por matas e rios, a vertiginosa taxa de violência
ainda não existia, muitos amigos e familiares estariam presentes, comida para mais de um dia
de festa, muita música (ao vivo, pois na época a propriedade de um aparelho de rádio era
restrita a poucos círculos sociais), e a oportunidade de fazer algo diferente da vida do
agricultor amazônico da época.
Em outras palavras, Domiciano iria dar uma pausa nas suas atividades cotidianas que,
segundo o relato dos moradores da região das ilhas, era o extrativismo, manutenção de um
pequeno roçado com algumas tarefas de, entre outras plantas, mandioca e macaxeira, criação
de algumas cabeças de gado e aves de pequeno porte, ademais da seringa, mas o mais
importante é que aquela cearense baixinha e bonitinha (linda, na visão de alguns), moradora
da ilha de São Pedro na condição de empregada na lavoura da cana, de nome Maria Cristina
dos Anjos, estaria presente na festa.
Foi assim que Domiciano se engraçou para o lado de Maria Cristina dos Anjos e, com
o passar do tempo, a relação avançou para um namoro e posterior casamento. O jovem
seringueiro, antes de casar, já cuidou da futura vida em dupla e providenciou um local para
morarem, que seria justamente onde hoje é a comunidade. Na época, quem lá morava era a
dona Bibiana, que tinha o desejo de se mudar do local. Sabendo disso e na condição de um
futuro pai de família, Domiciano foi até ela e negociou o terreno. Nesse momento nascia a
comunidade de Igarapé Grande.
Por volta de 1910, Domiciano e Maria Cristina mudam-se para o local onde hoje fica a
comunidade de Igarapé Grande, dando-lhe o nome de sítio Paraíso. Na época existiam três
sítios no Igarapé Grande, ademais do sítio Paraíso. Logo ao lado do sítio Paraíso, em direção
301
Distrito do município de Belém.
313
à cabeceira do Igarapé Grande, ficava o sítio Campo Alegre do velho André302, mesmo local
de morada de sua filha Orfina e Virgílio, um filho de criação. Ao lado do sítio do velho André
ficava o terreno da família da Mindoca e Tofa, duas irmãs que, posteriormente virariam
cunhadas de alguns dos Farias, pois Boaventura e José Farias (filhos de Domiciano e Maria)
se casariam, respectivamente, um com uma irmã das mesmas e outro com uma filha. Este era
o cenário fundiário de uma margem do igarapé, atravessando-o, localizava-se o terreno da
família Cunha.
Logo no primeiro ano chega o primeiro rebento, uma menina que ganhou o nome de
Maria dos Anjos de Farias. Com o passar dos anos a família vai aumentando e novos filhos e
filhas vão chegando, resultando a prole em 5 filhas e 5 filhos. As filhas eram a já citada
Maria, Maria Cristina, Tomázia, Ingraça e a caçula era a Arcângela (também conhecida como
―Candinha‖). Os filhos eram Manuel (também conhecido como ―Duca‖), José, Simão,
Boaventura e, o caçulo, Marcelino303, todos com o sobrenome dos Anjos de Farias.
Domiciano registrou todos no cartório de Benfica, inclusive também foi o responsável pelo
registro de vários de seus netos e netas, sempre em Benfica. Segue abaixo a primeira geração
de descendentes do casal dos Anjos de Farias.
Domiciano Maria
de Cristina
Farias dos Anjos
1919 - 1989
70
Manuel José Simão Boaventura Marcelino Maria Tomásia Maria Ingraça Arcangela
Farias Farias Farias dos Anjos Farias Farias Farias Cristina Farias Farias
Farias Farias
302
Não me foi relatado nada de sua esposa ou de seu sobrenome.
303
Os relatos não conseguiram precisar datas, mas a ordem do mais velho para o mais novo é a que foi
apresentada acima, separados pelo sexo, ou seja, da mulher mais velha à mais nova e do homem mais velho ao
mais novo. Não foi possível, pelos relatos, identificar a cronologia exata entre os filhos e filhas misturados, sem
a distinção do sexo.
314
vendendo látex. ―Seu‖ Domiciano não trabalhava sozinho nisso, alguns de seus poucos
vizinhos que habitavam as ilhas de Belém (na época ainda não era município de
Ananindeua)304 também cortavam seringa, sendo essa a principal atividade na Amazônia rural
da época, entretanto, como todo bom seringueiro, eles não se limitavam somente à produção
do látex, desenvolvendo diversas atividades complementares ligadas ao mundo rural da época,
marcadamente artesanal e local305.
Domiciano e Maria Cristina mantinham um bom roçado de mandioca consorciado
com milho, arroz, macaxeira, maxixe, melancia, jerimum, quiabo, banana, gergelim, feijão
(da colônia e de corda) entre outros, sendo que o milho e a casca da mandioca e da macaxeira
garantiam a alimentação dos animais que a família criava. Nesse caso, a mandioca não
garantia a alimentação da família na condição de um produto primário, pois eram seus
derivados que importavam. Entre estes estavam o tucupi, a goma de tapioca, o beiju, o beiju
chica, a farinha de tapioca e em especial as farinhas seca e d‘água306.
Assim, o casal Farias também mantinha a criação de algumas cabeças de gado, porcos
e aves de pequeno porte, alimentados pelo milho e pelas cascas da mandioca e da macaxeira,
derivados todos da roça da família. ―Seu‖ Domiciano, com a ajuda dos filhos, ainda produzia
uma série de derivados do leite, como queijo, manteiga, soro, coalhada e, a despeito da
possibilidade de seus animais impedirem a plantação de uma horta, uma grande e bonita horta
304
A partir dos relatos, é possível estimar a existência de cerca de trinta famílias na região das ilhas de
Ananindeua (as suas atuais nove ilhas, como descrito no capítulo 1). Soma-se ainda alguns agricultores e
ribeirinhos da ilha de Mosqueiro e de São Pedro, ademais da localidade de Murinim (jurisdição de Benfica), algo
em torno de umas cinquenta famílias, somando-as com as ilhas de Ananindeua. Faço essa estimativa com base
nas conversas e entrevistas que tive em campo, pois nas mesmas me foi narrado a existência de sítios como os de
Roldão, Mari mari, João Pilatos, Alcântara, Bela Vista, Linda Vista, Santa Rosa (ou Livramento), Guaribas, São
Pedro, o próprio Igarapé Grande (ou Paraíso) ademais de sítios em que não aparecem mais o nome na memória
dessas pessoas, como os da família Cunha ou os da ilha de Sassunema.
305
Assim, o látex formava uma extensa rede de humanos e não humanos, indo dos interiores da Amazônia,
passando pelos seus principais mercados citadinos, viajando para indústrias europeias e americanas de
processamento do látex, até chegar ao consumidor final, por meio de brinquedos de borracha, pneus e outros
produtos contendo o látex como matéria prima. Entende-se que a seringa seria um ator que liga esta rede/coletivo
local de seringueiros e suas famílias, à rede/coletivo maior que é a sociedade de mercado. O restante dos
produtos locais (cana-de-açúcar, café, chocolate, mandioca, entre outros) são atores/coisas/não humanos que
permanecem em um coletivo/rede local, pouco extenso (LATOUR, 2004 a, b; 2012; 2013a). Para um melhor
detalhamento do processamento do látex, de suas redes de comercialização e de seu histórico na Amazônia,
consultar Aramburu (1994), Santos (1980) e Weinstein (1993).
306
A farinha pode ser dividia em dois tipos, a saber, seca e d‘água. A diferença no processo de fabricação se dá
em virtude de a farinha d‘água ser deixada de molho por três a quatro dias, enquanto que a farinha seca não sofre
esse processo. O tucupi é um caldo amarelado que sai da mandioca em um dos momentos em que se está
preparando a farinha seca. Esse caldo é colocado para descansar em um recipiente. Com o tempo, sedimenta-se
ao fundo do recipiente a goma de tapioca. O líquido acima é o tucupi, que ainda deve ser fervido antes de ser
consumido. Beiju: da maça que é feita a farinha, pode-se, em cozinha-la imprensada, formando uma espécie de
bolacha de farinha de mandioca. Beiju chica: segue o mesmo padrão do beiju, mas é feito de maneira mais
refinada, resultando em uma fina massa que deve ser cozida com muito cuidado, pois ela queima facilmente.
315
era mantida, com todo tipo de verdura e legume, localizada onde hoje fica a escola que
recebeu seu nome.
As roças eram feitas por meio de mutirões307 que envolviam os diversos moradores
das ilhas, inclusive os filhos e netos do ―seu‖ Domiciano. Primeiramente era escolhido o local
onde seria feita a roça, ainda com mato. Esse mato era retirado por meio de queimada, broca e
coivara do terreno308, para então efetuar o plantio. Normalmente plantava-se macaxeira,
mandioca, feijão e arroz consorciado com jerimum, melancia e maxixe. Dependendo do que
era cultivado, colhia-se com alguns meses de plantio. Segue quadro que expressa o tempo de
colheita de cada espécie vegetal plantada, segundo as informações coletadas na ilha.
Cada família possuía uma média de duas roças, de modo que a colheita de algum
gênero alimentício deveria ser feita quase que mensalmente, sendo que esse produto teria uma
duração média de até dois meses. No caso da mandioca e da macaxeira, essa duração poderia
se estender para até três meses. Com efeito, mensalmente uma família das redondezas teria ao
307
Os mutirões eram eventos que consistiam na reunião de pessoas com um objetivo laboral. Às vezes esse
objetivo era comunitário, como abrir trilhas e passagens no mato para que todos pudessem usar, às vezes eram de
interesse de uma família específica, quando a mesma precisava de ajuda na preparação de um terreno para o
plantio. Nesse caso, essa família chamava vizinhos e familiares mais distantes para fazer o mutirão, mas
deveriam dar em troca o almoço, assim como ficariam obrigadas a prestar ajuda em mutirões futuros das famílias
que a ajudaram. Para mais detalhes, consultar Ravena-Cañete (2005) e Candido (2001).
308
A broca é a primeira etapa do processo de preparação do terreno a ser cultivado. Consiste no corte dos galhos
entre as árvores de forma a permitir que, após a queimada (atear fogo no espaço de terra escolhido), segunda
etapa a ser executada, seja possível adentrar o terreno para se fazer o plantio. Digno de nota é o fato de que os
resíduos dessa queimada funcionam como insumo para o plantio da (s) espécie (s) a ser cultivada. Se a queimada
não for suficientemente exitoso de forma a permitir a entrada no terreno para a limpeza do mesmo, é necessária
uma nova etapa conhecida localmente como coivara. Esta consiste na limpeza dos troncos e galhos maiores que
impedem transitar no terreno a ser feito o plantio. Para mais detalhes, consultar Ravena-Cañete (2005).
316
menos dois tipos de gêneros alimentícios para retirar de sua roça e complementar sua
alimentação.
Outro procedimento de relação de trabalho local era a empeleita ou empreitada, que se
refere a algum tipo de serviço que será realizado. Esta relação se caracteriza por ter um
objetivo bem determinado a se cumprir, por exemplo, roçar um terreno, fazer a colheita de
uma determinada espécime vegetal em um determinado terreno, reformar algum
compartimento da residência de algum conhecido etc. Atualmente, a ―empeleita‖ e os
mutirões caíram em desuso, sendo substituídos pela prestação de serviços pautados em diárias
ou empreitadas, sempre tendo o dinheiro como mediador, não sendo mais as relações de
compadrio e parentesco tão influentes, ainda que sirvam como norteadores de escolha para
quem fará o serviço, elas não mediam mais o serviço de forma exclusiva como outrora.
Outras atividades agrícolas eram desenvolvidas no sítio Paraíso309, como a cultura do
cacau, da cana-de-açúcar e do café, ademais de algumas árvores frutíferas como o jenipapo, o
bacuri, anajá, buriti (ou miriti), tucumã, açaí, cupuaçu, pequiá, entre outros, todos servindo
para o consumo familiar e, em alguns casos, a venda para famílias de Belém e suas freguesias,
como o Maguari, Benfica, Largo da Pólvora, Pinheiro e as feiras próximas do Igarapé das
Almas310.
A cana-de-açúcar, o café e o cacau eram deliberadamente cultivados, formando
cafezais e campos de cultivo de cana-de-açúcar e cacau. Os outros frutos acima citados podem
ser classificados em uma zona de transição entre cultivo e extrativismo, na medida em que
nem sempre eram deliberadamente plantados, mas invariavelmente eram objetos de manejo e
extração.
Alguns dos cultivos citados acima serviam de produto primário para a confecção de
outros produtos. Cita-se o próprio café, do qual se extraia o fruto que, ao ser pilado em estado
seco, figurava como insumo para sua homônima, a tradicional bebida quente tomada nas
tardes chuvosas da Amazônia oriental. Outro fruto utilizado era o cacau, que também sofria o
mesmo processo do café (deixava o fruto secar, triturando-o depois), dando origem também a
uma bebida quente, o chocolate. Este poderia ser feito ou do pó do cacau, ou de uma barra
condensada desse pó que era ralada, deixando-os em água quente. O cultivo da cana-de-
309
Nome dado a sítio de propriedade do casal Farias.
310
Essas denominações não são as que correspondem à atualidade. Optei por aqui citá-las porque foram
utilizadas pelos meus interlocutores e interlocutoras. Nos dias de hoje, esses nomes seriam escritos,
respectivamente, da seguinte maneira: bairro do Maguari (município de Ananindeua), distrito de Benfica
(município de Benevides), praça da República, distrito de Icoaraci, e as feiras das proximidades da Doca de
Souza Franco (estes três últimos, localizados no município de Belém).
317
açúcar permitia a produção da garapa e de subprodutos, que, por sua vez, possibilitavam o
adoçamento do café e do chocolate, entre outras bebidas e alimentos da época.
O jenipapo também servia como insumo de outros produtos, especialmente do licor. O
―seu‖ Domiciano e seus filhos juntavam os jenipapos caídos dentre as diversas árvores
distribuídas em seu terreno, espremiam-no no tipiti, extraindo e ―ferravam‖311 o suco,
transformando-o em licor para, posteriormente, vendê-lo em armazéns locais, normalmente
propriedades de portugueses. No caso específico do ―seu‖ Domiciano, sua preferência eram
os portugueses do Roldão e do João Pilatos, localidades da região das ilhas. Em alguns casos
isolados, o ―seu‖ Domiciano se arriscava na venda ou no atendimento de alguma encomenda
vinda de Belém, Maguari, Benfica ou Pinheiro (atualmente Icoaraci).
As outras frutas apresentavam três funções: alimentar criações (inajá, especialmente);
venda da mesma in natura ou de sua polpa (cupuaçu, bacuri e açaí) em mercados regionais;
consumo local, podendo ser in natura ou processada de alguma forma (vinho do açaí ou do
miriti, bolinhos de inajá, óleo de tucumã, entre outros exemplos).
A extração do látex se dava por meio das seringueiras nativas. O ―seu‖ Domiciano
adentrava a mata nas trilhas localmente denominadas de ruas de cortar seringa, bem cedo, por
volta das cinco horas da manhã. Pegavam a faca e o machadinho de cortar seringa e saíam
para os caminhos de seringa, aí cortavam e deixavam a cuia coletando o leite, quando era oito
horas, em um balde grande. Chegando em casa faziam uma coivara312 para defumar o leite,
transformando-o em borracha, tirava a borracha dia de sexta, lavava, empalhava e ia vender,
variando de 40 a 60 kg. O ―seu‖ Domiciano aproveitava a viagem e vendia também as frutas
que pegava na beirada do rio, a saber: andiroba, pacuuba e paracaxi.
O ―seu‖ Domiciano também lançava mão da pesca como uma atividade que
complementaria a dieta da família. Na época, o peixe era farto, sendo desnecessário o uso de
petrechos de pesca de captura intensa, como redes e malhadeiras em geral, bastando o uso da
linha de mão. Muitos eram os bichos que se poderia retirar do rio, sendo a diversidade uma
característica marcante. Esta não se limitava às espécies de peixe. Assim, os habitantes da
região das ilhas tinham à sua disposição, ademais das inúmeras espécies de peixe, a
possibilidade da pesca do camarão e do siri, a catação do caramujo (e sua deliciosa torta) e a
captura de algumas espécies de jacarés e tartarugas (e seus apreciados ovos), arraias e, para
alguns poucos apreciadores, cobras.
311
Ato de inserir a substância do ferro no suco de alguma fruta, por meio da adição de um prego.
312
Como já explicado, esta configura-se no ato de cortar madeira grande para incendiá-la.
318
313
Essa situação de abundância de recursos naturais me foi narrada dos mais velhos até a faixa de idade de
cinquenta anos. As pessoas de quarenta e nove anos até a casa dos trinta e cinco anos vivenciaram essa situação
de abundância somente em sua infância ou adolescência. Em outras palavras, a ―tragédia dos comuns‖
(HARDIN, 1968) tem início no fim da década de 1980, pois as pessoas com trinta e cinco anos hoje viveram sua
infância na década de 1980, mesma década que o escasseamento de recursos naturais começa a intensificar-se.
314
Uma espécie de rede que é lançada no rio. Segundo relatos coletados em campo, quando a rede cai na água,
produz-se muito barulho, espantando os peixes do local.
315
Termo nativo que se refere a alimento.
316
Termo utilizado pelos caçadores para se referirem ao alimento de suas caças. O ato da caça passa pela
identificação de locais que se encontrem ―comidinhas‖ em abundância, na medida em que as caças viriam até o
local para ter acesso às mesmas. Entre esses locais pode-se citar a faixa de terra que fica abaixo de árvores
frutíferas como anajazeiros, bacurizeiros, jambeiros, entre outras.
319
vacas, ademais de ser agente de polícia voluntário. Esse último posto consistia na atividade de
ser responsável por registrar acontecimentos que viessem a alterar a ordem local, sendo que
era chamado em festas para exercer esse ofício, ademais de dirimir alguns conflitos entre
moradores da região. Existiam outros agentes de polícia, responsáveis por outras ilhas, como
é o caso do Velho Alfredo no João Pilatos; em Sassunema era o velho Martinho Bento, entre
outros. No caso de algum tipo de detenção, a pessoa era conduzida para a polícia de Benfica.
Essa era a vida da época, permeada por fartura de recursos naturais, festas de santo,
roças, caças e pescarias. Na década de 1910 o ciclo da borracha entra em declínio, logo sua
rede quase que mundial de humanos e não humanos é quebrada. Com efeito, são fortalecidas
outras redes de humanos e não humanos das ilhas, agora com proporções locais.
Para melhor elucidar esse cotidiano do pós-ciclo extrativista da borracha, narro abaixo
a vida do ―seu‖ Dico, um senhor de aproximadamente 90 anos de idade317 que me acolheu
como seu filho em sua residência por aproximadamente um ano, sendo ele um dos netos do
―seu‖ Domiciano de Farias e da dona Maria de Farias. Em minhas idas e vindas de sua casa
para a casa dos outros habitantes de Igarapé Grande, no meio de pesquisas, entrevistas,
questionários, fotos nos arredores, etc. pude estabelecer longas conversas no café da manhã e
na janta com ―seu‖ Dico, algumas virando entrevistas, outras anotações, mas todas resultando
em uma bonita história de vida. A seguir, é essa história que uso como fio condutor para
acessar um passado da passagem da década de 1920 para 1930, complementando essas
entrevistas com a narrativa de outros moradores e moradoras de Igarapé Grande318.
317
Em sua carteira de identidade, consta que ele nasceu em 02.01.1923, somando noventa e três anos. Ocorre
que ele mesmo diz que essa data é errada, pois ele adiantou alguns anos sua data de nascimento, quando tirou sua
identidade, com o intuito de tentar se aposentar mais cedo da penosa vida do trabalhador rural. Por isso coloco
aproximadamente noventa anos.
318
Como principais interlocutores da história de Igarapé Grande, cito a dona Ana, dona Bena, dona Tereza, dona
Rosa, ―seu‖ Nazareno, ―seu‖ Esmeraldo, seu Antônio, seu Gilberto, ―seu‖ Paraco (mais adiante explicarei quem
são essas pessoas, lembrando que todas têm alguma ligação com o casal genitor de Igarapé Grande). Essas foram
entrevistas que fiz exclusivamente com propósitos históricos, de parentesco e mudanças no modo de vida (todos
os três temas interligados, ao fim e ao cabo). Essas entrevistas foram complementadas com os questionários que
apliquei em todas as unidades residenciais habitadas de Igarapé Grande, na medida em que nesses questionários
havia uma parte que era gravada e dizia respeito à história de vida da pessoa inquirida e de sua família nuclear.
319
Não foi possível identificar exatamente o paradeiro de cada filho e filha, mas algumas memórias foram
entendidas e serão aqui reproduzidas. Assim, é possível afirmar que poucos foram os filhos e filhas que se
afastaram da família dos Anjos de Farias, ficando a maioria ou no próprio sítio, ou em sítios das proximidades.
320
filhas ou saíram para depois retornar, ou ficaram no sítio Paraíso, ou foram para a cabeceira
do Igarapé Grande. Assim, a maior parte da segunda geração ainda ficou morando no sítio
com os pais, ainda que em outras casas, ou morava a alguns minutos de canoa do sítio em
direção à cabeceira do Igarapé Grande.
O filho que primeiramente foi para a cabeceira foi Boaventura, casando-se com a filha
do dono do terreno, retornando poucos anos mais tarde, em virtude da morte de sua esposa,
mas com a propriedade do terreno, já que seu sogro morrera antes de sua esposa, ficando ele
mesmo como herdeiro das terras. Dona Tomázia, irmã de Boaventura, acabou usufruindo
dessa triste situação. Na condição de mãe de um casal de filhos de dois pais diferentes, recém
ajuntada com um marido que era o pai do terceiro que estava por vir, resolve pedir ao seu
irmão que permitisse que ela e o marido constituíssem casa na cabeceira. É assim que teve
início a cabeceira na condição de morada de integrantes da família Farias, com a casa da dona
Tomázia e ―seu‖ Manoel Linus de Sousa, respectivamente, mãe e padrasto do ―seu‖ Dico e da
dona Bena320.
Dona Tomázia já era mãe solteira de Raimundo dos Anjos de Farias e de Maria
Benedita dos Anjos de Farias, respectivamente chamados de Dico e Bena. Depois que
estabeleceu relacionamento com o ―seu‖ Manoel, vieram mais cinco meninos e quatro
meninas, de nomes: Daniel de Souza Farias, Maria de Souza Navegantes, Manoel Nazareno
Farias de Souza, Maria Cristina Farias de Souza, Maria Minervina Farias de Souza, Lourival
Farias de Souza, Branca Farias de Souza, Benedito Farias de Souza, Manoel dos Anjos Farias.
É assim que a família do ―seu‖ Dico sai do Igarapé Grande e vai morar para a
cabeceira do mesmo. Na época, ele tinha aproximadamente seis anos de idade e fica lá
morando até seus dez anos de idade, quando seu avô decide manda-lo para a vila Maguari,
com o intuito de que o menino pudesse estudar. Explica-se. À época, não existia escola na
ilha, sendo a educação escolar (ou o ato de ―desemburrar‖, como eles mesmos chamam), feita
por professores particulares, em grupos de crianças de faixa etária mesclada ou então a
criança era mandada para trabalhar e morar na casa de uma família rica da cidade de Belém e,
nos tempos vagos, frequentaria a escola321.
320
Como mencionado, eles foram um dos principais atores sociais locais que me receberam em campo. Passaram
a vida inteira na cabeceira, com raríssimos espaços de tempo em que tiveram que viver em outro local, mas ainda
assim, dentro da região das ilhas e ausentando-se por um curto período de tempo de Igarapé Grande (máximo de
um ano, no caso da dona Bena, e três anos, no caso do ―seu‖ Dico). A maior parte do tempo que estive nas ilhas,
me hospedei na casa do ―seu‖ Dico, na condição de seu ―filho‖, como fiquei conhecido nas redondezas,
estabelecendo conversas cotidianas com ele e com a dona Bena.
321
Esse procedimento era e ainda é muito comum na região amazônica. A pessoa que vinha do interior para
estudar na cidade assumia a classificação social de ―cria‖. Em outras palavras, ―cria‖ significaria uma pessoa do
interior que veio para a cidade para estudar, ficando na casa de uma família urbana em troca de sua mão-de-obra,
321
No caso da região das ilhas, esse processo era um pouco diferente. Primeiramente a
criança deveria passar um tempo em alguma residência da vila Maguari, atual bairro do
Maguari (Ananindeua/PA). Essa vila ficava às margens de um rio de mesmo nome, que foi
palco de diversos empreendimentos no início do século XX. Nessa vila funcionou escola
(chamada de Quinta das Carmitas), curtume, vacaria, indústria de água, centro comercial,
entre outros empreendimentos, figurando como um dos primeiros centros urbanos que dariam
origem ao município de Ananindeua (MENDES, 2003)322.
Passados alguns meses, verificando que a criança não daria problema, ela era mandada
para a casa de algum dos filhos, parentes ou amigos de Belém. Assim, buscando de alguma
maneira facilitar a vida dos mais jovens, Domiciano decide mandar o ―Diquinho‖ para a
família do dono da escola Quinta das Carmitas, que funcionava na vila Maguari, com a
esperança de que os ensinassem a ler. No caso do ―seu‖ Dico, tal hipótese não foi
concretizada, ainda que ele tenha sido enviado para uma família de Belém.
Segundo seus relatos, por volta de seus dez anos, ele foi enviado para o Maguari,
passando não mais que um mês por lá, logo sendo mandado para Belém, especificamente para
a casa da filha do dono do colégio, a dona Carmita e seu marido, ―seu‖ Daniel, dono de uma
papelaria localizada no centro de Belém. A casa ficava localizada na rua Cipreste 323, enquanto
que a papelaria ficava na Frutuoso Guimarães, segundo o ―seu‖ Dico.
Durante cinco anos, viveu na casa da dona Carmita, contudo, nada aprendeu no que se
refere a ensinamentos escolares. Segundo seus relatos, sua estadia lá foi marcada por muito
trabalho e nenhum estudo, chegando a relatar casos de maus tratos. Exponho abaixo algumas
de suas narrativas:
sendo que essa família não é parente da cria, vale ressaltar. Meu ponto de vista específico sobre esse processo
não é de todo negativo. Penso que para jovens, essa talvez seja uma alternativa, mas não para crianças.
Dependendo do contexto (escola e família frequentada, idade do(a) jovem, tempo que permanecerá longe da
família e diversas outras variáveis), esse processo não é prejudicial para um jovem, pois permite enriquecimento
cultural e de educação formal, contudo, essa é a exceção, sendo a regra a vivência de uma dura vida de
empregada/empregado doméstico, com pouquíssimo tempo para estudo e aperfeiçoamento profissional. Para
mais detalhes sobre esse tema, consultar Motta-Maus (2006).
322
São raros os livros que tratam exclusivamente sobre a história do município de Ananindeua, ou de alguma
localidade sua. Tive acesso somente a esse livro de Mendes (2003). Vale observar que esse livro foi editado pela
própria autora, sofrendo todo o processo de diagramação e impressão em empreendimentos locais, fato este que
evidencia a escassez de publicações sobre Ananindeua de Ananindeua.
323
Acredito que seja a rua Arcipreste Manoel Teodoro, também conhecida como Cesário Alvim, no centro de
Belém.
322
Thales: Quebrou?
Dico: Quebrou! Levou uma porrada, se pega na cara. Aí ela foi se ajeitar pra me dá-
lhe porrada, até que ela não aguentou mais, quando eu vi ela caiu sentada e me
soltou, eu corri. Tinha um biribazeiro grande lá atrás, o bicho não faltava fruta. Aí
subi pra lá, apanhava o biribá e chupando o biribá, só caindo caroço de lá. Parece
macaco quando tá comendo fruta. Aí eu vim de lá e disse: Poxa, nem pra aparecer
gente lá de casa, tia Ingraçaou o tio Boaventura que sempre apareciam, que o vovô
mandava fruta pra mim, essa sapoti, laranja, tangerina.
– Leva pro moleque. Ele gosta muito de fruta –. Eu dizia pra eles, mas parece que
não diziam pro velho. Não contavam direito pro velho. Porque eu sabia que se o
vovô soubesse ele mandava me buscar mesmo, não ia me deixar lá, não. Aí quando
cheguei, depois que eu contei pra Dona Pete, ela: – É, Raimundo? Sendo assim eu
vou falar com as minhas irmãs e nós vamos te levar. Sábado nós te leva. Se não tiver
passagem pra tu ires pro Igarapé Grande, tu ficas no colégio e quando tiver uma
passagem pra lá tu vais –. Aí a Dona Tereza tinha um cavalo dela, da irmã dela.
Thales: Quem é dona Tereza?
Dico: Era a irmã dessaCarmita, sabe?
Thales: E quem é a dona Bete, né?
Dico: Pete. Tinha a Rosária. Eram todas irmãs.
Thales: Aah, só a Carmita que era malvada?
Dico: Ela que era má. Aí no colégio, era um colégio grande lá que o pai dela era
professor.
Thales: O pai da Carmita, da Pete?
Dico: Sim, delas tudinho. Aí o filho dele fugiu daí no tempo do Barata, sabe? No
tempo do Barata ele fez uma revolta lá. Queriam pegar ele pra levar que ele era
contra o Barata. Aí, fez levarem ele, embarcaram numa canoa, aí pegaram e levaram
ele pra Icoaraci, de Icoaraci ele pegou um coisa pra ele fugir. Aí ele foi embora pra
São Paulo e não pegaram ele.
Thales: O sr. não sabe o nome dele, não?
Dico: Eraaaa... meu Deus, era Coutinho. Não sei o que Coutinho, dr. Coutinho.
Thales: Esse era irmão da dona Carmita?
Dico: É, era irmão dela.
Coloco um grande trecho da entrevista, não só para ilustrar o cotidiano de trabalho que
vivia ―seu‖ Dico na época, mas também para mostrar um pouco da rede de humanos e não
humanos que existia na Belém da década de 1930 e 1940. O centro urbano da capital era
habitado, em sua maioria, por famílias portuguesas ou descendentes dos mesmos, com
enormes casas (remanescentes do período da borracha), com móveis requintados de todo tipo,
como a petisqueira citada por ―seu‖ Dico. O cotidiano dessas residências tinha início com a
saída da figura masculina para seu trabalho, ficando as mulheres no lar, responsáveis pelos
afazeres domésticos, as crianças da família indo para a escola, ademais de funcionários
domésticos vindos dos interiores do Pará ou das partes mais afastadas do centro da cidade324.
Essas casas eram margeadas por enormes quintais que, por sua vez, estavam compostos por
árvores de biribá, cupuaçus, açaís, bacabas, buritis, ananins (por isso o nome Ananindeua),
bacuris, marimaris/umarimari (daí o nome do bairro do Umarizal).
324
Que era o caso do ―seu‖ Dico, vindo das ilhas de uma Ananindeua que ainda era composição do município de
Belém.
324
Esse perfil não era muito diferente em outras residências do centro de Belém. Um
irmão mais novo de ―seu‖ Dico, o ―seu‖ Nazareno, também vivenciou a experiência de
trabalhar em Belém, na casa de família tradicional. Ele contou que trabalhou em uma casa na
av. José Malcher que tinha um grande quintal/bosque, com árvores de espécies diversas,
seguindo os padrões da biodiversidade dos trópicos, ademais de cuidar de animais silvestres
que o habitavam, como veados, cutias e até tartarugas e tracajás. Essa rede socioambiental de
humanos e não humanos foi deixando de existir aos poucos no centro de Belém, encerrando-
se, provavelmente, depois da década de 1950, com uma Belém sede de um dos maiores
edifícios da América Latina (na época), o localmente conhecido Manoel Pinto. Faço o registro
que essa rede socioambiental sempre existiu, em Belém, mas foi gradativamente extinta em
seu centro urbano em virtude de um modo de vida que foi alterando-se com o passar dos anos,
aquele da sociedade de mercado, do consumo, da modernidade.
Essa fronteira entre um mundo ―moderno, capitalista, consumista‖ e um mundo
socioambiental foi irradiando-se para as áreas circundantes do centro, deixando de ser
marcadas por um modo de vida agroextrativista e uma forma rural de ocupar o espaço, para
um modo de vida consumista, dentro do mercado financeiro mundial, com uma forma urbana
de ocupar o espaço, a mesma que se vive hoje, com prédios, construtoras, farmácias,
shoppings, ruas asfaltadas, restaurantes e empresas de prestação de outros serviços, sendo
uma grande parte franquias nacionais ou internacionais, tudo padronizado. Em outras
palavras, os humanos permanecem na rede atual, mas os não humanos são trocados, retirando
sua característica socioambiental de outrora. Enquanto que antes, o que circulava entre os não
humanos, ao menos em sua maioria, era uma energia vital, atualmente somos cercados de não
humanos com energia não vital, nas palavras da termodinâmica, antes a entropia era baixa,
agora é alta.
Para finalizar esse parêntese reflexivo sobra a história de Belém, cito minha própria
experiência de vida no bairro do Quarenta Horas. Quando lá fui morar (ano de 1994), o bairro
ainda era rural, um rural específico da Amazônia, ou seja, um rural agroextrativista e não
predominantemente agrícola. A fauna e flora ainda obedeciam o critério de ampla diversidade
nativa, inclusive, com algumas residências que mantinham como domésticos animais como a
anta, o veado, e até quelônios como tartarugas, tracajás e jabutis325. Hoje, os não humanos que
habitam meu bairro são inúmeros condomínios verticais e horizontais, muitos com
logradouros comerciais na beira da estrada, com produtos que fazem parte da rede mundial de
325
Essa informação trago na condição de morador que os viu, ainda em minha infância, provavelmente devem
ter existido outros nas redondezas.
325
comércio, na qual figuram grandes corporações como a Coca Cola, passando por corporações
nacionais, como a Ambev, até chegar em empreendimentos locais que, mesmo não
representando legalmente grandes franquias ou vendendo produtos mundiais, vendem
serviços que fazem parte do mundo moderno capitalista, como academias, farmácias,
barbearias, entre outros.
Antes, a maior parte dos não humanos eram seres vivos, de uma inimaginável
diversidade e locais, ligados às regras locais de funcionamento ambiental. Hoje, a rede é
pobre em biodiversidade, totalmente desvinculada do meio ambiente local.
Retornando para a história de ―seu‖ Dico, ele volta para a ilha com seus quinze anos,
no ano aproximado de 1947, indo morar com sua família na Cabeceira. Ele começa a ajudar o
avô, ―seu‖ Domiciano, um senhor com uma idade já bem avançada, por volta de seus sessenta
anos. Nesse momento, a maior parte da família dos Anjos Farias habita Igarapé Grande, na
figura do casal fundador e alguns de seus filhos e filhas, assim como habita a Cabeceira, na
figura da dona Tomázia, ―seu‖ filho Dico e o resto de sua família nuclear326.
―Seu‖ Dico é um dos netos que acompanha seu avô nas suas andanças. Nesse período,
os meios de vida tinham mudado um pouco. A seringa já não ocupava mais papel central na
economia local e doméstica, logo, ―seu‖ Domiciano também já não cortava mais seringa. A
principal atividade de relação com o mercado era a venda de carvão vegetal. O município de
Belém continha cerca de 200.000 habitantes (PENTEADO, 1968) e o uso de botijão de gás
ainda não era algo popularizado327. Assim, a região das ilhas funcionava como uma espécie de
abastecedora de madeira e carvão vegetal para uso domiciliar na cidade de Belém, capital do
estado do Pará, logo, todos os filhos do ―seu‖ Domiciano trabalhavam com a extração do
carvão vegetal.
Ainda que a maioria de seus filhos fossem trabalhadores do carvão, o velho
Domiciano exercia outras atividades. Como narrado no tópico anterior, ademais das
326
Pelo que pude constatar, somente a filha mais velha, a dona Maria Cristina dos Anjos de Farias, saiu das
proximidades de Igarapé Grande, ainda que tenha ficado na região das ilhas. ―Seu‖ Dico explicou que essa sua
tia era uma ―andarilha‖, não ―sossegava o facho‖, pois vivia se mudando, direcionado à causa desse
comportamento ao fato de o marido da mesma ser nordestino, sendo ele a pessoa que gostava de ―viver se
mudando‖, pois quando o mesmo faleceu, sua tia não se mudou mais.
327
Esta informação aqui aparece a partir da narrativa dos próprios moradores de Igarapé Grande. Muitos
habitantes da região das ilhas trabalharam na produção e venda do carvão para abastecer as residências de
Belém, sendo que o gás se popularizou a partir das décadas de 1980 e 1990. Não consegui ter acesso a
informações documentais e bibliográficas que corroborassem a informação dada pelos moradores de Igarapé
Grande. Fica aqui o registro da necessidade de um estudo histórico da rede de humanos e não humanos que
fornece energia para preparar o alimento do belenense e suas transformações ao longo do tempo, ou seja, a
passagem do uso do carvão, para o uso do gás de cozinha. Vale dizer que até os dias de hoje os moradores de
Igarapé Grande ainda trabalham com a extração do carvão vegetal, assim como ainda o utilizam para aquecer e
cozinhar alimentos.
326
atividades relacionadas à seringa, ele mantinha uma grande horta ao lado da sua casa, criava
algumas cabeças de gado leiteiro, cultivava cana-de-açúcar, cacau, café, ademais do
extrativismo de frutas. Também prestava alguns serviços pontuais como cozinheiro, músico e
agente de polícia ou, caso surgisse a demanda, a venda de algum dos produtos que pudessem
ser extraídos de seu sítio, sendo que o ―seu‖ Dico era um dos netos que figuravam como seu
ajudante.
―Seu‖ Dico contou algumas histórias de suas experiências com seu avô, mas as mais
marcantes são duas que justamente envolvem o falecimento de seu pai biológico e o
falecimento do próprio Domiciano, sendo que ambas estão imbricadas.
A história se resume no seguinte enredo: a ida de ―seu‖ Dico para trabalhar nas forças
armadas. Essa ideia surge com a vinda do pai biológico do ―seu‖ Dico, para conversar com
―seu‖ Domiciano. Na época, era jovem, com aproximadamente 18 anos, mas ainda não sabia
quem era seu pai.
Certo dia, ele chega em casa e vê um senhor idoso conversando com seu avô.
Dico – Foi um dia que ele veio me procurar, ele veio na casa do vovô, o vovô era
padrinho dele de fogueira, aí veio…
Thales – Ah! O seu Domiciano era padrinho dele de fogueira era?
Dico – Era. O meu pai… aí pegou, aí eu cheguei…
Thales – O seu avô era mais velho que o seu pai mesmo?
Dico – Era da mesma idade quase, os dois de cabeça branca! Aí quando eu cheguei
eu vi aquele velhinho lá conversando…
Thales – O sr. já conhecia ele de outras… de outros?
Dico – Não, não.
Thales – Nunca tinha visto ele?
Dico – Nunca tinha visto.
Thales – Mas ele não morava aqui pelas ilhas?
Dico – Não, era aqui pelas bandas de João Pilatos, São Pedro, por aí, por esse lado
aí...
Thales – Então ele morava nas ilhas?
Dico – Era.
Thales – E o sr. nunca tinha visto ele?
Dico – Nunca tinha visto ele. Nunca tinha calhado de eu encontrar com ele. Nem
quando andava com meu avô, nem com meu pai [de criação] também. Aí quando foi
nesse dia que eu cheguei do mato aí, e aquele velhinho conversando com o vovô, em
casa lá com o vovô Domiciano, contando um caso lá pro vovô Domiciano. Aí eu
cheguei do mato com o machado e o terçado, arriei lá no canto aí: ―boa tarde
senhor!‖; ―boa tarde‖, peguei na mão dele e ele ficou me olhando assim: ―será que é
o filho?‖, ele não me conhecia e nem eu conhecia ele, aí fui lá pra dentro…
Thales – Mas ele sabia que ele tinha um filho aqui?
Dico – Sabia! Que ele veio me procurar né? E o vovô sabia que ele que era meu pai.
Aí o vovô disse: ―meu filho, vá trocar sua roupa, depois venha aqui‖. E eu troquei a
roupa aí cheguei… ―meu filho, vai lá com teu avô e venha almoçar, tá na mesa o
prato‖…
Thales – Isso sua avó falou?
Dico – A vovó! Eu cheguei… o que é que o senhor… ―meu filho, tome benção
desse velhinho que ele que é seu pai. Seus tios começavam naquela anarquia com
você… tudo que você viu aí tomar benção que era seu pai, mas não é, esse aí que é
seu pai, esse aí que marcou pra você ficar aqui no mundo!‖. Aí eu tomei benção
327
dele… aí fui tomar benção, me botaram pra pegar na mão dele, peguei na mão dele,
tomei benção e dei um abraço nele… ele me abraçou… e o velho, escorre até
lágrima dos olhos! Aí ele disse: ―um ‗cabocão‘ meu padrinho!‖; ―meu filho, você
vai almoçar e depois você venha aqui, que eu quero conversar com você, pra ver sua
resposta tá?‖.―Tá bom‖ Eu almocei aí eu cheguei lá, ...―ah! Filho, seu irmão,
Cristino o nome dele, ele é o primeiro sargento lá da base aí do brigadeiro…‖. ―tá‖.
―aí, ele quer saber se você quer sentar praça, que é pra ir lá pra casa dele, tem a casa
dele, pra você ir pra lá, pra ir morar lá na casa dele e lá você tem estudo, você tem
tudo que você quiser lá no quartel, ele aprendeu lá e você vai aprender lá também, tá
bom? Você quer ir? Quero! Aí a minha mãe quando o velho disse, que foi embora,
aí a minha vó e minha mãe né? Foi lá pra frente da nossa sra. da Conceição se pegar,
pra fazer promessa, pra não sentar praça e aí aconteceu isso com meu avô, meu avô
morreu…
Thales – Mas como é, elas foram fazer o que seu Dico?
Dico – Elas foram fazer promessa para eu não servir, saber, para não ser soldado.
Thales – Ah, elas não queriam que o sr. fosse soldado?
Dico – Não, por que nesse tempo, de vez em quando tava acontecendo alguma coisa
em Belém, a revolução, era tiro, era disparo de canhão…328
328
Suprimi os trechos que seguiram do relato do ―seu‖ Dico, já que não estavam se referindo ao assunto aqui
tratado, a saber, os episódios de seu possível alistamento e as mortes de seu pai biológico e de seu avô, o ―seu‖
Domiciano. De toda sorte, segue uma parte desse relato, caso a curiosidade do leitor(a) tenha sido despertada
para esse período de revoluções dentro da Belém da década de 1940.
Thales – Ah é! Que revolução foi essa?
Dico – Era que surgiu lá no tempo… era Barata e não sei quem era o outro que tinha, eu sei que era muito tiro, quando eu fui
pra casa dessa dona Carmita…
Thales – Isso quando o sr. era mais novo? Na casa da dona Carmita?
Dico – Ela me mostrou nesse tempo, as revoltas lá e botavam aqueles coisas de saca de areia dessa altura assim, botava o
colchão no chão, deitava tudo no chão, quando disparava a bala do fuzil varava o cimento e vinha e ficava dentro da saca de
areia…
Thales – A saca de areia aparava a bala?
Dico – Aparava por que era só areia né? Quando batia ali não tinha… se não tivesse aquilo matava a pessoa que tava lá
dentro.
Thales – E o sr. tinha quantos anos mais ou menos?
Dico – Isso aí eu era moleque ainda…
Thales – Isso ai foi aquela casa que o sr. foi que tinha aquela morena, que era cozinheira, que era de Cametá (na verdade é
Acará).
Dico – Foi… era… que elas me contavam tudinho que um dia depois que o velho foi me procurar pra coisa é que eu fui saber
como é que tinha sido, que tinha sido uma revolução, e me falaram…
Thales – Como é que é ―seu‖ Dico?
Dico – A revolução que eles dizem que era a revolução dos saldados né? Que atiravam aqueles tiros assim…
Thales – E durou quanto tempo isso ai?
Dico – Ah! De vez em quando eles faziam uma revolta em Belém e era disparo de canhão e parece que rachava, fazia
―BEEEEEM‖ disparava de lá, ali da barra, de lá da onde sai o Círio da Nossa Senhora de Nazaré, lá do coisa, lá de cima do…
como era o nome… eu me esqueci agora… tem a vila da barca, tem o coisa… como é? De lá, disparava de lá e vinha cair
aqui na barra, quando disparava o canhão dai ia cair lá na ponta do coisa… lá no Mosqueiro, lá embaixo...
Tales – E onde é a barra que o senhor fala?
Dico – A barra é pra… bem no correr do campo da aviação…
Tales – Campo da aviação?
Dico – Sim, em Belém, aqui no coisa…
Thales – Não sei onde é… da aviação… Lá onde é o aeroporto hoje?
Dico – É.
Thales – É? Caramba! É longe, né?
Dico – É longe, mas o canhão disparava e vinha ali no Mosqueiro aí…
Thales – Ahan. Mas o senhor não sabe quanto tempo durou, não?
Dico – Mesmo quando... Quando eu fui pra lá já tava tudo calmado tudo. Esse que é doutor daqui do colégio que eu falo esse
daí…
Thales – Das carmitas? Das brancas?
Dico – Sim, esse daí foi corrido daí… O morador daí, tinha um barco, né, levaram ele daqui, levaram ele pra poder ele pegar
o navio pra ele ir pro Rio…
Thales – Rio de Janeiro, né?
Dico – Rio de Janeiro.
Thales – Foi, uma vez o senhor me contou essa história mesmo.
Dico – Depois quando ele foi pra lá também ele não sabia se ele ia voltar mais aqui, não
328
Alguns dias após sua apresentação ao pai biológico, ―seu‖ Dico acompanhou seu avô
Domiciano em um serviço a ser feito no Marimari. Eles iam destrinchar um porco para uma
das filhas do Domiciano, entretanto, o avô adoece na saída dessa viagem, vindo a falecer
aproximadamente um mês depois, antes que ―seu‖ Dico pudesse tirar os documentos
necessários para alistar-se junto ao seu irmão.
Dico: Eu tava com uns 20 anos, era vinte anos... Não eu ia fazer dezenove
(Entrevistador: ia fazer dezenove anos?) 19 anos, que meu pai veio eu tava com 18
anos e veio pra eu fazer essa viagem que ia fazer com ele e quando eu vim de lá
dessa viagem ele [avô Domiciano] adoeceu quando nós fomo de Roldão pra baixo já
foi doente, saiu de casa bom quando chegou no Roldão fizemos umas compras lá,
embarcamos, quando embarcamos começou a abrir a boca ―que é vô? Tá sentindo
ruim?‖ –meu filho acho que vai me dar febre-, peguei no velho assim, quando
peguei ele tava parecendo uma brasa (Entrevistador: já tava doente?) ―o senhor tá
com muita febre vô, bora voltar?‖ –Não meu filho, vamos seguir nossa viagem-, ele
já tava sabendo que era a última viagem que ele tava fazendo, foi na casa da filha
dele (Entrevistador: Qual era a filha mesmo?) A Ingraça, foi matar um porco lá
(Entrevistador: Lá no Marimari) lá no Marimari,
Entrevistador: Mas me diga uma coisa seu Dico, esse aí o senhor tinha 19 anos? O
senhor lembra porque era o período que o... (Dico: tava dezoito anos completo ia
fazer dezenove), pois é o senhor lembra que foi o tempo que o seu pai chegou a
conversar com o senhor.
Dico: Foi, chegou a conversar, primeira vez que fui conhecer meu pai, dezoito anos.
(...) cheguei lá, eu tava pro mato quando cheguei lá eles tavam conversando os dois
ancião velho (Entrevistador: Aí eles tinham ficado de acordo que o senhor ia com o
seu pai, mas aí nesse meio tempo vocês fizeram essa viagem?) foi, que o vovô ia
tirar meus documento, meu registro tava vencido, ele disse ― olha Domiciano, eu
vou tirar os documento dele e tu aparece aqui pra quando for a hora tu leva ele,
quando ele completar 19 anos pra se apresentar aqui tu vem. Ele era padrinho dele
de alguma coisa, não sei se era de casamento, que ele é casado com essa mulher que
era... qual o nome dela meu Deus? Agora esqueci (Entrevistador: não era a velha
Paula?), não a Paula era filha dele. (Entrevistador: a sua irmã) a Paula era minha
irmã. (Entrevistador: mas não se criou com irmã?) Não, criemo depois que se
conhecemo, aí virou irmã. Não era por parte de mãe e pai, era só de pai
Existia, ainda, a possibilidade de que ―seu‖ Dico procurasse seu pai biológico para
ajudá-lo a tirar os documentos, mas o mesmo vem a óbito alguns meses depois da morte do
―seu‖ Domiciano.
Thales – Mas por que o senhor não foi atrás do seu pai [...]?
Dico – Ah, meu pai veio aí comigo, disse, é, meu filho, quando for… quando
você… ainda tenho dinheiro pra ir lá no cartório pra tirar o seu RG, quando você
coisar… você me avisa… eu disse qualquer um dia desse dá pra gente ir lá! Meu avô
tá doente, mas dá pra gente ir lá… aí lá o velho [pai biológico do seu Dico] sai e vai
vender, que ele fazia tipiti, fazia peneira, fazia… tudo quanto era coisa de
guarumã… aí… cesta, tudo ele fazia… aí foi falar pro moreninho e chegou de lá…
foi já vendeu as cestas dele, vendeu, aí foi na taberna, ele tomava pinga né?
Comprou uma garrafinha, ele levava uma garrafinha desse tamanho assim,
comprava assim… cachaça pra ele trazer, pra ele beber quando ele chegasse na casa
dele, se desse vontade… aí quando ele veio de lá, fez as comprinhas dele: café,
açúcar, farinha, arrumou tudo arrumadinho em cima dum banco, numa tábua lá na
canoa… veio de lá, que quando ele chega no igarapé parece que tava muito calor, ele
tirou a roupa tudinho, e tava tudo arrumado a roupa dele em cima do banco da
canoa, e deixou na água, eu digo que aquilo foi poraquê que bateu o velho, lá dentro
do Murinin… desceu bem perto dum barranco assim e o poraquê tava por ali e bateu
ele e...
Thales – Morreu?
Dico – Ele foi pro fundo e ele só fez saltar em cima dele e acabar de matar né! Aí
quando foram achar o velho aí tinha a canoa dele ―buiada‖ lá, as compra tudo lá, e
foram lá no…a canoa do seu Pedro tá lá com as roupas dele tudinho lá e ele não tá lá
na canoa, tá todas as coisas dele tudo arrumadinha lá, não tá mexido nada. Aí lá
foram pra lá, a maré secou e foram ver tava lá o velho morto pra lá…
Thales – Caramba!
Dico – Aí pronto! Chegou todos os dois ...aí o velho morreu aí pronto!
Thales – ele morreu primeiro que o seu Domiciano ou depois?
Dico – O vovô morreu… morreu quase tudo junto os dois…
Thales – Essa promessa da sua vó e da sua mãe foi forte né?
Dico – É! Eu disse boa mãe essa promessa da sra. e da vovó… vocês fizeram uma
promessa… eu quero que vocês façam uma promessa pra amanhecer um bocado de
dinheiro pra eu comprar muita coisa pra vocês (risos)!
Thales – Reza brava essa aí! Promessa forte essa aí rapaz! Caramba!
A história continua com sua ida a Belém após a morte do seu avô. São Dico e seu tio,
Simão, que vão para Belém, em meados da década de 1940, uma Belém urbana, mas ainda
fortemente caracterizada por elementos rurais e agroextrativistas. As experiências e as
histórias desse momento de sua vida contribuem de inúmeras maneiras para os argumentos e
as críticas que esta tese traz para a noção de modernidade e sua inerente dicotomia entre
natureza e cultura. Entretanto, vou me limitar apenas a uma, que se refere à possibilidade de
descrição de alguns não humanos que compunham o mundo comum da época.
Primeiramente, cito as atividades econômicas que ele desenvolveu na cidade, que, por
sua vez, refletem o cenário profissional que fazia parte do horizonte de possibilidades do
―seu‖ Dico. A primeira atividade remunerada desenvolvida referia-se a seus afazeres em uma
vacaria, com um dono de nome Arlindo. Ele e seu tio trabalhavam em vacarias, ambas de
português, que eram irmãos. Após alguns meses na vacaria, ―seu‖ Dico briga com seu chefe
que, segundo ele, ―era, metido à besta‖ e larga o emprego. Graças a um contato antigo no Ver-
330
o-Peso, pois quando morava na ilha sua família também vendia frutas para os feirantes, ele vai
trabalhar como vendedor em uma barraca de frutas do feirante Chico Mangabera.
Após quase um ano como feirante, ele cede seu lugar para seu tio Simão, que também
brigou com um dos portugueses donos das vacarias. O lugar na feira é cedido em função de
discordâncias no que se refere à ética de trabalho do seu tio, pois o mesmo tinha o costume de
misturar o dinheiro da barraca com o seu próprio, resultando em confusões na hora de fechar a
contabilidade do dia. Assim, ―seu‖ Dico vai trabalhar em uma indústria de cerâmica, e lá fica
por aproximadamente dois anos. Tanto as vacarias como a cerâmica localizavam-se nas
proximidades do ―Igarapé das Almas‖, atualmente conhecida como ―Doca‖, provavelmente
ficando em um dos seguintes bairros: Umarizal, Reduto ou Campina. O Ver-o-Peso, por sua
vez, fica no bairro da Cidade Velha. Essas três atividades econômicas, com efeito, foram
desenvolvidas em bairros ribeirinhos e que ficavam um ao lado do outro, em outras palavras,
eles compunham o mesmo mundo comum. Segue mapa dos bairros de Belém para que o leitor
se localize.
331
Fonte: Plano Diretor de Belém (2013), adaptação digital por Uriens Ravena.
No mapa é possível verificar que os bairros Cidade Velha, Campina, Reduto e
Umarizal estão alinhados um ao lado do outro, sendo que os dois últimos são divididos pela
―Doca‖ (ou o antigo Igarapé das Almas). Na época, o mundo comum era composto por uma
rede socioambiental de não humanos, como narrado, acrescentando a esse cenário não
humanos como as vacarias, feiras vendendo produtos locais e do interior do Pará, ademais de
pequenas indústrias que supriam um mercado local, como é o caso do Reduto (DE SOUSA,
2008, 2009; RODRIGUES, 2013). Além disso, chamo uma especial atenção para os diversos
igarapés que ainda entrecortavam esses bairros e serviam de meio de transporte para uma boa
parte da população local, especialmente para embarque e desembarque de produtos vindos do
interior.
Esses bairros, na atualidade, compõem um mundo comum de empreendimentos que
são característicos do mundo moderno. Ruas asfaltadas, redes de farmácias e supermercados,
lojas e academias de franquias nacionais, bares que seguem o estilo da noite boêmia de outras
capitais do Brasil e assim por diante. Bem diferente da Doca, Reduto, Campina, Umarizal e
Cidade Velha de outrora, composta por vacarias, casas com enormes quintais, igarapés e
comércios locais. A rede de não humanos que compunha o mundo comum ainda era local e
permeada por energia vital, diferente de hoje, em que vivemos com um estilo de ocupação do
espaço por não humanos que forma uma rede que é padrão em uma significativa parte do
mundo. A Belém de hoje é cada vez menos composta por não humanos de circulação local,
marcados por energia vital e características socioambientais, dando lugar à presença quase
que exclusiva de não humanos de procedência não local, permeados por energia não vital.
Estabelecido esse panorama, retorna-se para a história do ―seu‖ Dico, que, passados
dois anos trabalhando na cerâmica, resolve retornar para a ilha, dado que seu pai de criação
teve uma mão inviabilizada em um acidente de trabalho (cortando lenha e fazendo carvão) e
seu tio Boaventura estava velho demais para cuidar de toda a família.
Assim, retorna para a ilha para ajudar a cuidar da família, especialmente a família
nuclear, ou seja, pai, mãe e irmãos. Na época a principal atividade econômica era a produção
de lenha e carvão a serem vendidos para o centro de Belém e Ananindeua. Essa atividade era
complementada por atividades agroextrativistas diversas, seja em sua dimensão de
subsistência, seja para a venda. Entre os produtos vendidos estavam frutas nativas (açaí,
cupuaçu, bacuri e bacaba) e a farinha. Para o consumo, ademais dos produtos que eram
vendidos, agregavam-se outras frutas e produtos agrícolas extraídos das roças, assim como a
caça e a pesca.
333
A vida não tinha mudado muito desde a chegada de ―seu‖ Domiciano e dona Maria
dos Anjos. A única grande mudança era que a borracha já não era mais uma opção de
atividade econômica, surgindo a extração da lenha e do carvão como os substitutos mais
fortes, ademais de, com a morte de Domiciano, suas criações e hortaliças não foram passadas
adiante, logo sendo eliminadas do cotidiano da família Farias.
A vida foi passando e muitas experiências foram vividas. Festas foram celebradas,
como de aniversário, de santo, casamento, Natal, Ano Novo, Páscoa, entre tantas outras.
Dramas e tragédias também foram vividas e lamentadas, como as mortes de sua avó, esposa,
tios e tias, despedidas de irmão, imãs, primos e primas, dentre os vários parentes e tantas
outras experiências que me foram permitidas conhecer pela boca de ―seu‖ Dico, homem
trabalhador, sofredor, mas, especialmente, grato pelas diversas bênçãos que teve em sua vida.
Com efeito, muitos episódios ainda poderiam ser utilizados aqui para elucidar a crítica
feita ao modo de vida moderno e sua distinção entre natureza e cultura. Como exemplo
sintético, cito o caso da morte do Boaventura, em que Dico e sua mulher foram tomar
chocolate na casa de seu primo e cunhado, o ―seu‖ Antônio. Esse chocolate era fabricado na
própria ilha, assim como diversos outros produtos, como café, óleo de tucumã e a diversidade
de produtos derivados da cana-de-açúcar. Outro caso foi a história do ―seu‖ Bené que jogava
futebol com uma bola de borracha produzida na própria ilha, ou ―seu‖ Gilberto que usava os
shorts que sua própria mãe fazia de sacos de pano, entre outros incontáveis exemplos.
Assim, penso que meu ponto de vista sobre o modo de vida moderno já pode ser
considerado como exaltado, especialmente no que se refere à rede de não humanos que se
forma nas sociedades não modernas. Essas redes assumem características socioambientais,
permeadas por energia vital e sempre elaboradas por uma rede local de humanos,
diferentemente da rede de não humanos da sociedade moderna, despossuída de energia vital e
fabricada por uma rede de não humanos de fora do grupo local.
No próximo tópico, finaliza-se este capítulo explicando como em meados da década
de 1980, uma associação de moradores é fundada e, pela primeira vez na ilha, o Estado se
materializa oficialmente em um ator não humano por meio da fundação da Escola Municipal
Domiciano de Farias. A associação e a escola serviram como porta de entrada para o acesso a
outras políticas públicas, desenvolvidas nos últimos trinta anos.
334
329
A escola funcionou inicialmente na casa do ―seu‖ Antônio para que o prédio fosse construído.
330
Irmão mais novo do ―seu‖ Dico, sendo também neto do casal Farias.
331
Palavra local utilizada no sentido de ser um ato com o qual uma pessoa faz com que outra pessoa deixe de ser
burra. Normalmente associada ao ambiente escolar e à relação entre professor e aluno.
335
Estas atividades eram aprendidas no dia-a-dia dos moradores das ilhas, não a partir de
instituições sociais oficiais, como a escola, mas a partir de instituições informais,
especialmente na ajuda da criança aos pais, ou, naquilo que as Ciências Sociais convencionou
chamar de tradição mas, que, na visão deste trabalho, Levi-Strauss melhor precisa por meio da
noção de ciência do concreto. Esta ideia será detalhada mais adiante, por hora, basta ter em
mente que os ilhéus de Ananindeua são cientistas do concreto, criando uma teoria para
descrever seu mundo que é diferenciada daquela formulada pela razão ocidental (LEVI-
STRAUSS, 1989; VIVEIROS DE CASTRO, 2015).
Com efeito, o ordenamento jurídico pátrio sofre severas mudanças nesse período de
transição entre as décadas de 1980 e 1990, especialmente a partir da promulgação da
Constituição Federal de 1988 (CF) e os impactos que a mesma gerou na década de 1990.
Entre esses impactos, o que mais teve repercussões no cotidiano de Igarapé Grande e nas ilhas
de Ananindeua, na visão deste trabalho, foram aqueles ligados à regulamentação da vida da
criança e do adolescente.
Explica-se. A CF, em seu artigo 227, trata dos direitos da criança, do adolescente e do
jovem, contudo, de maneira programática, ou seja, estabelece ideais a serem alcançados, mas
não mecanismos para alcançá-los. Em 1990 surge o Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), por meio da lei 8.069/1990, que prevê algumas medidas e mecanismos para efetivar
os direitos programáticos previsto no artigo 227 da CF.
Assim, na década de 1990 começam a ser implementadas ações do governo para
efetivar as políticas previstas pelo ECA, assim como surgem novos dispositivos legais para
aprimorar e complementar esse diploma legal332. Outras duas políticas também se iniciam
nesta década: as políticas de transferência de renda e algumas políticas de desenvolvimento
agrário, estas últimas isoladas e que não tiveram continuidade.
Com efeito, na passagem da década de 1990 para 2000, o paradigma de cientistas do
concreto (LEVI-STRAUSS, 1989) que foi exposto alguns parágrafos acima, acaba mudando,
especialmente com a implementação da política contra o trabalho infantil, fazendo com que as
crianças e jovens deixem de ir à sua outra escola, esta informal, que era a ajuda aos pais em
seus ofícios de agricultores, pescadores e extrativistas. Com efeito, não aprendem a ser
cientistas do concreto como foram seus pais, seu universo a ser testado não mais se estende
aos não humanos que figuraram para seus pais, como saberes sobre a pesca, tipos de peixe,
332
Seguem alguns exemplos: criação do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), no ano de 1996,
que previa um auxílio financeiro às famílias que retirassem suas crianças e jovens do trabalho, passando para o
ambiente escolar, sendo este programa incorporado ao Bolsa Família no ano de 2005; Emenda Constitucional 20
(de 1998), que institui a idade mínima de 16 anos para o trabalho e de 14 anos para o aprendiz, entre outros.
336
tipos de mandioca e assim por diante. Eles agora se limitam ao cotidiano da escola e da sua
casa, acessando o universo rural e agroextrativista da Amazônia apenas de forma residual e
muito casual. Eles não partilharam na infância e adolescência do mesmo mundo comum
(LATOUR, 2004 a) dos seus pais.
Esse cenário de mudança se deu não apenas pela escola, mas, como já dito, de maneira
conjunta com a política antitrabalho infantil, sem sensibilidade alguma para outros estilos de
vida em que a noção de trabalho não se apresenta como pensada no mundo
moderno/capitalista, estando menos ligada a uma tecnologia social de exploração da força de
trabalho, do que a uma instituição social com a função de repassar conhecimento, meios de se
pensar e agir, etc. para as novas gerações. Em outras palavras, uma maneira de ensinar aos
mais jovens como os mesmos devem ser no mundo, segundo a crença de sua própria família.
Assim, nos anos de 1990, o Estado adentra Igarapé Grande na figura de políticas
educacionais, de erradicação do trabalho infantil e algumas políticas de transferência de
renda333 e de desenvolvimento agrário, estas duas últimas ainda em estado de experimentação.
Na década de 2000, mais precisamente no ano de 2005, acontece uma ocupação de
terras na ilha de João Pilatos, precisamente no terreno em que funcionava, na década de 1940
a 1990, uma indústria de cerâmica, denominada de Indústria de Cerâmica da Amazônia
(INCA). Os moradores de Igarapé Grande buscam o governo federal para que esta ocupação
não se expandisse para outras áreas da ilha.
A resposta do governo foi transformar Igarapé Grande em um Projeto Agroextrativista
(PAE). Esta era uma ação do Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) que estava
sendo implementada em toda a Amazônia nesse período334. A mesma consistia em uma
política de reforma agrária, em que comunidades rurais recebiam uma série de incentivos do
governo, cada incentivo era concedido em uma fase diferente. No caso de Igarapé Grande,
foram concedidos documentos que davam o direito de uso da terra aos seus moradores, mas a
propriedade era da União, casas foram edificadas e distribuídas em três fases, sendo que a
terceira fase nunca se concretizou. Juntamente com a casa, o beneficiário tinha o direito de
escolher alguns bens de consumo, como cesta básica, freezer, geladeira, ferramentas para o
trabalho na roça ou na pesca, entre outros. Juntamente com as casas e seus benefícios por
família, o INCRA também instalou um micro sistema de abastecimento de água em Igarapé
Grande e Cabeceira. Essa política chegou para outras localidades da região das ilhas, mas não
333
Vale dizer que as aposentadorias do trabalhador rural, que começaram a ser permitidas de maneira menos
burocráticas, trouxeram mais renda para os habitantes de Igarapé Grande.
334
Para mais detalhes, consultar Mendes (2015) e Maia (2011).
337
tive a oportunidade de fazer esse mapeamento, lembrando que o foco deste trabalho é Igarapé
Grande.
Para a implementação dessa política de reforma agrária, o INCRA exigia que um
plano de uso dos recursos naturais fosse feito e assinado com todos os moradores e moradoras
do projeto. Com efeito, entra em cena também o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais (IBAMA) para efetuar a fiscalização da elaboração e respectivo
cumprimento desse plano. O Estado moderno está terminando de se consolidar na região das
ilhas de Ananindeua.
Finalmente, no ano de 2009 chega o programa Luz para Todos na ilha, fazendo com
que a grande mídia nacional adentre as casas desses ilhéus. No ano de 2016 um posto de
saúde municipal é edificado em Igarapé Grande, bem ao lado da escola. O Estado moderno
finalmente se consolida por completo. As ilhas já estão todas mapeadas, transformadas em
objetos e espaços de planejamento, ações e políticas estatais.
Assim, com o passar do tempo o mito da modernidade acaba chegando e
contaminando de maneira integral os moradores das ilhas de Ananindeua, fazendo com que os
mesmos passem a almejar e viver entre outros não humanos que não aqueles disponibilizados
pelo ecossistema local e ensinamentos de outras gerações. Os jovens agora desejam e
consomem outro estilo de vida, aquele moderno, civilizado, evoluído, não mais aquele
advindo do pensamento selvagem de outrora (LEVIS-STRAUSS, 1989).
Nas últimas páginas foram expostos alguns elementos que permitem pensar uma
―frente de expansão estatal‖ junto a Igarapé Grande nos últimos trinta anos. Resume-se a
mesma nas linhas que seguem. O primeiro elemento estatal surge com a escola, no fim da
década de 1980. Posteriormente, na década de 1990, já com uma escola mais consolidada,
surgem políticas de erradicação ao trabalho infantil pós-ECA, políticas de desenvolvimento
agrário isoladas e que não obtiveram sucesso, políticas socais de transferência de renda, ainda
em uma fase experimental. Na década de 2000, mais precisamente no ano de 2005, a própria
Associação de Moradores de Igarapé Grande faz uma solicitação junto ao governo federal
para uma política de reforma agrária, a qual resulta na concessão de casas, bens de consumo
domésticos e de uso rural, micro sistema de abastecimento de água, luz elétrica, capacitações
em atividades econômicas rurais e créditos em bancos.
Novos não humanos são inseridos em Igarapé Grande, seu mundo comum sofreu
severas mudanças, que são descortinadas com o próximo capítulo, no qual exponho minhas
experiências cotidianas junto aos descendentes do casal Farias, assim como exponho alguns
dados estatísticos coletados em campo.
338
339
No capítulo passado foi feito um balanço de como surgiu Igarapé Grande, contando
um pouco da história de seus moradores, seus cotidianos do passado mais distante, desde
pessoas que já faleceram até início da década de 2000. Neste capítulo trata-se do coletivo de
Igarapé Grande no presente. O mesmo está estruturado em sete tópicos, detalhados abaixo.
O primeiro trata do processo de coleta de dados, quantitativos e qualitativos. O
segundo expõe algumas reflexões sobre a coleta de dados etnográficos, argumentando que o
exercício etnográfico não resulta em ser, viver e existir como um nativo, mas apenas viver
entre os mesmos, esforçando-se ao máximo para ser sensível o suficiente para escutar o que
os mesmos e seus não humanos nos dizem. O terceiro trata da minha experiência particular de
vivência no cotidiano de Igarapé Grande, expondo dados numéricos, imagéticos e derivados
de minhas experiências em campo. No quarto tópico apresento algumas reflexões sobre o
cenário socioeconômico de Igarapé Grande. No quinto e no sexto tópicos apresento,
respectivamente, duas das principais atividades econômicas da região das ilhas, a saber, a
extração do açaí e a produção do carvão vegetal. No sétimo e último tópico construo uma
classificação dos não humanos de Igarapé Grande a partir de contribuições teóricas da
Economia Ecológica, somadas com o vocabulário de Latour.
Neste tópico são trabalhados dados objetivos e subjetivos, coletados por meio de
entrevistas e questionários aplicados aos moradores de Igarapé Grande. Com efeito, este
tópico explica as condições dessa coleta, assim como constrói algumas reflexões e registros
de possíveis aprimoramentos para pesquisa futuras.
Foram aplicados 33 questionários, tendo como referência a unidade residencial. O
questionário contemplava dados de natureza diversa, como informações mais objetivas
relacionadas à infraestrutura da casa e de Igarapé Grande, dados sobre o parentesco,
escolaridade de seus residentes, assim como dados mais subjetivos, como a relação com os
recursos naturais, trajetória profissional etc. Nem todos esses dados serão aqui trabalhados,
visto que o questionário coletou muitos dados qualitativos, assim como coletou dados que não
estão diretamente ligados à proposta da tese.
Para formular o questionário a ser utilizado, passei uma média de seis meses pensando
e fazendo pequenos testes, para que esse instrumento pudesse coletar o maior número de
340
informações possíveis. Fechado o modelo, passei em torno de dois meses para finalizar a
aplicação do mesmo a todas as residências de Igarapé Grande. O procedimento para aplicar o
questionário consistia em sair da casa do ―seu‖ Dico todos os dias e ir batendo de porta em
porta. Quando não havia ninguém, eu retornava em outro dia. O início do questionário foi
composto por perguntas objetivas, como número de residentes, escolaridade, idade, atividade
econômica, genealogia da família, entre outros dados. A partir da quinta página eu solicitava
autorização para gravar a aplicação do questionário, informações como a mobilidade da
família, atividade econômica, relação com os recursos naturais e com o mercado acabavam
incitando respostas de natureza qualitativa, como a história de vida do entrevistado, as
lembranças dos humanos e não humanos do passado, opinião sobre os não humanos de hoje,
entre muitas outras.
Com efeito, a aplicação dos questionários trouxe muitos benefícios para minha
pesquisa. O primeiro deles, obviamente, refere-se ao fato de poder construir um senso
socioeconômico do local, assim como uma melhor apropriação da distribuição socioespacial
de Igarapé Grande, conhecendo empiricamente o coletivo como um todo. Considerando a
amplitude de informações que eram coletadas com o questionário, ao ponto de alguns trechos
serem gravados, me foi possível conhecer os moradores de Igarapé Grande de uma maneira
que um simples censo não permitiria, sendo este o segundo benefício. Ao mesmo tempo em
que construí um censo socioeconômico do local, também pude visualizar cada um dos atores
sociais locais em suas especificidades, já identificando casos paradigmáticos a serem
detalhados mais adiante. Assim, a um só tempo as pessoas e suas coisas me foram
apresentadas, permitindo que eu fizesse comparações e ilações que somente seriam possíveis
com meses em campo.
Por outro lado, para que eu chegasse ao questionário, muito tempo gastei, sendo essa
uma das desvantagens de executar apenas a aplicação de um grande questionário. Outra
desvantagem refere-se ao grande volume de informações coletadas por apenas um
instrumento de coleta, fazendo com que estas informações não sejam prontamente
sistematizadas, dificultando este processo no futuro, já com algum distanciamento do
campo335.
335
Outra desvantagem de aplicar apenas um questionário é que muitas informações por ele coletadas, não são
comparáveis. É o caso dos dados sobre pesca que não puderam ser exclusivamente coletados com mulheres ou
homens que trabalhavam nessa área (em outras palavras, apliquei perguntas sobre pesca a não pescadores e
deixei de aplicar perguntas sobre pesca em pescadores), entre outros exemplos. Detalho esse ponto de vista nos
parágrafos que seguem.
341
Outra lição aprendida336 foi que alguns dados são dificilmente quantificáveis ou sua
quantificação não trará muitos benefícios para a pesquisa, na medida em que sua natureza
qualitativa se sobrepõe à quantitativa, como é o caso dos dados relativos às atividades
econômicas, em que algumas dessas atividades não são passíveis de serem quantificadas,
dado o reduzido número de sujeitos que compõem o cenário investigado, valendo mais coletar
o dado qualitativamente que quantitativamente337.
Existe, ainda, os dados dificilmente quantificáveis, como o questionamento ―quais
produtos planta em seu terreno?‖ Sua resposta seria dificilmente quantificável, na medida em
que existem vários produtos e vários terrenos, consequentemente fica difícil dar precisão a
ponto de conseguir quantificar, pois nem todos explicam qual é o produto ou o terreno, onde
fica, de quem é, e nem o próprio entrevistador consegue coletar esse dado, já que não conhece
a ilha como um todo. Com efeito, a possibilidade de quantificação desse dado fica para uma
incursão futura, em que o pesquisador já possa elaborar perguntas e ranqueamentos mais
específicos, de modo que possa quantificar esses dados de maneira mais refinada.
Finalmente há o caso de dados com naturezas de quantificação diversa. Alguns dados
quantificam residência, outros família, outros se restringem a um grupo de pessoas da
localidade, por exemplo, perguntas sobre pesca se aplicam apenas a pescadores, não a
unidades residenciais.
Notei também que, em pesquisas com grupos sociais rurais, existem três tipos de
dados objetivos/quantitativos a serem capturados de início, que são referentes à estrutura
física do local, às unidades residenciais e, finalmente, aos indivíduos. Se faço uma pesquisa
que envolve um grupo social pequeno, eu devo fazer dois tipos de censo, a saber: um que
tratará do censo dos moradores (questionários individuais, ou dados coletados de modo a
individualizar as pessoas); outro que tratará do censo das unidades residenciais. O censo que
tratará da estrutura do grupo deve ser feito somente em caso da interseção de vários grupos
sociais (nas palavras da Antropologia de Comunidades, no caso de pesquisa com muitas
comunidades), pois uma entrevista com lideranças e a visita in loco permitem capturar esses
dados em casos de grupos sociais pequenos e/ou únicos.
Outra observação digna de nota é a de que dados de mobilidade populacional devem
ser coletados de maneira individualizada, ou seja, no censo de pessoas e não no censo da
336
Neste parágrafo exponho algumas reflexões sobre o processo de coleta de dados quantitativos e qualitativos,
na medida em que estes são fundamentais e também compõem o fazer etnográfico. Uma etnografia não se
constrói exclusivamente por meio de uma descrição em seu sentido subjetivo, passando também pela expressão
objetiva do cotidiano local, nomeados por Malinowski como o esqueleto da vida nativa.
337
Em outras palavras, sua quantificação é irrelevante (exemplo: são poucos pescadores em Igarapé Grande, esse
dado quantificado é irrelevante, acaba tendo um valor qualitativo, não quantitativo).
343
338
Em outras palavras, quando se coleta dados referentes ao grupo, os mesmos misturam os dados individuais,
ficando mais adequado capturar essa informação no senso individual (capturando dados como: trajetória da
pessoa, se já saiu da comunidade; quanto tempo passou fora; porque saiu; vai e volta todo dia da comunidade;
semanalmente).
339
No caso da etnografia, técnica antropológica utilizada para realizar uma descrição densa de uma cultura
(GEERTZ, 1993; 2001), esta cultura, vale dizer, esse ethos, nunca é descoberto, mas é precariamente construído
ao longo do tempo em campo. Logo, novamente friso: quanto mais tempo em campo, mais elementos para uma
melhor construção. Falarei mais sobre isso no próximo tópico.
344
Figura 08: Genealogia integrada dos principais interlocutores para a produção deste capítulo
D. 0 D. 0
Domiciano Maria
de Cristina
Farias dos Anjos
D. 0 1919 - 1989 D. 0 D. 0
70
Gilberto Maria das Maria do Maria Antônio Maria Maria do Tatiane Adalberto
Graças Farias Socorro dos Terezinha Farias TomásiaCarmo Farias Farias (Beto)
de Sousa Anjos Farias Farias Ramos RamosFarias Ramos Ramos Ramos
197
340
―Quintal integrado‖ no sentido de que os mesmos não existem na prática, pois não existem cercas separando
as terras. Elas são coletivas, já que todos são parentes, logo, herdeiros da mesma.
341
Existem dados objetivos e dados subjetivos que sofreram um processo de objetificação, podendo ser
quantificados (todo dado pode ser objetivado e posteriormente quantificado), mas vale a pena objetificar e
quantificar todos os dados? O que esse exercício revelará sobre o que se quer estudar?
199
extraídos de minhas vivências para minhas anotações/caderno de campo e, então, para a tese
em si.
Em minha imatura percepção, esses dados ou se mostrariam a mim, ou seriam
descobertos por mim, por meio de algum tipo de procedimento metodológico, como aplicação
de questionários, execução de entrevistas formais ou mesmo, em uma dessas conversas
informais, entretanto, eu perceberia a informação chegando e imediatamente a transformaria
em uma entrevista gravada. O dado ou era objetivo ou facilmente objetivado.
Pois bem, ocorre que a etnografia possui meandros que vão se mostrando somente ao
longo de sua execução. Somente após muito ―murro em ponta de faca‖ o pesquisador, no meu
caso, ainda imaturo, consegue perceber que os dados não são tão objetivos assim, mesmo
esses recém citados (mobilidade de humanos no coletivo, história de vida, entre outros).
Hoje, após minhas estadas em campo, percebo como esses dados na verdade vão
sofrendo um processo de objetivação que se dá a partir da minha rigorosa descrição de campo,
ou seja, eles não são objetivos a priori, mas são por mim objetivados a partir de minha
descrição e ilação entre as diversas experiências vividas. Não é tanto aqui uma descrição
densa em que se chega ao ethos de uma cultura, à sua teia de significados, à sua alma, como
queria Geertz (1993). Seria mais uma descrição em que se constrói sim uma teia de
significados, mas esta está menos ligada a significados propriamente ditos (interpretação de
palavras, discursos e falas em geral) do que a relações entre coisas, pessoas animais ou, nas
palavras de Latour (2013a; 2013b; 2004a), uma rede de humanos e não humanos. Não se
devem compreender pessoas e o significado que as mesmas dão ao seu mundo, mas sim
descrever as relações que o coletivo de humanos e não humanos estabelece, sendo que às
vezes se faz necessário, vale dizer, compreender as pessoas e os significados que as mesmas
dão ao mundo ao seu redor. Não é tanto a história de vida da pessoa, suas atividades
econômicas e financeiras que queremos saber, mas como esses dados trazem sentido para a
vida da pessoa e sentido para meu entendimento sobre a vida da pessoa.
Voltando ao exemplo da dona Bena com suas conversas, nestas, ela me mostrava sua
história de vida, sua relação com os recursos naturais do passado e do presente, ela estava me
dando condições de construir dados antes inexistentes, objetivar discursos, já que faziam parte
da realidade externa, enquanto eu ansiava por questionários e entrevistas formais que me
mostrariam a realidade como ela é.
Enquanto eu estava preocupado em entender falas, decifrar discursos, descrever o
modo de vida local, buscando nesse processo dados objetivos que me referenciassem, dona
Bena me explicava, à sua maneira, as coisas que eu queria saber, sendo que somente meses
200
depois entendi que esses dados não seriam objetivos, mas seriam objetivados a partir de
minha experiência em campo, que não se resume à entrevistas e questionários, se estende a
conversas informais em refeições, caminhadas pelas trilhas para se chegar a casa de algum
conhecido, ao sair para pescar camarão, entrar no mato para tirar lenha, apanhar açaí no
quintal, enfim, entre as diversas atividades do cotidiano de um morador das ilhas. Em outras
palavras, os dados são objetivados a partir de experiências, experimentos, sentimentos e
sensações vivenciadas em situações e pessoas em campo, a partir de minha inserção no
cotidiano local. A história de vida e o cotidiano da dona Bena estavam me contando que uma
crítica poderia ser feita à modernidade.
Entrar no cotidiano local, vivenciá-lo o máximo possível, fazer parte desse cotidiano
dos moradores. Feito isso, a etnografia já está em condições de ser encerrada. Por isso, ratifico
meu posicionamento já exposto mais acima: quanto mais tempo se passa em campo, mais
situações o pesquisador vivencia, logo, maiores são as possibilidades de objetivação de dados
outrora inexistentes.
Então, surge o questionamento, quanto tempo se deve ficar em campo? Não há uma
fórmula, mas uma coisa é certa, quanto maior a permanência em campo, maior a possibilidade
de se construir uma descrição amarrada às vivências desse cotidiano.
Em outras palavras, essa descrição de experiências, que em regra resulta na etnografia,
essa fabricação de dados, essa objetivação de informações por meio da descrição, está
condicionada pela permanência do pesquisador em campo. Essa descrição vai sendo feita
tanto em campo, como fora dele, não obedecendo a procedimentos fixos, mas ficando a mercê
das sensibilidades do pesquisador que, por mais treinado que esteja, nunca estará plenamente
preparado para os imponderáveis do campo.
A sensibilidade não pode aflorar de maneira artificial, não pode ser treinada a ponto de
estar preparada para qualquer situação, dada a imprevisibilidade do que se vai viver em
campo, do que os humanos e não humanos seguidos irão mostrar. Assim, essa sensibilidade
simplesmente terá que ser improvisada a partir do repertório que esse mesmo pesquisador
possui.
Por fim, essa descrição dessa teia-rede de associação entre humanos e não humanos se
dá pelo exercício dialético entre o estar lá e o estar aqui, entre o meu repertório de mundo e o
repertório de mundo dessa rede, onde não necessariamente horizontes se tocam (Viveiros de
Castro (2015) criticando Cardoso de Oliveira (1993)), entre outros autores da Antropologia
que têm como base epistemológica a distinção entre sociedade/cultura e natureza e a ideia de
―encontro etnográfico‖), mas onde eu consigo experimentar a metafísica do outro a partir de
201
minha vivência junto a eles, a partir da minha observação e participação (não uma observação
participante) do seu cotidiano, a partir da constatação de que experiências vão se repetindo,
assim como a postura construída sobre ela, o discurso sobre ela montado. Somente se pode
explicar essas situações quando algum tempo se tenha passado em campo, diferentemente da
pesquisa social dos sociólogos, obedientes a técnicas e procedimentos, entrevistas e
questionários, gravações e transcrições, fotos e filmagens, sem muita flexibilidade para
aprimorar suas sensibilidades. Nas palavras de Viveiros de Castro (2002, p. 119): ―O nativo é,
sem dúvida, um objeto especial, um objeto pensante ou um sujeito. Mas se ele é
objetivamente um sujeito, então o que ele pensa é um pensamento objetivo, a expressão de um
mundo possível, ao mesmo título que o que pensa o antropólogo.‖342
Segue trecho de meu diário de campo em que exponho um pouco de minhas
inquietações sobre as técnicas que a etnografia supostamente demandam.
Faz tempo que não escrevo aqui, por meio desse diário de campo. Foi
uma excelente ideia trazer o notebook. Bem melhor que escrever à
mão. Penso que o caderno serve somente para notas em campo
propriamente dito, ou seja, quando estou entrevistando alguém,
documentando alguma prática, etc.
Voltei ontem para a comunidade. Amanhã vou embora. Preciso
urgentemente sentar e transcrever fitas, escrever a história e
parentesco da comunidade. Acho que isso poderia ser meu relatório.
Nas próximas semanas eu aplicaria os questionários em toda a
comunidade, gravando os questionários. Se não der tempo de usar as
gravações todas, ao menos as gravações da Cabeceira eu uso.
Mais tarde quero entrevistar ―seu‖ Manoel, irmão dele (para saber de
história de vida local e como calafetar barco) e dona Tereza (história
de vida e local). Quero bater fotos da calafetagem.343
342
Continuando o trecho, caso a curiosidade do leitor tenha sido aguçada: ―Por isso, a diferença malinowskiana
entre o que o nativo pensa (ou faz) e o que ele pensa que pensa (ou que faz) é uma diferença espúria. É
justamente por ali, por essa bifurcação da natureza do outro, que pretende entrar o antropólogo (que faria o que
pensa)12. A boa diferença, ou diferença real, é entre o que pensa (ou faz) o nativo e o que o antropólogo pensa
que (e faz com o que) o nativo pensa, e são esses dois pensamentos (ou fazeres) que se confrontam. Tal
confronto não precisa se resumir a uma mesma equivocidade de parte a parte — o equívoco nunca é o mesmo, as
partes não o sendo; e de resto, quem definiria a adequada univocidade? —, mas tampouco precisa se contentar
em ser um diálogo edificante. O confronto deve poder produzir a mútua implicação, a comum alteração dos
discursos em jogo, pois não se trata de chegar ao consenso, mas ao conceito.‖ (VIVIEROS DE CASTRO,
2002, p. 119, grifos meus). Este tema foi detidamente tratado no capítulo 5 desta tese.
343
Sobre o diário de campo, deixo o registro que o mesmo se torna mais dinâmico quando digitalmente feito.
Também deixo a observação sobre a necessária diferenciação, a meu ver, do diário de campo e do caderno de
campo. No primeiro o pesquisador deve registrar seu cotidiano, suas impressões e intuições sobre o campo,
enquanto que o segundo deve ser utilizado em campo propriamente dito, ou seja, quando se está entrevistando
alguém, quando se escuta uma informação importante, enfim, deve-se sempre dispor de um caderno para rápidas
anotações em campo, assim como um diário (ou um notebook) para anotar o cotidiano vivido. Observo, ainda, a
utilidade de bolsas no formato de saco e que fecham por cima com um barbante, sendo colocadas nas costas do
pesquisador, engatadas em ambos os braços, como uma mochila (detalhe importante, pois a mochila ocupa muito
espaço e é muito rígida, impedindo movimentos rápidos. Tampouco não se corre o risco de perder o equilíbrio
com as bolsas que são engatadas em um braço apenas, considerando as várias andanças feitas em campo) e com
202
espaço suficiente para carregar questionários, gravador, máquina fotográfica, lápis, borracha, caneta, ademais do
já falado caderno de campo.
344
Estou aqui me referindo à pesquisa clássica da Antropologia, na qual não se estuda um grupo social do qual
se faz parte. Vale dizer que esse paradigma se alargou nas últimas décadas, resultando na formação profissional
de antropólogos índios, quilombolas, agricultores familiares, praticantes de candomblé e umbanda, assim como
no alargamento do objeto de estudo da Antropologia para sujeitos que compõem a modernidade, como grupos de
homossexuais, instituições estatais, ambientes coorporativos, entre outros, permitindo que o antropólogo estude
algum ambiente do qual faz parte, independente da sua condição de antropólogo.
203
Com efeito, minhas idas e vindas ao campo me permitiram construir duas reflexões. A
primeira corresponde à problematização do processo de inserção e aceitação em campo. A
partir de minha experiência, posso dizer que não existe um divisor de águas onde o
antropólogo passa a ser aceito pelo grupo social que estuda, como pensado por Geertz em sua
briga de galos. O que existe, em verdade, se caracteriza por um processo onde o pesquisador
passa a fazer parte do cotidiano dos humanos e não humanos estudados, mas estes também
passam a fazer parte do cotidiano do pesquisador.
Aqui é possível apresentar a segunda reflexão. O processo de ―adentrar a vida dos
sujeitos da pesquisa‖, expressão tão cara à antropologia, não deve figurar como a principal
preocupação do antropólogo, devendo este primar pela objetivação de suas experiências em
campo permitida pela máxima permanência no mesmo. Passo agora à exposição de alguns dos
dados coletados e à descrição do cotidiano vivido na ilha.
demora em média vinte minutos para cruzá-la. Para ilustrar a descrição, segue imagem
adaptada do Google Maps dos dois aglomerados recém citados, assim como um croqui de
cada um deles, especificando residências e alguns dos recursos naturais locais (já expostas no
Capítulo 1, sendo novamente aqui expostas, dado o longo caminho que já se percorreu).
205
Figura 10: Repetição do croqui de Cabeceira Figura 11: Repetição do croqui de Igarapé Grande, sem a
Cabeceira
Fonte: Organizado por Thales Ravena Cañete, executado por Juliene Furtado, adaptação digital de Uriens Ravena..
207
No passado, esse mesmo cotidiano poderia estar preenchido também por outras
atividades que evidenciavam como a relação com os ciclos da natureza ordenavam as escolhas
e o cotidiano dos moradores, entre outras atividades que se perderam no tempo, podendo ser
assim descritos:
tirar seringa (produzindo bola e diversos produtos derivados da borracha,
localmente utilizados);
fazer chocolate e produtos derivados do cacau (colhido na localidade);
processar café (plantado na localidade);
retirar leite de vaca, manufaturando produtos derivados do mesmo como
manteiga, coalhada e queijo;
Os afazeres acima expostos podem ser classificados entre econômicos e financeiros (o
segundo está contido no primeiro). Assim, o segundo se caracteriza por incluir a pessoa em
uma relação que lhe trará um retorno financeiro, ou seja, lhe trará o não humano que
209
346
Entendo mercado financeiro como o espaço físico e simbólico de troca de não humanos em geral, mediado
exclusivamente pelo não humano conhecido como dinheiro. Neste trabalho apresentarei duas variações desse
―mercado financeiro‖, um de escala local, ou seja, circulação de dinheiro entre as ilhas e suas adjacências, outro
de escala regional, ou seja, circulação de dinheiro entre a região de Ananindeua ou RMB em geral. Essa escala
pode ir se ampliando, passando para o mercado do estado do Pará, da região Norte, do Brasil e finalmente
adentrar diretamente o mercado financeiro global (lembrando que, a rigor, qualquer mercado financeiro, ainda
que de escala local, está ligado ao mercado mundial, ainda que não diretamente).
210
347
Capinar algum terreno, reformar/pintar imóveis e móveis e atividades domésticas.
211
transferências de renda estatal para a sociedade civil. Essas atividades, na medida em que não
produzem nenhum tipo de não humano que não o dinheiro, não podem ser classificadas como
―venda constante, eventual ou consumo‖, tampouco necessitam ser ―geridas‖.
Assim, as linhas marcadas em vermelho escuro são aquelas que predominantemente
apresentam relação com o mercado financeiro (―atividade financeira‖ e ―consumo e venda
cotidiana‖), garantindo a inclusão do humano que a exerce no mercado financeiro regional,
enquanto que as vermelhas mais claras correspondem às atividades de nenhuma (dependentes,
consumo e donas de casa) ou de baixa relação (vendas eventuais) com o mercado financeiro,
limitando-se, no máximo, a uma circulação doméstica ou local.
Todas essas atividades, como exposto acima, podem ser feitas de maneira
concomitante ou complementares por um mesmo ator humano. Todavia, uma pessoa deve
apresentar entre uma e duas atividades que são predominantes, ainda que exerça outras
atividades de caráter complementar. Essa qualificação entre predominante e complementar
foi construída a partir da pergunta ―Qual sua principal atividade econômica‖, feita no
questionário aplicado em Igarapé Grande. O Quadro 04 expõe a quantificação por habitante
das possíveis atividades econômicas que são entendidas como predominantes, mescladas com
a possibilidade de acesso ou não ao dinheiro por meio dessa atividade.
Algumas das atividades expostas mais acima não aparecem no Quadro 04, ou, se
aparecem, estão aliadas com outra atividade. Assim, existe a possibilidade de uma atividade
não ser predominante sozinha, mas, quando aliada a outra, ambas tornam-se predominantes
(caso do carvão e do açaí, que quando juntas, formam uma atividade predominante).
Com efeito, as seguintes atividades não aparecem no quadro acima, na medida em que
são complementares: caça, roça, ―serviços rurais‖, plantação, extração e catação de frutas em
geral (com exceção do açaí), coleta de ―remédios‖ do mato, pesca de peixe, caramujo, siri e
camarão, criações de aves de pequeno porte.
As atividades econômicas predominantes também podem ser divididas em virtude da
idade da pessoa, classificando-a entre crianças/jovens, adultos e idosos. Os adultos praticam
as atividades que, em regra, fazem movimentar o mercado econômico e financeiro (com
exceção das donas de casa348); idosos são aposentados, figurando como uma importante fonte
de dinheiro para esse mercado;finalmente existem aqueles que acessam o dinheiro de maneira
indireta, como algumas mulheres que são exclusivamente ―donas de casa‖, ademais de
crianças e adolescentes que figuram como dependentes.
Em virtude da escola e do posto de saúde de Igarapé Grande, o funcionalismo público
figura como o expoente das atividades entre os humanos adultos de Igarapé Grande, como é
possível ver no Quadro 04. Outra possibilidade para os adultos seriam as atividades
agroextrativistas, especialmente a extração do carvão vegetal e do açaí, ademais do mercado
de trabalho formal, seja por meio de carteira assinada, seja por meio do funcionalismo
público, como já mencionado.
Vale dizer que as ―donas de casa‖, no exercício das atividades domésticas,
desenvolvem várias funções, estando ligadas com a manutenção e gestão dos não humanos.
Muito comum entre as donas de casa, como exposto no quadro acima, é o caso da criação de
aves de pequeno porte como uma atividade que se destaca dentro do âmbito doméstico, na
medida em que esses não humanos podem funcionar como moeda de troca dentro do mercado
econômico de outros não humanos, inclusive como meio de acesso ao dinheiro, por meio de
eventuais vendas.
348
Vale dizer que, ainda que essas atrizes sociais não sejam fonte de renda direta, são importantes na medida em
que são elas que recebem qualquer transferência de renda do governo, ademais de serem elas as responsáveis, em
regra, pela gestão e manutenção do espaço doméstico, incluindo a gestão de não humanos como o dinheiro da
família e a produção diária de alimentos.
213
Com efeito, na análise do quadro, é possível perceber que as principais atividades que
dão acesso direto ao dinheiro são, em ordem decrescente: funcionário público (15); atividade
conjunta da extração do açaí e do carvão vegetal (12); carteira assinada (8); aposentados (7).
Vale destacar que quem mora em Igarapé Grande dificilmente se limita a uma
atividade financeira apenas, exercendo outras funções que não só complementam sua renda,
mas também atividades de ordem econômica e não financeira que suprem as necessidades da
casa. Nas palavras de autores da Antropologia Econômica que trabalharam com economia
doméstica, atividades de subsistência. Como exemplo, cito o consumo ou a eventual venda do
camarão, do peixe, frutas, farinha etc.349
Seguem trechos de meu diário de campo em que se pode melhor visualizar, a partir de
meu cotidiano de pesquisa, o dia-a-dia da economia local.
Tomamos café juntos. ―seu‖ Dico fez o café e eu fiz dois pães com
queijo. Conversamos sobre muitas coisas. Seu Dico contou que o
caçador deve posicionar-se em locais com ―comidinha‖ (árvores
frutíferas, pelo que eu entendi), observando, ainda, se essas
comidinhas já não estão muito comidas, se estiverem, é possível que a
caça já esteja enjoada da mesma e não apareça por lá.
Depois do café, lavei a louça, escrevi algumas coisas e acompanhei
―seu‖ Dico em dar comida para os bichos e limpar o espaço deles.
Saíram peruzinhos e pintinhos de uma perua e uma galinha que
estavam no choco. Uma outra galinha que estava com 16 ovos não
conseguiu tirar nenhum. Aprendi com o ―seu‖ Dico que nesse caso
tem que tirar/expulsar a galinha do ninho e colocar para o galo pisar
que ela volta a botar de novo, saindo do choco. Depois disso saímos
para o Ig. Grande para pegar carne na casa do ―seu‖ Bené e dona Nenê
(―seu‖ Dico tinha deixado encomendado uma carne assada lá) e eu
precisava ir buscar meu caderno de campo que tinha ficado no barco
do ―seu‖ Gilberto.
Saímos na canoa do Jojoca, ―seu‖ Dico foi remando. Nós descemos no
porto do ―seu‖ Paraco (ele ainda está fazendo a casa dele lá).
Colhemos alguns quiabos, estavam já muito maduros, aí ficam duros,
mas mesmo assim nós colhemos. Aí fomos lá para a casa da dona
Nenê. Parece que estamos entrando no tempo do bacuri, pois as
árvores estão todas floridas, assim como os cajueiros já estão com
caju. Já na casa da dona Nenebati fotos de uma fruta (cajarana, parece
que vem do Ceará, o ―seu‖ Domiciano tinha aqui, mas era uma árvore
bem maior, ―seu‖ Dico contou que a avó dele vendia muito, mas as
árvores morreram; a árvore do ―seu‖ Bené é bem pequena e não era
daqui, alguém que deu para ele) e da árvore dela, engraçado que a
dona Nenê pediu para ver as fotos. O Beto tinha saído para tirar uma
diária em uma fazenda da Ilha Guajarina.
349
A aposentadoria é algo comum na atualidade, graças à ―sociedade‖, como eles se referem à sua previdência
rural, tirada por meio da associação de moradores.
214
350
Coloco o termo trabalhar entre aspas para que o leitor relativize esse conceito, não associando-o pura e
exclusivamente à venda da força de trabalho, mas pensando-o como atividades que os habitantes de Igarapé
Grande desenvolvem para alcançar o seu bem viver. Particularmente, no lugar de trabalhar, prefiro, ―desenvolver
suas atividades‖.
215
diversos motivos: avanço da cidade para as beiradas do Curuçambá; muita gente para pouca
terra, floresta e rios; mídia alienadora que lhes diz diariamente que seu modo de vida é errado,
que são agricultores familiares pobres e que seu trabalho em nada muda a vida da nação etc.
Segue trecho de um estudo da Prefeitura de Ananindeua que corrobora este pensamento, mas
atribui essa mudança nos jovens exclusivamente à necessidade de acesso ao ensino médio que
pode ser feita somente fora da região das ilhas.
A população rural mais jovem que consegue concluir o ensino
fundamental é estimulada a migrar para áreas urbanas, em busca de
vagas nas escolas de ensino médio. Com o tempo, perdem
completamente a identidade com o meio rural, não mais retornando às
suas raízes. Esse contingente contribui para o aumento dos bolsões de
pobreza na periferia urbana do município. O fato é considerado a
principal causa do decréscimo progressivo da população
economicamente ativa, formada por trabalhadores mais jovens,
fazendo com que a área rural, principalmente a região das Ilhas, tenha
sua população representada expressivamente por crianças e idosos
(ANANINDEUA, 2013, p. 8).
Com efeito, seguem algumas reflexões que teci em campo sobre a vida econômica
local, contrapondo-se com a vida econômica moderna e globalizada.
7.4 Sendo ator do cotidiano de Igarapé Grande: a propósito da dádiva e sua circulação
entre humanos, por meio de não humanos
O ser humano de fato é um ser econômico, mas não no sentido de que sempre quer
lucro, mas no sentido de que sempre está disposto a trocar, realizar barganhas. Nós não somos
capitalistas ou economicus como supunham os descendentes teóricos de Adam Smith (1996) e
a economia neoclássica351, naturalmente adaptados a um mercado financeiro. Em outras
palavras, realmente somos hommo economicus, mas no sentido da troca de coisas, não no
sentido da mão invisível, do consumo e da livre iniciativa de mercado352.Vale observar o
dinheiro, esse não humano que em muito prejudica essa relação da dádiva 353, pois ele
impessoaliza as relações. Na nossa sociedade o meio (ganhar dinheiro) virou fim (quanto mais
dinheiro, mais realizado como ser humano sou). Quando essa lógica é implantada em
351
Como Friedman (1985), por exemplo.
352
Para mais detalhes sobre essa problematização da naturalização humana da economia financeirizada, ver
Polany (2000), Mauss (2013), Boas (2007), Malinowski (1984), Gordon (2006, 2014), Godynas e Acosta (2011).
353
No sentido de Marcel Mauss (2013), como a obrigação de dar, receber e retribuir.
216
coletivos rurais, o mesmo sofre severas transformações em sua composição, assim como nas
associações que são feitas entre humanos e não humanos.
Então, somos seres trocadores, trocamos as coisas, passamos a dádiva adiante.
Aparentemente, essa seria uma característica humana, como querem os modernos, mas não
seria ela mais uma forma de simbiose? Ou a simbiose não seria mais uma forma de dádiva,
pois a essência é a mesma: a troca para um benefício mútuo, sem grandes impactos para
outrem. Em outras palavras, não estaria o ser humano, ao trocar bens materiais e imateriais,
seguindo sua natureza de ser vivo?
354
Exemplos: ajudar a organizar a festa, trazer enfeites e brindes, trazer pratos e bebidas diversas, ajudar na
manutenção e limpeza final, apenas para ficar em exemplos mais comuns.
355
No sentido de Godynas e Acosta (2011).
217
propriamente dita pode ser entendida como um meio de se associar à um não humano
imaterial que permitirá o alcance do bem viver. Assim, elas não são um fim em si mesmas,
elas são um meio para alcançar o fim último, que é o bem viver.
Retornando ao ativamento de não humanos. Quando alguém pensa em doar a carne
para a festa, esse ato tem início muito antes da mesma, pensando naquele leitão que acabou de
nascer. A pessoa pensa, ―provavelmente vou usar esse leitão no aniversário de quinze anos da
minha filha‖. Tem início a jornada de preparação desse não humano. O leitão é criado,
alimentado e cuidado. Meses se passam e as pessoas ao redor já têm a consciência desse
acontecimento e que elas, na condição de vizinhas/parentes que desejarão serem ajudadas em
uma situação similar, começam a responder o anúncio da festa, encarregando-se de outros não
humanos. Um dos parentes, já sabendo dessa probabilidade, já tinha reservado uma parcela da
sua produção de frutas para parentes que quisessem sucos e bebidas em geral e assim a dádiva
vai multiplicando-se.356.
Para melhor elucidar as trocas que presenciei em campo, segue trecho de meu diário
em que narro um dia em campo marcado pela circulação de bens locais, a partir da
perspectiva da dádiva de Mauss (2013).
Hoje eu também bati umas fotos da dona Tomázia batendo açaí e a ajudei. Acho que
dá para documentar isso. Também bati foto do ―seu‖ Dico alimentando os bichos,
preparando esse alimento, acho que posso falar sobre o cotidiano dele e dos outros
(mas especialmente dele).
No outro dia, 09.10, eu ajudei a dona Tomázia a bater açaí, debulhei açaí que o
Jenisson tinha apanhado e ajudei a dona Ana a bater açaí. Ganhei meio litro pra
tomar na hora e mais uns dois litros pra levar. Esse dia foi bem interessante, pois eu
conversei bastante com o Jenisson. Ele me explicou como diferenciar o açaí branco
do preto, como subir na árvore e ainda fomos lá no forno dele e conversamos mais
um pouco.
Na volta, estava ―seu‖ Mangaba em sua casa. Me chamou e eu passei por lá. Me
mostrou o espaço que quer fazer para que passem o natal e ano novo em seu terreno.
Conversamos bastante, Fernandinha e dona Joana me mostraram os jabutis, estão
com 10 no total e um bicho de casca novo que não sabem o que é (vive na água).
Eles comem manga. Trouxe a trouxa de roupa que dona Joana tinha lavado para
―seu‖ Dico.
Houve muitas outras situações em que recebi algo de alguém, por alguma ajuda que
prestei. Exemplificando, seguem os não humanos a mim doados por alguma situação similar:
siri, coco, abacate, cupuaçu, caça, açaí, farinha, beiju, chocolate, farinha de gergelim, todos
356
Isso pode aplicar-se e ampliar-se para comunidades rurais da Europa, camponesas, que fazem sua cerveja e
seu vinho. Um tio já guarda uma parte de seu vinho para o aniversário da sobrinha, o casamento do primo, o
nascimento do afilhado etc. Enfim, a dádiva continua, você recebeu e deve retribuí-la em geral, no caso, para sua
comunidade. Faço o paralelo com a Europa para refletir sobre a sua formação como sociedade que jamais foi
moderna
218
localmente produzidos. A Fotografia 20 mostra o dia em que ajudei a dona Tomázia, expondo
a máquina de bater o açaí e sua zelosa dona em ação.
Fotografia 20: Dona Tomázia batendo
açaí
Fonte: Trabalho de campo (2015)
Também já fui agente da dádiva alheia, em outros momentos, como quando a dona
Nene, cunhada do ―seu‖ Dico, pediu que eu levasse a roupa dele, por ela lavada, de volta para
a casa dele, logo após uma das entrevistas que fiz na sua residência. Outro exemplo, seria o
episódio narrado mais acima, em que trouxe dois cocos de Igarapé Grande para a Cabeceira,
um para o ―seu‖ Dico e outro para o Jojoca, além dos siris que serviram de janta. Também era
bastante comum que eu levasse comida para o ―seu‖ Dico, feita por suas cunhadas ou
sobrinhas, inclusive, essa comida também serviria para mim. Esses episódios, portanto,
mostram que entrei no circuito do dom.
Passo agora à descrição de duas das principais atividades econômicas e financeira da
ilha, a produção e extração do açaí e da lenha/carvão.
Painel 02: Ordem das fotografias, de cima para baixo, da esquerda para a direita:
Genisson retirando cachos de açaí de seu quintal; cachos de açaí e materiais de
armazenamento; Genisson finalizando o processo de debulhar e deixar o açaí de molho;
um recipiente cheio de açaí pós molho, pronto para ser batido
Nas fotografias do Painel 02 é possível ver os quatro tipos de objetos utilizados para
armazenamento e lavagem do açaí: baldes, panelas, latas e paneiros (de garrafas PET e/ou
miriti/buriti). Nas duas últimas fotografias é possível ver o açaí antes de estar preparado para
ser batido, em cor ainda opaca e seca, em contraste com o açaí brilhoso e de cor viva, já tendo
sido deixado de molho, pronto para ser batido.
Na terceira fase o açaí é preparado para o beneficiamento, ou seja, ele vai ser ―batido‖
em uma máquina que irá retirar a polpa que envolve o caroço da fruta. Nessa preparação o
açaí debulhado é lavado e colocado de molho na água por aproximadamente trinta minutos, de
modo a amolecer a polpa que envolve o caroço. Algumas pessoas pingam algumas gotas de
água sanitária para melhor higienizar o açaí. O fruto é novamente lavado com água corrente
em abundância, para então serem ―batidos‖, ou seja, para que sejam despejados na máquina e
entrem na quarta fase, que é a extração da polpa do açaí. Abaixo segue uma fotografia
expondo um caroço de açaí já lavado e deixado de molho, pronto para ser batido, de modo a
fazer com que a polpa que envolve o caroço da fruta apresente rachaduras, expondo seu
interior.
A máquina recebe o açaí e funciona como um grande liquidificador, por isso o termo
―bater‖. Adiciona-se água, de modo que em alguns minutos a polpa do açaí estará sendo
despejada ao fundo da máquina em estado líquido, na medida em que a polpa já está mais
mole, após o período de molho, misturando-se com a água que é jogada dentro da máquina,
como mostram as figuras abaixo.
222
Assim, vemos a dona Tomázia (Painel 03) e a dona Ana (Fotografia 22) colocando
água na máquina já abastecida com caroços de açaí, sendo esse açaí ―batido‖, saindo seu
―vinho‖357 no canto inferior da máquina. A quantidade de água regula a densidade do ―vinho‖
do açaí, assim, quanto mais água, mais fino o açaí. Depois de alguns minutos expelindo o
vinho do açaí, deve-se tirar os caroços da máquina, já não mais revestidos da sua polpa
(Painel 04).
Painel 04: Dona Tomázia retirando o caroço do açaí já batido, a ser descartado
Fica o vinho do açaí disponível para consumo ou, caso o açaí venha a ser consumido
depois, seja por motivos domésticos, seja para vender, deve-se congelar a sua polpa recém-
beneficiada, para um melhor acondicionamento, garantindo uma vida útil mais longa. Vale
dizer que, em regra, o beneficiamento do açaí é feito para o consumo ou troca local, não
sendo um ator não humano a ser trocado por dinheiro. Abaixo segue imagem em que é
possível ver o açaí antes e depois de ser batido.
357
Termo local que se refere à polpa do açaí batido. Esse mesmo termo é utilizado para outras frutas, como o
vinho do buriti ou do cacau, por exemplo, outras frutas locais que também podem ser ―batidas‖.
224
Painel 05: O açaí in natura, mas já pronto para ser batido e o açaí já batido, em seu
estado líquido
Vale dizer que apenas uma família faz o beneficiamento do açaí para venda, por outro
lado, mais de vinte famílias trabalham com a venda do açaí in natura para marreteiros locais,
ainda que essa venda não seja uma atividade principal em todas essas famílias. Assim, o açaí
funciona como um ator não humano que dará acesso a outro ator não humano, o dinheiro.
358
A rigor, existe uma série de critérios para definir uma árvore a ser derrubada para a feitura do carvão.
Elementos como espécie, porte e distância entram nas ponderações para derrubar uma árvore ou não. Como não
é objetivo deste trabalho exaurir a atividade da fabricação do carvão na ilha de João Pilatos, deixo esta nota para
fins de informação e registro.
359
Significa transportar a lenha, normalmente em algum tipo de carro de mão, por isso ―carrear‖.
225
Feitas essas duas atividades, pode-se começar a encher o forno com lenha e atear fogo
no mesmo, esperando que esta se transforme em carvão no intervalo de aproximadamente um
228
dia. O ponto exato de quando a lenha já transformou-se em carvão, segundo o ―seu‖ Dico, é
quando saem chamas azuis em um buraco que fica no fundo do forno. Estando o carvão no
ponto, tapa-se esse buraco, impedindo a entrada e saída de ar e o forno é ―abafado‖. Espera-se
mais 24 horas para esfriar o forno, podendo então abri-lo, quando então se inicia a desfornada.
Nesse período, em regra, providencia-se mais lenha para queimar e transformar em carvão.
O processo de colocar a lenha no forno, como mencionado, atende a alguns critérios.
Primeiramente deve-se separar a lenha por tamanho, fazendo três montes. Um com gravetos
finos, outro com gravetos médios, outro com gravetos grossos, tal como ilustra a foto a seguir.
Separada a lenha, deve-se empilhá-la de uma maneira específica, colocando duas toras
grandes e redondas de base, para então, em perpendicular, atravessar pedaços de paus, ficando
as toras grandes como base de um amontoado de lenha. Coloca-se a lenha em cima das duas
toras grandes, da mais fina para a mais grossa, lá pela metade do monte, coloca-se novamente
uma lenha fina (pois o fogo a consome mais rapidamente e favorece o processo de
transformar a lenha grossa em carvão) para então continuar a colocar a lenha mais grossa, até
quase o teto do forno, que deve ter mais ou menos um metro e meio de altura, um metro de
largura e mais um metro e vinte de comprimento. Seguem duas fotografias, uma com a pilha
ainda pequena, outra já no seu limite de altura (Painel 07).
229
230
Depois de colocar um monte de lenha, coloca-se outro monte, na sua frente, para então
colocar aproximadamente três toras grossas em pé, responsáveis por fazer com que o fogo
suba, transformando em carvão a lenha que fica no topo dos montes. Faz-se uma pequena
fogueira embaixo dessas toras em pé, sendo que essa fogueira é feita com o carvão da fornada
anterior que ficou um pouco ―verde‖, ou seja, não terminou de queimar. Segue o Painel 08
que permite identificar o processo de empilhar a lenha no forno, realizado pelo Beto.
231
Painel 08: Beto iniciando o processo de separação e empilhamento da lenha, com o forno
ainda sendo cheio
Painel 09: Beto finalizando o processo de empilhamento da lenha, com o forno já cheio e
pronto para atear fogo
Lenha empilhada, é hora de atear fogo na mesma. Nas fotografias do Painel 09 pode-
se ver o Beto empilhando lenha em seu forno, contudo, não é ele que irá colocar fogo na
lenha, é o ―seu‖ Dico. Há toda uma técnica para colocar fogo no forno, denotando como isso é
difícil e demanda um conhecimento e domínio de técnicas particulares. Beto, quando
consegue executar essa tarefa (pois várias vezes o fogo do seu forno já apagou), demora quase
um dia inteiro para fazer com que o fogo de fato se instale no forno, enquanto que em meia
manhã o ―seu‖ Dico faz isso e dificilmente o fogo se apaga.
Na medida em que o fogo vai ficando mais forte, após fazer a pequena fogueira na
entrada do forno, começa-se a fechar a sua porta com tijolos e barro, sendo que se deve
sempre deixar o ―agulheiro‖, que é uma pequena fresta na parte central e inferior da ―porta‖
do forno, com o objetivo de que continue a entrar vento e oxigênio.
O critério do local de construção do forno atende a dois fatores: o solo deve ser
barrento, permitindo assim fazer o forno de barro e as portas do forno, toda vez que for fazer
carvão. Ademais, o mesmo preferencialmente deve ser próximo do igarapé, para que se possa
escoar a produção de maneira mais fácil.
Após aproximadamente um dia de queima, quando o buraco ao fundo do forno (que
serve para que o vento circule entre o mesmo e o agulheiro, alimentando as chamas com
oxigênio) solta uma chama azul, deve-se tampá-lo para que o fogo se apague. Com o intervalo
de mais um ou dois dias do forno apagado, pode-se ―desforná-lo‖, ou seja, retirar o carvão que
está lá dentro. Esse processo dura em média três horas, entre tirar o carvão e ensacá-lo.
Depois de tirar e ensacar, coloca-se novamente lenha no forno para acendê-lo mais adiante.
Não existe uma necessária ordem temporal nesse processo de retirar lenha do mato,
prepará-la, desfornar, colocar lenha no forno vazio, acender o fogo, deixar queimar, apagá-lo,
tirar e preparar mais lenha nesse meio tempo, desfornar e queimar mais lenha, novamente
fabricando mais carvão. Os intervalos de tempo podem variar, mas a principal regra refere-se
à zelar para que nem a lenha e nem o carvão molhem, pois isso dificulta a sua queima e sua
venda. Abaixo, o Painel 10 mostra o carvão já ensacado e devidamente armazenado num local
que não pegará chuva, com o Beto ao lado, dono do carvão. A fotografia do lado esquerdo
corresponde ao carvão já ensacado, mas ainda não devidamente armazenado, enquanto que à
direita o carvão já está armazenado e protegido da chuva.
234
7.7 Mudanças nos não humanos conhecidos como recursos naturais na modernidade
Como demonstrado, muitos foram e são os não humanos existentes na ilha. A partir
das atividades de associação dos mesmos com os humanos, exposta nos tópicos anteriores e
no Capítulo 6, cheguei a uma classificação desses não humanos, entendendo-os como não
humanos com energia vital, com energia não vital, de baixa entropia360, de alta entropia,
materiais e imateriais. Passo, então, à explicação dessas classificações, posteriormente detalho
o conceito de entropia361, mostrando sua importância para este trabalho362, para então, por
meio de dois sub tópicos, detalhar seus correspondentes da classificação de não humanos
acima feitas, junto aos não humanos de Igarapé Grande.
Aquilo que modernamente chamamos de ―seres vivos‖ podem ser classificados como
não humanos materiais, com energia vital e de baixa entropia; ―objetos ou coisas‖, como não
humanos materiais, sem energia vital com grau de entropia variável; ―metaconceitos‖ como
não humanos imateriais, sem energia vital com grau de entropia variável. Em outras palavras:
Seres vivos: não humanos
materiais, com energia vital, apresentado baixo grau de entropia;
360
Este conceito será adequadamente detalhado mais adiante. Por ora, pode-se entendê-lo como a quantidade de
energia dissipada no processo de fabricação de algo. Por exemplo, o processo de alimentação de uma planta é de
baixa entropia, pois pouca energia é dissipada, ficando grande quantidade de energia acumulada na planta. Por
outro lado, a locomoção de um carro apresenta um alto nível de entropia, na medida em que a energia utilizada
para tanto se dissipa em forma de calor e de movimento. Assim, quanto mais energia dissipada, mais entropia.
361
Dado que este é um conceito distante das abordagens das ciências sociais, caro às ciências duras,
especialmente a Física.
362
A proposta da argumentação apresentada nasce na leitura de autores da Economia Ecológica (GEORGESCU-
ROUGEN, 2012; CAVALCANTI, 2012, 2010, 2004, 2003, s/d; MARTINEZ-ALIER, 2014; CECHIN, 2010) e a
reflexão sobre como ao modo de vida dos grupos, considerados pelos modernos como tradicionais, é marcado
por um baixo grau de entropia, ao passo que os supostos modernos desenvolvem atividades econômicas de
altíssima entropia, potencializadas pelo mercado financeiro.
235
363
Esta é uma ideia ainda em construção. Nesta tese, me limitarei ao que foi exposto mais acima, tendo plena
consciência de sua falta de refinamento, mas ainda insistindo em seu uso na medida em que se mostra como um
marcador de diferença entre tradicionais e modernos. Nesses metaconceitos podem ser incluídas instituições
formais e informais, como Curupira, Caipora, IBAMA, INCRA, entre outros. Ainda que mais adiante eu traga
mais detalhes sobre essa relação entre humanos e não humanos metaconceituais, utilizando o paralelo entre a
sociedade moderna e o coletivo de Igarapé Grande como ilustração, adianto que, para mais detalhes sobre a
simetria desses não humanos entendidos como PPCT não índios, pode-se consultar Mauro Almeida (2013) e
Wawzyniak (2003; 2010).
236
podem ser ignoradas‖ (SAVI; COLUCCI, 2010, p. 12). Considerando que temperatura é o
grau de calor de um corpo, e que calor é energia, termodinâmica pode ser entendida como a
área da física que estuda o movimento da energia entre corpos e sistemas.
Entropia seria a segunda lei da termodinâmica, que entende que toda vez que existe
troca de calor entre um corpo e outro, este calor trocado não é integralmente transferido para o
outro corpo, perdendo-se este calor para o ambiente, isto é, a energia dissipa-se para o
ambiente em forma de calor. Como exemplo pode-se utilizar os automóveis da modernidade
que, ao queimar combustível fóssil, utilizando sua energia para se movimentar, perde grande
quantidade dessa energia em formato de calor, sendo este calor/energia dissipada para o
ambiente e assumindo o formato de energia que não poderá mais ser utilizada pelo ser
humano. É este processo de transformação de energia utilizável (combustível fóssil) em
energia inutilizável, (calor dissipado), que se dá o nome de entropia. Em outras palavras,
entropia corresponde ao nível de energia dissipada em um processo de troca de energia.
Quanto mais energia dissipada, mais entrópico é o processo.
Com efeito, volta-se a Igarapé Grande, para mostrar como os não humanos mudaram
ao longo do tempo, pensando essa mudança a partir da percepção interna, coletada por meio
de questionário aplicado nas unidades residenciais.
Em relação aos peixes, nenhum tipo de espécie deixou de existir364. Entretanto, tanto o
tamanho dos peixes, como a quantidade diminuíram, segundo 28 dos 29 entrevistados que
responderam aos questionários. E mais de um terço dos questionários diz que a quantidade e o
tamanho do peixe começou a diminuir faz aproximadamente dez anos, atribuindo tal processo
ao fato de haver muita gente pescando (dezenove das vinte e nove pessoas deram essa
resposta). As outras opções eram pesca de tarrafa, poluíram muito o rio, muitas redes, gente
de fora pescando e aumento do consumo, sendo que essas três últimas opções podem ser
consideradas como sinônimas da opção ―muita gente pescando‖, novamente expondo a força
dessa opção.
Em relação à pergunta sobre ―há quanto tempo que o tamanho e a quantidade do peixe
vem diminuindo?‖, vale observar que as opções variavam de ―nos últimos três anos‖,
passando para ―mais de dez anos‖, para então as opções crescerem de cinco em cinco anos,
até chegar há ―mais de 40 anos‖. Com efeito, as respostas se concentraram em ―mais de dez
anos‖, com mais de um terço dos entrevistados, sendo que as duas opções seguintes (mais de
15 anos e mais de 20 anos) concentram o outro terço de questionários válidos, permitindo
inferir que a escassez de recursos pesqueiros é uma realidade com menos de vinte anos.
Quanto ao camarão, vinte e sete (de vinte e nove) pessoas responderam que antes ele
era maior, estabelecendo a seguinte cronologia para a sua diminuição.
364
Vale observar que, segundo os pescadores locais, peixes bois deixaram de existir e a população de botos
diminuiu drasticamente. Não os mencionei acima na medida em que são mamíferos aquáticos e não peixes.
238
As quatro pessoas com resposta NSA (não se aplica) ou não pescam ou não moravam
na região das ilhas para poder responder a pergunta. Assim, neste caso diminui-se um
questionário dos vinte e nove válidos até então, sobrando vinte e oito questionários válidos.
Desses, onze disseram que o camarão começou a diminuir há mais de dez anos, seis disseram
há mais de quinze anos e quatro há mais de vinte anos, coincidindo com o caso do pescado,
em que dois terços dos questionários apontaram a diminuição dos recursos entre dez e vinte
anos.
As causas apontadas para a escassez e a diminuição do tamanho do camarão são quase
idênticas às causas do pescado: 19 pessoas disseram que isso ocorreu por conta do excesso de
gente pescando, ou seja, mais da metade da amostra.
No caso do desmatamento, a primeira questão ligava-se à lenha, em que todos
disseram que antes havia mais lenha que hoje. Quanto à possibilidade de desaparecimento de
alguma espécie de lenha, somente seis disseram que de fato algumas espécies deixaram de
existir.
Quando questionados sobre a existência de mais ou menos açaí no passado, as
opiniões se dividiram. Dos 29, 13 disseram que antes havia mais açaí, enquanto que 16
disseram que havia menos. As explicações foram muitas, entretanto, focaram-se em três
relatos. Se a pessoa defendia a tese de que antes havia mais açaí, justificava seu
posicionamento observando que na atualidade, quando cai algum açaizeiro, os jovens não
plantam outro no lugar, enquanto que antigamente, ―os mais velhos‖, logo substituíam o
açaizeiro caído por outro. Outra explicação liga-se à percepção de que os recursos naturais
estão acabando, estando os açaizeiros entre eles. Quando a tese defendida era a de que
atualmente existe mais açaí, esta se justificava pelo aumento na extração do açaí, fazendo com
que alguns ilhéus passassem a manter plantios de açaí.
Vale dizer que essas duas respostas, antes tinha mais ou menos açaí, derivaram de um
questionamento que não diferenciava se o açaizeiro era de uso aberto365 ou se era exclusivo.
365
Uso a expressão aberto, evocando a ideia de livre acesso aos não humanos modernamente conhecidos como
recurso natural. Essa ideia de livre acesso a recursos naturais teve sua origem no seminal artigo The tragedy of
the commons, de Garret Hardin (1968), o qual reflete sobre uso dos recursos entendidos como comuns, ou de
livre acesso. Estes seriam aqueles que todos podem desfrutar, como por exemplo, a pesca em um rio. Hardin
então observa que esse recurso, na medida em que é aberto, tende a ser sobre explorado, já que todos o
exploram, mas ninguém cuida para que se perpetue. A saída que Hardin apresenta seria a conversão da
propriedade comum em privada, ou que normas governamentais a usos e usuários sejam instituídas. Com isso,
Hardin desconsiderava a possibilidade da gestão dos bens comuns feita pelos próprios usuários. Vale observar,
aqui, a principal crítica feita a Hardin, que desconsiderava a gestão dos recursos naturais pelo regime comunal.
Feeny et al (2001), ao comentar Hardin, demonstram o relativo sucesso que grupos sociais diferenciados
obtiveram na gestão dos bens de uso comum aos quais tinham acesso, contradizendo o argumento de Hardin que
reduzia a saída da tragédia dos comuns às duas possibilidades acima citadas: a propriedade privada ou a
239
Assim, para aqueles que não trabalham com o açaí, de fato o mesmo ―diminuiu‖, na medida
em que são poucos os açaizeiros dos quais podem recolher seus cachos na atualidade, pois os
mesmos sofreram um processo de exclusão de seus beneficiários, justamente por parte
daqueles que trabalham com o açaí, que transformaram esse recurso de uso aberto em recurso
de uso fechado. Estes, por outro lado, começaram a plantar açaí, criando a sensação de que de
fato existem mais pés de açaí disponíveis.
Em minha percepção, mais uma variável deve ser adicionada a essa fórmula, que seria
o local do açaizeiro. De fato o número de açaizeiros de várzea deve ter diminuído, pois esse é
um recurso aberto, enquanto que o açaizeiro plantado em terra firme não. Com efeito, o uso
dos açaizeiros de várzea aumentou muito, desgastando-os, vindo os mesmos a morrer
gradualmente, mas considerando que são um recurso aberto, ninguém preocupou-se em
replantá-los. Por outro lado, os açaís de plantio, em regra de terra firme, aumentaram e muito,
na medida em que passaram a ser plantados e transformados em não humanos que dão acesso
a mercado financeiro, sendo que outrora essa não era uma possibilidade para os moradores de
Igarapé Grande.
Quanto ao desmatamento, o Gráfico 02 mostra o índice de desmatamento segundo
análise de imagens de satélites com um espaçamento de dez anos366.
regulação estatal. Com efeito, os autores concluem que para que a propriedade comum dê certo deve-se manejar
os recursos comuns concedendo independência ao grupo de usuários para que, com isso, eles possam excluir
outros usuários em potencial e também possam regularizar uso e usuários, minimizando problemas associados à
subtração.
366
Melhor esclareço esse cálculo. Os números do gráfico são oriundos de análise de imagens de satélites feitas,
utilizando como marcador de diferença entre áreas de floresta e áreas descampadas a pigmentação verde clara da
verde escura, onde a verde clara corresponde às áreas descampadas e a verde escura corresponde às áreas de
mata. No processamento e gestão dos dados cartográficos georreferenciados foi utilizado o software de Sistema
de Informações Geográficas (SIG) ARCGIS 10.2; na manipulação e edição dos dados, criação do banco de
dados georreferenciado e na finalização dos projetos cartográficos foi utilizado o software ArcGIS 10.2; os
dados cartográficos foram desenvolvidos no plano de coordenadas geográficas e Datum horizontal SIRGAS-
2000; em relação à base de dados vetorial foram utilizados dados oriundos do IBGE e IBAMA; os mapas e os
dados de desmatamento foram calculados pelo geógrafo e técnico em Cartografia Wellington Fernandes, como
esclarecido mais abaixo, nos mapas expostos.
240
367
A média foi tirada a partir da somatória dos quatro períodos e sua respectiva divisão.
241
368
Vale observar que esses gráficos foram construídos a partir dos dados disponibilizados por esses mapas, como
já explicado mais acima.
Figura 12: Imagem de satélite da ilha de João Figura 13: Imagem de satélite da ilha de João 239
Pilatos no ano de 1984 Pilatos no ano de 1994
Figura 14: Imagem de satélite da ilha de João Figura 15: Imagem de satélite da ilha de João 240
Pilatos no ano de 2004 Pilatos no ano de 2010
254
expulsar o pássaro com medo de doenças seria muito grande. Novamente o mito da modernidade
estéril entra em cena. Assim, o mundo não deve avançar em direção à cultura, à luz da
civilização, as coisas não devem estar a todo momento sendo civilizadas ou culturalizadas, como
querem os modernos.
levei leite em caixa, ―seu‖ Dico guardou todas as caixas. A bola que utilizávamos para jogar
futebol era periodicamente consertada pelo ―seu‖ Antônio, filho da dona Bena. A caixa d‘água de
Cabeceira era limpa e sofria periódica manutenção pelos próprios moradores de lá. Os motores
dos barcos eram revisados pelos próprios usuários ou, no máximo, por parentes ou conhecidos da
família, somente em casos extremos eram levados para uma manutenção profissional ou trocados
por novos.
O caso do ―seu‖ Dico nos conta ainda outra coisa sobre o coletivo de Igarapé Grande. Em
comparação com nossa sociedade, percebe-se como eles não produzem resíduos e, quando
produzem, é algo desprezível. A ideia de descartabilidade não existe para eles. Todo objeto é
reutilizado, reaproveitado, dificilmente sendo descartado. No caso dos resíduos sólidos orgânicos,
como restos de comida, estes eram descartados no próprio quintal e entravam novamente no ciclo
entrópico da floresta, transformando-se em energia em forma de adubo. Na sociedade moderna,
restos de comida viram lixo, sendo depositados em locais afastados dos centros urbanos,
causando imensos impactos ambientais, como o atualmente vivido pela RMB e a falta de um
aterro sanitário dentro dos parâmetros estabelecidos pela legislação ordinária.
Essa comparação de coletivos, a partir de seus possíveis resíduos, nos remete ao próprio
metaconceito resíduo, que faz parte da sociedade moderna como um dos grandes problemas a
serem resolvidos no século XXI, dado a grande quantidade por nós produzida, sendo que, por
outro lado, as sociedades ditas tradicionais não padecem desse problema, inclusive a própria ideia
de lixo nem sempre faz parte de seu vocabulário.
Com efeito, pode-se dizer que a residência dessas pessoas é sempre formada por não
humanos com grande valor de uso e pouco valor de troca, permitindo um exercício de
relativização daquilo que se entende por riqueza, felicidade e prosperidade em nossa sociedade.
Esses substantivos, na suposta modernidade, refletem-se no substantivo propriedade e no verbo
consumo. Quanto mais coisas uma pessoa tem e quanto mais ela consome, mais rica, mais feliz.
Consumo e propriedade são sinônimos de boa vida/bem viver em nossa sociedade, todavia, nas
sociedades tradicionais, esses substantivos assumem outros significados.
Para os moradores de Igarapé Grande, por exemplo, a felicidade está associada à relação
com parentes e amigos, possibilidade de ter mesas fartas, com muito açaí, camarão, farinha e
257
caça. Isso é felicidade, isso é riqueza, isso é prosperidade e é assim que uma vida boa ou o bem
viver devem ser vividos para eles202.
Um paralelo dessa crítica à nossa sociedade pode ser construído a partir de tendências
atuais nas publicações. Ultimamente vem sendo comum publicar sobre valores, saindo da
exclusividade do fato, do dado e do objetivo. Cada vez mais os autores das Ciências Sociais vêm
se permitindo falar sobre assuntos como vida boa (BARZOTTO, 2010), bem viver (GODYNAS;
ACOSTA, 2011), felicidade (GREVE, 2013; CAVALCANTI, s/d), ética (MENDONÇA, 2013),
entre outros, saindo dos trilhos da ciência racionalista ou positivista, puramente analisando dados
e fatos, descarrilando para assuntos de ordem filosófica e dos domínios da moral e da ética203.
Penso que isso se apresenta como um sintoma do limite da ciência moderna, ora racionalista, ora
positivista, epistemologicamente engessando as possibilidades de diálogo, reflexão e análise com
a realidade. Comentando os limites da Antropologia como ciência,
[...] deve-se poder produzir uma descrição científica das ideias e práticas indígenas,
como se fossem objetos do mundo, ou melhor, para que sejam objetos do mundo. (Os
objetos científicos de Latour são tudo menos entidades indiferentes, pacientemente à
espera de uma descrição.) Outra estratégia possível é a de comparar as concepções
indígenas às teorias científicas, como o faz Horton, segundo sua ―tese da similaridade‖
(1993:348-54). Outra, ainda, é a estratégia aqui proposta. Penso que a antropologia
sempre andou demasiado obcecada com a ―Ciência‖, não só em relação a si mesma – se
ela é ou não, pode ou não, deve ou não ser uma ciência -, como sobretudo, e este é o real
problema, em relação às concepções dos povos que estuda: seja para desqualificá-las
como erro, sonho, ilusão, e em seguida explicar cientificamente como e por que os
―outros‖ não conseguem (se) explicar cientificamente; seja para promove-las como mais
ou menos homogêneas à ciência, frutos de uma mesma vontade de saber consubstancial
à humanidade – assim a similaridade de Horton, assim a ciência do concreto de Levi-
Strauss (Latour [1991] 1994: 46). A imagem da ciência, essa espécie de padrão ouro do
pensamento, não é porém o único terreno em que podemos nos relacionar com a
atividade intelectual dos povos estrangeiros à tradição ocidental (VIVEIROS DE
CASTRO, 2015, p. 223).
Nesse sentido, tentei levar os humanos de Igarapé Grande a sério e, para mim, estes
podem apresentar algumas saídas a partir de seus próprios não humanos metaconceituais,
formadores de sua ontologia, que, segundo minhas pesquisas, se resumem no valor de pessoas
trabalhadoras e tementes à energia superior, buscando um bem viver manso, longe dos problemas
202
Essa conclusão retiro das conversas que tive com ―seu‖ Dico, Gilberto, Beto, Genisson, dona Bena, dona Tereza,
―seu‖ Manoel, ―seu‖ Antônio (filho da dona Bena), Surucucu, Paraco. Em alguns momentos o discurso da inserção
no sistema e junção de bem viver com possuir dinheiro foi acionada, mas logo descartada quando se entra na questão
dos problemas que a vida na cidade traz (muito barulho, poluição, congestionamento, confusão, stress, segundo as
próprias palavras das pessoas com quem conversei).
203
Como faziam alguns dos nossos muitos fundadores, como Bubber, ao falar da relação entre o eu e o tu, Tarde, ao
comentar a sociabilidade a partir da diferença, logo, a partir de valores diferenciados, ou mesmo Smith e uma das
suas primeiras obras, a ―Teoria dos Sentimentos Morais‖, comentando a simpatia entre as pessoas.
258
da cidade, com amplo conhecimento dos não humanos que os cercam. Eles, como os grandes
autores das Ciências Sociais, estão pensando o bem viver, a ética e a felicidade204.
Para finalizar este capítulo, gostaria de chamar a atenção para um sintomático fenômeno
que vem aumentando nos últimos anos na composição do mundo comum de Igarapé Grande, que
é a questão da segurança pública. No passado, esse metaconceito não fazia parte do coletivo em
estudo, contudo, hoje ele é preocupante. Minha intenção aqui não é abordar o tema em toda sua
complexidade, dado que minha pesquisa liga-se a outros propósitos, mas apenas citar sua
existência e apresentando alguns dados indicativos sobre o tema, coletados em campo.
Na coleta de dados cheguei aos seguintes totais. Treze dos trinta e um interlocutores
relataram terem sido nos rios que ligam as ilhas ao bairro do Curuçambá. Quando questionados
sobre se conheciam alguém que já foi assaltado nos rios, todos disseram que sim. Esses
conhecidos são assim quantificados.
Quadro 06: Número de pessoas conhecidas que foram assaltadas nos rios
Quantas pessoas conhecidas da
comunidade ou da região das ilhas que já Frequência Porcentagem
foi assaltado
Uma pessoa 1 3,2
Mais de 5 pessoas 10 32,3
Mais de 10 pessoas 6 19,4
Mais de 15 pessoas 2 6,5
Mais de 20 pessoas 9 29,0
Mais de 30 pessoas 3 9,7
Total 31 100,0
Fonte: Trabalho de campo (2015)
204
Coletei alguns dados sobre a ideia de felicidade e uma espécie de ―índice de felicidade‖ dos humanos de Igarapé
Grande. Dada as limitações desta pesquisa, não pude expor esses dados e reflexões por aqui, mas, em resumo, eles se
consideram felizes e desatrelam esse conceito a conceitos da modernidade, como consumo, civilização e ciência.
259
Vale observar que a questão da segurança pública poderia ter sido abordada neste trabalho
de modo a demonstrar as diferenças entre sociedades modernas, visto que esta, nos moldes da
nossa sociedade, não se repete em grupos sociais tradicionais, já que estes não são orientados
pelo consumismo, entre outros não humanos explicativos desse fenômeno. A própria ideia de
total segurança, eliminando os riscos, é fruto da modernidade e seu racionalismo exarcebado.
Tudo será devidamente racionalizado e planificado, devendo o Estado (no caso dos socialistas)
e/ou o livre mercado e suas mega empresas os responsáveis por eliminar os riscos.
Em sociedades tradicionais, vive-se constantemente com o risco, habitua-se a ele, tem-se
consciência de sua inevitabilidade, ainda que se possa minimizar suas possibilidades.
Com efeito, os resultados desta etnografia evidenciaram um pouco do descompasso entre
a teoria antropológica, criadora de conceitos como identidade cultural, culturas tradicionais e
moderna, natureza, ecologia, perspectivada com o cotidiano de Igarapé Grande, local permeado
por riscos, cientistas do concreto, humanos e não humanos composição de seu mundo comum.
Essa perpectivação também pode ser feita com o modo de vida moderno, local habitados por
cientistas aparentemente sem riscos, com cientistas peri
260
ou, utilizando o termo de Latour (2012), quais associações são por eles ativadas (este
procedimento, segundo Latour 2004a, seria a essência de uma nova Ecologia Política por ele
proposta).
Pensamento fundamental para a problematização dos binômios acima expostos foi o de
VDC (1996, 2002b, 2004, 2015), que questiona o fazer antropológico hegemônico das últimas
décadas, o qual repousa no binômio natureza (acreditando-a como única) e cultura (acreditando-a
como múltipla, o multiculturalismo). Os questionamentos de Viveiros de Castro surgem a partir
de sua experiência etnográfica junto à sociedades indígenas que, em sua cosmologia, explicam o
mundo por uma perspectiva inversa daquela da Antropologia, lançando mão de um
multinaturalismo em oposição a uma cultura.
Lançou-se mão, ainda, do próprio discurso científico, ainda que não hegemônico, mas
com o estatuto de legitimidade científica da antiga Constituição. Assim, mesmo que dentro de
critério científicos, os modernos apresentam inconsistências em seu modo de vida. Esse
procedimento se deu por meio da introdução de termos da Economia Ecológica, especialmente
seu conceito de entropia, desdobrando-o na concepção de energia vital e não vital que percorre
humanos e não humanos.
Ainda que partindo de dentro do meio científico empírico-racionalista, essa dicotomia
suscitou questionamentos que estão para além das ―descobertas científicas‖, levantando
questionamentos dentro das fronteiras de meta física e das grandes questões da humanidade
como, por exemplo, quem somos, para onde vamos, por que somos diferentes, por que a vida se
multiplica de forma tão diferenciada, essas energias acabam, por que elas existem, qual sua
principal diferença, como transformar energia não vital em energia vital205 etc.
Tudo e todos são energia, somente nos diferenciamos das coisas pela qualidade da
energia: enquanto que uma é vital, a outra não é (assim, talvez a dicotomia não seja humanos e
não humanos, mas entre energia vital e não vital). Assim, será que existe algum tipo de
intencionalidade que une essa energia vital? Em outras palavras, toda energia vital é eivada de
intencionalidade? Gera-se, dessa forma, uma outra dicotomia, mais distante ainda,
intencionalidade e não intencionalidade. Esse tipo de questionamento exige respostas metafísicas,
fora do mundo dos sentidos, estendendo-se para o mundo dos sentimentos, das ideias e das
crenças, ou seja, a ciência não consegue dar respostas a esses questionamentos, sendo necessário
205
No caso da matéria orgânica, ela seria energia vital? Ou apenas um portador, um casulo para essa energia?
262
lançar mão de explicações religiosas e filosóficas. Com efeito, vale mencionar que minha
resposta para esses questionamentos estão atreladas às minhas percepções e crenças pessoais.
Assim, essas respostas estão mais próximas de conhecimentos produzidos pela religião,
folclores, mitos, senso comum, como o candomblé, doutrina espírita, explicações de mundo
indígenas, caboclas, filosofia, metafísica, etc, do que dentro dos domínios da Ciência.
Dessa forma, a Ciência estuda o por que de cada indivíduo agir de maneira diferente. Os
comportamentos são diferentes. Cada ser responde de uma maneira específica às provocações
externas, ainda que você tenha alguns padrões, os mesmos não são definitivos, são temporários,
suscetíveis à mudança e não necessariamente a ―verdade‖, ou seja, já prevendo o futuro. São
apenas padrões que podem ou não ser confirmados.
Com efeito, esta tese não é tão científica como gostaria seu meio, adquirindo muitos
contornos filosóficos, visto que não consegue provar sua hipótese da impropriedade do uso dos
termos natureza e cultura, pois constrói abstrações, não se lança na realidade, mas a partir de uma
realidade (a ―cultura ribeirinha‖, a realidade dos moradores de Igarapé Grande), generalizando
essa possibilidade de construção de novos mundos que não o modo de vida moderno.
Estes novos mundos, segundo os pressupostos desta tese, estão caracterizados pela
continuidade entre humanos, utilizando não humanos como mediadores de suas relações com
outros não humanos, sendo esses primeiros não humanos fabricados pelos seus próprios usuários.
Em outras palavras, este escrito/tese é reflexivo, dialético, não analítico, logo, não científico, mas
filosófico. Assim, a tese não consegue provar nada, mas apenas construir uma linha de raciocínio
em que se defende a não utilização da dicotomia Natureza e Cultura como um mundo possível.
Essa postura traz algumas consequências para o meio científico, seu estatuto de indicador
da realidade verdadeira. A Ciência como um tipo de conhecimento é apenas isso, um tipo de
conhecimento, que detém uma nomenclatura diferente, mas todos são iguais, todos surgem da
curiosidade sobre algum fenômeno que parte da empiria, resultando em uma explicação desse
fenômeno por meio da lógica de causa e efeito, operando a partir de induções, deduções,
abstrações, intuições, observações de semelhanças e diferenças, dando lhe causa, efeito e sentido.
O caráter dogmático que assume a Ciência, e o conhecimento por ela produzido, faz com que a
mesma perca uma de suas principais característica de gênese, a abertura para a dúvida, para
acréscimos no conhecimento por ela produzido.
263
206
Vale dizer que essa energia criadora está presente inclusive entre os modernos, através do Big Bang.
264
trabalhos mecânicos207. A sociedade crê na possibilidade de que um dia existirá uma ―sociedade
plenamente desenvolvida‖ em que existirão apenas trabalhadores intelectuais, ninguém mais terá
que lavar o chão, cozinhar, lavar roupas, bater cimento, etc, essas atividades relacionadas à
serviços braçais e manuais. Eles são vistas de forma pejorativa por nossa sociedade, são
atividades ruins, degradantes, que um dia serão eliminadas pelo avanço da Ciência. Isso é
impossível. Quem fará esses trabalhos? Máquinas, como a rose dos Jetsons? Para uma ―rose‖ ser
construída, buracos foram deixados por aí para extrair metal para as máquinas que vão extrair
metal, que vão transportar esse metal, que vão construir as máquinas, etc. Não que se tenha que
voltar a viver nas árvores, mas com certeza temos que viver com e, porque não, entre as árvores.
Isso é uma necessidade do antropoceno (LATOUR, 2014).
Ainda caracterizando nossa sociedade, pode-se dizer que a mesma tem como um dos seus
cernes o consumismo, ato que prioriza o meio (que é o consumo) em vez do fim (viver bem,
feliz). Com isso aliena-se as pessoas. Assim, eu não faço as coisas porque manda a moral ou a
razão, como queriam os modernos. Se assim fosse, não estaríamos nessa encruzilhada
socioambiental. Minhas ações são determinadas pelas minhas possibilidades de intervenção no
mundo (porque posso) e porque creio nas mesmas, creio no sentido de minhas ações, sendo elas
um fim nelas mesmas.
A própria noção de evolução deve ser usada com cautela. Por que dizer que a humanidade
evoluiu? Por que não utilizar se transformou? Afinal, Darwin dizia que o meio selecionava o
mais apto, mas não o mais evoluído. No mesmo caminho ia Lamarck.
Não que não tenha havido uma transformação, mas por que denominar de evolução,
dando-lhe contornos adjetivistas? E mais, se de fato existe evolução, por que somos nós os
humanos que estamos no topo dessa evolução? Por que são os países modernos os ―mais
desenvolvidos‖?
Do ponto de vista da Ciência, por que as coisas ficam do jeito que estão? Será que no
futuro nós não conseguiremos novos sentidos, que nos deem acesso a novas dimensões da
realidade? Um cachorro percebe a realidade de maneira diferenciada da minha, assim como um
golfinho e assim por diante. Nossos sentidos, ainda que apresentem similaridades, são diferentes,
logo, ainda que compartilhemos um plano de apreensão do real, existe uma dimensão desse
207
Coloco-os aqui na medida em que a Ciência teria como uma de suas proposições, a otimização na produção de
bens, minimizando esforços humanos, assim como os riscos nessas produções.
266
mesmo real que não é por nós captada. Em outras palavras, sentimos o mundo de maneira
diferente. Por que o cachorro não pode sentir o mundo de maneira tão diferente a ponto de ser
evoluído? Por que é o nosso jeito de sentir o mundo que é o mais evoluído? E o perspectivismo
ameríndio que pensa que outros animais são humanos, sentindo o mundo de maneira
diferenciada?
Finalmente vale lembrar que o projeto que entende a Ciência como busca da ordem faliu,
visto as últimas descobertas sobre o big bang e o caos do qual e para o qual caminha o universo.
Ciência como método de estudo para encontrar a causa das coisas também faliu, visto que,
se viemos e vamos para o caos, como encontrar causa e efeito em uma realidade que tende a
aumentar o seu nível de caos, que multiplica as exceções, deixando a regra para trás? A Ciência
procura sempre a regra, mas as exceções multiplicam-se cada vez mais.
A própria vida, como é explicada pela própria Ciência Biológica, nada mais é que uma
expressão da multiplicação das exceções, na media em que as espécies vão transformando-se ao
longo do tempo, saindo de um caso para muitos outros.
Aqui pode-se associar essa ideia com a ideia de rizoma de Deleuze e Guatarri (2011), no
sentido de que a vida forma esse rizoma de exceções. A regra é a multiplicação da exceção, logo,
a regra é a multiplicação. E como não associar com a ideia de rede? Como não perceber o rizoma
como uma rede ou vice e versa? Ou mesmo a ideia de simetria, que se multiplica? Ou mesmo dos
fractais.
Pode-se, ainda, retornar a ideia de dom (MAUSS, 2013), como impulsionador dessas
redes. Se não fosse a dádiva, as redes nunca seriam criadas. Se não fosse a necessidade de troca
de humanos e não humanos, estes ficariam inertes, sem circular e sem formar redes tão
complexas como a cadeia alimentar ou a formação de partículas.
Finalmente, sobre isso se trata a vida e o conhecimento, a troca, seja de experiências, de
visão de mundo, de bens, devemos trocar, mas sem esquecer de permitir que o outro troque
também.
267
208
Para a formulação deste apêndice, lancei mão de trabalhos tanto do doutorado, como do mestrado e até mesmo de
minha graduação, dado que parte de alguns deles foi objeto de publicação. Uma das pessoas responsáveis por minha
formação que me acompanhou desde então (ou eu a acompanhei, creio que seja mais provável, prudente e menos
presunçoso pensar dessa maneira) foi a professora Carmem Izabel Rodrigues, na condição de professora das
disciplinas de Teoria Antropológica e Organização Social e Parentesco, na graduação e doutorado, respectivamente.
Revisando meus trabalhos de graduação, percebo o formato estratégico de como eram pensadas essas disciplinas de
modo a se complementarem e darem um sólido conhecimento da Antropologia clássica aos alunos e alunas, por meio
das resenhas solicitadas pela professora, nos forçando a refletir sobre quais as contribuições que cada Antropólogo
deixava para a disciplina. Sem esses ensinamentos e estratégias reflexivas, eu não teria logrado este capítulo, menos
ainda esta tese. À professora Carmem meu muito obrigado. Deixo registrado, ainda, os protocolares ―erros e
omissões são, obviamente, de minha responsabilidade‖, na medida em que a professora Carmem era responsável por
me apresentar o panorama geral, o cenário mais amplo da teoria antropológica, cabia a mim empreender jornada de
modo a conhecê-lo mais a fundo.
209
Não sei precisar a fonte, mas em minha formação como antropólogo, tomei conhecimento de que o termo ―índio‖
seria algo homogeneizador e simplificava a diversidade de etnias das quais deveria ser representativo, assim como
assumia uma carga pejorativa, sendo associado à culturas rústicas, tribais, logo, à uma lógica evolucionista. Nesse
sentido, deveríamos utilizar o termo ―indígena‖. Uso o termo índio na medida em que me parece que o termo
―indígena‖ não trouxe muitas diferenciações, perdendo, ainda, sua carga não pejorativa por ser evolucionista, mas
apelativa por ser radicalmente diferente da cultura moderna. Opto, ainda, em utilizar esse termo, em virtude de
Viveiros de Castro (2006) utilizá-lo.
210
Na medida em que assim o faz Viveiros de Castro (2002, 2013, 2015), trazendo para o pensamento antropológico
as contribuições do pensamento ameríndio, resultando em uma séria crítica à leitura dicotômica ente
multiculturalismo e unidade humana biológica, como será apresentado mais adiante.
268
Cosmologia de outras sociedades com a própria teoria antropológica, entendendo-a como mais
uma maneira de explicar o mundo, assim como a Cosmologia de seus ―objetos de estudo‖, ou,
como já dito anteriormente, atualiza-se e problematiza-se o entendimento antropológico a partir
do pensamento nativo.
Com efeito, explico as transformações da Antropologia como Ciência desde seus
primórdios até a ruptura epistemológica que Geertz pôs em prática com sua abordagem
interpretativista da cultura. Para expor os autores aqui trabalhados, utilizei a estrutura
tradicionalmente pensada por Durkheim para uma Ciência: teoria, objeto e método, reiterada por
outros autores (ALVES, 2007; DURKHEIM, 2002; MARQUES NETO, 2001; BLANCHÉ,
1988; FERRAZ JUNIOR, 1977). Nesse sentido, busco os meta conceitos entendidos como objeto
da Antropologia, seus métodos de coleta e análise de dados e, finalmente, quais eram seus
propósitos e meta conceitos explicativos. Em resumo, para cada escola estudada, quatro serão os
procedimentos: a) entender seus objetivos como Ciência (quais perguntas os moviam e/ou quais
meta conceitos eram ativados para formular e responder essas perguntas?); b) seus procedimentos
(métodos); c) objetos de estudo (cultura e humanidade em geral, como regra geral para as
diversas escolas antropológicas); e d) quais as contribuições que se podem utilizar na atual
prática antropológica. Considerando que se tem o termo cultura como o fenômeno fundador da
disciplina antropológica, uma atenção especial será dada a ele na condição de um meta conceito
que perpassa, ao fim e ao cabo, esta disciplina científica.
Divido o capítulo em duas partes. A primeira passa pelas principais escolas de
pensamento antropológico, a saber: a escola evolucionista, difusionista/culturalista, funcionalista,
estrutural-funcionalista e estruturalista, ademais de um pequeno sub-tópico reservado aos
primórdios da Antropologia como disciplina científica, elaborando uma apertada síntese dos
preparativos históricos para o seu surgimento. Reservei a segunda parte deste capítulo para
analisar a ruptura epistemológica promovida por Geertz, com a denominada escola
interpretativista, de modo a situar o leitor do entendimento que este trabalho tem sobre as
contribuições de Geertz para a Antropologia e seus desdobramentos no ofício antropológico.
Considerando que o histórico da teoria antropológica é um tema que já foi repisado
inúmeras vezes na produção antropológica em geral, a retrospectiva tem um caráter fortemente
introdutório, permitindo-se a citação e análise de apenas um autor por escola. Observa-se ainda
que estas escolas apresentavam uma considerável unidade teórica, entretanto, muitas eram as
269
vozes destoantes, não só no formato de novas escolas, mas também de autores de dentro delas
mesmas. Nesse sentido, ainda que exista algumas produções que não se encaixavam nessa
classificação escolástica, a mesma é aceita com certa unanimidade no pensamento antropológico
atual, ou, nas palavras de Cardoso de Oliveira (1988), podem ser entendidas como ―casos
exemplares‖.
Finalmente, vale justificar que utilizo esta característica generalizadora de ―escolas de
pensamento‖ ou ―correntes teóricas‖ para que a pesquisa possa seguir com seu propósito
principal que está menos ligado a uma reconstituição histórica acurada da teoria antropológica,
que à problematização dessa mesma pesquisa na atualidade, preparando-a para ―[...] assumir
integralmente sua verdadeira missão, a de ser a teoria-prática da descolonização do pensamento‖
(VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 20).
211
No sentido de um treinamento intencional, uma preparação com procedimentos a serem seguidos, como foi o caso
da escola Evolucionista, ainda que feita com altas doses de etnocentrismo.
270
Entretanto, como dito por um dos decanos da Antropologia no Brasil, Roberto da Matta
(1993, p. 86): ―[...] não acho que o encontro com o <<começo>> seja uma garantia para o sucesso
intelectual de nossa empresa, como também não creio que uma exaustiva lista de fundadores da
disciplina possam ampliar nosso entendimento de suas perspectivas [...]‖. O que importa para Da
Matta é a presença de uma atitude antropológica, uma postura relativista, uma deliberada
tentativa de descrever o ponto de vista do outro em seus próprios termos, ―A perspectiva é, pois,
deliberadamente ampla e abrangente‖ (DA MATTA, 1993, p. 87). É mais ou menos essa mesma
relativização radical, ou uma exaustiva busca pela alteridade que um dos discípulos de Da Matta
irá desenvolver nas últimas décadas que nos precede (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, 2015)
alcançando eco internacional, contudo, por hora, retorna-se à descrição do início da Antropologia
como um projeto de disciplina científica212. Esta surge somente em meados do século XIX,
212
E a contribuição de nossos pai-fundadores à nossos mitos de origem.
271
Outra importante característica comum destes autores, refere-se ao fato de que raramente
empreendiam viagens à campo, analisando dados de segunda ou mesmo terceira mão, relegando
esta atividade de coleta de dados à viajantes, missionários ou mesmo cientistas de outras áreas
213
Aqui começa a ser criado o discurso da Antropologia como Ciência, filha da modernidade europeia. Nesse
sentido, como toda Ciência, a Antropologia lança mão desse discurso colonizador e, mesmo após mais de um século
em um suposto exercício de ―relativização‖, sua prática é mais colonizadora do que desejam alguns antropólogos e,
mesmo, do que imaginam outros. Registra-se, aqui, que a ideia de ―modernidade‖ ocupa um importante papel neste
trabalho, entendendo-a como um discurso que é eivado de premissas ontológicas que exorcizariam a natureza do ser
humano, por meio da cultura, permitindo que este ser torne-se ―civilizado‖ (LATOUR, 2004 a, 2013 a; VIVEIROS
DE CASTRO, 2012, 2015). Este tema será debatido de maneira mais detida no próximo capítulo.
272
214
Como foram chamados nas gerações posteriores de antropólogos.
215
Vale ressaltar que essa característica da escassez de campo dos antropólogos evolucionistas deve ser relativizada
na medida em que alguns desses teóricos chegou a ter contato com outras culturas, produzindo preciosos registros
das mesmas. Como exemplo cita-se o caso de Morgan e Tylor. O primeiro construiu, ao longo dos anos, uma forte
relação com sociedades indígenas iroquesas, chegando ao ponto de ser adotado como guerreiro Seneca do clâ do
Falcão, em outubro de 1846, sendo considerado o maior especialista americano nos iroqueses. Tylor, por sua vez, fez
registros de um período de quatro meses que passou no México, ainda em sua juventude, no ano de 1856, resultando
no livro ―Anahuac:or, Mexico, Ancient and Modern‖ (Anahuac: ou, México, Antigo e Moderno) publicado em 1861
(CASTRO, 2005).
273
Essa era a grande missão da Antropologia como Ciência216: a busca de leis gerais que
explicassem a origem de seu objeto de estudo, o ser humano e suas variações ao longo do tempo,
classificando a diversificação da cultura217 humana em selvagens, bárbaras e civilizadas. Quanto
à sua própria cultura, sua própria civilização, que ocupava o mais alto degrau dentro da escala
evolutiva humana, cabia à sociologia pronunciar-se sobre, ainda que os antropólogos
evolucionistas se reservassem o direito de explicar a existência de resquícios de estágios
anteriores na cultura europeia civilizada, como era o caso de crendices que ainda persistiam na
sociedade moderna, lançando mão de conceitos como ―folclore‖ (FRAZER, 2005, p. 112) ou
―sobrevivência‖ (TYLOR, 2005, p. 87).
Assim, esta corrente teórica pensou a Antropologia como a Ciência do ser humano em sua
totalidade, tendo como propósito classificar a diversidade cultural da espécie humana em
selvagens, bárbaras e civilizadas, ainda que fossem classificados, do ponto de vista da natureza,
em uma única espécie, a espécie humana. Como método utilizavam a comparação de dados de
segunda mão, para então classificar, ainda que essas comparações e classificações partissem de
premissas etnocêntricas, ou, no caso da coleta de dados, estes fossem descontextualizados de sua
função local218.
Vale observar que neste ponto da história da Antropologia como Ciência criasse a
premissa de que o ser humano é o mais evoluído de todos os seres e que a sociedade europeia e
parte da norte americana, são aqueles que ocupam o mais alto posto da humanidade. Em verdade,
este mito foi tão difundido que até os dias de hoje é propagado em algumas escolas de ensino
médio e mesmo superior da sociedade ―moderna‖219. O mito da modernidade ainda vive no
pensamento das pessoas, mesmo que essas ou não reflitam sobre o mesmo, não o entendendo, ou
216
Como todas as outras Ciências da época. A Ciência como um projeto de conhecimento tinha essa missão:
entender a origem das coisas e sua variação, buscando leis gerais de funcionamento da realidade, seja ela cultural ou
natural, social ou das coisas, subjetiva ou objetiva, e assim em dicotomias sucessivas e complementares (LATOUR,
2004, 2013).
217
Sempre no singular, nunca no plural, já que está variava segundo uma escala evolutiva, mas ainda assim era
única.
218
Na época essa característica foi fortemente criticada por Boas e, posteriormente, por Malinowski.
219
O que dizer das classificações da Teoria Econômica em países desenvolvidos em detrimento de países sub
desenvolvidos ou em vias de desenvolvimento? Não seria essa outra maneira de se dizer países evoluídos
(civilizados) e países não evoluídos (selvagens, bárbaros, não civilizados)? Ainda uma crença evolucionista? Quais
os critérios que classificam um país como desenvolvido e outro como subdesenvolvido? Crescimento econômico-
financeiro? Acesso das pessoas à ensino superior? Muitos hospitais? Produto Interno Bruto? Distribuição de
―riqueza‖ (que tipo de riqueza? Financeira?). Porque não Felicidade Interna Bruta (CAVALCANTI, s/ ano)? Porque
não amplo conhecimento dos não humanos locais (GORDON, 2006)? Porque não domínio sobre meu corpo, minha
saúde?
274
não tenham consciência de seu desdobramento, a saber, uma postura colonizadora que perdura
até os dias de hoje na postura da Ciência como local de construção de conhecimento legítimo e,
por isso, unicamente válido (segundo seu próprio discurso).
Outro ponto a ser destacado refere-se ao fato de que há uma forte confusão conceitual
entre natureza e cultura dentro dos autores evolucionistas, na medida em que não fica clara a
natureza da Antropologia como Ciência: esta deve estudar a cultura dos selvagens e bárbaros,
mas estes não seriam àqueles mais próximos da natureza humana? Logo, não seria, então, a
Antropologia responsável pelo estudo da natureza humana? Estes conceitos ficam imbricados de
tal modo que tornam-se caixas pretas, no sentido colocado por Latour (2000).
Salienta-se, ainda, o contexto que as ciências vivam na época: seus praticantes ainda
estavam restritos à um seleto grupo de pessoas que se subdividia em disciplinas e que pouco se
distinguiam uma das outras. Um advogado poderia fazer preciosas contribuições no campo da
filosofia, da química, da física, da biologia e vice-versa. Esse foi o caso de Morgan que fez
extensos registros sobre o modo de vida do castor americano e de diversas etnias indígenas do
seu tempo, mesmo sendo advogado de formação.
Assim, somente no início do século XX que a distinção entre os vários ramos da Ciência
começa a ser feita de maneira mais clara, consciente e rígida, limitando o estudo e a pesquisa de
cada cientista à sua própria área. Antes disso, os cientistas tinham, incluindo os antropólogos
evolucionistas, uma formação ampla e diversificada, enveredando em pesquisas diversas que não
se limitavam à sua formação de origem. Não existiam Cientistas exclusivamente Sociais ou
Naturais, mas sim disciplinas como História Natural, Filosofia, Biologia, Física, que abordavam a
realidade de maneira holística, como um todo, mas que foram se especializando e
compartimentalizando com o passar do tempo.
Essa compartimentalização, mesmo tendo início com Descartes, somente pode ter seu
corolário no início do século XX em virtude dos desdobramentos da revolução industrial que
potencializou um processo de alienação de tudo e de todos, por meio do dinheiro
(impessoalizando as relações pessoais e com as coisas, transformando tudo e a todos em
mercadoria), da propriedade privada (alienando indivíduos e grupos sociais da terra e recursos
naturais, ou, em um vocabulário marxista reducionista, dos meios de produção) e, finalmente,
com a divisão da sociedade em classes (alienando as pessoas até mesmo de sua força de trabalho
na sua condição plena). Tal situação fez com que as pessoas perdessem o contato com tudo e com
275
todos, desde o processo de produção, ao processo de troca de bens, sejam estes materiais ou
simbólicos.
Finalmente cabe observar que a Ciência sofrera um radical corte, ainda em sua origem,
como mostra Latour (2013 a, 2004 a), na medida em que separa a Ciência da Política e vice-
versa, exemplificando tal fato por meio do episódio da bomba de ar e do leviatã220, nesse sentido,
as Ciências Humanas acabaram demorando a aparecer na condição de projetos de conhecimento
científicos, ou seja, em busca de leis e regularidades que regem um fenômeno específico dentro
da realidade como um todo.
220
Latour (2013 a) mostra como Hobbes e Boyle misturam a fabricação da Ciência com a fabricação da política, por
meio do exemplo do Leviatã e da Bomba de ar. Hobbes utilizava argumentos matemáticos para justificar seu leviatã,
e Boyle utilizava testemunhas oculares para comprovar sua bomba de ar, ou seja, utiliza-se a Ciência na política
(matemática no Leviatã) e a política na Ciência (as testemunhas da bomba de ar).
276
Em suma, a Antropologia de Boas era composta por uma postura relativista, que entende
a espécie humana por meio de uma unidade biológica e diversidades culturais. Essas culturas
devem ser estudadas por meio de uma postura relativista, atendo-se às explicações locais para os
fenômenos culturais locais. Essas explicações eram sempre precedidas por um rigoroso trabalho
de campo que também adotava a postura relativista na coleta de seus dados, ficando como missão
futura a busca por leis, regularidades e teorias221.
221
Considerando as limitações espaciais e de propósito deste trabalho, algumas importantes contribuições de Boas
ficaram de fora do tópico que seguiu. De toda sorte, cito nomeadamente estas contribuições. O métodos: histórico do
qual lança mão para diferenciar-se dos evolucionistas (que utilizavam a comparação entre sociedades); a teoria
difusionista para explicar as variações e similaridades culturais; estudos que levam em conta a relação com o meio
ambiente como uma variável de forte influência, assim como as necessidades bio-fisiológicas e até mesmo mentais.
277
222
Para confirmar essas afirmações, basta verificar a preocupação com que o autor reflete sobre o trabalho de campo,
reservando todo o primeiro capítulo da sua primeira etnografia para a descrição de como foram coletados e
formulados os dados apresentados no ―Argonautas do Pacífico Ocidental‖.
278
dos próprio humanos estudados, e não a partir da visão que o pesquisador tem de humano e não
humano.
Retornando à teoria funcionalista de Malinowski, este autor observava que a Antropologia
era o ramo mais amplo das humanidades223, mas distinguia-se das outras na medida em que tinha
a cultura como seu objeto de estudo, devendo o antropólogo manter uma postura de relativização
no estudo e posterior relato das funções que as instituições sociais tinham em suas respectivas
culturas. Assim, a um só tempo, Malinowski definia sua teoria e seu método: a postura
relativizadora e de pensar funções para as instituições sociais estudadas como método, munido de
toda a teoria funcionalista nesse processo224.
223
Termo utilizado pelo próprio Malinowski (1975), referindo-se ao ―estudo do homem‖, onde estariam outras
ciências e formas de conhecimento como a Arqueologia, Pré-História, Filosofia, Estudo das Religiões, etc. Nesse
cenário, a Antropologia seria ―[...] a ciência do homem em geral e como a mais ampla entre as disciplinas do
humanismo não considerada como tais, foi a última a aparecer‖ (MALINOWSKI, 1975, p. 13).
224
Para fins de registro, observo que Malinowski (1976), em início de carreira, usava a noção de ―verdadeiro espírito
do nativo‖ (p. 20), ―tipo fundamental de atividade humana‖, ―atitude mental‖ (p. 368), ―atitude mental fundamental‖
(370), ao tratar da dicotomia entre natureza e cultura humana. O autor não deixava claro qual dos termos estava
usando, mas, em meu entendimento, utilizava ambos, no sentido de pensar a cultura como a própria natureza
humana, um olhar parecido ao formulado por Levi-Strauss (1976). Este, por sua vez, entendia a cultura humana
como a manifestação da natureza humana, sendo esta entendida como um inconsciente subjacente da própria
humanidade (entre outros significados adotados por Levi-Strauss, ainda que sendo este o principal), a ser descoberto
pelo antropólogo. Essa postura de Malinowski desaparece em uma de suas últimas obras (―Uma Teoria Científica da
Cultura‖, MALINOWSKI, 1976), mantendo sua noção de cultura alinhada exclusivamente à sua teoria das
necessidades, no sentido comentado no corpo deste texto.
280
O termo grifado nos dá a postura que R.B. assumia em seus estudos: encontrar princípios
estruturais gerais da humanidade, utilizando meta conceitos como processo social, estrutura
social, função social, sistema social, entre outros226 (teoria), comparando e analisando (método)
sistemas sociais de povos primitivos (objeto de estudo)227.
225
Klaas Woortman também enfatiza a importância do estudo do parentesco outrora dentro da teoria antropológica:
―... o parentesco constituía a principal área de preocupação da antropologia, e grande parte da teoria antropológica foi
gerada, direta ou indiretamente, a partir dos estudos de parentesco‖ (WOORTMAN, 1977, p. 149).
226
Muitos destes podem ser claramente definidos e visualizados em R.B. (1973), especialmente em sua Introdução.
227
Para fins de registro, a temática do parentesco em R.B. e sua perspectiva funcional-estruturalista estava centrada
na noção de descendência. R.B. (1995) entendia que os indivíduos são parentes daqueles que são seus
ascendentes/descendentes ou então quando descendem da mesma pessoa (relação de siblings, irmãos, cognática), nas
palavras do autor: ―Duas pessoas são parentes quando uma descende da outra, como por exemplo, um neto é
descendente de um avô, ou quando ambas são descendentes de um antepassado comum.‖ (1995, p.62). Mais à frente
o autor chama a atenção para o fato do conceito de parentesco não ser sinônimo de consanguinidade. Em algumas
sociedades o parentesco nem sempre se dá em função da consanguinidade, sendo possível exemplificar tal fato com a
situação de adoção presente em nossa sociedade: os pais, socialmente aceitos, não são os pais biológicos do ego, ou
seja, o parentesco é algo construído socialmente.
281
Com efeito, R.B. não utilizava o termo cultura como eixo central de suas análises, dada a
sua polissemia, utilizando termos como forma de vida social, processo social, sistemas sociais,
entre outros, como equivalentes. Nas palavras do próprio R.B.
Os antropólogos empregam a palavra <<cultura>> com sentidos diferentes. Parece-me
que alguns a empregam como equivalente ao que designo por forma de vida social. [...
Outros referem-se] a um processo, e podemos defini-lo como o meio pelo qual uma
pessoa adquire conhecimento, especialidade, idéias, crenças, gostos e sentimentos,
mediante contato com outras pessoas, ou pelo trato com outras coisas, tais como livros
ou obras de arte. (R.B., 1973, p. 13-14)
De toda sorte, R.B. operava sob o manto da distinção entre natureza e cultura, dissecando
o termo cultura com a formação de outros termos, assim como mesclando-o com outros, mas,
ainda assim, distinguindo o elemento social dos seres humanos (sua cultura) do elemento social
de outros seres vivos (seus instintos, suas naturezas), pois
[...] É em razão da existência de cultura e tradições culturais que a vida social humana
difere muito marcadamente da vida social de outras espécies animais. A transmissão dos
modos aprendidos de pensar, sentir e atuar constitui o processo cultural, que é aspecto
específico da vida social humana (R.B., 1973, p. 14).228
como uma estrutura presente no inconsciente do ser-humano, estando por trás da realidade
objetiva. Assim, se em Radcliffe-Brown a estrutura é percebida como a própria realidade social,
em Lévi-Strauss ela está por trás da realidade objetiva, as relações sociais seriam a matéria prima
dessa estrutura que estaria determinada no inconsciente geral do ser humano. As relações sociais
com as quais as sociedades se organizavam e se reproduziam nada mais eram do que reflexos da
estrutura inconsciente, esta sim perceptível somente através das recorrências de determinados
fenômenos sociais nas mais diferentes sociedades. Assim, pesquisavam-se as culturas humanas
para encontrar seu inconsciente geral, as regularidades que ditam seu comportamento ou, em
outras palavras, a natureza do ser humano.
Levi-Strauss (1976) estabelece uma simetria entre Natureza e Cultura, observando que
não cabe à Antropologia falar em um elo perdido entre os dois, mas melhor seria ter como papel
estabelecer o que é Natureza e o que é Cultura, pois
Simetricamente, é fácil reconhecer no universal o critério da natureza. Porque aquilo que
é constante em todos os homens escapa necessariamente ao domínio dos costumes, das
técnicas e das instituições pelas quais seus grupos se diferenciam e se opõem. (LEVI-
STRAUSS, 1976, p. 47).
Utilizando uma analogia do próprio autor, o etnólogo deve extrair da cultura a ―[...]
estrutura inconsciente, subjacente a cada instituição e a cada costume [...]‖, assim como o
linguista faz quando reconhece a presença dos mesmos fonemas ou a utilização dos mesmos
pares de oposição, pois este ―[...] não compara seres individualmente distintos: é o mesmo
fonema, o mesmo elemento, que lhe garante nesse novo plano a identidade profunda de objetos
empiricamente diferentes.‖ Assim, se trata de um único fenômeno, não de dois fenômenos
semelhantes, logo, o etnólogo e o linguista estudam ―[...] A passagem do consciente ao
inconsciente [que] é acompanhada por um progresso do específico em direção ao geral‖ (LEVI-
STRAUSS, 2012, p. 46). Para melhor ilustrar essa dicotomia, Levi-Strauss usa o exemplo do
parentesco e da proibição do incesto como um fenômeno ao mesmo tempo biológico (natural) e
cultural.
Nos capítulos 1 e 2 de seu clássico ―As Estruturas Elementares do Parentesco‖ o autor
discute o fenômeno do incesto, ou seja, a razão da existência da regra que proíbe relações
matrimoniais/sexuais entre pais/mães, filhos/filhas e irmãos/irmãs. A proibição do incesto varia
de sociedade a sociedade ou de grupo social a grupo social, mas o fato é que essa regra pode ser
encontrada em todas as sociedades humanas ainda que variando em seus moldes de aplicação. A
283
conclusão que o autor chega após algumas considerações demonstra que o incesto possui a
universalidade que o caracteriza na dimensão da natureza, porque encontrado em todas as
sociedades humanas, mas ao mesmo tempo possui o caráter coercitivo das leis e instituições que
o definem como um fenômeno social. O ponto fundamental, portanto, é perceber que a proibição
do incesto resume uma questão de duas ordens, mais precisamente ele está no limite dessas duas
ordens, a biológica (natural) e a cultural.
Assim, Levi-Strauss entende a Natureza humana como regularidades identificadas na
diversidade cultural humana, como é o caso do incesto. Existe uma regra inconsciente, que é a
proibição do incesto (regra da natureza, que é universal), por outro lado, existem regras culturais
que particularizam essas regras universais, ditando quem serão as pessoas proibidas.
Para se entender o que propõe o autor é fundamental que se tenha em mente a sua
concepção sobre matrimônio. Enquanto os autores por ele citados entendiam o casamento como a
união entre duas pessoas com o intuito da procriação, além da própria reprodução cultural,
econômica, etc., Lévi-Strauss vê no casamento não a união de duas pessoas, mas a união entre
grupos, que assim se relacionam como estratégia de sobrevivência. Isso leva a uma questão mais
abrangente que diz respeito à reciprocidade. A aliança é por ele vista como a forma primária de
reciprocidade.
Percebendo a proibição do incesto como regra fica claro que se inicia aí um começo de
organização social. Mas ao mesmo tempo em que o tabu do incesto é uma proibição ele se
caracteriza também, dentro de um outro prisma, como uma prescrição. Se há por um lado a
proibição de um círculo de parentes para se contrair matrimônio, imediatamente se está
prescrevendo um outro grupo.
A partir do momento em que proíbo a mim mesmo o uso de uma mulher, que com isso
passa a ser disponível para um outro homem, há, em algum lugar, um homem que
renuncia a uma mulher que, por esse fato, torna-se disponível para mim. O conteúdo da
proibição não se esgota no fato da proibição. Esta só é instaurada para garantir e fundar,
direta ou indiretamente, imediata ou imediatamente, uma troca (LÉVI-STRAUSS,
1976, p.91).
Dessa forma, um indivíduo transita em uma sociedade que permite ora uniões endogâmiocas, ora
exogâmicas dependendo do sistema de parentesco230.
Assim, a partir dos parágrafos que se passaram, afirmo que Levis-Strauss entendia a
Antropologia Social (ou Etnologia, como ele mesmo preferia chamar), como uma metade do
estudo da natureza humana (ou seu inconsciente subjacente) e de sua diversidade cultural, sendo
a etnografia a outra parte desse estudo. Enquanto esta ―[...] consiste na observação e análise de
grupos humanos tomados em sua especificidade [... ] visando a restituição, tão fiel quanto
possível, do modo de vida de cada um deles.‖ (p. 18-19), aquela teria como missão comparar
―[...] os documentos apresentados pela etnografia‖ (p. 19)
Assim, L.S. tem como objeto de estudo da Antropologia as culturas primitivas, buscando
regularidades nessas culturas para, assim, encontrar inconscientes subjacentes da humanidade (ou
talvez nossa natureza), por meio de estudos etnográficos e suas respectivas comparações.
Com efeito, L.S. fez parte de uma geração de antropólogos em que existiam muitas
―culturas tradicionais‖ à margem da modernidade. Não tenho dados históricos precisos sobre a
gradual expansão das redes de comércio proporcionados pelo capitalismo ao redor do mundo,
contudo é fato que em meados do século XX o modo de vida do europeu moderno já se expandia
para muitas outras cidades do mundo, ademais da Europa e EUA. As redes de comércio
capitalistas já alcançavam e influenciavam comunidades amazônicas (ARAMBURU, 1994),
aldeias australianas (FIRTH, 1974), enquanto que a organização política de Estados Nação já
afetavam sociedades indígenas no Brasil (CLASTRES, 2013231) e na África (GLUCKMAN,
1987).
A colonização da maior parte das culturas primitivas, tradicionais, rústicas e toda sorte de
cultura não moderna por parte dos modernos, estava sendo dada, ainda que não conscientemente,
mas oficialmente, por meio do processo de organização política de todos os territórios de nosso
planeta em Estados-nações, reproduzindo o modelo europeu. Posteriormente o Estado-nação
entrava na rede de produção e consumo de bens do sistema de organização econômico do
230
Com efeito, ainda que toda a obra estruturalista de L.S. esteja pautada na oposição entre natureza e cultura, são seus próprios
escritos que mostram algumas das inconsistências dessa dicotomia. Como exemplo é possível citar o seu clássico texto ―A ciência
do concreto‖ (LEVIS-STRAUSS, 1989), em que o autor exalta as faculdades e capacidades mentais de classificação do
pensamento selvagem, fazendo um passeio sobre as várias maneiras de classificação que a mente não moderna formulou e da qual
é herdeira. Outro escrito deste autor que problematiza a noção de diversidade cultural e unidade biológica, refere-se ao texto
―Raça e história‖ (LEVI-STRAUS, 2013). A problematização dessa dicotomia é melhor desenvolvida por Descola (2011).
231
Digno de nota mencionar que este autor, ainda que não tenha sido constantemente cotado por este trabalho, foi
uma importante fonte inspiradora, na medida em que apresenta interessantes ponderações sobre a formação do
Estado e da Ciência como instrumentos de colonização do pensamento e da prática dos nativos.
285
232
Com algumas exceções ligadas aos países de regime socialista.
233
Dentre esses autores, cita-se Ricoeur, Wittgenstein, Burke e Langer. Com efeito, entende-se que os cientistas
sociais da atualidade devem lançar mão desses autores para uma leitura mais precisa da realidade social, dentro do
atual cenário de unificação das Ciências Humanas (BAIARDI, 2011), ou, talvez, como previsto por Deleuze e
Guatarri (2011), uma rizomatização.
286
O primeiro livro de Geertz é publicado em 1973 e traz o inicio de sua teoria sobre a
antropologia interpretativista. É com esta obra que se fala na ruptura epistemológica que Geertz
realiza no âmbito da Antropologia como Ciência. Entre outras discussões o autor coloca em
ênfase a necessidade de ser feito um trabalho de campo de extrema qualidade e como este
trabalho de campo será apenas uma interpretação da realidade estudada e não a realidade em si.
Com esta discussão Geertz coloca o foco da Antropologia não mais no inconsciente geral
da humanidade, no qual Levi-Strauss estava preocupado em encontrar, mas sim na ideia de que o
objeto de estudo da Antropologia seria a cultura. Para tanto, Geertz precisava criar um conceito
de cultura mais preciso que o ―todo mais complexo‖ de E. Tylor. Assim, para Geertz, cultura
seriam teias de significados dentro as quais o homem se movimenta. Nas palavras do autor:
O conceito de cultura que eu defendo... é essencialmente semiótico. Acreditando, como
Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo
teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e as suas analises; portanto, não como
uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa á
procura do significado (GEERTZ, 1993, p. 15, grifo nosso).
Geertz dá continuidade ao seu texto explanando sobre o que seria uma descrição densa.
Para tanto, cita a discussão proposta por Gilbert Ryle e as várias possibilidades de significado que
o ato de contrair as pálpebras pode ter: uma piscadela, uma piscadela burlesca, um ensaio para
uma piscadela, um tique nervoso, a imitação de um tique nervoso, etc. Uma descrição superficial
seria a contração das pálpebras, enquanto que a descrição densa seria a interpretação dessa
piscadela, conferindo-lhe algum tipo de significado. Nas palavras do autor:
O caso é que, entre o que Ryle chama de ―descrição superficial‖ do que o ensaiador
(imitador, piscador, aquele que tem o tique nervoso...) está fazendo (―contraindo
rapidamente sua pálpebra direita‖) e a ―descrição densa‖ do que ele está fazendo
(―praticando a farsa de um amigo imitando uma piscadela para levar um inocente a
pensar que existe uma conspiração em andamento‖) está o objeto da etnografia: uma
hierarquia estratificada de estruturas significantes em termos das quais os tiques
nervosos, as piscadelas, as falsas piscadelas, as imitações, os ensaios das imitações são
produzidos, percebidos e interpretados, e sem as quais eles de fato não existiriam
287
(nem mesmo as formas zero de tiques nervosos as quais, como categoria cultural, são
tanto não-piscadelas como as pisadelas são não-tiques), não importa o que alguém
fizesse ou não com sua própria pálpebra. (GEERTZ, 1993, p. 17).
Mais adiante o antropólogo dá a sua própria piscadela, transcrevendo um relato dos seus
cadernos de campo. O relato, em síntese, expunha as confusões de significados de um contato
intercultural entre um judeu, que teve seus carneiros roubados por berberes, os berberes ladrões
de carneiros e a ineficaz administração colonial francesa. Quando Cohen, o judeu roubado,
recupera seus carneiros da tribo berbere em função de um antigo código de conduta informal, a
administração colonial francesa não acredita em Cohen, prendendo-o e confiscando seus
carneiros. Os franceses acreditavam que o judeu era, na verdade, um espião das tribos berberes.
Após ser solto, Cohen recorre ―... ao coronel da cidade, um francês encarregado de toda a região,
para queixar-se. Todavia, o coronel responde ‗Nada posso fazer a respeito, Não é meu
problema‘‖ (GEERTZ, 1993, p. 19). Em outras palavras, houve um desentendimento cultural.
Através desse relato, Geertz põe em evidência ―... o sentido correto do muito que existe na
descrição etnográfica... ela é extraordinariamente densa.‖. Assim,
Nos escritos etnográficos acabados, inclusive os aqui selecionados, esse fato – de que o
que chamamos de nossos dados são realmente nossa própria construção das construções
de outras pessoas, do que elas e seus compatriotas se propõem – está obscurecido, pois a
maior parte do que precisamos para compreender um acontecimento particular, um
ritual, um costume, uma idéia, ou o que quer que seja está insinuado como informação
de fundo antes da coisa em si mesma ser examinada diretamente. (GEERTZ, 1993, p.
19).
Em termos mais simplificados, Geertz traz o fazer etnográfico (ou, como usualmente
falamos, o ― trabalho de campo‖ ou o ―campo‖) para a teoria antropológica, problematizando a
etnografia, pensando-a como uma descrição densa. Com isso, este antropólogo promove a ruptura
epistemológica dentro da antropologia, na medida em que, ademais de problematizar o fazer
etnográfico em termos epistemológicos e deslocar a noção de cultura para campos semióticos e
das teorias do significado, concede à Antropologia a condição de uma ciência interpretativista,
em busca de significados, e não uma física social em busca de leis gerais da cultura e das
sociedades humanas.
Assim, Geertz cita Wittgenstein para jogar luz nos desdobramentos da ideia de uma
antropologia interpretativista:
Falamos... de algumas pessoas que são transparentes para nós. Todavia, é importante no
tocante a essa observação que um ser humano possa ser um enigma completo para outro
ser humano. Aprendemos isso quando chegamos a um país estranho, com tradições
288
inteiramente estranhas e, o que é mais, mesmo que se tenha um domínio total do país.
Nós não compreendemos o povo (e não por não compreender o que eles falam entre si).
Não nos podemos situar entre eles (WITTGENSTEIN apud GEERTZ, 1993, p. 23).
Esse processo de ―situar-se‖ ou, como é proposto pelo próprio Geertz, expor a cultura
como contexto (GEERTZ, 1993, p. 24), é que se constitui na missão do antropólogo. Isso não
significa ser como um nativo (MALINOWSKI, 1984), mas simplesmente achar que estamos
achando o que o nativo acha que está fazendo234. Nas palavras de Geertz (1993): ―começamos
com nossas próprias interpretações do que pretendem nossos informantes, ou o que achamos que
eles pretendem, e depois passamos a sistematizá-las‖ (p. 25). Assim,
... os textos antropológicos são eles mesmos interpretações e, na verdade, de segunda e
terceira mão. (Por definição, somente um ―nativo‖ faz a interpretação em primeira mão:
é a sua cultura) Trata-se, portanto de ficções... ―algo construído‖ ―algo modelado‖ – o
sentido original de fictio – não que sejam falsa, não-fatuais ou apenas experimentos de
pensamento. (GEERTZ, 1993, p. 26).
Ele também traz a importância mais uma vez da prática do trabalho de campo,
enveredando menos para estudos da cultura como ―sistemas de símbolos em seus próprios
termos‖ que se pode apreender ―... pelo isolamento dos seus elementos e passando então a
caracterizar todo o sistema de uma forma geral...‖ (GEERTZ, 1993, p. 27) e mais como um
234
Em ―A Interpretação das Culturas‖, Geertz ainda não tem essa ideia tão claramente definida, mas como será visto
mais adiante, na análise da obra ―Nova Luz sobre a Antropologia‖, esta noção de achar que estamos entendendo o
que o ―nativo‖ acha que está fazendo é mais clara e explícita.
235
O trecho negritado já traz indicativos da função do Antropólogo como uma espécie de diplomata, mesmo
posicionamento adotado por Latour (2004 a, b, 2013 a, b).
289
estudo da ação social e suas formas culturais. Com o trabalho de campo o antropólogo ganha
acesso empírico a essa ação social e seus diversos sistemas de símbolos, ―... inspecionando os
acontecimentos e não arrumando entidades abstratas em padrões unificados.‖ (GEERTZ, 1993, p.
28)236.
Assim, Geertz lança a ideia da realidade como um discurso social, observando que o
etnógrafo, ao anotar esse discurso social segundo sua interpretação, ―... o transforma de
acontecimento passado, que existe em seu próprio momento de ocorrência, em um relato, que
existe em sua inscrição e que pode ser consultado novamente‖ (GEERTZ, 1993, p. 29). Esta ideia
está fundamentada nos escritos de Paul Ricoeur, quando se pergunta o que a escrita fixa:
Não o acontecimento de falar, mas o que foi ―dito‖, onde compreendemos pelo que foi
―dito‖ no falar, essa exteriorização intencional constitutiva do objetivo do discurso
graças ao qual o sagen – o dito – torna-se Aus-sage – a enunciação, o enunciado.
Resumindo, o que escrevemos é o noema (―pensamento‖, ―conteúdo‖, ―substância‖) do
falar. É o significado do acontecimento de falar, não o acontecimento como
acontecimento. (RICOEUR apud GEERTZ, 1993, p. 29)
Ou seja, a etnografia seria a forma pela qual poderíamos ―inscrever‖ a teia de significados
que é a cultura, lembrando que esta descrição seria somente uma interpretação, por isso seria
apenas uma forma de descrever tal cultura, não sendo o único olhar possível a ser feito.
236
Penso que Geertz, neste trecho, faz um crítica a Antropologia Estruturalista de Levi-Strauss, especialmente no que
concerne ao papel do etnólogo como alguém que busca um inconsciente estrutural através do estudo das culturas
humanas.
290
Dessa forma, ―... A virada para o sentido como quer que tenha sido denominada e
expressa, alterou tanto o assunto investigado quanto o sujeito da investigação.‖ (GEERTZ, 2001,
p. 27), permitindo uma série de questionamentos construídos sobre a obra de Geertz, que não
necessariamente foram ou passaram a ser as inquietações do antropólogo.
... como saber se o real é verdadeiramente real e se a verdade é realmente verdadeira.
Será possível o conhecimento? O bem é uma questão de opinião? A objetividade é uma
farsa? O desinteresse é má-fé? Descrição é dominação? Tudo se resume a poder,
237
pilhagem e projetos políticos? (GEERTZ, 2001, p. 28).
Diante desse cenário, Geertz propõe que ―... A questão central a formular é: o que elas
[ciências sociais] nos dizem sobre os valores com que nós – todos nós – de fato vivemos?‖
(GEERTZ, 2001, p. 44), mais afrente lançando luz sobre esse questionamento:
O compromisso profissional de encarar os assuntos humanos de forma analítica não se
opõe ao compromisso pessoal de encará-los sob uma perspectiva moral específica. A
ética profissional repousa na ética pessoal e dela extrai sua força; obrigamo-nos a
enxergar por uma convicção de que a cegueira – ou a ilusão – prejudica a virtude como
prejudica as pessoas. O distanciamento provém não do desinteresse, mas de um tipo de
interesse flexível o bastante para suportar uma enorme tensão entre a reação moral e a
observação científica, uma tensão que só faz aumentar à medida que a percepção moral
se aprofunda e a compreensão científica avança. A fuga para o cientificismo ou, por
outro lado, para o subjetivismo não passa de um sinal de que a tensão não pode mais ser
237
Este antropólogo construiu alguns posicionamentos sobre esses questionamentos, mas afirma ter consciência que
suas contribuições, se é que houveram (nas palavras dele), já estão chegando ao fim e que no momento está ―...
contente por ter a oportunidade de montar minha própria lenda e arguir o meu próprio caso antes que os necrologistas
me apanhem. Ninguém deve encarar o que fiz aqui como mais do que isso.‖ (GEERTZ, 2001, p. 29).
291
suportada, de que os nervos não aguentam e de que se fez a opção de suprimir a própria
humanidade ou a própria racionalidade. Estas são as patologias da ciência, não a sua
norma (GEERTZ, 2001, p. 46, grifo nosso).
Finalizo este tópico com algumas inquietações que são reforçadas pela obra de Geertz:
Qual o papel das ciências sociais, dentro do cenário atual, de globalização, mundialização,
capitalismo, violência simbólica, degradação/risco ambiental, avanço da fronteira sobre a
Amazônia e seus habitantes, etc? Quais as dimensões e consequências éticas de um projeto de
Ciências Humanas (CH)? Como fazer CH dentro desse cenário? Serve para alguma coisa essas
CH? Elas ajudam a pensar o que é o certo, a fazer o certo, a trazer o bem estar da sociedade em
geral? Qual o papel das CH dentro das Ciências? Somos Ciências? Como fazer CH sem
dominação, sem colonizar o pensamento alheio?
Quadro 10: escolas antropológicas e seus respectivos objetos, métodos, perguntas e posturas/conceitos/respostas
Escola Objeto Métodos Perguntas Teoria: Postura e/ou
Conceitos e/ou Respostas
Evolucionist Cultura, Comparativo, comparando Por que e como se Postura etnocêntrica,
as Sociedades dados etnográficos diferenciam os seres classificando a sociedade
Primitivas e humanos? humana em estágios de
Bárbaras evolução
Boas Culturas, Trabalho de Campo; Método Por que e como se Extenso estudo sobre as
(Difusionista Sociedades Não Histórico diferenciam os seres culturas humanas, tomando
/ Europeias, não humanos? sempre o ponto de vista
Culturalista) Modernas endógeno para explicar a
cultura estudada.
Malinowski Culturas, Exaustivo trabalho de Como melhor estudar as Extenso estudo sobre as
(Funcionalist Sociedades Não campo, dominado a língua sociedades? culturas humanas, tomando
a) Europeias, não local, observando o Qual a função de instituições sempre o ponto de vista
Modernas cotidiano nativo e sociais dentro de suas endógeno para explicar a
descrevendo-o quase que respectivas culturas? cultura estudada, permeado
diariamente por uma alteridade radical.
Radcliffe- Sistemas sociais Trabalho de campo do Como melhor comparar as Busca por função de uma
Brown de povos próprio antropólogo; Análise sociedades? instituição social, de modo
(Estrutural- primitivos e comparação entre dados Quais os princípios que essa própria função
Funcionalist etnográficos (podendo o estruturais gerais dos permite acessar princípios
a) Antropólogo lançar mão de sistemas sociais das estruturais gerais da
outras etnografias) sociedades em geral? humanidade.
293
Levi-Strauss Natureza humana Trabalho de campo, análise e Qual a natureza humana? Alteridade radical, por meio
(Estruturalist comparação de dados de comparações de dados
a) etnográficos etnográficos, alcançando,
assim, o inconsciente
subjacente da humanidade,
ou, em outras palavras, a
natureza humana.
Clifford Culturas diversas Trabalho de campo, Como melhor estudar e Usar a hermenêutica e a
Geertz buscando uma descrição registrar a diversidade descrição densa para estudar
(Interpretati densa da cultura estudada, cultural? Como e quais são e registrar as outras culturas.
vista) resultando em uma as culturas dos outros?
etnografia
294
238
Para evitar cansativas repetições, doravante também citado como VDC.
295
Com efeito, o próximo capítulo fica responsável por mostrar esse cenário teórico de
crítica à Antropologia Interpretativista de Geertz (2001, 1993) e sua ruptura epistemológica,
funcionando como capítulo conclusivo desta tese, mas como uma espécie de prelúdio da
239
Nota de rodapé número 7: ―É assim que interpreto a declaração de Wagner (1981:35): ‗Estudamos a cultura
através da cultura, e portanto as operações, sejam quais forem, que caracterizam nossa investigação devem ser
também propriedades gerais da cultura.‘.
240
Nota de rodapé número 8: ―Ver, sobre isso, Jullien (1989:312). Os problemas reais de outras culturas são
problemas apenas possíveis para a nossa; o papel da antropologia é o de dar a essa possibilidade (lógica) o
estatuto de virtualidade (ontológica), determinando — ou seja, construindo — sua operação latente em nossa
própria cultura.‖
296
1.SOCIOAMBIETALISMO AMAZÔNICO
Em virtude de apresentar-se como uma floresta tropical, a Amazônia configura-se
como detentora de uma das maiores diversidades do planeta, tanto ambiental, como biológica
e social. Diversos tipos de solos, fauna, flora, etnias e culturas encontram-se presentes na
realidade amazônica (MEIRELLES FILHO, 2004).
Maués (1999) descreve a sócio-diversidade da Amazônia, chamando a atenção para
como ela se expressa através do
grande número de povos indígenas, com diferentes idiomas e costumes,
constituindo uma etnodiversidade que deve ser preservada pelo respeito à
vida e ao modo de vida dessas pessoas, bem como para o enriquecimento do
patrimônio cultural da humanidade (MAUÉS, 1999 p. 58).
Como exemplo específico desta diversidade social, pode-se citar o caso das várzeas do
Baixo Amazonas que, segundo O‘Dwyer (2005), apresentam uma diversidade social que se
forjou na relação com os recursos naturais. O‘Dwyer (2005) desenvolveu uma análise da
situação social dos ribeirinhos, possibilitando a construção de um modelo sobre as condições
de trabalho, reprodução, manejo e uso dos recursos naturais renováveis, definindo como
principais atividades econômicas desses grupos a pesca, agricultura e extrativismo. Contudo,
a autora segue seu texto dando um grau maior de especificidade nas atividades desenvolvidas
pelos ribeirinhos, desdobrando as atividades de pesca, agricultura e extrativismo em ― coleta,
a caça, o artesanato e os saberes e técnicas que implicam nessas atividades propriamente
econômicas.‖ (p. 259), ademais da juta, pecuária, formas diversificadas de agricultura (seja na
várzea, seja na terra firme) e pesca (como os pescadores artesanais que não possuem barcos
pescando em suas montarias próprias de pequeno porte ou trabalhando para os donos de
barcos ou geleiras, entre outras possibilidades). Ainda vale observar que um ator social
ribeirinho pode lançar mão de várias das atividades recém descritas241 de forma combinada,
sendo que esta mesma situação vale para suas famílias. Assim, estas dispõem de uma
variedade de atividades possíveis para sua reprodução social, o que finda por gerar uma ampla
sócio-diversidade.
Outra perspectiva sobre a diversidade social da Amazônia pode ser descrita através da
problemática exposta por Pace (2006) que discute o abuso científico que se tem exercido
sobre o termo ―caboclo‖. Em seu trabalho Pace (2006) cita várias definições para o termo
caboclo, habitando-o com uma diversidade de atores sociais nativos da Amazônia. Contudo, o
autor lança uma provocação ao demonstrar que as pessoas não se identificam com esse termo.
Assim, Pace (2006) chama a atenção para o problema da representação e uso da autoridade
pelo pesquisador, apontando como uma das possíveis causas para o contínuo uso do termo
caboclo, o fato de que o mesmo garante a imagem do ―outro exótico‖. O fato é que este termo
ainda é usado para definir as populações amazônicas não urbanas de maneira geral,
241
Com exceção das atividades de pesca ou agricultura, pois o individuo deve escolher se irá filiar-se na Colônia
de Pescadores de sua região ou no Sindicato de Trabalhadores Rurais. Contudo isso não impede que ele
complemente a sua renda com a atividade paralela (um pescador que roça eventualmente ou um agricultor que
pesca para sua subsistência). A única consequência dessa escolha de filiação refere-se a qual atividade ele elegeu
como profissão, ou seja, a sua atividade econômica ―oficial‖.
299
comercialização uma linha de produtos peculiar: farinha de mesocarpo, papel reciclado com
fibra de babaçu, (...) além de livros e demais publicações pertinentes ao extrativismo.‖ (p. 93).
Assim, a partir da organização dos movimentos sociais das populações tradicionais,
Almeida conclui que existe
uma luta teórica contra a força dos esquemas interpretativos dos
―positivistas no direito‖, que sempre querem confundir etnias,
minorias e/ou povos tradicionais dentro de uma noção genérica de
―povo‖, elidindo a diversidade cultural, e contra a ação sem sujeito de
esquemas inspirados nos ―estruturalismos‖, que privilegiam e se
circunscrevem às oposições simétricas entre ―comum‖ e ―individual‖,
entre ―coletivo‖ e ―privado‖, entre ―propriedade‖ e ―uso‖, entre
recursos ―abertos‖ e ―fechados‖, entre ―tradicional‖ e ―moderno‖,
menosprezando a dinâmica das situações concretas produzidas pelos
povos e grupos tradicionais nas suas relações sociais com seus
antagonistas históricos. (p. 20)
Mais adiante o autor amplia essa visão para outras cidades ao redor de Prainha que
apresentam uma dinâmica similar. Entre elas estariam cidades como Almeirim, Monte Alegre
e Santarém, ―(... ) todas com expressão de urbanização difusa, ou seja, confundem-se com os
modos de vida da floresta e os modos de vida do campo rural.‖ (Sousa, 2009, p. 136). Dessa
forma, estas cidades ainda tem em sua dinâmica interna forte influência de atividades como o
extrativismo, agricultura familiar, agropecuária, e a pesca artesanal (Sousa, 2009).
Estas cidades localizam-se no meio da floresta, entre rios e Igarapés diversos. Nesse
sentido, Sousa (2009) chama a atenção para como até mesmo as populações urbanas estão
familiarizadas ao modo de vida rural, vivendo em ―(...) embarcações ao longo dos rios, dos
igarapés; pessoas que sabem conviver com os campos alagadiços ou várzeas por um período
longo de cada ano devido às cheias pluviais (...)‖ (Sousa, 2009, p. 137). Mais adiante Sousa
303
(2009) enfatiza o isolamento destas cidades na relação com outros centros urbanos, visto que
pode demorar dias até ―chegar a outros centros urbanos mais desenvolvidos, como é o caso da
longa distância que separa a região do Baixo Amazonas, até a Capital do Estado- Belém do
Pará‖ (Sousa, 2009, p. 137).
Outra interessante característica dessas ―cidades na floresta‖ seria a estrutura que
apresentam em seu centro urbano: trapiche(s), delegacia, Igreja Católica e Protestante, os
prédios públicos da Prefeitura que dificilmente se estende a mais de dois, para dar conta de
suas secretarias municiais, o Fórum, uma escola e um posto de saúde (Sousa, 2009). Todo
esse ―aglomerado urbano‖ localiza-se em torno de uma praça que, regra geral, é a única da
cidade. O restante do espaço ―urbano‖ configura-se em algumas poucas ruas, a maior parte
não asfaltadas, sendo cobertas, em geral, ou por terra batida, ou por piçarra ou por bloquete; o
restante do município caracteriza-se por rios ou outros corpos d‘ água e florestas em geral242.
Nesse sentido, Cardoso e Lima (2006) apresentam uma interessante opinião a respeito
das tipologias de cidade na Amazônia. Estes autores empreenderam uma investigação
científica em alguns municípios da Amazônia Oriental, a saber: Medicilândia, Placas, Novo
Reparrtimento, Igarapé-Miri, Baião, Cametá e Limoeiro do Ajuru. Como resultado de suas
investigações propõem a existência de diversas tipologias de ocupação do território nos
municípios amazônicos: as sedes municipais em si mesmas (as cidades no sentido colocado
pelo decreto-lei no311/1938, recém citado), vilas ribeirinhas, agrovilas, projetos de
assentamento, reservas ambientais, reservas indígenas e fazendas (Cardoso e Lima, 2006, p.
64). Mais adiante os autores observam a existência de dois padrões gerais de tipologias de
cidades: um relacionado ao rio, outro às estradas.
No padrão relacionado ao rio estariam aquelas cidades mais antigas, que
desempenharam um importante papel no processo de gênese de um mercado local e regional
assim como de ―inserção‖ da Amazônia no mercado nacional e internacional, na medida em
que desempenharam o papel de pontos de escoamento da produção nos grandes ciclos que
fizeram parte da história econômica da região (drogas do sertão, borracha, grandes projetos).
Essas cidades apresentavam um perfil extrativista e rural e, dependendo da sua história
específica, seguiram padrões diferenciados de ocupação do território. Como exemplo cita-se a
cidade de médio porte de Santarém que sofreu forte influência com a implantação de Grandes
Projetos de desenvolvimento nacional, a cidade de Belém que tornou-se a capital estadual
242
Participei de diversas pesquisas sobre a Amazônia, visitando municípios do rio Purus-AM (como Tapauá,
Lábrea, Canutãma, Beruri, etc), Baixo Tocantins (Igarapé Miri, Cametá, Oeiras), Zona Costeira (Bragança,
Primavera, Vigia, Colares, etc), sendo que em todos esses municípios, o padrão recém citado repete-se com
pouquíssimas variações.
304
assumindo um aspecto diferenciado das outras cidades da região (é uma das duas cidades
considerada de grande porte da região amazônica), e as diversas cidades de pequeno porte que
continuam a desenvolver as atividades rurais e extrativistas, entre outros tipos de cidade
localizadas a beira de corpos d‘ água (Cardoso e Lima, 2006, p. 66).
Faz-se cogente observar a importância das feiras em uma região geograficamente tão
isolada, visto que ocupam um papel que irá suprir as necessidades de abastecimento da
população. As cidades e vilas, através do espaço da feira, comercializavam os produtos
oriundos da zona rural, transformando esses espaços em pontos de grande interesse e
convergência nas aglomerações urbanas ―... à beira dos rios, articulando a população
ribeirinha de diferentes localidades, entre si e com a população urbana, ampliando as
alternativas de consumo da população em geral.‖ (p. 67).
Igualmente faz-se imperioso ressaltar que o principal meio de transporte das
populações amazônicas, até a década de 1980, efetivava-se por via fluvial, nesse sentido, as
cidades localizadas à beira de rios desempenharam um importante papel regional na medida
em que disponibilizavam uma infra-estrutura mínima à população em geral, especialmente
através de escolas e postos de saúde ou hospitais (Cardoso e Lima, 2006, p. 67).
O padrão relacionado à estrada surgiu com o avanço do modelo de desenvolvimento e
integração regional sobre a Amazônia, especialmente em meados do século XX, através da
implementação de grandes projetos na região (mineradoras, hidrelétricas e projetos de
assentamento do INCRA notadamente). Tais projetos necessitavam de uma via de escoamento
para a sua produção, forçando a criação de estradas, que, em seu decorrer, serviam de local
para o surgimento de diversas aglomerações que, com o tempo, transformaram-se em cidades.
Os autores também observam o importante papel que estas cidades desempenharam na oferta
de serviços básicos como educação e saúde à população rural e até mesmo urbana dos
municípios ao redor. ―Nesse sentido, a acessibilidade rodoviária torna-se um fator essencial
no desenvolvimento de uma agrovila, da mesma forma que a acessibilidade fluvial é
determinante...‖ para as vilas ribeirinhas (Cardoso e Lima, 2006, p. 68).
Cardoso e Lima (2006) concluem seu texto corroborando a idéia de relativização da
dicotomia urbano-rural, observando que
A clara hierarquização das cidades (capital, cidade, vila) e a distinção entre modos
de vida rural e urbanos existentes no passado foram perdidas após as transformações
ocorridas nas condições de acessibilidade ... na dinâmica econômica ... e a
redefinição do conceito de cidade... (quando passam a ser cidade todas as sedes de
município) (p. 90).
305
Este autor observa que a partir da década de 1960, o índice anual de urbanização da
Amazônia supera o de todas as outras regiões do Brasil (Pereira, 2006, p. 31). Mais adiante,
Pereira (2006, p. 41) lança mão de dados estatísticos, especialmente de mobilidade
demográfica, para observar que as cidades médias da Amazônia têm uma média de
urbanização de 86%, superior a média nacional, que é de 81,2%, concluindo que a
urbanização na Amazônia é uma situação dada (Pereira, 2006, p. 31). Segue abaixo alguns
dos dados analisados por Pereira (2006).
Tabela 1: população residente na Região Metropolitana de Belém
Município População geral População urbana Geral/urbana (%)
Pará 6.192.307 4.120.693 66,55
RMB 1.795.536 1.754.816 97,73
Belém 1.280.614 1.272.354 99,35
Ananindeua 393.569 392. 657 99,77
Marituba 35.546 20.912 58,83
Benevides 74.429 64.884 87, 18
Santa Barbara 11.378 4.009 35,23
306
A interpretação dos dados construída por Pereira (2006) entende que a urbanização da
Amazônia é um fato dado e sua elevação é inevitável. Como instrumento interpretativo de
seus dados, o autor em tela utiliza conceitos como cidades médias (p. 23 e 24, entre outras),
rede urbana, rede dendrítica, rede urbana regional, rede urbana complexa243, urbanização (p.
34), fronteira urbana (p. 31), urbanização concentrada (p. 35), centros urbanos na concepção
da Teoria dos Lugares Centrais (p. 39), entre outros conceitos. Com sua análise, Pereira
(2006) leva a cabo a conclusão de que há uma tendência de aumento populacional nas sedes
de cidades, ligada à proliferação de pequenas cidades e ao aumento de importância de cidades
médias no contexto econômico regional, constituindo-se como novos vetores de crescimento
econômico e demográfico.
Ocorre que as tabelas demonstram como as populações citadinas vêm aumentando, no
entanto, não necessariamente induzem ao entendimento proposto por Pereira (2006) de que
existe uma urbanização da Amazônia. Nesse sentido, Nunes (2008) ao analisar dados
243
Estes conceitos relativos a rede estão concentrados da página 26 a página 32, contudo repetem-se em outras
partes do texto de Pereira (2006), especialmente o conceito de rede urbana e rede urbana regional.
307
244
O conceito de habitante urbano refere-se ao mesmo conceito formulado pelo decreto-lei no311/1938, em que
considera-se urbano toda sede de município, independente de suas características.
308
Nunes (2008) analisa dados diversos, contudo os mais relevantes para este
empreendimento reflexivo podem ser condensados na tabela abaixo:
Tabela 04: Amazônia Legal – rede urbana por tamanho (2000)
Classe de N o de População População População Pop. total Pop. Pop.
tamanho municípios total urbana rural % urbana % rural %
Mais de 2 2.683.675 2.666.339 17.318 13,48% 19,45% 0,28%
1.000.000
500.000 – 1 867.690 834.968 32.722 4,36% 6,09% 0,53%
1.000.000
100.000 – 17 3.688.751 3.275.363 413.388 18,52% 23,89% 6,66%
500.000
50.000 – 44 3.056.782 1.993.358 1.063.424 15,35% 14,54% 17,14%
100.000
20.000 – 161 4.835.867 2.647.852 2.188.015 24,28% 19,31% 35,27%
50.000
Menos de 525 4.780.588 2.291.676 2.488.912 24,01% 16,72% 40,12%
20.000
Total 750 19.913.353 13.709.556 6.203.779 100,00% 100,00% 100,00%
Fonte: IBGE. Censo Demográfico 2000 apud Nunes (2008, p. 51).
Antes de dar inicio à interpretação e análise da tabela, faz-se imperioso observar que
Nunes (2008) dá continuidade ao seu texto através da exposição de dados e argumentos
sólidos e diversos, abordando temas e conceitos como globalização, PIB, industrialização
entre outros. Contudo, não cabe aqui detalhar tais argumentos, limitando o texto à dicotomia
urbano/rural, explorada através da tabela acima exposta e algumas citações que virão a seguir.
Assim, Nunes (2008) observa que os três primeiros municípios com o maior número de
habitantes (respectivamente Belém, Manaus, São Luis) concentram um grande contingente de
habitantes da região, especialmente aqueles da área urbana, contudo 48,29% da população
total da região concentra-se nos municípios que estão nas faixas entre 20.000-50.000 (161
municípios) e menos de 20.000 (525 municípios), os quais representam 91,47% dos
municípios da região Norte. Da população desses municípios estima-se que somente 36,03%
seja urbana e 75,39% seja rural (Nunes, 2008, p. 49-50).
Com isso, Nunes (2008) começa a levar à cabo a sua conclusão, observando que,
apesar de considerar a ―cidade‖ como um ambiente social que por excelência é
mercantilizado, na medida em que a existência social urbana é praticamente regulada por
relações monetárias, as cidades amazônicas de pequeno porte não se ajustam a esse padrão, já
que não se apresentam como um espaço social onde o modelo de equivalência seja
309
245
Vale observar que o autor, a princípio, caracteriza a área urbana como um espaço mercantil, industrial, de
produção e consumo, enquanto que a área rural amazônica é caracterizada por sua veia não mercantil, baseada
em trocas mais simbólicas do que monetárias.
310
A guisa da conclusão evidencia-se a reflexão que desde o inicio deste trabalho tem-se
tentado construir: a noção de rural e urbano é construída socialmente, consequentemente,
sofrerá intensas influências regionais e, por que não, pensar esta dicotomia como
regionalmente construída. Desta forma existe a possibilidade de se importar conceitos desta
dicotomia que não se aplicam à região amazônica, criando a necessidade de o Estado de uma
maneira geral (Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário; Esferas Federal, Estadual e
Municipal) tomar das especificidades locais no planejamento urbano. Nesse sentido, conclui-
se que a legislação quando fundamenta-se no binômio rural/urbano adentra um campo
conceitual muito tênue e até mesmo inexistente em alguns casos, com isso, o ordenamento
jurídico nem sempre consegue regular a realidade socioambiental amazônica levando em
consideração as especificidades regionais dos conceitos em questão.
Considerações finais
O mosaico de realidades que compõem o contexto amazônico, do ponto de vista
ambiental e social, mostra-se peculiarmente complexo na relação comparativa com os demais
cenários regionais, normalmente de onde emana a construção das normas que regulamentam o
cenário de direitos no Brasil. Assim, as cidades na Amazônia evidenciam as dificuldades no
uso das normativas que regulamentam o espaço urbano, assim como o definem.
Com efeito, evidencia-se uma crise de padrões jurídicos na Amazônia, surgindo a
necessidade de se relativizar, entre outros, o binômio rural/urbano dentro do contexto
amazônico (VEIGA, 2002; SOUZA, 2009; ALMEIDA, 2008).
311
REFERÊNCIAS
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MURRIETA, Rui S.S. (Ed.); NEVES, Walter. Sociedades caboclas amazônicas:
modernidade e invisibilidade. São Paulo: Annablume, 2006, p. 15-32.
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