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Universidade Federal do Pará – UFPA

Instituto de Filosofia e Ciências Humanos – IFCH


Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia – PPGSA

Antropologia de populações, povos e comunidades que


jamais foram tradicionais: experiências etnográficas
junto ao coletivo de humanos e não humanos de Igarapé
Grande, Amazônia paraense

Thales Maximiliano Ravena Cañete

Belém – PA
Maio de 2017
Universidade Federal do Pará – UFPA
Instituto de Filosofia e Ciências Humanos – IFCH
Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia – PPGSA

Antropologia de populações, povos e comunidades que


jamais foram tradicionais: experiências etnográficas
junto ao coletivo de humanos e não humanos de Igarapé
Grande, Amazônia paraense

Thales Maximiliano Ravena Cañete

Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em


Sociologia e Antropologia, do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da UFPA, como parte das exigências
para a obtenção do título de Doutor em Sociologia e
Antropologia, área de concentração em Antropologia.
Orientadora: Profa. Dra. Denise Cardoso.

Belém – PA
Maio de 2017
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências da UFPA

Ravena-Cañete, Thales Maximiliano

TÍTULO/ Thales Maximiliano Ravena Cañete; orientadora, Denise


Cardoso. Belém, 2017.
Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Pará, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Antropologia. Belém, 2017.

1. Termo de catálogo 1.- 2. Termo de catálogo 2.- 3. Termo de


catálogo 3.- 4. Termo de catálogo 4. Cardoso, Denise.- II. Universidade
Federal do Pará. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Programa
de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. III. Título.
CDDir:
Aluno: Thales Maximiliano Ravena Cañete

Antropologia de populações, povos e comunidades que jamais foram


tradicionais: experiências etnográficas junto ao coletivo de humanos e não
humanos de Igarapé Grande, Amazônia paraense

Projeto de qualificação de Tese apresentado ao


Programa de Pós-graduação em Sociologia e
Antropologia (Doutorado), área de concentração
Antropologia.
Orientadora: Profa Dra Denise Machado Cardoso

Comissão Examinadora

_____________________________________________
Profa.Dra. Denise Cardoso (Orientadora). PPGSA/UFPA.

_____________________________________________
Noemi Sakiara Miyasaka Porro (membro externo). Professora do MAFDS/UFPA.

_____________________________________________
Gutemberg Armando Diniz Guerra (membro externo). Professor do MAFDS/UFPA.

_____________________________________________
Sérgio Cardoso de Moraes (membro externo suplente). Professor do NUMA/UFPA

_____________________________________________
Carmem Izabel Rodrigues (membro interno). PPGSA/UFPA.

_____________________________________________
Luciana Gonçalves de Carvalho (membro interno). UFOPA e PPGSA/UFPA.

_____________________________________________
Edila Arnaud Ferreira Moura (membro interno suplente). PPGSA/UFPA.

Belém, PA, março de 2017


Agradecimentos

A atividade de agradecimentos é bastante paradoxal. É um momento muito bonito,


em que pode-se de algum maneira retribuir o dom que você recebeu de outra pessoa,
entretanto, este pode ser um momento muito ingrato na medida em que corre-se o risco do
esquecimento ou mesmo o de não conseguir expressar de maneira adequada a gratidão que
a pessoa carrega. De toda sorte, ainda que não seja um elemento obrigatório pela ABNT,
para mim ela é obrigatória, na medida em que este trabalho é resultado de um tremendo
esforço individual meu, logicamente, mas também é resultado de um esforço tremendo
coletivo de muitas pessoas ao meu redor. Logo, não posso deixar de expressar minha
gratidão à elas.
Assim, agradeço a todos que, direta ou indiretamente colaboraram na construção
desta tese, especialmente minha família e os habitantes de Igarapé Grande.
Um muito obrigado bem grande para os habitantes de Igarapé Grande, alguns
agradecimentos os farei nominalmente: ao Seu Dico, pela hospitalidade, paciência e
constante bom humor no dia a dia que pude vivenciar junto à ele, praticamente me
adotando como filho (por lá, cheguei a ser conhecido como filho do Dico! Como retribuir
esse ato? Acho que ficarei à ele vinculado até o fim). À Dona Bena (in memorian), por
sempre estar disposta a conversar, desde que não fosse gravada. Estendo esse
agradecimento à toda sua família, especialmente à suas filhas e filho, sempre dispostos a
me ajudar. Ao Beto e ao Jhenisson, dois jovens da ilha que me permitiram melhor entender
o cotidiano dos jovens adultos. Ao seu Gilberto, por me acolher em sua casa e por me
apresentar à comunidade.
Aos professores, professoras, funcionários, funcionárias, alunos e alunas da escola
municipal Domiciano de Farias, meu muito obrigado por me receberem de braços abertos e
aguentarem minha insistente presença, eivada de inúmeras perguntas sobre seu cotidiano.
Aos meus professores, sejam eles de graduação, sejam eles de pós-graduação, pois
somente por meio dos seus ensinamentos que cheguei onde estou agora.
Aos meus colegas de vida acadêmica e profissional que também ajudaram na
confecção deste trabalho, seja por pequenos comentários em sala de aula, seja por longas
discussões em ambientes privativos.
A minha orientadora, um muito obrigado especial, pela paciência e plena confiança
que teve em mim nesse período, sempre compreendendo minhas limitações, mas nunca
deixando de estimular-me a terminar esta empreitada.
Aos funcionários do PPGSA, também um obrigado especial, pois me aguentaram
inúmeras vezes por lá, atazanado suas vidas, solicitando informações, pedindo favores,
esclarecimentos e demais atividades burocráticas (obrigado Rosângela e Paulo).
Obrigado aos professores e professoras da ESMAC, colegas de profissão. Um
agradecimento especial vai para o Coordenador Luis Roberto e para a Natasha, vice
coordenadora, ambos sempre muito prestativos e compreensivos com minhas limitações
decorrentes da pesquisa da tese. Sem essa compreensão eu não teria terminado. Muito
obrigado.
Finalmente, o mais especial dos meus agradecimentos, para minha família, que
sentindo minha ausência decidiu não esperar meu retorno, mas debruçar-se em ajudas,
dividindo comigo muitos dos ônus desta tese. Nessa família, também insiro a Clarisse,
minha namorada e mãe da minha filha, a Nina, minha mais nova razão de viver.
Dedicatória

Dedico este trabalho à toda minha família,


especialmente a meus pais e meu irmão, meu porto
seguro em momentos difíceis da vida, ao meu avô José
Ravena e minha avó, Benedita Bernadete Ravena,
pilares de minha família e eternos em minha vida (in
memoriam), à minha dupla na vida e amiga para todas
as horas, Clarisse Fonseca e ao fruto de nosso amor, a
Nina, minha mais nova razão de viver. Dedico, ainda,
aos moradores de Igarapé Grande, especialmente ao seu
Dico, que me recebeu e comigo compartilhou um
pouquinho da sua valorosa vida.
Epígrafe

Nós não consideramos selvagens (wild) as vastas


planícies abertas, os maravilhosos montes ondulados, as
torrentes sinuosas. Somente para o homem branco a
natureza era selvagem, e somente para nós ela era
domesticada. A terra não tinha cercas e era rodeada de
bênçãos do Grande Mistério (fala de Standing Bear, um
chefe Sioux, citado por Mcluthan apud Diegues, 1993.

[...] uma diferença considerável separa o etnocentrismo


ocidental do seu homólogo ―primitivo‖; o selvagem de
qualquer tribo indígena ou australiana julga que sua
cultura é superior a todas as outras sem se preocupar em
exercer sobre elas um discurso científico, enquanto a
etnologia pretende situar-se de chofre no elemento da
universalidade sem se dar conta de que permanece sob
muitos aspectos solidamente instalada em sua
particularidade, e que seu pseudo discurso científico se
deteriora rapidamente em verdadeira ideologia
(CLASTRES, 2013, p. 35).
Resumo

Esta tese estudou o esgotamento que determinados conceitos cunhados na modernidade trazem
para o trato da relação natureza e cultura em um fazer etnográfico e antropológico. Usou como
abordagem principal as discussões que Bruno Latour (2004 a, b; 2013 a, b) faz sobre o tema,
privilegiando a problematização ―natureza e cultura na modernidade‖, assim como relativizou os
conceitos de ―populações tradicionais‖, ―povos e comunidades tradicionais‖. O desenho da tese
se originou a partir da trajetória acadêmica e profissional do autor, à medida em que o mesmo, de
maneira paralela, desenvolvia pesquisas empíricas junto à coletivos de humanos e não humanos
entendidos pela teoria antropológica como populações povos ou comunidades tradicionais mas, à
medida que leituras eram aprofundadas sobre esses coletivos, segundo a teoria antropológica,
inconsistências eram encontradas. Este trabalho também problematizou os termos ―tradicional‖,
―moderno‖, ―cultura‖, ―natureza‖ e as PPCTS como pano de fundo. A pesquisa parte de
experiências etnográficas vividas no coletivo de Igarapé Grande e, a partir dela, reflete sobre
quais as críticas que se podem fazer à teoria antropológica que produziu os conceitos de
―populações tradicionais‖, ―povos e comunidades tradicionais‖ e ―natureza e cultura‖. Com
efeito, esta tese não é propriamente científica (a rigor, dentro das Ciências Humanas, nenhuma
tese é), assumindo contornos filosóficos, visto que não consegue provar sua hipótese principal, da
impropriedade do uso dos termos natureza e cultura, pois constrói abstrações, não se lança na
realidade, mas a partir de uma realidade (a ―cultura ribeirinha‖, a realidade dos moradores de
Igarapé Grande), criando um outro mundo possível para além do mundo moderno, entre tantos
outros mundos possíveis (VIVEIROS DE CASTRO, 2002 b, 2015). Digno de nota é que o
mundo moderno é caracterizado pela não continuidade entre humanos e não humanos, na medida
em que os modernos utilizam não humanos como mediadores de suas relações com outros não
humanos, sendo que esses não humanos mediadores nunca são localmente fabricados, criando
uma situação de total alienação dos modernos em relação ao ambiente de não humanos que os
cerca (verifique você, leitor, qual seu vínculo com os não humanos ao seu redor? Provavelmente
nenhum, até mesmo o ar que você respira foi refrigerado pelo aparelho de ar condicionado). Por
outro lado, os coletivos ―tradicionais‖ fabricam a grande maioria dos seus não humanos e,
quando esses não humanos não foram fabricados pelos seus próprios usuários, ao menos foram
por humanos que compõem a rede local, ou sofrem periódicas manutenções, reformas e
modificações por esses atores locais (penso, por exemplo, nas rabetas, não localmente
produzidas, mas que sofre manutenções periódicas por humanos da própria ilha). Assim, este
trabalho lançou mão de experiências etnográficas para criticar a teoria antropossociológica das
últimas décadas, retornando aos primórdios da antropologia para poder construir uma sociologia
da ciência antropológica analisando e posteriormente suspendendo a dicotomia entre cultura e
natureza. Esta dicotomia permitiu dar lastro à outras dicotomias explicativas, também analisadas
por este trabalho, como tradicionais e modernos (LATOUR, 2013a) e objetividade e
subjetividade (LATOUR, 2004a), que, por sua vez, dão origem a um extenso número de outras
dicotomias modernas, ou híbridos (LATOUR, 2013a), como rural e urbano, campo e cidade,
público e privado, ecologia humana, etnociências, socioambientalismo, entre outras, não
analisadas pela tese, mas ao menos citadas.

Palavras chave: Populações, Povos e Comunidades Tradicionais; modo de vida tradicional


e moderno; Igarapé Grande; ilhas de Ananindeua.
Abstract

This thesis has studied the exhaustion that certain concepts coined in modernity bring to the
treatment of the relation nature and culture in an ethnographic and anthropological doing.
He used as a main approach the discussions that Bruno Latour (2004 a, b; 2013 a, b) makes
on the subject, favoring the problematization of "nature and culture in modernity", as well
as relativizing the concepts of "traditional populations", "peoples and Traditional
communities. The design of the thesis originated from the academic and professional
trajectory of the author, as the same, in parallel, developed empirical research with the
communities understood by the anthropological theory as traditional but, as readings were
deepened on these communities , According to anthropological theory, inconsistencies were
found. This work also problematized the terms "traditional", "modern", "culture", "nature"
and PPCTS as the background. The research is based on ethnographic experiences lived in
the community of Igarapé Grande and reflects on what criticism can be made of the
anthropological theory that produced the concepts of "traditional populations", "traditional
peoples and communities" and "nature and Culture "? In fact, this thesis is not scientific, it
is philosophical, since it can not prove its main hypothesis, of the impropriety of the use of
the terms nature and culture, because it constructs abstractions, it is not launched in reality,
but from a reality (the " The reality of the inhabitants of Igarapé Grande), generalizing it to
any and all non-modern way of life, being characterized by the continuity between humans
using nonhumans as mediators of their relations with other nonhumans, the former being
not Humans made by its own users. Thus, this work has used ethnographic experiments to
criticize the anthropossociological theory of the last decades, returning to the beginnings of
anthropology in order to construct a sociology of anthropological science analyzing and
later suspending the dichotomy between culture and nature. This dichotomy allowed to lend
weight to other explanatory dichotomies, also analyzed by this work, as traditional and
modern (LATOUR, 2013), objectivity and subjectivity (LATOUR, 2004), rural and urban,
ecological economics, socioambientalism.

Key words: Populations, Peoples and Traditional Communities; Traditional


and modern way of life; Igarapé Grande Community; Islands of Ananindeua.
Lista de figuras
Figura 01: imagem de satélite de Igarapé Grande. As áreas de mata dividem a cabeceira do
rio, sinalizado de amarelo, das residências, sinalizadas pelo círculo laranja.
Figura 02: imagem de satélite de Igarapé Grande sem a Cabeceira.
Figura 03: croqui de Igarapé Grande, sem a cabeceira.
Figura 04: imagem de satélite da Cabeceira.
Figura 05: croqui de Cabeceira.
Figura 06: filhos e filhas do casal dos Anjos Farias.
Figura 07: genealogia do seu Dico
Figura 08: genealogia integrada dos principais interlocutores para a produção deste capítulo
Figura 09: Repetição da imagem de satélite de Igarapé Grande, COM a Cabeceira.
Figura 10: Repetição do croqui de Cabeceira.
Figura 11: Repetição do croqui de Igarapé Grande, sem a cabeceira.
Figura 12: imagem de satélite da ilha de João Pilatos no ano de 1984.
Figura 13: imagem de satélite da ilha de João Pilatos no ano de 1994.
Figura 14: imagem de satélite da ilha de João Pilatos no ano de 2004.
Figura 15: imagem de satélite da ilha de João Pilatos no ano de 2010
Figura 16: Extração de recursos (a natureza como fonte) e lançamento de dejetos (a
natureza como esgoto) pelo sistema econômico.
Lista de fotos
Foto 01: o pesquisador fazendo o trajeto para chegar à comunidade.
Foto 02: rotatória dos cruzamentos das ruas Avenida Independência, Rodovia do 40 Horas
e Estélio Maroja.
Foto 03: rua Estélio Maroja.
Foto 04: avenida Independência.
Foto 05: casas da Avenida Independência
Foto 06: área com vegetação na Avenida Independência
Foto 07: primeira parte da passagem que dá acesso ao porto do Surdo, ainda com asfalto.
Foto 08: segunda parte da passagem que dá acesso ao porto do Surdo, já sem asfalto.
Foto 09: portão que dá acesso ao porto do Surdo.
Foto 10: moradores da região das ilhas circulando no porto do Surdo. Destaque para uma
das duas embarcações escolares do município de Ananindeua, que executa a função de
transportar os alunos da região das ilhas para a escola municipal que fica em Igarapé
Grande.
Foto 11: beiradas do rio Maguari. Trajeto que sai do porto do Surdo e leva até Igarapé
Grande
Foto 12: porto de entrada da comunidade de Nova Esperança e alguns alunos e alunas
aguardando a condução escolar fluvial.
Foto 13: recursos naturais ainda preservados nas ilhas de Ananindeua, diferentemente de
seu centro urbano.
Foto 14: chegada das crianças na comunidade de Igarapé Grande.
Foto 15: saída das crianças da escola para retornarem para suas casas.
Foto 16: o trapiche com as crianças chegando pela manhã e a escola ao fundo.
Foto 17: os dois barracões comunitários de Igarapé Grande.
Foto 18: embarcação navegando no rio Maguari, em meio à chuva e em frente à ilha de
João Pilatos. Ao fundo a ilha de Sororoca, com vegetação nativa e uma torre do linhão que
leva luz elétrica para a região das ilhas de Ananindeua. A luz elétrica chegou à
aproximadamente uma década nessa região.
Foto 19: um dos vários portos do coletivo de Igarapé Grande, na localidade denominada de
Cabeceira. O local fica em um dos braços do rio Maguari, bifurcando-se em mais dois sub-
braços, permitindo a colocação das casas com pouca alteração do meio, mas ainda
ocupando local privilegiado, em terra firme, cercado pela vegetação nativa e com fácil
acesso ao rio. Nos arredores da comunidade, a vegetação se adensa, aumentando o número
de elementos não humanos vivos.
Fotografia 20: dona Tomázia batendo açaí.
Foto 21: Açaí pronto para ser batido.
Foto 22: Dona Ana batendo açaí.
Foto 23: Seu Dico executando o complexo procedimento de colocar fogo na lenha dentro
do forno.
Foto 24: lenha e saco de carvão.
Foto 25: visão panorâmica de onde fica o forno.
Fotografia 26: lenha separada por tamanho.
Fotografia 27: pássaro na casa do seu Paulo, relativizando natureza e cultura ou selvagem e
domesticado.
Lista de gráficos
Gráfico 01: pirâmide etária dos moradores de Igarapé Grande, 2016.
Gráfico 02: Índice de desmatamento de 1984, 1994, 2004 e 2010.
Gráfico 03: crescimento médio anual do desmatamento.
Lista de mapas
Mapa 01: contextualização espacial de Igarapé Grande em relação à Belém e seus
arquipélagos
Mapa 02: Ilha de João Pilatos (Ananindeua – PA) e suas adjacências.
Mapa 03: Ilha de João Pilatos e o centro urbano de Ananindeua.
Mapa 04: divisão dos bairros de Belém.
Lista de painéis
Painel 01: dinâmica de relacionamento e associação entre humanos e não humanos de
Igarapé Grande
Painel 02: ordem das fotografias, de cima para baixo, da esquerda para a direita: Genisson
retirando cachos de açaí de seu quintal; cachos de açaí e materiais de armazenamento;
Genisson finalizando o processo de debulhar e deixar o açaí de molho; um recipiente cheio
de açaí pós molho, pronto para ser batido.
Painel 03: dona Tomázia batendo açaí.
Painel 04: dona Tomázia retirando o caroço do açaí já batido, a ser descartado.
Painel 05: o açaí in natura, mas já pronto para ser batido e o açaí já batido, em seu estado
líquido.
Painel 06: processo de retirar o carvão do forno e ensacá-lo.
Painel 07: etapas para empilhar a lenha no forno.
Painel 08: Beto iniciando o processo de separação e empilhamento da lenha, com o forno
ainda sendo cheio.
Painel 09: Beto finalizando o processo de empilhamento da lenha, com o forno já cheio e
pronto para atear fogo.
Painel 10: Beto com o carvão já ensacado (fotografia à esquerda) e devidamente
armazenado (protegido da chuva) para venda (fotografia à direita).
Lista de quadros
Quadro 01: quadrante de argumentos positivos e negativos de ser tradicional ou ser
moderno.
Quadro 02: espécies vegetais cultivadas em Igarapé Grande.
Quadro 03: atividades econômicas possíveis para os moradores de Igarapé Grande
Quadro 04: meio de acesso ao dinheiro, sua respectiva atividade exercida e quantificação.
Quadro 05: Quando o camarão começou a diminuir de tamanho
Quadro 06: número de pessoas conhecidas que foram assaltadas nos rios.
Quadro 07 − Utilização cronológica do conceito ―populações tradicionais‖
Quadro 08: Utilização cronológica do conceito ―populações tradicionais‖, com
instrumentos jurídicos
Quadro 09: utilização cronológica do conceito ―povos e comunidades tradicionais‖
Quadro 10: escolas antropológicas e seus respectivos objetos, métodos, perguntas e
posturas/conceitos/respostas
Quadro 11: dicotomias ligadas à Natureza/Cultura, Objetivo/Subjetivo, Tradicional/Moderno.
Sumário

1 INTRODUÇÃO 18
1.1 Apresentação e posterior explicação do problema 18

1.2 Coletivo de humanos e não humanos de igarapé grande: breve introdução 28


1.3 Metodologia de coleta de dados em campo: a minha experiência 43
etnográfica
1.4 Condições da coleta de dados 45
1.5 Estrutura do trabalho 46
CAPÍTULO II – DA CONSTRUÇÃO DO PROBLEMA: MINHA 49
TRAJETÓRIA ACADEMICA E DE CAMPO
2.1 Pressupostos de partida no campo: minha trajetória acadêmica inicial 49
2.1.1 Trajetórias de pesquisa no cenário socioambiental amazônico 55
2.2 Trajeto percorrido até Igarapé Grande 58
2.2.1 Percurso fluvial até Igarapé Grande 65
2.3 O coletivo de Igarapé Grande 69
2.4 Limpando o olhar: o acesso ao campo e seus desdobramentos 73
2.5 Descompasso entre a teoria e a experiência vivida com os humanos e não 77
humanos de igarapé grande
CAPÍTULO III “POPULAÇÕES TRADICIONAIS”: ORIGENS, 84
DEFINIÇÕES E USOS DENTRO DA ANTROPOLOGIA BRASILEIRA
3.1 A origem do termo “Populações Tradicionais”: as culturas tradicionais 86
3.2 Populações tradicionais: desenhando uma identidade pública a ser 91
preenchida
3.3 Saberes tradicionais e práticas sociais de relação com o meio ambiente: 94
populações tradicionais “ecológico-culturais?”
3.4 Concluindo o inconclusivo: existe de fato um conceito? 105
CAPÍTULO IV POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS: USOS DA 109
ANTROPOLOGIA, DO DIREITO E SUAS LIGAÇÕES COM O
CONCEITO DE “POPULAÇÕES TRADICIONAIS”
4.1 Tradição, Conflito e Processos de territorialização: o direito à diferença e 109
à territorialidade
4.2 Conceitos Jurídico-Legais para “Populações Tradicionais” e “Povos e 118
Comunidades Tradicionais”
4.3 Populações/Povos e Comunidades Tradicionais: existe de fato um 125
conceito?
CAPÍTULO V - PRELÚDIO PÓS ESTRUTURAL: ONTOLOGIZANDO AS 133
CULTURAS, MULTIPLICANDO AS NATUREZAS, DESPOLITIZANDO A
EPISTEME
5.1 Viveiros de Castro e o multinaturalismo ameríndio 135
5.2 Latour e sua Ecologia Política sem a Natureza 143
5.3 Desdobramentos para os modernos da despolitização da episteme: por 150
uma ecologia econômica
CAPÍTULO VI – GENESE SOCIOAMBIENTAL DE IGARAPÉ GRANDE: 161
AS TRASNFORMAÇÕES DO COLETIVO DE HUMANOS E NÃO
HUMANOS AO LONGO DO TEMPO
6.1 História e parentesco da comunidade 164
6.2 A história do “seu” Dico 171
6.3 A Escola Municipal de Ensino Fundamental Domiciano de Farias: do 186
selvagem, ao racional, do sem Estado, ao cidadão... Será?
CAPÍTULO VII– ECOLOGIA POLÍTICA DE IGARAPÉ GRANDE: A 190
COMPOSIÇÃO DE UM MUNDO SOCIOAMBIENTAL COMUM
7 1 Da natureza dos dados e breves notas sobre sua coleta 190
7.2 Considerações sobre a coleta de dados na etnografia: inserção em campo, 197
aceitação do grupo estudado ou simplesmente experenciar um cotidiano
novo?
7.3 Entre humanos e não humanos de Igarapé Grande 203
7.4 Sendo ator do cotidiano de Igarapé Grande: a propósito da dádiva e sua 214
circulação entre humanos, por meio de não humanos
7.4.1 Antropologia da troca, da barganha e da simbiose 214
7.4.2 Antropologia das festas das PPCT´s (e suas trocas) 215
7.5 Extração e beneficiamento do açaí 217
7.6 Extração da lenha e do carvão 222
7.7 Mudanças nos não humanos conhecidos como recursos naturais na 231
modernidade
CONCLUSÃO – Divagações reflexivas de encerramento 247
APÊNDICE A PRÓLOGO ANTROPOLÓGICO: DE CIÊNCIA OBJETIVA 254
À CIÊNCIA SUBJETIVA
APÊNDICE B DA AMAZÔNIA SOCIOAMBIENTAL 320
REFERÊNCIAS 334
18

INTRODUÇÃO

1.1 Apresentação e posterior explicação do problema

Esta tese iniciou-se com o objetivo de etnografar o cotidiano dos moradores de Igarapé
Grande, local a ser detalhado adiante. Ocorre que no caminho de construção desse trabalho, a
pesquisa tomou novos rumos, levando-me não mais a buscar a construção de uma etnografia
por meio da orientação da Teoria Antropológica, mas, a partir das experiências que tive em
campo, construir uma crítica à própria Teoria Antropológica que o amparava. Assim, utilizo
neste trabalho a noção de ―experiências etnográficas‖ como um exercício de crítica à teoria, a
partir de experiências vivenciadas junto a um coletivo de humanos e não humanos1 com
modos de vida radicalmente diferenciados do meu modo de vida. Esta noção será detalhada
mais adiante, ainda nesta introdução.
Isto posto, posso dizer que este trabalho constitui-se em reflexões e críticas que são
feitas à Teoria Antropológica a partir de uma experiência etnográfica vivenciada junto a um
grupo de humanos passível de ser caracterizado pela Antropologia nacional como
―populações tradicionais‖ e/ou ―povos e comunidades tradicionais‖ (doravante PPCT). Essa
comunidade2 é conhecida como Igarapé Grande e se localiza na Ilha de João Pilatos,
município de Ananindeua, região metropolitana de Belém (doravante RMB), capital do estado
do Pará, estuário da Amazônia brasileira. O Mapa 01 permite situar o leitor quanto à
proximidade de Igarapé Grande em relação à RMB, assim como uma impressão inicial dos
arquipélagos que rodeiam a RMB.

1
Latour apresenta diversos conceitos para coletivo. Em essência, configura-se no agrupamento ou, talvez melhor
definindo, na coleta de humanos e não humanos em um grupo que permite associações entre esses dois tipos de
atores (humanos e não humanos), em oposição à usual ideia de social coligada exclusivamente à associação entre
humanos, isso quando não entendida como uma qualidade que seria imanente à todo grupo de humanos, uma
espécie de material social que define previamente as características de todo grupo social. Nas palavras de Latour
(2012, p 112): ―[...] a divisão aparentemente razoável entre material e social transforma-se naquilo que ofusca a
pesquisa sobre como é possível uma ação coletiva - se, é claro, não entendermos por coletivo uma ação encetada
por forças sociais homogêneas, mas, ao contrário, uma ação que arregimenta diversos tipos de forças unidas por
serem diferentes. Assim, doravante, a palavra "coletivo" substituirá "sociedade". Sociedade será apenas o
conjunto de entidades já reunidas que, segundo os sociólogos do social, foram feitas de material social. Coletivo,
por outro lado, designará o projeto de juntar novas entidades ainda não reunidas e que, por esse motivo,
obviamente não são feitas de material social‖.
2
Utiliza-se o termo ―comunidade‖ não do ponto de vista do que foi construído pela academia e os conhecidos
estudos de comunidades, mas a partir da denominação que os moradores da região das ilhas usam para nomear
seu local de morada. Eles utilizam o termo ―comunidade‖ para representar-se para as pessoas de fora, mas
internamente são outras as denominações. Tal fenômeno teve início por meio da necessidade de se criar as
associações de moradores locais que iriam em busca de políticas junto ao governo, utilizando o termo
―comunidade‖ no nome da associação, que assim se denomina: ―Associação de Moradores e Pequeno Produtores
Rurais de Igarapé Grande‖, ou ―Comunidade de Igarapé Grande‖.
19

Mapa 01: Contextualização espacial de Igarapé Grande em relação à Região Metropolitana


de Belém e seus arquipélagos
20

As pessoas que vivem em Igarapé Grande desenvolvem diversos tipos de relação com
os não humanos3 locais, formando uma diferente rede de humanos e não humanos daquela
formada nas sociedades ditas modernas (LATOUR, 2014; 2013a; 2013b; 2004 a). Entre as
diferenças, citam-se duas em especial. A primeira refere-se ao fato de a rede de não humanos
dos modernos não dispor de energia vital, ou seja, os não humanos ativados são em sua
esmagadora maioria coisas e não seres vivos, enquanto que no coletivo de Igarapé Grande,
muitos dos não humanos ativados são seres vivos, como exemplo, cito os diversos recursos da
fauna e da flora local que circulam entre as várias ilhas de Ananindeua. Este contexto pode ser
entendido como um cenário rural da Amazônia paraense, marcado por atividades
agroextrativistas que, por sua vez, é permeado por uma rede de atores não humanos que pode
ser caracterizada como socioambiental4. No caso dos modernos, sua rede de não humanos é
composta por objetos, não englobando outros seres vivos, com raras exceções, formando o
cenário urbano, com muitos carros, computadores, celulares, empresas e comércios ligados à
rede financeira mundial, entre outros atores. Com efeito, apresento um conjunto de fotografias
que evidenciam a paisagem rural que perfila a comunidade.

Fotografia 01: O pesquisador no trajeto para chegar à comunidade

Fonte: Trabalho de campo (2015)

3
A especificação dessa dicotomia será apresentada de forma detalhada nesta mesma introdução.
4
O apêndice A traz um apanhado sobre as leituras feitas sobre a temática do socioambientalismo e a dicotomia
entre rural e urbano na Amazônia, de modo a exaltar ao leitor o que se entende por estes conceitos.
21

É possível ver humanos e não humanos na fotografia. Entre os não humanos estão a
canoa, localmente construída, o rio, que funciona como uma via de locomoção utilizada pelos
humanos de Igarapé Grande, assim como o local em que se desenvolve a atividade da pesca
(ativando outros não humanos vivos), ademais da margem desse rio, habitada por não
humanos genericamente denominados de árvores ou modernamente flora. Segue painel 01,
dando continuidade à exposição imagética da relação entre humanos e não humanos em
Igarapé Grande.

Painel 01: Dinâmica de relacionamento e associação entre humanos e não humanos de


Igarapé Grande
22

Fonte: Trabalho de campo (2015)

As fotografias acima expostas apresentam as associações entre humanos e não


humanos de Igarapé Grande. Essas pessoas serão devidamente apresentadas mais adiante. Por
hora, destaco a intensa participação dos não humanos que podem ser modernamente
classificados como seres vivos ou, em uma visão mais científica (mito fundador da
modernidade), fauna e flora (LATOUR, 2014; 2013a; 2013b; 2004a; 2004b; VIVEIROS DE
CASTRO, 2015). No Painel 01, quatro fotografias são expostas. A ordem de exposição segue
o sentido da esquerda para a direita e de cima para baixo. Na primeira foto do painel, ―seu‖
Manuel mostra a arraia recém pescada que servirá de almoço para a sua família. Na segunda
fotografia aparece dona Tomásia ―batendo‖ o açaí para o almoço da família. Bater o açaí é a
expressão localmente utilizada para nomear o processo de beneficiamento em que se extrai a
poupa do açaí para consumo. A terceira fotografia do painel expõe Beto se preparando para
extrair lenha do ―mato‖ (como localmente se denomina áreas de floresta), recebendo
orientações do ―seu‖ Dico. Posteriormente, a partir da queima dessa lenha, será fabricado
carvão vegetal, uma das principais atividades econômicas das ilhas. Na quarta fotografia estão
o ―seu‖ Branco e sua esposa Deusa no meio de sua roça de macaxeira.
Em todas as fotografias não humanos do mundo da flora e da fauna estão sendo
ativados por humanos. Diante desse cenário socioambiental, apresento como problema de
pesquisa as seguintes perguntas:
A partir de uma experiência etnográfica vivenciada com um grupo social (LATOUR,
2012) que pode ser entendido pela Antropologia brasileira como ―populações tradicionais‖
e/ou ―povos e comunidades tradicionais‖ (PPCT), qual a crítica que se pode construir para a
Teoria Antropológica e à sociedade moderna, que dividem o mundo em natureza e cultura,
purificando-o e eliminando seus híbridos? Considerando Igarapé Grande como um coletivo de
seres humanos e não humanos (LATOUR, 2004 a, b, 2012, 2013a), que não são puros, ou
seja, são um híbrido entre o que as Ciências Sociais dicotomizam entre tradicionais (do
mundo natural, rural, campesino, privado, entre outros) e modernos (do mundo cultural,
urbano, citadino, público, científico, entre outros) (LATOUR, 2004 a; 2013 a, b), quais as
semelhanças e diferenças entre as atividades de relação com o mercado e com a natureza do
passado e do presente e como isso pode contribuir nessa crítica à Teoria Antropológica?
Para responder as perguntas recém-expostas, uma revisão bibliográfica foi realizada
sobre os conceitos acima expostos (PPCT), verificando sua aplicabilidade e seus reflexos
junto ao grupo estudado. Este exercício resultou na tese de que existem impropriedades no
23

conceito de ―populações tradicionais‖ e ―povos e comunidades tradicionais‖, assim como na


dicotomia ―cultura e natureza‖, fundadora da disciplina antropológica e da noção produzida
pela moderna filosofia ocidental de humanidade (acompanhada de sua razão única e
universal) (WAGNER, 2012; VIVEIROS DE CASTRO, 2015). Essas impropriedades se dão
por uma série de fatores que serão demonstrados no decorrer deste trabalho, mas seu
fundamento repousa em duas ideias complementares. A primeira refere-se ao entendimento de
que a Ciência é um tipo de conhecimento que, assim como a religião e a filosofia5, explica a
origem das coisas, suas variações ao longo do tempo e a conduta que a humanidade deve
desenvolver entre si e com o restante de elementos que compõem o mundo, tendo como
principal argumento a divisão entre natureza e cultura. A segunda ideia entende que a ciência
figurou de maneira dominante como o projeto de explicação do mundo (moderno e ocidental)
nos últimos três séculos, partindo de dicotomias que resultaram em uma série de equívocos e
reducionismos, estando ―natureza e cultura‖ na base de todas essas dicotomias reducionistas
que surgiriam ao longo dos dois últimos séculos (LATOUR, 2004 a; 2013a; VIVEIROS DE
CASTRO, 2015).
Os desdobramentos do pensamento acima exposto seriam o entendimento de quão
impróprio se vê o uso dos termos ―cultura‖ e ―natureza‖, na medida em que essa dicotomia foi
criada pela sociedade moderna, sendo esta apenas uma maneira de explicar o mundo,
enquanto que em outras sociedades tal dicotomia ou não é pensada ou, quando o é, não
assume importância dentro do cenário social local que a mesma assume na sociedade moderna
(STRATEHERN, 2014). Nesse sentido, essa dicotomia é responsável não só pelo surgimento
da sociedade moderna e seu mito6 de explicação do mundo (a ciência), mas como pelo
surgimento da própria Antropologia como disciplina científica, na medida em que esta tem a
cultura como seu objeto de análise.
Como alternativa à dicotomia entre natureza e cultura, utilizo a abordagem de Latour
(2004a; 2004b; 2012; 2013 a; 2014) com a noção de coletivos de humanos e não humanos.
Ao utilizá-los, afastam-se algumas dicotomias que, no ver desta pesquisa, vinham reduzindo o
debate sobre as intensas transformações que alguns grupos sociais amazônicos vêm sofrendo
no decorrer das duas últimas décadas. Entre estas dicotomias estariam: natureza/cultura;

5
No caso de outros povos que não se entendem como modernos, nós, os modernos, classificamos sua explicação
do mundo como mito ou mitológica, ou mesmo, para os antropólogos mais relativistas ou socialmente
combativos, como, respectivamente, culturais (para os relativistas) ou representações/construções sociais (para
os socialmente combativos), diferentemente da nossa, que é ―científica‖ (LATOUR, 2014; 2013a; 2013b; 2004a;
2004b).
6
Uso o termo mito em virtude da crença inabalável dos modernos nessa dicotomia, sendo a mesma o mito
fundador da modernidade (LATOUR, 2004 a, b, 2013 a).
24

tradicionais/modernos; rural/urbano; cidade/campo; público/privado;


objetividade/subjetividade. Ao usar o conceito de coletivo, afasta-se o perigo de incutir uma
possível modernidade às ―culturas tradicionais‖, deixando também de lado a armadilha do
congelamento dessas culturas pelo adjetivo ―tradicional‖. Essas armadilhas derivam da
dicotomia entre natureza e cultura, suspensa por Latour (2004 a; 2012; 2013 a ) ao utilizar as
noções de ator, rede e coletivo de humanos e não humanos, não mais adjetivando grupos
sociais entre tradicionais e modernos, rurais e urbanos, camponeses e citadinos, mas
simplesmente classificando-os como humanos e não humanos que podem associar-se em
coletivos.
Isso posto, Latour (2013a) assevera que o discurso da modernidade se forja com a
construção da dicotomia entre natureza e cultura, sendo que aqui eu desdobro essa dicotomia
como criadora de outras dicotomias, como público e privado, rural e urbano, campo e cidade
etc.7 É importante notar que os grupos sociais ―tradicionais‖ ficam sempre com a banda
menos desenvolvida dessa binarização, mais próxima da natureza, de instintos, mitos,
religiões e magias. Sua cultura vê as coisas a partir de representações subjetivas, ao passo que
os modernos veem o mundo a partir da Ciência, supostamente uma visão objetiva, sendo esta
a que consegue enxergar a verdade, enquanto que a visão do outro é apenas construção
subjetiva e cultural da realidade. Dito de outra forma, a sociedade moderna, ao produzir a
dicotomia entre natureza e cultura, cria um discurso científico colonizador, na medida em que
sua cultura é aquela que segue os conhecimentos científicos, por isso, segue critérios
objetivos, neutros, imparciais, verdadeiros, enquanto que a cultura do outro é a tradicional,
ligada a mitos, religiões, folclore, crendices, construções sociais, em outras palavras,
construções subjetivas e não a verdade.
Em seu livro ―Políticas da natureza‖, Latour (2004a) referenda esse posicionamento ao
evocar a necessidade da prática de uma nova Ecologia Política, que atue com base em novas
concepções do que seria Ecologia (ou Natureza, acrescento eu) e do que seria Política (ou
Cultura, novamente acrescento). Estas novas concepções irromperiam do cancelamento de um
conceito que paralisa a atuação tanto das ciências como dos movimentos socioambientais em
geral, pois traz um mundo já pronto, o mundo natural a ser descoberto. Assim, esse conceito
seria o de Natureza. Segue trecho e, que Latour evidencia a paralisia criada por esse conceito.
[...]. Cada vez que se procura misturar os fatos científicos e os valores estéticos,
políticos, econômicos e morais, nos encontramos em uma saída falsa. Se nos

7
Com efeito, destaco que Latour trabalha com as seguintes dicotomias: tradicional e moderno;
política/sociedade/cultura (vale destacar, cada uma responsável pelas matrizes disciplinares das Ciências Sociais,
respectivamente, Ciência Política, Sociologia e Antropologia) e natureza/Ciência.
25

entregamos demais aos fatos, o humano oscila inteiramente na objetividade, torna-se


uma coisa contábil e calculável, um balancete energético, uma espécie dentre outras.
Se se misturam os fatos e os valores, vai se de mal a pior, posto que se priva, de uma
vez, o conhecimento autônomo e a moral independente. Não se saberá jamais, por
exemplo, se as previsões apocalíticas, com as quais os militantes ecológicos nos
ameaçam, têm o poder dos sábios sobre os políticos, ou a dominação dos políticos
sobre os pobres sábios. (LATOUR, 2004 a, p. 16).

Assim, separar o mundo em natureza e cultura apresenta dois desdobramentos, um


refere-se ao discurso colonizador de que os modernos têm a cultura científica, o outro refere-
se ao fato destes termos alienarem a sociedade moderna do ambiente que os circunda,
consequentemente, de todos os meios de produção, não só daqueles pensados por Marx
(2013), mas dos meios de produção da própria pessoa dentro da sociedade. Assim, uma
criança não produz seu brinquedo, seu lazer, tampouco uma pessoa adulta produz seu
alimento, seus medicamentos, sua vestimenta e suas ideias. Não se está aqui apenas
reproduzindo o argumento marxista da alienação da força de trabalho e dos meios de
produção, se está desdobrando-o à conclusão de que a pessoa moderna é alienada de tudo em
virtude não da sua alienação dos meios de produção, mas em virtude de sua alienação dos não
humanos em geral e dos processos de produção e manipulação desses. Hoje, uma pessoa não
domina os conhecimentos sobre seu corpo, sua saúde, sua alimentação, tudo está pronto e
acabado, a única missão do ser humano moderno é consumir o mundo.
O mundo está pré-fabricado e, com exceção do ar respirado, na sociedade moderna a
relação com os recursos naturais se dá por atores não humanos que não foram fabricados
pelos seus próprios usuários, enquanto que em outras sociedades que jamais foram
tradicionais8, existem muitas relações com os recursos naturais que são mediadas por atores
não humanos fabricados pelos humanos que são seus usuários. Como já mencionado neste
parágrafo, o indivíduo na sociedade moderna não domina nenhum tipo de processo de
manipulação dos recursos naturais locais, alienando-se por completo do local em que vive.
Nesse sentido, ele aliena-se também de suas próprias ideias, logo, de sua própria construção
como pessoa. Essa talvez seja a grande diferença entre as sociedades que jamais foram
modernas das sociedades que jamais foram tradicionais (nunca foram tradicionais porque
nunca houve uma sociedade moderna para que o tradicional seja criado)9.

8
Fazendo um jogo de palavras com o título da obra de Latour (2013a), ―Jamais fomos modernos‖.
9
Ainda que pareça repetitivo, mas em verdade visando esclarecer e conduzir o leitor em minha argumentação,
devo frisar que me refiro ao conceito de tradição dentro da matriz tradicional antropológica (ALMEIDA 1991;
BRITO, 2001; WEBER, 2009), onde essa categoria reforça a binaridade entre natureza e cultura para poder
construir a crítica sobre o mesmo mais adiante. Busco mostrar suas incoerências e inaplicabilidades para a atual
realidade vivida, na medida em que, como explanado por Latour (2004 a, 2013 a), esse conceito é purificador,
26

Assim, na sociedade moderna, toda relação entre humanos e não humanos é mediada
por outro ator não humano que foi fabricado em outro coletivo. Em termos mais coloquiais,
toda relação que estabeleço com outros atores não humanos (aquilo que outrora era chamado
de natureza, meio ambiente, recursos naturais e coisas em geral) é mediada por outro ator não
humano que não foi por mim fabricado (observe-se você, leitor, ao seu redor, entre ar
condicionado, piso, teto, mesas, cadeiras e livros, se existe algum ator não humano por você
fabricado). Pensemos nos alimentos, na saúde, nas vestimentas, nos transportes, na higiene
pessoal, tudo é mediado por não humanos que não foram construídos pelos humanos que os
manejam, alienando a tudo e a todos. De fato, há uma separação da natureza e da cultura, mas
tal separação é meramente consumista e não civilizatória e emancipatória, como queriam os
filósofos e cientistas dos séculos passados.
Existe então uma impropriedade na utilização dos termos natureza e cultura, na
medida em que são polissêmicos. Natureza pode ser instinto, meio ambiente, recursos naturais
vivos e não vivos, animais, vegetais, rochas, rios, mares, florestas etc. A natureza pode até
mesmo ser cultura, quando se utiliza o adjetivo selvagem com o substantivo cultura: cultura
selvagem, instintiva, que segue sua natureza.
Da mesma maneira, o termo cultura assume uma polissemia de maneira a perder sua
capacidade explicativa. Tudo é cultura. Do tradicional ao moderno, existe uma explicação
cultural. Cultura é educação (homem culto é sinônimo de homem educado), é história, é
tradição, é costume (mas esses costumes são curiosos, eles se comportam dessa maneira por
sua tradição, sua cultura é assim), cultura é arte, enfim, tudo é cultura, mas também tudo é
natureza, mas, já que tudo é natureza e cultura, nada também o é.
Assim, quando alguém suspira surpreso por alguma prática curiosa de algum grupo
social e outro alguém pondera: ―ah, isso é cultural, ou é uma questão cultural‖, essa qualidade
cultural pode ser facilmente substituída por ―isso é questão de educação, é social, histórico,
um costume, é típico ou tradicional das pessoas desse local, é seu instinto, isso é natural
deles‖. Nesse caso, quando opostos podem figurar como sinônimos, algo está descompassado.
Com efeito, a dicotomia entre humanos e não humanos suspende essa imprecisão, na
medida em que se estabelece um crivo diferenciativo entre ambos os termos: a qualidade
humana. Ou se é humano, ou não se é humano. Latour ainda permite que esses dois atores
tenham uma atuação dentro do coletivo, logo, o não humano, mesmo que seja um objeto, um

logo, sendo impossível existir de fato, na medida em que o mundo está permeado por híbridos de tradicionais e
modernos, de natureza e cultura.
27

animal, uma floresta cultural10, um espírito, seja o que for, detém uma capacidade de ação, de
influenciar e ser influenciado por outros atores, sejam eles humanos ou não humanos. Eis a
inovação da sociologia de Latour (2004 a, b; 2012; 2013 a, b), a possibilidade de dar a
qualidade de ator a coisas, objetos, animais, espíritos, conceitos, instituições e uma série de
outros elementos que antes ficavam obnubilados pela dicotomia entre natureza e cultura, não
sabendo se faziam parte da esfera cultural, ou da esfera natural, empacava-se na sua descrição
e análise.
Dito de outra forma, o que fazer com as florestas culturais na Amazônia? O que fazer
com as culturas tradicionais, rústicas, selvagens dos grupos sociais que são entendidos como
PPCT? Como estabelecer um protocolo de atuação e relacionamento com esses atores, ao
mesmo tempo naturais e culturais? Tal confusão é eliminada por meio da dicotomia entre
humanos e não humanos. Ainda que a floresta seja cultural, ou seja, produto da ação humana,
ela não é humana, ela continua sendo floresta. Ainda que as culturas tradicionais não
distingam natureza de cultura ou, se o fazem, não lhe dão muita importância, estes continuam
sendo humanos, mesmo sendo sua cultura ―integrada‖ com a natureza, estabelecendo relações
de simbiose com rios e florestas.
Em síntese, este trabalho constrói argumentos, reflexões e críticas à Teoria
Antropológica, entendendo a Antropologia como uma ciência que originalmente estudou
culturas tradicionais, ou seja, culturas que estão apartadas da cultura moderna. Gradualmente
essa ciência voltou seus olhares para sua própria cultura, iniciando primeiramente com as
margens mais distantes da modernidade, estudando camponeses, agricultores familiares, para
então, ir tomando outros grupos sociais localizados em uma margem mais próxima da
sociedade moderna, como estudos em periferias, de gênero, raça, entre tantas outras minorias
sociais. Somente nas duas ou três últimas décadas, a Antropologia voltou seus olhares para
questões como a produção de verdades no espaço público, a alteridade em processos judiciais,
produção de fatos científicos, entre outros possíveis temas de estudo que ocupam o coração da
sociedade moderna (LATOUR, 2013 b; 2004 b; VIVEIROS DE CASTRO, 2002 a, 2015).
Esta introdução segue seu curso fazendo uma breve descrição do coletivo de humanos
e não humanos de Igarapé Grande, assim como das técnicas de pesquisa utilizadas em campo
e a construção de uma percepção teórica do que seriam as experiências etnográficas vividas

10
Seriam florestas que se formaram sobre a influência e indução de ameríndios, surgindo a questão: seriam
florestas naturais ou culturais? Este paradoxo é fruto do mito moderno da natureza intocada, conforme descrito
por Diegues (1993, 1994, 1997, 2008). Para mais detalhes consultar Magalhães (2006), Adams (1994), Scoles
(2011), Balée (2008) e Ribeiro (1986). O antropólogo Darrel Adson Posey figura como um dos pioneiros desta
temática, também denominada de ―indigenização da paisagem‖, entretanto, não consegui mais localizar as
referências de suas obras em meus arquivos pessoais. De toda sorte, fica o registro.
28

em campo. Finaliza-se esta introdução com a repetição do problema de pesquisa, de modo a


evidenciar e melhor consolidar sua construção para o leitor.

1.2 Coletivo de humanos e não humanos de igarapé grande: breve introdução

Este tópico introduz o leitor ao cenário socioambiental vivido pelos habitantes de


Igarapé Grande, sendo detalhado no segundo, sexto e sétimo capítulo desta tese.
Igarapé Grande localiza-se na ilha de João Pilatos, maior ilha do município de
Ananindeua, que, por sua vez, compõe a Região Metropolitana de Belém (RMB), como já
mencionado nos primeiros parágrafos desta introdução. O Mapa 02 permite ao leitor
identificar a ilha, Igarapé Grande e adjacências, evidenciando, ainda, a baía do Guajará e baía
de Santo Antônio, que permitem a conexão com outras regiões insulares e peninsulares da
RMB.
29

Mapa 02: Ilha de João Pilatos (Ananindeua – PA) e suas


adjacências
30

A imagem acima permite visualizar a localização de Igarapé Grande na ilha, assim


como a localização da mesma em relação ao município de Ananindeua e RMB. João Pilatos, a
maior ilha de Ananindeua, fica ao centro da imagem, postando-se ao seu redor as outras
ínsulas que compõem a popularmente conhecida região das ilhas de Ananindeua. É
importante notar que o acesso à ilha de João Pilatos acontece exclusivamente pelos furos e
rios que marcam a rica vascularidade dos corpos d‘água na região, garantindo uma condição
de isolamento, de modo a preservar seus moradores de pressões e impactos mais severos da
sociedade maior, que se encontra logo ao lado.
No Mapa 02, ademais do comparativo da extensão territorial entre o centro urbano de
Ananindeua e as ilhas do mesmo município, é possível visualizar o local onde moro. Penso
que tal dado é importante para esta pesquisa na medida em que fui testemunha do processo de
expansão urbana que ocorreu na RMB. Este processo de expansão ainda está em curso e está
ultrapassando as fronteiras do bairro do Curuçambá, local chave no acesso à região das ilhas,
consequentemente, na própria vida social de seus habitantes. Este cenário de transição será
exposto de maneira mais detalhada no capítulo 2 desta tese, a partir do meu ponto de vista no
acesso de minha residência até Igarapé Grande.
Segundo o levantamento realizado junto a seus moradores, essa região insular faz
fronteira com os municípios de Belém, Benevides e Santa Bárbara. No caso de Belém, essa
fronteira se estabelece com as ilhas de Mosqueiro, São Pedro e Outeiro, ademais do distrito de
Icoaraci. Quanto a Benevides,a separação se estabelece por meio do bairro do Murinim, uma
comunidade rural que com o passar dos anos foi absorvida pela expansão da fronteira urbana
de Benevides (limitada pelas grandes propriedades rurais ao seu redor), que cresceu na
direção da referida comunidade ao ponto de transformá-la em um bairro autônomo do
município. No caso de Santa Bárbara, a região das ilhas faz fronteira com o bairro do Pau
D‘Arco.
Conforme relato dos moradores, Ananindeua é composta por nove ilhas: Guajarina,
Sassunema, do Periquitos, Sororoca, Redonda, Arauari, Mutá, Santa Rosa, Viçosa e João
Pilatos. Esta informação pode ser parcialmente confirmada no Mapa 02, que mostra algumas
dessas ilhas. Outras não aparecem porque as fotos de satélite não capturam os pequenos rios e
furos que formam essas ilhas.
A área em tela apresenta um contexto peculiar de colonização e posterior integração
ao mercado. Dotada de uma localização privilegiada, pois fica a poucas horas do centro do
município de Ananindeua, o complexo insular apresenta um rico cenário de diversidade de
práticas e usos sociais dos recursos naturais que vão se diferenciando em decorrência da faixa
31

etária de seus moradores e complexificando-se mais, em virtude da liminaridade entre


cenários urbanos e rurais dos quais Igarapé Grande é protagonista11. Em outras palavras, a
localização da ilha é privilegiada do ponto de vista de escoamento de sua produção, pois fica a
menos de uma hora do centro urbano de Ananindeua, e a poucas horas de centros econômicos
importantes da RMB, como é o caso do mercado do Ver-o-Peso e de feiras situadas nos
distritos de Icoaraci, Outeiro e Mosqueiro (todos do município de Belém), para mencionar
alguns dos inúmeros exemplos que podem ser visualizados pelo Mapa 0212.
Dentro de Ananindeua, a extensão territorial da região das ilhas se equivale à extensão
territorial da área urbana do município em questão, figurando como uma área ainda pouco
explorada, passível de ser objeto de expansão de políticas territoriais urbanas. O Mapa 03
permite visualizar a informação apresentada, assim como o mapa 01.

11
Essa questão será tratada em minúcias, nos capítulos 2, 4 e 5 desta tese.
12
Os capítulos 4 e 5 tratam exclusivamente do cenário socioambiental vivido pelos habitantes de Igarapé
Grande, descrevendo esse cenário de maneira mais detalhada.
32

Mapa 03: Ilha de João Pilatos e o centro urbano de Ananindeua


33

Em Ananindeua, os bairros do Coqueiro e do Curuçambá fazem fronteira com a região


das ilhas e vale salientar que a ilha de João Pilatos é a maior de Ananindeua, alcançando uma
extensão territorial bem próxima ao centro urbano do município e, dentre as ilhas da RMB,
ela é a segunda maior, ficando atrás somente da ilha de Mosqueiro.
Igarapé Grande localiza-se às margens de um curso d‘água de mesmo nome, sendo
este um dos maiores igarapés da região, justificando seu nome. Está povoadopor 102
habitantes, 48 homens, 54 mulheres. Destas pessoas, 29 possuem menos de 18 anos, 65 entre
18 e 60 anos, 8 com mais de 60 anos (Gráfico 01).

Gráfico 01: Pirâmide etária dos moradores de Igarapé Grande, 2016

Fonte: Trabalho de campo (2015)

Este coletivo de humanos e não humanos foi ―fundado‖ pelo ―seu‖ Domiciano de
Farias e dona Maria dos Anjos de Farias, que se casaram e fixaram residência no local onde
fica a ―comunidade‖13 hoje, sendo seus descendentes os habitantes de Igarapé Grande14.
Atualmente existem 39 casas, dessas, 31 são residências fixas, 04 são residências de pessoas

13
Utilizo aspas nos termos ―fundador‖ e ―comunidade‖ para relativizá-los, pois Domiciano e Maria não
―fundaram‖ uma ―comunidade‖, apenas casaram-se e foram morar nas proximidades de suas residências
anteriores, posto que ambos já moravam na região das ilhas. O posto de fundadores de um coletivo que
posteriormente foi externamente nomeado como ―comunidade‖, soa estranho para seus netos, assim como a
própria denominação ―comunidade‖, já que Igarapé Grande é seu local de morada, herança de seus bisavós, mas
não uma ―comunidade‖. Estes termos serão novamente problematizados no decorrer da tese, assim como será
detalhado o cenário socioambiental ao qual fazem referência, especialmente nos capítulos 02, 04 e 05 desta tese.
14
Este histórico será detalhado no capítulo 04.
34

que não moram no local, mas visitam-na frequentemente, normalmente buscando atividades
de lazer (períodos de fins de semana, festas etc.)15. A situação das outras quatro casas
restantes é: a primeira foi recentemente alugada para uma família de fora da região das ilhas,
mas seu proprietário, ainda que não residindo em Igarapé Grande, é nascido, criado e continua
a residir na região das ilhas de Ananindeua, assim como é descendente do casal Farias, sendo
localmente conhecido como ―Picolé‖; a segunda está em construção e servirá de morada para
bisnetos do casal Farias; a terceira está vazia em virtude do recente óbito de seu morador; e
finalmente a quarta pertence à família de dona Bena16, todos residentes na cabeceira e
descendentes dos Farias. No local é possível encontrar uma escola municipal, nomeada
Domiciano de Farias17, um posto de saúde inaugurado no dia dezesseis de agosto de 2014, um
campo de futebol, dois barracões que funcionam, ora como sala de aula, ora como centro de
eventos, ademais de seus moradores e suas respectivas residências.
Buscando dar sentido e coerência descritiva, Igarapé Grande pode ser dividida em três
partes. A primeira refere-se aos espaços oficialmente institucionais e de uso comum lá
existentes, os quais chamarei de complexo público (a ser detalhado no capítulo 2). Este é
composto por: escola, posto de saúde, barracões da escola e da associação de moradores,
campo de futebol, igreja e o porto em formato de trapiche. Estes locais são de livre circulação
e, em regra, prestam algum tipo de serviço público ou de utilidade pública. Pode-se agregar a
este complexo a pequena venda do ―seu‖ Bené, localizada na lateral do campo de futebol, na
medida em que, apesar de ser um ―negócio particular‖, presta um serviço de utilidade pública,
por meio da venda de produtos alimentícios.
A segunda parte de Igarapé Grande refere-se às residências de seus habitantes,
localizadas ao fundo e ao lado da escola. A terceira parte é a ―Cabeceira‖, residências que
ficam afastadas do complexo público, próximas da cabeceira do Igarapé Grande. Para chegar
a essas residências, ou percorre-se uma trilha entre a mata por uma média de vinte minutos,

15
Dessas quatro famílias, todas têm alguma ligação com os descendentes do ―seu‖ Domiciano e da dona Maria
dos Anjos. Assim, duas casas são de propriedade de bisnetos (a), uma pertence ao seu Pelé, pai de filhas que são
casadas com bisnetos do casal Farias e a última residência pertence a um amigo de um tataraneto do casal Farias.
Novamente reforça-se essa informação: para se ter acesso à moradia em Igarapé Grande, deve-se ter algum tipo
de ligação com os descendentes do casal Farias.
16
Uma das moradoras mais antigas de Igarapé Grande e que eu tive o prazer de conhecer, mas que veio a falecer
antes do término do meu trabalho de campo. Também a ela dedico este trabalho. Vale registrar dois detalhes
sobre a dona Bena. O primeiro é que ela é irmã do ―seu‖ Dico, habitante mais antigo e mais velho de Igarapé
Grande, ambos netos do ―seu‖ Domiciano de Farias e da dona Maria dos Anjos de Farias, casal proprietário do
terreno onde hoje é Igarapé Grande, ascendente da maioria dos seus atuais moradores, como está sendo
detalhado por esta introdução e pelo capítulo 3 desta tese.
17
Ele consta como uma espécie de pai fundador de Igarapé Grande, figura chave que dá acesso à terra e às
relações socioambientais que se desenvolvem no local. Este fato será detalhado no decorrer da tese,
especialmente pelo capítulo 4.
35

ou desce-se o igarapé com alguma embarcação, em direção ao centro da ilha, por mais alguns
poucos minutos.
Assim, a ―Cabeceira‖ localiza-se a alguns metros depois do complexo público e das
residências ao seu redor (seu conjunto denominado de Igarapé Grande), ficando este mais
próxima da borda da ilha, consequentemente mais próxima do rio que a circunda, enquanto
que a ―Cabeceira‖ está mais próxima do centro da ilha, consequentemente, mais próxima da
―cabeceira‖ do Igarapé Grande, justificando assim o seu nome. Na sequência, segue a Figura
01 que expõe imagem do Google Maps onde é possível visualizar a Cabeceira (à esquerda da
folha) e Igarapé Grande (à direita da folha).
36

Figura 01: Imagem de satélite de Igarapé Grande. As áreas de mata dividem a cabeceira do rio, sinalizado de amarelo, das residências,
sinalizadas pelo círculo laranja

Delimitação da Cabeceira Delimitação de Igarapé Grande Corpo d‘água Igarapé grande


Área de mata
Fonte: Organização própria a partir do Google Maps (2015)
37

Na imagem de satélite exposta, ademais da Cabeceira e de Igarapé Grande, também é


possível visualizar a disposição de algumas áreas de mata, o igarapé e as residências,
elucidando alguns dos não humanos socioambientais que persistem em compor o coletivo
estudado. A Cabeceira é formada por 07 residências e 22 moradores fixos, ademais de uma
casa de farinha, a única na região das ilhas. Igarapé Grande é formado por 24 residências, com
80 moradores fixos18.
Para uma melhor percepção visual das especificidades de Cabeceira e de Igarapé
Grande, seguem quatro figuras, a primeira (Figura 02) mostra outra foto de satélite de Igarapé
Grande, com suas residências e complexo público, mas sem a Cabeceira, seguida de um
croqui (Figura 03) em que se nomeia alguns dos componentes desse cenário, focando na
divisão de residências, espaços públicos e alguns não humanos ligados ao mundo rural. Essa
dinâmica se repete nas Figuras 04 e 05, mas nesse caso, expondo exclusivamente a Cabeceira.

18
Coloco essa característica de ―fixos‖ pois, como será trabalhado no capítulo 05, existem pessoas que acessam
Igarapé Grande para atividades de lazer ou visitar parentes.
38

Figura 02: Imagem de satélite de Igarapé Grande sem a Cabeceira

Fonte: Organização própria a partir do Google Maps (2015)


39
40

Figura 03: Croqui


de Igarapé Grande,
sem a Cabeceira

Fonte: Organizado por Thales Ravena, executado por Juliene Furtado, adaptação digital de Uriens Ravena.
41

Figura 04: Imagem de satélite da Cabeceira

Fonte: organização própria a partir do Google Maps (2015)


42

Figura 05: Croqui da Cabeceira

Fonte: organizado por Thales Ravena, executado por Juliene Furtado, adapetação digital de Uriens Ravena.
190

A geração de renda local186 se dá por meio de duas fontes. A primeira refere-se às


pessoas que recebem algum repasse de renda do Estado ou salários, seja por serem
contratadas pelo governo municipal através da escola e do posto de saúde local, seja por
aposentadoria ou algum tipo de pensão paga pelo Estado, seja por alguns poucos empregados
de empresas que trabalham na parte urbana da RMB, e retornam para suas casas somente aos
fins de semana. O segundo grupo refere-se aos adultos que desenvolvem atividades
autônomas, explorando os recursos naturais locais, especialmente com a venda do carvão
vegetal e do açaí, ademais da possibilidade de prestação de serviços locais por meio de diárias
e pequenas empreitadas (capinar um terreno, reformar uma casa, etc.).
A extração de recursos naturais locais para consumo próprio é uma prática recorrente
entre os moradores da ilha, seja por meio da agricultura, seja por meio do manejo, seja por
meio da simples extração desses recursos da floresta ou dos rios, sem nenhum tipo de técnica
de manejo.
A agricultura concentra-se nas culturas do açaí, cupuaçu, mandioca e macaxeira, sendo
que, normalmente, somente o açaí é comercializado. Em regra, as culturas manejadas
limitam-se aos produtos que serão vendidos para o mercado de fora da região das ilhas,
prioritariamente o açaí e o carvão vegetal. A extração de outros recursos naturais limita-se à
circulação dentro da ilha, tanto como produtos financeiramente comerciáveis, como produtos
a serem trocados segundo as regras locais de compadrio e parentesco.
Essas regras de parentesco e compadrio se explicam pela própria história de criação da
comunidade, que surge por meio do casamento entre ―seu‖ Domiciano de Farias e dona Maria
dos Anjos, por volta da década de 1900. O casal compra e vai morar em um lote rural onde
hoje se localiza a sede da escola da região das ilhas, e, com o passar dos anos, a família se
multiplicou a ponto de ser localmente considerada como uma comunidade. Este histórico será
detalhado no capítulo 06 desta tese e, por hora, basta deixar registrado que as pessoas que
vivem em Igarapé Grande são descendentes do casal Farias, ou parentes de seus descendentes,
com apenas três exceções: duas casas que são alugadas por não descendentes do casal Farias,
contudo, seus proprietários o são; uma casa que pertence a um amigo de um dos bisnetos dos
donos originais do terreno, sendo que essa casa é utilizada esporadicamente como forma de

186
No sentido de uma fonte de recursos financeiros, ou seja, a origem do dinheiro que circula no local.
191

lazer. Em síntese, para se ter acesso à terra e seus respectivos recursos naturais, deve-se ter
algum tipo de relação com os descendentes do casal Farias187.
O primeiro aglomerado de residências, à direita da imagem, é a comunidade de
Igarapé Grande. O segundo, disposto à esquerda, funciona como uma espécie de sua extensão,
denominada de Cabeceira, como explicado mais acima. Ao centro da imagem fica uma área
de mata cortada por algumas trilhas e ao fim fica o igarapé, localmente conhecido como
Igarapé Grande. Essetem sua nascente quase ao centro da ilha.
Os dados sobre Igarapé Grande, até o momento expostos, são o resultado de meu
trabalho de campo, desenvolvido nos anos de 2014, 2015 e 2016. O detalhamento das
condições em que se operacionalizou esse trabalho de campo, assim como a noção de
―experiência etnográfica‖, é exposto no tópico que segue.

1.3 Metodologia de coleta de dados em campo: a minha experiência etnográfica188

Este termo é aqui utilizado, no sentido de transmitir algumas abstrações construídas a


partir das minhas constantes visitas e estadas junto aos moradores de Igarapé Grande,
articulando os desdobramentos dessas abstrações à Teoria Antropológica. Inicialmente
busquei construir uma etnografia sobre o cotidiano dos moradores de Igarapé Grande,
contudo, tal descrição findou por gerar problematizações e questionamentos que levaram a
escrita da tese a tomar novos rumos, não mais se constituindo em uma etnografia
propriamente dita, ainda que fosse esse seu objetivo inicial. Assim, utiliza-se aqui a ideia de
―experiências etnográficas‖ no sentido de serem experiências vividas junto ao coletivo
estudado e que, nessa condição, poderiam ser entendidas como matéria-prima de uma
construção etnográfica, contudo, resultaram menos na fabricação de um fato etnográfico junto
a uma ―cultura tradicional‖ propriamente dito, do que em uma crítica à Teoria Antropológica
que cria as regras de como produzi-lo e de como objetivar essa ―cultura tradicional‖.
Com efeito, a partir de minha experiência no local, procedo ao exercício de abstrações
teóricas junto à formulação de outros autores que tratam sobre os conceitos de PPCT. Uma

187
Este modelo de comunidades que têm pais fundadores se repete em outros locais da região das ilhas. Como
exemplo cito a comunidade de Santa Rosa que teve como dono original o seu Joaquim Navegantes, sendo hoje
habitada por alguns de seus descendentes.
188
Clifford (1998) utilizou esta expressão em seu célebre livro, ―A experiência etnográfica‖, que critica as
proposições teóricas de Geertz (1993; 1997; 2001) e sua perspectiva interpretativista do trabalho de campo do
antropólogo. Ainda que exista algum tipo de ligação entre essas expressões, a utilizo aqui em um sentido não
diretamente ligado ao de Clifford (1998).
192

metafísica experimental (LATOUR, 2004 a), ou seja, ―experiencio‖189 a metafísica do outro e


a comparo com a minha, pensando os desdobramentos dessa junção sobre minha própria
construção,inicialmente feita da metafísica do outro. Exercício similar ao realizado por
Viveiros de Castro (2002 b, p. 123) e seu perspectivismo ameríndio, como relatado abaixo:
O que fiz em meu artigo sobre o perspectivismo foi uma experiência de pensamento
e um exercício de ficção antropológica. A expressão ‗experiência de pensamento‘
não tem aqui o sentido usual de entrada imaginária na experiência pelo (próprio)
pensamento, mas o de entrada no (outro) pensamento pela experiência real: não se
trata de imaginar uma experiência, mas de experimentar uma imaginação. A
experiência, no caso, é a minha própria, como etnógrafo e como leitor da
bibliografia etnológica sobre a Amazônia indígena, e o experimento, uma ficção
controlada por essa experiência. Ou seja, a ficção é antropológica, mas sua
antropologia não é fictícia.

No meu caso específico, troco o sujeito de estudo ―indígena‖, por grupos humanos do
espaço considerado rural da Amazônia Oriental, amplamente conhecidos como PPCT´s,
inclusive fora dos meios acadêmicos. Não estou aqui comparando minha usual tese à singular
obra de Viveiros de Castro, autor de uma fina etnografia, que se desdobrou em irredutíveis
consequências teóricas para a Antropologia. O que faço é tentar aplicar a mesma operação por
ele realizada às conhecidas PPCT´s, ainda que de maneira rudimentar, na medida em que não
é uma operação tão comum dentro da Antropologia brasileira, permitindo pensar uma crítica à
essa Antropologia190.
Esta crítica também se estende para dois variantes do conceito de que a matriz
antropológica construiu ao longo dos anos: as culturas tradicionais e a cultura moderna. Esta
variação, assim como seu conceito inicial, é fundada na dicotomia natureza e cultura, também
pensada, fundamentada e legitimada pela Antropologia, mas também pelo próprio projeto
científico de humanidade que a mesma pressupõe, considerando que esses conceitos surgem
da dicotomia entre ―culturas tradicionais‖ e ―cultura moderna‖, ficando o tradicional relegado
ao plano dos instintos, do biológico, da natureza, enquanto que o moderno ao plano da cultura
em sua face civilizada, da razão.
Assim, procedeu-se uma experiência etnográfica composta por micro experiências
etnográficas em que se optou não por montar uma etnografia, mas sim metafísicas
189
Tomo a liberdade de utilizar essa expressão, no lugar de ―experimento‖ (verbo conjugado na primeira pessoa
do singular do presente do indicativo), com o intuito de remeter o leitor à ideia de experiência e não de
experimento (substantivo). Tal posicionamento se justifica na medida em que o segundo termo limita-se a uma
abordagem de experimentos físicos e sensoriais (experimento, substantivo), enquanto que o primeiro termo está
ligado à um contexto mais amplo (experiência, substantivo), englobando o segundo e adicionando novas
dimensões e possibilidades, como a ideia de experiência de vida, ligada a sentimentos e emoções, não se
limitando a experimentos físico-sensoriais.
190
Com efeito, deixo claro de início que não pretendo encontrar o perspectivismo ameríndio apresentado nos artigos de
Viveiros de Castro, mas apenas utilizar o seu procedimento de experimentar o pensamento do outro, para melhor entender
seu pensamento, para melhor imaginar sua imaginação.
193

experimentais (LATOUR, 2004 a) a partir dessas experiências etnográficas. O foco não é o


relato do campo e de sua experiência, mas os desdobramentos dessa experiência para a Teoria
Antropológica. Em outras palavras, não se utiliza a teoria para analisar o campo, mas o campo
para analisar a teoria191.
A seguir, explico como se deram as condições dessas ―experiências etnográficas‖.

1.4 Condições da coleta de dados

As condições de coleta de dados se deram por constantes viagens a campo, que podem
ser dividias em três momentos.
O primeiro refere-se à minha inserção em campo, estabelecida no contato com a escola
municipal localizada em Igarapé Grande. As viagens foram feitas semanalmente, por meio da
condução escolar que atende a ilha, mas nesse momento eu ainda não havia estabelecido
morada em campo192. À época, os principais interlocutores foram os funcionários e
professores da escola, muitos dos quais eram nativos e residentes da ilha, assim como o ―seu‖
Antônio Farias, um dos moradores mais antigos de Igarapé Grande e neto do ―seu‖
Domiciano de Farias, ―fundador‖ do lugar. Durante três meses, ao menos uma vez na semana
eu fui a campo e empreendi algum tipo de entrevista. Nesse período inicial, cabe ressaltar o
medo que eu tinha de ser assaltado no percurso de acesso à Igarapé Grande, pois o porto do
qual sai a condução escolar é localizado em um dos bairros mais perigosos de Ananindeua193.
Nesse sentido, equipamentos eletrônicos não eram levados, restando somente notas do
caderno e do diário de campo.
O segundo período de pesquisa se deu a partir de 23 de julho, pois foi a primeira vez
que dormi na comunidade. Assim, entre 23 de julho de 2014 e 22 de abril de 2015,
acrescentou-se à dinâmica narrada anteriormente viagens em que dormi na casa do ―seu‖
Gilberto de Farias, atual presidente da associação de moradores de Igarapé Grande. Nesses
dois períodos iniciais muitas informações foram gradualmente desveladas, ligadas a
parentesco, história da comunidade, detalhamento geográfico da região das ilhas, relação com
os recursos naturais e com o mercado fora dessa região.

191
Seria um exercício similar ao que Da Matta (1987) denominou de antropological blues e Latour (2004 a) de
metafísicas experimentais, ou mesmo Castañeda (2013) no seu clássico ―A erva do diabo‖, no qual o autor
exprime o mundo possível de seu mentor indígena.
192
Considero morada a condição de dormir e compor um cotidiano junto aos moradores de Igarapé Grande.
193
No transcorrer de um ano e meio de trabalho de campo, tive conhecimento de incontáveis assaltos, tanto no
percurso até o porto, como no próprio porto e, especialmente, no percurso de barco entre as ilhas. A prática da
pirataria é comum nas regiões insulares da RMB.
194

O terceiro momento se deu a partir de 22 de abril de 2015 chegando ao mês de janeiro


de 2016, quando então comecei a dormir na casa do ―seu‖ Dico, o morador mais antigo e mais
velho do lugar, neto do ―seu‖ Domiciano e residente na Cabeceira. A partir desse momento
passei a ser convidado para festas de aniversários, de santo, missas, festivais (de açaí e do
pescador) entre outros compromissos sociais locais, assim como aprendi a andar pelos
caminhos de Igarapé Grande e Cabeceira, sem necessidade de acompanhantes194.
Com efeito, ao longo de um ano e meio de campo coletei, junto aos habitantes de
Igarapé Grande, dados relacionados a: histórico do lugar; parentesco; formas de relação com
os não humanos no passado e no presente; disposição espacial das residências, assim como de
outras edificações do lugar; atividades econômicas; opiniões sobre felicidade. Esses dados
foram coletados não somente pela estadia propriamente dita, mas também por meio de
formulação de mapas utilizando técnicas de sensoriamento remoto; construção de árvores
genealógicas (por meio de entrevistas e questionários) para delinear não só a ocupação do
espaço ditada pelo parentesco, mas também identificar a história social das pessoas que lá
vivem; entrevistas realizadas junto a diversos moradores; questionários que capturaram tanto
dados quantitativos, quanto dados qualitativos (a maioria destes gravados), ademais de um
vasto acervo fotográfico.
As entrevistas eram livres e foram realizadas sempre que alguém se dispunha a falar
sobre as seguintes temáticas: história do lugar; parentesco; relações com os não humanos no
passado e no presente; atividades econômicas. Os questionários (Anexos) permitiram
consolidar um levantamento tanto qualitativo, como quantitativo, sobre as mesmas temáticas
expostas acima. Quanto ao critério de escolha de Igarapé Grande, o mesmo foi fruto de minha
trajetória como pesquisador e acadêmico atuante no espaço amazônico, que será detalhada no
capítulo 02.
Apresentadas as estratégias metodológicas que envolveram e desenharam a pesquisa, é
possível, finalmente, apresentar a estrutura da tese.

1.5 Estrutura do trabalho

A tese é composta por seis capítulos, ademais deste primeiro capítulo introdutório. O
capítulo 2 trata de maneira mais detalhada da construção do problema de pesquisa e suas
transformações ao longo das atividades de campo, permitindo demonstrar como cheguei ao

194
Aprendi de fato a andar nos caminhos de Igarapé Grande e Cabeceira no mês de julho de 2015, quando
efetivamente tive domínio de detalhes da mata que antes eram invisíveis para mim, mas que, após o cotidiano de
acompanhar os moradores, passei a internalizar suas explicações.
195

problema que constitui o centro da tese, proposto no início deste trabalho. Assim, esse
capítulo narra a construção e a transformação, ao longo do tempo, das propostas da tese, de
modo a elucidar o processo de construção da mesma, permitindo que o leitor entenda quais
eram as premissas teóricas iniciais, sendo estas transformadas no decorrer do trabalho de
campo. Com efeito, apresento ao leitor um pouco da minha trajetória acadêmica para então
elucidar meus pressupostos teóricos iniciais em minhas estadias em campo, para então narrar
suas transformações ao longo das experiências vividas junto aos moradores de Igarapé
Grande. Vale dizer que estas experiências tiveram como pano de fundo o cenário
socioambiental que é vivenciado pelo coletivo estudado.
No capítulo 3 descrevo o entendimento que a academia apresentou de um dos
―objetos/sujeitos‖ específicos da Antropologia no decorrer dos anos, forjando uma revisão
bibliográfica sobre a noção antropológica de ―populações tradicionais‖. Essa descrição é
repetida no capítulo 4, agora abordando o conceito de ―povos e comunidades tradicionais‖
dentro da Antropologia brasileira. Assim, me empenho em uma sociologia da ciência
antropológica (LATOUR, 2013 a, b; 2014), por meio do estudo de dois dos seus principais
meta-conceitos, que representam também um de seus principais objetos/sujeitos de estudos:
os grupos sociais denominados, pela Antropologia e sociedade brasileira, de―populações
tradicionais‖ e ―povos e comunidades tradicionais‖195.
O capítulo 5 apresenta algumas das saídas teóricas encontradas para a paralisia
epistemológica que as Ciências Sociais se deparam na atualidade, ao analisar as dicotomias
tradicional e moderno, cultura e natureza, advindas do cenário de constituição do conceito de
PPCT´s. Entre as saídas encontradas estão os diagnósticos e propostas de Latour (2014;
2013a; 2013b; 2004a, b), Viveiros de Castro (2002 a, b; 2004; 2012; 2015) e a disciplina
híbrida da Economia Ecológica com suas reflexões sobre os desdobramentos das leis da
termodinâmica. Vale destacar que Viveiros de Castro e Latour figuram como protagonistas de
uma profunda transformação da Antropologia nas duas últimas décadas. Finaliza-se este

195
Como explicado, este trabalho apresenta um capítulo específico em que se discute esta categoria de análise a
partir do prisma antropológico e jurídico. Por ora basta entender que o conceito de ―populações, povos e
comunidades tradicionais‖ divide-se em dois conceitos, a saber, ―populações tradicionais‖ e ―povos e
comunidades tradicionais‖, entendendo-os como sinônimos, ainda que apresentem algumas sutis diferenças. Para
efeitos desta introdução, lança-se mão do conceito vinculado ao decreto 6.040, de 07 de fevereiro de 2007 que,
em seu inciso I artigo 3o, conceitua esses grupos sociais como ―grupos culturalmente diferenciados e que se
reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e
recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando
conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição‖. Complementa-se este conceito com a
abordagem socioambiental formulada por Diegues (2008), a qual pensa esses grupos sociais com um modo de
vida diferenciado da sociedade maior, integrado ao ecossistema local sem impactá-lo com transformações
profundas a ponto de não permitir sua recuperação a curto prazo.
196

capítulo com reflexões construídas a partir da crítica que esses autores constroem à Teoria
Antropológica, refletindo também sobre os desdobramentos dessa crítica para a categoria
PPCT. Em outras palavras, finaliza-se o capítulo à luz da Antropologia praticada por Latour e
Viveiros de Castro, pensando as implicações da mesma para a atual Teoria Antropológica e
suas construções sobre as noções de PPCT. Com efeito, este capítulo também figura como o
construto teórico-conceitual de análise do cotidiano vivido em Igarapé Grande, exposto nos
dois últimos capítulos.
Os capítulos 6 e 7 ficam responsáveis por apresentar, respectivamente, a história de
formação do coletivo estudado e as relações entre humanos e não humanos do presente. Em
outras palavras, o capítulo 6 constrói um histórico de Igarapé Grande, iniciado em meados da
década de 1910 com o casamento do ―seu‖ Domiciano e da dona Maria dos Anjos,
desembocando no capítulo 7, que descreve o coletivo de Igarapé Grande no presente,
narrando as diversas experiências etnográficas vividas em campo e as diversas associações e
atuações entre atores humanos e não humanos. Nesses dois capítulos deixo claro os meios de
subsistência dos moradores, assim como uma boa parte de seu cotidiano e transformações ao
longo de sua história, evidenciando a crítica passível de ser feita à modernidade e à teoria
antropológica a partir desta etnografia, especialmente explicitadas na conclusão.
Em todos esses capítulos o cenário socioambiental amazônico, em especial o de
Igarapé Grande, figurou como ilustrador das críticas às contradições pensadas pela
modernidade e seu mito de criação e ordenamento do mundo, a ciência. Segue o texto da tese,
esmiuçando a estrutura aqui exposta.
197

CAPÍTULO II – DA CONSTRUÇÃO DO PROBLEMA: MINHA TRAJETÓRIA


ACADEMICA E DE CAMPO

Este capítulo apresenta a jornada percorrida na construção do problema de pesquisa


desta tese e suas consequentes hipóteses, testadas no decorrer dessa jornada196. O capítulo se
divide em cinco tópicos. O primeiro refere-se aos pressupostos iniciais, ainda quando
ingressei no coletivo197 pesquisado, ou seja, ele figura como uma espécie de prólogo de
minhas experiências de pesquisa pretéritas a esta tese, de modo a situar o leitor sobre quais
eram meus posicionamentos iniciais ao começar a pesquisa de campo. O segundo tópico
descreve o perímetro que se percorre até chegar a Igarapé Grande, passando por ruas, portos,
rios e igarapés, evidenciando a mudança que a paisagem vai sofrendo, assim como elucidando
incoerências de meu posicionamento inicial. O terceiro tópico trata da minha inserção junto
ao grupo estudado, onde descrevo minhas impressões iniciais do cenário socioambiental local.
O quarto tópico trata de como estas impressões foram modificadas no decorrer da pesquisa,
deixando para o quinto tópico o aprofundamento e a problematização dessas questões,
evidenciando especialmente o descompasso entre a teoria pensada para minha pesquisa e a
experiência de campo em si vivida, expondo, em seus parágrafos finais, o problema de
pesquisa desta tese, de modo a encerrar a narrativa da jornada que se percorreu para a sua
construção.

2.1 Pressupostos de partida no campo: minha trajetória acadêmica inicial

Minha formação foi marcada por um ―ir e vir hermenêutico‖ (GEERTZ, 1997) entre o
Direito e as Ciências Sociais, especialmente a Antropologia e a Sociologia, sempre próxima a
uma temática que por si só já carece de abordagens interdisciplinares: as populações
tradicionais amazônicas, sua relação com a natureza, a sociedade nacional e o Estado.
Tal ―ir e vir hermenêutico‖ teve início em 2005, quando do ingresso nos cursos de
Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará e Direito da Universidade da Amazônia198.

196
Ainda que dentro da seara das Ciências Humanas não seja habitual o procedimento de teste de hipóteses, o
utilizo nesta tese na medida em que estou testando conceitos formulados pela Antropologia como ciência (PPCT
e ―cultura e natureza‖) junto à uma realidade física, palpável, passível de ser experimentada, que é a realidade
vivida pelos moradores de Igarapé Grande.
197
O capítulo passado explicitou o que se entende por coletivo e as críticas feitas à noção de comunidade.
Objetivando uma leitura mais dinâmica, o termo comunidade será utilizado como sinônimo de coletivo.
198
A rigor, eu poderia dizer que o início de fato se dá ainda em minha infância, com a influência dos valores
fornecidos pela família, permeados por uma valorização do espaço rural e da natureza, em seu sentido mais lato,
ou seja, o bem viver com o planeta e seus diversos habitantes. As credenciais de minha família são: avô e avó
paternos advindos de famílias camponesas do Chile (incluindo a infância e juventude de meu pai como um
habitante da área rural da grande Santiago dos anos 1960 e, posteriormente da cidade de Cayena, Guyana
198

Durante dois anos consecutivos frequentei os dois cursos mencionados, sendo que em janeiro
de 2007 optei por prosseguir apenas no curso de Ciências Sociais, pois priorizei a formação
acadêmica como caminho profissional. Ainda dentro da temática voltada à questão
socioambiental, ingressei no mestrado do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos
da Universidade Federal do Pará (PPGD/UFPA), no qual discuti os conceitos de PPCT para
essa área do conhecimento e em cenários amazônicos. Em 2012 ingressei no doutorado e,
entre 2012 e 2013 finalizei a graduação em Direito. Em 2014 ingressei na Escola Superior
Madre Celeste (ESMAC), como professor das disciplinas de Direitos Humanos e,
posteriormente, de Métodos e Técnicas de Pesquisa, para o curso de Direito. Assim, o ir e vir
hermenêutico se manteve durante todo o doutorado.
Nesse sentido, alguns questionamentos que permeiam este trabalho iniciam-se ainda
na graduação, quando se debatia nas aulas de Metodologia, Sociologia (weberiana,
durkheiminiana, marxista), Teorias e Metodologias da Antropologia, entre tantas outras
disciplinas, a questão da epistemologia das Ciências Sociais, em especial da Antropologia,
que se aprofundaram especialmente no doutorado. Como fabricar ciência? Como fazer
Antropologia? Como objetivar a multiplicidade de subjetivações que nos rodeiam nesse
―mundo social‖? Ou, mais especificamente, no caso da Antropologia, como fabricar um fato
etnográfico? Seria esse processo de fabricação objetivo o suficiente para ser classificado
como científico? Se a etnografia é um exercício de relatar a experiência de uma alteridade
radical, ou o relato do ―encontro etnográfico‖, com horizontes hermenêuticos tocando-se
(CARDOSO DE OLIVEIRA, 1993), seria possível capturar a cultura do grupo estudado?
Como construir esse relato de maneira objetiva?
Estas indagações, passando pela formulação de novas indagações que surgiam no bojo
das leituras, com descobertas de novos textos, com novas posturas, novos olhares, novos
autores, desenhavam um mundo de possibilidades teóricas, um número sem fim de teorias que

Francesa, ecossistema amazônico dos anos de 1980), avô e avó maternos advindos de famílias interioranas e
camponesas do estado de São Paulo. Minha mãe, paulista e habituada ao espaço rural do sudeste brasileiro, em
sua condição de antropóloga que estudou camponeses amazônicos, permitiu a descortinação do diferenciado
mundo rural amazônico, marcado pelo agroextrativismo e não por lavouras como se dava no sudeste brasileiro.
Posso citar, ainda, outros elementos, como o programa da TV Cultura denominado de ―Planeta Terra‖ (com
homônimo musical de entrada interpretado por Caetano Veloso), que passava nos fins de tarde dos dias de
domingo; as revistinhas da turma da Mônica, Chico Bento e Papa Capim,dos anos 1980e início de 1990, que
pude ler (doadas por meus primos paulistas mais velhos), escritas por pessoas que vivenciaram a urbanização do
rural paulista (elementos não humanos como árvores frutíferas, bairros com laguinhos para se tomar banho,
animais silvestres, lendas locais, foram desaparecendo com o passar dos anos, pouco sendo ativadas nos dias de
hoje nessas historinhas); o quintal da casa da minha avó materna, sendo composto por galinhas, patos, picotas,
goiabeiras, ingás, cacaueiros, hortas, um verdadeiro parque de diversões, localizado no centro urbano de Belém
da década de 1990 (rua Almirante Wandenkolk). Estes foram alguns dos elementos que, penso, me
influenciaram a percorrer a caminhada da pesquisa em áreas rurais.
199

serviam de lentes para melhor entender as múltiplas realidades que se colocavam diante de
mim, um verdadeiro caleidoscópio contraditório e de contradições, absoluto do ponto de vista
de quem vê, relativo no momento em que se move.
O que aprendi no curso de Ciências Sociais a princípio me pareceu, na imaturidade de
minha formação, uma proposta simples: a ciência é um tipo de conhecimento (como a
religião, filosofia, senso comum, entre outros), contudo, é o mais legítimo entre eles, na
medida em que resulta em verdades. Na rota de seu fazer, a ciência lança mão de três
elementos básicos: teoria, objeto e método (ALVES, 2007; DURKHEIM, 2002; MARQUES
NETO, 2001; BLANCHÉ, 1988; FERRAZ JUNIOR, 1977). Claramente delineados esses três
elementos, tem-se uma ciência. Assim, a Antropologia, para constituir-se em uma ciência,
teria a cultura como objeto, a observação participante, a descrição densa e a etnografia como
métodos, ademais de um vasto arsenal de teorias, que passavam por categorias e conceitos
como parentesco, campesinato, territórios, territorialidades, trabalhadores rurais, índios,
negros, quilombos, agricultores familiares, teorias culturais, estudos culturais, favelas,
morros, periferias, religiões, gênero, sexo, costume, tradição e assim segue o percurso dos
meta-conceitos explicativos da Antropologia.
Em outras palavras, a Antropologia tinha seu objeto (culturas tradicionais), seu
método (observação participante, descrição densa, resultando em uma etnografia) e sua teoria
(os meta conceitos recém citados, entre tantos outros). Aparentemente, a Antropologia podia
constituir-se como ciência, mas, qual o seu grau de objetividade, já que ela opera com objeto e
método de estudo que se constituem, eles mesmos, em metaconceitos de difícil definição,
generalização ou mensuração? A Antropologia logra ser fidedigna no relato da cultura alheia?
Para responder a tal conjunto de dúvidas e incertezas, dentro da Antropologia
contemporânea, o mais comum é acionar a figura de Clifford Geertz (1993; 1997; 2001) e
seus ensaios interpretativistas sobre as culturas humanas199, que trouxeram para a ordem do
dia da Teoria Antropológica o conceito de cultura como uma teia de significados construída
pelo homem, na qual ele se movimenta, sendo a função do antropólogo/a somente descrever
essa teia de significados, ainda que com uma postura relativizadora.
Essa maneira de entender a cultura e essa postura relativizadora permitiu, por algum
tempo, respostas importantes e instigadoras dentro da Antropologia. Ocorre que as
conjunturas de pressão sobre camponeses, quilombolas, indígenas e PPCT de forma geral, se

199
Apenas a título elucidativo vale salientar que a protocultura, compreendida como presente para a vida social
dos demais grandes símios, vem na atualidade sendo rediscutida e repensada, dado que a cultura, como uma
produção exclusivamente humana, figura como tema de estudos tanto da área antropológica, mas aparecendo
também na etologia.
200

intensificaram nas últimas décadas transformando esse cenário confortável e profícuo de


respostas. As comunidades rurais e indígenas vêm se transformando em uma velocidade
muito grande com a intensificação do contato com o mundo globalizado e moderno e, nesse
contato, muitas vezes mediado pela expansão do agronegócio, mineração, urbanização e
grandes projetos em geral, as PPCT e a sua ―cultura tradicional‖ terminam por serem
―modernizadas‖ não só em suas práticas sociais e uso de recursos naturais e objetos em geral,
mas, especialmente, em seu entendimento de mundo. Elas, antes excluídas da sociedade
maior, adentram-na por meio de sua margem mais longínqua. Deixam de ser comunidades
rurais de agricultores familiares donos de sua terra (ao menos com direito à posse), para serem
comunidades de trabalhadores rurais (assalariados)200 ou comunidades pobres que o meio
urbano alcançou e marginalizou201, com péssimas condições de trabalho, destituídas de sua
forma secular de pensar e entender o mundo.
Essa constatação, resultante de quase um ano de trabalho de campo para a tese, me
remeteu a novas leituras que permitiram novas indagações teórico/metodológicas. Vale
salientar que esse não foi um percurso simples. Primeiro vieram as inquietações relativas à
formação da categoria populações, povos e comunidades tradicionais, iniciando por meio de
leituras antropológicas que, depois, passaram por leituras jurídicas e que ensejaram novas
dúvidas que merecem ser aqui elencadas: para conceder direitos a esses grupos, devemos
entender quem são os mesmos? Para tanto, antropólogos devem ser acionados, fabricando
fatos etnográficos que classifiquem ou não um grupo estudado como ―tradicional‖, logo,
sujeitos de direitos específicos? Mas, como se daria a fabricação dessa ―tradicionalidade‖, ou,
melhor dizendo, como se distinguiria o que é tradicional e o que não é tradicional (moderno)?
Seria uma característica objetiva? Subjetiva?
Estas dúvidas e questionamentos, frutos da trajetória intelectual até aqui narrada,
foram acompanhadas por atuações em projetos de pesquisa e extensão que abordavam a
realidade amazônica a partir de uma perspectiva interdisciplinar e socioambiental. Alguns
desses projetos marcaram meu olhar de pesquisador, permitindo perceber as especificidades
da realidade amazônica, suas populações povos e comunidades tradicionais, a peculiar relação
que desenvolviam com o meio ambiente e a fragilidade e invisibilidade com a qual estavam
marcadas perante a sociedade nacional e o poder público. Esse cenário instigou ainda mais a
preocupação em como melhor representar as comunidades estudadas pela Antropologia, sem

200
Penso aqui no clássico livro de Velho (1976), ―Capitalismo autoritário e campesinato‖, que narra o avanço da
fronteira do grande capital para as vias campesinas.
201
Algo similar ao ocorrido com o processo de espoliação urbana, como narrado por Kowarick (1983), mas com
algumas adaptações, conforme esbocei em Ravena-Cañete e Ravena-Cañete (2010).
201

cair em objetivismos ou subjetivismos, permanecendo no terreno da objetividade e da


subjetividade. Procedo com a narrativa desses cenários de pesquisa empírica.

2.1.1 Trajetórias de pesquisa no cenário socioambiental amazônico

Como iniciante da vida acadêmica, atuei como voluntário durante sete anos (2005-
2012) em um projeto de extensão que teve como foco de intervenção uma área periférica de
Belém. A área lócus do projeto configurava-se em uma comunidade à margem de um corpo
d‘água, denominado de Igarapé Mata Fome (doravante IMF). Essa comunidade é formada por
uma população advinda de diferentes áreas do estado do Pará, mais especificamente do baixo
Tocantins e do Marajó, sendo caracterizada por práticas sociais específicas de relação com os
recursos naturais. Participei de outros projetos desenvolvidos nessa área, com o mesmo grupo
de pesquisa, dessa forma, durante este trabalho esses projetos serão referidos apenas como
Projeto IMF.
Outro projeto que influenciou e redirecionou meu olhar refere-se ao projeto ―Gestão
das águas na Amazônia: peculiaridades e desafios no contexto político-regional da bacia do
rio Purus‖ (CNPq/PPG7). Nele atuei inicialmente na condição de voluntário e posteriormente
como bolsista de iniciação científica e, finalmente, colaborador voluntário, ampliando minha
compreensão e proximidade com a temática socioambiental. Meu vínculo como bolsista
terminou em dezembro de 2007, no entanto, permaneci como colaborador voluntário no
projeto em questão, visto que meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) na graduação em
Ciências Sociais (com ênfase em Antropologia) voltou-se para as populações tradicionais do
rio Purus, em especial os ribeirinhos do percurso Lábrea/Canutãma/Tapauá (AM).
O projeto acima mencionado desdobrou-se em outros projetos que também abordavam
a relação entre sociedade e ambiente no contexto do rio Purus, oportunizando a somatória de
mais de seis anos de pesquisa sobre este rio e seus habitantes. Esses projetos serão referidos
no decorrer desta pesquisa apenas como Projeto Purus.
Vale observar que no decorrer desses seis anos, de forma paralela, atuei em outros
projetos de pesquisa. Assim, outra experiência marcante em minha trajetória acadêmica foi o
período de dois anos e meio como estagiário e, posteriormente, como assistente de pesquisa
em projetos coordenados pela Profa. Dra. Oriana Trindade de Almeida do Núcleo de Altos
Estudos Amazônicos (NAEA/UFPA), entre 2008 e 2010. Esses projetos abordavam a
temática da pesca na Amazônia paraense, possibilitando o contato com outros tipos de PPCT
amazônicas, a saber, os pescadores artesanais e ribeirinhos polivalentes no sentido colocado
202

por Furtado (1993), expandindo meu olhar sobre a realidade socioambiental da região.
Durante esse período pude conhecer colônias, associações e comunidades de pescadores,
assim como associações e comunidades agroextrativistas dos municípios de Igarapé Miri,
Cametá, Oeiras do Pará, Abaetetuba, Curuçá, São Caetano de Odivelas, Colares, Vigia, Viseu
e diversos outros municípios do litoral paraense e da mesorregião do Baixo Tocantins.
Buscando ampliar meu olhar de cientista social, de maneira paralela à minha trajetória
acadêmica, no ano de 2009 retornei parcialmente à graduação em Direito (cursando algumas
disciplinas) e ingressei no Escritório Técnico de Assistência Jurídica e Judiciária da UNAMA
(ETAJJ), possibilitando uma maior intimidade com a prática jurídico-processual,
especialmente na área cível. A experiência de pesquisa, aliada ao contexto da atuação na área
do Direito, me permitiu perceber padrões e especificidades nas práticas sociais de relação com
a natureza das populações tradicionais amazônicas, fruto de condições socioambientais e
históricas, treinando e ampliando meu olhar de pesquisador social. Essa experiência também
me permitiu conjugar a empiria da realidade socioambiental amazônica com as produções
acadêmicas e os instrumentos jurídico-legais da região, gerando um olhar crítico sobre tais
produções e instrumentos.
Finalmente, nos últimos três anos (2011 a 2013), duas experiências foram marcantes
para minha trajetória acadêmica e, consequentemente, para a construção desta pesquisa, a
saber: o mestrado em Direito que cursei e o trabalho desenvolvido junto à Superintendência
do Patrimônio da União (SPU).
Assim, a primeira destas experiências refere-se ao curso de mestrado que realizei no
Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPA, na linha de pesquisa em Direitos Humanos
e Meio Ambiente, durante o período de março de 2010 a março de 2012. Na referida
oportunidade desenvolvi uma dissertação voltada à análise da aplicabilidade dos conceitos de
populações, povos e comunidades tradicionais à realidade social das mesmas, construindo
uma revisão bibliográfica sobre os conceitos jurídicos e acadêmicos de ―populações
tradicionais‖ e ―povos e comunidades tradicionais‖, evidenciando suas diferenças, assim
como suas incongruências, ambivalências e inaplicabilidades às realidades tão diversificadas
desses grupos sociais. Utilizei como exemplo as comunidades ribeirinhas do Purus, no
percurso dos municípios de Lábrea, Canutãma e Tapauá (todos no estado do Amazonas),
assim como o caso da comunidade Bom Jesus I, localizada às margens do Igarapé Mata
Fome, um corpo d‘água da região urbana de Belém/PA, sendo estes cenários sociais já
conhecidos por mim em virtude de minha participação nos projetos Purus e IMF, como
relatado acima.
203

Em certo sentido, a dissertação serviu como um preâmbulo para a escrita desta tese,
pois sua argumentação principal era a de que a produção legislativa nacional era feita por
legisladores que tinham como plano ontológico a separação do ser humano da natureza, a
crença de que existe uma dimensão do mundo que é da natureza e outra que é da cultura.
Assim, uma série de legislações eram citadas e analisadas à luz da realidade socioambiental
da Amazônia, trazendo indícios de que essa legislação não se aplica à realidade
socioambiental de PPCT.
Com efeito, pude concluir que a elaboração da norma jurídica deve assumir uma
postura diferenciada ao tratar de PPCT, na medida em que estes grupos apresentam práticas
sociais de relação com a natureza específicas, diferenciadas da sociedade maior, assim como
identidades, valores e crenças culturais diversificadas entre si202 e novamente em relação à
sociedade maior. Consequentemente, diversas políticas públicas voltadas para estes grupos
sociais terminam por homogeneizar suas diferenças, transformando-se de políticas de inclusão
social203 para ferramentas políticas de exclusão ou homogeinização social, como foi o caso
das Reservas Extrativistas (doravante RESEX) que, criadas pelas demandas e com intensa
participação das próprias PPCT, inicialmente eram entendidas como uma solução, sendo que
atualmente podem ser entendidas como um problema (LOBÃO, 2006; ROSA, 2012;
RODRIGUES, 2011204).
Em 2012, logo após a conclusão do mestrado, entrei no doutorado do Programa de
Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia com um projeto de pesquisa que abordava a
diversidade da pesca artesanal e o atual tratamento que o Ministério da Pesca e Aquicultura
lhe despendia, contudo, como ainda não tinha sido disponibilizada bolsa de doutorado,
estabeleci relações profissionais junto à Superintendência do Patrimônio da União,
participando do projeto de pesquisa e extensão ―Caracterização dos Imóveis da União em
202
Estas práticas sociais de relação com a natureza expressam-se em uma diversidade de maneiras de cultivar o
solo, nas espécies cultivadas, nas formas de extração de recursos naturais das florestas e corpos d‘água, na
variabilidade de recursos extraídos assim como no próprio consumo desses produtos, permeado por regras
sociais que ditam a maneira de prepará-los e consumi-los. Como exemplo, cito a diversidade de técnicas de
roçado existentes na Amazônia, variando de ecossistema para ecossistema e de coletivo para coletivo. Moran
(1990), Maués (1999) e Hebette (2004), entre tantos outros autores e autoras, detalham essa diversidade
sociocultural e ambiental dos povos da Amazônia.
203
Entre essas políticas pode-se citar especificamente: políticas ambientais de áreas especialmente protegidas;
transferência de renda; reforma agrária; previdência social; políticas educacionais; políticas trabalhistas. No caso
do coletivo em estudo, pode-se adiantar que o posicionamento rígido das políticas de erradicação de trabalho
infantil e o acesso à escola vêm retirando a criança do ambiente familiar como uma unidade de produção,
dificultando a aprendizagem de práticas de uso da terra e exploração de recursos naturais desenvolvidas pelas
gerações anteriores; os projetos de produção rural não têm continuidade dentro de Igarapé Grande; a política de
transferência de renda vem apresentando um forte impacto no modo de vida local, na medida em que algumas
famílias limitam-se a essa renda, deixando de lado outras atividades produtivas.
204
Comunicação oral de Osmarino Amâncio Rodrigues, por meio de palestra do V SIINGA, VI SINGA 2011, 07
a 11 de novembro. Mesa redonda ―Formas de apropriação dos recursos naturais na Pan-Amazônia‖, 09.11.2011.
204

Apoio à Regularização Fundiária: Cidadania e Sustentabilidade para a Amazônia Paraense‖.


No referido projeto desenvolvi atividades de regularização fundiária em terrenos de marinha.
Estes são bens indubitavelmente da União, materializados em uma faixa de trinta e três metros
após a várzea de rios federais sob influência das marés (rios que têm uma oscilação diária de
mais de cinco centímetros em seus níveis de água)205.
Durante as atividades desenvolvidas junto à SPU tive a oportunidade de conhecer o
TAUS206 e os benefícios que este instrumento trazia para as comunidades ribeirinhas. Entre
esses benefícios pode-se citar:
a) O reconhecimento do uso e garantia na segurança da posse;
b) O compromisso de residência oficial;
c) O auxílio ao acesso à aposentadoria;
d) O acesso a linhas de crédito para o financiamento de produção;
e) A inclusão nos programas sociais do governo federal207.
Muitos foram os relatos de ribeirinhos que defendiam o TAUS, arguindo a garantia de
direitos territoriais que esse instrumento trazia, assim como o acesso a outras políticas
agrárias e de inclusão social. Esse era o discurso oficial, institucionalizado pela SPU e muito
difundido pelos ribeirinhos que procuravam a referida instituição.
Ocorre que, com o passar do tempo, também tive a oportunidade de escutar discursos
destoantes daquele recém relatado, demonstrando fragilidades nos procedimentos
administrativos de expedição deste instrumento, assim como fragilidades jurídicas do mesmo,
nem sempre alcançando sua função essencial, a saber, regularizar o uso do bem público,
sendo este uso exercido por comunidades ribeirinhas.
Dentre essas fragilidades vale ressaltar o procedimento de arrecadação208 para o
patrimônio da União das ilhas localizadas em rios federais sob influência de marés. Este

205
Para mais detalhes, consultar SPU (2008; 2014).
206
Termo de Autorização de Uso Sustentável. Instrumento administrativo utilizado pelo governo federal para
oficializar o uso de suas áreas por comunidades rurais e agroextrativistas. Para mais detalhes, consultar Souza
Filho (1999), Carvalheiro et al. (2010), Ravena-Canete (2014), Marques e Ravena-Canete (2014).
207
Citam-se alguns exemplos: Programa Bolsa Verde, que faz parte do Plano Brasil sem Miséria (seu nome
oficial é Programa de Apoio à Conservação Ambiental, mais detalhes consultar
http://www.mma.gov.br/desenvolvimento-rural/bolsa-verde); o Cadastro Único (ou CadÚnico), instrumento
governamental que identifica e caracteriza as famílias de baixa renda (mais detalhes:
http://www.mds.gov.br/bolsafamilia/cadastrounico); programa de financiamento habitacional desenvolvido pelo
governo federal, denominado de Minha Casa Minha Vida, em seu âmbito rural (mais detalhes em
http://www.caixa.gov.br/habitacao/mcmv/) ; Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, que
financia projetos individuais ou coletivos, que gerem renda aos agricultores familiares e assentados da reforma
agrária (mais detalhes: http://portal.mda.gov.br/portal/saf/programas/pronaf), entre outros.
208
Em apertada síntese, este ato administrativo consiste no processo de identificar se a ilha está em um rio
federal, separar as terras objeto de títulos de propriedades válidos dentro da ilha, para então arrecadá-la e
registrá-la como de propriedade da União.
205

procedimento detém um alto grau de complexidade, pois envolve atividades de campo,


pesquisas cartoriais, expedição de editais e uma série de outras atividades administrativas, até
resultar na arrecadação da ilha. Com efeito, tomei conhecimento que uma das poucas ilhas
arrecadadas seria a de João Pilatos, que é ocupada por comunidades ribeirinhas e objeto de
TAUS, despertando minha curiosidade no sentido de entender melhor qual o procedimento de
arrecadação que fora adotado, assim como entender os impactos que o TAUS promoveu na
ilha.
A referida ilha localiza-se no município de Ananindeua/PA e, a despeito de sua
proximidade geográfica, a oportunidade para iniciar minha pesquisa de campo demorou
bastante. Com efeito, explico no próximo tópico como cheguei à ilha e à comunidade
estudada, assim como relato algumas das experiências por mim vividas junto aos seus
moradores, de modo a problematizar meus conceitos teóricos iniciais articulando-os ao
cenário social da ilha, resultando no atual problema de pesquisa.
206

2.2 Trajeto percorrido até Igarapé Grande


Para se chegar à ilha de João Pilatos existem duas opções. Uma refere-se à
embarcação que sai da ilha de Outeiro, no porto denominado de Fidelis. Outra opção refere-se
ao porto do Surdo, localizado no bairro do Curuçambá. A localização desses portos é
evidenciada em pontos amarelos no Mapa 01 (exposto no capítulo 1). As embarcações de
linha que saem do porto do Surdo (Curuçambá) vão para a comunidade de Nova Esperança
enquanto que as embarcações de linha que saem do porto de Fidelis (Outeiro) vão para a
comunidade João Pilatos, sendo que ambas as comunidades localizam-se na maior ilha de
Ananindeua, denominada de João Pilatos.
Assim, para aqueles que não possuem embarcação e que não possuem nenhum tipo de
relação de parentesco ou compadrio com alguém que permita usar uma embarcação, as
opções para se chegar à comunidade de Igarapé Grande, lócus deste estudo, são três: a) pegar
uma linha de barco informal que sai do porto de Fidelis (Outeiro) e vai até a comunidade João
Pilatos (ilha de João Pilatos), desembarcando e percorrendo por trinta minutos uma trilha pelo
meio da mata; b) saindo do porto do Surdo (Curuçambá), por meio de uma condução fluvial
informal, e chegando à comunidade Nova Esperança a fórmula se repete, ou seja, deve-se
adentrar uma trilha que cruza a mata, chegando à comunidade de Igarapé Grande em
aproximadamente trinta minutos de caminhada; c) a última opção configura-se na condução
escolar fluvial que sai do porto do Surdo por volta das sete horas da manhã, passando por
algumas comunidades recolhendo os alunos, até chegar a Igarapé Grande em um espaço de
tempo de aproximadamente uma hora209.
Inicialmente, eu ia à comunidade por meio da condução escolar, com poucas exceções
nas quais o ―seu‖ Gilberto, presidente da associação dos moradores da Comunidade de
Igarapé Grande, me levou à ilha em sua embarcação. Nas primeiras vezes que fui, a variável
da segurança pública foi algo que foi evidenciado em conversas informais que tive com os
moradores do Curuçambá, assim como os próprios moradores das ilhas. Vale ressaltar que
este é popularmente conhecido como um bairro violento e de periferia do município de
Ananindeua, sendo que essa variável trouxe algumas limitações à pesquisa de campo, pois
nem sempre me sentia à vontade para levar equipamentos eletrônicos como máquinas e
gravadores digitais, contudo, tive a oportunidade de capturar um pouco da perspectiva
imagética do percurso que faço quando vou à comunidade.

209
Desde já deixo expresso meus agradecimentos aos funcionários da escola Domiciano de Farias, especialmente
ao seu diretor, o ―seu‖ Aureliano Junior, que frequentemente permite minha presença não só na escola, como na
lancha que leva os alunos até lá.
207

Na medida em que minhas idas a campo eram realizadas, pude notar como as
paisagens iam transformando-se no decorrer do percurso do porto do Surdo, as quais iam
gradualmente metamorfoseando-se de um ambiente urbano para uma Amazônia rural.
Dentro desse cenário, faz-se relevante observar que moro a poucos minutos de carro
do Porto do Surdo, e, como recém explicitado, na medida em que me aproximava do referido
porto, a paisagem urbana cedia lugar a elementos de uma vida rural. De uma rua cercada por
casas e intensamente permeada por carros, passa-se a ver inúmeras árvores de diversas
espécies; as casas passam a apresentar um traço mais rústico e mais simplificado, localizando-
se cada vez mais distantes umas das outras; a quantidade de carros sofre uma significativa
diminuição, assim como o número de pessoas andando na rua se apresenta como
inversamente proporcional à diminuição dos carros. É um cenário de transição. Chegando ao
porto do Surdo, a transição está quase completa, pois em suas proximidades é possível ver
algumas casas com criações de aves de pequeno porte, açaizais (Euterpe Oleracea), casas
pequenas, algumas feitas de madeira e no formato de palafita, com extensos quintais.
A sequência de fotografias, expostas a seguir, permite uma perspectiva visual do
caminho para o porto do Surdo e das mudanças relatadas.

Fotografia 02: Rotatória dos cruzamentos da avenida Independência, rodovia do 40 Horas e


rua Estélio Maroja

Fonte: Arquivo pessoal (2014)

A Fotografia 02 foi feita a partir da perspectiva de um posto de gasolina, com outro


posto de gasolina na esquina oposta, ao fundo da imagem. O fluxo de carros que percorre o
local é intenso. Ao centro localiza-se a rotatória que divide o cruzamento entre a avenida
Independência, a rodovia do 40 Horas e a rua Estélio Maroja. Ao centro da rotatória aparecem
208

placas com anúncios diversos, entre eles, festas de aparelhagens e de conclusão de obras
governamentais de urbanização. Minha residência localiza-se na rodoviado 40 Horas, há
poucos metros da esquinavista ao fundo da Fotografia 02. Na condição de um morador dessa
região há mais de vinte anos, sou testemunha do processo de ocupação dessa rodovia, que se
intensificou nos últimos oito anos, com a expansão do mercado imobiliário da Região
Metropolitana de Belém e o crescente número de condomínios populares que por aqui se
instalaram.

Fotografia 03: Rua Estélio Maroja

Fonte: Arquivo pessoal (2014)


209

Fotografia 04: Avenida Independência

Fonte: Arquivo pessoal (2014)

Do centro da rotatória que aparece na Fotografia 02 foi tomada a Fotografia 03,


evidenciando-se o intenso fluxo de carros, assim como o intenso número de casas, construídas
lado a lado, caracterizando o uso do espaço dentro do cenário urbano. Na Fotografia 04,
tomada na entrada da continuação da avenida Independência, na perspectiva de quem estava
dentro da rotatória exposta na Fotografia 02. Verifica-se um fluxo de carros não tão intenso,
assim como casas mais simples, diferentemente da Fotografia 03, que mostra a rua que vem
dos conjuntos da Cidade Nova, com um alto grau de urbanização.
Assim, as Fotografias 02, 03 e 04 expõem o gradiente que o percurso da urbanização
perfaz no município de Ananindeua. Inicialmente expõe-se a rodovia do 40 horas (Fotografia
02), amplamente dominada por condomínios, sendo o condomínio em que moro o primeiro a
ser construído na referida rodovia210, localizando-se a poucos metros da rotatória exposta na

210
Digno de nota é o fato de que moro no referido condomínio há mais de vinte anos e fui testemunha das
transformações que o espaço dos arredores desse condomínio sofreu. Como exemplo, cito o fato de que no
período em que me mudei, meados de 1990, existia somente o condomínio que eu residia e a maior parte do
espaço restante era constituído por sítios e chácaras, ou seja, a rodovia do 40 horas era uma região rural. O
terreno que ficava ao lado do meu condomínio era um sítio com mata fechada, sendo que quando ainda era
criança, eu acordava com o barulho de macacos que ficavam nas árvores da referida mata. Esse sítio foi
transformado em outro condomínio e a mata foi derrubada, e, nesse mesmo período, meu condomínio encheu-se
de animais diversos que fugiam da devastação de suas matas. Entre esses animais posso citar especificamente
cinco espécies das quais me lembro: quatis, cobras, mucuras, lagartos, papagaios e periquitos. Ficarei por aqui na
narrativa de como a rodovia do 40 horas era rural, ainda que em minha lembrança existem muitos outros
exemplos.
210

Fotografia 02; passando pela rua Estélio Maroja (Fotografia 03), adjacência dos diversos
conjuntos habitacionais popularmente conhecidos como Cidade Nova, amplamente
urbanizados e já tendo sido objetos de processos de expoliação urbana (KOWARIC, 1983),
finalizando na avenida Independência, recém-construída, por isso ainda não tão urbanizada e
homogeneizada, permitindo o encontro com formas de uso e ocupação do espaço que se
confundem com características do espaço rural. Exponho a seguir algumas fotos desses
espaços de transição entre o mundo urbano e o mundo rural que ainda se manifestam na
avenida Independência.

Fotografia 05: Casas da avenida Independência

Fonte: Arquivo pessoal (2014)


211

Fotografia 06: Área com vegetação na avenida Independência

Fonte: Arquivo pessoal (2014)

A Fotografia 05 expõe quatro casas, todas com especificidades em suas construções,


que passam pela diversidade do material, dimensões, direcionamento e o formato, entre outras
características no uso do espaço. Assim, a primeira casa da esquerda para a direita é de
madeira, tendo sua frente voltada para a diagonal da rua, enquanto que a segunda casa, muito
maior que a primeira, é feita de alvenaria e é voltada diretamente para rua, da mesma maneira
que as duas próximas residências.
Já na Fotografia 06 é possível ver uma área coberta por uma extensa faixa de árvores,
um tipo de paisagem raro em espaços urbanos. Esta área localiza-se um pouco mais adiante
do local da Fotografia 05, evidenciando a diversidade do uso do solo, característica de um
espaço de transição entre o meio urbano e o meio rural.
Chegando ao porto, pode-se dizer que a vida está mais atrelada às lógicas rurais do que
às urbanas. As casas são de madeira, a rua é de terra batida e o tempo do rio influencia
sobremaneira o cotidiano local.
212

Fotografia 07: Primeira parte da passagem que dá acesso ao porto do Surdo, ainda com
asfalto

Fonte: Arquivo pessoal (2014)

Fotografia 08: Segunda parte da passagem que dá acesso ao porto do Surdo, já sem

asfalto
Fonte: Arquivo pessoal (2014)
213

Fotografia 09: Portão que dá acesso ao porto do Surdo

Fonte: Arquivo pessoal (2014)

Nesse sentido, vale esclarecer que os moradores das ilhas de Ananindeua estão
dispostos em diversas comunidades, sendo que nem toda ilha está ocupada, no entanto,
algumas apresentam mais de uma comunidade. Esse é o caso da ilha de João Pilatos, que
apresenta, ademais da comunidade de Igarapé Grande, as comunidades de Maritubinha I,
Maritubinha II, João Pilatos, Nova Esperança, e outras.
Como este trabalho limita-se à comunidade de Igarapé Grande, os próximos tópicos
descrevem o percurso fluvial e o coletivo estudado.

2.2.1 Percurso fluvial até Igarapé Grande

Como explanado acima, existem três maneiras de se chegar à comunidade de Igarapé


Grande. Neste tópico explica-se a opção fluvial que sai do porto do Surdo, via condução
escolar, dando continuidade ao percurso narrado no tópico anterior. A condução escolar chega
ao porto por volta das sete horas da manhã (Fotografia 10).
214

Fotografia 10: Moradores da região das ilhas circulando no porto do Surdo. Destaque para
uma das duas embarcações escolares do município de Ananindeua, que transporta os alunos
da região das ilhas para a escola municipal que fica em Igarapé Grande

Fonte: Arquivo pessoal (2014)

Na fotografia acima é possível ver um pouco do cotidiano do porto do Surdo, como


alguns moradores das ilhas chegando e descarregando a sua produção, familiares vindo buscar
ou deixar parentes no porto, famílias indo para o centro urbano para fazer compras domésticas
ou indo atrás de algum serviço, como hospitais, previdência social, ou até mesmo indo para
seus empregos na cidade.
Na Fotografia 10, é possível ver em primeiro plano o ―seu‖ Paraco, morador da
comunidade de Igarapé Grande, descarregando sua produção de açaí no porto. Também é
possível ver algumas canoas carregadas com utensílios para levar para a região das ilhas e
uma das conduções escolares que leva alunos e alunas do Curuçambá e da região das ilhas até
a Escola Domiciano de Farias, localizada na comunidade de Igarapé Grande.
Chegando ao porto, o que mais chama a atenção é a sua movimentação. Muitas são as
pessoas lá presentes, desde a família dona do porto, passando pelos funcionários/as da escola
alguns de seus/as alunos/as, ademais de seus pais e as diversas pessoas que circulam nesse
universo ribeirinho, no ir e vir da maré, acompanhada por esse povo que a conhece desde a
mais tenra idade.
Todos têm alguma história para contar sobre o rio, como mitos e lendas de
encantados/as, botos e cobra grande, ou mesmo um acontecimento banal, mas, que muito
215

importa a essas pessoas: um peixe pescado com o pai, um banho acompanhado de um boto,
um passeio na casa da avó, enfim, o rio faz parte do mundo físico e simbólico dessas pessoas.
Após aguardar todas as crianças e funcionários/as da escola embarcarem, parte-se para
navegar no rio, deixando para trás o porto e sua movimentação. No trajeto vê-se a extensa
várzea do rio Maguari, que equivale ao bairro do Curuçambá (Ananindeua/PA) de um lado e
do outro as ilhas do município de Ananindeua. Outrora rica em biodiversidade, hoje é
composta por algumas espécies de vegetais e crustáceos, mas ainda assim mais biodiversa que
as beiradas dos muitos igarapés urbanos transformados em canais no município de Belém e
mesmo Ananindeua. A Fotografia 11 permite uma perspectiva das beiradas do rio Maguari.

Fotografia 11: Beiradas do rio Maguari. Trajeto que sai do porto do Surdo e leva até Igarapé

Grande
Fonte: Arquivo pessoal (2014)

No decorrer da viagem, veem-se alguns ribeirinhos indo em direção do porto ou outros


destinos, como a visita a um conhecido ou rumo a um roçado, tapagem ou mesmo indo pescar
ou colocar matapis. Na Fotografia 11 é possível ver uma pequena embarcação que ia em
direção ao porto. Mais à frente começam a aparecer algumas residências e povoados. O maior
deles é a comunidade Nova Esperança, responsável por despejar uma boa quantidade de
crianças na condução escolar, deixando o clima ainda mais barulhento, entretanto, mais alegre
também. Na Fotografia 12 exposta abaixo é possível ver o porto de entrada da comunidade de
216

Nova Esperança e alguns alunos e alunas aguardando a condução escolar fluvial. A fotografia
foi tomada, vale dizer, da condução em questão.

Fotografia 12: Porto de entrada da comunidade de Nova Esperança e alguns alunos e alunas
aguardando a condução escolar fluvial

Fonte: Arquivo pessoal (2014)

Continuando a navegar, nota-se que a grandeza do rio vai aumentando, demonstrando


a potência dos recursos naturais invisíveis aos cidadãos de Ananindeua, como pode ser visto
na Fotografia 13.
217

Fotografia 13: Recursos naturais ainda preservados nas ilhas de Ananindeua

Fonte: Arquivo pessoal (2014)

2.3 O coletivo de Igarapé Grande

Para as pessoas que não são ―legítimas‖ ou ―tradicionais‖ da ilha, a porta de entrada da
comunidade é o trapiche que fica em frente à Escola Municipal Domiciano de Farias.
Vale ressaltar que coloco entre aspas os termos ―legítimas‖ e ―tradicionais‖ porque
foram utilizados por alguns moradores da comunidade, quando questionados sobre a história
de ocupação da mesma, lançando mão do fato de serem legítimos e tradicionais na medida em
que nasceram na localidade e são herdeiros do ―seu‖ Domiciano de Farias, fundador da
comunidade. Este discurso é repetido por moradores de outras ilhas e comunidades,
permitindo estender esse atributo de legitimidade e tradicionalidade à região das ilhas de
Ananindeua. Assim, a legitimidade e a tradicionalidade podem ser tanto em relação à
comunidade como em relação à região das ilhas211.
Nesse sentido, as pessoas legítimas e tradicionais, tanto da comunidade como da
região das ilhas, utilizam portos ou de sua propriedade, ou de parentes e amigos/as, assim

211
Considerando que este tópico refere-se à descrição estrutural de Igarapé Grande, este fenômeno de
―legitimidade‖ e ―tradicionailidade‖ será tratado em uma seção posterior e específica, detalhando a história local
e as relações de parentesco. Por ora basta entender que os habitantes de Igarapé Grande se veem como legítimos
na medida em que são herdeiros do ―seu‖ Domiciano de Farias e são tradicionais em virtude de ocuparem o local
já há mais de um século.
218

como utilizam o próprio trapiche da comunidade como porto, dependendo da situação e


conveniência. As fotografias a seguir do trapiche da comunidade permitem uma melhor
abordagem imagética.

Fotografia 14: Chegada das crianças à comunidade de Igarapé Grande

Fonte: Arquivo pessoal (2014)

A Fotografia 14 tomada na hora da chegada das duas conduções escolares, por volta
de oito horas da manhã, sendo possível ver uma das embarcações da escola. A outra
embarcação estava preparando-se para atracar junto ao porto, aproximando-se do mesmo,
sendo que eu estava embarcado no referido meio de transporte. Ressalto ao leitor que observe
o nível do rio, que estava em seu nível mais baixo. Segue abaixo exposta uma fotografia do
horário da saída, por volta de meio dia, no qual as crianças estão adentrando a outra
embarcação da escola.
219

Fotografia 15: Saída das crianças da escola para retornarem para suas casas

Fonte: Arquivo pessoal (2014)

Novamente chamo a atenção para o nível da água, que está próximo do seu máximo.
As duas fotografias acima expostas foram tomadas no mesmo dia, tendo como diferença o
horário e a perspectiva. Enquanto a primeira fotografia foi tomada no início da manhã, com o
nível da água em seu mínimo e da perspectiva de quem está chegando, ou seja, do centro do
rio para a comunidade; a segunda foi tomada no final da manhã, passadas as doze horas
iniciais do dia, com o nível da água em seu máximo e com a perspectiva de quem está saindo
da comunidade, mas ainda no caminho de embarcar. Assim, na primeira é possível visualizar
o trapiche do próprio barco, na segunda visualiza-se o barco e o trapiche ainda na entrada da
comunidade. Abaixo segue uma fotografia da perspectiva do trapiche para a comunidade,
visualizando as crianças chegando na escola no turno da manhã e, ao fundo, a Escola
Domiciano de Farias.
220

Fotografia 16: O trapiche com as crianças chegando pela manhã e a escola ao fundo

Fonte: Arquivo pessoal (2014)

A fotografia permite ver as crianças chegando para seu horário escolar e ao fundo a
escola. Visualiza-se o trapiche em que as conduções escolares diariamente ancoram para
deixar os estudantes de outras ilhas e do próprio Curuçambá. No decorrer do trapiche estão as
crianças em direção às duas edificações que compõem a escola, ficando um barracão em cada
lado da escola, com a função de funcionar ora como sala de aula, ora como local de eventos
da comunidade. Segue a fotografia dos barracões para apreciação.

Fotografia 17: os dois barracões comunitários de Igarapé Grande

Fonte: Arquivo pessoal (2014)


221

A escola funciona o dia inteiro, sendo o período da manhã reservado para os cinco
anos iniciais do ensino fundamental e a tarde reservada para os últimos quatro anos. Os alunos
dispõem de quatro refeições ao dia: um café da manhã e um frugal almoço no turno matutino,
sendo que este mesmo almoço é disponibilizado para os alunos e alunas da tarde,
posteriormente servidos de um lanche.
O posto de saúde dispõe de uma enfermeira, três agentes de saúde e uma médica. O
referido posto deve atender todas as ilhas de Ananindeua, ou seja, um público de mais de
seiscentas pessoas, entre crianças, jovens, adultos e idosos, segundo informações dos
moradores de Igarapé Grande.

2.4 Limpando o olhar: o acesso ao campo e seus desdobramentos

O acesso inicial à ilha de João Pilatos se deu de maneira conturbada, pois as únicas
informações que dispunha sobre a referida ilha eram aquelas advindas da SPU/PA, que
estavam ligadas menos à sua localização e procedimentos de acesso do que referenciando os
procedimentos administrativos tomados para executar o ato de arrecadação da mesma para o
patrimônio da União. Em outras palavras, eu não fazia ideia de como chegar à ilha.
Ocorre que alguns meses após a decisão de tomar como lócus de pesquisa a ilha já
citada, fui convidado para uma banca de Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) que
abordava justamente uma comunidade da ilha. Por meio da aluna Cirlem Terezinha Moraes
do Nascimento, autora do TCC212, pude entrar em contato com o ―seu‖ Aureliano Rocha R. da
Costa Junior, diretor da única escola municipal da região das ilhas de Ananindeua. Essa
escola localiza-se na comunidade de Igarapé Grande, ilha de João Pilatos. Com efeito, o ―seu‖
Aureliano disse que eu poderia fazer a travessia até a comunidade com a lancha escolar, que
parte de segunda a sexta feira, aproximadamente às sete horas do porto do Surdo, bairro do
Curuçambá, município de Ananindeua/PA, assim como explicou quais eram os ônibus que
passavam nas proximidades do referido porto213.
Dessa forma, tive acesso à comunidade de Igarapé Grande somente em 15 de maio de
2014. Em minha primeira ida a campo tive a oportunidade de conversar com o próprio
Aureliano, alguns professores/as e funcionários/as da escola, assim como alguns moradores/as

212
―Contribuições da educação ambiental na ilha de João Pilatos: uma análise na escola Domiciano de Farias no
município de Ananindeua‖, monografia defendida em 18 de dezembro de 2013, no curso de Licenciatura em
Ciências Sociais do Programa Nacional de Formação de Professores da Educação Básica / PARFOR.
213
Seções posteriores deste trabalho estão reservadas para uma descrição mais detalhada da comunidade. Nesse
sentido, devo deixar claro que este tópico tem por objetivo somente esclarecer o processo de construção do
problema de pesquisa, na medida em que o mesmo foi transformado no decorrer de minhas idas a campo até
chegar à problematização atual.
222

da comunidade. Vale ressaltar que na época o tema de minha tese estava voltado
exclusivamente para a análise do TAUS, no sentido de entender se esse instrumento de
regularização fundiária levava em conta as especificidades dos diversos modos de vida
construídos pelas populações, povos e comunidades tradicionais da Amazônia.
A impressão inicial que tive foi aquela consultada nos livros e artigos científicos que
falam sobre comunidades caboclas214 e ribeirinhas amazônicas (ADAMS, MURRIETA,
NEVES, 2006; DIEGUES, 2008; LIMA, 1999; LIMA; POZZOBON, 2000; FURTADO,
1993), assim como aquela construída em minha própria experiência de campo pretérita junto a
outras comunidades rurais amazônicas: um povo que desenvolve práticas sociais de uso dos
recursos naturais diferenciadas da sociedade maior, com uma organização social fortemente
delineada por relações de parentesco e compadrio e que, nas últimas duas décadas, vem
lutando de maneira mais vigorosa por seus direitos territoriais e culturais, tentando manter a
essência de seu modo de vida, ainda que articulado com novas práticas advindas da interação
com o mercado e com políticas agrárias e de inclusão social do Estado (ALMEIDA, 2008b;
CUNHA; ALMEIDA, 2001).
De posse de impressões iniciais, conclui que os ribeirinhos, como de costume em
outras comunidades, desenvolviam as atividades da pesca artesanal, agricultura familiar
(especialmente a produção de farinha) e extrativismo vegetal, especialmente o açaí e, no caso
da região das ilhas de Ananindeua, a extração de madeira para a produção de carvão.
Para confirmar essa conclusão, lancei mão de conversas informais que tive com alguns
habitantes da ilha e funcionários/as da escola, perspectivadas com experiências de campo
pretéritas e leituras acadêmicas sobre o conceito de populações, povos e comunidades
tradicionais da Amazônia.
Como exemplo, cito o caso da entrevista que fiz com o ―seu‖ Antônio Farias, um dos
moradores mais antigos da comunidade. Ele relatou que a comunidade fora fundada por seu
avô, Domiciano de Farias, e, sua avó, Maria Cristina dos Anjos de Farias, sendo todos os
moradores atuais da ilha parentes ou afins do referido casal. Este modelo de colonização e
perpetuação do direito ao uso da terra é comum no interior amazônico, como relatado por
Ravena-Cañete (2005) e Almeida (2006), reproduzindo-se não só na comunidade em questão,

214
Lima (1999) discute de maneira mais aprofundada a categoria ―caboclo‖, como um conceito fruto do discurso
coloquial e acadêmico que, na maior parte das vezes, não encontra eco junto às comunidades estudadas, ou seja,
essas comunidades não se identificam como caboclas. Lima (1999), entretanto, propõe que esta categoria possa
ser entendida como um tipo ideal que funcione como conceito operacional para que a academia possa transitar
entre as características específicas de cada comunidade e as características mais gerais e comuns à maior parte
delas. Entre essas características está o fato de estes grupos sociais associarem-se a corpos d‘água, especialmente
rios, entendendo, assim como esta pesquisa, como sinônimas.
223

mas na maior parte das comunidades das ilhas de Ananindeua, fato este narrado por ―seu‖
Antônio Farias e confirmado pelos senhores Gilberto Farias e Bagre, entre outros moradores
das ilhas.
O ―seu‖ Antônio Farias ainda ratificou minha percepção quando narrou sua história de
vida, contando que seu avô chegou a coletar seringa nas décadas de 1930 e 1940, criou gado
leiteiro, produziu farinha de mandioca, vendeu e consumiu todo tipo de recurso florestal (açaí,
andiroba, jenipapo, mari-mari, carvão vegetal entre tantos outros frutos e recursos extraídos
da floresta) faunístico (veado, tatu, cutia, paca, mucura, entre outras caças comuns ao cenário
paraense, bem como jabuti, tartarugas de espécies variadas e jacarés) e pesqueiro (peixes de
espécies variadas, caramujos, camarão etc., entre diversos outros recursos), desenvolvendo
um modo de vida intensamente atrelado ao uso dos recursos naturais locais, característica essa
parcialmente215 preservada por ―seu‖ Antônio Farias e seu filho, atual presidente da
comunidade, o ―seu‖ Gilberto Farias.
Este discurso se repetiu na conversa com outros moradores, assim como foi
confirmada pelos professores/as da escola da comunidade. Eu estava maravilhado com o
contato com os ribeirinhos de Igarapé Grande, visualizando-os como aquele típico caboclo
amazônico: comedor de farinha, açaí e peixe; conhecedor das florestas, matas e rios das
redondezas; autores e usuários de técnicas tradicionais de práticas da caça, pesca, extração de
recursos florestais e práticas tradicionais de cultivo do solo.
Ocorre que ao longo de minhas idas a campo fui notando que esse perfil pertencia às
pessoas mais velhas, por volta dos seus trinta e cinco anos ou mais. Os adultos na casa dos
trinta e quatro anos para baixo, em sua maioria, atuaram por pouco tempo na roça e na pesca,
sendo a relação com os recursos naturais locais desenvolvidas, no presente, somente pela
extração do açaí e produção do carvão vegetal, sendo fortemente marcada por um caráter
econômico e ordenado pela lógica do mercado, ou seja, a natureza representa um recurso a ser
economicamente explorado. Assim, o modo de vida caboclo ao qual eu estava acostumado a
visualizar nas comunidades ribeirinhas amazônicas não se repetia em Igarapé Grande, na
medida em que seus moradores deixaram de interagir intensamente com os recursos naturais
locais, visualizando-os como recursos a serem economicamente explorados. Agrega-se a esta
situação o fato de que muitas pessoas da comunidade trabalham na cidade e moram na

215
Os senhores Antônio Farias e Gilberto Farias não chegaram a extrair seringa, tampouco criar animais de
grande porte na ilha, mas essas práticas fazem parte do imaginário local através do fundador da comunidade,
Domiciano de Farias.
224

comunidade somente em fim de semana, ou saíram da comunidade e moram na cidade,


visitando a ilha somente em tempos festivos e em eventuais finais de semana.
Com efeito, o estilo de vida da comunidade de Igarapé Grande, seus padrões e anseios
de consumo, a cosmologia que desenvolviam em relação às forças da natureza, suas práticas
econômicas e de relação com a natureza, sofreram um gradual processo de mudança que se
intensificou na década de 2000, especialmente em virtude dos vários projetos governamentais
que chegaram à ilha, tendo o TAUS como elemento de acesso a essas políticas. Em
levantamento feito no trabalho de campo, pode-se citar algumas dessas políticas e projetos
governamentais, a saber: programa Luz para Todos; projetos de reforma agrária
desenvolvidos pelo INCRA; projeto de um micro abastecimento de água encanada para a ilha;
Bolsa Família, entre outros.
Outro fenômeno que atuou na mudança do modo de vida local refere-se à escola
municipal localizada na comunidade, que funciona como uma instituição que alimenta
monetariamente a comunidade, na medida em que detém entre seus funcionários alguns
membros de Igarapé Grande, como é o caso de três barqueiros responsáveis pela condução
escolar, um secretário, uma professora, um servente e uma merendeira. Na escola também
trabalham moradores de outras comunidades, como é o caso de um barqueiro, três
merendeiras, um vigia e uma professora. Nesse sentido, a perspectiva da necessidade de se ter
um emprego é reforçada pela presença escolar, deixando-se de lado a noção do trabalho rural,
não atrelado às relações empregatícias e salariais, mas orientado por relações de compadrio e
parentesco e de exploração dos recursos naturais locais para o próprio consumo e sustento,
não exclusivamente para a venda.
Com efeito, diante de um cenário não tão igual àqueles consultados nos livros,
formulou-se um problema de pesquisa voltado ainda para a produção de uma etnografia, mas
que olhava para horizontes que problematizavam as transformações que essa comunidade
vinha sofrendo. Segue esse problema que me orientou durante quase todo o último ano de
pesquisa de campo, sendo o mesmo alterado mais adiante, como será relatado no próximo
tópico.
Considerando a comunidade de Igarapé Grande como um coletivo de seres, de
humanos e não humanos, que não são puros, ou seja, são um híbrido entre o que as Ciências
Sociais dicotomizam entre tradicionais e modernos (LATOUR, 2004 a, b; 2013a), quais as
225

semelhanças e diferenças entre as atividades de relação com o mercado e com a natureza do


passado e do presente?216

2.5 Descompasso entre a teoria e a experiência vivida com os humanos e não humanos de
igarapé grande

A etnografia em Igarapé Grande foi pensada inicialmente para analisar as relações que
se desenvolviam com as ações de regularização fundiária do Instituto de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA) e outras políticas decorrentes das mesmas (como créditos rurais,
casas do INCRA, programa Luz para Todos, entre outros).
Nesse sentido, o projeto de qualificação da tese estava composto por dois capítulos e
um extenso apêndice (esboço daquilo que seria o capítulo III, responsável pelo
desenvolvimento da temática agro-fundiária), ademais de uma introdução. Na época, a
pesquisa apontava para caminhos que perscrutariam temáticas ligadas à regularização
fundiária, reforma agrária, títulos de terra e a intervenção estatal na comunidade de Igarapé
Grande. Com efeito, construiu-se um esboço sobre instrumentos de regularização fundiária,
formas de apropriação da terra na comunidade, história fundiária das ilhas da União. Ocorre
que, no decorrer das estadas de campo, a pesquisa tomou rumos que se afastaram da temática
agro-fundiária. Tal fenômeno ocorreu ora por opção do pesquisador217, ora por indicativos
que os próprios dados em campo lhe davam, ora por novas leituras realizadas no decorrer da
pesquisa.
Assim, o fazer etnográfico acaba tomando vida própria, guiando o etnógrafo para
trilhas inesperadas e inusitadas, tirando-o de seu caminho inicialmente projetado, sendo que
com este trabalho não foi diferente. De discussões que envolviam o atual uso da terra e as
relações da comunidade em seu tempo presente com o Estado, este trabalho passou para o
estudo das transformações culturais ao longo do tempo e as relações entre os humanos e não
humanos em Igarapé Grande (LATOUR; 2012; 2013a; 2013b; 2014), finalmente
desembocando em uma jornada por um espaço e um tempo muito diferentes daqueles

216
Desde já faço a observação que não penso que essas comunidades devam ficar culturalmente estáticas ou que
o governo deve promover políticas que preservem e protejam seu modo de vida como está agora, coibindo
qualquer tipo de mudança. A questão é que essas comunidades têm o direito de desenvolver seus modos de ver e
viver no mundo, mas a partir de seu ritmo e sua concepção de desenvolvimento, não sendo a mudança
obrigatória, tampouco proibida. Este direito está garantido nos artigos 215, 216 e 216A da Constituição Federal,
sendo que este processo de mudança deve ser realizado de maneira a considerar suas especificidades culturais,
modos de ser, viver e existir, sem impor nossos padrões e anseios de vida à eles. Em outras palavras, as políticas
devem considerar as necessidades da própria comunidade e não as necessidades do Estado e do mercado.
217
E aqui a experiência pessoal e profissional com certeza figuram como influências nessa mudança, como será
narrado mais adiante.
226

entendidos pelas sinapses da sociedade ―moderna‖218. Dessa viagem, dificilmente se regressa


ileso.
Nas conversas de campo, era comum as pessoas mais velhas, na casa dos trinta anos
para cima, lançarem mão da diferença existente entre gerações, algumas, inclusive, chegaram
a acionar a memória do ―seu‖ Domiciano de Farias, pai fundador da comunidade, e da dona
Maria de Farias, esposa e mãe fundadora da comunidade. O discurso era bem diversificado,
mas sempre apontava para um único sentido: as relações com o mercado mais amplo e com os
recursos naturais se davam de uma forma diferente de hoje. Essa constante da fala local
acabou fazendo com que o trabalho tomasse novos rumos em sua pesquisa, tentando entender
de maneira mais detalhada o que era esse algo diferente. Em parágrafos mais adiante essas
transformações serão explicitadas, por hora, retorna-se à trajetória percorrida para compor
esta tese, iniciando das mudanças que surgiram posteriormente à qualificação.
O esboço que havia sido feito para a qualificação (que constava como apêndice no
projeto de tese defendido) foi descartado para tomar como nova frente de trabalho as
―mudanças culturais‖219 que ocorreram na comunidade de Igarapé Grande nos últimos anos.
Vale ressaltar que se entende essas mudanças culturais não somente segundo a tradicional
perspectiva culturalista de Geertz220, que usa o conceito de cultura como eixo central de suas
etnografias, entendendo-a como uma teia de significados tecida pelo homem e na qual ele se
movimenta. Neste trabalho essa noção de teia de significados composta por humanos somente
é alargada para uma teia-rede, entendendo-a como um sinônimo do que Latour chama de
coletivo de humanos e não humanos, ou seja, essa teia de significados também é uma rede,
composta por animais, plantas, objetos e outros elementos do mundo natural e das coisas,
sendo influenciado e, especialmente, limitado pelo mesmo, na medida em que ambos são um
importante elemento de composição um do outro. Em outras palavras, não se opta por
trabalhar ou com a natureza (mundo animal, vegetal e das coisas) ou com a cultura, mas sim
com a natureza-cultura e os diversos híbridos (tanto humanos como não humanos) que podem

218
Como entendida por Latour (2013a), entendendo-a partir de três aspectos: o primeiro como o projeto de
humanidade que crê na dicotomia entre natureza e cultura em seus estados puros, ou seja, tudo que há no mundo
ou é natural ou é cultural, não existindo mesclas ou mesmo outros entendimentos; o segundo entendendo a
passagem do tempo de maneira linear e uniforme, ou seja, passando igualmente para todos e sempre para frente,
em um sentido apenas; a terceira entendendo que existe a possibilidade da eliminação do risco, este risco como
explicado por Beck (1998).
219
Posto entre aspas porque, na época, utilizou-se a noção de cultura proposta por Geertz (1993). Com novas
leituras e por meio de dados coletados em campo, essa noção foi ampliada, sendo utilizado, como será exposto e
explicado, para mudanças no coletivo de humanos e não humanos de Igarapé Grande.
220
Um ponto de vista que já ocupa o status de ―clássico-moderno‖ dentro da Antropologia mundial, na medida
em que Geertz figura como um antropólogo da modernidade (pós-Malinowski, logo moderno), já sendo
amplamente conhecido e majoritariamente aceito como um paradigma a ser utilizado na formulação de
etnografias.
227

ser produzidos a partir delas (LATOUR; 2013a; 2013b; 2014), no coletivo que compõe a
comunidade de Igarapé Grande, entendendo-a como um coletivo de humanos e não humanos.
Nas fotografias abaixo é possível visualizar humanos e não humanos do grupo em questão.

Fotografia 18: Embarcação navegando no rio Maguari, em meio à chuva e em frente à ilha de
João Pilatos. Ao fundo a ilha de Sororoca, com vegetação nativa e uma torre do linhão que
leva luz elétrica para a região das ilhas de Ananindeua. A luz elétrica chegou a
aproximadamente uma década nessa região

Fonte: Arquivo pessoal (2014)

Fotografia 19: Um dos vários portos do coletivo de Igarapé Grande, na localidade


denominada de Cabeceira, em um dos braços do rio Maguari, bifurcando-se em mais dois
sub-braços, permitindo a colocação das casas com pouca alteração do meio, mas ainda
ocupando local privilegiado, em terra firme, cercado pela vegetação nativa e com fácil acesso
ao rio. Nos arredores da comunidade, a vegetação se adensa, aumentando o número de
elementos não humanos vivos

Fonte: Arquivo pessoal (2014)


228

Diante do cenário de diversidade de atores humanos e não humanos, como ilustrado


pelas fotografias acima e, considerando que nas últimas duas décadas as mudanças na
comunidade foram intensas, devido à prestação de uma série de serviços estatais, chegou-se
ao problema de pesquisa exposto no tópico anterior221.
Ocorre que, durante a escrita da tese, a etnografia acabou assumindo um papel
assessório, servindo como um ponto de partida para construir uma reflexão teórica a partir das
experiências que lá foram vividas. Esta situação se deu em virtude de um enorme
descompasso quando se perspectivava as experiências vividas em campo com a Teoria
Antropológica e a vida moderna em cidade. Assim, pareceu mais interessante dar
continuidade com as reflexões e abstrações feitas para a Teoria Antropológica e a sociedade
moderna que a produz, originadas a partir do campo, do que relatar a experiência em campo,
propriamente dita. Tal situação levou a construção de um último e final problema de
pesquisa que esta tese se propõe a responder, já exposto na introdução e repisado a seguir, de
modo a consolidar sua estruturação para o leitor:
A partir de uma experiência etnográfica vivenciada com um coletivo (LATOUR,
2012) que pode ser entendido pela Antropologia brasileira como populações tradicionais
e/ou povos e comunidades tradicionais, qual a crítica que se pode construir para a Teoria
Antropológica e à sociedade moderna, que dividem o mundo em natureza e cultura,
purificando-o e eliminando seus híbridos? Considerando Igarapé Grande como um coletivo de
seres de humanos e não humanos (LATOUR, 2004 a, b, 2012, 2013a), que não são puros, ou
seja, são um híbrido entre o que as Ciências Sociais dicotomizam entre tradicionais (do
mundo natural, rural, campesino, privado, entre outros) e modernos (do mundo cultural,
urbano, citadino, público, científico, entre outros) (LATOUR, 2004 a; 2013 a, b), quais as
semelhanças e diferenças entre as atividades de relação com o mercado e com a natureza do
passado e do presente e como isso pode contribuir nessa crítica a Teoria Antropológica?
Evitando simplificar o debate, rotulando grupos sociais em tradicionais ou modernos,
ou complexificar esse mesmo debate por meio da mescla dos adjetivos ―modernos e
tradicionais‖ para o substantivo ―cultura‖, opta-se por utilizar a Antropologia de Latour (2004
a , b; 2013a), a qual entende que estes grupos denominados de tradicionais não deixariam de
sê-lo (tradicional) porque se modernizaram, pois eles nunca foram tradicionais, assim como

221
Relembrando: considerando a comunidade de Igarapé Grande como um coletivo de seres, de humanos e não
humanos, que não são puros, ou seja, são um híbrido entre o que as Ciências Sociais dicotomizam entre
tradicionais (do mundo natural, rural, campesino, privado, entre outros) e modernos (do mundo cultural, urbano,
citadino, público, entre outros) (LATOUR, 2013a), quais as semelhanças e diferenças entre as atividades de
relação com o mercado e com a natureza do passado e do presente?
229

nós jamais fomos modernos. Todos esses grupos constituem-se, assim como nós, em um
coletivo de humanos e não humanos que compõem uma rede maior que, em uma perspectiva
mais ampla, também será um novo coletivo de humanos e não humanos. Na medida em que o
zoom de coletivos estudados se amplia, chega-se ao coletivo-rede mais amplo – o planeta
Terra.
Com efeito, não se cai mais na dicotomia de argumentos: eles estão se
―modernizando‖ e isso é algo negativo porque estão perdendo suas características culturais
(tradicionais), devendo permanecer congelados, cristalizados, não podendo existir mudanças
em sua cultura; ou, eles estão se modernizando e isso é positivo, pois estão recebendo as
―benesses‖ dessa modernidade, podendo e devendo mudar, mas deixando de ser tradicionais.
Para melhor ilustrar essa questão, segue o Quadro 01, expondo o quadrante que estes dois
argumentos acaba formando, subdividindo-se em positivos e negativos.

Quadro 01: Quadrante de argumentos positivos e negativos de ser tradicional ou ser moderno
Discurso positivo Discurso negativo
Mudar/ Terão acesso à celular, internet, Perdem muito de suas características
Modernizar mídia, computadores e tecnologias ―culturais‖, transformando-se em
diversas, ―facilitando‖ sua vida, ―modernos‖, homogeneizando um modo
permitindo um maior bem-estar de vida, subjugando-se a ele, tendo
acesso a uma mídia totalitária e
enviesada, entrando na sociedade como
pobres.
Não mudar/ Irão manter seu modo de vida não Noção de que a ―cultura‖ não pode
permanecer moderno, garantindo uma maior mudar (ela é dinâmica, afinal), e os
tradicional diversidade ―cultural‖ de modos de outros têm o ―direito‖ de mudar pois, se
viver e de existir no coletivo maior, não mudarem, não terão acesso aos
que é o planeta Terra, garantindo, novos ―serviços da modernidade‖222.
também, uma maior biodiversidade.
Fonte: Elaboração própria

Do quadro evidencia-se a contradição que a dicotomia natureza e cultura levanta, no


sentido de que o não moderno, segundo a crença da Ciência, é também o não (ou o pouco)

222
Aqui reside uma das principais hipóteses deste trabalho: a dinamicidade da cultura pode até existir, mas essa
dinamicidade não pode ser tão veloz como se verifica no contato com a maioria das comunidades não modernas.
Suas cosmologias, seus modos de ser, viver e existir não deveriam mudar tanto de uma geração para a outra. Isso
já seria violência simbólica, evidenciada, inclusive, pela transformação do adjetivo de ―tradicional‖ para
―periferia‖, ―pobres‖, entre outras, que são normalmente como essas comunidades adentram o mundo moderno.
Em outras palavras, quando elas se ―modernizam‖, assim o fazem ocupando a condição da margem da sociedade
moderna, a condição de uma comunidade pobre.
230

cultural ou o não (ou o pouco) civilizado, em contrapartida da condição da sociedade


moderna, plenamente culta e civilizada.
Essa dicotomia entre natureza e cultura foi inventada pela própria Antropologia,
disciplina científica inicialmente responsável pelo estudo das sociedades não modernas, que
acabou legitimando o discurso colonizador e evolucionista da sociedade moderna, proferido
sob as sociedades não modernas, sob o manto do multiculturalismo. A modernidade permite,
então, um mundo plural e multicultural, desde que sejam todos modernos223. Enquanto que a
explicação de mundo do outro é cultural, religiosa, mitológica ou socialmente construída, a
nossa (dos modernos) é científica. Eles acreditam em representações, nós acreditamos em
verdades.
Penso que a reflexão construída no parágrafo anterior apresenta, ainda, uma crítica
específica que afeta a Antropologia e sua condição de disciplina científica, pretensamente
descolonizadora, na medida em que ela é uma das principais responsáveis pela invenção da
dicotomia entre natureza e cultura, consequentemente, ela é a responsável por legitimar o
discurso colonizador da modernidade. Em outras palavras, qualquer crítica que se lança à
modernidade, deve também passar por uma crítica à própria Antropologia e sua dicotomia
fundadora, natureza e cultura.
Na visão de alguns antropólogos mais ―sensíveis‖ às demandas desses grupos e, por
isso, mais ―combativos‖, estes coletivos assumem o adjetivo tradicional como um atributo que
permite um uso social peculiar e dinâmico do espaço e dos recursos naturais, permitindo a
absorção de alguns aspectos da modernidade, mas sem deixarem de ser modernos
(ALMEIDA, 2008a; 2008b; 2006). Evitando entrar nessa miríade de dicotomias, utiliza-se a
postura de Latour e suas ideias de coletivo/redes compostos por humanos e não humanos.
Assim, o conceito de cultura, que concede uma característica de ―dinamicidade‖ às
sociedades (LARAIA, 2006; SAHLINS, 1997; GEERTZ, 1993; 1997; 2001) é abandonado
por este trabalho, já que não apresenta mais nenhum tipo de rigor endógeno de o que seria
cultura de um determinado grupo, ou seja, se tudo é cultura, nada também o é. Em outras
palavras o argumento antropológico da característica da dinamicidade cultural acaba por
apresentar dois desdobramentos, possivelmente contraditórios, a saber: essas comunidades
têm o direito de mudar, de fazer uso de tecnologias atuais (como internet e celular) etc., indo
de encontro com o argumento de que ao mesmo tempo que tal fenômeno ocorre, outro, talvez

223
Quem não quer ter acesso à internet, usar um carro do ano, tomar fotos com iphones da última geração, morar
em condomínios luxuosos e assim por diante? Todos e todas têm esse direito, bradam os modernos, mas nem
todos têm esse desejo de vida, assim como não existem atores não humanos disponíveis para agenciar todos
esses atores humanos com seus anseios modernos.
231

sendo sua cara metade, também ocorre. Este seria o fato de essas ―culturas‖ perderem
algumas das características que as marcavam, as distinguiam como diferenciadas, ou seja,
para a Antropologia culturalista, ou elas perderam sua ―cultura tradicional‖ e passaram a ter
uma ―cultura moderna‖, ou ainda são tradicionais, mas incorporaram elementos da ―cultura
moderna‖.
Com efeito, abrem-se as portas para uma Antropologia comparativa entre a noção
antropológica de PPCT e as vivências do pesquisador em uma suposta PPCT, mediadas tanto
por suas práticas de pesquisa tradicional (―descrição densa‖, questionários, entrevistas,
fotografias etc.), mas também pela Antropologia proposta por Latour224. Em outras palavras,
por meio dos dados coletados na pesquisa de campo, foi possível construir os capítulos 6 e 7,
apontando, a partir do ponto de vista de quem vive na ilha de João Pilatos, as inconsistências
teóricas da Antropologia e seus meta conceitos aqui utilizados. Nesse sentido, as visitas e os
relatos de experiências junto aos moradores de Igarapé Grande servem menos ao propósito da
fabricação de um fato etnográfico em si mesmo, do que ao propósito de desenhar um pano de
fundo para evidenciar problematizações da atual sociedade moderna e seu projeto de
explicação de mundo, a atual ciência moderna. Utiliza-se o pleonasmo atual e moderno
com o propósito de evidenciar que já somos modernos há alguns anos, mas os problemas que
a modernidade (e sua sociedade e ciência) deveria solver, persistem, multiplicam-se,
transformam-se e intensificam-se, potencializando um futuro cada vez mais catastrófico e
apocalíptico para o planeta Terra, especialmente para a espécie humana (LATOUR, 2014;
VIVEIROS DE CASTRO, 2015).
Passa-se, assim, para os capítulos capítulo 3 e 4, no qual é especificado o construto
teórico deste trabalho, a construção feita sobre os conceitos de ―populações tradicionais‖ e
―povos e comunidades tradicionais‖
Esses conceitos pareciam interessantes na medida em que são conceitos abertos,
constantemente sendo acionados por grupos sociais diversificados e que desenvolvem práticas
sociais específicas de relação com a natureza, bem diferente da sociedade moderna, liberal,
capitalista e urbana, contudo, os mesmos acabaram apresentando uma série de limitações,
especialmente quando associados a conceitos como modernidade, sociedade e natureza. Com
efeito, a noção de PPCT é detalhada nos próximos dois capítulos.

224
Um capítulo seria adicionado, mas, dada a limitação temporal, não foi concretizado. A temática do capítulo
percorria a noção que o próprio coletivo apresenta de sua transformação (perspectivas do passado e do futuro
para os moradores de Igarapé Grande, articulando dados sobre recursos naturais e felicidade, ademais da
mobilidade interna das pessoas, segundo suas próprias opiniões).
232

CAPÍTULO III - “POPULAÇÕES TRADICIONAIS”: ORIGENS, DEFINIÇÕES E


USOS DENTRO DA ANTROPOLOGIA BRASILEIRA225

A gênese da Antropologia como ciência se caracteriza pelo estudo das sociedades


―nativas‖ e suas respectivas ―culturas tradicionais‖226, sendo que desde a dita escola
―evolucionista‖ (LAPLANTINE, 1997; CARDOSO DE OLIVEIRA, 1988), o estudo da
diversidade cultural e do ―outro‖ figuram como seus protagonistas. Com o passar dos anos,
essa disciplina volta-se para o estudo de sua própria sociedade, tendo o escopo dos seus
sujeitos de estudo ampliado, especialmente para grupos minoritários e com pouca visibilidade
política dentro do cenário social ocidental, como é o caso de agricultores familiares e
camponeses, quando se tratando do meio rural. É nesse contexto de estudo de grupos
politicamente minoritários e excluídos que surge a noção de ―populações tradicionais‖ e
―povos e comunidades tradicionais‖ dentro da Antropologia Brasileira, ainda que não nos
moldes adotados atualmente.
Deve-se entender esses moldes como uma conotação mais politizada desses grupos.
Durham (1988) apresenta de maneira mais detalhada esse processo de politização dos sujeitos
de estudo da Antropologia, colocando em foco o meio urbano, mas que possibilita uma
extensão de suas propostas para a temática da politização das ―populações tradicionais‖
ocorrida em meados de 1980. Almeida (1989; 1991; 1994; 2006; 2008a) relata este processo
de maneira mais direta, contudo não utiliza a categoria ―populações tradicionais‖, mas sim
análises relacionadas à teoria antropológica que trabalha os movimentos sociais do campo e,
em suas publicações mais recentes, lança mão do conceito de ―povos e comunidades
tradicionais‖. Barreto Filho (2002) também constrói uma argumentação nesse sentido,
fazendo uma reconstituição histórica dentro da Antropologia brasileira e em documentos
internacionais sobre a noção de ―populações tradicionais‖ e as mudanças que a mesma sofreu
no decorrer dos anos. Digno de nota se faz observar o papel que a Antropologia cumpriu

225
Este capítulo e o próximo são fruto de um processo de amadurecimento sobre a temática dos PPCT, tendo
alguns de seus trechos publicados em anais de eventos, assim como resultado de trabalhos avaliativos de
disciplinas cursadas no mestrado do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará e
do curso de doutorado que originou esta tese. Entre algumas das publicações em anais de eventos, citam-se as
mais relevantes: ―Populações tradicionais amazônicas: revisando conceitos‖, apresentado no GT 10 do V
ENANPPAS, Florianópolis-SC, em 2010; ―Populações tradicionais da Amazônia: repensando conceitos‖,
apresentado no GT 34 da 27ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de agosto de
2010, Belém, Pará, Brasil; ―De populações a povos e comunidades tradicionais amazônicas: o debate se
esgotou?‖, apresentado no GT 10 do VI ENANPPAS, Belém, Pará, em 2012.
226
Como mencionado na Introdução e Capítulo 2 desta tese, seriam as culturas que não são modernas, ou seja,
não fazem a diferenciação entre natureza e cultura e, se o fazem, tal dicotomia pouca importância assume no
grupo social, enquanto que na sociedade moderna a diferenciação entre natureza e cultura é o que fundamenta a
própria noção de ser humano, na medida em que a natureza do mesmo é ser um ser cultural.
233

nesse processo de politização das ―populações tradicionais‖. Outros autores também


construíram históricos e etnogêneses do processo de surgimento do termo ―populações
tradicionais‖, assim como evidenciaram a influência que a Antropologia exerceu nesse
processo. Entre eles é relevante citar Diegues (2008), Vianna (2008) e Cunha e Almeida
(2001), pois fizeram parte do mesmo não apenas na condição de estudiosos, mas também
cumprindo o papel de agentes de intervenção.
Neste capítulo e no próximo é evidenciado diversos aspectos que foram atribuídos aos
conceitos de PPCT, em sua larga trajetória de elaboração, ao passo que revisita a bibliografia
antropológica brasileira que trata do mesmo. Neste capítulo específico, trata-se do conceito de
―populações tradicionais‖, destacando os diversos usos que este conceito apresenta, assim
como sua respectiva origem dentro do campo acadêmico nacional. Para tanto, este capítulo
constrói uma revisão bibliográfica e encontra-se estruturado em quatro tópicos.
O primeiro responsabiliza-se por identificar a gênese do termo ―populações
tradicionais‖ dentro do seio acadêmico brasileiro. O segundo traz à tona as contribuições para
o conceito de ―populações tradicionais‖ produzidas por um corpo de acadêmicos que
assessoraram esses grupos no processo de conquistas políticas, pensando este termo como
uma identidade pública a ser preenchida. O terceiro tópico traz os desdobramentos da
concepção dessas populações tradicionais como grupos forjadores da biodiversidade que os
cerca, sendo que a relação que estabelecem com os recursos naturais, muitas vezes, configura-
se como o elemento caracterizador das identidades que os formam, apresentando, assim, a
dimensão socioambiental e o possível atributo ecológico das ditas ―populações tradicionais‖.
No último tópico, alguns parágrafos para encerrar a jornada sobre o conceito de ―populações
tradicionais‖, pensando se de fato há um conceito.
Antes de adentrar os argumentos que sustentam este capítulo, abre-se um breve
parêntese para apontar uma fronteira deste trabalho. Este trabalho limitou-se às abordagens
que vêm sendo desenvolvidas há mais tempo dentro da Antropologia brasileira, ao menos
uma década e meia. Nesse meio tempo, diversos foram os trabalhos de cunho antropológico
que abordaram a discussão sobre populações tradicionais. Dessa forma, alguns autores não
foram diretamente aqui trabalhados, na medida em que apresentam argumentos similares
àqueles oferecidos pelos autores citados nesta tese. Para fins de registro, entre esses autores
não diretamente mencionados, encontram-se Forline e Furtado (2002), Simonian (2003; 2007)
e Linhares (2009).
Retorna-se, dessa forma, ao capítulo propriamente dito. No próximo tópico constrói-se
um histórico de uso do termo e algumas das mudanças pelas quais passou.
234

3.1 A origem do termo “populações tradicionais”: as culturas tradicionais

A obra ―Os parceiros do rio Bonito‖, de Antônio Cândido (2001), originalmente


publicada no ano de 1964, figura como um dos primeiros trabalhos acadêmicos a utilizar a
nomenclatura ―populações tradicionais‖, utilizando o adjetivo tradicional no sentido de que
essas populações tradicionalmente ocupavam o território que habitavam, ao passo que
apresentavam especificidades culturais que as diferenciavam da sociedade maior. À época,
com exceção de um restrito meio acadêmico da área da Sociologia e especialmente da
Antropologia, pouco se discutia sobre as implicações do contato da sociedade ocidental,
moderna, urbana, capitalista e liberal com populações, povos e comunidades de agricultores
familiares, camponeses, pescadores, ribeirinhos, remanescentes de quilombo, extrativistas
entre tantos ―outros‖227 de ―cultura tradicional‖. Dessa forma, os autores que utilizavam o
adjetivo tradicional emprestavam-lhe ora um significado cultural (no sentido de serem grupos
culturalmente distintos da sociedade nacional), ora um significado de territorialidade (no
sentido de tradicionalmente habitarem a terra que ocupavam), que não necessariamente são
mutuamente excludentes.
Autores como Oliveira Vianna (2010), Diegues Junior (1975) e Darcy Ribeiro (1995),
apesar de não utilizarem o termo ―populações tradicionais‖, apresentaram abordagens
similares à de Candido (2001), no sentido de pensarem a formação do povo brasileiro por
meio de tipos culturais, ou seja, populações nativas, caracterizadas por tradições culturais
específicas de sua região, formadas a partir de suas respectivas histórias de colonização e
relação com o meio ambiente. Nesse sentido, seriam populações regionais, típicas, nativas de
uma cultura específica e habitantes de um território específico, seriam arquétipos culturais
como o caipira, o sertanejo, o caboclo etc. Em outras palavras, seriam populações
―tradicionais‖ de uma determinada região do país. Barreto Filho (2002) assim resume a
abordagem de alguns destes autores:
[...] Manuel Diegues Jr. que propõe a divisão do país em nove regiões culturais,
caracterizadas por distintos ―gêneros de vida‖ resultantes das formas ativas de
adaptação humana à diversidade de aspectos fisiográficos do Brasil; Antônio
Cândido que, baseado nos conceitos de part society e part culture de R. Redfield,
define o ―caipira‖ como um tipo cultural regional brasileiro, ou seja, a um só tempo
um tipo racial, um modo de ser e um estilo de vida marcados por formas de
sociabilidades e de subsistência apoiadas em soluções mínimas e suficientes apenas

227
Vale destacar que essa discussão, no decorrer do tempo, adquiriu força e notoriedade social a ponto de
extrapolar os muros da academia, transformando-se em uma categoria política e, atualmente, uma categoria
jurídica, por meio da Lei 9.985/2000, detalhada mais adiante. Existe, ainda, uma possível diferenciação jurídico-
antropológica entre os termos ―populações tradicionais‖ e ―povos e comunidades tradicionais‖, sendo este último
conceituado pelo decreto 6.040/2007. No decorrer deste capítulo, essas diferenças serão evidenciadas.
235

para manter a vida dos indivíduos e a coesão dos bairros rurais; e Darcy Ribeiro,
que, empregando explicitamente a narrativa da miscigenação genética e cultural,
tipifica as cinco regiões histórico-culturais, variantes da cultura brasileira rústica: a
crioula, a caipira [...], a sertaneja, a cabocla e a dos ―brasis sulinos‖ – que reúne os
228
matutos, gaúchos e gringos (BARRETO FILHO, 2002, p. 11) .

Nesse sentido, vale observar que essas ―populações típicas‖ ocupam o meio rural,
deslocando a identidade brasileira para esse espaço, assim como emprestando para alguns dos
sujeitos de estudo da Antropologia a roupagem do campesinato, enriquecida pela diversidade
humana do meio rural brasileiro, tanto em virtude de seus contextos ambientais, como sociais.
Dessa forma, o conceito de campesinato se apresentou como mais uma via de análise, que
pode ser empregada de forma mais ampla, para a identificação de pequenas comunidades
rurais tratadas no meio acadêmico. Assim, tanto populações tradicionais podem ser entendidas
como camponeses como vice-versa (FLEURY; ALMEIDA, 2007)229.
Com efeito, até a década de 1970, a produção antropológica nacional não falava de
―populações tradicionais‖, mas de ―culturas tradicionais, típicas, indígenas, regionais‖. A
discussão sobre o termo ―população tradicional‖ nos moldes que se apresenta atualmente,
portanto, surge no seio da Antropologia brasileira somente em meados da década de 1980, no
âmbito dos debates sobre a presença humana em áreas protegidas230, ainda que tenha sido
derivada da noção de ―culturas tradicionais‖. Diegues (1994; 2008), de acordo com as
informações coletadas para este trabalho, foi quem incitou tais debates, procurando
problematizar a presença humana em áreas protegidas no sentido de pensar estes grupos como
promotores da conservação dessas áreas, posicionamento contrário àquele apresentado por
biólogos em geral. Tal posicionamento encontra fundamento no livro de Diegues, intitulado

228
Cumpre destacar que esse posicionamento é severamente criticado por Barreto Filho (2002), sendo esta crítica
apresentada no decorrer deste texto.
229
Não figura como objetivo deste texto discutir as diferenças e as semelhanças entre populações tradicionais e
campesinato, ainda que estes termos apresentem intensas semelhanças em sua formação como categoria analítica
e uma curiosa possibilidade de um comparativo mais detalhado. A título de citação, deixa-se registrada a
existência dessas semelhanças e a indicação de algumas leituras para uma discussão mais detida. Para o
comparativo específico entre os termos ―populações tradicionais‖ e ―campesinato‖, consultar Fleury e Almeida
(2007). Para mais detalhes sobre a formação do campesinato brasileiro e as lutas e tensões sociais que o
permearam, segundo a abordagem da Antropologia, consultar Almeida (2007b).
230
Segundo Souza Filho (apud BENATTI, 2001) espaço protegido é ―todo local, definido ou não por seus
limites, em que a lei assegura especial proteção. Ele é criado por atos normativos ou administrativos que
possibilitem a administração pública a proteção especial de certos bens, restringindo ou limitando sua
possibilidade de uso ou transferência, pelas suas qualidades inerentes‖. Este trabalho considera da mesma
maneira o conceito de áreas protegidas, assim como unidades de conservação. Vale observar que o tema sobre
áreas protegidas configura-se como transversal a este trabalho. Nesse sentido, será momentaneamente abordado
com o intuito de demonstrar a origem do termo populações tradicionais, sendo eventualmente reabordado no
decorrer do texto, tendo em vista a sua importância para a discussão da noção de população tradicional. Para
mais detalhes sobre a temática de áreas especialmente protegidas, consultar Ricardo (2004).
236

―O mito moderno da natureza intocada‖, sendo essa obra um marco na discussão da presença
humana em áreas protegidas dentro do campo acadêmico nacional.
O referido autor observa que o conceito de áreas protegidas surge nos Estados Unidos
da América (EUA) por meio da criação do Parque de Yellowstone e é importado para o Brasil
em meados do século passado (DIEGUES, 1993; 1997). Na visão de Diegues, o referido
parque foi criado sob a noção de wilderness231, pensando as áreas naturais como selvagens,
intocadas pelo ser humano. Tal visão desconsiderava a presença dos povos indígenas nas
regiões colonizadas, gerando um incontável número de conflitos entre o paradigma das áreas
protegidas e as populações nativas. Ainda segundo Diegues (2001, p. 27), o próprio Parque de
Yellowstone foi criado em uma região habitada por populações indígenas que não deixaram a
área de maneira espontânea, mas sob pressão do governo norte-americano. Reforçando o
argumento relativo à presença humana em áreas protegidas, o autor cita dados que indicam a
existência de sepulturas com mais de mil anos em Yellowstone, assim como em outros
parques americanos.
Sobre a intolerância de presença humana na criação do Parque Nacional de
Yellowstone, faz-se relevante citar as considerações de Lucila Vianna (2008) que chama a
atenção para o momento histórico pelo qual os EUA passavam, quando da criação das
primeiras áreas protegidas. O país estava em um processo de reordenamento territorial e de
expansão para a ocupação do Oeste. Desde então, as áreas naturais protegidas foram objeto de
política que apresentou, por objetivo principal, separar do desenvolvimento moderno as áreas
selvagens que deveriam ser protegidas. Nesse sentido, a criação do Parque de Yellowstone
levou ao extremo o nível de restrição ao uso humano e proibiu a existência
permanente no parque até mesmo das populações com formas de vida claramente
diferentes das do modelo urbano, associado à depredação e à usurpação da natureza.
Só se permitia a presença para fins de desfrute, visitação turística, pesquisas
temporárias etc. (VIANNA, 2008, p. 147).

Assim, foi esse modelo de conservação232 ambiental o exportado para os chamados


―países em desenvolvimento‖, causando efeitos devastadores sobre as ―populações
tradicionais‖ (DIEGUES, 2008, p. 37-40).
Essa exportação se dá já no século XX e, desde seu início, deixa sinais de sua
inadequação à realidade do terceiro mundo. Com o passar do tempo, movimentos sociais se

231
Corresponde à noção de selvagem (tradução livre dos autores).
232
Vale destacar a diferença que Diegues (1993; 1994) faz sobre conservação e preservação. A primeira diz
respeito à possibilidade de presença humana dentro de áreas protegidas, enquanto que a segunda não permite. No
ordenamento jurídico brasileiro, a primeira visão dá origem aos modelos de Unidades de Conservação de Uso
Direto ou Sustentável e a segunda visão dá origem aos modelos de Unidades de Conservação de Uso Indireto.
Para mais detalhes consultar a Lei no 9.985/2000, assim como Ricardo (2004).
237

organizam em uma nova modalidade de conservação que dá lugar à luta pelo direito ―... de
acesso à terra e aos recursos naturais por camponeses, pescadores, ribeirinhos, povos da
floresta e de setores do ambientalismo do terceiro mundo‖ (DIEGUES, 2008, p. 40). Surgem,
dessa maneira, os movimentos socioambientais em meados da década de 1980,
contemporâneos ao processo de redemocratização e da constituinte, desempenhando um
importante papel nesse cenário político.
Nesse sentido, Diegues (2008) foi um dos primeiros a chamar a atenção para a
possibilidade das populações tradicionais atuarem como protagonistas na conservação da
biodiversidade, visto seu vasto conhecimento da biodiversidade local e modo de vida
relativamente sustentável233.
De maneira similar, Vianna (2008) também observa a possibilidade de se incorporar as
populações tradicionais ao processo de conservação da natureza. Contudo, a referida autora
chama a atenção para a necessidade de se entender sob duas perspectivas essa discussão
dentro do contexto ambientalista brasileiro. Uma refere-se àquela até aqui apresentada, em
que se coloca em perspectiva a possibilidade de populações ocuparem o território de unidades
de conservação de uso indireto, minimizando os impactos socioeconômicos e aproveitando as
características ―ecológicas‖ desses grupos para a conservação (VIANNA, 2008, p. 215).
A outra refere-se à perspectiva dos movimentos sociais rurais, lutando pela
sobrevivência garantida por meio do acesso aos recursos naturais e à terra (seu meio de
produção). Nesse sentido, Vianna apresenta a reflexão de que:
A primeira perspectiva incorpora as populações ao discurso conservacionista e a
segunda, pelo contrário, incorpora o discurso conservacionista ao movimento social,
fortalecendo as lutas para a garantia de seu território e de acesso a recursos naturais
(VIANNA, 2008, p. 215).

Em outras palavras, a primeira perspectiva, a saber, o discurso ambientalista de áreas


protegidas, incorpora o papel que as populações tradicionais desempenham nos ecossistemas
que habitam. Por outro lado, a segunda perspectiva é marcada pela apropriação, por parte das
populações tradicionais, do discurso de conservação das áreas protegidas com o
comprometimento de manterem práticas sustentáveis conservando as áreas que ocupam234. É

233
Esta visão sobre as populações tradicionais como protagonistas na conservação da biodiversidade é
problematizada por Adams (1994, especialmente 2000). Este trabalho tratará sobre esta problematização mais
adiante.
234
Mauro Almeida (2004) exemplifica este fato por meio do texto ―Direitos à floresta e ambientalismo:
seringueiros e suas lutas‖, onde narra o processo de apropriação dos seringueiros do termo ecologia, valendo-se
do mesmo na busca da garantia do direito ao seu modo de vida.
238

assim que Vianna observa que o termo ―populações tradicionais‖ surge associado ao contexto
ambientalista, indicando a gênese das duas perspectivas acima citadas:
Pode-se afirmar que essa discussão aparece pela primeira vez no poder público na
década de 1980, por dois caminhos paralelos e concomitantes. Um deles foi entre
técnicos da Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, pois os
ambientalistas foram incitados pelos questionamentos dos modelos de conservação,
a partir da defesa das ―populações tradicionais‖ feita por Diegues, da própria
dificuldade de gestão das áreas e de um olhar mais humanista sobre as práticas de
conservação. O outro foi o movimento dos seringueiros, que se aliou ao setor
ambiental na busca da garantia de acesso a suas terras. Não era um conflito com
unidades de conservação, mas essa foi a estratégia que usaram para conquistar seus
objetivos (acesso à terra e aos recursos naturais), resultando na proposta da Resex
(VIANNA, 2008, p. 216).

Nesse sentido, por não ser o histórico do surgimento das unidades de conservação no
Brasil o objeto deste estudo, importa somente citar que, de maneira paralela à discussão sobre
a presença humana em áreas protegidas, surge o movimento socioambiental no Brasil, que
inaugura as reservas extrativistas como a segunda categoria de área protegida que permite a
presença humana e o manejo da biodiversidade em unidades de conservação235.
De maneira paralela ao surgimento do movimento socioambientalista, e até mesmo
anterior a ele, os fóruns ambientalistas internacionais começam a discutir a noção de
desenvolvimento sustentável incorporando a contribuição de diversos documentos e encontros
de âmbito internacional. Dentre eles cita-se a Conferência de Estocolmo, Relatório Brudtland,
Eco-92 e a Convenção da Diversidade Biológica (CDB). Nesse sentido, vale observar que o
movimento socioambiental desempenhou um importante papel nas forças políticas presentes
no cenário internacional de discussão acerca da CDB236.
Finalmente, como resultado da tensão entre a luta por direitos territoriais, culturais e
ecológicos das populações tradicionais e a posição preservacionista, surge a Lei 9.985/2000,
utilizando o conceito ―populações tradicionais‖, mesmo que não apresentando umadefinição
para a mesma. Com efeito, nota-se que esse conceito, no decorrer do tempo, foi adquirindo
força e notoriedade social a ponto de extrapolar os muros da academia, transformando-se em
uma categoria política e, atualmente, uma categoria jurídica, por meio da Lei 9.985/2000.
Para efeito desta tese, entende-se que o conceito ―populações tradicionais‖ surge como uma

235
Para uma análise mais detida sobre o surgimento das Resex, consultar Almeida (1993; 2004), Santilli (2005),
Allegretti (2002) e Antonaz (2009).
236
A incorporação da CDB no ordenamento jurídico brasileiro pode ser consultada de forma detalhada no
endereço eletrônico criado pelo governo federal. Disponível em: <http://www.cdb.gov.br/>.
239

categoria acadêmica que, com o passar do tempo assume uma conotação política237, para,
posteriormente, adquirir uma conotação jurídica, por meio da Lei 9.985/2000.
Ainda que a exposição sobre a parte jurídica afeta a este termo seja feita em tópico
específico do próximo capítulo, vale tecer uma consideração preliminar, lançando mão das
ideias de Santilli (2004; 2005), especialmente no que se refere à reflexão jurídica feita acerca
do conceito de populações tradicionais. A autora demonstra a diferenciação jurídica entre
indígenas, quilombolas e populações tradicionais, assim como a vulnerabilidade jurídica das
populações tradicionais em seu sentido mais estrito, excluindo os indígenas e quilombolas, na
medida em que estes últimos grupos detêm dispositivos constitucionais e diplomas jurídicos
tratando especificamente de seus direitos, como será detalhado no próximo capítulo, enquanto
que as outras ―populações tradicionais‖ detêm instrumentos jurídicos que tratam sobre as
mesmas somente de maneira correlata, como é o caso da Lei 9.985/2000.
Os tópicos que seguem encarregam-se de desenvolver de maneira mais minuciosa a
questão sobre quem são essas outras ―populações tradicionais‖, ou as ―populações
tradicionais‖ em seu sentido mais estrito. Segue o tópico dois com o detalhamento da
construção do conceito de populações tradicionais como uma identidade pública a ser
habitada.

3.2 Populações tradicionais: desenhando uma identidade pública a ser preenchida

No cenário político supracitado as populações tradicionais começam a ser visibilizadas


e as Ciências Sociais passam a contribuir com esse processo por meio da elaboração de uma
definição mais detalhada para populações tradicionais238. Nesse sentido, Cunha (1999, p. 149)
caracteriza população tradicional como uma expressão vaga e abrangente revelando a
necessidade de refinamento.
Nesse sentido é que Viana (2008) destaca a pluralidade de significados da definição de
populações tradicionais, observando que na Antropologia estas populações podem ser
classificadas como sociedades rústicas, enquanto que no meio ambientalista adquirem um

237
Entende-se essa conotação política no sentido de possibilitar, a estes grupos, o exercício ao direito de
autoidentificação. Cumpre destacar que essa conotação política não é formalizada pela lei, ou seja, não é
explicitamente declarada pela letra da lei, restando à academia interpretá-la e declará-la como um direito inerente
à este conceito. Esta temática será detalhada no decorrer do trabalho, especialmente no tópico que segue,
discutindo este termo como uma identidade pública a ser preenchida.
238
É relevante deixar claro que as noções de população tradicional e conhecimento tradicional vêm sendo
utilizadas dentro da literatura das Ciências Sociais desde antes de 1990. Contudo, a convergência entre o âmbito
jurídico com a seara das Ciências Sociais intensificou-se após a lei nº 9.985/2000, que institui o Sistema
Nacional de Unidade de Conservação-SNUC e conceituou, ainda que de maneira indireta, o termo ―populações
tradicionais‖.
240

matiz utilitarista, ao figurarem como culturalmente ecológicas, logo, necessariamente


estáticas. Diante de tal contexto utilitarista e de pluralidade de significados, a autora ressalta
que o conceito em voga acaba por revelar-se como vago e genérico, mas não totalmente
desprovido de interesses, incorporando uma conotação política e ideológica na medida em que
se torna um conceito genérico que deve ser gradualmente preenchido por novos grupos
(VIANA, 2008, p. 207).
A argumentação de Viana (2008) também se faz importante no debate sobre
populações tradicionais ao observar que, somente com a criação de tal categoria foi possível
pensar na permanência humana em unidades de conservação e
como sua definição é vaga, ela é usada como instrumento de defesa de território de
diversos grupos sociais – não só das próprias ―populações tradicionais‖, mas de
todos os que querem permanecer em uma unidade de conservação. As populações
consideradas não ―tradicionais‖ – leia-se destruidoras da natureza – também se
apropriaram, no começo, da única possibilidade de permanência de seus locais de
uso e moradia, unindo-se às ―populações tradicionais‖ nos movimentos organizados
(p. 226).

Assim, Viana (2008, p. 228) elucida o ―preenchimento‖ do conceito ―população


tradicional‖ por meio da narrativa de um caso de uma unidade de conservação da Mata
Atlântica, na qual seus habitantes residentes passaram a se organizar na luta por direitos, entre
eles o de uso e acesso à terra e recursos naturais, ao mesmo tempo em que defendiam a
conservação da natureza, criando a possibilidade de tolerância de populações humanas em
unidades de conservação. A autora segue com uma extensa e densa sociogênese da produção e
definição do conceito, trazendo à tona diversas outras contribuições ao debate, que serão
expostas em momentos posteriores deste trabalho.
Nesse sentido, outra importante contribuição refere-se à descrita por Cunha e Almeida
(2001), que apresentam a definição desses grupos como um termo ainda em construção e
bastante genérico, classificando-o como um conceito extensivo, ou seja, que recebe novos
perfis por meio da enumeração dos grupos que constantemente ingressam nessa categoria.
Dentre os sujeitos enumerados e que compõem essa categoria é possível citar extrativistas,
seringueiros, castanheiros, quebradoras de coco babaçu, ribeirinhos, pescadores artesanais,
varjeiros, faxinalenses, comunidades de fundo de pasto, pomeranos, ciganos, geraizeiros,
vazanteiros, piaçabeiros, pantaneiros, dentre outros que já se identificam como populações
tradicionais, ademais daqueles que ainda surgirão.
Em sequência à reflexão proposta, Cunha e Almeida (2001) sinalizam para o fato de
que esta definição aponta para a formação de sujeitos políticos por meio de novas práticas. Ou
241

seja, os autores demonstram que, com o encontro da metrópole com o ―outro‖239, termos são
criados para que esse ―outro‖ tome alguma forma e, em alguns casos, este termo garanta a
esse ―outro‖ uma posição política interessante, conferindo-lhe direitos sui generis. Os autores
citam exemplos como índio, indígena, tribal, negro, dentre tantas identidades. Dessa forma,
termos novos são criados para classificar esse ―outro‖, sendo que com o passar do tempo, e
dependendo da conveniência, estes termos são ou não preenchidos.
No caso das populações tradicionais, é possível identificar como o termo vem sendo
amplamente habitado por novos grupos, assim como vem transformando-se em uma bandeira
política para os seus componentes, visto que, como será comentado em momento posterior
deste trabalho, seus direitos, inclusive territoriais, são garantidos no âmbito do Sistema
Nacional de Unidades de Conservação. A definição construída pelas Ciências Sociais para
populações tradicionais não mais se apresenta, portanto, como unicamente extensiva, mas,
ainda que apresentado um avanço teórico para a definição desse objeto, permanece a
necessidade de uma análise crítica sobre o mesmo.
Nesse sentido, Cunha e Almeida (2001) finalizam seu artigo pensando populações
tradicionais como:
grupos que conquistam ou estão lutando para conquistar (por meios práticos e
simbólicos) identidade pública que inclui algumas e não necessariamente todas as
seguintes características: uso de técnicas ambientais de baixo impacto; formas
eqüitativas de organização social; presença de instituições com legitimidade para
fazer cumprir suas leis; e, por fim, traços culturais que são seletivamente
reafirmados e reelaborados (p. 192).

Na definição em tela é possível perceber que estes autores também agregam um viés
político à noção de populações tradicionais, pois demonstram como esta identidade pública
foi construída, sendo juridicamente e politicamente reconhecida, garantindo, assim, direitos
específicos às pessoas que preencherem essa identidade.
Mauro Almeida (2007a) contribui com outra reflexão relevante em conferência
intitulada ―Quem são os povos da floresta?‖, proferida na 59a Reunião Anual da Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)240. O autor lembra a formulação de Alfredo
Wagner, que pensa populações tradicionais como ―grupos sociais que se constituem sob o
rótulo de povos tradicionais na luta para conquistar territórios e que incorporaram novas
identidades em uma situação de mobilização acionada em contexto de conflito‖ (ALMEIDA,

239
Buscando não deixar o leitor à deriva, ressalta-se que o termo ―outro‖, aqui utilizado, figura com a mesma
conotação descrita no primeiro parágrafo deste texto, a saber, grupos minoritários e com pouca visibilidade
política dentro do cenário social ocidental.
240
Disponível em: <www.sbpcnet.org.br>.
242

2007a, p. 48-49). Nessa construção, a autoidentificação emerge como fator essencial, pois,
conforme comentado acima, a categoria população tradicional foi criada pela sociedade
nacional para classificar grupos que em outros momentos não se viam e não eram vistos
enquanto protagonistas. Também deve-se ressaltar o contexto de conflito em que muitas vezes
estas populações encontram-se inseridas, relacionando aos processos de territorialização e
identificação.
O autor desenha, ainda, as populações tradicionais como:
comunidades que, já sendo habitantes há algum tempo da região, estão entrando
num processo de desenvolvimento com baixo impacto ambiental, visando melhorar
sua qualidade de vida. É assim que o grupo se auto-identifica atualmente como
tradicional (ALMEIDA, 2007a, p. 49).

Por meio dessa formulação, o autor faz um link entre a necessidade de uma auto-
identificação destas populações tradicionais como pertencentes a tal categoria, assim como da
necessidade de se autoidentificarem como de ―baixo impacto ambiental‖.

3.3 Saberes tradicionais e práticas sociais de relação com o meio ambiente: populações
tradicionais “ecológico-culturais?”

Destacando a importância das práticas sociais de relação com o meio ambiente para a
preservação dos espaços naturais, Lima e Pozzobon (2000) enumeram diversas evidências que
permitem apresentar as práticas dessas populações tradicionais como de baixo impacto
ambiental. Esses autores fazem uma interessante exposição acerca dos ―pequenos produtores
tradicionais‖ da Amazônia, demonstrando o processo elaborado pelo governo colonial para
povoar a Amazônia, baseado em dispositivos legais que o respaldavam. Estes estimularam a
formação de um campesinato histórico produtivo e submisso, através da miscigenação entre
índios, negros e brancos, resultando daí um camponês neo-amazônida, constituído por
―tapuios‖, ―mamelucos‖ e ―caboclos‖ que sincretizaram elementos de culturas negras, índias e
brancas, produzindo uma caracterização cultural singular que permeia a Região Amazônica
(LIMA; POZZOBON, 2000, p. 13).
No transcorrer dos séculos, no processo de ocupação dessa região, surgiram ciclos
econômicos, culminando na formação de diferenciados quadros sociais e culturais. Como
exemplo mais notório é possível citar o ciclo da borracha que importou os chamados ―brabos‖
(nordestinos) – novos atores sociais que se integraram ao cenário amazônico – configurando-
se como atores exógenos ―caboclizados‖. Com o passar do tempo, foram gradualmente
integrados ao cenário socioambiental amazônico, caracterizado por uma ―cultura ecológica e
243

de hábitos regionais‖ (PARKER apud LIMA; POZZOBON, 2000, p. 14), denotando mais
uma vez a miscigenação de culturas que permeia a realidade amazônica.
Em função dessa mistura cultural, e por meio da herança indígena, essas populações
adquiriram seu caráter de sustentabilidade, produzindo saberes advindos de culturas indígenas
de tradição ecológica milenar. Estas resultam de práticas sociais caracterizadas pela interação
com o meio ambiente, desenvolvendo e reproduzindo um vasto conhecimento sobre os
recursos naturais. A ferramenta de controle sobre esse campesinato amazônico constituiu-se
na imposição de um padrão cultural de consumo de artigos manufaturados241, adquirindo a
necessidade de poder aquisitivo, transformando-se, desta forma, em produtores tradicionais
com economia familiar (LIMA; POZZOBON, 2000, p. 13-14).
Lima e Pozzobon (2000, p. 14) também enfatizam o baixo grau de relação com o
mercado que o ―produtor tradicional‖ estabelece. Isso se dá em função de sua orientação
como produtor de subsistência, vendendo o excedente para ter acesso a produtos e gêneros
alimentícios industrializados, caracterizando-se como uma relação ―consuntiva‖, ou seja, ―a
produção doméstica tem por objetivo garantir o consumo dos membros da família e desta
orientação consuntiva decorre a lógica da aplicação dos rendimentos do trabalho‖. Logo, é a
―satisfação das necessidades de consumo que orienta a produção e, portanto, influencia a
pressão de uso sobre o ambiente‖ (LIMA; POZZOBON, 2000, p. 15). Outro fator agravante
para esta orientação consuntiva seria o grande esforço físico que o processo de confecção
desses produtos exige242, somada à baixa remuneração pelo produto, denotando a penúria e o
esforço em relação ao benefício do consumo extra ao explorar a própria força de trabalho.
Lima e Pozzobon (2000) também evidenciam as limitações tecnológicas às quais essas
populações estão sujeitas, restringindo a sua capacidade de produção e acesso ao mercado.
A linha de raciocínio acima exposta configura-se como um link para a seguinte
reflexão: já que essas populações produzem para consumo próprio, utilizando-se de métodos
tradicionais, terminam por apresentar um sistema de reprodução social sustentável, visto que
necessitam dos recursos naturais para garantir a sua reprodução social e seu modo de vida,
logo, a necessidade de preservação desses recursos também é concebida, dando origem a uma

241
Esse processo de relação com o mercado não é exclusivo do campesinato amazônico. A literatura sobre esse
segmento da sociedade já evidencia essa condição, colocando-a como fundamental na formação do campesinato
de um modo geral (CHAYANOV, 1974; HEBETTE 2004; COSTA, 1992, 1993, 2000).
242
A produção da farinha como um importante produto de relação com o mercado, por exemplo, demanda um
processo de muita força física e envolvimento de quase todo o grupo doméstico. Na pesca artesanal, outra
atividade que marca a Região Amazônica e cujo produto garante a relação com o mercado, os perigos que
envolvem a atividade, o saber específico sobre o ambiente, o domínio sobre as variadas técnicas que desenham
essa atividade são engolfados e desvalorizados pela rede de atravessadores que domina o sistema da ponta de
produção, o pescador, até chegar ao mercado.
244

cultura ecológica sustentável. Então, essas populações tradicionais, apesar de alterarem o


meio ambiente, na medida em que exploram os recursos naturais, não promovem efeitos
nocivos extensivos sobre o meio ambiente.
Nesse sentido, os argumentos de Lima e Pozzobon (2000) se aproximam das obras de
Diegues (1993; 1994; 1997; 2001) e Diegues et al. (2001). As reflexões e as proposições
desse autor demonstram como as populações tradicionais desenvolvem um modo de vida de
integração com a natureza, promovendo práticas de reprodução socioambiental marcadas por
certo grau de sustentabilidade ecológica, diferentemente da relação que a sociedade ocidental
pós-industrial estabeleceu com a natureza, no decorrer de seu processo de instauração. Os
argumentos de Diegues et al. (2001) evidenciam uma sociedade ocidental que se posiciona em
uma perspectiva instrumental, onde a natureza é pensada enquanto fonte de recurso e passível
de ser dominada, privatizada e explorada pelos seres humanos. Na sociedade ocidental a
natureza é vista como o lócus do primitivo, bárbaro, incivilizado que deve ter na civilização a
luz para a sua evolução, a saída para o seu estado de atraso. As obras em tela evidenciam
como as populações tradicionais vivem em relativa harmonia com a natureza, articulando o
seu modo de vida com os recursos naturais, desenvolvendo uma cultura de vasto
conhecimento dos mesmos.
Para Diegues, especificamente, as populações tradicionais desenvolveram um outro
tipo de relação homem natureza, por meio de:
modos de vida particulares que envolvem uma grande dependência dos ciclos
naturais, um conhecimento profundo dos ciclos biológicos e dos recursos naturais,
tecnologias patrimoniais, simbologias, mitos e até uma linguagem específica
(DIEGUES et al., 2001, p. 10).

Este trabalho entende que o autor, no trecho acima citado, expõe seu posicionamento
sobre a necessidade de uma nova concepção de mundo para a sociedade ocidental, diante de
uma postura de exploração e conquista dos recursos naturais ao invés de sua integração com
estes. Essa visão da natureza como um espaço oposto ao ser humano, como algo intocado e
selvagem243, é desenvolvida por meio da noção de wilderness. Conforme observado
anteriormente, é essa noção que origina as unidades de conservação de uso indireto dos
recursos naturais, nos EUA, padrão posteriormente exportado para outros países, sendo desde

243
Selvagem, nas palavras do autor, corresponde a: ―áreas virgens, não habitadas permanentemente‖ sendo que
os parques wilderness (unidades de conservação estadunidenses orientadas por essa noção) serviriam como
―parque público ou área de recreação para benefício e desfrute do povo... em que o homem é visitante e não
morador‖ (DIEGUES, 1993, p. 226).
245

seu início criticado, principalmente por nações indígenas, que viam nas florestas ditas
―naturais‖ (wilderness) a sua própria sociedade e seu próprio lar (DIEGUES, 1993)244.
Diegues (1993; 1994; 1997; 2001) e Diegues et al. (2000) sugerem que algumas
sociedades e populações contribuem para o aumento da diversidade de espécies, de
ecossistemas e genética, pois desenvolveram uma relação de integração com a natureza
marcada pela manipulação dos recursos naturais com práticas que não causam impactos
negativos ao ambiente. É possível, portanto, notar que a biodiversidade não é um fenômeno
apenas natural, mas há nele uma interferência humana, caracterizando-se como processo bio-
cultural, já que, o que outrora era visto pelos cientistas como biodiversidade,
descontextualizada de um domínio cultural, foi desconstruído em virtude das culturas das
populações tradicionais que desenvolveram uma relação ecologicamente sustentável com o
ecossistema que habitavam.
A Floresta Amazônica figura como um exemplo para essa argumentação, pois, a
maioria das populações que tradicionalmente ocupam as áreas de ―terra firme‖245
desenvolvem práticas agrícolas que utilizam pequenas áreas de terra para o plantio, sendo que
para remover a vegetação existente, utilizam-se do fogo, provocando queimadas, ocorrendo o
abandono dessas áreas após o decréscimo da produção agrícola246. Este processo assemelha-se
à destruição das florestas produzida por causas naturais, dificultando a identificação e
diferenciação de áreas ―naturais‖ para áreas que sofreram a ação humana (DIEGUES, 1993, p.
240).
Seguindo essa mesma linha de raciocínio, Diegues (1993) cita os casos do México e
da América Central onde foi descoberto que a abundância de diversas espécies na ―selva
primária‖ resulta da ação de populações indígenas.
O autor também cita o exemplo da África central:
Por causa da longa história de pousio da agricultura itinerante, junto com os povos
nômades/pastores na África Central, todas as florestas atuais são realmente
patamares de vários estágios sucessivos de crescimento criados pelo povo e não
existem áreas que muitos relatórios e propostas chamam de ―prístinas―,
―intocadas―, ―primárias― ou ―florestas maduras―. Em resumo, essas florestas são
artefatos culturais humanos (DIEGUES, 1993, p. 242).

244
Standing Bear, chefe Sioux, assim afirmava a esse respeito: Nós não consideramos selvagens (wild) as vastas
planícies abertas, os maravilhosos montes ondulados, as torrentes sinuosas. Somente para o homem branco a
natureza era selvagem, e somente para nós ela era domesticada. A terra não tinha cercas e era rodeada de
bênçãos do Grande Mistério (MCLUTHAN apud DIEGUES, 1993. p. 227).
245
Do ponto de vista da ecologia, ―terra firme‖ pode ser definida como uma área alta de floresta, como por
exemplo, as Florestas Úmidas e o Cerrado (PANDOLFO, 1978). Segundo pesquisas junto à comunidades rurais
amazônicas, corroboradas por pesquisas bibliográficas (FURTADO, 1993, LIMA; ALENCAR, 2001), terra
firme configura-se, segundo o léxico dessas comunidades, às áreas altas de floresta não alagáveis.
246
Para mais detalhes sobre esta técnica, ver Ravena-Cañete (2005).
246

Diante dos dados acima expostos, Diegues formula diversos conceitos em suas obras
que merecem ser aqui problematizados. Para o autor em destaque, populações tradicionais são
aquelas que praticam um extrativismo historicamente construído, caracterizado por um
manejo florestal de baixo impacto ambiental. Diegues nomeia uma extensa e descritiva lista
de populações tradicionais (DIEGUES et al., 2000; 2001; 2002), assim como empreende o
mapeamento georreferenciado da bibliografia que trata da temática população tradicional
(DIEGUES et al., 2001). Em parceria com outros autores, Diegues assim define sociedades
tradicionais em relatório produzido para o Ministério do Meio Ambiente (MMA):
grupos humanos culturalmente diferenciados que historicamente reproduzem seu
modo de vida, de forma mais ou menos isolada, com base em modos de cooperação
social e formas específicas de relações com a natureza, caracterizados
tradicionalmente pelo manejo sustentado do meio ambiente. Essa noção se refere
tanto a povos indígenas quanto a segmentos da população nacional que
desenvolveram modos particulares de existência, adaptados a nichos ecológicos
específicos (DIEGUES et al., 2000, p. 25).

Importa salientar que na formulação acima o autor inclui populações indígenas como
populações tradicionais, pensando que, apesar de existirem diferenças culturais entre as
mesmas, o que importa são os traços culturais diferenciados desses grupos sociais perante a
sociedade maior. Vale ressaltar que o modo de vida específico de integração com a natureza
apresenta-se como uma constante na maior parte dos casos, permitindo pensar essas ―culturas
tradicionais‖ permeadas por práticas de manejo sustentado do meio ambiente.
Buscando contribuir para a definição do conceito em foco, Arruda (1999) infere que
populações tradicionais são aquelas que
apresentam um modelo de ocupação do espaço e uso dos recursos naturais voltados
principalmente para a subsistência, com fraca articulação com o mercado, baseado
em uso intensivo de mão de obra familiar, tecnologias de baixo impacto derivadas
de conhecimentos patrimoniais e, normalmente, de base sustentável [...] Em geral
ocupam a região há muito tempo e não têm registro legal da propriedade privada
individual da terra, definindo apenas o local de moradia como parcela individual,
sendo o restante do território encarado como área de utilização comunitária, com seu
uso regulamentado pelo costume e por normas compartilhadas internamente (p. 79-
80).

O conceito de Arruda (1999) se mostra bastante amplo, tendo como especificidade a


exposição da situação de fragilidade em que as populações tradicionais se encontram, pois,
em geral, as mesmas não apresentam documentação apropriada que comprove seus direitos
sobre as terras historicamente por elas ocupadas. O autor argumenta, que a história econômica
do Brasil foi permeada por ―ciclos‖247, os quais quando chegavam ao fim, deslocavam o eixo

247
Coloca-se a expressão ―ciclos‖ entre aspas para que esta possa sofrer um processo de relativização no sentido
de entender que se constitui em visão generalizante, construída a partir da ótica das elites econômicas regionais e
247

de povoamento para outra área, deixando de lado a população que se vinculou ao ciclo, sendo
esta obrigada a desenvolver um sistema de reprodução socioeconômica baseado na produção
para consumo próprio. Nesse deslocamento, cada população tradicional findou desenvolvendo
uma relação específica com a natureza e o ambiente, tendo em vista as especificidades locais,
históricas, sociais e culturais que envolvem esse tipo de dinâmica (ARRUDA, 1999). Para o
autor em tela, são essas as chamadas ―populações tradicionais‖, sendo que o processo acima
descrito se configura como um dos motivos da dificuldade na construção de uma definição
consensual de populações tradicionais.
A análise que Barreto Filho (2002) desenvolve sobre os conceitos formulados pelos
dois autores acima citados (Diegues e Arruda) merece destaque. Para Barreto Filho (2002), os
referidos autores buscaram salientar que os grupos sociais impactados por espaços
especialmente protegidos eram detentores de características positivas para a conservação da
natureza, criando critérios supostamente técnicos e científicos para o exercício dessa
caracterização, ao invés de polemizarem sobre os direitos desses grupos que estavam sendo
violados (especialmente territoriais e culturais). Barreto Filho observa, ainda, que Diegues e
Arruda lançaram mão de uma tradição do pensamento social brasileiro que visualiza nos
―tipos culturais regionais‖ e nas ―regiões histórico-culturais‖, arquétipos imbuídos de noções
biológicas e culturais, retirando desses grupos sociais a influência que exercem sobre sua
identidade, congelando e naturalizando seus aspectos culturais a ponto de desconsiderar umas
das principais características que a noção de cultura apresenta: a sua dinamicidade
(BARRETO FILHO, 2002, p, 12-13). Com efeito:
O estabelecimento de uma tipologia de ―personagens histórico-culturais‖ leva à
definição de grupos sociais segundo uma combinação de traços substantivos,
restituindo, subreptipiciamente (sic), a noção de raça e, com esta, a ideia de um
código natural no qual cada espécie ou tipo – diferenciado tanto no tempo como no
espaço – ocupa uma posição biológico-cultural determinada numa escala evolutiva.
Trata-se, portanto, de uma noção que, por um lado, conspira contra a autonomia
destes grupos decidirem sobre seu futuro frente às aspirações modernas de níveis de
consumo e definição de bem-estar (cf. Lima, 1997), e por outro, implica uma relação
instrumental para com os mesmos ao torná-los reféns de uma definição exterior de si
248
próprios e dos problemas que vivem (BARRETO FILHO, 2002, p. 13).

Barreto Filho (2002), em nota de rodapé de número 23 (vinte e três), confere a


Diegues e Arruda os créditos de não se limitarem ao debate conceitual, pois os mesmos
compuseram parte ativa no processo de organização política desses grupos sociais,

sua referida história. Em outras palavras, tanto o formato como o conteúdo desses ciclos foi socialmente
construído e classificado, consequentemente, obedece prioridades e critérios de atores sociais dominantes.
248
Esta mesma posição é desenvolvida explicitamente por Viana (2008) e implicitamente por Almeida (2008a;
2002).
248

contribuindo na construção da noção de população tradicional como uma identidade pública.


No entanto, nota-se uma supressão na descrição dos argumentos de Diegues e Arruda, visto
que os mesmos alertam para a dinamicidade cultural à qual as populações tradicionais estão
sujeitas, assim como para a necessidade de se conceder às mesmas uma identidade política
que pode ser acessada por vários grupos sociais. Nessa direção, e buscando salientar o
argumento dos autores, vale citar literalmente as passagens do livro ―O mito moderno da
natureza intocada‖ (DIEGUES, 2008), publicado originalmente em 1994, já em sua 6a (sexta)
edição.
É evidente que os critérios anteriores se baseiam na noção de tipo ideal e que
nenhuma cultura tradicional existe em estado puro. Assim, um determinado grupo
social portador de cultura tradicional [...] pode apresentar modos de vida em que as
características acima mencionadas estejam presentes, com maior ou menor peso, por
causa, sobretudo, da sua maior ou menor articulação com o modo de produção
capitalista dominante, ou seja, as populações e culturas tradicionais se acham hoje
transformadas em maior ou menor grau (DIEGUES, 2008, p. 94).
[...] As culturas tradicionais não são estáticas, estão em constante mudança seja por
fatores endógenos ou exógenos, sem que por isso deixem de estar inseridas dentro
de um modo de produção que denominamos de pequena produção mercantil. A
assimilação de determinados padrões de consumo da sociedade capitalista nos países
capitalistas periféricos não significa necessariamente mudança radical de padrões
culturais básicos, uma vez que toda cultura tem capacidade de assimilar elementos
culturais externos (DIEGUES, 2008, p. 95).
[...] Algumas propostas para manter as populações tradicionais nas unidades de
conservação partem do pressuposto equivocado de que elas devem manter seus
padrões culturais imutáveis, sobretudo os que se referem ao uso dos recursos
naturais. Outra vez o mito da ―floresta intocada‖ se reproduz na necessidade da
intocabilidade cultural (DIEGUES, 2008, p. 98).

Em todos os trechos acima elencados, Diegues (2008) faz a ressalva da necessidade de


se entender a noção de cultura, tradicional ou não, como algo passível de mudança, não
necessariamente descaracterizando-se como diferenciada da sociedade maior. Deve-se, ainda,
observar, como o autor traz à tona a questão da relação entre economia e meio ambiente,
problematizando os modelos de desenvolvimento e proteção ambiental que vigoravam à
época. Para tanto, Diegues lança mão da noção de camponês e pequena produção mercantil
para refinar a categoria de ―populações tradicionais‖, mas fazendo a ressalva que esse não
seria um conceito fechado, já que estava intimamente ligado ao atributo cultural,
consequentemente, passível de mudanças, tanto internas como externas. Em uma leitura
completa da obra de Diegues (2008), entende-se que o autor está menos preocupado em
formular um conceito para a categoria ―populações tradicionais‖ do que em construir uma
crítica ao modelo de desenvolvimento ―sustentável‖ e preservação de áreas especialmente
protegidas. Assim, sobre a obra de Diegues (2008), é importante refletir no sentido de que a
formulação do conceito era muito mais uma necessidade contextual do que um objetivo,
249

sendo o conceito formulado, mas ao mesmo tempo problematizado. Como exemplo, segue um
trecho no qual o autor reflete, ainda que de maneira implícita, a necessidade de politização da
referida categoria.
Um dos critérios mais importantes para a definição de culturas ou populações
tradicionais, além do modo de vida, é, sem dúvida, o reconhecer-se como
pertencente àquele grupo social particular. Esse critério remete à questão
fundamental da identidade, um dos temas centrais da Antropologia. [...]. O
surgimento de outras identidades sócio-culturais, como a caiçara, é fato mais
recente, tanto em estudos antropológicos quanto nos que visam o auto-
reconhecimento dessas populações como portadoras de uma cultura e um modo de
vida diferenciado de outras populações. Esse auto-reconhecimento é
frequentemente, nos dias de hoje, fruto de uma identidade construída ou
reconstruída, como resultado, em parte, de processos de contatos cada vez mais
conflituosos com a sociedade urbano-industrial, e com os neomitos criados por esta.
Parece paradoxal, mas os neomitos conservacionistas explícitos na noção de áreas
naturais protegidas sem população têm contribuído para o fortalecimento dessa
identidade sócio-cultural em populações como os quilombos do Trombetas, os
caiçaras do litoral paulista etc. Para esse processo tem contribuído também a
organização de movimentos sociais, apoiados por entidades não-governamentais,
influenciadas pela ecologia social, por cientistas sociais etc. (DIEGUES, 2008, p.
90).

Seguindo de forma similar aos autores até agora apresentados, Esterci (2007) observa
que populações tradicionais
é como têm sido chamados aqueles povos ou grupos que, vivendo em áreas
periféricas à nossa sociedade, em situação de relativo isolamento face ao mundo
ocidental, capitalista, construíram formas de se relacionar entre si e com seres e
coisas da natureza muito diferentes das formas vigentes na nossa sociedade (p. 223).

O conceito acima exposto contribui com a discussão na medida em que faz dialogar os
conceitos de Cunha e Almeida (2001) e Almeida (2007a) com os conceitos de Diegues
(2008), ao pensar as populações tradicionais como uma formulação criada por nós (mundo
ocidental capitalista) para classificar grupos e povos distintos da nossa sociedade e que
estabelecem relações distintas com a natureza.
Esterci (2007), assim como Diegues (1993) e Diegues et al. (2002), observam que
esses povos e grupos já eram conhecidos, antes mesmo da construção da denominação
populações tradicionais, por meio de uma ―multiplicidade de outros termos que, ora
indicavam sua atividade econômica mais visível, ora indicavam sua origem étnica, ora se
referiam a espaços que habitavam ou a aspectos de sua cultura e modo de vida‖ (p. 223).
Exemplifica o argumento por meio do caso dos pescadores e extrativistas para a ―atividade
econômica mais visível‖, quilombolas e caboclos para a ―origem étnica‖, ribeirinhos e
caipiras para ―espaços que habitavam ou a aspectos de sua cultura e modo de vida‖, entre
outras populações tradicionais.
250

Esterci (2007) também reforça o argumento de Arruda (1999) e Diegues (1993),


ademais de ampliá-lo ao pensar as populações tradicionais como
pequenos produtores familiares que cultivam a terra e/ou praticam atividades
extrativistas como a pesca, coleta, caça, utilizando-se de técnicas de exploração que
causam poucos danos à natureza. Sua produção é voltada para o consumo e têm uma
fraca relação com os mercados. Sendo sua atividade produtiva muito dependente dos
ciclos da natureza, eles não criam grandes concentrações, e as áreas que habitam,
tendo uma baixa densidade populacional, são as mais preservadas entre as áreas do
planeta (p. 224).

A ampliação da definição de população tradicional por Esterci (2007) consta do final


do trecho acima citado, no qual a autora observa a baixa densidade populacional e
consequente maior preservação das áreas habitadas pelas populações tradicionais. Importa
salientar que essa característica não se encontra diretamente ligada à preservação de suas
áreas, contudo, auxilia na baixa pressão e impacto que causam ao meio ambiente. Ressalta-se
que Diegues (1993, p. 91) também faz ressalva acerca dessa característica das populações
tradicionais.
Assim como Diegues (1993), Esterci (2007) também contribui com a discussão em
voga em razão de alertar que, com o passar do tempo, os idealizadores das áreas protegidas
―foram percebendo quanto os conhecimentos acumulados pelas populações que as habitavam
poderiam ser úteis na implementação de manejo de recursos, visando a proteção de
ecossistemas e da biodiversidade‖ (ESTERCI, 2007, p. 224-225, grifo meu).
A partir das reflexões de Adams (1994), uma nova abordagem pode ser observada.
Esta traz dados relevantes sobre a relação entre natureza e populações tradicionais,
descrevendo de maneira extensiva diversas evidências arqueológicas e etnográficas que
reforçam o argumento de que essas populações seriam ecologicamente sustentáveis em função
do seu modo de vida, relativizando a dicotomia entre natureza e cultura, como aparece nas
evidências referentes aos Huastec, do nordeste do México:
Alcorn (1981) considera que o comportamento do homem pré-histórico foi
importante para formar a atual composição da floresta desta região do México. Para
elucidar este comportamento o autor recorreu à pesquisa etnobotânica entre os
Huastec modernos (língua Maia), representantes de 30 séculos de ocupação. Para os
Huastec, a vegetação ―natural‖ é vista como fonte de recursos, para os mais variados
usos, e não como nociva à agricultura... Há evidências de que distúrbios feitos pelo
homem em áreas tropicais influenciaram a evolução das espécies da flora, ao criar
uma variedade de condições para a sucessão secundária (GÓMEZ-POMPA, 1971).
Essa manipulação em massa da vegetação pelos Huastec cria diversas zonas de
vegetação antropogênica, que vão trocando de lugar ao longo do tempo,
possibilitando uma análise histórica de determinados trechos da mata, através da
análise de sua composição florística (ADAMS, 1994, p. 9)
251

A autora lança mão de variados exemplos para demonstrar a inserção das sociedades
indígenas no ecossistema local, demonstrando as influências que a biodiversidade recebe do
ser humano. Adams (1994) sugere a existência de florestas culturais, na medida em que as
sociedades pré-colombianas desenvolveram técnicas de manejo, cultivo e domesticação da
fauna e flora local, alterando a sua composição ―natural‖. Considerando tal argumentação,
grande parte da Floresta Amazônica, outrora considerada intocada, virgem, wilderness, na
realidade resulta de um processo de manejo desenvolvido pelas populações ameríndias e
continua sendo-o, pela ação das populações tradicionais, incluindo nesse contexto os povos
indígenas do presente.
Adams (1994) prossegue analisando o caso das florestas culturais do Brasil,
observando que pesquisas realizadas por antropólogos e arqueólogos ―têm demonstrado a
existência de um alto grau de manejo da floresta entre as populações habitantes da Amazônia,
num grau de interferência inimaginado há alguns anos‖ (p. 12). A autora destaca os exemplos
de florestas culturais, como as florestas de palmeiras (p. 12), as capoeiras e os campos da
floresta dos Kayapó (p. 13), cocais, matas de Caiaué, campinas abertas de areia branca do rio
Negro, matas de bambu, ilhas de mata no cerrado central, castanhais, matas de cipó (p. 14) e
as matas de babaçu no Maranhão (p. 15). Finalmente a autora a autora afirma:
As áreas comprovadamente reconhecidas como matas ―culturais‖ somam hoje
11,8% da terra firme da Amazônia, mas certamente este número é bem maior, se
levarmos em conta as matas ainda não levantadas e aquelas já destruídas pelo
desmatamento acelerado que ocorre na região (p. 14).

Concluindo, mais adiante:


parece cada vez mais claro que a classificação, sob o nome de florestas primárias, da
maior parte das florestas tropicais úmidas que ainda restam na Terra, está em jogo.
As evidências já levantadas são inquestionáveis, e é certo que um levantamento
etnobotânico minucioso aumentaria significativamente a lista de ‗florestas culturais‘
(ADAMS, 1994, p. 16).

Uma vez mais, portanto, evidencia-se o fato de que a noção de natureza selvagem e
intocada é na verdade um mito, visto que para muitos povos a natureza se encontra em relação
direta com o seu modo de vida, alterando-o, manipulando-o e manejando-o, construindo um
vasto conhecimento de seu ambiente e dos ciclos e recursos naturais nele presentes,
resultando, portanto, em uma biodiversidade culturalmente construída249. Desmistifica-se,
nessa perspectiva, a visão de que a ação humana sobre a natureza é sempre uma ameaça à
biodiversidade (DIEGUES et al., 2000). Em outras palavras, natureza e cultura não são

249
Para mais detalhes sobre a influência das populações tradicionais na formação do ecossistema local, consultar
Magalhães (2006), Scoles (2011), Balée (2008) e Ribeiro (1986).
252

opostas e mutuamente excludentes, assim como também fica evidente o mito sobre a
existência de áreas wilderness, virgens e intocadas pela humanidade, ou, nas palavras de
Diegues (1993; 1994; 2001; 2008), fica evidente ―o mito moderno da natureza intocada‖.
Vale ressaltar, no entanto, o cuidado necessário para não se cair na armadilha do ―bom
selvagem‖, como salientado por Adams (2000). Ainda que a autora evidencie a importância
da interação das populações tradicionais na formação e manutenção da biodiversidade,
evidenciando-as como protagonistas na conservação dos recursos naturais, ela ressalva que o
cientista pode acabar deixando de analisar o caso concreto de maneira crítica, não se pautando
em critérios científicos-ecológicos, caindo no engodo de classificar apressadamente as
populações tradicionais como sempre agentes multiplicadores da biodiversidade, e com
práticas de baixo impacto sobre o ambiente, não causando nenhum tipo de degradação e sendo
sempre a alternativa correta de conservação. Em outras palavras, esses grupos sociais estão
lutando por seus direitos e podem em alguns casos apresentar-se como agentes de degradação
ambiental, mesmo que em pequenas proporções e sendo este caso a exceção, devendo o
cientista estar atento ao caso concreto, evitando generalizações apressadas250.
Do ponto de vista jurídico, Benatti (2003) formula uma abordagem, pautada em
considerações socioantropológicas, sobre a relação das populações tradicionais com os
recursos naturais focando especificamente seu território. O autor desenvolve o conceito de
posse agroecológica251, construindo uma reflexão articulada com questões de ordem legal, no
sentido de que as populações tradicionais, para terem seus direitos garantidos, necessitam de
uma reforma agrária que garanta o direito à territorialidades diferenciadas. Ou seja, propõe
que se visualizem os diversos tipos de territorialização desenvolvidos pelas populações
tradicionais. Esta ideia de territorialidade é desenvolvida no próximo capítulo, na medida em
que foi mais utilizada de maneira associada ao conceito de ―povos e comunidades
tradicionais‖, sendo este conceito o foco do capítulo seguinte.

250
Vale salientar que Diegues (2008, p. 99) também observa que ―[...] deve-se afastar a imagem do bom
selvagem que frequentemente conservacionistas românticos atribuem aos povos tradicionais‖.
251
―A forma por que um grupo de família camponesas (ou uma comunidade rural) se apossa da terra, levando em
consideração neste apossamento as influências sociais,culturais, econômicas, jurídicas e ecológicas. Fisicamente,
é o conjunto de espaços que inclui o apossamento familiar conjugado com a área de uso comum, necessários
para que o grupo social possa desenvolver suas atividades agroextrativistas de forma sustentável‖ (BENATTI,
2003, p. 115).
253

3.4 Concluindo o inconclusivo: existe de fato um conceito?

O conceito do termo populações tradicionais foi aqui problematizado a partir da


produção antropológica elencada neste capítulo. Como já mencionado ao início do texto, a
literatura sobre a temática é vasta e certamente não figura como intenção deste esgotar a
discussão. Ao contrário, seu objetivo vinculou-se especialmente à tentativa de problematizar a
discussão lembrando quão difícil se mostra elencar tantas obras importantes produzidas pela
antropologia brasileira sobre a temática em tela. Buscando sintetizar a trajetória do conceito,
vale apresentar os seguintes aspectos sobre a definição do conceito de populações
tradicionais:
a) A sua forma de reprodução socioeconômica deve ser marcada por uma lógica
consuntiva, portanto, de produção e de consumo onde o excedente é comercializado com o
mercado, mas não se constitui em fator determinante das escolhas do grupo (LIMA;
POZZOBON, 2000; 2005; ARRUDA, 1999); b) deve apresentar um modus vivendi252 de
integração com a natureza (DIEGUES, 1993; 1994; SANTILLI, 2004; 2005; VIANA, 2008);
c) suas atividades de reprodução social e econômica são marcadas por um baixo impacto
ambiental (ARRUDA, 1999; LIMA; POZZOBON, 2000; 2005; DIEGUES, 1993; 1994); d)
baixa integração com o mercado (LIMA; POZZOBON, 2005; ARRUDA, 1999); e) ausência
de documentos que legitimem a sua propriedade (ARRUDA, 1999; BENATTI, 2003) e
consequente fragilidade social no que concerne à garantia de suas terras (BENATTI, 2003;
TRECCANI, 2006); f) direta dependência dos recursos naturais locais, tanto no sentido de
conseguirem alguma renda que lhes dê um mínimo de acesso a objetos e gêneros alimentícios
diversos, como no sentido de sua subsistência por meio do consumo direto dos mesmos
(LIMA; POZZOBON, 2005; DIEGUES, 1993; 1994; ARRUDA, 1999); g) práticas sociais
específicas e variadas de relação com a natureza (DIEGUES, 1993; 1994; 2001; 2008;
CUNHA, ALMEIDA, 2001; SANTILLI, 2004; 2005) e seu território (BENATTI, 2003;
TRECCANI, 2006); h) luta por direitos territoriais e identitários, consequentemente, luta pelo
direito às terras tradicionalmente por eles ocupadas e os respectivos modos de acesso e uso da
mesma e seus recursos naturais (TRECCANI, 2006; ALMEIDA, 2007a; DIEGUES, 2008); i)
devem autodeterminar-se como populações tradicionais ou minimamente como culturalmente

252
Modus é uma palavra latina que significa modo, somado à vivendi, outra palavra latina cujo significado é
viver, resulta no termo latino modus vivendi que significa o modo de vida ou modo de viver de determinada
população (DINIZ, 1998, p. 295; SILVA, 2004; LUIZ, 2002).
254

diferenciados do padrão societário nacional (DIEGUES, 1994; CUNHA; ALMEIDA, 2001;


ALMEIDA, 2007a).
Este capítulo discutiu a trajetória conceitual do termo ―populações tradicionais‖.
Destacou, como aponta a literatura, que estes seriam aqueles grupos sociais que apresentam
um modo de vida específico, marcado pela intensa simbiose e relativa harmonia com o meio
ambiente em que vivem253, desenvolvendo técnicas de baixo impacto ambiental, fraca
articulação com o mercado, intenso conhecimento da biodiversidade que as cerca e modo de
produção baseado na mão-de-obra familiar. Vale ainda ressaltar que especial destaque foi
dado à discussão sobre como esse termo é socialmente construído e atualmente caracteriza-se
como uma categoria política-identitária passível de transformações no decorrer do tempo.
Mas, ainda que nem sempre esses grupos se denominem tradicionais, estes são denominados
como tais por outros atores sociais.
Nesse sentido, o mais importante a se destacar refere-se ao fato de que as
populações com ―cultura tradicional‖ não precisam apresentar todas estas características e
nem mesmo se autoidentificarem como tais, mas minimamente visualizarem-se com um
modo de vida diferenciado da sociedade do entorno para acessarem os direitos inerentes a
esse conceito. Dessa forma, tais grupos exercem o seu direito internacionalmente reconhecido
de autorreconhecimento254, possibilitando o acesso a outros direitos, direitos esses
específicos, amplamente declarados por meio do ordenamento jurídico pátrio (Lei 9.985/2000,
entre outros). Tal ordenamento é resultado de um cenário de debates entre o legislativo
nacional, academia, sociedade civil em geral, com destaque para os movimentos sociais
desses grupos e a luta por seus direitos. Como prova de tal fato, citam-se as incorporações que
o ordenamento jurídico pátrio realizou na edição dos instrumentos jurídicos que tratam da
temática afeta à esses grupos sociais, ilustrada cronologicamente no Quadro 07255.

253
Como mencionado no texto, é imperioso que não se caia na armadilha do ―bom selvagem‖, como salientado
por Adams (1994, especialmente 2000).
254
Por meio da Convenção 169 da OIT, aqui ratificada pelo decreto 5.051/2004, como será detalhado no
próximo capítulo.
255
Coloco em negrito os dispositivos legais para destacá-los das utilizações acadêmicas.
255

Quadro 07 − Utilização cronológica do conceito “populações tradicionais”256


Ano Populações tradicionais
Diegues (1993; 1994; 1996; 2001;
1993
2008)
1996 Viana (2008)
Arruda (1999)
Cunha (1999)
1999 Adams (1999)
Benatti (1999)
Cunha e Almeida (1999)
2000 Lei 9.985/2000
2000 Diegues et al (2000; 2001; 2002)
Benatti (2001, 2003)
2001
Cunha e Almeida (2001)
2004 Santilli (2004; 2005)
Almeida (2007a)
2007
Esterci (2007)
Fonte: Pesquisa bibliográfica para a tese

Assim, a partir da análise da produção antropológica, entende-se que as populações


tradicionais apresentam diversificadas identidades, podendo constituir-se como indígenas,
quilombolas, ribeirinhos, pescadores artesanais de mar e de rio, camponeses, agricultores
familiares, extrativistas de diversos tipos (açaí, castanha, cupuaçu, copaíba, coco-babaçu etc.),
sendo que essas comunidades podem assumir uma identidade diferente, de acordo com sua
história socioeconômica e de relação com o meio ambiente. Nesse sentido, uma comunidade
pescadora pode identificar-se também como extrativista de açaí, ou camponesa, assentada etc.
Essas identidades estão ligadas com as atividades que estas comunidades desenvolvem, com a
história social do local e com o atributo étnico. Em outras palavras, a identidade de uma
comunidade apresenta três variáveis na sua constituição: relativa à sua origem étnica
(indígenas e quilombolas), à atividade econômica que desenvolve (extrativistas, pescadores e
agricultores), à sua história social (se sofreram algum impacto decorrente da história de
ocupação local, como exemplo citam-se os impactados por barragens e grandes projetos em
geral).
Finalmente, importa ressaltar o papel da Antropologia na história dos conceitos
analisados, visto que populações tradicionais nada mais são que mais conceptualização do

256
O quadro está composto por duas colunas e 15 linhas. Na primeira coluna aparece o ano da publicação
original e na segunda coluna o ano da obra consultada. Exemplo: o livro de Viana (2008) é publicado em 2008,
entretanto resulta de sua dissertação de mestrado, apresentada em 1996. As publicações de Diegues que
aparecem na segunda linha, correspondentes ao ano de 1993, são todas originárias do mesmo estudo, tendo como
primeira publicação, segundo o levantamento realizado por esta pesquisa, o artigo de Diegues (1993).
256

objeto de pesquisa da Antropologia desde seu início: o ―outro‖, sociedades outras, que não as
nossas, que incitam e expõem o alto grau de diferença de modos de vida desenvolvidos pelo
ser humano, resultando inicialmente em ―populações nativas‖ (índios, indígenas, ―tribos‖
africanas etc.) para então serem agregados camponeses, agricultores familiares e pescadores,
chegando no espaço de habitação do mundo ocidental capitalista, a saber, o espaço urbano e
moderno em si, por meio não somente da vinda dessas populações para a cidade e do avanço
da cidade para o espaço dessas populações, mas também dos próprios ―outros‖ dentro da
nossa própria sociedade original, no caso, os pobres e a classe trabalhadora, descendente de
camponeses, índios, caboclos etc. Populações tradicionais, portanto, figura como mais um
termo que nós (antropólogos, cientistas sociais, brasileiros, cidadãos do mundo urbano,
liberal, capitalista, moderno etc.) damos aos ―outros‖, dentre outros termos já inventados.
A Antropologia brasileira conseguiu ser agente de um processo de criação de direitos
específicos, por meio da teorização sobre as ―populações tradicionais‖. Ainda que existam
severas críticas a este conceito, se faz imperioso destacar que o mesmo figurou como uma
vitória do movimento socioambiental, na medida em que cria uma identidade jurídica coletiva
e sujeitos de direitos, nunca antes pensados de maneira tão direta e específica pelo
ordenamento jurídico nacional.
Deve-se salientar que os conceitos analisados para o termo ―população tradicional‖
servem somente como instrumento de interpretação da realidade, mas não podem e nem
devem sobrepor-se a ela. Em outras palavras, muitas foram as transformações do conceito,
mas, mais importante que as transformações, são os atores sociais que demandam essas
transformações e suas próprias realidades e demandas sociais, ou seja, mais importantes que a
discussão conceitual sobre ―populações tradicionais‖, são os ribeirinhos amazônicos, os
quilombolas marajoaras, os pescadores artesanais e ribeirinhos impactados pela barragem de
Tucuruí, os seringueiros da RESEX Chico Mendes, os moradores de Igarapé Grande e assim
por diante. Quando esses atores sociais demandarem outro nome, outros direitos, outras
identidades, aí se buscam outros termos e conceitos.
Com efeito, a gênese conceitual das PPCT continua no próximo capítulo, responsável
por histórias de outra nomenclatura pensada para esses grupos sociais não modernos. Essa
nomenclatura é ―povos e comunidades tradicionais‖.
257

CAPÍTULO IV - POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS: USOS DA


ANTROPOLOGIA, DO DIREITO E SUAS LIGAÇÕES COM O CONCEITO DE
“POPULAÇÕES TRADICIONAIS”

Este capítulo trata da invenção do termo ―povos e comunidades tradicionais‖ e de seus


desdobramentos jurídicos e para a teoria antropológica desse conceito e do conceito de
―populações tradicionais‖, detalhado pelo capítulo anterior. Com efeito, identificam-se e
descrevem-se as transformações sofridas pelos instrumentos jurídicos nacionais que trataram
de tais conceitos, assim como a teoria antropológica que fez uso dos mesmos.
Assim, o primeiro tópico esmiúça o conceito ―povos e comunidades tradicionais‖, por
meio da análise dos usos que a Antropologia fez do mesmo nas últimas três décadas. O
segundo tópico analisa suas ligações com o conceito de ―populações tradicionais‖, a partir dos
instrumentos jurídicos que foram legitimando estes conceitos dentro do ordenamento jurídico
brasileiro. Finalmente, o último tópico reflete sobre os desdobramentos de ambos os conceitos
para a teoria antropológica.

4.1 Tradição, conflito e processos de territorialização: o direito à diferença e à


territorialidade

Em ―Arqueologia da tradição‖, o antropólogo Alfredo Wagner B. de Almeida (2006)


apresenta discussão relevante a respeito da categoria tradicional, frequentemente associada à
definição de povos e as comunidades tradicionais. Para Almeida (2006), mais do que uma
ideia de continuidade, de velho, antigo ou arcaico, o termo tradição expressa força política do
presente. Esta expressão não pode mais ser lida
segundo uma linearidade histórica ou sob a ótica do passado ou ainda como uma
―remanescência‖ das chamadas ―comunidades primitivas‖ e ―comunidade
domésticas‖ (SAHLINS, 1972; MEILLASSOUX, 1976) ou como ―resíduo‖ de um
suposto estágio de ―evolução da sociedade‖. O chamado ―tradicional‖, antes de
aparecer como referência histórica remota, aparece como reivindicação
contemporânea e como direito envolucrado em forma de autodefinição coletiva
(ALMEIDA, 2006. p. 9).

Em outras palavras, a noção de tradicional está sendo reconstruída e/ou reinventada,


uma vez que os povos e comunidades ditos ―tradicionais‖ vêm assumindo novo significado,
ligado a reivindicações atuais e que remetem a uma autodefinição coletiva com direitos
específicos. É o direito à diferença, à heterogeneidade, a uma sociedade plural e multicultural.
Ainda segundo Almeida (2006), povos e comunidades tradicionais seriam aqueles que
aparecem hoje envolvidas num processo de construção do próprio ―tradicional‖, a
partir de mobilizações e conflitos, que tem transformado de maneira profunda as
formas de solidariedade apoiadas em relações primárias. Deste ponto de vista, além
258

de ser do tempo presente, o ―tradicional‖ é, portanto, social e politicamente


construído (p. 10, grifo meu).

É possível evitar, assim, a confusão entre tradição e costume, não pensando tradição
como repetição e regularidade no modo de vida dos povos e comunidades ―tradicionais‖,
tampouco aplicar esta noção de tradição às práticas jurídicas que seriam correspondentes a
estas comunidades e povos. Nesse sentido, tradição
se atém a processos reais e sujeitos sociais que transformam dialeticamente suas
práticas, mesmo quando as convertem em normas para fins de interlocução,
redefinindo suas relações sociais e com a natureza. Tais processos reais nos levam a
pensar em comunidades dinâmicas [...] Sob este prisma é que estamos propondo
relativizar o peso da ―normatização consuetudinária‖ no significado das práticas
jurídicas dos povos tradicionais (ALMEIDA, 2006. p. 11).

Com efeito, outra contribuição de Almeida (2008a) refere-se à sua crítica sobre alguns
esquemas interpretativos da Amazônia que terminam por reduzir conceitos e definições.
Almeida observa que ―conceito não é exatamente dicionarizado e mais consiste num
instrumento de análise em tudo dinâmico e referido a autores que disputam a legitimidade de
acioná-lo‖, não podendo ser enquadrado numa definição frigorificada (ALMEIDA, 2008a, p.
167). Assim, leva a cabo a reflexão sobre os conceitos de degradação e natureza, observando
que esta não pode mais ser entendida como ―quadro natural‖ ou ―meio físico‖, tratando-se de
um significado ligado mais a uma
representação disposta num campo de disputas que, ao negar esta noção histórica
corrente, chama a atenção para uma construção social e um ato deliberado dos que
se empenharam de maneira direta em extrativismos e cultivos agrícolas com
unidades familiares, afirmando uma identidade coletiva (p. 20)

Assim, Almeida (2008a) relativiza o conceito de ―natureza‖, emprestando-lhe um


significado que pode ser socialmente construído, assim como o termo ―degradação‖. Segundo
o autor em tela, este termo ―se torna um atributo de grupos sociais e de comunidades étnicas e
não mais se refere necessariamente a ―perdas‖ relativas aos recursos naturais‖, evidenciando a
―transitividade do atributo [...] que tanto pode ser utilizado para os recursos naturais, quanto
para aqueles que os exploram, os quais são interpretados, por sua vez, como ‗indivíduos
biológicos‘ ‖ (ALMEIDA, 2008a, p. 34). Em outras palavras, os povos e as comunidades
tradicionais acabam sendo transformados em agentes257 de degradação ambiental.

257
Neste trabalho vem-se utilizando o conceito de ator, acionado por Latour (2004a, 2012). A despeito das
diferenças teóricas será utilizado neste tópico o conceito de agente, na medida em que foi a opção teórica que
Almeida (2006; 2008a; 2008b) lançou mão. Não há prejuízos teóricos nessa mescla, na medida em que, ainda
que Almeida apresente muitas saídas para as tensões sociais vividas pelas PPCT, termina-se, como será visto ao
final do capítulo, em retornar à dicotomia entre tradicionais e modernos, permitindo, nesse momento, analisar
outra dicotomia complementar a essa, a saber, natureza e cultura.
259

Mais adiante, Almeida (2008a, p. 38-39) relativiza o conceito de degradação diante do


contexto socioambiental amazônico, observando que, em verdade, o referido termo pode ser
trocado por outro, a saber, práticas socioambientais, materializadas na categoria nativa roça.
Esta refere-se menos a uma mera referência aos tratos do cultivo e mais a uma maneira de
viver e de ser, um estilo de vida que sintetiza os recursos naturais na ideia de ―terra‖ e, com
ajuda das mobilizações sociais, serve de reforço à reivindicação da identidade coletiva. Com
efeito, Almeida (2008a) observa que
As novas formas de interpretar a ―natureza‖ e de defendê-la fazem parte de seu novo
significado, que não pode mais ser dissociado das mobilizações e de processos
diferenciados de territorialização, que levam os sujeitos sociais a construírem suas
próprias territorialidades específicas, segundo seus critérios culturais intrínsecos e
seus conhecimentos profundos das realidades localizadas (ALMEIDA, 2008a, p.
39).

Em outras palavras, a afirmação acima citada corrobora o argumento de Diegues


(1994) e Adams (1994) no sentido de pensar a biodiversidade como culturalmente construída,
sendo que Almeida (2008a) amplia esta perspectiva ao pensar a noção de biodiversidade
como culturalmente reapropriada e ressignificada pelas populações, povos e comunidades
tradicionais258. Estas não degradam o meio ambiente ou a natureza, mas sim fazem a roça,
usam os recursos naturais segundo suas crenças, práticas, costumes, enfim, segundo a sua
―maneira de viver e de ser‖, seu ―estilo de vida‖ (ALMEIDA, 2008a, p. 39). O autor
denomina este processo de reapropriação e ressignificação de ―politização da natureza‖
(ALMEIDA, 2008a, p. 14, 40, 82)
É assim que os povos e as comunidades tradicionais, por meio de suas lutas e disputas,
conseguem não somente reivindicar e garantir alguns de seus direitos mais fundamentais,
como o uso de recursos naturais e o direito à terra, mas também conseguem quebrar
paradigmas, mudar conceitos, desnaturalizar noções pré-concebidas e assim por diante. Eles
conseguem interromper o que Almeida (2008a, p. 36), ao citar o filósofo francês Michel
Foucault, convencionou chamar de ―postulado da continuidade‖259.

258
Neste trecho se utiliza os termos como sinônimos com o objetivo de ampliá-los ao máximo.
259
Em nota de rodapé das páginas 36 a 37, Almeida observa que ―Para Foucault, caso se pretenda adicionar o
conceito de descontinuidade às histórias do pensamento intelectual: ‗É preciso se libertar de todo um jogo de
noções que estão ligadas ao postulado da continuidade. [...] Como a noção de tradição, que permite ao mesmo
tempo delimitar qualquer novidade a partir de um sistema de coordenadas permanentes e de dar um estatuto a
um conjunto de fenômenos constantes. Como a noção de influência, que dá um suporte – antes mágico que
substancial – aos fatos de transmissão e de comunicação. Como a noção de desenvolvimento, que permite
descrever uma sucessão de acontecimentos como sendo a manifestação de um único e mesmo princípio
organizador. [...] É preciso abandonar estas sínteses já feitas, esses agrupamentos que se admitem antes de
qualquer exame, esses laços cuja validade é admitida ao início do jogo; destruir as formas e as forças obscuras
pelas quais temos o hábito de ligar entre si os pensamentos dos homens e seus discursos; aceitar que só se trata,
260

Contudo, Almeida (2008a) conclui alertando que


o entendimento da natureza não prescinde mais de sujeitos sociais e nem tampouco
de práticas rotineiras de conservação e de ―costumes‖ ditados pela consciência
ambiental de povos e comunidades étnicas. Em verdade a ação ambiental torna-se
uma política de Estado que, em certa medida, incorpora reivindicações dos
movimentos sociais. Verifica-se, entretanto, que não há consenso quanto às medidas
concretas que expressam tais decisões políticas. Os antagonismos são de várias
ordens dividindo grupos e interesses, quanto às formas de manutenção dos recursos
florestais, hídricos e do solo, prenunciando que tampouco há consenso em torno dos
significados de ―conservação‖, ―degradação‖ e uso continuado (p. 41).

O referido antropólogo também contribui com diversas obras na temática de povos e


comunidades tradicionais (ALMEIDA 1994; 2006; 2008b), sendo que, como fica claro a
partir dos trechos até o momento evidenciados, um aspecto marcante em suas obras se
destaca. Este se refere ao viés político de luta por direitos, empreendido por esses grupos
sociais, atrelado à ideia de conflito e disputa social como construto da realidade. Nesse
sentido, Almeida (1994) observa como esses grupos vêm transformando velhos padrões e
esquemas de pensamento na interpretação da realidade socioambiental, por meio da luta
coletiva pelo reconhecimento de direitos diversos (ALMEIDA, 1994). Com efeito, vale
observar que uma especial atenção é concedida nas obras do autor aos direitos territoriais, de
acesso e uso de recursos naturais de uso comum e de autoidentificação dos grupos em
questão.
Nesse sentido, outra inovação de Almeida (2008b) refere-se ao olhar lançado sobre a
definição de povos e comunidades tradicionais a partir do prisma da luta por direitos
territoriais, focando a característica da territorialidade desses povos e seus respectivos direitos
sobre suas terras. Ainda que esta temática perpasse quase que a totalidade das obras do autor
em tela, é na obra ―Terras tradicionalmente ocupadas‖ (ALMEIDA, 2008b) que o autor se
propõe a refletir especificamente sobre a relação entre esses grupos sociais, suas terras e lutas
na garantia de acesso e uso das mesmas, condensando nessa publicação seus argumentos
sobre esse tema.
O livro de Almeida (2008b) está dividido em dois capítulos, que representam dois
artigos outrora publicados por esse antropólogo. Um deles veio a público em meados da
década de 1980, e aborda estritamente a questão das formas de acesso e uso de bens comuns
desenvolvidos pelos povos e comunidades tradicionais, condensadas na noção de terras
comuns. Este artigo adquiriu uma ampla importância no cenário acadêmico, sendo
constantemente citado quando se trata da temática de uso comum. O outro artigo foi

em primeira instância, de um conjunto de acontecimentos dispersos‘ (FOUCAULT, 1973, p. 17) (g.n.)‖


(FOUCAULT apud ALMEIDA, 2008a, p. 36-37).
261

elaborado quase vinte anos depois, em meados da década de 2000, e refere-se não somente às
terras comuns, mas também às autodenominações dos agentes sociais que ocupam estas
terras, assim como focaliza os fenômenos de luta e conflito protagonizados por estes agentes,
atrelando o termo ―tradicional‖ a fatos do presente e às reivindicações dos movimentos
sociais. Estes dois artigos são respectivamente citados e explanados a seguir, a título de
melhor entendimento a respeito dos atributos que compõem o conceito de povos e
comunidades tradicionais.
Almeida (2008b), em seu primeiro texto, leva a cabo a reflexão da existência de
peculiaridades de uso e acesso à terra por parte desses grupos sociais, evidenciando a
importância das áreas de uso comum para os mesmos. Dessa forma, Almeida (2008b) elenca
as seguintes formas de posse comum por parte desses povos e comunidades na relação com
seus territórios tradicionalmente ocupados: terras de preto, terras de santo, terras de índio, as
terras de herança e as terras soltas ou abertas. Todas estas se caracterizam pelo fato de serem
de uso comum da comunidade local. Nesse sentido, o uso e o acesso a essas terras se dá por
meio de ―um certo grau de coesão e solidariedade obtido face a antagonistas e em situações de
extrema adversidade, que reforçam politicamente as redes de relações sociais‖ (p. 134). O
autor ainda assevera que o acesso aos recursos básicos presentes nessas terras260 são
interditados quando não existirem ―relações de consangüinidade, estreitos laços de vizinhança
e afinidade ou rituais de admissão, que assegurem a subordinação de novos membros às
regras que disciplinam as formas de posse e uso da terra‖ (ALMEIDA, 2008b, p. 134).
Essas terras comuns acabam não recebendo a sua devida atenção, pois, segundo
Almeida (2008b), são erroneamente consideradas ―formas atrasadas, inexoravelmente
condenadas ao desaparecimento, ou meros vestígios do passado, puramente medievais, que
continuam a recair sobre os camponeses, subjugando-os‖ (ALMEIDA, 2008b, p. 136),
terminando por representarem resíduos ou formas ―residuais ou ‗sobrevivências‘ de um modo
de produção desaparecido, configuradas em instituições anacrônicas que imobilizam aquelas
terras, impedindo que sejam colocadas no mercado‖ (ALMEIDA, 2008b, p. 136). Nesse
sentido, Almeida (2008b, p. 137) assevera que estas análises por ele citadas são características
das análises econômicas deterministas, sendo estas indiferentes a ―quaisquer das
particularidades que caracterizam as formas de posse e uso comum da terra, visto que jamais
constituem um obstáculo insuperável ao desenvolvimento capitalista‖ (ALMEIDA, 2008b, p.
137).

260
Leia-se recursos naturais como corpos d‘água, florestas e campos de pastoreio, entre outros.
262

Esse quadro de tendência a subjugação das terras comuns ao mercado capitalista de


terras termina por sofrer uma frenética mudança com os processos de luta, conflito e
resistência do movimento camponês, em suas múltiplas faces, obrigando o poder público a
conceder mais atenção, mesmo que ainda insuficiente, as especificidades dos usos e acessos
reproduzidos nas terras comuns (ALMEIDA, 2008b, p. 137-140). Nesse sentido, Almeida
(2008b) assevera que essas terras comuns configuram-se em
resultados de uma multiplicidade de soluções engendradas historicamente por
diferentes segmentos camponeses para assegurar o acesso à terra, notadamente em
situações de conflito aberto. Para tanto foram sendo erigidas normas de caráter
consensual e consoantes crenças mágicas e religiosas, mecanismos rituais e
reciprocidades econômicas positivas. A sua aceitação como legítimas não pressupõe
qualquer tipo de imposição (p. 139, grifo nosso).

Em resumo, essas áreas comuns, quando ameaçadas por agentes externos, criam
processos de disputa que fortalecem os laços sociais e a identidade coletiva dos grupos que as
utilizam, dando-lhes uma coesão política mais vigorosa, assim como mecanismos de proteção
e permanência nas mesmas. Com isso, as normas de acesso e uso das terras e recursos naturais
nelas contidos são criadas, sendo estas normas socialmente consensuais e extraestatais
(Almeida, 2008b). Nesse sentido, mais adiante, o mesmo autor observa que essas terras
seriam o resultado histórico de um processo de ―desagregação e decadência de plantations
algodoeiras e de cana-de-açúcar.‖, representando ―formas que emergiram da fragmentação
das grandes explorações agrícolas, baseadas na grande propriedade fundiária, na monocultura
e nos mecanismos de imobilização da força de trabalho‖, compreendendo ―situações em que
os próprios proprietários entregaram, doaram formalmente ou abandonaram seus domínios
face à derrocada‖ (ALMEIDA, 2008b, p. 144).
Assim, este ―campesinato pós-plantation‖ passou a se autorrepresentar e a designar
suas extensões segundo denominações específicas atreladas ao sistema de uso comum. As
noções de terra comum, a saber, as ―terras de preto‖, ―terras de santo‖, ―terras de irmandade‖,
―terras de parentes‖, ―terras de ausente‖, ―terras de herança‖ (e/ou ―terras de herdeiros‖) e
―patrimônio‖, são acionadas, figurando como um elemento no processo de identificação
coletiva e, consequentemente, reivindicações sociais e políticas (ALMEIDA, 2008b, p. 146).
Dessa forma, Almeida conclui seu primeiro artigo observando que
Em termos gerais [...] parece que o grau de solidariedade e coesão apresentado pelos
camponeses nestas terras de uso comum tem sido forte o bastante para garantir a
manutenção de seus domínios. Os vínculos sólidos que mantém a estabilidade
territorial alcançada constituem a expressão de toda uma rede de relações sociais
construída numa situação de confronto e que parece ser reativada a cada novo
conflito exercendo uma influência destacada na resistência àquelas múltiplas
pressões. Esta disposição seria uma das razões pelas quais, com o acirramento dos
263

confrontos, tais domínios podem ser classificados hoje como uma dentre as zonas
mais críticas de conflito e tensão social na estrutura agrária brasileira (p. 168).

Fica claro o caráter de uma espécie de ―antropólogo do conflito‖ no qual se constitui


Almeida, sempre buscando expor as tensões e os conflitos sociais como mecanismos de
construção da realidade que, neste caso específico, configura-se nas diversas formas de acesso
e uso das genericamente denominadas terras comuns.
Almeida (2008b) segue na mesma direção em seu segundo artigo, com a diferença de
que os movimentos sociais, no decorrer de duas décadas da nova constituição, adquiriram
uma maior coesão e, portanto, maior poder de exigências e cobranças junto ao poder público.
Consequentemente, os agentes sociais foram gradativamente ocupando o termo ―povos e
comunidades tradicionais‖, emprestando-lhe novas demandas, resultantes no direito à
autodefinição e reconhecimento de algumas das suas especificidades, entre elas a sua relação
com os recursos naturais e as terras por eles tradicionalmente ocupadas.
Nesse sentido, Almeida (2008b) desenvolve um exercício de atualização do texto
anterior. Inicialmente o autor tece algumas considerações de ordem teórica e epistemológica,
lançando mão mais uma vez do conflito como construto da realidade social, para então expor
os casos de relação e uso de terra por parte dos povos e comunidades tradicionais, trazendo à
tona as noções de ―processos de territorialização‖ e de ―terras tradicionalmente ocupadas‖.
Nessa atualização propõe-se a ―analisar a relação entre o surgimento destes movimentos
sociais e os processos de territorialização que lhes são correspondentes‖ (p. 25), sendo
elucidados no termo ―terras tradicionalmente ocupadas‖, as quais ―expressam uma
diversidade de formas de existência coletiva de diferentes povos e grupos sociais em suas
relações com os recursos da natureza‖ (ALMEIDA, 2008b, p. 25).
Novamente Almeida (2008b) chama a atenção para a dificuldade que os textos legais
apresentam na tentativa de reconhecer essa diversidade, expondo as tensões relativas a esse
processo jurídico formal de reconhecimento. Assim, Almeida (2008b) alerta que, mesmo com
as lutas sociais e a relativa ―desinvisibilização‖ que esses grupos sociais vêm conquistando,
suas reivindicações não são absolutamente acatadas, ―não significando, portanto, uma
resolução dos conflitos e tensões em torno daquelas formas intrínsecas de apropriação e de
uso comum dos recursos naturais‖ (ALMEIDA, 2008b, p. 26).
Com isso, Almeida (2008b) substitui o termo terras comuns pela denominação ―terras
tradicionalmente ocupadas‖. Estas são demarcadas a partir de um processo de
territorialização, onde o território funciona como um fator de identificação, defesa e força.
Assim, o autor em voga observa que ―Em virtude do caráter dinâmico destas formas de
264

apropriação dos recursos é que preferi utilizar a expressão processo de territorialização‖ (p.
29), no sentido utilizado por Oliveira Filho (apud ALMEIDA, 2008b)261, sendo que Almeida
(2008b) concede-lhe uma noção prática, entendendo-o no sentido de uma territorialidade
específica, utilizada
para nomear as delimitações físicas de determinadas unidades sociais que compõem
os meandros de territórios etnicamente configurados. As ―territorialidades
específicas‖ de que tratarei adiante podem ser consideradas, portanto, como
resultantes de diferentes processos sociais de territorialização e como delimitando
dinamicamente terras de pertencimento coletivo que convergem para um território
(p. 29).

A instituição das terras tradicionalmente ocupadas se deu por meio de lutas e


mobilizações sociais, as quais resultaram no reconhecimento formal por parte do Estado das
formas de apropriação da terra e recursos naturais desenvolvidas pelos povos e comunidades
tradicionais. Assim, Almeida (2008b) expõe diversos aparatos jurídicos, entre eles as leis do
babaçu e do licuri livre, asseverando que ―a emergência e o acatamento formal de novos
dispositivos jurídicos refletem disputas entre diferentes forças sociais‖ (p. 38), resultando na
tendência de tornar cada vez mais abrangente e complexa a expressão ―terras tradicionalmente
ocupadas‖.
Almeida (2008b) ainda observa a existência de um critério político-organizativo na
demanda por uma ―política de identidades‖, que se sobressai perante os antagonismos entre os
agentes sociais objetivados em movimento e os aparatos estatais. Nesse sentido, o autor
conclui
foi exatamente este fator identitário e todos os outros fatores a ele subjacentes, que
levam as pessoas a se agruparem sob uma mesma expressão coletiva, a declararem
seu pertencimento a um povo ou a um grupo, a afirmarem uma territorialidade
específica e a encaminharem organizadamente demandas face ao Estado, exigindo o
reconhecimento de suas formas intrínsecas de acesso à terra, que me motivaram a
refletir novamente sobre a profundidade de tais transformações no padrão
―tradicional‖ de relações políticas (p. 30).

Para corroborar este argumento de que o Estado está assumindo práticas de


reconhecimento de direitos territoriais diferenciados, Almeida (2008b) expõe, no restante de
seu texto, outros dispositivos jurídicos, como a Convenção n 169 da OIT sobre povos
indígenas e tribais, promulgada pelo Estado brasileiro por meio do Decreto no 5.051/2004, o
Decreto no 6.040, de 07 de fevereiro de 2007, que institui a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, ademais de

261
Vale ressaltar que Oliveira Filho (apud ALMEIDA, 2008b) faz distinção entre processo de territorialização e
territorialidade, este mais próximo à definição que a Geografia faz do conceito. Não é objetivo deste trabalho
estabelecer essa discussão, reservando a obrigação de apenas mencioná-la para situar o leitor sobre o debate.
265

constituições e legislações estaduais, assim como a própria Constituição Federal. O autor


articula essas legislações com aparatos jurídicos locais, as demandas dos povos e
comunidades tradicionais e extensas descrições específicas sobre os processos de
territorialização das diversas comunidades que se autoidentificam como tradicionais.
Em resumo, Almeida (2008b) expõe no restante do segundo artigo, os aparatos
jurídicos que garantem o direito a terriorialidades diferenciadas, demonstrando o seu processo
de reivindicação por parte dos movimentos sociais262, fundamentados em dispositivos
jurídicos de maior abrangência, como aqueles citados no parágrafo anterior.
Um olhar similar ao de Almeida (2008b) é lançado por Little (2002), que vê na
garantia do direito ao acesso a terra a forma de perpetuação das identidades que preenchem o
conceito de povos e comunidades tradicionais. Vale ressaltar que este autor cita o primeiro
texto de Almeida (2008b) sobre terras comuns, elucidando a importância que este escrito teve
em seu tempo, revelando as tensões sociais em torno das formas de acesso e uso da terra.
Little (2002), ao pronunciar-se sobre os povos e comunidades tradicionais, observa a
existência de uma ―imensa diversidade sociocultural do Brasil [que] é acompanhada de uma
extraordinária diversidade fundiária‖ (LITTLE, 2002, p. 2). Até recentemente tal diversidade
foi pouco conhecida e reconhecida pelo Estado brasileiro, oportunizando o surgimento de
―outra reforma agrária‖, representada pela demarcação e homologação de terras indígenas,
reconhecimento e titulação dos remanescentes de comunidades de quilombo e do
estabelecimento de RESEX.
Nesse sentido, Little chama a atenção para a importância de se trabalhar com esse
―conjunto eclético de grupos humanos desde uma perspectiva fundiária informada pela teoria
antropológica da territorialidade‖, possibilitando ―delimitar um campo de análise
antropológica centrado na questão territorial desses grupos ao invés dos enfoques clássicos do
campesinato, etnicidade e raça‖ (LITTLE, 2002, p. 3). Assim, ao focalizar a relação de povos
e comunidades tradicionais com seu território, Little propõe uma antropologia da
territorialidade que mostre como
este novo olhar analítico [da antropologia da territorialidade] pode detectar
semelhanças importantes entre esses diversos grupos − semelhanças que ficam
ocultas quando se empregam outras categorias −, vincular essas semelhanças a suas

262
Dentre esses movimentos sociais, citam-se seus atores (e algumas de suas terras tradicionalmente ocupadas):
povos indígenas (terras indígenas), quilombolas (terras de quilombo), seringueiros (seringais, em geral
protegidos por RESEX), castanheiros (castanhais, em geral protegidos por RESEX), quebradeiras de coco-
babaçu (babaçuais, em geral protegidos por RESEX e pelas leis do babaçu livre), pescadores (lagos, rios, mar e
corpos d‘ água em geral, comumente protegidos por RESEX), ribeirinhos(rios, em geral protegidos por RESEX),
e agro-extrativistas em geral (tendo suas terras geralmente protegidas por RESEX), atingidos por barragens,
atingidos pela base de Alcântara, fundos de pasto, faxinais.
266

reivindicações e lutas fundiárias e descobrir possíveis eixos de articulação social e


política no contexto jurídico maior do Estado-nação brasileiro (LITTLE, 2002, p. 3).

Em outras palavras, o autor identifica as especificidades de povos e comunidades


tradicionais por meio do acesso e uso da terra, evidenciando os diversos processos de
territorialização que são estabelecidos por agente social identificado como povos e
comunidades tradicionais. Nesse sentido, ―A renovação da teoria de territorialidade na
antropologia tem como ponto de partida uma abordagem que considera a conduta territorial
como parte integral de todos os grupos humanos‖, definindo territorialidade como ―o esforço
coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela
específica de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu ―território‖ ‖ (LITTLE,
2002, p. 3). Dessa forma, o processo de formação de um território, ou o processo de
territorialização, ―é um produto histórico de processos sociais e políticos‖ (LITTLE, 2002, p.
3).
Little também observa a importância de abordagens etnográficas para se entender os
diversos tipos de territorialidades empregados pelos povos e comunidades tradicionais, visto o
amplo leque de tipos de territórios, cada um com sua particularidade sociocultural.
Vale ressaltar que os dois últimos autores citados (ALMEIDA, 2008b; LITTLE, 2002)
concordam que há uma diversidade de usos da terra por parte das comunidades e povos
tradicionais, gerando a carência de mais estudos sobre essa ―diversidade fundiária‖ (LITTLE,
2002), marcada pelas áreas de uso comum. Estes autores também concordam que essa
diversidade fundiária vem sendo gradativamente conhecida pelo poder público, em
decorrência de lutas e conflitos sociais promovidos pelos agentes sociais que ocupam essas
terras.

4.2 Conceitos jurídico-legais para “populações


tradicionais” e “povos e comunidades tradicionais”

Neste tópico são abordados os instrumentos jurídico-legais que tratam dos conceitos
de PPCT. De início, deve-se, observar a diferenciação jurídica entre as identidades de
populações tradicionais, indígenas e quilombolas, pois que a primeira, em sua perspectiva
acadêmica, pode englobar as duas últimas. Assim, a identidade indígena e das populações
tradicionais são juridicamente distintas, pois são regulamentadas por dois instrumentos
jurídicos distintos: a noção de identidade indígena e a garantia de seus direitos advêm da
267

Carta Magna de 1988, assim como do Estatuto do Índio263; por outro lado, a identidade de
população tradicional toma a proporção que apresenta atualmente por meio da Lei 9.985, de
18 de julho de 2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC),
combinados com alguns dispositivos da CF, elencados mais abaixo. Os quilombolas também
constam como populações tradicionais, porém com uma identidade jurídica diferenciada,
advinda do Art. 68 do ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), ademais do
Decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003264.
Juliana Santilli (2004; 2005), com foco nos aspectos jurídicos, trata da questão da
diferenciação entre populações tradicionais. A autora reconhece que os povos indígenas, os
quilombolas e as populações tradicionais assemelham-se, à medida que possuem modos de
vida que são ecologicamente sustentáveis, assim como no uso comum dos recursos naturais e
conhecimentos acerca destes, ou seja, todos têm uma ―cultura tradicional‖. A autora afirma,
também, que estas três identidades diferenciam-se no âmbito jurídico, principalmente em
relação ao reconhecimento constitucional de direitos territoriais especiais. Dessa forma,
Santilli (2005) reconhece os indígenas e os quilombolas como populações tradicionais,
contudo faz a ressalva de suas diferenças perante as leis que regem o ordenamento jurídico
brasileiro. A autora deixa claro que o mais importante a se ter em foco é que indígenas,
quilombolas e populações tradicionais, apesar de apresentarem direitos diversos e diferentes,
podem ser entendidos como populações tradicionais na medida em que apresentam uma
cultura diferenciada da sociedade do entorno, em regra apresentando um caráter sustentável,
decorrente do vasto conhecimento acerca dos recursos naturais e ciclos da natureza.
Assim, a Carta Magna de 1988 garante o direito coletivo de
povos indígenas e quilombolas de forma discriminada, ou
seja, estes povos têm uma identidade jurídica diferenciada de
qualquer outro cidadão. Todavia, nesse cenário a
Constituição Federal silencia ao tratar de outras minorias de
maneira específica, generalizando a proteção dos direitos
culturais da sociedade brasileira por meio do seu Artigo 215,
que assim se pronuncia:
Art. 215 - O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos
culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e
incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

Analisando de maneira mais acurada o trecho constitucional


acima citado, pode-se entender, como assinalado por Benatti

263
Lei 6.001, de 19 de dezembro de 1973.
264
Para mais detalhes sobre a diferenciação jurídica entre populações tradicionais, quilombolas e indígenas,
consultar o livro ―Sociambientalismo e novos direitos‖ de Juliana Santilli (2005), assim como artigo da mesma
autora no livro ―O desafio das sobreposições‖ (SANTILLI, 2004).
268

(1999; 2001; 2003), que a CF tutelou, mesmo que de maneira


não discriminada, os direitos culturais das populações
tradicionais brasileiras, visto que, ao afirmar que ―o Estado
garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais‖,
entende-se no bojo desse ―todos‖ as populações ditas
tradicionais ou ―com cultura tradicional‖. Nesse sentido, o
Estado tem o dever constitucional de dar condições físicas e
materiais para que as populações tradicionais possam dar
continuidade ao seu modo de vida e práticas culturais.
Corroborando esta assertiva, cita-se abaixo o parágrafo 1o do
artigo em voga:
§ 1o - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares,
indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do
processo civilizatório nacional.

Com isso, clarifica-se a garantia aos direitos culturais


expressa no artigo constitucional em questão ao pensar que,
como exposto no decorrer deste trabalho, as populações
tradicionais participaram do processo civilizatório nacional,
tendo protegidas as suas manifestações culturais. Mais
adiante, a Carta Magna ainda salienta:
o
§ 3 - A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando
ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que
conduzem à:
...
V valorização da diversidade étnica e regional.

Com o trecho acima exposto fica evidente a recepção


constitucional pertinente aos direitos culturais da sociedade
brasileira, incluindo nesse leque as populações tradicionais e
todas as especificidades culturais dos agentes sociais que
preenchem esse termo, visto que existe uma obrigação
constitucional não só na proteção dos direitos culturais, mas
também na proteção das populações tradicionais e seus
direitos culturais.
A CF ainda explicita alguns dos patrimônios culturais
brasileiros:
Art. 216 - Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
(grifos meus)

E mais à frente, observa:


269

§ 1o - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e


protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros,
vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de
acautelamento e preservação.

Nesse sentido, a carta cidadã ainda observa o direito ao meio


ambiente, segundo o seu artigo 225:
Art. 225 - Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

Este artigo, nos incisos do seu parágrafo primeiro, assim se


pronuncia:
§ 1o - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o
manejo ecológico das espécies e ecossistemas;
...
III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus
componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a
supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização
que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;

Em uma interpretação que conjugue os direitos culturais das populações

tradicionais, protegidos e garantidos pelos artigos 215, 216 e 216 A da CF, com os

direitos ambientais garantidos pelo Artigo 225, tem-se um sistema de proteção

socioambiental ao seu modo de vida, visto que, como demonstrado ao longo deste

trabalho, estas populações desenvolvem um modo de vida de intensa relação com o

meio ambiente e a biodiversidade que os cerca, relativizando esses conceitos e

incorporando-os à sua cosmologia. Com efeito, estando os conceitos de natureza e

cultura relativizados e interligados pelo modo de criar, fazer e viver das populações

tradicionais, o Artigo 225 permite que se proteja o meio ambiente e,

consequentemente, os direitos culturais dessas populações, assim como os artigos


270

215, 216 e 216 A protejam o modo de fazer, viver e ser dessas populações, logo

protege o meio ambiente que as cerca, visto que este foi culturalmente construído.

Nesse sentido, ―o Estado para poder preservar e restaurar os


processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico
das espécies e ecossistemas‖ (Inciso I, do § 1o do Art. 225),
terá que garantir, de maneira paralela e concomitante, os
direitos culturais das populações que tradicionalmente
ocupam o ecossistema em questão. O inverso também se faz
verdadeiro: para que se possa garantir os direitos culturais
dessas populações, os ecossistemas aos quais
tradicionalmente interagem devem ser preservados. Observa-
se, ainda, que o Estado, quando ―definir, em todas as
unidades da Federação, espaços territoriais e seus
componentes a serem especialmente protegidos‖, deverá
observar a garantia e o pleno exercício dos direitos culturais
das populações tradicionais, protegendo suas manifestações
culturais, assim como sua memória, identidade e os modos
de criar, fazer e viver.
Para expandir ainda mais a tutela constitucional sobre as populações

tradicionais, é “vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos

atributos que justifiquem” sua proteção dos ecossistemas constitucionalmente

protegidos. Em outras palavras, as populações tradicionais, nos casos em que

contribuíram para a formação e a conservação da biodiversidade local, têm o direito

à permanecerem em suas terras já que é vedada qualquer utilização que

comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção.

Assim, mesmo que de uma maneira indireta, as populações tradicionais, em

decorrência dos preceitos constitucionais de proteção ao meio ambiente e dos

direitos culturais de todos os brasileiros, têm na Constituição o seu modo de vida

garantido.

De maneira infraconstitucional as populações tradicionais ainda têm os seus direitos


culturais resguardados pelo decreto 5.051, de 19 de abril de 2004, que Promulga a Convenção
no 169 da OIT sobre povos indígenas e tribais. Esta convenção traz a garantia de
autoidentificação aos povos tribais e indígenas. Em outras palavras, ela prevê a possibilidade
271

que o critério da autoidentificação seja adotado para que uma cultura seja classificada como
tribal ou indígena.
Aplicada ao contexto das populações tradicionais, a convenção em voga não teria
efeitos se fosse interpretada de maneira literal, contudo em análises mais profundas dessa
convenção, convencionou-se entender que as populações tradicionais estão alocadas dentro do
conceito de povos tribais (ALMEIDA, 2008b).
Vale observar que essa interpretação é no mínimo redundante, visto que um dos
principais objetivos da convenção era o de garantir o direito à autoidentificação, perfazendo-
se contraditório entender que as populações tradicionais não poderiam identificar-se como
tribais, ao mesmo tempo em que se identificam como ribeirinhos, extrativistas, seringueiros
etc. Outra observação a ser tecida seria a dimensão pejorativa que o termo ―tribal‖ traz, sendo
esta questão bastante debatida e controversa no âmbito da relação entre os ―povos tribais‖ e o
Direito Internacional.
Nesse sentido, o conceito de população tradicional toma
maior amplitude no âmbito jurídico nacional por meio da lei
federal número 9.985/2000, que regulamenta o artigo 225,
parágrafo 1, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal de
1988, instituindo o Sistema Nacional de Unidades de
Conservação da Natureza (SNUC), assim como dá outras
providências.
Esta lei assegura, por meio do artigo 4o, inciso XIII a
proteção dos ―recursos naturais necessários à subsistência de
populações tradicionais, respeitando e valorizando o seu
conhecimento e sua cultura e promovendo-as social e
economicamente‖ (BRASIL, 2000). Por meio do artigo
supracitado deve-se evidenciar como a lei em questão
protege não somente os recursos naturais e seu patrimônio
genético, como também garante direitos a populações
tradicionais, incorporando em seus objetivos não somente a
proteção à biodiversidade, mas também à sociodiversidade
presente no Brasil, inovando na medida em que pensa o ser
humano em integração com a natureza ao utilizar paradigmas
socioambientais, assim como reconhece as interfaces
existentes entre diversidade biológica e cultural (SANTILLI,
2005).
O SNUC, em sua forma sancionada, não chega a conceituar
populações tradicionais, contudo cita-as, formulando um
conceito sobre as mesmas, ainda que de forma indireta
(SANTILLI, 2005), quando define Reservas Extrativistas
(RESEX) e Reservas de Desenvolvimento Sustentável
(RDS).
As RESEX definem indiretamente ―populações extrativistas
tradicionais‖ como populações ―cuja subsistência baseia-se
no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de
subsistência, e na criação de animais de pequeno porte‖ (Lei
272

no 9.985/2000, Artigo 18), enquanto que a RDS define


―populações tradicionais‖ como populações:
cuja existência baseia-se em sistemas sustentáveis de exploração dos
recursos naturais, desenvolvidos ao longo de gerações e adaptados às
condições ecológicas locais e que desempenham um papel fundamental na
proteção da natureza e na manutenção da diversidade biológica (BRASIL,
2000).

No âmbito dessas formulações, mais uma vez é possível


evidenciar o caráter inovador do SNUC, visto que novamente
reconhece que a conservação da biodiversidade deve ser feita
dentro de um contexto que privilegia a interação do ser
humano com a natureza.
Como dito anteriormente, este dispositivo jurídico, quando
sancionado, não definia população tradicional, contudo em
seu formato primário, no inciso XV, Artigo 2o, conceituava o
termo população tradicional como:
Grupos humanos culturalmente diferenciados, vivendo há, no mínimo, três
gerações em um determinado ecossistema, historicamente reproduzindo o
seu modo de vida, em estreita dependência do meio natural para a sua
subsistência e utilizando os recursos naturais de forma sustentável
(BRASIL, 2000).

Esta definição foi vetada pelo Poder Executivo, por


considerá-lo demais abrangente (SANTILLI, 2004), contudo,
é importante ressaltar que este mesmo conceito também foi
rejeitado pelas próprias populações tradicionais (SANTILLI,
2004). Foi considerado ineficaz na medida em que
condiciona a identidade de população tradicional ao tempo
(três gerações ou mais) que esta ocupa um ―determinado
ecossistema‖, excluindo muitos grupos que, apesar de
demonstrarem ―uma estreita dependência do meio natural...
utilizando os recursos naturais de forma sustentável‖, não se
encontram, no ecossistema em questão, durante o tempo
necessário definido na proposta em apreço. Como exemplo é
possível citar seringueiros e ribeirinhos que muitas vezes
deslocam-se para outros locais por motivos diversos265.
Santilli, ao analisar o conceito de ―populações tradicionais‖, as define a partir de ―[...]
sua ligação de relativa simbiose com a natureza, pelo conhecimento aprofundado da natureza
e de seus ciclos e pela noção de território ou espaço onde se reproduzem econômica e
socialmente‖ (SANTILLI, 2005, p. 130). Mais à frente a autora complementa a associação
que existe entre a atual definição de populações tradicionais com os paradigmas de
conservação socioambiental, lembrando do vasto número de culturas e suas respectivas
formas de apropriação e utilização dos recursos naturais.

265
Escasseamento dos recursos naturais, conflitos diversos, melhores condições de acesso aos recursos naturais
etc. podem levar grupos a um movimento de sazonalidade, ou de fluxo que pode comprometer seus direitos
diante das restrições temporais propostas nessa definição. Um exemplo a ser citado seria o caso de ribeirinhos
que trocam o local de sua morada de uma margem do rio para a outra margem, na medida em que a margem que
habitavam estava erodindo.
273

A autora em tela acrescenta que as populações tradicionais podem ser vistas ―como
parceiros na conservação ambiental, legitimamente interessados em participar da concepção e
gestão de políticas publicas sócio-ambientais‖, considerando-as como ―populações que
tradicionalmente vivem em um determinado território e desenvolvem técnicas e práticas
sustentáveis de manejo de seus recursos naturais‖ sendo estas ―mais capacitadas e
interessadas em promover‖ a conservação de seus territórios, e não podendo ser excluídas do
manejo dos mesmos (SANTILLI, 2005, p. 130).
Contudo, uma das primeiras definições de população
tradicional dentro do âmbito jurídico advém da portaria
número 22 do ano de 1992 do Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), a
qual entende população tradicional como: ―comunidades que
tradicional e culturalmente têm sua subsistência baseada no
extrativismo de bens naturais renováveis‖ (IBAMA, 1992).
Esta portaria criava o Centro Nacional do Desenvolvimento
Sustentado das Populações Tradicionais. Nesse período a
maioria das populações tradicionais era ―habitada‖ por
seringueiros. Deve ser ressaltado que, apesar de conceituar
população tradicional, portarias não são consideradas como
instrumento jurídico, mas sim administrativo, logo não se
pode dizer que esta é uma definição legal, ou seja, advinda
de lei, entretanto fica claro, por meio desta definição
administrativa, o limite de atuação do referido centro.
Gradativamente o termo ―populações tradicionais‖ vem
sendo utilizado de maneira concomitante ao termo ―povos e
comunidades tradicionais‖. Este último conceito tem sua
definição mais recente dentro da legislação brasileira
formulado pela lei 13.123 de 20 de maio de 2015, conhecida
como lei de acesso ao patrimônio genético e conhecimento
tradicional ou lei da biodiversidade266. A referida lei apenas
repetiu o conceito já formulado pelo Decreto no 6040, de 07
de fevereiro de 2007, que institui a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades
Tradicionais, conceituando-os como:
grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem
formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos
naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e
econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos
pela tradição (BRASIL, 2007).

266
Regulamenta o inciso II do § 1o e o § 4o do art. 225 da Constituição Federal, o Artigo 1, a alínea j do Artigo
8, a alínea c do Artigo 10, o Artigo 15 e os §§ 3o e 4o do Artigo 16 da Convenção sobre Diversidade Biológica,
promulgada pelo Decreto no 2.519, de 16 de março de 1998; dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, sobre
a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado e sobre a repartição de benefícios para conservação
e uso sustentável da biodiversidade; revoga a Medida Provisória no 2.186-16, de 23 de agosto de 2001; e dá
outras providências. Esta lei foi regulamentada pelo Decreto 8.772 de 11 de maio de 2016.
274

Este conceito, apesar de recente e, consequentemente, elaborado com mais tempo e


experiência, caracteriza-se por seu aspecto abrangente e flexível. Esses aspectos foram
analisados no decorrer deste capítulo, ficando o próximo tópico para encerrar essa análise.

4.3 Populações/povos e comunidades tradicionais: existe de fato um conceito?

Este capítulo e seu predecessor demonstraram as transformações nos conceitos de


―populações tradicionais‖ e ―povos e comunidades tradicionais‖, expondo algumas das
tensões entre as construções acadêmicas e jurídico-legais sobre os mesmos.
Como visto, o conceito de povos e comunidades tradicionais teve sua origem dentro
do contexto da discussão da presença humana em áreas protegidas por meio do termo
―populações tradicionais‖. Inicialmente surgiu com as indagações de Diegues a favor das
populações que tradicionalmente habitavam os territórios de unidades de conservação. Com o
passar do tempo o termo ―populações tradicionais‖ começa a tomar um corpo acadêmico e de
identidade política, especialmente na década de 1990 que é marcada pelo amadurecimento do
movimento socioambiental que, em parceria com as ―populações tradicionais‖, promoveram
lutas pelo direito desses povos e pela conservação ambiental. Viana (2008), Diegues (1993,
1994) e Almeida (1993; 2004) exemplificam este fato não só na condição de acadêmicos e
pesquisadores, mas também na condição de atores que intervieram nesse meio, fazendo com
que suas próprias trajetórias sejam um exemplo deste fato.
No ano de 2000, como fruto desse processo de lutas surge o Sistema de Unidades de
Conservação, por meio da Lei 9985/2000, que conceitua de maneira indireta o termo em
questão, ademais de especificar alguns dos direitos dessas populações, especialmente direitos
territoriais. A referida lei deixa em aberto uma reivindicação seminal dessas populações: o
direito à autoidentificação.
Na década de 2000, o termo ―populações tradicionais‖ começa a ser substituído pelo
termo ―povos e comunidades tradicionais‖, especialmente pelo antropólogo Alfredo Wagner
de Almeida (2006; 2008a; 2008b) e em virtude do decreto 5051/2004, que promulga a
Convenção no 169 da OIT sobre povos indígenas e tribais. Esta convenção garante o direito à
autoidentificação para os povos indígenas e tribais, permitindo a esses grupos sociais que se
autoidentifiquem como povos e comunidades tradicionais. Em 2007, legaliza-se a
conceituação do termo ―povos e comunidades tradicionais‖ por meio do Decreto no 6040,
ademais de garantir expressamente o direito à autoidentificação.
275

Quanto ao debate acerca do conceito de populações, povos e comunidades tradicionais


construído na academia, esta pesquisa apontou três eixos de pensamento, os quais enfatizam
certas características desses grupos. O primeiro eixo dá ênfase à questão da relação com a
biodiversidade, pensando-a como culturalmente construída, inaugurado por Diegues (1993),
posteriormente seguida por Viana (2008), entre outros. O segundo eixo enfatiza a questão
identitária e o viés político na luta por direitos do conceito de população tradicional, sendo
inaugurado por Vianna (2008), Cunha (1999) e Cunha e Almeida (2001), e é atualmente
desenvolvido por Almeida (2008a). O terceiro eixo dá ênfase à questão fundiária e à relação
entre essas populações e as terras que ocupam e o acesso aos recursos naturais como base para
o exercício pleno de seus direitos (especialmente culturais), sendo inaugurada e desenvolvida
por Almeida (2008b)267.
Vale observar que este termo foi por ―nós‖, sociedade ―(pós)moderna, capitalista,
urbana, (neo)liberal, ocidental‖ (aspas do autor), inventada para definir outros grupos sociais
(CUNHA; ALMEIDA, 2001). Com efeito, este conceito foi apropriado por atores sociais,
emprestando-lhe novos contornos e demandas. Como exemplo, citam-se os seringueiros que
se apropriaram do referido termo e construíram na década de 1990 um movimento social que,
na luta por direitos territoriais, estabeleceu uma política ambiental e de regularização
fundiária, resultando na ―unidade de conservação de uso direto denominada de reserva
extrativista‖ (ALLEGRETTI, 2002; ALMEIDA, 2004). Assim, mesmo que tenha iniciado no
bojo de discussões ambientais, a história desse conceito configura-se na luta pelo direito a ser
diferente, sendo atualmente marcado pelo comprometimento de manter práticas ecológicas em
troca de compensações (VIANA, 2008; ALMEIDA, 2008a; ALMEIDA, 2007).
Em outras palavras, o conceito de ―populações tradicionais‖ e ―povos e comunidades
tradicionais‖ foi resultado de um longo processo de tensões e lutas sociais, travadas por atores
sociais que historicamente sofreram processos de exclusão e pauperização. Estes atores
sociais caracterizam-se por serem considerados como ―outros‖268, visto que em diversas
bibliografias consultadas referiam-se às comunidades tradicionais como ―sociedades rústicas‖,
―sociedades simples‖, ―camponeses‖, ―comunidades rurais‖, muitas vezes entrando em
dicotomias269 que resultavam em uma simplificação do debate.

267
Gostaria de enfatizar que esses autores abordam de maneira plena o tema das populações tradicionais,
contudo colocam em destaque os eixos de pensamento aqui tratados.
268
No sentido pensado pela Antropologia, ou seja, grupos sociais exóticos, selvagens, rústicos, entre outras
qualificações que se opõe ―modernidade‖.
269
Algumas dessas dicotomias: moderno/tradicional; rural/urbano; sociedades simples ou rústicas/complexas,
cultura/natureza.
276

Observa-se, ainda, que as discussões sobre povos e comunidades tradicionais, tanto da


academia como da sociedade civil, lançam mão de uma perspectiva que visualiza esses grupos
como futuramente aculturados, sendo ―assimilados‖ pela sociedade nacional, deixando, então,
de serem ―tradicionais‖. Em outras palavras, o argumento seria o de que esses povos e
comunidades, quando entram em contato com o mercado, criam a tendência de perder o seu
caráter ―tradicional‖, consequentemente, suas ―práticas sociais ecológicas‖, nesse sentido,
deixariam de ser comunidades e povos tradicionais. Contudo, Almeida (2006; 2008b) vem
demonstrando um processo inverso, no qual em função do contato com a sociedade maior,
cria-se um processo de conflito e antagonismos no qual essas comunidades assumem uma
identidade mais vigorosa, lançando mão de seus direitos específicos.
Em resumo, é possível pensar que o termo ―populações tradicionais‖ surge como um
conceito acadêmico, sendo incorporado no discurso das próprias ―populações tradicionais‖ na
luta por seus direitos, auxiliados pelo movimento socioambiental, resultando na Lei
9985/2000. Dessa forma, o termo passa a ser uma identidade jurídica/legal que garante
direitos territoriais. Na década de 2000 este termo sofre reapropriações, surgindo
alternativamente o termo ―povos e comunidades tradicionais‖, por meio do Decreto
6040/2007, concedendo uma identidade política aos seus atores, por meio do direito ao
autorreconhecimento.
Com efeito, aqui surge a principal diferença entre os termos. ―populações tradicionais‖
e ―povos e comunidades tradicionais‖. Populações tradicionais, ademais de ser um conceito
acadêmico, configura-se como uma identidade jurídico/legal que, apesar de reconhecer
diversos direitos, especialmente territoriais, não permite oficialmente o autorreconhecimento,
não se configurando como uma identidade política. O termo povos e comunidades
tradicionais, por outro lado, ademais de ser um conceito acadêmico e uma identidade
jurídico/legal que garante diversos direitos, configura-se como uma identidade política que
permite o exercício ao direito de autorreconhecimento. Observa-se, ainda, que este último
termo surge em um diálogo muito mais intenso com o movimento social desses grupos, como
exposto por Almeida (2008b), ademais de ser definido diretamente pelo Decreto 6040/2007,
diferentemente da Lei 9985/2000, que conceitua ―populações tradicionais‖ de maneira
indireta.
Apesar de o termo ―povos e comunidades tradicionais‖ ser juridicamente mais amplo
que o termo ―populações tradicionais‖, o primeiro ainda não alcança a plenitude das
populações, povos e comunidades tradicionais, ficando restrito ao campo dos movimentos
sociais que se identificam como povos e comunidades tradicionais. Dessa forma, o termo
277

populações tradicionais pode ser utilizado em sua dimensão acadêmica para abarcar os grupos
sociais localizados à margem do conceito ―povos e comunidades tradicionais‖ para serem
incluídos gradativamente. Ademais, estes termos podem ser utilizados como sinônimos, na
medida em que apresentam pouquíssimas diferenças e, principalmente, os agentes sociais que
demandam este conceito encaixam-se em ambos.
A seguir dois quadros sinópticos são apresentados de forma a demonstrar as alterações
no uso das terminologias aqui apresentadas em uma relação com o cenário acadêmico e
jurídico/legal270. Vale observar que o primeiro quadro foi parcialmente apresentado no
capítulo anterior, sendo aqui complementado com a Portaria 22 do IBAMA, de 1992. Sua
repetição se faz necessária não só para ser complementado, mas especialmente para uma
melhor comparação com o quadro que traça a utilização cronológica do conceito de ―povos e
comunidades tradicionais‖.

Quadro 08: Utilização cronológica do conceito “populações tradicionais”,


com instrumentos jurídicos271
Ano Populações tradicionais
1992 Portaria 22 de 1992 do IBAMA
1993 Diegues (1993; 1994; 1996; 2001; 2008)
1996 Viana (2008)
Arruda (1999)
Cunha (1999)
1999
Adams (1999)
Benatti (1999)
2000 Lei 9985/2000
2000 Diegues et al (2000; 2001; 2002)
2001 Benatti (2001; 2003)
2001 Cunha e Almeida (2001)
2004 Santilli (2004; 2005)
Almeida (2007)
2007
Esterci (2007)
Fonte: Pesquisa bibliográfica para a tese

Quadro 09: Utilização cronológica do conceito “povos e comunidades tradicionais”


Ano Povos e comunidades tradicionais
2002 Little (2002)
270
Coloco em negrito os dispositivos legais para destacá-los das utilizações acadêmicas.
271
O quadro está composto por duas colunas e 15 linhas. Na primeira coluna aparece o ano da publicação
original e na segunda coluna o ano da obra consultada. Exemplo: o livro de Viana (2008) é publicado em 2008,
entretanto resulta de sua dissertação de mestrado, apresentada em 1996. As publicações de Diegues que
aparecem na segunda linha, correspondentes ao ano de 1993, são todas originárias do mesmo estudo, tendo como
primeira publicação, segundo o levantamento realizado por esta pesquisa, o artigo de Diegues (1993).
278

2004 Decreto 5051/2004


Almeida (2006)
2006
Shiraishi Neto (2006; 2007)
2007 Decreto 6040/2007
2008 Almeida (2008a; 2008b)
2013 Lei 13.123/2013
Fonte: Pesquisa bibliográfica para a tese

A única diferença que existe entre esses termos refere-se ao âmbito jurídico-formal.
Explica-se. ―Populações tradicionais‖ têm sua origem legal na Lei 9.985/2000, que, por sua
vez, surgiu da luta pelo direito à diferença e territorialidade de grupos sociais que estavam
sendo expropriados de suas terras em virtude da política ambiental decorrente da implantação
de áreas especialmente protegidas. ―povos e comunidades tradicionais‖ surgem no âmbito da
convenção 169, que reconhecia ―as aspirações desses povos a assumir o controle de suas
próprias instituições e formas de vida e seu desenvolvimento econômico, e manter e fortalecer
suas identidades, línguas e religiões, dentro do âmbito dos Estados onde moram‖
(CONVENÇÃO 169, Preâmbulo, sem página).
Assim, apesar da diferença jurídico-legal de formato entre os conceitos, entende-se
que, em termos práticos, estes se configuram como sinônimos, na medida em que estão
ligados à luta desses grupos em serem diferentes daquilo que a modernidade projeta para eles.
Dessa forma, este trabalho utiliza estes conceitos como sinônimos, entendendo o termo
―populações/povos e comunidades tradicionais‖ como grupos humanos que apresentam as
seguintes características272: a) A sua forma de reprodução socioeconômica deve ser marcada
por uma lógica consuntiva, portanto, de produção e de consumo onde o excedente é
comercializado com o mercado, mas não se constitui em fator determinante das escolhas do
grupo (LIMA; POZZOBON, 2000; 2005; ARRUDA, 1999); b) deve apresentar um modus
vivendi de integração com a natureza (DIEGUES, 1993; 1994; SANTILLI, 2004; 2005;
VIANA, 2008); c) suas atividades de reprodução social e econômica são marcadas por um
baixo impacto ambiental (ARRUDA, 1999; LIMA; POZZOBON, 2000; 2005; DIEGUES,
1993; 1994); d) baixa integração com o mercado (LIMA; POZZOBON, 2005; ARRUDA,
1999); e) ausência de documentos que legitimem a sua propriedade (ARRUDA, 1999;
BENATTI, 2003; LITTLE 2002; ALMEIDA, 2008a, 2008b) e consequente fragilidade social
no que concerne à garantia de suas terras (BENATTI, 2003; LITTLE 2002; TRECCANI,
2006; SHIRAISHI NETO, 2006; 2007; ALMEIDA, 2008a; 2008b); f) direta dependência dos
272
Essas características já foram apresentadas no capítulo anterior, sendo agora repetidas para fins de acréscimo
dos autores que utilizam o conceito de ―povos e comunidades tradicionais‖.
279

recursos naturais locais, tanto no sentido de conseguirem alguma renda que lhes dê um
mínimo de acesso a objetos e gêneros alimentícios diversos, como no sentido de sua
subsistência através do consumo direto dos mesmos (LIMA; POZZOBON, 2000, 2005;
DIEGUES, 1993; 1994; ARRUDA, 1999); g) práticas sociais específicas e variadas de
relação com a natureza (DIEGUES, 1993; 1994; 2001; 2008; CUNHA, ALMEIDA, 2001;
SANTILLI, 2004; 2005; SHIRAISHI NETO, 2006; 2007) e seu território (LITTLE 2002;
BENATTI, 2003; TRECCANI, 2006; SHIRAISHI NETO, 2006; 2007; ALMEIDA, 2008a;
2008b); h) luta por direitos territoriais e identitários, consequentemente, luta pelo direito às
terras tradicionalmente por eles ocupadas e os respectivos modos de acesso e uso das mesmas
e seus recursos naturais (TRECCANI, 2006; SHIRAISHI NETO, 2006; 2007; ALMEIDA,
2007a; DIEGUES, 2008; ALMEIDA, 2008a; 2008b); i) devem autodeterminar-se como
populações tradicionais ou minimamente como culturalmente diferenciados do padrão
societário nacional (DIEGUES, 1994; CUNHA, ALMEIDA, 2001; SHIRAISHI NETO, 2006,
2007; ALMEIDA, 2007a; VIANNA, 2008; ALMEIDA, 2008a; 2008b).
Partindo dessas características, PPCT seriam aqueles grupos sociais que apresentam
um modo de vida específico, marcado pela intensa simbiose e relativa harmonia com o meio
ambiente em que vivem273, desenvolvendo técnicas de baixo impacto ambiental, fraca
articulação com o mercado, intenso conhecimento da biodiversidade que as cerca e modo de
produção baseado na mão-de-obra familiar. Vale ainda ressaltar que este é um termo
socialmente construído, tal como descrito acima, e atualmente caracteriza-se como uma
categoria política-identitária, passível de transformações no decorrer do tempo.
É imperioso salientar que nem sempre essas populações se denominam tradicionais,
mas são denominadas por outros atores sociais como tais. Nesse sentido, os grupos sociais
ditos ―tradicionais‖ não precisam apresentar todas estas características e nem mesmo se
autoidentificarem como tais, mas minimamente visualizarem-se com um modo de vida
diferenciado da sociedade do entorno para acessarem os direitos inerentes a esta categoria,
marcados por práticas sociais específicas e variadas de relação com a natureza. Dessa forma,
estes grupos exercem o seu direito internacionalmente reconhecido de
autorreconhecimento274, possibilitando o acesso a outros direitos, direitos estes específicos

273
Deve-se evitar cair na armadilha do ―bom selvagem‖, como salientado por Adams (2000), quando não se
analisa o caso concreto de maneira crítica, pautado em critérios científicos-ecológicos. Frisa-se novamente que
esses grupos sociais necessitam somente ser culturalmente diferenciados e reconhecerem-se como tais, dessa
forma, como salientado por Viveiros-de-Castro (2006, p. 5), a respeito da autoidentificação indígena, esses
grupos sociais devem ―se garantir‖ como tais. O referido texto está disponível em:
http://pib.socioambiental.org/files/file/PIB_institucional/No_Brasil_todo_mundo_%C3%A9_%C3%ADndio.pdf.
274
Convenção 169 da OIT.
280

destas populações, que foram amplamente declarados por meio do ordenamento jurídico
pátrio (Lei 9985, Art. 225 da CF, Decreto no 6040, e diversos outros). Como prova de tal fato,
citam-se as incorporações que o ordenamento jurídico pátrio realizou na edição dos
instrumentos jurídicos que tratam da temática afeta a esses grupos sociais, ilustrada
cronologicamente nos quadros 08 e 09.
Com efeito, repisa-se o que foi dito na conclusão do capítulo passado: o mais
importante a se destacar refere-se ao fato de que as populações com ―cultura tradicional‖
não precisam apresentar todas estas características e nem mesmo se autoidentificarem como
tais, mas minimamente visualizarem-se com um modo de vida diferenciado da sociedade
do entorno para acessarem os direitos inerentes a esse conceito.
Assim, o adjetivo ―tradicional‖ trouxe para os conceitos aqui tratados um entrave: os
grupos humanos nele encaixados recebiam direitos peculiares, advindos de suas identidades
culturais específicas, diferenciados dos modernos. Se ―deixarem‖ de ser tradicionais, perdem
esses direitos. Como, então classificar os grupos que se encaixam como sujeitos desses
―direitos culturais tradicionais‖? Na medida em que se têm acesso a esses direitos, como
escola, posto de saúde, emprego, renda, não se começa a sair do que se entende por
tradicional? Como separar o tradicional do moderno?
Diante do entrave que a dicotomia tradicional e moderno criou, foi necessário buscar
alternativas teóricas e entender a origem desta. A mesma, como explicitado pela discussão
sobre o conceito de PPCT´s, tem sua origem na dicotomia entre natureza e cultura, na medida
em que os tradicionais são os portadores da cultura ecológica, com uma relação de intimidade
com a natureza, enquanto que os modernos são aqueles que detêm a cultura civilizada, da
razão, longe dos instintos e da natureza. Com efeito, essa dicotomia entre natureza e cultura
aponta para o coração da disciplina antropológica e constitui-se no eixo de reflexão do
próximo capítulo, que constrói algumas críticas decorrentes das leituras de Latour, Viveiros
de Castro e da disciplina científica da Economia Ecológica. Estas mesmas reflexões são
utilizadas nos capítulos etnográficos apresentados ao final desta tese, permitindo, assim,
consolidar a crítica feita à modernidade, seu conhecimento científico e à teoria Antropológica
dominante que vem, etnocentricamente, explicando outros mundos através de seus
pressupostos epistemológicos e ontológicos de existência. Nas palavras de Viveiros de Castro.

A ideia (sic) antropológica de cultura coloca o antropólogo em posição de igualdade


com o nativo, ao implicar que todo conhecimento antropológico de outra cultura é
culturalmente mediado. Tal igualdade é, porém, em primeira instância,
simplesmente empírica ou de fato: ela diz respeito à condição cultural comum (no
sentido de genérica) do antropólogo e do nativo. A relação diferencial do
281

antropólogo e o nativo com suas culturas respectivas, e, portanto com suas culturas
recíprocas, é de tal ordem que a igualdade de fato não implica uma igualdade de
direito — uma igualdade no plano do conhecimento. O antropólogo tem usualmente
uma vantagem epistemológica sobre o nativo. O discurso do primeiro não se acha
situado no mesmo plano que o discurso do segundo: o sentido que o antropólogo
estabelece depende do sentido nativo, mas é ele quem detém o sentido desse sentido
— ele quem explica e interpreta, traduz e introduz, textualiza e contextualiza,
justifica e significa esse sentido. A matriz relacional do discurso antropológico é
hilemórfica: o sentido do antropólogo é forma; o do nativo, matéria. O discurso do
nativo não detém o sentido de seu próprio sentido. De fato, como diria Geertz,
somos todos nativos; mas de direito, uns sempre são mais nativos que outros.
(VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 114-115)

Segue a problematização da dicotomia entre natureza e cultura, moderno e tradicional,


objetividade e subjetividade (dada a escolha epistemológica dos modernos em previamente
separar natureza e cultura na análise do outro).
282

CAPÍTULO V - PRELÚDIO PÓS ESTRUTURAL: ONTOLOGIZANDO AS


CULTURAS, MULTIPLICANDO AS NATUREZAS, DESPOLITIZANDO A
EPISTEME

Pode-se dizer, sintetizando a trajetória antropológica como Ciência, que os


evolucionistas, como filhos de seu tempo, deram à antropologia as mesmas características das
demais ciências de sua época: traziam leis gerais e absolutas, demonstradas por meio de
métodos de teste e experimentação, tendo a cultura como seu objeto específico de análise,
sendo que os parâmetros para tal análise eram estabelecidos pela cultura do próprio
observador ou, em outras palavras, o observador não se observava275.
Esse projeto de busca por leis gerais se mantém até meados do século XX, quando
Geertz rompe com a postura de generalizações a partir de comparação entre etnografias,
fazendo com que a unidade da teoria antropológica pós-Geertz sofra um profundo abalo. O
modelo de grandes correntes teóricas ou escolas de pensamento fica fragilizado, permitindo o
surgimento de autores individuais como possíveis ―intérpretes‖ do ofício do antropólogo
substituindo a hegemonia do modelo explicativo até então vigente. Nesse sentido, autores
como Pierre Bourdieu (1989, 1983) e Marshall Sahlins (1979) assumem importante papel
como antropólogos em seus países na teoria antropológica pós interpretativista, apresentando
interessantes posturas de análise do contato dos modernos e as ―culturas tradicionais‖276.
Tais autores deixaram sua marca através de diversas obras, assim como outros autores
trouxeram novos ares e novas teorias explicativas para a natureza e cultura humana no
decorrer da segunda metade do século XX, se estendendo até o tempo presente. Ocorre que,
após essa ruptura epistemológica, a única unanimidade entre antropólogos era que não havia
mais unanimidade em grandes teorias explicativas. Estas perderam seu poder de generalização
com o relativismo de Geertz (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1988, especialmente seu capítulo
4).
Diante desse embaralhamento277 conceitual e de teorias explicativas formadas após a
década de 1950, as últimas três décadas vêm trazendo certo alinhamento de algumas teorias
explicativas de autores importantes da Antropologia contemporânea. Ainda que de uma

275
Essa era função dos sociólogos, os quais deveriam observar a Sociedade, entendida como o grupo de pessoas
que vivia sob a égide da modernidade. Colocando em outra perspectiva, a Antropologia era a ciência das
sociedades primitivas e a Sociologia a ciência da Sociedade moderna, ou, a Antropologia como subdivisão da
Sociologia, responsável por estudar o social, mas o social que era praticado nas sociedades tradicionais, não
modernas, estando a sociologia imbuída da função de estudar o social das sociedades modernas.
276
Sobre esse momento de passagem dos anos 1960 aos anos 1980, consultar excelente artigo de Ortner (2011).
277
Ainda que coloquial, faço uso da ideia de embaralhamento, importada de Viveiros de Castro (2002b, 2015).
283

maneira não unânime, pode-se nomear esse alinhamento como um movimento chamado de
―pós-estrutural‖ (VIVEIROS DE CASTRO, 2015)278.
Novamente a unanimidade não é atingida, mas pode-se, ainda que com algum esforço
e violência, caracterizar a Antropologia pós-estrutural como aquela que politiza a
epistemologia de maneira explícita e consciente, colhendo os frutos dessa ―politização
despolitizada‖. Utilizo este último termo, aparentemente tão contraditório, para tornar
explícita a politização que antes existia na epistemologia dos modernos por meio da crença na
existência do binômio objetividade/subjetividade e natureza/cultura. Viveiros de Castro279
bem explicita essa politização ao declarar o principal objetivo de seu último livro:
A questão axial d´O Anti-Narciso é epistemológica, ou seja, política. Se estamos
todos mais ou menos de acordo para dizer que a antropologia, embora o
colonialismo constitua um de seus a priori históricos, está hoje encerrando seu ciclo
cármico, é preciso então aceitar que chegou a hora de radicalizar o processo de
reconstituição da disciplina, levando-o a seu termo. A antropologia está pronta para
assumir integralmente sua verdadeira missão, a de ser a teoria-prática da
descolonização permanente do pensamento. (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p.
20)280

Assim, posso dizer que esta tese, em certo sentido, é o desdobramento de um dos
argumentos da minha dissertação de mestrado. Nela construí um ensaio de sociologia jurídica
das PPCT´s na Amazônia, explicitando a inaplicabilidade da lei à realidade socioambiental
desta região, na medida em que os grupos sociais da Amazônia não urbana (e até alguns
grupos da Amazônia urbana, como indígenas, quilombolas e caboclos que vivem na cidade)
não fazem a distinção ente natureza e cultura, como a lei o faz, já que produzida sob o manto
da ―cultura moderna‖, em oposição às ―culturas tradicionais‖.
Nesta tese, aprofundo esse cenário dicotômico entre ―tradicionais e modernos‖ e
―natureza e cultura‖, chegando a uma terceira dicotomia, a saber, objetividade e subjetividade.
Esse aprofundamento se deu por meio da leitura de dois autores em especial, Eduardo
Viveiros de Castro e Bruno Latour, respectivamente, etnógrafo de povos ameríndios e um dos
formuladores do conhecido ―perspectivismo ameríndio‖; filósofo/sociólogo/antropólogo das
ciências, um dos principais pensadores da teoria ator-rede (doravante TAR) e autor do livro

278
Tim Ingold; Marilyn Strathern; Philippe Descola; Roy Wagner talvez sejam seus pioneiros não intencionais.
No Brasil temos autores como Eduardo Viveiros de Castro, Mauro Almeida e Manuela Carneiro da Cunha como
autores que se alinham e originalmente contribuem ao pensamento em tela.
279
Para evitar cansativas repetições, doravante também citado como VDC.
280
Mais adiante, o autor em tela complementa a explicação dos propósitos de seu livro: ―Assim, o propósito do
título original do livro que (d)escrevemos é o de sugerir que nossa disciplina já está redigindo os primeiros
capítulos de um livro-manifesto que seria, para ela, ....‖ p25.
284

amplamente conhecido ―Jamais fomos modernos‖ (LATOUR, 2013 a, publicação original em


francês foi no ano de 1991).
Com efeito, este capítulo dá continuidade à análise das dicotomias citadas no
parágrafo anterior por meio da junção explicativa dos posicionamentos de Viveiros de Castro,
Latour e do híbrido denominado de Economia Ecológica (ou Ecologia Econômica) com as
contribuições que esta empresta da Termodinâmica, tendo como objetivo elucidar as
ferramentas teóricas a serem utilizadas no decorrer da tese. Em outras palavras, este capítulo
pode ser classificado como uma compilação de trechos textuais que melhor representam e
evidenciam a paralisação vivida pelos modernos e sua mitologia científica, por meio de uma
coleção de trechos das obras de Viveiros de Castro, Latour e de proposições da Economia
Ecológica, de modo a apontar alguns dos motivos da crise epistemológica vivida e algumas
das suas possíveis saídas.
O capítulo está dividido em três partes. A primeira trata da explicação e da crítica
construída por Viveiros de Castro para as três dicotomias até aqui trabalhadas, a saber,
Tradicionais/Moderno, Natureza/Cultura, Objetividade/Subjetividade e as paralizações por
elas causadas. A segunda descreve as proposições de Latour sobre essas dicotomias. A
terceira e última parte apresenta as considerações que o híbrido chamado de Economia
Ecológica (ou Ecologia Econômica) vem produzindo nas duas últimas décadas281, à medida
em que este pode ser considerado um importante ator de composição de um novo mundo
comum.

5.1 Viveiros de Castro e o multinaturalismo ameríndio


Para desconstruir as dualidades até então expostas por esta tese, uso Viveiros de
Castro que propõe-se pensá-las a partir do pensamento ameríndio, na medida em que este
manifesta sua ―qualidade perspectiva‖ (Århem 1993) ou ―relatividade perspectiva‖
(Gray 1996): trata-se da concepção, comum a muitos povos do continente, segundo
a qual o mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e
não-humanas, que o apreendem segundo pontos de vista distintos. (VIVEIROS DE
CASTRO, 1996, p. 115, destaque meu)

Esta formulação cosmológica não consegue ser explicada pela usual conceituação da
Antropologia moderna, a saber, dicotomia entre Natureza e Cultura, onde há uma unidade
natural entre a espécie humana e uma multiplicidade cultural (multiculturalismo).

281
Ainda que sua gênese tenha se dado em meados de 1960, com a obra de Georgescu-Roegen (2012), ―O
decrescimento: entropia, ecologia, economia.‖, estas abordagens somente foram retomadas de modo a tomar
algum espaço de concorrência com a doutrina econômica liberal ou marxista dominantes, na década de 1990
com o agravamento da crise ambiental (CAVALCANTI, 2010, 2004).
285

Em verdade, ela é irredutível e leva a cabo um embaralhamento conceitual provocado


pela sua exigência de dissociação e redistribuição
dos predicados subsumidos nas duas séries paradigmáticas que tradicionalmente se
opõem sob os rótulos de ‗Natureza‘ e ‗Cultura‘: universal e particular, objetivo e
subjetivo, físico e moral, fato e valor, dado e construído, necessidade e
espontaneidade, imanência e transcendência, corpo e espírito, animalidade e
humanidade, e outros tantos. (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 226).

Assim, VDC toma a cosmologia metafísica e ontológica de tribos ameríndias


amazônicas e passa pelo crivo da dicotomia natureza e cultura, chegando a um curioso
resultado, em que esses dois pontos de vista:
se dispõem, a bem dizer, de modo perfeitamente ortogonal à oposição entre
relativismo e universalismo. Tal resistência do perspectivismo ameríndio aos termos
de nossos debates epistemológicos põe sob suspeita a robustez e a conseqüente
transportabilidade das partições cosmológicas que os alimentam. Em particular,
como muitos antropólogos já concluíram (embora por outros motivos), a distinção
clássica entre Natureza e Cultura não pode ser utilizada para descrever dimensões ou
domínios internos a cosmologias não-ocidentais sem passar antes por uma crítica
etnológica rigorosa. (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 115).

Para solucionar essa paralização proporcionada pela crítica etnológica a sua própria
teoria, VDC propõe o termo multinaturalismo (a partir do pensamento ameríndio), colocando
às avessas os pressupostos teóricos da antropologia moderna: não é a natureza que é comum e
universal enquanto que a cultura específica e múltipla, mas sim a cultura como universal e a
natureza como específica. Para melhor entender este postulado, cita-se as palavras do autor:
as categorias de Natureza e Cultura, no pensamento ameríndio, não só não
subsumem os mesmos conteúdos, como não possuem o mesmo estatuto de seus
análogos ocidentais — elas não designam províncias ontológicas, mas apontam para
contextos relacionais, perspectivas móveis, em suma, pontos de vista. (VIVEIROS
DE CASTRO, 2004, p. 226, destaque meu).

Assim, o autor se propõe a perspectivar nossos contrastes, observando que esse


perspectivismo característico do pensamento indígena, consiste na cosmovisão de que alguns
animais, espíritos e mortos também são humanos. Mas essa humanidade consiste em uma
intencionalidade subjetiva que ascende a um ponto de vista, da mesma maneira que os
próprios seres humanos ocupam um ponto de vista. Nesse sentido, a humanidade é comum a
todos, permitindo que a cultura seja una, e caracterizando a natureza (nossos corpos na
condição de ―roupas‖) como ponto de distinção. Nessa coletividade humana entre gente e
animais, há ainda os espíritos. Neste momento o que importa ressaltar é a diferenciação dos
corpos como pontos de vista. Na condição de corpo humano, os humanos se veem como tal e
aos animais nas suas respectivas vestimentas animais, ademais de, em condições anormais,
visualizar algum espírito. Do ponto de vista dos animais predadores e dos espíritos, os
286

humanos são animais de presa (não humanos), sendo eles próprios humanos, praticando sua
cultura. Do ponto de vista dos animais de presa, nós humanos somos predadores, assim como
os animais predadores, sendo os frutos, insetos e plantas seus peixes, cerveja, carne,
percebendo-se eles mesmos como humanos, também praticando sua cultura (VIVEIROS DE
CASTRO, 1996, 2004, 2015).
Para melhor explicar, cita-se um exemplo: quando se encontra antas chafurdando em
possas, na verdade, elas estão promovendo um ritual; quando um urubu come um verme, ele
está, na sua forma, humana, comendo um peixe; quando um jaguar bebe o sangue de sua
presa, ele está, em sua forma humana, tomando cauim282, etc. Assim, os animais são gente
com roupa de animal, escondendo uma forma interna humana, normalmente visível somente à
sua espécie e a seres especiais, como os xamãs (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, 2004,
2015).
Vale ressalvar:
o perspectivismo raramente se aplica em extensão a todos os animais (além de
englobar outros seres); ele parece incidir mais freqüentemente (sic) sobre espécies
como os grandes predadores e carniceiros, bem como sobre as presas típicas dos
humanos,... uma das dimensões básicas, talvez mesmo a dimensão constitutiva, das
inversões perspectivas diz respeito aos estatutos relativos e relacionais de predador e
presa.
[...]
a ‗personitude‘ e a ‗perspectividade‘ — a capacidade de ocupar um ponto de vista
— é uma questão de grau e de situação, [...] A possibilidade de que um ser até então
insignificante revele-se como um agente prosopomórfico capaz de afetar os negócios
humanos está sempre aberta; a experiência pessoal, própria ou alheia, prevalece
sobre qualquer dogma cosmológico substantivo. (VIVEIROS DE CASTRO, 2004,
p. 228).

Com efeito, o autor lança mão da ideia de mito. Neste, os índios contam que no início
todos eram humanos, mas, com o passar do tempo, os animais assumiram outras formas,
contrariamente ao nosso mito originário moderno: segundo a ―teoria da evolução da
espécies‖, éramos animais, para então nos transformarmos em humanos. Nesse sentido, assim
se manifesta Viveiros de Castro:
Assim, se nossa antropologia popular vê a humanidade como erguida sobre alicerces
animais, normalmente ocultos pela cultura — tendo outrora sido ‗completamente‘
animais, permanecemos, ‗no fundo‘, animais —, o pensamento indígena conclui ao
contrário que, tendo outrora sido humanos, os animais e outros seres do cosmos
continuam a ser humanos, mesmo que de modo não-evidente.
...
Em suma, para os ameríndios ―o referencial comum a todos os seres da natureza não
é o homem enquanto espécie, mas a humanidade enquanto condição‖ (Descola
1986:120). Essa distinção entre a espécie e a condição humanas deve ser sublinhada.
Ela tem uma conexão evidente com a idéia (sic) das roupas animais a esconder uma

282
Bebida fermentada pelos índios. Em uma simetria com nossa sociedade, seria a nossa cerveja.
287

‗essência‘ humano-espiritual comum, e com o problema do sentido geral do


perspectivismo. (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 230).

Assim, nossa sociedade toma como explicação de mundo possível o naturalismo, que
pressupõe uma ontologia dicotômica entre uma natureza, domínio das necessidades biológicas
universais e imanentes à natureza comum de todos os corpos, e cultura, domínio da
espontaneidade cultural/social, transcendente ao ser individual. Por outro lado, os ameríndios
entendem que o mundo é composto por uma cultura universal, transcendente à todos os seres
e imanente aos seus corpos:
O animismo pode ser definido como uma ontologia que postula o caráter social das
relações entre as séries humana e não-humana: o intervalo entre natureza e
sociedade é ele próprio social. O naturalismo está fundado no axioma inverso: as
relações entre sociedade e natureza são elas próprias naturais. Com efeito, se no
modo anímico a distinção ―natureza/cultura‖ é interna ao mundo social, humanos e
animais estando imersos no mesmo meio sociocósmico (e neste sentido a ―natureza‖
é parte de uma socialidade englobante), na ontologia naturalista a distinção
―natureza/cultura‖ é interna à natureza (e neste sentido a sociedade humana é um
fenômeno natural entre outros). O animismo tem a ―sociedade‖ como pólo não-
marcado, o naturalismo, a ―natureza‖: esses pólos funcionam, respectiva e
contrastivamente, como a dimensão do universal de cada modo. Animismo e
naturalismo são, portanto, estruturas hierárquicas e metonímicas [...] (VIVEIROS
DE CASTRO, 1996, p. 121).

Outro conceito chave é o xamanismo, qualidade daqueles seres que podem


transformar-se voluntariamente não em outro ser, mas ascender ao ponto de vista de outros
seres que não eles mesmos, trocar seu corpo como se troca de roupa, ou, ainda pensando a
palavra transformar, mudar de forma (trans formar), mas não deixar de ser o ser social que eu
era de início, a saber, um humano. Nas palavras de Viveiros de Castro:
O xamanismo amazônico pode ser definido como a habilidade manifesta por certos
indivíduos de cruzar deliberadamente as barreiras corporais e adotar a perspectiva de
subjetividades alo-específicas, de modo a administrar as relações entre estas e os
humanos. Vendo os seres não-humanos como estes se veem (como humanos), os
xamãs são capazes de assumir o papel de interlocutores ativos no diálogo
transespecífico; sobretudo, eles são capazes de voltar para contar a história, algo que
os leigos dificilmente podem fazer. O encontro ou o intercâmbio de perspectivas é
um processo perigoso, e uma arte política — uma diplomacia. Se o
multiculturalismo ocidental é o relativismo como política pública, o perspectivismo
xamânico ameríndio é o multinaturalismo como política cósmica. (VIVEIROS DE
CASTRO, 2004, p. 231).

Estes relatos etnográficos em formato de descrição da cosmologia ameríndia resultam


no empreendimento de levar a sério seus sujeitos de estudo, de modo a não utilizar suas falas
como sistemas de crenças culturais, pronunciamentos com significados, interpretações de
sistemas culturais, entendendo suas explicações de mundo como resultado de sua cultura.
288

Segundo Viveiros de Castro, para a Antropologia levar à sério seus nativos significa
não mais explicar o outro a partir do antropólogo como sujeito moderno, sua imagem, seus
conceitos, sua metafísica, buscando semelhanças. É necessário inverter a postura, de modo a
pensar com o outro o que nos faz diferente, o que diferencia o sujeito eu do outro sujeito,
permitindo dar sentido a outros mundos possíveis de sujeitos outros, como será visto mais
adiante. Esta escolha política de procedimento epistêmico teve como base a empresa de
considerar a cosmologia do nativo como conceitos filosóficos e metafísicos, chegando a
resultados no mínimo incomuns, esboçados a seguir.
Para nós (modernos), a forma do outro é a coisa, na medida em que para conhecermos
algo (ou alguém), objetivamos a realidade, tratando-a como coisa, reduzindo-a a um mínimo
ideal. Para o perspectivismo ameríndio, a forma do outro é a pessoa, ―Conhecer é
personificar, tomar o ponto de vista daquilo que deve ser conhecido‖ (VIVEIROS DE
CASTRO, 2004, p. 231). Assim, a ―... boa interpretação xamânica é aquela que consegue ver
o evento como sendo, em verdade, uma ação, uma expressão de estados ou predicados
intencionais de algum agente‖ (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 232). Então, um objeto
nada mais é que um sujeito mal interpretado, para o qual não se conseguiu alcançar seu ponto
de vista, sua forma intencional plena ou minimamente ter sua relação com algum sujeito
demonstrada, para poder ―aparecer no mapa‖ de algum agente (VIVEIROS DE CASTRO,
2004).
Em outras palavras, a própria concepção de sujeito, subjetividade e humanidade do
outro é outra que não a minha, consequentemente, não posso eu, antropólogo, utilizar a minha
concepção de sujeito para classificar (ou não) o outro estudado como sujeito. Como alerta
Viveiros de Castro, o problema não é ver o nativo como objeto, que ele seja um ―[...]sujeito,
não há a menor dúvida; mas o que pode ser um sujeito, eis precisamente o que o nativo obriga
o antropólogo a pôr em dúvida.‖ (VIVEIROS DE CASTRO, 2002b, 118-119). Assim, o
antropólogo deve se apropriar do discurso do outro sobre o que é ser um sujeito para então
explicar o que seria ser um sujeito para o sujeito que se estudo, despolitizando a episteme a
priori utilizada para estudar o outro (que é a do próprio antropólogo). Nada de espelhos,
encontro etnográfico, fusão de horizontes hermenêuticos. Nas palavras de Viveiros de Castro
(2002b, p. 119):
O problema é que o nativo certamente pensa, como o antropólogo; mas, muito
provavelmente, ele não pensa como o antropólogo. O nativo é, sem dúvida, um
objeto especial, um objeto pensante ou um sujeito. Mas se ele é objetivamente um
sujeito, então o que ele pensa é um pensamento objetivo, a expressão de um mundo
possível, ao mesmo título que o que pensa o antropólogo. [...] Tal confronto [de
pensamentos] não precisa se resumir a uma mesma equivocidade de parte a parte —
289

o equívoco nunca é o mesmo, as partes não o sendo; e de resto, quem definiria a


adequada univocidade? —, mas tampouco precisa se contentar em ser um diálogo
edificante. O confronto deve poder produzir a mútua implicação, a comum alteração
dos discursos em jogo, pois não se trata de chegar ao consenso, mas ao conceito.

Esta última reflexão permite que Viveiros de Castro chame a atenção para a
ambiguidade dos artefatos que, apesar de não apresentarem subjetividades ou
intencionalidades, apontam para estas características de outros seres, na medida em que são
como ―ações congeladas, encarnações materiais de uma intencionalidade não-material.‖
(VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 233).
Retornando ao perspectivismo ameríndio, o predador comendo sua presa, pode estar
menos exercitando sua natureza primitiva, que exercitando sua cultura ao tomar sangue como
cauim (cerveja). Nas palavras do autor: ―o que uns chamam de ‗natureza‘ pode bem ser a
‗cultura‘ dos outros.‖ (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 233).
Com efeito, se a Antropologia é a Ciência Social dos tradicionais ou povos primitivos,
o que fazer quando estes ativam não humanos como animais e recursos ambientais, dando-
lhes a condição de humanos, inserindo-os em seu círculo social, ontológico e metafísico? O
que fazer para explicar o paradoxo etnográfico do perspectivismo ameríndio, que entende que
a cultura de uns é a natureza de outros?283
Viveiros de Castro propõe que o antropólogo não deveria nem explicar, nem
interpretar, mas sim multiplicar e experimentar as cosmovisões outras, de modo a imaginar
estas cosmovisões como práticas de sentido, estabelecendo relação de sentido entre o discurso
do antropólogo e o do nativo, nada de interpretações e descrições densas de sistemas culturais
ou de explicar, racionalizar o sistema de crenças do outro. Nas palavras de Viveiros de Castro:
[...] o plano do sentido não é povoado por crenças psicológicas ou proposições
lógicas, e o ‗fundo‘ contém outra coisa que verdades. Nem uma forma da doxa, nem
uma figura da lógica — nem opinião, nem proposição —, o pensamento nativo é
aqui tomado como atividade de simbolização ou prática de sentido: como
dispositivo auto-referencial ou tautegórico de produção de conceitos, isto é, de
―símbolos que representam a si mesmos‖ (Wagner 1986). (VIVEIROS DE
CASTRO, 2002b, p. 131)284.

283
Vale dizer, Viveiros de Castro assim explica esse paradoxo: ―[...]. O que faz do nativo um nativo é a
pressuposição, por parte do antropólogo, de que a relação do primeiro com sua cultura é natural, isto é, intrínseca
e espontânea, e, se possível, não reflexiva; melhor ainda se for inconsciente. O nativo exprime sua cultura em
seu discurso; o antropólogo também, mas, se ele pretende ser outra coisa que um nativo, deve poder exprimir sua
cultura culturalmente, isto é, reflexiva, condicional e conscientemente. Sua cultura se acha contida, nas duas
acepções da palavra, na relação de sentido que seu discurso estabelece com o discurso do nativo. Já o discurso do
nativo, este está contido univocamente, encerrado em sua própria cultura. O antropólogo usa necessariamente
sua cultura; o nativo é suficientemente usado pela sua.‖ (VIVEIROS DE CASTRO, 2002b, p. 114)
284
Latour apresenta um posicionamento similar sobre esses paradoxos etnográficos, sendo este posicionamento
expressado no tópico a seguir.
290

Em outras palavras, ao pensar o pensamento outro, deve-se leva-lo a sério. VDC


explicita alguns dos desdobramentos de se levar o discurso do nativo à sério.
A ciência do antropólogo é de outra ordem que a ciência do nativo, e precisa sê-lo: a
condição de possibilidade da primeira é a deslegitimação das pretensões da segunda,
seu ―epistemocídio‖, no forte dizer de Bob Scholte (1984:964). O conhecimento por
parte do sujeito exige o desconhecimento por parte do objeto. (VIVEIROS DE
CASTRO, 2002b, p. 116).

Mais adiante, VDC arremata:


O que estou sugerindo, em poucas palavras, é a incompatibilidade entre duas
concepções da antropologia, e a necessidade de escolher entre elas. De um lado,
temos uma imagem do conhecimento antropológico como resultando da aplicação
de conceitos extrínsecos ao objeto: sabemos de antemão o que são as relações
sociais, ou a cognição, o parentesco, a religião, a política etc., e vamos ver como tais
entidades se realizam neste ou naquele contexto etnográfico — como elas se
realizam, é claro, pelas costas dos interessados. De outro (e este é o jogo aqui
proposto), está uma idéia (sic) do conhecimento antropológico como envolvendo a
pressuposição fundamental de que os procedimentos que caracterizam a investigação
são conceitualmente da mesma ordem que os procedimentos investigados 285. Tal
equivalência no plano dos procedimentos, sublinhe-se, supõe e produz uma não-
equivalência radical de tudo o mais. Pois, se a primeira concepção de antropologia
imagina cada cultura ou sociedade como encarnando uma solução específica de um
problema genérico — ou como preenchendo uma forma universal (o conceito
antropológico) com um conteúdo particular —, a segunda, ao contrário, suspeita que
os problemas eles mesmos são radicalmente diversos; sobretudo, ela parte do
princípio de que o antropólogo não sabe de antemão quais são eles. O que a
antropologia, nesse caso, põe em relação são problemas diferentes, não um problema
único (‗natural‘) e suas diferentes soluções (‗culturais‘). A ―arte da antropologia‖
(Gell 1999), penso eu, é a arte de determinar os problemas postos por cada cultura,
não a de achar soluções para os problemas postos pela nossa. E é exatamente por
isso que o postulado da continuidade dos procedimentos é um imperativo
epistemológico286. (VIVEIROS DE CASTRO, 2002b, p. 116-117)

De maneira similar se posiciona Latour, ao refletir sobre a necessidade de não se


utilizar a dicotomia entre Natureza e Cultura, sob o risco de se estar cometendo um erro
ontológico. Não se pode ir a campo com uma ideia própria de Natureza e outra de Cultura,
deve-se deixar que o próprio campo mostre ao pesquisador o que é entendido por Natureza e
Cultura, ou qualquer outro termo que se esteja pesquisando ou que o campo esteja
evidenciando. É por isso que a Ecologia Política deve deixar de lado a Natureza, não aquela
ligada à vida de não humanos do nosso planeta, mas a concepção moderna de Natureza. Fica
o próximo tópico responsável por evidenciar as proposições da Ecologia Política de Latour.

285
Nota de rodapé número 7: ―É assim que interpreto a declaração de Wagner (1981:35): ‗Estudamos a cultura
através da cultura, e portanto as operações, sejam quais forem, que caracterizam nossa investigação devem ser
também propriedades gerais da cultura.‘.
286
Nota de rodapé número 8: ―Ver, sobre isso, Jullien (1989:312). Os problemas reais de outras culturas são
problemas apenas possíveis para a nossa; o papel da antropologia é o de dar a essa possibilidade (lógica) o
estatuto de virtualidade (ontológica), determinando — ou seja, construindo — sua operação latente em nossa
própria cultura.‖
291

5.2 Latour e a Ecologia Política sem Natureza


Latour (2013a) observa que, de início, eram poucos os paradoxos que imobilizavam a
Ciência. Estes conseguiam ser ocultados ou desprezados pelo mito moderno da Ciência que
constrói sua ontologia e metafísica baseadas na ideia de que existe uma transformação de um
estágio natural para um estágio cultural, ao menos uma transformação experimentada pela
espécie humana.
Essa transformação Latour (2004 a) ilustra por meio do, já muito difundido, mito da
caverna de Platão, em que se divide o mundo em duas câmaras. Uma corresponde ao reino
dos humanos, seres falantes, cheios de paixões advindos de sua condição social, cultural,
política e subjetiva. A outra câmara corresponde ao reino dos objetos e animais, um reino
objetivo passível de ser descoberto por meio da razão, qualidade exclusiva da Ciência. Estas
seriam as normas da Constituição287 do mundo moderno, uma dicotomia ontológica entre
seres ou objetivos, ou subjetivos.
Ocorre que, como acima sinalizado, essa Constituição moderna levou a uma
paralização do mundo, em virtude dos paradoxos por ela criados. Nas palavras de Latour:
Ao dividir a vida política em duas câmaras incomensuráveis, a antiga Constituição
resultou apenas na paralisia, já que não obteve, com a natureza, senão uma unidade
prematura e, com as culturas, nada além de uma dispersão sem fim. A antiga
Constituição, portanto, teve como resultado formar, no final das contas, duas
assembleias igualmente ilícitas: a primeira, reunida sob os auspícios da Ciência, era
ilegal, uma vez que definia o mundo comum fora de todo processo público; a
segunda era ilegítima de nascença, pois faltava-lhe a realidade das coisas relegadas à
outra câmara, devendo contentar-se com as "relações de força", com a
multiplicidade de pontos de vista irreconciliáveis, com a única habilidade
maquiavélica. Uma postula a realidade, mas não a política; a outra, a política é a
única "construção social". Ambas possuíam de reserva um atalho fulminante para
pôr fim à discussão: a razão indiscutível, a indiscutível força, Right and Might,
Knowledge and Power. Cada uma das câmaras ameaçava a outra de
exterminação. Apenas o terceiro termo sofreu com esta longa guerra fria, o Terceiro
Estado, o coletivo, para sempre privado de uma competência política e científica que
nem os atalhos da força, nem os da razão; encurtariam os canais. (LATOUR, 2004 a,
p. 108, grifo nosso).

Em outras palavras, a Constituição dos modernos rezava que caberia à sua civilização
a cultura objetiva, descobrindo a natureza, enquanto que às outras culturas (os tradicionais),
ficariam apenas com construções culturais e subjetivas do mundo. Enquanto que estes
inventam seu mundo, aqueles o descobrem.

287
A noção de Constituição é emprestada do meio jurídico, para denominar uma espécie de ―contrato social‖
fictício, nos termos mesmos de Thomas Hobbes (O Leviatã), que iria orientar a visão de mundo dos modernos.
Conforme exposto em nota de rodapé número cinco: ―A noção de Constituição [...] encontra-se há muito tempo
desenvolvido em Latour (1991): trata-se de substituir a oposição do conhecimento e do poder, da natureza e da
sociedade, por uma operação prévia de distribuição dos direitos e dos deveres dos humanos e dos não-humanos.
É esta noção que permite a antropologia simétrica e que torna a modernidade comparável à outras formas de
organização pública.‖ (LATOUR, 2004 a, p. 32).
292

Buscando uma perspectiva de completude articulada sobre essa abordagem, segue um


quadro em que esboço a ligação entre as três dicotomias indicadas por este trabalho como
criadora das outras.
Quadro 11: dicotomias ligadas à Natureza/Cultura, Objetivo/Subjetivo, Tradicional/Moderno.
Natureza Cultura
Quanto ao comportamento/estágio evolutivo
Selvagem Domesticado
Primitivo Civilizado
Objetivo Subjetivo
algo dado algo construído
Imutável artificial, mutável, dinâmico
Descoberto Inventado
Instinto Razão
Conhecimento/correntes de pensamento
Fato Valor
Empirismo Racionalismo
Juspositivismo Jusnaturalismo
Amplitude /quantidade
Universal Singular
Global Local
indivíduo (biológico) Sociedade
Variável espaço
Privado Público
Campo Cidade
Rural Urbano
Quanto à cultura
Tradicional
Moderna
Fonte: elaboração própria.
O quadro acima exposto está dividido em duas colunas. A primeira corresponde à tudo
aquilo que é objetivo, já pronto, acabado e esperando ser descoberto, mundo imutável, do
domínio do fato, daquilo que é empírico, da natureza, do selvagem, do primitivo, do instinto,
logo, universal ao indivíduo biológico, qualidade da cultura primitiva, selvagem, habitante de
espaços rurais e campesinos, onde reina os ditames das regras do mundo privado. A segunda
coluna corresponde aos domínios da subjetividade, as coisas vão sendo construídas, são
artificiais, inventadas, o mundo está em constante mudança, sob o domínio dos valores
humanos, daquilo que é racional, pensado, logo domesticado e civilizado, habitantes do
mundo da razão universal e portadores da cultura civilizada, citadina, urbana, capaz de
transitar do seu mundo para o outro mundo, descobrindo aquilo que é natural e objetivo do
mesmo.
293

As duas últimas linhas do quadro são bem representativas dessa habilidade de transitar
entre os dois mundos. Nessas linhas estão colocadas o adjetivo cultural que se divide entre
modernos e tradicionais, onde fica expresso que os modernos conseguem objetivar o que são
os tradicionais, na medida em que se localizam abaixo da segunda coluna, mas não possuem
barreiras para retornar para a coluna anterior. Assim, os tradicionais ficam exclusivamente
com a parte da natureza, do instinto, selvagem, primitivo, sem ideia alguma do outro lado da
moeda, ocupado pelos modernos, sujeitos estes filhos da razão, pessoas civilizadas e que,
surpreendentemente, podem circular entre o outro lado da moeda livremente, pois saíram
desse estágio atrasado, protagonistas de grandes descobertas desse mundo natural, objetivo,
fatídico, empírico, somente por eles descobertos de forma legitima, verdadeira. Como
menciona Viveiros de Castro (2002 b), os modernos são nativos de fato e de direito, diferente
dos nativos tradicionais, apenas de fato, sem direito algum nessa velha Constituição.
Se, polidamente, assinalamos que a facilidade com a qual os sábios passam do
mundo social àquele das realidades exteriores, a comodidade com que fazem
experiência por esta importação-exportação de leis científicas, a rapidez com a qual
eles convertem o humano e o objetivo provam bem que não há ruptura entre os dois
mundos, e que se trata muito mais de um tecido sem costura, seremos acusados de
relativismo; dir-se-á que tentamos dar à Ciência uma "explicação social";
denunciarão em nós molestas tendências ao imoralismo; talvez nos perguntarão
publicamente se cremos ou não na realidade do mundo exterior ou se estamos
prestes a nos lançar do décimo quinto andar de um prédio, pois estimamos que as
leis da gravidade, elas também, sejam "construídas socialmente" (LATOUR, 2004
b, p. 30).

Obviamente que essas dicotomias nem sempre estão diretamente ligadas umas às
outras, sendo em alguns momentos necessário algum esforço de imaginação um pouco mais
intenso para estabelecer as ligações entre um e outro. Contudo, é inegável que há uma ligação
entre esses pares. Retorna-se ao paradoxo imobilizador dos modernos, de sua velha
Constituição que divide um mundo pronto, acabado, esperando ser descoberto (lado de fora da
caverna), em oposição a um mundo em eterna construção, sempre artificial, sempre mutável,
sempre dinâmico (interior da caverna). Em outras palavras, essas dicotomias são um paradoxo
nelas mesmas, como citado alguns parágrafos atrás (―Cada uma das câmaras ameaçava a outra
de exterminação.‖ LATOUR, 2004 a, p. 108).
Ocorre que com o passar dos anos esses paradoxos, ou como denominados por Latour,
esses híbridos foram multiplicando-se cada vez mais, a ponto de não mais poderem ser
desprezados, nem pelas redes científicas, menos ainda pelas redes de humanos e não humanos
do mundo comum. Cada vez mais híbridos de Natureza e Cultura, como o aquecimento
global, a vaca louca, as florestas culturais indígenas, máquinas com inteligência artificial,
recursos bióticos transgênicos, entre tantos outros, aparecem em jornais, revistas e na grande
294

mídia em geral, passando para espaços extramuros científicos, adentrando redes de humanos e
não humanos da vida comum.
O próprio meio científico apresenta um sintoma desse cenário dicotômico e paradoxal,
na medida em que até mesmo na Ciência, o espaço da objetividade, da sapiência, da
descoberta da Natureza e suas leis, começam a surgir híbridos científicos que dividiam uma
qualidade moderna em comum, a interdisciplinaridade. Elenquei alguns deles abaixo.
 Ecologia Política
 Economia Ecológica (ou Ecologia Econômica ou Bioeconomia)
 Antropologia Ecológica
 Ecologia Cultural
 Ecologia Social
 Ecologia Humana
 Etnociências
 História Ambiental
 Socioambientalismo
 Sociobiologia
 Desenvolvimento Sustentável
Dentre outros.
Em todos esses híbridos, figura um termo representativo das Ciências Humanas e
outro que representa as Ciências Físicas ou da Vida. Ocorre que a interdisciplinaridade da
Ciência é impossível, segundo a própria concepção clássica de Ciência. Ela produz um
conhecimento a partir de procedimentos analíticos que destrincham a realidade, fragmentam-
na em pequenos compartimentos do saber, cada um com teoria, objeto e método próprios. A
filosofia tem por papel unir esses conhecimentos, por meio de operações dialéticas. Ocorre
que essa abordagem interdisciplinar, ou essa postura holística, rizomática, que junta e/ou
interliga as disciplinas, se faz necessária na medida em que temos produção de conhecimento
cada vez mais alienado do mundo, sem atender critérios funcionais ou mesmo importar-se
com justiça social, distribuição de renda, preservação do meio ambiente.
Com efeito, a ciência destrincha a representação desse mundo, ou seu conhecimento
sobre o mesmo, em sub províncias ontológicas, onde uma é de domínio da Ciência (a
Natureza) e a outra é de domínio da Política (a sociedade, a cultura). Com efeito, se não
houver um caminho de volta, um fio de Ariadne, que una novamente esses mundos, teremos
um mundo fragmentado e alienado, não mais um mundo comum, como quer Latour (2004a).
Este mundo será especialmente alienante, na medida em que este pensamento, alienado desde
295

sua criação, produz e reproduz (ou, nas palavras de Latour, compõe) esse mundo, alienando-o
desde o seu nascimento na medida em que o divide em dois opostos incomunicáveis, somente
tendo o Cientista como ente sobrenatural que consegue passar de um canto à outro.
Entre os desdobramentos reflexivos sobre essa situação de dois mundos, agregada à
ideia de sociedade de consumo, estaria o fato de que a própria composição do mundo comum
não se fazer mais pelas pessoas comuns, estas apenas reproduzem um mundo comum que já
chega pronto para ser reproduzido por meio do consumo, seja de bens materiais e imateriais
produzidos pela sociedade de mercado, seja das verdades produzidas pelo meio científico.
Com efeito, os atores humanos do meio científico (os cientistas) devem tomar
consciência dos limites de sua maneira de ver o mundo, do seu conhecimento sobre o mundo,
de sua crença inabalável nesse conhecimento. O cientista deve entender que a ciência
apresenta limites claros e definidos, não conseguindo ir além, passando para questões
metafísicas. Estas, por sua vez, podem levar em conta conhecimentos científicos para serem
explicadas, mas eles apenas não bastam, novamente entrando no terreno de suposições
metafísicas que escapam ao domínio da Ciência empírica ou racionalista. O paradoxo
paralisante está novamente armado. A Ciência não consegue mais descobrir a verdade, logo,
deixa de instruir a câmara dos humanos que, por sua vez, deixa de ouvi-la, mas tampouco
chega à consensos, na medida em que apoia-se em terreno de suposições sociais.
Como exemplo da limitação advinda da dicotomia paralisante do mundo moderno,
acima exposta, cito as abordagens que são realizadas sobre a noção de tempo, variável
incontestavelmente absoluta para os modernos até início do século XX288. O tempo é a chave
para se entender a concepção de mundo moderno. Segundo a explicação científica, o universo
foi criado por um não humano chamado de Big Bang (HAWKING, 2015), uma grande
explosão que dá origem à tudo, inclusive ao tempo, sendo sua passagem a responsável por
permitir que as coisas existam e aconteçam.
Este não humano pode ser entendido como uma ―variável invariante‖, pois existe e
passa para todos e todas (invariante), nunca podendo ―andar para trás‖, entretanto, pode
passar de maneira diferente para outros humanos e não-humanos (variável). Tal entendimento
pode ser tanto corroborado pela física, como pela própria sociologia. Pela física em virtude da
teoria da relatividade (HAWKING, 2015; LOBÃO, 2006) e pela sociologia através da ideia
de que a concepção de tempo muda de acordo com meu plano ontológico e metafísico

288
Einstein e sua teoria da relatividade demoveram do tempo sua qualidade de absoluto e igual para todos.
296

(HAWKING, 2015; LOBÃO, 2006; ALMEIDA, 2008). Segundo Hawking (2015), um dos
principais intérpretes da cosmologia moderna:
[...] era possível classificar qualquer evento por uma grandeza chamada ―tempo‖, de
maneira única, e todo bom relógio estaria de acordo quanto ao intervalo de tempo
entre dois eventos. No entanto, a descoberta de que a velocidade da luz parecia ser a
mesma para qualquer observador, a despeito de como ele estivesse se movendo,
levou à teoria da relatividade – e, baseados nela, tivemos de abandonar a ideia de
que havia um tempo único e absoluto. (HAWKING, 2015, p. 179)

Em outras palavras, até mesmo o tempo, a variável mais absoluta dos modernos, foi
relativizada na medida em que não passa mais de maneira igual para todos. Este situação é
explicada abaixo por Hawking.
[...]. Existem pelo menos três setas do tempo distintas. Primeiro, há a seta do tempo
termodinâmico, a direção na qual a desordem ou entropia 289 aumenta. Depois, há a
seta do tempo psicológico. Essa é a direção em que sentimos o tempo passar, a
direção em que nos lembramos do passado, mas não do futuro. Enfim, há a seta do
tempo cosmológico. Essa é a direção do tempo em que o universo está se
expandindo, em vez de se contrair. (HAWKING, 2015, p.181)

Essa linha do tempo, para os modernos, segue sempre para frente, nunca retorna.
Nesse percurso, agrega-se a ideia de que a vida vai evoluindo, passando de um estágio menos
evoluído (um estágio natural), para outro mais evoluído (um estágio cultural, civilizado) e
assim sucessivamente, como se tivéssemos uma linha de chegada, onde, um dia, todos
estariam evoluídos, ou, na alegoria originalmente utilizada por Platão, que Latour (2004 a,
especialmente capítulo 1) lançou mão, a humanidade um dia chegará ao mundo das luzes, fora
da caverna. Assim, o modelo de Ciência que encontra a verdade em formato de leis gerais tem
na Física, um dos seus pilares mais rígidos, um grande tropeço visto que perde a variável
absoluta que era o tempo.
Essa crença se repete quando se fala sobre os grupos humanos, especialmente quando
esses grupos assumem o formato de Estado-nação, podendo assumir a qualidade de
desenvolvido ou subdesenvolvido. Essa seria a análise tradicional da Economia, que é
popularmente difundida e que se sustenta na ideia de que um país para ser desenvolvido deve
escorar-se na produção de riquezas, em uma perspectiva monetarizada resultando em dinheiro
a ser investido em sua sociedade, estruturando-a e modernizando-a. À despeito da crítica
marxista, opta-se aqui pela crítica da epistemologia política de Latour e uma crítica ecológica,
advinda da junção dessa epistemologia política com a Ecologia Política moderna pensada a

289
Esta noção será detalhada mais adiante, neste mesmo capítulo. Por hora, basta entende-la como o nível de
energia dissipada no processo de troca de energia entre corpos. Exemplo. Ao ferver água em meu fogão, perde-
se energia em forma de calor dissipado para o ambiente. Não é toda a energia que sai da chama criada pelo fogão
que é absorvida pela panela e repassada para a água. Perde-se energia nesse processo.
297

partir do mesmo autor e esboçada a seguir, ademais de, no próximo tópico, lançar mão da
Economia Ecológica para uma crítica a essa ontologia a partir de seus próprios critérios
científicos.
A dicotomia entre dois mundo é resultado daquilo que Latour chama de epistemologia
(política), ou polícia epistemológica. Assim, formam-se dois tipos de epistemologia, a
Epistemologia política versus a epistemologia (política), a segunda resulta na paralisação da
episteme, pois divide natureza e cultura, a primeira entendendo que não há divisões, não cai
na armadilha de dicotomias paralisantes. Nas palavras de Latour:
É preciso poder contornar este sofisma dos filósofos das ciências, que fez calar a
política, há vinte e cinco séculos, logo que ela enfrentou a questão da natureza.
Convenhamos logo de saída: a dificuldade oculta é inevitável. Entretanto, a primeira
vista, nada deveria ser mais inocente que a epistemologia*, conhecimento do
conhecimento, descrição meticulosa das práticas sabias, em toda sua complexidade.
Não confundamos esta epistemologia aí, bastante respeitável, com uma outra
atividade, que designaremos pela expressão de epistemologia (política)*, colocando
a palavra entre parênteses, uma vez que esta disciplina pretende limitar-se à Ciência,
desde que ela não vise senão humilhar a politica.' Esta forma de epistemologia não
tem, por finalidade, de forma alguma, descrever as ciências, contrariamente ao que a
epistemologia poderia fazer entender, mas evitar toda interrogação sobre a natureza
das complexas ligações entre as ciências e as sociedades, pela invocação da Ciência
como única salvação contra o inferno social. A dupla ruptura da Caverna não se
funda em nenhuma pesquisa empírica, sobre algum fato de observação, ela é até
contrária ao senso comum, à prática cotidiana de todos os sábios; e se ela jamais
existiu, vinte e cinco séculos de ciências, de laboratórios, e de instituições de sábios,
desde há muito tempo a apagaram. Nada adianta, a polícia epistemológica anulará
sempre este conhecimento ordinário, criando esta dupla ruptura entre os elementos
que tudo religa, e peneirando aqueles que a põem em dúvida como relativistas,
sofistas e imorais, que desejam arruinar todas as nossas oportunidades de aceder à
realidade exterior e, assim, de reformar, por efeito reflexo, a sociedade. (2004 a, p.
30-32).

O que foi aprendido e se evoca nesta tese: operação epistemopolítica de dicotomizar o


mundo. Nas palavras de Latour:
Do longo capítulo que precede aprendemos que os termas natureza e sociedade não
designavam os seres do mundo, os cantões da realidade, mas uma forma muito
particular de organização pública. Pode ser que nem tudo seja político, mas a
política ocupa-se de formar um todo, desde que se aceite redefini-la como o
conjunto de tarefas que permitem a composição progressiva de um mundo comum
(LATOUR 2004 a, p. 107).

Assim, deixo agora de lado as ontologias de outrem, pois já se alcançou o objetivo de


demonstrar como o instrumental antropológico é epistemologicamente politizado,
consequentemente, paralisado na medida em que parte à campo já com uma cosmologia,
metafísica e ontologia pré-determinada, todas baseadas na distinção entre natureza e cultura.
Passo para a análise da própria ontologia moderna, utilizando uma epistemologia que lhe é
cara, a saber a postura da Economia Ecológica.
298

5.3 Desdobramentos para os modernos da despolitização da episteme: por uma ecologia


econômica
Para os modernos o controle sobre a natureza figura como uma condição quase
inerente ao processo civilizatório. Esse conceito se acopla à ideia de crescimento econômico
no transcorrer dos processos que conjecturalmente lograram a consolidação dos modernos.
Paralelamente, a economia e seus controles sobre a natureza e a suposta necessidade de
crescimento da produção se confundem com a ideia de desenvolvimento. Desenvolvimento e
crescimento são, em verdade, o ponto central da argumentação da Economia Ecológica, dado
que para os modernos esses dois conceitos se confundem gerando anomalias que
comprometem a própria existência dos humanos e não humanos. Ocorre que, segundo a
Economia Ecológica, crescimento econômico e insustentabilidade são diretamente
proporcionais, dado que desenvolver não significa crescer economicamente, aumentar a
produção e, portanto a transformação da natureza em produto manufaturado. Para a Economia
Ecológica desenvolvimento não se relaciona de forma direta a um movimento de acréscimo,
mas sim a questões voltadas à subjetividades outras. Nessa perspectiva, o crescimento tem
caráter insustentável quando pensado ao infinito, ou seja, quando pensado fora dos limites da
natureza, na medida em que para que a economia cresça, recursos naturais (logo,
ecossistemas) devem ser explorados (melhor dizer consumidos). Assim, mais produção,
menos natureza (CAVALCANTI, 2012).
Sobre a noção de crescimento, Cavalcanti (2012) observa que a mesma foi
naturalizada pela atual sociedade, lembrando que esta tem 250 anos (considerando seu início
após a revolução industrial) ao passo que civilização ameríndias registram ao menos 12.000
anos, apenas para ficar em nosso continente. Nas palavras do autor:
Hoje se pensa e age como se o crescimento econômico fosse a regra para a
Humanidade. Nunca foi. Crescimento significa necessariamente esgotamento de
recursos, destruição de alguma coisa do meio ambiente. Não existe nenhum exemplo
de sociedade desenvolvida que seja ecologicamente sustentável, simplesmente
porque as sociedades desenvolvidas (Grã-Bretanha, Estados Unidos, Alemanha,
Japão etc.) chegaram a esse nível há menos de 250 anos. Sustentáveis, podemos
dizer, foram as sociedades indígenas no Brasil que tinham 12.000 anos de existência
quando os portugueses chegaram aqui‖. Quem garante que a sociedade americana
vai ser como é hoje no ano 2250? Ou a chinesa? Ninguém garante, nem mesmo
daqui a vinte anos! E daqui a doze mil? (CAVALCANTI, 2012, p. 36).

Dessa forma, o que pode existir é o desenvolvimento sustentável, entendendo


desenvolvimento como: mudança, melhorias qualitativas ou florescimento de potencialidades.
Para alguns economistas, a melhor palavra seria prosperidade (CAVALCANTI, 2012, 2010,
299

290
2004, 2003, sem ano) . Já crescimento seria: aumento ou expansão, ou segundo Daly,
aumento quantitativo da escala física. Para melhor elucidar essa questão, Cavalcanti cita o
exemplo de um lago que gradativamente vai sendo tomado pelo crescimento de algas em seu
interior.
Imaginemos que um lago contenha uma espécie de alga que, ao cobrir toda a
superfície do corpo d‘água, sufocará a vida nele existente. A comunidade de algas
dobra de tamanho a cada dia. Suponhamos que, em 30 dias, as algas tomarão o lago
todo. No 21.º dia, as algas cobrem tão somente 0,2% da superfície (menos de
0,0001% no 10.º dia). Em apenas mais oito dias, já [se] terá coberto a metade e, no
dia seguinte, o lago estará completamente tomado pelas algas, eliminando o
oxigênio disponível da água. (CAVALCANTI, 2012, p. 38).

Mas há a possibilidade de desenvolvimento, levando em consideração as limitações


ambientais. O problema é que a teoria econômica atual deixa de fora os recursos do
ecossistema, ela pensa a natureza como uma externalidade que não se insere na equação do
processo produtivo. A natureza e seus recursos não aparecem nos cálculos. Com isso o autor
apresenta o exemplo da fórmula que representa a função de produção, onde Y corresponde ao
produto, K ao capital e L ao trabalho. A forma genérica que se constitui é Y = f (K, L), que
vale para a economia como um todo (produção de objetos, setores de atividades, grupos de
firma, etc), uma das variantes dessa fórmula seria a função Cobb-Douglas, a que efetivamente
aparece nos modelos (CAVALCANTI, 2012), que pode se expressar matematicamente da
seguinte maneira:
Y = λKαLβ.
Sobre a referida fórmula, Cavalcanti observa que
A constante (positiva) λ exprime o fator tecnológico. E os expoentes α e β, as
respectivas fatias de K e l no produto (Y), sendo α + β = 1. Isso é macroeconomia (e
microeconomia) básica. Uma visão simplificada ao extremo do mundo real. O que
ela quer dizer é que, com x unidades de capital e y unidades de trabalho, obtêm-se z
unidades do produto. Ou seja, é como se uma pessoa (fator trabalho, l) pudesse fazer
um bolo Sousa Leão (o produto, Y) usando tão só (fator capital, K) sua cozinha, uma
colher de pau e uma vasilha com nada dentro (omite-se n [sendo n os recursos
naturais])! Como isso seria possível, sem massa de mandioca, ovos, sal, açúcar,
manteiga, leite de coco (os recursos naturais) que tornam o Sousa Leão tão gostoso?
Estranho. No dizer de Nicholas Georgescu-Roegen, excluir n da função de produção
significa ignorar a diferença entre o mundo real e o Jardim do Éden, como lembram
Daly (2007, p.134) e Veiga (2005, p.129).

290
Cavalcanti apresenta outros conceitos, como o de Sen (aumento de cidadania e de possibilidade de escolhas)
de Celso Furtado que incorpora a questão da distribuição de riquezas, admitindo a necessidade de incremento da
capacidade produtivo (um aspecto do crescimento), compreendendo a ideia de crescimento, mas superando-a.
Minha crítica particular à esses conceitos para Desenvolvimento Sustentável, reside no entendimento de que em
ambos a dicotomia Natureza e Cultura ainda perdura, caindo na armadilha da modernidade (seja no formato da
crença de um estágio de cidadania plena para todos, como é o caso de Sen, seja no caso do incremento da
capacidade produtiva, que é o caso de Furtado).
300

Em outras palavras, todo sistema, inclusive o sistema econômico, se move à energia,


sendo que a economia clássica e mesmo a neo-clássica pensa os sistemas econômicos como
isolados, ou seja, não considera entrada e saída de energia. Ocorre que não existem sistemas
isolados291, existem sistemas fechados (como a terra, em que entra e sai energia) e abertos
(como nosso corpo, onde entra e sai energia e matéria). Pensar o sistema econômico como um
sistema isolado e não um sistema fechado, corresponde à visualizar o planeta Terra e a
natureza como um imenso estoque e recipiente de lixo. Em resumo:
Mas o fato concreto é que se precisa encarar o processo econômico enquadrado
dentro do sistema – a natureza – que o envolve. É isso o que estudo recente da
consultora de economia McKinsey (Dobbs, 2011), surpreendentemente, propõe.
Assim, o ecossistema não pode ser pensado como externalidade. Sua condição é a
do todo maior a que a economia deve inexoravelmente reportar-se. Ou seja, com tal
visão, passa-se a pensar o sistema econômico com aparelho digestivo: nele, matéria
e energia (de alta qualidade, ou baixa entropia, a verdadeira riqueza do mundo) são
engolidas, viram artefatos e terminam derradeiramente como dejetos (de alta
entropia). Quer dizer: o que nós produzimos mesmo, em última instância, é lixo –
nada de riqueza duradoura. Um carro zero é pré-sucata. A suposta riqueza (contida
em Y) que ele representa é só uma transição entre as dádivas da natureza e os dejetos
finais que para a natureza escoam. Nessa transição, a ―riqueza‖ proporciona gozo da
vida, bem-estar, um fluxo imaterial – assim como a taça do bom vinho que, ao ser
bebida, deixa de existir (a língua estala, mas o vinho não volta; virou lixo).
(CAVALCANTI, 2012, p. 39-40).

Assim, esta proposição, ao fim e ao cabo, entende que nada se perde, tudo se
transforma dentro da natureza, mas não dentro do sistema econômico, pois este precisa da
energia da natureza para funcionar, externalizando, nessa própria natureza, energia não mais
utilizável por seres humanos. Cavalcanti descreve o caso de um trem que leva toneladas e
toneladas de carvão de uma ponta a outra dos EUA. Este carvão, de recurso natural (baixa
entropia), passa para lixo (alta entropia). Nas palavras e representações do autor:

Figura 16: Extração de recursos (a natureza como fonte) e lançamento de dejetos (a natureza
como esgoto) pelo sistema
econômico.

291
Como explicado mais adiante, estes sistemas seriam aqueles que não recebem energia de fora, tampouco
externalizam energia, somente o universo pode ser considerado como sistema fechado.
301

Fonte: Cavalcanti (2012).

Dessa forma, parte da energia utilizada é dissipada (tornando-se humanamente não


mais utilizável), assim como também transforma-se em resíduo sólido ou, no jargão do senso
comum, lixo. Inclusive, em alguns casos essa energia passa de energia vital para energia não
vital, segundo o índice do Planeta Vivo, o qual observa que a energia vital vem baixando
(30% desde 1970 em geral e, no caso das regiões tropicais, 60% em menos de 40 anos, apud
CAVALCANTI, 2012).
A ideia de pensar o mundo por meio da troca de energia, inclusive, é legitimada pela
própria Física, através de uma de suas subdisciplinas, a termodinâmica, que é uma das bases
da Economia Ecológica. A termodinâmica é composta por quatro leis.
A lei zero apresenta o seguinte enunciado ―todos os sistemas que estão em equilíbrio
térmico com um dado sistema, estão em equilíbrio térmico entre si‖ (SAVI; COLUCCI, 2010,
p. 15). Isso significa que todo sistema energético e seus subsistemas, sejam eles corpos,
objetos ou máquinas, tendem a buscar um equilíbrio termodinâmico.
A lei um entende que ―calor é uma das muitas formas de energia, sendo que energia
pode ser transformada, mas não pode ser criada ou destruída‖ (SAVI; COLUCCI, 2010, p.
64). Em outras palavras, o ser humano não pode criar energia, apenas transformá-la de um
estado para outro. Por exemplo, ferver uma porção de água em uma panela, se está
acrescentando calor nesse sistema representado pela água e pela panela. Depois de fervida,
cessado o acréscimo de calor, esse sistema tende a buscar o equilíbrio termodinâmico, logo, a
água começa a perder calor para o meio, já que o meio tem menos calor que a água.
Eis que surge a segunda lei da termodinâmica, por meio da seguinte dúvida: poderia a
energia ter sido transferida do corpo com menos calor para o corpo com mais calor? Ou,
poderia a água fervendo continuar ganhando calor do meio, sem estar mais sendo aquecida no
fogão? Nosso senso de realidade nos diz que não. Assim, a lei dois observa que ―É impossível
obter um processo cujo único resultado seja extrair calor de um reservatório a transferi-lo para
outro reservatório com temperatura maior‖ (SAVI; COLUCCI, 2010, p. 80). Esta lei também
é a criadora da ideia de entropia, entendida como a quantidade de desordem existente em um
sistema, ou seja, ao se extrair calor de um reservatório para um sistema, perde-se energia em
forma de calor dissipado, não utilizado no trabalho da máquina, passando de um estado menos
entrópico (menos desordem, com pouco calor e energia dissipada), para um estado mais
entrópico (mais desordem, com mais calor e energia dissipada).
302

Em outras palavras, os corpos dentro de um sistema fechado tendem a entrar em


equilíbrio termodinâmico (lei zero), de modo que, após entrarem nesse equilíbrio, somente a
inserção de mais energia nesse sistema faria com que ele volte a apresentar variações (lei
dois). Seria a ideia de que existe uma tendência da passagem de calor de um corpo mais
quente para um corpo mais frio, sempre buscando o equilíbrio termodinâmico. Assim, depois
que uma pedra de gelo derreter (ganha calor do meio, logo, energia), o mesmo não poderá
retornar sozinho ao seu estado anterior (pedra de gelo), devendo ser gasta energia para que
isso aconteça. Para que o processo de perda de calor do meio para a pedra de gelo seja
revertido, deve-se gastar energia de modo a fazer com que o meio alcance uma temperatura
baixa o suficiente para formar novamente a pedra de gelo. Em termos práticos, dever-se-ia
colocar a ex-pedra de gelo em um refrigerador (máquina que corresponde a um sistema
fechado, recebendo energia elétrica externa e despejando essa energia em formato de calor e
de trabalho que transforma a água em gelo) que, por sua vez, deverá gastar energia para
novamente conseguir transformar a água em gelo (que corresponderá a um nível de calor
maior que o meio que se encontra). Por isso que a construção de um refrigerador ideal é
impossível (no sentido de um refrigerador que não emita calor), pois, segundo a entropia
pensada pela segunda lei da termodinâmica, todo refrigerador, para retirar o calor de seu
interior, deverá produzir mais calor que seu meio externo, ou, em outras palavras ―É
impossível obter um processo cujo único resultado seja extrair calor de um reservatório a
transferi-lo para outro reservatório com temperatura maior‖ (enunciado original da segunda
lei) (SAVI; COLUCCI, 2010, p. 80).
Finalmente, a lei três entende que ―a entropia de um sistema se aproxima de zero
quando sua temperatura tende a zero‖ (SAVI; COLUCCI, 2010, p. 119).
Estes enunciados foram feitos por cientistas dos séculos XIX e XX, sendo que essas
leis não foram cronologicamente formuladas, mas paulatinamente construídas e
aperfeiçoadas. A lei zero, por exemplo, é um resumo de todas as leis posteriores, sendo
formulada somente no século XX. Com efeito, esses enunciados sofreram mudanças e
adaptações no decorrer do tempo, sendo utilizados por outras disciplinas científicas.
No caso deste trabalho, adotam-se as explicações da Economia Ecológica (EcoEco)
para esses enunciados. A Economia clássica entende que o ser humano não pode criar nem
destruir matéria ou energia (primeiro princípio da termodinâmica), mas pode transformá-la.
Assim, energia ou matéria que entra em um sistema econômico não é nem criada, tampouco
destruída, mas qualitativamente transformada de energia utilizável (carvão, por exemplo, a ser
queimado em uma máquina) para energia não utilizável (calor e trabalho emitidos e
303

executados pela máquina). Em outras palavras, essa energia (ou matéria em formato de
reserva de energia, como os combustíveis fósseis, por exemplo) entra invariavelmente no
formato de recurso natural, saindo em formato de resíduo inútil.
A EcoEco desdobra esse cenário em termos ecológicos e econômicos, observando que
[...] aquilo que entra no processo econômico consiste em recursos naturais de valor
e o que é rejeitado consiste em resíduos sem valor. Essa diferença qualitativa está
confirmada, embora em outros termos, por uma divisão particular e até mesmo
singular da física conhecida pelo nome de termodinâmica (GEORGESCU-
ROEGEN, 2012, p. 57).

Acrescenta-se, ainda, a ideia de entropia, na medida em que ―[...] a matéria-energia


absorvida pelo processo econômico o é num estado de baixa entropia e sai num estado de alta
entropia‖ (GEORGESCU-ROEGEN, 2012, p. 57). Lembrando que entropia corresponde ao
grau de desordem de um sistema, ou, em outras palavras, à qualidade não utilizável de energia
dissipada por um sistema.
Com efeito, a segunda lei permite a criação do conceito de entropia, entendido como a
tendência de passagem do estado de um meio mais ordenado para um estado mais
desordenado, ou de um estado com menos energia em formato de pouco calor dissipado, para
um estado com mais energia em formato de mais calor dissipado. Em outras palavras, a
energia que pode ser utilizada pelo ser humano, em formato ou de recursos naturais, ou de luz
solar, passando para uma energia não mais humanamente utilizável, no formato, utilizando o
exemplo do sistema de gás carbônico, calor e trabalho que movimenta o automóvel.
Georgescu-Roegen constrói uma analogia com o sistema econômico, observando que
em uma máquina, segundo a segunda lei da termodinâmica, a energia é dissipada em forma de
trabalho e/ou calor, passando de um estado utilizável (antes de entrar na máquina, digamos,
no formato de carvão vegetal) para um estado não utilizável (saindo no formato de calor e de
trabalho para produzir o objeto que a máquina deve construir). Nas palavras de Georgescu-
Roegen:
A energia se apresenta sob dois estados qualitativamente diferentes, a saber, a
energia utilizável ou livre, sobre a qual o homem pode exercer um domínio quase
completo, e a energia não utilizável ou presa, que o homem não pode absolutamente
utilizar. A energia química contida num pedaço de carvão é energia livre porque o
homem pode transformá-la em calor ou, se quiser, em trabalho mecânico. Mas a
fantástica quantidade de energia térmica contida na água dos mares, por exemplo, é
energia presa. Os barcos navegam na superfície dessa energia, mas, para tanto,
precisam de energia livre de um carburante qualquer ou do vento (GEORGESCU-
ROEGEN, 2012, p. 58).

Mais adiante, o autor dá continuidade à sua explicação, observando que o carvão


quando queimado não perde energia, mas transforma sua energia livre inicial em forma de
304

calor, fumaça e cinza, ou seja, a reserva de energia livre e utilizável do carvão foi dissipada,
passando para o formato de energia presa ou não utilizável (calor, fumaça e cinza)292.
Portanto, é importante salientar que a energia dissipada gera o processo entrópico. Como já
mencionado, quanto mais energia dissipada, mais entrópico o processo de produção, por
exemplo.
Ao analisar o grau de entropia entre a sociedade moderna e grupos sociais agrícolas,
Georgescu-Roegen observa, ainda, que a substituição de animais e humanos por máquinas, do
ponto de vista entrópico é prejudicial, pois:
Em primeiro lugar a substituição do búfalo pelo trator, da forragem pelos
combustíveis para os motores, do estrume e do pousio pelos fertilizantes químicos,
equivale a substituir o elemento mais abundante de todos, a energia solar, por
elementos escassos. Em segundo lugar, essa substituição constitui também um
desperdício de baixa entropia terrestre, em razão de seus rendimentos fortemente
decrescentes293. Na verdade, as técnicas agrícolas modernas conseguem aumentar a
quantidade de fotossíntese numa determinada superfície de terra cultivada. Mas esse
aumento é compensado por um aumento mais do que proporcional no esgotamento
da baixa entropia de origem terrestre294, ou seja, o único recurso cuja escassez seria
problemática. (salientamos, no momento, que a obtenção de rendimentos
decrescentes em consequência da substituição de energia terrestre por energia solar
constituiria, ao contrário, um bom negócio energético). Isso significa que, se for
usada, a cada ano, a metade do input da energia terrestre (contado a partir da energia
mineral) exigido pela agricultura moderna por hectare de tricô, por exemplo, em
dois anos, uma agricultura menos industrializada produziria o mais que o dobro de
trigo na mesma superfície (GEORGESCU-ROEGEN, 2012, p.123-124).

Diante desse cenário, autores da Economia Ecológica observam que, com a produção
que temos hoje, não se precisa economicamente crescer, basta distribuir melhor a produção.
Se crescermos mais, estaremos transformando recursos com baixa entropia para recursos com
alta entropia. Ocorre que essa é uma tendência do mundo moderno, a sociedade de consumo.
Cavalcanti, ao criticar essa modo de vida, cita Furtado:
Aliás, sobre isso, Celso Furtado manifestava preocupação semelhante com três
décadas e meia de antecipação, ao enunciar que o desenvolvimento entendido como
a ―idéia de que os povos pobres podem algum dia desfrutar das formas de vida dos
atuais povos ricos‖ é simplesmente irrealizável. As razões para tanto seriam de
ordem ecológica: o sistema da natureza não suportaria a destruição implícita na

292
Esse é um dos mitos da ideia de reciclagem. A rigor, segundo a termodinâmica, não se consegue reciclar
energia. Para se produzir uma garrafa pet, gasta-se X energia. No processo de reciclagem gasta-se Y energia,
logo, não se recupera a energia X que foi gasta para a produção da garrafa, mas gastasse mais energia para
reciclá-la. Essa mesma lógica é aplicada à ideia de sustentabilidade. A rigor, ele é um mito, na medida em que a
energia humanamente utilizável disponível (recursos naturais e luz solar), a longo prazo, é limitada, logo, não se
pode ter uma sociedade sustentável na medida em que não se pode reutilizar uma energia já dissipada
(GEORGESCU-ROEGEN, 2012; CAVALCANTI, 2012, 2014).
293
Nota de rodapé de número 59 do capítulo 2 da obra de Georgescu-Roegen (2012): ―entre 1951 e 1966, o
número dos tratores aumentou 63%, os fertilizantes fosfatados aumentaram 75%, o fertilizantes (sic) azotados,
146% e os pesticidas 300%. Durante o mesmo tempo, as colheitas, que podem ser consideradas um bom índice
da produtividade, aumentaram somente 34% (The Ecologista, p. 40)‖.
294
O autor pensa duas possibilidades de fonte de energia para a utilização humana, a saber: a energia solar e
energias terrestres, como combustíveis fósseis, carvão mineral, vegeta, dentre outras.
305

proposta (Furtado, 1974, p.75). Daí porque, segundo Furtado (1995, p.76),
―Generalizar [a civilização industrial e o modelo de vida engendrado por ela] para
toda a humanidade, o que é a promessa do chamado desenvolvimento econômico,
seria apressar uma catástrofe planetária que, de toda forma, parece inevitável se não
se muda o curso dessa civilização‖. (CAVALCANTI, 2012, p. 43)

Assim, a diferença entre energia dissipada pelo meio de vida da nossa sociedade (no
caso, a sociedade americana) com a sociedade indígena é gritante, permitindo, assim pensar-
se em uma escala de sustentabilidade de modos de vida295, concluindo:
... A ideia tosca da minha comparação (de 1992, publicada em 1995) foi de sugerir
que há possibilidades ou saídas para o enfrentamento do desafio de como promover
a arte da vida, a prosperidade, o bem-estar dos povos, tendo noção de que a
economia estará sempre ―comendo‖ natureza, como na imagem de Georgescu-
Roegen (1971, p.303). E que, para fazer isso, tem-se que respeitar limites. Limites
que são biofísicos, do ponto de vista dos recursos naturais, que é o que interessa para
a discussão da sustentabilidade... Sustentabilidade, enfim, quer dizer manutenção do
sistema de suporte da vida; significa comportamento em obediência às leis da
natureza (Cavalcanti, 1995, p.165). (CAVALCANTI, 2012, p. 44)

Pensando os desdobramentos das reflexões da EcoEco para o cenário de Igarapé


Grande não é necessário um poder de observação muito apurado para dar-se conta de como
esse coletivo entendido como ―tradicional‖ pela ―sociedade moderna‖ apresenta um
desprezível gradiente de entropia, quando comparado à sociedade moderna, movida pelo
consumo desenfreado e total descartabilidade de seus não humanos e até mesmo de seus
humanos.
Vale observar que esse baixo grau de entropia vem aumentando no decorrer do tempo,
em virtude do contato com a sociedade hegemônica. Enquanto antes os não humanos ativados
eram, em sua maioria, de baixo grau entrópico, como animais de carga, canoas a remo, aves
de pequeno porte localmente criadas para alimentação doméstica, produtos agroextrativistas
etc., hoje tem-se a compra de alimentos como vegetais, frutas, verduras, carnes de gado e de
aves em supermercados do Curuçambá, uso de instrumentos mecanizados, energia elétrica
etc. Todas essas atividades apresentam um alto grau de entropia na medida em que não são
localmente feitas, necessitando de altos índices de energia para produção em escala e
respectivo transporte, majorando o grau de entropia e calor dissipado necessário para sua
produção e distribuição.
Obviamente que não se está aqui advogando a obrigatoriedade desses coletivos
permanecerem como estão agora, impedindo mudanças internas para que os mesmos não
sejam ―assimilados‖ pela modernidade. Minha proposta consiste em refletir sobre a

295
Usa como critérios: consumo de energia, características econômicas, de demografia, cultura e cosmovisão de
ambos os grupos, consultando etnografias, historiografias, estudos econômicos, etc.
306

necessidade de a sociedade hegemônica, caracterizada pelo consumo exacerbado e completa


alienação do ambiente que a cerca, esteja aberta a se auto discutir, repensar e aprender com
esses coletivos ―tradicionais‖, caracterizados por humanos com forte relação com os recursos
naturais que os cercam (sendo que essa relação não apresenta muitas mediações), não sendo
alienados dos meios de produção de seu meio, tampouco orientados pelo consumismo
imposto pela lógica do mercado financeiro.
Descrevendo de outra forma aquilo que Georgescu-Roegen previu em meados do
século passado, está seu contemporâneo, Garret Hardin (1968), anunciando em seu seminal
―The tragedy of the commons‖, a tragédia do uso dos recursos comuns. Os recursos
entendidos como comuns, ou de livre acesso, seriam aqueles que todos podem desfrutar,
como por exemplo, a pesca em um rio. Esse recurso, na medida em que é aberto, tende a ser
sobre explorado, já que todos o exploram, mas ninguém cuida para que se perpetue. A saída
que Hardin apresenta seria a conversão da propriedade comum em privada, ou que normas
governamentais a usos e usuários sejam instituídas. Com isso, Hardin desconsiderava a
possibilidade da gestão dos bens comuns feita pelos próprios usuários. Vale observar, aqui, a
principal crítica feita a Hardin, que desconsiderava a gestão dos recursos naturais pelo regime
comunal.
Esta tragédia paira sobre nós sob formas potencializadas pela modernidade e seu
conhecimento científico, agravando a situação. Para a sua solução esta sociedade lançou mão
de seus cientistas, tanto para pensar um modelo ideológico e de postura para esse problema
possível de limitação futura dos recursos, resultando na explicação da organização dos
Estados modernos ou como Socialistas, nos quais o Estado faria a gestão dos comuns, ou
como Capitalistas, onde a livre iniciativa do mercado faria a gestão desses bens. Esses
cientistas também lançaram mão do conhecimento como instrumento para potencializar a
produção e consumo dos bens comuns, racionalizando seu uso, multiplicando sua produção.
Em artigo publicado 22 anos depois de Hardin (1968), Feeny et al (1990) observa
como essas duas saídas eram limitadas, demonstrando o relativo sucesso que grupos sociais
diferenciados obtiveram na gestão dos bens de uso comum aos quais tinham acesso. Com
efeito, contradizia-se o argumento de Hardin que reduzia a saída da tragédia dos comuns às
duas possibilidades acima citadas: a propriedade privada ou a regulação estatal.
Em outras palavras, a cogestão dos recursos por moradores locais é uma saída viável
(certamente, coviável) e é a que mais evidencia êxito, na medida em que esses recursos são
preservados, assim como são repartidos, pois os humanos locais figuram como cogestores.
Com efeito, Feeny et al (1990) concluem que para que a propriedade comum dê certo deve-se
307

manejar os recursos comuns concedendo independência ao grupo de usuários para que, com
isso, eles possam excluir outros usuários em potencial e também possam regularizar uso e
usuários, minimizando problemas associados à subtração. Claramente o coletivo de Igarapé
Grande, no passado, não precisava se importar com esse ator não humano chamado de
tragédia dos comuns, menos ainda com esse outro, a modernidade.
Diante desse novo cenário, composto pela antropologia de VDC, pela Ecologia
Política de Latour e pela EcoEco, trago alguns conceitos para exposição, somente a título de
citação, visto os limites físicos e temporais de uma tese de doutorado. Assim o faço com o
intuito de demonstrar como os procedimentos, categorias, conceitos e posturas do
conhecimento científico tradicional vem se exaurindo frente à diversidade de humanos e não
humanos que estão compondo o mundo comum do presente.
Penso especificamente em alguns conceitos que vêm ganhando força nos últimos anos
dentro das disciplinas que estudam a relação entre sociedade e ambiente. Entre esses
conceitos estão a ideia de bem viver/boa vida/buen vivir/bien vivir (GUDYNAS, ACOSTA,
2011; BARZOTTO, 2010; GORDON, 2006, 2014), que se desdobrará no segundo, terceiro e
quarto, a saber, o conceito de desejo de vida para alcançar a felicidade. Como último
conceito, apresento a ideia de coviabilidade296. Vale dizer que esses conceitos não fazem
parte da tradição científica racional ou empirista, sempre permanecendo no plano da
investigação de fatos e não na construção de valores, território da ética, da moral e, em alguns
momentos, da filosofia, somente sendo ativados dentro da Ciência nos últimos anos,
considerando sua crise de incapacidade de explicação.
Com efeito, alguns desses conceitos, quando pensados dentro da sociedade moderna,
estão atrelados à ideia de consumo. Somente se vive bem, se é feliz, consumindo, logo, o ato
do consumo não é um meio, mas um fim em si mesmo. Por outro lado, nas sociedades
―tradicionais‖, o consumo aparece apenas como um meio para se alcançar o fim do bem viver
e da felicidade. O meu desejo de vida não está diretamente ligado ao consumo, perpassando-o
apenas instrumentalmente. Não se quer ter um carro do ano, um apartamento próprio e um
bom emprego. Se quer a garantia e segurança do acesso e uso à terra e aos outros não
humanos advindos da mesma.

296
Os conceitos desejo de vida, felicidade e coviabilidade estão em debate a partir de alguns espaços com os
quais tenho contato. O conceito desejo de vida vem sendo discutido no interior do grupo de pesquisa que integro
(Echomapa. Segue endereço eletrônico: https://echomapa.wordpress.com/). Felicidade veio das interlocuções
com o professor Clóvis Cavalcanti e alguns de seus textos (especialmente 2012 e s.d.). Coviabilidade aparece
como tema de publicação organizado por Barriere et al (2017).
308

A ideia de bem viver/boa vida está atrelada não ao consumo ou à ampla propriedade
de bens materiais, como dita a sociedade moderna de consumo, que atrela seu desejo de vida e
sua felicidade ao ato do consumir bens de circulação do mercado global, aproximando-se
mais à ideia de uma vida permeada por momentos felizes. Essa postura em relação à vida traz
a tona a ideia da coviabilidade.
A coviabilidade está ligada à perspectiva de se ter consciência de que nossa existência
deve ser coviável com a existência dos outros humanos (não modernos) e não humanos que
habitam nosso planeta. Isso porque, mesmo utilizando os padrões tradicionais de produção de
conhecimento, já vem-se observando como a sociedade moderna é insustentável. Muitos são
os documentos que atravessam essa perspectiva: Nosso Futuro Comum, o Relatório do Painel
Intergovernamental de Mudanças Climáticas - IPCC, Relatórios da Organização das Nações
Unidas para Agricultura e Alimentação - FAO, dentre tantos outros.
Como visto no transcorrer da tese, as saídas instrumentais não lograram o resultado
esperado para se pensar a relação humanos e não humanos em cenários híbridos, o que, de
fato, é a regra empírica. Estamos em um momento de mudança para novos conceitos,
extracientíficos, ainda que muitas vezes não nos damos conta dessa imposição. Com efeito,
ficam os próximos capítulos responsáveis por trazer a tona de forma detalhada o cenário
socioambiental, ou o cenário de humanos e não humanos de Igarapé de Grande, de modo a
elucidar as contradições que a modernidade e a Teoria Antropológica apresentam ao serem
perspectivadas com esse cenário.
309

CAPÍTULO VI – APRESENTANDO IGARAPÉ GRANDE: ESTRUTURA FÍSICA,


ESPACIAL E BREVE GENEALOGIA

Este capítulo descreve Igarapé Grande e seus habitantes, destacando suas práticas
cotidianas, histórias de vida, relações com não humanos e transformações ao longo do tempo.
Inicialmente descrevo a história do lugar, desde a chegada de seu ―fundador‖, ―seu‖
Domiciano de Farias e dona Maria dos Anjos de Farias, até os habitantes de hoje,
evidenciando as transformações que ocorreram entre os atores humanos e não humanos. Com
efeito, descrevo o cenário socioambiental que foi vivenciado em Igarapé Grande no passado,
deixando para o capítulo seguinte o cenário socioambiental vivenciado no presente.
Igarapé Grande é apresentada, portanto, em seus anos passados, focando
especialmente as atividade econômicas e as relações com os não humanos, em especial aquilo
que a sociedade maior entende por ―meio ambiente‖297 ou recursos naturais. Ainda que
destacando algumas datas do ponto de vista da cronologia ocidental298, este trabalho não toma
como prioridade essa marcação, na medida em que a mesma não tem grande influência sobre
o tempo social de Igarapé Grande, diferentemente da vida urbana e citadina, que atrela
rigorosamente seu tempo social à cronologia dos anos.
A escrita do capítulo se dá, em alguns momentos, de maneira literária, contando uma
história, em outros de maneira informativa, trazendo relatos locais. A coleta de dados se deu
por meio de entrevistas com os moradores de Igarapé Grande e Cabeceira. Faço aqui a
observação, para fins de registro, que a região insular é marcada por uma intensa circulação
de pessoas entra as várias comunidades das ilhas e sítios 299 ribeirinhos do continente,
marcadamente dos bairros do Curuçambá e do Maguari, distrito de Icoaraci, ademais de
Benfica, Murinim, Marituba, ilhas de Mosqueiro, de São Pedro e do Outeiro300.

297
Um bom exemplo deste conceito seria aquele formulado pela Lei no 6938/1982 (Política Nacional do Meio ambiente):
―meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite,
abriga e rege a vida em todas as suas formas‖.
298
Refiro-me ao calendário juliano que funciona como unidade de medida do tempo há dois milênios e que exerce alguma
influência sobre a comunidade estudada, como será visto mais adiante, mas não é uma unidade de medida determinante junto
à vida social da comunidade.
299
Sítio e terreno era como eram chamados as propriedades de terra na época. Atualmente, a maior parte dessas propriedades
deram lugar à comunidades, povoadas pelos descendentes do proprietário original da terra. Como exemplos citam-se a
própria comunidade de Igarapé Grande, Maritubinha, Bela Vista etc.
300
Tenho a intenção de, no futuro, fazer a reconstituição histórica desse aglomerado de pessoas, desde o início do século
passado aos dias de hoje. Com essa pesquisa pretendo fazer a reconstituição histórica de cada comunidade da atualidade, na
medida em que estas são frutos de um pai fundador, assim como o é a comunidade de Igarapé Grande. Assim, entrevistarei
velhos e velhas que narrarão, da mesma maneira que os velhos e velhas de Igarapé Grande, como foi sua vida e como era a
vida de seus pais e avós. Procurarei também os descendentes dessas pessoas que não moram mais nas ilhas, ou seja, primos,
primas, irmão e irmãs dos velhos e velhas das ilhas. Esse levantamento já foi por mim feito na comunidade de Igarapé
Grande e replicarei nas outras ilhas. Assim, o tempo em Igarapé Grande não é entendido como na sociedade moderna, de
forma linear, andando para frente e engendrando evolução (LATOUR, 2013a; 2004 a).
310

Antes de adentrar no histórico de Igarapé Grande, teço algumas considerações para


melhor elucidar as ferramentas analíticas que serão utilizadas no decorrer do capítulo, de
modo a deixar o leitor familiarizado com as mesmas.
Na leitura deste capítulo, será possível visualizar a diversidade de atividades que os
moradores e as moradoras de Igarapé Grande desenvolveram e ainda podem desenvolver, na
sua relação com o ambiente que os cerca. Cada atividade desenvolvida apresenta
peculiaridades muito específicas, como técnicas e léxicos que cabem somente a cada uma
delas. A pesca, por exemplo, não pode ser generalizada, pois a safra, as técnicas de captura, a
região em que cada peixe se encontra varia de acordo com a espécie, assim como varia
segundo a experiência de vida do próprio pescador. Cada pescador será ele próprio seu
manual de descobertas, construído a partir de suas experiências de vida, ensinamentos
recebidos, hipóteses e problemas por ele mesmo criados e solucionados na relação com o
ambiente.
Com efeito, para analisar esta diversidade de atividades de relação com o ambiente,
reputa-se a esses atores e atrizes a condição de cientistas do concreto, como pensado por Levi-
Strauss (1989). Assim, cada pescador será um cientista do concreto autônomo, dono do seu
próprio conhecimento, arduamente construído, testado, comprovado e eternamente
reconstruído e aprimorado, segundo as novas experiências e ensinamentos recebidos ao longo
do tempo (LEVI-STRAUSS, 1989). Nesse processo de construção do seu próprio
conhecimento, cada ator humano utilizará, ainda, uma poderosa ferramenta, que é a
imaginação, para poder imaginar as explicações que lhe são dadas pelo seu meio social sobre
o ambiente que os rodeia, assim como imaginar novas explicações para esse ambiente (SÁ,
2000).
Nesse sentido, esses cientistas particularizam-se não somente a partir da atividade da
pesca, mas a partir de todas as outras atividades de relação com não humanos. Na pesca do
siri, na extração e catação de frutas, na extração de lenha e na fabricação de carvão, cada
atividade com seu tempo, sua técnica e ensinamentos que figuram não como regras gerais que
obrigatoriamente devem ser seguidas, mas como recomendações gerais a serem testadas e
aprimoradas pelo cientista do concreto.
Assim, cada cientista do concreto tem sua técnica particular, específica, construída ao
longo dos anos a partir dos ensinamentos recebidos e das experiências por ele realizadas, não
só testando esses ensinamentos, mas aprimorando técnicas e conhecimento, assim como
criando novas técnicas e conhecimentos.
311

Consequentemente, não existem regras gerais para a relação com não humanos, como
na nossa sociedade em que essas regras são ditadas em parte pelo código civil, pela legislação
ambiental, pela ciência e reproduzidas pelas instituições de ensino e a grande mídia, mas
recomendações gerais, que serão testadas e aprimoradas de maneira particularizada a partir da
imaginação (SÁ, 2000) e prática de cada cientista do concreto que a receba (LEVIS-
STRAUSS, 1989).
Assim, eram os próprios seres humanos de Igarapé Grande que construíam seu mundo
comum (LATOUR, 2004 a), composto por humanos e não humanos que, em regra, foram por
eles mesmos pensados, criados, edificados, tanto no plano material (como roças, moradias,
utensílios de pesca, alguns utensílios de uso doméstico, alimentos em geral advindos dos
recursos naturais locais etc.) como no plano imaterial (lendas explicativas à realidade vivida,
códigos de conduta a serem seguidos, explicações sobre o ambiente que os cerca). Este
arsenal de metaconceitos que definiam o mundo comum, vale reprisar, era, em regra, por eles
mesmos criados, independentes das explicações que a razão ocidental criou para o nosso
mundo comum, justamente por isso, podendo serem entendidos, estes humanos, como não
civilizados ou, como prefiro nomeá-los, selvagens (LEVI-STRAUSS, 1989; VIVEIROS DE
CASTRO, 2015).
Em outras palavras, nossos ilhéus são selvagens não por não apresentarem
características racionais ou de uma civilização humana, mas sim porque não foram
domesticados pela razão ocidental, permitindo-se minimamente compor seu próprio mundo
comum, diferentemente dos humanos da sociedade moderna que apenas consomem os não
humanos de seu mundo comum, não sendo eles mesmos os construtores desse mundo. Como
já mencionado na introdução desta tese, verifique, você, leitor, no ambiente em que você vive,
quais não humanos (sejam materiais ou imateriais) foram por você criados?
Com os parágrafos acima, penso que foi possível jogar luz sobre as ideias de humanos
e não humanos, mundo comum (LATOUR, 2004 a), imaginação (SÁ, 2000) ciência do
concreto (LEVI-STRAUSS, 1989) e a dicotomia entre tradição e modernidade (a tradição
compõe seu mundo comum, a modernidade não) (LATOUR, 2004 a; 2013a) que são
utilizados para melhor apresentar o passar do tempo em Igarapé Grande, que se deu, de 1900
até os dias atuais. Segue essa narrativa.
312

6.1 História e parentesco de Igarapé Grande

A história deste coletivo tem início antes mesmo de sua constituição física e em um
ambiente talvez inusitado para alguns: uma festa em uma das ilhas do entorno da cidade de
Belém do Pará. O ano não foi precisado, algo por volta de 1900. O jovem agricultor e
seringueiro Domiciano de Farias havia sido chamado para sair de sua casa na ilha de
Mosqueiro301 e ir tocar trombone em uma festa que iria ocorrer na ilha de São Pedro,
colonizada por uma família de portugueses que, na figura de seus descendentes, ainda a habita
na atualidade.
As festas desse período duravam em torno de dois a três dias eram fartas. Imagine o
cenário: um ambiente paradisíaco, cercado por matas e rios, a vertiginosa taxa de violência
ainda não existia, muitos amigos e familiares estariam presentes, comida para mais de um dia
de festa, muita música (ao vivo, pois na época a propriedade de um aparelho de rádio era
restrita a poucos círculos sociais), e a oportunidade de fazer algo diferente da vida do
agricultor amazônico da época.
Em outras palavras, Domiciano iria dar uma pausa nas suas atividades cotidianas que,
segundo o relato dos moradores da região das ilhas, era o extrativismo, manutenção de um
pequeno roçado com algumas tarefas de, entre outras plantas, mandioca e macaxeira, criação
de algumas cabeças de gado e aves de pequeno porte, ademais da seringa, mas o mais
importante é que aquela cearense baixinha e bonitinha (linda, na visão de alguns), moradora
da ilha de São Pedro na condição de empregada na lavoura da cana, de nome Maria Cristina
dos Anjos, estaria presente na festa.
Foi assim que Domiciano se engraçou para o lado de Maria Cristina dos Anjos e, com
o passar do tempo, a relação avançou para um namoro e posterior casamento. O jovem
seringueiro, antes de casar, já cuidou da futura vida em dupla e providenciou um local para
morarem, que seria justamente onde hoje é a comunidade. Na época, quem lá morava era a
dona Bibiana, que tinha o desejo de se mudar do local. Sabendo disso e na condição de um
futuro pai de família, Domiciano foi até ela e negociou o terreno. Nesse momento nascia a
comunidade de Igarapé Grande.
Por volta de 1910, Domiciano e Maria Cristina mudam-se para o local onde hoje fica a
comunidade de Igarapé Grande, dando-lhe o nome de sítio Paraíso. Na época existiam três
sítios no Igarapé Grande, ademais do sítio Paraíso. Logo ao lado do sítio Paraíso, em direção

301
Distrito do município de Belém.
313

à cabeceira do Igarapé Grande, ficava o sítio Campo Alegre do velho André302, mesmo local
de morada de sua filha Orfina e Virgílio, um filho de criação. Ao lado do sítio do velho André
ficava o terreno da família da Mindoca e Tofa, duas irmãs que, posteriormente virariam
cunhadas de alguns dos Farias, pois Boaventura e José Farias (filhos de Domiciano e Maria)
se casariam, respectivamente, um com uma irmã das mesmas e outro com uma filha. Este era
o cenário fundiário de uma margem do igarapé, atravessando-o, localizava-se o terreno da
família Cunha.
Logo no primeiro ano chega o primeiro rebento, uma menina que ganhou o nome de
Maria dos Anjos de Farias. Com o passar dos anos a família vai aumentando e novos filhos e
filhas vão chegando, resultando a prole em 5 filhas e 5 filhos. As filhas eram a já citada
Maria, Maria Cristina, Tomázia, Ingraça e a caçula era a Arcângela (também conhecida como
―Candinha‖). Os filhos eram Manuel (também conhecido como ―Duca‖), José, Simão,
Boaventura e, o caçulo, Marcelino303, todos com o sobrenome dos Anjos de Farias.
Domiciano registrou todos no cartório de Benfica, inclusive também foi o responsável pelo
registro de vários de seus netos e netas, sempre em Benfica. Segue abaixo a primeira geração
de descendentes do casal dos Anjos de Farias.

Figura 6: Filhos e filhas do casal dos Anjos Farias

Domiciano Maria
de Cristina
Farias dos Anjos

1919 - 1989
70

Manuel José Simão Boaventura Marcelino Maria Tomásia Maria Ingraça Arcangela
Farias Farias Farias dos Anjos Farias Farias Farias Cristina Farias Farias
Farias Farias

Fonte: Trabalho de campo (2014-2016)

As crianças ajudavam o pai e a mãe. Estes agora já assumiram o título de ―seu‖


Domiciano e dona Maria, ambos arrimos de uma extensa família. A principal atividade
desenvolvida consistia no sangramento das diversas seringueiras da ilha, produzindo e

302
Não me foi relatado nada de sua esposa ou de seu sobrenome.
303
Os relatos não conseguiram precisar datas, mas a ordem do mais velho para o mais novo é a que foi
apresentada acima, separados pelo sexo, ou seja, da mulher mais velha à mais nova e do homem mais velho ao
mais novo. Não foi possível, pelos relatos, identificar a cronologia exata entre os filhos e filhas misturados, sem
a distinção do sexo.
314

vendendo látex. ―Seu‖ Domiciano não trabalhava sozinho nisso, alguns de seus poucos
vizinhos que habitavam as ilhas de Belém (na época ainda não era município de
Ananindeua)304 também cortavam seringa, sendo essa a principal atividade na Amazônia rural
da época, entretanto, como todo bom seringueiro, eles não se limitavam somente à produção
do látex, desenvolvendo diversas atividades complementares ligadas ao mundo rural da época,
marcadamente artesanal e local305.
Domiciano e Maria Cristina mantinham um bom roçado de mandioca consorciado
com milho, arroz, macaxeira, maxixe, melancia, jerimum, quiabo, banana, gergelim, feijão
(da colônia e de corda) entre outros, sendo que o milho e a casca da mandioca e da macaxeira
garantiam a alimentação dos animais que a família criava. Nesse caso, a mandioca não
garantia a alimentação da família na condição de um produto primário, pois eram seus
derivados que importavam. Entre estes estavam o tucupi, a goma de tapioca, o beiju, o beiju
chica, a farinha de tapioca e em especial as farinhas seca e d‘água306.
Assim, o casal Farias também mantinha a criação de algumas cabeças de gado, porcos
e aves de pequeno porte, alimentados pelo milho e pelas cascas da mandioca e da macaxeira,
derivados todos da roça da família. ―Seu‖ Domiciano, com a ajuda dos filhos, ainda produzia
uma série de derivados do leite, como queijo, manteiga, soro, coalhada e, a despeito da
possibilidade de seus animais impedirem a plantação de uma horta, uma grande e bonita horta

304
A partir dos relatos, é possível estimar a existência de cerca de trinta famílias na região das ilhas de
Ananindeua (as suas atuais nove ilhas, como descrito no capítulo 1). Soma-se ainda alguns agricultores e
ribeirinhos da ilha de Mosqueiro e de São Pedro, ademais da localidade de Murinim (jurisdição de Benfica), algo
em torno de umas cinquenta famílias, somando-as com as ilhas de Ananindeua. Faço essa estimativa com base
nas conversas e entrevistas que tive em campo, pois nas mesmas me foi narrado a existência de sítios como os de
Roldão, Mari mari, João Pilatos, Alcântara, Bela Vista, Linda Vista, Santa Rosa (ou Livramento), Guaribas, São
Pedro, o próprio Igarapé Grande (ou Paraíso) ademais de sítios em que não aparecem mais o nome na memória
dessas pessoas, como os da família Cunha ou os da ilha de Sassunema.
305
Assim, o látex formava uma extensa rede de humanos e não humanos, indo dos interiores da Amazônia,
passando pelos seus principais mercados citadinos, viajando para indústrias europeias e americanas de
processamento do látex, até chegar ao consumidor final, por meio de brinquedos de borracha, pneus e outros
produtos contendo o látex como matéria prima. Entende-se que a seringa seria um ator que liga esta rede/coletivo
local de seringueiros e suas famílias, à rede/coletivo maior que é a sociedade de mercado. O restante dos
produtos locais (cana-de-açúcar, café, chocolate, mandioca, entre outros) são atores/coisas/não humanos que
permanecem em um coletivo/rede local, pouco extenso (LATOUR, 2004 a, b; 2012; 2013a). Para um melhor
detalhamento do processamento do látex, de suas redes de comercialização e de seu histórico na Amazônia,
consultar Aramburu (1994), Santos (1980) e Weinstein (1993).
306
A farinha pode ser dividia em dois tipos, a saber, seca e d‘água. A diferença no processo de fabricação se dá
em virtude de a farinha d‘água ser deixada de molho por três a quatro dias, enquanto que a farinha seca não sofre
esse processo. O tucupi é um caldo amarelado que sai da mandioca em um dos momentos em que se está
preparando a farinha seca. Esse caldo é colocado para descansar em um recipiente. Com o tempo, sedimenta-se
ao fundo do recipiente a goma de tapioca. O líquido acima é o tucupi, que ainda deve ser fervido antes de ser
consumido. Beiju: da maça que é feita a farinha, pode-se, em cozinha-la imprensada, formando uma espécie de
bolacha de farinha de mandioca. Beiju chica: segue o mesmo padrão do beiju, mas é feito de maneira mais
refinada, resultando em uma fina massa que deve ser cozida com muito cuidado, pois ela queima facilmente.
315

era mantida, com todo tipo de verdura e legume, localizada onde hoje fica a escola que
recebeu seu nome.
As roças eram feitas por meio de mutirões307 que envolviam os diversos moradores
das ilhas, inclusive os filhos e netos do ―seu‖ Domiciano. Primeiramente era escolhido o local
onde seria feita a roça, ainda com mato. Esse mato era retirado por meio de queimada, broca e
coivara do terreno308, para então efetuar o plantio. Normalmente plantava-se macaxeira,
mandioca, feijão e arroz consorciado com jerimum, melancia e maxixe. Dependendo do que
era cultivado, colhia-se com alguns meses de plantio. Segue quadro que expressa o tempo de
colheita de cada espécie vegetal plantada, segundo as informações coletadas na ilha.

Quadro 2: Espécies vegetais cultivadas em Igarapé Grande


Espécie Tempo para Tempo de duração
colheita da colheita
Mandioca 12 meses 3 meses
Macaxeira 6 meses 3 meses
Feijão 3 meses 2 meses
Arroz 3 meses 2 meses
Jerimum 3 meses 2 meses
Melancia 3 meses 2 meses
Maxixe 2 meses 2 meses
Fonte: Trabalho de campo (2015)

Cada família possuía uma média de duas roças, de modo que a colheita de algum
gênero alimentício deveria ser feita quase que mensalmente, sendo que esse produto teria uma
duração média de até dois meses. No caso da mandioca e da macaxeira, essa duração poderia
se estender para até três meses. Com efeito, mensalmente uma família das redondezas teria ao

307
Os mutirões eram eventos que consistiam na reunião de pessoas com um objetivo laboral. Às vezes esse
objetivo era comunitário, como abrir trilhas e passagens no mato para que todos pudessem usar, às vezes eram de
interesse de uma família específica, quando a mesma precisava de ajuda na preparação de um terreno para o
plantio. Nesse caso, essa família chamava vizinhos e familiares mais distantes para fazer o mutirão, mas
deveriam dar em troca o almoço, assim como ficariam obrigadas a prestar ajuda em mutirões futuros das famílias
que a ajudaram. Para mais detalhes, consultar Ravena-Cañete (2005) e Candido (2001).
308
A broca é a primeira etapa do processo de preparação do terreno a ser cultivado. Consiste no corte dos galhos
entre as árvores de forma a permitir que, após a queimada (atear fogo no espaço de terra escolhido), segunda
etapa a ser executada, seja possível adentrar o terreno para se fazer o plantio. Digno de nota é o fato de que os
resíduos dessa queimada funcionam como insumo para o plantio da (s) espécie (s) a ser cultivada. Se a queimada
não for suficientemente exitoso de forma a permitir a entrada no terreno para a limpeza do mesmo, é necessária
uma nova etapa conhecida localmente como coivara. Esta consiste na limpeza dos troncos e galhos maiores que
impedem transitar no terreno a ser feito o plantio. Para mais detalhes, consultar Ravena-Cañete (2005).
316

menos dois tipos de gêneros alimentícios para retirar de sua roça e complementar sua
alimentação.
Outro procedimento de relação de trabalho local era a empeleita ou empreitada, que se
refere a algum tipo de serviço que será realizado. Esta relação se caracteriza por ter um
objetivo bem determinado a se cumprir, por exemplo, roçar um terreno, fazer a colheita de
uma determinada espécime vegetal em um determinado terreno, reformar algum
compartimento da residência de algum conhecido etc. Atualmente, a ―empeleita‖ e os
mutirões caíram em desuso, sendo substituídos pela prestação de serviços pautados em diárias
ou empreitadas, sempre tendo o dinheiro como mediador, não sendo mais as relações de
compadrio e parentesco tão influentes, ainda que sirvam como norteadores de escolha para
quem fará o serviço, elas não mediam mais o serviço de forma exclusiva como outrora.
Outras atividades agrícolas eram desenvolvidas no sítio Paraíso309, como a cultura do
cacau, da cana-de-açúcar e do café, ademais de algumas árvores frutíferas como o jenipapo, o
bacuri, anajá, buriti (ou miriti), tucumã, açaí, cupuaçu, pequiá, entre outros, todos servindo
para o consumo familiar e, em alguns casos, a venda para famílias de Belém e suas freguesias,
como o Maguari, Benfica, Largo da Pólvora, Pinheiro e as feiras próximas do Igarapé das
Almas310.
A cana-de-açúcar, o café e o cacau eram deliberadamente cultivados, formando
cafezais e campos de cultivo de cana-de-açúcar e cacau. Os outros frutos acima citados podem
ser classificados em uma zona de transição entre cultivo e extrativismo, na medida em que
nem sempre eram deliberadamente plantados, mas invariavelmente eram objetos de manejo e
extração.
Alguns dos cultivos citados acima serviam de produto primário para a confecção de
outros produtos. Cita-se o próprio café, do qual se extraia o fruto que, ao ser pilado em estado
seco, figurava como insumo para sua homônima, a tradicional bebida quente tomada nas
tardes chuvosas da Amazônia oriental. Outro fruto utilizado era o cacau, que também sofria o
mesmo processo do café (deixava o fruto secar, triturando-o depois), dando origem também a
uma bebida quente, o chocolate. Este poderia ser feito ou do pó do cacau, ou de uma barra
condensada desse pó que era ralada, deixando-os em água quente. O cultivo da cana-de-

309
Nome dado a sítio de propriedade do casal Farias.
310
Essas denominações não são as que correspondem à atualidade. Optei por aqui citá-las porque foram
utilizadas pelos meus interlocutores e interlocutoras. Nos dias de hoje, esses nomes seriam escritos,
respectivamente, da seguinte maneira: bairro do Maguari (município de Ananindeua), distrito de Benfica
(município de Benevides), praça da República, distrito de Icoaraci, e as feiras das proximidades da Doca de
Souza Franco (estes três últimos, localizados no município de Belém).
317

açúcar permitia a produção da garapa e de subprodutos, que, por sua vez, possibilitavam o
adoçamento do café e do chocolate, entre outras bebidas e alimentos da época.
O jenipapo também servia como insumo de outros produtos, especialmente do licor. O
―seu‖ Domiciano e seus filhos juntavam os jenipapos caídos dentre as diversas árvores
distribuídas em seu terreno, espremiam-no no tipiti, extraindo e ―ferravam‖311 o suco,
transformando-o em licor para, posteriormente, vendê-lo em armazéns locais, normalmente
propriedades de portugueses. No caso específico do ―seu‖ Domiciano, sua preferência eram
os portugueses do Roldão e do João Pilatos, localidades da região das ilhas. Em alguns casos
isolados, o ―seu‖ Domiciano se arriscava na venda ou no atendimento de alguma encomenda
vinda de Belém, Maguari, Benfica ou Pinheiro (atualmente Icoaraci).
As outras frutas apresentavam três funções: alimentar criações (inajá, especialmente);
venda da mesma in natura ou de sua polpa (cupuaçu, bacuri e açaí) em mercados regionais;
consumo local, podendo ser in natura ou processada de alguma forma (vinho do açaí ou do
miriti, bolinhos de inajá, óleo de tucumã, entre outros exemplos).
A extração do látex se dava por meio das seringueiras nativas. O ―seu‖ Domiciano
adentrava a mata nas trilhas localmente denominadas de ruas de cortar seringa, bem cedo, por
volta das cinco horas da manhã. Pegavam a faca e o machadinho de cortar seringa e saíam
para os caminhos de seringa, aí cortavam e deixavam a cuia coletando o leite, quando era oito
horas, em um balde grande. Chegando em casa faziam uma coivara312 para defumar o leite,
transformando-o em borracha, tirava a borracha dia de sexta, lavava, empalhava e ia vender,
variando de 40 a 60 kg. O ―seu‖ Domiciano aproveitava a viagem e vendia também as frutas
que pegava na beirada do rio, a saber: andiroba, pacuuba e paracaxi.
O ―seu‖ Domiciano também lançava mão da pesca como uma atividade que
complementaria a dieta da família. Na época, o peixe era farto, sendo desnecessário o uso de
petrechos de pesca de captura intensa, como redes e malhadeiras em geral, bastando o uso da
linha de mão. Muitos eram os bichos que se poderia retirar do rio, sendo a diversidade uma
característica marcante. Esta não se limitava às espécies de peixe. Assim, os habitantes da
região das ilhas tinham à sua disposição, ademais das inúmeras espécies de peixe, a
possibilidade da pesca do camarão e do siri, a catação do caramujo (e sua deliciosa torta) e a
captura de algumas espécies de jacarés e tartarugas (e seus apreciados ovos), arraias e, para
alguns poucos apreciadores, cobras.

311
Ato de inserir a substância do ferro no suco de alguma fruta, por meio da adição de um prego.
312
Como já explicado, esta configura-se no ato de cortar madeira grande para incendiá-la.
318

Ademais da abundância, o tamanho dos animais era marcante. Os netos e as netas do


casal dos Anjos de Farias narram histórias em que a avó cozinhava peixes de quase 100kg.
Peixes como a pescada branca (cynoscion spp), com um tamanho de até 50cm, que hoje são
consideradas grandes, no tempo de Domiciano eram devolvidas para a maré, pois eram
consideradas pequenas, dando lugar a peixes de mais de 50cm. Obviamente existia a pesca de
peixes de pequeno porte, mas seriam aqueles biologicamente pequenos, ou seja, eles não
cresceriam mais313.
O ―seu‖ Domiciano era zeloso do igarapé que futuramente daria o nome à comunidade
(Igarapé Grande), proibindo o uso de tarrafa314, doutrinando filhos, filhas, netos e netas sobre
o uso de tal petrecho de pesca. Ele ensinava que o mesmo espantava os peixes e, com o passar
dos anos, o igarapé acabaria sem peixes. Assim, o ―seu‖ Domiciano permitia somente o uso
do anzol nas proximidades de seu sítio.
Outro ensinamento do ―seu‖ Domiciano era que peixes juvenis ou ovados devem ser
soltos, pois, o primeiro deve terminar de crescer para servir de boia 315 ao pescador e sua
família, aumentando consideravelmente o tamanho do peixe e a quantidade de pessoas a ser
por ele alimentada, enquanto que o segundo deve terminar de reproduzir, aumentando o
número de peixes à disponibilidade do pescador. O rio também oferecia outros animais além
do peixe, como siris e, em suas beiradas, turus e caramujos a serem catados.
A caça também era uma importante fonte de alimentação. Muitos eram os animais que
habitavam as matas das ilhas de Ananindeua. Entre eles estavam tamanduás, bichos preguiças,
macacos variados, jabutis, mucuras, cutias, suiás, capivaras, pacas, veados, passarinhos, aves
diversas e até mesmo alguns felinos de grande porte como jaguatiricas e onças. Os animais
eram facilmente vistos, chegando a procurar comidinha316 nas proximidades da residência do
―seu‖ Domiciano, especialmente em um grande bacurizeiro da localidade.
O ―seu‖ Domiciano também exercia outros ofícios, como o de músico, o de
esquartejar e preparar a carne de animais para cozinhar, o de vender o leite produzido por suas

313
Essa situação de abundância de recursos naturais me foi narrada dos mais velhos até a faixa de idade de
cinquenta anos. As pessoas de quarenta e nove anos até a casa dos trinta e cinco anos vivenciaram essa situação
de abundância somente em sua infância ou adolescência. Em outras palavras, a ―tragédia dos comuns‖
(HARDIN, 1968) tem início no fim da década de 1980, pois as pessoas com trinta e cinco anos hoje viveram sua
infância na década de 1980, mesma década que o escasseamento de recursos naturais começa a intensificar-se.
314
Uma espécie de rede que é lançada no rio. Segundo relatos coletados em campo, quando a rede cai na água,
produz-se muito barulho, espantando os peixes do local.
315
Termo nativo que se refere a alimento.
316
Termo utilizado pelos caçadores para se referirem ao alimento de suas caças. O ato da caça passa pela
identificação de locais que se encontrem ―comidinhas‖ em abundância, na medida em que as caças viriam até o
local para ter acesso às mesmas. Entre esses locais pode-se citar a faixa de terra que fica abaixo de árvores
frutíferas como anajazeiros, bacurizeiros, jambeiros, entre outras.
319

vacas, ademais de ser agente de polícia voluntário. Esse último posto consistia na atividade de
ser responsável por registrar acontecimentos que viessem a alterar a ordem local, sendo que
era chamado em festas para exercer esse ofício, ademais de dirimir alguns conflitos entre
moradores da região. Existiam outros agentes de polícia, responsáveis por outras ilhas, como
é o caso do Velho Alfredo no João Pilatos; em Sassunema era o velho Martinho Bento, entre
outros. No caso de algum tipo de detenção, a pessoa era conduzida para a polícia de Benfica.
Essa era a vida da época, permeada por fartura de recursos naturais, festas de santo,
roças, caças e pescarias. Na década de 1910 o ciclo da borracha entra em declínio, logo sua
rede quase que mundial de humanos e não humanos é quebrada. Com efeito, são fortalecidas
outras redes de humanos e não humanos das ilhas, agora com proporções locais.
Para melhor elucidar esse cotidiano do pós-ciclo extrativista da borracha, narro abaixo
a vida do ―seu‖ Dico, um senhor de aproximadamente 90 anos de idade317 que me acolheu
como seu filho em sua residência por aproximadamente um ano, sendo ele um dos netos do
―seu‖ Domiciano de Farias e da dona Maria de Farias. Em minhas idas e vindas de sua casa
para a casa dos outros habitantes de Igarapé Grande, no meio de pesquisas, entrevistas,
questionários, fotos nos arredores, etc. pude estabelecer longas conversas no café da manhã e
na janta com ―seu‖ Dico, algumas virando entrevistas, outras anotações, mas todas resultando
em uma bonita história de vida. A seguir, é essa história que uso como fio condutor para
acessar um passado da passagem da década de 1920 para 1930, complementando essas
entrevistas com a narrativa de outros moradores e moradoras de Igarapé Grande318.

6.2 A história do “seu” Dico


O tempo no calendário já é por volta da década de 1930, o ―seu‖ Domiciano e a dona
Maria já estão na casa dos 40 ou 50 anos. Nos anos corridos, a prole foi casando e foi
formando suas próprias famílias319, ainda que, com exceção da mais velha, todos os filhos e

317
Em sua carteira de identidade, consta que ele nasceu em 02.01.1923, somando noventa e três anos. Ocorre
que ele mesmo diz que essa data é errada, pois ele adiantou alguns anos sua data de nascimento, quando tirou sua
identidade, com o intuito de tentar se aposentar mais cedo da penosa vida do trabalhador rural. Por isso coloco
aproximadamente noventa anos.
318
Como principais interlocutores da história de Igarapé Grande, cito a dona Ana, dona Bena, dona Tereza, dona
Rosa, ―seu‖ Nazareno, ―seu‖ Esmeraldo, seu Antônio, seu Gilberto, ―seu‖ Paraco (mais adiante explicarei quem
são essas pessoas, lembrando que todas têm alguma ligação com o casal genitor de Igarapé Grande). Essas foram
entrevistas que fiz exclusivamente com propósitos históricos, de parentesco e mudanças no modo de vida (todos
os três temas interligados, ao fim e ao cabo). Essas entrevistas foram complementadas com os questionários que
apliquei em todas as unidades residenciais habitadas de Igarapé Grande, na medida em que nesses questionários
havia uma parte que era gravada e dizia respeito à história de vida da pessoa inquirida e de sua família nuclear.
319
Não foi possível identificar exatamente o paradeiro de cada filho e filha, mas algumas memórias foram
entendidas e serão aqui reproduzidas. Assim, é possível afirmar que poucos foram os filhos e filhas que se
afastaram da família dos Anjos de Farias, ficando a maioria ou no próprio sítio, ou em sítios das proximidades.
320

filhas ou saíram para depois retornar, ou ficaram no sítio Paraíso, ou foram para a cabeceira
do Igarapé Grande. Assim, a maior parte da segunda geração ainda ficou morando no sítio
com os pais, ainda que em outras casas, ou morava a alguns minutos de canoa do sítio em
direção à cabeceira do Igarapé Grande.
O filho que primeiramente foi para a cabeceira foi Boaventura, casando-se com a filha
do dono do terreno, retornando poucos anos mais tarde, em virtude da morte de sua esposa,
mas com a propriedade do terreno, já que seu sogro morrera antes de sua esposa, ficando ele
mesmo como herdeiro das terras. Dona Tomázia, irmã de Boaventura, acabou usufruindo
dessa triste situação. Na condição de mãe de um casal de filhos de dois pais diferentes, recém
ajuntada com um marido que era o pai do terceiro que estava por vir, resolve pedir ao seu
irmão que permitisse que ela e o marido constituíssem casa na cabeceira. É assim que teve
início a cabeceira na condição de morada de integrantes da família Farias, com a casa da dona
Tomázia e ―seu‖ Manoel Linus de Sousa, respectivamente, mãe e padrasto do ―seu‖ Dico e da
dona Bena320.
Dona Tomázia já era mãe solteira de Raimundo dos Anjos de Farias e de Maria
Benedita dos Anjos de Farias, respectivamente chamados de Dico e Bena. Depois que
estabeleceu relacionamento com o ―seu‖ Manoel, vieram mais cinco meninos e quatro
meninas, de nomes: Daniel de Souza Farias, Maria de Souza Navegantes, Manoel Nazareno
Farias de Souza, Maria Cristina Farias de Souza, Maria Minervina Farias de Souza, Lourival
Farias de Souza, Branca Farias de Souza, Benedito Farias de Souza, Manoel dos Anjos Farias.
É assim que a família do ―seu‖ Dico sai do Igarapé Grande e vai morar para a
cabeceira do mesmo. Na época, ele tinha aproximadamente seis anos de idade e fica lá
morando até seus dez anos de idade, quando seu avô decide manda-lo para a vila Maguari,
com o intuito de que o menino pudesse estudar. Explica-se. À época, não existia escola na
ilha, sendo a educação escolar (ou o ato de ―desemburrar‖, como eles mesmos chamam), feita
por professores particulares, em grupos de crianças de faixa etária mesclada ou então a
criança era mandada para trabalhar e morar na casa de uma família rica da cidade de Belém e,
nos tempos vagos, frequentaria a escola321.

320
Como mencionado, eles foram um dos principais atores sociais locais que me receberam em campo. Passaram
a vida inteira na cabeceira, com raríssimos espaços de tempo em que tiveram que viver em outro local, mas ainda
assim, dentro da região das ilhas e ausentando-se por um curto período de tempo de Igarapé Grande (máximo de
um ano, no caso da dona Bena, e três anos, no caso do ―seu‖ Dico). A maior parte do tempo que estive nas ilhas,
me hospedei na casa do ―seu‖ Dico, na condição de seu ―filho‖, como fiquei conhecido nas redondezas,
estabelecendo conversas cotidianas com ele e com a dona Bena.
321
Esse procedimento era e ainda é muito comum na região amazônica. A pessoa que vinha do interior para
estudar na cidade assumia a classificação social de ―cria‖. Em outras palavras, ―cria‖ significaria uma pessoa do
interior que veio para a cidade para estudar, ficando na casa de uma família urbana em troca de sua mão-de-obra,
321

No caso da região das ilhas, esse processo era um pouco diferente. Primeiramente a
criança deveria passar um tempo em alguma residência da vila Maguari, atual bairro do
Maguari (Ananindeua/PA). Essa vila ficava às margens de um rio de mesmo nome, que foi
palco de diversos empreendimentos no início do século XX. Nessa vila funcionou escola
(chamada de Quinta das Carmitas), curtume, vacaria, indústria de água, centro comercial,
entre outros empreendimentos, figurando como um dos primeiros centros urbanos que dariam
origem ao município de Ananindeua (MENDES, 2003)322.
Passados alguns meses, verificando que a criança não daria problema, ela era mandada
para a casa de algum dos filhos, parentes ou amigos de Belém. Assim, buscando de alguma
maneira facilitar a vida dos mais jovens, Domiciano decide mandar o ―Diquinho‖ para a
família do dono da escola Quinta das Carmitas, que funcionava na vila Maguari, com a
esperança de que os ensinassem a ler. No caso do ―seu‖ Dico, tal hipótese não foi
concretizada, ainda que ele tenha sido enviado para uma família de Belém.
Segundo seus relatos, por volta de seus dez anos, ele foi enviado para o Maguari,
passando não mais que um mês por lá, logo sendo mandado para Belém, especificamente para
a casa da filha do dono do colégio, a dona Carmita e seu marido, ―seu‖ Daniel, dono de uma
papelaria localizada no centro de Belém. A casa ficava localizada na rua Cipreste 323, enquanto
que a papelaria ficava na Frutuoso Guimarães, segundo o ―seu‖ Dico.
Durante cinco anos, viveu na casa da dona Carmita, contudo, nada aprendeu no que se
refere a ensinamentos escolares. Segundo seus relatos, sua estadia lá foi marcada por muito
trabalho e nenhum estudo, chegando a relatar casos de maus tratos. Exponho abaixo algumas
de suas narrativas:

Thales: Com quantos anos que o sr. voltou pra cá mesmo?


Dico: Eu ainda passei 4 anos eee... quase 5 anos lá.
Thales: Aí voltou pra cá com uns 14 ou 15 anos.
Dico: Foi. Aí voltei, quando cheguei na casa do meu avô que ele pegou o jornal, mas
ele não enxergava mais pra ler, mas ele... –Venha ler aqui, meu filho, uma coisa
desse jornal aqui pra mim –. Eu disse a ele: – Vovô, eu não sei ler.

sendo que essa família não é parente da cria, vale ressaltar. Meu ponto de vista específico sobre esse processo
não é de todo negativo. Penso que para jovens, essa talvez seja uma alternativa, mas não para crianças.
Dependendo do contexto (escola e família frequentada, idade do(a) jovem, tempo que permanecerá longe da
família e diversas outras variáveis), esse processo não é prejudicial para um jovem, pois permite enriquecimento
cultural e de educação formal, contudo, essa é a exceção, sendo a regra a vivência de uma dura vida de
empregada/empregado doméstico, com pouquíssimo tempo para estudo e aperfeiçoamento profissional. Para
mais detalhes sobre esse tema, consultar Motta-Maus (2006).
322
São raros os livros que tratam exclusivamente sobre a história do município de Ananindeua, ou de alguma
localidade sua. Tive acesso somente a esse livro de Mendes (2003). Vale observar que esse livro foi editado pela
própria autora, sofrendo todo o processo de diagramação e impressão em empreendimentos locais, fato este que
evidencia a escassez de publicações sobre Ananindeua de Ananindeua.
323
Acredito que seja a rua Arcipreste Manoel Teodoro, também conhecida como Cesário Alvim, no centro de
Belém.
322

– Não sabe ler? E você não estava estudando lá?


– Digo não sr., meu estudo lá era serviço, era trabalho, meu vô –. De manhã cedo,
depois que eu me levantava tomava o café e ia espanar os móveis, passar pano nos
móveis. Quando acabava, pegava a vassoura e ia varrer tudo, era um casarão
enorme. Varria tudo. Tinha oito quartos. Cada um dos filhos dela... cada um tinha
seus móveis. Aquilo tinha que espanar tudinho e ela ainda ia pra lá passar o dedo pra
ver se tinha poeira. Se tivesse poeira, Deus o livre, ela fazia um esparro do caramba.
Thales: Ela tinha oito filhos?
Dico: É. Ela tinha o marido dela, o quarto dela com o marido era separado também.
Thales: O Sr. lembra o nome dela, ―seu‖ Dico?
Dico: É Carmita. E o marido era Daniel.
Thales: E o sobrenome?
Dico: O sobrenome dela era... dessa gente daqui do coisa (acho que se referia ao
Maguari). Esqueci agora o nome dela. A mãe dela era dona Teté, uma velhinha.
Então ela se sentava na mesa de tomar café, aí demorava ela começava – Tremor de
terra, revolução (cantando). Quando ela começava a cantar assim o [ânus] dela
acompanhava peidando, era ―prá prá prá‖ (risos).
[...]
Thales: Essa aí que uma vez éeee... o que foi que o sr. fez? Parece que ela quis lhe
bater, uma coisa assim.
Dico: Não, essa aí foi a Carmitaquee...
Thales: Então foi ela que lhe dedurou, não foi? A mãe dela, né?
Dico: Foi. Essa velha Teté até já tinha morrido, essa que era a mãe dela. Só tinha as
irmãs dela. As irmãs da Carmita. Quando foi um dia chamei a Dona Pete. – Dona
Pete, quero ir embora, não estou aprendendo nada aqui.
– Tu não estás aprendendo?
– Não.
– Rapaz, seu Domiciano tá pensando que tu estás estudando. Eu disse: – Não, ela
não tá me ensinando, não –.
– Se eu soubesse eu tinha te botado lá pro... pra casa da minha irmã que ela te
ensinava. Ela é professora, ela ensina, tem os alunos dela e tu tava aprendendo. Teu
avô tá pensando que tu tá estudando –. Disse: – Não. E eu quero ir embora, não
quero mais ficar aí, não. Dona Carmita é muito ruim pra gente. Ela quer me bater e
eu sei me defender –. Um dia desses ela veio me dá uma chinelada com aquela... ela
tinha um chinelo de borracha, aquilo macio que ela vinha parece um gato.Mas eu
também tinha um ouvido bom pra caramba. Diziam que eu tinha ouvido de peixe-
boi. Quando ela me chamou lá no coisa, uma velha que tinha lá, tia do marido dela,
era Zica o nome dela. Aí ela tava lá costurando, né? Ela costurava, quando o
reumatismo atacava na perna dela, ela engatava aqui embaixo, a manivela pra mão,
quando eu vi ela olhou de lá, e a cozinheira contando um caso do lugar dela, que ela
era do Acará, aí contando o caso lá...
[...]
e eu achando graça. Quando eu vi a velha olhou de lá – ela usava dois óculos, um
por cima do outro.
Thales: Mas qual era essa velha?
Dico: É a velha Zica, tia do Daniel, o marido da Carmita.
[...]
Aí, quando eu vi, essa velha Zica, puxou o óculos e fez assim pra mim e se levantou
de lá, foi pra lá. Foi chamar a onça, ela chamou de lá. Aí o corredor era que nem
esse, um petisqueiro que tinha bolo, pudim, tinha tudo quanto era coisa. Era de
vidraça. Quando eu vi, ela: – Raimundo! – “Sra?” – Vem cá! – Aí eu: – ela vai
querer me bater aí. Filha da puta dessa velha já foi fazer fuxico de mim. Ah velha, só
não te faço uma bandalheira porque eu não tenho pra onde fugir daqui –. Mas Deus
disse por mim, aí eu fui, quando cheguei lá. – O que que tu tava fazendo crítica da
Dona Zica? – Aí eu digo: – Crítica dela? Eu não. Tava achando graça da cozinheira
contando um caso que se deu com uns parentes dela lá no Acará, e eu tava achando
graça disso. Não tava achando graça dela –. Aí ela mandou-lhe a mão no meu braço
e puxou aquela chinela de borracha, o que ela marcou em cima da minha cara eu me
joguei pra trás dela. ―Fap!‖ ficou lá desse jeito e a mãozada que ela deu com o
chinelo deu na vidraça. ―Pá!‖ que só foi pedaço de vidro lá dentro do pudim.
323

Thales: Quebrou?
Dico: Quebrou! Levou uma porrada, se pega na cara. Aí ela foi se ajeitar pra me dá-
lhe porrada, até que ela não aguentou mais, quando eu vi ela caiu sentada e me
soltou, eu corri. Tinha um biribazeiro grande lá atrás, o bicho não faltava fruta. Aí
subi pra lá, apanhava o biribá e chupando o biribá, só caindo caroço de lá. Parece
macaco quando tá comendo fruta. Aí eu vim de lá e disse: Poxa, nem pra aparecer
gente lá de casa, tia Ingraçaou o tio Boaventura que sempre apareciam, que o vovô
mandava fruta pra mim, essa sapoti, laranja, tangerina.
– Leva pro moleque. Ele gosta muito de fruta –. Eu dizia pra eles, mas parece que
não diziam pro velho. Não contavam direito pro velho. Porque eu sabia que se o
vovô soubesse ele mandava me buscar mesmo, não ia me deixar lá, não. Aí quando
cheguei, depois que eu contei pra Dona Pete, ela: – É, Raimundo? Sendo assim eu
vou falar com as minhas irmãs e nós vamos te levar. Sábado nós te leva. Se não tiver
passagem pra tu ires pro Igarapé Grande, tu ficas no colégio e quando tiver uma
passagem pra lá tu vais –. Aí a Dona Tereza tinha um cavalo dela, da irmã dela.
Thales: Quem é dona Tereza?
Dico: Era a irmã dessaCarmita, sabe?
Thales: E quem é a dona Bete, né?
Dico: Pete. Tinha a Rosária. Eram todas irmãs.
Thales: Aah, só a Carmita que era malvada?
Dico: Ela que era má. Aí no colégio, era um colégio grande lá que o pai dela era
professor.
Thales: O pai da Carmita, da Pete?
Dico: Sim, delas tudinho. Aí o filho dele fugiu daí no tempo do Barata, sabe? No
tempo do Barata ele fez uma revolta lá. Queriam pegar ele pra levar que ele era
contra o Barata. Aí, fez levarem ele, embarcaram numa canoa, aí pegaram e levaram
ele pra Icoaraci, de Icoaraci ele pegou um coisa pra ele fugir. Aí ele foi embora pra
São Paulo e não pegaram ele.
Thales: O sr. não sabe o nome dele, não?
Dico: Eraaaa... meu Deus, era Coutinho. Não sei o que Coutinho, dr. Coutinho.
Thales: Esse era irmão da dona Carmita?
Dico: É, era irmão dela.

Fonte: Entrevista gravada em trabalho de campo para a tese, 15.08.2015

Coloco um grande trecho da entrevista, não só para ilustrar o cotidiano de trabalho que
vivia ―seu‖ Dico na época, mas também para mostrar um pouco da rede de humanos e não
humanos que existia na Belém da década de 1930 e 1940. O centro urbano da capital era
habitado, em sua maioria, por famílias portuguesas ou descendentes dos mesmos, com
enormes casas (remanescentes do período da borracha), com móveis requintados de todo tipo,
como a petisqueira citada por ―seu‖ Dico. O cotidiano dessas residências tinha início com a
saída da figura masculina para seu trabalho, ficando as mulheres no lar, responsáveis pelos
afazeres domésticos, as crianças da família indo para a escola, ademais de funcionários
domésticos vindos dos interiores do Pará ou das partes mais afastadas do centro da cidade324.
Essas casas eram margeadas por enormes quintais que, por sua vez, estavam compostos por
árvores de biribá, cupuaçus, açaís, bacabas, buritis, ananins (por isso o nome Ananindeua),
bacuris, marimaris/umarimari (daí o nome do bairro do Umarizal).

324
Que era o caso do ―seu‖ Dico, vindo das ilhas de uma Ananindeua que ainda era composição do município de
Belém.
324

Esse perfil não era muito diferente em outras residências do centro de Belém. Um
irmão mais novo de ―seu‖ Dico, o ―seu‖ Nazareno, também vivenciou a experiência de
trabalhar em Belém, na casa de família tradicional. Ele contou que trabalhou em uma casa na
av. José Malcher que tinha um grande quintal/bosque, com árvores de espécies diversas,
seguindo os padrões da biodiversidade dos trópicos, ademais de cuidar de animais silvestres
que o habitavam, como veados, cutias e até tartarugas e tracajás. Essa rede socioambiental de
humanos e não humanos foi deixando de existir aos poucos no centro de Belém, encerrando-
se, provavelmente, depois da década de 1950, com uma Belém sede de um dos maiores
edifícios da América Latina (na época), o localmente conhecido Manoel Pinto. Faço o registro
que essa rede socioambiental sempre existiu, em Belém, mas foi gradativamente extinta em
seu centro urbano em virtude de um modo de vida que foi alterando-se com o passar dos anos,
aquele da sociedade de mercado, do consumo, da modernidade.
Essa fronteira entre um mundo ―moderno, capitalista, consumista‖ e um mundo
socioambiental foi irradiando-se para as áreas circundantes do centro, deixando de ser
marcadas por um modo de vida agroextrativista e uma forma rural de ocupar o espaço, para
um modo de vida consumista, dentro do mercado financeiro mundial, com uma forma urbana
de ocupar o espaço, a mesma que se vive hoje, com prédios, construtoras, farmácias,
shoppings, ruas asfaltadas, restaurantes e empresas de prestação de outros serviços, sendo
uma grande parte franquias nacionais ou internacionais, tudo padronizado. Em outras
palavras, os humanos permanecem na rede atual, mas os não humanos são trocados, retirando
sua característica socioambiental de outrora. Enquanto que antes, o que circulava entre os não
humanos, ao menos em sua maioria, era uma energia vital, atualmente somos cercados de não
humanos com energia não vital, nas palavras da termodinâmica, antes a entropia era baixa,
agora é alta.
Para finalizar esse parêntese reflexivo sobra a história de Belém, cito minha própria
experiência de vida no bairro do Quarenta Horas. Quando lá fui morar (ano de 1994), o bairro
ainda era rural, um rural específico da Amazônia, ou seja, um rural agroextrativista e não
predominantemente agrícola. A fauna e flora ainda obedeciam o critério de ampla diversidade
nativa, inclusive, com algumas residências que mantinham como domésticos animais como a
anta, o veado, e até quelônios como tartarugas, tracajás e jabutis325. Hoje, os não humanos que
habitam meu bairro são inúmeros condomínios verticais e horizontais, muitos com
logradouros comerciais na beira da estrada, com produtos que fazem parte da rede mundial de

325
Essa informação trago na condição de morador que os viu, ainda em minha infância, provavelmente devem
ter existido outros nas redondezas.
325

comércio, na qual figuram grandes corporações como a Coca Cola, passando por corporações
nacionais, como a Ambev, até chegar em empreendimentos locais que, mesmo não
representando legalmente grandes franquias ou vendendo produtos mundiais, vendem
serviços que fazem parte do mundo moderno capitalista, como academias, farmácias,
barbearias, entre outros.
Antes, a maior parte dos não humanos eram seres vivos, de uma inimaginável
diversidade e locais, ligados às regras locais de funcionamento ambiental. Hoje, a rede é
pobre em biodiversidade, totalmente desvinculada do meio ambiente local.
Retornando para a história de ―seu‖ Dico, ele volta para a ilha com seus quinze anos,
no ano aproximado de 1947, indo morar com sua família na Cabeceira. Ele começa a ajudar o
avô, ―seu‖ Domiciano, um senhor com uma idade já bem avançada, por volta de seus sessenta
anos. Nesse momento, a maior parte da família dos Anjos Farias habita Igarapé Grande, na
figura do casal fundador e alguns de seus filhos e filhas, assim como habita a Cabeceira, na
figura da dona Tomázia, ―seu‖ filho Dico e o resto de sua família nuclear326.
―Seu‖ Dico é um dos netos que acompanha seu avô nas suas andanças. Nesse período,
os meios de vida tinham mudado um pouco. A seringa já não ocupava mais papel central na
economia local e doméstica, logo, ―seu‖ Domiciano também já não cortava mais seringa. A
principal atividade de relação com o mercado era a venda de carvão vegetal. O município de
Belém continha cerca de 200.000 habitantes (PENTEADO, 1968) e o uso de botijão de gás
ainda não era algo popularizado327. Assim, a região das ilhas funcionava como uma espécie de
abastecedora de madeira e carvão vegetal para uso domiciliar na cidade de Belém, capital do
estado do Pará, logo, todos os filhos do ―seu‖ Domiciano trabalhavam com a extração do
carvão vegetal.
Ainda que a maioria de seus filhos fossem trabalhadores do carvão, o velho
Domiciano exercia outras atividades. Como narrado no tópico anterior, ademais das

326
Pelo que pude constatar, somente a filha mais velha, a dona Maria Cristina dos Anjos de Farias, saiu das
proximidades de Igarapé Grande, ainda que tenha ficado na região das ilhas. ―Seu‖ Dico explicou que essa sua
tia era uma ―andarilha‖, não ―sossegava o facho‖, pois vivia se mudando, direcionado à causa desse
comportamento ao fato de o marido da mesma ser nordestino, sendo ele a pessoa que gostava de ―viver se
mudando‖, pois quando o mesmo faleceu, sua tia não se mudou mais.
327
Esta informação aqui aparece a partir da narrativa dos próprios moradores de Igarapé Grande. Muitos
habitantes da região das ilhas trabalharam na produção e venda do carvão para abastecer as residências de
Belém, sendo que o gás se popularizou a partir das décadas de 1980 e 1990. Não consegui ter acesso a
informações documentais e bibliográficas que corroborassem a informação dada pelos moradores de Igarapé
Grande. Fica aqui o registro da necessidade de um estudo histórico da rede de humanos e não humanos que
fornece energia para preparar o alimento do belenense e suas transformações ao longo do tempo, ou seja, a
passagem do uso do carvão, para o uso do gás de cozinha. Vale dizer que até os dias de hoje os moradores de
Igarapé Grande ainda trabalham com a extração do carvão vegetal, assim como ainda o utilizam para aquecer e
cozinhar alimentos.
326

atividades relacionadas à seringa, ele mantinha uma grande horta ao lado da sua casa, criava
algumas cabeças de gado leiteiro, cultivava cana-de-açúcar, cacau, café, ademais do
extrativismo de frutas. Também prestava alguns serviços pontuais como cozinheiro, músico e
agente de polícia ou, caso surgisse a demanda, a venda de algum dos produtos que pudessem
ser extraídos de seu sítio, sendo que o ―seu‖ Dico era um dos netos que figuravam como seu
ajudante.
―Seu‖ Dico contou algumas histórias de suas experiências com seu avô, mas as mais
marcantes são duas que justamente envolvem o falecimento de seu pai biológico e o
falecimento do próprio Domiciano, sendo que ambas estão imbricadas.
A história se resume no seguinte enredo: a ida de ―seu‖ Dico para trabalhar nas forças
armadas. Essa ideia surge com a vinda do pai biológico do ―seu‖ Dico, para conversar com
―seu‖ Domiciano. Na época, era jovem, com aproximadamente 18 anos, mas ainda não sabia
quem era seu pai.
Certo dia, ele chega em casa e vê um senhor idoso conversando com seu avô.

Dico – Foi um dia que ele veio me procurar, ele veio na casa do vovô, o vovô era
padrinho dele de fogueira, aí veio…
Thales – Ah! O seu Domiciano era padrinho dele de fogueira era?
Dico – Era. O meu pai… aí pegou, aí eu cheguei…
Thales – O seu avô era mais velho que o seu pai mesmo?
Dico – Era da mesma idade quase, os dois de cabeça branca! Aí quando eu cheguei
eu vi aquele velhinho lá conversando…
Thales – O sr. já conhecia ele de outras… de outros?
Dico – Não, não.
Thales – Nunca tinha visto ele?
Dico – Nunca tinha visto.
Thales – Mas ele não morava aqui pelas ilhas?
Dico – Não, era aqui pelas bandas de João Pilatos, São Pedro, por aí, por esse lado
aí...
Thales – Então ele morava nas ilhas?
Dico – Era.
Thales – E o sr. nunca tinha visto ele?
Dico – Nunca tinha visto ele. Nunca tinha calhado de eu encontrar com ele. Nem
quando andava com meu avô, nem com meu pai [de criação] também. Aí quando foi
nesse dia que eu cheguei do mato aí, e aquele velhinho conversando com o vovô, em
casa lá com o vovô Domiciano, contando um caso lá pro vovô Domiciano. Aí eu
cheguei do mato com o machado e o terçado, arriei lá no canto aí: ―boa tarde
senhor!‖; ―boa tarde‖, peguei na mão dele e ele ficou me olhando assim: ―será que é
o filho?‖, ele não me conhecia e nem eu conhecia ele, aí fui lá pra dentro…
Thales – Mas ele sabia que ele tinha um filho aqui?
Dico – Sabia! Que ele veio me procurar né? E o vovô sabia que ele que era meu pai.
Aí o vovô disse: ―meu filho, vá trocar sua roupa, depois venha aqui‖. E eu troquei a
roupa aí cheguei… ―meu filho, vai lá com teu avô e venha almoçar, tá na mesa o
prato‖…
Thales – Isso sua avó falou?
Dico – A vovó! Eu cheguei… o que é que o senhor… ―meu filho, tome benção
desse velhinho que ele que é seu pai. Seus tios começavam naquela anarquia com
você… tudo que você viu aí tomar benção que era seu pai, mas não é, esse aí que é
seu pai, esse aí que marcou pra você ficar aqui no mundo!‖. Aí eu tomei benção
327

dele… aí fui tomar benção, me botaram pra pegar na mão dele, peguei na mão dele,
tomei benção e dei um abraço nele… ele me abraçou… e o velho, escorre até
lágrima dos olhos! Aí ele disse: ―um ‗cabocão‘ meu padrinho!‖; ―meu filho, você
vai almoçar e depois você venha aqui, que eu quero conversar com você, pra ver sua
resposta tá?‖.―Tá bom‖ Eu almocei aí eu cheguei lá, ...―ah! Filho, seu irmão,
Cristino o nome dele, ele é o primeiro sargento lá da base aí do brigadeiro…‖. ―tá‖.
―aí, ele quer saber se você quer sentar praça, que é pra ir lá pra casa dele, tem a casa
dele, pra você ir pra lá, pra ir morar lá na casa dele e lá você tem estudo, você tem
tudo que você quiser lá no quartel, ele aprendeu lá e você vai aprender lá também, tá
bom? Você quer ir? Quero! Aí a minha mãe quando o velho disse, que foi embora,
aí a minha vó e minha mãe né? Foi lá pra frente da nossa sra. da Conceição se pegar,
pra fazer promessa, pra não sentar praça e aí aconteceu isso com meu avô, meu avô
morreu…
Thales – Mas como é, elas foram fazer o que seu Dico?
Dico – Elas foram fazer promessa para eu não servir, saber, para não ser soldado.
Thales – Ah, elas não queriam que o sr. fosse soldado?
Dico – Não, por que nesse tempo, de vez em quando tava acontecendo alguma coisa
em Belém, a revolução, era tiro, era disparo de canhão…328

328
Suprimi os trechos que seguiram do relato do ―seu‖ Dico, já que não estavam se referindo ao assunto aqui
tratado, a saber, os episódios de seu possível alistamento e as mortes de seu pai biológico e de seu avô, o ―seu‖
Domiciano. De toda sorte, segue uma parte desse relato, caso a curiosidade do leitor(a) tenha sido despertada
para esse período de revoluções dentro da Belém da década de 1940.
Thales – Ah é! Que revolução foi essa?
Dico – Era que surgiu lá no tempo… era Barata e não sei quem era o outro que tinha, eu sei que era muito tiro, quando eu fui
pra casa dessa dona Carmita…
Thales – Isso quando o sr. era mais novo? Na casa da dona Carmita?
Dico – Ela me mostrou nesse tempo, as revoltas lá e botavam aqueles coisas de saca de areia dessa altura assim, botava o
colchão no chão, deitava tudo no chão, quando disparava a bala do fuzil varava o cimento e vinha e ficava dentro da saca de
areia…
Thales – A saca de areia aparava a bala?
Dico – Aparava por que era só areia né? Quando batia ali não tinha… se não tivesse aquilo matava a pessoa que tava lá
dentro.
Thales – E o sr. tinha quantos anos mais ou menos?
Dico – Isso aí eu era moleque ainda…
Thales – Isso ai foi aquela casa que o sr. foi que tinha aquela morena, que era cozinheira, que era de Cametá (na verdade é
Acará).
Dico – Foi… era… que elas me contavam tudinho que um dia depois que o velho foi me procurar pra coisa é que eu fui saber
como é que tinha sido, que tinha sido uma revolução, e me falaram…
Thales – Como é que é ―seu‖ Dico?
Dico – A revolução que eles dizem que era a revolução dos saldados né? Que atiravam aqueles tiros assim…
Thales – E durou quanto tempo isso ai?
Dico – Ah! De vez em quando eles faziam uma revolta em Belém e era disparo de canhão e parece que rachava, fazia
―BEEEEEM‖ disparava de lá, ali da barra, de lá da onde sai o Círio da Nossa Senhora de Nazaré, lá do coisa, lá de cima do…
como era o nome… eu me esqueci agora… tem a vila da barca, tem o coisa… como é? De lá, disparava de lá e vinha cair
aqui na barra, quando disparava o canhão dai ia cair lá na ponta do coisa… lá no Mosqueiro, lá embaixo...
Tales – E onde é a barra que o senhor fala?
Dico – A barra é pra… bem no correr do campo da aviação…
Tales – Campo da aviação?
Dico – Sim, em Belém, aqui no coisa…
Thales – Não sei onde é… da aviação… Lá onde é o aeroporto hoje?
Dico – É.
Thales – É? Caramba! É longe, né?
Dico – É longe, mas o canhão disparava e vinha ali no Mosqueiro aí…
Thales – Ahan. Mas o senhor não sabe quanto tempo durou, não?
Dico – Mesmo quando... Quando eu fui pra lá já tava tudo calmado tudo. Esse que é doutor daqui do colégio que eu falo esse
daí…
Thales – Das carmitas? Das brancas?
Dico – Sim, esse daí foi corrido daí… O morador daí, tinha um barco, né, levaram ele daqui, levaram ele pra poder ele pegar
o navio pra ele ir pro Rio…
Thales – Rio de Janeiro, né?
Dico – Rio de Janeiro.
Thales – Foi, uma vez o senhor me contou essa história mesmo.
Dico – Depois quando ele foi pra lá também ele não sabia se ele ia voltar mais aqui, não
328

Fonte: Entrevista gravada em trabalho de campo para a tese, 21.12.2015

Alguns dias após sua apresentação ao pai biológico, ―seu‖ Dico acompanhou seu avô
Domiciano em um serviço a ser feito no Marimari. Eles iam destrinchar um porco para uma
das filhas do Domiciano, entretanto, o avô adoece na saída dessa viagem, vindo a falecer
aproximadamente um mês depois, antes que ―seu‖ Dico pudesse tirar os documentos
necessários para alistar-se junto ao seu irmão.

Dico: Eu tava com uns 20 anos, era vinte anos... Não eu ia fazer dezenove
(Entrevistador: ia fazer dezenove anos?) 19 anos, que meu pai veio eu tava com 18
anos e veio pra eu fazer essa viagem que ia fazer com ele e quando eu vim de lá
dessa viagem ele [avô Domiciano] adoeceu quando nós fomo de Roldão pra baixo já
foi doente, saiu de casa bom quando chegou no Roldão fizemos umas compras lá,
embarcamos, quando embarcamos começou a abrir a boca ―que é vô? Tá sentindo
ruim?‖ –meu filho acho que vai me dar febre-, peguei no velho assim, quando
peguei ele tava parecendo uma brasa (Entrevistador: já tava doente?) ―o senhor tá
com muita febre vô, bora voltar?‖ –Não meu filho, vamos seguir nossa viagem-, ele
já tava sabendo que era a última viagem que ele tava fazendo, foi na casa da filha
dele (Entrevistador: Qual era a filha mesmo?) A Ingraça, foi matar um porco lá
(Entrevistador: Lá no Marimari) lá no Marimari,
Entrevistador: Mas me diga uma coisa seu Dico, esse aí o senhor tinha 19 anos? O
senhor lembra porque era o período que o... (Dico: tava dezoito anos completo ia
fazer dezenove), pois é o senhor lembra que foi o tempo que o seu pai chegou a
conversar com o senhor.
Dico: Foi, chegou a conversar, primeira vez que fui conhecer meu pai, dezoito anos.
(...) cheguei lá, eu tava pro mato quando cheguei lá eles tavam conversando os dois
ancião velho (Entrevistador: Aí eles tinham ficado de acordo que o senhor ia com o
seu pai, mas aí nesse meio tempo vocês fizeram essa viagem?) foi, que o vovô ia
tirar meus documento, meu registro tava vencido, ele disse ― olha Domiciano, eu
vou tirar os documento dele e tu aparece aqui pra quando for a hora tu leva ele,
quando ele completar 19 anos pra se apresentar aqui tu vem. Ele era padrinho dele
de alguma coisa, não sei se era de casamento, que ele é casado com essa mulher que
era... qual o nome dela meu Deus? Agora esqueci (Entrevistador: não era a velha
Paula?), não a Paula era filha dele. (Entrevistador: a sua irmã) a Paula era minha
irmã. (Entrevistador: mas não se criou com irmã?) Não, criemo depois que se
conhecemo, aí virou irmã. Não era por parte de mãe e pai, era só de pai

Fonte: Entrevista gravada em trabalho de campo para a tese, 17.01.2016

Existia, ainda, a possibilidade de que ―seu‖ Dico procurasse seu pai biológico para
ajudá-lo a tirar os documentos, mas o mesmo vem a óbito alguns meses depois da morte do
―seu‖ Domiciano.
Thales – Mas por que o senhor não foi atrás do seu pai [...]?

Thales – Será que pegaram ele lá?


Dico – Não! Não pegaram ele de jeito nenhum, não. Mas ele não quis voltar mais aqui, não.
Thales – Mas essa revolução era pra quê, seu Dico, o senhor sabe? O que eles queriam mudar?
Dico – É porque quando chegava essas coisa de política, né, ai é perigoso quando ...queria levar a força o país (risos), não
queriam levar assim com carinho, não. Aí, faziam isso…
Thales – Mas será que era o povo que fazia a revolução?
Dico – Não! Era os soldado mesmo que… os policial mesmo!… era tenente, era capitão, era tudo o caramba…
329

Dico – Ah, meu pai veio aí comigo, disse, é, meu filho, quando for… quando
você… ainda tenho dinheiro pra ir lá no cartório pra tirar o seu RG, quando você
coisar… você me avisa… eu disse qualquer um dia desse dá pra gente ir lá! Meu avô
tá doente, mas dá pra gente ir lá… aí lá o velho [pai biológico do seu Dico] sai e vai
vender, que ele fazia tipiti, fazia peneira, fazia… tudo quanto era coisa de
guarumã… aí… cesta, tudo ele fazia… aí foi falar pro moreninho e chegou de lá…
foi já vendeu as cestas dele, vendeu, aí foi na taberna, ele tomava pinga né?
Comprou uma garrafinha, ele levava uma garrafinha desse tamanho assim,
comprava assim… cachaça pra ele trazer, pra ele beber quando ele chegasse na casa
dele, se desse vontade… aí quando ele veio de lá, fez as comprinhas dele: café,
açúcar, farinha, arrumou tudo arrumadinho em cima dum banco, numa tábua lá na
canoa… veio de lá, que quando ele chega no igarapé parece que tava muito calor, ele
tirou a roupa tudinho, e tava tudo arrumado a roupa dele em cima do banco da
canoa, e deixou na água, eu digo que aquilo foi poraquê que bateu o velho, lá dentro
do Murinin… desceu bem perto dum barranco assim e o poraquê tava por ali e bateu
ele e...
Thales – Morreu?
Dico – Ele foi pro fundo e ele só fez saltar em cima dele e acabar de matar né! Aí
quando foram achar o velho aí tinha a canoa dele ―buiada‖ lá, as compra tudo lá, e
foram lá no…a canoa do seu Pedro tá lá com as roupas dele tudinho lá e ele não tá lá
na canoa, tá todas as coisas dele tudo arrumadinha lá, não tá mexido nada. Aí lá
foram pra lá, a maré secou e foram ver tava lá o velho morto pra lá…
Thales – Caramba!
Dico – Aí pronto! Chegou todos os dois ...aí o velho morreu aí pronto!
Thales – ele morreu primeiro que o seu Domiciano ou depois?
Dico – O vovô morreu… morreu quase tudo junto os dois…
Thales – Essa promessa da sua vó e da sua mãe foi forte né?
Dico – É! Eu disse boa mãe essa promessa da sra. e da vovó… vocês fizeram uma
promessa… eu quero que vocês façam uma promessa pra amanhecer um bocado de
dinheiro pra eu comprar muita coisa pra vocês (risos)!
Thales – Reza brava essa aí! Promessa forte essa aí rapaz! Caramba!

Fonte: Entrevista gravada em trabalho de campo para a tese, 21.12.2015.

A história continua com sua ida a Belém após a morte do seu avô. São Dico e seu tio,
Simão, que vão para Belém, em meados da década de 1940, uma Belém urbana, mas ainda
fortemente caracterizada por elementos rurais e agroextrativistas. As experiências e as
histórias desse momento de sua vida contribuem de inúmeras maneiras para os argumentos e
as críticas que esta tese traz para a noção de modernidade e sua inerente dicotomia entre
natureza e cultura. Entretanto, vou me limitar apenas a uma, que se refere à possibilidade de
descrição de alguns não humanos que compunham o mundo comum da época.
Primeiramente, cito as atividades econômicas que ele desenvolveu na cidade, que, por
sua vez, refletem o cenário profissional que fazia parte do horizonte de possibilidades do
―seu‖ Dico. A primeira atividade remunerada desenvolvida referia-se a seus afazeres em uma
vacaria, com um dono de nome Arlindo. Ele e seu tio trabalhavam em vacarias, ambas de
português, que eram irmãos. Após alguns meses na vacaria, ―seu‖ Dico briga com seu chefe
que, segundo ele, ―era, metido à besta‖ e larga o emprego. Graças a um contato antigo no Ver-
330

o-Peso, pois quando morava na ilha sua família também vendia frutas para os feirantes, ele vai
trabalhar como vendedor em uma barraca de frutas do feirante Chico Mangabera.
Após quase um ano como feirante, ele cede seu lugar para seu tio Simão, que também
brigou com um dos portugueses donos das vacarias. O lugar na feira é cedido em função de
discordâncias no que se refere à ética de trabalho do seu tio, pois o mesmo tinha o costume de
misturar o dinheiro da barraca com o seu próprio, resultando em confusões na hora de fechar a
contabilidade do dia. Assim, ―seu‖ Dico vai trabalhar em uma indústria de cerâmica, e lá fica
por aproximadamente dois anos. Tanto as vacarias como a cerâmica localizavam-se nas
proximidades do ―Igarapé das Almas‖, atualmente conhecida como ―Doca‖, provavelmente
ficando em um dos seguintes bairros: Umarizal, Reduto ou Campina. O Ver-o-Peso, por sua
vez, fica no bairro da Cidade Velha. Essas três atividades econômicas, com efeito, foram
desenvolvidas em bairros ribeirinhos e que ficavam um ao lado do outro, em outras palavras,
eles compunham o mesmo mundo comum. Segue mapa dos bairros de Belém para que o leitor
se localize.
331

Mapa 4: Divisão dos bairros de Belém


332

Fonte: Plano Diretor de Belém (2013), adaptação digital por Uriens Ravena.
No mapa é possível verificar que os bairros Cidade Velha, Campina, Reduto e
Umarizal estão alinhados um ao lado do outro, sendo que os dois últimos são divididos pela
―Doca‖ (ou o antigo Igarapé das Almas). Na época, o mundo comum era composto por uma
rede socioambiental de não humanos, como narrado, acrescentando a esse cenário não
humanos como as vacarias, feiras vendendo produtos locais e do interior do Pará, ademais de
pequenas indústrias que supriam um mercado local, como é o caso do Reduto (DE SOUSA,
2008, 2009; RODRIGUES, 2013). Além disso, chamo uma especial atenção para os diversos
igarapés que ainda entrecortavam esses bairros e serviam de meio de transporte para uma boa
parte da população local, especialmente para embarque e desembarque de produtos vindos do
interior.
Esses bairros, na atualidade, compõem um mundo comum de empreendimentos que
são característicos do mundo moderno. Ruas asfaltadas, redes de farmácias e supermercados,
lojas e academias de franquias nacionais, bares que seguem o estilo da noite boêmia de outras
capitais do Brasil e assim por diante. Bem diferente da Doca, Reduto, Campina, Umarizal e
Cidade Velha de outrora, composta por vacarias, casas com enormes quintais, igarapés e
comércios locais. A rede de não humanos que compunha o mundo comum ainda era local e
permeada por energia vital, diferente de hoje, em que vivemos com um estilo de ocupação do
espaço por não humanos que forma uma rede que é padrão em uma significativa parte do
mundo. A Belém de hoje é cada vez menos composta por não humanos de circulação local,
marcados por energia vital e características socioambientais, dando lugar à presença quase
que exclusiva de não humanos de procedência não local, permeados por energia não vital.
Estabelecido esse panorama, retorna-se para a história do ―seu‖ Dico, que, passados
dois anos trabalhando na cerâmica, resolve retornar para a ilha, dado que seu pai de criação
teve uma mão inviabilizada em um acidente de trabalho (cortando lenha e fazendo carvão) e
seu tio Boaventura estava velho demais para cuidar de toda a família.
Assim, retorna para a ilha para ajudar a cuidar da família, especialmente a família
nuclear, ou seja, pai, mãe e irmãos. Na época a principal atividade econômica era a produção
de lenha e carvão a serem vendidos para o centro de Belém e Ananindeua. Essa atividade era
complementada por atividades agroextrativistas diversas, seja em sua dimensão de
subsistência, seja para a venda. Entre os produtos vendidos estavam frutas nativas (açaí,
cupuaçu, bacuri e bacaba) e a farinha. Para o consumo, ademais dos produtos que eram
vendidos, agregavam-se outras frutas e produtos agrícolas extraídos das roças, assim como a
caça e a pesca.
333

A vida não tinha mudado muito desde a chegada de ―seu‖ Domiciano e dona Maria
dos Anjos. A única grande mudança era que a borracha já não era mais uma opção de
atividade econômica, surgindo a extração da lenha e do carvão como os substitutos mais
fortes, ademais de, com a morte de Domiciano, suas criações e hortaliças não foram passadas
adiante, logo sendo eliminadas do cotidiano da família Farias.
A vida foi passando e muitas experiências foram vividas. Festas foram celebradas,
como de aniversário, de santo, casamento, Natal, Ano Novo, Páscoa, entre tantas outras.
Dramas e tragédias também foram vividas e lamentadas, como as mortes de sua avó, esposa,
tios e tias, despedidas de irmão, imãs, primos e primas, dentre os vários parentes e tantas
outras experiências que me foram permitidas conhecer pela boca de ―seu‖ Dico, homem
trabalhador, sofredor, mas, especialmente, grato pelas diversas bênçãos que teve em sua vida.
Com efeito, muitos episódios ainda poderiam ser utilizados aqui para elucidar a crítica
feita ao modo de vida moderno e sua distinção entre natureza e cultura. Como exemplo
sintético, cito o caso da morte do Boaventura, em que Dico e sua mulher foram tomar
chocolate na casa de seu primo e cunhado, o ―seu‖ Antônio. Esse chocolate era fabricado na
própria ilha, assim como diversos outros produtos, como café, óleo de tucumã e a diversidade
de produtos derivados da cana-de-açúcar. Outro caso foi a história do ―seu‖ Bené que jogava
futebol com uma bola de borracha produzida na própria ilha, ou ―seu‖ Gilberto que usava os
shorts que sua própria mãe fazia de sacos de pano, entre outros incontáveis exemplos.
Assim, penso que meu ponto de vista sobre o modo de vida moderno já pode ser
considerado como exaltado, especialmente no que se refere à rede de não humanos que se
forma nas sociedades não modernas. Essas redes assumem características socioambientais,
permeadas por energia vital e sempre elaboradas por uma rede local de humanos,
diferentemente da rede de não humanos da sociedade moderna, despossuída de energia vital e
fabricada por uma rede de não humanos de fora do grupo local.
No próximo tópico, finaliza-se este capítulo explicando como em meados da década
de 1980, uma associação de moradores é fundada e, pela primeira vez na ilha, o Estado se
materializa oficialmente em um ator não humano por meio da fundação da Escola Municipal
Domiciano de Farias. A associação e a escola serviram como porta de entrada para o acesso a
outras políticas públicas, desenvolvidas nos últimos trinta anos.
334

6.3 A Escola Municipal de Ensino Fundamental Domiciano de Farias: do selvagem, ao


racional, do sem Estado, ao cidadão... Será?

A escola foi fundada em 1986, funcionando inicialmente na residência do ―seu‖


Antônio de Farias, bisneto do ―seu‖ Domiciano de Farias, posteriormente passando para uma
construção oficial, edificada na própria ilha, no mesmo local em que ficava a residência do
―seu‖ Domiciano e da dona Maria329.
A escola foi fruto da demanda do ―seu‖ Nazareno de Farias 330 junto à prefeitura de
Ananindeua, que se disponibilizou a construir a referida escola. A contraprestação que o ―seu‖
Nazareno deveria dar era que ele achasse um local para a construção da escola, assim como
formasse uma associação de moradores para que a demanda fosse formalmente realizada.
Inicialmente a escola seria construída na ilha de Santa Rosa, morada do outro avô do
―seu‖ Nazareno, mas, em virtude de problemas junto à sua família para dispor de um local
para a construção da mesma, ―seu‖ Nazareno opta por passar a construção para a ilha de João
Pilatos, no terreno que era do seu avô (Domiciano de Farias), mas que agora pertence aos seus
tios. Ele conversa com seus primos e tios e os mesmos disponibilizam o local de onde era a
residência do ―seu‖ Domiciano para que a unidade de ensino fosse estabelecida.
Com a construção da escola em Igarapé Grande, o Estado começa gradativamente a
adentrar as ilhas de Ananindeua, assim como a própria lógica da vida moderna, capitalista,
obediente a uma razão ocidental, como proposto por Viveiros de Castro (2015).
Em seu início a unidade de ensino atendeu aos anseios das pessoas que moram nas
ilhas de Ananindeua, ―desemburrando‖331 seus jovens sem, contudo, deixá-los alienados do
seu modo de vida que historicamente desenvolviam, ou seja, sem reificar a razão ocidental no
dia-a-dia da ilha. Uma prova desta afirmação seriam os adultos na casa dos trinta e quarenta
anos de hoje que, ainda que tenham sido estudantes da EMEF Domiciano de Farias,
aprendendo a executar operações matemáticas simples, ler e escrever, não deixaram de
dominar conhecimentos ligados ao cotidiano das ilhas, como caçar, pescar, catar e extrair
frutas da mata, fazer carvão (inclusive dominando a engenharia de construção do próprio
forno), desenvolver atividades ligadas à agricultura e ao processamento dos seus produtos
(como fazer farinha, beijus, maniva, tucupi etc.), e outras atividades.

329
A escola funcionou inicialmente na casa do ―seu‖ Antônio para que o prédio fosse construído.
330
Irmão mais novo do ―seu‖ Dico, sendo também neto do casal Farias.
331
Palavra local utilizada no sentido de ser um ato com o qual uma pessoa faz com que outra pessoa deixe de ser
burra. Normalmente associada ao ambiente escolar e à relação entre professor e aluno.
335

Estas atividades eram aprendidas no dia-a-dia dos moradores das ilhas, não a partir de
instituições sociais oficiais, como a escola, mas a partir de instituições informais,
especialmente na ajuda da criança aos pais, ou, naquilo que as Ciências Sociais convencionou
chamar de tradição mas, que, na visão deste trabalho, Levi-Strauss melhor precisa por meio da
noção de ciência do concreto. Esta ideia será detalhada mais adiante, por hora, basta ter em
mente que os ilhéus de Ananindeua são cientistas do concreto, criando uma teoria para
descrever seu mundo que é diferenciada daquela formulada pela razão ocidental (LEVI-
STRAUSS, 1989; VIVEIROS DE CASTRO, 2015).
Com efeito, o ordenamento jurídico pátrio sofre severas mudanças nesse período de
transição entre as décadas de 1980 e 1990, especialmente a partir da promulgação da
Constituição Federal de 1988 (CF) e os impactos que a mesma gerou na década de 1990.
Entre esses impactos, o que mais teve repercussões no cotidiano de Igarapé Grande e nas ilhas
de Ananindeua, na visão deste trabalho, foram aqueles ligados à regulamentação da vida da
criança e do adolescente.
Explica-se. A CF, em seu artigo 227, trata dos direitos da criança, do adolescente e do
jovem, contudo, de maneira programática, ou seja, estabelece ideais a serem alcançados, mas
não mecanismos para alcançá-los. Em 1990 surge o Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), por meio da lei 8.069/1990, que prevê algumas medidas e mecanismos para efetivar
os direitos programáticos previsto no artigo 227 da CF.
Assim, na década de 1990 começam a ser implementadas ações do governo para
efetivar as políticas previstas pelo ECA, assim como surgem novos dispositivos legais para
aprimorar e complementar esse diploma legal332. Outras duas políticas também se iniciam
nesta década: as políticas de transferência de renda e algumas políticas de desenvolvimento
agrário, estas últimas isoladas e que não tiveram continuidade.
Com efeito, na passagem da década de 1990 para 2000, o paradigma de cientistas do
concreto (LEVI-STRAUSS, 1989) que foi exposto alguns parágrafos acima, acaba mudando,
especialmente com a implementação da política contra o trabalho infantil, fazendo com que as
crianças e jovens deixem de ir à sua outra escola, esta informal, que era a ajuda aos pais em
seus ofícios de agricultores, pescadores e extrativistas. Com efeito, não aprendem a ser
cientistas do concreto como foram seus pais, seu universo a ser testado não mais se estende
aos não humanos que figuraram para seus pais, como saberes sobre a pesca, tipos de peixe,

332
Seguem alguns exemplos: criação do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), no ano de 1996,
que previa um auxílio financeiro às famílias que retirassem suas crianças e jovens do trabalho, passando para o
ambiente escolar, sendo este programa incorporado ao Bolsa Família no ano de 2005; Emenda Constitucional 20
(de 1998), que institui a idade mínima de 16 anos para o trabalho e de 14 anos para o aprendiz, entre outros.
336

tipos de mandioca e assim por diante. Eles agora se limitam ao cotidiano da escola e da sua
casa, acessando o universo rural e agroextrativista da Amazônia apenas de forma residual e
muito casual. Eles não partilharam na infância e adolescência do mesmo mundo comum
(LATOUR, 2004 a) dos seus pais.
Esse cenário de mudança se deu não apenas pela escola, mas, como já dito, de maneira
conjunta com a política antitrabalho infantil, sem sensibilidade alguma para outros estilos de
vida em que a noção de trabalho não se apresenta como pensada no mundo
moderno/capitalista, estando menos ligada a uma tecnologia social de exploração da força de
trabalho, do que a uma instituição social com a função de repassar conhecimento, meios de se
pensar e agir, etc. para as novas gerações. Em outras palavras, uma maneira de ensinar aos
mais jovens como os mesmos devem ser no mundo, segundo a crença de sua própria família.
Assim, nos anos de 1990, o Estado adentra Igarapé Grande na figura de políticas
educacionais, de erradicação do trabalho infantil e algumas políticas de transferência de
renda333 e de desenvolvimento agrário, estas duas últimas ainda em estado de experimentação.
Na década de 2000, mais precisamente no ano de 2005, acontece uma ocupação de
terras na ilha de João Pilatos, precisamente no terreno em que funcionava, na década de 1940
a 1990, uma indústria de cerâmica, denominada de Indústria de Cerâmica da Amazônia
(INCA). Os moradores de Igarapé Grande buscam o governo federal para que esta ocupação
não se expandisse para outras áreas da ilha.
A resposta do governo foi transformar Igarapé Grande em um Projeto Agroextrativista
(PAE). Esta era uma ação do Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) que estava
sendo implementada em toda a Amazônia nesse período334. A mesma consistia em uma
política de reforma agrária, em que comunidades rurais recebiam uma série de incentivos do
governo, cada incentivo era concedido em uma fase diferente. No caso de Igarapé Grande,
foram concedidos documentos que davam o direito de uso da terra aos seus moradores, mas a
propriedade era da União, casas foram edificadas e distribuídas em três fases, sendo que a
terceira fase nunca se concretizou. Juntamente com a casa, o beneficiário tinha o direito de
escolher alguns bens de consumo, como cesta básica, freezer, geladeira, ferramentas para o
trabalho na roça ou na pesca, entre outros. Juntamente com as casas e seus benefícios por
família, o INCRA também instalou um micro sistema de abastecimento de água em Igarapé
Grande e Cabeceira. Essa política chegou para outras localidades da região das ilhas, mas não

333
Vale dizer que as aposentadorias do trabalhador rural, que começaram a ser permitidas de maneira menos
burocráticas, trouxeram mais renda para os habitantes de Igarapé Grande.
334
Para mais detalhes, consultar Mendes (2015) e Maia (2011).
337

tive a oportunidade de fazer esse mapeamento, lembrando que o foco deste trabalho é Igarapé
Grande.
Para a implementação dessa política de reforma agrária, o INCRA exigia que um
plano de uso dos recursos naturais fosse feito e assinado com todos os moradores e moradoras
do projeto. Com efeito, entra em cena também o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais (IBAMA) para efetuar a fiscalização da elaboração e respectivo
cumprimento desse plano. O Estado moderno está terminando de se consolidar na região das
ilhas de Ananindeua.
Finalmente, no ano de 2009 chega o programa Luz para Todos na ilha, fazendo com
que a grande mídia nacional adentre as casas desses ilhéus. No ano de 2016 um posto de
saúde municipal é edificado em Igarapé Grande, bem ao lado da escola. O Estado moderno
finalmente se consolida por completo. As ilhas já estão todas mapeadas, transformadas em
objetos e espaços de planejamento, ações e políticas estatais.
Assim, com o passar do tempo o mito da modernidade acaba chegando e
contaminando de maneira integral os moradores das ilhas de Ananindeua, fazendo com que os
mesmos passem a almejar e viver entre outros não humanos que não aqueles disponibilizados
pelo ecossistema local e ensinamentos de outras gerações. Os jovens agora desejam e
consomem outro estilo de vida, aquele moderno, civilizado, evoluído, não mais aquele
advindo do pensamento selvagem de outrora (LEVIS-STRAUSS, 1989).
Nas últimas páginas foram expostos alguns elementos que permitem pensar uma
―frente de expansão estatal‖ junto a Igarapé Grande nos últimos trinta anos. Resume-se a
mesma nas linhas que seguem. O primeiro elemento estatal surge com a escola, no fim da
década de 1980. Posteriormente, na década de 1990, já com uma escola mais consolidada,
surgem políticas de erradicação ao trabalho infantil pós-ECA, políticas de desenvolvimento
agrário isoladas e que não obtiveram sucesso, políticas socais de transferência de renda, ainda
em uma fase experimental. Na década de 2000, mais precisamente no ano de 2005, a própria
Associação de Moradores de Igarapé Grande faz uma solicitação junto ao governo federal
para uma política de reforma agrária, a qual resulta na concessão de casas, bens de consumo
domésticos e de uso rural, micro sistema de abastecimento de água, luz elétrica, capacitações
em atividades econômicas rurais e créditos em bancos.
Novos não humanos são inseridos em Igarapé Grande, seu mundo comum sofreu
severas mudanças, que são descortinadas com o próximo capítulo, no qual exponho minhas
experiências cotidianas junto aos descendentes do casal Farias, assim como exponho alguns
dados estatísticos coletados em campo.
338
339

CAPÍTULO VII – ECOLOGIA POLÍTICA DE IGARAPÉ GRANDE: A


COMPOSIÇÃO DE UM MUNDO SOCIOAMBIENTAL COMUM

No capítulo passado foi feito um balanço de como surgiu Igarapé Grande, contando
um pouco da história de seus moradores, seus cotidianos do passado mais distante, desde
pessoas que já faleceram até início da década de 2000. Neste capítulo trata-se do coletivo de
Igarapé Grande no presente. O mesmo está estruturado em sete tópicos, detalhados abaixo.
O primeiro trata do processo de coleta de dados, quantitativos e qualitativos. O
segundo expõe algumas reflexões sobre a coleta de dados etnográficos, argumentando que o
exercício etnográfico não resulta em ser, viver e existir como um nativo, mas apenas viver
entre os mesmos, esforçando-se ao máximo para ser sensível o suficiente para escutar o que
os mesmos e seus não humanos nos dizem. O terceiro trata da minha experiência particular de
vivência no cotidiano de Igarapé Grande, expondo dados numéricos, imagéticos e derivados
de minhas experiências em campo. No quarto tópico apresento algumas reflexões sobre o
cenário socioeconômico de Igarapé Grande. No quinto e no sexto tópicos apresento,
respectivamente, duas das principais atividades econômicas da região das ilhas, a saber, a
extração do açaí e a produção do carvão vegetal. No sétimo e último tópico construo uma
classificação dos não humanos de Igarapé Grande a partir de contribuições teóricas da
Economia Ecológica, somadas com o vocabulário de Latour.

7.1 Da natureza dos dados e breves notas sobre sua coleta

Neste tópico são trabalhados dados objetivos e subjetivos, coletados por meio de
entrevistas e questionários aplicados aos moradores de Igarapé Grande. Com efeito, este
tópico explica as condições dessa coleta, assim como constrói algumas reflexões e registros
de possíveis aprimoramentos para pesquisa futuras.
Foram aplicados 33 questionários, tendo como referência a unidade residencial. O
questionário contemplava dados de natureza diversa, como informações mais objetivas
relacionadas à infraestrutura da casa e de Igarapé Grande, dados sobre o parentesco,
escolaridade de seus residentes, assim como dados mais subjetivos, como a relação com os
recursos naturais, trajetória profissional etc. Nem todos esses dados serão aqui trabalhados,
visto que o questionário coletou muitos dados qualitativos, assim como coletou dados que não
estão diretamente ligados à proposta da tese.
Para formular o questionário a ser utilizado, passei uma média de seis meses pensando
e fazendo pequenos testes, para que esse instrumento pudesse coletar o maior número de
340

informações possíveis. Fechado o modelo, passei em torno de dois meses para finalizar a
aplicação do mesmo a todas as residências de Igarapé Grande. O procedimento para aplicar o
questionário consistia em sair da casa do ―seu‖ Dico todos os dias e ir batendo de porta em
porta. Quando não havia ninguém, eu retornava em outro dia. O início do questionário foi
composto por perguntas objetivas, como número de residentes, escolaridade, idade, atividade
econômica, genealogia da família, entre outros dados. A partir da quinta página eu solicitava
autorização para gravar a aplicação do questionário, informações como a mobilidade da
família, atividade econômica, relação com os recursos naturais e com o mercado acabavam
incitando respostas de natureza qualitativa, como a história de vida do entrevistado, as
lembranças dos humanos e não humanos do passado, opinião sobre os não humanos de hoje,
entre muitas outras.
Com efeito, a aplicação dos questionários trouxe muitos benefícios para minha
pesquisa. O primeiro deles, obviamente, refere-se ao fato de poder construir um senso
socioeconômico do local, assim como uma melhor apropriação da distribuição socioespacial
de Igarapé Grande, conhecendo empiricamente o coletivo como um todo. Considerando a
amplitude de informações que eram coletadas com o questionário, ao ponto de alguns trechos
serem gravados, me foi possível conhecer os moradores de Igarapé Grande de uma maneira
que um simples censo não permitiria, sendo este o segundo benefício. Ao mesmo tempo em
que construí um censo socioeconômico do local, também pude visualizar cada um dos atores
sociais locais em suas especificidades, já identificando casos paradigmáticos a serem
detalhados mais adiante. Assim, a um só tempo as pessoas e suas coisas me foram
apresentadas, permitindo que eu fizesse comparações e ilações que somente seriam possíveis
com meses em campo.
Por outro lado, para que eu chegasse ao questionário, muito tempo gastei, sendo essa
uma das desvantagens de executar apenas a aplicação de um grande questionário. Outra
desvantagem refere-se ao grande volume de informações coletadas por apenas um
instrumento de coleta, fazendo com que estas informações não sejam prontamente
sistematizadas, dificultando este processo no futuro, já com algum distanciamento do
campo335.

335
Outra desvantagem de aplicar apenas um questionário é que muitas informações por ele coletadas, não são
comparáveis. É o caso dos dados sobre pesca que não puderam ser exclusivamente coletados com mulheres ou
homens que trabalhavam nessa área (em outras palavras, apliquei perguntas sobre pesca a não pescadores e
deixei de aplicar perguntas sobre pesca em pescadores), entre outros exemplos. Detalho esse ponto de vista nos
parágrafos que seguem.
341

Refletindo sobre minha experiência de campo etnográfico, no caso de pesquisas


futuras a serem por mim desenvolvidas, eu procederia de maneira diversa, de modo a adotar a
seguinte dinâmica: visitas iniciais entrevistando lideranças, em um período de um mês;
aplicação de um questionário simples, com o objetivo de construir um censo socioeconômico;
no processo de aplicação de questionários, selecionar pessoas a serem futuramente
entrevistadas, assim como projetar metodologias de coleta de dados mais finos, como a
quantificação de histórias de vida ou a mobilidade humana dentro do grupo social estudado.
Caso fosse necessário ou desejado, um quarto período de campo seria executado, onde se
complementaria ou aprimoraria os questionários anteriores.
Assim, penso que o ideal seria alguns dias, talvez semanas na casa de alguma
liderança, posteriormente saindo para aplicar questionários em um levantamento
socioeconômico básico. Quando possível, durante esse levantamento, seriam logo feitas
entrevistas sobre histórico da comunidade, relação com recursos naturais no presente e no
passado etc., para então retornar em outros momentos para aprofundar questões que pudessem
ser levantadas pelos dados objetivos, assim como dados qualitativos iniciais, seja por meio de
questionários, seja por meio de entrevistas.
Em outras palavras, o campo deve ser feito de maneira dialética. A partir da
experiência por mim vivida, não me parece que uma abordagem somente qualitativa, sem
questionários, tampouco uma abordagem quantitativa, sem nenhuma entrevista, seja uma
opção que permita uma coleta de dados robusta e uma aproximação refinada das
incongruências que tanto caracterizam o fazer antropológico. Vale dizer que o processo de
inserção em campo pode ser feito, inclusive, por meio da própria coleta dos dados de natureza
mais objetiva, no sentido de que você fazer um levantamento por meio de questionário
simples com todos/as na comunidade, permite que você se faça conhecido na mesma, abrindo-
lhe portas para dados preciosos de natureza mais qualitativa.
Observo que no processo de coleta de dados, utilizei os serviços da Dinha, uma
sobrinha do ―seu‖ Dico, para a impressão dos questionários, de modo a me aproximar mais de
sua família. Obtive êxito, pois consegui várias entrevistas com seu pai, mãe, irmãos e marido.
Assim, deixo o registro que quanto mais coisas se puder fazer junto ao grupo social estudado,
quanto mais o seu cotidiano estiver atrelado ao deles, melhor. Mais adiante tratarei de maneira
mais detida sobre a temática do tempo que se deve permanecer em campo.
342

Outra lição aprendida336 foi que alguns dados são dificilmente quantificáveis ou sua
quantificação não trará muitos benefícios para a pesquisa, na medida em que sua natureza
qualitativa se sobrepõe à quantitativa, como é o caso dos dados relativos às atividades
econômicas, em que algumas dessas atividades não são passíveis de serem quantificadas,
dado o reduzido número de sujeitos que compõem o cenário investigado, valendo mais coletar
o dado qualitativamente que quantitativamente337.
Existe, ainda, os dados dificilmente quantificáveis, como o questionamento ―quais
produtos planta em seu terreno?‖ Sua resposta seria dificilmente quantificável, na medida em
que existem vários produtos e vários terrenos, consequentemente fica difícil dar precisão a
ponto de conseguir quantificar, pois nem todos explicam qual é o produto ou o terreno, onde
fica, de quem é, e nem o próprio entrevistador consegue coletar esse dado, já que não conhece
a ilha como um todo. Com efeito, a possibilidade de quantificação desse dado fica para uma
incursão futura, em que o pesquisador já possa elaborar perguntas e ranqueamentos mais
específicos, de modo que possa quantificar esses dados de maneira mais refinada.
Finalmente há o caso de dados com naturezas de quantificação diversa. Alguns dados
quantificam residência, outros família, outros se restringem a um grupo de pessoas da
localidade, por exemplo, perguntas sobre pesca se aplicam apenas a pescadores, não a
unidades residenciais.
Notei também que, em pesquisas com grupos sociais rurais, existem três tipos de
dados objetivos/quantitativos a serem capturados de início, que são referentes à estrutura
física do local, às unidades residenciais e, finalmente, aos indivíduos. Se faço uma pesquisa
que envolve um grupo social pequeno, eu devo fazer dois tipos de censo, a saber: um que
tratará do censo dos moradores (questionários individuais, ou dados coletados de modo a
individualizar as pessoas); outro que tratará do censo das unidades residenciais. O censo que
tratará da estrutura do grupo deve ser feito somente em caso da interseção de vários grupos
sociais (nas palavras da Antropologia de Comunidades, no caso de pesquisa com muitas
comunidades), pois uma entrevista com lideranças e a visita in loco permitem capturar esses
dados em casos de grupos sociais pequenos e/ou únicos.
Outra observação digna de nota é a de que dados de mobilidade populacional devem
ser coletados de maneira individualizada, ou seja, no censo de pessoas e não no censo da

336
Neste parágrafo exponho algumas reflexões sobre o processo de coleta de dados quantitativos e qualitativos,
na medida em que estes são fundamentais e também compõem o fazer etnográfico. Uma etnografia não se
constrói exclusivamente por meio de uma descrição em seu sentido subjetivo, passando também pela expressão
objetiva do cotidiano local, nomeados por Malinowski como o esqueleto da vida nativa.
337
Em outras palavras, sua quantificação é irrelevante (exemplo: são poucos pescadores em Igarapé Grande, esse
dado quantificado é irrelevante, acaba tendo um valor qualitativo, não quantitativo).
343

unidade residencial. Isso se dá em virtude do censo de unidades residenciais não conseguir


capturar a mobilidade da família, já que ela varia em número de integrantes no decorrer do
tempo338, assim como pelo fato de não poder comparar dados sobre a residência com dados
sobre um indivíduo.
Finalizo estas observações metodológicas ressaltando que não se coleta os dados de
maneira tão sistematizada como se imagina, as situações simplesmente se revelam, aparecem,
se mostram, e você deve tomar proveito delas. Claro que se deve buscá-las, mas isso não
significa que em um levantamento socioeconômico o pesquisador não possa fazer algumas
entrevistas sobre a história do grupo, sobre a atividade da pesca no passado e no presente; que
em um levantamento populacional não se possa marcar uma pescaria, uma visita à roça da
família, uma caçada, uma entrevista etc. Assim, nem sempre o pesquisador descobre o dado,
às vezes é ele que se revela para você, justamente quando você estava procurando outra
informação. Logo, quanto mais tempo ficar em campo, mais possibilidades de que os dados
sejam ou descobertos ou se revelem ao pesquisador339.
Como já explicitado no capítulo um (tópico 4), a estadia em campo se deu por meio de
três principais momentos. O primeiro refere-se às primeiras visitas a campo, feitas por meio
da escola e limitando-se às suas redondezas. O segundo refere-se ao período que passei na
casa do ―seu‖ Gilberto, presidente da associação de moradores. Esses dois momentos não
apresentam uma divisão clara entre eles, pois diversas vezes fui à escola e acabei também
entrevistando o ―seu‖ Gilberto ou, fui conversar com ele e acabei desenvolvendo alguma
atividade na escola. Entretanto, o terceiro momento foi um divisor de águas, dado que a partir
dele passei a dormir na casa do ―seu‖ Dico, vivendo em Igarapé Grande. Nesse período pude
conhecer melhor os humanos e não humanos da ilha. Com efeito, fica o próximo tópico
responsável por trazer um pouco desse cotidiano que vivenciei na casa do ―seu‖ Dico,
ademais de problematizar o processo, tão mistificado na Antropologia, de inserção e aceitação
junto às pessoas estudadas, aprofundando a reflexão do parágrafo anterior a partir de minha
própria experiência etnográfica (no sentido complementarmente construído por Malinowiski
(1984) e Geertz (1993)).

338
Em outras palavras, quando se coleta dados referentes ao grupo, os mesmos misturam os dados individuais,
ficando mais adequado capturar essa informação no senso individual (capturando dados como: trajetória da
pessoa, se já saiu da comunidade; quanto tempo passou fora; porque saiu; vai e volta todo dia da comunidade;
semanalmente).
339
No caso da etnografia, técnica antropológica utilizada para realizar uma descrição densa de uma cultura
(GEERTZ, 1993; 2001), esta cultura, vale dizer, esse ethos, nunca é descoberto, mas é precariamente construído
ao longo do tempo em campo. Logo, novamente friso: quanto mais tempo em campo, mais elementos para uma
melhor construção. Falarei mais sobre isso no próximo tópico.
344

Antes de passar para o próximo tópico e objetivando inserir o leitor no contexto de


Igarapé Grande, apresento uma árvore genealógica que explica a ligação de alguns dos meus
principais interlocutores com ―seu‖ Domiciano e dona Maria dos Anjos. Entre os mesmos
estão os netos e as netas do casal que ainda vivem em Igarapé Grande, assim como alguns
bisnetos e bisnetas que me ajudaram a melhor entender a dinâmica entre humanos e não
humanos desse coletivo ao longo de sua história.
196

Figura 08: Genealogia integrada dos principais interlocutores para a produção deste capítulo
D. 0 D. 0

Domiciano Maria
de Cristina
Farias dos Anjos

D. 0 1919 - 1989 D. 0 D. 0
70

José Boaventura Marcelino Tomásia


Farias dos Anjos Farias Farias
Farias

1938 1945 1961 1963 1940 1939 1928 1929 - 2015


1956
79 72 56 53 77 78 89 86
61
Martinha Marciano Cristino Ana Maria Antônio Antonia Raimundo Benedita
Pinheiro Bentes Bentes Farias do Monte (Dico) (Bena) Benedito
de Lima Farias Farias de Farias (Bene)

1962 1958 1965 1969 1971 1974 1978 1986 1988


55 59 52 48 46 43 39 31 29

Gilberto Maria das Maria do Maria Antônio Maria Maria do Tatiane Adalberto
Graças Farias Socorro dos Terezinha Farias TomásiaCarmo Farias Farias (Beto)
de Sousa Anjos Farias Farias Ramos RamosFarias Ramos Ramos Ramos
197

Na genealogia apresentada pelo gráfico 08 pode ser verificado os meus principais


interlocutores, citados no decorrer deste capítulo e informantes dos dados que fundamentaram
o capítulo anterior. O perfil etário dessas pessoas corresponde à indivíduos já adultos ou
idosos, com exceção do Beto (bisneto do casal Farias), único jovem integrante do gráfico
acima. Ainda que eu tenha consultado outros atores locais humanos de faixa etária menor de
trinta anos, Beto foi o mais importante deles, na medida em que pude acompanha-lo diversas
vezes em seus afazeres diários.
A elevada faixa etária de meus interlocutores também reflete o método aqui utilizado.
Na medida em que minhas intervenções junto aos humanos de Igarapé Grande se dava nas
residências, aplicando questionário, em regra, a pessoa que respondia esse questionário
pertencia à faixas etárias elevadas.
Outro importante jovem, mas que não aparece no gráfico acima, seria o Jhenisson,
rapaz de vinte e seis anos que vivia entre o campo e a cidade, atualmente fixando morada e
atividades econômicas na ilha. Ele trabalhava como servente de pedreiro na cidade, morando
com seus pais, mas os fins de semana passava na casa da namorada, filha da dona Ana, uma
das netas do casal Farias, integrante do gráfico acima. Jhenisson tem um parentesco distante
com seu Domiciano, pois seu avô materno (de nome Esmeraldo) foi filho de criação da Dona
Tomázia, logo, irmão de criação de seu Dico e dona Bena. Não coloquei Jhenisson no gráfico
porque seu avô não mora mais na ilha. Vale dizer que o próprio Esmeraldo foi um importante
interlocutor, ajudando especialmente com suas histórias para a construção do capítulo seis.
Outro importante interlocutor foi o seu Nazareno, com suas diversas histórias sobre as
ilhas. Ele é irmão do seu Dico. Não aparece no gráfico porque tampouco mora na ilha. Achei
importante estabelecer esse critério da vivência, ainda que o mesmo visite a ilha
constantemente.
Finalmente, deixo o comentário de que no gráfico também é possível ver a terceira
geração que vive em Igarapé Grande. Eles e elas são Dico, Bena, Bené, Antônio e Antônia,
Martinha, Cristino, Ana e Marciano, todos com exceção de Ana, que está na casa dos sessenta
anos.

7.2 Considerações sobre a coleta de dados na etnografia: inserção em campo, aceitação


do grupo estudado ou simplesmente experenciar um cotidiano novo?

Quando iniciei minha pesquisa de campo, eu estava eivado de preconceitos iniciais,


condição natural e inevitável que permite iniciar uma pesquisa, construindo hipótese e
problema inicial. Ocorre que o pesquisador deve ter a habilidade e a sensibilidade de, no
198

decorrer de sua pesquisa de campo, desconstruir-se e constantemente reconstruir-se para que,


com isso, esteja apto a entender aquilo que as pessoas e as coisas estudadas lhe dizem e não
necessariamente aquilo que se busca.
Assim, às vezes o antropólogo consegue encontrar o dado que inicialmente estava
procurando, mas, em regra, ao menos a partir de minhas experiências em campo, a pesquisa
acaba tomando novos rumos, pois nem sempre aquilo que inicialmente se supunha que existia
em campo, de fato existe. Esse foi meu caso, com meus problemas iniciais que abordavam
temáticas fundiárias, passando pela relação com o Estado e recursos naturais, ecologia
humana e econômica, PPCT, para finalmente repousar no problema da crítica à teoria
antropológica e à sociedade moderna a partir de minha experiência etnográfica.
Esse problema me foi constantemente colocado pelas pessoas em campo. Cito um
exemplo em especial, as conversas que eu tinha com a dona Bena, irmã de ―seu‖ Dico. Todos
os dias pela parte da manhã, após tomar café da manhã com ―seu‖ Dico, eu saia para caminhar
no ―quintal integrado‖340 das casas que haviam ao redor da residência, relembrando, são todos
parentes, logo, cercas são objetos raros. Entre eles estava a dona Bena, irmã do ―seu‖ Dico e
mãe da maior parte das mulheres adultas que moram na Cabeceira. Ela era uma referência
local.
Como mencionei, essas caminhadas sempre acabavam na casa da dona Bena, sempre
disposta à conversa, mas nunca para dar entrevistas. Logo iniciávamos o procedimental
diálogo de como era agradável morar na ilha, de como ela conseguiu criar os filhos a partir
daquilo que a ilha lhe deu, diferente das pessoas da cidade que apenas pensavam em trabalhar
e em dinheiro, gerando um local violento e perigoso de se morar.
À época eu estava preso aos meus pressupostos iniciais, assim como estava preso aos
métodos de pesquisa tradicionais que buscam dados objetivos e não se preocupam em
construir a objetividade de seus dados341. Com efeito, para o meu ―eu‖ da época, aquela
conversa informal importava muito pouco em um contexto científico, em que se deve coletar
dados objetivos, como idade das pessoas, sexo, mobilidade humana local, história de vida,
entre outros, chamando especial atenção para a descrição densa da cultura local (GEERTZ,
1993; 2001). Para mim, esses dados, ainda que tivessem uma natureza também subjetiva,
eram passíveis de serem objetivados a partir da estada em campo, sendo descobertos e

340
―Quintal integrado‖ no sentido de que os mesmos não existem na prática, pois não existem cercas separando
as terras. Elas são coletivas, já que todos são parentes, logo, herdeiros da mesma.
341
Existem dados objetivos e dados subjetivos que sofreram um processo de objetificação, podendo ser
quantificados (todo dado pode ser objetivado e posteriormente quantificado), mas vale a pena objetificar e
quantificar todos os dados? O que esse exercício revelará sobre o que se quer estudar?
199

extraídos de minhas vivências para minhas anotações/caderno de campo e, então, para a tese
em si.
Em minha imatura percepção, esses dados ou se mostrariam a mim, ou seriam
descobertos por mim, por meio de algum tipo de procedimento metodológico, como aplicação
de questionários, execução de entrevistas formais ou mesmo, em uma dessas conversas
informais, entretanto, eu perceberia a informação chegando e imediatamente a transformaria
em uma entrevista gravada. O dado ou era objetivo ou facilmente objetivado.
Pois bem, ocorre que a etnografia possui meandros que vão se mostrando somente ao
longo de sua execução. Somente após muito ―murro em ponta de faca‖ o pesquisador, no meu
caso, ainda imaturo, consegue perceber que os dados não são tão objetivos assim, mesmo
esses recém citados (mobilidade de humanos no coletivo, história de vida, entre outros).
Hoje, após minhas estadas em campo, percebo como esses dados na verdade vão
sofrendo um processo de objetivação que se dá a partir da minha rigorosa descrição de campo,
ou seja, eles não são objetivos a priori, mas são por mim objetivados a partir de minha
descrição e ilação entre as diversas experiências vividas. Não é tanto aqui uma descrição
densa em que se chega ao ethos de uma cultura, à sua teia de significados, à sua alma, como
queria Geertz (1993). Seria mais uma descrição em que se constrói sim uma teia de
significados, mas esta está menos ligada a significados propriamente ditos (interpretação de
palavras, discursos e falas em geral) do que a relações entre coisas, pessoas animais ou, nas
palavras de Latour (2013a; 2013b; 2004a), uma rede de humanos e não humanos. Não se
devem compreender pessoas e o significado que as mesmas dão ao seu mundo, mas sim
descrever as relações que o coletivo de humanos e não humanos estabelece, sendo que às
vezes se faz necessário, vale dizer, compreender as pessoas e os significados que as mesmas
dão ao mundo ao seu redor. Não é tanto a história de vida da pessoa, suas atividades
econômicas e financeiras que queremos saber, mas como esses dados trazem sentido para a
vida da pessoa e sentido para meu entendimento sobre a vida da pessoa.
Voltando ao exemplo da dona Bena com suas conversas, nestas, ela me mostrava sua
história de vida, sua relação com os recursos naturais do passado e do presente, ela estava me
dando condições de construir dados antes inexistentes, objetivar discursos, já que faziam parte
da realidade externa, enquanto eu ansiava por questionários e entrevistas formais que me
mostrariam a realidade como ela é.
Enquanto eu estava preocupado em entender falas, decifrar discursos, descrever o
modo de vida local, buscando nesse processo dados objetivos que me referenciassem, dona
Bena me explicava, à sua maneira, as coisas que eu queria saber, sendo que somente meses
200

depois entendi que esses dados não seriam objetivos, mas seriam objetivados a partir de
minha experiência em campo, que não se resume à entrevistas e questionários, se estende a
conversas informais em refeições, caminhadas pelas trilhas para se chegar a casa de algum
conhecido, ao sair para pescar camarão, entrar no mato para tirar lenha, apanhar açaí no
quintal, enfim, entre as diversas atividades do cotidiano de um morador das ilhas. Em outras
palavras, os dados são objetivados a partir de experiências, experimentos, sentimentos e
sensações vivenciadas em situações e pessoas em campo, a partir de minha inserção no
cotidiano local. A história de vida e o cotidiano da dona Bena estavam me contando que uma
crítica poderia ser feita à modernidade.
Entrar no cotidiano local, vivenciá-lo o máximo possível, fazer parte desse cotidiano
dos moradores. Feito isso, a etnografia já está em condições de ser encerrada. Por isso, ratifico
meu posicionamento já exposto mais acima: quanto mais tempo se passa em campo, mais
situações o pesquisador vivencia, logo, maiores são as possibilidades de objetivação de dados
outrora inexistentes.
Então, surge o questionamento, quanto tempo se deve ficar em campo? Não há uma
fórmula, mas uma coisa é certa, quanto maior a permanência em campo, maior a possibilidade
de se construir uma descrição amarrada às vivências desse cotidiano.
Em outras palavras, essa descrição de experiências, que em regra resulta na etnografia,
essa fabricação de dados, essa objetivação de informações por meio da descrição, está
condicionada pela permanência do pesquisador em campo. Essa descrição vai sendo feita
tanto em campo, como fora dele, não obedecendo a procedimentos fixos, mas ficando a mercê
das sensibilidades do pesquisador que, por mais treinado que esteja, nunca estará plenamente
preparado para os imponderáveis do campo.
A sensibilidade não pode aflorar de maneira artificial, não pode ser treinada a ponto de
estar preparada para qualquer situação, dada a imprevisibilidade do que se vai viver em
campo, do que os humanos e não humanos seguidos irão mostrar. Assim, essa sensibilidade
simplesmente terá que ser improvisada a partir do repertório que esse mesmo pesquisador
possui.
Por fim, essa descrição dessa teia-rede de associação entre humanos e não humanos se
dá pelo exercício dialético entre o estar lá e o estar aqui, entre o meu repertório de mundo e o
repertório de mundo dessa rede, onde não necessariamente horizontes se tocam (Viveiros de
Castro (2015) criticando Cardoso de Oliveira (1993)), entre outros autores da Antropologia
que têm como base epistemológica a distinção entre sociedade/cultura e natureza e a ideia de
―encontro etnográfico‖), mas onde eu consigo experimentar a metafísica do outro a partir de
201

minha vivência junto a eles, a partir da minha observação e participação (não uma observação
participante) do seu cotidiano, a partir da constatação de que experiências vão se repetindo,
assim como a postura construída sobre ela, o discurso sobre ela montado. Somente se pode
explicar essas situações quando algum tempo se tenha passado em campo, diferentemente da
pesquisa social dos sociólogos, obedientes a técnicas e procedimentos, entrevistas e
questionários, gravações e transcrições, fotos e filmagens, sem muita flexibilidade para
aprimorar suas sensibilidades. Nas palavras de Viveiros de Castro (2002, p. 119): ―O nativo é,
sem dúvida, um objeto especial, um objeto pensante ou um sujeito. Mas se ele é
objetivamente um sujeito, então o que ele pensa é um pensamento objetivo, a expressão de um
mundo possível, ao mesmo título que o que pensa o antropólogo.‖342
Segue trecho de meu diário de campo em que exponho um pouco de minhas
inquietações sobre as técnicas que a etnografia supostamente demandam.
Faz tempo que não escrevo aqui, por meio desse diário de campo. Foi
uma excelente ideia trazer o notebook. Bem melhor que escrever à
mão. Penso que o caderno serve somente para notas em campo
propriamente dito, ou seja, quando estou entrevistando alguém,
documentando alguma prática, etc.
Voltei ontem para a comunidade. Amanhã vou embora. Preciso
urgentemente sentar e transcrever fitas, escrever a história e
parentesco da comunidade. Acho que isso poderia ser meu relatório.
Nas próximas semanas eu aplicaria os questionários em toda a
comunidade, gravando os questionários. Se não der tempo de usar as
gravações todas, ao menos as gravações da Cabeceira eu uso.
Mais tarde quero entrevistar ―seu‖ Manoel, irmão dele (para saber de
história de vida local e como calafetar barco) e dona Tereza (história
de vida e local). Quero bater fotos da calafetagem.343

342
Continuando o trecho, caso a curiosidade do leitor tenha sido aguçada: ―Por isso, a diferença malinowskiana
entre o que o nativo pensa (ou faz) e o que ele pensa que pensa (ou que faz) é uma diferença espúria. É
justamente por ali, por essa bifurcação da natureza do outro, que pretende entrar o antropólogo (que faria o que
pensa)12. A boa diferença, ou diferença real, é entre o que pensa (ou faz) o nativo e o que o antropólogo pensa
que (e faz com o que) o nativo pensa, e são esses dois pensamentos (ou fazeres) que se confrontam. Tal
confronto não precisa se resumir a uma mesma equivocidade de parte a parte — o equívoco nunca é o mesmo, as
partes não o sendo; e de resto, quem definiria a adequada univocidade? —, mas tampouco precisa se contentar
em ser um diálogo edificante. O confronto deve poder produzir a mútua implicação, a comum alteração dos
discursos em jogo, pois não se trata de chegar ao consenso, mas ao conceito.‖ (VIVIEROS DE CASTRO,
2002, p. 119, grifos meus). Este tema foi detidamente tratado no capítulo 5 desta tese.
343
Sobre o diário de campo, deixo o registro que o mesmo se torna mais dinâmico quando digitalmente feito.
Também deixo a observação sobre a necessária diferenciação, a meu ver, do diário de campo e do caderno de
campo. No primeiro o pesquisador deve registrar seu cotidiano, suas impressões e intuições sobre o campo,
enquanto que o segundo deve ser utilizado em campo propriamente dito, ou seja, quando se está entrevistando
alguém, quando se escuta uma informação importante, enfim, deve-se sempre dispor de um caderno para rápidas
anotações em campo, assim como um diário (ou um notebook) para anotar o cotidiano vivido. Observo, ainda, a
utilidade de bolsas no formato de saco e que fecham por cima com um barbante, sendo colocadas nas costas do
pesquisador, engatadas em ambos os braços, como uma mochila (detalhe importante, pois a mochila ocupa muito
espaço e é muito rígida, impedindo movimentos rápidos. Tampouco não se corre o risco de perder o equilíbrio
com as bolsas que são engatadas em um braço apenas, considerando as várias andanças feitas em campo) e com
202

O trecho acima é exemplificativo sobre a questão dos procedimentos a serem tomados.


Sim, eles fazem parte da pesquisa de campo, mas não são eles, em sua exclusividade que a
definem. Eu poderia ter seguido o que foi acima traçado, mas não segui e muito me penalizei
por isso. Entretanto, depois percebi que não existe uma fórmula fechada para se gastar,
consumir, viver, usar o tempo em campo. Mesmo não tendo feito o que me programei para
fazer no trecho acima, fiz outras coisas, conversei mais com o ―seu‖ Dico, visitei o Beto,
ajudei a dona Bena a alimentar os animais, enfim, vivenciei outras situações que podem ser
transformadas em dados, podem ser objetivadas da mesma maneira que as entrevistas e as
fotografias acima citadas. Eu permaneci no cotidiano estudado.
A questão é que a descrição sobre o modo de vida deve ser feita a partir de
experiências, deve-se ter sempre a vivência como âncora. Nas palavras do próprio
Malinowski (1984, p. 370), deve-se fundamentar o ―relato com fatos e detalhes, e equipá-lo
com documentos, números e exemplos‖, ou seja, as conclusões tiradas na descrição devem
apontar o procedimento lógico utilizado, lançando mão do contexto vivenciado.
Assim, o antropólogo nunca será um nativo344, por um motivo muito simples, ele não
nasceu no grupo social estudado, ele não possui essa qualidade em comum (LATOUR, 2012).
O antropólogo tampouco existirá como um nativo, visto que não foi criado como. Seu plano
ontológico e metafísico é radicalmente diferente daquele do nativo. O antropólogo tampouco
irá viver como um nativo, dado que ele não contempla os dois quesitos anteriores. Ele não foi
socializado como um nativo, logo, nunca saberá viver como um. Assim, somente resta ao
antropólogo viver entre os nativos, criar experiências de vida, experenciar situações
específicas do seu campo, estar lá o máximo possível.
Devo, ainda, observar as nuances que envolvem o campo próximo à casa do
antropólogo, como é o meu caso. Tal condição faz com que surja a ilusão de que a pesquisa
de campo não interfere no cotidiano do pesquisador, a ponto de retirá-lo do mesmo por alguns
meses. Mas isso não é verdade e minhas anotações permitem refinar essa reflexão.
Retornei ontem à ilha. Estou meio doente, por isso hoje resolvi ficar
em casa (casa do ―seu‖ Dico). Antes de narrar o dia de ontem, faço a

espaço suficiente para carregar questionários, gravador, máquina fotográfica, lápis, borracha, caneta, ademais do
já falado caderno de campo.
344
Estou aqui me referindo à pesquisa clássica da Antropologia, na qual não se estuda um grupo social do qual
se faz parte. Vale dizer que esse paradigma se alargou nas últimas décadas, resultando na formação profissional
de antropólogos índios, quilombolas, agricultores familiares, praticantes de candomblé e umbanda, assim como
no alargamento do objeto de estudo da Antropologia para sujeitos que compõem a modernidade, como grupos de
homossexuais, instituições estatais, ambientes coorporativos, entre outros, permitindo que o antropólogo estude
algum ambiente do qual faz parte, independente da sua condição de antropólogo.
203

observação de como é difícil retornar a campo quando se está


trabalhando, namorando, com amigos, etc. Sempre algo te impede de
retornar a campo, mostrando-se a disciplina como algo fundamental.
Enquanto que um campo mais distante te impele a passar vários dias
de uma vez em campo, a proximidade do mesmo, caso queira ir de
maneira periódica e não intensificada como manda o figurino clássico
da Antropologia, te exige uma disciplina sem igual, transformando seu
campo não somente em uma atividade de pesquisa, mas uma atividade
que irá fazer parte do seu cotidiano, mudando-o sobremaneira.
Nesse sentido, observo como por várias vezes preparei todas as
minhas coisas para vir a campo, mas algo me impediu, seja um
compromisso social, familiar, profissional etc., algo sempre aparece e,
se você não entende seu campo como um compromisso improrrogável
(e mesmo a sua preparação, por meio de compra de rancho, comida,
preparar material de pesquisa como questionários, gravador, máquina
fotográfica etc.), deixa-se o mesmo de lado, pois um compromisso
sempre irá aparecer.

Com efeito, minhas idas e vindas ao campo me permitiram construir duas reflexões. A
primeira corresponde à problematização do processo de inserção e aceitação em campo. A
partir de minha experiência, posso dizer que não existe um divisor de águas onde o
antropólogo passa a ser aceito pelo grupo social que estuda, como pensado por Geertz em sua
briga de galos. O que existe, em verdade, se caracteriza por um processo onde o pesquisador
passa a fazer parte do cotidiano dos humanos e não humanos estudados, mas estes também
passam a fazer parte do cotidiano do pesquisador.
Aqui é possível apresentar a segunda reflexão. O processo de ―adentrar a vida dos
sujeitos da pesquisa‖, expressão tão cara à antropologia, não deve figurar como a principal
preocupação do antropólogo, devendo este primar pela objetivação de suas experiências em
campo permitida pela máxima permanência no mesmo. Passo agora à exposição de alguns dos
dados coletados e à descrição do cotidiano vivido na ilha.

7.3 Entre humanos e não humanos de Igarapé Grande


Como já exposto nos Capítulos 1 e 2, Igarapé Grande conta com 33 unidades
residenciais, destas, 31 são permanentes e duas são eventuais, utilizadas em fins de semana e
datas comemorativas. Os questionários aplicados coletaram dados da residência, assim como
fizeram um censo demográfico de Igarapé Grande, também coletando alguns dados
individuais.
São 102 o número de habitantes dessas 31 residências. Relembra-se, ainda, que o
coletivo em questão é composto por dois espaços denominados de Cabeceira e Igarapé
Grande. Estes locais são divididos por uma extensa área de floresta, sendo que, a pé, se
204

demora em média vinte minutos para cruzá-la. Para ilustrar a descrição, segue imagem
adaptada do Google Maps dos dois aglomerados recém citados, assim como um croqui de
cada um deles, especificando residências e alguns dos recursos naturais locais (já expostas no
Capítulo 1, sendo novamente aqui expostas, dado o longo caminho que já se percorreu).
205

Figura 09: Repetição da imagem de satélite de Igarapé Grande, COM a Cabeceira

Fonte: Organização própria a partir do Google Maps (2015)


206

Figura 10: Repetição do croqui de Cabeceira Figura 11: Repetição do croqui de Igarapé Grande, sem a
Cabeceira

Fonte: Organizado por Thales Ravena Cañete, executado por Juliene Furtado, adaptação digital de Uriens Ravena..
207

A imagem de satélite permite visualizar de maneira mais ampla a composição do


coletivo de Igarapé Grande, assim como, em certa medida, permite que o leitor tenha
dimensão do vigor e da potência de alguns dos não humanos que modernamente são
denominados de recursos naturais. Por outro lado, os dois croquis especificam a imagem de
satélite exposta, detalhando a disposição das residências e alguns desses não humanos,
figurando como um esforço pessoal de compreensão e descrição imagética da disposição de
humanos e não humanos de Igarapé Grande.
O cotidiano econômico345 de Igarapé Grande pode ser resumido nas seguintes
atividades:
 Criação de animais domésticos: galinha, peru, pato, porco. Ouvi relatos sobre
a criação de paca, poucos comentários sobre boi, búfalo e cavalo. Essa
atividade se desdobra em outra, a saber, o tratamento desses animais;
 Roçado: atividades de roças que abrigariam não humanos como mandioca,
macaxeira, milho para alimentar os animais domésticos criados e também para
o consumo;
 Produção de carvão vegetal: atividade que consiste na queima de madeira
retirada da floresta, transformando-a em carvão vegetal. Vale dizer que essa
atividade é precedida pela preparação de lenha retirada da floresta, podendo
ser esta considerada outra atividade econômica, na medida em que envolve
humanos e não humanos específicos;
 Extração de açaí: extração do fruto do açaí para ser vendido in natura para
marreteiros locais. Esse açaí pode ser extraído de plantações nos quintais e
roças (donos certos), ou das várzeas (nem sempre sua dominialidade é bem
definida);
 Plantio, extração e catação de frutas em geral: entre essas frutas estão o
cupuaçu, bacuri, taperebá, graviola, abacate, bacaba, jenipapo, piquiá. Inclui-se
nessa atividade extrativista, a extração de ―remédios‖, como casca de árvores,
batatas e raízes em geral, folhas, frutos, para chá, águas, banhos, xaropes e
produtos vegetais em geral;
 Pesca: a atividade da pesca é diversifica, devendo ser considerada a variação
de suas técnicas de captura(como o cacuri, tapagem, anzol,diversos tipo de
345
Entendendo ―cotidiano econômico" como a circulação de atores não humanos entre atores humanos, ou, dito
de outra forma, os processos de trocas entre atores humanos, mediados por não humanos e suas agências.
208

espinhel e rede, puçá, faixo), ademais da variante da espécie de peixe, ou


mesmo de outras espécies, como o caramujo, siri, camarão, sendo que cada
uma se configura em uma atividade, na medida em que apresentam universos
de técnicas e objetos diferenciados (ou, nas palavras de Latour, universo de não
humanos diferenciados);
 Caça: corresponde à caça de animais viventes na floresta, como veado, paca,
tatu, cutia, quati, mucura, entre outros;
 Atividades domésticas: corresponde ao cuidado com a casa, especificamente à
gestão da circulação de humanos e não humanos dentro do ambiente
doméstico, ademais da manutenção dessa rede formada. Vale observar que essa
atividade é predominantemente feminina;
 ―Serviços rurais‖: corresponde à manutenção e gestão dos não humanos que
compõem o mundo rural, como fazer e reparar barcos, canoas, remos, matapis,
concertar motores e outros objetos, preparar terrenos para plantio, fabricar
móveis e casas (estes serviços são divididos segundo a forma de pagamento,
que pode ser por empreitada ou por diária);
 Aposentados e pensionistas;
 Trabalho com carteira assinada;
 Funcionalismo público.

No passado, esse mesmo cotidiano poderia estar preenchido também por outras
atividades que evidenciavam como a relação com os ciclos da natureza ordenavam as escolhas
e o cotidiano dos moradores, entre outras atividades que se perderam no tempo, podendo ser
assim descritos:
 tirar seringa (produzindo bola e diversos produtos derivados da borracha,
localmente utilizados);
 fazer chocolate e produtos derivados do cacau (colhido na localidade);
 processar café (plantado na localidade);
 retirar leite de vaca, manufaturando produtos derivados do mesmo como
manteiga, coalhada e queijo;
Os afazeres acima expostos podem ser classificados entre econômicos e financeiros (o
segundo está contido no primeiro). Assim, o segundo se caracteriza por incluir a pessoa em
uma relação que lhe trará um retorno financeiro, ou seja, lhe trará o não humano que
209

convencionamos chamar de dinheiro. O primeiro refere-se à atividade que trará não


necessariamente dinheiro, mas qualquer outro tipo de bem consumível, como fazer roça e
farinha, catar frutas, pescar e extrair outros recursos faunísticos do rio, trocar favores com o
vizinho etc. Assim, a atividade econômica está ligada à ideia de normas da casa (oikosnomia),
como ela funciona, como seus atores transitam, sejam eles humanos ou não humanos. A
atividade financeira, por outro lado, está ligada aos mecanismos de acesso ao dinheiro, que,
no caso da região das ilhas, se dão por meio da venda dos produtos locais ou da força de
trabalho. Com efeito, todas as atividades acima expostas são econômicas, mas nem todas são
financeiras, mesmo que toda atividade financeira seja econômica.
Dentre as atividades acima, pode-se classificar como financeiras, funcionalismo
público, aposentados, pensionistas, trabalhadores da cidade de carteira assinada, venda da
força de trabalho por empreitada ou diária e a venda de produtos locais como o açaí, carvão,
peixe e produtos agroextrativistas em geral, visto que são as atividades que integram o ator à
rede que denomino de mercado financeiro (circulação do não humano dinheiro)346. Os não
humanos, que figuram como produtos das outras atividades econômicas, também podem
estar voltados para a troca local por outros não humanos, ou mesmo para o consumo da
família produtora do mesmo, não sendo obrigatoriamente integrados ao mercado financeiro
local. Segue um quadro que melhor elucida essa classificação das atividades econômicas
desenvolvidas pelos descendentes do ―seu‖ Domiciano, agregando informações sobre a
intensidade da natureza financeira dessa atividade dentro do mercado de bens local.

346
Entendo mercado financeiro como o espaço físico e simbólico de troca de não humanos em geral, mediado
exclusivamente pelo não humano conhecido como dinheiro. Neste trabalho apresentarei duas variações desse
―mercado financeiro‖, um de escala local, ou seja, circulação de dinheiro entre as ilhas e suas adjacências, outro
de escala regional, ou seja, circulação de dinheiro entre a região de Ananindeua ou RMB em geral. Essa escala
pode ir se ampliando, passando para o mercado do estado do Pará, da região Norte, do Brasil e finalmente
adentrar diretamente o mercado financeiro global (lembrando que, a rigor, qualquer mercado financeiro, ainda
que de escala local, está ligado ao mercado mundial, ainda que não diretamente).
210

Quadro 03: Atividades econômicas possíveis para os moradores de Igarapé Grande


Atividade Especificidade da atividade Natureza da atividade
Peixe Consumo

Pesca Camarão Consumo e venda eventual


Caramujo Consumo
Roça (mandioca) Consumo
Agricultura
Açaí Consumo e venda cotidiana
Carvão vegetal Consumo e venda cotidiana
Extrativismo Açaí Consumo e venda cotidiana
Frutas em geral Consumo
Animais silvestres nativos Consumo
Caça
Galinha Consumo e venda eventual

Criação de Peru Consumo e venda eventual


aves
Pato Consumo e venda eventual

Atividades domésticas Gestão da circulação dos não humanos


Serviços em Diária Atividade financeira
geral347
Empreitada Atividade financeira
Iniciativa privada Atividade financeira
Funcionário do Estado Atividade financeira
Assalariado (município)
Aposentados e pensionistas Atividade financeira
Fonte: Trabalho de campo (2014-2016)

No quadro são expostos cinco tipos de classificação das atividades econômicas, a


saber, ―financeira‖, ―consumo e venda cotidiana‖, ―consumo e venda eventual‖, ―consumo‖ e
―manutenção e gestão da circulação dos não humanos‖. Os itens dessa classificação, em regra,
não são autoexcludentes. Por exemplo, a extração de açaí pode ser para fins de consumo
familiar, venda eventual e/ou cotidiana, sendo assim, também uma atividade financeira, na
medida em que se ingressa no mercado da RMB, ademais de ter a necessidade de sofrer
manutenção e gestão para fins de sua circulação.
Exceções a essa regra seriam as atividades que dão acesso exclusivamente ao não
humano dinheiro, como o trabalho de carteira assinada, o funcionalismo público e as demais

347
Capinar algum terreno, reformar/pintar imóveis e móveis e atividades domésticas.
211

transferências de renda estatal para a sociedade civil. Essas atividades, na medida em que não
produzem nenhum tipo de não humano que não o dinheiro, não podem ser classificadas como
―venda constante, eventual ou consumo‖, tampouco necessitam ser ―geridas‖.
Assim, as linhas marcadas em vermelho escuro são aquelas que predominantemente
apresentam relação com o mercado financeiro (―atividade financeira‖ e ―consumo e venda
cotidiana‖), garantindo a inclusão do humano que a exerce no mercado financeiro regional,
enquanto que as vermelhas mais claras correspondem às atividades de nenhuma (dependentes,
consumo e donas de casa) ou de baixa relação (vendas eventuais) com o mercado financeiro,
limitando-se, no máximo, a uma circulação doméstica ou local.
Todas essas atividades, como exposto acima, podem ser feitas de maneira
concomitante ou complementares por um mesmo ator humano. Todavia, uma pessoa deve
apresentar entre uma e duas atividades que são predominantes, ainda que exerça outras
atividades de caráter complementar. Essa qualificação entre predominante e complementar
foi construída a partir da pergunta ―Qual sua principal atividade econômica‖, feita no
questionário aplicado em Igarapé Grande. O Quadro 04 expõe a quantificação por habitante
das possíveis atividades econômicas que são entendidas como predominantes, mescladas com
a possibilidade de acesso ou não ao dinheiro por meio dessa atividade.

Quadro 04: Meio de acesso ao dinheiro, sua respectiva atividade exercida e


quantificação
Meio de acesso ao dinheiro Atividade exercida Frequência Porcentagem
Sem acesso direto ao dinheiro Dependente 35 34,3
Dona de casa 8 7,8
Dona de casa e
Dona de casa
criação 9 8,8
Dona de casa e açaí 1 1,0
Carvão e açaí 12 11,8
Açaí 1 1,0
Por meio de trocas com o
mercado da região das ilhas Açaí e pesca 1 1,0
Roçado 2 2,0
Vendinha 1 1,0
Por meio de vínculos com Pensionista 2 2,0
estruturas econômicas e Aposentado 7 6,9
estatais da modernidade, Carteira assinada 8 7,8
vendendo sua mão-de-obra Funcionário público 15 14,7
Total 102 100,0
Fonte: Trabalho de campo (2014-2016)
212

Algumas das atividades expostas mais acima não aparecem no Quadro 04, ou, se
aparecem, estão aliadas com outra atividade. Assim, existe a possibilidade de uma atividade
não ser predominante sozinha, mas, quando aliada a outra, ambas tornam-se predominantes
(caso do carvão e do açaí, que quando juntas, formam uma atividade predominante).
Com efeito, as seguintes atividades não aparecem no quadro acima, na medida em que
são complementares: caça, roça, ―serviços rurais‖, plantação, extração e catação de frutas em
geral (com exceção do açaí), coleta de ―remédios‖ do mato, pesca de peixe, caramujo, siri e
camarão, criações de aves de pequeno porte.
As atividades econômicas predominantes também podem ser divididas em virtude da
idade da pessoa, classificando-a entre crianças/jovens, adultos e idosos. Os adultos praticam
as atividades que, em regra, fazem movimentar o mercado econômico e financeiro (com
exceção das donas de casa348); idosos são aposentados, figurando como uma importante fonte
de dinheiro para esse mercado;finalmente existem aqueles que acessam o dinheiro de maneira
indireta, como algumas mulheres que são exclusivamente ―donas de casa‖, ademais de
crianças e adolescentes que figuram como dependentes.
Em virtude da escola e do posto de saúde de Igarapé Grande, o funcionalismo público
figura como o expoente das atividades entre os humanos adultos de Igarapé Grande, como é
possível ver no Quadro 04. Outra possibilidade para os adultos seriam as atividades
agroextrativistas, especialmente a extração do carvão vegetal e do açaí, ademais do mercado
de trabalho formal, seja por meio de carteira assinada, seja por meio do funcionalismo
público, como já mencionado.
Vale dizer que as ―donas de casa‖, no exercício das atividades domésticas,
desenvolvem várias funções, estando ligadas com a manutenção e gestão dos não humanos.
Muito comum entre as donas de casa, como exposto no quadro acima, é o caso da criação de
aves de pequeno porte como uma atividade que se destaca dentro do âmbito doméstico, na
medida em que esses não humanos podem funcionar como moeda de troca dentro do mercado
econômico de outros não humanos, inclusive como meio de acesso ao dinheiro, por meio de
eventuais vendas.

348
Vale dizer que, ainda que essas atrizes sociais não sejam fonte de renda direta, são importantes na medida em
que são elas que recebem qualquer transferência de renda do governo, ademais de serem elas as responsáveis, em
regra, pela gestão e manutenção do espaço doméstico, incluindo a gestão de não humanos como o dinheiro da
família e a produção diária de alimentos.
213

Com efeito, na análise do quadro, é possível perceber que as principais atividades que
dão acesso direto ao dinheiro são, em ordem decrescente: funcionário público (15); atividade
conjunta da extração do açaí e do carvão vegetal (12); carteira assinada (8); aposentados (7).
Vale destacar que quem mora em Igarapé Grande dificilmente se limita a uma
atividade financeira apenas, exercendo outras funções que não só complementam sua renda,
mas também atividades de ordem econômica e não financeira que suprem as necessidades da
casa. Nas palavras de autores da Antropologia Econômica que trabalharam com economia
doméstica, atividades de subsistência. Como exemplo, cito o consumo ou a eventual venda do
camarão, do peixe, frutas, farinha etc.349
Seguem trechos de meu diário de campo em que se pode melhor visualizar, a partir de
meu cotidiano de pesquisa, o dia-a-dia da economia local.

Tomamos café juntos. ―seu‖ Dico fez o café e eu fiz dois pães com
queijo. Conversamos sobre muitas coisas. Seu Dico contou que o
caçador deve posicionar-se em locais com ―comidinha‖ (árvores
frutíferas, pelo que eu entendi), observando, ainda, se essas
comidinhas já não estão muito comidas, se estiverem, é possível que a
caça já esteja enjoada da mesma e não apareça por lá.
Depois do café, lavei a louça, escrevi algumas coisas e acompanhei
―seu‖ Dico em dar comida para os bichos e limpar o espaço deles.
Saíram peruzinhos e pintinhos de uma perua e uma galinha que
estavam no choco. Uma outra galinha que estava com 16 ovos não
conseguiu tirar nenhum. Aprendi com o ―seu‖ Dico que nesse caso
tem que tirar/expulsar a galinha do ninho e colocar para o galo pisar
que ela volta a botar de novo, saindo do choco. Depois disso saímos
para o Ig. Grande para pegar carne na casa do ―seu‖ Bené e dona Nenê
(―seu‖ Dico tinha deixado encomendado uma carne assada lá) e eu
precisava ir buscar meu caderno de campo que tinha ficado no barco
do ―seu‖ Gilberto.
Saímos na canoa do Jojoca, ―seu‖ Dico foi remando. Nós descemos no
porto do ―seu‖ Paraco (ele ainda está fazendo a casa dele lá).
Colhemos alguns quiabos, estavam já muito maduros, aí ficam duros,
mas mesmo assim nós colhemos. Aí fomos lá para a casa da dona
Nenê. Parece que estamos entrando no tempo do bacuri, pois as
árvores estão todas floridas, assim como os cajueiros já estão com
caju. Já na casa da dona Nenebati fotos de uma fruta (cajarana, parece
que vem do Ceará, o ―seu‖ Domiciano tinha aqui, mas era uma árvore
bem maior, ―seu‖ Dico contou que a avó dele vendia muito, mas as
árvores morreram; a árvore do ―seu‖ Bené é bem pequena e não era
daqui, alguém que deu para ele) e da árvore dela, engraçado que a
dona Nenê pediu para ver as fotos. O Beto tinha saído para tirar uma
diária em uma fazenda da Ilha Guajarina.
349
A aposentadoria é algo comum na atualidade, graças à ―sociedade‖, como eles se referem à sua previdência
rural, tirada por meio da associação de moradores.
214

Eu saí atrás do meu caderno. Só estava a dona Rosa lá. Peguei o


caderno e conversei um pouco com ela. Ganhei três siris. Ela pediu
para que eu levasse dois cocos secos, para serem plantados, um para o
―seu‖ Dico e outro para o Jojoca.
Voltei para a casa da dona Nenê. Estavam lá o Bubu e o Mateus. Dei o
coco e disse que eu já ia embora pela trilha. Voltando para a casa
encontrei a dona Joelma e ―seu‖ Antonio (pais do Genisson).
Conversei um pouco com eles, me pediram a árvore genealógica deles
(acho que têm interesses em acesso a terra, pois queriam saber se o
Genisson é primo da Andresa, sua esposa).
Passando pela casa da dona Ana conversei com o Genisson e ele me
mostrou o veado que o Paulo matou no dia anterior. Fui para a casa
para carregar um pouco a câmera e bater umas fotos. Daqui a pouco
vou baixá-las.

A descrição acima permite imaginar/pensar o cotidiano de um ribeirinho ao longo do


ano, fazendo alguma dessas tantas atividades, sem contar aqueles que possuem um trabalho
público ou privado (neste caso do privado, se deslocam diariamente para o centro da cidade).
Assim, o cotidiano seria algo parecido com os seguintes procedimentos, executados por uma
família idealizada que mora nas ilhas: a família acorda, o café é feito, composto por tapioca,
farinha de tapioca ou qualquer outro produto local, o homem sai para ―trabalhar‖350, digamos,
primeiramente concertar sua rede que está furada e amolar seu terçado, depois vai à sua roça
para capiná-la. Enquanto isso, sua mulher prepara as crianças para irem ao colégio, cuida da
criação de galinhas e patos e prepara o almoço. Voltando para casa, o homem tira alguns
cachos de açaí para complementar o almoço da família preparado pela esposa, basicamente
um quarto de caça que ganharam do vizinho (pois sempre dividem seu açaí com o mesmo)
com muita farinha de mandioca, que ganharam de outro vizinho, pois mês passado tinham
sido eles que haviam dado o saco de farinha. Depois do almoço o sol é forte, o trabalho é
pausado, toma-se um banho na maré para refrescar, indo posteriormente descansar. De tarde,
depois das quatorze ou quinze horas, já com um sol mais ameno, o homem sai atrás de uma
cambada de peixe que prometera para sua mãe, aproveitando para garantir sua janta, enquanto
que a mulher cuida das crianças que retornaram da escola.
Esse seria o exemplo de uma família moradora típica de Igarapé Grande. Tal perfil
vem mudando ao longo dos anos. Em regra, os mais jovens cada vez mais desejam uma vida
citadina, urbana, com um emprego de carteira assinada, residência na cidade, carro e bens de
consumo padrões da sociedade brasileira hegemônica. Essa mudança de perfil se dá por

350
Coloco o termo trabalhar entre aspas para que o leitor relativize esse conceito, não associando-o pura e
exclusivamente à venda da força de trabalho, mas pensando-o como atividades que os habitantes de Igarapé
Grande desenvolvem para alcançar o seu bem viver. Particularmente, no lugar de trabalhar, prefiro, ―desenvolver
suas atividades‖.
215

diversos motivos: avanço da cidade para as beiradas do Curuçambá; muita gente para pouca
terra, floresta e rios; mídia alienadora que lhes diz diariamente que seu modo de vida é errado,
que são agricultores familiares pobres e que seu trabalho em nada muda a vida da nação etc.
Segue trecho de um estudo da Prefeitura de Ananindeua que corrobora este pensamento, mas
atribui essa mudança nos jovens exclusivamente à necessidade de acesso ao ensino médio que
pode ser feita somente fora da região das ilhas.
A população rural mais jovem que consegue concluir o ensino
fundamental é estimulada a migrar para áreas urbanas, em busca de
vagas nas escolas de ensino médio. Com o tempo, perdem
completamente a identidade com o meio rural, não mais retornando às
suas raízes. Esse contingente contribui para o aumento dos bolsões de
pobreza na periferia urbana do município. O fato é considerado a
principal causa do decréscimo progressivo da população
economicamente ativa, formada por trabalhadores mais jovens,
fazendo com que a área rural, principalmente a região das Ilhas, tenha
sua população representada expressivamente por crianças e idosos
(ANANINDEUA, 2013, p. 8).

Com efeito, seguem algumas reflexões que teci em campo sobre a vida econômica
local, contrapondo-se com a vida econômica moderna e globalizada.

7.4 Sendo ator do cotidiano de Igarapé Grande: a propósito da dádiva e sua circulação
entre humanos, por meio de não humanos

7.4.1 Antropologia da troca, da barganha e da simbiose

O ser humano de fato é um ser econômico, mas não no sentido de que sempre quer
lucro, mas no sentido de que sempre está disposto a trocar, realizar barganhas. Nós não somos
capitalistas ou economicus como supunham os descendentes teóricos de Adam Smith (1996) e
a economia neoclássica351, naturalmente adaptados a um mercado financeiro. Em outras
palavras, realmente somos hommo economicus, mas no sentido da troca de coisas, não no
sentido da mão invisível, do consumo e da livre iniciativa de mercado352.Vale observar o
dinheiro, esse não humano que em muito prejudica essa relação da dádiva 353, pois ele
impessoaliza as relações. Na nossa sociedade o meio (ganhar dinheiro) virou fim (quanto mais
dinheiro, mais realizado como ser humano sou). Quando essa lógica é implantada em

351
Como Friedman (1985), por exemplo.
352
Para mais detalhes sobre essa problematização da naturalização humana da economia financeirizada, ver
Polany (2000), Mauss (2013), Boas (2007), Malinowski (1984), Gordon (2006, 2014), Godynas e Acosta (2011).
353
No sentido de Marcel Mauss (2013), como a obrigação de dar, receber e retribuir.
216

coletivos rurais, o mesmo sofre severas transformações em sua composição, assim como nas
associações que são feitas entre humanos e não humanos.
Então, somos seres trocadores, trocamos as coisas, passamos a dádiva adiante.
Aparentemente, essa seria uma característica humana, como querem os modernos, mas não
seria ela mais uma forma de simbiose? Ou a simbiose não seria mais uma forma de dádiva,
pois a essência é a mesma: a troca para um benefício mútuo, sem grandes impactos para
outrem. Em outras palavras, não estaria o ser humano, ao trocar bens materiais e imateriais,
seguindo sua natureza de ser vivo?

7.4.2 Antropologia das festas das PPCT (e suas trocas)


Esta reflexão consiste em um desdobramento da ideia de troca, construída acima,
sendo pensada a partir da vivência de comemorações de datas festivas pelos moradores de
Igarapé Grande. Nesta experiência saltou aos olhos o que Mauss (2013) adiantou nas trocas
do dom. Nosso objetivo como ser humanos e, talvez como seres vivos, é trocar, não tendo que
―ganhar‖, mas simplesmente dar, é a dádiva em ação, o bem que se recebe, não tem que ser
diametralmente respondido, mas deve ser respondido para o cosmos maior, alguém receberá
esse bem no lugar de quem lhe deu a dádiva. Essa dádiva respondida para outrem, em algum
momento deverá chegar de alguma maneira para a pessoa que lhe concedeu a dádiva. Para
problematizar essa questão, faço uso de reflexões sobre os momentos comemorativos que de
alguma sorte escutei o relato, ou mesmo participei em Igarapé Grande.
As festas na região das ilhas sempre eram feitas com a colaboração dos diversos
parentes/vizinhos. O favor a mim concedido me torna comprometido com o agente desse
favor, não apenas com ele, mas com todo seu núcleo familiar. Esse favor, quando devolvido,
dificilmente o será vis a vis ao favor inicial, criando um vínculo entre seres e seus respectivos
núcleos familiares, quase que insolúvel.
Para que uma festa ocorra, se faz necessário a parceria da vizinhança/parentes, doando
carne, bebidas e uma série de não humanos materiais e imateriais para a realização da festa 354.
Esses não humanos ativados são um meio para que se alcance o fim do bem viver355. A festa

354
Exemplos: ajudar a organizar a festa, trazer enfeites e brindes, trazer pratos e bebidas diversas, ajudar na
manutenção e limpeza final, apenas para ficar em exemplos mais comuns.
355
No sentido de Godynas e Acosta (2011).
217

propriamente dita pode ser entendida como um meio de se associar à um não humano
imaterial que permitirá o alcance do bem viver. Assim, elas não são um fim em si mesmas,
elas são um meio para alcançar o fim último, que é o bem viver.
Retornando ao ativamento de não humanos. Quando alguém pensa em doar a carne
para a festa, esse ato tem início muito antes da mesma, pensando naquele leitão que acabou de
nascer. A pessoa pensa, ―provavelmente vou usar esse leitão no aniversário de quinze anos da
minha filha‖. Tem início a jornada de preparação desse não humano. O leitão é criado,
alimentado e cuidado. Meses se passam e as pessoas ao redor já têm a consciência desse
acontecimento e que elas, na condição de vizinhas/parentes que desejarão serem ajudadas em
uma situação similar, começam a responder o anúncio da festa, encarregando-se de outros não
humanos. Um dos parentes, já sabendo dessa probabilidade, já tinha reservado uma parcela da
sua produção de frutas para parentes que quisessem sucos e bebidas em geral e assim a dádiva
vai multiplicando-se.356.
Para melhor elucidar as trocas que presenciei em campo, segue trecho de meu diário
em que narro um dia em campo marcado pela circulação de bens locais, a partir da
perspectiva da dádiva de Mauss (2013).
Hoje eu também bati umas fotos da dona Tomázia batendo açaí e a ajudei. Acho que
dá para documentar isso. Também bati foto do ―seu‖ Dico alimentando os bichos,
preparando esse alimento, acho que posso falar sobre o cotidiano dele e dos outros
(mas especialmente dele).
No outro dia, 09.10, eu ajudei a dona Tomázia a bater açaí, debulhei açaí que o
Jenisson tinha apanhado e ajudei a dona Ana a bater açaí. Ganhei meio litro pra
tomar na hora e mais uns dois litros pra levar. Esse dia foi bem interessante, pois eu
conversei bastante com o Jenisson. Ele me explicou como diferenciar o açaí branco
do preto, como subir na árvore e ainda fomos lá no forno dele e conversamos mais
um pouco.
Na volta, estava ―seu‖ Mangaba em sua casa. Me chamou e eu passei por lá. Me
mostrou o espaço que quer fazer para que passem o natal e ano novo em seu terreno.
Conversamos bastante, Fernandinha e dona Joana me mostraram os jabutis, estão
com 10 no total e um bicho de casca novo que não sabem o que é (vive na água).
Eles comem manga. Trouxe a trouxa de roupa que dona Joana tinha lavado para
―seu‖ Dico.

Houve muitas outras situações em que recebi algo de alguém, por alguma ajuda que
prestei. Exemplificando, seguem os não humanos a mim doados por alguma situação similar:
siri, coco, abacate, cupuaçu, caça, açaí, farinha, beiju, chocolate, farinha de gergelim, todos

356
Isso pode aplicar-se e ampliar-se para comunidades rurais da Europa, camponesas, que fazem sua cerveja e
seu vinho. Um tio já guarda uma parte de seu vinho para o aniversário da sobrinha, o casamento do primo, o
nascimento do afilhado etc. Enfim, a dádiva continua, você recebeu e deve retribuí-la em geral, no caso, para sua
comunidade. Faço o paralelo com a Europa para refletir sobre a sua formação como sociedade que jamais foi
moderna
218

localmente produzidos. A Fotografia 20 mostra o dia em que ajudei a dona Tomázia, expondo
a máquina de bater o açaí e sua zelosa dona em ação.
Fotografia 20: Dona Tomázia batendo

açaí
Fonte: Trabalho de campo (2015)

Também já fui agente da dádiva alheia, em outros momentos, como quando a dona
Nene, cunhada do ―seu‖ Dico, pediu que eu levasse a roupa dele, por ela lavada, de volta para
a casa dele, logo após uma das entrevistas que fiz na sua residência. Outro exemplo, seria o
episódio narrado mais acima, em que trouxe dois cocos de Igarapé Grande para a Cabeceira,
um para o ―seu‖ Dico e outro para o Jojoca, além dos siris que serviram de janta. Também era
bastante comum que eu levasse comida para o ―seu‖ Dico, feita por suas cunhadas ou
sobrinhas, inclusive, essa comida também serviria para mim. Esses episódios, portanto,
mostram que entrei no circuito do dom.
Passo agora à descrição de duas das principais atividades econômicas e financeira da
ilha, a produção e extração do açaí e da lenha/carvão.

7.5 Extração e beneficiamento do açaí


219

O açaí é extraído e beneficiado em quatro etapas. A primeira corresponde ao processo


de coleta dos cachos ainda nos açaizeiros. A segunda corresponde ao ato de debulhar o açaí,
retirando-o do cacho, deixando seus caroços em algum recipiente para ser posteriormente
lavado. Em regra, esse recipiente ou é um balde/lata de manteiga/tinta/verniz de dez
quilogramas, ou um paneiro feito com material reciclável de garrafa pet, ou de tiras do tronco
da árvore localmente conhecida como miriti ou buriti. A sequência de fotografias abaixo
permite elucidar essas duas fases

Painel 02: Ordem das fotografias, de cima para baixo, da esquerda para a direita:
Genisson retirando cachos de açaí de seu quintal; cachos de açaí e materiais de
armazenamento; Genisson finalizando o processo de debulhar e deixar o açaí de molho;
um recipiente cheio de açaí pós molho, pronto para ser batido

Fonte: Trabalho de campo (2015)


220

Nas fotografias do Painel 02 é possível ver os quatro tipos de objetos utilizados para
armazenamento e lavagem do açaí: baldes, panelas, latas e paneiros (de garrafas PET e/ou
miriti/buriti). Nas duas últimas fotografias é possível ver o açaí antes de estar preparado para
ser batido, em cor ainda opaca e seca, em contraste com o açaí brilhoso e de cor viva, já tendo
sido deixado de molho, pronto para ser batido.
Na terceira fase o açaí é preparado para o beneficiamento, ou seja, ele vai ser ―batido‖
em uma máquina que irá retirar a polpa que envolve o caroço da fruta. Nessa preparação o
açaí debulhado é lavado e colocado de molho na água por aproximadamente trinta minutos, de
modo a amolecer a polpa que envolve o caroço. Algumas pessoas pingam algumas gotas de
água sanitária para melhor higienizar o açaí. O fruto é novamente lavado com água corrente
em abundância, para então serem ―batidos‖, ou seja, para que sejam despejados na máquina e
entrem na quarta fase, que é a extração da polpa do açaí. Abaixo segue uma fotografia
expondo um caroço de açaí já lavado e deixado de molho, pronto para ser batido, de modo a
fazer com que a polpa que envolve o caroço da fruta apresente rachaduras, expondo seu
interior.

Fotografia 21: Açaí pronto para ser batido

Fonte: Trabalho de campo (2015)


221

A máquina recebe o açaí e funciona como um grande liquidificador, por isso o termo
―bater‖. Adiciona-se água, de modo que em alguns minutos a polpa do açaí estará sendo
despejada ao fundo da máquina em estado líquido, na medida em que a polpa já está mais
mole, após o período de molho, misturando-se com a água que é jogada dentro da máquina,
como mostram as figuras abaixo.
222

Fotografia 22: Dona Ana batendo açaí

Fonte: Trabalho de campo (2015)

Painel 03: Dona Tomázia batendo açaí

Fonte: Trabalho de campo (2015)


223

Assim, vemos a dona Tomázia (Painel 03) e a dona Ana (Fotografia 22) colocando
água na máquina já abastecida com caroços de açaí, sendo esse açaí ―batido‖, saindo seu
―vinho‖357 no canto inferior da máquina. A quantidade de água regula a densidade do ―vinho‖
do açaí, assim, quanto mais água, mais fino o açaí. Depois de alguns minutos expelindo o
vinho do açaí, deve-se tirar os caroços da máquina, já não mais revestidos da sua polpa
(Painel 04).

Painel 04: Dona Tomázia retirando o caroço do açaí já batido, a ser descartado

Fonte: Trabalho de campo (2015)

Fica o vinho do açaí disponível para consumo ou, caso o açaí venha a ser consumido
depois, seja por motivos domésticos, seja para vender, deve-se congelar a sua polpa recém-
beneficiada, para um melhor acondicionamento, garantindo uma vida útil mais longa. Vale
dizer que, em regra, o beneficiamento do açaí é feito para o consumo ou troca local, não
sendo um ator não humano a ser trocado por dinheiro. Abaixo segue imagem em que é
possível ver o açaí antes e depois de ser batido.

357
Termo local que se refere à polpa do açaí batido. Esse mesmo termo é utilizado para outras frutas, como o
vinho do buriti ou do cacau, por exemplo, outras frutas locais que também podem ser ―batidas‖.
224

Painel 05: O açaí in natura, mas já pronto para ser batido e o açaí já batido, em seu
estado líquido

Fonte: Trabalho de campo (2015)

Vale dizer que apenas uma família faz o beneficiamento do açaí para venda, por outro
lado, mais de vinte famílias trabalham com a venda do açaí in natura para marreteiros locais,
ainda que essa venda não seja uma atividade principal em todas essas famílias. Assim, o açaí
funciona como um ator não humano que dará acesso a outro ator não humano, o dinheiro.

7.6 Extração da lenha e do carvão


Essa atividade econômica e financeira, tão característica dos humanos da ilha, pode ser
descrita a partir da seguinte dinâmica. Primeiro se vai à mata para tirar a lenha, faz a
derrubada da árvore358, transforma-a em lenha, cortando em toras de aproximadamente um
metro. Posteriormente ―carreia‖359 a lenha até o forno e lá você a queima, transformando-a em
carvão, em um processo que dura em média de dois a três dias para que o mesmo esteja
disponível para comercialização. Seguem as Fotografias 23 e 24 que expõem o forno de barro
sendo operados pelo ―seu‖ Dico, de modo a expor as dimensões do forno, ademais de uma
foto de um saco de carvão com lenha ao fundo, expondo os dois lados desse processo, na
medida em que se apresenta o produto antes e depois de ser beneficiado.

358
A rigor, existe uma série de critérios para definir uma árvore a ser derrubada para a feitura do carvão.
Elementos como espécie, porte e distância entram nas ponderações para derrubar uma árvore ou não. Como não
é objetivo deste trabalho exaurir a atividade da fabricação do carvão na ilha de João Pilatos, deixo esta nota para
fins de informação e registro.
359
Significa transportar a lenha, normalmente em algum tipo de carro de mão, por isso ―carrear‖.
225

Fotografia 23: “Seu” Dico executando o complexo procedimento de


colocar fogo na lenha dentro do forno

Fonte: Trabalho de campo (2015)

Fotografia 24: Lenha e saco de carvão

Fonte: Trabalho de campo (2015)


226

Finalizando o processo de carrear a lenha, tem-se ainda duas atividades antes de


começar o processo de queima. A primeira refere-se à retirada do carvão da última fornada e
seu respectivo ensacamento. Na segunda atividade deve-se preparar a lenha carreada para ser
colocada no forno, partindo ao meio os troncos ou pedaços de troncos mais grossos e
separando-a minimamente, segundo critérios de porte. Segue a Fotografia 25 que expõe a
pilha de madeira já carreada e parcialmente separada, esperando ser colocada no forno e
devidamente queimada, enquanto é feita a ―desfornada‖, ou seja, retirar o carvão do forno.
Esse procedimento é feito pelo Beto, sobrinho do ―seu‖ Dico (filho do irmão do Dico) e,
consequentemente, bisneto do ―seu‖ Domiciano.

Fotografia 25: Visão panorâmica de onde fica o forno

Fonte: Trabalho de campo (2015)

Na Fotografia 25 é possível visualizar, em primeiro plano, a lenha que será inserida no


forno (que fica no terceiro e último plano). Em segundo plano, é possível ver o Beto
ensacando o carvão que já estava no forno, produzido em outro dia, sendo necessariamente
ensacada em dias posteriores, para que o carvão esfrie. Abaixo o Painel 06 em que é possível
ver o Beto executando o processo de retirar o carvão do forno para, posteriormente, ensacá-lo,
permitindo ao leitor visualizar as tarefas cotidianas, ao passo que tem disponível os não
humanos envolvidos em um dos principais processos econômicos locais.
227

Painel 06: Processo de retirar o carvão do forno e ensacá-lo

Fonte: Trabalho de campo (2015)

Feitas essas duas atividades, pode-se começar a encher o forno com lenha e atear fogo
no mesmo, esperando que esta se transforme em carvão no intervalo de aproximadamente um
228

dia. O ponto exato de quando a lenha já transformou-se em carvão, segundo o ―seu‖ Dico, é
quando saem chamas azuis em um buraco que fica no fundo do forno. Estando o carvão no
ponto, tapa-se esse buraco, impedindo a entrada e saída de ar e o forno é ―abafado‖. Espera-se
mais 24 horas para esfriar o forno, podendo então abri-lo, quando então se inicia a desfornada.
Nesse período, em regra, providencia-se mais lenha para queimar e transformar em carvão.
O processo de colocar a lenha no forno, como mencionado, atende a alguns critérios.
Primeiramente deve-se separar a lenha por tamanho, fazendo três montes. Um com gravetos
finos, outro com gravetos médios, outro com gravetos grossos, tal como ilustra a foto a seguir.

Fotografia 26: Lenha separada por tamanho

Fonte: Trabalho de campo (2015)

Separada a lenha, deve-se empilhá-la de uma maneira específica, colocando duas toras
grandes e redondas de base, para então, em perpendicular, atravessar pedaços de paus, ficando
as toras grandes como base de um amontoado de lenha. Coloca-se a lenha em cima das duas
toras grandes, da mais fina para a mais grossa, lá pela metade do monte, coloca-se novamente
uma lenha fina (pois o fogo a consome mais rapidamente e favorece o processo de
transformar a lenha grossa em carvão) para então continuar a colocar a lenha mais grossa, até
quase o teto do forno, que deve ter mais ou menos um metro e meio de altura, um metro de
largura e mais um metro e vinte de comprimento. Seguem duas fotografias, uma com a pilha
ainda pequena, outra já no seu limite de altura (Painel 07).
229
230

Painel 07: Etapas para empilhar a lenha no forno

Fonte: Trabalho de campo (2015)

Depois de colocar um monte de lenha, coloca-se outro monte, na sua frente, para então
colocar aproximadamente três toras grossas em pé, responsáveis por fazer com que o fogo
suba, transformando em carvão a lenha que fica no topo dos montes. Faz-se uma pequena
fogueira embaixo dessas toras em pé, sendo que essa fogueira é feita com o carvão da fornada
anterior que ficou um pouco ―verde‖, ou seja, não terminou de queimar. Segue o Painel 08
que permite identificar o processo de empilhar a lenha no forno, realizado pelo Beto.
231

Painel 08: Beto iniciando o processo de separação e empilhamento da lenha, com o forno
ainda sendo cheio

Fonte: Trabalho de campo (2015)


232

Painel 09: Beto finalizando o processo de empilhamento da lenha, com o forno já cheio e
pronto para atear fogo

Fonte: Trabalho de campo (2015)


233

Lenha empilhada, é hora de atear fogo na mesma. Nas fotografias do Painel 09 pode-
se ver o Beto empilhando lenha em seu forno, contudo, não é ele que irá colocar fogo na
lenha, é o ―seu‖ Dico. Há toda uma técnica para colocar fogo no forno, denotando como isso é
difícil e demanda um conhecimento e domínio de técnicas particulares. Beto, quando
consegue executar essa tarefa (pois várias vezes o fogo do seu forno já apagou), demora quase
um dia inteiro para fazer com que o fogo de fato se instale no forno, enquanto que em meia
manhã o ―seu‖ Dico faz isso e dificilmente o fogo se apaga.
Na medida em que o fogo vai ficando mais forte, após fazer a pequena fogueira na
entrada do forno, começa-se a fechar a sua porta com tijolos e barro, sendo que se deve
sempre deixar o ―agulheiro‖, que é uma pequena fresta na parte central e inferior da ―porta‖
do forno, com o objetivo de que continue a entrar vento e oxigênio.
O critério do local de construção do forno atende a dois fatores: o solo deve ser
barrento, permitindo assim fazer o forno de barro e as portas do forno, toda vez que for fazer
carvão. Ademais, o mesmo preferencialmente deve ser próximo do igarapé, para que se possa
escoar a produção de maneira mais fácil.
Após aproximadamente um dia de queima, quando o buraco ao fundo do forno (que
serve para que o vento circule entre o mesmo e o agulheiro, alimentando as chamas com
oxigênio) solta uma chama azul, deve-se tampá-lo para que o fogo se apague. Com o intervalo
de mais um ou dois dias do forno apagado, pode-se ―desforná-lo‖, ou seja, retirar o carvão que
está lá dentro. Esse processo dura em média três horas, entre tirar o carvão e ensacá-lo.
Depois de tirar e ensacar, coloca-se novamente lenha no forno para acendê-lo mais adiante.
Não existe uma necessária ordem temporal nesse processo de retirar lenha do mato,
prepará-la, desfornar, colocar lenha no forno vazio, acender o fogo, deixar queimar, apagá-lo,
tirar e preparar mais lenha nesse meio tempo, desfornar e queimar mais lenha, novamente
fabricando mais carvão. Os intervalos de tempo podem variar, mas a principal regra refere-se
à zelar para que nem a lenha e nem o carvão molhem, pois isso dificulta a sua queima e sua
venda. Abaixo, o Painel 10 mostra o carvão já ensacado e devidamente armazenado num local
que não pegará chuva, com o Beto ao lado, dono do carvão. A fotografia do lado esquerdo
corresponde ao carvão já ensacado, mas ainda não devidamente armazenado, enquanto que à
direita o carvão já está armazenado e protegido da chuva.
234

Painel 10: Beto com o carvão já ensacado (fotografia à esquerda) e devidamente


armazenado (protegido da chuva) para venda (fotografia à direita)

Fonte: Trabalho de campo (2015)

7.7 Mudanças nos não humanos conhecidos como recursos naturais na modernidade
Como demonstrado, muitos foram e são os não humanos existentes na ilha. A partir
das atividades de associação dos mesmos com os humanos, exposta nos tópicos anteriores e
no Capítulo 6, cheguei a uma classificação desses não humanos, entendendo-os como não
humanos com energia vital, com energia não vital, de baixa entropia360, de alta entropia,
materiais e imateriais. Passo, então, à explicação dessas classificações, posteriormente detalho
o conceito de entropia361, mostrando sua importância para este trabalho362, para então, por
meio de dois sub tópicos, detalhar seus correspondentes da classificação de não humanos
acima feitas, junto aos não humanos de Igarapé Grande.
Aquilo que modernamente chamamos de ―seres vivos‖ podem ser classificados como
não humanos materiais, com energia vital e de baixa entropia; ―objetos ou coisas‖, como não
humanos materiais, sem energia vital com grau de entropia variável; ―metaconceitos‖ como
não humanos imateriais, sem energia vital com grau de entropia variável. Em outras palavras:
 Seres vivos: não humanos
materiais, com energia vital, apresentado baixo grau de entropia;
360
Este conceito será adequadamente detalhado mais adiante. Por ora, pode-se entendê-lo como a quantidade de
energia dissipada no processo de fabricação de algo. Por exemplo, o processo de alimentação de uma planta é de
baixa entropia, pois pouca energia é dissipada, ficando grande quantidade de energia acumulada na planta. Por
outro lado, a locomoção de um carro apresenta um alto nível de entropia, na medida em que a energia utilizada
para tanto se dissipa em forma de calor e de movimento. Assim, quanto mais energia dissipada, mais entropia.
361
Dado que este é um conceito distante das abordagens das ciências sociais, caro às ciências duras,
especialmente a Física.
362
A proposta da argumentação apresentada nasce na leitura de autores da Economia Ecológica (GEORGESCU-
ROUGEN, 2012; CAVALCANTI, 2012, 2010, 2004, 2003, s/d; MARTINEZ-ALIER, 2014; CECHIN, 2010) e a
reflexão sobre como ao modo de vida dos grupos, considerados pelos modernos como tradicionais, é marcado
por um baixo grau de entropia, ao passo que os supostos modernos desenvolvem atividades econômicas de
altíssima entropia, potencializadas pelo mercado financeiro.
235

 Objetos ou coisas: não humanos


materiais, sem energia vital com grau de entropia variável, estando esta, em
regra, vinculada ao modo de vida tradicional ou moderno, respectivamente
correspondendo à baixa e à alta entropia (os produtos dos tradicionais
produzem baixa entropia, como arados e enxadas, enquanto que os modernos
produzem muita entropia, como carros e indústrias);
 Metaconceitos: não humanos
imateriais, sem energia vital com grau de entropia que varia de acordo,
novamente, com o grau de ―tradicionalidade‖ ou ―modernidade‖. Os
metaconceitos variam entre esses grupos sociais, mas utilizarei um mesmo
metaconceito para ambos os grupos, o metaconceito de felicidade. É possível
verificar como esse não humano chamado de felicidade assume significados
diferentes, que refletem uma prática ontológica e metafísica diferenciada, que,
por sua vez, resultarão em um grau de entropia diferenciado envolvido no
mesmo. Enquanto que na sociedade moderna a felicidade está atrelado a altos
índices de consumo, propriedades de não humanos diversos, especialmente do
dinheiro, nos grupos sociais denominados de tradicionais, a felicidade que
compõe o seu mundo comum está ligada a não humanos como mesas fartas,
―vida mansa‖, vivências cotidianas com parentes e amigos. Em outras palavras,
a felicidade para os tradicionais não movimentam altos índices de entropia,
sendo seu simétrico moderno o inverso desse gradiente363.

Para entender essa classificação deve-se conhecer as leis da termodinâmica e alguns de


seus desdobramentos. São quatro leis, enumeradas em lei zero, lei um, lei dois e lei três, todas
explicadas no capítulo 5 desta tese. Para fins de resgate de conteúdo, exponho novamente a
essência da ideia de termodinâmica e de entropia.
A termodinâmica corresponde a uma disciplina da Física moderna que ―trata das
propriedades da matéria sob circunstâncias nas quais a noção de temperatura e calor não

363
Esta é uma ideia ainda em construção. Nesta tese, me limitarei ao que foi exposto mais acima, tendo plena
consciência de sua falta de refinamento, mas ainda insistindo em seu uso na medida em que se mostra como um
marcador de diferença entre tradicionais e modernos. Nesses metaconceitos podem ser incluídas instituições
formais e informais, como Curupira, Caipora, IBAMA, INCRA, entre outros. Ainda que mais adiante eu traga
mais detalhes sobre essa relação entre humanos e não humanos metaconceituais, utilizando o paralelo entre a
sociedade moderna e o coletivo de Igarapé Grande como ilustração, adianto que, para mais detalhes sobre a
simetria desses não humanos entendidos como PPCT não índios, pode-se consultar Mauro Almeida (2013) e
Wawzyniak (2003; 2010).
236

podem ser ignoradas‖ (SAVI; COLUCCI, 2010, p. 12). Considerando que temperatura é o
grau de calor de um corpo, e que calor é energia, termodinâmica pode ser entendida como a
área da física que estuda o movimento da energia entre corpos e sistemas.
Entropia seria a segunda lei da termodinâmica, que entende que toda vez que existe
troca de calor entre um corpo e outro, este calor trocado não é integralmente transferido para o
outro corpo, perdendo-se este calor para o ambiente, isto é, a energia dissipa-se para o
ambiente em forma de calor. Como exemplo pode-se utilizar os automóveis da modernidade
que, ao queimar combustível fóssil, utilizando sua energia para se movimentar, perde grande
quantidade dessa energia em formato de calor, sendo este calor/energia dissipada para o
ambiente e assumindo o formato de energia que não poderá mais ser utilizada pelo ser
humano. É este processo de transformação de energia utilizável (combustível fóssil) em
energia inutilizável, (calor dissipado), que se dá o nome de entropia. Em outras palavras,
entropia corresponde ao nível de energia dissipada em um processo de troca de energia.
Quanto mais energia dissipada, mais entrópico é o processo.
Com efeito, volta-se a Igarapé Grande, para mostrar como os não humanos mudaram
ao longo do tempo, pensando essa mudança a partir da percepção interna, coletada por meio
de questionário aplicado nas unidades residenciais.

7.7.1 Relação com os não humanos entendidos como seres vivos


Divido esses não humanos em quatro categorias, a saber: caça, desmatamento, pesca
de peixes e pesca de camarões. Esses dados foram coletados a partir dos 31 questionários
aplicados em campo. Observo que dois serão descartados, pois são famílias que passaram a
viver na ilha há menos de cinco anos, impossibilitando qualquer tipo de juízo histórico sobre a
mesma. Passemos à caça.
É unânime que os tipos de espécies e o número de animais viventes no mato
diminuíram. Entre as caças catalogadas que deixaram de existir estão onça, capivara, suiá,
caititu, queixada e anta. Vale dizer que esses animais, com exceção do suiá, nunca ocorreram
em abundância na ilha, segundo os relatos dos caçadores locais. Cenário diferente ocorre com
o veado vermelho, a cotia e a paca, outrora encontrados em abundância, são os tipos de caça
que menos têm hoje na mata. Atualmente, o tipo de caça que mais existe é o tatu, o quati e a
mucura.
237

Em relação aos peixes, nenhum tipo de espécie deixou de existir364. Entretanto, tanto o
tamanho dos peixes, como a quantidade diminuíram, segundo 28 dos 29 entrevistados que
responderam aos questionários. E mais de um terço dos questionários diz que a quantidade e o
tamanho do peixe começou a diminuir faz aproximadamente dez anos, atribuindo tal processo
ao fato de haver muita gente pescando (dezenove das vinte e nove pessoas deram essa
resposta). As outras opções eram pesca de tarrafa, poluíram muito o rio, muitas redes, gente
de fora pescando e aumento do consumo, sendo que essas três últimas opções podem ser
consideradas como sinônimas da opção ―muita gente pescando‖, novamente expondo a força
dessa opção.
Em relação à pergunta sobre ―há quanto tempo que o tamanho e a quantidade do peixe
vem diminuindo?‖, vale observar que as opções variavam de ―nos últimos três anos‖,
passando para ―mais de dez anos‖, para então as opções crescerem de cinco em cinco anos,
até chegar há ―mais de 40 anos‖. Com efeito, as respostas se concentraram em ―mais de dez
anos‖, com mais de um terço dos entrevistados, sendo que as duas opções seguintes (mais de
15 anos e mais de 20 anos) concentram o outro terço de questionários válidos, permitindo
inferir que a escassez de recursos pesqueiros é uma realidade com menos de vinte anos.
Quanto ao camarão, vinte e sete (de vinte e nove) pessoas responderam que antes ele
era maior, estabelecendo a seguinte cronologia para a sua diminuição.

Quadro 05: Períodos em que o camarão começou a diminuir de tamanho


Quando começou a diminuir o tamanho
Frequência Porcentagem
do camarão?
Mais de 3 anos 1 3,2
Mais de 5 anos 2 6,5
Mais de 10 anos 11 35,5
Mais de 15 anos 6 19,4
Mais de 20 anos 4 12,9
Mais de 25 anos 1 3,2
Mais de 40 anos 2 6,5
NSA (não se aplica) 4 12,9
Total 31 100,0
Fonte: Trabalho de campo (2015)

364
Vale observar que, segundo os pescadores locais, peixes bois deixaram de existir e a população de botos
diminuiu drasticamente. Não os mencionei acima na medida em que são mamíferos aquáticos e não peixes.
238

As quatro pessoas com resposta NSA (não se aplica) ou não pescam ou não moravam
na região das ilhas para poder responder a pergunta. Assim, neste caso diminui-se um
questionário dos vinte e nove válidos até então, sobrando vinte e oito questionários válidos.
Desses, onze disseram que o camarão começou a diminuir há mais de dez anos, seis disseram
há mais de quinze anos e quatro há mais de vinte anos, coincidindo com o caso do pescado,
em que dois terços dos questionários apontaram a diminuição dos recursos entre dez e vinte
anos.
As causas apontadas para a escassez e a diminuição do tamanho do camarão são quase
idênticas às causas do pescado: 19 pessoas disseram que isso ocorreu por conta do excesso de
gente pescando, ou seja, mais da metade da amostra.
No caso do desmatamento, a primeira questão ligava-se à lenha, em que todos
disseram que antes havia mais lenha que hoje. Quanto à possibilidade de desaparecimento de
alguma espécie de lenha, somente seis disseram que de fato algumas espécies deixaram de
existir.
Quando questionados sobre a existência de mais ou menos açaí no passado, as
opiniões se dividiram. Dos 29, 13 disseram que antes havia mais açaí, enquanto que 16
disseram que havia menos. As explicações foram muitas, entretanto, focaram-se em três
relatos. Se a pessoa defendia a tese de que antes havia mais açaí, justificava seu
posicionamento observando que na atualidade, quando cai algum açaizeiro, os jovens não
plantam outro no lugar, enquanto que antigamente, ―os mais velhos‖, logo substituíam o
açaizeiro caído por outro. Outra explicação liga-se à percepção de que os recursos naturais
estão acabando, estando os açaizeiros entre eles. Quando a tese defendida era a de que
atualmente existe mais açaí, esta se justificava pelo aumento na extração do açaí, fazendo com
que alguns ilhéus passassem a manter plantios de açaí.
Vale dizer que essas duas respostas, antes tinha mais ou menos açaí, derivaram de um
questionamento que não diferenciava se o açaizeiro era de uso aberto365 ou se era exclusivo.

365
Uso a expressão aberto, evocando a ideia de livre acesso aos não humanos modernamente conhecidos como
recurso natural. Essa ideia de livre acesso a recursos naturais teve sua origem no seminal artigo The tragedy of
the commons, de Garret Hardin (1968), o qual reflete sobre uso dos recursos entendidos como comuns, ou de
livre acesso. Estes seriam aqueles que todos podem desfrutar, como por exemplo, a pesca em um rio. Hardin
então observa que esse recurso, na medida em que é aberto, tende a ser sobre explorado, já que todos o
exploram, mas ninguém cuida para que se perpetue. A saída que Hardin apresenta seria a conversão da
propriedade comum em privada, ou que normas governamentais a usos e usuários sejam instituídas. Com isso,
Hardin desconsiderava a possibilidade da gestão dos bens comuns feita pelos próprios usuários. Vale observar,
aqui, a principal crítica feita a Hardin, que desconsiderava a gestão dos recursos naturais pelo regime comunal.
Feeny et al (2001), ao comentar Hardin, demonstram o relativo sucesso que grupos sociais diferenciados
obtiveram na gestão dos bens de uso comum aos quais tinham acesso, contradizendo o argumento de Hardin que
reduzia a saída da tragédia dos comuns às duas possibilidades acima citadas: a propriedade privada ou a
239

Assim, para aqueles que não trabalham com o açaí, de fato o mesmo ―diminuiu‖, na medida
em que são poucos os açaizeiros dos quais podem recolher seus cachos na atualidade, pois os
mesmos sofreram um processo de exclusão de seus beneficiários, justamente por parte
daqueles que trabalham com o açaí, que transformaram esse recurso de uso aberto em recurso
de uso fechado. Estes, por outro lado, começaram a plantar açaí, criando a sensação de que de
fato existem mais pés de açaí disponíveis.
Em minha percepção, mais uma variável deve ser adicionada a essa fórmula, que seria
o local do açaizeiro. De fato o número de açaizeiros de várzea deve ter diminuído, pois esse é
um recurso aberto, enquanto que o açaizeiro plantado em terra firme não. Com efeito, o uso
dos açaizeiros de várzea aumentou muito, desgastando-os, vindo os mesmos a morrer
gradualmente, mas considerando que são um recurso aberto, ninguém preocupou-se em
replantá-los. Por outro lado, os açaís de plantio, em regra de terra firme, aumentaram e muito,
na medida em que passaram a ser plantados e transformados em não humanos que dão acesso
a mercado financeiro, sendo que outrora essa não era uma possibilidade para os moradores de
Igarapé Grande.
Quanto ao desmatamento, o Gráfico 02 mostra o índice de desmatamento segundo
análise de imagens de satélites com um espaçamento de dez anos366.

regulação estatal. Com efeito, os autores concluem que para que a propriedade comum dê certo deve-se manejar
os recursos comuns concedendo independência ao grupo de usuários para que, com isso, eles possam excluir
outros usuários em potencial e também possam regularizar uso e usuários, minimizando problemas associados à
subtração.
366
Melhor esclareço esse cálculo. Os números do gráfico são oriundos de análise de imagens de satélites feitas,
utilizando como marcador de diferença entre áreas de floresta e áreas descampadas a pigmentação verde clara da
verde escura, onde a verde clara corresponde às áreas descampadas e a verde escura corresponde às áreas de
mata. No processamento e gestão dos dados cartográficos georreferenciados foi utilizado o software de Sistema
de Informações Geográficas (SIG) ARCGIS 10.2; na manipulação e edição dos dados, criação do banco de
dados georreferenciado e na finalização dos projetos cartográficos foi utilizado o software ArcGIS 10.2; os
dados cartográficos foram desenvolvidos no plano de coordenadas geográficas e Datum horizontal SIRGAS-
2000; em relação à base de dados vetorial foram utilizados dados oriundos do IBGE e IBAMA; os mapas e os
dados de desmatamento foram calculados pelo geógrafo e técnico em Cartografia Wellington Fernandes, como
esclarecido mais abaixo, nos mapas expostos.
240

Gráfico 02: Índice de desmatamento de 1984, 1994, 2004 e 2010

Fonte: elaborado a partir de análise de fotos de satélites (Figuras 12, 13,


14 e 15, expostas abaixo).

A média de desmatamento entre as décadas de 1984 a 2004 é de 1,8385 km²367. Em


outras palavras, a cada dez anos a ilha perde 1,8385 km² de floresta, a partir da tendência do
intervalo de décadas recém citado. A partir desses dados, pode-se calcular o avanço anual do
desmatamento, dividindo por dez a média de desmatamento dessas três décadas, chegando ao
avanço anual de 0,1838 de área desmatadas por ano (Gráfico 03).

367
A média foi tirada a partir da somatória dos quatro períodos e sua respectiva divisão.
241

Gráfico 03: Crescimento médio anual do desmatamento

Fonte: Elaborado a partir de análise de fotos de satélites (Figuras 12, 13, 14


e 15, expostas abaixo)

No intervalo de 1984 a 1994 (coluna azul) expressa como houve um grande


crescimento do desmatamento por ano, permanecendo essa tendência entres os anos de 1994 à
2004 (coluna vermelha). Entretanto, de 2004 a 2010 (coluna verde), calculando a média do
desmatamento desses sete anos, tem-se uma drástica redução do avanço anual de
desmatamento (de 0,14485 para 0,0626), o que indica uma tendência para a diminuição do
desmatamento no futuro. A última coluna corresponde à média do desmatamento de todo o
período.
Com efeito, segue uma sequência de mapas em que é possível verificar essa
informação a partir de uma perspectiva imagética368.

368
Vale observar que esses gráficos foram construídos a partir dos dados disponibilizados por esses mapas, como
já explicado mais acima.
Figura 12: Imagem de satélite da ilha de João Figura 13: Imagem de satélite da ilha de João 239
Pilatos no ano de 1984 Pilatos no ano de 1994
Figura 14: Imagem de satélite da ilha de João Figura 15: Imagem de satélite da ilha de João 240
Pilatos no ano de 2004 Pilatos no ano de 2010
254

Ao observar os mapas é possível verificar o avanço acelerado do desmatamento nas ilhas


de Ananindeua. A cor verde representa áreas de floresta, a cor rosa representa áreas já
descampadas. No ano de 1984 a ilha era predominantemente verde, com o passar dos anos, o
desmatamento avançou, ao ponto de já saltar aos olhos as áreas mais extensas de desmatamento
no ano de 2010, sendo que a área desmatada aumentou mais de quatro vezes desde o ano de
1984.
Para finalizar este tópico, trago mais um dado com a intenção de refletir e reforçar a
inexistência do mito moderno da natureza intocada, ou, nas palavras de Latour da divisão
moderna entre natureza e política. Ocorre que, em minhas andanças por Igarapé Grande, observei
que a classificação entre animais silvestres e domésticos não era inteiramente aplicável. Muitas
foram as experiências que me permitiram pensar essa incongruência.
Primeiramente, o hábito do ―seu‖ Dico de criar pássaros, como curió, japiim, sabiá, entre
outros de canto bonito. Em nossa sociedade, esses pássaros seriam selvagens, mas para os
moradores de Igarapé Grande, não o são. Esse hábito, vale dizer, se estende para outras pessoas,
inclusive, para outros animais. Tomei conhecimento de famílias que tinham criações de jabuti,
paca e macaco. No passado, ainda que não existisse criação de cotias (ao menos eu não escutei
essa informação), existiam tantas cotias que as mesmas habitavam todos os quintais das ilhas.
Existe ainda o caso do pássaro na casa do ―seu‖ Paulo que entra e come comidas deixadas pela
cozinha.
O argumento aqui a ser destacado resume-se à ideia de que, como observado por
Stratehern (2014), a divisão entre natureza e cultura, em outras sociedades que não a moderna,
nem sempre é feita ou, no caso de Igarapé Grande, sua empresa pouca importância têm na
composição do mundo comum de seus moradores. O caso do ―seu‖ Dico e seus passarinhos é
exemplar. Certa vez, lhe perguntei se ele não tinha pena dos pássaros que ficavam presos na
gaiola, visto que perderam sua liberdade. Ele me respondeu que pena ele tem é dos pássaros que
estão soltos e não tem proteção e ―de comer‖ todo dia como seus passarinhos o tem. Assim,
existe a ideia de uma vida humana, mas não necessariamente cultural no sentido de ser uma vida
oposta à vida natural ou selvagem.
No caso do ―seu‖ Paulo e o pássaro que come na sua cozinha, novamente se tem a junção
entre natureza e cultura, ou ao menos um caso em que a tradicional divisão de selvagens e
civilizados não se aplica. Se isso ocorresse em uma residência citadina, a probabilidade de se
255

expulsar o pássaro com medo de doenças seria muito grande. Novamente o mito da modernidade
estéril entra em cena. Assim, o mundo não deve avançar em direção à cultura, à luz da
civilização, as coisas não devem estar a todo momento sendo civilizadas ou culturalizadas, como
querem os modernos.

Fotografia 27: Pássaro na casa do “seu” Paulo, relativizando natureza


e cultura ou selvagem e domesticado

Fonte: Trabalho de campo (2015)

7.2 Dos metaconceitos e das coisas


A relação dessas pessoas com os objetos é bastante peculiar. Eles ainda não são
orientados pela lógica consumista da sociedade hegemônica (valor de troca no lugar de valor de
uso). Por exemplo. Sempre que eu ia a campo, eu levava uma forma com doze ovos quando
ficava na casa de ―seu‖ Dico. Nenhuma das formas o ―seu‖ Dico jogou fora. Algumas vezes eu
256

levei leite em caixa, ―seu‖ Dico guardou todas as caixas. A bola que utilizávamos para jogar
futebol era periodicamente consertada pelo ―seu‖ Antônio, filho da dona Bena. A caixa d‘água de
Cabeceira era limpa e sofria periódica manutenção pelos próprios moradores de lá. Os motores
dos barcos eram revisados pelos próprios usuários ou, no máximo, por parentes ou conhecidos da
família, somente em casos extremos eram levados para uma manutenção profissional ou trocados
por novos.
O caso do ―seu‖ Dico nos conta ainda outra coisa sobre o coletivo de Igarapé Grande. Em
comparação com nossa sociedade, percebe-se como eles não produzem resíduos e, quando
produzem, é algo desprezível. A ideia de descartabilidade não existe para eles. Todo objeto é
reutilizado, reaproveitado, dificilmente sendo descartado. No caso dos resíduos sólidos orgânicos,
como restos de comida, estes eram descartados no próprio quintal e entravam novamente no ciclo
entrópico da floresta, transformando-se em energia em forma de adubo. Na sociedade moderna,
restos de comida viram lixo, sendo depositados em locais afastados dos centros urbanos,
causando imensos impactos ambientais, como o atualmente vivido pela RMB e a falta de um
aterro sanitário dentro dos parâmetros estabelecidos pela legislação ordinária.
Essa comparação de coletivos, a partir de seus possíveis resíduos, nos remete ao próprio
metaconceito resíduo, que faz parte da sociedade moderna como um dos grandes problemas a
serem resolvidos no século XXI, dado a grande quantidade por nós produzida, sendo que, por
outro lado, as sociedades ditas tradicionais não padecem desse problema, inclusive a própria ideia
de lixo nem sempre faz parte de seu vocabulário.
Com efeito, pode-se dizer que a residência dessas pessoas é sempre formada por não
humanos com grande valor de uso e pouco valor de troca, permitindo um exercício de
relativização daquilo que se entende por riqueza, felicidade e prosperidade em nossa sociedade.
Esses substantivos, na suposta modernidade, refletem-se no substantivo propriedade e no verbo
consumo. Quanto mais coisas uma pessoa tem e quanto mais ela consome, mais rica, mais feliz.
Consumo e propriedade são sinônimos de boa vida/bem viver em nossa sociedade, todavia, nas
sociedades tradicionais, esses substantivos assumem outros significados.
Para os moradores de Igarapé Grande, por exemplo, a felicidade está associada à relação
com parentes e amigos, possibilidade de ter mesas fartas, com muito açaí, camarão, farinha e
257

caça. Isso é felicidade, isso é riqueza, isso é prosperidade e é assim que uma vida boa ou o bem
viver devem ser vividos para eles202.
Um paralelo dessa crítica à nossa sociedade pode ser construído a partir de tendências
atuais nas publicações. Ultimamente vem sendo comum publicar sobre valores, saindo da
exclusividade do fato, do dado e do objetivo. Cada vez mais os autores das Ciências Sociais vêm
se permitindo falar sobre assuntos como vida boa (BARZOTTO, 2010), bem viver (GODYNAS;
ACOSTA, 2011), felicidade (GREVE, 2013; CAVALCANTI, s/d), ética (MENDONÇA, 2013),
entre outros, saindo dos trilhos da ciência racionalista ou positivista, puramente analisando dados
e fatos, descarrilando para assuntos de ordem filosófica e dos domínios da moral e da ética203.
Penso que isso se apresenta como um sintoma do limite da ciência moderna, ora racionalista, ora
positivista, epistemologicamente engessando as possibilidades de diálogo, reflexão e análise com
a realidade. Comentando os limites da Antropologia como ciência,
[...] deve-se poder produzir uma descrição científica das ideias e práticas indígenas,
como se fossem objetos do mundo, ou melhor, para que sejam objetos do mundo. (Os
objetos científicos de Latour são tudo menos entidades indiferentes, pacientemente à
espera de uma descrição.) Outra estratégia possível é a de comparar as concepções
indígenas às teorias científicas, como o faz Horton, segundo sua ―tese da similaridade‖
(1993:348-54). Outra, ainda, é a estratégia aqui proposta. Penso que a antropologia
sempre andou demasiado obcecada com a ―Ciência‖, não só em relação a si mesma – se
ela é ou não, pode ou não, deve ou não ser uma ciência -, como sobretudo, e este é o real
problema, em relação às concepções dos povos que estuda: seja para desqualificá-las
como erro, sonho, ilusão, e em seguida explicar cientificamente como e por que os
―outros‖ não conseguem (se) explicar cientificamente; seja para promove-las como mais
ou menos homogêneas à ciência, frutos de uma mesma vontade de saber consubstancial
à humanidade – assim a similaridade de Horton, assim a ciência do concreto de Levi-
Strauss (Latour [1991] 1994: 46). A imagem da ciência, essa espécie de padrão ouro do
pensamento, não é porém o único terreno em que podemos nos relacionar com a
atividade intelectual dos povos estrangeiros à tradição ocidental (VIVEIROS DE
CASTRO, 2015, p. 223).

Nesse sentido, tentei levar os humanos de Igarapé Grande a sério e, para mim, estes
podem apresentar algumas saídas a partir de seus próprios não humanos metaconceituais,
formadores de sua ontologia, que, segundo minhas pesquisas, se resumem no valor de pessoas
trabalhadoras e tementes à energia superior, buscando um bem viver manso, longe dos problemas

202
Essa conclusão retiro das conversas que tive com ―seu‖ Dico, Gilberto, Beto, Genisson, dona Bena, dona Tereza,
―seu‖ Manoel, ―seu‖ Antônio (filho da dona Bena), Surucucu, Paraco. Em alguns momentos o discurso da inserção
no sistema e junção de bem viver com possuir dinheiro foi acionada, mas logo descartada quando se entra na questão
dos problemas que a vida na cidade traz (muito barulho, poluição, congestionamento, confusão, stress, segundo as
próprias palavras das pessoas com quem conversei).
203
Como faziam alguns dos nossos muitos fundadores, como Bubber, ao falar da relação entre o eu e o tu, Tarde, ao
comentar a sociabilidade a partir da diferença, logo, a partir de valores diferenciados, ou mesmo Smith e uma das
suas primeiras obras, a ―Teoria dos Sentimentos Morais‖, comentando a simpatia entre as pessoas.
258

da cidade, com amplo conhecimento dos não humanos que os cercam. Eles, como os grandes
autores das Ciências Sociais, estão pensando o bem viver, a ética e a felicidade204.
Para finalizar este capítulo, gostaria de chamar a atenção para um sintomático fenômeno
que vem aumentando nos últimos anos na composição do mundo comum de Igarapé Grande, que
é a questão da segurança pública. No passado, esse metaconceito não fazia parte do coletivo em
estudo, contudo, hoje ele é preocupante. Minha intenção aqui não é abordar o tema em toda sua
complexidade, dado que minha pesquisa liga-se a outros propósitos, mas apenas citar sua
existência e apresentando alguns dados indicativos sobre o tema, coletados em campo.
Na coleta de dados cheguei aos seguintes totais. Treze dos trinta e um interlocutores
relataram terem sido nos rios que ligam as ilhas ao bairro do Curuçambá. Quando questionados
sobre se conheciam alguém que já foi assaltado nos rios, todos disseram que sim. Esses
conhecidos são assim quantificados.

Quadro 06: Número de pessoas conhecidas que foram assaltadas nos rios
Quantas pessoas conhecidas da
comunidade ou da região das ilhas que já Frequência Porcentagem
foi assaltado
Uma pessoa 1 3,2
Mais de 5 pessoas 10 32,3
Mais de 10 pessoas 6 19,4
Mais de 15 pessoas 2 6,5
Mais de 20 pessoas 9 29,0
Mais de 30 pessoas 3 9,7
Total 31 100,0
Fonte: Trabalho de campo (2015)

A questão da segurança pública chegou, inclusive, a limitar minhas atividades em campo,


na medida em que no primeiro ano de coleta de dados poucas foram as vezes que levei
equipamento de registro imagético, como câmera e celulares, já que as narrativas de assalto eram
constantes em Igarapé Grande, mas também em toda a região das ilhas, inclusive no porto do
Surdo.

204
Coletei alguns dados sobre a ideia de felicidade e uma espécie de ―índice de felicidade‖ dos humanos de Igarapé
Grande. Dada as limitações desta pesquisa, não pude expor esses dados e reflexões por aqui, mas, em resumo, eles se
consideram felizes e desatrelam esse conceito a conceitos da modernidade, como consumo, civilização e ciência.
259

Vale observar que a questão da segurança pública poderia ter sido abordada neste trabalho
de modo a demonstrar as diferenças entre sociedades modernas, visto que esta, nos moldes da
nossa sociedade, não se repete em grupos sociais tradicionais, já que estes não são orientados
pelo consumismo, entre outros não humanos explicativos desse fenômeno. A própria ideia de
total segurança, eliminando os riscos, é fruto da modernidade e seu racionalismo exarcebado.
Tudo será devidamente racionalizado e planificado, devendo o Estado (no caso dos socialistas)
e/ou o livre mercado e suas mega empresas os responsáveis por eliminar os riscos.
Em sociedades tradicionais, vive-se constantemente com o risco, habitua-se a ele, tem-se
consciência de sua inevitabilidade, ainda que se possa minimizar suas possibilidades.
Com efeito, os resultados desta etnografia evidenciaram um pouco do descompasso entre
a teoria antropológica, criadora de conceitos como identidade cultural, culturas tradicionais e
moderna, natureza, ecologia, perspectivada com o cotidiano de Igarapé Grande, local permeado
por riscos, cientistas do concreto, humanos e não humanos composição de seu mundo comum.
Essa perpectivação também pode ser feita com o modo de vida moderno, local habitados por
cientistas aparentemente sem riscos, com cientistas peri
260

CONCLUSÃO – Divagações reflexivas de encerramento

Através de um fazer etnográfico e antropológico esta tese estudou o esgotamento que


determinados conceitos cunhados na modernidade trazem para o trato da relação natureza e
cultura. Usou como abordagem principal as discussões que Bruno Latour (2004 a, b; 2012; 2013
a, b; 2014) e Viveiros de Castro (1996, 2002, 2004, 2015) fazem sobre o tema, privilegiando a
problematização ―natureza e cultura na modernidade‖, assim como relativizou os conceitos de
―populações tradicionais‖, ―povos e comunidades tradicionais‖. O desenho da tese se originou a
partir da trajetória acadêmica e profissional que experenciei, à medida em que pude, de maneira
paralela, desenvolver pesquisas empíricas junto à comunidades entendidas pela teoria
antropológica como tradicionais. No entanto, à medida que leituras eram aprofundadas sobre
essas comunidades, segundo a teoria antropológica, inconsistências eram encontradas.
Este trabalho também problematizou os termos ―tradicional e moderno‖, ―cultura e
natureza‖, ―objetividade e subjetividade‖, desdobrando as consequências dessa análise para o
corpo conceitual criado ao redor das PPCTS e sua aplicação junto à um coletivo de humanos e
não humanos da Amazônia paraense. Este local chama-se Igarapé Grande, e a vivência junto a
esse coletivo figurou como o núcleo duro da crítica feita à Teoria Antropológica e à Constituição
moderna, na medida em que permitiu colocar em perspectiva a postura de cada uma delas,
verificando os paradoxos nas quais as mesmas fundamentavam-se.
O termo cultura, notadamente é polissêmico, à medida em que já é vago na Antropologia
clássica (que estuda ―culturas tradicionais, rústicas, indígenas‖) e permanece vago com a
antropologia urbana e de minorias, assemelhando-se à noção de folclore e patrimônio, dado que
não há um conceito claro e operacional que permita uma convergência de definição e
compreensão sobre esses conceitos. Portanto, parece que existem impropriedades nos termos
natureza e cultura. Seguindo Latour, a tese propôs um estudo que tivesse como ponto balizador
da etnografia a concepção da ideia de humanos e não humanos que formam um coletivo, no lugar
da usual dicotomia ―natureza e cultura‖, que concede qualidade definidas previamente em virtude
do ―social ou cultural‖. O grupo, segundo a teoria antropológica dos últimos anos, já está
previamente definido pela sua identidade, pela sua cultura, pelas suas características sociais.
Suspende-se essa postura usando-se o ato de composição, reagregação constante do coletivo de
humanos e não humanos, deixando que os mesmos nos contem sobre suas características sociais,
261

ou, utilizando o termo de Latour (2012), quais associações são por eles ativadas (este
procedimento, segundo Latour 2004a, seria a essência de uma nova Ecologia Política por ele
proposta).
Pensamento fundamental para a problematização dos binômios acima expostos foi o de
VDC (1996, 2002b, 2004, 2015), que questiona o fazer antropológico hegemônico das últimas
décadas, o qual repousa no binômio natureza (acreditando-a como única) e cultura (acreditando-a
como múltipla, o multiculturalismo). Os questionamentos de Viveiros de Castro surgem a partir
de sua experiência etnográfica junto à sociedades indígenas que, em sua cosmologia, explicam o
mundo por uma perspectiva inversa daquela da Antropologia, lançando mão de um
multinaturalismo em oposição a uma cultura.
Lançou-se mão, ainda, do próprio discurso científico, ainda que não hegemônico, mas
com o estatuto de legitimidade científica da antiga Constituição. Assim, mesmo que dentro de
critério científicos, os modernos apresentam inconsistências em seu modo de vida. Esse
procedimento se deu por meio da introdução de termos da Economia Ecológica, especialmente
seu conceito de entropia, desdobrando-o na concepção de energia vital e não vital que percorre
humanos e não humanos.
Ainda que partindo de dentro do meio científico empírico-racionalista, essa dicotomia
suscitou questionamentos que estão para além das ―descobertas científicas‖, levantando
questionamentos dentro das fronteiras de meta física e das grandes questões da humanidade
como, por exemplo, quem somos, para onde vamos, por que somos diferentes, por que a vida se
multiplica de forma tão diferenciada, essas energias acabam, por que elas existem, qual sua
principal diferença, como transformar energia não vital em energia vital205 etc.
Tudo e todos são energia, somente nos diferenciamos das coisas pela qualidade da
energia: enquanto que uma é vital, a outra não é (assim, talvez a dicotomia não seja humanos e
não humanos, mas entre energia vital e não vital). Assim, será que existe algum tipo de
intencionalidade que une essa energia vital? Em outras palavras, toda energia vital é eivada de
intencionalidade? Gera-se, dessa forma, uma outra dicotomia, mais distante ainda,
intencionalidade e não intencionalidade. Esse tipo de questionamento exige respostas metafísicas,
fora do mundo dos sentidos, estendendo-se para o mundo dos sentimentos, das ideias e das
crenças, ou seja, a ciência não consegue dar respostas a esses questionamentos, sendo necessário

205
No caso da matéria orgânica, ela seria energia vital? Ou apenas um portador, um casulo para essa energia?
262

lançar mão de explicações religiosas e filosóficas. Com efeito, vale mencionar que minha
resposta para esses questionamentos estão atreladas às minhas percepções e crenças pessoais.
Assim, essas respostas estão mais próximas de conhecimentos produzidos pela religião,
folclores, mitos, senso comum, como o candomblé, doutrina espírita, explicações de mundo
indígenas, caboclas, filosofia, metafísica, etc, do que dentro dos domínios da Ciência.
Dessa forma, a Ciência estuda o por que de cada indivíduo agir de maneira diferente. Os
comportamentos são diferentes. Cada ser responde de uma maneira específica às provocações
externas, ainda que você tenha alguns padrões, os mesmos não são definitivos, são temporários,
suscetíveis à mudança e não necessariamente a ―verdade‖, ou seja, já prevendo o futuro. São
apenas padrões que podem ou não ser confirmados.
Com efeito, esta tese não é tão científica como gostaria seu meio, adquirindo muitos
contornos filosóficos, visto que não consegue provar sua hipótese da impropriedade do uso dos
termos natureza e cultura, pois constrói abstrações, não se lança na realidade, mas a partir de uma
realidade (a ―cultura ribeirinha‖, a realidade dos moradores de Igarapé Grande), generalizando
essa possibilidade de construção de novos mundos que não o modo de vida moderno.
Estes novos mundos, segundo os pressupostos desta tese, estão caracterizados pela
continuidade entre humanos, utilizando não humanos como mediadores de suas relações com
outros não humanos, sendo esses primeiros não humanos fabricados pelos seus próprios usuários.
Em outras palavras, este escrito/tese é reflexivo, dialético, não analítico, logo, não científico, mas
filosófico. Assim, a tese não consegue provar nada, mas apenas construir uma linha de raciocínio
em que se defende a não utilização da dicotomia Natureza e Cultura como um mundo possível.
Essa postura traz algumas consequências para o meio científico, seu estatuto de indicador
da realidade verdadeira. A Ciência como um tipo de conhecimento é apenas isso, um tipo de
conhecimento, que detém uma nomenclatura diferente, mas todos são iguais, todos surgem da
curiosidade sobre algum fenômeno que parte da empiria, resultando em uma explicação desse
fenômeno por meio da lógica de causa e efeito, operando a partir de induções, deduções,
abstrações, intuições, observações de semelhanças e diferenças, dando lhe causa, efeito e sentido.
O caráter dogmático que assume a Ciência, e o conhecimento por ela produzido, faz com que a
mesma perca uma de suas principais característica de gênese, a abertura para a dúvida, para
acréscimos no conhecimento por ela produzido.
263

O conhecimento religioso surge da mesma maneira que o científico, a partir da dúvida, do


porque estamos aqui, o que é o mundo e o universo, como tudo começou e se transformou, sendo
repassado de maneira dogmática aos seus iniciantes, enquanto que o conhecimento científico, em
seu início, era aberto à dúvidas e incertezas. Ele permitia ser retificado e eternamente construído,
já que o infinitamente pequeno não tem fim, assim como o infinitamente distante. Assim, a
própria noção de tempo, essa variável absoluta para os modernos, é vítima da prévia divisão
ontológica do mundo entre natureza e cultura. Em outras palavras, o futuro depende da sua
crença. Se sua crença é científica, seu futuro dependerá das mãos do acaso/destino, se sua crença
é religiosa, seu futuro dependerá de Deus/energia criadora206. Com efeito, volta-se para questões
metafísicas que a ciência não tem capacidade de responder, restando também à filosofia, religião
e outras formas de conhecimento uma possível resposta.
O mundo perfeito da modernidade não existe, o acaso e as tragédias que vêm com ele
fazem parte da vida, a vida sem o ―risco‖, purificada, impermeabilizada, pasteurizada,
higienizada, esterilizada de toda bactéria, vírus, enfim, de todo risco, não existe. Quando se
elimina o risco, se elimina a vida, pois o risco faz parte da vida. Em outras palavras, esse risco,
nos termos científicos, ou eventos do mal, nos termos da religião e da moral, assim como a
diversidade de mundos, estarão presentes em toda parte. Não é porque perdi minha mãe, meu pai,
meu filho, meu irmão ou algum ente querido que obrigatoriamente responderei com o mal. Não é
porque sofri uma injustiça na vida que responderei com o meu pior, de forma violenta, etc. É essa
política do ressentimento que os modernos cultivam.
Pensando ainda o desdobramento dessa postura que vê o mundo como a composição de
incontáveis mundos possíveis, subjugados ao infinitamente pequeno (monadas) e infinitamente
grande ou disperso (rizomas), permite a circulação de energias (vitais e não vitais) entre esses
mundos. Isso se expressa também nos fractais, redes que ao serem analisadas em monadas, ou em
rizomas, se reproduzem da mesma maneira, não obedecendo à regras da matemática euclidiana.
Similar à TAR de Latour que permite análises tanto de pequena quanto de larga escala,
superando, de certo modo, a colocação de Botalnski (2014), quando diz que a sociologia somente
consegue criar explicações ou em uma perspectiva micro sociológica, ou em uma perspectiva
macro sociológica, sendo que ambas explicações são diferentes e sem ligações estreitas, isolando-
se.

206
Vale dizer que essa energia criadora está presente inclusive entre os modernos, através do Big Bang.
264

Isso se dá porque o conhecimento nunca é finalizado, mas apenas parcialmente concluído,


diversamente aprimorado, mas precariamente mantido. Deve sempre estar aberto para
renovações, desde que passem por critérios previamente estabelecidos, logo, não deve ser
imposto, deve ser gradualmente e cotidianamente adquirido (em outras sociedades pela vivência,
não pela escola ou outras instituições de ensino). Nas palavras de Latour (2004 a), o mundo
comum deve ser constantemente composto, por seus diversos atores, humanos e não humanos.
Assim, o conhecimento (ato de conhecer) vem da crença (ato de crer), que se institucionaliza a
partir do sentimento (ato de sentir), da experiência (ato de experimentar/experienciar), assim
como do pensamento (ato de pensar), da cogitação (ato de cogitar), imaginação (ato de imaginar)
e da idealização (ato de idealizar), em outras palavras, o conhecimento se dá tanto a partir do
mundo físico como do mundo das ideias. Não se pode reduzir ao ―penso, logo existo‖, tampouco
ao ―sinto, logo existo‖, mas a um procedimento conjunto, ―penso e sinto, sinto e penso, logo
escolho no que acreditar e em como existir‖. Assim, o conhecimento seria aquilo em que eu
acredito, estabelecendo-se critérios de escolha e aferição para estabelecer aquilo que acredito, ou
seja, considerando o mundo comum em que vivo, em que medida posso acreditar em uma
determinada informação? (LATOUR, 2004a).
Este trabalho também lançou mão de experiências etnográficas para criticar a teoria
antropossociológica das últimas décadas, analisando e posteriormente suspendendo a dicotomia
entre cultura e natureza. Esta dicotomia permitiu dar lastro às outras dicotomias explicativas,
também analisadas por este trabalho, como tradicionais e modernos (LATOUR, 2013),
objetividade e subjetividade (LATOUR, 2004). Todos os autores acionados apontaram as
contradições entre as dicotomias elencadas, entretanto, somente Latour, Viveiros de Castro e a
Economia Ecológica apresentam saídas com algum sentido (VIVEIRSO DE CASTRO, 2002 b),
suspendendo a encruzilhada forjada pelos termos ―natureza‖ e ―cultura‖, lançando mão de novas
dicotomias que jogam novas luzes à nossa realidade.
Como argumentado no transcorrer da tese, a sociedade moderna cria outra crença, aquela
atrelada à eliminação do risco, por meio da Ciência e seus desenvolvimentos e avanços (se é
possível ver os padrões, eliminam-se os riscos). Além desse discurso ser evolucionista,
logocêntrico e discriminador com outras crenças, é também limitado. O risco não pode ser
eliminado, acasos, acidentes, tragédias, desastres naturais serão sempre uma possibilidade. A
Ciência não pode eliminar esse risco, assim como tampouco pode eliminar a necessidade de se ter
265

trabalhos mecânicos207. A sociedade crê na possibilidade de que um dia existirá uma ―sociedade
plenamente desenvolvida‖ em que existirão apenas trabalhadores intelectuais, ninguém mais terá
que lavar o chão, cozinhar, lavar roupas, bater cimento, etc, essas atividades relacionadas à
serviços braçais e manuais. Eles são vistas de forma pejorativa por nossa sociedade, são
atividades ruins, degradantes, que um dia serão eliminadas pelo avanço da Ciência. Isso é
impossível. Quem fará esses trabalhos? Máquinas, como a rose dos Jetsons? Para uma ―rose‖ ser
construída, buracos foram deixados por aí para extrair metal para as máquinas que vão extrair
metal, que vão transportar esse metal, que vão construir as máquinas, etc. Não que se tenha que
voltar a viver nas árvores, mas com certeza temos que viver com e, porque não, entre as árvores.
Isso é uma necessidade do antropoceno (LATOUR, 2014).
Ainda caracterizando nossa sociedade, pode-se dizer que a mesma tem como um dos seus
cernes o consumismo, ato que prioriza o meio (que é o consumo) em vez do fim (viver bem,
feliz). Com isso aliena-se as pessoas. Assim, eu não faço as coisas porque manda a moral ou a
razão, como queriam os modernos. Se assim fosse, não estaríamos nessa encruzilhada
socioambiental. Minhas ações são determinadas pelas minhas possibilidades de intervenção no
mundo (porque posso) e porque creio nas mesmas, creio no sentido de minhas ações, sendo elas
um fim nelas mesmas.
A própria noção de evolução deve ser usada com cautela. Por que dizer que a humanidade
evoluiu? Por que não utilizar se transformou? Afinal, Darwin dizia que o meio selecionava o
mais apto, mas não o mais evoluído. No mesmo caminho ia Lamarck.
Não que não tenha havido uma transformação, mas por que denominar de evolução,
dando-lhe contornos adjetivistas? E mais, se de fato existe evolução, por que somos nós os
humanos que estamos no topo dessa evolução? Por que são os países modernos os ―mais
desenvolvidos‖?
Do ponto de vista da Ciência, por que as coisas ficam do jeito que estão? Será que no
futuro nós não conseguiremos novos sentidos, que nos deem acesso a novas dimensões da
realidade? Um cachorro percebe a realidade de maneira diferenciada da minha, assim como um
golfinho e assim por diante. Nossos sentidos, ainda que apresentem similaridades, são diferentes,
logo, ainda que compartilhemos um plano de apreensão do real, existe uma dimensão desse

207
Coloco-os aqui na medida em que a Ciência teria como uma de suas proposições, a otimização na produção de
bens, minimizando esforços humanos, assim como os riscos nessas produções.
266

mesmo real que não é por nós captada. Em outras palavras, sentimos o mundo de maneira
diferente. Por que o cachorro não pode sentir o mundo de maneira tão diferente a ponto de ser
evoluído? Por que é o nosso jeito de sentir o mundo que é o mais evoluído? E o perspectivismo
ameríndio que pensa que outros animais são humanos, sentindo o mundo de maneira
diferenciada?
Finalmente vale lembrar que o projeto que entende a Ciência como busca da ordem faliu,
visto as últimas descobertas sobre o big bang e o caos do qual e para o qual caminha o universo.
Ciência como método de estudo para encontrar a causa das coisas também faliu, visto que,
se viemos e vamos para o caos, como encontrar causa e efeito em uma realidade que tende a
aumentar o seu nível de caos, que multiplica as exceções, deixando a regra para trás? A Ciência
procura sempre a regra, mas as exceções multiplicam-se cada vez mais.
A própria vida, como é explicada pela própria Ciência Biológica, nada mais é que uma
expressão da multiplicação das exceções, na media em que as espécies vão transformando-se ao
longo do tempo, saindo de um caso para muitos outros.
Aqui pode-se associar essa ideia com a ideia de rizoma de Deleuze e Guatarri (2011), no
sentido de que a vida forma esse rizoma de exceções. A regra é a multiplicação da exceção, logo,
a regra é a multiplicação. E como não associar com a ideia de rede? Como não perceber o rizoma
como uma rede ou vice e versa? Ou mesmo a ideia de simetria, que se multiplica? Ou mesmo dos
fractais.
Pode-se, ainda, retornar a ideia de dom (MAUSS, 2013), como impulsionador dessas
redes. Se não fosse a dádiva, as redes nunca seriam criadas. Se não fosse a necessidade de troca
de humanos e não humanos, estes ficariam inertes, sem circular e sem formar redes tão
complexas como a cadeia alimentar ou a formação de partículas.
Finalmente, sobre isso se trata a vida e o conhecimento, a troca, seja de experiências, de
visão de mundo, de bens, devemos trocar, mas sem esquecer de permitir que o outro troque
também.
267

APÊNDICE A – PRÓLOGO ANTROPOLÓGICO: DE CIÊNCIA OBJETIVA À CIÊNCIA


SUBJETIVA208

Este apêndice constrói um breve retrospecto da teoria antropológica, constituindo-se em


um esboço de uma Sociologia da Ciência da Antropologia, mais ou menos nos termos de Latour e
sua teoria ator rede (2000, 2004 a, 2012), com o intuito de construir um prólogo para a tese em
geral mas especialmente para o capítulo 5, no qual atualiza-se o entendimento antropológico das
coisas segundo seus próprios sujeitos de estudo originais (os índios209, no caso das primeiras
décadas de existência da Antropologia brasileira e, no caso deste estudo, a maneira de ser, viver e
existir dos humanos de Igarapé Grande)210. Este apêndice pretende atualizar também o próprio
sentido do fazer etnográfico, caro a este entendimento de mundo que é a Antropologia. Para
tanto, inicialmente é feita a descrição do histórico da Antropologia como Ciência, assim como se
relata o que este trabalho entende ter ocorrido ao longo dessa história em seu processo de
consolidação como disciplina científica na modernidade e suas transformações no decorrer dos
anos.
Tal empreendimento justifica-se na medida em que esta tese também objetiva construir
um entendimento comum com o leitor do que seria a história da teoria antropológica para então,
no próximo capítulo, construir a crítica à Antropologia por meio da perspectivação da

208
Para a formulação deste apêndice, lancei mão de trabalhos tanto do doutorado, como do mestrado e até mesmo de
minha graduação, dado que parte de alguns deles foi objeto de publicação. Uma das pessoas responsáveis por minha
formação que me acompanhou desde então (ou eu a acompanhei, creio que seja mais provável, prudente e menos
presunçoso pensar dessa maneira) foi a professora Carmem Izabel Rodrigues, na condição de professora das
disciplinas de Teoria Antropológica e Organização Social e Parentesco, na graduação e doutorado, respectivamente.
Revisando meus trabalhos de graduação, percebo o formato estratégico de como eram pensadas essas disciplinas de
modo a se complementarem e darem um sólido conhecimento da Antropologia clássica aos alunos e alunas, por meio
das resenhas solicitadas pela professora, nos forçando a refletir sobre quais as contribuições que cada Antropólogo
deixava para a disciplina. Sem esses ensinamentos e estratégias reflexivas, eu não teria logrado este capítulo, menos
ainda esta tese. À professora Carmem meu muito obrigado. Deixo registrado, ainda, os protocolares ―erros e
omissões são, obviamente, de minha responsabilidade‖, na medida em que a professora Carmem era responsável por
me apresentar o panorama geral, o cenário mais amplo da teoria antropológica, cabia a mim empreender jornada de
modo a conhecê-lo mais a fundo.
209
Não sei precisar a fonte, mas em minha formação como antropólogo, tomei conhecimento de que o termo ―índio‖
seria algo homogeneizador e simplificava a diversidade de etnias das quais deveria ser representativo, assim como
assumia uma carga pejorativa, sendo associado à culturas rústicas, tribais, logo, à uma lógica evolucionista. Nesse
sentido, deveríamos utilizar o termo ―indígena‖. Uso o termo índio na medida em que me parece que o termo
―indígena‖ não trouxe muitas diferenciações, perdendo, ainda, sua carga não pejorativa por ser evolucionista, mas
apelativa por ser radicalmente diferente da cultura moderna. Opto, ainda, em utilizar esse termo, em virtude de
Viveiros de Castro (2006) utilizá-lo.
210
Na medida em que assim o faz Viveiros de Castro (2002, 2013, 2015), trazendo para o pensamento antropológico
as contribuições do pensamento ameríndio, resultando em uma séria crítica à leitura dicotômica ente
multiculturalismo e unidade humana biológica, como será apresentado mais adiante.
268

Cosmologia de outras sociedades com a própria teoria antropológica, entendendo-a como mais
uma maneira de explicar o mundo, assim como a Cosmologia de seus ―objetos de estudo‖, ou,
como já dito anteriormente, atualiza-se e problematiza-se o entendimento antropológico a partir
do pensamento nativo.
Com efeito, explico as transformações da Antropologia como Ciência desde seus
primórdios até a ruptura epistemológica que Geertz pôs em prática com sua abordagem
interpretativista da cultura. Para expor os autores aqui trabalhados, utilizei a estrutura
tradicionalmente pensada por Durkheim para uma Ciência: teoria, objeto e método, reiterada por
outros autores (ALVES, 2007; DURKHEIM, 2002; MARQUES NETO, 2001; BLANCHÉ,
1988; FERRAZ JUNIOR, 1977). Nesse sentido, busco os meta conceitos entendidos como objeto
da Antropologia, seus métodos de coleta e análise de dados e, finalmente, quais eram seus
propósitos e meta conceitos explicativos. Em resumo, para cada escola estudada, quatro serão os
procedimentos: a) entender seus objetivos como Ciência (quais perguntas os moviam e/ou quais
meta conceitos eram ativados para formular e responder essas perguntas?); b) seus procedimentos
(métodos); c) objetos de estudo (cultura e humanidade em geral, como regra geral para as
diversas escolas antropológicas); e d) quais as contribuições que se podem utilizar na atual
prática antropológica. Considerando que se tem o termo cultura como o fenômeno fundador da
disciplina antropológica, uma atenção especial será dada a ele na condição de um meta conceito
que perpassa, ao fim e ao cabo, esta disciplina científica.
Divido o capítulo em duas partes. A primeira passa pelas principais escolas de
pensamento antropológico, a saber: a escola evolucionista, difusionista/culturalista, funcionalista,
estrutural-funcionalista e estruturalista, ademais de um pequeno sub-tópico reservado aos
primórdios da Antropologia como disciplina científica, elaborando uma apertada síntese dos
preparativos históricos para o seu surgimento. Reservei a segunda parte deste capítulo para
analisar a ruptura epistemológica promovida por Geertz, com a denominada escola
interpretativista, de modo a situar o leitor do entendimento que este trabalho tem sobre as
contribuições de Geertz para a Antropologia e seus desdobramentos no ofício antropológico.
Considerando que o histórico da teoria antropológica é um tema que já foi repisado
inúmeras vezes na produção antropológica em geral, a retrospectiva tem um caráter fortemente
introdutório, permitindo-se a citação e análise de apenas um autor por escola. Observa-se ainda
que estas escolas apresentavam uma considerável unidade teórica, entretanto, muitas eram as
269

vozes destoantes, não só no formato de novas escolas, mas também de autores de dentro delas
mesmas. Nesse sentido, ainda que exista algumas produções que não se encaixavam nessa
classificação escolástica, a mesma é aceita com certa unanimidade no pensamento antropológico
atual, ou, nas palavras de Cardoso de Oliveira (1988), podem ser entendidas como ―casos
exemplares‖.
Finalmente, vale justificar que utilizo esta característica generalizadora de ―escolas de
pensamento‖ ou ―correntes teóricas‖ para que a pesquisa possa seguir com seu propósito
principal que está menos ligado a uma reconstituição histórica acurada da teoria antropológica,
que à problematização dessa mesma pesquisa na atualidade, preparando-a para ―[...] assumir
integralmente sua verdadeira missão, a de ser a teoria-prática da descolonização do pensamento‖
(VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 20).

1.1 Escolas de pensamento da antropologia no período pré-ruptura epistemológica

1.1.1 Os pré-evolucionistas: descobrindo o outro


A Antropologia como Ciência institucionalizada, apresentando uma teoria, objeto e
método minimamente comuns, surge em meados do século XIX, com a escola evolucionista.
Antes desse período, pode-se dizer que houve uma produção antropológica, no sentido de
explicações sobre a natureza humana por meio de registros e comparações entre modos de
existência, entretanto essa produção ou era feita por cronistas, viajantes, missionários, sem
nenhum tipo de preparo consciente211 para a descrição do contato com o outro, ou nascia pelas
mãos de filósofos que restringiam seu entendimento de humanidade à sociedade europeia da
época com pouquíssimo conhecimento de grupos externos e, em raros casos, à um ínfimo contato
com pessoas desses grupos externos ao ambiente europeu e suas ramificações na América, ou por
meio de dados de segunda mão que convencionou-se, regra geral na atualidade da Antropologia,
serem classificados como etnocêntricos. Vale ressaltar que, entendendo a Antropologia como um
modo de registrar e conhecer um outro grupo humano que não o seu, é possível estender seus
primórdios como um projeto de Ciência desde o século XVIII até os primórdios do registro
escrito de contato entre dois grupos humanos diferenciados.

211
No sentido de um treinamento intencional, uma preparação com procedimentos a serem seguidos, como foi o caso
da escola Evolucionista, ainda que feita com altas doses de etnocentrismo.
270

Nesse sentido, em rápida consulta à manuais de Antropologia disponíveis em bibliotecas


locais, estão listados nos primórdios da Antropologia autores como Heródoto, Sócrates, Platão,
Aristóteles, Alexandre Magno, Ibn Khaldum, Marco Polo para limitar-se à um período pré-
colonial e um perímetro europeu (ERIKSEN, NIELSEN, 2007; ULLMAN, 1991). Passando para
as grandes navegações nos anos posteriores à 1500, muitos são os autores de que até hoje se tem
notícia que ou trataram da questão da humanidade como espécie e sua relação com o outro, ou
registraram modos de existências alheios aos seus. Entre esses nomes estão Las Casas,
Sepúlveda, Oviedo, Cornelius de Pauw, Hegel, Montaigne, Rousseau, Marx, entre tantos outros,
ainda que, no caso de alguns, apresentassem um posicionamento fortemente racista e etnocêntrico
(LA PLANTINE, 1997; KUPER, 2002; DA MATTA, 1993). Até mesmo em texto escrito por
Boas, um dos pais fundadores da Antropologia, encontram-se nomes como os recém citados:
A ciência antropológica desenvolveu-se a partir de várias origens históricas distintas.
Numa época antiga, os homens estavam interessados em países estrangeiros e nas vidas
de seus habitantes. Heródoto relatou aos gregos o que havia visto em muitas terras.
Cesar e Tácito escreveram sobre os costumes dos gauleses e alemães. Na Idade Média,
Marco Polo, o veneziano, e Ibn Batuta, o árabe, produziram relatos sobre os estranhos
povos do Extremo Oriente e da África. Mais tarde, as viagens de Cook despertaram os
interesses pelo mundo. A partir desses relatos desenvolveu-se gradualmente um desejo
de descobrir uma significação geral para os variados modos de vida de povos estranhos.
No século XVIII, Rousseau, Schiller e Heirder tentaram construir, a partir dos relatos de
viajantes, o esboço da história da humanidade. Fizeram-se tentativas mais sólidas por
volta de meados do século XIX, quando foram escritos os trabalhos abrangentes de
Klemm e de Waitz (BOAS, 2007, p. 87).

Entretanto, como dito por um dos decanos da Antropologia no Brasil, Roberto da Matta
(1993, p. 86): ―[...] não acho que o encontro com o <<começo>> seja uma garantia para o sucesso
intelectual de nossa empresa, como também não creio que uma exaustiva lista de fundadores da
disciplina possam ampliar nosso entendimento de suas perspectivas [...]‖. O que importa para Da
Matta é a presença de uma atitude antropológica, uma postura relativista, uma deliberada
tentativa de descrever o ponto de vista do outro em seus próprios termos, ―A perspectiva é, pois,
deliberadamente ampla e abrangente‖ (DA MATTA, 1993, p. 87). É mais ou menos essa mesma
relativização radical, ou uma exaustiva busca pela alteridade que um dos discípulos de Da Matta
irá desenvolver nas últimas décadas que nos precede (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, 2015)
alcançando eco internacional, contudo, por hora, retorna-se à descrição do início da Antropologia
como um projeto de disciplina científica212. Esta surge somente em meados do século XIX,

212
E a contribuição de nossos pai-fundadores à nossos mitos de origem.
271

assumindo a identidade de Ciência por meio de um conjunto de autores que, em gerações


seguintes, são denominados de evolucionistas. Estes são descritos no tópico que segue.

1.1.2 A etapa evolucionista: descobrindo a cultura


Esta corrente teórica se caracteriza pela crença na existência de estágios que
obrigatoriamente uma civilização deve passar, entendendo os indivíduos que se associavam em
grupos denominados como ―selvagens‖ (entenda-se não europeus ou não norte americanos
―modernos‖213) como um ser congelado no tempo, sendo a representação dos primórdios da
espécie humana, ou seja, podiam ser equiparados ao humano primitivo (FRAZER, 2005). Em
outras palavras creia-se que as sociedades indígenas e tribais da época haviam parado no tempo,
deixando de evoluir, formando grupos selvagens que deveriam evoluir para a civilização. A
dúvida que permeia esse século não é mais se os ―bárbaros‖ e ―selvagens‖ detinham alma ou não,
se eram humanos ou não, mas propunham-se a questão de em qual estágio da humanidade esses
grupos estariam, permitindo ser a Antropologia um verdadeiro projeto de humanidade (LA
PLANTINE, 1997; DAMATTA, 1993; CASTRO, 2005).
Os autores mais conhecidos desse período são o americano Lewis Henry Morgan e os
ingleses Edward Burnett Tylor e James George Frazer. Em consulta à uma das principais obras
de Morgan, ― A sociedade primitiva‖, originalmente publicada no ano de 1877, já no prefácio é
possível encontrar as premissas etnocêntricas que permitiam pensar uma teoria antropológica que
discriminava as sociedades, classificando-as em uma ordem evolutiva. Nas palavras de Morgan:
O período do estado selvagem precedeu o período da barbárie em todas as tribos da
humanidade, do mesmo modo que sabemos que a barbárie precedeu a civilização. A
história da humanidade é uma só quanto à sua origem, uma só quanto à sua experiência e
uma só quanto ao seu progresso (MORGAN, 1973, p. 7).

Outra importante característica comum destes autores, refere-se ao fato de que raramente
empreendiam viagens à campo, analisando dados de segunda ou mesmo terceira mão, relegando
esta atividade de coleta de dados à viajantes, missionários ou mesmo cientistas de outras áreas

213
Aqui começa a ser criado o discurso da Antropologia como Ciência, filha da modernidade europeia. Nesse
sentido, como toda Ciência, a Antropologia lança mão desse discurso colonizador e, mesmo após mais de um século
em um suposto exercício de ―relativização‖, sua prática é mais colonizadora do que desejam alguns antropólogos e,
mesmo, do que imaginam outros. Registra-se, aqui, que a ideia de ―modernidade‖ ocupa um importante papel neste
trabalho, entendendo-a como um discurso que é eivado de premissas ontológicas que exorcizariam a natureza do ser
humano, por meio da cultura, permitindo que este ser torne-se ―civilizado‖ (LATOUR, 2004 a, 2013 a; VIVEIROS
DE CASTRO, 2012, 2015). Este tema será debatido de maneira mais detida no próximo capítulo.
272

que deveriam empreender viagens de campo, notadamente cientistas e historiadores naturais, ou


geólogos e biólogos em geral. Os dados chegavam às mãos destes ―antropólogos de gabinete‖214
por meio de correspondência ou mesmo coletas de dados encomendadas em expedições
científicas de outras áreas215, ou ainda por meio de comunicações epistolares enviadas à frentes
de expansão religiosas, de colonização estatal ou mesmo da frente de comércios.
Talvez o grande mérito dos evolucionistas como uma escola de pensamento seja o fato de
todos entenderem os outros povos como seres humanos, ainda que com uma cultura inferior, não
―civilizada‖, mas ainda assim, todos participantes da mesma espécie, a saber, a espécie humana,
saindo do paradigma de seus antecessores que perguntavam-se se esses grupos eram humanos, se
tinham algum juízo, se produziam algum tipo de conhecimento e, até mesmo, se tinham alma.
Assim, esses autores eliminavam ―[...] considerações de variedades hereditárias, ou raças
humanas, [... tratando] a humanidade como homogênea em natureza, embora situada em
diferentes graus de civilização‖ (TYLOR, 2005, p. 76).
Vale ressaltar que esta noção proposta por Tylor de civilização era equiparada à noção de
cultura, como pode-se depreender do primeiro parágrafo de um de seus mais destacados textos,
―A Ciência da Cultura‖.
Cultura ou Civilização, tomada em seu mais amplo sentido etnográfico, é aquele todo
mais complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer
outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem na condição de membro da
sociedade (TYLOR, 2005, p. 69).

Assim, na condição de uma ―Ciência da Cultura‖, a Antropologia tinha como missão


comparar e classificar a variação cultural humana, entendendo:
[...] de que modo viveu a humanidade durante todos esses séculos recuados, de que
modo os selvagens atingiram a condição superior da barbárie, numa lenta progressão e a
um ritmo quase imperceptível, de que modo os bárbaros, numa progressão semelhante,
atingiram finalmente a civilização, e qual a razão por que outras tribos e outras nações
ficaram para trás no caminho do progresso, algumas no estado de civilização, outras no
estado de barbárie e outras no estado selvagem (MORGAN, 1973, p. 8).

214
Como foram chamados nas gerações posteriores de antropólogos.
215
Vale ressaltar que essa característica da escassez de campo dos antropólogos evolucionistas deve ser relativizada
na medida em que alguns desses teóricos chegou a ter contato com outras culturas, produzindo preciosos registros
das mesmas. Como exemplo cita-se o caso de Morgan e Tylor. O primeiro construiu, ao longo dos anos, uma forte
relação com sociedades indígenas iroquesas, chegando ao ponto de ser adotado como guerreiro Seneca do clâ do
Falcão, em outubro de 1846, sendo considerado o maior especialista americano nos iroqueses. Tylor, por sua vez, fez
registros de um período de quatro meses que passou no México, ainda em sua juventude, no ano de 1856, resultando
no livro ―Anahuac:or, Mexico, Ancient and Modern‖ (Anahuac: ou, México, Antigo e Moderno) publicado em 1861
(CASTRO, 2005).
273

Essa era a grande missão da Antropologia como Ciência216: a busca de leis gerais que
explicassem a origem de seu objeto de estudo, o ser humano e suas variações ao longo do tempo,
classificando a diversificação da cultura217 humana em selvagens, bárbaras e civilizadas. Quanto
à sua própria cultura, sua própria civilização, que ocupava o mais alto degrau dentro da escala
evolutiva humana, cabia à sociologia pronunciar-se sobre, ainda que os antropólogos
evolucionistas se reservassem o direito de explicar a existência de resquícios de estágios
anteriores na cultura europeia civilizada, como era o caso de crendices que ainda persistiam na
sociedade moderna, lançando mão de conceitos como ―folclore‖ (FRAZER, 2005, p. 112) ou
―sobrevivência‖ (TYLOR, 2005, p. 87).
Assim, esta corrente teórica pensou a Antropologia como a Ciência do ser humano em sua
totalidade, tendo como propósito classificar a diversidade cultural da espécie humana em
selvagens, bárbaras e civilizadas, ainda que fossem classificados, do ponto de vista da natureza,
em uma única espécie, a espécie humana. Como método utilizavam a comparação de dados de
segunda mão, para então classificar, ainda que essas comparações e classificações partissem de
premissas etnocêntricas, ou, no caso da coleta de dados, estes fossem descontextualizados de sua
função local218.
Vale observar que neste ponto da história da Antropologia como Ciência criasse a
premissa de que o ser humano é o mais evoluído de todos os seres e que a sociedade europeia e
parte da norte americana, são aqueles que ocupam o mais alto posto da humanidade. Em verdade,
este mito foi tão difundido que até os dias de hoje é propagado em algumas escolas de ensino
médio e mesmo superior da sociedade ―moderna‖219. O mito da modernidade ainda vive no
pensamento das pessoas, mesmo que essas ou não reflitam sobre o mesmo, não o entendendo, ou

216
Como todas as outras Ciências da época. A Ciência como um projeto de conhecimento tinha essa missão:
entender a origem das coisas e sua variação, buscando leis gerais de funcionamento da realidade, seja ela cultural ou
natural, social ou das coisas, subjetiva ou objetiva, e assim em dicotomias sucessivas e complementares (LATOUR,
2004, 2013).
217
Sempre no singular, nunca no plural, já que está variava segundo uma escala evolutiva, mas ainda assim era
única.
218
Na época essa característica foi fortemente criticada por Boas e, posteriormente, por Malinowski.
219
O que dizer das classificações da Teoria Econômica em países desenvolvidos em detrimento de países sub
desenvolvidos ou em vias de desenvolvimento? Não seria essa outra maneira de se dizer países evoluídos
(civilizados) e países não evoluídos (selvagens, bárbaros, não civilizados)? Ainda uma crença evolucionista? Quais
os critérios que classificam um país como desenvolvido e outro como subdesenvolvido? Crescimento econômico-
financeiro? Acesso das pessoas à ensino superior? Muitos hospitais? Produto Interno Bruto? Distribuição de
―riqueza‖ (que tipo de riqueza? Financeira?). Porque não Felicidade Interna Bruta (CAVALCANTI, s/ ano)? Porque
não amplo conhecimento dos não humanos locais (GORDON, 2006)? Porque não domínio sobre meu corpo, minha
saúde?
274

não tenham consciência de seu desdobramento, a saber, uma postura colonizadora que perdura
até os dias de hoje na postura da Ciência como local de construção de conhecimento legítimo e,
por isso, unicamente válido (segundo seu próprio discurso).
Outro ponto a ser destacado refere-se ao fato de que há uma forte confusão conceitual
entre natureza e cultura dentro dos autores evolucionistas, na medida em que não fica clara a
natureza da Antropologia como Ciência: esta deve estudar a cultura dos selvagens e bárbaros,
mas estes não seriam àqueles mais próximos da natureza humana? Logo, não seria, então, a
Antropologia responsável pelo estudo da natureza humana? Estes conceitos ficam imbricados de
tal modo que tornam-se caixas pretas, no sentido colocado por Latour (2000).
Salienta-se, ainda, o contexto que as ciências vivam na época: seus praticantes ainda
estavam restritos à um seleto grupo de pessoas que se subdividia em disciplinas e que pouco se
distinguiam uma das outras. Um advogado poderia fazer preciosas contribuições no campo da
filosofia, da química, da física, da biologia e vice-versa. Esse foi o caso de Morgan que fez
extensos registros sobre o modo de vida do castor americano e de diversas etnias indígenas do
seu tempo, mesmo sendo advogado de formação.
Assim, somente no início do século XX que a distinção entre os vários ramos da Ciência
começa a ser feita de maneira mais clara, consciente e rígida, limitando o estudo e a pesquisa de
cada cientista à sua própria área. Antes disso, os cientistas tinham, incluindo os antropólogos
evolucionistas, uma formação ampla e diversificada, enveredando em pesquisas diversas que não
se limitavam à sua formação de origem. Não existiam Cientistas exclusivamente Sociais ou
Naturais, mas sim disciplinas como História Natural, Filosofia, Biologia, Física, que abordavam a
realidade de maneira holística, como um todo, mas que foram se especializando e
compartimentalizando com o passar do tempo.
Essa compartimentalização, mesmo tendo início com Descartes, somente pode ter seu
corolário no início do século XX em virtude dos desdobramentos da revolução industrial que
potencializou um processo de alienação de tudo e de todos, por meio do dinheiro
(impessoalizando as relações pessoais e com as coisas, transformando tudo e a todos em
mercadoria), da propriedade privada (alienando indivíduos e grupos sociais da terra e recursos
naturais, ou, em um vocabulário marxista reducionista, dos meios de produção) e, finalmente,
com a divisão da sociedade em classes (alienando as pessoas até mesmo de sua força de trabalho
na sua condição plena). Tal situação fez com que as pessoas perdessem o contato com tudo e com
275

todos, desde o processo de produção, ao processo de troca de bens, sejam estes materiais ou
simbólicos.
Finalmente cabe observar que a Ciência sofrera um radical corte, ainda em sua origem,
como mostra Latour (2013 a, 2004 a), na medida em que separa a Ciência da Política e vice-
versa, exemplificando tal fato por meio do episódio da bomba de ar e do leviatã220, nesse sentido,
as Ciências Humanas acabaram demorando a aparecer na condição de projetos de conhecimento
científicos, ou seja, em busca de leis e regularidades que regem um fenômeno específico dentro
da realidade como um todo.

1.1.3 Franz Boas e os culturalistas: descobrindo o plural de cultura


Este autor foi o pai fundador de uma das escolas mais respeitadas dentro da Antropologia
mundial, a escola culturalista. De maneira similar aos seus conterrâneos evolucionistas, Boas
acreditava em uma unidade biológica do ser humano, mas não em uma unidade cultural, menos
ainda na classificação da cultura por meio de uma rígida e etnocêntrica hierarquia. Seu
vocabulário era composto por ―culturas‖ a serem estudadas por meio de intenso trabalho de
campo e, posteriormente, por comparações e sempre considerando o contexto cultural de cada
sociedade antes de serem as mesmas comparadas.
Tal posicionamento era contrário à crença evolucionista, que tinha em seu vocabulário
―cultura‖, no singular, a ser comparada de maneira desvinculada do seu contexto de origem, ou
seja, o método comparativo era empregado antes de se operar uma padronização nos critérios de
comparação, que, no caso de Boas, era feito pelo método histórico. As críticas, nas próprias
palavras de Boas:
Não se pode dizer que a ocorrência do mesmo fenômeno sempre se deve às mesmas
causas, nem que ela prove que a mente humana obedece às mesmas leis em todos os
lugares. Temos que exigir que as causas a partir das quais o fenômeno se desenvolveu
sejam investigadas, e que as comparações se restrinjam àqueles fenômenos que se
provem ser efeitos das mesmas causas. Devemos insistir para que essa investigação seja
preliminar a todos os estudos comparativos mais amplos. [...] Em suma, antes de se
tecerem comparações mais amplas, é preciso comprovar a comparabilidade do material
(BOAS, 2007, p. 32).

220
Latour (2013 a) mostra como Hobbes e Boyle misturam a fabricação da Ciência com a fabricação da política, por
meio do exemplo do Leviatã e da Bomba de ar. Hobbes utilizava argumentos matemáticos para justificar seu leviatã,
e Boyle utilizava testemunhas oculares para comprovar sua bomba de ar, ou seja, utiliza-se a Ciência na política
(matemática no Leviatã) e a política na Ciência (as testemunhas da bomba de ar).
276

Tal posicionamento é notadamente direcionado aos autores evolucionistas, na medida em


que Boas assim continua seu texto: ―Os estudos comparativos a que me refiro tentam explicar
costumes e ideias de notável similaridade aqui e ali. Mas eles também têm o plano mais
ambicioso de descobrir leis e a história da evolução da sociedade humana‖ (BOAS, 2007, p.
32).
Assim, Boas estabelece como objeto de estudo da Antropologia as diversas culturas
humanas, com a missão de registrá-las e posteriormente compará-las, num futuro que a
Antropologia chegaria com passos de tartaruga. Tal lentidão se dá em virtude da necessidade de
primeiramente criar registros das culturas ao redor do mundo, por meio de trabalho de campo
seguro e com dados coletados que sejam fidedignos à realidade cultural do povo estudado,
aportando à este estudo de campo observações relativas às variáveis ambientais, psicológicas e
conexões históricas entre as tribos, de maneira a explicar as origens de seus fenômenos culturais.
Tal missão deve ser acompanhada por um lento e gradual processo de comparações que
não sejam erroneamente generalizadas, para ai poder pensar em leis gerais da humanidade, como
queriam apressadamente os evolucionistas, mas, segundo Boas, ainda incipientes e passíveis de
mudanças. Nas palavras de Boas:
Em resumo, o método que estamos tentando desenvolver baseia-se num estudo de
mudanças dinâmicas nas sociedades que podem ser observadas no tempo presente.
Abstemo-nos de tentar solucionar os problemas fundamentais do desenvolvimento geral
da civilização até que estejamos aptos a esclarecer os processos que ocorrem diante de
nossos olhos (BOAS, 2007, p. 47).

Em suma, a Antropologia de Boas era composta por uma postura relativista, que entende
a espécie humana por meio de uma unidade biológica e diversidades culturais. Essas culturas
devem ser estudadas por meio de uma postura relativista, atendo-se às explicações locais para os
fenômenos culturais locais. Essas explicações eram sempre precedidas por um rigoroso trabalho
de campo que também adotava a postura relativista na coleta de seus dados, ficando como missão
futura a busca por leis, regularidades e teorias221.

221
Considerando as limitações espaciais e de propósito deste trabalho, algumas importantes contribuições de Boas
ficaram de fora do tópico que seguiu. De toda sorte, cito nomeadamente estas contribuições. O métodos: histórico do
qual lança mão para diferenciar-se dos evolucionistas (que utilizavam a comparação entre sociedades); a teoria
difusionista para explicar as variações e similaridades culturais; estudos que levam em conta a relação com o meio
ambiente como uma variável de forte influência, assim como as necessidades bio-fisiológicas e até mesmo mentais.
277

1.1.4 Bronislaw Malinowski: descobrindo o valor do campo e as funcionalidades dos elementos


culturais
Este autor é o pai-fundador da teoria funcionalista, caracterizada por um radical trabalho
de campo em que o Antropólogo deve dominar a língua do nativo, passar um longo tempo
vivendo com e como os nativos, mantendo um diário de campo rigorosamente atualizado,
coletando dados relativos à parentesco, sistemas de trocas de bens materiais e simbólicos,
folclore, cotidiano da vida diária, desde o elemento mais casual e familiar no cotidiano do grupo
estudado, ao mais improvável e estranho. Com tais ações o etnógrafo terá capturado o esqueleto,
a carne, o sangue e a alma da vida nativa, utilizando as próprias palavras de Malinowski (1978).
O esqueleto no sentido de conseguir descrever inteiramente a vida material do grupo
estudado, ou seja, ―A organização da tribo e a anatomia de sua cultura devem ser delineadas de
modo claro e preciso‖ (MALINOWSKI, 1978, p. 33). A carne e o sangue no sentido de capturar
―os imponderáveis da vida real‖ (MALINOWSKI, 1978, p. 29) e os tipos de comportamento do
cotidiano, sempre anotados em um diário de campo (MALINOWSKI, 1978, p. 33). Finalmente, a
alma no sentido de serem as ―[...] ideias, sentimentos, impulsos [...] moldados e condicionados
pela cultura em que os encontramos e são, portanto, uma peculiaridade étnica da sociedade em
questão‖ (MALINOWSKI, 1978, p. 32), ou, em outras palavras, ―[...] uma coleção de asserções,
narrativas típicas, palavras características, elementos folclóricos e fórmulas mágicas – deve ser
apresentado como documento da mentalidade nativa‖ (MALINOWSKI, 1978, p. 33). Isso feito,
terá o etnógrafo apreendido ―[...] o ponto de vista dos nativos, seu relacionamento com a vida,
sua visão de seu mundo‖ (MALINOWSKI, 1978, p. 33-34).
Dito isso, pode-se afirmar que Malinowski foi o primeiro Antropólogo a pensar o trabalho
de campo em toda a sua complexidade, questionando-se, inclusive, sobre os procedimentos de
fabricação de um fato etnográfico222. Ainda que Boas tenha chamado a atenção para a
necessidade de se empreender um sério trabalho de campo, com uma postura relativizadora, é
Malinowski quem pensa e consolida na prática esse anúncio de Boas. Com efeito, Malinowski
não só assume uma postura relativizadora, como proposto por Boas, mas também estabelece
procedimentos de campo para melhor executar essa postura.

222
Para confirmar essas afirmações, basta verificar a preocupação com que o autor reflete sobre o trabalho de campo,
reservando todo o primeiro capítulo da sua primeira etnografia para a descrição de como foram coletados e
formulados os dados apresentados no ―Argonautas do Pacífico Ocidental‖.
278

Assim, para Malinowski, a Antropologia é a Ciência que estudará as culturas do ser


humano, tendo assim definido objeto e método desta Ciência, a saber, acessar as culturas
humanas (objeto) por meio do trabalho de campo etnográfico (método). A teoria seria a postura
funcionalista, ou seja, o Antropólogo em campo deve buscar quais as funções que os elementos
culturais apresentam, pensando essas funções a partir da lógica nativa, acessada por uma postura
de extrema alteridade.
Cabe aqui explicitar duas características da teoria funcionalista. Primeiro, Malinowski
(1975) não utiliza a analogia que originalmente esta teoria lança mão, onde toma-se emprestada a
ideia de função das ciências biológicas, vendo o funcionamento do fenômeno social como um
organismo vivo no qual as instituições, assim como os órgãos de um ser vivo, têm funções
definidas para o pleno funcionamento da cultura estudada. Esta analogia é amplamente utilizada
por Durkheim (2002) e por Radcliffe-Brown (1995), sendo este último trabalhado no próximo
tópico. No caso de Malinowski, é utilizado o princípio da funcionalidade de uma parte
(instituição social) que integra um todo (a sociedade), mas não é feita a comparação com um
organismo vivo.
A segunda característica refere-se à ideia de que a cultura surge exclusivamente para
suprir necessidades biológicas do ser humano, construindo um ambiente artificial ao seu redor.
Com efeito, cada instituição social que forma o todo cultural, deverá suprir uma necessidade
fisiológica do ser humano, como a fome ou a contingência de um abrigo (MALINOWSKI, 1975).
Este aspecto da teoria de Malinowski ficou conhecido como a Teoria das Necessidades
(MALINOWSKI, 1975, p. 160-163). Ainda que Malinowski fale nas necessidades secundárias,
derivadas da própria cultura, sua teoria foi severamente criticada, especialmente por Levi-Strauss
que mostra que, mesmo que a cultura seja inegavelmente uma resposta à necessidades
fisiológicas ou mesmo secundárias ou culturais, ela não se limita a formar-se exclusivamente pelo
fator da necessidade, expandindo-se para o próprio espírito de curiosidade do ser humano (LEVI-
STRAUSS, 1976). Em tópico mais adiante esta crítica será detalhada.
Com efeito, cabe ainda observar que Boas e Malinowski, na medida em que defendiam a
necessidade da estadia do antropólogo em campo, talvez tenham sido os primeiros a incorporar a
natureza em seus estudos a partir da perspectiva da cultura estudada, ou nos termos que este
trabalho está propondo utilizar, foram os primeiros a considerar os não humanos a partir da visão
279

dos próprio humanos estudados, e não a partir da visão que o pesquisador tem de humano e não
humano.
Retornando à teoria funcionalista de Malinowski, este autor observava que a Antropologia
era o ramo mais amplo das humanidades223, mas distinguia-se das outras na medida em que tinha
a cultura como seu objeto de estudo, devendo o antropólogo manter uma postura de relativização
no estudo e posterior relato das funções que as instituições sociais tinham em suas respectivas
culturas. Assim, a um só tempo, Malinowski definia sua teoria e seu método: a postura
relativizadora e de pensar funções para as instituições sociais estudadas como método, munido de
toda a teoria funcionalista nesse processo224.

1.1.5 Radcliffe-Brown: descobrindo a comparação de etnografias e suas estruturas sociais


principiológicas
Radcliffe-Brown (doravante, ora R.B., ora Radcliffe-Brown) é um dos fundadores da
teoria funcional-estruturalista. Esta teoria caracteriza-se por utilizar o método e as noções de
comparação e análise entre sociedades, buscando sempre uma estrutura geral entre as mesmas.
Nas palavras do autor:
O método adotado aqui não é o da história nem o da pseudo-história, mas um que
combina comparação e análise. Sistemas sociais são comparados para que suas
diferenças possam ser definidas e, nas suas diferenças, semelhanças mais
fundamentais e gerais serem descobertas. Uma meta da comparação é
proporcionar-nos esquemas de classificação. Sem classificação não há ciência.
A análise, tal como o termo é usado aqui, é um procedimento que só pode ser
aplicado a algo que é em si um todo ou uma síntese. Por ela destacamos, na
realidade ou no pensamento, os componentes de uma totalidade complexa e, assim,
descobrirmos a relação entre estes componentes dentro desta totalidade.
(RADCLIFFE-BROWN, 1995, p.60) (grifo nosso)

223
Termo utilizado pelo próprio Malinowski (1975), referindo-se ao ―estudo do homem‖, onde estariam outras
ciências e formas de conhecimento como a Arqueologia, Pré-História, Filosofia, Estudo das Religiões, etc. Nesse
cenário, a Antropologia seria ―[...] a ciência do homem em geral e como a mais ampla entre as disciplinas do
humanismo não considerada como tais, foi a última a aparecer‖ (MALINOWSKI, 1975, p. 13).
224
Para fins de registro, observo que Malinowski (1976), em início de carreira, usava a noção de ―verdadeiro espírito
do nativo‖ (p. 20), ―tipo fundamental de atividade humana‖, ―atitude mental‖ (p. 368), ―atitude mental fundamental‖
(370), ao tratar da dicotomia entre natureza e cultura humana. O autor não deixava claro qual dos termos estava
usando, mas, em meu entendimento, utilizava ambos, no sentido de pensar a cultura como a própria natureza
humana, um olhar parecido ao formulado por Levi-Strauss (1976). Este, por sua vez, entendia a cultura humana
como a manifestação da natureza humana, sendo esta entendida como um inconsciente subjacente da própria
humanidade (entre outros significados adotados por Levi-Strauss, ainda que sendo este o principal), a ser descoberto
pelo antropólogo. Essa postura de Malinowski desaparece em uma de suas últimas obras (―Uma Teoria Científica da
Cultura‖, MALINOWSKI, 1976), mantendo sua noção de cultura alinhada exclusivamente à sua teoria das
necessidades, no sentido comentado no corpo deste texto.
280

Aqui se pode perceber o esboço de uma teoria estruturalista em Radcliffe-Brown, quando


o autor comenta sobre a busca de um ―número de princípios estruturais gerais‖ (p. 61). Com isso,
o funcional-estruturalismo concebe uma visão particular da atividade do antropólogo social como
responsável pelo ―[...] estudo das regularidades encontráveis no desenvolvimento da sociedade
humana na medida em que possa ser ilustradas ou demonstradas pelo estudo dos povos
primitivos.‖ (RADCLIFFE-BROWN, 1973, p. 44). Nesse sentido, os pressuposto
epistemológicos de Radcliffe-Brown (1973), concedem à Antropologia a posição de subdisciplina
da Sociologia, sendo a Sociologia a Ciência Social da sociedade em geral e a Antropologia Social
a subdisciplina responsável pelo estudo dos povos primitivos.
Com efeito, o autor em tela lança mão do parentesco como um elemento chave para o
entendimento de sociedades primitivas. Nas palavras do autor: ―Para a compreensão de qualquer
aspecto da vida social de um povo africano – econômico, político ou religioso – é essencial ter
conhecimentos concretos de seus sistema de parentesco e casamento‖ (1995, p.59)225. Assim, por
meio da comparação e análise do parentesco, chega-se ao seguinte resultado:
Um estudo de sistemas de parentesco, realizado no mundo inteiro por este método
(comparação e análise), revela que, enquanto há uma variação muito grande em
suas características superficiais, pode-se encontrar um pequeno número de
princípios estruturais gerais que são aplicados e combinados de várias maneiras.
(RADCLIFFE-BROWN, 1995, p. 60) (grifo nosso)

O termo grifado nos dá a postura que R.B. assumia em seus estudos: encontrar princípios
estruturais gerais da humanidade, utilizando meta conceitos como processo social, estrutura
social, função social, sistema social, entre outros226 (teoria), comparando e analisando (método)
sistemas sociais de povos primitivos (objeto de estudo)227.

225
Klaas Woortman também enfatiza a importância do estudo do parentesco outrora dentro da teoria antropológica:
―... o parentesco constituía a principal área de preocupação da antropologia, e grande parte da teoria antropológica foi
gerada, direta ou indiretamente, a partir dos estudos de parentesco‖ (WOORTMAN, 1977, p. 149).
226
Muitos destes podem ser claramente definidos e visualizados em R.B. (1973), especialmente em sua Introdução.
227
Para fins de registro, a temática do parentesco em R.B. e sua perspectiva funcional-estruturalista estava centrada
na noção de descendência. R.B. (1995) entendia que os indivíduos são parentes daqueles que são seus
ascendentes/descendentes ou então quando descendem da mesma pessoa (relação de siblings, irmãos, cognática), nas
palavras do autor: ―Duas pessoas são parentes quando uma descende da outra, como por exemplo, um neto é
descendente de um avô, ou quando ambas são descendentes de um antepassado comum.‖ (1995, p.62). Mais à frente
o autor chama a atenção para o fato do conceito de parentesco não ser sinônimo de consanguinidade. Em algumas
sociedades o parentesco nem sempre se dá em função da consanguinidade, sendo possível exemplificar tal fato com a
situação de adoção presente em nossa sociedade: os pais, socialmente aceitos, não são os pais biológicos do ego, ou
seja, o parentesco é algo construído socialmente.
281

Com efeito, R.B. não utilizava o termo cultura como eixo central de suas análises, dada a
sua polissemia, utilizando termos como forma de vida social, processo social, sistemas sociais,
entre outros, como equivalentes. Nas palavras do próprio R.B.
Os antropólogos empregam a palavra <<cultura>> com sentidos diferentes. Parece-me
que alguns a empregam como equivalente ao que designo por forma de vida social. [...
Outros referem-se] a um processo, e podemos defini-lo como o meio pelo qual uma
pessoa adquire conhecimento, especialidade, idéias, crenças, gostos e sentimentos,
mediante contato com outras pessoas, ou pelo trato com outras coisas, tais como livros
ou obras de arte. (R.B., 1973, p. 13-14)

De toda sorte, R.B. operava sob o manto da distinção entre natureza e cultura, dissecando
o termo cultura com a formação de outros termos, assim como mesclando-o com outros, mas,
ainda assim, distinguindo o elemento social dos seres humanos (sua cultura) do elemento social
de outros seres vivos (seus instintos, suas naturezas), pois
[...] É em razão da existência de cultura e tradições culturais que a vida social humana
difere muito marcadamente da vida social de outras espécies animais. A transmissão dos
modos aprendidos de pensar, sentir e atuar constitui o processo cultural, que é aspecto
específico da vida social humana (R.B., 1973, p. 14).228

Quanto ao método, R.B. preocupava-se em estabelecer premissas e posturas prévias na


análise dos dados coletados, mas não se colocava a discutir os meios pelos quais esses dados
foram coletados, como feito por Malinowski. Contudo, R.B. deixa claro que o antropólogo deve
lançar-se em campo, não restringindo-se à seu gabinete, mesclando seus estudos de campo com
estudos de outros etnólogos (R.B., 1995).
Ainda utilizando como exemplo a temática do parentesco, passa-se para o próximo tópico
que trata das contribuições de Levi-Strauss para a teoria antropológica.

1.1.6 Levi-Strauss: consolidando a comparação entre etnografias e descobrindo as estruturas


elementares (ou a natureza) das culturas humanas229
Diferente de R.B., Lévi-Strauss (doravante, também utiliza-se L.S.) não pensa a noção de
estrutura no sentido de uma estrutura objetiva geral das sociedades humanas, mas concebe-a
228
Ainda que utilizando o termo cultura neste trecho, o autor pensava-o como um aspecto do processo social de
permanência e mudança da realidade social, como exposto na primeira parte do parágrafo ora citado. Segue a citação
dessa primeira parte: ―Se tratarmos da realidade social que estamos investigando, não como entidade, mas como
processo, neste caso cultura e tradição cultural são nomes para determinados aspectos identificáveis daquele
processo, mas não, evidentemente, de todo o processo (R.B., 1973, p.14).
229
A obra de Levi-Strauss é ampla. Até a pouco tempo ele era o decano da antropologia mundial, falecendo em
2009, com mais de cem anos. Diante de tão vasta e produtiva carreira acadêmica, este autor pode ser entendido a artir
da divisão de sua obra em dois momentos, tendo como ponto de transição o livro ―O Pensamento Selvagem‖. Com
282

como uma estrutura presente no inconsciente do ser-humano, estando por trás da realidade
objetiva. Assim, se em Radcliffe-Brown a estrutura é percebida como a própria realidade social,
em Lévi-Strauss ela está por trás da realidade objetiva, as relações sociais seriam a matéria prima
dessa estrutura que estaria determinada no inconsciente geral do ser humano. As relações sociais
com as quais as sociedades se organizavam e se reproduziam nada mais eram do que reflexos da
estrutura inconsciente, esta sim perceptível somente através das recorrências de determinados
fenômenos sociais nas mais diferentes sociedades. Assim, pesquisavam-se as culturas humanas
para encontrar seu inconsciente geral, as regularidades que ditam seu comportamento ou, em
outras palavras, a natureza do ser humano.
Levi-Strauss (1976) estabelece uma simetria entre Natureza e Cultura, observando que
não cabe à Antropologia falar em um elo perdido entre os dois, mas melhor seria ter como papel
estabelecer o que é Natureza e o que é Cultura, pois
Simetricamente, é fácil reconhecer no universal o critério da natureza. Porque aquilo que
é constante em todos os homens escapa necessariamente ao domínio dos costumes, das
técnicas e das instituições pelas quais seus grupos se diferenciam e se opõem. (LEVI-
STRAUSS, 1976, p. 47).

Utilizando uma analogia do próprio autor, o etnólogo deve extrair da cultura a ―[...]
estrutura inconsciente, subjacente a cada instituição e a cada costume [...]‖, assim como o
linguista faz quando reconhece a presença dos mesmos fonemas ou a utilização dos mesmos
pares de oposição, pois este ―[...] não compara seres individualmente distintos: é o mesmo
fonema, o mesmo elemento, que lhe garante nesse novo plano a identidade profunda de objetos
empiricamente diferentes.‖ Assim, se trata de um único fenômeno, não de dois fenômenos
semelhantes, logo, o etnólogo e o linguista estudam ―[...] A passagem do consciente ao
inconsciente [que] é acompanhada por um progresso do específico em direção ao geral‖ (LEVI-
STRAUSS, 2012, p. 46). Para melhor ilustrar essa dicotomia, Levi-Strauss usa o exemplo do
parentesco e da proibição do incesto como um fenômeno ao mesmo tempo biológico (natural) e
cultural.
Nos capítulos 1 e 2 de seu clássico ―As Estruturas Elementares do Parentesco‖ o autor
discute o fenômeno do incesto, ou seja, a razão da existência da regra que proíbe relações
matrimoniais/sexuais entre pais/mães, filhos/filhas e irmãos/irmãs. A proibição do incesto varia
de sociedade a sociedade ou de grupo social a grupo social, mas o fato é que essa regra pode ser
encontrada em todas as sociedades humanas ainda que variando em seus moldes de aplicação. A
283

conclusão que o autor chega após algumas considerações demonstra que o incesto possui a
universalidade que o caracteriza na dimensão da natureza, porque encontrado em todas as
sociedades humanas, mas ao mesmo tempo possui o caráter coercitivo das leis e instituições que
o definem como um fenômeno social. O ponto fundamental, portanto, é perceber que a proibição
do incesto resume uma questão de duas ordens, mais precisamente ele está no limite dessas duas
ordens, a biológica (natural) e a cultural.
Assim, Levi-Strauss entende a Natureza humana como regularidades identificadas na
diversidade cultural humana, como é o caso do incesto. Existe uma regra inconsciente, que é a
proibição do incesto (regra da natureza, que é universal), por outro lado, existem regras culturais
que particularizam essas regras universais, ditando quem serão as pessoas proibidas.
Para se entender o que propõe o autor é fundamental que se tenha em mente a sua
concepção sobre matrimônio. Enquanto os autores por ele citados entendiam o casamento como a
união entre duas pessoas com o intuito da procriação, além da própria reprodução cultural,
econômica, etc., Lévi-Strauss vê no casamento não a união de duas pessoas, mas a união entre
grupos, que assim se relacionam como estratégia de sobrevivência. Isso leva a uma questão mais
abrangente que diz respeito à reciprocidade. A aliança é por ele vista como a forma primária de
reciprocidade.
Percebendo a proibição do incesto como regra fica claro que se inicia aí um começo de
organização social. Mas ao mesmo tempo em que o tabu do incesto é uma proibição ele se
caracteriza também, dentro de um outro prisma, como uma prescrição. Se há por um lado a
proibição de um círculo de parentes para se contrair matrimônio, imediatamente se está
prescrevendo um outro grupo.
A partir do momento em que proíbo a mim mesmo o uso de uma mulher, que com isso
passa a ser disponível para um outro homem, há, em algum lugar, um homem que
renuncia a uma mulher que, por esse fato, torna-se disponível para mim. O conteúdo da
proibição não se esgota no fato da proibição. Esta só é instaurada para garantir e fundar,
direta ou indiretamente, imediata ou imediatamente, uma troca (LÉVI-STRAUSS,
1976, p.91).

Há sociedades em que essa prescrição é enfática, ou seja, o grupo do qual se deve


escolher o parceiro está previamente escolhido e determinado sendo que o não cumprimento
dessa prescrição pode ser falta tão grave quanto aquela que viola as proibições. Mas é importante
fazer algumas distinções. Quando um indivíduo está proibido de se casar com um determinado
grupo de sua parentela não quer dizer obrigatoriamente que deva se casar com a outra parte.
284

Dessa forma, um indivíduo transita em uma sociedade que permite ora uniões endogâmiocas, ora
exogâmicas dependendo do sistema de parentesco230.
Assim, a partir dos parágrafos que se passaram, afirmo que Levis-Strauss entendia a
Antropologia Social (ou Etnologia, como ele mesmo preferia chamar), como uma metade do
estudo da natureza humana (ou seu inconsciente subjacente) e de sua diversidade cultural, sendo
a etnografia a outra parte desse estudo. Enquanto esta ―[...] consiste na observação e análise de
grupos humanos tomados em sua especificidade [... ] visando a restituição, tão fiel quanto
possível, do modo de vida de cada um deles.‖ (p. 18-19), aquela teria como missão comparar
―[...] os documentos apresentados pela etnografia‖ (p. 19)
Assim, L.S. tem como objeto de estudo da Antropologia as culturas primitivas, buscando
regularidades nessas culturas para, assim, encontrar inconscientes subjacentes da humanidade (ou
talvez nossa natureza), por meio de estudos etnográficos e suas respectivas comparações.
Com efeito, L.S. fez parte de uma geração de antropólogos em que existiam muitas
―culturas tradicionais‖ à margem da modernidade. Não tenho dados históricos precisos sobre a
gradual expansão das redes de comércio proporcionados pelo capitalismo ao redor do mundo,
contudo é fato que em meados do século XX o modo de vida do europeu moderno já se expandia
para muitas outras cidades do mundo, ademais da Europa e EUA. As redes de comércio
capitalistas já alcançavam e influenciavam comunidades amazônicas (ARAMBURU, 1994),
aldeias australianas (FIRTH, 1974), enquanto que a organização política de Estados Nação já
afetavam sociedades indígenas no Brasil (CLASTRES, 2013231) e na África (GLUCKMAN,
1987).
A colonização da maior parte das culturas primitivas, tradicionais, rústicas e toda sorte de
cultura não moderna por parte dos modernos, estava sendo dada, ainda que não conscientemente,
mas oficialmente, por meio do processo de organização política de todos os territórios de nosso
planeta em Estados-nações, reproduzindo o modelo europeu. Posteriormente o Estado-nação
entrava na rede de produção e consumo de bens do sistema de organização econômico do

230
Com efeito, ainda que toda a obra estruturalista de L.S. esteja pautada na oposição entre natureza e cultura, são seus próprios
escritos que mostram algumas das inconsistências dessa dicotomia. Como exemplo é possível citar o seu clássico texto ―A ciência
do concreto‖ (LEVIS-STRAUSS, 1989), em que o autor exalta as faculdades e capacidades mentais de classificação do
pensamento selvagem, fazendo um passeio sobre as várias maneiras de classificação que a mente não moderna formulou e da qual
é herdeira. Outro escrito deste autor que problematiza a noção de diversidade cultural e unidade biológica, refere-se ao texto
―Raça e história‖ (LEVI-STRAUS, 2013). A problematização dessa dicotomia é melhor desenvolvida por Descola (2011).
231
Digno de nota mencionar que este autor, ainda que não tenha sido constantemente cotado por este trabalho, foi
uma importante fonte inspiradora, na medida em que apresenta interessantes ponderações sobre a formação do
Estado e da Ciência como instrumentos de colonização do pensamento e da prática dos nativos.
285

capitalismo232, para então, finalmente, ter implementado um sistema de ensino pautado na


ideologia científica da dicotomia entre natureza e cultura.
Esse cenário teve desdobramentos na teoria antropológica, na medida em que as culturas a
serem estudadas sofreram severas transformações decorrentes do contato mais intenso com as
culturas modernas. Muitos autores tratam dessa problemática do contato entre culturas,
propiciando um movimento em que a Antropologia começa a voltar seus olhares não somente
para a busca de leis gerais, mas pelo estudo descritivo, minucioso e particular das culturas não
tradicionais e os desdobramentos do contato entre culturas, como feito por Gluckman (1987),
Firth (1974), entre outros.
Com efeito, nesse cenário de embaralhamento teórico (teorias que estudam a humanidade
como um todo, o contato cultural, uma cultura específica), metodológico (cada uma das posturas
citadas desdobrava-se em metodologias específicas que não se restringiam mais aos tradicionais
métodos histórico ou comparativo, menos ainda à regras de coleta de dados em campo) e de
objetos de estudo (dado a diversidade de culturas e seus respectivos graus de contato), a
Antropologia sofre uma séria ruptura, explicada no tópico que segue.

1.2 Epistemologia da antropologia de Clifford Geertz


Este tópico trata da obra de Clifford Geertz, antropólogo americano que contribuiu para
uma ―ruptura epistemológica‖ dentro da Antropologia, mudando as bases dessa ciência social.
Uma breve revisão de alguns dos capítulos da primeira e da última obra deste antropólogo
(GEERTZ, 1993 e GEERTZ 2001) é construída, extraindo alguns de seus principais argumentos
sobre o que é a antropologia e o papel desta dentro das Ciências Humanas. Dessa forma, objetiva-
se demonstrar a ruptura epistemológica promovida por Geertz dentro de nossa disciplina,
transformando-a de uma Ciência Objetiva para uma Ciência Subjetiva. Para tanto, como será
exposto no decorrer do tópico, Geertz importa alguns autores da Filosofia e da Crítica Literária,
permitindo e inserindo novos ares e novas reflexões dentro da antropologia233.

1.2.1 A interpretação das culturas (1973)

232
Com algumas exceções ligadas aos países de regime socialista.
233
Dentre esses autores, cita-se Ricoeur, Wittgenstein, Burke e Langer. Com efeito, entende-se que os cientistas
sociais da atualidade devem lançar mão desses autores para uma leitura mais precisa da realidade social, dentro do
atual cenário de unificação das Ciências Humanas (BAIARDI, 2011), ou, talvez, como previsto por Deleuze e
Guatarri (2011), uma rizomatização.
286

O primeiro livro de Geertz é publicado em 1973 e traz o inicio de sua teoria sobre a
antropologia interpretativista. É com esta obra que se fala na ruptura epistemológica que Geertz
realiza no âmbito da Antropologia como Ciência. Entre outras discussões o autor coloca em
ênfase a necessidade de ser feito um trabalho de campo de extrema qualidade e como este
trabalho de campo será apenas uma interpretação da realidade estudada e não a realidade em si.
Com esta discussão Geertz coloca o foco da Antropologia não mais no inconsciente geral
da humanidade, no qual Levi-Strauss estava preocupado em encontrar, mas sim na ideia de que o
objeto de estudo da Antropologia seria a cultura. Para tanto, Geertz precisava criar um conceito
de cultura mais preciso que o ―todo mais complexo‖ de E. Tylor. Assim, para Geertz, cultura
seriam teias de significados dentro as quais o homem se movimenta. Nas palavras do autor:
O conceito de cultura que eu defendo... é essencialmente semiótico. Acreditando, como
Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo
teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e as suas analises; portanto, não como
uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa á
procura do significado (GEERTZ, 1993, p. 15, grifo nosso).

Estabelecido o conceito semiótico de cultura, Geertz problematiza o ofício antropológico,


a saber, a etnografia, conferindo-lhe contornos epistemológicos e menos questões relativas a
método e procedimentos. Nas palavras de Geertz:
...praticar a etnografia é estabelecer relações , selecionar informantes, transcrever textos,
levantar genealogias, mapear campos, manter um diário e assim por diante. Mas não são
essas coisas, as técnicas e os processos determinados, que definem o empreendimento. O
que define é o tipo de esforço intelectual que ele representa: um risco elaborado para
uma descrição densa... (GEERTZ, 1993, p. 15).

Geertz dá continuidade ao seu texto explanando sobre o que seria uma descrição densa.
Para tanto, cita a discussão proposta por Gilbert Ryle e as várias possibilidades de significado que
o ato de contrair as pálpebras pode ter: uma piscadela, uma piscadela burlesca, um ensaio para
uma piscadela, um tique nervoso, a imitação de um tique nervoso, etc. Uma descrição superficial
seria a contração das pálpebras, enquanto que a descrição densa seria a interpretação dessa
piscadela, conferindo-lhe algum tipo de significado. Nas palavras do autor:
O caso é que, entre o que Ryle chama de ―descrição superficial‖ do que o ensaiador
(imitador, piscador, aquele que tem o tique nervoso...) está fazendo (―contraindo
rapidamente sua pálpebra direita‖) e a ―descrição densa‖ do que ele está fazendo
(―praticando a farsa de um amigo imitando uma piscadela para levar um inocente a
pensar que existe uma conspiração em andamento‖) está o objeto da etnografia: uma
hierarquia estratificada de estruturas significantes em termos das quais os tiques
nervosos, as piscadelas, as falsas piscadelas, as imitações, os ensaios das imitações são
produzidos, percebidos e interpretados, e sem as quais eles de fato não existiriam
287

(nem mesmo as formas zero de tiques nervosos as quais, como categoria cultural, são
tanto não-piscadelas como as pisadelas são não-tiques), não importa o que alguém
fizesse ou não com sua própria pálpebra. (GEERTZ, 1993, p. 17).

Mais adiante o antropólogo dá a sua própria piscadela, transcrevendo um relato dos seus
cadernos de campo. O relato, em síntese, expunha as confusões de significados de um contato
intercultural entre um judeu, que teve seus carneiros roubados por berberes, os berberes ladrões
de carneiros e a ineficaz administração colonial francesa. Quando Cohen, o judeu roubado,
recupera seus carneiros da tribo berbere em função de um antigo código de conduta informal, a
administração colonial francesa não acredita em Cohen, prendendo-o e confiscando seus
carneiros. Os franceses acreditavam que o judeu era, na verdade, um espião das tribos berberes.
Após ser solto, Cohen recorre ―... ao coronel da cidade, um francês encarregado de toda a região,
para queixar-se. Todavia, o coronel responde ‗Nada posso fazer a respeito, Não é meu
problema‘‖ (GEERTZ, 1993, p. 19). Em outras palavras, houve um desentendimento cultural.
Através desse relato, Geertz põe em evidência ―... o sentido correto do muito que existe na
descrição etnográfica... ela é extraordinariamente densa.‖. Assim,
Nos escritos etnográficos acabados, inclusive os aqui selecionados, esse fato – de que o
que chamamos de nossos dados são realmente nossa própria construção das construções
de outras pessoas, do que elas e seus compatriotas se propõem – está obscurecido, pois a
maior parte do que precisamos para compreender um acontecimento particular, um
ritual, um costume, uma idéia, ou o que quer que seja está insinuado como informação
de fundo antes da coisa em si mesma ser examinada diretamente. (GEERTZ, 1993, p.
19).

Em termos mais simplificados, Geertz traz o fazer etnográfico (ou, como usualmente
falamos, o ― trabalho de campo‖ ou o ―campo‖) para a teoria antropológica, problematizando a
etnografia, pensando-a como uma descrição densa. Com isso, este antropólogo promove a ruptura
epistemológica dentro da antropologia, na medida em que, ademais de problematizar o fazer
etnográfico em termos epistemológicos e deslocar a noção de cultura para campos semióticos e
das teorias do significado, concede à Antropologia a condição de uma ciência interpretativista,
em busca de significados, e não uma física social em busca de leis gerais da cultura e das
sociedades humanas.
Assim, Geertz cita Wittgenstein para jogar luz nos desdobramentos da ideia de uma
antropologia interpretativista:
Falamos... de algumas pessoas que são transparentes para nós. Todavia, é importante no
tocante a essa observação que um ser humano possa ser um enigma completo para outro
ser humano. Aprendemos isso quando chegamos a um país estranho, com tradições
288

inteiramente estranhas e, o que é mais, mesmo que se tenha um domínio total do país.
Nós não compreendemos o povo (e não por não compreender o que eles falam entre si).
Não nos podemos situar entre eles (WITTGENSTEIN apud GEERTZ, 1993, p. 23).

Esse processo de ―situar-se‖ ou, como é proposto pelo próprio Geertz, expor a cultura
como contexto (GEERTZ, 1993, p. 24), é que se constitui na missão do antropólogo. Isso não
significa ser como um nativo (MALINOWSKI, 1984), mas simplesmente achar que estamos
achando o que o nativo acha que está fazendo234. Nas palavras de Geertz (1993): ―começamos
com nossas próprias interpretações do que pretendem nossos informantes, ou o que achamos que
eles pretendem, e depois passamos a sistematizá-las‖ (p. 25). Assim,
... os textos antropológicos são eles mesmos interpretações e, na verdade, de segunda e
terceira mão. (Por definição, somente um ―nativo‖ faz a interpretação em primeira mão:
é a sua cultura) Trata-se, portanto de ficções... ―algo construído‖ ―algo modelado‖ – o
sentido original de fictio – não que sejam falsa, não-fatuais ou apenas experimentos de
pensamento. (GEERTZ, 1993, p. 26).

Com isso, Geertz põe em evidência a fragilidade da Antropologia quando comparada a


outras ciências. Afinal, o que distinguiria um escrito etnográfico de um romance de época ou das
descrições dos viajantes dos séculos passados? Porque um é menos uma construção, uma ficção,
que o outro? Há objetividade na construção de uma etnografia? De que maneira diferenciar um
relato melhor de um pior? Geertz assim se pronuncia:
... A exigência de atenção de um relatório antropológico não repousa tanto na capacidade
do autor de captar os fatos primitivos em lugares distantes e levá-los para casa como
uma máscara ou um entalho, mas no grau em que ele é capaz de esclarecer o que ocorre
em tais lugares, para reduzir a perplexidade... a que naturalmente dão origem os
atos não familiares que surgem de ambientes desconhecidos... Se a etnografia é uma
descrição densa e os etnógrafos são aqueles que fazem a descrição, então a questão
determinante para qualquer exemplo dado, seja um diário de campo sarcástico, ou uma
monografia alentada, do tipo Malinowski, é se ela separa as piscadelas dos tiques
nervosos e as piscadelas verdadeiras das imitações. (GEERTZ, 1993, p. 26-27, negrito
nosso)235.

Ele também traz a importância mais uma vez da prática do trabalho de campo,
enveredando menos para estudos da cultura como ―sistemas de símbolos em seus próprios
termos‖ que se pode apreender ―... pelo isolamento dos seus elementos e passando então a
caracterizar todo o sistema de uma forma geral...‖ (GEERTZ, 1993, p. 27) e mais como um

234
Em ―A Interpretação das Culturas‖, Geertz ainda não tem essa ideia tão claramente definida, mas como será visto
mais adiante, na análise da obra ―Nova Luz sobre a Antropologia‖, esta noção de achar que estamos entendendo o
que o ―nativo‖ acha que está fazendo é mais clara e explícita.
235
O trecho negritado já traz indicativos da função do Antropólogo como uma espécie de diplomata, mesmo
posicionamento adotado por Latour (2004 a, b, 2013 a, b).
289

estudo da ação social e suas formas culturais. Com o trabalho de campo o antropólogo ganha
acesso empírico a essa ação social e seus diversos sistemas de símbolos, ―... inspecionando os
acontecimentos e não arrumando entidades abstratas em padrões unificados.‖ (GEERTZ, 1993, p.
28)236.
Assim, Geertz lança a ideia da realidade como um discurso social, observando que o
etnógrafo, ao anotar esse discurso social segundo sua interpretação, ―... o transforma de
acontecimento passado, que existe em seu próprio momento de ocorrência, em um relato, que
existe em sua inscrição e que pode ser consultado novamente‖ (GEERTZ, 1993, p. 29). Esta ideia
está fundamentada nos escritos de Paul Ricoeur, quando se pergunta o que a escrita fixa:

Não o acontecimento de falar, mas o que foi ―dito‖, onde compreendemos pelo que foi
―dito‖ no falar, essa exteriorização intencional constitutiva do objetivo do discurso
graças ao qual o sagen – o dito – torna-se Aus-sage – a enunciação, o enunciado.
Resumindo, o que escrevemos é o noema (―pensamento‖, ―conteúdo‖, ―substância‖) do
falar. É o significado do acontecimento de falar, não o acontecimento como
acontecimento. (RICOEUR apud GEERTZ, 1993, p. 29)

Ou seja, a etnografia seria a forma pela qual poderíamos ―inscrever‖ a teia de significados
que é a cultura, lembrando que esta descrição seria somente uma interpretação, por isso seria
apenas uma forma de descrever tal cultura, não sendo o único olhar possível a ser feito.

1.2.2 Nova Luz sobre a Antropologia


Esse livro foi escrito em um momento da vida de Geertz que se poderia denominar de
plena maturidade intelectual. O autor em tela retorna a assuntos mais epistemológicos e de
filosofia da ciência, contudo o faz através da ótica da antropologia, lançando mão de autores de
todas as áreas, mas especialmente da filosofia. O viés interpretativista é marcante, e discussões de
ética, epistemologia e ciência são levantadas a todo instante.
Nesse sentido, logo no prefácio de seu livro, Geertz observa que irá tratar sobre as
ligações entre Antropologia e Filosofia, visto que ambas dizem respeito a ―vida e ao pensamento
humano‖ (p. 7) sendo que suas fronteiras não chegam a se confundir, ―antes, não tem fronteiras
claramente demarcáveis‖ (p. 7). Nesse sentido,
... a antropologia descobre hoje que várias disciplinas recentemente improvisadas,
semidisciplinas e sociedades militantes (de estudos de gênero, da ciência, dos

236
Penso que Geertz, neste trecho, faz um crítica a Antropologia Estruturalista de Levi-Strauss, especialmente no que
concerne ao papel do etnólogo como alguém que busca um inconsciente estrutural através do estudo das culturas
humanas.
290

homossexuais, da mídia, étnicos, pós-coloniais etc., livremente agrupados como insulto


final, sob o rótulo ―estudos culturais‖) se amontoam no terreno que ela tão árdua e
corajosamente desbravou, limpou e passou a cultivar.‖ (GEERTZ, 2001, p. 7-8).

Com isso, Geertz observa que pensava estar enveredando


bravamente por um caminho sem precedentes, e de repente, olhamos em volta e
descobrimos que estão no mesmo rumo toda sorte de pessoas de quem nunca se quer
ouvíramos falar. A reviravolta linguística, a reviravolta hermenêutica, a revolução
cognitiva, os abalos secundários dos terremotos Wittgenstein e Heidegger, o
construtivismo de Thomas Kuhn e Nelson Goodman, Benjamin, Foucault, Goffman,
Lévi-Strauss, Suzanne Langer, Kenneth Burke, os desenvolvimentos na gramática, na
semântica e na teoria da narrativa e, recentemente, no mapeamento neural e na
somatização da emoção, de repente tudo isso tornou aceitável para um acadêmico a
preocupação com a produção do sentido. Esses vários desvios e novidades não se
harmonizaram inteiramente, é claro, para dizer o mínimo, nem revelaram igual utilidade.
Mas criaram o ambiente e, de novo, forneceram os instrumentos especulativos para
tornar bem mais fácil a existência de alguém que via os seres humanos (citando a mim
mesmo parafraseando Max Weber) ―amarrados a teias de significado que eles mesmos
teceram‖. Apesar de toda a minha determinação de seguir um caminho próprio e da
convicção de que o havia feito, subitamente vi-me como um estranho. (Geertz, 2001, p.
26-27, grifo nosso).

Dessa forma, ―... A virada para o sentido como quer que tenha sido denominada e
expressa, alterou tanto o assunto investigado quanto o sujeito da investigação.‖ (GEERTZ, 2001,
p. 27), permitindo uma série de questionamentos construídos sobre a obra de Geertz, que não
necessariamente foram ou passaram a ser as inquietações do antropólogo.
... como saber se o real é verdadeiramente real e se a verdade é realmente verdadeira.
Será possível o conhecimento? O bem é uma questão de opinião? A objetividade é uma
farsa? O desinteresse é má-fé? Descrição é dominação? Tudo se resume a poder,
237
pilhagem e projetos políticos? (GEERTZ, 2001, p. 28).

Diante desse cenário, Geertz propõe que ―... A questão central a formular é: o que elas
[ciências sociais] nos dizem sobre os valores com que nós – todos nós – de fato vivemos?‖
(GEERTZ, 2001, p. 44), mais afrente lançando luz sobre esse questionamento:
O compromisso profissional de encarar os assuntos humanos de forma analítica não se
opõe ao compromisso pessoal de encará-los sob uma perspectiva moral específica. A
ética profissional repousa na ética pessoal e dela extrai sua força; obrigamo-nos a
enxergar por uma convicção de que a cegueira – ou a ilusão – prejudica a virtude como
prejudica as pessoas. O distanciamento provém não do desinteresse, mas de um tipo de
interesse flexível o bastante para suportar uma enorme tensão entre a reação moral e a
observação científica, uma tensão que só faz aumentar à medida que a percepção moral
se aprofunda e a compreensão científica avança. A fuga para o cientificismo ou, por
outro lado, para o subjetivismo não passa de um sinal de que a tensão não pode mais ser

237
Este antropólogo construiu alguns posicionamentos sobre esses questionamentos, mas afirma ter consciência que
suas contribuições, se é que houveram (nas palavras dele), já estão chegando ao fim e que no momento está ―...
contente por ter a oportunidade de montar minha própria lenda e arguir o meu próprio caso antes que os necrologistas
me apanhem. Ninguém deve encarar o que fiz aqui como mais do que isso.‖ (GEERTZ, 2001, p. 29).
291

suportada, de que os nervos não aguentam e de que se fez a opção de suprimir a própria
humanidade ou a própria racionalidade. Estas são as patologias da ciência, não a sua
norma (GEERTZ, 2001, p. 46, grifo nosso).

Finalizo este tópico com algumas inquietações que são reforçadas pela obra de Geertz:
Qual o papel das ciências sociais, dentro do cenário atual, de globalização, mundialização,
capitalismo, violência simbólica, degradação/risco ambiental, avanço da fronteira sobre a
Amazônia e seus habitantes, etc? Quais as dimensões e consequências éticas de um projeto de
Ciências Humanas (CH)? Como fazer CH dentro desse cenário? Serve para alguma coisa essas
CH? Elas ajudam a pensar o que é o certo, a fazer o certo, a trazer o bem estar da sociedade em
geral? Qual o papel das CH dentro das Ciências? Somos Ciências? Como fazer CH sem
dominação, sem colonizar o pensamento alheio?

1.3 APANHADO FINAL


Nas últimas trinta páginas, percorremos um período de mais de um século, certamente
incorrendo em injustiças com grandes autores da Antropologia, não só aqueles aqui trabalhados,
como também aqueles que não foram aqui apresentados, seja por omissões, seja por
reducionismos.
Autores como Marcel Mauss, Margareth Mead, Leslie White, Ruth Benedict, Evans
Pritchard, Gregory Bateson, Sol Tax, entre tantos outros foram deixados de lado. Isso somente
para ficar parcamente na primeira metade do século XX, sem citar predecessores e sucessores, ou
mesmo autores que ficavam no limite da Sociologia e da Antropologia, como Karl Marx, Emile
Durkheim, Max Weber, Gabriel Tarde, Talcott Parsons, ou nos limites da Filosofia e da
Antropologia, como Jean Jaques Rousseau, Montesquieu e Lucien Levy-Bruhl. Pode-se dizer que
ainda seria pouco uma tese para cada um desses autores, se o objetivo fosse fazer um minuciosa
reconstrução da Antropologia como Ciência.
Entretanto, ainda que o panteão de clássicos de nossa disciplina seja extenso e quase
interminável, penso que o objetivo principal deste capítulo foi alcançado, na medida em que
conseguiu elucidar as principais crises e rupturas pelas quais passou a Antropologia como uma
ciência que se inicia Objetiva, mas que, com o passar dos anos, passa a ocupar o estatuto de
Ciência Subjetiva. Com efeito, segue quadro que permite ilustrar de maneira sintética essas
passagens e quebras paradigmáticas entre as escolas antropológicas e seus respectivos autores.
292

Quadro 10: escolas antropológicas e seus respectivos objetos, métodos, perguntas e posturas/conceitos/respostas
Escola Objeto Métodos Perguntas Teoria: Postura e/ou
Conceitos e/ou Respostas
Evolucionist Cultura, Comparativo, comparando Por que e como se Postura etnocêntrica,
as Sociedades dados etnográficos diferenciam os seres classificando a sociedade
Primitivas e humanos? humana em estágios de
Bárbaras evolução
Boas Culturas, Trabalho de Campo; Método Por que e como se Extenso estudo sobre as
(Difusionista Sociedades Não Histórico diferenciam os seres culturas humanas, tomando
/ Europeias, não humanos? sempre o ponto de vista
Culturalista) Modernas endógeno para explicar a
cultura estudada.
Malinowski Culturas, Exaustivo trabalho de Como melhor estudar as Extenso estudo sobre as
(Funcionalist Sociedades Não campo, dominado a língua sociedades? culturas humanas, tomando
a) Europeias, não local, observando o Qual a função de instituições sempre o ponto de vista
Modernas cotidiano nativo e sociais dentro de suas endógeno para explicar a
descrevendo-o quase que respectivas culturas? cultura estudada, permeado
diariamente por uma alteridade radical.
Radcliffe- Sistemas sociais Trabalho de campo do Como melhor comparar as Busca por função de uma
Brown de povos próprio antropólogo; Análise sociedades? instituição social, de modo
(Estrutural- primitivos e comparação entre dados Quais os princípios que essa própria função
Funcionalist etnográficos (podendo o estruturais gerais dos permite acessar princípios
a) Antropólogo lançar mão de sistemas sociais das estruturais gerais da
outras etnografias) sociedades em geral? humanidade.
293

Levi-Strauss Natureza humana Trabalho de campo, análise e Qual a natureza humana? Alteridade radical, por meio
(Estruturalist comparação de dados de comparações de dados
a) etnográficos etnográficos, alcançando,
assim, o inconsciente
subjacente da humanidade,
ou, em outras palavras, a
natureza humana.
Clifford Culturas diversas Trabalho de campo, Como melhor estudar e Usar a hermenêutica e a
Geertz buscando uma descrição registrar a diversidade descrição densa para estudar
(Interpretati densa da cultura estudada, cultural? Como e quais são e registrar as outras culturas.
vista) resultando em uma as culturas dos outros?
etnografia
294

Pode-se verificar na tabela as mudanças que a Antropologia sofreu ao longo do tempo,


iniciando como uma Ciência objetiva, pautada em Teoria, Objeto e Método bem definidos.
Com o passar do tempo, algumas barreiras epistemológicas foram sendo quebradas,
diminuídas, alargadas, reconstruídas, flexibilizadas.
Grande parte da teoria antropológica que é produzida na atualidade, não mais se
preocupa em estabelecer leis gerais para um melhor entendimento da cultura ou natureza
humana, voltando seu olhar para a diversidade cultural que permeia o mundo que vivemos,
racionalizando maneiras de como melhor viver dentro dessa diversidade, assim como melhor
descrever essa diversidade (GEERTZ, 2001, 1993).
Com efeito, Geertz leva a Antropologia de uma ciência Objetiva à condição de
Subjetiva, por meio da ideia que apresenta para cultura, como uma teia de significados tecida
pelo homem, na qual ele se movimenta. O antropólogo deve funcionar como um registrador e
tradutor dessas inúmeras teias que existem ao redor do mundo, findando a etnografia como o
produto desse registro não mais objetivo, mas agora subjetivo. Nas palavras de Geertz, a
Antropologia não seria mais como ―uma ciência experimental em busca de leis, mas como
uma ciência interpretativa à procura do significado (GEERTZ, 1993, p. 15, grifo nosso)‖.
Esta postura, ainda que por um lado tire as forças da dicotomia entre ―cultura
tradicional‖ e ―cultura moderna‖, na medida em que abre o leque do multiculturalismo para o
mundo, acaba sendo sua sentença de morte, pois impede qualquer tipo de transformação ou
aproximação dessa cultura tradicional em direção à ―culturas modernas‖, sob a pena de a
mesma estar se modernizando. Essa imposição da ontologia moderna para explicar a cultura
alheia resulta em uma escolha política sobre qual episteme deve ser utilizada para estudar o
outro e, no caso dos modernos e seu conhecimento científico, a escolha epistemológica
baseia-se na distinção entre natureza e cultura, desdobrando-se em uma segunda dicotomia, a
saber, objetividade e subjetividade.
O antropólogo Viveiros de Castro238 constrói uma interessante crítica a essa postura,
observando que a mesma tenta ser relativizadora, mas se revela limitada, pois paralisada pelo
pressuposto ontológico das duas dicotomias citadas no parágrafo anterior. O autor toma a
cosmologia metafísica e ontológica de tribos ameríndias amazônicas e passa pelo crivo da
dicotomia natureza e cultura, chegando a um curioso resultado, em que esses dois pontos de
vista:

238
Para evitar cansativas repetições, doravante também citado como VDC.
295

se dispõem, a bem dizer, de modo perfeitamente ortogonal à oposição entre


relativismo e universalismo. Tal resistência do perspectivismo ameríndio aos termos
de nossos debates epistemológicos põe sob suspeita a robustez e a conseqüente
transportabilidade das partições cosmológicas que os alimentam. Em particular,
como muitos antropólogos já concluíram (embora por outros motivos), a distinção
clássica entre Natureza e Cultura não pode ser utilizada para descrever dimensões ou
domínios internos a cosmologias não-ocidentais sem passar antes por uma crítica
etnológica rigorosa. (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 115).

Em outro texto, o referido autor explicita alguns dos desdobramentos de se levar o


discurso do nativo à sério.
A ciência do antropólogo é de outra ordem que a ciência do nativo, e precisa sê-lo: a
condição de possibilidade da primeira é a deslegitimação das pretensões da segunda,
seu ―epistemocídio‖, no forte dizer de Bob Scholte (1984:964). O conhecimento por
parte do sujeito exige o desconhecimento por parte do objeto. (VIVEIROS DE
CASTRO, 2002, p. 116).

Mais adiante, VDC arremata:


O que estou sugerindo, em poucas palavras, é a incompatibilidade entre duas
concepções da antropologia, e a necessidade de escolher entre elas. De um lado,
temos uma imagem do conhecimento antropológico como resultando da aplicação
de conceitos extrínsecos ao objeto: sabemos de antemão o que são as relações
sociais, ou a cognição, o parentesco, a religião, a política etc., e vamos ver como tais
entidades se realizam neste ou naquele contexto etnográfico — como elas se
realizam, é claro, pelas costas dos interessados. De outro (e este é o jogo aqui
proposto), está uma idéia (sic) do conhecimento antropológico como envolvendo a
pressuposição fundamental de que os procedimentos que caracterizam a investigação
são conceitualmente da mesma ordem que os procedimentos investigados 239. Tal
equivalência no plano dos procedimentos, sublinhe-se, supõe e produz uma não-
equivalência radical de tudo o mais. Pois, se a primeira concepção de antropologia
imagina cada cultura ou sociedade como encarnando uma solução específica de um
problema genérico — ou como preenchendo uma forma universal (o conceito
antropológico) com um conteúdo particular —, a segunda, ao contrário, suspeita que
os problemas eles mesmos são radicalmente diversos; sobretudo, ela parte do
princípio de que o antropólogo não sabe de antemão quais são eles. O que a
antropologia, nesse caso, põe em relação são problemas diferentes, não um problema
único (‗natural‘) e suas diferentes soluções (‗culturais‘). A ―arte da antropologia‖
(Gell 1999), penso eu, é a arte de determinar os problemas postos por cada cultura,
não a de achar soluções para os problemas postos pela nossa. E é exatamente por
isso que o postulado da continuidade dos procedimentos é um imperativo
epistemológico240. (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 116-117)

Com efeito, o próximo capítulo fica responsável por mostrar esse cenário teórico de
crítica à Antropologia Interpretativista de Geertz (2001, 1993) e sua ruptura epistemológica,
funcionando como capítulo conclusivo desta tese, mas como uma espécie de prelúdio da

239
Nota de rodapé número 7: ―É assim que interpreto a declaração de Wagner (1981:35): ‗Estudamos a cultura
através da cultura, e portanto as operações, sejam quais forem, que caracterizam nossa investigação devem ser
também propriedades gerais da cultura.‘.
240
Nota de rodapé número 8: ―Ver, sobre isso, Jullien (1989:312). Os problemas reais de outras culturas são
problemas apenas possíveis para a nossa; o papel da antropologia é o de dar a essa possibilidade (lógica) o
estatuto de virtualidade (ontológica), determinando — ou seja, construindo — sua operação latente em nossa
própria cultura.‖
296

teoria antropológica que se desenha com a crítica pós-estrutural de VDC e Latour. É a pá de


cal que alveja as três dicotomias que vêm sendo trabalhadas até aqui: Natureza e Cultura;
Objetividade e Subjetividade; Tradicionais e Modernos.
297

APÊNDICE B – SOCIOAMBIENTALISMO E RURAL E URBANO NA


AMAZÔNIA

Este documento corresponde à um apêndice de minha tese de doutoramento intitulada


―Antropologia de populações, povos e comunidades que jamais foram tradicionais:
experiências etnográficas junto a um coletivo de humanos e não humanos da Amazônia
paraense‖, junto ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da
Universidade Federal do Pará.
Trata-se da temática da dicotomia entre o rural e o urbano e do socioambientalismo,
ambos dentro do cenário amazônico. Com efeito, quer-se explicitar ao leitor os entendimentos
que este autor tem sobre o rural e o urbano amazônico, assim como sobre a própria ideia de
socioambientalismo. Não aparece no texto na medida em que limitou-se, na tese, a trabalhar
as dicotomias entre cultura e natureza, objetividade e subjetividade, sociedades modernas e
tradicionais.
A apresentação deste apêndice justifica-se na medida em que a temática do
socioambientalismo e do rural e urbano configuram-se como duas dicotomias que também
podem ser analisadas e tratadas como híbridos que misturam a esfera cultural com a esfera
natural (LATOUR, 2004 a), reforçando um dos argumentos desta tese, a saber, a divisão
ontológica entre natureza e cultura que é feita pela modernidade, resultando também nessas
duas dicotomias aqui apresentadas. Seguem as considerações sobre as temáticas em tela.

1.SOCIOAMBIETALISMO AMAZÔNICO
Em virtude de apresentar-se como uma floresta tropical, a Amazônia configura-se
como detentora de uma das maiores diversidades do planeta, tanto ambiental, como biológica
e social. Diversos tipos de solos, fauna, flora, etnias e culturas encontram-se presentes na
realidade amazônica (MEIRELLES FILHO, 2004).
Maués (1999) descreve a sócio-diversidade da Amazônia, chamando a atenção para
como ela se expressa através do
grande número de povos indígenas, com diferentes idiomas e costumes,
constituindo uma etnodiversidade que deve ser preservada pelo respeito à
vida e ao modo de vida dessas pessoas, bem como para o enriquecimento do
patrimônio cultural da humanidade (MAUÉS, 1999 p. 58).

Mais adiante, Maués (1999) inclui dentro dessa sócio-diversidade


populações regionais não índias, entre as quais se incluem também algumas
categorias étnicas – caboclos, seringueiros, pescadores, camponeses,
298

garimpeiros, ribeirinhos, negros remanescentes de quilombos, urbanitas,


pessoas de todas as classes e categorias sociais – que portam uma
diversidade muito grande de formas de organização social e de patrimônio
cultural que, por sua vez, também merecem todo o respeito (MAUÉS, 1999
p. 58).

Como exemplo específico desta diversidade social, pode-se citar o caso das várzeas do
Baixo Amazonas que, segundo O‘Dwyer (2005), apresentam uma diversidade social que se
forjou na relação com os recursos naturais. O‘Dwyer (2005) desenvolveu uma análise da
situação social dos ribeirinhos, possibilitando a construção de um modelo sobre as condições
de trabalho, reprodução, manejo e uso dos recursos naturais renováveis, definindo como
principais atividades econômicas desses grupos a pesca, agricultura e extrativismo. Contudo,
a autora segue seu texto dando um grau maior de especificidade nas atividades desenvolvidas
pelos ribeirinhos, desdobrando as atividades de pesca, agricultura e extrativismo em ― coleta,
a caça, o artesanato e os saberes e técnicas que implicam nessas atividades propriamente
econômicas.‖ (p. 259), ademais da juta, pecuária, formas diversificadas de agricultura (seja na
várzea, seja na terra firme) e pesca (como os pescadores artesanais que não possuem barcos
pescando em suas montarias próprias de pequeno porte ou trabalhando para os donos de
barcos ou geleiras, entre outras possibilidades). Ainda vale observar que um ator social
ribeirinho pode lançar mão de várias das atividades recém descritas241 de forma combinada,
sendo que esta mesma situação vale para suas famílias. Assim, estas dispõem de uma
variedade de atividades possíveis para sua reprodução social, o que finda por gerar uma ampla
sócio-diversidade.
Outra perspectiva sobre a diversidade social da Amazônia pode ser descrita através da
problemática exposta por Pace (2006) que discute o abuso científico que se tem exercido
sobre o termo ―caboclo‖. Em seu trabalho Pace (2006) cita várias definições para o termo
caboclo, habitando-o com uma diversidade de atores sociais nativos da Amazônia. Contudo, o
autor lança uma provocação ao demonstrar que as pessoas não se identificam com esse termo.
Assim, Pace (2006) chama a atenção para o problema da representação e uso da autoridade
pelo pesquisador, apontando como uma das possíveis causas para o contínuo uso do termo
caboclo, o fato de que o mesmo garante a imagem do ―outro exótico‖. O fato é que este termo
ainda é usado para definir as populações amazônicas não urbanas de maneira geral,

241
Com exceção das atividades de pesca ou agricultura, pois o individuo deve escolher se irá filiar-se na Colônia
de Pescadores de sua região ou no Sindicato de Trabalhadores Rurais. Contudo isso não impede que ele
complemente a sua renda com a atividade paralela (um pescador que roça eventualmente ou um agricultor que
pesca para sua subsistência). A única consequência dessa escolha de filiação refere-se a qual atividade ele elegeu
como profissão, ou seja, a sua atividade econômica ―oficial‖.
299

generalizando e universalizando atores que têm como principal característica a adaptação à


um meio ambiente que varia de local para local, gerando uma grande sócio-diversidade.
Consequentemente, com o uso do termo caboclo, ademais de demonstrar incompreensão para
com a população estudada, produz-se um estereótipo que invisibiliza todas as suas
especificidades locais, assim como a sua diversidade de atividades, negando o caráter diverso
que marca a vida social e os vários biomas amazônicos.
Pace (2006) apresenta distintas alternativas para o termo caboclo, como por exemplo,
campesinatos, populações tradicionais, roceiros, agricultores, seringueiros, ribeirinhos, etc.
Essas alternativas em si já demonstram a grandeza da sócio-diversidade da Amazônia.

2 A NECESSIDADE DE RELATIVIZAÇÃO DO BINÔMIO RURAL/URBANO


Demonstrou-se acima como a realidade amazônica é extremamente diversificada, com
culturas, meio ambiente, grupos sociais, modos de vida, religiosidades, enfim, uma série de
fatores e variáveis que diversificam as populações tradicionais amazônicas. Essa diversidade
se espraia até as cidades, contudo nem sempre até o modo de vida urbano, que finda
incorporando práticas tradicionais. Assim, as cidades amazônicas assumem um aspecto
peculiar, pois são compostas por atores sociais com valores e modos de vida rurais ou
socioambientais.
Como exemplo podemos citar o os estudos de Souza (2009) no município de Tapauá-
AM. Esta autora observa que os ―moradores partem do meio rural para viver na cidade, não
(...) motivados por atração da vida urbana ou interesse econômico‖ (p.98), mas sim pela
facilidade que a cidade traz no acesso a diversos serviços públicos, como seguridade social,
saúde, educação, entre outros, quase inexistentes na área rural ou com um custo muito alto de
acesso.
Com efeito, Souza (2009) observa que, para os moradores do município de Tapauá, a
mudança ―(...) para a cidade não representa alteração na forma de trabalho. As atividades
antes realizadas na área rural permanecem, apenas o morador rural passa a residir no meio
urbano. As atividades como agricultura, extrativismo, pesca e criação são mantidas.‖ (p. 95).
Nesse sentido, no caso de Tapauá, ―não foi a cidade que avançou para o campo, mas o campo
que ocupou a cidade e desta forma não houve a completa urbanização, mas pelo contrário,
houve a completa ruralização‖ (p. 96).
Portanto, os estudos de Souza (2009) argumentam que a noção de urbano deve ser
relativizada dentro do contexto socioambiental tão diversificado como o amazônico.
Corroborando este argumento, Almeida (2008) observa que vem tornando-se cada vez mais
300

comum e constante o êxodo de populações tipicamente rurais (como ribeirinhos, extrativistas,


quilombolas e até mesmo indígenas) para o espaço urbano. Nesse sentido, o referido autor
corrobora a tentativa de relativização do binômio rural/urbano ao observar que:
expressões organizativas e formas de ocupação que são pensadas como intrínsecas à
área rural despontam dentro do perímetro urbano, levando os estudiosos a
relativizarem as dicotomias rural/urbano e nômade/sedentário na caracterização das
chamadas ―comunidades tradicionais‖ e no reconhecimento de suas expressões
identitárias. (p. 87).

Almeida (2008) dá continuidade ao seu texto refletindo acerca da organização


sociopolítica das populações tradicionais. O autor observa que a organização sociopolítica e
os diversos movimentos sociais, frutos desta, permitem às populações tradicionais transitar
entre fronteiras tanto geográficas como simbólicas: os movimentos sociais agregam
populações tradicionais de diversos estados da Federação, de diversas etnias, com origens
tanto rural como urbana. Assim, redes de parentesco, compadrio e de sociabilidade são
formadas com o intuito de abrir possibilidades a essas populações há muito esquecidas pelo
governo. Com esta organização sociopolítica, as populações tradicionais conseguem
reivindicar e garantir diversos direitos, legitimando o seu modo de vida. Nas palavras de
Almeida (2008),
tem-se o advento de categorias que se afirmam através de uma existência coletiva,
politizando não apenas as nomeações da vida cotidiana, mas também um certo modo
de viver e suas práticas rotineiras no uso dos recursos naturais. A complexidade de
elementos identitários, próprios de autodenominações afirmativas de culturas e
símbolos, que fazem da etnia um tipo organizacional (Barth:1969), foi trazida para o
campo das relações políticas, verificando-se uma ruptura profunda com a atitude
colonialista homogeneizante, que historicamente apagou diferenças étnicas e a
diversidade cultural, diluindo-as em classificações que enfatizavam a subordinação
dos ―nativos‖, ―selvagens‖ e ágrafos ao conhecimento erudito do colonizador. (p.
89).

Entre as classificações ―...que enfatizavam a subordinação dos ―nativos‖, ―selvagens‖


e ágrafos ao conhecimento erudito do colonizador.‖ (Almeida, 2008. p. 89), pode-se colocar a
dicotomia entre rural e urbano que fica cada vez mais tênue e até mesmo inútil, pois vem
diluindo-se na medida em que as populações tradicionais, outrora vistas como exclusivamente
do campo rural, adentram o espaço urbano, contudo permanecendo com o seu modo de vida
peculiar e específico. Segundo Almeida (2009) as relações econômicas também auxiliam no
rompimento da barreira rural/urbano. O autor cita diversos exemplos, entre eles o caso das
quebradeiras de coco babaçu que fundaram na cidade de São Luis, capital do Maranhão, um
entreposto comercial e de representação política que ―Funciona no Centro Histórico e dispõe à
301

comercialização uma linha de produtos peculiar: farinha de mesocarpo, papel reciclado com
fibra de babaçu, (...) além de livros e demais publicações pertinentes ao extrativismo.‖ (p. 93).
Assim, a partir da organização dos movimentos sociais das populações tradicionais,
Almeida conclui que existe
uma luta teórica contra a força dos esquemas interpretativos dos
―positivistas no direito‖, que sempre querem confundir etnias,
minorias e/ou povos tradicionais dentro de uma noção genérica de
―povo‖, elidindo a diversidade cultural, e contra a ação sem sujeito de
esquemas inspirados nos ―estruturalismos‖, que privilegiam e se
circunscrevem às oposições simétricas entre ―comum‖ e ―individual‖,
entre ―coletivo‖ e ―privado‖, entre ―propriedade‖ e ―uso‖, entre
recursos ―abertos‖ e ―fechados‖, entre ―tradicional‖ e ―moderno‖,
menosprezando a dinâmica das situações concretas produzidas pelos
povos e grupos tradicionais nas suas relações sociais com seus
antagonistas históricos. (p. 20)

A essa observação pode-se agregar o binômio rural/urbano, que acaba sendo


cristalizado pelo ordenamento jurídico através do Decreto-Lei nº 311 de 02 de março de 1938,
o qual estabelece, em seu artigo 3, que toda sede municipal tem a categoria de cidade.
Passadas mais de seis décadas da origem dessa normativa, as cidades hoje enfrentam
dificuldade de gestão tanto pela dimensão demográfica que ocupam, como pela importância
econômica que exercem no cenário brasileiro. No entanto, a normativa constituída durante o
Estado Novo continua vigente. Com isso, Souza (2009) sinaliza a inadequação desta
normativa para a atual conjuntura do país, sobretudo, no que se refere ao crescimento do
número de cidades e à mobilização motivada por políticas de ocupação do espaço. No gráfico
01 é possível visualizar e comparar o aumento do número de cidades por regiões.

GRÁFICO 01 - Quantidade de cidades nos anos de 1950 e 2000.


FONTE: SOUZA, 2009.
302

O mais antigo censo demográfico disponibilizado pelo IBGE refere-se ao


recenseamento do ano de 1950. Este apontou o total de 1.887 cidades, enquanto que para o
censo do ano de 2000, o total saltou para 5.507. No entanto, o aumento do número de cidades
não significa crescimento urbano, visto que neste critério não são consideradas variáveis de
cunho urbanístico, o que significa dizer que a normativa não apresenta distinção entre um
município pequeno e um grande centro urbano (Souza, 2009).
É nesse sentido que Veiga (2002) aponta a necessidade de revogação do Decreto-lei
o
n 311/1938, que define cidade toda sede municipal. O autor sugere a adoção de critérios
adotados por outros países como Portugal, que determina a existência de, no mínimo, oito mil
eleitores e um total mínimo de dez equipamentos considerados urbanos, como teatro,
transporte coletivo, bibliotecas, museus, dentre outros. Para sustentação desta argumentação,
Veiga utiliza o exemplo díspar de tamanho da cidade como a de União da Serra no Rio
Grande do Sul, que foi criada com apenas 18 habitantes e ainda no censo demográfico de
2001 habitavam 286 pessoas (Souza, 2009).
Outro estudo de pequenas cidades da Amazônia refere-se aquele desenvolvido por
Sousa (2009). Este autor pesquisou o município de Prainha e o processo de constituição do
Plano Diretor desse município, apresentando dados que corroboram essa especificidade no
modo de vida das cidades amazônicas, que são permanentemente influenciadas pelo ambiente
que as cerca. Assim se pronuncia o autor sobre a ―ruralidade‖ da cidade de Prainha:
(...) na cidade de Prainha, no Oeste do Pará, (...) este pesquisador ouviu várias vezes
homens, mulheres e jovens manifestarem-se que iriam passar o final de semana na
região de várzea ou nas colônias, onde várias famílias possuem sítios, cultivando a
plantação nos roçados ou, nas áreas de várzeas com a criação de búfalos e até
mesmo a pesca de subsistência ou profissional para o sustento local. (p. 88).

Mais adiante o autor amplia essa visão para outras cidades ao redor de Prainha que
apresentam uma dinâmica similar. Entre elas estariam cidades como Almeirim, Monte Alegre
e Santarém, ―(... ) todas com expressão de urbanização difusa, ou seja, confundem-se com os
modos de vida da floresta e os modos de vida do campo rural.‖ (Sousa, 2009, p. 136). Dessa
forma, estas cidades ainda tem em sua dinâmica interna forte influência de atividades como o
extrativismo, agricultura familiar, agropecuária, e a pesca artesanal (Sousa, 2009).
Estas cidades localizam-se no meio da floresta, entre rios e Igarapés diversos. Nesse
sentido, Sousa (2009) chama a atenção para como até mesmo as populações urbanas estão
familiarizadas ao modo de vida rural, vivendo em ―(...) embarcações ao longo dos rios, dos
igarapés; pessoas que sabem conviver com os campos alagadiços ou várzeas por um período
longo de cada ano devido às cheias pluviais (...)‖ (Sousa, 2009, p. 137). Mais adiante Sousa
303

(2009) enfatiza o isolamento destas cidades na relação com outros centros urbanos, visto que
pode demorar dias até ―chegar a outros centros urbanos mais desenvolvidos, como é o caso da
longa distância que separa a região do Baixo Amazonas, até a Capital do Estado- Belém do
Pará‖ (Sousa, 2009, p. 137).
Outra interessante característica dessas ―cidades na floresta‖ seria a estrutura que
apresentam em seu centro urbano: trapiche(s), delegacia, Igreja Católica e Protestante, os
prédios públicos da Prefeitura que dificilmente se estende a mais de dois, para dar conta de
suas secretarias municiais, o Fórum, uma escola e um posto de saúde (Sousa, 2009). Todo
esse ―aglomerado urbano‖ localiza-se em torno de uma praça que, regra geral, é a única da
cidade. O restante do espaço ―urbano‖ configura-se em algumas poucas ruas, a maior parte
não asfaltadas, sendo cobertas, em geral, ou por terra batida, ou por piçarra ou por bloquete; o
restante do município caracteriza-se por rios ou outros corpos d‘ água e florestas em geral242.
Nesse sentido, Cardoso e Lima (2006) apresentam uma interessante opinião a respeito
das tipologias de cidade na Amazônia. Estes autores empreenderam uma investigação
científica em alguns municípios da Amazônia Oriental, a saber: Medicilândia, Placas, Novo
Reparrtimento, Igarapé-Miri, Baião, Cametá e Limoeiro do Ajuru. Como resultado de suas
investigações propõem a existência de diversas tipologias de ocupação do território nos
municípios amazônicos: as sedes municipais em si mesmas (as cidades no sentido colocado
pelo decreto-lei no311/1938, recém citado), vilas ribeirinhas, agrovilas, projetos de
assentamento, reservas ambientais, reservas indígenas e fazendas (Cardoso e Lima, 2006, p.
64). Mais adiante os autores observam a existência de dois padrões gerais de tipologias de
cidades: um relacionado ao rio, outro às estradas.
No padrão relacionado ao rio estariam aquelas cidades mais antigas, que
desempenharam um importante papel no processo de gênese de um mercado local e regional
assim como de ―inserção‖ da Amazônia no mercado nacional e internacional, na medida em
que desempenharam o papel de pontos de escoamento da produção nos grandes ciclos que
fizeram parte da história econômica da região (drogas do sertão, borracha, grandes projetos).
Essas cidades apresentavam um perfil extrativista e rural e, dependendo da sua história
específica, seguiram padrões diferenciados de ocupação do território. Como exemplo cita-se a
cidade de médio porte de Santarém que sofreu forte influência com a implantação de Grandes
Projetos de desenvolvimento nacional, a cidade de Belém que tornou-se a capital estadual

242
Participei de diversas pesquisas sobre a Amazônia, visitando municípios do rio Purus-AM (como Tapauá,
Lábrea, Canutãma, Beruri, etc), Baixo Tocantins (Igarapé Miri, Cametá, Oeiras), Zona Costeira (Bragança,
Primavera, Vigia, Colares, etc), sendo que em todos esses municípios, o padrão recém citado repete-se com
pouquíssimas variações.
304

assumindo um aspecto diferenciado das outras cidades da região (é uma das duas cidades
considerada de grande porte da região amazônica), e as diversas cidades de pequeno porte que
continuam a desenvolver as atividades rurais e extrativistas, entre outros tipos de cidade
localizadas a beira de corpos d‘ água (Cardoso e Lima, 2006, p. 66).
Faz-se cogente observar a importância das feiras em uma região geograficamente tão
isolada, visto que ocupam um papel que irá suprir as necessidades de abastecimento da
população. As cidades e vilas, através do espaço da feira, comercializavam os produtos
oriundos da zona rural, transformando esses espaços em pontos de grande interesse e
convergência nas aglomerações urbanas ―... à beira dos rios, articulando a população
ribeirinha de diferentes localidades, entre si e com a população urbana, ampliando as
alternativas de consumo da população em geral.‖ (p. 67).
Igualmente faz-se imperioso ressaltar que o principal meio de transporte das
populações amazônicas, até a década de 1980, efetivava-se por via fluvial, nesse sentido, as
cidades localizadas à beira de rios desempenharam um importante papel regional na medida
em que disponibilizavam uma infra-estrutura mínima à população em geral, especialmente
através de escolas e postos de saúde ou hospitais (Cardoso e Lima, 2006, p. 67).
O padrão relacionado à estrada surgiu com o avanço do modelo de desenvolvimento e
integração regional sobre a Amazônia, especialmente em meados do século XX, através da
implementação de grandes projetos na região (mineradoras, hidrelétricas e projetos de
assentamento do INCRA notadamente). Tais projetos necessitavam de uma via de escoamento
para a sua produção, forçando a criação de estradas, que, em seu decorrer, serviam de local
para o surgimento de diversas aglomerações que, com o tempo, transformaram-se em cidades.
Os autores também observam o importante papel que estas cidades desempenharam na oferta
de serviços básicos como educação e saúde à população rural e até mesmo urbana dos
municípios ao redor. ―Nesse sentido, a acessibilidade rodoviária torna-se um fator essencial
no desenvolvimento de uma agrovila, da mesma forma que a acessibilidade fluvial é
determinante...‖ para as vilas ribeirinhas (Cardoso e Lima, 2006, p. 68).
Cardoso e Lima (2006) concluem seu texto corroborando a idéia de relativização da
dicotomia urbano-rural, observando que
A clara hierarquização das cidades (capital, cidade, vila) e a distinção entre modos
de vida rural e urbanos existentes no passado foram perdidas após as transformações
ocorridas nas condições de acessibilidade ... na dinâmica econômica ... e a
redefinição do conceito de cidade... (quando passam a ser cidade todas as sedes de
município) (p. 90).
305

Em uma reflexão similar, Pereira (2006), ao remeter-se a história da Amazônia,


questiona ―o pensamento que associa cidade e urbanização como resultantes de uma evolução
linear e cumulativa (da aldeia indígena à metrópole)‖ (Pereira, 2006, p. 28-29). O autor
também considera ―um erro chamar de urbanização as aglomerações surgidas durante o
período colonial, ou mesmo considerar aglomerações como cidade.‖ (Pereira, 2006, p. 28-29).
Nesse sentido, Pereira (2006) amplia as tipologias de cidade propostas por Cardoso e
Lima (2006), sugerindo a existência de uma rede urbana amazônica, resultante do período dos
grandes projetos (década de 60 em diante). Segundo o referido autor, ―Esse período marca a
presença definitiva do Estado [na Amazônia], através de um conjunto de programas, projetos,
instituições, ideologias e ações políticas.‖ (Pereira, 2006, p. 31).
O autor dá continuidade ao seu texto construindo a reflexão de que as cidades médias
apresentam um importante papel dentro do contexto regional por diversos fatores, entre eles o
de figurarem como espaço para a disponibilização de uma infra-estrutura urbana mínima,
notadamente relacionada à área da saúde e seguridade social. Outra conclusão do autor refere-
se à definição de três modalidades de cidades médias:
... as cidades médias às margens de estrada apresentam melhor conexão com
outras cidades e maior facilidade de acesso para a população migrante, Marabá e
Castanhal, por exemplo; as cidades médias às margens dos rios guardam
características com o padrão dendrítico e tem no rio seu principal meio de
articulação com as cidades menores de sua respectiva mesorregião, como é o caso de
Santarém; e as cidades médias capitais estaduais (Rio Branco e Porto Velho), que
por sua vez apresentam os melhores indicadores no que diz respeito à oferta de bens
e serviços à sua população. (p. 49, grifo nosso).

Este autor observa que a partir da década de 1960, o índice anual de urbanização da
Amazônia supera o de todas as outras regiões do Brasil (Pereira, 2006, p. 31). Mais adiante,
Pereira (2006, p. 41) lança mão de dados estatísticos, especialmente de mobilidade
demográfica, para observar que as cidades médias da Amazônia têm uma média de
urbanização de 86%, superior a média nacional, que é de 81,2%, concluindo que a
urbanização na Amazônia é uma situação dada (Pereira, 2006, p. 31). Segue abaixo alguns
dos dados analisados por Pereira (2006).
Tabela 1: população residente na Região Metropolitana de Belém
Município População geral População urbana Geral/urbana (%)
Pará 6.192.307 4.120.693 66,55
RMB 1.795.536 1.754.816 97,73
Belém 1.280.614 1.272.354 99,35
Ananindeua 393.569 392. 657 99,77
Marituba 35.546 20.912 58,83
Benevides 74.429 64.884 87, 18
Santa Barbara 11.378 4.009 35,23
306

Fonte: Pereira, 2006, p. 36 (apud IBGE, Censo Demográfico 2000).

Tabela 2: População das capitais da região norte – 2000


Capital Total Urbana Rural
Belém 1.280.614 1.272. 354 8.260
Boa Vista 200.568 197.098 3.470
Macapá 283.308 270.628 12.690
Manaus 1.405.835 1396.768 9.067
Palmas 137.355 134.179 3.176
Porto Velho 334.661 273.709 60.952
Rio Branco 253.059 226.298 26.761
Total 3.895.400 3.771.034 124.366
Fonte: Pereira, 2006, p. 37 (apud IBGE, Censo Demográfico 2000).

Tabela 3: Distribuição da População da região Norte, segundo classes de município


Habitantes PA AM RO RR AC AP TO TOTAL %
Até 5.000 03 0 05 01 03 06 80 98 21,83
5.001 a 10.000 15 09 10 09 07 04 37 91 20,27
10.001 a 20.000 42 25 20 04 07 03 12 113 25,17
20.001 a 50.000 60 22 11 0 03 01 07 104 23,16
50.001 a 100.000 17 05 04 0 01 01 01 29 6,46
100.001 a 500.000 05 0 02 01 01 01 02 12 2,67
Mais de 500.000 01 01 0 0 0 0 0 02 0,45
Total 143 62 52 15 22 16 139 449 100,00
Fonte: Pereira, 2006, p. 38 (apud IBGE, Censo Demográfico 2000).

A interpretação dos dados construída por Pereira (2006) entende que a urbanização da
Amazônia é um fato dado e sua elevação é inevitável. Como instrumento interpretativo de
seus dados, o autor em tela utiliza conceitos como cidades médias (p. 23 e 24, entre outras),
rede urbana, rede dendrítica, rede urbana regional, rede urbana complexa243, urbanização (p.
34), fronteira urbana (p. 31), urbanização concentrada (p. 35), centros urbanos na concepção
da Teoria dos Lugares Centrais (p. 39), entre outros conceitos. Com sua análise, Pereira
(2006) leva a cabo a conclusão de que há uma tendência de aumento populacional nas sedes
de cidades, ligada à proliferação de pequenas cidades e ao aumento de importância de cidades
médias no contexto econômico regional, constituindo-se como novos vetores de crescimento
econômico e demográfico.
Ocorre que as tabelas demonstram como as populações citadinas vêm aumentando, no
entanto, não necessariamente induzem ao entendimento proposto por Pereira (2006) de que
existe uma urbanização da Amazônia. Nesse sentido, Nunes (2008) ao analisar dados

243
Estes conceitos relativos a rede estão concentrados da página 26 a página 32, contudo repetem-se em outras
partes do texto de Pereira (2006), especialmente o conceito de rede urbana e rede urbana regional.
307

semelhantes, chega a resultados similares em alguns momentos, contudo controversos em


outros momentos.
Desde o início de seu texto Nunes (2008) observa que ―a tendência de generalização
de relações monetarizadas no meio urbano não tem implicado, na região [amazônica], uma
ruptura com formas tradicionais de ligação entre os modos urbano e rural‖ (NUNES, 2008, p.
41), ou seja, a interface entre o urbano e o rural ―reconstrói eternas ‗formas primárias‘ de
sociabilidades, na medida em que avançam as ‗formas secundárias‘‖ (Nunes, 2008, p. 41). Em
outras palavras, Nunes (2008) quer dizer que, apesar do avanço da fronteira urbana sobre a
floresta amazônica, a maior parte do modo de vida de seus habitantes permanece, resultando
em um modo de vida específico que mescla velhas formas de sociabilidade e modo de vida
(as formas primárias, nas palavras de Nunes, 2008) com novas formas de sociabilidade e
modo de vida (as formas secundárias, nas palavras de Nunes, 2008), permitindo que alguns
dos valores rurais permaneçam em espaços ―urbanos‖.
Mais adiante o autor ratifica esta visão ao afirmar que
na aglomeração urbana, embora se observe uma tendência para a generalização das
relações contratuais, monetarizadas, ocorre simultaneamente a reprodução de
vínculos tradicionais de convivência social, o que não implica automaticamente uma
radical ruptura com modos de vida rurais. (Nunes, 2008, p. 48)

Assim, ao analisar os 19.913.335 habitantes dos 750 municípios da Amazônia, Nunes


(2008) chama a atenção para o fato de que desse total de habitantes, 31,15% vivem em áreas
rurais, ou seja, ―ainda há uma importante parte de moradores em áreas não urbanas‖ (p. 49).
Dando continuidade à sua análise, o autor relativiza os critérios de interpretação dos dados,
observando que muitas vezes os moradores urbanos ―habitam pequenas cidades, cujo
ambiente aproxima-se mais das características de povoados do que propriamente de cidades
no sentido mais usual do termo‖ (p. 49). Em outras palavras, o autor tentou relativizar o
conceito de cidade e de morador urbano que é adotado pelo IBGE244.
Mais adiante o autor acaba por se contradizer, ao afirmar que ―o fenômeno da
urbanização é uma evidência também na Amazônia‖ (p. 49), ou seja, Nunes (2008) acaba
apresentando a mesma interpretação que Pereira (2006). Ocorre que este posicionamento
contraditório é esclarecido no decorrer do texto, pois Nunes (2008) distingue-se de Pereira
(2006) ao relativizar o conceito de urbanização, tentando adaptá-lo para a região amazônica.
Como resultado dessa relativização, o autor apresenta conceitos e dados estatísticos de
maneira distinta do que usualmente se faz.

244
O conceito de habitante urbano refere-se ao mesmo conceito formulado pelo decreto-lei no311/1938, em que
considera-se urbano toda sede de município, independente de suas características.
308

Nunes (2008) analisa dados diversos, contudo os mais relevantes para este
empreendimento reflexivo podem ser condensados na tabela abaixo:
Tabela 04: Amazônia Legal – rede urbana por tamanho (2000)
Classe de N o de População População População Pop. total Pop. Pop.
tamanho municípios total urbana rural % urbana % rural %
Mais de 2 2.683.675 2.666.339 17.318 13,48% 19,45% 0,28%
1.000.000
500.000 – 1 867.690 834.968 32.722 4,36% 6,09% 0,53%
1.000.000
100.000 – 17 3.688.751 3.275.363 413.388 18,52% 23,89% 6,66%
500.000
50.000 – 44 3.056.782 1.993.358 1.063.424 15,35% 14,54% 17,14%
100.000
20.000 – 161 4.835.867 2.647.852 2.188.015 24,28% 19,31% 35,27%
50.000
Menos de 525 4.780.588 2.291.676 2.488.912 24,01% 16,72% 40,12%
20.000
Total 750 19.913.353 13.709.556 6.203.779 100,00% 100,00% 100,00%
Fonte: IBGE. Censo Demográfico 2000 apud Nunes (2008, p. 51).

Antes de dar inicio à interpretação e análise da tabela, faz-se imperioso observar que
Nunes (2008) dá continuidade ao seu texto através da exposição de dados e argumentos
sólidos e diversos, abordando temas e conceitos como globalização, PIB, industrialização
entre outros. Contudo, não cabe aqui detalhar tais argumentos, limitando o texto à dicotomia
urbano/rural, explorada através da tabela acima exposta e algumas citações que virão a seguir.
Assim, Nunes (2008) observa que os três primeiros municípios com o maior número de
habitantes (respectivamente Belém, Manaus, São Luis) concentram um grande contingente de
habitantes da região, especialmente aqueles da área urbana, contudo 48,29% da população
total da região concentra-se nos municípios que estão nas faixas entre 20.000-50.000 (161
municípios) e menos de 20.000 (525 municípios), os quais representam 91,47% dos
municípios da região Norte. Da população desses municípios estima-se que somente 36,03%
seja urbana e 75,39% seja rural (Nunes, 2008, p. 49-50).
Com isso, Nunes (2008) começa a levar à cabo a sua conclusão, observando que,
apesar de considerar a ―cidade‖ como um ambiente social que por excelência é
mercantilizado, na medida em que a existência social urbana é praticamente regulada por
relações monetárias, as cidades amazônicas de pequeno porte não se ajustam a esse padrão, já
que não se apresentam como um espaço social onde o modelo de equivalência seja
309

hegemonicamente material e simbolicamente baseado nas trocas aí realizadas (NUNES, 2008,


p. 54-55).245
Segundo o autor em tela, as cidades amazônicas são marcadas por características
regionais (economia mineral, extrativismo, regiões de fronteira, etc), formando uma rede de
―cidades complexa e heterogênea que, dada a precariedade da infra-estrutura de transporte,
tem baixa conexão e fluxos dispersos, muitas vezes polarizados por centros extra-regionais‖
(NUNES, 2008, p. 55). Com isso, o autor observa que é a convivência entra as esferas
mercantil e não mercantil ―que confere especificidade ao fato urbano na região, exigindo sua
decodificação para compreendê-la como fenômeno cultural‖ (NUNES, 2008, p. 55). Em
outras palavras, o autor chama a atenção para a necessidade de se adaptar o conceito de
urbano para a região amazônica, na medida em que este conceito assume aspectos culturais
dentro dessa região tão dominada pela lógica rural e socioambiental.
À guisa da conclusão, o autor observa a necessidade de um olhar mais holístico para as
especificidades da Amazônia, pois:
Na relação entre ―redes‖ (sociabilidades primárias) e ―aparelhos‖ (sociabilidades
secundárias), poderia inserir-se a lógica social da região na sua totalidade
urbana/rural. Isso por que o urbano na Amazônia é heterogêneo: é uma mistura
de estilos de vida rural e vida na aglomeração, reforçada pela enorme diversidade
de produtos extrativos que compõem o conjunto de bens que circulam no meio
urbano. (NUNES, 2008, p. 56. Grifo nosso.).

Mais adiante o autor conclui o texto relativizando o conceito de urbanização,


atrelando-o a idéia de cultura, ou seja, regionaliza-se o conceito de urbano para a Amazônia,
resultando em cidades ou aglomerados urbanos permeados por lógicas rurais. Nas palavras
maestrais de Nunes:
Entretanto, mesmo que a urbanização dependa, em suas características mais
essenciais, de condições e fatores históricos preexistentes ao desenvolvimento
industrial ou mesmo de elementos amplamente independentes da concentração
industrial e do emprego na manufatura – caso das cidades capitais - , não é fora de
propósito considerar o fenômeno de urbanização como um dado ―cultural‖, por
impregnar as mentalidades, independentemente do fato de as populações morarem
no campo ou na cidade. A circulação de valores novos nas cidades talvez justifique a
importância que se deva dar ao espaço urbano como núcleo difusor de inovações,
tanto na produção econômica, como também, e, sobretudo, na produção de formas
simbólicas. Essa consideração adquire maior pertinência se olharmos o fantástico
desenvolvimento dos meios de comunicação nos últimos anos do século XX, que
alterou radicalmente a noção de tempo e de espaço, dimensões particularmente
estratégicas para os povos que vivem a floresta. Nesse sentido, as pesquisas que
precisam ser feitas sobre a disposição dos elementos no quadro urbano e sobre as
sensações que eles provocam exige hipóteses arrojadas, que convém corrigir
constantemente à luz da experiência, pela crítica e pela auto-crítica (p. 57).

245
Vale observar que o autor, a princípio, caracteriza a área urbana como um espaço mercantil, industrial, de
produção e consumo, enquanto que a área rural amazônica é caracterizada por sua veia não mercantil, baseada
em trocas mais simbólicas do que monetárias.
310

A guisa da conclusão evidencia-se a reflexão que desde o inicio deste trabalho tem-se
tentado construir: a noção de rural e urbano é construída socialmente, consequentemente,
sofrerá intensas influências regionais e, por que não, pensar esta dicotomia como
regionalmente construída. Desta forma existe a possibilidade de se importar conceitos desta
dicotomia que não se aplicam à região amazônica, criando a necessidade de o Estado de uma
maneira geral (Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário; Esferas Federal, Estadual e
Municipal) tomar das especificidades locais no planejamento urbano. Nesse sentido, conclui-
se que a legislação quando fundamenta-se no binômio rural/urbano adentra um campo
conceitual muito tênue e até mesmo inexistente em alguns casos, com isso, o ordenamento
jurídico nem sempre consegue regular a realidade socioambiental amazônica levando em
consideração as especificidades regionais dos conceitos em questão.

Considerações finais
O mosaico de realidades que compõem o contexto amazônico, do ponto de vista
ambiental e social, mostra-se peculiarmente complexo na relação comparativa com os demais
cenários regionais, normalmente de onde emana a construção das normas que regulamentam o
cenário de direitos no Brasil. Assim, as cidades na Amazônia evidenciam as dificuldades no
uso das normativas que regulamentam o espaço urbano, assim como o definem.
Com efeito, evidencia-se uma crise de padrões jurídicos na Amazônia, surgindo a
necessidade de se relativizar, entre outros, o binômio rural/urbano dentro do contexto
amazônico (VEIGA, 2002; SOUZA, 2009; ALMEIDA, 2008).
311

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