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Gleidiane de Sousa Ferreira

DISPUTAS DISCURSIVAS EM TORNO DA VIOLÊNCIA:


CRIMES SEXUAIS NA FORTALEZA DE INÍCIOS DO SÉCULO
XX

Dissertação submetida ao
Programa de Pós Graduação em
História da Universidade Federal
de Santa Catarina para obtenção do
grau de mestre em História
Cultural. Orientadora: Profª. Drª.
Joana Maria Pedro.

Florianópolis
2014
A todas as pessoas vítimas de
violência sexual na história do
Brasil.
AGRADECIMENTOS

A escrita desse trabalho foi o fechamento de um percurso


marcado por uma enorme rede de apoios. Tanto na pesquisa como na
vida pessoal, inúmeras foram as colaborações que fizeram parte dessa
trajetória.
Primeiramente, um agradecimento muitíssimo especial a minha
orientadora, professora Joana Maria Pedro, por toda a competência que
caracteriza a sua dedicação às (aos) orientadas (os), e que é fundamental
no decurso de nossas pesquisas. Obrigado por ser tão atenciosa, apesar
de todos os seus inúmeros compromissos. Obrigado também por todos
os bolinhos e cafezinhos, que fazem das nossas orientações momentos
tão divertidos e saborosos. Agradeço também, as (os) estudantes que
durante as reuniões de orientação coletiva gentilmente fizeram sugestões
para o desenvolvimento do trabalho.
Gostaria de agradecer ao Programa de Pós-Graduação da
Universidade Federal de Santa Catarina, em especial, às professoras
Cristina Sheibbe Wolff e Janine Gomes da Silva, por darem importantes
contribuições à minha formação ao longo do mestrado.
Agradeço também às professoras e professores da Universidade
Federal do Ceará pelo apoio dado à empreitada de mudança para as
terras sulistas. Um enorme abraço carinhoso à professora Adelaide
Gonçalves e ao professor Eurípedes Funes que me serviram de
inspiração para as escolhas efetuadas nesse trabalho. Por serem
profissionais tão preocupados com o mundo em que vivem e tão
estimuladores do nosso crescimento pessoal e profissional, um
agradecimento de coração. À querida professora Ana Rita Fonteles, por
plantar a “sementinha do gênero” na minha trajetória acadêmica, pela
acessibilidade, e por todo o apoio prestado no início dessa pesquisa. Um
abraço grande ao querido Mário Martins – agora também professor da
UFC – pelas considerações feitas no início dessa investigação e pelo
auxílio nos processos de seleção e estadia na cidade de Florianópolis. A
todas às pessoas do GEPEHG que partilharam muitas discussões e
também contribuíram bastante no início da pesquisa. Meu muitíssimo
obrigado a todas (os).
Um agradecimento especial a todas as pessoas funcionárias do
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), pelo carinho e presteza
nos momentos de pesquisa, e que apesar das adversidades encontradas
em um espaço tão desprivilegiado de atenção pública, fazem o seu
melhor no apoio às (aos) pesquisadores. Uma consideração particular ao
servidor João Paulo, conhecido por “JP”, que carinhosamente me
recebeu quase todas as manhãs do ano de 2011 no arquivo, e com muita
gentileza me ajudou no desbravar da documentação que fez parte desse
trabalho. Obrigado por todas as perguntas curiosas sobre a pesquisa, e
que muito me ajudaram a pensar as questões que foram discutidas ao
longo desse texto. Agradeço também as funcionárias da Academia
Cearense de Medicina (ACM), pela presteza e pelos cafezinhos durante
as tardes de pesquisa.
Ainda em Fortaleza, um abraço gigantesco a todas as minhas
alunas e alunos – principalmente às (aos) do CIA – que torceram e
ajudaram de formas tão variadas nessa empreitada. Vocês foram
fundamentais para o meu crescimento pessoal, e sem dúvida, sabem que
possuo uma eterna gratidão pelo amor e carinho que me foram dados.
Amo vocês.
Nas terras catarinenses, gostaria de agradecer às “meninas do
LEGH”, que aos poucos se tornaram pessoas amigas e muito queridas na
minha vida. Vocês tiveram papel fundamental no meu processo de
adaptação à cidade de Florianópolis – que em muitos momentos tão fria
e recolhida foi se tornando mais calorosa com a presença de vocês.
Obrigado por serem lideranças nos quesitos acolhimento e calor
humano. Enorme abraço a todas: meninas Tamy (sua linda!), Lidia,
Dayanne, Musa, Marilene, Eloísa, Heloísia e Josi. Vocês são
maravilhosas. Obrigado por tudo!
Gostaria de agradecer também a minha mãe adotiva em
Florianópolis, a “doutoguete” Cintia Lima, pela inspiradora inteligência
e senso-prático que são cotidianamente motivos de admiração. Obrigado
pelo jeito durão, temperado por grandes picos de sensibilidade e
emotividade que marcam sua pessoa. Terás sempre um lugarzinho no
meu coração “mamis”. Muito obrigado pelo apoio! Um abraço ao
querido Elias Veras que teve participação importantíssima no meu
processo de mudança para Floripa. Agradeço a amizade. Um
agradecimento especial, também, aos queridos Marco Antônio
(Marcão), Ébano Nunes e Jefferson Lima pelos contínuos momentos de
alegria e pela amizade construída durante esse tempo de estadia em
Florianópolis.
Não poderia esquecer as (os) colegas de minha turma, que
generosamente dividiram muitos momentos, muitas leituras, muita
amizade e muitas cervejas comigo. Obrigado por compartilharem seus
conhecimentos com a minha pessoa. Um beijo “arrochado” nos queridos
Maurício, Adílio, Thiago, Igor, e principalmente na menina Camila
Diane que dividiu milhões de coisas comigo, e que é uma pessoa que
amo demais. Abraço também aos conterrâneos: Antônio José, José Nilo
e Leonardo Ibiapina pela parceria na ponte Fortaleza-Florianópolis.
Queria agradecer a todas as meninas da Coletiva Vadias Desterro
pelas experiências partilhadas. Obrigado por fazerem parte da minha
vida aqui em Floripa. Sem dúvida essa dissertação leva muito de um
olhar crítico construído nos nossos debates e na nossa atuação. Um
agradecimento especial a minha companheira de militância, profissão e
de surtos acadêmicos, Gabriela Marques. Nêga, muito obrigado pelo
apoio durante a materialização desse trabalho, e por estar sempre
disposta a conversar e ajudar. Um abraço lindo também à querida Júlia
Silvestrin que compartilhou muitas frases de apoio durante o cansativo
processo de escrita.
Queria agradecer imensamente aos meus mais amados amigos
historiadores Leandro Maciel, Tuan Roque, Ramona Jerônimo e
Mardônio Andrade, que desde a graduação são meus mais importantes
parceiros e parceira. Vocês sabem o quanto que os amo e o quanto
foram importantes nessa trajetória. Tuan e Leandro, muitíssimo
obrigado por serem meus “estagiários de aluguel”, coletando e me
enviando documentações e bibliografias que foram sendo necessárias no
decorrer dessa pesquisa. A generosidade de vocês foi mais que
fundamental na materialização desse trabalho. Meu eterno
agradecimento. Esse trabalho é dedicado a vocês.
Um agradecimento mais que especial às pessoas que há tanto
tempo fazem parte da minha vida. Jamile Rocha, Pablo Tahim, Rubens
Lopes e Antônio José Júnior, vocês sabem que sou bruta, mas que amo
vocês. Obrigado por comprarem todas as rifas até o último momento da
minha mudança para Florianópolis. Vocês ocupam um lugar
privilegiado no meu coração. Obrigado também às amigas: Adriana
Araújo, Angelita, Carmen Rivas, “Seu Ali”, Roberta França, Raquel
Goldfarb e Beatriz Alves; e todas as companheiras (os) do curso de
História que seria impossível citar nominalmente aqui, mas que também
foram de grande importância nesse percurso.
Queria agradecer enormemente às pessoas mais importantes da
minha vida: minha mãe Maria das Graças, meu pai José Alves e minha
tia Isabel que são os seres humanos mais maravilhosos desse mundo.
Minha irmã Rejane Ferreira e meu irmão Gledson Ferreira. Obrigado
pelo apoio incondicional e pelo auxílio com todas as coisas que precisei
durante esse período. Um abraço de agradecimento à cunhada Vaniele
Freire e ao cunhado Sandro Alex pelo constante apoio prestado ao longo
da minha formação. Sem esse apoio nada seria possível, infinito
agradecimento a todas (os). Esse trabalho é dedicado a vocês.
Finalmente um agradecimento mais que especial ao meu
companheiro de todos os momentos, Marcos Luã Freitas. Agradeço cada
massagem, cada cafuné, cada palavra de apoio dado durante o processo
de organização e materialização desse trabalho. Sem a sua presença tudo
teria sido mais difícil. Obrigado pelos debates, pela paciência, pela
compreensão e pelo imenso companheirismo. Amo você, sempre.
Cedo da manhã a garrafa de leite já estava em
cima da mesa. Levantou, comeu aquele pão
molhado no café, e seguiu para entregar a garrafa
ao tio. Seu pai tinha o costume de todos os dias
ordenhar a vaca que tinham para tomar o leite
sempre que acordavam. Também mandava um
pouco à família do tio que morava nas
proximidades. Todas as manhãs ela fazia esse
serviço para o pai. Sempre caminhava uns quinze
minutos até a casa do tio. Mas neste dia parecia
ainda mais longe pelo calor que fazia. Ia pensando
nas balas que venderia durante o dia na praça do
teatro. Pensava no que iria comprar no mercado
quando voltasse de tardezinha...
No caminho, viu que um guarda também
caminhava na mesma direção. Depois de dobrar a
primeira rua, reparou que ele chegava mais perto.
Ao se aproximar disse: “pronde cê tá indo
menina?”. E ela explicou o que fazia ali tão cedo.
Alegremente, o guarda disse: “Encurta por aqui ó,
que chega mais rápido praquelas bandas”. O
guarda dissera que naquele atalho teria umas
coisas bonitas de se ver no caminho e uns pés de
fruta para subir. Disse: “vombora que eu te mostro
o caminho”. A curiosidade e a vontade de chegar
logo foram mais fortes...
Deu às mãos ao guarda e seguiu pelo caminho
depois da cerca.

Gleidiane Ferreira
Conto baseado no processo de
Atentado ao pudor acontecido em 1929.
RESUMO

Este trabalho objetiva analisar os discursos produzidos quanto à questão


da violência sexual e das condutas sexuais desviantes no âmbito da
criminalidade na cidade de Fortaleza durante as primeiras décadas do
século XX. Considerando as mudanças sociais, políticas e culturais que
estavam em andamento na cidade desde o fim do século XIX, assim
como a legislação republicana sobre esse tipo de violência, neste
trabalho, busquei problematizar as disputas discursivas sobre as
condutas sexuais alvos de intervenção policial e judicial na cidade, e de
que modo, se construíram e/ou reforçaram hierarquias de gênero quanto
aos temas da violência, da moral e da sexualidade. Para tal, tomei os
discursos dos médicos, dos representantes da lei e dos populares que
fizeram parte dos processos criminais, como bases para refletir sobre
esses temas e sobre as diferentes relações de poder existentes no
cotidiano criminal da cidade.

Palavras-Chave: Violência. Gênero. Disputas discursivas. Sexualidade.


ABSTRACT

This thesis aims to analyze the speeches made on the issue of sexual
violence and deviant sexual behaviors under criminality in the city of
Fortaleza in the early twentieth century. Considering the social, political
and cultural changes that were happening in the city since the late
nineteenth century, as well as the Republican legislation about this kind
of violence, in this paper, I sought to problematize the discursive
disputes about sexual behaviors that are targets for police and judicial
intervention in the city, and how, were built and / or strengthened gender
hierarchies according to the themes of violence, morality and sexuality.
To do this, I took the speeches of doctors, law enforcement officers and
folks that were part of criminal cases, as bases to reflect on these issues
and the different power relations that were in the criminal life of the
city.

Keywords: Violence. Gender. Discursive disputes. Sexuality


LISTA DE IMAGENS

Imagem 1. Ficha de identificação do criminoso. Processo Nº 1926/02.

Imagem 2. Fotografia do acusado e da vítima. Processo Nº 1926/02.

Imagem 3. Propaganda de medicamento contra reumatismo, câimbras e


dores em geral vinculada na Revista Ceará Médico de Maio-Junho de
1936.

Imagem 4. Propaganda de medicamento vinculada na Revista Ceará


Médico em Maio-Junho de 1936.

Imagem 5. Registro de Nascimento. Processo Nº 1931/01.


LISTA DE TABELAS

Tabela 1. Sexo das pessoas envolvidas nos processos.

Tabela 2. Processos com referências à cor dos acusados.


LISTA DE SIGLAS

APEC – Arquivo Público do Estado do Ceará


ACM – Academia Cearense de Medicina
RCM – Revista Ceará Médico
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ........................................................................... 25
1.1 DO CONTEXTO .......................................................................... 25
1.2 DAS FONTES............................................................................... 28
1.3 REFERENCIAL TEÓRICO E METODOLÓGICO ..................... 32
2 CAPÍTULO 1 – NA LETRA DA LEI: CLASSIFICANDO OS
CRIMES SEXUAIS E INTERPRETANTO A VIOLÊNCIA . 43
2.1 REFORMAS URBANAS E OS MODELOS DE FEMINILIDADE
E MASCULINIDADE NA CIDADE DE FORTALEZA EM FINS
DO SÉCULO XIX E INÍCIOS DO SÉCULO XX ....................... 43
2.2 DEFLORAR, ESTUPRAR OU ATENTAR CONTRA O PUDOR:
UMA CONSTRUÇÃO DA VIOLÊNCIA SEXUAL ................... 55
2.2.1 Entre a violência física e a violência moral ................................... 55
2.2.2 Materializando a violência ............................................................ 64
2.3 CORPO PENETRADO, CORPO VIOLADO: O ATO SEXUAL E
OS SIMBOLISMOS DE GÊNERO .............................................. 90
3 CAPÍTULO 2 – CONSTRUINDO O CRIMINOSO SEXUAL:
ENTRE DEGENERADOS E REPRESENTANTES DA
ORDEM ..................................................................................... 105
3.1 A VIDA ERRANTE: HOMEM DE COR, DESREGRADO E SEM
MORAL ...................................................................................... 105
3.2 DE DESREGRADOS A DEGENERADOS: ALCOOLISMO E
DOENÇAS VENÉREAS ............................................................ 137
3.3 CONSTRUINDO O LUGAR DA VIOLÊNCIA: ENTRE A CASA
E O MATAGAL ......................................................................... 159
4 CAPÍTULO 3 – ENTRE INOCENTES E DESONESTAS:
CONSTRUINDO A VÍTIMA DE CRIME SEXUAL ............ 177
4.1 PASSIVA E INOCENTE: IDEALIZANDO A VÍTIMA DE
CRIME SEXUAL ....................................................................... 177
4.2 IMORAL E DEGENERADA: A “MULHER DE VIDA
ALEGRE” ................................................................................... 199
4.3 UM ASSUNTO PARA MÉDICO: PRESERVANDO O CORPO
DA FUTURA MÃE .................................................................... 217
4.4 ESQUADRINHANDO AMBIENTES E RELAÇÕES
FAMILIARES: QUEM ERAM AS VÍTIMAS DE CRIME
SEXUAL? ................................................................................... 233
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................... 263
REFERÊNCIAS ........................................................................ 271
25

1 INTRODUÇÃO

"Conduzindo-o a logares escusos da mata,


praticou com o menor actos atentatórios do
pudor, satisfazendo com visíveis
perversidades seus baixos e incontidos
instinctos". 1

1.1 DO CONTEXTO

Em fins do século XIX e início do século XX, Fortaleza viveu um


momento de grandes mudanças políticas, econômicas e culturais em que
a cidade organizava-se a partir dos ideais de modernidade e do novo
regime republicano. Essas mudanças estavam presentes nas novas
sociabilidades (cafés, bares, cassinos, bondes), nas vestimentas, na
língua, nas mudanças jurídicas de ordenamento urbano, na atuação de
médicos e sanitaristas, e também na introdução de novos
comportamentos (PONTE, 2010) e em novas compreensões de
masculinidade, feminilidade e de família. É nesse contexto que emerge
um grande número de discursos e simbologias sobre as mulheres e os
homens atreladas aos ideais de limpeza moral2 e de progresso social.
Esse período foi marcado por um maior enraizamento do Estado
nas mais diversas relações sociais, em especial as que se referem à vida
cotidiana das pessoas. Isso porque é nesse momento que se consolida no
Brasil a perspectiva de se projetar politicamente um perfil de
organização familiar baseada em uma conduta limpa e higiênica das
relações sexuais, voltadas para a vida doméstica e para a produção de
filhos para a nação. Desse modo, as instituições do Estado apareciam

1
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:
Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 01, Processo Nº 1926/01.
Relatório da promotoria. p. 02.
2
Entende-se por limpeza moral, uma política de atuação da esfera pública em
detectar e normatizar as condutas de homens e mulheres em prol de uma
sociedade limpa e virtuosa do ponto de vista da moralidade, com o motivo de
assegurar o progresso da sociedade brasileira. Esse discurso se vinculava às
teorias eugênicas do início do século e do Darwinismo social. Ver: (FLORES,
2002).
26

não apenas como um mecanismo de controle e organização da geografia


urbana da cidade, mas também, como um mecanismo de disciplina das
relações mais íntimas e cotidianas dos vários segmentos sociais,
“fazendo do sexo um negócio do Estado” (ESTEVES, 1989, p. 27).
Tomando como cenário a Fortaleza de inícios do século XX, este
trabalho tem como objetivo analisar os discursos sobre a violência
sexual, o sexo e a sexualidade no âmbito da criminalidade entre 1900-
1940, buscando entender de que forma e quais relações sexuais
estiveram passíveis a classificações jurídicas, médicas e criminalistas
nesse período, e de que modo se construía uma noção sobre a violência
sexual nesse momento.
A escolha do recorte proposto para a pesquisa se deu pela
disponibilidade das fontes criminais no Arquivo Público do Estado do
Ceará a partir do ano de 1900, sob o Código Penal de 1890, indo até
1940, data última de atuação legal sob este código. Desse modo, busco
contemplar as realidades criminais interpretadas a partir desse código,
que tinha como composição o Título: “Dos crimes contra a segurança da
honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor” (1890), e
também, no Título “Dos crimes contra os bons costumes e a ordem na
família”.
Assim, utilizo os processos-criminais como fonte central de
investigação para uma análise das condutas e práticas sexuais tidas
como “desvirtuadas” dos valores morais aceitos pela justiça, o que me
possibilita compreender de que forma o sexo e a violência foram
tomados como objeto de discursos por diferentes segmentos sociais, cuja
relação entre o que está aliado ou não à “normalidade” foi de grande
importância para pensar as subjetividades dos diferentes relatos que
compõem as fontes criminais.
Segundo os discursos oficiais, o que era considerado ideal para as
condutas e as práticas sexuais se articulava com os objetivos do Estado
em relação às organizações familiares que deveriam estar voltadas para
a produção de filhos legítimos e saudáveis para a sociedade brasileira.
Nesse sentido, o estabelecimento de padrões, de uma “ordem ideal”
(MATOS, 2003, p. 109) para a sexualidade de homens e mulheres
instaura novas relações de poder sobre o sexo. Os “instintos
masculinos”, a “passividade feminina”, a maternidade, a reelaboração da
figura da criança, a importância do matrimônio e da fidelidade conjugal
na normatização das práticas sexuais foram temas debatidos nesse
27

período, e buscaram construir o sexo na sua importância heterossexual,


na sua funcionalidade procriativa, mapeando e criminalizando as
práticas “desviadas” (FOUCAULT, 1988).
Considerando a ânsia por parte da justiça em estabelecer os mais
diferentes laços de parentesco à ideia de família bem estruturada e
construída na honra, em que cada componente tinha um valor e um
“papel”, e as relações amorosas e sexuais precisavam da legitimidade do
Estado, esta investigação busca compreender, de que modo se
construíram e/ ou reforçaram relações de gênero no cotidiano judiciário
quanto aos temas da violência, do sexo e da sexualidade.
Entendo que a lei é menos algo que simplesmente estabelece
modelos de relações entre as pessoas, e muito mais, um resultado de
conflitos sociais e um parâmetro utilizado, lido e apropriado nos espaços
de justiça e pelas relações de poder estabelecidas em âmbito policial e
judicial. Dessa forma, este trabalho reflete sobre as tensões e a
complexidade das várias interpretações existentes sobre a letra da lei
entre as pessoas que fizeram parte do cotidiano jurídico, ressaltando as
subjetividades construídas em torno do permitido e do proibido do ponto
de vista sexual. Assim, busquei compreender a forma como a violência
sexual foi entendida e interpretada nesse momento – tanto pelos
discursos oficiais, como nos relatos dos populares – cuja preocupação
marcava-se especialmente pela “proteção” da honra das mulheres.
Os delitos de cunho moral e sexual previstos pelo Código Penal
de 1890 são os seguintes capítulos: Violência carnal, Rapto, Lenocínio,
Adultério ou Infidelidade conjugal e Ultraje público ao pudor, que
consistiam em tipologias criminais que atentavam contra a honra e a
honestidade das famílias; crimes que não correspondiam a um ato de
indivíduo (a) contra indivíduo (a) apenas, mas que consistia numa
ameaça à coletividade, “manchando” a imagem de toda família e por
extensão os bons costumes da sociedade. Na cidade de Fortaleza, além
da grande preocupação com os temas da honra e da família, que eram
recorrentes em nível nacional, havia também, uma preocupação por
parte dos discursos oficiais, dos intelectuais e dos segmentos da elite,
com os problemas trazidos pela rápida urbanização; principalmente, pela
grande população pobre concentrada na capital em decorrência das
diversas migrações motivadas pela seca e que marcaram sua história em
fins do século XIX e inícios do século XX.
28

Tornar Fortaleza uma cidade limpa e higienizada significava para


os intelectuais e políticos de inícios do século XX, introduzir novos
hábitos de consumo, de higiene pública e domiciliar, de valores de
trabalho e familiares, ou seja, estabelecer o que Jurandir Costa chamou
de uma sociedade baseada em princípios de “ordem médica” e novas
“normas familiares”. (COSTA, 1983)
Nesse contexto, analisar os crimes sexuais me possibilitou
entender a forma como as instituições policiais, judiciais, e os saberes
médicos e higienistas que se solidificavam na cidade, contribuíram na
construção de discursos disciplinadores sobre o sexo, a moral e a
violência. Além disso, ao problematizar esses conflitos de cunho sexual
é possível entender muitos dos embates sociais e das relações de poder
na sociedade fortalezense, e de pensar o modo como essas questões se
imbricavam no cotidiano da justiça.

1.2 DAS FONTES

No ano de 2011, pesquisando materiais no Arquivo Público do


Estado do Ceará em busca de fontes que pudessem me indicar
discussões sobre sexualidade no início do século XX, localizei uma
grande quantidade de processos criminais dos mais variados tipos de
crimes cometidos entre o período de 1900-1950.3 Diante da variedade de
processos, e partindo do interesse em encontrar documentos sobre
experiências sexuais moralmente proibidas, iniciei uma seleção dos
crimes de cunho sexual existentes no arquivo, tomando como base a
legislação vigente: O Código penal de 1890.
Entre todos os processos que contemplavam essa temática, a
grande maioria se referia a crimes de Defloramentos – cerca de oitenta –

3
As fontes disponibilizadas para pesquisa no Arquivo Público do Estado do
Ceará são oriundas do fundo do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. Essa
documentação fora organizada e catalogada pelo projeto “Conservar para
preservar e preservar para conhecer: processos-crime do Arquivo do Estado do
Ceará (1910-1950)” realizados pelas (os) bolsistas do Programa de Educação
Tutorial (PET-História) durante o período de 2003-2005. Graças a esse trabalho,
a pesquisa em questão pode ser realizada no próprio espaço do Arquivo Público
do Estado, de forma menos burocrática do que normalmente acontece nas
pesquisas com fontes judiciais, que em muitos casos estão nos espaços da
justiça e se encontram indisponíveis para consulta.
29

diferentes dos Estupros, Atentados ao pudor e Lenocínios que juntos


somavam vinte e cinco casos. Essa superior quantidade de crimes de
defloramentos também foi evidenciada em trabalhos que pensaram os
debates em torno da sexualidade feminina no início do século XX,
como: Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de
Janeiro da Belle Époque, da historiadora Martha Abreu; Em defesa da
honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de janeiro (1918-
1940) de Sueann Caufiled; a dissertação Moças abusadas: concepções
de honra e conflitos amorosos em Santo Antônio de Jesus – Bahia
(1890-1940), de Andrea Lessa. Essas pesquisas demonstraram o quão
superior era o número de queixas e de processos preocupados com a
honra das moças envolvidas – principalmente pela perda da virgindade –
o que podia ser percebido pela enorme diferença quantitativa entre os
crimes de defloramentos e os demais crimes descritos como
ameaçadores da moralidade pública.
Segundo essas autoras, a grande quantidade desses crimes podia
ser pensada a partir de vários fatores, e dentre eles, da necessidade de se
defender e oficializar a honra das moças defloradas – requisito tão
importante para a (in) visibilidade dessas na sociedade. Outra questão
fundamental era que no cotidiano o crime de defloramento,
diferentemente dos demais crimes contra a honra previstos pelo primeiro
Código Penal Republicano, possibilitava o casamento como uma forma
de “pena” para o delito, o que fazia que muitas famílias que vissem a
honra das filhas em questionamento, buscassem a justiça como forma de
reparação dessa honra.
No início da leitura dos processos “ameaçadores da moral”, um
dos elementos que mais me chamou atenção foram as formas e os
argumentos utilizados para classificar os crimes segundo o Código de
1890. Os defloramentos, em grande maioria, se constituíam em relações
entre rapazes e moças cujo desdobramento legal para a resolução do
caso poderia ser, e em muitos casos eram realmente, o casamento.
Denunciar um caso como defloramento era uma tentativa de garantir a
“limpeza” da honra – leia-se o futuro – da ofendida. Dos casos que
analisei quase todos tinham como resolução ou a absolvição do réu, ou a
obrigatoriedade do matrimônio.
Na grande maioria desses casos, a moça que se dizia deflorada
precisava provar a sua honestidade e seu recato diante da justiça para
conquistar o direito moral de “reparar seu dano”. Existia uma
30

reprovação das relações sexuais antes do casamento compartilhados


entre representantes do estado, e por diferentes pessoas componentes
dos processos criminais, porém, essa prática não era entendida como
“contrária à natureza” ou como reveladora de “instintos bestiais”, mas
como uma prática que ocorrera antes do tempo e que de algum modo
poderia ser reparada.
Diferente dos Defloramentos, após a leitura dos processos de
Atentados ao pudor, Estupros e Lenocínios, o que mais me chamou
atenção foi a impossibilidade que esses tinham de possíveis
“reparações”, já que muito desses crimes eram reveladores de condutas
consideradas “doentias”, “violentas”, “anormais”, para “fins
libidinosos” e “imorais”. O envolvimento de menores (meninos e
meninas entre 5 e 16), de pessoa idosa, de prostitutas, de cafetinas, a
feitura de posições sexuais impróprias, dentre outros “problemas”
debatidos no interior desses processos, me chamaram mais atenção, na
medida em que a partir deles era possível pensar quais práticas, desejos
e sujeitos não poderiam compor o sexo saudável e legítimo buscados
pelos discursos normalizadores.
Embora legalmente não houvesse a impossibilidade de que esses
crimes tivessem o casamento das pessoas envolvidas como um
desdobramento, na prática jurídica que os classificava e os julgava, uma
série de discursos contornavam essa possibilidade, já que grande parte
desses crimes eram considerados “perversos”, “covardes” e “cruéis”;
além de serem muitas vezes praticados por pessoas consideradas
“degeneradas”.
Desse modo, para a realização dessa pesquisa de mestrado tomei
como fontes centrais os processos encontrados que se relacionavam aos
crimes considerados como práticas “com o fim de saciar paixões
lascivas e por depravação moral”, sendo eles: Estupros, Atentados ao
pudor e Lenocínios (cafetismo e/ou corrupção de menores). Esses
crimes – com exceção dos Lenocínios – estavam dispostos no Capítulo I
do Título VIII do Código Penal de 1890, que correspondia aos artigos
sobre os delitos de Violência Carnal. As vinte e cinco ações
concernentes a esses delitos me possibilitaram perceber o modo como os
representantes da justiça, os médicos e os populares disputavam
discursivamente os sujeitos, os lugares e os valores que compunham
essas tipologias de crimes.
31

Além das ações judiciais, a legislação de inícios do século


também foi utilizada como forma de problematizar as diferentes
interpretações que eram construídas pelos representantes da justiça no
decorrer dos processos, e por serem fundamentais para compreendermos
os parâmetros utilizados por esses homens para a fundamentação de seus
pareceres. O Código Penal de 1890 foi o texto jurídico central e melhor
estudado no decorrer da dissertação, em especial no primeiro capítulo,
com o objetivo de entender os debates sobre as classificações efetuadas
para as queixas de crimes sexuais durante esse período. Além da
legislação penal, o Código Civil de 1916 e o Código de Menores de
1927 também fizeram parte dessa pesquisa como fontes referenciais na
compreensão do contexto legislativo vivido no Brasil, principalmente
sobre os temas da moral, da família e da menoridade.
Finalmente, compondo o corpo documental dessa investigação,
está a Revista Ceará Médico, principal veículo de comunicação da
categoria nas primeiras décadas do século XX. Buscando problematizar
os discursos médicos sobre os principais temas que apareceram
discutidos durante os processos criminais – como o alcoolismo, as
doenças venéreas, a maternidade, a degeneração, a hereditariedade,
dentre outros – a análise dessa fonte foi de grande importância na
compreensão dos discursos e da ação dos médicos da capital, e
principalmente da forma com que construíam seus pareceres no decurso
desses processos; produzindo discursos normativos sobre o tema da
violência, do sexo e da sexualidade. Desse modo, os debates
impulsionados por esses profissionais na revista entre os períodos de
1928-1940 foram fundamentais na problematização das principais
preocupações das elites da cidade, e também para compreender as
interpretações oficiais emitidas por médicos, advogados, juízes e
promotores no decurso das ações.
É importante destacar que essas fontes são compostas por
diferentes personagens e, portanto, dispõem de uma pluralidade de
versões acerca dos crimes denunciados. Em linhas gerais, a primeira
parte dessas ações normalmente era composta pelos Autos de
declaração das testemunhas efetuados na delegacia responsável pela
apuração das provas. Após serem colhidos vários depoimentos e
“evidências” sobre os crimes, esses autos, assim como o Relatório
elaborado pelo delegado responsável pela investigação eram
encaminhados à justiça da capital. Ao virarem ações judiciais era
32

elaborada denúncia por parte da promotoria, eram solicitados os


curadores dos acusados, e novos depoimentos eram colhidos de acordo
com a necessidade de cada caso. Finalmente, era expedido um Parecer
do Juiz com a sentença que seria dada ao réu. Esses processos, em
muitos casos duravam meses e até mesmo anos, e variaram em uma
média de 50 a 250 páginas, sendo alguns poucos marcados pela ausência
de alguma parte componente.

1.3 REFERENCIAL TEÓRICO E METODOLÓGICO

Entendo que a violência sexual é uma construção histórica e


contextual, que para ser observada e fundamentada – principalmente em
âmbito criminal – movimenta uma série de elementos que nos dizem
sobre as sensibilidades de um momento, definindo o que pode ou não
ser compreendido como um ato de violência; e também, revela as
diversas relações de poder que compõem uma sociedade em um dado
espaço-tempo. Para além de um delito ou de um ato que
necessariamente envolva uma perspectiva repressora, como afirma o
antropólogo Teofilos Rifiotis, a violência implica numa visão de mundo
que operacionaliza diferentes questões para quem a vivencia, para quem
a exerce e para quem a interpreta. (RIFIOTIS, 1997) Nesse sentido, ao
ter uma abordagem que privilegia o cotidiano da violência sexual, este
trabalho buscou entender a violência como um construto discursivo
entre as pessoas que vivenciaram esse tema e que emitiram seus relatos
e pareceres nos processos judiciais.
Entender a violência sexual como um campo de disputas
possibilitou uma reflexão das diferentes relações de poder existentes no
cotidiano criminal da cidade de Fortaleza, não apenas as que estavam
marcadas pelas desigualdades sociais entre os grupos de elites – que
eram representados pelos que detinham a palavra da ciência e a
autoridade para classificar e julgar as denúncias – e as camadas
populares; mas também, pelas hierarquias raciais, pelas relações de
poder entre adultos e crianças, e principalmente, pelas relações de
gênero que eram vivenciadas pelos (as) fortalezenses nas primeiras
décadas do século XX.
Os crimes escolhidos para esse trabalho possibilitaram uma
análise mais complexa das relações de gênero, principalmente no que se
refere aos temas do sexo e da sexualidade, pois não estiveram marcados
33

unicamente por atos de violência praticados por homens contra


mulheres, como nos crimes de Defloramentos; mas também, por outras
formas de relações e práticas sexuais que não estavam fincadas nas
normas heterossexuais e reprodutivas. Desse modo, busquei
problematizar, a partir dessa perspectiva, os testemunhos e pareceres das
pessoas envolvidas em processos judiciais atentando para o que era
considerado violento, cruel, desviante e/ou moralmente condenável, e a
forma com que essas adjetivações construíam e/ou reforçavam relações
desiguais marcadas pelo gênero. Nesse sentido, me aporto nas
possibilidades reflexivas da categoria gênero, pois entendo que essa
categoria permite uma discussão não apenas das relações de poder
vivenciadas entre homens e mulheres, mas entre mulheres e mulheres, e
homens e homens.
Para pensar o tema da violência e da sexualidade, as hierarquias e
simbologias de gênero foram (e são) fundamentais para a
problematização da forma com que a violência e os perfis idealizados de
sexo e família são marcados, até os dias de hoje, por discursos que
buscam construir “papéis sexuais” fixos e desiguais para homens e
mulheres, e para as ideias de masculino e feminino. Dessa maneira, o
gênero se constituiu como um produtor de sentido sobre as ideias de
violência, honra, moralidade e pudor nesses processos. Como afirma
Joan Scott, apoiando-se nas reflexões sobre poder de Michel Foucault –
o gênero é a organização social da diferença sexual, e assim,

seus usos e significados nascem de uma disputa


política e são os meios pelos quais as relações de
poder – de dominação e de subordinação – são
construídas. O saber não se refere a ideias, mas a
instituições e estruturas, práticas cotidianas e
rituais específicos, já que todos constituem
relações sociais. O saber é um modo de ordenar o
mundo e, como tal, não antecede a organização
social mas é inseparável dela. (SCOTT, 1994, p.
12-13)

É nesse sentido que entendo que as disputas discursivas em torno


da violência sexual estiveram profundamente marcadas por relações de
gênero e acabavam construindo, por sua vez, uma noção bastante
hierarquizada sobre esse tipo de violência, sendo fundamentadas de
formas bastante diferentes de acordo com quem era vitimado e com
34

quem a praticava. Como também definia Michel Foucault, o discurso se


constrói a partir de sua “vontade de verdade”; a partir de um desejo de
poder e de controle, os discursos são uma prática que ordenam a vida e
constroem sujeitos. (FOUCAULT, 2010, p. 10). Assim, as posições de
vítima e de acusado de crime sexual estiveram diretamente relacionadas
às diferentes hierarquias sociais vividas na capital durante esse
momento, em que os sujeitos que tinham práticas sexuais desviadas
eram recorrentemente identificados como aqueles que não
correspondiam às idealizações de masculinidade e feminilidade
defendidas pelas elites da cidade.
No entanto, além da construção discursiva de sujeitos vitimados e
criminalizados, a própria violência sexual apareceu compreendida como
um desdobramento de comportamentos marcados por diferentes desvios
do que se entendia por bons comportamentos sociais. Mobilizando
diferentes argumentos e questões que construíam a violência sexual
baseada na idealização de vítimas e acusados, os crimes aqui estudados
possibilitaram uma reflexão sobre os elementos compositores dessas
idealizações, e dos diferentes conflitos que marcavam a vida de homens,
mulheres e crianças na capital.
Na Fortaleza de inícios do século XX, os saberes médicos e
jurídicos trataram de usar e significar as relações de gênero como forma
de contribuir para a naturalização dos modelos de sexualidade em
moldes burgueses, visando especialmente, a criminalização e a
disciplinarização das camadas mais pobres, que eram vistas como
ameaçadoras do ordenamento da cidade. Desse modo, entendo que para
esse momento de consolidação da ordem familiar burguesa no Brasil, o
reforço da organização social baseada nas diferenças corporais – em que
as mulheres exerciam uma “função social” a partir dos seus dotes
maternais “naturais”, e os homens pela capacidade de agir em atividades
públicas e provedoras – buscava-se, cada vez mais, engessar a
combinação entre as diferenças corporais, os comportamentos sociais e
o desejo sexual.
Analisando os processos referentes aos crimes de Estupros,
Atentados ao pudor e Lenocínio foi possível problematizar a
compreensão da violência a partir de discursos marcados pelo gênero e
pelas idealizações de família e sexualidade defendidas nesse momento.
Esses crimes, como dito anteriormente, não foram casos que envolveram
somente relações entre homens e mulheres, mas também, que
35

envolveram homens e meninos, relações entre menores, relações sexuais


entre jovens e pessoas idosas, além do exercício de “cafetismo”, que era
considerado uma das maiores ameaças morais em inícios do século
passado. Tais crimes possibilitaram perceber também, as diferentes
práticas sexuais que eram alvos de julgamentos em perspectiva criminal
e que se configuravam ameaçadoras da ordem social.
Esses casos, além de constituírem contravenções contra a “boa
moral” e os “bons costumes”, não se limitaram a questões relacionadas à
ideia da "sedução" exercida por homens em relação às mulheres (como
nos casos de Defloramentos e Raptos), mas também, apresentaram
problemas acerca de comportamentos que fugiam de condutas sexuais
"normais" e se acercavam de práticas tidas como "reveladoras de
instintos bestiais”. Como afirma Jeffrey Weeks pensando a normalidade
e a anormalidade no caso Herculine Barbin trabalhado por Michel
Foucault "ao definir o que é anormal (uma moça com evidências
corporais de masculinidade, neste caso) tornou-se plenamente possível
tentar definir o que é verdadeiramente normal (uma plena
correspondência entre o corpo e o gênero socialmente aceitável)".
(WEEKS, 2001).
Para pensar essas questões, utilizo como referência uma ideia de
norma e desvio tomando como base alguns trabalhos de Michel
Foucault, especialmente o livro História da sexualidade I: A vontade de
saber, em que apresenta o surgimento da ciência sexual e o seu
enraizamento na sociedade moderna, na sua preocupação com as
condutas “excessivas”, “transgressoras”, “patológicas” e “pervertidas”,
construindo por sua vez, e ao mesmo tempo, as relações legítimas e
sadias. (FOUCAULT, 1988). Assim, em um contexto cujas definições
dos “papeis” de gênero e de sexualidades sadias foram basilares para a
construção de uma sociedade desenvolvida – em termos materiais e
humanos – os comportamentos “pervertidos” são entendidos como algo
ameaçador da ordem social, adquirindo status de crime, e sendo objeto
de teorizações e ações em diferentes instituições sociais.
Busco discutir, a partir dessas fontes, como essas noções de
normalidade e anormalidade se apresentaram a partir de uma
sexualidade em que o sexo deveria ter por finalidade a reprodução e a
saúde do “corpo social” (FOUCAULT, 1988), produzindo discursos
sobre as condutas sexuais idealizadas de homens, mulheres, crianças e
idosos; e principalmente construindo um discurso sobre a própria
36

violência sexual. A análise dos processos criminais sobre relações


sexuais em diversas idades e em diversas circunstâncias possibilitou
uma problematização acerca do que era considerado legítimo e ilegítimo
nas relações entre sexo e prazer, e do que poderia ser considerado um
ato praticado por intermédio de violência.
Desse modo, foi bastante pertinente do ponto de vista
metodológico, a análise dos argumentos classificatórios utilizados por
médicos e representantes da justiça sobre o que fugia da “normalidade”
nas práticas sexuais analisadas nesses crimes, principalmente, devido ao
fato de que eram a partir dessas referências de normalidade e desvio que
se fundamentavam as noções de violência, sedução, pudor, atos contra a
natureza, virilidade, libido, dentre outras noções largamente utilizadas
por diferentes personagens nos relatos dos processos; além de nortearem
e serem foco de calorosos debates sobre as punições imputadas aos
acusados e acusadas.
É importante destacar que as fontes judiciais escolhidas para este
trabalho, mesmo que muitas vezes incompletas e confusas, possuem
uma riqueza de indícios sobre as relações entre a violência e o poder
público da capital em inícios do século XX. A partir delas, foi possível
visualizar diferentes sociabilidades vividas por mulheres, homens e
crianças, e observar as inúmeras relações que essas pessoas
estabeleceram com a cidade nesse período. Esse trabalho, no entanto,
não intenciona ser um estudo sobre a cidade de Fortaleza como um
espaço público, mas se coloca como um estudo que está entre a fronteira
que constitui o público e a esfera íntima do cotidiano. Por isso, busco
deslocar os marcadores que convencionalmente marcaram a relação
anteposta entre público e privado, problematizando a forma com que
esses marcadores eram reforçados em muitos casos, e foram importantes
para fundamentar a própria violência dos crimes sexuais. Além disso,
esse tipo de abordagem fortalece uma perspectiva que busca observar
como as pessoas construíam e significavam essas violências, e os
diferentes elementos que a constituíam; entendendo, portanto, a
narrativa da experiência não como uma evidência, mas como uma
elaboração discursiva.
Outros aspectos retratados ao longo do trabalho foram as
diferentes relações de poder e os diferentes conflitos que marcavam a
vivência dos populares e que apareceram retratadas e disputadas nos
depoimentos prestados no decorrer das ações. Mais do que tentar
37

observar um visão própria dos populares sobre a questão da violência


sexual, o exercício metodológico efetuado na análise dessas fontes foi o
de perceber quais elementos eram usados pelos populares como forma
de reforçar ou contestar as denúncias realizadas nos processos, e a forma
com que muitas das compreensões sobre a moral sexual circulavam
entre os relatos de muitos populares e os pareceres dos representantes da
justiça. Mesmo que materializadas numa mediação com a intervenção
dos escrivães, as documentações criminais se constituíram neste
trabalho como fontes bastante ricas para a observação do cotidiano das
camadas pobres da cidade, que formam a maior parte das personagens
desses crimes; mas também, e principalmente, como fontes que nos
possibilitam perceber disputas discursivas e interpretações diversas
sobre esse próprio cotidiano, que era recorrentemente elaborado como
forma de reforçar versões de defesa ou de acusação.
A partir de todos esses elementos, a presente investigação foi
motivada pelos seguintes questionamentos gerais: Quais eram os
elementos necessários para que uma relação fosse considerada como
atentatória ao pudor? Quais elementos e personagens eram necessários
para definir um crime de Estupro? Como se materializava a violência?
Quais as circunstâncias e os ambientes que fundamentavam uma relação
libidinosa? Como eram compreendidas as relações sexuais com ou entre
menores? E as relações entre pessoas do mesmo sexo? Quem eram as
pessoas acusadas de crimes sexuais? De que modo foi construído
discursivamente o criminoso sexual? Quais os elementos que foram
necessários para a construção discursiva da vítima desse tipo de crime?
Como essas questões estiveram marcadas pelo gênero, pelas hierarquias
raciais, de idade e de classe? Como elas se construíram nas
subjetividades dos que fizeram parte dos processos criminais, sejam eles
médicos, representantes da lei, testemunhas, vítimas ou réus?
Essas foram as questões perseguidas durante toda a pesquisa, e
que nortearam a problematização dos diferentes relatos e pareceres
dessas ações, além da organizarem a própria escrita do trabalho.
Nos processos referentes aos Atentados ao pudor – crime que
correspondia aos atos que violavam o pudor e a inocência de alguém – e
aos Estupros – definidos especialmente pelo uso da violência física –
busco realizar uma análise dos discursos em torno das argumentações
sobre a “normalidade” e “anormalidade” dessas condutas, e de como
estas reforçaram relações de gênero, na medida em que, por exemplo,
38

um ato de violência sexual contra uma menina de 10 anos era


classificado como Estupro e contra um garoto era entendido como
Atentado ao pudor. Quais as questões que fundamentavam essas
diferenciações na legislação? Quais as relações de gênero que se
construíram ou reforçaram ao pensar o sexo e a violência nesses tipos de
crime? Quais os discursos sobre a violência que foram construídos a
partir da classificação desses crimes? Para discutir esses
questionamentos busquei investigar e organizar as principais
justificativas, argumentos e quesitos necessários para classificar de uma
ou de outra forma as denúncias de crimes sexuais, entendendo as
limitações e explorando as contradições e hierarquias existentes no
Código Penal de 1890.
Desse modo, examino a forma como as discussões acerca do sexo
e da sexualidade sadia estiveram fundamentadas por diferentes
hierarquias que marcaram o cotidiano das pessoas pobres da cidade. Os
pareceres dos delegados, as interpretações de juízes, advogados e
promotores, assim como os diferentes depoimentos de vizinhos, parentes
e conhecidos serviram aqui como forma de problematizar os elementos
usados para fundamentar uma versão acusatória e para afirmar uma
narrativa de defesa. Assim, pensar as principais questões que
compuseram essas narrativas significou, além da possibilidade de uma
análise dos conflitos cotidianos entre as pessoas envolvidas, a
verificação da construção de discursos sobre a violência sexual em
âmbito judicial nesse momento.
Foi problematizado ao longo do texto, as diferentes adjetivações e
os diferentes argumentos que construíam as vítimas e os acusados de
crimes sexuais. Seus comportamentos, suas sociabilidades, suas
posições de poder ou não na sociedade, além de outras várias questões,
foram analisadas para uma reflexão sobre os elementos que constituíam
narrativas idealizadas sobre esses sujeitos.
Pensar o modo como se construíam discursivamente os sujeitos
vitimados e acusados nos processos judiciais de crimes sexuais
possibilitou entender também quais as principais questões que
marcavam as interpretações oficiais emitidas pelos representantes da
justiça, e, portanto, quais os comportamentos entendidos como próprios
desses sujeitos. Durante a pesquisa foi indagado sobre as construções
simbólicas de gênero nas relações sexuais proibidas, que também foram
39

fundamentais para essas idealizações acerca dos sujeitos e das situações


de violência sexual.
Nesse sentido, a pesquisa buscou deter-se na investigação de
práticas sexuais que fugiram de uma heteronormatividade higiênica e
reprodutiva que era, cada vez mais, um projeto político deste o início da
Primeira República, e que teve auge na década de 1930. Os crimes que
escapavam à ideia do sexo praticado com amor e para fins de procriação,
como os cometidos por intermédio de atos violentos, ou com o
envolvimento de pessoas que fogem às faixas etárias reprodutivas
(crianças ou pessoas idosas), assim como os crimes que envolviam mais
de uma pessoa – como acusadas ou como ofendidas – constituíram-se
nas principais relações aqui analisadas.
Convém destacar novamente a importância de se perceber a
historicidade da noção de violência, em especial da violência sexual.
Tratar a violência como um construto histórico é uma forma de romper
com perspectivas que naturalizam relações de violência, ao mesmo
tempo que nos permite compreendê-la como algo que faz parte da
própria construção da sociedade e das visões de mundo que
costumeiramente foram (e são) legitimadas através de diferentes
elementos do cotidiano. Ainda nas afirmações de Teopfhilos Rifiotis, é
necessário que possamos questionar as perspectivas que pensam a
violência como algo que aponta para o outro, para o exterior, como algo
que não faz parte do sujeito autorizado a interpretá-la ou como algo que
é marcado exclusivamente pelas ideias de repressão e negatividade.
(RIFIOTIS, 1997) É necessário pensar a violência como algo que faz
parte de uma série de relações que construímos, disputamos, e em
muitos casos, legitimamos cotidianamente. A violência não pode ser
analisada sob um paradigma moderno, que a percebe como algo arcaico,
exterior, um “estrangeiro”, uma “ameaça” ao consenso que
supostamente faz parte da experiência social. Ela precisa ser
problematiza a partir de legitimidades oriundas de vetores que emergem
de diferentes lugares e apontam para diferentes destinos.
Desse modo, no primeiro capítulo deste trabalho denominado
Na letra da lei: classificando os crimes sexuais e interpretando a
violência, busco apresentar alguns elementos dos principais debates
levantados pela justiça no fim do século XIX e inícios do século XX em
torno da honra e da moralidade da família, tomando como fonte central
o Código Penal de 1890, e destacando a relação entre honra familiar e
40

honra feminina. Neste capítulo é esboçada a construção das instituições


policiais e judiciais da cidade de Fortaleza, assim como as principais
transformações na cidade durante o período retratado e a forma com que
esses elementos foram fundamentais na compreensão dos conflitos
sociais em âmbito criminal e judicial. Nesta parte, busquei analisar os
conflitos quanto às classificações dos crimes sexuais, explorando
especialmente os casos de Estupros e Atentados ao pudor. O objetivo
deste capítulo, portanto, foi discutir como e a partir de quais elementos
esses casos foram interpretados e classificados pelos representantes da
justiça na cidade, e a forma como a “comprovação” das violências foi
compreendida nos relatórios policiais e nos pareceres médicos e
judiciais. A problemática central que permeou o capítulo foi analisar a
maneira como as classificações desses crimes se relacionavam à
produção de discursos sobre violência, sexualidade, masculinidade e
feminilidade; ao passo que privilegiavam a ação judicial em casos
envolvendo menores de idade, muitas vezes em detrimento de vítimas
de idades mais adultas.
No segundo capítulo, Construindo o criminoso sexual: Entre
degenerados e representantes da ordem, foram desenvolvidas algumas
discussões sobre o perfil construído no decorrer desses processos para os
acusados de crimes sexuais. O objetivo central do capítulo foi
desenvolver dois aspectos centrais: O primeiro se refere à
problematização da forma como os discursos jurídico-policiais e
médicos-higienistas construíram a figura criminosa dessas pessoas e
quais os elementos utilizados para qualificá-los ou desqualificá-los
como criminosos durante esse período. Dessa forma, foi desenvolvida
uma discussão sobre como esses discursos construíram as práticas
desviantes, e também, a figura dos sujeitos “degenerados” como aqueles
que infringiam as leis morais e os comportamentos idealizados para um
homem na sociedade. Tomando como parâmetro a ideia de “homem de
bem” construído na cidade de Fortaleza nesse momento – marcado pelos
valores de bom trabalhador, homem sem vícios e provedor da família, e
consequentemente, um homem cuja sexualidade deveria ser cultivada
nos “bons instintos” e no ambiente familiar – busquei perceber como
esses elementos foram usados e significados mediante as declarações e
julgamentos das condutas dos homens acusados de crimes sexuais.
O segundo aspecto desenvolvido neste capítulo foi pensar quais
elementos foram usados pelas camadas populares – especialmente nas
41

narrativas encontradas nos Autos de declaração dos inquéritos policiais


e nos depoimentos realizados em juízo – como forma de acusar ou
defender os indivíduos em questão. E desse modo, procuro
problematizar as principais relações de poder existente entre os próprios
populares, analisando quais as condutas e as práticas sociais que foram
utilizadas como forma de qualificar e construir os acusados e a própria
violência sexual. Desse modo, as perguntas que nortearam a escrita
desse capítulo foram as seguintes: Quais os principais elementos
utilizados pelas diversas pessoas como forma de acusação, e de defesa
dos denunciados? Que tipo de condutas poderiam ser adotadas como
agravantes ou atenuantes na construção da imagem do criminoso
sexual? De que modo, as relações de gênero, as desigualdades de classe
e as étnico-raciais foram importantes na representação desses acusados?
E por fim, como esses elementos construíam discursos sobre as relações
entre gênero e violência?
Finalmente, no terceiro capítulo, denominado Entre inocentes e
desonestas: construindo a vítima de crime sexual, busco discutir a
construção da imagem da vítima de crime sexual na cidade de Fortaleza
no período abordado, objetivando refletir sobre o perfil social dessas
vítimas, assim como os simbolismos que envolveram suas condutas e
comportamentos. Nesse sentido, foi problematizada nesta parte do
trabalho a forma como a sexualidade feminina foi questionada nos
diferentes relatos e pareceres dos processos criminais, discutindo os
conflitos existentes entre os valores e os “papeis” desejados para as
mulheres, meninas e meninos na capital, e a forma como esses conflitos
foram utilizados para defender ou não, as condutas sexuais e as
denúncias de violência.
Além disso, outro elemento trabalhado nesse capítulo foi a forma
como a sexualidade e as condutas infantis também se construíam nos
crimes que envolveram crianças, e de que modo estiveram marcadas
pelo gênero. Neste capítulo foram desenvolvidas algumas discussões
sobre a menoridade e a infância como questões fundamentais para
pensar os simbolismos construídos para as vítimas de crimes sexuais, e
também como elemento importante, segundo os discursos oficiais, para
a construção de uma sociedade sadia e higiênica. Assim, objetivei
averiguar a forma com que as ideias eugênicas, que circulavam entre os
médicos cearenses, e as preocupações públicas de assistência à infância
e aos menores pobres da cidade, contribuíam para a compreensão dos
42

delitos e das “perversidades” atribuídas a esses crimes, e para a


reafirmação dos “papeis sociais” a serem desenvolvidos por homens e
mulheres na sociedade fortalezense. A construção da maternidade como
questão central para a proteção jurídica das mulheres vítimas de crimes
sexuais, e como valor principal de disciplinarização das figuras
femininas, também foi discutida nesta parte do trabalho.
Pretendi, por fim, refletir sobre as relações sociais em que
estiveram firmados os crimes sexuais em Fortaleza, apresentando as
diferentes relações de poder em que as pessoas que fizeram parte desses
processos estavam inseridas. Nesse sentido, aparecerão como
personagens centrais na narrativa desse capítulo, não apenas as vítimas
de violência, mas também, as pessoas que faziam parte das suas
sociabilidades e suas relações parentais; e que também foram alvo de
questionamentos para melhor entender as condutas dessas vítimas.
Assim, busquei apresentar as diferentes relações cotidianas estabelecidas
por essas pessoas, indagando sobre quem eram, onde viviam, e em que
relações familiares estavam inseridas.
43

2 CAPÍTULO 1 – NA LETRA DA LEI: CLASSIFICANDO OS


CRIMES SEXUAIS E INTERPRETANTO A VIOLÊNCIA

2.1 REFORMAS URBANAS E OS MODELOS DE


FEMINILIDADE E MASCULINIDADE NA CIDADE DE
FORTALEZA EM FINS DO SÉCULO XIX E INÍCIOS DO
SÉCULO XX

O período de transição para o regime republicano no Brasil foi


marcado por uma grande efervescência de debates em torno dos temas
da cidadania, da honra e da moral, que deveriam ser os pilares de uma
sociedade moderna e republicana. Esses debates, fortemente travados
pelas elites, como juristas, médicos, intelectuais e políticos, tiveram
como objetivo central transformar a sociedade brasileira, de modo que
esta ficasse disciplinada para o progresso.
A construção das ideias de Estado e a consequente noção de
direitos e deveres, a abolição da escravatura em 1888, o direito das
mulheres, o estabelecimento do modelo de família burguesa, as
regulamentações na esfera do trabalho, a urbanização e o crescimento
das massas nas cidades foram apenas algumas temáticas – que vem
sendo levantadas pela historiografia social desse período – sobre as
preocupações que mobilizaram grandes discussões no âmbito da justiça
e do poder público desde o século XIX, e especialmente em inícios do
século XX, e que tiveram desdobramentos tanto na Constituição
republicana, como nos Códigos Penal de 1890 e Civil de 1916.
(ALBUQUERQUE, 2003; CHALOUB, 2001)
Entendendo que uma das principais preocupações dos reformistas
republicanos se referia à organização de uma proposta política que
disciplinasse a sociedade brasileira em moldes científicos, o
estabelecimento de um perfil familiar burguês – em que homens e
mulheres deveriam ter “papéis sociais” estabelecidos -, o que
consolidaria as bases para a modernização e o progresso do país, as
análises das relações de gênero, assim como as questões étnico-raciais e
as desigualdades de classe passaram a ter grande importância para
compreender os debates e os embates em torno da justiça brasileira, e
também, das ações políticas fundamentadas nos projetos modernizantes
de diferentes cidades no Brasil.
44

Em fins do século XIX e inícios do século XX a cidade de


Fortaleza, assim como outras capitais brasileiras, vivia um momento de
grande transformação econômica, política e social. A capital crescia
economicamente desde meados dos anos de 1860 quando passava a ser
uma cidade portuária e de grande importância para a exportação de
algodão, principal atividade econômica desse momento. Com a Guerra
de Secessão nos Estados Unidos, o Ceará passou a ser um dos principais
produtores e exportadores desse produto para abastecer o mercado
europeu, o que possibilitou um grande e rápido crescimento para a
cidade de Fortaleza e a formação de uma elite econômica, política e
intelectual, que atuou fortemente nas reformas urbanas da cidade, e
também, na importação de valores e comportamentos que deveriam ser
compartilhados por toda a população. (PONTE, 2010)
A partir dessas atividades exportadoras e das atividades
comerciais em desenvolvimento na capital, a paisagem urbana se
alterava intensamente aos moldes dessas elites, e junto a elas, um desejo
de tornar a cidade de Fortaleza mais moderna, “embelezada” e
desenvolvida. Para tal, controlar, regulamentar e sanear o espaço
urbano, e consequentemente, a vida das pessoas mais pobres da cidade
foram ações que mobilizaram a atuação de setores públicos e privados
fortalezenses.
O aumento populacional – que teve seu auge na década de 19204
do século passado e que era composto majoritariamente por pessoas
pobres – foi também, grande preocupação para a administração pública,
para as elites econômicas e para a Igreja, que construíam uma ideia de
pobreza diretamente relacionada à desordem, à criminalidade e à
degeneração moral. As sequentes secas vividas na região durante esse
período – 1877, 1889, 1900, 1915, 1932 – foi um dos fenômenos que
mais endossou o crescimento populacional de Fortaleza nesse momento,
e junto a ele, a chegada de um sem-número de retirantes que disputavam

4
Segundo o trabalho Faces da atividade policial na capital cearense (1916-
1930) do pesquisador Francisco Linhares Fonteles Neto, a polícia cearense –
diferentemente do censo 1920, que apontava pouco mais de 70 mil pessoas –
registrava que a cidade de Fortaleza chegava aos 100 mil habitantes durante
essa década, e, consequentemente, a um número ainda maior de pessoas pobres
e de problemas sociais nesse período.
45

os espaços da cidade com aquelas elites que buscavam viver a sua Belle
Èpoque5.
Além da questão da seca, Fortaleza também presenciou uma
intensa epidemia de varíola no fim do século XIX, que vitimou uma
imensa quantidade de pessoas, especialmente as retirantes da seca que
viviam amontoadas na cidade. Esse fenômeno acabou por intensificar a
grande preocupação com a normatização das casas e dos modos de vida
da população mais pobre a partir de preceitos higiênicos.6 Com a
tentativa de disciplinar o espaço urbano e as pessoas que ameaçavam a
ordem social da família, do trabalho e da higiene – as atividades
policiais, os discursos médicos e sanitaristas, assim como os discursos
jurídicos do período – atuaram, principalmente, contra aqueles e aquelas
que não estavam configurados (as) nos modelos de vida burguês, e não
endossavam os projetos modernizadores das elites fortalezenses.
Segundo alguns trabalhos sobre a cidade de Fortaleza nesse
período – demonstrando a situação de desemprego, de fome e
desigualdades vividas pela grande maioria das pessoas – ressaltaram que
a população mais pobre foi alvo de estigma, controle, e intervenções do
poder público, visto que eram figuras tidas como portadoras de hábitos
que ameaçavam o desenvolvimento da cidade.

Certamente, os mais pobres inquietavam as


camadas mais abastadas de Fortaleza, que, por sua
vez, gostavam de ver as ruas livres desses sujeitos,
pois não era difícil encontrá-los, uma vez que,

5
Termo utilizado no trabalho de Sebastião Ponte ao referir-se aos modos
“afrancesados” de organização urbana e de vivência das elites fortalezenses no
período.
6
Segundo Ponte, o Ceará foi palco, durante o século XIX, de diversas
epidemias, como a cólera, a varíola e febre amarela, e já era reconhecido como
um lugar propício a esses episódios. (PONTE, 2010, p. 84 e 85). No entanto, a
epidemia de varíola na década de 1870 deste século, foi a mais marcante em
termos e disseminação e mortalidade. Segundo a pesquisadora Letícia Lustosa
Martins, embora sabido que a epidemia de varíola atingiu personalidades da
elite fortalezense, esta passou a ser socialmente um estigma físico para aqueles
que sobreviveram à doença, devido às inúmeras marcas que ficavam pelo corpo.
Concomitante à pobreza, a epidemia de varíola vivida na capital cearense
também colaborou para o estigma das pessoas mais pobres da cidade.
(MARTINS, 2010).
46

chegados do interior, não tinham onde morar e


dificilmente eram incorporados ao mercado de
trabalho, acabando por dormir em praças, nos
bancos das avenidas, nos patamares das igrejas,
nas ruas ou vagões de trem, moradias de
condições insalubres, sem a mínima infra-
estrutura sanitária. (FONTELES NETO, 2005, p.
29)

A preocupação com o controle dos “vícios do corpo”, ou seja, do


alcoolismo, da “vagabundagem”, do ócio, e de todas as atividades
relacionadas às vivências das pessoas mais pobres7, consideradas de
cunho degenerativo, foram entendidas como fundamentais para a
construção dessa Fortaleza moderna e desenvolvida, que as elites
almejavam. O controle das pessoas pela lógica capitalista do trabalho
edificante foi um dos principais vieses da relação entre as elites e a
população pobre da cidade, e que servia como parâmetro, por parte do
poder público, para pensar as condutas desviadas dos comportamentos
idealizados nesse momento.
As reformas urbanas realizadas na cidade desde meados da
década de 1860 e intensificadas com o advento do governo republicano
como forma de construir uma capital desenvolvida em termos físicos e
humanos, mais do que uma política sistemática planejada conjuntamente
pelos diversos grupos da elite fortalezense, foi realizada a partir da
vontade comum desses grupos em importar padrões de sociabilidade
europeia, e de transformar Fortaleza em uma capital “avançada”. Como
afirma o historiador Sebastião Rogério:

Assim como em outros centros urbanos do País,


os principais agentes desse investimento
remodelador da capital alencarina8 foram os
grupos sociais ligados ao setor comercial,

7
Além das atividades relacionadas ao ócio e aos vícios, à repressão de
expressões populares, como as festas e bailes de carnaval também foram alvos
de desqualificação e repressão por parte da administração pública,
especialmente, em inícios do século XX. Sobre o tema consultar ver o trabalho:
A Cidade das Máscaras: Carnavais na Fortaleza das décadas de 1920 e 1930
(Mestrado em História – UFC).
8
Esse termo, utilizado pelo historiador, é relativo ao escritor José de Alencar.
47

fortalecidos pelo então crescimento dos negócios


de importação e exportação; e o contingente de
profissionais liberais, constituídos por médicos,
bacharéis, engenheiros e demais doutores egressos
das academias de ensino superior, fundadas, à
época, no Brasil.
Essas elites intelectuais, importa sublinhar,
desempenharam papel fundamental na construção
daquela nova ordem urbana. Assinaladas pela
racionalidade cientificista em voga na Europa,
formaram instituições de saber, compartilharam
dos mesmos anseios civilizatórios das classes
dominantes, e colaboraram estreitamente com o
Estado ao prestar a competência técnica de que o
Poder então carecia. Ao mesmo tempo que
galgavam prestígio científico e político, os grupos
de letrados pretenderam instaurar novos
conhecimentos e representações sobre a cidade,
fazendo circular um diversificado campo de
verdades e medidas voltadas para o ajustamento
da população às novas regras de vida e trabalhos
urbanos. (PONTE, 2010, p. 17 e 18)

Nesse contexto de controle e ordenamento, a família, que era


objeto dos discursos jurídicos, médicos e sanitaristas em diferentes
cidades do Brasil, também foi alvo de disciplina e de inúmeras disputas
cotidianas que envolviam a polícia, o judiciário, e os populares que
viviam na cidade de Fortaleza. Os modelos familiares defendidos por
muitas das elites brasileiras, e também fortalezenses, estavam alinhados
com os modelos burgueses de feminilidade e masculinidade apregoados
pela medicina e pela justiça, em que homens e mulheres deveriam
compor uma célula social, sendo as últimas, preparadas para dedicar-se
aos temas domésticos e familiares, e aos homens cabendo a ocupação
nas atividades públicas e provedoras da família. (COSTA, 1983)
As fortes tradições patriarcais que consolidaram os modelos de
família durante grandes períodos da história do Brasil, fizeram-se
presentes nesse período de transição para uma sociedade que se
transformava política, econômica e culturalmente. Proteger as mulheres,
diga-se zelar por sua integridade física (principalmente no sentido
sexual) e moral, e definir os seus direitos e deveres constituiu-se,
legalmente, como uma das ações mais pertinentes, e por vezes,
48

contraditórias, para a construção do modelo burguês de família.


(CAUFIELD, 2000)
Na construção dos modelos de bom trabalhador e de família ideal,
o sexo e a sexualidade passaram a ser entendidos como importantes e
estratégicos elementos de constituição de uma sociedade progressista e
desenvolvida, capaz de formar cidadãos livres de atividades
degenerativas. As discussões em torno de temas como o infanticídio, a
prostituição, a maternidade saudável, o matrimônio sadio, o divórcio, os
direitos das mulheres, a proteção da infância, assim como, as inúmeras
formas de violências e de delitos sexuais – tiveram como principal eixo
de atuação a disciplinarização e a regulamentação do que deveria ser
considerado proibido, do que deveria ser considerado ameaçador do
equilíbrio social, o que por sua vez, construía discursos sobre o que se
pretendia como ideal para a sociedade. (ANTUNES, 1999; RAGO,
1985; MATOS, SOIHET, 2003)
A sexualidade de homens e mulheres, assim como o “papel” que
estas deveriam assumir na sociedade em fins do século XIX e inícios do
século XX, foram expressos nos códigos republicanos visando a criação
de uma relação oficializada entre Estado e Família. Regulamentar o
matrimônio como uma instituição higiênica, as “funções” dos cônjuges e
a legitimidade da filiação, significava discorrer, também, sobre as
práticas sexuais que passavam a ser reconhecidas e legitimadas pelo
Estado, e também, sobre o que poderia ser considerado ameaçador dos
modelos familiares de cunho burguês.
Tomando como base o Código Penal de 1890, pode-se perceber
que as mulheres foram o grande alvo dos Títulos concernentes às
questões morais da legislação. São nesses títulos, denominados “Dos
crimes contra a segurança da honra e honestidade das familias e do
ultraje publico ao pudor” e “Dos crimes contra a segurança do estado
civil”, que elas apareceram mais diretamente retratadas, seja como
possíveis vítimas, seja como possíveis rés. O discurso composto no texto
desse Código atribui direta ou indiretamente uma maior
responsabilidade, no que se refere às questões morais, aos
comportamentos femininos. Crimes como Defloramento (art. 267),
Estupro (art. 268), Rapto (art. 270 e art. 271), Adultério ou Infidelidade
Conjugal (art.279), descritos nesses títulos foram (e são) bastante
interessantes para refletir sobre o que poderia atentar contra a honra das
mulheres, e por sua vez, ofender a ordem familiar. Exemplo bastante
49

interessante, é a descrição do Art. 279 referente ao crime de infidelidade


conjugal.

Art. 279. A mulher casada que commetter


adulterio será punida com a pena de prisão
cellular por um a tres annos.
§ 1º Em igual pena incorrerá:
1º O marido que tiver concubina teuda e
manteuda;
2º A concubina;
3º O co-réo adultero.
§ 2º A accusação deste crime é licita sómente aos
conjuges, que ficarão privados do exercicio desse
direito, si por qualquer modo houverem
consentido no adulterio.9

Nesse artigo podemos observar que as mulheres foram o grupo


principal a quem principalmente se buscava alcançar e controlar. Mesmo
que os demais passíveis de culpa por um adultério sejam citados em
seguida, foram às mulheres casadas que se relacionaram, primeiramente,
ao crime contra a segurança do estado civil. Segundo esse Artigo, a
mulher que vivesse qualquer tipo de relação extraconjugal estaria
passível de ter entre um e três anos de prisão. No entanto, em igual pena
apenas estaria o marido que mantivesse uma amante, ou seja, relações
fortuitas realizadas por um homem legalmente casado não seriam
classificadas nesse Artigo.
Levanto essas questões, para pensarmos a forma com que se
construíram hierarquias e simbologias de gênero nos textos jurídicos da
República Brasileira, e que acabavam por nortear a atuação de
delegados, advogados, promotores e juízes em diversas cidades do
Brasil, e também na cidade de Fortaleza. Apesar de tentar dar conta de
diferentes realidades, e de falsamente parecerem consensuais, os textos
jurídicos são frutos de grandes disputas por diferentes grupos políticos
em todo o país, e se configuraram fontes bastante ricas para pensar a
forma com que os novos “papéis” de gênero foram discutidos do ponto
de vista oficial e disciplinador, mas, principalmente, como foram lidos e
reapropriados no cotidiano criminal e judicial das diferentes cidades
brasileiras.

9
Código Penal da República do Brasil de 1890.
50

Nesse sentido, é importante frisar que para o caso de Fortaleza, os


órgãos de controle e repressão existentes na cidade entre fins do século
XIX e inícios do século XX – tais como os tribunais judiciários, a
polícia e os saberes higienistas – passaram por uma série de mudanças
relacionadas às suas configurações, principalmente, com o fim do
Império e início da República. No entanto, é concorde na recente
historiografia cearense que estes trataram de atuar no cotidiano dos
espaços urbanos, mapeando e intervindo, principalmente, nas
sociabilidades das pessoas mais pobres da cidade, no controle das
mulheres, dos menores, dos doentes, loucos e criminosos.
A organização mais sistemática do aparelho de justiça no Ceará, e
especialmente na cidade de Fortaleza, teve como marco a instalação da
Relação do Tribunal de Justiça do Estado em fevereiro de 1874, sediado
naquela capital, após grande período de subordinação à província de
Pernambuco durante o período Imperial. Embora alguns reconhecidos
intelectuais cearenses como o Senador Pompeu e Dr. José de Alencar
tivessem protagonizado grande atuação no cenário nacional durante o
século XIX, na tentativa de elaborar reformas judiciárias para
desenvolver o poder e a autonomia do judiciário em relação ao poder
executivo, e também, de verem contempladas a criação de recursos que
garantissem a autonomia da Província do Ceará no que concerne aos
assuntos da justiça, foi apenas após a instalação desse Tribunal, e
posteriormente, com a criação da Academia Livre de Direito do Ceará
em 1903, que a justiça cearense se estabeleceu e se consolidou na cidade
de Fortaleza, dispondo de recursos federais para tal. (NOBRE, 1974)
Apesar da criação do Tribunal e das tentativas de autonomizar e
separar os poderes judiciários, executivos e legislativos durante a
segunda metade do século XIX, o certo é que, principalmente com o
advento do período republicano e com as mudanças para um estado
federativo, os cargos e postos ocupados para o exercício das funções
judiciárias – como os Desembargadores e Juízes de Direito – estavam
intimamente ligados às indicações dos que compunham o poder
executivo, especialmente nas figuras dos Presidentes de Província, e
posteriormente, com os Presidentes de Estado; e fazia com que o próprio
Estado construísse a atuação da justiça de acordo com as necessidades
políticas vividas nesse período de transição republicana.
É necessário frisar que grande parte dos homens que atuaram
como Desembargadores, Juízes de Direito, Juízes Municipais,
51

Promotores, dentre outros cargos judiciários desse período de transição


republicana no Ceará, eram pessoas influentes política e
economicamente, e que transitavam em diferentes postos, inclusive no
legislativo e no executivo, e que também faziam parte da elite comercial
que se fortalecia das atividades econômicas realizadas na capital.
(NOBRE, 1974)
Exemplo disso foi o próprio filho do Senador Pompeu, o Dr.
Tomaz Pompeu de Souza Brasil, que fora considerado, por muitos
contemporâneos, um dos intelectuais mais importantes nas reformas
urbanas de Fortaleza. Além disso, foi fundador da primeira fábrica de
tecidos e fiação em Fortaleza em 1883 (aproveitando a importância do
algodão no período), além de ocupar o cargo de vice-presidente do
Estado, e ser um dos fundadores da Academia Cearense em 1894, lugar
onde escreveu sobre as reformas urbanas da cidade. (PONTE, 2010, p.
37) Assim como ele, vários outros bacharéis que demarcaram atuação na
cidade de Fortaleza, transitaram em cargos legislativos, e em cargos
judiciários nas diferentes cidades cearenses, e em diferentes estados
vizinhos; além de, também, exercerem atividades de magistério.
Outra instituição de controle bastante importante para a atuação
disciplinadora na cidade de Fortaleza foi a polícia. Naquele momento, o
aparelho policial da capital passou por uma série de mudanças.
Especialmente depois do período republicano, a tentativa de buscar uma
ação mais integrada com a justiça, e de tentar construir uma atuação
mais próxima ao cotidiano das pessoas, a polícia foi um órgão bastante
importante para registrar, classificar e reprimir as desordens, e
direcionar as resoluções de contendas cotidianas vivenciadas pelos
populares; principalmente, porque a atuação da polícia era vista como
extremamente estratégica para garantir a segurança das áreas urbanas
mais elitizadas, e também, para controlar o contingente de pobres e
retirantes que fazia com que a cidade de Fortaleza chegasse a ser no
final do século XIX, a sétima capital em população no Brasil. (PONTE,
2010, p. 18)
Dentre essas mudanças, uma das transformações mais marcantes
da polícia durante as primeiras décadas do século XX se deu mais
intensamente após a gestão do Chefe de Polícia10 José Eduardo Torres

10
Embora vinculada ao poder executivo, em que o Chefe de polícia era indicado
pelo Presidente do Estado, este deveria ser escolhido entre os bacharéis com
atuação no poder judiciário.
52

Câmara na década de 1920, quando buscava adotar uma forma


“moderna” de atuação policial marcada pela prevenção do crime, e não
mais apenas pela ação repressiva contra a desordem. Segundo Fonteles
Neto, houve nesse momento uma tentativa de construir uma imagem da
polícia e da figura do policial como extremamente ordeiros, cientes da
legislação vigente, e que atuariam, especialmente, nos espaços em que
existiria “mais propensão ao crime”, ou seja, os espaços de vivência das
pessoas mais pobres, como os bares e lugares de lazer. Esse perfil de
atuação, mostrado por este historiador, raramente acontecia no cotidiano
na cidade, pois a instituição carecia de maiores investimentos para um
efetivo que desse conta da massa populacional, e também, pelo próprio
perfil policial desse momento, que era composto por homens em geral
pobres, destituídos de preparação técnica, e muitas vezes, analfabetos.
(FONTELES NETO, 2005)
Nesse sentido, para a Fortaleza de inícios do século XX, os
crimes e delitos que compuseram o cotidiano da cidade nesse momento,
estiveram diretamente marcados pelos processos de reformas e
urbanização vividos pela cidade desde metade do século XIX, mediante
o crescimento econômico e busca por desenvolvimento. A tentativa de
“afrancesamento” da cidade, pela tentativa de estimular os padrões de
vida e comportamentos europeus, assim como a tentativa de tornar
Fortaleza uma cidade limpa, higiênica, disciplinada, moderna, e livre de
grandes epidemias, marcou intensamente as atividades de
criminalização, repressão e disciplinarização das formas de vida das
pessoas pobres da cidade, e consequentemente, marcavam uma tentativa
de cobrar comportamentos que tomavam como parâmetro os modos de
vida das mulheres e homens da elite. Esses fatores serviram também,
como forma de fortalecer os discursos científicos da época, proferidos
pelos bacharéis, e que fundamentavam a atuação dessas reformas e
intervenções urbanas.
Por isso, em um contexto cujos segmentos mais pobres eram
entraves para a modernização de Fortaleza – como os vários retirantes
que sazonalmente chegavam à cidade e se aglomeravam junto à
população pobre, doente e considerada sem bons modos higiênicos e
culturais – as instituições de disciplina, as campanhas assistencialistas e
os saberes científicos somaram-se em uma atuação que buscava,
principalmente, agir sobre esses sujeitos que ameaçavam o
desenvolvimento físico e moral, e o progresso social da capital. Essa
53

ação, não podia limitar-se às atividades repressoras e excludentes, mas


principalmente, deveriam se realizar de forma positiva, preventiva e
educativa.
Assim, como em cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo, que
também foram marcadas por esses discursos, Fortaleza vivia várias
transformações sociais e urbanas que visavam o seu progresso e
desenvolvimento. No entanto, diferente daquelas, essa cidade
recorrentemente era ameaçada pelas instabilidades da política local –
principalmente em nível estadual, que era historicamente governado por
oligarquias políticas – e do fenômeno das secas que produzia os muitos
“flagelados”, que vindos do interior e de várias paragens do Nordeste
“invadiam” a cidade; e aos olhos das elites, engrossavam a
criminalidade, contribuíam para a disseminação de doenças e para a
promiscuidade.
Desse modo, a perspectiva geral proposta nesse trabalho é
entender como os modelos de feminilidade e masculinidade, idealizados
pelas elites fortalezenses, eram construídos nesse período de tentativas
de disciplinarização e de fortes tensões sociais, em que os saberes
científicos – representados pela classe de bacharéis – e culminadas nas
ações do poder público, eram diretamente conflitados com as formas de
vida dos populares, e o modo como esses saberes interferiam nas
compreensões de masculinidade, feminilidade, sexo, sexualidade e
violência. Nesse sentido, entendo que esse trabalho vem se somar a
vários outros que se dedicaram ao estudo desses temas e que tiveram os
processos criminais como fontes centrais de investigação.
E é nesse sentido que busco pensar como os delitos de cunho
sexual foram objeto de controle, disciplina e negociação na cidade de
Fortaleza, e também, foram questões de disputas sobre aqueles modelos
de feminilidade e masculinidade compositores desse momento. Por isso,
foi de grande pertinência pensar de que modo a polícia, a justiça e os
médicos legistas da cidade lidaram com os delitos e crimes relacionados
ao sexo e às práticas sexuais “desviadas” que chegaram às delegacias e
tribunais na capital, e de que forma foram elaboradas cotidianamente as
interpretações sobre a legislação republicana voltada para a
regulamentação da moral, da família e da sexualidade.
É importante destacar que grande parte dos crimes aqui
analisados se relacionava a violências vivenciadas pelas camadas mais
pobres da população, o que não significa entender que essas violências
54

acontecessem exclusivamente entre as camadas mais pobres.11 O


aspecto do controle exercido pelo poder público sobre essas pessoas
nesse momento, por sua vez, não pode ser pensado como o único motivo
que levou os casos de crimes sexuais às delegacias da cidade. A vontade
de disciplinar e controlar percebidas entre os representantes da ordem na
capital, assim como a consideração, por parte dos populares, de ver nos
ambientes policiais e judiciais uma possibilidade de resolução de
conflitos foram elementos que se somaram em muitas dessas ações.
Muitos populares buscaram nesses espaços uma forma de solucionar
violências vivenciadas por eles, por familiares ou por vizinhos. Daí
portanto, a importância de pensar o caráter educativo do decurso dessas
ações.
Nesse sentido, ao pensar esse tipo de violência foi fundamental a
observação da forma como elas foram narradas, significadas e
disputadas entre as diferentes pessoas, que portavam diferentes
interesses durante uma ação processual; e principalmente, a forma com
que essas disputas discursivas construíram e/ou reforçavam relações de
gênero. Quando pensamos o tema da moral sexual, dos simbolismos e
das relações de gênero, nem sempre foram identificados valores tão
divergentes entre as camadas populares e os representantes da justiça.
Muitos simbolismos quanto ao corpo das mulheres, ao recato, à
virgindade como idealizações de feminilidade, por exemplo; assim
como uma masculinidade baseada em aspectos de violência, eram
muitas vezes reforçados em diversos depoimentos das camadas
populares.
Muitos dos valores familiares burgueses que eram fincados como
modelos de normatização pelas elites, principalmente quanto aos
aspectos patriarcais de dominação masculina, eram recorrentemente
corroborados e debatidos pelas camadas populares. Desse modo,
analisar esses valores como disputas discursivas que consideram
variadas diferenças sociais, como as raciais, de gênero, as hierarquias de
idade, além das desigualdades econômicas foram fundamentais para
complexificar um olhar sobre os debates em torno da violência sexual.

11
Essa questão será retomada no terceiro capítulo deste trabalho.
55

2.2 DEFLORAR, ESTUPRAR OU ATENTAR CONTRA O


PUDOR: UMA CONSTRUÇÃO DA VIOLÊNCIA SEXUAL

2.2.1 Entre a violência física e a violência moral

Em 1924, o artista José Rodriguez da Graça, 30 anos, solteiro,


residente em Fortaleza, sabendo ler e escrever declarou diante do Juiz
Municipal:
(...) que conhece a offendida Astrogilda Burritte
Pessôa e pode afirmar, por morar na mesma rua
em que reside a mãe da offendida, ser esta de
muito bom comportamento e viver honesta e
recatamente; que sabe de sciencia própria que o
acusado frequentava assiduamente a casa de d.
Rosa, mãe da ofendida e, uma occasião assistiu
quando Leôncio Pereira Lima fora interrogado a
respeito das suas intenções, frequentando a casa
da offendida. E respondera que pretendia casar-
se com Astrogilda; que em um dia de um dos
meses do anno passado, o depoente soube que a
offendida havia sido deflorada por Leôncio
Pereira Lima; que deste fato soubera defronte do
teatro José de Alencar, contado pela mãe da
offendida, quando ali se achava em serviço de sua
profissão, que é de vendedora de doces e café; que
na mesma ocaseão soubera que, quem chamava a
atenção de d. Rosa para o que ocorrera com a
offendida, fora Oscar Pedreira, segundo lhe
affirmara a mesma d. Rosa e havia feito promessa
de casamento; que conhece a ofendida ha mais de
quatro annos e pelos conhecimentos que tem com
a sua familia, pode affirmar que a mesma não
tem mais do que quinze annos de idade. Ao Dr.
Promotor de Justiça respondeu: que não sabe
informar o dia em que se deu o facto delictuoso de
que se occupa a denuncia , mas pode affirmar que
foi levado a effeito na própria casa da offendida,
no anno passado. (...). 12 (grifos meus)

12
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:
Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 01, Processo Nº 1924/01.
56

Pesquisando os casos de crimes sexuais no início do século XX


na cidade de Fortaleza, em meados de julho de 2011, encontrei um caso
de Estupro de uma moça chamada Astrogilda Berrutti. O crime, que me
parecia absolutamente semelhante às dezenas de crimes de
Defloramento existentes no Arquivo Público do Estado do Ceará, me
chamou atenção pela classificação no Art.268 do Código Penal da
República Brasileira: o Estupro.
No trecho declarado pelo artista13 José Rodriguez da Graça foi
esboçado alguns dos principais argumentos que poderiam endossar uma
definição do crime de Defloramento.14 A testemunha afirma com
propriedade, “por morar na mesma rua”, que a ofendida era uma moça
que vivia “honesta e recatadamente”, que o acusado do crime
frequentava constantemente a sua casa, e que este já havia proferido
publicamente as suas intenções em firmar compromisso com a vítima.
Essas três afirmações foram proferidas não apenas pela testemunha
acima, mas também, pelas sete testemunhas que fizeram parte desse
caso.
Para mim, iniciando os estudos sobre essa temática, esses
argumentos poderiam ter sido suficientes para classificar o caso da moça
como crime de Defloramento e não como Estupro. Segundo o Código
Penal de 1890, a principal distinção entre os crimes de Defloramento e
de Estupro era o emprego de violência para abusar da vítima, seja ela
virgem ou não. O Defloramento era definido como:
Art. 267. Deflorar mulher de menor idade,
empregando seducção, engano ou fraude:
Pena – de prisão cellular por um a quatro annos.15

Auto de declaração das testemunhas. p. 43.


13
Exercer a profissão de “artista” significava ser artesão e/ou marceneiro.
14
É importante destacar que os significados do verbo Deflorar já nos trazem
alguns indícios sobre as questões morais pertinentes a esse artigo. Segundo o
dicionário da língua portuguesa on-line, o verbo significa “1.Tirar a flor ou
flores a; desflorar. 2. Tirar a virgindade de. 3. Fazer perder o viço, a beleza”.
Disponível em: http://www.dicio.com.br/deflorar/ Nesse sentido, é interessante
pensar os significados de gênero com que a palavra é colocada no texto da lei.
Deflorar significava – e ainda hoje em muitos contextos significa – macular
algo de grande delicadeza, ou seja, degradar uma “flor”, retirar a sua inocência.
15
Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil de 1890.
57

A partir dessa definição, grande parte dos crimes contra a honra


que envolviam desvirginamentos de moças menores de idade, e que
podiam ser classificados como delitos que aconteceram pelo uso da
sedução, do engano, do uso da boa intenção das ofendidas, e
principalmente, sob promessa de casamento, eram frequentemente
classificados como Defloramento.
Esta categoria de crime, na maioria dos casos, se definia em
acontecidos cujo denunciado abusava das “boas intenções” da moça
honesta. Segundo alguns juristas brasileiros, prometer casamento
alterava demasiadamente os ânimos das mulheres, já que se tratava de
algo tão almejado por elas. Em muitos casos, o Defloramento era
entendido como um adiantamento dos direitos do futuro marido.16 Na
ausência do cumprimento das promessas, as denúncias desses crimes
poderiam ser usadas como forma de pressionar a “reparação do mal” por
parte do denunciado, ou seja, em muitos casos significava fazê-lo casar
com a ofendida.17
Pelo mesmo Código, o crime de Estupro era definido nos
seguintes Artigos:

16
As promessas de casamento como algo compositor dos crimes de
Defloramento no início da República brasileira foi tema bastante desenvolvido
no primeiro capítulo do livro “Em defesa da honra” da brasilianista Sueann
Caufield. Trabalhando os aspectos debatidos por um dos juristas mais
importantes sobre a questão da moral no início do século, Viveiros de Castro, a
autora apresenta a forma com que o autor teorizou sobre os crimes de
Defloramento em caso de promessas de casamento. Segundo ele, em muitos
desses casos, a mulher honesta acabava “adiantando os direitos do marido”,
fazendo a sedução, o engano ou fraude serem definidos pela falsa promessa.
(CAULFIELD, 2000, p. 78).
17
Na historiografia brasileira, inúmeros foram os trabalhos que abordaram os
diversos usos dados aos crimes de Defloramento, especialmente no primeiro
momento da República. Destaco, por sua vez, as pesquisas que mais
influenciaram a realização deste trabalho. CAULFIELD, Sueann. Em defesa da
honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de janeiro (1918-1940).
Campinas: Editora Unicamp, 2000; ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas
perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle
Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989; LESSA, Andréa R. da Silva. Moças
Abusadas: concepções de honra e conflitos amorosos em Santo Antônio de
Jesus – Bahia (1890-1940). Santo Antônio de Jesus: UNEB. Dissertação de
Mestrado – UNEB, 2007.
58

Art. 268. Estuprar mulher virgem ou não, mas


honesta:
Pena – de prisão cellular por um a seis annos.

§ 1º Si a estuprada for mulher publica ou


prostituta:
Pena – de prisão cellular por seis mezes a dous
annos.

§ 2º Si o crime for praticado com o concurso de


duas ou mais pessoas, a pena será augmentada da
quarta parte.

Art. 269. Chama-se estupro o acto pelo qual o


homem abusa com violencia de uma mulher, seja
virgem ou não.

Por violencia entende-se não só o emprego da


força physica, como o de meios que privarem a
mulher de suas faculdades psychicas, e assim da
possibilidade de resistir e defender-se, como
sejam o hypnotismo, o chloroformio, o ether, e em
geral os anesthesicos e narcoticos.18

Desse modo, segundo o Código Penal brasileiro de 1890, estuprar


significava abusar de uma mulher com covardia, principalmente quando
“praticado com o concurso de duas ou mais pessoas”, abuso de força e
privação de sentidos. Diferentemente do Defloramento, o crime de
Estupro tendia a contemplar um leque maior de mulheres, já que a
presunção da honestidade, muitas vezes entendida como virgindade, não
era um pré-requisito. Esse artigo podia ser uma classificação viável em
casos de abuso contra mulheres adultas, casadas, viúvas ou prostitutas,
já que a necessidade de virgindade e/ou honestidade não era uma
prerrogativa. No entanto, grande parte dos casos de Estupros
encontrados na cidade de Fortaleza entre os anos de 1900 e 1940, que
totalizaram dezessete (17) casos, apenas três (3) eram referentes às
mulheres maiores de idade, ou seja, acima de 16 anos, segundo o código
de 1890.

18
Código Penal da República do Brasil de 1890.
59

Na definição de Estupro no Código Penal, assim como nas


questões que definem o Defloramento, não fica explícito o que poderia
ser considerado um “abuso com violência”. Embora o termo seja o
definidor do crime, não é desenvolvida uma explicação mais detalhada
de quais práticas e quais gestos poderiam ser considerados “abusar de
uma mulher”, atividade que na realidade fica a cargo das interpretações
dos representantes da lei: delegados, advogados, promotores e juízes; e
também dos médicos no momento da realização do corpo de delito. As
interpretações levantadas para esses crimes acabavam sendo bastante
relativizadas de acordo com as pessoas envolvidas nos casos, e muitas
vezes, menos no ato criminoso em si.
Ao refletir sobre os crimes passionais cometidos por maridos e
parceiros amorosos no início do século XX, a historiadora Andréa
Borelli levanta algumas dessas questões, ao entender que nos casos de
crimes contra a honra, muitas vezes, o ato em si de violência era menos
valorizado do que as questões que seriam motivadoras dos crimes. Essa
perspectiva, muitas vezes, possibilitava um esvaziamento das definições
de violência, ao focarem na análise das motivações que podiam condizer
ou não, com uma ordem moral coletiva. Para o caso dos assassinatos de
mulheres pelos maridos, a motivação da “defesa da honra” por parte
desses homens em relação a uma suposta conduta desregrada das
esposas, poderia se configurar não apenas como um atenuante, mas
também como uma justificativa para a realização do crime. (BORELLI,
2008).
Embora tratando de crimes de ação pública, como os assassinatos,
diferentemente de grande parte dos crimes aqui estudados, as tensões
existentes entre pensar a lesão física e as ponderações morais sobre a
violência, também estiveram presentes nos delitos de cunho sexual na
cidade de Fortaleza. Na própria legislação foi diferenciada a penalidade
dos estupros praticados contra “mulheres publicas” e contra “mulheres
honestas”, o que explicitava não só a dupla moral em relação às
mulheres, mas também, servia como parâmetro discursivo que
hierarquizava as violências sexuais de acordo com quem era vítima. A
violação sexual realizada por um homem ao corpo de uma mulher,
embora devesse ser punida, era respaldada por algumas licenciosidades
morais, dependendo da vítima em questão.
Entendendo a relação dos crimes de Estupro com os demais
crimes, é possível pensar que cometer um abuso fosse, geralmente,
60

penetrar uma mulher com uso de violência, mesmo que não fosse
evidenciada, nos artigos penais, a questão da penetração ou da cópula
carnal. Nesse sentido, é possível entender que outro tipo de “abuso” de
cunho sexual que não envolvesse necessariamente uma cópula carnal, na
grande maioria dos casos, não era fator suficiente para classificar um
crime como Estupro, e sim como atos atentatórios ao pudor (Art.266),
ou Ferimentos Leves (Art.303). Assim, a partir do texto do Código
Penal de 1890, a ideia generalizada de abuso e violência física
constituintes do crime de Estupro vão ao encontro à consumação da
penetração sexual, e ao uso da força física seria especialmente para esse
fim. Nesse sentido, a ação dos médicos-legistas passou a ser bastante
importante na definição desses crimes sexuais, na medida em que, a
medicina e seus procedimentos científicos serviam como mecanismos
centrais, e falas autorizadas, de definição dos elementos constitutivos
dos crimes praticados com violência.
Outra característica fundamental do Código Penal referente ao
Estupro era a definição explícita do gênero das vítimas e dos réus. O
artigo prevê uma definição de quem pode ser estuprador e de quem pode
sofrer um estupro ao definir que este crime era um ato “pelo qual o
homem abusa com violência de uma mulher”. Nesse sentido, um ato de
violência cometido por um homem contra outro, não poderia ser
classificado como Estupro, mesmo que se tratasse de um ato que
buscasse uma atividade penetrativa e fosse realizado com uso de
violência. Alguns dos trabalhos que tiveram tanto os crimes de
Defloramentos quanto os de Estupro como fontes centrais apontaram
que as características gerais desses crimes eram as preocupações com a
sexualidade das mulheres e a “preservação de sua honra”, ao buscar
regulamentar as várias experiências sexuais fora da norma que estas
poderiam vivenciar. Daí, portanto, o fato dos crimes de Defloramento e
de Estupro, além dos demais descritos nesses títulos – terem se
constituído como ferramentas legais que pretendiam abarcar as relações
entre sexo, pudor e violência que tinham as mulheres como
pressuposição.
O único artigo que abriu margens para práticas que não
especificavam as mulheres como vítima foi o crime de Atentado ao
Pudor. Segundo o Código de 1890, este crime era definido como:

Art. 266. Attentar contra o pudor de pessoa de


um, ou de outro sexo, por meio de violencias ou
61

ameaças, com o fim de saciar paixões lascivas ou


por depravação moral:

Pena – de prisão cellular por um a seis annos.

Paragrapho unico. Na mesma pena incorrerá


aquelle que corromper pessoa de menoridade,
praticando com ella ou contra ella actos de
libidinagem.19

O Artigo 266 era ainda mais vago em termos da definição sobre


quais atos, gestos ou práticas deveriam ser considerados atentatórios ao
pudor. Ao definir a violência do ato pelas suas motivações, ou seja,
“com o fim de saciar paixões lascivas ou por depravação moral”, o
artigo abria margem para uma ampla interpretação do que poderia ser
considerado um ato atentatório o pudor. Na verdade, a principal
diferenciação deste artigo para os de Estupro e Defloramento era a
possibilidade de reconhecer que além das mulheres, os homens também
poderiam assumir a condição de vítimas de uma violência carnal.
Nos crimes sexuais encontrados na cidade de Fortaleza, esse
procedimento foi bastante verificável. De acordo com um levantamento
das classificações que envolveram os delitos cometidos durante o
período vigente do Código Penal (1890-1940), os crimes de Estupro e de
Atentados ao pudor possuíam um perfil de vítimas bastante dividido
pelo sexo.

Tabela 1. Sexo das pessoas envolvidas nos processos de Estupros e Atentados


ao pudor
Estupros Atentados ao pudor
Acusados(as) Vítimas Acusados(as) Vítimas
Mulheres - 18 - 2
Homens 20 - 6 4
Outros - - - -

Nesse sentido, a partir da pesquisa realizada sobre os crimes


sexuais na cidade de Fortaleza no início do século, o que busco
problematizar neste tópico é a forma com que foi compreendida a ideia

19
Código Penal da República do Brasil de 1890.
62

de violência sexual, e como foi interpretada a materialidade dessa


violência; já que as lacunas e as poucas definições do Código de 1890,
no que se refere aos crimes sexuais, abriram variadas possibilidades de
interpretações, muitas vezes ambíguas e contraditórias, e estiveram
extremamente marcadas por discursos e simbolismos de gênero.
Entendo que a ideia de sexualidade desejável para a sociedade
brasileira em fins do século XIX e inícios do século XX vinha sendo
construída a partir do parâmetro do casamento como instituição de
higiene social, ou seja, que este era considerado um ato de passagem
para uma sexualidade saudável e útil para a sociedade. Nesta pesquisa,
foi bastante comum a observação de que a possibilidade legal e
biológica para o exercício do casamento, compôs grande parte das
interpretações sobre a classificação dos crimes sexuais, sobre o nível de
violência, e sobre a “normalidade” das práticas criminalizadas. A partir
da observação dos dados retirados dos processos criminais, a ideia de
sexo reprodutivo como princípio de normalidade, foi um dos parâmetros
moralmente construídos e/ou reforçados tanto pela legislação federal,
como também, pelas interpretações dos representantes da justiça,
implicando em relações bastante complexas entre as definições dos
crimes de Defloramentos, de Estupros e Atentados contra o pudor.
Nos crimes de Defloramento, o casamento poderia, e muitas
vezes era, considerado uma forma de “pena” para o delito20. Existia
nesse procedimento uma possibilidade física e moral entre o acusado e a
vítima em materializar essa ação, ou seja, estes deveriam estar em
condições biológicas para casar. Nos crimes de Estupro e Atentados ao
Pudor encontrados aqui, a violência física, a pouca idade, a “fraca”
constituição da vítima, e as práticas “anti-naturais” (como a cópula anal)
foram um dos viezes centrais encontrados para as classificações,
adjetivações e desdobramentos punitivos realizados em cada caso.
Dos crimes de atentados contra o pudor encontrados durante esse
recorte – totalizando seis casos – quatro deles, tiveram como vítimas
meninos menores de idade. Para a minha surpresa – partindo da leitura
de uma série de trabalhos que evidenciaram a ocorrência dos crimes
sexuais e contra a honra, especialmente, mostrando a forma com que as
mulheres e seus corpos eram entendidos pelos discursos moralizadores

20
Sueann Caufield e Martha Abreu também apontaram que essa era, também,
uma forma de desdobramento da ação criminal dos crimes de Defloramentos no
Rio de janeiro nas primeiras décadas do século XX.
63

da justiça – a presença de vítimas de crimes sexuais do sexo masculino


me chamou atenção, porque compunham a maioria dos crimes
atentatórios ao pudor. Somada a essa questão, os dois casos de
Atentados ao pudor praticados contra meninas, foram classificados
como tal, pela falta de comprovação empírica da cópula carnal. Ou seja,
os crimes de abuso contra meninas que não fossem materializados pela
penetração eram classificados no Art. 266, o de Atentado ao pudor.
Embora os crimes contra a honra sejam movidos por uma ação
criminal de foro privado, pois que a ação é realizada como cobrança de
uma lesão ou infração praticada de indivíduo contra indivíduo, e que não
necessariamente a contenda a ser resolvida corresponderia a algo de
interesse público geral – como no caso dos crimes contra o patrimônio,
de ação pública – é interessante destacar que o papel moral da justiça e
da medicina em Fortaleza, nesse momento, se deu, principalmente, por
uma ação educativa que nortearia, a partir das suas ações e
interpretações sobre os casos de foro privado, perfis idealizados de
condutas e práticas sexuais, e consequentemente, de mulheres e homens
ideais em termos de sexualidade, feminilidade e masculinidade.
E é nesse sentido, que as perguntas levantadas a partir das leituras
dos processos de crimes sexuais encontrados e selecionados para este
trabalho foram elaboradas: Quais os elementos que foram considerados
fundamentadores do aspecto violento dos crimes de Estupro? E quais os
que fundamentaram os crimes de Atentados ao pudor? Quais as tensões
existentes entre os marcadores de violência física e violência moral
colocados nas interpretações do Código Penal de 1890? E finalmente, de
que modo às classificações colocadas para esses crimes foram
constituídas por relações de gênero?
Embora as práticas médicas e jurídicas tentassem criar
procedimentos objetivos e científicos para a definição dos elementos
constitutivos de um crime, uma ampla historiografia que tratou de
refletir sobre a criminalidade no Brasil em fins do século XIX e inícios
do século XX, demonstrou, que os procedimentos adotados como
parâmetros de cientificidade estavam permeados de disputas políticas,
de preconceitos, de inconsistências, de vontade de disciplinar as formas
de vida dos segmentos mais pobres, das raças “inferiores” e das
mulheres; e por mais que se buscasse uma forma unívoca de atuação, o
cotidiano das práticas policiais, da justiça e da medicina no Brasil, e
também na cidade de Fortaleza, era repleto de indefinições e incertezas.
64

2.2.2 Materializando a violência

Ora evidenciado pela violência física, ora aparecendo como delito


que mais atinge a moralidade do que a vítima em si, os vinte e cinco
crimes de cunho sexual aqui estudados, expuseram algumas das
principais discussões e contradições que nortearam os debates em torno
do caráter doutrinário do Código Penal de 1890, e das práticas
científicas de materialização das provas criminais.
Considerado por muitos de seus críticos influenciados pela Escola
Positiva do Direito como um código excessivamente Clássico – em que
o aspecto de tratar igualmente os indivíduos na sociedade não seria
suficiente para atuar mais diretamente e correcionalmente nos grupos
que se constituíam ameaças sociais – a legislação penal de 1890 fora
considerada por muitos juristas e por boa parte das elites brasileiras
como ineficiente para lidar com os problemas disciplinares que carecia à
sociedade que cambiava para o progresso. Ou seja, que esta legislação
penal republicana estava diretamente relacionada a um caráter punitivo e
não educativo de atuação.
Desse modo, as críticas de juristas e outros intelectuais que
acreditavam nas perspectivas positivistas de organização das instituições
do Estado, entendiam que o Código de 1890 era ineficiente na
aniquilação dos “germens” 21 do crime, pois se centrava, principalmente,
no caráter individualizado da punição. Os sociólogos Marcos Alvarez,
Fernando Salla e Luís Sousa afirmaram sobre o Código Penal de 1890,
que
mais importante do que enfocar o papel da
legislação penal enquanto instrumento de
repressão e controle social dos movimentos
sociais, ou mesmo enquanto instrumento de uma
ética do trabalho, é ressaltar que desde sua
promulgação o Código de 1890 foi considerado

21
Segundo o jurista Aureliano Leal, reconhecido Chefe de Polícia do Rio de
Janeiro no início do século, muitos são os fatores encontrados na legislação
criminal que demonstraram a pouca eficiência dessa legislação sobre a questão
“dos germens do crime”; segundo ele, em publicação de 1896, “a manutenção
do júri, a prescrição dos crimes, a fiança, a divisão da ação penal em pública e
privada, a anistia, a graça, o perdão do ofendido, o livramento condicional, a
impunidade do mandante, a reincidência e as nulidades processuais”. (LEAL
apud, ALVAREZ; SALLA; SOUZA, 2003).
65

como incapaz de dar conta dos novos desafios


colocados pelas transformações sociais e políticas
do período republicano. (ALVAREZ; SALLA;
SOUZA, 2003)

Nesse sentido, a forma de constituição da materialidade da


violência sexual nos processos de crimes de Estupros e Atentados ao
pudor era um exercício de referenciar tanto os danos físicos e
“observáveis” concretizados no corpo das vítimas, como principalmente,
as práticas que lesionavam a moralidade da pessoa e de toda a
sociedade, e poderiam constituir um ameaça para os valores vigentes.
Nesse mesmo aspecto, o crime de Lenocínio, mais do que pensar a
subjugação de possíveis vítimas ao comércio do sexo, o que se punia era
a imoralidade desse tipo de atividade. Assim, muitas dos crimes sexuais
encontrados na cidade de Fortaleza se constituíram em práticas que
ameaçavam toda uma ordem moral e “natural” do sexo e da sexualidade,
e não somente eram criminalizadas pelos danos realizados por uma
pessoa contra outra. Essa tensão pôde ser observada pela forma com que
médicos e representantes da justiça relatavam e adjetivavam as
“perversidades” correspondentes aos casos de crimes sexuais em
Fortaleza.22
Os procedimentos científicos que eram objetivados pela polícia,
pelos juristas e pelos médicos-legistas fortalezenses – que buscavam
formas eficientes de reconhecimento da autoria do crime, e de
elaboração de corpo documental para provar ou não uma ação delituosa
– eram repletas de valores morais que construíam as ideias de violência
nas interpretações subjetivas dos representantes da justiça, de acordo
com as pessoas envolvidas nos processos criminais. Esses discursos
oficiais, fortemente relacionados às ideias e procedimentos modernos e
neutros, buscavam na “objetividade” da definição do crime, uma forma
de disciplinar as práticas e atos sexuais considerados desviantes.

22
Os bacharéis de Fortaleza, que atuaram nas primeiras décadas na capital eram
formados primeiramente nas Faculdades de Direito de Recife, e depois de 1903,
com a fundação da faculdade de Direito do Ceará, passaram a obter formação na
própria capital. É importante perceber, que muitos desses bacharéis entraram em
contato com as ideias positivistas de atuação jurídica características da
Faculdade de Direito de Recife, lugar onde atuaram importantes teóricos das
teorias raciais brasileiras, como o sergipano Sílvio Romero.
66

Retomo aqui um caso anteriormente citado, o de Astrogilda


Berritte. Apesar de cumprir todos esses quesitos do Art. 267, ou seja,
Defloramento, o crime fora classificado no art. 268, o Estupro. Partindo
desse caso, as problemáticas que surgiram para a abordagem da
classificação desses crimes foram: Quais as principais questões que
fundamentavam os crimes de Estupro? Nesses casos, o que poderia ser
considerado, no cotidiano, abusar com violência de uma mulher? Que
tipos de práticas possibilitavam uma definição da violência sexual? Que
tipos de atos foram considerados violentos pelas várias pessoas
depoentes nos processos de Estupro?
Para os processos encontrados em Fortaleza, a composição do
Estupro podia ser observada principalmente pela cópula carnal
(penetração peniana), pela violência para fins libidinosos, e pela
confirmação de que a vítima não teve capacidade de se defender.
Segundo o parecer produzido no “Sumário de culpa” elaborado pelo Juiz
Dr. Gabriel José Cavalcante23, a justificativa dada para a ocorrência de
violência era diferente das definições propostas no Art. 269, em que se
definia o que era considerado atos de violência para os crimes carnais.
Dizia:
O sr. 1º Promotor de Justiça dennunciou Leoncio
Pereira Lima como incurso na penalidade do art.
268, combinado com o art. 272 do Código Penal,
por ter em dias de julho do anno p. passado, á rua
S. Bernardo nº 197, nesta cidade, estuprando a
menor Astrogilda Burritte Pessôa, de 15 annos
incompletos.
Iniciando o summario de culpa, posterior
depoimento sete testemunhas, a revelia do réo,
que foi citado por edital visto achar-se ausente. O
representante do ministerio publico opina pela
pronuncia do réo, em face da prova (recebida). O
que todo examinado: Considerando que estupro é

23
Este Juiz aparece também em outros processos durante o período aqui
estudado. Segundo o historiador Geraldo Nobre, Gabriel José Cavalcante era
filho do reconhecido capitalista cearense, José Cândido Cavalcante, um dos
presidentes da Junta Comercial do Ceará entre o fim do século XIX e inícios do
Século XX. Formou-se na Faculdade de Direito de Recife no ano de 1906.
Ocupou os cargos de Juiz de Direito substituto em 1907, e depois de 1930 foi
nomeado para o Superior Tribunal de Justiça. (NOBRE, 1975, p. 247-248)
67

o acto pelo qual o homem abusa com violência de


uma mulher, seja virgem ou não, conforme definiu
a nossa lei penal. Assim são elementos
constitutivos do delicto:
1º a copula carnal;
2º a violência.
Considerando que no caso em apreço ficou
demonstrado que houve a copula carnal (fls.6-
7); Considerando que o segundo elemento se
acha provado, pois consta nos autos que a
offendida, ao ser desvirginada, tinha menos de
16 annos de edade. (fls.10, certidão do registro
civil, e fls.22-35, justificação de edade), e,
segundo preceitua o nosso Codigo Penal, art.
272, é previsível a violência toda vez que a
offendida seja menor de 16 annos;
Considerando que, além disso, as testemunhas
dizem que a offendida vivia recatadamente em
companhia de sua mãe, tendo apenas a frequentar-
lhe a casa o réo, que era tido como seu noivo;
assim, considerando que o réo empregou
seducção para obter o consentimento da
ofendida, elemento esse, aliás, desnecessário
para a constituição do crime, pois, sendo a
mesma offendida menor de 16 annos era
manifesta a sua condição de incapacidade.
Considerando o mais que consta dos autos:
Julgo procedente a denuncia da fls. 2 para
pronunciar como (ilegível) réo Leoncio Pereira
Lima incurso na sanção do art. 268, combinado
com o art. 272 do Código Penal, sujeitando-o a
prisão e livramento. O escrivão lançou-lhe o nome
no rol dos culpados e expeça nesta promotoria a
justiça de Cascavel, onde consta achar-se
residindo o réo, afim de ser effectivada a sua
prisão.(...)” (grifos meus).24

24
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:
Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 01, Processo Nº 1924/01,
Parecer do Juiz. p 58.
68

Segundo a conclusão do Juiz, a denúncia procede pelo fato de os


elementos correspondentes ao crime de Estupro estarem comprovados.
No trecho que expõe a definição contida no Art. 268, o juiz afirma que
os elementos que foram considerados para a confirmação da denúncia
foram “1º copula carnal; 2º a violência”. Apesar de não estar
disponível o Auto de corpo de delito procedido na moça, já que o
processo se encontra com partes incompletas, foi possível perceber a
partir da declaração do juiz, que os médicos que realizaram o exame na
vítima declararam a existência de consumação da cópula carnal. O
segundo elemento que comprovaria a realização do Estupro era o uso da
violência, que segundo o Juiz “se acha provado, pois consta nos autos
que a offendida, ao ser desvirginada, tinha menos de 16 annos de edade
(...) e, segundo preceitua o nosso Codigo Penal, art. 272, é previsível a
violência toda vez que a offendida seja menor de 16 annos”.
Nesse sentido, agregava-se além da materialidade da cópula
carnal, outro elemento para comprovação de violência: a menoridade da
vítima como prova da violência. Segundo o Art. 272: “Presume-se
commettido com violencia qualquer dos crimes especificados neste e no
capitulo precedente, sempre que a pessoa offendida for menor de 16
annos.” 25 Assim, a partir da declaração do juiz pode-se perceber que o
fator utilizado para comprovar a violência do caso foi a soma da
menoridade da ofendida com a cópula carnal. E continua: “que o réo
empregou seducção para obter o consentimento da ofendida, elemento
esse, aliás, desnecessário para a constituição do crime, pois, sendo a
mesma offendida menor de 16 annos era manifesta a sua condição de
incapacidade”.
Nesse trecho, fundamentado no Artigo acima descrito, verifica-se
que a menoridade não só foi usada como presunção da violência, como
foi o único elemento a comprová-la. Neste processo, a ideia de violência
predominante à interpretação do Juiz, mais se referiu à questão legal e
moral de ofender uma menor de idade – sedução, engano, falsa
promessa de casamento – do que a um possível agressão, ou dano físico
(além da cópula carnal) de agredir uma menor de idade pelo emprego de
força. Desse modo, a classificação desse Estupro se materializou pela
cópula carnal realizada em menor de idade.

25
Código Penal da República do Brasil de 1890.
69

Mesmo que para o crime de Defloramento também estivesse


pressuposta a menoridade como fator de violência, o Juiz optou pela
classificação do caso como crime de Estupro. É possível, que o motivo
pelo qual o crime tenha sido classificado como tal, tenha relação com o
sumiço do acusado durante todo o percurso do processo. Ao classificar o
ato de desvirginamento como Estupro, utilizando da menoridade da
ofendida como elemento constitutivo de violência, o Juiz optava por
qualificar o réu em uma pena maior, fato que não se concluiu, pois este
fora servir ao exército e o processo foi arquivado.
Diferentemente de Astrogilda, os casos de Maria da Conceição e
Sebastiana Nilce Vieira, 1926 e 1931 respectivamente, apresentaram
outros parâmetros. As justificativas utilizadas para fundamentar suas
condições de violentadas se afirmaram, principalmente, nos discursos
dos representantes da justiça pela menoridade da vítima, mas também,
pelos danos físicos “concretos” reiterados por vários dos testemunhos e
“evidenciados” pelos pareceres médicos. Nestes casos, a questão da
menoridade da vítima foi utilizada como mecanismo de classificação do
crime, porém, os danos físicos existentes, acompanhados por um
discurso sobre a infância26 a ser protegida, foi fator importante na
relação entre os que defendiam e os que acusavam.
Em 1926, Maria da Conceição, menor de 11 anos, parda, sem
saber ler nem escrever, foi considerada vítima de Estupro realizado por
Manoel Norberto Maximiano, 20 anos, casado, agricultor, sabendo ler e
escrever. Segundo várias das versões existentes no processo, a menor
fora vítima de estupro na sua própria casa, onde estava sozinha,
enquanto a mãe encontrava-se lavando roupa na hora do crime. O
acusado teria se dirigido à porta da vítima e pedido um copo de água, e
mediante a entrega deste teria levado a jovem ao quintal de sua casa, e
ali a teria estuprado.
Considerando os vários relatos realizados pelas testemunhas
chamadas a depor no caso, o estado de saúde da ofendida foi um dos

26
A infância era alvo de preocupação social em todo Brasil, inclusive na cidade
de Fortaleza, desde a virada do século XIX. No entanto, a infância passava a ser
alvo de preocupação nesta cidade, principalmente, a partir das primeiras
décadas do século XX com o aumento populacional. Segundo Fonteles Neto
havia nessas primeiras décadas uma preocupação com a “infância abandonada”,
pois estas crianças viriam a ser os futuros “delinquentes” da cidade.
(FONTELES NETO, 2005. p. 32) Retornarei ao tema da infância no capítulo 3.
70

fatores mais utilizados para demonstrar o ato de violência realizado pelo


acusado. Embora a descrição do estado físico em que esta se encontrava
depois do crime também se relacionasse com a sua própria condição
física de criança, a questão das marcas corpóreas e da aproximação com
as ideias de “crime de sangue” foram relações fundamentais para a
composição dos relatos das testemunhas, e também, de alguns
representantes da justiça, como forma de fundamentar a violência e a
brutalidade do crime, o que possibilitou a condenação do réu.
Das quatro testemunhas que depuseram inicialmente no
inquérito policial, três delas, as que tiveram contato direto com a vítima
logo após o ato, demonstraram em suas narrativas, questões que
serviriam para atestar o dano físico e a violência vividos por Maria da
Conceição: a cópula, a incapacidade de defesa e o uso de força física por
parte do acusado. Esses relatos foram largamente utilizados pela
promotoria como forma de demonstrar o quão brutal foi esse crime.
Antonio Ferreira da Silva – 28 anos, cearense, viúvo, trabalhador,
residente no Alagadiço em Fortaleza, não sabendo ler nem escrever –
disse no inquérito policial que: “(...) ali chegando indagou o que se
passava; vendo então a menor offendida ensanguentada; Que soube,
nesse momento, ter sido a mesma estuprada por um negro; Que (...)
munindo-se de um pau sahiu em procura do acusado, (...)”.27 Em
seguida, Alvina Ferreira da Silva – 16 anos, solteira, lavadeira, residente
no Alagadiço em Fortaleza, não sabendo ler nem escrever – declarou:
“Que no dia dezoito, mais ou menos a uma hora da tarde, vindo de sua
residencia, encontrou em caminho, a menor Maria que chorando e
ensanguentada, ia em procura de sua mãe, que se encontrava na
cacimba lavando roupa,(...)”28. Em continuação, Joanna Ferreira da
Silva – cearense, viúva, lavadeira, 40 anos, também residente no
Alagadiço em Fortaleza, sem saber ler nem escrever – afirmou que:

(...) em caminho encontrara a menor offendida, a


qual ensanguentada e chorando, ia em procura
de sua mãe; Que a menor contara então, que um
negro havia chegado em casa, pedido agua, e em

27
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC); Tribunal de Justiça; Série:
Ações Criminais; Sub-série: Crimes Sexuais; Caixa 01; Processo Nº 1924/01.
Auto de declaração das testemunhas. p. 13.
28
(APEC); Processo Nº 1924/01. Auto de declaração das testemunhas. p.14-15.
71

seguida agarrado-a, deitando-a no chão e


apertando nas guellas feito aquillo com ella (...)
Que a menor offendida tem uns onze annos; Que
devido o estado da offendida foi recolhida a
“Santa Casa”. (grifos meus).29

Nos relatos acima citados, é possível perceber como o fato de


encontrar-se “ensanguentada” foi bastante pertinente como forma de
demonstração da violência vivida pela ofendida. O sangue, reafirmado
pelas testemunhas e chancelados pelo parecer do médico legista,
aparecia não apenas como uma consequência da violência física, mas
como símbolo e comprovação de sua “pureza”, ou seja, de sua
virgindade. Nos relatos das testemunhas sobre o caso de Maria da
Conceição, pouco foi o uso das referências que buscavam demarcar a
sua prévia honestidade como mocinha de família, tais como se vivia
recatadamente ou se tinha bom comportamento. Apesar de encontrar-se
sozinha, de não ter negado o pedido de água do homem à sua porta –
fatores que talvez fossem indagados a uma mulher adulta e/ou que não
apresentassem “marcas visíveis” de violência – a inocência que se
colocava implícita à sua pouca idade fora suficiente para demonstrar a
sua honra, ou como afirmado pelo Juiz do caso de Astrogilda, a sua
“incapacidade de defender-se”. Como afirma Tatiana Landini – em
estudo comparativo dos discursos produzidos e noticiados na imprensa
no início e no fim do século XX – sobre a violência sexual contra
crianças: “O estupro de menores era noticiado como um crime
revoltante. As crianças eram retratadas estritamente como vítimas, não
há qualquer menção à criança ter “provocado” ou “consentido”.
(LANDINI, 2006, p. 229-230)
Embora esse estudo se refira à cidade de São Paulo, a relação
entre infância e incapacidade de defesa física e mental, também foram
associações bastante recorrentes nos crimes de Estupro na cidade de
Fortaleza nesse período, e se coadunava com as diversas campanhas que
buscavam não apenas instituir mecanismos de proteção e
disciplinarização dos menores, mas também, tentavam ressaltar as
impossibilidades sexuais concernentes a esse período da vida.30 Para

29
(APEC); Processo Nº 1924/01. Auto de declaração das testemunhas. p. 16-17.
30
O trabalho da historiadora Sílvia Arend, em Santa Catarina, discute de que
forma a “proteção” da infância vai se constituindo nas primeiras décadas do
72

além da letra da lei, essa questão apareceu fortemente nas disputas


narrativas de diversos envolvidos, em vários dos casos de crimes
sexuais. Além disso, foi bastante comum o uso de associações entre
menoridade legal, incapacidade física e incapacidade sexual, em que a
menoridade legal se alinhava às ideias de inocência e ausência de
vontade sexual que se construía para os infantes. Preservar a saúde
física, mas também o pudor psicológico eram elementos fundamentais
nas construções discursivas sobre essas violências.
Em início de março de 1931, a senhora Maria Vieira – conhecida
como “Conceição”, 20 anos de idade, trabalhando em serviços
domésticos, sabendo ler e escrever – dava entrada na Inspectoria
Marítima da cidade de Fortaleza a uma queixa de ofensa a sua irmã
menor Sebastiana Nilce Vieira. Segundo essa, a menor de oito anos teria
sido ofendida no espaço de sua casa pelo seu cunhado Francisco
Fructuoso da Silva, irmão de seu “amasio” Antonio Fructuoso da Silva.
A queixante informou ao inspector que morava com a mãe, a irmã
menor, o companheiro e o irmão deste, em uma casa no bairro Arraial
Moura Brazil.
A partir de vários relatos dos familiares de Sebastiana, esta tinha
o hábito de ir durante a noite ao quintal de casa para “ourinar”. Para
isto, a menina saía de sua rede, situada no corredor da casa, e passava
sob a rede do acusado que se encontrava rente à porta da cozinha e que
dava acesso ao quintal. Segundo o relato da denunciante, foi durante
uma dessas passagens que o acusado teria pegado à força a menor, e a
teria estuprado.
Nos depoimentos que seguem no decurso deste processo, a
impossibilidade de gritar, a demonstração da superioridade física e o
estado físico da ofendida foram questões centrais utilizadas pelas
testemunhas ouvidas, e também pelos representantes da justiça como
forma de qualificar a gravidade do ato em juízo. A ofendida, assim
como sua irmã, sua mãe, e quatro das cinco testemunhas chamadas para
depor, registraram em seus depoimentos os aspectos físicos que

século XX, especialmente na década de 1930, tendo como marco as políticas


voltadas para os menores nesse período e a criação do Estatuto de Proteção à
Infância em 1927. Esse trabalho é de grande importância para se pensar não
apenas as especificidades desse estado, mas também, alguns pilares das políticas
federais de gestão da infância e da adolescência no Brasil na primeira metade do
século XX.
73

demostrariam a violência usada pelo acusado, e em consequência, o


estado de saúde debilitado da menina. O depoimento da vítima é
permeado por essas questões. Declarou que:

(...) há mais ou menos quatro ou cinco dias numa


certa noite de que não recorda, depois que todos
de caza estavam deitados para dormir, a
declarante, levantou-se e foi ao quintal ourinar
(sic), e quando voltou, na occasião que ia
passando por baixo da rêde do “Chico” foi pegada
pelo mesmo, a qual, deitou-lhe na sua rede, em
seguida, deitando-se por cima e procurou abrir-
lhe as pernas; que depois de conseguir abrir-lhe
as pernas, procurava meter-lhe entre as partes de
baixo, uma “coiza” comprida na qual elle
banhava-a de cuspe para entrar com mais
facilidade, tapando com a mão a boca da
declarante para não gritar, conseguindo, meter
um pedacinho na sua “coisa” redonda; que,
sentia muita dôr, mas não podia gritar porque elle
tapou-lhe a boca; que empregou grande esforço
com os braços e as pernas para se defender, ou
se retirar de baixo do “Chico” que lhe sugigou
(sic) e prendeu-lhe por baixo dele, por algum
tempo; (...) que na noite seguinte a mesma hora a
declarante foi ao quintal e quando regressou foi
pegada pelo “Chico”, o qual, como da primeira
vez deitou-lhe na sua rede e abrindo suas pernas
meteu-lhe a “coisa”, dele, que era comprida,
conseguindo com um pouco de cuspe, introduzir
um pedacinho na “coisa” redonda da declarante, a
qual com a boca tapada por elle, não podia
gritar; que quando “Chico” estava nesse serviço
com a declarante, sua mãe ouvio o reboliço e
chamou-lhe, vindo buscal-a e levou-a para o seu
quarto; que desta segunda vez a declarante,
ficou ainda mais doente do que na
primeira.(...). (grifos meus) 31

31
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:
Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 02, Processo Nº 1931/01.
Declaração das testemunhas. p. 04.
74

Se utilizando dos mesmos referenciais, o relato de Maria Vieira,


queixante e irmã da menor, também aludiram ao estado de saúde da
vítima. Disse:

(...) que hoje, digo hontem, sua mãe levantou o


vestido de Nilce e mostrou-lhe a membrana32 da
mesma, tendo verificado que estava
desconforme, e (ilegível), tanto por dentro
como por fora, que, em virtude disso a declarante
dirigio-se a sua visinha Maria Isabel da Silva, a
quem comonicou o facto, e perguntou-lhe quem
era o Delegado e onde morava, ao que, Dona
Maria Isabel, prestando-lhe as informações,
perguntou-lhe quem era o accusado, respondeu-
lhe, a declarante, que afirmava sobre sua palavra
de honra, ser Francisco Fructuoso da Silva vulgo
“Chico”, único homem estranho que dormia em
sua caza, que também asseverava-se ser “Chico”,
o acusado do crime de estupro de Sebastiana Nilce
Vieira, porque na occasião em que sua mãe ouviu
o reboliço em sua rede elle desculpava a menina
dizendo que ella estava brincando com os gatos,
facto que discordava com a hora adiantada da
noite em que todos de caza estavam recolhidos
para dormir; que, o estado de saúde de sua irmã
menor, cada vez mais se agrava. (grifos meus)33

Compondo o leque de declarações desse processo, as vizinhas


Etelvina Francisca e Maria Isabel, e o testemunho Francisco Ferreira da
Silva que tiveram contato com a vítima logo após a descoberta da
violência, também se referiram ao estado físico da menor, e
respectivamente declararam:

(...) que naquela ocasião “Conceição”, levantando


o vestido da referida menina, a qual, se chama
Sebastiana Nilce Vieira mostrou-lhe a membrana
da mesma, notando a depoente, que ella estava

32
Membrana era uma forma mais técnica de referir-se à vagina. Certamente,
esse não era o termo utilizado pela depoente, mas uma reelaboração do escrivão
como forma de deixar o relato menos coloquial e mais técnico.
33
(APEC), Processo Nº 1931/01. Auto de declaração das testemunhas. p. 8 e 9.
75

inchada, diferente de outra qualquer menina, e


mesmo porque verificou também que Nilce
sentia-se doente a ponto de não poder andar”.
(grifos meus) 34

(...) foi mostrado por Dona “Conceição” a


membrana da citada menina, notando a depoente,
que a mesma estava um pouco disforme; (...)”.
(grifos meus) 35

(...) foi a residencia da victima encontrando-a


acamada e com febre”. (grifos meus). 36

Apropriando-se desses relatos das testemunhas do processo, as


declarações realizadas por muitos dos representantes da acusação,
buscaram demarcar a questão da violência sexual cometidas nas
meninas menores de idade, principalmente, significando as lesões
deixadas no corpo da menor como forma de argumentar para a
pronúncia do crime, destacando assim, os níveis de crueldade dos
acusados. O relatório do inquérito feito pelo Inspetor Tertuliano
Meneses para enviar ao Juiz Municipal que tratou do caso de Sebastiana
Nilce em 1931, resumiu os elementos mais evidentes de deflagração da
violência. Disse:

[que a ofendida] declarou que em caza de sua irmã


dormia no corredor, e que tinha por costume todas
as noites antes de si deitar para dormir, ir no
quintal ourinar (sic), passando tanto na ida como
na volta, por baixo da rede de Francisco Fructuoso
da Silva, vulgo “Chico”, que sempre estava
deitado, lhe pegava para fim libidinoso, tendo nas
ultimas duas noites, conseguido estupral-a,
deixando-a bastante doente empregando força
phyzica e tapando-lhe a boca para não gritar.
(...) [A mãe da menor] Asseverou mais, que
decorrido treis (3) dias, sua referida filha menor
queixou-se de que tinha lhe aparecido um caroço

34
(APEC), Processo Nº 1931/01. Auto de declaração das testemunhas. p. 13-14.
35
(APEC), Processo Nº 1931/01. Auto de declaração das testemunhas. p. 16-17.
36
(APEC), Processo Nº 1931/01. Auto de declaração das testemunhas. p. 53.
76

nas partes que doía quando urinava, ao que


levantando a roupa da menina, viu [a mãe] que a
mesma estava effectivamente com duas
glândulas e que tinha a membrana desforme
escorrendo púz. (grifos meus).37

Embora mostradas de forma e em graus diferentes, algumas


declarações ressaltaram a pouca deformidade das partes íntimas, outros
apresentaram o aparecimento de glândulas na “membrana”, a febre e a
existência de pus; outros demarcaram ainda mais fortemente a seriedade
do estado de saúde da menor “a ponto de não poder andar”. Além das
reafirmações da impossibilidade de reagir e de gritar devido à diferença
corporal e à boca tapada, essas várias descrições compuseram um leque
de argumentos existentes nos relatos das testemunhas que tenderam a
relacionar a ideia de violência sexual às violências físicas gerais, e
também, às marcas deixadas no corpo de uma prática sexual fora da
normalidade por se tratar de uma criança inocente psicologicamente e
indefesa fisicamente. Essas construções acabavam delineando uma ideia
de Estupro bastante relacionada a sua materialidade penetrativa – no
caso das meninas especialmente pelo meio vaginal – e também, àquelas
pessoas cuja impossibilidade de defesa física estivesse confirmada.
No caso da menor Maria da Conceição de 1926, além das marcas
de violência física no corpo da jovem – representadas nos relatos das
testemunhas, no parecer dos médicos e de alguns representantes da
justiça – outro fator foi de extrema importância como argumento para
atestar o caráter “cruel” do crime, e foi grandemente explorado por
delegados, promotores e juízes: a doença venérea.38
Sendo portador de quatro cancros venéreos na genitália, o
acusado Manoel Norberto teve seu ato considerado ainda mais cruel,
principalmente pelo juiz e pelo promotor de justiça do caso. O fato da
confissão de que tinha consciência de sua doença, e que mesmo assim,
não ter se importado em danar a saúde da menor, evidenciou, ainda

37
(APEC), Processo Nº 1931/01. Relatório do Inspetor. p.26.
38
Nos relatos dos populares, as “deformidades” e a situação de saúde das
vítimas eram colocadas como as principais preocupações que as mobilizaram a
efetuar a denúncia e encaminhar uma possível punição ao réu. No entanto, essas
informações ao serem lidas e significadas pelos representantes da justiça,
principalmente os promotores, prontamente apareciam como demonstração da
vida degenerada do réu, ao salientar os elementos da doença venérea.
77

mais, a situação de violência vivida pela ofendida, e também, a


periculosidade e a degenerescência do réu. A referência existente a esse
ponto nos diferentes relatos desse processo é bastante impressionante.
Chancelado pelo parecer médico legal – que realizou um exame
de corpo de delito no acusado e não apenas na vítima, algo bastante raro
nos crimes sexuais em Fortaleza nesse período – a situação de
enfermidade venérea do acusado foi tema reiterado em vários dos
relatos, mas principalmente, nos pareceres dos representantes da justiça.
Um dos mais ilustrativos dessa perspectiva foi o do Promotor João Jorge
de Pontes Vieira39, elaborador da denúncia contra o acusado. Nela, está
evidenciada a violência vivida pela vítima, pois segundo ele:

O acto praticado com requintada cobardia e


perversidade deixou a pobre victima em estado
grave, dado o seu pouco desenvolvimento e
certamente contaminada pelas moléstias
venéreas de que era portador o repugnante
criminoso. A violência practicada contra a menor
está bem caracterizada no inquérito, pelo que é
crime capitulado no art. 268 do Cod. Penal. (grifos
meus).40

Aos termos “cobardia”, “perversidade” e “repugnante criminoso”


foram usados, nesse trecho, como forma de demonstração da crueldade
do acusado, e também, da violência vivenciada pela vítima,
comprovadamente de “pouco desenvolvimento”. Considerando que as
doenças venéreas era tema bastante debatido nesse período, não apenas
em Fortaleza, mas nas grandes cidades do Brasil, um acusado de crime
sexual portador de doenças venéreas seria duplamente compreendido
como degenerado e “repugnante”.

39
João Jorge de Pontes Vieira estudou no Liceu do Ceará e bacharelou-se pela
Faculdade de Direito do Ceará em 1918. Foi Professor de Geografia e História,
promotor, juiz Municipal, advogado da Justiça Militar, delegado de polícia de
Fortaleza e Procurador Fiscal. Posteriormente, foi Deputado Federal e integrou
o grupo da Constituinte de 1934. Foi Desembargador do Tribunal do Estado
entre os períodos de 1941 e 1944 e membro da Academia Cearense de Letras.
Fonte: http://www.ceara.pro.br/cearenses/listapornomedetalhe.php?pid=33094
40
(APEC), Processo Nº 1926. Denúncia elaborada pelo Promotor de Justiça. p.
02.
78

O “bem jurídico”41 a ser protegido nesses casos era a integridade


vaginal, e a consequente simbologia que essa integridade significava.
Proteger uma mulher menor de idade e infante significava proteger a sua
integridade física, que ao mesmo passo, se desdobrava em uma proteção
da moralidade de toda a família, e também da sociedade. Nesse sentido,
os elementos que permearam as violências cometidas contra a honra das
mulheres em Fortaleza, principalmente, em seu carácter sexual, esteve
fortemente relacionada à proteção das mulheres mais jovens, que eram
vistas potencialmente como futuras mães e precisavam de suas
moralidades e corpos “resguardados”.
Podemos pensar que a relação entre maternidade saudável e a
produção de filhos sãos e fortes foi um importante elemento para a
“proteção” jurídica de meninas e moças que prestavam queixa de ofensa
sexual cotidianamente na cidade de Fortaleza. É importante ressaltar que
os médicos fortalezenses, principalmente entre as décadas de 20 e 30,
preocupavam-se grandemente com a saúde pública e das famílias, e com
a questão da “degenerescência”, em especial das mães, como forma de
garantir a produção de filhos saudáveis para a sociedade.
Na Revista Ceará Médico, órgão do Centro Médico Cearense42,
vários foram os escritos e propagandas de produtos que se reportaram
aos temas da maternidade, da importância de cuidar das gestações a
partir de “procedimentos científicos”, e dos cuidados nutritivos que as
mães e as crianças deveriam ter para se manterem saudáveis. Essas
demarcações das figuras femininas como fundamentalmente figuras

41
Utilizo aqui uma definição de “bem jurídico” bastante simples, e que resume
os debates sobre suas definições. O bem jurídico seria “a expressão de um
interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um
certo estado, objecto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso
juridicamente reconhecido como valioso”. Essa definição foi baseada na obra:
DIAS, Jorge de Figueiredo. In: Jorge de Figueiredo. Direito Penal – Parte
Geral – Tomo I. 2ª ed. [S.l.: s.n.], 2007. vol. I. Fonte: Wikipédia. Disponível em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Bem_jur%C3%ADdico> Acessado em:
22/07/2013.
42
O Centro Médico era uma associação que visava agregar médicos e
profissionais de saúde do Ceará, sediado na cidade de Fortaleza. O Centro
divulgava e difundia estudos das ciências médicas do Brasil e do mundo, e
discutia sobre a contribuição desses profissionais para os principais problemas
da sociedade local.
79

maternas, também se desdobravam em interpretações e sensibilidades


quanto ao tema da violência sexual.
Assim, as tensões existentes entre a violência que agride o corpo
e à violência que corrompe a moralidade pública – grande parte das
vezes entendidas como virgindade e, por consequência, a perda desta
poderia lançar a mulher à degeneração (prostituição) – compuseram um
discurso recorrente em que as violências sexuais estiveram
extremamente marcadas pelo carácter de ato penetrativo, ou seja, a
consumação da cópula carnal era fator principal de “validação” da
violência. Além desse fator, a necessidade de demonstrar os aspectos de
impossibilidade de reação reforçava uma construção discursiva de uma
imagem idealizada da vítima de crime sexual, ou seja, a demarcação
dessa impossibilidade de defesa, também, como componente moral de
constituição do crime de Estupro.
Nesse sentido, as desigualdades de gênero constitutivas dos
discursos legais sobre violências de cunho sexual – e que puderam ser
averiguadas no cotidiano criminal da cidade de Fortaleza – eram
baseadas em hierarquias não apenas entre homens e mulheres, mas entre
mulheres e mulheres, e homens e homens.
Para o tema da violência sexual e dos danos morais que essas
violências traziam para toda a sociedade, é interessante entender que
além das desigualdades de gênero, as distinções raciais e de classe foram
durante a primeira república brasileira, importantes elementos para a
compreensão das relações de poder entre a justiça, a medicina e os
populares.43
As relações existentes entre o dano físico e o dano moral, e a
forma com que a interpretação da violência era marcada pelas distinções
existentes entre as mulheres, foram bastante exploradas no caso da
senhora Rita Maria da Conceição. Nesse caso, a cor, a idade e a pobreza
da vítima, aparecem de forma mais clara nas disputas discursivas desse
processo. Em janeiro de 1936, ela, com sessenta anos de idade,
denunciava que havia sido vítima de estupro pelo marítimo José
Francisco de Sousa, de vinte e sete anos, quando durante a noite voltava
da casa de suas filhas. Rita relatou que fora agredida com socos na face
e que o acusado a teria deitado no chão e com ela tentado ter relações

43
Martha Abreu, ao trabalhar os processos criminais na cidade do Rio de
Janeiro, ressalta a forma com que, a atuação da polícia e da justiça carioca
mesclava essas formas de desigualdades e preconceitos no cotidiano criminal.
80

sexuais, afirmação esta, retomada pelas duas testemunhas que passaram


pelo local e presenciaram o fato, e que ajudaram a ofendida após as
agressões.
Apesar de denunciar a violência sofrida registrando o objetivo
sexual com que ocorrera a agressão, a denúncia de Rita Maria foi
registrada como ferimentos leves, e posteriormente, longamente
debatida pelo delegado, pelo juiz municipal, pelo juiz de direito, assim
como pelo promotor e pelo advogado de defesa, com o objetivo de saber
se as agressões poderiam ser classificadas como crime de Estupro – que
era considerado mais grave – ou somente entendidas como Ferimentos
Leves, previsto no Art. 303 do Código Penal.
Segundo o corpo de delito realizado pelos médicos legistas Helio
Abreu e Ataliba Barroso, foram atestadas as agressões na face e algumas
escoriações na vagina de Rita Maria. No entanto, tais escoriações,
segundo os médicos, poderiam ser explicadas por uma irritação, e não
por uma tentativa de estupro. Relataram que:

Rita Maria da Conceição, parda, brasileira,


cearense, casada, domestica, com sessenta anos de
idade, residente no “Meireles”. A paciente é de
estatura mediana e compleição robusta, e bôa
aparência mental. Apresenta esquimoses estensas
no rosto do lado esquerdo, pálpebras,
especialmente na região molar e congestão intensa
da vista do mesmo lado. Diz ter sido violentada
por um individuo; acusa dores nas partes
genitais, especial a micção, entretando no exame
objetivo, encontramos apenas uma pequena
esquimóse, ou melhor, irritação que bem pode
ser produzida pela falta de higiene que se
observa. Consideramos ferimentos leves. 44

Vários elementos podem ser pensados a partir dessa declaração


dos médicos legistas. Primeiro, apesar do registro da violência física
sofrida pela queixosa – confirmada pelas escoriações do rosto – a
ausência de cópula carnal foi fator decisivo para a não confirmação do

44
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:
Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 01, Processo Nº 1937/02.
Auto de corpo de delito, p.05.
81

estupro. A cópula carnal aqui assumiu, ao mesmo tempo, dois elementos


expositores do “entre a violência física e a violência moral” que pretendi
desenvolver neste tópico, pois o bem jurídico a ser preservado era a
virgindade física e o seu simbolismo moral colocado para a vítima.
Mesmo que a senilidade seja indicador, segundo a promotoria, da
“falta de respeito do réu” para com a senhora Rita Maria, pois ficava
comprovada a superioridade física e de sexo para o caso em questão, a
definição do Art. 269, de que o estupro se referia “abusar de uma mulher
com violência”, não serviu para o caso de Rita. Além disso, a
“objetividade” característica do corpo de delito, baseado eminentemente
no método da observação empírica, registrou que as dores sentidas pela
ofendida, após o momento do delito, se davam pelo possível fator da
falta de higiene.
Aqui, é possível perceber também, o aspecto disciplinador dos
pareceres dos médicos legistas quanto aos hábitos de higiene, à
sexualidade e à violência. Houve, no momento da realização do exame,
uma concentração no aspecto educativo com que o corpo dessa mulher
foi analisado e entendido por um discurso médico e higienista. A
alegação da falta de limpeza como explicação das escoriações era
bastante coerente, em um momento cujos modelos de assepsia e higiene
compunham grande parte dos discursos médicos e higienistas que
circulavam na cidade de Fortaleza, especialmente, nas primeiras décadas
do século XX. Nesse sentido, o momento do corpo de delito, além de
buscar a confirmação do ato de violência, também significava um
momento de afirmação de uma nova lógica de comportamentos sadios,
corpos higienizados, que deveriam fazer parte da vida de mulheres
pobres, como Rita. Segundo Ponte, o farmacêutico Rodolfo Teófilo45 –
45
Rodolfo Teófilo foi um importante farmacêutico e escritor atuante na cidade
de Fortaleza desde o século XIX. Foi um importante exemplo dos discursos
sanitários e higienistas durante esse período. Foi um grande crítico dos governos
oligárquicos que faziam parte da política cearense desde fins desse século e nas
primeiras décadas do século XX. Segundo Ponte “o farmacêutico Rodolfo
Teófilo, destacada figura dos círculos científicos e literários da Capital, tomou
uma decisão inédita na história da medicina no Ceará: resolveu fabricar, às
próprias expensas, a vacina e aplicá-la, sozinho, na população fortalezense, em
domicílio e gratuitamente entre 1900 e 1904”. (PONTE, 2010, p. 118) Teófilo
foi um dos intelectuais mais críticos da falta de assistência prestada aos milhares
de sertanejos vitimados pela seca, principalmente, pela falta de estrutura
higiênica com que esses viviam na cidade de Fortaleza, após os períodos de
82

no momento da sua campanha de vacinação domiciliar contra a varíola


no início do século XX, entre os anos de 1901 e 1904 – também se
referiu aos péssimos hábitos de higiene e dos costumes das mulheres
pobres em Fortaleza. Estas, que foram descritas como:

megeras, sujas, maltrapilhas e que muitas tinham


o péssimo hábito de fumar fedorentos cachimbos.
De forma que, dentro das casas pequenas, baixas e
apertadas, o ar que se respira ali, embora renovado
a cada instante, tinha um fartum especial,
lembrando mistura de sebo, suor de negro e sarro
de cachimbo. (TEÓFILO apud PONTE, 2010, p.
119)

Analisando os relatos produzidos pelos representantes da justiça


sobre o caso de Rita, a questão da não materialização da penetração
sexual na observação dos médicos, assim como a senilidade da vítima –
mesmo com a confissão do réu sobre a tentativa de estupro, com a
confirmação das testemunhas de que o acusado encontrava-se nu e em
pleno ato sexual – fundamentou a conclusão do juiz de que o caso se
tratava “apenas” de Ferimentos Leves, e não de Estupro. O discurso
produzido pelo curador do réu é bastante representativo da desconfiança
existente por parte dos bacharéis em relacionar o crime de Estupro com
uma mulher mais velha. Destacou que:

Os sessenta anos de uma mulher já por si


demonstram um estado de impressões
irregulares na vida sexual. Algumas delas há
que se dizem victimas de crimes, pois a

migração. Baseado em parâmetros científicos e higiênicos, Teófilo via nos


modelos de assistência pública, encabeçados pelos governos cearenses, um
completo descaso com os preceitos de saúde pública. Foi também um dos
principais críticos do governo do Presidente do Estado do Ceará Benjamim
Barroso, que a partir da seca de 1915 instaurava uma política de “Campos de
Concentração”, em que se utilizando da tecnologia do isolamento, buscou
concentrar os retirantes oriundos da seca em um único espaço da cidade, sob a
justificativa de melhor assisti-los quanto às suas necessidades humanas. No
entanto, os poderes públicos, como afirma Frederico Neves, visavam impedir
que essa massa de “flagelados” se espalhassem por toda a cidade e ocupassem
todos os seus espaços. (NEVES, 1995).
83

senilidade as levam a dizer-se perseguidas, e


que são levadas à violação sexual. É o caso que
se apresenta em julgamento e, baseando-se o
Meretissimo Juiz no laudo medico-legal, de certo
levará em conta aquelle exame de fls. (grifos
meus) 46

Nesse sentido, a declaração elaborada pela defesa se utilizou de


uma ideia em que a sexualidade das mulheres mais velhas se
apresentava fora da lógica heterossexual e reprodutiva colocada para o
exercício da sexualidade feminina nesse momento, e em consequência,
para a ideia de violência sexual. Ou seja, ao relatar o estado da vítima
como “irregular” do ponto de vista sexual, o defensor visava evidenciar,
também, uma idealização da imagem da vítima sexual como mulher
jovem, capaz de reprodução, e com um “valor moral” a ser preservado
pela lei. A materialidade da violência, constatada por discursos que se
queriam objetivos e científicos, foi marcada por uma dupla moral que se
engendra no corpo das mulheres, e cuja materialidade da violência física
é composta por sua íntima relação com uma moralidade que, de algum
modo, construía possibilidades de justificação da violência sexual.
A forte preocupação com a preservação da virgindade por parte
dos médicos e representantes jurídicos fortalezenses, e com a ideia de
disciplinar os corpos das moças mais jovens, contribuía para a
construção de um perfil para os casos de estupros baseados no Código
Penal de 1890 que tinham algumas tendências centrais: valorização da
virgindade e dos simbolismos colocados para ela, do comportamento
recatado, e, portanto, implicitamente, de uma atuação não apenas
punitiva dos atos sexuais, mas preventiva e educacional, ou seja, que a
atuação desses discursos autorizados visava construir, ao mesmo tempo,
uma ideia de sexo e sexualidade desviada e não saudável.
Uma parte da historiografia brasileira que se referiu a esses
delitos – e a forma com que eles representaram um modelo de pureza
feminina idealizada na letra da lei – compreendeu que grande parte da
atuação dos juristas visava referir-se a virgindade e a inocência como
“bem jurídico” a ser protegido pela sociedade, como forma de

46
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:
Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 01, Processo Nº 1937/02.
Auto de corpo de delito, p.49.
84

consolidar a moralidade da família e de todo o grupo social. Por outro


lado, é interessante compreender que concomitante a essa “proteção”
das mais jovens, as mulheres que não mais possuíam esse “bem
jurídico” a ser protegido, eram vistas de forma diferenciada pelos
representantes da lei na cidade de Fortaleza. Não se trata de afirmar que
as ofensas praticadas contra essas mulheres ficassem impunes, mas as
qualificações colocadas para elas eram bastante diferenciadas.
As reflexões levantadas com esses crimes são bastante
importantes para pensar as relações de gênero construídas na letra da lei,
em que a sexualidade de mulheres e homens era analisada a partir dos
modelos de família e de condutas que se almejavam para todo o Brasil.
Embora a legislação propusesse algumas qualificações que visavam
comtemplar um maior perfil de mulheres, possibilitando que tanto as
“mulheres honestas” como as “desonestas” pudessem ser consideradas
como vítimas de crimes sexuais, o cotidiano dos lugares de poder em
que esses discursos jurídicos operavam em Fortaleza – como nas
delegacias, e nas audiências judiciais – acabaram por atuar na
“preservação” daquelas que eram vistas como frágeis, indefesas,
“incapazes de reagir” e inocentes diante das questões sexuais. Daí,
portanto, a maior quantidade, para os casos de crimes de Estupro
encontrados no APEC, corresponderem a crimes contra meninas
menores de idade, entre as idade de 5 e 16 anos.
Os casos de Estupros estudados foram importantes para
problematizar a forma com que a violência se construía nas
subjetividades das pessoas envolvidas nos processos crimes, e de que
modo análises efetuadas pelos discursos da justiça e da medicina
intencionavam e corroboravam com uma ideia de violência sexual
extremamente relacionada à comprovação da penetração vaginal, e seus
consequentes males morais para as mulheres. Além disso, esses
elementos reforçavam implicitamente a possibilidade de defesa como
elemento compositor da definição de violência, ao expressar que esta
também era definida por uma avaliação da possibilidade física e
psicológica de defesa. O próprio questionário utilizado para a realização
dos autos de corpo de delito privilegiava algumas dessas hierarquias.
Em casos de denúncias de estupro, os médicos, após a realização do
exame, faziam algumas considerações e respondiam ao seguinte
questionário:

Primeiro: Houve estupro?


85

Segundo: Qual o meio empregado?


Terceiro: Houve cópula carnal?
Quarto: Houve violência para fim libidinoso?
Quinto: No caso afirmativo, qual o meio
empregado, si força física, si outros meios que
privassem uma mulher de suas faculdades
psíquicas, e assim da possibilidade de resistir e
defender-se?

Nos casos relacionados aos crimes de Atentados ao pudor


encontrados nesta pesquisa, a materialidade da violência esteve
fortemente marcada pela própria desigualdade de gênero existente na
legislação. Dos seis casos encontrados, apenas dois tratavam de crimes
contra meninas, e foram definidos como tal, pois não tratavam de
penetrações vaginais. A ausência da cópula carnal, no caso de Lygia
Bezerra de Meneses – que segundo a declaração da ofendida e de
algumas testemunhas teria sido realizado “em suas coxas” – foi fator
decisivo para que o inquérito, prontamente, fosse indicado para o
seguimento do processo como Atentado ao Pudor (Art. 266 do Código
Penal) e não como Estupro. A denúncia elaborada pelo promotor Dr.
João Jorge de Pontes Vieira para apreciação do Juiz, dizia:

Apresento denuncia contra o cabo de policia


Francisco Falcão, por ter atentado contra o pudor
da menor Lygia Bezerra de Menezes, no dia 26 de
julho ultimo, cerca de 7 horas da manhã, junto do
sitio Porangabussú, no Bairro S. Gerardo,
passando-se o facto da seguinte maneira:
Vindo a menor Lygia da casa de um tio, onde fora
levar uma garrafa de leite, encontrou-se no
caminho com o referido cabo que, segurando-a
pela mão, fez-lhe uma pergunta qualquer e levou-
a para junto de uma moita, onde obrigou-a a
deitar-se, practicando actos de libidinagem em
suas coxas. Os documentos juntos attestam a
miserabilidade do pai da menor, e a idade de 11
annos da mesma. O delicto está definido no artigo
266 do Codigo Penal, modificado pela lei nº 2.
86

992 de 25 de setembro de 1915. (...) (grifos meus)


47

Além da queixa ter sido baseada nos depoimentos que não


tocavam na questão da penetração, a não realização do corpo de delito
na ofendida durante o inquérito, acabou por gerar uma falta de “prova
científica” que atestasse a sua condição de vítima (inclusive para o
atentado ao pudor), pois toda a denúncia tinha sido baseada em
depoimentos – especialmente o da menor e das pessoas que souberam
por ela do fato – e não compôs, segundo os representantes da justiça,
prova suficiente para a incriminação do acusado. 48
Nas definições do Código Penal de 1890, a pena prevista para os
casos de Atentados ao pudor era de um a seis anos de prisão. No
entanto, em 1915 foram realizadas algumas alterações nesse artigo,
reduzindo a pena, especificando-o em dois parágrafos, e tornando o
crime afiançável.49 Tais especificações buscaram melhor definir as
condutas que poderiam ser consideradas atentatórias ao pudor, já que a
definição de 1890 era bastante geral. É de se destacar que segundo o
texto de reformulação, o artigo consistia em uma tentativa de

47
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:
Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 02, Processo Nº 1929.
Denúncia do 1º Promotor de Justiça. p. 02.
48
No processo em questão, o Juiz ressalta no seu parecer, as dificuldades
existentes em materializar as provas para este tipo de crime, tanto por se tratar
de delito geralmente cometido em âmbito privado, como também, por se tratar
de atos que não necessariamente se relacionavam à penetração carnal. E
justamente por isso, as provas em muitos casos eram os depoimentos dos que
acusavam, o que poderia significar muitas “não verdades” sobre o fato
delituoso.
49
Segundo o decreto de Setembro de 1915, assinado pelo presidente Wenceslau
Braz, os crimes de Atentados ao Pudor, eram colocados como crimes que
correspondiam a práticas sexuais que corrompiam a moralidade. O artigo
deixava de ter parágrafo único e se desmembrava em dois parágrafos que
destacavam: “§ 1º Excitar, favorecer ou facilitar a corrupção de pessoa de um ou
de outro sexo, menor de 21 annos, induzindo-a á pratica de actos deshonestos,
viciando a sua innocencia ou pervertendo-lhe de qualquer modo o seu senso
moral; Pena – de prisão cellular por seis mezes a dous annos. § 2º Corromper
pessoa menor de 21 annos, de um ou de outro sexo, praticando com ella ou
contra ella actos de libidinagem: Pena – de prisão cellular por dous a quatro
anos”.
87

criminalizar as práticas que “corrompessem” moralmente pessoas de


ambos os sexos até os 21 anos de idade, induzindo-os ou praticando
contra eles “actos deshonestos”, “viciando a sua inocência” ou
“pervertendo-lhe de qualquer modo o seu senso moral”. Essa definição
continuava bastante abrangente no que se refere à materialidade dos
crimes e abria muitas possibilidades de interpretação.
Para os casos de Fortaleza, os delitos classificados como atos
atentatórios ao pudor foram compostos por atos sexuais que
demonstravam, em sua maioria, um “desejo de saciar paixões lascivas”
da pessoa acusada. Para os quatro casos aqui analisados – cujos
ofendidos eram meninos menores de idade – as referências à
materialidade física do crime, além das agressões físicas, foram
comprovadas pela penetração anal (“atos de pederastia”), o que apareceu
como ato definidor da “corrupção do pudor” das vítimas em questão e
da comprovação empírica do delito.
Os crimes cometidos contra esses meninos, embora envolvessem
marcadores de violência muito próximos aos casos de Estupros de
meninas menores – confirmação da penetração, incapacidade de defesa,
violência física e inocência moral -, pela possibilidade jurídica de
categorização, foram todos classificados como atos atentatórios ao
pudor, e, tinham possibilidades de penas menores do que os crimes de
Estupro. No entanto, do ponto de vista do discurso jurídico, as práticas
corruptoras da moralidade e que se constituíram em atos atentatórios ao
pudor em Fortaleza, apareceram muito próximas do que Foucault
chamou de práticas sexuais “estéreis”. (FOUCAULT, 1988) O “bem
jurídico” a ser preservado nesses crimes era o pudor dos menores, que
nesses casos, apareceram ameaçados por uma prática corruptora: a
penetração anal.
O caso de Francisco Simphonio, menor de sete anos, em março
de 1922, fora bastante representativo da forma com que a materialização
da violência para o delito do Art. 266 se deu de forma bastante
complexa. O caso envolvia dois menores, que viviam na mesma
vizinhança. A queixa do ocorrido foi efetuada pela mãe de Simphonio
após perceber – segundo ela – que este se encontrava “com as calças
sujas de sangue” após ter ido ao mato cortar lenha com o também menor
Francisco Gomes da Silva, de quinze anos. A mãe tratou de levar o
menor por alguns pontos da cidade – como a vizinhança e o mercado
público – para mostrar às pessoas conhecidas as marcas da violência
88

sofrida pelo garoto. As testemunhas retrataram essa violência, assim


como em vários crimes de Estupro, pelas marcas de sangue e pela
“subjugação” deste, pelo acusado.
Embora ambos fossem menores de idade, o indiciado como
praticante de atos atentatórios fora o mais velho, e foi a quem se atribuiu
a função “ativa” e subjugadora do ato sexual. Para os representantes da
justiça, e para muitos dos populares chamados para testemunhar, o ato
em que consistia a denúncia tratava-se de uma “imoralidade”. Podemos
observar essas questões nos depoimentos de alguns populares que
estiveram com o menor logo depois da prática do ato. José Alves de
Sousa Filho, cunhado do menor, 19 anos, jornaleiro, sabendo ler e
escrever declarou que:

(...) chegou chorando em casa o menor Francisco,


de sete annos, seu cunhado, e tendo o fundo das
calças ensanguentado; que à perguntas da mãe e
insistencia do depoente e de outas pessôas da
família, declarou que Francisco – uma rapazinho
que com ele fora à matta buscar lenha – lhe
derribara e fizera immoralidade; que o
pequeno estava com o annus ferido; que ouviu
dizer que Francisco – o offensor – confessara a
sua mãe ter practicado actos de libidinagem
com o menor Francisco Simphonio (...) (grifos
meus) 50

O estado físico da vítima fora retratado também nas tensões


existentes entre a “violência física e a violência moral”. A “corrupção” e
o ato que atentava contra o pudor e que pervertia o senso moral desses
menores, nesses processos, estavam relacionados às práticas que fugiam
às regras morais de sexualidade. Segundo o promotor de justiça,
mediante parecer elaborado para fundamentar a queixa contra o acusado,
descreveu:

(...) que, no dia 31 de março deste anno, na


Aldeiota, – subúrbio desta Capital, cerca das 15

50
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC); Tribunal de Justiça; Série:
Ações Criminais; Sub-série: Crimes Sexuais; Caixa 01; Processo Nº 1922. Auto
de declaração das testemunhas. p. 14 e 15.
89

horas, tido réu, por depravação moral,


perpetrou copula anal contra a pessoa de
Francisco Gomes, digo – de Francisco
Symphonio do Nascimento, que estava em sua
companhia (...). (grifos meus) 51

O uso de termos como “depravação moral”, “imoralidade”,


“satisfação de instintos bestiais”, “satisfação de baixos instintos”, eram
termos cunhados tanto pelos pareceres dos representantes da lei, como
pelas declarações dos populares. Mesmo fazendo ponderações sobre as
interferências dos escrivães durante as declarações realizadas por estes,
tanto em delegacias, como nas audiências, entendo que muitas das
condenações morais vigentes, em alguns momentos, também eram
compartilhadas pelos grupos mais pobres, que eram a grande maioria
das pessoas que apareciam nesses processos. Homens e mulheres
recorreram à justiça como forma de resolver casos de violências morais
e sexuais contra seus familiares. No entanto, nem todas as pessoas eram
“dignas” ou dispunham de “comprovações verificáveis” a respeito da
violência que acreditavam ser vítimas. A vontade de buscar a resolução
para muitos desses crimes era desproporcional, em muitos casos, às
diferentes hierarquizações existentes em âmbito judicial.
Em termos de pena, esses crimes tinham diferenças concretas, em
que o Estupro acabava por ser um crime mais grave pelas possibilidades
morais de corrupção das mulheres – ameaçadoras de toda a sociedade –
enquanto que o Atentado ao pudor era um crime com punição menor. A
demonstração da maior preocupação com a honra das mulheres –
principalmente as mais jovens – pôde ser indicada nas próprias
modificações em âmbito nacional que sucederam ao Código Penal, no
ano de 1915. Os crimes de Atentados ao pudor sofreram modificações
em 1915 e tiveram suas penas reduzidas, enquanto que os crimes de
Lenocínio – “cafetismo” – (Art. 277 e Art. 278) tiveram suas penas
máximas aumentadas de dois para três anos de prisão, e as multas
também tiveram os valores aumentados.
No entanto, para além da penalidade e da questão punitiva é
pertinente destacar que – nesse momento de reformas urbanas, de
criminalização da pobreza, de discursos sobre comportamentos
idealizados de homens e mulheres, e de afirmação dos discursos

51
(APEC), Processo Nº 1922. Relatório da Promotoria. p. 43.
90

científicos de poder – as delegacias e os tribunais da cidade de Fortaleza


foram espaços educativos sobre os comportamentos sexuais idealizados
para homens e mulheres, em prol de uma sociedade limpa, progressista e
higienizada. E nesse sentido, as relações sexuais relacionadas ou
alinhadas à violência, longe de representarem práticas fundamentadas
em corpos limpos, saudáveis e preparados para a reprodução,
apresentaram-se, nesses processos, pela sua relação com o escatológico,
com o enfermo, e por demais desvinculadas da norma heteroreprodutiva
de sexualidade.
Nesse sentido, os crimes de Estupros e Atentados ao pudor em
Fortaleza, demonstraram que além da vontade de punição sobre as
violações que uma pessoa cometia contra outra e contra os preceitos
morais vigentes, servia como forma de discorrer sobre os modelos de
sexo e sexualidade que se aspirava nesse momento, e também, sobre a
forma com que a ideia de violência estava diretamente relacionada às
hierarquias de gênero, e aos discursos disciplinadores da justiça e da
medicina. Além disso, a atuação do poder público nesses conflitos
sexuais se constituía em momentos cujas condutas de homens e
mulheres, crianças e idosos, principalmente os que compunham as
classes pobres fortalezenses, eram colocadas em discussão e avaliadas a
partir dos ideais de masculinidade, feminilidade e família reafirmadas
pela elite fortalezense, que por sua vez, se diferenciavam grandemente
das realidades das famílias pobres da cidade.
As práticas de cópula anal, as violações cometidas contra
crianças, o sexo entre pessoas do mesmo sexo, assim como a
sexualidade na velhice foram práticas contra-ideais àquelas abençoadas
e higienizadas do âmbito familiar. E nesse sentido, uma série de
adjetivações de repulsa e repugnância apareceram nos relatos, versões e
pareceres das pessoas envolvidas nos processos criminais, e
demonstraram os simbolismos de gênero com que esses atos
criminalizáveis eram descritos pelos diversos segmentos da sociedade.

2.3 CORPO PENETRADO, CORPO VIOLADO: O ATO SEXUAL


E OS SIMBOLISMOS DE GÊNERO

Ainda hoje, as dificuldades em se definir como a violência


sexual se constitui – os simbolismos que ela envolve, a sua
materialidade e os preceitos morais norteadores das legislações –
91

marcam disputas políticas entre diversos segmentos sociais, como


juristas, médicos (as), imprensa, e feministas; estas últimas,
denunciando recorrentemente as desigualdades e a dupla moral que
envolvem os procedimentos, os diagnósticos e as conduções dos
inquéritos policiais e processos judiciais sobre esse tipo de violência.
Os crimes de Estupro e Atentado ao pudor, assim como os demais
crimes que atentavam contra a moral e a honra das famílias – dispostos
no Código Penal de 1890 – foram intensamente debatidos nos espaços
legislativos e judiciários no início da República brasileira. Suas
definições eram amplas, diversas e muitas vezes contraditórias, e foram
alvo de várias críticas e de disputas entre diferentes perspectivas do
Direito Criminal que se confrontavam no país nesse momento. Definir
objetivamente o que era “honestidade”, “recato”, e “defloramento”, por
exemplo, era tarefa difícil, visto que se necessitava tanto de suportes
técnicos como de preceitos morais definidos, que possibilitassem uma
atuação mais homogênea dos aparatos policiais e judiciais.
A legislação republicana, os procedimentos “científicos” de
investigação dos crimes – que cada vez mais faziam parte do cotidiano
das grandes cidades – serviram como suporte para a atuação dos
discursos médicos e higienistas das elites bacharelescas brasileiras na
regulamentação dos mais pobres, na busca por disciplinar os corpos, os
desejos e as condutas, principalmente, daqueles e daquelas que não se
alinhavam às normas burguesas de sexualidade e de família.
Na cidade de Fortaleza – recorrentemente ameaçada pelos
aumentos populacionais decorrentes das secas e por enfermidades
epidêmicas – a atuação dos médicos e dos bacharéis do direito
objetivava introduzir novos modelos comportamentais de obediência
civil, de higiene e de saúde pública na “ignorante” massa de pobres e
desvalidos, tornando o trabalho e os modelos higiênicos de família
padrões fundamentais de organização social e de divisão dos “papéis”
sociais que homens e mulheres deveriam assumir. Esses “papéis”
deviam fazer parte, cada vez mais, tanto das famílias da elite, como
principalmente, das famílias pobres tidas como ignorantes e sem noções
de higiene.52

52
É importante destacar, que embora o pensamento médico e higienista atuasse,
especialmente, no cotidiano dos pobres da cidade, as famílias de elite,
principalmente as mulheres, também eram objeto de debate nos círculos
médicos. Um exemplo bastante interessante desse aspecto foram as campanhas
92

O cotidiano criminal nas grandes cidades do Brasil era repleto de


discursos que visavam definir a forma com que a sexualidade de homens
e mulheres deveria se constituir, e quais as implicações morais relativas
a essas condutas. (CAUFIELD, 2000) Para as mulheres, a maternidade,
o lar, e a família eram os lugares em que estas deveriam cumprir seu
“papel social”, e era no âmbito familiar que a sua sexualidade deveria
ser exercida. Do ponto de vista sexual, o feminino simbolizava a
passividade, o recato e o pudor, e como afirma Durval Muniz – sobre os
discursos de feminilidade no início do século XX no Nordeste,
ressaltando a forma com que a horizontalidade das relações sociais
apregoadas pela República relacionava o feminino à horizontalidade: “A
mulher, no próprio ato sexual, representaria esta posição, enquanto o
homem, o poder, o domínio, o ativo, representaria a verticalidade, a
ordem hierárquica que não deveria ser ameaçada”. (ALBUQUERQUE,
2003, p. 32-33)
Ao definir um “campo semântico” para pensar a violência – como
os espaços policiais e judiciais – é necessário analisar quais foram as
situações concretas que ganharam relevância no cotidiano dessa
circunscrição e nortearam a interpretação das denúncias de crimes, no
caso desta pesquisa, dos crimes sexuais. Como atentou o antropólogo
Teófilos Rifiotis, é analisando desse modo que se pode “identificar quais
práticas e discursos estão sendo postos em jogo, pois é a partir deles que
é construída a nossa própria imagem do campo da violência”.
(RIFIOTIS, 1997, p. 10) Ou seja, ao problematizar os elementos físicos
e simbólicos que construíram a violência sexual no cotidiano criminal da
cidade Fortaleza de inícios do século XX, foi possível observar os
discursos e as práticas que demonstraram as diferentes relações de poder
existentes nesse contexto na capital, e também, a própria noção de
violência que se construía em uma articulação para além desse campo. É
o que tal teórico chama de identificar um “rosto singular projetado sobre
a sociedade como um todo”. (RIFIOTIS, 1997, p. 10) Nesse sentido, a
violência ganha historicidade e se coloca como um campo de disputas

encabeçadas na cidade contra as amas-de-leite que amamentavam os filhos e


filhas das famílias mais abastadas. Essa prática fora recorrentemente condenada
pelas autoridades médicas da cidade, e à ela era atribuído uma parcela de culpa
do alto índice de mortalidade infantil nas primeiras décadas do século XX.
Sobre os ideais de maternidade cultivados pelos discursos oficiais em Fortaleza,
ver: (ATAYDE, 2011).
93

contextuais, em que podem ser expressas diferentes formas de concebê-


la e vivenciá-la.
Ao problematizar a forma como o ato sexual apareceu nas
narrativas dos processos crimes em inícios do século XX em Fortaleza, e
de que modo estes se apresentaram na construção do proibido e do
criminalizável, é interessante ressaltar que os jogos de gênero53 foram
peças-chave na composição da trama entre quem acusa e quem defende,
especialmente, na representação dos atos que corromperam,
violentaram, “mancharam a honra”, ou atentaram contra o pudor de
meninos e meninas, homens e mulheres. Mães, pais, parentes e vizinhos,
que apareceram nos processos criminais, significavam, ou seja, davam
sentidos aos atos e situações de violência a partir de variadas
simbologias de gênero. Como afirma Scott, sobre a forma com que
devemos entender o gênero nas diversas sociedades de forma contextual,
devemos dar atenção “aos sistemas de significação, isto é, às maneiras
como as sociedades representam o gênero, utilizam-no para articular
regras de relações sociais ou para construir o sentido da experiência.
Sem o sentido não há experiência; sem processo de significação não há
sentido”. (SCOTT, 1990, p. 8)
As oposições existentes entre as ideias de atividade e passividade
sexual foram um dos principais marcadores simbólicos da construção
das narrativas, relatos e pareceres sobre a imagem dos acusados e das
vítimas de crimes sexuais; e também, sobre as definições da violência
sexual. A partir dos processos aqui analisados, estuprar ou atentar contra

53
Entendo jogos de gênero como mobilizações estratégicas de gênero. Esses
jogos são uma instrumentalização, um artifício de luta para se alcançar um
objetivo particular. Um uso teatral e tático, consciente ou não, de mobilização
de estereótipos de gênero reconhecidos socialmente, com finalidades
específicas. Guardando as devidas proporções espaciais e temporais, tomo como
referência os debates realizados pela historiadora Ana Rita Fonteles, ao discutir
os jogos de gênero nas memórias das mulheres que militaram no Movimento
Feminino pela Anistia no Ceará (MFPA). Tal autora observou a forma com que
as mulheres do movimento mobilizaram o gênero como forma de atuar
politicamente durante o período da ditadura militar no Brasil. O uso estratégico
do gênero – como o reforço do sentimento maternal e o apelo à esfera
sentimental – foi de grande importância para lograrem conquistas para as suas
causas. (FONTELES, 2009) Nesse sentido, utilizar-se do gênero como tática de
fundamentação das narrativas prestadas em âmbito judicial, também foi
estratégia importante nas ações judiciais de crimes sexuais.
94

o pudor de alguém significava, principalmente, “introduzir-se” no corpo


dessa pessoa, significava subjugá-la, violá-la. Para os procedimentos
científicos, as ideias de violência sexual estiveram bastante evidenciadas
pela materialidade penetrativa (como falado anteriormente), e assim, o
corpo violado simbolizava o corpo penetrável, corruptível, um corpo
feminilizado. Caufield, ao se referir às narrativas sobre as violências
sexuais no Rio de Janeiro de inícios do século, chegou a conclusões
muito próximas, destacando que:

A “posse” sexual simbólica pelo homem tomou


forma concreta nesses processos, dado que um
homem que “possuísse” sexualmente uma mulher
virgem a subtraía para a autoridade dos pais e
assumia a responsabilidade sobre a moça.
“Possuir”, no sentido sexual, era um verbo
carregado de noções de gênero: o homem
“possuía” a mulher, nunca vice e versa.
(CAUFIELD, 2000, p. 238)

Além das representações colocadas quando um homem “possuía”


uma mulher, como forma de afirmar que este agora detinha “poder”
sobre ela, é possível pensar que esta lógica que aparecia entranhada
tanto no pensamento dos populares como nos discursos oficiais
encontrados nesses processos, reafirmava a ideia de que estar “passivo”
em uma relação sexual exprimia uma condição feminilizada,
desqualificada, e, portanto, inferiorizada; e também, reforçava uma
definição de violência sexual cuja penetração era a “evidência” da posse.
Assim, o corpo masculino simbolizava o poder sexual, a violência, o
instintivo, o corpo capaz de macular, ao passo que, o corpo feminino
acabava por não ser pensado como um corpo capaz de violar, já que a
“posse” além de não se constituir um atributo feminino, acabava por ser
uma incapacidade fisiológica das mulheres.
Nas diferentes declarações existentes nos processos de crimes
sexuais em Fortaleza foi possível perceber termos e expressões que
construíam e/ou reforçavam discursos sobre as relações entre gênero,
poder, sexo e violência. “Serviu-se da ofendida” ou “serviu-se
analmente do menor”, por exemplo, foram expressões usadas
recorrentemente no decurso dos processos como forma de se referirem
ao ato sexual colocado em questão.
95

No caso que envolveu o menino Geraldino de Oliveira, menor de


sete anos de idade em 1934 foi possível observar alguns desses usos nos
depoimentos de várias testemunhas chamadas a depor, e também, em
alguns pareceres oficiais sobre o acontecido. O caso se tratava de uma
relação de cópula anal entre Geraldino e outro menor que vivia nas
proximidades de sua casa, durante um percurso que fizeram juntos até a
vivenda de uma “rezadeira”. O pai do garoto, senhor João Severino de
Oliveira, vulgo “João Lúcio”, declarou:

(...) que vendo que Geraldino não podia sentar-se


direito, desconfiou da causa de seu choro e lhe
retirou as calças, descobrindo que estas estavam
manchadas de sangue; que diante [ilegível] de
com que interrogou á Geraldino esse acabou por
confessar que de volta de casa da curandeira á
noite, na estrada deserta, o denunciado, o havia
derribado e forçado, servindo-se dele
analmente; que levou o fato, na mesma noite ao
conhecimento de policia em Mecejana, vindo no
dia seguinte para a segunda delegacia desta capital
com o menor ofendido (...)54

Depois da denúncia realizada pelo pai do garoto, várias


testemunhas foram chamadas a depor sobre o que sabiam acerca do ato.
Benedito Alves de Lacerda, 31 anos, casado, sabendo ler e escrever,
declarou:

(...) que no dia quinze de maio deste ano, João


Lucio que trabalha com o depoente no sanatorio
de Mecejana, lhe comunicou, bastante
contrariado, que o denunciado João Pinto havia
se servido analmente do menor Geraldino filho
dele João Lucio; que segundo ouviram dizer, esse
fato se dera no dia anterior á noite (...)55

54
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:
Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 03, Processo Nº 1934/01.
Auto de declaração das testemunhas. p. 38 e 39.
55
(APEC), Processo Nº 1934/01. Auto de declaração das testemunhas. p.35 e
36.
96

Seguindo uma perspectiva bastante próxima da declaração de


Benedito e do pai do menor, a denúncia elaborada pelo promotor de
justiça também se aportou aos simbolismos de gênero em que o ato
sexual fora representado nesse processo. Alegou que:

(...) À noite de 14 de maio ultima, em Mecejana,


andavam juntos os menores visinhos Geraldino de
Oliveira (de 7 anos) e João Pinto (de 16 anos).
Foram á casa da curandeira Maria Raimunda de
Jesus, vulgo “Maria Contente”, nas imediações
daquele povoado, para fazê-la rezar e curar uma
dôr de dentes de João. De volta a Mecejana, cerca
de 20 horas, João convidou Geraldino a ter com
ele relações carnais, e em seguida se serviu
analmente de Geraldino. João Pinto, destarte,
abusando daquele menor, e corrompeu e praticou
contra ele um ato de libidinagem, de que resultou
a lesão retal descrita no auto da fls.5. (...)56

Embora devamos fazer algumas ponderações acerca da


intervenção da figura do escrivão nas declarações nos processos – que
pode ser pensada, inclusive, pelo próprio uso da palavra “analmente”,
termo bastante técnico para a declaração dos populares – é possível
destacar que a ideia de violação e do sentimento de ofensa familiar
causada pelo ato atentatório ao pudor esteve bastante assinalada pelo
“papel passivo” vivenciado por Geraldino. Nesse caso, a questão
simbólica com que é apresentada a situação de inferioridade com que o
menor aparece é fator importante na declaração das testemunhas e dos
pareceres oficiais sobre o caso.
Para além da posse dos homens sobre as mulheres, cujo
significado simbólico era bastante marcado nesse momento no Brasil –
como expresso por Caufield, já que exprimia uma série de outros
simbolismos das relações de gênero desse período – nos crimes de
Atentado ao pudor, ocorridos em Fortaleza, cujas vítimas eram
majoritariamente meninos, as simbologias quanto à questão da posse
também foram recorrentemente utilizadas como forma de exprimir suas
situações de violência, e as ameaças à honra desses menores.

56
(APEC), Processo Nº 1934/01. Denúncia da Promotoria. p. 02.
97

O caso do menino Oswaldo Rodriguez, menor de 10 anos, é


bastante importante para pensar essas simbologias. Em 1926, o soldado
corneteiro João Alves da Silva, de 28 anos de idade, solteiro, cearense,
sabendo ler e escrever, era acusado de atentar contra o pudor do garoto e
praticar com ele “actos de libidinagem”. O fato teria acontecido durante
um percurso que Oswaldo realizava em direção à “bodega” próxima à
sua casa, em companhia de sua irmã mais nova. Segundo a menina, o
garoto teria sido chamado por João Alves para realizar um trabalho para
ele, e por isso, teria seguido em companhia do soldado. Este frequentava
as proximidades da casa de Oswaldo, e já era relativamente conhecido
da sua família e da vizinhança. O senhor José Rodrigues Xavier, pai de
Oswaldo, apesar de não encontrar-se em casa na hora do acontecido, no
momento da prestação de queixa na delegacia, declarou o que
acontecera ao garoto e a situação física em que este se apresentava.
Disse:

(...) que sua mulher lhe informou mais que algum


tempo depois, quando já estavam em casa a sua
sogra e Antonieta, chegou Oswaldo, e entregando
uma moeda de quinhentos reis disse ter sido o
“soldado da Ignezinha que lhe dera”; que
perguntando sua mulher o motivo daquella dadiva,
Oswaldo declarou, depois de alguns instantes que
o soldado o levara para os mattos e mandara
deitar, ficando por cima, depois de lhe tirar as
calças; que Oswaldo chegou em casa, segundo lhe
disse sua mulher, segundo lhe disse sua mulher,
com as nádegas e calças todas sujas de fezes
(...).57 (grifos meus)

A narrativa do acusado também traz algumas questões sobre as


representações de gênero durante o ato sexual, demonstrando a forma
com que a defesa e a acusação se ancoraram nesses elementos. Declarou
que:

57
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:
Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 01, Processo Nº 1926-1.
Auto de declaração das testemunhas. p. 04 e 05. O documento original possui a
repetição do trecho “segundo sua mulher”. Como afirmado anteriormente, optei
por manter a literalidade do documento no momento da transcrição.
98

(...) domingo, trinta e um do governo ultimo, cerca


das quatorze horas, o depoente encontrou na
estrada que vae para o Cocó o menor Oswaldo que
era acompanhado de uma irmãzinha, menor de
uns 10 annos de idade, os quaes vinham de uma
bodega, onde foram fazer compras; que já tendo
ouvido dizer que Oswaldo era pederasta passivo,
o depoente o convidou para ir para as capoeiras,
perguntando-lhe se já tivera relações com alguém;
que respondendo Oswaldo já ter andado com
outros, que lhes davam dinheiro, o depoente o
levou para os mattos e contra ele praticou actos
de libidinagem, tendo relações com o menor
pelo annus; que para ter relações com o menor
Oswaldo lhe tirou as calças e o mandou deitar,
deitando-se por cima; que Oswaldo não chorou,
dando-lhe o depoente a quantia de quinhentos reis,
– uma moeda; que Oswaldo depois lhe pediu um
cigarro, o que o depoente deu, saindo e mesmo
para casa; que não fez nenhuma violência contra
Oswaldo, introduzindo o pênis no annus do
mesmo com todo o cuidado; que quando
encontrou Oswaldo e o levou para a capoeira a
que se referiu, ele nenhuma objeção oppoz, indo
de espontânea vontade, quando o convidou; que
nessa occaseão a menor que o acompanhava se
dirigiu para casa; que, como disse introduziu o
pennis no annus de Oswaldo, consumando o coito.
Nada mais disse. (grifos meus)58

A declaração do acusado gira em torno de dois elementos


centrais: o primeiro – bastante comum nas narrativas de defesa dos
acusados, e também, recorrentemente utilizado nos casos envolvendo
mulheres de distintas idades – foi a demonstração da não inocência do
garoto diante da situação. Ao afirmar ter dado dinheiro ao menor e ao
apresentar a “fama” do garoto como “pederasta passivo”, o acusado
buscava construir imagens bastante diferentes de inocência e
passividade sobre a questão sexual, que acabavam sendo, no cotidiano
criminal, requisitos importantes para a confirmação moral da violência.

58
(APEC), Processo Nº 1926/01. Auto de declaração das testemunhas. p. 9 e 10.
99

O segundo elemento se referiu à forma com que João Alves expôs


a sua “atividade” no ato sexual. Ao indicar que havia pedido que o
menino se deitasse, para que em seguida ele fosse “deitando-se em
cima”, o denunciado buscava demonstrar que mantinha a sua virilidade
mesmo se tratando de uma relação que envolvesse um desejo sexual por
um garoto. Buscando certificar o fato de este não ter sido vítima de
violência – já que teria ido por vontade própria, e também por ter
colocado o pênis no seu ânus “com todo o cuidado” – e ao mesmo
tempo, destacando a sua virilidade durante o ato sexual, o acusado se
apropriava das construções simbólicas da sexualidade masculina, cuja
dominação, a posse, e a virilidade eram marcadores desse
comportamento sexual, e, portanto, serviriam como elemento discursivo
nos relatos de quem buscava justificar-se diante de um ato de violência
sexual.
Nesses crimes, envolvendo homens como acusados e meninos
como vítimas é possível perceber uma maior complexidade das relações
entre “sexo fisiológico, papel social, e papel sexual”, como diferencia
Peter Fry (FRY; MACRAE, 1983, p. 47), e as implicações trazidas por
esses termos nos processos de crime sexual na cidade de Fortaleza em
inícios do século XX. Embora esse comportamento fosse passível de
condenação moral, a prática de sodomia, no geral, não era algo que
necessariamente se contraditava a masculinidade; ao contrário, ela podia
simbolizar poder e virilidade.
Mesmo que essa virilidade devesse ser alvo de controle em uma
sociedade civilizada em moldes burgueses, a manutenção da ideia de
instinto masculino quanto à questão da sexualidade, e a naturalização da
relação feminino/passividade/recato, também foram referências morais,
tanto para os discursos oficiais, como para os relatos dos populares para
pensar as relações de gênero, a violência sexual e a questão da honra
familiar.
Alguns testemunhos chamados a depor sobre o caso de Oswaldo
referiram-se, também, ao aspecto libidinoso desse ato sexual, cujo
menor assumia uma mácula de feminilidade: ele era o passivo, o
penetrado. Manoel Ferreira de França, com vinte e seis anos, marítimo,
sabendo ler e escrever, declarou sobre o caso: “Que para satisfação de
seus baixos instintos o mesmo soldado promettera e dera ao menor a
100

quantia de quinhentos reis; Que ouviu o menor dizer que o soldado


tinha introduzido seu membro viril no annus do mesmo menor (...)” 59.
Tomando como referência as reflexões de Peter Fry sobre as
relações entre pessoas do mesmo sexo desde fins do século XIX:

(...) podemos dizer que a concepção popular


brasileira da sexualidade fala mais de
“masculinidade” e “feminilidade”, de “atividade”
e de “passividade”, de “quem está por cima” e de
“quem está por baixo” do que sobre
heterossexualidade e homossexualidade, que são
aspectos que entram no esquema sorrateiramente,
por assim dizer. (FRY, 1983: 49).

Para o caso de Oswaldo, embora se tratando de dois corpos


fisiologicamente masculinos, o “papel sexual” assumido pelo “pobre
garoto” nessas narrativas era feminilizado e degradante. Para as pessoas
que testemunhavam sobre o delito, a pouca idade, a inocência do
menino, e, portanto, a sua condição “passiva”, de forma literal –
assumiam, nesse momento, os principais argumentos para construir os
jogos de gênero sobre o aspecto de subjugação do menor, e, portanto, de
validação da queixa.
Novamente, aqui, existe uma mescla entre os danos físicos e
morais nos discursos jurídicos sobre o julgamento desses atos. Por se
tratar, majoritariamente, de crimes contra crianças e adolescentes – entre
as idades de 5 e 16 anos – grande parte desses crimes se apoiaram em
narrativas duais, cuja relação entre vítimas e acusados representavam
duas perspectivas principais: réu-masculinidade-malícia-atividade-
violência, e vítima-feminilidade-inocência-passividade-incapacidade de
defesa. Desse modo, a criança assumia o lugar do feminino, do corpo
suscetível às violações viris. O corpo infantil, frágil e vulnerável, do
ponto de vista sexual, fez o ato de violência ser ainda mais repugnante e
incompreensível. A tentativa de naturalizar a falta de desejo e a
curiosidade sexual na infância, a passividade feminina e o
comportamento instintivo masculino sobre o sexo, constituíram as
tramas entre quem acusa e quem defende, demonstrando os males em
que aquele ato se configurava.

59
(APEC), Processo Nº 1926/01. Auto de declaração das testemunhas. p. 20.
101

Ainda assim, mesmo destacando a “crueldade” com que o crime


contra o menor Oswaldo acontecera, o processo culminou em um pedido
de pagamento de fiança de trezentos mil reis – como possibilitava o
Código penal após 1915 para os casos de Atentados ao pudor –, punição
que pareceu ficar sem resposta, visto que como afirmou o Comandante
do Regimento que o réu era integrante, “o corneteiro constante do
referido officio, se encontra no sul da Republica, incorporado ao
Exercito Nacional, á disposição do Exmº Snr. General João Gomes
Ribeiro Filho, Commandante das Forças em Operações no Norte da
Republica” 60.
No caso de Oswaldo, mesmo havendo confissão por parte do
acusado, confirmações testemunhais e “materialidade”, a punição do réu
aconteceu de forma bastante modesta se comparado aos crimes de
Estupro praticados contra meninas menores de idade, embora o
sentimento de violação da família aparecesse de forma muito próxima.
Novamente, reitero que um dos principais elementos compositores do
aspecto disciplinar não se referisse simplesmente à punição, mas ao
aspecto educativo sobre as pessoas e as práticas sexuais que iam a juízo
no cotidiano criminal da cidade.
É importante observar que, nos dois casos aqui apresentados, as
figuras paternas apareceram de forma bastante forte durante a
investigação e no decorrer de todo o processo criminal61. Nesse sentido,
entendo que é possível alargar algumas reflexões levantadas por Noélia
Alves de Sousa62, sobre a questão da honra masculina nos processos de
crimes de violência contra as mulheres entre as décadas de 20 e 30 na
cidade de Fortaleza, ao afirmar que:

60
(APEC), Processo Nº 1926/01. Ofício expedido pela chefatura de polícia, em
10 de março de 1926.
61
Nem sempre as figuras paternas foram muito presentes nos casos de crimes
sexuais em Fortaleza, visto que, grande parte dos crimes aqui analisados tinham
as mães como figuras centrais para a realização da queixa e para a mobilização
da vizinhança para a apuração do caso. As questões que envolvem esse
cotidiano familiar das pessoas envolvidas em processos de crimes sexuais serão
melhor exploradas no terceiro capítulo deste trabalho.
62
O objetivo do artigo de Noélia foi pensar a forma com que várias
justificativas realizadas por acusados de casos de agressões e assassinatos de
mulheres em Fortaleza, podia ser pensado em termos de defender a honra “dos
homens de bem”, ou seja, dos homens que buscavam ter a sua visão pública
preservada.
102

(...) além de pública, a honra fundamentava-se em


qualidades e virtudes reconhecidas pelo corpo
social. No caso dos homens, essas qualidades se
explicitavam nas questões relacionadas ao
exercício da sexualidade. Todavia, não era a
questão da sexualidade masculina que lhes definia
essa honra e sim as práticas sexuais das mulheres
que a eles estavam ligadas por laços familiares ou
emocionais. (SOUSA, 2010, p. 157)

Para os casos de violência sexual, durante o período aqui


estudado e que também fora explorado por Noélia, a questão da honra
masculina pode ser considerada para além dos crimes de agressões e
assassinatos de mulheres. No relato do pai de Geraldino, a postura com
que este se apresentou no momento da queixa, logo após saber do
acontecido por intermédio de sua esposa, ressaltando ter prontamente se
remetido às autoridades para esclarecer o caso, nos possibilita pensar
que o tipo de violação vivenciada pelo seu filho também fosse algo que
atingisse à honra do garoto e também de toda a família.
Nesse sentido, o que intentei esboçar aqui foram conflitos e
narrativas de experiências de violências que estiveram extremamente
marcadas por significações baseadas em relações e noções de gênero –
tanto no plano físico como no simbólico. E assim, se pode compreender
que muitas das noções apresentadas sobre sexo, sexualidade e violência
eram concepções que muitas vezes eram compartilhadas entre os
populares e os representantes dos discursos oficiais existentes nos
processos. Ao analisar esses elementos simbólicos em que muitos dos
atos sexuais foram representados é possível pensar que a situação de
ocupar um “papel sexual feminino”, principalmente, nos casos que
envolviam meninos vítimas de Atentado ao pudor – que priorizei nesse
tópico – era uma posição vista de forma inferiorizada. Nesse sentido, é
necessário demarcar que o uso de adjetivos e símbolos que possuíam
conotações de gênero foi tática utilizada pelas pessoas envolvidas em
contendas policiais e judiciais, principalmente, quando relacionado à
sexualidade, e que produziam sentidos sobre a violência.
Finalmente, é importante salientar que a relação entre violência e
gênero esteve diretamente marcada pelas condições sociais em que
acusados e vítimas estiveram inseridos, e pelos discursos de
feminilidade recatada e reprodutora, e masculinidade viril e provedora
103

que se tinha nesse momento. Desse modo, pensar a forma como a justiça
fortalezense atuou na compreensão da violência para os crimes sexuais e
como esses estavam imbricados por simbologias e hierarquias de gênero
foi o desafio proposto neste capítulo.
Os discursos disciplinadores no âmbito criminal em Fortaleza
construíram sobre o tema da violência sexual uma imagem que
ressaltava o aspecto “anormal”, fora da ordem das condutas e dos
desejos. Manter relações sexuais com crianças, praticar sexo “com fins
lascivos” e não reprodutivos, delineava a violência sexual no plano do
específico. Os acusados desses crimes, aos poucos, eram construídos no
decorrer dos julgamentos dos processos criminais, por sua
“bestialidade”, “covardia”, e “repugnância”, e o próprio ato de violência
sexual era entendido, muitas vezes, pela má conduta generalizada do
acusado, e muito menos, por uma violência de gênero.
A legislação republicana, ao instituir o casamento como divisor
moral da sexualidade saudável, tendo a virgindade e a pureza como os
maiores bens morais e jurídicos a serem preservados, distanciavam as
possibilidades de que mulheres adultas, prostitutas e ou meninas com
comportamentos considerados não tão “honestos” pudessem ser
entendidas como pessoas suscetíveis a “proteção legal” em casos de
violências sexuais. Nos crimes encontrados em Fortaleza, a preocupação
cada vez maior com a cidade higiênica, a maternidade saudável, a
mortalidade infantil, e a construção de filhos fortes para a nação
relacionou, cada vez mais, os comportamentos sexuais idealizados aos
objetivos de produzir bons cidadãos para a sociedade; e por isso, a
preocupação com os casos que envolvessem mulheres jovens e crianças
girava em torno das lesões que esses crimes poderiam deixar para a
posteridade.
Por isso, a partir da análise das ideias de violência manejadas
pelos diversos pareceres e relatos encontrados nesses processos, foi
possível perceber que durante as primeiras décadas do século passado,
as classificações e as imagens construídas para as pessoas acusadas e
ofendidas nos crimes sexuais em Fortaleza, estiveram diretamente
marcadas pelos “papéis” de gênero desejados nesse momento, e que
foram reforçados nos momentos de mudanças políticas, sociais e
culturais que a cidade vivia desde o fim do século XIX.
Os debates suscitados por esses processos demonstraram os
anseios das elites bacharelescas em tornar a capital livre dos estigmas da
104

degeneração, da doença e dos vícios – que tanto assombraram as elites


fortalezenses, especialmente nos períodos de migrações decorrentes da
seca – apresentando explícita ou implicitamente uma estigmatização dos
setores mais pobres. No entanto, observei também, que muitas das
relações de violência aqui apresentadas estiveram marcadas por
hierarquias de gênero que transitaram de forma mais complexa entre as
camadas populares e as elites fortalezenses, e que demonstraram
diversas relações de poder existentes no cotidiano da cidade.
105

3 CAPÍTULO 2 – CONSTRUINDO O CRIMINOSO SEXUAL:


ENTRE DEGENERADOS E REPRESENTANTES DA
ORDEM

(...) que além do mais ainda se encontrava com


cancros venereos no membro viril, o que mais
agrava o seu delicto. Junto ao presente relatório
vae a identificação do criminozo, tendo ao seu
lado o retrato da pequenina victima, no estado em
que se encontra, tirado em um dos leitos da
“Santa Casa de Misericordia.63

3.1 A VIDA ERRANTE: HOMEM DE COR, DESREGRADO E


SEM MORAL

O trecho acima trata do relatório do delegado responsável pelo


caso de Estupro da menor Maria da Conceição em 1926. Um dos
grandes elementos usados pelos delegados e pelos homens da justiça
como forma de construir a imagem dos réus foi mostrar as polaridades
físicas e psicológicas existentes entre os denunciados e as ofendidas.
Esse trecho refere-se às imagens existentes na Ficha de Identificação do
denunciado Manoel Norberto, que constava sua fotografia e a da vítima,
além dos seus dados pessoais.

63
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:
Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 02, Processo Nº 1926/02.
Relatório do Inspetor. p.18.
106

Imagem 1
107

Imagem 2
108

A fotografia como utensílio utilizado nos processos criminais na


cidade de Fortaleza no início do século XX era algo bastante incerto,
aparecendo mais constantemente a partir dos anos 1920, colaborando na
identificação e qualificação dos acusados que chegavam às delegacias da
cidade. Embora alguns dos processos utilizados nesta pesquisa possuam
fotografias, e geralmente apenas dos réus, as imagens geralmente
encontram-se desgastadas, dificultando a visualização das fisionomias
fotografadas. Diferentemente da regra, no processo contra Manoel
Norberto em 1926, além das imagens produzidas na delegacia se
encontrarem em excelente estado de conservação, na Ficha de
Identificação existia tanto a foto do acusado, como a da ofendida.
A fotografia retirada de Manoel Norberto, como todas as outras
imagens existentes dos acusados, foi retirada na delegacia, e neste caso
após a sua prisão preventiva; enquanto que a imagem de Maria da
Conceição foi produzida no leito da Santa Casa de Misericórdia, no
momento em que a menor se encontrava internada após o acontecido. É
possível pensar o empenho realizado para se registrar a condição de
enfermidade da vítima, já que houve todo um deslocamento para a
produção de sua imagem no leito do hospital, situação não muito
comum em comparação a outros processos.
Esses retratos compuseram um texto na Ficha de Identificação do
acusado. Este aparece representado já no inquérito policial na condição
de réu. Disposto em um retrato de frente e perfil em que se pode
observar uma fisionomia séria, nessa imagem também foi demonstrada a
mediação craniana do acusado. Essa apresentação de Manoel Norberto
na Ficha de Identificação estabelece um conflito direto com a imagem
exposta da vítima. Maria da Conceição foi apresentada a partir de uma
composição que evidencia sua fragilidade e enfermidade. A fisionomia
de sofrimento, juntada à exposição de sua imagem envolvida nos lençóis
do hospital, produziram uma representação da figura da vítima nesse
processo. Como afirmou o promotor acima, a imagem da “pequenina
vítima” foi mostrada como forma de conflito à imagem construída sobre
a figura do réu.
A existência da fotografia de Maria da Conceição na Ficha de
Identificação, que teoricamente seria exclusiva para classificação,
medição e representação do acusado, não foi feita de forma inocente. A
tentativa de conflitar as imagens dos acusados e das ofendidas foi uma
tática discursiva bastante explorada pelas diversas pessoas chamadas a
109

depor sobre os casos de crimes sexuais, pelos representantes da justiça,


especialmente pela promotoria. Para se discutir a violência sexual era de
fundamental relevância analisar os comportamentos, os hábitos, as
sociabilidades, o “histórico” de acusados e ofendidas. O significado da
violência, como visto no capítulo anterior, estava diretamente
relacionado às condutas daquelas e daqueles que estiveram
envolvidos(as).
No caso dos denunciados, saber suas procedências, suas
características mais marcantes e suas reputações foram os principais
questionamentos efetuados na condução da investigação policial, e
também, das audiências judiciais. Dessa maneira, a vizinhança e a
parentela eram peças chaves nessas construções, pois era a partir de seus
depoimentos que se conhecia a “fama” das pessoas envolvidas, requisito
fundamental na formação da culpa dos acusados e norteadores dos
diferentes embates existentes nessas ações. E nesse sentido, o objetivo
deste tópico é analisar os conflitos estabelecidos entre os “conhecidos” e
os acusados que compuseram os crimes aqui estudados. Com o objetivo
de problematizar quais as principais questões utilizadas como forma de
acusação e de defesa dos homens denunciados por crimes sexuais, e
quais as principais embates em torno dos ideais de masculinidade que
circulavam em Fortaleza no início do século passado, neste ponto,
pretendo discutir como esses elementos foram apresentados em âmbito
judicial e puderam compor discursivamente os homens colocados em
julgamento.
Compreendendo as diferentes relações de poder existentes no
cotidiano dos populares busquei mapear os principais elementos
mobilizados nos relatos dos depoentes para a qualificação ou
desqualificação das pessoas acusadas nesses processos. E desse modo,
pretendi refletir sobre as diferentes relações que essas pessoas
estabeleceram com a cidade em inícios do século, atentando para a
forma com que as interpretações sobre “o criminoso sexual” e a própria
violência sexual se constituíam em âmbito judicial naquele momento.
A figura de Manoel Norberto é bastante interessante para pensar a
imagem do criminoso debatido em fins do século XIX e inícios do
século XX no Brasil. Retirante do interior, negro, pobre, “dado às
bebidas”, possuidor de doenças venéreas, acusado de roubo, casado e
reincidente em crime de estupro, o acusado tinha várias das
características mais contrárias à figura do “homem de bem” da
110

sociedade cearense nesse período. A necessidade de se construir uma


figura masculina cujos atributos centrais fossem marcados pelo bom
trabalhador, pela disciplina, pela boa “higiene”, assim como pelo
exercício da autoridade familiar, era diretamente confrontada com a vida
de muitos dos acusados de diferentes crimes cometidos na cidade, em
especial dos crimes estudados nesta pesquisa.
Os relatos das testemunhas que faziam parte do cotidiano das
pessoas envolvidas em processos criminais – como familiares e vizinhos
(e em muitos casos, as pessoas eram as duas coisas) – eram
fundamentais na confirmação, ou não, da boa conduta daqueles que
estavam comprometidos em ações judiciais. As intrigas cotidianas, os
preconceitos raciais e as hierarquias sociais eram constantemente
manifestadas nos relatos que buscavam construir as defesas e acusações
durante essas ações. No caso dos acusados de crimes sexuais, as
exigências dos “papeis de gênero” que teoricamente deveriam assumir,
eram condutoras centrais de significação desses relatos.
O uso de referenciais de gênero podia ser percebido no seu
entrelace com as características raciais e com a condição social em que
estes acusados estavam inseridos, e, muitas vezes, buscavam mostrar “a
vida desregrada” levada por esses homens, como forma de
estigmatização social e racial. Essas questões marcaram diretamente o
“julgamento” dos comportamentos e condutas de homens e mulheres na
cidade de Fortaleza em inícios do século XX.
Como afirma a historiadora Margareth Rago, a intenção de fazer
com que os homens pobres, especialmente os trabalhadores fabris,
fossem disciplinados a assumir a rotina de trabalho como marcadora do
seu tempo, a dedicar-se a um casamento monogâmico, e a aproveitarem
o ambiente do lar como principal espaço de lazer e sociabilidade, fez
com que vários setores da sociedade brasileira, como os médicos,
juristas, burgueses donos de fábricas e a Igreja Católica, se somassem na
propagação de um perfil de “homem ideal” para as cidades que se
modernizavam. (RAGO, 1985, p. 180-181) Apesar de se referir a uma
realidade de São Paulo, muitos dessas questões que visavam a
disciplinarização dos homens, em especial dos pobres, também fizeram
parte da Fortaleza de inícios do século XX. Assim, muitas das contendas
diárias em que esses homens estavam envolvidos eram marcadas por
essas referências, seja nas acusações e defesas entre as testemunhas, seja
111

pela atuação dos aparelhos estatais da polícia e da justiça, e dos médicos


legistas.
Para o caso da capital cearense, além dos desafios colocados para
as elites da cidade sobre a disciplinarização para fins de modernização e
para a construção da imagem de um “homem de bem”, o contra fluxo de
misérias, representado pelos aumentos populacionais periódicos,
decorrentes das migrações de pessoas pobres para a capital, fez com que
os embates cotidianos relacionados à criminalidade se expressassem de
maneiras mais complexas e específicas. Nesse sentido, os discursos
sobre a masculinidade, a violência e a sexualidade assumirem outras
referências sociais.
No caso do acima citado Manoel Norberto, esse entrelaçamento
foi bastante característico dos diferentes depoimentos que compuseram
os dois processos em que esteve envolvido. Grande parte dos adjetivos
atribuídos a ele foram lembrados, enfatizados e debatidos pelas
diferentes pessoas que depuseram no inquérito policial e no processo de
acusação, e também, pelas “autoridades científicas” que trataram de
“decifrar” as origens de seus comportamentos desviados. Dos
testemunhos ouvidos nos dois processos contra Norberto, as
características que mais lhe foram atribuídas, se referiam à sua cor, e
também, ao fato de que o acusado possuiria uma vida “desregrada”.
O caso em que fora acusado em 1926, consistia em um estupro
realizado contra a menor Maria da Conceição, de 11 anos, no momento
em que sua mãe encontrava-se trabalhando fora de casa. Essa menor
(retratada na imagem mostrada anteriormente) era filha única de uma
mãe viúva, e teria sido estuprada no momento que se encontrava sozinha
em casa. A cor do acusado foi elemento marcante na descrição da
vizinhança sobre a figura de Manuel Norberto, o que por sua vez, pode
ser explicado pela falta de proximidade deste com a vizinhança que fora
chamada a depor no caso, pois se encontrava a pouco tempo na cidade.
Esse elemento fez com que Manuel Norberto fosse descrito no decorrer
da formação da culpa, principalmente, pelas suas características físicas.
A questão da cor apareceu com frequência como a principal
característica e a principal desqualificação encontrada nos relatos das
pessoas que depuseram em sua acusação.
O denunciado era pouco conhecido das pessoas, vivendo a não
muito tempo no bairro do Alagadiço, lugar em que teria acontecido o
crime, e, portanto, poucas questões sobre seus antecedentes conseguiram
112

ser exploradas durante o julgamento. No entanto, é possível perceber


que a vizinhança ocupou papel fundamental na caracterização do
acusado, ressaltando as características que pareceram melhor definir o
seu aspecto de criminoso, e o crime em questão. A demonstração de
seus caracteres físicos, e o relato de um furto que teria sido cometido na
oportunidade do estupro da menor, buscava indicar como o acusado era
um homem “desregrado”, que além de violentador de menores, era
também um “bêbado” e um “ladrão”.
Manoel Norberto era um retirante oriundo do Crato64 e estava há
alguns anos “indo e vindo” tentando a vida em diferentes cidades. Sua
profissão – declarada apenas no segundo processo – é de “agricultor”, e
segundo ele, estava em Fortaleza em busca de outros “afazeres”. As
sequentes secas na região, certamente, tiveram grande influência nas
frequentes migrações efetuadas pelo acusado, especialmente na década
de 1920. A vinda para Fortaleza em meados do ano de 1926 foi mais
facilitada porque durante esse período ainda não havia sido construído,
na região do Crato, o Campo de Concentração do Buriti que tinha o
objetivo de barrar a vinda de retirantes da seca de 1932 para a cidade de
Fortaleza. No primeiro processo contra Norberto, em 1926, pouco foi
aprofundado sobre o seu histórico de vida, o que aconteceu de forma
bastante intensa em 1933 quando já era reincidente em crime de estupro,
e se encontrava novamente na cidade de Fortaleza, mesmo com as
iniciativas de conter muitos retirantes em suas terras natais.
Norberto, depois de cumprir pena pelo primeiro caso de estupro e
de ter sido preso várias outras vezes por delitos como roubo e agressão
física, aparece no segundo processo como um criminoso perigoso, tendo
o seu histórico social e biológico estudado durante o julgamento.65
64
O Crato é um município que se encontra no extremo-sul do Ceará e que faz
divisa com o estado de Pernambuco, compondo a Microrregião chamada Cariri.
Essa região sofrera grandemente com as secas que assolaram a região em fins
do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Foi um dos lugares onde
foram construídos campos de concentração com o intuito de barrar a migração
do interior do estado para a cidade de Fortaleza. O “campo do Buruti”
construído em abril de 1932, e popularmente conhecido como o “curral do
Buriti”, chegou a abrigar, segundo o historiador Frederico Neves, cerca de 60
mil retirantes da seca de 1932, e ficou conhecido como um dos maiores campos
de concentração construídos no Ceará durante esse período. (NEVES, 1995, p.
109)
65
Uma análise sobre essa percepção cientificista explorada no crime de 1933
113

No processo em 1926, a participação da vizinhança fora


fundamental para a sua identificação, prisão e condenação. O crime
acontecera no bairro do Alagadiço, lugar onde vivia grande parte das
famílias pobres de Fortaleza, e também, lugar de morada de muitas
pessoas originárias do antigo Campo de Concentração do Alagadiço,
construído na seca de 1915 na própria cidade de Fortaleza.66 Segundo os
testemunhos do Inquérito policial, o acusado antes de praticar o crime
contra a menor, esteve em uma taberna onde “comprou pão, bananas,
bebeu aguardente e retirou-se” 67; e depois de já encontrar-se bêbado,
teria se dirigido à casa da ofendida e praticado o estupro. A vizinhança,
que primeiramente prestou socorros à menor, ao relatar e denunciar o
caso ao sub-delegado, apresenta o acusado a partir de suas
características físicas mais marcantes. Essas características observadas a
partir dos Autos de declaração foram expressas referindo-se às suas
características raciais, em especial, a sua cor.
Podemos observar tais questões nos testemunhos de Antonio
Ferreira da Silva, de 28 anos, trabalhador, residente no Alagadiço, não
sabendo ler nem escrever; Alvina Ferreira da Silva, 16 anos, lavadeira,
residente no Alagadiço, não sabendo ler nem escrever; e de Abel de
Oliveira, carpinteiro, residente no Alagadiço, não sabendo ler nem
escrever, sendo este, o dono da taberna em que o réu teria bebido antes
do momento do crime. Nos relatos emitidos para o inquérito policial,
respectivamente, declararam:

(...) Que mais tarde, soube ter sido preso o negro


acusado, cujo crime confessou; Que uma vez
preso o acusado soube chamar-se Manoel
Norberto dos Santos (...) Que elle testemunha sabe
ter o acusado, após a perpretação do crime,
furtado da casa de Maria Pedra dois pratos e

será melhor explorada no tópico 2.2 desde capítulo.


66
Segundo Neves, a tática utilizada pelos administradores públicos sobre a seca
de 1915 fora marcada por uma tentativa de isolar os retirantes na própria cidade
de Fortaleza, aglomerando-os no Campo de Concentração do Alagadiço, como
forma de limitar a circulação desses na cidade. Já na seca de 1932, o objetivo
era controlar a vinda dos retirantes ainda no interior, buscando limitar ao
máximo a chegada destes na capital. (NEVES, 1995, p. 109)
67
(APEC), Processo Nº 1926/02. Auto de declaração das testemunhas. p.15.
114
68
uma tijella e vendidos em uma bodega (...)
(grifos meus)

(...) Que mais tarde a depoente soube ter sido


preso o auctor do crime da menor Maria, o qual é
um negro de nome Manoel Norberto (...); Que o
acusado depois de haver commetido o crime,
furtou da casa de Maria Pedra dois pratos e
uma tijella os quaes vendeu em uma bodega
(...)”. 69 (grifos meus)

(...) Que logo depois, chegara na bodega da


testemunha duas praças do “Esquadrão de
Cavalharia”, montadas, as quaes de ordem do sub-
delegado de Barro Vermelho, Tenente David,
indagaram da testemunha se por alli não havia
passado um preto vestindo uma calça escura e
uma camisa de riscado (...); Que sendo lembrado
por uma moça o nome do accusado, ella
testemunha informou então as praças que, de
facto, em sua bodega estivera o accusado o qual
lhe vendera dois pratos e uma tijella; Que, nessa
ocasião, as duas praças referidas contaram á
testemunha o que havia se passado, isto é, que o
tal preto que procuravam havia estuprado uma
menor (...); Que logo que soube que os objectos
que havia comprado ao accusado eram
furtados, fez entrega immediata dos mesmos ao
Tenente David, os quaes foram restituídos ao seu
dono, que era Maria Pedra, mãe da offendida, de
cuja casa o accusado havia furtado (...) 70. (grifos
meus)

Além das narrativas desses testemunhos, a descrição realizada


pela vizinha da menor Joanna Ferreira da Silva, 40 anos, lavadeira,
residente no Alagadiço, não sabe ler nem escrever; e pela mãe da
ofendida, Maria Pedra, 38 anos, lavadeira, não sabendo ler nem

68
(APEC), Processo Nº 1926/02. Auto de declaração das testemunhas. p. 13-14.
69
(APEC), Processo Nº 1926/02. Auto de declaração das testemunhas. p. 14-15.
70
(APEC), Processo Nº 1926/02. Auto de declaração das testemunhas. p. 15-16.
115

escrever, também expressaram essas referências quanto aos marcadores


físicos do acusado. Disseram, respectivamente:

(...) Que no dia dezoito do corrente, mais ou


menos a uma hora da tarde, Maria Pedra, que se
achava lavando roupa juntamente com a
testemunha, fora avisada de que sua filha Maria
havia sido estuprada por um negro; Que Maria
Pedra sahiu correndo em procura de casa, sendo
acompanhada pela testemunha (...).71 (grifos
meus)

(...) Que ao encontrar sua filha, foi perguntando o


que havia acontecido, ao que esta respondeu que
um negro chegando em casa havia pedido um
caneco de agua (...); Que o accusado ao retirar-se
de sua casa, onde cometteu o crime, conduziu um
casal de pratos e uma tijella, os quaes vendeu
em uma taberna (...); Que, mais tarde, soube que
o criminoso fôra preso por praças de Cavallaria e
ter confessado o crime; Que soube depois
igualmente que o autor do estupramento de sua
filha é um negro de nome Manoel Norberto
Maximiano dos Santos (...)72. (grifos meus)

Dos relatos emitidos pelas testemunhas acima, as referências


feitas ao acusado Manoel Norberto, em grande maioria, realizadas junto
aos termos “negro” ou “preto” pareciam indicar mais do que a cor da
sua pele, mas também, ser usadas como atribuição às dimensões social,
econômica e psicológica do acusado. Nesse sentido, as questões raciais
somaram-se às qualificações destacadas pela vizinhança acerca do
denunciado. Como afirma Stuart Hall, descrevendo a sua compreensão
do conceito de raça, afirma que:

(...) raça é uma categoria discursiva e não uma


categoria biológica. Isto é, ela é a categoria
organizadora daquelas formas de falar, daqueles
sistemas de representação e práticas sociais

71
(APEC), Processo Nº 1926/02. Auto de declaração das testemunhas. p. 15-16.
72
(APEC), Processo Nº 1926/02. Auto de declaração das testemunhas. p.10.
116

(discursos) que utilizam um conjunto frouxo,


frequentemente pouco específico, de diferenças
em termos de características físicas – cor da pele,
textura do cabelo, características físicas e
corporais, etc. – como também marcas simbólicas,
a fim de diferenciar socialmente um grupo de
outro. (HALL, 2006, p. 63)

Nesse sentido, foi na “frouxidão” desses usos e dessas


representações sociais, identificados nos elementos de diferenciações
físicas e simbólicas, que os processos contra homens negros na cidade
de Fortaleza estavam repletos de termos que marcavam diferenciações
entre as pessoas e os grupos. O elemento da cor da pele era notoriamente
evocado como forma de hierarquização entre as partes interessadas que
compunham as ações criminais.
No caso de Norberto, além de uma evidente identificação, a
hierarquização colocada para sua cor foi amplamente utilizada como
uma característica desqualificadora entre os populares que depuseram
sobre o ocorrido. A marca dessa referência física esteve presente nas
duas ações que o envolveram. A cor foi o elemento que mais o
identificou no momento da deflagração do delito e foi um dos principais
adjetivos acusatórios usados no caso.
Dos processos de crimes de Estupro analisados entre os períodos
de 1900 e 1940, a referência à cor dos acusados de forma tão repetida
foi feita, principalmente, entre os casos que envolviam homens
declaradamente negros, como nos processos contra Manoel Norberto
(em 1926 e 1931). Este foi um dos poucos acusados marcadamente
apresentados como “negro” ou “preto”, e hierarquicamente exposto
como característica inferiorizada. Durante esse período, poucos
acusados tiveram suas características raciais tão evidenciadas nos relatos
testemunhais. Na maioria dos casos, não é feita nenhuma menção à cor
dos acusados, como pode ser percebido na tabela abaixo.

Tabela 02: Número de processos com referência à cor dos acusados


Nº total: 25 casos Estupros Atentados ao pudor
Com referência 03 01
Sem referência 14 05
117

Essas “ausências” podem ser entendidas pelo fato de que para


casos que envolvessem pessoas brancas, ou mesmo pardas, a relevância
em se ressaltar a cor de forma desqualificadora, ou mesmo referir-se a
ela, não fosse um elemento eminentemente importante, diferentemente
dos casos que envolvessem pessoas negras. O uso da referência à cor na
indicação do acusado parecia dar outra dimensão negativa à pessoa que
se buscava acusar. Dessa forma, é possível perceber como os elementos
raciais também foram importantes instrumentos para os que acusavam
ou defendiam em processos criminais, e demonstravam os diferentes
conflitos e as distintas relações de poder que marcavam o cotidiano das
pessoas pobres nesse período.
O caso contra João Pinto, rapaz de dezesseis anos, acusado de
Atentar ao pudor contra o menino Geraldino Oliveira de sete anos de
idade, ao praticar cópula anal com o menor, também fora marcado por
uma adjetivação do acusado a partir da sua “caboclice”. O adjetivo
caboclo73 marcou, principalmente, o depoimento do pai do menor
ofendido, que foi o queixante do caso. Na delegacia, o Sr. João Severino
de Oliveira, 38 anos, sabendo ler e escrever, declarou:

Que reside perto da casa do declarante um


caboclo, de nome João Pinto, que á tarde o
declarante estava trabalhando e ao chegar á sua
residência não encontrou ali o seu filho menor
Geraldino; que perguntado pelo menor, o
declarante soube que o mesmo havia saído em
companhia do caboclo João Pinto para casa da
curandeira “Maria Contente”; que já era noite
quando chegou o caboclo trazendo pelo braço o
filho do declarante (...). (Grifos meus)74

73
O termo caboclo é originário do tupi e se refere às pessoas que possuem uma
cor de pele acobreada. É também, nome que se dá, geralmente, aos mestiços de
brancos e índios no Brasil. Fonte: Dicionário Priberam on-line:
http://www.priberam.pt/dlpo/default.aspx?pal=caboclo
74
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:
Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 03, Processo Nº 1934/01.
Auto de declaração das testemunhas. p. 06-07.
118

A partir do Auto de corpo de delito desse caso, foi possível obter


a informação de que o menor ofendido foi identificado como branco, o
que nos mostra a possibilidade da identificação branca do próprio pai do
acusado. A repetição do termo caboclo demonstrou, nesse processo,
uma grande preocupação por parte do pai queixante com a constituição
racial usada de forma desqualificadora em relação ao denunciado. A
frequente repetição do termo o distinguiu de forma rebaixada em seu
relato, ressaltando a condição de “caboclice” de João Pinto. O rapaz de
16 anos, embora tenha sido declarado pela maior parte das testemunhas
como um garoto de bom comportamento, ou que, nada tivesse a ser
declarado contra ele, foi construído pelo discurso do pai de Geraldino a
partir do que este considerou mais desqualificador de sua figura, a sua
constituição “cabocla”.
Esses usos, respaldados em identificações físicas entre as
diferentes pessoas que elaboravam versões sobre os crimes discutidos,
nos ajudam a entender as diferenciações que as pessoas construíam entre
si, e também, as formas hierarquizadas com que essas diferenciações
apareciam no cotidiano da cidade. Ser “negro”, “preto”, “moreno” ou
“caboclo” significava, muitas vezes, assumir uma posição diferenciada
nas tramas entre quem acusa e quem defende, demonstrando as posições
e hierarquias raciais vividas também entre os populares; assim como, os
usos direcionados em âmbito judicial como forma de marcar e
intensificar as acusações contra esses homens.
No processo contra João Pinto, as duas referências que
apareceram sobre a questão da cor, consistiam numa tentativa de
contrastar a cor branca do menor ofendido com a “caboclice” do
denunciado; o que demarcou não apenas outra forma de representar a
relação de violência, mas também, as próprias diferenciações
construídas entre os populares.
Em 1936, Francisco Ribeiro de Almeida era acusado de rapto,
sevícia e estupro de duas menores, uma de cinco e outra de seis anos de
idade. O crime teria acontecido em uma região de praia onde vivia a
família das ofendidas Eunice Lopes da Silva e Tereza Lopes da Silva, no
bairro do Pirambu, na capital. Durante uma noite de abril de 1936, o
então soldado Francisco Ribeiro teria invadido, à surdina, a casa da
viúva Maria Honorata da Silva e teria raptado duas de suas filhas. Ao
retirá-las de casa e levá-las à beira do mar, teria estuprado a mais velha e
agredido fisicamente a mais jovem, que durante a agressão conseguira
119

fugir e encontrar apoio em uma casa nas proximidades do local. O


acusado era soldado da polícia da cidade e também um dos poucos
denunciados, assim como Manoel Norberto, que teve as suas
características raciais fortemente ressaltadas pelas pessoas chamadas a
depor.
Francisco fora denunciado como autor desses crimes após a
descrição e o reconhecimento da menor estuprada, que se referiu às suas
características físicas – como sua cor, seu cabelo, e à sua “feiúra” –
como as marcas que teria conseguido perceber de seu agressor. Segundo
a menor, o homem que a teria raptado de casa e a estuprado era “preto,
baixo e tinha o rosto chupado, cabelo caído nos olhos, e estava
fardado”75, o que tornou a sua identificação entre os companheiros de
função e pelo delegado da primeira delegacia da capital, uma atividade
mais fácil. Francisco já teria sido visto na noite do ocorrido circulando
embriagado nas redondezas da praia do Pirambu, o que corroborou para
a sua identificação, que somada ao seu “histórico” de ter cumprido pena
de oito anos pelo assassinato de um homem em decorrência de dívidas
de jogo, tornou-o o mais possível suspeito entre os soldados de polícia
que circulavam naquele espaço da capital.
Após a sua identificação por parte da menor, o inquérito segue,
tomando como testemunhas centrais, tanto a vizinhança da família das
menores, como os vários soldados de polícia que tiveram contato com
Francisco Ribeiro de Almeida. As descrições dos seus caracteres raciais,
somadas à vida “desregrada” vivida pelo denunciado, e que era
incompatível com a postura idealizada para a figura do policial,
formaram as principais narrativas das pessoas que depuseram nesse
caso. Além de seu histórico criminal como fator de desvantagem para a
sua defesa, Francisco de Almeida foi acusado de na noite do crime,
roubar dinheiro dos seus companheiros de festa, de ser um homem
reconhecidamente agressivo e violento, de possuir doenças venéreas e
de gostar de bebedeiras; fatores que foram recorrentemente afirmados
com o objetivo de mostrar a sua “má fama” entre as pessoas que o
conheciam. O corneteiro do colégio militar Vicente Paula, 25 anos,
sabendo ler e escrever e José Vieira Sampaio, com 24 anos de idade,
envernizador do Cortume Cearense Limitada, sabendo ler e escrever –

75
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:
Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 03, Processo Nº 1936/02.
Auto de declaração das testemunhas p. 18-19.
120

depuseram sobre as coisas que souberam ter feito o acusado no dia do


crime em companhia dos companheiros de “bebedeira”. Declararam
respectivamente:

(...) que o depoente viu e ouviu o Sr. Barão


queixar-se de que o aludido soldado Almeida lhe
havia subtrahido a quantia de 15.000 (quinze mil
reis); que ouviu ainda o mesmo soldado Almeida
confessar que já tinha cumprido a pena de 8
(oito) anos por ter morto certo senhor no lugar
Grabiraba por uma questão de vinte e dois mil
reis (22.000), em uma banca de jogo;(...) que o
depoente soube mais que o soldado Almeida está
doente de moléstias venéreas, e é certo que a
menor estuprada – Terezita, contrahiu dita doença
(...). 76 (grifos meus)

(...) que o depoente ouviu o dito soldado confessar


que já havia tirado 8 (oito) anos de Cadeia por ter
assassinado certo homem no logar
“Guabinaba”, por uma questão de R=22.000
(vinte e dois) mil reis, em uma banca de jogo;
(...) que ouviu a victima, isto é, a principal,
Terezita, declarar que reconhecia o sobredito
soldado Almeida da Policia, como sendo o seu
estuprador, não só pela farda, pernêira e côr
morena, como sobretudo pelo cabello em cima
dos olhos.77 (grifos meus)

Além desses conflitos, esse processo traz uma série de elementos


importantes sobre as diferentes sociabilidades dos homens pobres da
cidade, como o jogo, os bares, as festas de rua, assim como os variados
tipos de conflitos que surgiam nesses espaços, e que foram
recorrentemente narrados pelas pessoas que depuseram nessas ações.
Francisco de Almeida, mesmo depois de cumprir pena de
assassinato em consequência de uma dívida de jogo, não foi impedido
de compor o quadro policial da cidade alguns anos depois. Como
mostrado pelo historiador Fonteles Neto, a polícia de Fortaleza contava

76
(APEC), Processo Nº 1936/02. Auto de declaração das testemunhas. p. 63.
77
(APEC) Processo Nº 1936/02. Auto de declaração das testemunhas. p. 72-73.
121

com um corpo policial – que compunha a Guarda Cívica da cidade –


constituído basicamente por homens pobres, que tinham nessa atividade
mais um trabalho de sobrevivência do que uma “missão” que
contribuísse para o desenvolvimento e para a manutenção da ordem na
cidade, como queriam os discursos oficiais. Diferentemente dos
Delegados, que apareciam como pessoas de letramento, muitos
formados em Direito, o corpo policial era composto por homens pobres,
e em muitos dos casos, sem nenhuma instrução formal.
A idealização de um guarda alfabetizado, selecionado entre os
“homens de boa conduta” e controlador dos bons costumes no espaço da
cidade, foi dando lugar, dentro dessa pesquisa, a uma série de imagens
em que homens analfabetos, constantemente denunciados por abuso de
poder e por práticas de crime apareciam como os que verdadeiramente
ocupavam esses postos.78
A prática de delitos – como os furtos, as brigas e desavenças em
espaços como bares e cabarés, que deviam ser controlados pela ação
policial, além das contendas cotidianas que viraram processos judiciais e
que culminaram em condenações – nos mostram os limiares entre o
representante da ordem “ideal”, e o representante da ordem que atuava
no cotidiano da cidade imerso em diversas relações de poder que
configuravam sua vida familiar, de trabalho e de sociabilidades. Essa
questão pôde ser percebida, também, pela significativa parcela de crimes
estudados nesta pesquisa que envolveu agentes da polícia de Fortaleza
ou dos batalhões do exército do estado.
Quando pensamos os diversos conflitos cotidianos entre os
populares na cidade é possível perceber que a figura do homem fardado,
identificado como alguém que representasse “a ordem”, mesmo que este
fosse também de camadas populares, estabelecesse inúmeras relações de
poder entre homens e mulheres de diversas idades e que viviam nos
bairros pobres de Fortaleza.
No que se referem às relações de gênero, a figura do policial pôde
ser vista como fator importante nas descrições das situações de violência
que marcavam muitos dos processos aqui estudados. O cumprimento de
uma ordem ditada por um policial significou, em alguns casos, um

78
Para estudo mais detalhado sobre as idealizações do policiamento da capital
cearense em inícios do século XX ver a dissertação de Fonteles Neto,
Vigilância, impunidade e transgressão: faces da atividade policial na capital
cearense, especialmente, o primeiro capítulo.
122

facilitador de uma situação de violência, como pôde ser observado na


narrativa da irmã que acompanhava o menor Oswaldo no momento em
que fora levado pelo corneteiro João Alves da Silva, em um caso de
Atentado ao pudor em 1926. Ao descrever esse momento, “declarou que
ele fora fazer um mandado de um soldado, isto é, deixar uma roupa de
um soldado”79, e que depois disso não teria mais visto o irmão.
Desse modo, um dos principais elementos ressaltados pelas
vítimas no processo contra Francisco de Almeida além das suas
características raciais foi o uso da farda, que, inclusive, ajudou na
confirmação de que o raptor se tratava realmente de um soldado da
polícia. As manchas que ficaram marcadas no chão da casa das
ofendidas Tereza e Eunice, e que foram feitas pelo calçado de “crepe-
sola” usado no fardamento desses homens na cidade contribuíram para a
certificação de que o raptor das menores se tratava de um soldado.
Somada a essa identificação, a referência à extrema violência com que o
caso teria ocorrido, e às ameaças de que voltaria à casa das menores,
também constituíram elementos importantes ressaltados pelos
depoimentos do caso contra Francisco de Almeida.
A declaração da vizinha Maria do Carmo Sampaio, que prestou
ajuda à mãe das menores no momento em que esta percebera o rapto das
filhas, foi bastante representativa das descrições sobre o perfil violento
do acusado, e que contrastava com a imagem de um representante da
ordem e assegurador dos bons costumes. Segundo “Carminha”, como
era conhecida pela vizinhança, a menor violentada ao contar o que
acontecera consigo, dissera que:

(...) um soldado tinha carregado ella dormindo


quando accordou estava na raia perto de um bote;
o dito soldado, ora deitando – de por cima dela,
ora botando ela por cima dele, e também
sentando-a em cima dele; que dito soldado havia
ainda botado o membro, isto é, uma “cousa” na
bôcca dela; que Têreza disse que tinha doido
muito, e a depoente viu-a encamada de sangue;
que, quando quis gritar o soldado tapou a bôcca
della, que o soldado depois de violental-a
mandou que ella fosse embora, e dissesse a mãe
della, áquela égua, que ele já ia conhecer á casa

79
(APEC), Processo Nº 1926/01. Auto de declaração das testemunhas. p. 4.
123

della e dormir um pedaço com a mesma (...).80


(grifos meus)

Segundo grande parte das testemunhas que ouviram as


declarações da ofendida, tal soldado teria feito algumas ameaças a
menor Terezinha, afirmando que retornaria à casa de sua mãe, Maria
Honorata da Silva. A exposição da condição de violabilidade da casa da
viúva, e a declaração de que iria “dormir um pedaço com a mesma”,
demonstrava as relações de poder que podiam ser estabelecidas entre um
homem “representante da ordem”, que poderia transitar livremente na
cidade em diversos espaços e horários, e uma mulher viúva, mãe de seis
filhos, que tinha a segurança da sua casa constantemente passível a
diversos tipos de violações. Essa autoridade cotidiana, também
sinalizada pela exclusividade de homens nesse tipo de trabalho, era
marcada por usos de gênero que constituíam relações de poder e
legitimidades de violências em muitas das situações aqui analisadas.
Dos vinte e cinco (25) crimes aqui analisados, que
corresponderam a vinte e oito (28) acusados, seis (6) dos denunciados
pertenciam ao corpo policial ou aos núcleos do exército que circulavam
na capital cearense. Eram homens que podiam e usavam a condição de
representantes da ordem como forma de estabelecimento de relações e
de abusos de poder. Essas questões apareceram colocadas no processo
contra Francisco de Almeida, mas também, nos demais crimes em que
esses soldados estiveram envolvidos como denunciados de crimes
sexuais.
No entanto, nem sempre os acusados eram homens que possuíam
algum trabalho minimamente fixo, como no caso desses policiais e
soldados do exército. Muitos dos acusados exerciam diferentes
atividades, assumiam diferentes “afazeres”, e viviam em variadas
experiências amorosas, familiares e de trabalho. Muitos desses homens
percorriam, em curtos períodos de tempo, distintas cidades do estado, e
vivenciavam diferentes experiências, conflitos e relações sociais. Os
julgamentos existentes durante as ações criminais sobre a tal vida
“desregrada” – que dá nome a este tópico – costura muitos dos
depoimentos e dos pareceres oficiais sobre os crimes e os criminosos em
questão, e constantemente, constroem discursos sobre os modelos de

80
(APEC), Processo Nº 1936/02. Auto de declaração das testemunhas. p. 56-57.
124

masculinidades que se buscavam nesse momento, e que apareciam


tensionadas nos relatos dos processos.
Em julho de 1931 foi aberto um processo de crime de Estupro
contra José Pereira do Nascimento, de 28 anos, solteiro, analfabeto,
sapateiro, residente “temporariamente” na cidade de Fortaleza e
conhecido popularmente pelos vulgos de “José Lobato” ou “José
Sodoma”. Esse caso foi bastante emblemático dos conflitos entre os
modelos de masculinidade atribuídos aos “homens de bem” e a vida dos
homens que apareceram como acusados em processos de crimes sexuais
na cidade de Fortaleza. A partir do leque de relatos existentes nesse
processo foi possível perceber algumas questões importantes sobre as
diferentes interpretações colocadas a respeito da trajetória de vida do
acusado.
A acusação recebida por José do Nascimento se referia a um
crime de Estupro e rapto de uma menor de onze anos de idade. Segundo
os depoimentos do inquérito policial, o acusado esteve hospedado na
casa do pai da menor ofendida Anna Elias, conhecido como “Pereira”, e
a partir dessa convivência em maio de 1931, a teria estuprado e raptado
para o interior do estado. Analisando as diferentes versões e as
investigações durante o processo, pude reunir uma série de informações
sobre a trajetória do acusado, antes e depois do crime.
Segundo vários depoimentos de pessoas que conviveram com
José do Nascimento durante sua estadia na casa de Anna Elias, o mesmo
se encontrava como “hóspede” na casa de Pereira, pois estava doente e
teria encontrado ali um abrigo até que melhorasse. Depois da ofensa
praticada contra a filha do anfitrião, o acusado, por medo do que Pereira
pudesse fazer ao descobrir seu delito, resolveu fugir pelo interior do
Ceará levando a menor. Após alguns meses, e mediante a prática de
vários crimes de roubo e agressão, o acusado fora preso e transferido
para a cidade de Fortaleza, onde se iniciou um processo referente à
violência cometida contra a garota.
Já em Fortaleza, aberta a ação para apurar o estupro, os relatos
dos testemunhos chamados a depor foram bastante consonantes em
relação à fama de “José Sodoma”. As falas das pessoas que estiveram
em contato com o denunciado mobilizaram uma série de valores
julgados importantes como atributos masculinos, demonstrando a forma
com que os populares – dialogando com as perspectivas burguesas de
masculinidade – construíram discursivamente as figuras desses homens
125

diante da justiça. A questão do trabalho, da honra relacionada a um


controle familiar, e da honestidade81 foram elementos fortemente
ressaltados, especialmente pelos homens chamados para depor, como
forma de construir um discurso sobre os comportamentos dos acusados
de crimes sexuais. Mobilizar o histórico “gosto”, ou não, pelo trabalho e
pelas lutas diárias pareceu umas das principais táticas de acusação ou
defesa durante esses processos.
Osório Pereira de Paiva, 35 anos, jornaleiro, sabendo ler e
escrever, afirmou ter sido ajudante nas buscas por “Naninha” logo após
seu rapto; e que:

(...) segundo soube, “José Lobato” a offendeu


Naninha nas mattas do Urubú; que tem ouvido
dizer também que “José Lobato” é um
individuo ladrão, já estêve prêso e é um
seductôr – não só de meninas, como também de
meninos (...).82 (grifos meus)

No relato de José Elias da Luz, conhecido por “José Grôsso”, 29


anos, casado, e agricultor nas matas do Urubu, e que também fora
ajudante nas buscas da menor, consta que:

(...) segundo tem sabido, José Lobato, além de


ladrão, é seductor de meninas e também de
meninos, e que – com Naninha – são 4 (quatro)
as meninas que José Lobato seduz, que ouviu
dizer mais que José Lobato já esteve prêso na
Cadeia; que “José Lobato” ao hospedar-se em
casa de “Pereira” queixava-se de doente e
segundo veiu a saber-se depois ele estava doente

81
Aqui falo de honestidade como um valor distinto daquele atribuída às figuras
femininas que tem no recato e no comportamento sexual, seu valor principal. A
ideia de honestidade mobilizada nesses processos para as figuras masculinas
aparece como um contraponto à figura do gatuno, do homem que vivia “sem
eira nem beira”. O homem honesto, nesse sentido, seria aquele que não
trapaceava, trabalhador e provedor da família, que cumpre suas palavras e
compromissos, em especial, os financeiros.
82
(APEC), Tribunal de Justiça, Série: Ações Criminais, Sub-série: Crimes
Sexuais, Caixa 02, Processo Nº 1931/04. Auto de declaração das testemunhas.
p.34.
126

de uma surra que levou – por ter sido


encontrado roubando para os lados da casa do
Sr. Lauro Rocha Fernandes Vieira (...).83 (meus
grifos)

Mantendo fama de ser um ladrão, pervertido e sedutor de


meninos e meninas, “José Sodoma” ou “José Lobato” – forma mais
usada durante o processo – era visto por grande parte das testemunhas
como um homem “sem moral”. A própria identificação popular
registrada no apelido que ficou conhecido demonstra algumas das
representações sobre a conduta e a vida do denunciado. Muitas vezes,
essas elaborações populares se somavam aos discursos dos
representantes da polícia e da justiça do período. Nesses relatos, os
termos “ouviu dizer”, que “segundo tem sabido” ou “segundo veiu a
saber-se” exprimem o objetivo de demonstrar além de uma visão
pessoal, a reputação que o acusado tinha diante da comunidade em que
circulava e vivia. José Lobato, longe de ser um “homem de bem”,
idealizado pelos discursos oficiais para a cidade alencarina, tinha vários
comportamentos que eram condenados pelos diversos populares que
compuseram o processo.
Apesar de declarar-se sapateiro, a conduta levada pelo acusado
vagando por várias paragens no Estado, acusado de roubo em quase
todos os lugares que frequentou, evidenciou, para muitas das
testemunhas, e para os representantes da justiça, a sua condição de
“gatuno”84. Considerando que o homem ideal era o homem disciplinado
para o trabalho, provedor, sem vícios, e com as atenções voltadas para a
esposa e para os filhos, “José Sodoma” era o exemplo da má conduta
social, moral e sexual que não se queria para os homens nesse período, e
representava uma masculinidade não desejada para o desenvolvimento
moral e para a modernização econômica da cidade.
Outra questão fundamental que recaía negativamente sobre a
conduta de “José Sodoma”, principalmente quanto à sexualidade, era o
fato de que já tinha sido acusado e preso pelo abuso e morte de um
menino em Maranguape, região vizinha à Fortaleza. No relato prestado

83
(APEC), Processo Nº 1931/04. Auto de declaração das testemunhas. p. 37.
84
Gatuno significa: Que ou quem se dá ao furto. Larápio, ratoneiro. In
Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-
2013, http://www.priberam.pt/dlpo/gatuno [consultado em 27-09-2013].
127

ao Delegado de Polícia, Lucia Medeiros, prima segunda do réu – 22


anos, doméstica, sabendo ler e escrever –, e de seu “amigado” Severino
Moreira Lima – 33 anos, ourives, sabendo ler e escrever –; além de
reafirmarem todas as acusações também realizadas pelos outros
testemunhos, os depoentes se referiram mais especificamente a essa
questão. Declararam que:

(...) “José Lobato” é ladrão, roubou um relógio,


enganou a esta menina, e tendo levado dita
menina para esperal-o em casa da depoente, fêz
com que esta fôsse chamada á Policia; que “José
Lobato” já esteve prêso, algumas vêzes, na
Cadeia, e dizia á depoente que estava (ou esteve)
prêso devido a certo menino que foi achado
morto em Maranguape, e a culpa recahia sobre
ele (...).85 (grifos meus)

Disse que, de facto José Pereira do Nascimento,


vulgo “José Lobato” já esteve prêso na Cadeia
Pública desta Capital, elle mesmo dizia estar prêso
devido a certo menino (morto), que fora
encontrado morto em um caminho de
Maranguape; que depois de obtêr sua liberdade
“José Lobato” esteve prêso na Policia Maritima
por gatunagem; que depois disso, ele furtou um
relógio de um menino e, deixando este esperando
por elle, em a casa de Lucia Medeiros, geralmente
conhecida por “Lucinha” (...) fugiu (...).86 (grifos
meus)

Inquiridos sobre o que sabiam a respeito dos antecedentes do


acusado, além de ressaltarem a questão da prática de roubos, estes
testemunhos, por terem mantido contato mais próximo com o réu
declararam que o acusado já havia estado preso em decorrência da morte
de um menor, e que constantemente, costumava procurar-lhes pedindo
ajuda quando se encontrava em situações difíceis. Lucinha, a única
familiar de “José Lobato” na capital cearense, e que constantemente era
buscada para apoio financeiro e estadia, esboçou seu desafeto por ser

85
(APEC), Processo Nº 1931/04. Auto de declaração das testemunhas. p. 24-25.
86
(APEC), Processo Nº 1931/04. Auto de declaração das testemunhas. p. 26-27.
128

recorrentemente chamada à policia e à justiça para dar explicações sobre


a vida de seu primo, que ela mesma não queria estabelecer relações. A
partir de seus relatos podemos observar a relação estabelecida pelos
migrantes de outras cidades ao se instalarem em Fortaleza, pois
constantemente buscavam o apoio daqueles parentes, mesmo os mais
distantes, quando se arriscavam em direção à capital.
A ausência de trabalho e residência fixa, a personalidade violenta,
além da sexualidade “descontrolada” foram características usadas para
construir a imagem desse homem como criminoso, “desviado”, ser
humano insensível aos padrões de decência e moralidade. Não
vivenciando um modelo de vida disciplinado pela lógica do trabalho e
pela moralização dos costumes, a vida de “José Lobato” fora permeada
por surras, prisões, fugas, apreensões policiais e julgamentos. Uma vida
“desregrada”. Era uma ameaça a todo o Estado e não apenas à cidade de
Fortaleza. Assim como Manoel Norberto, José do Nascimento também
passara por diversas cidades do Ceará sobrevivendo de diferentes
formas, seja do roubo, da esmola ou da “esperteza”, como afirmou o
depoente Otávio Martins de Sousa, 33 anos, agricultor, natural de
Guarani, ao declarar que teria visto o acusado na cidade de “Lagoa das
Pedras” pedindo ajuda com uma imagem de santo, afirmando que
precisava de colaboração para realizar uma viagem até a cidade de
Canindé com o objetivo de “pagar uma promessa”. 87
Nesse sentido, é importante destacar o uso desses adjetivos na
compreensão dos diferentes valores invocados, problematizados e
reafirmados quanto aos comportamentos dessas figuras masculinas; e
também, de entender as várias diferenciações construídas entre as
pessoas que compunham uma ação criminal. Termos como “gatuno”,
“negro”, “ladrão”, “imoral”, “sedutor de meninos e meninas”
expressavam as subjetividades de testemunhas, promotores e juízes, e
eram usados para fundamentar discursos sobre os criminosos sexuais

87
(APEC), Processo Nº 1931/04. Auto de declaração das testemunhas. p. 115. É
importante destacar que o município de Canindé localizado no sertão central do
estado, tinha desde a primeira década do início do século XX uma intensa
atividade religiosa, tendo como padroeiro São Francisco das Chagas. Durante
todo esse século a cidade se destacou como um importante lugar de
peregrinação religiosa, sendo atualmente um dos mais importantes destinos do
“turismo religioso” do Brasil, e compondo uma das maiores romarias da
América Latina.
129

nas primeiras décadas do século XX. É importante destacar que os


populares participavam dessas elaborações sempre de forma perpassada
pelo registro do escrivão, que também contribuía na interpretação desses
depoimentos. No entanto, mesmo ao atentar para este elemento, muitas
questões que faziam parte das sociabilidades e das relações de poder dos
grupos populares, apareceram de forma abundante no decorrer desses
processos.
Além desses adjetivos, o fato de muitos desses denunciados não
possuírem uma vida em moldes econômicos e culturais idealizados para
o desenvolvimento da cidade, assim como apresentarem uma
personalidade relacionada às ideias de crueldade, perversidade e
insensibilidade, apareceu de forma recorrente como explicação dos
crimes sexuais, e também, como sugestão de uma capacidade de
violência própria ao acusado. Nesse sentido, as questões raciais, as
desigualdades de classe emaranhavam-se nos discursos de gênero que
apareciam nas narrativas processuais. A interpretação sobre essas
condutas desviadas era elaborada a partir de diferentes aspectos da vida
desses homens, especialmente, aqueles referentes ao não cumprimento
das idealizações de uma masculinidade ligada ao trabalho e à disciplina
dos prazeres. A prática da violência sexual era constantemente entendida
a partir de uma investigação das trajetórias dos envolvidos e dos desvios
dos papéis de gênero que se construíam nesse momento, e muito menos,
por um estatuto próprio de relações de poder que buscasse evidenciar
relações de desigualdades entre acusados e ofendidas, e uma punição
marcada por uma avaliação dos danos causados às vítimas em questão.
Construir uma narrativa acusatória para os crimes sexuais
significou tentar visibilizar distintos comportamentos que eram
reprovados pelos populares, como a prática de roubos e “espertezas”;
mas também, alocar esses comportamentos aos vários discursos oficiais
que circulavam na cidade sobre a idealização do “homem de bem”. Esse
modelo era evocado de diferentes formas pelos discursos populares,
principalmente, por aqueles que buscavam reafirmar uma visão
incriminatória.
Diante dessa necessidade investigativa, a vigilância da vizinhança
e das pessoas próximas foi bastante notória nos diferentes pareceres dos
processos criminais e teve papel fundamental na formação de culpa e de
absolvições dos denunciados. Como afirmou a historiadora Raquel
Caminha sobre a importância dos relatos da vizinhança nos processos de
130

crimes de calúnias e ferimentos, a vizinhança é “como uma comunidade


que estabelece um código de decência”, código este que está imbuído de
uma série de tensões e relações de poder em um dado lugar e em dado
contexto. (ROCHA, 2011, p. 103)
No caso do menor Oswaldo Rodriguez citado no capítulo
anterior, a denúncia realizada por parte do pai do menor, também
buscou demonstrar as práticas sociais reprováveis do acusado. A tática
usada pelo pai como forma de explicitar o mau comportamento de João
Alves da Silva também marcava os conflitos de gênero entre os homens
que depuseram nessas ações. Durante todo o processo, José Rodrigues
Xavier, pai e queixante do caso, ressaltou sua condição de homem
trabalhador, preocupado com a família, e buscou demonstrar durante
toda a ação penal como a sua família era direita e como ele era um bom
pai. Ao mesmo passo, ao falar sobre o que sabia da vida do acusado
buscou destacar as características que mais se contrastavam a esses
modelos ideais. Uma estratégia recorrentemente utilizada foi referir-se
ao denunciado como o “Soldado da Ignezinha” ou o “João da
Ignezinha”, destacando o seu envolvimento com uma mulher
considerada meretriz que vivia na vizinhança. Logo na ocasião da sua
queixa, ao explicar sobre o momento que soube do sucedido com o seu
filho, destacou que:

(...) hontem o depoente, durante o dia, a bordo


do vapor Camocim esteve trabalhando, saindo,
ás dezesseis e meia horas, para sua casa que fica
em umas capoeiras na Aldeiota; que chegando em
casa, soube, por lhe haver contado sua mulher,
Emilia Rodrigues, que havendo mandado um filho
do casal, de nome Oswaldo, menor de onze anos
incompletos a uma bodega próxima, em
companhia e uma filha, de nove anos de idade,
fazer compras, os mesmos demoraram bastante
tempo; que desconfiando sua mulher tivesse
acontecido qualquer cousas com os mesmos,
mandou a sogra do depoente a procura delles,
tendo esta apenas encontrado a sua filha, de nome
Antonieta, em caminho da bodega; que sendo a
menor interpellada sobre o paradeiro de seu
irmão, declarou que ele fora fazer uma mandado
de um soldado, isto é, deixar uma roupa de um
131

soldado, acrescentando que este soldado era o


João da Ignezinha; que este soldado é assim
conhecido por viver com a meretriz de nome
Ignêz, moradora perto da casa do depoente (...)
(grifos meus) 88

O destaque dado à afirmação de que se encontrava trabalhando no


momento do ocorrido, assim como a apresentação da relação do soldado
com a meretriz que vivia próximo a sua casa foram estratégias
discursivas utilizadas pelo queixante como forma de desqualificar, e
novamente, mostrar a fama que o acusado tinha na vizinhança. Esses
elementos são importantes para compreender as construções discursivas
em torno desses acusados, pois, apesar de sabermos que as mulheres
eram alvos centrais na problematização da “fama” em conflitos sexuais,
os homens também vivenciavam exigências públicas de
comportamentos, inclusive de cunho sexual.
Essas exigências apareciam como formadoras de diferenciações
entre os homens que apareciam nesses processos. Demonstrar a aptidão
pelo trabalho, os hábitos voltados para as sociabilidades familiares, a
boa administração familiar, em contraposição aos comportamentos
daqueles que não possuíam trabalho, viviam da gatunagem, bebiam e
mantinham relações com mulheres prostitutas, por exemplo, eram
formas de manipular os modelos de masculinidade como tática entre
aqueles que defendiam e acusavam em âmbito judicial. A vizinhança era
assim um “tribunal da reputação” (ROCHA, 2011, p. 102) que aparecia
como um medidor de condutas em âmbito público. Esses elementos
quando colocados em disputa, a exemplo das situações vividas em
processos judiciais, nos possibilita reflexões sobre as relações de poder
que marcavam o cotidiano das pessoas nesse momento.
A “sexualidade desviante” problematizada em muitos dos casos
de crimes sexuais esteve intimamente relacionada às desvirtuações dos
modelos de masculinidade que se buscava construir no início da
república brasileira, e também, para o desenvolvimento da sociedade
fortalezense. É importante perceber que em uma sociedade
extremamente marcada por conflitos sociais, miséria, fome,

88
(APEC), Tribunal de Justiça, Série: Ações Criminais, Sub-série: Crimes
Sexuais, Caixa 01, Processo Nº 1926/01. Auto de declaração das testemunhas. p.
04-05.
132

desemprego, assim como pelas ameaças de “criminalidade” que as elites


atribuíam às pessoas pobres da cidade, afirmar uma vida baseada no
trabalho e nos “bons hábitos” era uma forma de se qualificar diante
desses espaços de poder, como as delegacias e os tribunais da cidade. E
nesses espaços, o gênero foi importante fio condutor dos conflitos entre
homens e mulheres que fizeram parte – como acusados(as), como
vítimas ou como testemunhas – de ações judiciais durante a primeira
metade do século XX.
Esses jogos e relações de gênero marcados nessas ações, também
foram fundamentais nos embates políticos no decorrer do único
processo encontrado que teve uma mulher como ré. As ideias de
feminilidade ideal, constantemente acionadas por aqueles que prestavam
depoimentos sobre as vítimas de crimes sexuais, também marcaram
fortemente a ação movida contra Maria Etelvina do Nascimento. A
queixa lançada contra ela em 1932 se tratava de um crime de Lenocínio
previsto no Código Penal de 1890 como um ato de agenciamento de
pessoas para a prostituição. Etelvina, mulher de 33 anos de idade,
natural de Quixadá e residente em Fortaleza, foi denunciada por um
guarda cívico chamado Pedro Ribeiro. Segundo ele, a acusada estaria
recebendo mulheres em sua casa, um “chatú”, para terem ali relações
sexuais “ilícitas”.
Esse processo possui uma característica bastante importante para
pensarmos os vários jogos de gênero que compunham os discursos sobre
os acusados de crimes sexuais. Durante o inquérito policial, tanto a
acusada, como as cinco testemunhas chamadas para declararem suas
versões, confirmaram a versão do queixante Pedro Ribeiro, afirmando
que a denunciada fazia esse tipo agenciamento e vivia exclusivamente
desse serviço. Declararam que a casa da acusada servia de amparo para
relações comerciais de sexo, e que era um lugar em que homens e
mulheres “desonestas” se encontravam para agredir a “moralidade
pública”.
No entanto, ao ser a investigação encaminhada ao poder
judiciário, já na primeira audiência, todas as versões que reafirmavam a
queixa do dito oficial foram integralmente negadas. O motivo, segundo
as depoentes, se deu pelo fato de que tais testemunhas estariam sob
ameaça policial e que os seus testemunhos teriam sido manipulados
pelos agentes da polícia no momento do inquérito.
133

Após a apuração dessa segunda denúncia, o Ministério Público


passou a investigar o caso, recolhendo novos depoimentos das pessoas
que participaram inicialmente do inquérito policial. Dentre esses novos
depoimentos, outras várias versões expuseram alguns abusos policiais
existentes desde a denúncia até a forma com que o relato das pessoas foi
colhido, e assumiram um tom central das audiências. Desse modo, a
violência policial e as relações de poder existentes no cotidiano da
cidade apareciam novamente indicados nos conflitos que culminaram
em ações penais. O policial queixante declarou:

(...) que inúmeras vezes o depoente viu homens e


mulheres em dias e horas diferentes, ingressarem
na casa de Etelvina, de dia, para relações
sexuais; que não sabe dizer os nomes dessas
pessôas, porque não as conhece todas, sabendo o
nome apenas de uma mulherzinha de nome –
Mocinha, residente nas Damas (...).89 (grifos
meus)

Seguindo essa perspectiva, um dos depoimentos principais,


prestados pelo vizinho da ofendida senhor Cornelio Barroso – que a
pedidos do policial Pedro Ribeiro teria passado um tempo observando a
casa de Maria Etelvina – declarou que:

(...) o depoente é alfaiate, tendo a sua oficina á rua


São Paulo, numero cento quarenta e nove, e logo
vizinho á mesma casa, é a residencia de Etelvina
do Nascimento, onde existe um “chatú”,
pertencente á mesma Etelvina; que ali
diariamente e também á noite, iam homens e
mulheres para terem relações amorosas e
sexuais; que há mais de um ano Etelvina tem
esse chatú ali, e vive da renda do mesmo; que o
depoente sabe por ouvir dizer que Etelvina recebia
de cada homem que frequentava o chatu aludido
para ter relações com mulheres, a quantia de cinco
mil reis (Rs 5//000); que diariamente o depoente
e todos os seus companheiros de quarteirão da

89
(APEC), Tribunal de Justiça, Série: Ações Criminais, Sub-série: Crimes
Sexuais, Caixa 02, Processo Nº 1932. Auto de declaração das testemunhas. p. 9.
134

sua São Paulo viam entrar e sair homem e


mulher no chatú em apreço, tornando-se isso
um verdadeiro escândalo para a moral publica;
que de certa ves, o depoente sendo abordado pelo
guarda do numero noventa e um sobre os
costumes maus de Etelvina, disse ao mesmo
guarda que de fato a casa de Etelvina era um
verdadeiro chatú, explicando-lhe minuciosamente,
o que ali se passava. (...)90

No decorrer das apurações do caso na justiça, a acusada buscou


provar que vivia da fabricação de rendas e do “engomado de roupas”.
Segundo as versões de defesa, as pessoas que frequentavam a sua casa o
faziam em busca da compra dessas rendas, e também, que algumas
mulheres lhe auxiliavam no trato com as roupas. Ao dispor de uma série
de testemunhas de defesa, a acusada pretendia mostrar a sua honestidade
tentando combater a ideia de que vivia do agenciamento de pessoas.
Embora a idealização das mulheres nesse momento estivesse voltada
para aquelas que se dedicavam aos cuidados familiares e ao ambiente
doméstico, deixando o provimento para os homens, para muitas
mulheres pobres afirmar que vivia de um trabalho digno e que não
atentava contra a moral pública, era uma das formas mais importantes de
assegurar a sua condição de mulher honesta e direita.91
Etelvina era uma mulher que vivia sozinha desde que o marido
fora para o front durante os anos 1930. Certamente, este entrara para o

90
(APEC), Processo Nº 1932. Auto de declaração das testemunhas. p. 17 e 18.
91
Sidney Chalhoub também fala sobre a relação de trabalho e dignidade para as
mulheres pobres. A dedicação cotidiana ao trabalho, mesmo que com péssima
remuneração, poderia ser usado por essas mulheres como forma de reafirmação
dos próprios valores maternos e de preocupação com a família que deveriam ser
primordiais para a vida das mulheres. A afirmação da labuta diária como forma
de manter uma vida digna e prover a necessidade dos filhos, em alguns casos,
poderia constituir uma visão positiva sobre a conduta dessas mulheres. No
entanto, nem sempre esses elementos são verificáveis nos processos criminais
que tiveram as mulheres pobres como denunciadas, e nem todas as formas de
trabalho são vistas da mesma forma. No caso de Maria Etelvina, a luta pela
demonstração de um trabalho “aceitável” aos olhos dos representantes da
justiça, e de uma necessidade concreta de busca de sobrevivência foram
elementos fundamentais para a elaboração de sua defesa. (CHALHOUB, 2001,
p. 207 e 208)
135

exército e passou a servir em outro estado da federação, o que era bem


comum entre os homens da capital, deixando a acusada na
administração familiar92. Sua vida, como pode ser percebida no
processo, era vigiada tanto pela vizinhança como pela polícia que se
autorizava a questionar tamanhas “liberdades” dentro da casa da
acusada. O comportamento que se exigia de Etelvina era o de uma
mulher reclusa, que preservava o ambiente da casa das “más línguas”,
enquanto esperava pacientemente o retorno do marido.
Os principais testemunhos de acusação ressaltaram uma
inquietação em compreender como seria possível um lar honesto em que
homens e mulheres podiam frequentar, especialmente, sem a presença
do chefe da família. Esse trânsito “desregrado” de pessoas na casa da
acusada acabou por gerar um “boato” de que Etelvina agenciava pessoas
de diferentes sexos para a prostituição, o que acabou por virar uma
denúncia formal feita pelo guarda Pedro Ribeiro.
Já no momento das audiências públicas, todos os esforços de
defesa por parte dos testemunhos favoráveis à denunciada, assim como
do seu curador, giraram em torno de um rearranjo da versão sobre a
movimentação de sua casa, afirmando ser esta também um lugar de
trabalho que garantia a sua sobrevivência. A forte denúncia da condição
de confissão em que foi marcado o inquérito policial, além do repetido
destaque de que estava “à espera do marido”, dedicando-se a trabalhos
honestos que possibilitavam sua sobrevivência, garantiram, finalmente,
a inocência da acusada por falta de provas.
O que mais chamou a atenção nesse processo foram os jogos de
gênero colocados nas tensões entre os que elaboraram a acusação, e
posteriormente, pelos que construíram sua defesa. De ser considerada
uma das cafetinas mais perigosas da cidade e que necessitava
urgentemente de uma punição, Maria Etelvina do Nascimento foi
delineada finalmente como uma dona-de-casa exemplar, trabalhadora, e
que somente pelo fruto do seu trabalho, devido à ausência do marido,
garantia diariamente o seu sustento. Além disso, a justificação do
trânsito de pessoas pela questão do trabalho deslocou a imagem de uma

92
Justificar a atividade de labor pela ausência do marido, ou pela insuficiência
do trabalho do marido, era relato recorrente entre as mulheres que viviam e
sustentavam as famílias sozinhas desde o XIX, como demonstrou a historiadora
Joana Maria Pedro em Mulheres honestas e faladas: uma questão de classe.
(PEDRO, 1994, p. 124)
136

casa “promíscua”, que teria se contaminado moralmente, para o lar de


uma mulher laboriosa que garantia de forma honrada suas necessidades
de vida.
Observa-se aqui, que as pessoas chamadas a depor reprovavam
vários dos comportamentos dos acusados de crimes sexuais. No entanto,
foi nos espaços “autorizados” de poder – como nas delegacias e nas
salas de julgamento – que estes eram construídos como homens e
mulheres criminosas; fazendo dos comportamentos ideais de homens e
mulheres uma negociação entre os envolvidos em ações judiciais, e
principalmente, uma forma de constituição de um sujeito “imoral”.
A partir de todos os processos trabalhados nesse tópico, busquei
destacar as diferentes relações de poder em que estiveram imersos os
acusados de crimes sexuais no início do século em Fortaleza. A
vizinhança e a parentela assumiram papel fundamental na narrativa
sobre o “histórico” daqueles envolvidos, e se constituíram importantes
emissores de relatos que demonstravam os conflitos existentes na vida
dos populares. As relações de gênero, cotejadas pelas hierarquias sociais
e raciais marcadoras do cotidiano de investigação e de formação da
culpa, assumiam a tônica das versões sobre os comportamentos das
pessoas acusadas de crimes sexuais. A conduta dessas pessoas foi
ajuizada em comparação aos “papéis sociais” de gênero que deveriam
assumir na sociedade. Assim, mostrar o não ajuste por parte dos
acusados, aos valores do trabalho, da dedicação à família, demonstrando
a “vida desregrada” que marcavam suas trajetórias pessoais, era tática
discursiva importante e mostrava os julgamentos construídos entre os
próprios populares. As relações de disputas entre as mulheres, entre os
homens, e entre os homens e as mulheres, agravados pelos estigmas da
cor da pele e pela situação econômica instável em que viviam muitos
das pessoas envolvidas nessas contendas, significava a própria violência
sexual que se visava julgar.
E assim, finalmente, essas fontes representaram para a
historiadora enorme leque de possibilidades de análise sobre as
elaborações discursivas da imagem do criminoso sexual que se
apresentava em âmbito judicial, e que construíam as subjetividades das
pessoas nesse momento.
137

3.2 DE DESREGRADOS A DEGENERADOS: ALCOOLISMO E


DOENÇAS VENÉREAS

O Primeiro Promotôr de Justiça apresenta a Vª.


Ex.cia. denuncia contra José Pereira do
Nascimento, vulgo José Lobato, também
conhecido como José Sodoma, pelos factos
delictuosos que passo a expôr. Factos delictuosos:
– O denunciado depois de ter sido prêso,
processado e condemnado varias vezes por alguns
dos muitos crimes que cometteu, aqui e alhures,
em Maio do corrente, nas mattas do Urubú
estuprou, com o emprego de seducção e de
ameaças, a menor impúbere Anna Elias de França,
com cujos paes morava ha alguns dias. Effectuoso
o estupro, Lobato capta referida menor e com ella
vagueia pelo interior do Estado, onde provia sua
subsistência e de sua victima com o produto de
roubos que diariamente fazia, até que foi prêso
no município de Acarape e para aqui remetido,
tendo sido encontrado em companhia de sua
victima. O denunciado, pela insensibilidade
moral, destaca-se como um dos elementos mais
perniciosos ao convívio social que tem inscripto
seus nomes na crônica judiciaria do Estado.
Confessa, com o maior cinismo e mais
revoltante sangue-frio todas suas proezas.
(...).93 (grifos meus)

No trecho da denúncia elaborada pelo Promotor de Justiça contra


“José Sodoma”, o caráter “pernicioso” mostrado na pessoa do réu é
apresentado pelo representante jurídico a partir do seu longo histórico
em vários tipos de crimes, pelo seu “cinismo” e “sangue-frio”, que
segundo ele, foram constatados na sua confissão. Preocupado em
evidenciar, mesmo que de forma resumida, os aspectos degenerativos do
acusado – a fim de fundamentar a sua denúncia e a possível punição – o
promotor expôs os aspectos que demonstrariam a sua “insensibilidade

93
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:
Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 02, Processo Nº 1931/04.
Parecer da promotoria. p. 02.
138

moral”. As condutas consideradas desregradas de “José Sodoma” eram


fundamentadoras da construção de uma imagem perigosa e pervertida
para o réu.
De pessoas sem moral e “sem vergonha” construídas nos
discursos populares sobre a conduta desses homens, os acusados de
crimes sexuais na cidade de Fortaleza passavam aos poucos,
especialmente a partir do fim da década de 1920, a serem considerados
homens perigosos e criminosos, que necessitavam de uma abordagem
diferenciada por parte dos discursos oficiais. A figura do degenerado
quando problematizamos essa tipologia criminal e pensamos a partir de
uma ótica de gênero pôde assumir diferentes facetas quanto à questão da
construção de discursos sobre sexualidade e violência.
Alguns elementos foram fundamentais na construção dos
discursos sobre alguns denunciados, como a posse de doenças venéreas
que muitas vezes era sinônimo de uma vida sexualmente pervertida; e o
hábito do consumo de bebidas alcoólicas, que segundo os discursos
oficiais, eram fortes indicadores de uma vida desregrada, e auxiliavam a
elaboração de um discurso que construía sujeitos degenerados,
criminosos e doentes.
Durante a primeira metade do século XX o consumo do álcool foi
tema grandemente debatido pelas elites reformadoras dos principais
centros urbanos do Brasil, e era uma questão estratégica na
disciplinarização dos pobres, em especial os homens. Médicos,
representantes da justiça e policiais – estes últimos que agiam
cotidianamente em espaços relacionados ao consumo de álcool –
empenhavam-se em desqualificar essa prática, que era entendida como
geradora de indisciplinas sociais e de degeneração racial. O
“alcoolismo” foi visto como um problema social que destruía o
ambiente familiar e ameaçava a ordem urbana das cidades que se
organizavam a partir dos padrões modernos de trabalho, família e de
controle de hábitos.
Na cidade de Fortaleza, o consumo do álcool também era visto
como um empecilho para os bons costumes, e era frequentemente
entendido como o causador de desordens urbanas e também como
elemento de destruição familiar. Nos processos de crimes sexuais aqui
analisados o álcool apareceu de forma bastante dúbia quando analisamos
as situações que permearam a prática desse tipo de violência. Ora
aparecia como elemento de acusação que provava os maus hábitos do
139

denunciado, ora aparecia como elemento de defesa, e que justamente


devido a um possível estado de embriaguez, o acusado merecia
absolvição.
Para os discursos oficiais, na maioria dos casos, era sob o efeito
do álcool que essas violências se materializavam, e que nele
encontravam um potencial de execução. O álcool aparecia como uma
resposta primeira para a justificação do cometimento do crime. Aparecia
quase como um sujeito da ação. Além disso, mesmo que não se
encontrasse embriagado no momento do crime, o acusado que possuísse
o hábito do consumo de bebidas também tinha sua conduta interpelada
pelo debate do alcoolismo. Nessa perspectiva, o denunciado era
representado pelos discursos oficiais como um homem que mantinha
hábitos incompatíveis com a disciplina exigida para um homem de bem
e trabalhador.
No entanto, em alguns outros casos, era justamente pelo fato de o
acusado se encontrar sob o efeito de álcool no momento do crime, que
se construíam seus argumentos de defesa e era buscada a sua inocência.
Esta perspectiva se relacionava, especialmente, com os relatos que
visavam defender os acusados – como os emitidos pelos próprios
denunciados, pelas testemunhas de defesa e pelos seus curadores. E
assim, esses relatos acabavam por mobilizar imagens que se aportavam
nas referências de que o álcool fazia parte, de algum modo, das
sociabilidades masculinas, ou que a prática do crime só acontecia
porque o denunciado encontrava-se “fora de si”.
De formas diversas e muitas vezes contraditórias, o consumo do
álcool apareceu registrado em cinco crimes analisados nessa pesquisa.
Nesses crimes, a descrição do acusado como alguém que teria
consumido bebidas alcóolicas antes da prática da violência, ou que era
um sujeito habitualmente “dado às bebidas” era frequentemente
contraposta aos discursos sobre a masculinidade trabalhadora que se
queria construir entre os homens pobres da cidade. A questão da
violência sexual dificilmente era entendida como algo que expunha
desigualdades de condições sociais entre homens e mulheres, ou
aparecia como crítica a uma masculinidade permissiva existente na
sociedade naquele momento. Em regras gerais, a violência sexual era
entendida como um desdobramento de um mau comportamento de
mulheres e homens que se desviavam dos “papéis sociais” que
originalmente deveriam nortear as suas condutas.
140

A preocupação com o “monstro do alcoolismo” na cidade de


Fortaleza ficou registrada em uma semana educativa mobilizada por
diferentes setores da sociedade, com o objetivo de orientar as pessoas,
especialmente os homens, quanto aos perigos que envolviam o consumo
de álcool. Essa prática era mostrada como destruidora não apenas da
pessoa que a mantinha, mas também, de todas aquelas que estavam ao
seu redor, e, por conseguinte, de toda a ordem social que ficava marcada
negativamente tanto do ponto de vista social como do ponto de vista
racial, já que o álcool era visto como elemento fundamental na
degeneração da raça brasileira.
A “Semana Anti Alcoolica” promovida no ano de 1928 na cidade
visibilizou o interesse local das elites por empreitar uma campanha que
alertasse para os perigos sociais trazidos pelo consumo do álcool.
Embora se referisse a uma orientação nacional expedida pela Liga
Brasileira de Hygiene Mental, os debates sobre o tema interessavam
àqueles setores que queriam assegurar a ordem pública, as regras
familiares e aos que queriam combater a degenerescência da raça, tão
fortemente ameaçada pelo alcoolismo. Organizada pela Igreja Católica,
pela Imprensa Cearense, pela Associação de Classe e pelo Centro
Médico Cearense, essa semana contou com mais de seis palestras e
conferências em diferentes pontos da capital, que buscavam educar a
sociedade contra “esse mal”.
Visando um publico composto “de operarios, de estudantes, de
pequenos negociantes, de soldados, em cujo seio as ideias anti-ethylicas
pudessem ser propagadas com real proveito” 94, as atividades realizadas
durante toda a semana buscou mostrar, a partir da fala dos mais
“brilhantes intelectuais”95 da cidade os inúmeros perigos trazidos pela
introdução do álcool na vida das pessoas, no seio da família e nas
sociedades que o toleravam.
As falas educadoras proferidas durante a semana antialcoólica
ficaram a cargo dos médicos do Centro Médico Cearense, que tratavam
de trabalhar o assunto de forma didática, e podemos dizer que de uma
forma até exagerada, apresentando o álcool como um dos principais
problemas das sociedades modernas e um dos maiores obstáculos

94
CARVALHO, Demosthenes. “A Semana Anti – Alcoolica”, Revista Ceará
Médico, Fortaleza, nº3, 1928. p. 02-03.
95
CARVALHO, Demosthenes. “A Semana Anti – Alcoolica”, Revista Ceará
Médico, Fortaleza, nº3, 1928. p. 02-03.
141

vividos pela humanidade. Fortaleza, segundo a perspectiva eugênica de


organização social defendida pelos médicos cearenses, também estava
incluída nesse cotidiano degenerativo que tinha o álcool como grande
vilão. A pobreza, a violência urbana, a “desestrutura familiar”, a fome e
a violência foram recorrentemente apresentados pelos médicos como
fatores consequentes do consumo do álcool. Era o efeito etílico que
fazia do bom trabalhador um homem degenerado, que destruía a família
que aos poucos se esvaía pela fome, conduzindo-os ao jogo, ao cabaré,
ao roubo, dentre outros fatores que demonstravam para eles a
capacidade destrutiva do álcool.
Essa tônica era uma tática discursiva utilizada pelos “doutores”
da cidade como forma de mais fortemente chegar ao público jovem e
trabalhador que compunha as plateias das conferências ministradas
durante a semana anti-etílica. A Revista do Centro Médico Cearense
publicou todas essas conferências ministradas durante tal semana,
ressaltando a necessidade dessa iniciativa como forma de
conscientização da população contra os hábitos que degenerariam a
sociedade, e que muitas vezes começavam pelo consumo em uma única
vez. Em conferência proferida pelo Dr. Otávio Lobo – realizada para os
“Operarios Catholicos, trabalhadores da praia e sociedade „Deus e mar‟”
em 15 de outubro de 1928 – o médico cearense buscava através de uma
rápida historinha iniciar sua conversa com os trabalhadores, mostrando o
poder destruidor trazido pelo álcool em uma sociedade. Começava
assim:

Um rei antigo, senhor de virtudes e possuidor de


vastas terras, governava um povo sóbrio e
prospero. No reino tudo era progresso; – os
campos cheios de seara, fontes cantando, o gado
sadio e redio. Os homens no trabalho, as fabricas
produzindo. As arcas do tesouro abarrotadas
d`ouro. O conforto, a satisfação, a alegria, o riso, a
saúde entravam em cada lar. As prisões vazias de
criminosos, os hospitais desertos de loucos. Nem
ódios, nem rixas partidarias. A palavra dos
homens, uma nota promissoria. Só uma política, a
da justiça. Certa vez, porem, entra neste paiz
encantado um estrangeiro de outras civilisações. A
nação toda se movimenta. A commemoração ao
recem-chegado foi um delírio. Acudiram de
142

recantos longínquos, em afanosas caminhadas, os


vassalos, em festa, em enthusiasmo, em musicas e
hymnos. E desde logo, no reino começou de
apparecer a injustiça. Os ódios e as intrigas se
acirraram, veio a preguiça, chegou a inveja.
Surgiu a peste, a miseria andrajosa mendigava
pelas ruas, os hospitais regorgitavam de doentes,
os hospícios se encheram de loucos, os ergástulos
se atocharam de criminosos de todas as espheras.
Os cidadãos já se não tinham respeito. Os paes
escandalisavam os filhos, os filhos deshonravam
os paes. As mães desertavam dos lares, deixando
criancinhas em choro e em abandono a virgindade
das filhas. Era a desolação dos tempos!

E continuava:

Pois bem, senhores, o reino é a sociedade actual


e o estrangeiro o alccolismo. Meus senhores. Ahi
está neste apologo, de que é capaz o alcool.
Concretizemos, porem, a sua historia, que é a
historia de cada bebedor, para que vos fique bem
gravado na memoria o horror a este vicio – flagelo
universal da humanidade. 96 (grifos meus)

Essa explanação, apenas pequena parcela de inúmeras páginas de


textos educativos, foi bastante emblemática do modo com que os
médicos fortalezenses apresentavam a questão do consumo do álcool,
levantando inúmeras questões sobre a relação entre alcoolismo e
destruição de um suposto ambiente harmônico da sociedade baseada no
trabalho e na família. O alcoolismo traria consigo valores como a
preguiça, a discórdia, a fome, a miséria, mas principalmente, segundo os
médicos, conduzia a raça à degeneração.
No que se refere ao tema da violência, foi possível perceber dois
aspectos importantes: o álcool parecia ser especialmente pernicioso
entre as camadas mais pobres e era nela que agia de forma mais drástica.
Segundo os médicos, esse elemento explicava os muitos conflitos, a
violência, o desregramento que supostamente marcavam as

96
LOBO, Octavio. “Conferência em 15 de Outubro de 1928”, Revista Ceará
Médico, Fortaleza, nº3, 1928. p. 03-05.
143

sociabilidades populares. E por isso, os esforços da Semana anti-etílica


estavam concentrados no público composto por diversos segmentos de
trabalhadores e por homens que realizavam atividades de baixa
remuneração na capital. O tema da violência em âmbito doméstico só
apareceu sob a perspectiva do desequilíbrio familiar, ao demonstrar que
o homem que consumia bebidas alcoólicas constantemente descumpria
seus compromissos com a esposa e os filhos, destruindo a célula mais
importante da sociedade e também plantando uma “semente apodrecida”
entre sua prole.
A violência de gênero, nesse sentido, muitas vezes era tratada
pelo viés familiar, em uma preocupação com a família como célula
social e com a descendência. Esse aspecto pode ser percebido em outra
crônica publicada na Revista Centro Médico em 1920. Embora esta não
tenha feito parte das conferências ministradas durante a semana
educativa, também compôs o número da revista em que estas
conferências foram publicadas, e expressava a forma com que a relação
entre álcool e violência de gênero se construía nesses discursos. Na
sessão Crônicas e variedades da revista foi publicado um texto
traduzido do inglês que contava a história de um homem comum e que
tinha sua vida destruída pelo consumo do álcool. Dizia:

Tom, operário, recém casado, era um rapaz


excelente, hábil artífice, muito bom esposo;
mas gostava de frequentar os botequins,
sobretudo aos sabbados, quando recebia a paga
da semana.
No meio de um grupo de camaradas, viciosos,
também excedia-se na bebida, e esquecia-se do lar
e da dedicada mulherzinha, que às vezes ficava
noites inteiras a esperal-o em vão.
E não raro, era preciso que ella o fosse buscar no
posto policial do bairro, para onde Tom era levado
depois de ter com os companheiros uma
altercação que acabava em murros.
Tom, envergonhado do seu procedimento,
acompanhava à casa a esposa, ante cujas lagrimas
se comovia, e protestava não mais ir ao botequim
embriagar-se. Mas, no sábado seguinte, arrastado
pelos companheiros, lá ia de novo abarrotar-se de
144

aguardente, discutir, brigar e ser conduzido ao


xadrez.
Ali já estava habituado a erguer-se de manhã de
um leito de taboa, e, à luz de uma claraboia,
encaminhar-se para uma pia onde lavava a bocca,
saciava a sede que o devorava, e enxarcava a
cabeça aquecida e pesada dos vapores do álcool.
E logo que lhe abriam a porta, descobria a esposa,
que o abraçava chorando e o consuzia ao humilde
lar, onde a miseria começava a assentar suas
garras impiedosas.
Certa vez, como de costume, Tom embriagou-se;
mas ao acordar de manhã notou que estava num
lugar diferente do xadrez onde pernoitava todos os
sabbados. Cercava-o uma escuridão completa; a
cama era de outro feitio e tudo indicava que não
fora ter ao lugar onde costumava curtir suas
carraspanas.
Que significava aquilo? Por onde teria andado?
Que teria feito? Veio-lhe então a lembrança de
sua mulherzinha, tão meiga, tão solicita, tão
resignada... Que desgosto horrível não seria o
della, si lhe houvesse praticado qualquer acto mais
vergonhoso ou, quem sabe, talvez um crime.
Nesses dolorosas cogitações ficou, até que por fim
levantou-se e tacteando na sombra já menos
densa, foi caminhando ao longo da parede, até que
chegou uma grade de ferro de robustos varões.
Ali ficou tremulo, ancioso, a imaginar coisas
sombrias e a pensar na pobre companheira, que ia
talvez ficar sem arrimo, perdida na miseria
horrível de Londres...
Afinal, alguém chegou em frente a grade, uma
chave rangeu na fechadura e apareceu um guarda,
que o contemplou em silencio.
- Por Deus, exclamou Tom, digame o que fiz,
porque estou aqui.
- Não se lembra de nada?
- Não.
- Você cometeu um crime...
- Um crime? Que crime?
- Matou.
- Matei?! A quem?!
145

- Matou sua mulher.97 (grifos meus)

Nesse texto, é importante perceber que na cena do crime está uma


família potencialmente exemplar, mas que por intervenção do vício fica
à mercê da miséria e da desgraça. O personagem retratado é um bom
moço, operário, recém-casado, que contava com uma esposa boa e
bastante resignada. É somente pela fraqueza de Tom diante do hábito de
beber, que esse projeto familiar era interrompido de forma drástica e
quase “cega”. O personagem perde o controle de si e acaba por cometer
mais um crime, dessa vez bem mais sério do que os cometidos
anteriormente que já o tinham levado ao “xadrez”: tinha assassinado a
esposa.
Essa publicação buscava somar-se aos discursos que eram
defendidos pelos médicos e pelas elites da cidade sobre as idealizações
de masculinidades sadias e produtivas. A história de Tom simbolizava
os desejos de disciplina, de pudor, de trabalho e de dedicação familiar
que deveriam ser cobiçadas pelos homens desse momento. Nesse
sentido, é importante ressaltar que todo o esforço teórico desses médicos
se relacionava aos discursos biopolíticos de controle social das
sociedades modernas. Como Foucault ressaltou no Microfísica do Poder,
essas sociedades são construtoras de individualidades, fazendo do
controle uma disciplina que se materializa de forma individualizada,
marcando os corpos e construindo uma subordinação cotidiana que
orienta as pessoas. (FOUCAULT, 2012, p. 25-26) Nesse sentido, ao
discutir sobre os malefícios do álcool, ao passo que construíam
discursos acerca dos benefícios e da positividade dessa abstenção, os
médicos fortalezenses produziam imagens de masculinidades ideais que
compunham um projeto de sociedade “harmoniosa” pensada por essas
elites, e que visavam alterar a vivência cotidiana dos homens,
especialmente pobres, da cidade. A violência, novamente, era retratada
nesses discursos como algo que compõe “o outro”, como o
desdobramento de uma conduta desregrada. Ela era um fantasma, uma
ameaça, o irracional ao que supostamente era vista como harmônico
pelos discursos racionais.
Homens fortes, produtores de boa prole, dedicados à família e ao
trabalho faziam parte do discurso médico desse período, mas também,
faziam parte dos jogos discursivos existentes no cotidiano das contendas

97
Revista Ceará Médico. “O crime de Tom”, Fortaleza, nº3, p. 32, 1928.
146

judiciais mobilizadas nas primeiras décadas do século XX. O homem


criminoso era questionado justamente na sua adequação, ou não –
geralmente não – aos padrões masculinos defendidos pelos discursos
oficiais.
Em alguns dos processos dessa pesquisa, o conflito entre as ideias
de homens do bem e homens degenerados constituiu algumas das
principais tramas discursivas sobre os sujeitos considerados criminosos.
A falta de trabalho fixo, a “propensão” ao crime, a reincidência, o uso
demasiado da violência e os vícios marcavam as interpretações médicas
e jurídicas dos acusados de crimes sexuais. Nesse sentido, é importante
destacar as mudanças, cada vez mais perceptíveis, de um discurso moral
para um discurso que aos poucos adota referências patologizantes sobre
os réus. Esses deslocamentos vão se intensificando a partir do final da
década de 20, e aparecem de forma mais efetiva durante a década de 30.
A própria solidificação da classe médica no Brasil e a circulação de
ideias sobre os indivíduos criminosos parecia se tornar importante
influência na interpretação desses profissionais.
A pesquisadora Lilia Schwarcz, ao analisar as elaborações
teóricas dos intelectuais do direito e da medicina no Brasil, apontou para
as influências que as teorias raciais europeias exerciam sobre esses
intelectuais. Tecendo um panorama sobre o pensamento racial no Brasil
desde o fim do século XIX, a autora expõe sobre como os preceitos da
medicina legal vão se constituindo nos discursos de juristas e médicos
brasileiros. Destacando a roupagem nacional dada por esses intelectuais
a essas teorias, a partir principalmente dos anos 1920, a autora entende
que somado aos paradigmas evolucionistas das teorias racialistas, os
profissionais do direito e da medicina nesse momento entendiam que o
problema da degenerescência vivido pelo povo brasileiro não estava
marcado apenas pelas questões étnico-raciais. Embora profundamente
marcado por essas questões, a esses discursos somavam-se os problemas
“higiênicos e sociais” que marcariam o desenvolvimento da população
brasileira. Nas palavras da autora: “Um novo argumento se esboçava.
Higienizar o país e educar seu povo é assim que se corrige a natureza e
se aperfeiçoa o homem”. (SCHWARCZ, 1993, p. 218-219)
As práticas anteriormente condenadas do ponto de vista moral –
como o consumo de álcool, as relações sexuais fora do casamento ou a
“vida desregrada” – vão assumindo um perfil cada vez mais
medicalizado e cientificamente combatível. O alcoolismo, os vícios, a
147

posse de doenças venéreas emergiam como práticas que ameaçavam


toda a sociedade e eram símbolos máximos da degeneração física e
moral das sociedades daquele momento, aparecendo como males que
levam a destruição até mesmo da humanidade. Na afirmação dos
médicos fortalezenses sobre a questão do alcoolismo, esses elementos se
somavam tornando o povo que já era originalmente fraco, em um povo
ainda mais fraco, doente e sem senso moral. Como explicava o médico
Dr. José Sombra durante palestra na Associação de Merceeiros da
cidade, a respeito da degeneração, dizia:

Pois bem, meus senhores, a hereditariedade


mórbida, é uma lei difficil de ser contrariada. O
alcoolismo, ninguém discute mais, é uma fonte de
degenerescência hereditaria. Tarados, débeis
physicos e mentaes, vagabundos, incapazes,
criminosos de toda espécie, eis a farandula sinistra
que enche as cidades e o mundo com a sua vida
parasitaria, as suas perversões, os seus attentados,
tendo como causa a degenerescencia alcoolica.98

Um dos processos mais expressivos de todos esses elementos foi


mobilizado em 1933 e se referia a um caso de estupro contra a menor de
onze (11) anos de idade: Guiomar Moreira da Silva. Esse processo
tratava da segunda ação contra Manoel Norberto do Nascimento, que em
1926 tinha sido condenado pelo mesmo tipo de crime também praticado
contra uma menor. Esse processo, um dos maiores dentre os aqui
estudados, demonstrou de forma mais densa as influências vivenciadas
pelos juristas fortalezenses das ideias racialistas que se desenvolveram
no direito brasileiro nos anos anteriores, e também, da influência sobre a
importância da medicina como um saber julgado cada vez mais
importante para a organização da justiça criminal.
Neste caso, segundo todas as testemunhas chamadas a depor,
Manoel Norberto teria ido até a casa de Guiomar, enganado seus
familiares sobre a questão de um emprego que conseguiria para uma
moça na casa de um capitão conhecido por “Jehová Mota”; e devido a
esse fato, teria levado a menor de casa e a teria estuprado durante o
caminho que percorreram em direção ao lugar no qual esta trabalharia.

98
SOMBRA, José. “Conferência em 16 de Outubro de 1928”, Revista Ceará
Médico, Fortaleza, nº3, p. 7-10, 1928.
148

Guiomar vivia em uma família composta por pai, mãe e uma irmã mais
velha, que segundo os vários depoimentos do processo, era a pessoa
quem frequentemente fazia trabalhos em “casas de família” como forma
de ajudar na renda familiar.
No dia 31 de março de 1933, Manoel Norberto teria chegado à
casa da família – que era original da região de Baturité no interior do
Ceará – dizendo que buscava uma moça para auxiliar a esposa do dito
“Capitão Jehová” na localidade de Porangaba99. Devido ao fato de a
filha mais velha encontrar-se doente, a mãe e o pai resolveram enviar a
filha mais jovem Guiomar Moreira para assumir o trabalho. No entanto,
segundo o depoimento que originou a queixa e que posteriormente foi
reafirmado pelas testemunhas, durante a ida para esse trabalho, o
acusado, sob o pretexto de encurtar a caminhada, teria levado a menor a
um matagal, e armado de um canivete a teria violado sexualmente.
O acusado, já no momento da queixa na delegacia fora
identificado por foto pela família, pois já tinha sido preso anteriormente,
e se encontrava foragido devido a um furto cometido dias anteriores. O
caso segue, com a solicitação da prisão preventiva de Manoel Norberto,
e ganha destaque pelos debates realizados posteriormente no julgamento
acerca da “natureza” do réu.
O caso foi o único dos aqui estudados que conta com mais de
vinte páginas de análises, por parte da promotoria, sobre as
possibilidades jurídicas de definição desse tipo de criminoso. O
promotor, citando inúmeros autores teóricos do direito e da medicina
legal, dizia encontrar-se em dúvida acerca de como proceder sobre a
formação da culpa do caso, pois acreditava estar diante de um “louco
moral”, ou seja, acreditava estar diante de um caso cuja situação do
acusado deveria ser analisada primeiramente por um médico psiquiatra e
não apenas pelos profissionais do direito. Em decorrência da dúvida, a
promotoria solicita, no seu primeiro parecer, a participação de um
profissional da saúde que atestasse a sanidade mental, ou não, do réu, e
desse modo, viabilizasse um julgamento coerente “com os princípios
mais modernos do direito penal”.

(...) O Promotor de Justiça confessa que tem


dúvidas, e estas bem rasoaveis, quanto á poder

99
Porangaba, chamada atualmente de Parangaba, é hoje parte integrante da
própria cidade de Fortaleza.
149

imputar responsabilidade ao indiciado. E como


sua função publica deva ser pautada entre os
ditames imperativos da mais restricta probidade
profissional, não podendo assim arrastar á barra
dos tribunaes aos que de ante-mão sabe innocentes
ou inimputáveis, quer solucionar, como medida
preliminar, a duvida acima exposta para o que
requer se digne o M. Juiz nomear comissão de
peritos, de preferencia psychiatras, que, feito o
exame no indiciado digam sobre – anamnese,
exame somático, exame mental, e façam ainda,
em laudo, considerações clinicas e medico-
legaes (...).100 (grifos meus)

Essa dúvida sobre a figura de Manoel Norberto se colocava pela


quantidade e pela variedade de delitos praticados pelo acusado – roubos,
furtos, tentativa de estupro, estupro já condenado, tentativa de homicídio
– que segundo a promotoria, punham em questão sua capacidade de
raciocínio moral e sua possibilidade de readaptação101. A “fama” de
Manoel Norberto, que era apresentada desde a sua primeira condenação
– de ser alguém sem residência certa, dado às bebidas, possuidor de
doenças venéreas, pessoa de “cor”, e de não dispor de trabalho digno –
eram características que podiam ser observadas na recorrente prática de
crimes de todo tipo, e mostravam, segundo esses discursos, uma
dificuldade por parte do acusado de assimilação de bons valores morais.
Como afirmou o promotor Luiz Coraçao,

100
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:
Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 02, Processo Nº 1933/02.
Parecer da Promotoria. p. 73
101
Os crimes cometidos pelo acusado, segundo o relatoria da promotoria,
seriam: “Em summario illustrámos nossa asserção com um officio do Dr 1º
Delegado informando ter o denunciado sido recolhido aos cárceres de sua
estação policial SETE VEZES assim resumidas – a) ESTUPRO – em 18.11.26
b) Tentativa de assassinato a uma EX-AMANTE – em 11. 11. 31 c) Roubo e
Furto a menores e a UMA MERETRIZ – em 20. 1.32 d) Furto – em 20.12.32 e)
Agressão a uma MERETRIZ que não se deixou ESTUPRAR – em 24.3.33 f)
Fuga da cadeia em 7.4.33 g)ESTUPRO – em 6.9.33” (grifos meus). (APEC),
Processo Nº 1933/02. Parecer da promotoria. p. 106 e 107.
150

(...) nosso estudado tem revelado, como se pode


deduzir do material anexo, incapacidade
absoluta para harmonizar os seus actos na auta
convencional da honestidade, por sua
reincidente conduta anti-social; sua fraca
resistencia moral á solicitação delictuosa dos
impulsos de sua psyche mal formada, repetindo
delictos contra a propriedade e entremeiando-os
de perversões sexuaes e implusões sádicas.
Infelizmente escapam-nos os elementos
indispensáveis para dizer sobre os antecedentes
familiares do paciente, desde que nos autos juntos
só consta, sem mais, que ele é casado. 102 (grifos
meus)

Optando por uma abordagem mais patologizante,


excepcionalizante e psicologizante, o promotor indagava-se sobre a
forma mais adequada de punir um acusado como Manoel Norberto.
Refletindo sobre as diferenças existentes entre criminosos e alienados, o
promotor traçou uma longa discussão sobre a melhor forma de
compreender esse réu.103

(...) alegamos ter duvidas quanto á imputabilidade


do sumariado. Diziamos então que o indiciado
por sua reincidente, sua vida pregressa, seu
tipo biotipologico dava á nossa observação de
leigo, a impressão de estarmos em face de um
violador caracteristicamente desequilibrado.104
(grifos meus)

No entanto, apesar de ponderar acerca de uma possível não


responsabilização do réu em um primeiro momento, o promotor, em um

102
(APEC), Processo Nº 1933/02. Parecer da Promotoria. p. 72.
103
O promotor utiliza-se diversos autores, dentre médicos e juristas, para
fundamentar tal debate teórico acerca da imputabilidade criminal de loucos, e
também da própria forma de diferenciação entre loucos e criminosos. Para citar
alguns deles, estavam presentes em seu debate: Petris y Regis; Krafft-Ebing; De
Joffey; De Garnier. (APEC), Processo Nº 1933/02. Parecer da Promotoria. p.
60, 70 e 71.
104
(APEC), Processo Nº 1933/02. Parecer da Promotoria. p. 106.
151

segundo parecer – depois de não ver contemplada a sua solicitação de


participação de um médico psiquiatra – tornou a reformular a sua
acusação, buscando fundamentar uma possível plausibilidade punitiva,
mesmo diante das dúvidas quanto à sanidade mental do indiciado.105
Munindo-se de referências ao direito positivo, o promotor Luiz Coraçao
afirmou, finalmente, que o denunciado parecia tratar-se de um
criminoso, que de algum modo parecia ter consciência acerca dos crimes
que cometia, em especial, o estupro que mobilizou tal ação em 1933.
Disse que:

De inicio julgamos estar em presença de um caso


de loucura moral que se exteriorizava na repetição
de delictos contra a honra, na insistente procura de
saciar instintos sexuaes, com múltiplas amantes
recrutadas entre o baixo meretrício e ataques de
menores impúberes que deparasse indefesas.
No criminoso, cujo crime ora debatemos, há
raciocínio na pratica de seus actos. (...)106 (grifos
meus)

Dessa maneira, o promotor optou por afirmar que, apesar das


dúvidas que ainda ficaram em aberto sobre a condição psíquica do réu, o
direito positivo previa que mesmo os “loucos morais” deviam ser
punidos como forma de garantir a seguridade social. E nesse sentido, de
um ponto de vista social era legítima a imputação de pena ao
denunciado, principalmente por nele recair os agravantes de ter buscado
“lugar ermo” para a prática do crime, e também, por ter premeditado o
estupro da menor.
O importante desse caso é que, embora a ação seja mobilizada em
decorrência do estupro da menor Guiomar Moreira, toda a formulação
da acusação contra o acusado referiu-se muito mais a sua histórica má
conduta diante da sociedade, do que aos aspectos componentes do crime
em debate. Ao problematizar todos os vícios, as características e os
comportamentos considerados degenerativos do réu, tanto a formação de

105
O pedido realizado pelo promotor, sobre a avaliação médica do acusado, fora
negado segundo seu segundo relatório do caso, devido à falta de condições e de
estrutura para tal. Essa afirmação parece expressar a pouca relação estrutural
existente entre a ação da justiça penal e os médicos da cidade.
106
(APEC), Processo Nº 1933/02. Parecer da Promotoria. p. 108.
152

culpa escrita pelo delegado no momento do inquérito policial, afirmando


se tratar de um “degenerado indivíduo e tarado”; como pelos dois
pareceres fundamentados pelo promotor de justiça, demarcaram
fortemente o aspecto desviado de Manuel Norberto, comparando-o à
imagem do que entendiam por “homem de bem”.
Acatando o pedido de pena máxima do promotor de justiça para
os artigos referentes aos crimes sexuais (Art. 268, 269 e 272), o juiz Dr.
Péricles Ribeiro107 condenou Manuel Norberto a sete anos de prisão
simples. Negro, pobre, considerado alcoólatra, possuidor de vícios e
doenças venéreas, o réu, depois de quase dez anos registrados de “idas e
vindas” entre Fortaleza e o interior do Ceará, foi novamente preso na
Cadeia Pública do Estado. No entanto, ao final do processo descobri que
o cumprimento da pena foi interrompido, pois como consta em folha
emitida pelo diretor dessa instituição, três anos depois da condenação foi
registrado o falecimento de Manoel Norberto vítima da ruptura de uma
aorta torácica.
Ainda no que se refere às questões de degeneração que marcavam
as construções discursivas acerca dos acusados de crimes sexuais em
Fortaleza, outro elemento de grande pertinência foram as doenças
venéreas. Estas, também correspondiam a intensa preocupação das elites
locais, principalmente dos médicos da cidade, que as viam como um dos
maiores problemas que afligiam a população, mas também, como um
dos maiores símbolos de um comportamento depravado e degenerativo.
A doença venérea, junto com a tuberculose, e principalmente o
alcoolismo, eram problemas que afetavam diretamente o comportamento
masculino e ameaçavam a ordem familiar que se buscava para as
famílias da cidade.
Esse elemento se somava às discussões sobre os acusados de
crimes sexuais, e problematizavam mais diretamente a vida sexual
desses homens. Como mostrado no capítulo anterior, as doenças
venéreas fizeram parte de muitos depoimentos e pareceres oficiais que

107
Nasceu em Fortaleza em 1899. Bacharelou-se na Faculdade de Direito do
Ceará em 1925. Foi nomeado Juiz de Direito em 1931, sendo titular durante
anos na 1ª Vara da Comarca da Capital. Em 26 de março de 1947 foi nomeado
Desembargador, ocupando a Presidência em 1955. Pertenceu ao Tribunal
Regional Eleitoral. Link da Fonte: http://www.tjce.jus.br/institucional/ex-
presidente_020.asp
153

buscavam salientar a ideia de violência dos crimes então discutidos, e


simbolizavam uma vida pregressa de péssimas referências quanto ao
comportamento sexual. A contaminação das vítimas no momento da
violência foi considerada, muitas vezes, como o principal elemento de
“violação”, pois marcava para sempre a saúde das ofendidas e podia
prejudicar, principalmente no caso das meninas ofendidas, a futura
produção de uma prole saudável e livre de flagelos degenerativos.
Dos processos aqui analisados, cerca de cinco deles estiveram
marcados diretamente por debates que construíram a perversidade e a
violência do acusado, por este ter sapiência da posse dessas moléstias, e
por supostamente saber da possibilidade de transmissão para as vítimas.
Além dos dois casos que envolveram Manoel Norberto em 1926 e 1933,
outro processo que debateu esses elementos aconteceu em 1936, e se
referia à ação contra Francisco Ribeiro de Almeida acusado de raptar e
estuprar duas menores impúberes. Nos depoimentos e pareceres sobre
esse crime, as testemunhas e os representantes da justiça, destacaram a
questão da doença venérea como um dos elementos que compunham a
“bestialidade” do crime. O fato de o denunciado ter assumido possuir
“cavallos” e “blenorreia”108, de a menor estar internada pelas
complicações depois da violação, e de se tratarem de crianças muito
pequenas, foi determinante para a construção da figura do acusado
Francisco Almeida como um ser “bestial” e como um indivíduo
completamente degenerado.
Essas significâncias e adjetivações podem ser percebidas no
relatório apresentado pelo delegado da Primeira Delegacia da cidade, ao
finalizar a investigação do inquérito policial, e também do Juiz César
Moraes Fontenelle que cuidou do caso. Disseram respectivamente que:

Alli, na solidão da PRAIA DE PIRAMBÚ, e sob a


escuridão da NOITE (pois eram mais de 22 horas,
quando Da. Maria adormeceu), dito soldado
“CHICO” (não obstante a farda de policial que
envergava no momento), depois de SEVICIAR
EUNICE, dando umas palmadas na mesma,
(seguramente para afasta-la, por ser a menor),

108
O “cavalo”, como aparece registrado no depoimento do acusado, se refere à
infestação chamada cancro mole. No caso de José Almeida, os médicos legistas
encontravam vários desses cancros em seu pênis no momento do corpo de
delito. A “blenorreia” seria outro nome popularmente atribuído à gonorreia.
154

ESTUPROU a TEREZITA, obrigando-a, ainda, a


praticar actos DE LIBIDINAGEM e
BESTIALIDADE, como fosse servir-se della
colocando-a por cima delle, e, introduzindo o seu
membro viril na bôcca da inocente e infeliz
criança, acrescentando, mais, que a inoculou de
moléstias venéreas. 109 (grifos meus)

Chegando á praia com as duas menores, em plena


escuridão da noite, o indiciado seviciou a Eunice,
dando-lhe palmadas que lhe produziram a
esquimose descrita no corpo de delito a fls8, e
estuprou a Tereza, a quem forçou ainda á prática
de repugnante ato de libidinagem, conforme atesta
o auto de coro de delito a fl. 7. Em consequência
dessa cópula carnal, ficou a desventurada criança
contaminada de moléstia venérea. (...) Quem
desvirginou, perversamente, a menor Teresa e,
como requinte de desumanidade, lhe introduziu o
membro viril na bôca, foi o mesmo degenerado
que seviciou a Maria Eunice tão só para dar vazão
aos seus baixos instintos de bêsta humana.
Outro indivíduo não apareceu nessa tela negra,
cuja visão horroriza as almas bem formadas. 110
(grifos meus)

Nesse sentido, Francisco Almeida era construído por esses


discursos como um indivíduo excepcional. Sua vazão aos “baixos
instintos”, até mesmo em um tom religioso, foi destacada no trecho
acima pela bestialidade que significava sua ação, ao manter relações
obscenas com tão jovens infantes. Para os representantes da justiça, e
especialmente para os médicos legistas envolvidos no caso, não existia
nenhuma dúvida do seu alto grau de degeneração, que como afirmou o
Juiz, horrorizava até “as almas bem formadas” como a desses ilustrados.
Seguindo a mesma relação entre violência sexual e transmissão
de doenças venéreas, em maio de 1938, o operário João Gabriel Filho,

109
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:
Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 03, Processo Nº 1936/02.
Relatório do delegado. p. 102.
110
(APEC), Processo Nº 1936/02. Parecer do Juiz. p. 165.
155

21 anos de idade, solteiro e sabendo ler e escrever, foi denunciado por


atentar contra o pudor do menor José de Souza, de sete anos de idade,
seu vizinho. Este processo foi o único que envolveu – ou pelo menos o
único que esse elemento se destacou durante o processo investigativo de
Atentados ao pudor – a transmissão de doença venérea para um menino.
Já munidos de termos mais “científicos” como “pederastia ativa” e
“pederastia passiva”, os representantes jurídicos e os médicos que
participaram do caso, referiram-se à degeneração e depravação do réu,
destacando que mesmo sabendo possuir tais doenças não hesitou em
fazer o garoto de vítima sexual.
Segundo as testemunhas do processo, a violação teria acontecido
no fundo do quintal da casa de ambos, que era uma área comum da
vizinhança.111 No pedido de prisão preventiva feito pelo delegado
Magdaleno Girão Barroso da 2º Delegacia de polícia do estado foi
possível perceber a forma com que a questão da doença venérea
apareceu como agravante moral sobre a figura de João Gabriel. Declarou
que:

Os presentes autos revelam um tipo repelente de


criminoso que, para saciar os seus instintos
sexuaes, não trepidou em fazê-lo por meio de
pederastia ativa em um menor, em quem, acima
de tudo, inoculou grave moléstia venérea,
devendo, por isso mesmo, receber a mais
rigorosa punição da Justiça. (...) A vítima narra
claramente os fatos, no que é corroborada pela
própria confissão do acusado. (fls. 4 a 6). A prova
testemunhal é concludente. O exame procedido na
Diretoria de Saúde Publica do Estado, por
intermédio do gabinete Medico Legal,

111
A historiadora Raquel Caminha, ao analisar a cena em que muitos dos crimes
de Calúnia, Injúria e Ferimentos foram cometidos, destacou a forma com que a
construção das casas populares em Fortaleza – chamadas casas germinadas, que
seriam aquelas em que uma única parede dividia duas casas – favoreciam uma
relação próxima entre a vizinhança e possibilitava, também, muitos conflitos
entre as pessoas que viviam próximas. Essa reflexão foi importante para aguçar
minha percepção sobre alguns dos cenários de crimes sexuais estudados nessa
pesquisa, como no caso contra João Gabriel Filho. Como afirmado acima, réu e
vítima eram vizinhos e partilhavam o mesmo quintal, lugar onde teria
acontecido o crime de Atentado ao Pudor. (ROCHA, 2010)
156

complementar do anterior exame de corpo de


delito, revelando a identidade das moléstias
venéreas encontradas em ambos, constitue uma
demonstração irrecusável da autoria. Por outro
lado a alegativa de embriaguês com que o
delinquente se procurou exculpar, não procede,
primeiro porque não ficou provada, segundo
porque mesmo tendo se alcoolizado na noite da
vespera, não é crivel que o acusado continuasse
em estado de perturbação dos sentidos na manhã
seguinte, quando teve logar a ocorrência.112 (grifos
meus)

Além da prática de pederastia considerada repugnante pelo


delegado, e também, pelas testemunhas e representantes do judiciário do
caso, a moléstia venérea constituiu elemento central na argumentação
para a condenação do réu. Mesmo se utilizando do motivo da
embriaguez para justificar sua ação, como aparece registrado na petição
do delegado, o réu acabou por ser considerado um homem dados às
bebidas, e em somatório, um homem degenerado, que saciou de forma
“anormal” seus instintos sexuais. Na denúncia elaborada pelo promotor,
esse elemento aparece como forma de fundamentação da culpa. Afirmou
que:

O denunciado, aproveitando-se da circunstancia


de ser, na Aldeiota, visinho do menor José de
Souza, que tem 7 anos de idade, sendo quintal da
casa de ambos em comum, atraiu ao referido
menor, no dia 19 de setembro ultimo, para um
ponto mais afastado desse local, e aí praticou
contra o mesmo atos de pederastia ativa (...) Dessa
conjunção carnal, ocorrido na manhã do dia
mencionado, resultou ficar a vitima com as lesões
anaes descritas no corpo de delito de fls. –
deformação do anus, relaxamento do esfincter e
desaparecimento de pregas, além de uma retite
dolorosa e eczema das margens, com uma

112
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:
Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 03, Processo Nº 1938/02.
Relatório do delegado. p. 24.
157

infecção gonocica transmitida pelo acusado, o


qual, apezar de assim doente, não vacilou ainda
ante a ação perversora.113 (grifos meus)

Os cuidados com a sífilis, com o “cancro”, dentre outras doenças


que apareciam como indicadoras de sexualidades não sadias estiveram
registradas, também, na Revista Centro Médico, em especial, durante a
década de 1930. Nesse momento, apareceram, com mais frequência,
matérias especializadas tratando do tema, além da divulgação de vários
tratamentos e medicamentos para as mais diversas manifestações
venéreas. A preocupação dos médicos se dava na demonstração dos
perigos que essas doenças, em especial a sífilis, traziam para a família e
para o desenvolvimento racial da população brasileira. A doença sexual,
além de um problema de saúde individual era, principalmente, uma
questão de saúde pública, afetando a qualidade física da raça e a boa
moral das próximas gerações.
Os debates em torno de elementos como o alcoolismo e as
doenças venéreas marcavam profundamente as análises sobre os homens
acusados de crimes sexuais estudados nesse capítulo. Por mais que esses
elementos também fossem reprovados pelos próprios populares e
demonstrassem uma má conduta dos denunciados, foi na palavra de
médicos e representantes da lei que esses hábitos e esses males venéreos
tornavam-se constituidores de sujeitos imorais e degenerados. A
violência sexual, nesse sentido, era constantemente compreendida por
intermédio de uma dissecação dos sujeitos envolvidos, e ganhavam
sentido a partir da decodificação do quão ameaçadores da ordem social
esses poderiam ser. A construção do sujeito criminoso nesses discursos
conflitava a imagem de homem de bem – sadio, produtor de uma prole
também sadia, dedicado ao trabalho e à família e livre de vícios, que
eram almejados como desenvolvedores da raça brasileira – com os
homens fracos, cheios de vícios, que levavam uma vida “desregrada”,
sem trabalho determinado, sem moradia, violentos, e por isso, símbolos
da degeneração.
A imagem abaixo demonstra muito desses conflitos discursivos
entre “homens fortes” e “homens fracos” que tinham como base uma
ideia medicalizada de masculinidade. Homens em que a boa moral e os

113
(APEC), Processo Nº 1938/02. Denúncia da promotoria. p. 02.
158

bons costumes garantiriam um perfil totalmente oposto àquele da


degeneração tão rechaçados pelas elites cearenses.

Imagem 3

A violência sexual era realizada por homens comuns, por homens


pobres ou de classe média, por patrões ou trabalhadores. No entanto, a
construção da figura do criminoso sexual girou em torno de um tom de
excepcionalidade que compunha os discursos sobre a violência sexual,
pois é pela própria degeneração e desregramento que se entendia,
159

explicava e julgava esses casos de violência. As desigualdades sociais


entre homens e mulheres raramente foram mencionadas nas centenas de
páginas analisadas desses processos estudados. Todo esse debate estava
profundamente marcado por relações de gênero entre homens e
mulheres, e também, entre homens e homens. O criminoso sexual
assumia nos discursos oficiais, um perfil de homem que parecia não
existir em todas as camadas da sociedade ou que poderia estar em
qualquer lugar ou exercer qualquer função.
Dessa forma, a construção discursiva realizada nessas ações
vinculava mais diretamente a violência sexual à pobreza, às
sociabilidades populares, à falta de educação formal e higiênica, às
“predisposições degenerativas”, dentre outros fatores, que reforçavam a
criminalização das pessoas pobres da cidade. De certo modo, essas
pessoas e esses espaços de vivências populares eram apresentados, pelo
perfil argumentativo de médicos e representantes jurídicos da cidade –
como os lugares mais propícios a essas violências.
A figura do homem ideal era o parâmetro ajuizador da avaliação
da trajetória de muitos homens que foram acusados de crimes sexuais, e
era marcado pelas hierarquias sociais e raciais existentes na capital
cearense. Em uma jurisprudência cujo criminoso e não o crime em si
ainda era o foco de análise desses discursos, o clamor por uma vida
regrada parecia uma exigência muitas vezes incompatível com as
possibilidades sociais de muitos desses denunciados.
Nessa mesma perspectiva, a própria interpretação a respeito da
violência sexual aparecia profundamente vinculada a excepcionalidade
desses perfis sociais, e muito menos por conceituação específica sobre
esse tipo de violência. O criminoso sexual nos discursos oficiais era um
homem que tinha algum elemento da vida incompatível com a de um
homem verdadeiramente decente, o que por sua vez, despercebia
violências desse tipo que pudessem ser cometidas mesmo entre aqueles
que eram reconhecidos como os homens de bem.

3.3 CONSTRUINDO O LUGAR DA VIOLÊNCIA: ENTRE A


CASA E O MATAGAL

A primeira metade do século XX significou para Fortaleza muitas


mudanças estruturais e sociais que afetaram o espaço da cidade e
também as relações entre as pessoas que cada vez mais se instalavam na
160

capital. A cidade desenvolvia-se ao mesmo passo que via a sua


população crescer em grande escala, recebendo constantemente
inúmeros migrantes do interior do estado. Linhas de bondes, novos
espaços de sociabilidades, cafés, bares, ruas de comércio, iluminação
pública, dentre outras mudanças, redesenharam a paisagem da capital e
possibilitaram um sem número de relações sociais que tinham no espaço
público o seu lugar de visibilidade.
No entanto, profundamente marcada por desigualdades de gênero,
de raça e de classe, a cidade de Fortaleza era palco de diferentes
experiências sociais, em que viver e sobreviver significava estar em
redes muitos complexas de conflitos e relações humanas. Mulheres,
homens, jovens, crianças e pessoas idosas vivenciaram e
experimentaram esse espaço de formas diversas, observando, sentindo e
interpretando de formas variadas essas redes de relações nas quais
estavam inseridas. Como afirmou a historiadora Marta Emísia, “a
cidade não podia mais ser pensada no singular” (BARBOSA, 1996, p.
15), eram muitas cidades construídas aos olhos das mais diferentes
experiências.
Nesse sentido, as fontes criminais são bastante importantes para a
observação das diferentes relações entre as pessoas e a cidade, pois
possibilitam o contato com um espaço em disputa, com uma cidade que
se constrói nas relações cotidianas entre as pessoas que a habitavam,
uma cidade marcada por normas, visíveis ou invisíveis, e também, pelas
subversões a essas normas. Marcadas pelas contendas cotidianas que
envolviam os mais diferentes segmentos sociais, essas fontes são
frutíferos registros da pluralidade de vivências dos indivíduos com os
espaços que compunham a capital de inícios do século XX. E nesse
sentido, o espaço da cidade deve ser pensado como imbuído de
diferentes significados entre aqueles sujeitos sociais que os constroem e
lhes dão vida.
As fontes criminais possibilitam mais do que uma observação
diversificada das vivências das pessoas. Elas permitem, também,
pensarmos sobre as disputas discursivas em torno de elementos que
faziam parte do cotidiano e das relações de poder entre as pessoas. No
que se refere aos crimes sexuais, a realização do crime, as pessoas
envolvidas e os elementos morais que circunscreviam toda a situação
criminal eram, a cada depoimento, disputadas e construídas. No entanto,
além desses elementos que intervinham diretamente na elaboração de
161

uma defesa ou de uma acusação, a narrativa sobre o momento de


ocorrência da violência e dos lugares em que os crimes eram cometidos
também foram pontos fundamentais de fabricação das versões existentes
nos processos criminais e indicavam relações diversas com os espaços
de sociabilidade, de vivência, e as condições simbólicas que
configuravam esses lugares.
A cidade iluminada – denominada por muitos cronistas como a
“loura desposada do sol” – que se modernizava e desenvolvia, dava
lugar, muitas vezes, a uma cidade escura, cheia de perigos e marcada por
relações conflituosas entre os que buscavam embelezá-la e moralizá-la,
e aqueles que sobreviviam às desigualdades também tão marcantes do
seu processo de desenvolvimento urbano. Um lugar sublinhado pelas
influências comportamentais francesas, pelo desenvolvimento comercial
de modernos artigos de consumo, pela introdução do automóvel na vida
urbana e pelo cultivo dos melhores valores morais, aparecia, nos relatos
contidos em muitos processos criminais, como uma cidade bastante
diferente desses discursos elitistas.
Fortaleza era delineada nos processos criminais como perigosa,
cheia de hierarquias, escura, ruralizada, marcada pela violência, vigiada,
e, principalmente, misógina. A capital cearense em inícios do século era
lugar profundamente marcado por uma supremacia de poder masculino,
cuja rua era constantemente vista como espaço que por direito
pertenciam aos homens. Ocupar os espaços públicos significava, para as
mulheres, atrever-se a estar em um espaço que parecia não ser seu por
direito. Em sintonia, a casa era reforçada em muitos dos discursos
construídos nessas ações como um espaço que primeiramente
simbolizava um lugar de proteção para as mulheres. Era no espaço
doméstico que as mulheres pareciam não estarem à mercê dos “perigos”
que o espaço urbano representava para elas. Não sem resistências, seja
para as mulheres ricas, ou principalmente para as mulheres pobres, essa
cidade, cheia de novas sociabilidades, lazeres e valores se apresentava
constantemente como um lugar de muitas restrições e segregações, e que
simbolicamente se construía como um lugar não-feminino.114

114
A dissertação de mestrado de Idalina Freitas, ao analisar os casos de crimes
contra as mulheres na cidade de Fortaleza, também se refere às simbologias e
discursos sobre as relações entre mulheres e espaço urbano. Ter acesso ao
espaço urbano, em especial para as mulheres que inevitavelmente ganhavam a
vida nesse espaço, significava estar suscetível a uma série de violências, sejam
162

É a partir desses conflitos que esse tópico busca analisar a forma


com que apareceram os lugares em que as violências sexuais foram
realizadas. Não em uma perspectiva que vê os relatos judiciais apenas
como informações sobre o crime que era julgado, ou mesmo sobre a
Fortaleza de inícios do século, mas principalmente, que os vê como
elaborações discursivas feitas pelas pessoas que eram chamadas a depor.
A demonstração do lugar de acontecimento do crime e suas
circunstâncias foram fundamentais na composição dos depoimentos
construídos pelos que elaboravam denúncias e pelos que buscavam
defender alguma das partes envolvidas. O lugar em que se dava a prática
criminosa demonstrava muito do ambiente em que as pessoas ofendidas
e denunciadas circulavam, e apareciam como significantes do nível de
violência do próprio ato sexual.
Um dos pontos que mais me chamaram atenção durante o
desenvolvimento dessa pesquisa se referiu à forma como os lugares em
que aconteceram essas violências eram explorados nas versões elaboras
pelas pessoas depoentes. O quintal, a moita, o matagal, os caminhos
desviados, as “casas desonestas”, dentre outros espaços, foram
recorrentemente ressaltados nos depoimentos e pareceres como forma de
evidenciar o caráter violador, pernicioso, perverso e imoral desses
crimes, além do caráter simbólico construído sobre esses espaços. Dos
processos aqui estudados, um total de noves casos – cinco Estupros
(art.268 e 269) e quatro Atentados ao Pudor (art. 266) – foram
representados, pelas mais diversas falas testemunhais, a partir de uma
exploração das imagens sobre as cenas constituidoras dos crimes.
Construir um relato marcado pela escuridão, pela “cumplicidade
da noite”, pelos lugares ermos ou pelas “matas silenciosas” significou
em muitos desses casos construir discursos sobre a própria violência
sexual. Esses lugares podiam demarcar desconfianças entre aqueles que
não souberam diretamente sobre o crime, mas que “ouviram falar” que
aconteceu “nas matas”; ou mesmo, que a única coisa que sabiam era o
fato de os envolvidos terem o hábito de “ir para as matas”; ou que o
acusado teria perversamente levado a vítima para o matagal e lá saciado
“seus instintos bestiais”.
Os casos de Atentados ao Pudor, majoritariamente compostos por
meninos, foram relatados no sentido de explorar muitas dessas cenas em

elas físicas ou simbólicas. O domínio masculino estava, também, relacionado ao


controle dos lugares frequentados pelas mulheres. (FREITAS, 2007)
163

que a violência teria sido praticada. Na década de 1920, os casos de


Atentado ao Pudor tiveram nesse elemento um importante e frequente
constituidor dos depoimentos analisados. Os crimes contra Francisco
Simphonio em 1922, Oswaldo Rodriguez em 1926, e Ligia Bezerra em
1929 foram apresentados em âmbito judicial como violências marcadas
por essa questão, em que os espaços da violência eram os espaços do
ilícito, do escondido, do escuro e do matagal.
Como visto no capítulo 1, o caso de denúncia de Atentado ao
Pudor contra a menor Ligia Bezerra de Menezes teria acontecido quando
esta saía em direção à casa de seu tio com a finalidade de levar uma
garrafa de leite. Segundo o depoimento das vítimas, Ligia teria sido
pega no meio do caminho por um cabo da polícia, que ao levá-la a “uma
moita” teria tentando praticar atos libidinosos. Os testemunhos do
vizinho José Norberto dos Santos, 40 anos, casado, agricultor, não
sabendo ler nem escrever, e da também vizinha Maria Joaquina de
Amorim, 35 anos, casada, vivendo de serviços domésticos referiram-se
principalmente ao lugar e a forma com que a menor fora abordada para
fundamentar seus relatos quanto ao episódio. Disseram,
respectivamente:

(...) que soube de ouvir da menor Lygia que vindo


da casa do seu tio onde fora buscar uma garrafa de
leite e ao saltar uma cerca foi pegada por um
soldado de Policia e levada a força para debaixo
de uma moita, onde o mesmo soldado tentou
affendel-a chegando a desatar os cordões de sua
calça (...)115

(...) que momentos apoz a passagem do soldado


ahi chegou o Senhor Bezerrinha pai da menor
Lygia procurando dito soldado que soube pela
própria menor que neste dia e hora vinha da casa
de uma tia onde fôra buscar uma garrafa de leite e
ao abaixar-se para passar numa cerca de arame
farpado viu-se de surpresa agarrada, por um braço
por um soldado que a levou a força para debaixo

115
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:
Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 02, Processo Nº 1929/01.
Auto de declaração das testemunhas. p. 38 e 39.
164

de uma moita não sabendo a testemunha o que


lá foram fazer; Que dito pela própria criança
soube que na moita o soldado ainda chegou a
levantar-lhe a roupa não sabendo a testemunha
para que. (...)116

Embora não quisessem enunciar diretamente que o cabo a teria


violentado – receio que poderia ser explicado pelo fato de tratar-se de
um cabo de polícia, ou mesmo pelo medo de demarcar publicamente que
a menor Lygia teria sido “manchada” –, os testemunhos desse caso
buscaram afirmar que souberam do acontecido por “ouvirem dizer” que
dito acusado teria desviado o caminho da menor, e que em uma “moita”
teria feito algo – que parecia subentendido – que não sabiam afirmar.
Dessa mesma forma, a testemunha Maria José Mendes, de 15 anos,
lavadeira de roupa em lugar próximo ao local do crime, afirmou em seu
depoimento:

(...) que pela própria menor Lygia soube a


depoente que esse soldado havia lhe pegado a
força a ella Lygia quando vinda da casa de um tio
e ao passar por baixo de uma cerca de arame
levando-a a força, para debaixo de uma moita,
lhe arrancou, digo arrancou-lhe do corpo a calça
que vestia, que não sabe nem ouviu dizer para
que este soldado fez isto com Lygia; que
desconhece o acusado presente e nunca o viu
passar naquele trexo do caminho. (...)117 (grifos
meus)

Em resumo, a denúncia elaborada pelo promotor João Jorge de


Pontes Vieira, após ressaltar o pouco controle dos instintos por parte do
réu, também foi marcada pela demonstração do momento e do lugar em
que a violência aconteceu.

(...) Vindo a menor Lygia da casa de um tio, onde


fora levar uma garrafa de leite, encontrou-se no
caminho com o referido cabo que, segurando-a
pela mão, fez-lhe uma pergunta qualquer e levou-

116
(APEC), Processo Nº 1929/01. Auto de declaração das testemunhas. p.36-37.
117
(APEC), Processo Nº 1929/01. Auto de declaração das testemunhas. p. 38.
165

a para junto de uma moita, onde obrigou-a a


deitar-se, practicando actos de libidinagem em
suas coxas. (...)118

A moita era retratada nessas versões como um lugar em que atos


pervertidos e imorais eram praticados. Assim, ou como informação dada
e defendida pelos que acusavam, ou como tímidas afirmações de “ouvi
dizer que foi na moita” que o caso aconteceu, era que a relação com o
proibido e com o violento era construída em muitos desses casos. Esse
mesmo aspecto estava colocado nos casos dos menores Francisco
Simphonio e Oswaldo Rodriguez, ambos de sete anos de idade. Como
abordados no capítulo anterior, os dois casos tiveram a mata como o
lugar da prática sexual imoral.
No caso do menino Simphonio, o Atentado ao pudor de que fora
vítima teria acontecido no momento em que este se dirigia para a mata
com o também menor Francisco Gomes da Silva, para buscar lenha.
Quase todos os depoimentos colhidos sobre o caso utilizaram-se da
espacialidade como elemento importante para a descrição do crime. Ao
relacionar o mato com a prática de imoralidade, muitos desses
depoimentos afirmavam os perigos dos lugares ermos e a potencialidade
desses locais para o exercício dessas práticas. Neste caso, mesmo que os
menores fossem reconhecidamente colegas, e que toda a vizinhança já
os tivessem visto brincando e fazendo coisas juntos, foi somente no
momento que “foram para a mata” que o ato sexual aconteceu. O relato
do próprio denunciado demonstra essas questões. “Respondeu que
hontem, cerca das quinze horas, saiu com o menor Francisco
Simphonio, filho do cego Simphonio, para o mato (...) que ali convidou
o menor, que pode ter de sete a oito anos, a fazerem imoralidade (...).”
119

Já no caso do menino Oswaldo, o acusado João Alves da Silva se


utilizou desse elemento para justificar a sua própria defesa. Ao referir-se
ao fato de que o menor já era conhecido por praticar “atos de
pederastia”, João Alves declarou que convidou o menor para ir às

118
(APEC), Processo Nº 1929/01. Parecer do Promotor. p.2.
119
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:
Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 01, Processo Nº 1922/01.
Auto de declaração do acusado. p.13.
166

“capoeiras” – lugar de matagal – e que este teria aceitado justamente por


saber o que iria ali fazer.

(...) que já tendo ouvido dizer que Oswaldo era


pederasta passivo, o depoente o convidou para ir
para as capoeiras, perguntando-lhe se já tivera
relações com alguém; que respondendo Oswaldo
já ter andado com outros, que lhes davam
dinheiro, o depoente o levou para os mattos e
contra ele praticou actos de libidinagem (...).120

Esses relatos expõem não apenas a descrição de uma Fortaleza


marcada pela escuridão, por ambientes ruralizados, que contrastavam
com as imagens iluminadas e com as propagandas de desenvolvimento
que recorrentemente eram divulgadas no início do século XX sobre a
capital. Como nos mostra Marta Emísia, para refletir sobre a Fortaleza
de inícios do século é necessário sair do perímetro central da cidade, que
tanto era marcado pelos discursos que buscavam os “aformoseamentos”,
mas que devemos ingressar nos vários outros recantos que nos mostram
“outras cidades”. (BARBOSA, 1996)
No entanto, as reflexões que gostaria de trazer para esse tópico
não se remetem apenas à contraposição existente nesses relatos entre
uma cidade vivenciada pelas pessoas pobres e uma cidade vivenciada
por aqueles que construíam um perímetro urbano, mesmo que as vezes
fictício, de modernidade e desenvolvimento. Nesses relatos, há também
a construção de um discurso sobre os lugares de violência sexual, dos
espaços em que o “pervertido”, o “ilícito”, o “cruel” e o “bestial”
acontecem. A violência sexual era marcada pela escuridão, pelas
oportunidades fortuitas, pelo “outro” que ameaçava uma ordem moral.
O policial imoral, o alcoólatra, o desregrado, o pervertido, e o violento
eram os sujeitos dessas violências.
Nesse sentido, durante a exploração das narrativas desses crimes
cheguei a algumas indagações: Seria mesmo a violência sexual algo
vivenciado apenas em ambientes ermos e distantes? Seria esse tipo de
violência marcada pela casualidade de um momento propício, ou a uma
situação de “descuido”? Diante do fato de não terem sido encontrados
120
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:
Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 01, Processo Nº 1926/01.
Auto de declaração do acusado. p. 10.
167

crimes como incestos ou crimes praticados de forma intrafamiliar nessa


pesquisa, podemos perguntar: Será que esse tipo de crime não existiu
nesse momento? Atentados ao pudor, Estupros, Corrupção de menores
ou Lenocínios não faziam parte de violências praticadas no cotidiano
familiar da cidade? Teriam, esse tipo de crime, não encontrado lugar em
um espaço de disputas públicas como o processo criminal?
A naturalização do espaço da casa como um lugar feminino, e do
ambiente privado como um lugar eminentemente de proteção às
mulheres ainda hoje é um discurso que invisibiliza muitas violências
contra as mulheres, violências intrafamiliares e domésticas. Como
afirmou María Luisa Feminías, ao pensar o estatuto cultural que
historicamente marca as legislações sobre o tema na América Latina, a
compreensão do privado como um aspecto “natural” do feminino é um
dos principais desafios para a construção de legislações mais complexas
sobre o tema. Disse:

Ese lastre histórico y conceptual ha impedido por


siglos generar figuras penales que reconozcan,
hagan visible y apliquen pena para los delitos de
violencia contra las mujeres, sobre todo en el
espacio “domestico”. Debido también al peso de
la tradición y de “las buenas costumbres” tales
delitos no suelen denunciarse o, si se los denuncia,
pasan a formar parte del gran conjunto de los
“delitos menores” (…) (FEMENÍAS, 2009, p. 52)

Nesse sentido, a divisão do espaço público e privado como


elementos constituídos de um discurso de proteção feminina, ou de
proteção familiar – já que é possível estender a compreensão para as
crianças – deve ser entendida não como simples esferas da sociedade,
mas como “clasificaciones culturales y etiquetas teóricas”.
(FEMENÍAS, 2009, p. 52) Ou seja, pensar dessa forma nos ajuda a
entender muitas das disputas discursivas em torno da violência sexual, e
também, sobre os acusados de crimes sexuais.
Pensar as espacialidades narradas e disputadas nos depoimentos
desses processos é reflexionar sobre quais os lugares de violência sexual
que chegavam aos tribunais de justiça e que construíam discursos sobre
o próprio caráter desses atos. A excepcionalidade que marcava a
construção de muitos dos denunciados, assim como as narrativas em
torno dos lugares em que as agressões aconteciam, também eram fatores
168

importantes na construção de discursos sobre a sexualidade sadia e sobre


a violência sexual. Segundo grande parte dos casos, o quintal, a mata, o
matagal, a moita, assim como outras “localidades” em que se davam os
crimes, eram os lugares privilegiados pelos agressores que buscavam
saciar seus “instintos bestiais”.
No processo contra “José Sodoma”, o ambiente no qual o crime
teria acontecido também mobilizou diferentes relatos e foi objeto de
disputa entre as pessoas envolvidas. Enquanto os que corroboravam com
a versão denunciativa afirmavam que a violência teria sido praticada nas
“matas do Urubú”, no momento em que a menor Anna Elias fora buscar
lenha no mato, a versão sustentada pelo acusado buscava salientar que o
primeiro ato sexual que teria tido com a vítima – que segundo essa
versão não seria a primeira relação da menor – acontecera dentro de sua
própria casa, sob a vista dos pais de Anna Elias. O acusado declarou:

(...) que é verdade – que no dia 8 (oito) de março


deste anno, cerca das 12 (dôze) horas (meio dia),
têve pela primeira vêz, relações sexuais com a
sobredita menor – Anna Elias França Moura,
familiarmente tratada por “Naninha”, em a
própria casa da mesma (...) que o acto, têve
logar na rêde do declarante, na sala de vizitas,
sendo que por essa occasião tanto Elias França de
Moura, vulgo “Pereira”, como sua mulher – que
se chama -Maria – paes de Naninha estavam em
casa, deitados no quarto vizinho a dita sala,
descançando pois era um dia de domingo (...).
(grifos meus) 121

A tentativa de deslocar o lugar do ato sexual para dentro da casa


da menor foi uma tentativa de descontruir o próprio caráter de violência
da ação. Enquanto grande parte das testemunhas relatavam saber que a
menor teria sido violada nas matas, e que justamente por isso um resgate
aos pedidos de socorro era quase impossível, o acusado buscava
salientar que Anna Elias era filha de pais displicentes, e por isso, o
acusado teria se permitido ter práticas sexuais com a garota. No entanto,

121
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:
Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 02, Processo Nº 1931/04.
Auto de declaração do acusado. p. 45.
169

a maioria dos depoimentos, em especial o da própria Anna Elias,


ressaltavam a mata e a impossibilidade de reação como os elementos
principais do momento do crime. Disse que o acusado,

(...) ali chegando e encontrando a declarante


sozinha, a enganou e dizendo que a prima dele (...)
de nome Lucinha, tinha trazido um presente para a
declarante, a convenceu de que devia ir com ele á
casa de Lucinha receber o aludido presente,
acrescentando que, quando voltassem, não
deixariam o pae da declarante açoital-a; que a
declarante, confiando em “José Lobato”,
acompanhou-a e ao chegar as mattas das terras
do Cel. Antonio Joaquim de Carvalho, – José
Lobato”, dizendo “que agora ia fazêr o que o seu
coração pedia”, deitou-a, á força – no chão- e,
rasgando a “sunga”, ou calças da declarante, a
ofendeu (...). 122 (grifos meus)

Essa narrativa do engano, e de que o denunciado teria levado a


menor para lugar ermo na mata para “ofendê-la” marcou univocamente
o depoimento das testemunhas de acusação. Esse fato, somado aos
“péssimos precedentes” do acusado garantiram sua condenação por
crime de Estupro; e no somatório da culpa, esse fator foi entendido
como prova da premeditação, da “tara” e da degenerescência do réu.
Muitos foram os casos cujos lugares ermos e sombrios se
constituíram como os locais de violência, e poucos estiveram marcados
pelo ambiente doméstico como espaço ameaçador. Nos casos em que a
casa apareceu como cena do crime, outros elementos apareciam como
moderadores da situação de violência e outras formas de relações de
poder eram levantadas nos relatos dos processos.
Em 1937, o comerciante José Vieira Martins, conhecido
popularmente como “José Ângelo” era denunciado por crime de Estupro
da menor Maria Isabel de Santana, de treze anos. O crime teria
acontecido na própria casa do acusado, lugar onde a ofendida trabalhava
em serviços domésticos. Segundo as narrativas de acusação, o estupro
teria acontecido – depois de algumas tentativas sem êxito – no momento
em que a vítima preparava um banho para o denunciado. “José Ângelo”

122
(APEC), Processo Nº 1931/04. Auto de declaração da vítima. p. 08.
170

aproveitando-se da proximidade e do momento em que estava sozinho


com a menor, a teria puxado para dentro do banheiro e ali praticado a
violência.
Para Maria Izabel – assim como para as menores Lindalva Barros
e Raimunda Ferreira que já tinham dado queixa contra “José Ângelo”
pelos mesmos motivos – a casa do patrão simbolizava um lugar
constante de ameaça social. A situação de violência desse caso foi
marcada nos discursos oficiais pela própria relação patrão-empregada. A
cena do crime e a imagem do denunciado se ajustavam às narrativas de
defesa e acusação que compuseram o processo.
Ora construído como um homem perverso, conhecido pela má
conduta moral, ou ora visto como homem trabalhador e dedicado à
família, José Vieira Martins era apresentado de forma antagônica nas
disputas discursivas do processo.
Na tentativa de se defender, “José Ângelo” e suas testemunhas de
defesa afirmavam ser a sua casa um lugar direito e “de respeito”, sendo
o denunciado homem casado e com filhos, além de ser uma figura
dedicada à formação de um lar sob a boa moral. No decorrer da ação, o
réu sugere algumas testemunhas de defesa, dentre as quais, a senhora
Maria Barbosa – catequista da redondeza – e que segundo declarou, teria
visto a menor em meados da data dita do “desvirginamento”, saindo “de
um mato” com um homem desconhecido.123 A própria testemunha
afirmou não saber de nenhum causo de mau comportamento da
ofendida, salientando apenas que somente neste dia julgou estranho que
uma mocinha de respeito estivesse na companhia de um homem em um
matagal.
Durante a elaboração da defesa preparada pelo advogado do
réu, esse elemento acabou por ser o principal na desqualificação da
imagem da menor ofendida. Em pouco mais de dez páginas de defesa o
advogado explorou a possibilidade de seu curador ter sido vítima de
uma conspiração da polícia, e também, do absurdo que era seu tutelado
ser denunciado por um crime contra uma menor que não teria nenhum
dos quesitos necessários para a qualificação do caso, em especial a
honra. A questão colocada anteriormente pela testemunha de defesa foi
o mote central utilizado pelo advogado para desqualificar a conduta da

123
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:
Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 03, Processo Nº 1937/01.
Auto de declaração das testemunhas. p. 84.
171

vítima, e sugerir ao juiz a dúvida quanto à questão do lugar da violência.


Afirmou que:

No entanto, enquanto ninguém conhece de visu


[sic] o mínimo gesto do acusado que traduza ao
menos sua intenção de delinquir, de outra parte à
menor em jogo se pode apontar outro homem
com quem foi vista no mato...
Que haveriam de fazer, entrando na mataria,
um homem e uma jovem, abrindo-se a vida
desta para os anseios da puberdade? ...
Respondam-me os nossos guardas que, servindo-
se da farda e da sombra da noite, andam atracados
às desgraçadas empregadinhas domesticas que
enfestam as ruas a deshoras...
Indague-se agora do bom senso quem pode ser
imputado pelo desvirginamento de Maria Isabel:
aquele homem com quem foi ela vista no mato,
por uma senhora, seríssima, aliás (...). Bem se
vê que o individuo que andou com Maria metido
pela folhagem, há de ser-lhe uma pessoa
afeiçoada, um namorado despudorado sim, mas
um namorado a quem ela jamais acusaria,
preferindo, por esse modo, condenar o pai de
família que é o denunciado.124 (grifos meus)

É possível observar a forma com que os espaços de violência,


assim como a imagem dos envolvidos se inter-relacionavam nas
disputas sobre as “verdadeiras versões” dos crimes sexuais. Valorizar o
elemento do “matagal” significava explorar as referências das práticas
proibidas, desonradas e imorais que tinham nos ambientes ermos e
desonestos seus lugares. Esse elemento se somava às elaborações
discursivas sobre os sujeitos acusados dessa tipologia de crime. Para
assinalar a inocência do réu era necessário construir a figura de um
homem bom, trabalhador, sem nenhum vício, mantenedor de um lar
“direito” e dedicado à família. Em contraposição, era construída a
imagem de uma queixosa de honra duvidosa, que não vivia
recatadamente e permitia levantarem-se suspeitas sobre sua conduta.

124
(APEC), Processo Nº 1937/01. Parecer do advogado de defesa. p. 108.
172

Para o advogado de defesa de José Vieira Martins, o


deslocamento sobre a autoria do crime esteve diretamente relacionado à
construção de um lugar de violência que não poderia ser o ambiente
doméstico honesto como o que vivia o réu. Enquanto tratava de relevar
os atributos de homem de bem que marcaria seu curado, o advogado
formulava a imagem de um lar direito, sustentado pela boa moral do pai
e marido exemplar que seria o denunciado.
Embora grande parte das testemunhas terem salientado estar
perplexas quanto à atitude de “José Ângelo”, ao ser acusado de abusar
de uma menina tão pequena, “pobre, desgraçada e defeituosa de uma
vista” 125; muitos dos depoimentos afirmaram ter sapiência de que este
não era o primeiro “boato” em que este estava envolvido, pois já era
conhecido por outras denúncias de violação de “menores impúberes”.
As testemunhas de acusação destacavam que no cotidiano da casa do
acusado, mesmo com a presença da esposa, ele já teria tentado violentar
de diferentes formas as meninas que lá trabalharam.
Afirmando que o acusado insistia com propostas “seductoras”
durante o dia e a noite, a casa do patrão foi descrita por essas vítimas
como um lugar de violência e de “falta de respeito”. A cena do crime
contra Maria Isabel foi descrita pela versão acusadora como um lugar de
medo marcado pela ação de um homem perverso e imoral, que sem
respeito pela família “dessacralizava” e desmoralizava aquele espaço.
Como afirmou a ofendida no momento de seu depoimento, e ao explicar
o que acontecera depois de sua violação, quando deixou de trabalhar na
casa do antigo patrão, afirmou que saiu de lá “porque o senhor José
Ângelo, não se dava ao respeito” 126.
Muitos outros processos tiveram essa tensão entre a casa e os
espaços “imorais” como questão fundamental para a configuração do
crime. Muitos dos casos apresentaram o quintal, o matagal, os ambientes
escuros, os lugares afastados como próprios de uma narrativa de
violência sexual. Nesse sentido, as disputas sobre esses espaços
constituíram discursos sobre a própria produção dos significados de
violência, secundarizando a imagem da casa e do ambiente doméstico
como um lugar em que essas situações pudessem acontecer. Nos poucos
casos em que a casa apareceu como possibilidade de lugar de violência,

125
(APEC), Processo Nº 1937/01. Auto de declarações das testemunhas. p. 29 e
30.
126
(APEC), Processo Nº 1937/01. Auto de declarações da ofendida. p. 13.
173

a narrativa esteve marcada pelas relações de poder entre patrão e


empregada, ou pelo “outro”, que por invasão ou traição de confiança
acabava por se utilizar desse espaço para a prática do crime.
A partir do caso contra a menor Maria Isabel é pertinente
pensarmos as possibilidades que tinha um homem até então considerado
um “homem de bem” e que também era patrão, para a prática de
violências de diferentes tipos sobre as mulheres que estavam sob sua
subordinação. As hierarquias de classe vivenciadas pela relação patrão-
empregada, e também as desigualdades raciais – por se tratar de uma
menina reafirmada como “morena” – estiveram, a todo o momento,
presentes nas discussões desse processo que durou quase três anos para
ser concluído. Em primeiro julgamento o réu fora absolvido por
insuficiência de provas sobre a autoria do estupro (e desvirginamento)
da menor. Depois de muitas apelações, foi condenado não apenas pelo
caso de Isabel, mas pelo total das três acusações do mesmo tipo de crime
que existiam contra o réu, que se somaram em uma única sentença.
Neste caso, a violência era explicada pela própria condição de
hierarquia social e racial em que estavam envolvidos, réu e vítima. No
entanto, para elucidarmos a forma como as relações de gênero marcaram
a construção da figura do criminoso sexual é importante pensarmos,
também, nas ausências colocadas nesses processos. O fato de poucos
crimes sexuais terem sido marcados pelo ambiente doméstico
significava que os crimes de estupro e atentados ao pudor aconteciam
em ambientes públicos, mas também, que muitas dessas violências
sexuais poderiam ser pouco vistas como violências recorríveis ao auxílio
judicial.
Embora muitas mulheres das classes populares tivessem visto no
poder policial e nas ações judiciais uma possibilidade de resolução para
contendas cotidianas – como bem mostrado nos trabalhos da
historiadora Raquel Rocha (2011) e Idalina Freitas (2007) – é possível
pensarmos, a partir do recorte das fontes deste trabalho, que no que
refere às questões sexuais, poucas mulheres adultas e/ou casadas
apareceram na condição de vítimas desse tipo de violência.
Seriam os homens ditos “de família”, reconhecidamente
trabalhadores, assim como José Vieira, incompatíveis com a imagem
que majoritariamente era construída sobre o criminoso sexual? Ao
pensar sobre as ausências existentes nessas fontes, seria possível indagar
que essas violências poderiam estar veladas nas relações matrimoniais,
174

ou mesmo nas relações de amasia vividas pelos populares? Seria o


espaço da “casa” um espaço secundarizado como produtor de violência
sexual? Teriam possibilidades argumentativas aquelas mulheres casadas
ou que vivessem “maritalmente” que quisessem denunciar violências
sexuais contra seus maridos e companheiros? Relações incestuosas
seriam passíveis de debates públicos como os efetuados em processos
criminais?
As historiadoras Idalina de Freitas e Noélia Alves mostraram que
muitas violências contra as mulheres foram marcadas pelas relações
matrimoniais ou amorosas, em que maridos insatisfeitos com os
comportamentos e decisões de suas companheiras, acabavam por
praticar uma série de agressões – lesões corporais e assassinatos – e que
foram registradas nas delegacias da cidade127. Esses trabalhos ao
visibilizarem os conflitos que marcavam as relações maritais e amorosas
mostravam a forma com que a dominação masculina sobre os corpos
femininos e sobre o ambiente familiar mobilizava uma série de
violências.
O controle das mulheres e do ambiente familiar era importante
atributo de masculinidade, que fazia com que o bom marido fosse aquele
que mantivesse a “ordem” sobre a sua casa e sobre as mulheres que
compunham sua família. Esses elementos nos fazem refletir de que
modo as violências sexuais poderiam fazer parte de uma forma
naturalizada de relação marido-esposa, e até mesmo entre pais e filhas,
mas que por vezes, não eram visibilizadas no espaço público, e muitos
menos, em espaços de julgamento como as esferas policiais e judiciais.
Como ressaltado por muitos trabalhos historiográficos sobre o
início do século XX brasileiro, a rua era vista como lugar de perigo para

127
Os dois trabalhos tiveram como objetivo problematizar as relações de
violência que permeavam o cotidiano das mulheres na cidade de Fortaleza em
inícios do século XX. Noélia, pela problematização da questão da honra
colocada para os crimes de agressões contra mulheres, ressaltou a forma com
que a honra masculina estava diretamente ligada aos comportamentos
femininos, e também, como entre as relações matrimoniais a legitimidade de
algumas agressões faziam parte das relações entre homens e mulheres. Na
mesma perspectiva, a historiadora Idalina Freitas ressaltou como a rua, o acesso
aos espaços urbanos e as transgressões dos modelos de gênero vivenciados pelas
mulheres, em especial as mulheres pobres, mobilizaram diferentes formas de
agressões e assassinatos por homens em suas companheiras de relação.
175

as mulheres. (SOIHET, 1989; ESTEVES, 1989). Cheia de tentações,


muitas vezes marcada pela escuridão “cúmplice dos maus
comportamentos”, o espaço público era pensado e reforçado para as
mulheres como um lugar ameaçador e cheio de perigos. As narrativas
sobre violência sexual registradas em grande parte dos processos aqui
estudados apresentavam disputas sobre esses espaços de violência e que
reafirmavam ser a rua o principal lugar de ameaça para as mulheres. A
sexualidade não-sadia era construída como aquela feita nos lugares de
vivência dos degenerados, dos sem pudor e dos que não estavam
abençoados pelo selo do matrimônio.
Utilizando-se das referências da casa como um lugar que deveria
ser sustentado pela boa moral e pelos bons costumes, e o lugar da
sexualidade desejada, tanto no processo de “José Ângelo” como no de
“José Sodoma”, a tentativa de desmoralizar a moradia como forma de
desqualificação de alguma das partes envolvidas apareceu como
importante tática dos relatos entre os que acusam e os que defendem. O
proibido e o legitimado se construíam mutuamente nessas declarações.
Esses processos mobilizavam narrativas sobre a Fortaleza de
inícios do século e demonstravam relações diversas com a cidade.
Recorrentemente, as violências de gênero eram interpretadas e
constituídas pelo viés da família e das funções sociais que homens e
mulheres deveriam ocupar. Interpretar a violência a partir dos danos
físicos e psicológicos que possivelmente marcariam a vítima era fator
que não estava na ordem das leituras oficiais sobre crimes sexuais de
inícios do século XX. A violência era fruto de condutas desviadas,
sejam de mulheres por maus comportamentos, ou por homens
degenerados que representassem uma ameaça geral para toda a
sociedade.
A excepcionalização da figura do criminoso sexual apareceu
registrada em muitos desses processos, seja nas falas dos populares que
construíam suas próprias hierarquias para elaborar suas acusações e
defesas, seja pelos discursos médicos – que nas décadas de 1920 e 1930
solidificavam-se como instrumentos de análise criminal. O criminoso
sexual era, em termos gerais, aquele que vinha de fora, era o outro
“pervertido”, o “imoral”, o “alcoólatra”, o “tarado”, o homem de
péssimos hábitos sociais. A violência sexual parecia não ser própria do
cotidiano daqueles considerados bons pais de família, homens
trabalhadores, que livre de todo tipo de vício degenerativo se dedicavam
176

ao provimento familiar, e tornavam-se homens de difícil associação com


esse tipo de crime.
A compreensão dessas violências era interpretada a partir de
muitos preconceitos sociais, que marcavam muitas das construções que
analisavam a existência dos criminosos em inícios do século XX.
Retornando às palavras de Teófilos Rifiotis, entender a violência como
algo concernente ao “outro” é uma perspectiva que limita a
compreensão de como a violência nem sempre está marcada por um viés
repressivo, mas também, é produtora de sentidos “positivos” para
diferentes discursos e práticas em uma dada sociedade. (RIFIOTIS,
1997)
Nesse sentido, a violência sexual agregava, na grande parte das
vezes, muitos outros elementos para além das desigualdades de gênero.
Dentro dessas narrativas, é possível ver serem construídos –
profundamente interligados com as estruturas e desigualdades sociais
que marcavam o início do século na cidade de Fortaleza e também os
principais centros urbanos brasileiros – um discurso que expurgava do
ambiente da “família nuclear burguesa”, estruturada na figura do homem
de bem, as violências sexuais e as demais violências que eram
supostamente fruto dos elementos de degeneração que rodeavam e
ameaçavam a ordem familiar.
177

4 CAPÍTULO 3 – ENTRE INOCENTES E DESONESTAS:


CONSTRUINDO A VÍTIMA DE CRIME SEXUAL

Condição sem a qual se pode conceber a


existência dos crimes subordinados a esta
denominação (violência carnal) – É O
CONSTRANGIMENTO À VONTADE DA
VÍTIMA, A VIOLÊNCIA. Realmente, quando o
agente passivo tem livremente concorrido para a
prática do ato, não se pode dizer violado nenhum
direito, e sem isso poderá haver um ato imoral,
não um crime. 128

4.1 PASSIVA E INOCENTE: IDEALIZANDO A VÍTIMA DE


CRIME SEXUAL

Concomitante à figura do acusado, a vítima dos crimes sexuais


foi diversa e contraditoriamente elaborada pelos relatos que
compuseram os processos de crimes sexuais entre os períodos de 1900 e
1940. Diferentemente do que apontaram muitos dos trabalhos que
tiveram como enfoque os crimes de Defloramentos, marcados por
longos debates sobre a conduta das moças ofendidas, os casos de
Estupros e Atentados ao pudor tiveram, também, como questão central a
investigação dos antecedentes e das condutas dos homens acusados.
Embora no que se refira ao tema da sexualidade as mulheres
fossem (e ainda sejam) mais cobradas quanto aos valores de recato e de
bom comportamento, nos vários relatos estudados nesses casos, o
histórico da conduta dos acusados também foi de grande importância
nas discussões nos inquéritos policiais e judiciais de crimes sexuais,
como analisei no capítulo anterior. No entanto, apesar de que nesses
crimes a inquirição sobre as condutas tenha se voltado também para os
acusados, é pertinente frisar que estes não se compuseram isoladamente,
mas sempre em relação às construções que se faziam e se disputavam
sobre as imagens das vítimas.

128
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:
Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 03, Processo Nº 1937/01.
Apelação do advogado de defesa. p. 192.
178

O aspecto relacional em que estavam colocadas as relações


acusado-vítima produzia diferentes sentidos sobre a violência sexual, e
nos permitiu pensar de que modo a sexualidade de homens e mulheres
foi construída discursivamente a partir do gênero. Nesse sentido, a
reflexão sobre os “significados variáveis e contraditórios” – como
sugeria Joan Scott – que eram atribuídos às diferenças sexuais e que
fizeram parte dos debates em torno dos crimes sexuais, foram
fundamentais na compreensão dos elementos constitutivos desse tipo de
crime e da própria ideia de violência. (SCOOT, 1990, p. 82)
Ora aparecendo como figuras frágeis – físico e mentalmente –
inocentes, puras, bobas, sem forças para lutar e resistir, desprovidas de
desejos sexuais – principalmente quando eram retratadas pelas pessoas
que as defendiam -, ou ora aparecendo como figuras sem honestidade,
coniventes com os crimes julgados, cheias de despudor, malícia e
desejo; as vítimas dos crimes sexuais foram representadas de forma
diversa e muitas vezes opostas nos relatos que compunham os processos
judiciais. As tensões existentes entre autonomia-vontade-desejo e
passividade-inocência-inferioridade eram constantemente disputadas nos
depoimentos desses casos.
Como apresentado no primeiro capítulo, grande parte dos crimes
analisados tiveram majoritariamente como ofendidas meninas menores
de idade, dentre as quais, algumas com idade inferior a dez anos. Assim,
os relatos que construíam a imagem das vítimas desses crimes eram
recorrentemente marcados pelas relações de distinção etária entre
vítimas e acusados, mobilizando uma série de simbolismos sobre a
figura da criança e da (o) jovem “menor” de idade129. Nesse sentido,
entender a construção discursiva sobre as vítimas de crimes sexuais,

129
É importante relembrar, como mostrado no primeiro capítulo deste trabalho,
que a idade era fator importante na fundamentação jurídica de classificação dos
crimes, e na própria construção discursiva do que era considerado violento. O
Código de Menores de 1927 não se reportou ao tema da violência sexual em
seus artigos e, portanto, não construiu especificações dessas violências para a
legislatura dos menores. Todavia, uma das possíveis explicações para isso foi o
próprio privilégio colocado no Código Penal de 1890 para as vítimas menores
de idade. As definições de violência sexual já se construíam profundamente
marcadas pelas idades da vida. Relembro aqui as diferenças interpretativas nos
crimes contra pessoas que estavam fora da menoridade e do encaixe da
violência presumida, como nos crimes contra mulheres adultas e idosas.
179

significou também, compreender as articulações realizadas entre a


menoridade e as relações de gênero. Para entender como a violência se
articulava do ponto de vista sexual nos depoimentos dos testemunhos, e
nas fundamentações dos representantes da justiça foi necessário analisar
a forma com que a ideia de vitimização se articulava às simbologias de
gênero, e também, aos discursos sobre a situação social das crianças e
dos adolescentes na cidade de Fortaleza.
É importante ressaltar que os debates sobre menoridade e o
problema do(a) “menor” estavam colocados nesse momento como uma
grande preocupação para o poder público e para a jurisprudência
brasileira, pois estes eram compreendidos cada vez mais como o futuro
da sociedade, e seria esta a principal fase da vida em que as más
condutas seriam aprendidas e estabelecidas. A “menor” ou o “menor”
em inícios do século assumiam uma definição no vocábulo jurídico de
sinonímia com os infantes e jovens pobres dos grandes centros urbanos.
Preservá-los e educá-los com a finalidade preventiva para os problemas
sociais passou a ser tarefa importante para o poder público brasileiro.
Como destacou Fernando Londoño, a palavra menor até meados da
década de 1920 do século passado aparecia de forma irregular nos textos
jurídicos, no entanto, “a partir de 1920 até hoje em dia a palavra passou
a referir e indicar a criança em relação à situação de abandono e
marginalidade, além de definir sua condição civil e jurídica e os direitos
que lhe correspondem”. (LONDOÑO, 1992, p. 129)130
A preocupação com a delinquência e a tentativa de preservar os
mais jovens dos vícios e maus comportamentos trazidos pela
modernidade, também foram referenciais importantes na interpretação
dos processos aqui estudados. A conduta sexual de meninos e meninas –
principalmente destas últimas – era interrogada, problematizada e ao

130
A preocupação com o problema da delinquência norteou enormemente a
construção do Código de Menores de 1927, que buscava regulamentar,
principalmente, as relações de tutoria e de trabalho que marcava a vida das (os)
menores. Definir as obrigações de mães, pais e outros responsáveis, além de
regular as condições e as atividades laborais que poderiam ser por elas e eles
exercidas – com a finalidade de garantir suas integridades físicas e morais –
caracterizou grande parte dos artigos desse código. O privilégio por essas
temáticas mostrava também a forma com que a educação dessa fase da vida,
especialmente sob a moral do trabalho, era vista como central no tratamento
dado à temática da delinquência.
180

mesmo tempo construída pelos discursos morais emitidos por


testemunhas, delegados, advogados, promotores e juízes. Esses
processos revelaram-se fontes fundamentais na exploração das
referências morais e dos discursos oficiais sobre as expectativas de
sexualidade que se tinham sobre os infantes e jovens que compuseram
majoritariamente o lugar das vítimas desse tipo de crime.
Na cidade de Fortaleza, a preocupação com a “delinquência”
também apareceu como um grande problema para a elite local e para os
administradores públicos do estado. Como afirma a historiadora Jozinete
Lopes, as crianças cearenses que até o século XIX eram alvos de
preocupação pelas autoridades públicas devido ao seu caráter de pobreza
e falta de assistência, em que a infância desvalida, órfã e pobre – muito
relacionada às tragédias da seca vividas no estado – era problematizada
a partir de uma perspectiva assistencialista que buscava ampará-las da
situação de miséria que viviam. No entanto, segundo Jozinete, a partir
de fins do século XIX, e especialmente nas primeiras décadas do século
XX,

a infância passou a ser objetivada pelo discurso


político e como tal devia ser preparada e
encaminhada para determinados fins
preestabelecidos. Para ser útil à nação, como
pretendiam os republicanos de então, a criança
deveria ser obediente, ordeira, estudiosa, saudável
– física e moralmente -, submissa ao destino que
os adultos desejassem impor-lhe, entre outros
atributos. (SOUZA, 2003, p. 2)

A infância e a adolescência na virada do século XX, e em


especial nas grandes cidades do Brasil passava a ser vista,
progressivamente, como uma fase da vida de grande importância para a
assimilação dos valores considerados fundamentais para o
desenvolvimento moral da sociedade. Como forma de combate à
criminalidade que afligia esses grandes centros urbanos, a disciplina do
trabalho e a educação eram dois dos vieses pautados para a
reformulação do trato com os infantes e os adolescentes que se
desviavam dos “melhores valores” da sociedade. Tal historiadora, ao
pensar essa questão na cidade de Fortaleza destacou, também, que em
oposição à figura da criança ordeira e saudável, construía-se nos debates
181

públicos da cidade a imagem de uma criança delinquente, perigosa e


potencialmente criminosa para a sociedade. Afirmou que:

Nessa construção, os políticos profissionais não


estavam sozinhos, mas fortemente amparados por
toda uma rede de saberes (jurídico, médico,
higienista, pedagógico, psicológico, etc.) que se
voltaram para a questão da infância (...). Na rede
desses saberes, o saber médico e jurídico
assumiram uma importância crucial na produção
da criança delinqüente e criminosa. (SOUZA,
2003, p. 2)

Com relação aos crimes sexuais e ao tema da sexualidade, as


meninas e moças que se queixavam de violências nas delegacias da
cidade tinham seus comportamentos analisados a partir das expectativas
de gênero que existiam para as mulheres nesse período. Os bons modos
e o comportamento recatado eram pressupostos importantes para a valia
de uma denúncia de crime sexual. A ideia de que deveriam ser
naturalmente inocentes marcava também muitos dos relatos e pareceres
oficiais dessas ações, mas eram, a cada depoimento, disputadas e
problematizadas pelas pessoas que participaram das ações penais. Nesse
sentido, é necessário destacar a forma com que a menoridade esteve
cotidianamente interpelada pelas expectativas de gênero quanto ao tema
da sexualidade.131
No processo trabalhado no capítulo anterior contra o acusado José
do Nascimento, apesar de reconhecer que teve relações sexuais com a
menor Anna Elias, o mesmo buscou defender-se tanto se contrapondo a
131
Tomando as palavras da socióloga Luzinete Simões, ao traçar um panorama
sobre os conceitos de criança, infância e menor na historiografia social
brasileira, esses últimos foram pensados, muitas vezes, sem uma devida
articulação com os estudos de gênero. Segundo essa autora, ainda são raros os
trabalhos que articulam o gênero e a infância, e expressa a importância de as
pesquisas se aprofundarem em tal empreitada. (SIMÕES, 2006, p. 292) Daí,
portanto, a importância de superar as reflexões sobre a infância que reforçam
temas e sociabilidades marcados pelos “papeis sociais” que lhes são
recorrentemente atribuídos, investindo em questões que busquem problematizá-
la nos seus processos de construção discursiva. Pensar a infância como um
construto histórico, social e profundamente marcado pelo gênero são elementos
fundamentais para desconstruir naturalizações sobre essas idades da vida.
182

versão de que não teria praticado sexo por intermédio de violência e


força, como também, buscou construir uma imagem da ofendida que
procurava de algum modo neutralizar as questões de que era acusado,
afirmando ser a vítima uma menina entendida das “coisas da vida”. Em
seu depoimento declarou que:

(...) que é verdade – que no dia 8 (oito) de março


deste anno, cerca das 12 (dôze) horas (meio dia),
têve pela primeira vêz, relações sexuais com a
sobredita menor – Anna Elias França Moura,
familiarmente tratada por “Naninha”, em a
própria casa da mesma, no logar
“Cachoeirinha” (...); que o acto, têve logar na
rêde do declarante, na sala de vizitas (...); que
entretanto, não houve sangue, pois “Naninha”,
apezar de ter somente dôze (12) anos
complectos, não mais era virgem, cousa aliás,
que o declarante já sabia, não só por lhe ter sido
dito pela própria Naninha como também pelo
rapazinho de 15 (quinze) anos de (ilegível) – José
Bidu filho de Francisco Bidu, residente na
Floresta Urubú (...); que Naninha, por occasião de
declarar ao respondente que já era deflorada lhe
disse que já tinha tido relações com José Bidú e
mais outros menores em numero total de 8
(oito), e cujos nomes ella disse, porém o
declarante não se recorda (...). 132 (grifos meus)

No trecho referente à sua declaração na delegacia de polícia,


podemos observar os argumentos utilizados por José do Nascimento
com o objetivo de desqualificar a imagem de inocência da menina Anna
Elias. Ciente das questões que recorrentemente eram tidas como
questionadoras da honra das mulheres nesse período, o acusado
levantava alguns desses elementos, intencionando amenizar a sua culpa
como seu desvirginador e violentador. Além de mostrar outro cenário
para o lugar do ato sexual, o acusado também afirmou não ter sido o
primeiro a manter relações sexuais com a vítima, e que tampouco teria

132
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:
Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 02, Processo Nº 1931/04.
Auto de perguntas feito ao acusado. p. 45 e 46.
183

acontecido por intermédio de rapto e de uso de força. O texto criado por


“José Lobato” pareceu construir uma imagem que retratava certa
licenciosidade que teria tido para realizar o ato sexual. Afirmar a
presença dos pais, a possibilidade de possuir livremente acesso ao
ambiente da casa da menina – mesmo que na condição de “visitante” -,
assim como ter tido acesso a algumas liberdades com a ofendida no
espaço comum da casa, objetivava sugerir a pouca preocupação dos pais
em salvaguardar a honra da filha e de construir um lar “honesto”, e
nesse sentido, lançar dúvidas sobre a sua condição de menina virgem e
inocente quanto às questões sexuais.
Outro elemento trazido como forma de afirmar a sua não
responsabilidade pelo defloramento da vítima foi a “ausência de sangue”
durante o ato sexual. Esse elemento dialoga com a ideia de que o sangue
era uma “prova” da virgindade da vítima, e, portanto, mediante sua
ausência, tal condição não poderia ser provada.133 Embora teoricamente
a questão central analisada nesse processo seja a prática sexual por
intermédio de violência, e não a questão do
defloramento/desvirginamento em si, o acusado busca destacar as
questões que lhe parecem mais fortes na desqualificação para a
reputação da menor. A ausência de virgindade parecia simbolizar o
despudor da vítima, o que segundo o depoimento do acusado rechaçava
a ideia de violência. E continuou:

(...) que entre os outros menores “Naninha” citou


– como tendo tido relações com ella, por uma e
mais vezes o declarante lembra-se dos seguintes:
um primo dela, filho de uma sua tia, de nome –
Maria, que mora no “Coqueirinho”, e um filho de
um prêto, que tem uma quintanda, adiante da

133
Pesquisando os crimes de Defloramentos na cidade do Rio de Janeiro, a
historiadora Martha Abreu explanou sobre a forma com que o sangramento na
primeira relação sexual apareceu como um argumento bastante utilizado na
declaração da não virgindade das mulheres ofendidas, e também, como
apropriação por parte destas, para ressaltar suas virgindades em âmbito judicial.
Embora fosse algo mais relacionado às tradições culturais sobre honra e
virgindade, a autora desenvolve como a questão do sangramento na primeira
relação sexual fora debatida entre médicos e juristas no início do século, como
forma de melhor definir as honra das mulheres pela medicina legal. (ESTEVES,
1989, p. 173-174).
184

“Cachoeirinha”; que Naninha informou ainda que


sua tia, irmã de Pereira, e que mora um pouco
adiante da Cachoeirinha, e em companhia de sua
mãe – a velha Francisca Zuniba, foi quem lhe a
ensinou a ter relações com os menores, no
caminho da Escola, e que a mesma mandava que
ella Naninha, andasse com um menino,
enquanto ella, sua tia, andava com outro, que
era esse último filho do prêto da quitanda da
Cachoeirinha, o qual dava mil réis (1000), e mais
e caixa de pó e outros agrados; (...) que Naninha
costumava, á noite, ir para a rêde do
declarante, completamente despida; que assim,
ficou tendo relações sexuais com Naninha, não
só á noite, em sua rêde, como também no
matto, por ocasião de irem buscar lenha (...).134
(grifos meus)

Na continuação das suas declarações, o acusado apresentou uma


vítima bastante relacionada aos valores que não se esperavam de
mulheres honestas. Além de afirmar que soube não apenas por “ouvir
dizer”, mas pela própria ofendida que esta teria mantido relações sexuais
com vários outros rapazes, e também, que teria aprendido com a avó e a
tia a praticar relações sexuais em troca de “agrado”135; o declarante
buscava mostrar a não inocência da vítima em termos sexuais,
ressaltando que esta já possuía entendimento sobre essas questões.
Relatar a imagem de uma vítima sexualizada, que ia à sua rede
“completamente despida”, com quem teria tido várias relações sexuais
dentro e fora de casa, colaborava com a desvinculação do acusado com
o uso da força, buscando eliminar a questão da violência com que teria
sido cometida a relação. Como já demonstrado por diversos trabalhos
que tiveram como fontes privilegiadas os processos de crimes sexuais, a
demonstração da não-virgindade das moças queixosas era um dos

134
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:
Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 02, Processo Nº 1931/04.
Auto de perguntas feitas ao acusado. p. 45.
135
Nesse depoimento o acusado se refere à tia e à avó da ofendida como as
pessoas que ensinaram maus comportamentos à menor. A tentativa de
desqualificar o comportamento das mães e mulheres da família como forma de
defesa será questão melhor trabalhada no último tópico deste capítulo.
185

principais trunfos acusatórios utilizados pelos denunciados por violência


sexual. Na quase totalidade dos processos que envolveram meninas e
mulheres nesta pesquisa esse elemento foi levantado pelos indiciados.
Nesse sentido, o uso de ideias relacionadas ao erotismo e à
sensualização da vítima era conflitiva com a ideia de presunção de
violência quando a vítima fosse menor, o que, por sua vez, conflitava
com as imagens de inocência e fragilidade que se esperavam das
mulheres, principalmente das meninas menores de idade. Ao afirmar
que “apesar de somente ter 12 anos completos” a menor já não era mais
virgem e já sabia o que fazia, José do Nascimento buscava diluir o
aspecto de violência atribuído ao caso, reforçando uma conduta fora do
padrão moral que teria a ofendida. Nesse sentido, o acusado dialogava e
reforçava a ideia de que as meninas jovens deveriam ter pouco
conhecimento sobre esses temas.
Além dessa imagem sensualizada, muitos dos relatos
encontrados nesses processos buscavam ressaltar, como visto
anteriormente, os aspectos de falta de força, incapacidade de resistir, e
também de ingenuidade – que na linguagem jurídica aparecia
fundamentada como superioridade de força e de sexo dos acusados –
construindo as figuras das vítimas repletas de aspectos atribuídos à
sexualidade feminina, que ora estava imbuída de aspectos de inocência e
fraqueza, ora estava relacionada à sensualidade e à lascívia. Essas
caracterizações apareceram tanto nas narrativas das testemunhas de
defesa do réu, ao relacionar a vítima em questão com as características
imputadas às mulheres prostitutas, como também, nas testemunhas de
acusação, ao ressaltarem os aspectos de “boa mocinha” das ofendidas.
Esse jogo de gênero foi bastante utilizado, se não o principal
mote dos conflitos entre acusadores e defensores, quando se tratava de
crimes sexuais desse período. Enquanto os acusados eram denunciados,
registrados e relatados por diversas pessoas no processo criminal,
principalmente a partir do que se entendia como um ideal de
masculinidade; as vítimas eram analisadas e construídas a partir dos
ideais de feminilidade que se queria e se rechaçava nesse momento.
Dentre esses ideais de feminilidade, a conduta sexual era o aspecto
central de discussão, já que a sexualidade controlada era atributo
principal para a definição dos “valores” dado às mulheres. A inocência
quanto ao tema da sexualidade era colocada constantemente não apenas
para os elementos físicos – como sobre o tema da virgindade – mas
186

também, para os aspectos psicológicos que envolviam os pudores dessas


meninas e moças.
Nesse sentido, no caso de Astrogilda Burrite em 1924, a
evidenciação da sua inocência e das ilusões que teria mantido em
relação ao acusado, foram os argumentos mais utilizados pelas pessoas
que queriam reforçar sua versão e ressaltar um comportamento
condizente com as expectativas para uma moça honrada. Segundo o
Promotor de Justiça responsável pelo caso, tomando de empréstimo
muitas das falas das testemunhas chamadas a depor a favor da queixosa,
afirmou que:

(...) no fim de referido mês de julho do corrente


anno, illudindo a ofendida, a quem
anteriormente promettera casamento, teve com
ella relações sexuaes em sua própria casa,
estuprando-a. A ofendida vivia honesta e
recadamente em casa de sua mãe e tinha na
ocasião em que se deu o delicto julho do corrente
anno – menos de 15 annos de idade (...).136 (grifos
meus)

No caso de Astrogilda, a promessa de casamento e a falta de


palavra do denunciado Leôncio Pereira Lima, que por intermédio da
mentira e da ilusão teria enganado a moça para conseguir ter com ela
relações sexuais, foram as principais alegações utilizadas para a
culpabilização do réu. A ideia de argumentar nesse sentido, ressaltando
os aspectos de engano, pureza e inocência, acabava por encobrir
qualquer participação ativa da ofendida no ato sexual. É possível pensar
que a própria Astrogilda quisesse ter tido relações sexuais com o seu
“noivo”, e que essa decisão pudesse ter sido tomada de forma
conscienciosa, e não apenas pela ilusão de um matrimônio. No entanto,
com o sumiço do acusado depois da relação, o uso das ideias
relacionadas ao feminino que demarcavam os discursos sobre os
comportamentos esperados para as mulheres – como o recato, a
honestidade, a tendência a ser enganada e a vontade de casamento –
foram utilizadas como forma de tornar pública a idoneidade moral da
moça e exigir uma reparação por parte do réu.

136
(APEC), Processo Nº (1924/1). Parecer do Promotor de Justiça. p. 02.
187

No caso de Maria da Conceição contra Manoel Norberto em


1926, os argumentos utilizados pela promotoria como forma de construir
a figura da vítima em relação ao acusado giraram em torno tanto da
inocência – extremamente relacionada a sua pouca idade – como da
questão da perda da virgindade.

(...) Está perfeitamente evidenciada a acção


criminosa do dennunciado, que, embora
alcoolisado, agiu com requintada perversidade.
Conquanto não se apurasse a contaminação das
moléstias venéreas na pobre victima, nem por
isso diminue a culpa do criminoso sciente que
estava do virus que conduzia. A acção repressora
deve fazer-se sentir para um crime tão repugnante,
desagravando, a innocencia e a virgindade da
ofendida pelo summariado. (...).137 (grifos meus)

A demonstração do requinte de perversidade da atitude do réu e a


repugnância com que ele teria praticado o ato, retirando não apenas a
virgindade, mas também a ingenuidade psicológica da ofendida sobre o
tema do sexo foi o caminho argumentativo buscado pelo promotor de
justiça para fundamentar a sua denúncia. Além disso, o uso desses
termos corroborava fortemente com a construção da imagem da vítima
como alguém de extrema fragilidade e ingenuidade. O parecer do Juiz
Municipal da Primeira Vara, também segue uma série de adjetivações
retomadas acerca da figura de Manoel Norberto e Maria da Conceição.
Diz:

Contra Manoel Norberto Maximiano dos Santos


apresentou denuncia do Dr. 1º Promotor de Justiça
por ter no dia 18 de Novembro (...), ás 13 horas,
no Alagadiço, estuprado a menor Maria da
Conceição, de onze annos de idade e pessoa
miserável conforme o atestado de fls.3, deixando-
a em estado grave, dado o seu pouco
desenvolvimento e certamente contaminada por
cancros venereos, constatando o estupro e a
revoltante circunstancia da existência de
quatro desses cancros, um ainda por cicatrizar,

137
(APEC), Processo Nº (1926/1). Parecer do Promotor de Justiça. p. 33.
188

nos autos de corpo de delicto de fls. 6 e 7,


respectivamente procedidos, na pessoa da victima
e no membro viril do dennunciado. No auto de
perguntas a este feitas, cynicamente confessou que
chegando á casa da ofendida á quem só conhecia
de vista e encontrando-a sozinha, depois de lhe ter
pedido agua por duas vezes, fê-la deitar-se no
chão, atraz da casa e ahi a estuprou, gritando ella
bastante, mas sem ser attendida por não haver
ninguém em casa que lhe ouvisse os gritos e
deixando-a em seguida toda ensanguentada,
retirou-se para a sua casa onde mudou de roupa
“reconhecendo que a calça ensanguentada na
barguilha que na Delegacia lhe foi apresentada era
a mesma que vestia no acto de praticar o estupro”,
fls. 9. Esta só confissão, reveladora dos instintos
besteais e requintadamente perversos do
dennunciado, sufficiente seria para justificar-lhe a
pronuncia, ainda mesmo que a não reforçassem,
corroborando-a, os indícios vehementes,
resultantes dos depoimentos de todas as
testemunhas do summario (...). 138 (grifos meus)

Nesse trecho, a aceitação da denúncia e a chancela do crime pelo


juiz foram fundamentadas a partir das características de crueldade que
teriam sido demonstradas pelo réu. Essa “perversidade”, os “instintos
bestiais”, e a “revoltante” circunstancia da disseminação da doença
venérea foram apontados pelo juiz, devido ao fato de que a pouca idade
e a constituição física da vítima impossibilitavam qualquer tentativa de
defesa e tornavam a figura do réu ainda mais cruel.
Essas caracterizações, fartamente indicadas pelos adjetivos que
expressavam as subjetividades das pessoas que depunham sobre o ato
sexual motivador do juízo, foram essenciais para pensar a maneira com
que os discursos sobre a ideia de violência, as práticas sociais proibidas
e as aceitas socialmente, usavam e/ou reforçavam relações de gênero, e
consequentemente, produziam discursos sobre as vítimas e os acusados
de crimes sexuais. Nesse sentido, as representações construídas em
torno desses(as) personagens são bastante frutíferas para pensarmos as

138
(APEC), Processo Nº (1926/2). Parecer do Juiz. p. 34-35.
189

relações existentes entre feminilidade, masculinidade, sexualidade e


violência.
A equivalência vítima/passividade era a forma mais legítima e
necessária para a demonstração da veracidade de uma violência sexual.
Ser recatada, não demonstrar que “conhecia as coisas da vida”, assim
como não ter facilitado de nenhum modo a situação de violência, eram
elementos cruciais para a certificação da acusação e para a condenação
do réu. Dessa maneira, muitos dos promotores que buscavam edificar
uma imagem idealizada das vítimas dos casos destacavam e exploravam
todos os elementos que significavam inércia e subordinação na cena do
crime.
No caso de Sebastiana Nilce em 1931, sua imagem oscila de
menina totalmente construída na ingenuidade e no recato por parte da
sua defesa, à imagem de uma menina cheia de malícias e curiosidades
relatada pelo acusado. Segundo a narrativa de queixa, a menor teria sida
estuprada pelo cunhado de sua irmã, com quem morava desde quando
veio do interior do Ceará para a capital.139 Embora pudéssemos
considerar as possíveis curiosidades sexuais vividas por uma criança aos
oito anos de idade, esta – depois de relatar ter passado seguidamente
durante várias noites debaixo da rede do acusado, mesmo após o
primeiro dia de violação – em nenhum momento foi relatada pelos
testemunhos e representantes da justiça como uma menina curiosa e/ou
maliciosa, mas sempre como uma criança que usufruía de suas
principais características: a inocência e a impossibilidade de defesa.
Não busco aqui fazer um juízo de valor quanto ao comportamento
de Sebastiana Nilce, mas unicamente pensar o modo como se buscava
automatizar, principalmente nos discursos jurídicos e médicos, a ideia
de ausência de curiosidade e de vontades sexuais como idealizações para
crianças e adolescentes menores de idade. Apesar de a violência ser
presumida em caso das menores de 16 anos pelo Artigo 272 do Código
Penal de 1890, era moralmente importante reforçar essas características
como forma de demarcação da veracidade da queixa; pois qualquer

139
Esse caso foi um dos poucos em que pudemos observar a possibilidade de
uma violência intra-familiar. No entanto, é importante frisar que o acusado se
encontrava a pouco tempo vivendo na casa do irmão, e, portanto, cunhado da
irmã de Sebastiana. Durante vários momentos do processo foi possível perceber
que o indiciado não era alguém de grande proximidade afetiva com a família, o
que facilitou a própria efetuação da denúncia.
190

aspecto que demonstrasse participação ativa durante a situação da


violência poderia comprometer a visão sobre a vítima, e em casos de
meninas menores, comprometer a própria criação dada pelos pais.
A relação da presunção da violência que marcou muitos dos casos
aqui estudados estaria nesses processos não apenas calcada na
impossibilidade física de se defender, mas também, na improbabilidade
moral da(o) menor conceber a situação de violência e na impossibilidade
biológica de se situarem em termos de sexualidade e desejo sexual. O
cuidado teórico e metodológico realizados aqui para a análise desses
casos se deu a partir de uma preocupação de não reafirmar algumas
“verdades” difundidas sobre a relação infância e sexualidade na
sociedade, como por exemplo, a ideia da impossibilidade ou
incapacidade de um(a) infante sentir impulsos sexuais, ou mesmo, de
serem desprovidas(os) de capacidade psicológica de entender elementos
constitutivos da sexualidade, como por exemplo, o prazer e a dor.
Como afirmou Luiz Mott ao analisar alguns casos de pederastia e
sodomia no século XVIII brasileiro e que envolviam relações entre
crianças, ou entre crianças e adultos, foi somente no fim do Império
brasileiro e principalmente nas primeiras décadas republicanas, que “sob
o pretexto de proteger a inocência infanto-juvenil” se reprimiu e se
tentou dessexualizar completamente essas idades da vida. (LUIZ
MOTT, 1992, p. 58-59) Dessa forma, os discursos que eram construídos
pelos poderes oficiais sobre a figura da vítima de crime sexual reprimia
qualquer aspecto de participação, de curiosidade e de atividade para a
definição da ideia de violência. Construía-se, por sua vez, outro
discurso: o que idealizava a vítima de crime sexual como alguém sem
atividades sexuais autônomas, e que para ter sua queixa validada na
justiça pública, deveria estar imersa nos valores e expectativas de gênero
e de idade sobre os temas do sexo e da sexualidade.
Para além da questão da busca por punição que envolvia essas
ações judiciais é importante destacar, também, o aspecto educacional
que marcava os vários espaços e momentos de inquirição e julgamento
durante um processo. Por se tratarem majoritariamente de meninas
pobres e em idade de aprender “bons modos” foi possível perceber que
essas ocasiões eram importantes formas de transmitir os valores que se
buscavam para homens e mulheres da cidade, assim como, todos os
elementos que eram recorrentemente repreendidos pelos discursos
oficiais. Analisar e expor o cotidiano das pessoas envolvidas, suas
191

ocupações, seus arranjos familiares e suas condutas morais, era uma


forma de disciplinar os comportamentos dessas vítimas, e também das
pessoas que a rodeavam.
É importante considerar a forma com que esses discursos
aparentavam contradições quanto à questão da moral sexual. Ao mesmo
passo que se buscava destacar esse período da vida como um momento
de natural recato, pudor e de sensações diferenciadas sobre a temática do
sexo, o casamento de menores jovens também era chancelado pelos
poderes jurídicos do período, como nos casos de Defloramentos de
meninas jovens cujo matrimônio poderia ser considerado uma resolução.
Novamente, nesses casos, o casamento aparecia como mecanismo
higienizador das relações sexuais e acomodador dos valores morais da
sociedade.140
A versão apresentada pelo acusado Francisco Fructuoso sobre o
procedimento de Sebastiana Nilce no momento do ato sexual é bastante
diferente da destacada pelo Promotor de Justiça quanto ao tema da
inocência sexual. Confrontando os comportamentos desejáveis e
indesejáveis para uma menina menor de idade, o acusado construiu a
imagem da ofendida a partir de outros referenciais. Disse:

(...) que a menina (ilegível) referida, de nome


Sebastiana Nilce Vieira, conhecida por “Nilce”,
tinha por costume a noite ao deitar-se, ir ao
quintal, passando por baixo de sua rêde; que há
mais ou menos quatro (4) dias em certa noite que
não se recorda, estava deitado quando, a menina
de nome Nilce, passou para o quintal e logo
regressou ficando de pé parada, ao lado da
rede do declarante; que como todos de casa já se
achavam deitados para dormir o declarante, disse
a referida menina que fosse embora para sua rede;
que, Nilce, sem dar uma só palavra mesmo de

140
Relembro aqui, que uma das principais características que marcaram os
crimes de Atentados ao pudor e Estupro era justamente a inviabilidade moral e
biológica de casamento, elemento este que norteou a seleção das fontes para
esta pesquisa e que foi objeto de discussão do primeiro capítulo deste trabalho.
A reflexão que trago sobre essa questão, mais se relaciona aos crimes de
Defloramentos que eram cometidos contra menores de idade e que
recorrentemente eram “resolvidos” pelo casamento das partes envolvidas.
192

pé como estava abriu as pernas e puchando


(sic) a mão do declarante, encostou-a em sua
membrana; que em virtude daquele gesto de
Nilce, o declarante, introduziu-lhe em sua
membrana um dêdo, esfregando-a por um
instante, sendo nesse interim interrompido pela
mãe da mesma, que a chamara para seu quarto;
que não estuprou e nem tinha intenções para isso,
tendo apenas practicado um acto de libininagem
com a referida menor, empregando seu dêdo como
meio para aquelle fim (...).141 (grifos meus)

O acusado, ao construir sua versão sobre o caso discutido,


apresentava a figura da vítima como a de alguém que era dissemelhante
às imagens de ingenuidade e pureza relacionadas à conduta de uma
criança de oito anos. Ressaltando que a menor o teria buscado e
incentivado que a tocasse, Francisco Fructuoso buscou defender-se da
acusação representando Sebastiana de forma sensualizada e maliciosa. O
relato de que a vítima teria tido a iniciativa para a realização do ato
sexual parecia ser suficiente, na perspectiva do réu, para rebater a ideia
de violência, afastando-se da acusação de ser o culpado pela
desmoralização física e psicológica da menor. Essas questões são
importantes, pois expressam os embates discursivos em torno do
comportamento da menor, em que o acusado mobilizava adjetivos e
comportamentos que não seriam próprios para uma infante como forma
de demarcar a sua defesa.
A moral sexual em moldes vitorianos como trabalhou Michel
Foucault em A vontade de saber, cujos controles sexuais faziam parte da
construção de uma ordem burguesa nas sociedades que se
industrializavam e modernizavam, aos poucos, marcava os discursos
jurídicos dos juristas brasileiros. Na cidade de Fortaleza, a moral
reguladora dos comportamentos de homens e mulheres, e os discursos
sobre as condutas sexuais sadias somavam-se, cada vez mais, aos
discursos de bons costumes que eram defendidos pelas elites, e pela
suposta necessidade de solidificação da família de formatos burgueses.
A preocupação com a boa saúde dos descendentes que marcava a
atuação de médicos na cidade também acrescia à preocupação com a

141
(APEC), Processo Nº (1931/1). Auto de declaração do acusado. p. 06.
193

conduta das crianças no geral, em especial as pobres, que eram vistas


como uma potencial ameaça ao futuro da sociedade.
Nesse sentido, retratar a criança e a/o adolescente como figuras
idealmente dessexualizadas nos pareceres oficiais que marcavam os
casos de crimes sexuais, era construir também um discurso sobre
normas familiares, em que a família era vista como mãe e pai em idades
reprodutivas e filhos consanguíneos que mereciam atenções especiais ao
longo da infância. A denúncia realizada pelo Promotor de Justiça do
caso de Sebastiana Nilce logo no início do processo expressou algumas
dessas relações. Construindo uma narrativa sobre o momento do crime,
disse que:

(...) Á porta que dá para o mesmo [quintal],


estendia-se a rêde de Fructuoso, que aproveitando
essa circunstancia, interceptou a passagem da
infeliz criança, com a qual, em seguida, na
explosão dos seus mais baixos instintos, teve
relações sexuais, estuprando-a, como evidencia do
doloroso e ingênuo depoimento da victima e do
corpo de delicto de fls. A scena selvagem
reproduziu-a o indiciado, na noite seguinte,
despertando a ausência da menor á sua rede, em
horas tão adiantadas da noite, e o “reboliço” que
acompanhou o quadro da virgindade agonizante
a attenção da mãe desta, Maria Angelica do
Paraizo, a qual acabou por descobrir a violação de
que fora victima a sua filha. Levando o facto, logo
após, ao conhecimento da autoridade competente,
esta procedeu como de direito. Eis a narração do
revoltante e monstruoso atentado que deu
motivo á presente denuncia, o qual se verificou
em dias de março do corrente anno (...).142 (grifos
meus)

A narrativa do promotor ressalta o aspecto da selvageria, da


monstruosidade, da explosão dos baixos instintos como algumas das
principais características do acusado e da cena do crime. A vazão dada,
nas horas adiantadas da noite, à bestialidade de Francisco Fructuoso, era
mostrada em contraponto ao “agonizante” sofrimento da vítima ao

142
(APEC), Processo Nº (1931/1). Denúncia do Promotor de Justiça. p. 02.
194

perder sua virgindade. Construiu-se nesse trecho uma contraposição à


figura da ofendida que aparecia de forma sofrida, ingênua e infantil.
Essa referência construída entre criança e ingenuidade foi marcada pela
tentativa de relacionar a vida e as percepções da infante de forma
particular e diferenciada da figura do adulto. Além disso, nas entrelinhas
das falas mobilizadas pelos promotores havia um reforço da ideia de que
uma vítima de cunho sexual – as que legitimamente poderiam recorrer
judicialmente – deveriam ser necessariamente aquelas de absoluta
passividade e que tentavam dentro dos limites de sua força e capacidade
psicológica, se defender do agressor.
Outro ponto bastante comum nesses processos, cujas menores
adquiriram doenças venéreas ou que perderam a virgindade de modo
que toda a vizinhança tivera conhecimento, foram as afirmações de que
o acusado teria “desgraçado a vítima”.143 Essas afirmativas se referiam a
uma mácula que parecia se consolidar no próprio corpo da vítima, e que
a impediria de realizar suas principais missões na sociedade, a de casar e
ter filhos. As meninas desvirginadas, principalmente quando se tratava
de crimes de caráter violento como muitos dos estupros aqui analisados,
pareciam, nas palavras dos representantes da justiça, estar perdendo sua
principal chance de se tornarem mulheres “direitas” no futuro. O
elemento da virgindade era questão importante para a aquisição do
casamento e fator fundamental de composição desses crimes.
Esse elemento pode ser observado no caso de Maria Daniel da
Silva em 1931, menor de 16 anos de idade, cuja honestidade tentava ser
expressa justamente pelo fato de a ofendida ter sido sincera com o seu
namorado quanto à sua virgindade. Mediante a um pedido de casamento
realizado por este, Maria Daniel contou que já não era mais virgem, pois
teria sido estuprada e desvirginada por um homem chamado Francisco
José de Almeida. Declarou no inquérito policial que:

(...) há cinco (5) mezes, era namorado de uma


moça de nome Maria Daniel da Silva, com a qual
mantinha relações amorosas; que mais ou menos

143
Essas afirmativas coincidem com a mesma ideia encontrada no Rio de
janeiro pela historiadora Martha Abreu sobre as “meninas perdidas”. Além do
elemento da desonra que ficava estampado sobre essas menores, existia
também, o medo da prostituição, que era costumeiramente entendida como um
“destino” para as meninas “manchadas” na honra. (ESTEVES, 1989)
195

meiado do corrente mez em certo dia que não se


recorda, consultou a sua namorada Maria Daniel,
se queria casar-se comsigo, ao que ella ficou
calada por um momento; que surpreso com o
silencio interrogou-a novamente que lhe
respondesse, ao que ella respondeu-lhe
negativamente; que perguntou-lhe por qual motivo
não lhe aceitava como marido, tendo ella, lhe
respondido que era, por que já não era, mais moça
(...)144

Essa declaração, que logo foi comunicada à mãe da ofendida,


mobilizou a queixa contra Francisco José, acusado do desvirginamento.
O próprio namorado da vítima, que depôs a seu favor sobre a questão do
estupro, reconheceu no seu depoimento em juízo que teria “deixado”
Maria Daniel e voltado atrás sobre o pedido de casamento em
consequência de ter descoberto que esta não era mais virgem. Após
saber do desvirginamento, Francisco Terto da Silva – 24 anos, solteiro,
vendedor de verduras, sem saber ler nem escrever – terminou o namoro
com Maria Daniel por não aceitar casar com uma moça já deflorada, e
por ter percebido posteriormente que a menor parecia muito
“namoradeira”. Esse elemento foi fundamental para causar certa
desconfiança por parte do namorado sobre a conduta da moça, que
depois do desvirginamento parecia não mais contemplar suas
expectativas para um casamento.
Neste caso, é possível perceber novamente a forma com que a
“marca” deixada na ofendida, por mais que fosse reconhecida como
vítima de estupro, permanecia como uma mácula no corpo, fazendo com
que o seu namorado, mesmo confirmando sua versão de defesa, não a
visse mais como uma moça para casar.
No caso de Anna Elias em 1931, além do acusado José do
Nascimento ter ressaltado a iniciativa de “Naninha” ao ter ido à sua rede
para ter relações sexuais, como forma de livrar-se da acusação de
Estupro, alguns testemunhos levantaram outras questões que foram
usadas para construir uma imagem negativa sobre o comportamento
duvidoso da mesma. As narrativas construídas pelas testemunhas de

144
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:
Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 02, Processo Nº 1931/02.
Auto de declaração de testemunha. p.15.
196

acusação e pelos próprios acusados de crimes sexuais contrapunham a


imagem das queixosas à conduta feminina idealizada, ou seja, as
aproximava aos comportamentos das mulheres e meninas de “vida
livre”. Nesse sentido, até a construção da imagem do corpo representada
nos processos era alterada, de frágil e recatado nos relatos acusatórios,
para um corpo desenvolto e sedutor.
No depoimento de Lucia Medeiros, prima de segundo grau do
acusado “José Sodoma”, a vítima foi apresentada a partir da dúvida
quanto ao fato de estar sendo forçada a fugir com o denunciado. A
testemunha fora interrogada sobre o fato de ter recebido o acusado José
do Nascimento em sua residência antes da fuga deste para o interior do
Ceará, levando consigo a menina “Naninha”. Após ser questionada do
porquê de não ter avisado às autoridades sobre o caso, já que soube
antes de todos sobre as más intenções do primo, a testemunha defendeu-
se destacando:

(...) que a noitinha, quando o amigo


[companheiro] da depoente regressou á casa, a
depoente contou-lhe o que acima vai narrado,
tendo o seu amigo censurado ella não haver detido
a citada menina; que a depoente esperou que os
paes de “Naninha” aparecessem em sua casa,
procurando-a, ou a Policia, o que somente, hoje,
foi feito; que a depoente disse para seu amigo –
Severino – que não havia podido deter a
menina, porquanto a mesma ir alegre,
satisfeita, e fumando cigarro (...).145 (grifos
meus)

Nesse trecho, Lucia Medeiros ao se referir ao estado psicológico


de “Naninha” no momento de seu rapto, que teria sucedido – segundo a
versão da vítima – logo após o seu estupro na região da Floresta do
Urubú, expõe uma imagem incompatível com a que se imaginaria para
uma criança recém-violentada e que acabava de ser raptada. Afirmando
que a ausência da denúncia se deu por perceber que a menor ia “alegre”
e “satisfeita”, a depoente tornava a visão sobre a vítima ainda mais
polarizada nesse processo. Além de destacar esse fator, a afirmação de
que a menor ia “fumando cigarro”, também apareceu nesse relato como

145
(APEC), Processo Nº 1931/4. Auto de declaração das testemunhas. p. 24.
197

forma de questionamento sobre o bom comportamento da ofendida,


tendo atitudes típicas de mulheres mais velhas e de “vida alegre”. Nesse
sentido, a representação de Anna Elias, assim como de várias das
meninas em condição de vítimas, modifica-se, de menina frágil, recatada
e enganada devido a sua inocência, para uma menina ciente de suas
escolhas, sensualizada, e com comportamentos libertinos.
Essas polarizações encontradas em disputa nas ações judiciais
expressavam os conflitos existentes entre as idealizações femininas que
se construíam nesse momento, e muitos dos comportamentos
vivenciados pelas ofendidas no cotidiano. Esses debates morais,
estimulados pelo formato desses processos – em que a parentela e a
vizinhança dispunham de poder para dissertar sobre as partes envolvidas
e os representantes da justiça exerciam a função de disseminar uma
moral oficial – potencializaram essas polarizações e foram construtores
de um espaço privilegiado de disciplina social, como eram os lugares de
poder policial e judicial. Era a própria experiência da formação da culpa
e da inocência, assim como a interiorização da culpa e do direito
conquistado, que estava colocado como processo educador/disciplinador
desses espaços.
É importante enfatizar a forma com que a menoridade esteve
diretamente marcada pelas expectativas de gênero que existiam na
Fortaleza de inícios do século, em que a honra dessas meninas era
interrogada a partir dos comportamentos sexuais e do recato que
deveriam compor a vida de uma boa “mocinha”. A partir desses debates,
podemos observar que a cidade do crescimento, do desenvolvimento e
que se abria a novas formas de sociabilidades, consumo e buscava
agregar comportamentos modernos, também era uma cidade marcada
por elementos de conservadorismo moral, principalmente no que se
refere às condutas das mulheres.
Mesmo que muitas experiências femininas tenham se
diversificado na cidade de Fortaleza em inícios do século XX,
principalmente sobre os temas do trabalho e das sociabilidades146,
quando nos referimos ao tema da sexualidade e da importância do
casamento para a vida e a honra das mulheres, é possível perceber a

146
Sobre a pluralização das relações de trabalhos e econômicas das mulheres da
capital cearense, ver a dissertação: As mulheres na expansão material de
Fortaleza nos anos de 1920 e 1930, do historiador Mário Martins Viana Júnior.
(VIANA JÚNIOR, 2009)
198

forma com que a cidade da modernidade, cheia de novos “perigos”, de


novos espaços de lazer e de valores mais libertinos podia representar,
também, ameaças aos valores consolidados de família patriarcal. A
imprensa fortalezense, em especial o jornal “O Nordeste”, principal
meio de divulgação da Igreja Católica na cidade, constantemente
destacava as supostas ameaças morais vividas pela cidade devido aos
péssimos modos cultivados por grande parcela – em geral os mais
pobres – dos moradores da cidade. A modernidade vivida por Fortaleza
desde o fim do século XIX e intensificada nas décadas de 1920 e 1930
representava conquistas e retrocessos às figuras femininas, que eram
constantemente expostas a diferentes formas de violência, sejam elas de
classe, raciais ou de gênero.
Nos relatos populares, a construção discursiva sobre as meninas e
jovens que apareciam nesses processos era disputada a partir do que no
geral se esperava dos comportamentos femininos, o que nem sempre se
verificava, já que em muitos casos esses comportamentos não se
mostravam de absoluta passividade. Embora muitos dos acusados,
familiares e vizinhos confirmassem também uma preocupação em exigir
pureza e a virgindade como elemento compositor do comportamento das
mulheres, em especial das mais jovens, as vivências em que muitas
dessas meninas estavam inseridas impossibilitava uma vida tão calcada
na passividade como era idealizado para elas.
Essas menores conviviam com pessoas diversas nos seus
ambientes familiares, circulavam em um espaço doméstico estendido à
vizinhança, e em muitos casos, realizavam atividades de trabalho que
auxiliavam no seu sustento, e no sustento da sua família. Grande parte
das que apareceram nessa pesquisa como vítimas de crimes sexuais
exerciam trabalhos como lavadeiras, empregadas domésticas, ou
andavam “por aí” nas ruas em busca de ocupação.
O que busquei demonstrar nesse tópico foi a forma com que as
imagens das vítimas foram construídas a partir das representações
simbólicas da passividade, da inocência e do recado como fator central
para se demarcar a existência da violência. Além de reforçar discursos
sobre a sexualidade feminina, se construía também, discursos sobre a
sexualidade das crianças, que eram recorrentemente vistas como figuras
incapazes de compreender aspectos concernentes aos temas do sexo e da
sexualidade. Os próprios meninos infantes que foram vítimas de
atentados ao pudor acabavam, também, assumindo essas caracterizações
199

tidas como femininas, como vimos no primeiro capítulo. Em termos


simbólicos, infância e feminilidade eram colocadas como as
conceituações centrais na elaboração discursiva das vítimas de crimes
sexuais.
A partir da problematização desses elementos, que na narrativa
das testemunhas apareceriam de forma polarizada – ou eram passivas ou
eram “entendidas”, de acordo com o lado que se estava na ação – é
possível afirmar que os procedimentos jurídicos de investigação e de
formação da culpa nos processos de crimes sexuais, construíam o lugar
da vítima como um privilégio daquelas que correspondiam às
expectativas morais e sociais que visavam ser comtempladas pela ação
da justiça. Meninas recatadas – vistas como futuras mães – meninos
frágeis e incapazes de defesa, eram os sujeitos legitimados na condição
de vítima. A passividade, nesse sentido, era o vocábulo central dessa
condição, e como afirmava o parecer do advogado, que iniciei como
epígrafe deste tópico, “quando o agente passivo tem livremente
concorrido para a prática do ato, não se pode dizer violado nenhum
direito, e sem isso poderá haver um ato imoral, não um crime”.

4.2 IMORAL E DEGENERADA: A “MULHER DE VIDA


ALEGRE”

É o que ensinam TODOS os mestres do Direito


Criminal. Nem precisava nenhum ensinamento a
tal respeito, pois é obvio que, só podendo existir
delito de tal porte por parte do homem contra a
mulher, há de ser sempre do sexo forte contra o
fraco, da força masculina do varão contra a
fraqueza ingênita da virgem.147

No trecho acima, apresentado em 1937 pelo advogado de defesa


dos acusados de estupro de Maria Izabel de Santanna, há um resumo da
ideia de violência sexual que marcava os discursos dos representantes da
justiça em inícios do século XX. Esse tipo de agressão, como apareceu

147
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:
Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 03, Processo Nº 1937/01.
Parecer do advogado de defesa. p. 108. O sublinhado do texto é próprio do
documento original.
200

claramente disposto no seu parecer, deveria ser produto da relação entre


o “sexo forte” e a “força do varão” contra a ingenuidade da “virgem”,
verdadeira vítima de crime sexual. Segundo a fala do defensor, a
violência sexual só poderia ser confirmada mediante a existência desses
dois componentes: o homem forte varonil e a mulher frágil e indefesa.
Como mostrei no tópico anterior, essa polaridade costurou as
principais tensões existentes nos depoimentos de defensores e
acusadores nessas ações. A partir dessa perspectiva, as “mulheres da
vida”, também chamadas de prostitutas, meretrizes, ou mulheres de
“vida alegre” eram secundárias como objeto de defesa pública, e tinham
suas condutas ainda mais questionadas no desenvolvimento dos
processos. Embora o Código Penal de 1890 previsse punição para quem
cometesse violência sexual contra prostitutas, mesmo que com penas
inferiores, como visto no primeiro capítulo, a legitimidade de uma ação
de crime de Estupro movida por uma mulher prostituta deveria ser
conquistada em ampla disputa discursiva no decorrer da ação.
A idealização da vítima como moça inocente, pura, virgem e
recatada dificultava a comprovação da violência sexual por parte de uma
mulher que vivesse do meretrício. É importante destacar que ao analisar
esses processos tive grande dificuldade em entender quais mulheres
viviam realmente do meretrício e quais mulheres eram construídas
negativamente como meretrizes, conforme a reprovação dos seus
comportamentos. Refiro-me aqui às diferentes mulheres que
compuseram esses processos, não apenas como vítimas, mas como
testemunhas dos casos.
Mulheres que trabalhassem nas ruas, especialmente no período da
noite; que ingerissem bebidas alcóolicas; que não fossem mais virgens;
que exercessem atividades “suspeitas” na ausência do marido, como no
caso de Maria Etelvina em 1936; ou que assumissem algum
comportamento tido como libertino, eram recorrentemente identificadas
como “mulheres da vida”. Foi comum em muitos relatos contidos nos
processos, que algumas das ofendidas fossem consideradas por um
vizinho, pela polícia ou por algum testemunho de acusação como uma
“meretriz”, mesmo que em outros depoimentos aparecessem como
lavadeiras, engomadeiras e se mostrassem “mulheres honestas”. O uso
da palavra “meretriz” como desqualificação das vítimas era fato
201

recorrente entre aqueles que buscavam defender as versões dos


acusados.148
As mulheres “de vida alegre”, como eram denominadas as que
não se adequavam aos padrões de recato comportamental e sexual que
estavam colocados para as mulheres no início do século XX, eram
matéria bastante debatida por aqueles que buscavam elevar os padrões
de moralidade da cidade de Fortaleza. Vistas como ameaçadoras da
moral das famílias, as meretrizes eram costumeiramente relacionadas
aos comportamentos escandalosos, e eram tidas como símbolos das
práticas ameaçadoras da família.
Segundo Marta Emísia, muitas meretrizes eram alvo de repressão
policial na cidade de Fortaleza e frequentemente eram registradas na
polícia por práticas de desordem e embriaguez, por exemplo. No
entanto, muitos desses crimes registrados no cotidiano policial da cidade
e que tiveram as meretrizes como personagens, também eram praticados
por outras mulheres populares que exerciam diferentes atividades de
labor. Para essa autora, as centenas de registros contra populares em
inícios do século efetuados nas delegacias de Fortaleza, demonstravam a
política de disciplinarização que marcava o espaço urbano da capital, em
especial, o perímetro central. Essas detenções, mesmo que durassem
poucos dias, serviam como uma maneira de “educar” essas camadas, em
especial as mulheres, sobre os valores morais que se buscavam para a
organização da cidade. (BARBOSA, 1996, p. 55)149

148
Outro fator observado na pesquisa nesta documentação foi o fato de que,
embora o meretrício fosse visto muitas vezes como atividade “fácil”- sendo
buscada por aquelas que supostamente representavam a degeneração da família,
a desordem, a ausência de relações conjugais ou que não tivessem filhos, ou
mesmo que viviam somente da “diversão” – era muitas vezes realizada por
mulheres que mantinham outras formas de atividades laborais, inclusive aquelas
consideradas “honestas” para as mulheres. Um exemplo disso foi o próprio caso
de Maria Monteiro, que além de ser considerada prostituta nos depoimentos,
aparecia como trabalhadora de “casa de família”, além de ser considerada uma
mulher casada.
149
Vale a pena destacar que na imprensa cearense era bastante comum a
divulgação de notas que pensavam como as palavras, os gestos, os
comportamentos poderiam ser denunciantes de uma conduta moral não
desejada. Muitas vezes em forma de “dicas”, essas proposições
comportamentais inseriam uma lógica que buscava disciplinar o comportamento
daqueles, e principalmente daquelas, que não se introduziam no nível de
202

No que se refere aos crimes de cunho sexual, embora tenham


composto boa parte dessas contendas registradas nas delegacias da
capital, as mulheres consideradas “meretrizes” pela polícia, pouco
fizeram parte dos crimes sexuais estudados neste trabalho, e somente
dois dos casos se referiram a violências sexuais vividas por mulheres
meretrizes. A prerrogativa de proteção sobre aquelas que preencheriam
um perfil de recato e passividade, ou mesmo o privilégio por meninas
menores de idade, pareciam dificultar possíveis ações que envolvessem
violência contra mulheres maiores de idade, e principalmente, mulheres
entendidas como vivendo do meretrício. Muitas dessas mulheres
poderiam sofrer diferentes formas de violência de cunho sexual, no
entanto, a própria condição de supostamente não mais possuírem honra
e pudor a serem protegidos possibilitava que muitas dessas violências
não chegassem à justiça fortalezense.
O caso de Maria Monteiro da Silva – 26 anos, meretriz e
doméstica, parda e casada eclesiasticamente – possui grande parte
desses elementos. O desenrolar desse caso, um dos poucos a chegar à
justiça, mobilizou uma série de discursos que demonstraram as tensões
sobre a questão da proteção judicial para as mulheres que não eram
consideradas de comportamentos recatados, ou que não tinham mais o
“bem jurídico” – diga-se virgindade – a ser protegido.
Em inícios de abril de 1937, Maria foi à delegacia queixar-se de
ter sido estuprada por dois homens, Raimundo Alves da Silva – 23 anos,
casado, marítimo, sabendo ler e escrever – e João Rodriguez da Silva –
conhecido por “Joca”, 19 anos, solteiro, sapateiro, sabendo ler e escrever
– depois de ter ido a uma “bodega” onde estavam bebendo os acusados.
Segundo o depoimento de Maria Monteiro, ela teria ido a tal “bodega”
em companhia de uma amiga para fazer “umas compras” e levar para

moralização que se queria para a cidade. Essa atuação policial se coadunava


com as campanhas pela moralização da cidade que eram divulgadas em alguns
dos principais jornais da capital, como o católico “O NORDESTE”, que
denunciava os “antros de perdição” existentes nas primeiras décadas do século
XX, e propunha uma séria transformação dos costumes dos fortalezenses.
(BARBOSA, 1996, p. 163) Em muitos relatos e pareceres desses processos, a
honra e o pudor também eram avaliados pelos gestos, pela forma de falar e de se
comportar que deveriam compor a conduta das pessoas, em especial das
mulheres.
203

casa.150 Ao chegarem a este estabelecimento teriam sido ameaçadas por


Raimundo e João, e obrigadas a tomar aguardente com eles. A amiga
que acompanhava Maria Monteiro, de nome Zilma de Souza, conhecida
por “Nina”, teria conseguido enganá-los e escapar, enquanto que Maria,
ameaçada por faca, teria ficado até tarde da noite em companhia dos
acusados, que em seguida a teriam levado a um matagal e lá a teriam
violentado. Segundo o Promotor de Justiça, Dr. José Pires de Carvalho,
elaborador da denúncia do caso:

Maria Monteiro não poude sair e continuou na


taverna, forçada a bebêr com os dois desalmados,
donde se retiraram juntos os três mais tarde, cerca
das vinte e meia horas, tomando o rumo da
matta, conduzindo o de nome Raimundo Alves da
Silva uma garrafa e aguardente para a viagem.
Chegados a um lugar êrmo, os denunciados
fizeram propostas deshonestas a Maria
Monteiro da Silva, ou seja, um convite para
relações sexuaes por via anal, e porque esta não
aceitasse semelhantes propostas, resolvêram os
dois monstros affendê-la fisicamente com
murros, ponta-pés e arranhões de faca, como
atestam os autos de côrpo de delicto procedidos na
victima pelos médicos legistas, às fls. Aos gritos
de soccôrro, apertaram a garganta de Maria
Monteiro da Silva, e em seguida violentaram
estupidamente a infeliz mulher, já sem forças,
tendo ambos coito extra-vaginal com ella, como
certificam ainda os dois autos de côrpo de delicto

150
É importante pensar que a “bodega” era um lugar popular para a feitura de
compras de gêneros alimentícios. No entanto, além desse tipo de produtos, a
“bodega”, lugar onde se vivenciou os primeiros momentos do crime, muitas
vezes funcionava também como um botequim. Estes eram lugares entendidos
como próprios de sociabilidades masculinas. Para as mulheres, frequentar esses
lugares significava muitas vezes colocar dúvidas sobre a própria honra. Nesse
sentido, “havia no imaginário fortalezense uma divisão entre a casa e o
botequim, sendo o primeiro concebido como espaço da mulher, da sutileza e da
fragilidade, enquanto o botequim seria o lócus do masculino, do universo varão.
Nele, a ingestão de bebida alcoólica e o uso da violência física marcariam
inclusive, o momento de transição na vida do homem que sairia da adolescência
para a fase adulta”. (SOUSA, 1997 apud VIANA JUNIOR, 2009, p. 60-61)
204

no inquérito policial, que instrue a presente


denuncia (...)151 (grifos meus)

A delação realizada pelo Promotor destacou não apenas o nível


de violência física que teria configurado o crime, mas também, o fato de
os acusados terem feito propostas “desonestas” à ofendida, como a de
ter relações sexuais “extra-vaginalmente”. É possível pensar que este
caso logrou ser encaminhado à justiça pela própria condição de saúde
que se encontrava a vítima, relatada repetidamente por várias pessoas
conhecidas de Maria Monteiro. Meses depois de ter acontecido o crime,
muitas pessoas ainda frisavam no decurso do processo que a vítima
encontrava-se desde então com a saúde debilitada, prejudicando
inclusive, a sua condição para o trabalho. Na ação, Maria aparece como
prostituta e também como empregada doméstica, pois em diferentes
depoimentos era afirmado que esta trabalhava em “casa de família”, e
que inclusive teria pedido um adiantamento de sua patroa enquanto
estivesse em recuperação, o que não lhe foi concedido.
Por ser reconhecida principalmente como meretriz, a forma de
demonstração da violência elaborada pelo promotor frisou o elemento
do sexo anal como demonstração da brutalidade do crime, e também,
como forma de ressaltar o pudor que caracterizava a negação que Maria
teria feito à proposta dos acusados, mesmo sendo uma meretriz. Em seu
segundo parecer, o promotor dizia:

O illustre julgador vai tomar conhecimento de um


crime collectivo, dada a pluralidade de agente,
rodeado de circunstancias tão revoltantes, que
enche de indignação o espirito mais sereno. Custa
crêr que neste século da licenciosidade, quando
a mulher é o artigo mais facilmente
encontrado, em abundancia por toda parte,
ainda haja individuo despudorado e sem
escrúpulos, que procure forçar o coito sexual
com uma mulher por via extra-vaginal.152
(grifos meus)

151
APEC, Processo Nº 1937/02. Auto de denúncia do Promotor de Justiça. p. 2 e
3.
152
APEC, Processo Nº 1937/02. Parecer do Promotor de Justiça. p. 123.
205

Demarcar a extrema violência, que ficava configurada pelo fato


de ter sido cometido por dois homens, e a “depravação” que marcava a
conduta dos acusados, que mesmo diante de tantas mulheres
“disponíveis” insistiam em “forçar o coito” anal, foi uma tática
discursiva elaborada pela promotoria como forma de convencer sobre o
elemento da violência necessária para a pronúncia do caso. Somando-se
ao parecer do promotor, o aspecto da violência foi reforçado pela maior
parte das testemunhas, ao afirmarem que o estado de saúde da vítima
após o ocorrido era tão grave, que no momento que foi encontrada tinha
sido “dada como morta”. Segundo Maria de Lourdes, a mulher que
encontrou Maria Monteiro no outro dia, afirmou que soube,

que a forçaram não só pelo lado natural, como


também anti-natural, de formas que ella, Maria
Monteiro, estava toda ensanguentada; que,
Maria Monteiro estava com o vestido amarrado
com barbante de forma que a roupa estava toda
levantada, (...) e também com os braços
amarrados. (...) que como disse encontrou Maria
Monteiro, como morta, e a mesma ficou sem
podêr andar, como uma criação, que teve uma
pancada nos quartos. (grifos meus) 153

Segundo o testemunho da ofendida, em seguida de ter sido levada


a um matagal, os acusados não só a teriam violentado como também a
teriam espancado, e por isso, ao ter sido encontrada desacordada no
outro dia, machucada e quase nua, as pessoas achavam que ela estivesse
morta. A maior parte dos testemunhos durante o processo ressaltou não
só essa extrema violência que teria configurado o ato, mas também,
demarcaram o mau comportamento dos denunciados, que seria de
conhecimento de toda a vizinhança. Dois testemunhos centrais, que
conversaram com os dois indiciados no momento que voltaram da tal
“bodega” destacaram o modo como os acusados se vangloriavam do
acontecido, confirmando que estes estavam embriagados e possuíam
uma faca, como era atestado na versão da queixosa. Carlos Geraldo da
Silva – vulgo “Carlito”, 21 anos, natural de Fortaleza – e Ivan Antunes –
com 18 anos, solteiro, natural de Foraleza, sabe ler e escrever –
declararam respectivamente:

153
APEC, Processo Nº 1937/02. Auto de declaração das testemunhas. p. 06.
206

que Joca – que é seu conhecido – disse-lhe:


<Carlito, nos fizemos um “serviço” com uma
mulher, pela frente, por traz, pela bôcca e pelo
sovaco>, ao que o depoente replicou <Mas o
que?! Vocês fizeram isso?!>; que nessa ocasião,
Raimundo, que se achava um tanto afastado,
aproxima-se e cae uma arma branca aos pés do
mesmo, a qual foi apanhada e entregue pelo
sobredito Joca (...) (grifos meus) 154

(...) que ouviu Joca, aqui presente declarar que


tinha se “servido” com uma mulher pela frente,
por traz, pela bôcca e pelo sovaco; que viu
também que ele estava com uma garrafa contendo
aguardente (...) (grifos meus) 155

Depois do levantamento de uma série de depoimentos


confirmadores da versão da ofendida, além do auto de corpo de delito
que mostrava as marcas de agressão que teria sofrido, o inquérito segue
como crime de Estupro (Art. 268) e de Ferimentos (Art. 303). O
delegado do caso, ao escrever o relatório a ser enviado para a justiça,
propõe o enquadramento dos acusados nos dois artigos, e solicita as suas
prisões preventivas. Esse processo é de extrema importância, pois
novamente estava colocado o conflito classificatório para os crimes
sexuais. O primeiro debate do processo se dá pelo conflito apresentado
sobre a incompatibilidade do crime contra Maria Monteiro e o Artigo
268 do Código Penal, o Estupro. Segundo o Juiz Municipal da Terceira
Vara, ao avaliar os autos componentes do inquérito e responder ao
pedido de prisão preventiva dos acusados, afirmou que:

Da leitura minuciosa que fiz do inquérito, a minha


convicção é que um só é o crime de que são
responsaveis os dois acusados: o do art. 266 do
Código penal, cujos termos são: “Attentar contra o
pudor de pessoa de um, ou de outro sexo, por
meio de violência ou ameaças, com o fim de
saciar paixões lascivas ou por depravação moral”
(...) Ora, o relatório da zelosa autoridade

154
APEC, Processo Nº 1937/02. Auto de declaração das testemunhas. p. 09.
155
APEC, Processo Nº 1937/02. Auto de declaração das testemunhas. p.11.
207

policial alude ao estupro “por via anal” (fls. 56)


da vítima. Mas estupro “por via anal” não
existe em nosso direito. Isto, quero dizer, o
coito anal o que caracteriza são os attentados
ao pudor. (...) Sendo pois, o crime de Art. 266
citado afiançável, só caberia a prisão preventiva
dos acusados, provado, ou que eles fossem
vagabundos, sem profissão licita e domicilio
certo, ou que já haveriam cumprido pena de prisão
por effeito de sentença proferida por tribunal
competente.(...) Os acusados tem profissão, um é
marítimo e o outro sapateiro, não constando
cumprimento de sentença por parte delles, nos
autos.(...) 156 (grifos meus)

A declaração do Juiz novamente se reporta ao tema da cópula


vaginal e da perda da virgindade como definição do crime de Estupro,
compreendendo assim que o caso em questão estaria categorizado
apenas como Atentado ao pudor (Art.266), crime de pena menor e
passível a fiança. Embora a denúncia da vítima, assim como o relato de
boa parte dos testemunhos terem afirmado que os acusados a teriam
violado por “todos os lugares”, durante todo o processo os
representantes da justiça, assim como os médicos-legistas, destacaram
unicamente a violação por via “extra-vaginal” como elemento material
que mobilizasse a ação. Esse elemento é importante para a nossa
reflexão na medida em que indica como uma mulher reconhecidamente
meretriz tinha a possível violação por via vaginal algo desprezado como
elemento de prova criminal. Essa questão ficou apresentada no próprio
corpo de delito que, embora confirmasse a versão da violência,

156
APEC, Processo Nº 1937/02. Parecer do Juiz. p. 75 e 76. Esses dois
depoimentos, além do prestado pelo dono da bodega que também confirmava
elementos da versão da vítima, foram fundamentais na formação da culpa no
inquérito policial do processo. Depois de enviado para apreciação judicial esses
depoimentos foram contestados pelo advogado de defesa dos réus, que tentará
sugerir que esses dois depoentes seriam os verdadeiros autores dos crimes.
Fundamentando a partir do estado de embriagues da ofendida, que, segundo ele,
invalidariam a sua acusação sobre os réus, pois ela poderia não ter certeza
quanto à autoria da violência, tal advogado questionava o interesse dos dois
depoentes em depor a favor da meretriz, que seria justificado pelo fato de
possuírem interesse direto sobre o caso.
208

destacava somente os ferimentos anais existentes na vítima. Como


afirmaram os médicos Amadeu Furtado e Clóvis de Araújo Catunda
após descreverem os hematomas do restante do corpo, “a examinada foi
barbaramente violentada, observando-se no anus sinais patentes de
violência física, como sejam: escoriações sangrentas na parte inferior e
fortes irritações na parte media superior e lateral direita.”157
A compreensão do Juiz, de que o crime estaria classificado
unicamente como atos atentatórios ao pudor possibilitou outra discussão
– a mais importante a meu ver – por parte do advogado de defesa dos
acusados. Após esse parecer, o debate sobre o pudor da ofendida tomou
as diretrizes da ação. Teria a prostituta algum pudor a ser preservado?
Esta era a pergunta feita a partir de então nos debates e pareceres do
processo. Segundo tal advogado:

“Atentado ao pudor – É o sentimento de vergonha


que se experimenta todas as vezes que se percebe,
vê ou faz em publico ações reprováveis (Fr.
Domingos Vieira. Thez. Da Ling. Port.). Na
mulher, uma das manifestações de pudor é o
recato, – que consiste em viver de modo a segurar
sua honra e bôa reputação, respeitando-se e
fazendo-se respeitar pelos outros. Pudor é também
synonimo de decência, que significa decôro,
honestidade exterior, congruência e conformidade
que se deve guardar, no gesto, na conducta, no
modo de trajar, nas palavras, com os lugares,
tempos, pessôas, idade, etc. (Fr. Domingos
Vieira). Pudicicia é a pureza do corpo e da alma
com relação a prazeres illicitos.” De modo que, e
atentando contra o pudor a que se refere o art.
266, não se verifica quanto as mulheres livres
de pratica leviana como é a vítima. (...) Assim
esclarecendo o que seja atentado ao pudor e a
qualidade das pessôas que se poderá praticar o
atentado, desfaz-se o crime de atentado ao pudor

157
APEC, Processo Nº 1937/02. Auto de corpo de delito. p. 24. A hipótese de
que teriam desconsiderado possíveis violações vaginais na ofendida foi lançada,
pois normalmente o corpo de delito nega os elementos da queixa que não foram
verificados no exame. Nesse auto, no entanto, não foi feita nenhuma menção às
queixas levantadas de que Maria Monteiro teria sido violada de outras formas.
209

da victima Maria Monteiro da Silva. Porque no


caso, o sentimento de vergonha ou timidez
produzido pelas coisas contrarias á honestidade
ou à decência, não são encontrados na vítima
integrante a sua personalidade. O titulo de
Dona, Donzella, Dama solteira, Virgem, não os
possue a victima. O atentando contra o pudor,
unicamente se refere à essas pessôas, de vida e
acatamento a todo o respeito. De modo que, pelo
exposto desaparecida fica a denuncia de atentado
ao pudor da victima que não o tem.158 (grifos
meus)

De crime de Estupro para Atentado ao Pudor, e de Atentado ao


pudor para Ferimentos Leves, o caso de Maria Monteiro demonstrava a
dificuldade em se comprovar uma violência sexual por parte de mulher
adulta que não tivesse mais a virgindade a ser preservada, e
principalmente, para uma mulher que trabalhasse no meretrício, que
segundo esses pareceres eram mulheres físico e moralmente
corrompidas. A ideia de que se protegia a honra e o pudor, e para os
casos das meninas mais jovens, a virgindade, construía outro discurso
sobre a vítima de crime sexual: a ilegitimidade de recurso daquelas que
moralmente não mereciam ser protegidas pela justiça. A questão
colocada aqui não se refere apenas ao fato da punição final concernente
à ação judicial, mas também, a todo o transcurso de incertezas e de
formação de culpa diferenciada para os casos que envolviam essas
mulheres. Esses elementos construíam discursos de licenciosidade
sexual para os homens, pois de algum modo a prática de violência
sexual contra essas mulheres era “mais compreendida” do que entre as
mulheres jovens e de comportamento familiar.
A figura da prostituta aparecia recorrentemente nos processos
aqui estudados, ora como xingamento àquelas que deveriam ter sua
moral abalada, ora como sinônimo de mulheres que realizavam
atividades tidas como impróprias para as moças direitas. Nesse sentido,
é importante reafirmar o carácter educativo que perpassava toda a ação
penal. Destacar os comportamentos e condutas que eram desejados para
as mulheres e compará-las aos comportamentos que seriam marcadores

158
APEC, Processo Nº 1937/02. Parecer do advogado de defesa. p. 129. As
palavras grifadas foram destacadas na documentação.
210

das “mulheres de vida alegre” foram atividades fundamentais realizadas


pelos homens representantes da lei que compuseram esses processos.
A figura da mulher meretriz, para além de uma atividade exercida
quanto ao comércio do sexo, era uma elaboração conceitual que
sintetizava os elementos que compunham a transgressão feminina. Ela
simbolizava, em grande parte dos relatos, uma representação da
decadência física e moral da humanidade.
Outra perspectiva lançada sobre as mulheres consideradas
desonestas e prostituídas era a da vitimização pelos problemas sociais
que assolavam a cidade. No decorrer dos processos, embora uma forma
minoritária de entender a experiência dessas mulheres assumisse essa
perspectiva, foi possível perceber que a prostituição era vista como um
mal que assolava as mulheres pobres e as meninas de honra
“desgraçada”. É importante destacar que um dos principais temores
acerca da perda da virgindade das meninas jovens era o fato de que em
consequência de uma “desonra” estas pudessem ser lançadas à
prostituição, e assim, vivessem uma vida de degeneração.
No caso contra Maria Etelvina, acusada de Lenocínio em 1932, o
parecer do promotor destacava o elemento social que compunha o tema
da prostituição da cidade de Fortaleza. Afirmava que:

(...) Embora deficiente a prova por defeito das


testemunhas e origem mesma do inquerito não ha
de fugir a certeza e convicção de que realmente
Etelvina, digo realmente Maria Etelvina do
Nascimento, a exemplo de dezenas doutras em
Fortaleza, exerce como profissão habitual o
lenocínio. Dahi sustentarmos a denuncia e
pedirmos seja a denunciada Maria Etelvina do
Nascimento condemnada no grau mínimo do art.
278 do Cod. Pen, dada a ausencia de
circunstancias aggravantes e ser de reconhecer a
seu favor o atenuante de bom comportamento, por
isto que não consideramos a prostituição um
crime senão uma dolorosa infelicidade creada
pelo egoísmo do homem e favorecida pela
organização capitalista hodierna.159 (grifos
meus)

159
APEC, Processo Nº 1932. Parecer do Promotor de Justiça. p.65.
211

Por ser reconhecidamente pobre e se encontrar sem a presença do


marido, para o promotor de justiça, o caso de Etelvina não passava de
um entre os vários que existiam na cidade. Para esse representante da
justiça, mais do que simplesmente uma atividade fora da moralidade e
que correspondesse à prática de um crime, a atividade do meretrício era
um problema de ordem social, era uma consequência dos péssimos
valores cultivados na sociedade moderna. Aproveitando o momento da
sua denúncia contra Etelvina, o promotor elaborava uma definição que
pensava a própria situação social em que estava inserida a denunciada.
No entanto, em relação às disputas discursivas colocadas nesses
processos de crimes sexuais, a figura a meretriz dificilmente fora
relatada como mulher vitimizada, principalmente quanto ao tema da
sexualidade. A fala desse promotor de justiça foi a única encontrada
nesses processos que considerava a prostituta uma vítima das condições
sociais que marcavam a sociedade de inícios do século. O consumo de
bebidas alcoólicas, a “imoralidade”, a posse e a disseminação de
doenças venéreas, assim como os comportamentos “imorais” eram
regularmente os assuntos mais relacionados à vida dessas mulheres. Tais
elementos acabavam aparecendo como grandes preocupações dos
representantes da justiça e dos médicos da cidade que viam na figura da
meretriz um dos maiores exemplos da degeneração que assolavam a
moralidade da capital. Cheias de sapiência, despudor, malícia, além de
simbolizarem o que de mais degenerado estava colocado para as
mulheres, a meretriz era construída nas narrativas desses processos
como uma mulher que transgredia os bons comportamentos aceitos pela
sociedade, e por isso, estavam em condição diferenciada para os
amparos da lei.
Além das relações e dos simbolismos de gênero, que eram
fundamentais para as disputas discursivas dos processos judiciais,
agregava-se o elemento das diferenças sociais que hierarquizavam a
própria vida das prostitutas da cidade. Sem dúvida, as mulheres pobres
que vivenciavam a experiência do meretrício estavam muito mais
suscetíveis a violências policiais e a condenações morais por parte das
elites de Fortaleza, pois transitavam recorrentemente nos espaços
urbanos, “ameaçando a moral das famílias.” Esse elemento, também
fora demarcado por alguns representantes da justiça, que denunciavam
as relações desiguais estabelecidas – especialmente pela polícia da
capital – quanto à questão da repressão da prostituição e do “cafetismo”.
212

Reprimir a prostituição muitas vezes significava retirar, dentro de uma


perspectiva da higiene social, as mulheres pobres que exerciam essas
atividades das áreas do perímetro central onde estavam as “casas de
família”; ou mesmo, cercear apenas àquelas que não estavam a serviço
dos homens ricos da capital.160 Como destacou o promotor de justiça:

Inicialmente, dissemos que isto é um processo


doloroso, “filho da iniquidade humana”. E é.
Inumeras são as mulheres acusadas de caftinas
em Fortaleza. Notadamente aquela
celebríssima Maroca Pacheco, nome de guerra
conhecido de todos. Dela se afirma que
prostituiu até as próprias filhas. E nunca a
policia contra ela se movimentou. As outras
vivem por aí florescem, estadeando o seu
escândalo, escudadas na proteção dos magnatas.
Só contra Etelvina, paupérrima, e
precisamente não exploradora do lenocínio, foi
que se instaurou ação criminal – fato inédito no
Ceará. 161 (grifos meus)

Desse modo, quando observamos o objetivo nesse momento por


alçar uma imagem idealizada da mulher-mãe e dona de casa, a prostituta
era vista pelos discursos dos médicos e representantes da justiça da
capital, como o contra senso dessa proposição. Ou como mulher sem
honra e sem carácter, ou como mulher vítima das desigualdades nas
sociedades modernas, o certo é que a autonomia, a sociabilização em
espaços tidos como masculinos, a realização de trabalhos fora dos
espaços e horários reconhecidamente femininos, e principalmente, o não
cumprimento das expectativas sexuais colocadas para as mulheres,
construíam a imagem da meretriz como a de uma ameaça aos padrões
sociais, e consequentemente à boa moral, constituindo-se um exemplo
da degeneração social. A própria defesa da repressão da prostituição e
da figura da prostituta reforçava, ao mesmo tempo, o ambiente familiar,

160
Novamente, destaco que os trabalhos do historiador Fonteles Neto e da
historiadora Marta Emisia trazem reflexões fundamentais sobre esse cotidiano
da repressão na capital cearense durante as primeiras décadas do século XX.
161
APEC, Processo Nº 1932. Parecer do Promotor de Justiça. p. 69.
213

a proteção masculina e a disciplina da sexualidade como fator


compositor da mulher ideal para essa sociedade moralizada e sadia.
No que se refere à violência sexual é notável pensarmos que essas
mulheres possivelmente vivenciassem uma série de agressões, mas que
não vieram a ser objeto de apreciação judicial. Na cidade de Fortaleza,
diferentes trabalhos historiográficos indicaram, como afirmado
anteriormente, o modo como muitas mulheres consideradas meretrizes
estiveram envolvidas em contendas policiais cotidianas, sendo presas
por vadiagem, embriaguez, por desordem, e em muitos casos,
respondendo judicialmente por esses crimes.162 No entanto, quanto à
questão da violência sexual, as meretrizes apareceram principalmente
como sinônimo de desqualificação discursiva ou como sujeitos sociais
que possuíam menos legitimidade para solicitar proteção judicial nesses
casos.
Quando pensamos a esfera jurídica como um espaço que também
era pedagógico é possível refletir sobre a construção hierarquizada que
se fazia das sexualidades masculina e feminina. A licenciosidade sexual
masculina, assim como a violência como elemento constitutivo da
masculinidade, fazia com que a figura da meretriz fosse construída
como a de uma mulher que estava acessível a agressões de cunho
sexual. Ressaltar que era “dada às bebidas”, que era mulher “sem valor”,
que era “mulher da vida”, que frequentava festas e lugares masculinos
significava reduzir os valores das mulheres ao elemento do recato
comportamental e sexual, ao mesmo passo que relacionava a imagem da
prostituta à de uma mulher que estava suscetível às “correções”
cotidianas que implicavam o seu comportamento. Desse modo, é
possível perceber a geração de um discurso médico-jurídico que

162
O trabalho de Fonteles Neto, em especial o segundo capítulo, discute de
forma bastante interessante as relações cotidianas estabelecidas entre prostitutas
e policiais em Fortaleza durante as primeiras décadas do século XX. De
apadrinhamento à abusos de poder, o autor demonstra as tensões que se
colocavam na vida dessas mulheres na cidade. (FONTELES NETO, 2005) O
trabalho de Marta Emisia, por sua vez, apresenta uma cartografia, um registro
de onde e como circulavam essas mulheres na cidade. Através dos registros de
queixa emitidos nas delegacias, essa historiadora pôde perceber trajetos
efetuados nas ruas da capital, não apenas pelas meretrizes, mas também, por
muitas das mulheres pobres que eram acometidas pela ação policial.
(BARBOSA, 1996)
214

construía a violência sexual como uma agressão àquelas que


conseguiam comprovar uma proximidade comportamental com o
modelo de mulher e de “mocinha” que se esperava como norma, em
detrimento das mulheres que apresentassem condutas “livres” e que não
se aproximassem dessas idealizações de recato e passividade.
No caso de Maria Monteiro, afirmar que esta era uma mulher
reconhecidamente “da vida”, que vivia “ébria” e, portanto, sendo uma
mulher que moralmente não tinha o direito moral de buscar a justiça por
não mais possuir pudor a ser preservado, foi tática utilizada pelo
advogado dos acusados durante todo o processo. Além desses elementos
morais, o fato de a vítima ser adulta e maior de idade levantava a
questão da possibilidade de defesa que deveria ser provada pelas versões
incriminatórias, pois se considerava a hipótese de que uma mulher maior
de idade ou de constituição adulta tivesse condições de reação igualitária
com relação a seu agressor.163

163
O historiador Georges Vigarello, ao historicizar as sensibilidades em torno
das violências sexuais no Ocidente, destacou o elemento da possibilidade
igualitária de defesa das vítimas que teria marcado grande parte da história
moderna e contemporânea das legislações criminais. Antes da construção das
distinções biológicas para justificar a inferioridade feminina, a violência era
compreendida principalmente quando exercida por intermédio de mais de uma
pessoa (estupro coletivo), pois se compreendia que a luta de uma pessoa contra
outra jamais poderia viabilizar esse tipo de violência, o que muitas vezes
culminava em uma interpretação de ter havido concessão por parte da vítima no
momento do crime. Após as elaborações das teses científicas de que o corpo das
mulheres era inferior ao corpo masculino, em termos de força e agilidade, a
interpretação da violência ficava marcada por outros elementos, como a
superioridade em força, em idade, e pelo conceito de sedução que aos poucos
vai sendo construído na linguagem jurídica. Porém, o autor aponta para
permanências e rupturas sobre essas formas de se construir discursos e
sensibilidades acerca desse tema, e que podem ser identificados durante boa
parte do século XX. (VIGARELLO, 1998, p. 48-49) As reflexões colocadas por
esse historiador são de grande importância para a apreciação dos crimes aqui
estudados. Embora os elementos que destacavam as diferenças corporais e
mentais fossem considerados na interpretação desses crimes – o que pode ser
pensado pela própria construção jurídica da menoridade como elemento
fundamental da classificação – a figura da meretriz ainda suscitava o argumento
da possibilidade de defesa e da impossibilidade de ser “seduzida”, pois a
construção discursiva da vítima estava profundamente marcada por uma
oposição conceitual entre atividade e passividade. Sem considerar a
215

Como indicava o defensor:

É pacifico, nos comentadores, que não é possível


a um homem sozinho violentar uma mulher, por
mais que lhe sobre ousadia para tanto.
Possivelmente ela teria consentido em que os
dois a violentassem... mas então, havendo
consentimento, não se enquadra mais a figura
delituosa à especie, pois, como se viu, a
resistência deve ser séria e constante. A simples
consideração de que Maria Monteiro,
espontaneamente, acompanhou os acusados para o
local do delito bastaria para excluir a hipótese do
delito rubricado no art. 266 da Cons. Das Leis
Penais., pois daí por diante teria desaparecido um
dos elementos essenciais do crime – a resistência
constante, tenaz, de que falam todos os
mestres.164 (grifos meus)

A tentativa de defesa do advogado se aportava em duas ideias


centrais: a da necessidade em se demonstrar a incondicional tentativa de
defesa por parte da vítima, que deveria ser “séria” e acontecer durante
todos os momentos da realização do crime; e também, a de que qualquer
elemento que demonstrasse iniciativa dessa vítima desqualificaria a
natureza própria do crime. Embora possa parecer contraditório, essas
questões relacionavam-se à idealização de uma vítima de crime sexual
que era construída nessas ações intrinsecamente marcada pelo elemento
da passividade sexual, como vimos no primeiro tópico deste capítulo.
Tais elementos reforçavam não apenas a imagem da inocência e do
recato como pontos fulcrais e determinantes para a validação da
violência, como também, marcavam as hierarquias existentes sobre
aquelas vítimas que eram vistas como futuras mães, e aquelas que
apareciam como antinomias dessas idealizações. Imbuída dessa

possibilidade de alguma forma de participação ativa no decurso do crime, que


não inviabilizasse a denúncia de violência, a ação judicial durante esses crimes
reforçava aspectos dicotômicos sobre a imagem da vítima de crime sexual, ao
mesmo passo que acabavam por legitimar a violência sobre outros sujeitos,
como no caso das prostitutas.
164
APEC, Processo Nº 1937/02. Parecer do advogado de defesa. p. 192. O
sublinhado do texto é próprio do documento original.
216

perspectiva reforçava-se uma licenciosidade sexual masculina –


relativizando a ideia de violência – que tinha como base o
comportamento da ofendida.
Além da imagem da prostituta – que norteava a interpretação
sobre as condutas femininas e fundamentava diferenças de proteção
judicial para meninas e mulheres – os meninos, que apareceram aqui
como vítimas de Atentado ao pudor, também vivenciavam de forma
diferenciada essas ações jurídicas. Como mostrei no primeiro capítulo,
o crime de Atentado ao pudor se referia a todas as práticas sexuais que
não aconteciam entre homens e mulheres, e que não materializavam o
coito por via vaginal. Essa diferenciação, totalmente marcada pela
preocupação em se preservar, principalmente, a integridade das meninas
jovens, também possibilitou experiências distintas para os meninos
vítimas de agressões sexuais.
Os garotos que apareceram nesses processos, também foram
constantemente construídos a partir dos aspectos da inocência que
marcavam a figura das vítimas de crime sexual, principalmente, por
serem todos menores de idade. Todavia, é possível refletir que embora a
preservação da integridade física e do pudor desses meninos fosse
objetivada pela intervenção da polícia e da justiça, os crimes de
Atentados ao Pudor, na maioria das vezes, tinham punições menores que
os crimes de Estupro, e, em muitos casos, poderiam ser punidos somente
com o pagamento de fiança, o que aconteceu em alguns dos casos aqui
estudados. Exemplo disso foi o caso do menino Oswaldo em 1926, em
que o acusado João Alves da Silva fora condenado a pagar trezentos mil
réis à justiça fortalezense, o que possivelmente nunca chegou a
acontecer, já que o acusado foi embora para servir ao exército no sul do
país e não chegou a ser comunicado sobre a decisão judicial.
Somada a essas possibilidades de classificação jurídica, a própria
compreensão de sexo que se demarcava como normativa no Código
Penal de 1890 abria possibilidades de invisibilização de outras maneiras
de se praticar violência sexual, e poderia acabar omitindo outros sujeitos
que pudessem praticá-las. Definir o sexo como atividade penetrativa e a
violência sexual a partir de conceitos abstratos – como honra e pudor –
poderia permitir que outras ações não fossem vistas como violentas.
Seria possível que uma mulher pudesse ser acusada de violência sexual
contra outra mulher? Ou contra um menino? Compreender a
“consumação” da cópula como fator central de materialização da
217

violência, além do aspecto simbólico da “posse” do corpo como um


elemento masculino, acabava por construir, de um ponto de vista
cultural, a própria ideia de violência sexual que se definia em âmbito
jurídico nesse momento, sendo apropriada pelas diversas pessoas que
participavam dessas ações.
Nesse sentido, entendo que as definições de violência estiveram
profundamente perpassadas pelo gênero e construíam discursos sobre a
idealização das imagens das vítimas e dos réus, principalmente no que
se refere ao tema da sexualidade e dos bons comportamentos. As
disputas discursivas que adjetivavam essas vítimas reforçavam, e ao
mesmo tempo construíam relações de gênero na sociedade; além de
instituírem formas de interpretação social para o tema da violência
sexual e para as relações de poder em que essas estavam inseridas.
Finalmente, destaco que a partir desses processos foi possível
perceber como a idealização da vítima de crime sexual esteve marcada
por dois elementos centrais: o primeiro se relacionada à construção de
um discurso oficial sobre a violência sexual que privilegiava aquelas
mulheres e meninas cuja virgindade, o pudor e a honra pudessem ser
provados. O segundo ponto, correspondia a um reforço da própria
compreensão de sexo como atividade penetrativa e como prática com
fins reprodutivos. A relação desses elementos construía discursos sobre
essas violências, e sobre os sujeitos que estariam passíveis a cometer e a
sofrê-las. As disputas discursivas expostas em âmbito jurídico
elaboravam enunciados sobre a sexualidade das pessoas envolvidas, e
desse modo, os espaços sociais relacionados à justiça se configuravam
como centrais na conformação de normas comportamentais para a
conduta de homens e mulheres.

4.3 UM ASSUNTO PARA MÉDICO: PRESERVANDO O CORPO


DA FUTURA MÃE

Além da polarização entre a “boa moça” e a “mulher de vida


alegre” estavam, também, as preocupações de preservação da infância
pelos moldes higiênicos propagados nos debates médicos de inícios do
século XX. Proteger a infância, especialmente a partir da década de
1920, e mais intensamente na década de 1930, significou buscar
solidificar valores familiares burgueses e “papéis” de gênero idealizados
pelas elites da sociedade.
218

No que se refere ao corpo e à sexualidade, os médicos tiveram


papel fundamental dentro e fora dos espaços em que aconteceram os
processos judiciais. Nesses processos, a participação desses
profissionais ficava registrada nos autos de corpo de delito realizados
nas ofendidas logo após a denúncia na delegacia. Esses exames eram
realizados de formas distintas, a depender dos peritos que fossem
chamados para efetuar o procedimento. Alguns se valiam de uma
descrição detalhada da vítima, e outros se limitavam às respostas dos
elementos constitutivos do crime. Além dos caracteres físicos – como
altura, “tamanho da constituição física”, cor dos pelos, formato e
tamanho dos seios, descrições da anatomia vaginal – existiam, em
alguns dos casos, uma descrição da personalidade da pessoa examinada,
como “temperamento forte”, “inquieta” ou menina de “bom
temperamento”. Em 1926, no caso da menor Maria da Conceição de
onze anos de idade; em 1937, no caso da menor Maria Izabel de
Santanna; e em 1936, no caso da mais jovem das vítimas encontradas
nesses processos, Maria Eunice Lopes da Silva – os médicos legistas
declararam respectivamente:

Nós abaixo firmados peritos, declaramos que


examinando a menina Maria da Conceição de côr
parda, cearense, 10 annos presumíveis,
constituição fraca, verificamos o seguinte:
membrana hymem completamente rasgada;
ruptura muscular; as feridas occasionaram
grande hemorragia. O estado da victima é
grave. Assim respondem aos quesitos pela
maneira seguinte: Ao 1º: Houve estupro; Ao 2º-
Membro viril; Ao 3º: Sim; Ao 4º: Sim; Ao 5º-
Força physica. E são estas as declarações que em
suas consciências e sob o compromisso prestado
têm a fazer. (...) 165 (grifos meus)

(...) Maria Izabel de Santanna, de cor parda, 1m,


48 cm, natural deste Estado, de 13 anos de idade,
moradora em Sto. Antonio da Floresta, filha de

165
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:
Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 01, Processo Nº 1926/02.
Auto de corpo de delito. p.6.
219

Pedro Guedes de Souza Lima, de constituição


forte, temperamento nervoso, encontramos
lábios grossos, bom desenvolvimento, voz
infantil, falta de pelos nas axilas e apenas
penugem no monte de Venus; seios em formação,
pequenos, tingidos, de areola pouco pigmentada e
mamilos pequenos e chatos, faltados quatro
últimos molares. Posta em posição genecológica,
notaram grandes lábios finos, pouco
desenvolvidos e bem coaptados; pequenos lábios
exíguos não pigmentado, sem excederem os
grandes, clitóris pequeno e pouco erétil, vestíbulo
irritado, orifício vaginal de regular dimensão;
hymen de situação baixa, similares, membrana de
osteo pequeno com duas ruturas imcompletas,
sendo uma posterior esquerda e outra anterior
direita, de que resultara 3 (três) retalhos de bordas
bem cicatrizadas; corrimento vaginal de côr clara
leitosa. (...) 166 (grifos meus)

(...) Maria Eunice Lopez da Silva, parda,


brasileira, cearense, com 5 (cinco) anos de idade,
residente na Praia do Pirambú. A paciente é de
constituição fraca, raquítica e apparencia
doente. (...) 167 (grifos meus)

Apesar de serem abreviados, e na maior parte dos casos bastante


resumidos, algumas características puderam ser observadas sobre o
perfil dos autos de corpo de delito: a maior preocupação dos médicos
estava em descrever as menores ofendidas medindo os seus
crescimentos mentais, e principalmente físicos, como forma de avaliar
se já eram mulheres “desenvolvidas” ou não. A existência de pelos, o
desenvolvimento dos seios, a constituição vaginal eram parâmetros
recorrentemente utilizados como forma de confirmação da idade da

166
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:
Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 03, Processo Nº 1937/01.
Auto de corpo de delito. p.8.
167
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:
Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 03, Processo Nº 1936/02.
Auto de corpo de delito. p.6.
220

vítima – especialmente quando se tinha dúvidas sobre a real idade das


menores -, mas serviam também, como forma de indagar sobre sua
capacidade de defesa e o seu nível de crescimento e saúde.
A partir desses exames foi possível observar que as principais
características destacadas pelos médicos se referiam aos
desenvolvimentos das partes reprodutivas dessas vítimas. Destacar o
desenvolvimento das mamas e também da circunferência vaginal
empregava como parâmetro do corpo apto à procriação que era tomado
como representação do desenvolvimento completo do corpo feminino. A
menina “desenvolvida” seria aquela que se aproximava de crescimento
suficiente para a realização de um ato sexual penetrativo e também de
capacidade de geração. Mesmo que o objetivo do exame se referisse à
declaração das marcas de violência deixadas na vítima, e mesmo que na
quase totalidade dos processos o delito fosse classificado como
praticado por meio de violência, o privilégio em mostrar a violência
sofrida nas áreas genitais expressavam a preocupação central dos
médicos com as partes do corpo que simbolizavam a reprodução.
Essa inquietação surgiu no decorrer do desenvolvimento da
pesquisa, pois na medida em que as pessoas destacavam a superioridade
de força que demarcava a relação vítima-acusado, eu presumia que essas
meninas ficassem com a totalidade do corpo bastante debilitada após a
violência que teriam sofrido, assim como afirmavam muitos dos relatos
populares sobre os casos, e como era recorrentemente destacado nas
falas dos que as defendiam. No entanto, os autos de corpo de delito
dificilmente ultrapassavam duas páginas, e assim, foi possível perceber
que a prevalência dos pareceres dos médicos legistas consistia em
destacar as condições em que se achavam as partes genitais da menor, e
também, o desenvolvimento biológico em que se encontravam as
vítimas, tomando como parâmetro a possibilidade reprodutiva do corpo
feminino.
Apesar de bastante resumido, esses elementos puderam ser
observados no corpo de delito realizado na menor Guiomar Moreira. Os
médicos responderam as perguntas concernentes às caracterizações do
crime de estupro e descreveram a situação em que se encontravam as
partes genitais da menor. Afirmaram:

Nós abaixo firmados, peritos, declaramos que


examinando hoje, ás 12 (dôze) horas, a menor
Guiomar Moreira, de côr branca, cearense, 13
221

(treze) anos de idade, residente no logar


Maraponga, verificamos o seguinte: Membrana
hymen dilacerada em diversas partes; sinais de
violências nos músculos, nos pequenos lábios e
grandes lábios. – E, portanto, respondem aos
quesitos que lhes fôram propostos pela maneira e
forma seguinte: – Ao 1º Houve Estupro; Ao 2º
Membro viril; 3º Sim; Ao 4º Sim; Ao 5º Força
física.
E são essas as declarações que, em suas
consciências e sob o compromisso prestado tem a
fazer. (...)168

Em inícios do século XX, além das interdições morais colocadas


para as práticas sexuais consideradas crime contra a honra das famílias,
fundamentadas pela violência e/ou pelo exercício de condutas “imorais”
e “bestiais”, elaborava-se gradativamente uma preocupação por
construir uma sociedade marcada pelos bons valores morais e pelas boas
características biológicas. A palavra eugenia ia aos poucos entrando no
vocabulário dos médicos da cidade, em especial a partir da década de
1920. As crianças, e consequentemente as mulheres, foram importantes
alvos de atuação médica nas campanhas higienistas promovidas na
cidade. Higiene e princípios eugênicos marcavam aos poucos os
discursos desses profissionais e visavam educar as pessoas,
principalmente as mais pobres, quanto às temáticas de saúde pública e
de “interesse social”.
Em relação aos crimes, as preocupações com as meninas vítimas
de violência sexual se relacionavam às expectativas de que essas
infantes e moças jovens seriam futuras mães e esposas, e precisavam
estar física e moralmente “preparadas” para exercerem essas “funções”.
Nesse sentido, como futuras esposas, e principalmente como mães em
potencial, a atuação jurídica privilegiava aquelas cujo corpo jovem devia
ser preservado como forma de garantir essa “funcionalidade” colocada
para elas, o que pode ser percebido no próprio Código Penal
Republicano que norteava a interpretação dessas ações. Como ressaltei
em outros momentos, foram violências sexuais praticadas contra

168
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:
Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 03, Processo Nº 1937/01.
Auto de corpo de delito. p. 06.
222

meninas jovens que constituíram a maior parte dos processos aqui


estudados.
Do ponto de vista médico, a fraca constituição das vítimas –
muitas vezes retratadas como “raquíticas” –, a pouca higiene “das
partes”, e principalmente as doenças venéreas, representavam os fatores
centrais de agravamento da saúde das menores avaliadas nos exames de
corpo de delito. Este último fator marcou profundamente o nível de
“perversidade” que constituía os crimes sexuais, como mostrado nos
capítulos anteriores, e se constituiu tema substancial para o julgamento
dos homens acusados e para a avaliação da situação de violência das
vítimas envolvidas.
As doenças venéreas, assim como os prejuízos que poderiam
trazer para as mães e para as crianças, apareceram recorrentemente
discutidas na revista especializada dos médicos de Fortaleza. Inúmeras
propagandas de medicamentos, tratamentos e especialistas que se
dedicavam aos cuidados dessas doenças – especialmente da sífilis –
eram veiculadas na revista e chamavam atenção para os inúmeros
perigos que esses males representavam nesse momento, principalmente
para a saúde reprodutiva das mulheres.

Imagem 4169

Além do aspecto disciplinador que se colocava para o tema da


doença venérea e que mobilizava discussões sobre a sexualidade, a

169
A imagem acima se refere a uma propaganda do medicamento
ACETYLARSAN produzido no Laboratório USINES DU RHONE em Paris.
Tal medicamento aparecia como tratamento de ponta para todas as formas de
manifestação da sífilis, dentre elas, as que afligiam mulheres grávidas e
crianças, e que se encontrava disponível na capital.
223

família e a “saúde da raça”, os médicos também demarcavam um


território de atuação para a própria categoria, reivindicando cada vez
mais a importância desses profissionais para o cuidado da saúde
familiar. Era uma forma de construírem um discurso público autorizado
sobre esses temas. Vários consultórios eram divulgados para o
tratamento das “moléstias das senhoras” e manifestavam a intenção em
centralizar o conhecimento sobre o corpo das mulheres nas mãos desses
profissionais.
Além das doenças venéreas, muitos textos, artigos de opinião,
materiais de divulgação que tratavam da sexualidade e da reprodução
apareceram na quase totalidade das edições da revista estudada entre os
períodos de 1928-1940. De discussões sobre as questões de saúde
pública que prejudicavam a saúde das mães e das crianças, aos textos
técnicos que compartilhavam novos procedimentos médicos e
hospitalares – casos raros de complicações de parto, anomalias uterinas
e novas drogas – a Revista Ceará Médico elaborava uma série de
pareceres sobre a necessidade de preservação familiar que elevasse o
nível moral da sociedade e que prevenisse a degeneração da raça.
Essa preocupação com a família sadia marcou o discurso dos
médicos brasileiros desde o fim do século XIX, como nos mostrou
Jurandir Freire Costa em Ordem Médica e Norma Familiar, e se
intensificou a partir da década de 1920. A introdução dessa perspectiva
médica no cotidiano das famílias alterou profundamente as concepções
de maternidade que eram idealizadas para as mulheres na virada do
século. O sexo como finalidade reprodutiva e a mulher que se dedicava
prioritariamente à funcionalidade materna constituiu boa parte dos
discursos desses profissionais, que cada vez mais, se introduziam nos
projetos políticos da nação. (ANTUNES, 1999; COSTA, 1983) Produzir
filhos saudáveis para a sociedade significava redefinir as figuras
femininas e “fabricar” cuidados especiais para as crianças e
adolescentes. Segundo Costa:

A mãe devotada e a criança bem-amada vão ser o


adubo e a semente do adolescente, futuro adulto
patriótico. Tradicionalmente presa ao serviço do
marido da casa e da propriedade familiar, a
mulher ver-se-á, repentinamente, elevada à
categoria de mediadora entre os filhos e o Estado.
Em função destes encargos, suas características
224

físicas, emocionais, sexuais e sociais vão ser


redefinidas. Seu papel cultural cresce em força e
brilho. A higiene passou a solicitar
insistentemente à mulher que, de reprodutora dos
bens do marido, passasse a criadora de riquezas
nacionais (...) (COSTA, 1983, p. 72-73)

Na capital cearense, os médicos debatiam diferentes questões que


apareciam como problemáticas para a cidade. Preocupados com as
principais doenças e epidemias que atingiam a população de Fortaleza e
de todo o Ceará, esses homens tratavam de compartilhar e produzir
conhecimento que buscasse amenizar os flagelos que degeneravam a
população e traziam sofrimento para o Estado. A higiene como fator
primordial da organização social conduzia as diferentes análises e
campanhas do Centro Médico Cearense. Em 1928, ao revisarem o
estatuto que norteava a existência do centro reafirmaram que uma das
missões mais importantes da participação da categoria em “problemas
médico sociaes” era apoiar “instituições ou obras quaesquer, capazes
de, directa ou indirectamente, favorecerem hygiene, puericultura e
eugenia.”170
A necessidade em educar as pessoas com relação aos preceitos de
higiene caracterizou grande parte da atuação desses profissionais na
cidade de Fortaleza, que direcionavam muitos dos seus debates para as
mulheres cearenses. A maternidade era tema central e transversal nas
discussões promovidas por esses clínicos. O aborto, a importância do
pré-natal, o parto, a puericultura, o casamento como instituição
higiênica, a desmistificação de temas da saúde feminina, dentre outros
fatores, fizeram parte das páginas da Revista Ceará Médico durante todo
o período estudado.
Em 1936, ao ressaltar a importância da maternidade no Ceará,
alertando para a importância de se cuidar das crianças antes mesmo de
seu nascimento, o Dr. Virgílio de Aguiar escrevia um texto direcionado
às mães cearenses em que explicava a importância de não mais
acreditarem nos “prognósticos da parteira boçal” nem da “visinha
prestimosa” sobre as questões dos cuidados na gravidez, apelando para
que as mulheres passassem a procurar a ajuda do médico, que dedicado

170
Revista Ceará Médico. “Estatutos do Centro Médico Cearense”, Fortaleza, nº
4, p. 16. 1928.
225

e munido de um conhecimento não supersticioso estava apto a cuidá-las


de forma diferenciada. O texto iniciava assim:

Tenho muito bem avaliada a dificuldade e o


melindre da tarefa que me deu o Centro Medico
Cearense, pela delicadeza e medida no dizer, para
agradar, prender e interessar a mulher – a quem
viso como meu particular e melhor ouvinte.
Attentai bem no que fallo, guardai bem o que
digo, chara patrícia, pois que ouvir profissional
devotado e experiente, de longo tirocínio com as
cousas da maternidade.
Em toda parte, e em todos os tempos a mulher
grávida, ou mãe, tem gosado da brandura,
respeito e defesa do homem. E assim, e tanto
assim, porque a mulher gravida tem no ventre,
e a mãe ao seio, o filho do homem, o fructo de
seu amor, que será o guardador de seu nome e
o continuador de sua obra na terra, para
povoar e engrandecer a pátria. Hoje mesmo,
nos dias que vivemos, de uma actualidade afanosa
de conquistas, tão cheia de renuncias sociaes, tão
eivada de graves e superlativos vícios, não
conseguiram ainda os ventos maus dessa Estação
pôdre, crestar no coração da mulher cearense a
palma da maternidade. Mas a maternidade
devendo ser episodio natural na vida da mulher,
nem sempre isto acontece, pois as vezes o novo
ser não medra ou desponta, porque um mal
paterno de origem o contamina, porque o sangue
materno o envenena, porque uma posição má, um
vício de bacia ou de inserção de placenta, lhe
prejudica e empece a expulsão. Porem, se tantos
males e tamanhos percalços podem se apresentar,
ameaçando de morte o produto da concepção
antes de nascer, é evidente que se procure
resguardal-o de taes e tantos malefícios.
Felizmente, que isto podemos fazer, prevenindo,
remediando e é a isto que se chama hygiene
prenatal. Dizendo-se pré-natal quer parecer que
esta hygiene visa somente o novo ser, porém de
facto assim não é porque tambem defende e
226

beneficia a mulher, acontecendo, bem vezes, que á


sua falta ella paga pezados tributos, evitáveis,
desde o soffrimento dobrado até a morte. (...)171
(grifos meus)

O médico buscava nesse texto convencer as mulheres de que um


acompanhamento observado por um profissional autorizado era
fundamental para a saúde da gravidez, e não apenas pelo desejo de
melhor cuidar do possível filho, mas de fazer da vida da gestante algo
menos sofrido. O objetivo dessas e de outras publicações nessa mesma
tônica era mostrar a gestação como algo que poderia ser belo e
prazenteiro para as mulheres, e principalmente, chamar a atenção para a
importância desses profissionais em atividades que anteriormente eram
realizadas de outro modo, como por exemplo, sob os cuidados das
parteiras. 172

171
AGUIAR,Virgílio. “Como e porque se deve fazer a hygiene prénatal”,
Revista Ceará Médico, Fortaleza, nº 7-8, p. 5-11, 1936.
172
Um dos marcos dessa atuação dos médicos da cidade foi criação da
“Maternidade Dr. João Moreira” que funcionava com uma ala da Santa Casa de
Misericórdia e visava engendrar uma forma científica de lidar com a
maternidade, em detrimento das práticas “arcaicas” que ainda eram realizadas
nas famílias cearenses. Como afirmou a historiadora Aline Medeiros, ao estudar
a relação conflituosa que foi sendo estabelecida entre médicos e parteiras, os
saberes sobre a reprodução, em especial sobre o momento do parto, foram temas
importantes para que os médicos empreitassem uma tentativa de centralizar os
saberes sobre o corpo feminino. Segundo essa autora: “Encarar o momento do
nascimento como crucial na determinação da morte de crianças, e mesmo de
parturientes, pareceu desencadear todo um investimento sobre o corpo das
mulheres, pressupondo o acionamento de um conjunto muito particular, pois
que historicamente datado, de saberes sobre a conformação e o funcionamento
do corpo feminino, seja em seu estado típico, seja nos momentos da
maternidade (gestação, parto e puerperio). Assim, para os representantes do
saber médico do Ceará, estabelecer as verdades científicas do corpo feminino
significou, por um lado, condição para melhor controlá-lo e mantê-lo livre dos
perigos que rondam mulheres e crianças, em especial, durante a gravidez, o
parto e o puerperio; e por outro lado, a desqualificação absoluta de concepções
e práticas corporais voltadas para os períodos da maternidade que passassem a
largo dos veredictos da ciência. Nessa perspectiva é que se empreendeu todo
um movimento no sentido de denegrir as atuações das parteiras curiosas ou
aparadeiras, mulheres que eram tradicionalmente solicitadas pelas famílias
227

Além disso, o objetivo de elevar a maternidade a uma


importância pública e de convencer as mulheres de que tinham uma
missão diante da nação também orientava muitos dos textos publicados
na revista. Após se referir a uma série de casos em que as mulheres
viveram complicações gestacionais e de parto pela falta de
procedimentos simples e adequados, que nem sempre eram realizados a
tempo por superstição ou falta de conhecimento, o médico concluiu o
texto relembrando a questão das doenças venéreas, principalmente a
sífilis, como um dos elementos centrais de prejuízo à gravidez e à saúde
das crianças. Disse:

Agora por fim tratarei da maior causa de


mortalidade fetal. Toca a syphilis. (...) Fallar da
syphillis na gravidez, é assumpto que encerra
vários e múltiplos capítulos, todos muito
interessantes e graves, desde o sentimental, que
faz da mãe, inconscientemente, a geradora de
monstros, bem como a matadora de seus próprios
filhos, até o social, que faz da maternidade
avariada pela syphilis uma desnaturada, quase
estéril, porque se lhe dá o filho vivo e
sobrevivente ele é um ente doentio ou
desequilibrado, que vai com estes vícios gerar
semelhante, infelicitando a família, prejudicando a
raça.173

A preocupação com a maternidade sadia norteava a maior parte


dos debates sobre a saúde feminina na revista. A tentativa em alinhar a
feminilidade e a atuação social das mulheres à maternidade era esforço
que não se findava apenas nos discursos médicos, mas que circulavam
entre aqueles vários setores que viam a preservação da família sob a
égide da “boa moral”, uma “saída” para os problemas trazidos pela
modernidade. Diferentes trabalhos da historiografia cearense
demarcaram essa preocupação em construir a imagem feminina
idealizada, como a de uma mulher zelosa dos filhos, educada para

fortalezenses (abastadas ou não) para assistirem o parto de seus novos rebentos


no interior das residências familiares”. (MEDEIROS, 2008, p. 02)
173
AGUIAR,Virgílio. “Como e porque se deve fazer a hygiene prénatal”,
Revista Ceará Médico, Fortaleza, nº 7-8, p. 5-11, 1936.
228

melhor exercer essa função, consumidora de bens para o lar, e dedicada


ao marido.174 Como sabemos, essas idealizações se distanciavam
bastante da realidade das mulheres pobres da cidade, que
recorrentemente tinham suas experiências de vida contrastadas a esses
valores. Ao estudar a prática de Infanticídio na cidade de Fortaleza e a
forma com que as mulheres e as crianças eram construídas nos discursos
da imprensa fortalezense em inícios do século XX, a historiadora Marla
Atayde afirmou que:

Os intensos discursos pedagógicos destinados à


valorização da educação da boa mulher, do amor
materno, da maternidade, e a importância
adquirida pela vida infantil, que foram fortemente
veiculados aos Jornais de Fortaleza, não foram
eficazes o suficiente para evitar que casos como o
Infanticídio acontecessem em quantidade
considerável entre as mulheres pobres. Tampouco
puderam evitar que as imagens das crianças
recém-nascidas, tidas como “pequeninos
cadáveres” estivessem nas mesmas páginas de
jornal e, ainda assim, na contramão das imagens
das “pequenas vidas preciosas”. (ATAYDE, 2010,
p. 90)

Apesar de que grande parte dos textos que trabalhavam os temas


da reprodução, maternidade e higiene voltarem-se, principalmente, para
a situação vivenciada pelas mulheres pobres, pois, por uma série de
fatores eram as que mais careciam de “educação higiênica”, muitos dos
debates que exprimiam a necessidade de uma educação pueril e de uma

174
Para citar alguns: “Mulheres Infanticidas: o crime de infanticídio na cidade
de Fortaleza na primeira metade do século XX” da pesquisadora Marla Atayde;
“As mulheres na expansão material de Fortaleza nos anos de 1920 e 1930” do
historiador Mário Martins Viana; “Do recato à moda: moral e transgressão na
Fortaleza dos anos 1920” da historiadora Diocleciana Paula da Silva; e os
trabalhos das já citadas neste trabalho, Raquel Caminha “Aparta que é briga:
discurso, violência e gênero em Fortaleza (1919-1948)” e Idalina Freitas
“Crimes Passionais em Fortaleza: o cotidiano construído nos processos-crime
nas primeiras décadas do século XX”. Todos esses trabalhos, a partir de fontes e
perspectivas diferentes, apontam para os conflitos sobre a idealização das
mulheres na Fortaleza de inícios do século XX.
229

consciência da importância do papel da “mulher-mãe” para o


desenvolvimento da nação destinava-se tanto às mulheres pobres como
às mulheres de classe alta. A crítica à permanência das amas de leite,
das parteiras, assim como a falta de conhecimento sobre as necessidades
particulares da infância eram direcionados a todas as mulheres
cearenses, que pareciam ainda manter hábitos que não condiziam com
os novos procedimentos higiênicos. É importante destacar que a
mortalidade infantil na cidade de Fortaleza em inícios do século era
considerada por diversos setores da sociedade, em especial pelos
médicos cearenses, um dos principais problemas de saúde que
assolavam a população. Parte desses fatores, segundo eles, estaria
relacionado à própria falta de instrução pueril que caracterizava muitos
dos lares fortalezenses. Segundo o artigo publicado sobre o tema em
novembro de 1938, o Dr. Rocha Lima175 afirmava que para uma
assistência infantil eficiente, existia “a necessidade imperiosa de provêr
a educação sanitária, no que se refere à puericultura, no lar, em meio
da população menos favorecida de discernimento (...)”.176
175
O Doutor Abdégano Rocha Lima, autor da matéria “A mortalidade infantil
em Fortaleza, suas causas e meios de atenuá-la” citada acima era reconhecido
como um dos principais clínicos envolvidos com a causa da saúde e da proteção
à infância na capital cearense. Em 1913 fundou o Instituto de Proteção e
Assistência à Infância que visava zelar pela saúde das crianças pobres e
desvalidas da cidade, contando com o apoio de algumas figuras da elite
cearense, como o Coronel Juvenal de Carvalho. O médico idealizou o instituto
com o objetivo de exercer atividades filantrópicas e desenvolver análises sobre a
condição dos infantes em Fortaleza. No mesmo terreno, era criado um Asilo de
Menores e uma maternidade chamada Senhora Juvenal de Carvalho, situados no
bairro do Alagadiço na capital. Fonte:
http://www.idrochalima.org.br/rhistorico/historia.html
176
LIMA, Abdégano Rocha. “A mortalidade infantil em Fortaleza, suas causas e
meios de atenuá-las”, Revista Ceará Médico, Fortaleza, nº 11, p. 3-13. 1938. É
importante destacar que muitos dos médicos que atuaram na primeira metade do
século XX na capital eram homens de relação próxima os poderes públicos da
cidade, e em inúmeros momentos ocupar cargos importantes de instituições
públicas relacionadas à saúde, e também de cargos de administração. Muitos
desses homens tiveram o tema da maternidade e da infância como centrais na
sua atuação pública como profissionais da saúde. Outro exemplo de clínico que
ficou conhecido pelos seus trabalhos sobre a proteção à maternidade e à infância
em Fortaleza foi o Dr. José Frota. Tal médico era diplomado pela Faculdade de
Medicina da Bahia em 1906 e trabalhou cerca de meio século na capital como
230

Em 1935, o mesmo médico que havia tratado da importância do


pré-natal, Dr. Virgílio de Aguiar – demonstrando estar inteirado das
reivindicações de direitos das mulheres encabeçados pelo chamado
“feminismo de primeira onda”, que visava multiplicar as experiências
femininas no espaço público – escreveu um texto explicando o porquê
da impossibilidade de se concretizar as ideias feministas na sociedade, e
dos limites existentes para a concessão dos direitos que tanto queriam as
feministas. Afirmou que:

O feminismo topará sempre com o entrave do


dilema de seu sexo – o sexappeal. Por modo de
disposição orgânica original, por fundamental
questão de anatomia, o arbítrio da mulher jamais
fincará o marco absoluto de sua volição com o
feminismo que ella idealisa e peleja. Chumbou-a a
Natureza a uma tal fatalidade de condição, com o
estigma eterno de seu sexo, que ella cedo ou tarde
se capacitará que ele será perpetuo entrave aos
seus almejos de igualdade e liberdade como
pensa, como quer. Não se cuide, porem, de taes
ponderações, que vou dar larga a (uma) catilinária
sobre o feminismo, escrever verrina contra a
mulher. (...)
Devéras acredito que o Feminismo jamais logrará
realizar tudo o que pensa e deseja, com pauta ou
sem ella, pela condição organo-anatomica do
sexo, que nunca permitirá a mulher tratar com o
homem como ser neutro, porque sempre lhe
accenderá a tenção do pecado sensual (no qual
ella própria o iniciou).
Enquanto a humanidade povoar o mundo o
facto anatômico do sexo feminino há de trazer
a mulher sempre chumbada e escravizada a
esta condição e impérios orgânicos, por modo a

clínico-geral, obstetra, ginecologista e cirurgião. Foi diretor da Santa casa de


Misericórdia, do Departamento Estadual de Proteção à Maternidade e à Infância
e do Departamento de Higiene da Prefeitura de Fortaleza. Fonte: 1001
Cearenses Notáveis-F. Silva Nobre.
http://portal.ceara.pro.br/index.php?option=com_content&view=article&id=236
3&catid=293&Itemid=101
231

lhe sofrear todos os projetos de feminismo


quando alheiados d`eles. (...)177 (grifos meus)

Refletindo sobre as “prisões” biológicas a que supostamente


estavam destinadas as mulheres, o médico discutia que a situação do
sexo feminino dificilmente conseguiria ser superada em decorrência da
fadada “tenção do pecado sexual” que se colocava entre homens e
mulheres. Mesclando um imaginário religioso com conhecimento
científico, o médico afirmava que inevitavelmente as mulheres não
poderiam gozar de liberdade e igualdade porque seriam eternamente
suscetíveis a despertar, mesmo que inconscientemente, a libido
masculina, pecado este que ela própria teria iniciado. O convívio
igualitário entre homens e mulheres, segundo esse médico, seria
impraticável porque sempre existiria uma possibilidade de “descontrole
sexual” nos lugares em que os mesmos estabelecessem convivência.
Nesse texto, o Dr. Virgílio de Aguiar demonstrava de forma
consubstanciada a compreensão de sexualidade colocada para homens e
mulheres nesse momento. Ao entender que os homens possuíam um
apetite sexual aguçado pelo corpo “pecaminoso” das mulheres, o autor
mostrava o pensamento corrente sobre as hierarquias de gênero acerca
da temática da sexualidade, e também da violência. Aos homens, a
licenciosidade sexual era algo natural, embora devesse ser controlada
pela sociedade moderna, enquanto que a sexualidade feminina era algo
restringido e omitido, aparecendo apenas quando relacionada à
maternidade, que seria a principal função dessa sexualidade.
Tal médico, ao expor suas disposições quanto ao feminismo,
somava-se aos discursos científicos e religiosos que construíam a

177
AGUIAR, Virgílio. “Esculapianas”, Revista Ceará Médico, Fortaleza, nº 7, p.
15-19. 1935. Nesse texto, escrito na sessão “Esculapianas” da revista, o médico
conta uma história de quatro mulheres que quiseram compor a tripulação de
uma expedição científica para o vale do Amazonas no norte do Brasil. O médico
concorda com a atitude do oficial da tripulação, o Capitão Iglezias, em negar a
presença das quatro mulheres na tripulação, porque segundo sua defensa, a
presença das quatro “Evas” supostamente alteraria a harmonia entre os
tripulantes. Despertando a libido dos homens da expedição a presença feminina
em uma ambiente como o navio serviria apenas para trazer discórdia e
atrapalhar os objetivos científicos da empreitada. É a partir dessa história, que
não apareceu esclarecida se se tratava de uma história real, o clínico articulou a
sua crítica ao feminismo esboçada acima.
232

violência sexual como profundamente marcada por uma inquirição


receosa das vítimas, em que estas deveriam aparecer sempre como seres
recatados em termos comportamentais, pois supostamente carregavam
consigo uma disposição natural de atiçar o “pecado” e a libido
masculina. Nesse sentido, o meu interesse em pensar a partir da análise
desses discursos médicos foi entender de que modo eles se somaram à
construção de um discurso sobre a violência sexual na capital cearense.
Essas construções físicas e simbólicas de gênero, que eram respaldadas
pelo conhecimento produzido e reproduzidos pelos médicos e
higienistas da capital, foram fundamentais na compreensão da própria
ideia de violência sexual no interior desses processos. Tais
compreensões influenciaram as interpretações dos representantes da
justiça atuantes nessas ações criminais, construindo por sua vez, um
discurso idealizado sobre a vítima de crime sexual, como foi
problematizado no tópico anterior.
O corpo das mulheres e meninas vítimas dos crimes aqui
estudados era examinado a partir de uma perspectiva que buscava
preservá-los como portadores de um bem social que deveria ser cuidado:
a potencialidade da maternidade. Esse conceito era concomitantemente
construído com a ideia de uma infância que precisava ser preservada e
zelada desde antes do nascimento, e que essa função zeladora cabia
primordialmente às mães. A proteção à infância começava no corpo e na
disciplina das mulheres, como pôde ser observado no apelo dos médicos
para realizarem acompanhamento pré-natal. Daí a importância em se
disciplinar o sexo e as sexualidades desviantes, que eram vistas como
disseminadoras de doenças e causas de degeneração social. As práticas
sexuais não sadias, entendidas como aquelas baseadas nos “excessos” e
realizadas fora do casamento, assim como a aquisição de doenças
venéreas, eram vistas pelos médicos da capital como profundamente
ameaçadoras do “corpo social”.
Esses elementos nos fazem refletir a forma como as
compreensões de violência estavam marcadas por relações de gênero, e
também, como a perspectiva de preservação do corpo dessas meninas
estava marcada por expectativas de gênero. Prestar assistência às
menores vítimas de violência significava salvaguardar um crescimento
seguro para essas menores, mas também, significava garantir a
preservação de um corpo que no futuro precisaria estar saudável para
cumprir sua atividade considerada mais sublime: a maternidade. A
233

própria representação da sexualidade infantil, apresentada nos relatos


dos processos criminais, demonstrava uma perspectiva que associava a
capacidade e os desejos sexuais com a capacidade reprodutiva. Os
discursos que tendiam a automatizar a relação entre infância e inocência
sexual se coadunavam àqueles que demarcavam a sexualidade como
algo referente à reprodução, e consequentemente, com uma norma
heterossexual de sexualidade.
Por fim, foi possível concluir que a atuação dos médicos na
interpretação dos crimes sexuais esteve profundamente assinalada por
hierarquias e expectativas de gênero que norteavam a atuação desses
clínicos. Durante a avaliação do corpo dessas menores pode-se observar
a mobilização de procedimentos que analisavam esses corpos a partir de
uma perspectiva que via as mulheres essencialmente marcadas pela
maternidade. A partir de um olhar de gênero, pode-se perceber que a
infância e a maternidade eram conceitos que se articulavam em uma
simbiose que construíam discursos sobre a violência e a vítima de crime
sexual.

4.4 ESQUADRINHANDO AMBIENTES E RELAÇÕES


FAMILIARES: QUEM ERAM AS VÍTIMAS DE CRIME
SEXUAL?

No caso de Astrogilda Burritte em 1924, a maior parte dos relatos


que se referiram ao momento da sua ofensa expuseram o fator de a
ofendida se encontrar sozinha em casa, e por isso ter recebido o acusado
e mantido relações sexuais com ele sem a salvaguarda de nenhum
parente. A justificativa para encontrar-se sozinha, também exposta pelos
testemunhos que depuseram no caso, se dava pela circunstância de que
sua mãe estaria trabalhando com a venda de doces e café em frente ao
Teatro José de Alencar, no centro da capital. Apesar de nesse processo
não constarem nem a queixa e nem o depoimento realizados pela mãe da
vítima, muitos dos testemunhos solicitados afirmaram que Astrogilda
encontrava-se sozinha em casa, pois no dia do ocorrido sua mãe
mantinha a rotina de trabalho de frente ao teatro. José Rodriguez da
Graça – 30 anos, solteiro, artista, residente em Fortaleza, sabendo ler e
escrever – chamado a testemunhar sobre o que sabia do caso, afirmou
tanto esse fator, como também o de que tomara conhecimento do
234

acontecido pela própria mãe da menor no lugar em que esta trabalhava.


Disse:

(...) que em um dia de um dos meses do anno


passado, o depoente soube que a ofendida havia
sido deflorada por Leôncio Pereira Lima; que
deste fato soubera defronte do teatro José de
Alencar, contado pela mãe da offendida, quando
ali se achava em serviço de sua profissão, que é
de vendedora de doces e café (...).178 (grifos
meus)

O zelo da “honra” de Astrogilda parecia estar exclusivamente sob


a responsabilidade de sua mãe, pois em nenhum momento dos
depoimentos e pareceres de promotores e juízes a figura do pai ou de
outro familiar apareceu, ou fora mencionado durante o processo. Mãe
solitária – ideia que pode ser percebida pelas várias afirmações de que
Astrogilda vivia apenas em companhia materna -, mãe e filha viviam
dos “quitutes” que eram vendidos no centro da cidade. Dona Rosa,
apareceu nesse processo como uma mãe que cuidava da filha com
esmero, e trabalhava duro para prover o sustento de ambas. Ela não era a
única mãe de meninas e moças ofendidas sexualmente que se encaixava
nesse perfil de mulher pobre e trabalhadora.
No caso de Maria da Conceição em 1931, no momento em que
acontecera o estupro do qual foi vítima, sua mãe e “responsável”
também se encontrava trabalhando. Cotidianamente indo à cacimba que
ficava longe de casa para realizar seu trabalho com lavagem de roupa,
Maria Pedra da Conceição, tal qual o caso anterior, também apareceu
como a única responsável pela menor. Como uma forma de explicar a
sua ausência quanto aos cuidados da ofendida, por esta permanecer
sozinha em casa, Maria Pedra declarou no seu primeiro parecer no
processo que:

(...) estava batendo roupa em uma cacimba que


fica distante de sua residência, quando foi
avisada (...) de que sua filha menor de nome
Maria, (...) se dirigia para onde ella depoente se
encontrava batendo roupa (...) Que sua filha

178
(APEC) Nº 1924/01. Auto de declaração das testemunhas. p. 43
235

ofendida tinha ficado sosinha em casa, pois,


que é filha única da depoente e tem onze annos
de idade (...)179. (grifos meus).

Segundo o relato de Maria Pedra, sua filha não tinha outra pessoa
com quem conviver enquanto a mãe trabalhava, e por ser filha única não
poderia contar nem com a companhia de outros irmãos e irmãs. A
preocupação da mãe em justificar os motivos de sua ausência no
momento do crime se alinhava aos preceitos de maternidade que se
reforçavam na sociedade brasileira nesse período, em que o trabalho
feminino e a maternidade eram apresentados pelos discursos jurídicos,
mas principalmente, médicos, como questões conflituosas e, às vezes,
como oposições. Nesse sentido, baseado nas definições idealizadas pelas
elites brasileiras, as mulheres trabalhadoras e/ou pobres seriam
entendidas como mães potencialmente fora desses modelos de
maternidade ideal, pois não se encaixavam nos ideais de mulher que
tinha a casa como ambiente principal de atuação.
A idealização da figura materna se focava na imagem da boa mãe
dedicada exclusivamente ao ambiente doméstico e aos cuidados da
prole. No entanto, no decorrer dessas ações, muitas meninas ofendidas
estavam inseridas em arranjos familiares bastante distintos daqueles que
eram idealizados pela norma burguesa de organização familiar. Meninas
que viviam exclusivamente com as mães, ou com outras (os) parentes –
como tias (os) e avós – apareceram nesses processos de forma bastante
recorrente.180 Embora seja demarcado como um elemento importante
para as mães pobres, a questão do trabalho aparecia como um tema
conflituoso para essas mulheres, pois de algum modo impedia a
dedicação exclusiva aos cuidados das(os) filhos. Como afirmou a

179
(APEC) Nº 1924/01. Auto de declaração das testemunhas. p. 10.
180
A pesquisa da historiadora Sílvia Arend, Histórias do Abandono: infância e
justiça no Brasil (Década de 30) mostra a diversidade dessas configurações
familiares que marcavam os populares no início do século XX. A não adequação
com os modelos burgueses, assim como outras concepções de vivenciar as
relações familiares, apareceram em grande parte dos arranjos familiares das
famílias que tiveram os menores incluídos no programa de “colocação familiar”
na década de 30, na cidade de Desterro, atual Florianópolis. Esse perfil não era
privilégio de Santa Catarina, mas podia ser identificado em outras cidades
brasileiras, como em São Paulo, Rio de Janeiro e Santo Antônio de Jesus na
Bahia. Ver: (ESTEVES, 1989; SOIHET, 1989; LESSA, ANO 2007).
236

historiadora Rachel Soihet ao se referir às mulheres representadas nas


obras de Machado de Assis no Rio de janeiro, as feminilidades ideais
estavam extremamente relacionadas à relação maternidade-trabalho.

De modo geral, os trabalhos exercidos pelas


mulheres não lhes possibilitava qualquer
promoção social, o que deveria se concretizar
através do casamento. Era o casamento na época
que deveria garantir ao sexo feminino
reconhecimento e posição social o que se
confirma nas mulheres representadas por
Machado. E assim, o casamento para a mulher
estava no mesmo nível da profissão, carreira ou
riqueza para os homens, manifestando-se como
forma legítima de ascensão social. (SOIHET,
1989, 121)

Guardando as devidas proporções espaciais sobre a afirmação


dessa autora, é pertinente afirmar que a tensão colocada para a
necessidade do trabalho e a dedicação ao cuidado do marido e das(os)
filhas(os) marcou profundamente as indagações colocadas para as mães
das ofendidas no decurso dos processos. Diferentemente das mulheres
destacadas por Machado de Assis, para muitas mulheres pobres o
casamento não era sinônimo de melhoria social, já que o labor dessas
mulheres em inícios do século era fundamental na garantia do sustento
familiar. Trabalhando majoritariamente em atividades que não
representavam possibilidade de ascensão social e que eram de baixa
remuneração – como lavadeiras, engomadeiras, domésticas, vendedora
de doces, dentre outras – as muitas mulheres que apareceram nesses
processos como mães das vítimas ocupavam-se durante grande parte do
dia na realização de diferentes atividades como forma de conseguir
dinheiro.181

181
Embora assumindo valores diferenciados, pois as mulheres pobres exerciam
atividades de baixa remuneração e de pouca possibilidade de crescimento
econômico, é importante destacar que muitas mulheres de classe média e de
classes mais abastadas realizavam atividades profissionais, até mesmo pelas
possibilidades diferenciadas de educação. Como destacou o historiador Mário
Martins, com o crescimento material de Fortaleza nos anos 20 e 30, as mulheres
passaram a ocupar, aos poucos, atividades que até o século XIX eram exclusivas
237

Como pôde ser observado nos casos de Maria da Conceição e


Astrogilda Burritte, muitas mães – em especial as que não tinham outro
parente para dividir as despesas familiares – deixavam os filhos
sozinhos durante a maior parte do dia para manterem suas atividades
laborais. É possível cogitar que a vizinhança tivesse papel importante no
compartilhamento do cuidado das crianças, o que poderia ser facilitado
pela própria aproximação existente na construção das casas populares
nesse momento. Compartilhando quintais e paredes é possível pensar
que a vizinhança assumisse, em parte, a função de “olhar as crianças”,
enquanto algumas de suas responsáveis seguiam para as atividades de
trabalho. No caso de Maria da Conceição esse elemento foi bastante
perceptível, pois nos momentos seguintes do crime, um grande número
de vizinhos apareceu para ajudá-la, após ouvirem os gritos de socorro.
No caso das meninas Eunice e Tereza em 1936, muitos desses
elementos foram explorados nos debates e pareceres realizados no
processo. Ao prestar declaração na delegacia, a mãe das menores,
senhora Maria Honorata da Silva – viuva, 31 anos, lavadeira e
engomadeira de roupas, vivendo em uma casa na beira da praia do
Pirambu – contava não apenas como se deu o crime contra suas filhas,
mas também, a situação de pobreza em que se achava. Detalhando o
ambiente onde morava, Maria Honorata buscava explicar o porquê de
suas filhas terem sido raptadas de dentro de sua casa, mesmo diante de
sua presença. Além desse fator, seu relato destacava o esforço exercido
pela mãe para garantir o sustento de seus filhos. Os elementos expressos
no depoimento de Maria Honorata apresentavam diferentes questões que
perpassavam a vivência de muitas mulheres pobres da cidade, expondo

de exercício masculino, tais como o direito, a medicina, a odontologia e a


farmácia. Como expressou esse pesquisador, nem sempre a ocupação das
mulheres esteve marcada exclusivamente pelos trabalhos ditos de “extensão”
das atividades domésticas ou mesmo limitada ao espaço doméstico, mas aos
poucos, de forma lenta e pontual iam sendo rompidas junto com o próprio
desenvolvimento econômico vivido pela cidade. Essa questão é importante, pois
desconstrói uma perspectiva que pensa as mulheres de classes mais abastadas
como mulheres que viviam exclusivamente no ambiente familiar reforçando os
estereótipos de gênero; ao mesmo passo, que reflete como o trabalho assumia
valores diferenciados na vida de mulheres ricas e pobres, pois para estas
relacionavam-se muito mais a uma necessidade de sobrevivência do que a uma
atividade de escolha pessoal. (VIANA JUNIOR, 2009, p. 72-73)
238

os vários impasses de conciliar o cuidado dos filhos com as atividades


laborais para o provimento da família.182 Afirmou:

(...) que é viúva pobre, mas honesta, vivendo do


seu trabalho de lavagem de roupas, do qual tira
o sustento de seus filhos, sendo duas meninas, e
quatro meninos, que mora em um casebre de
um simples compartimento, mas de sua
propriedade; que sua choupana é coberta de
zinco, com a frente para o sul, tendo as paredes da
frente, nascente e poente tapadas de taipa e a do
norte, de flandre, que o casebre não tem
segurança pois era quanto á porta da frente é de
madeira, com dobradiças e ferrolho, a de detraz,
dos fundos, é uma folha de zinco, que a
declarante, quando foi dormir, prendeu no flandre
da parede e escora, por fora com uma forquilha,
depois do que fecha a porta de ferrolho e vai
dormir com os seus filhos; que sábado ultimo,
dia 20 do findante mês, tendo chegado á noite,
da casa de sua patrôa, onde tinha ido deixar
roupas, fez janta para seus filhos e depois os
deitou, já sendo 22 horas mais ou menos; que
estando com muita dor de cabeça e achando-se
cansada fechou as portas, como nos outros dias,
tomou uma capsula e foi dormir; que dormiu
sem nada lhe interromper o sono, até meia noite;
que a esta hora acordou porque sentiu o pé de um
dos seus filhos bater em sua cabeça; que nada
percebeu de anormal, até meia-noite, julga ter sido
pelo facto de ir assim tarde, cançada (sic.) e
aliviada da dor que estava sentindo na cabeça
quando foi deitar, pois a declarante, mesmo
porque nota a falta de segurança da sua casa
acorda repetidas vezes na noite; que tendo
acordado á meia noite, aproximadamente, notou
que faltavam nas redes as suas duas filhinhas, as
quaes chamam-se – Thereza e Eunice Lopes da

182
Embora essa informação não apareça clara nos relatos e pareceres desse
processo, a mãe das ofendidas parecia deixar os filhos sozinhos durante todo o
dia em que se encontrava trabalhando, só os vendo durante o período da noite.
239

Silva, (...) que a porta dos fundos estava aberta, e


a forquilha que serve de escora, encostada á
parede de flandre; que a declarante, então alarmou
pedindo que lhe acodissem (...)183.

O cansaço, as dores, o ambiente apertado e inseguro apareceram


retratados no relato de Maria Honorata como forma de mostrar as
dificuldades passadas pela família, mas também, como tentativa de
demonstrar o esforço que fazia para viver honestamente do fruto de seu
trabalho e de ser uma boa mãe.184 Marcar a sua condição de viúva e
trabalhadora, significava afirmar que mesmo na ausência de um marido,
era uma mulher “honesta” e esforçava-se por ter uma vida honrada. A
situação de viuvez para Maria apareceu como mais um encargo vivido
por essa mulher, pois arcava sozinha com seu sustento e de seus seis
filhos. 185
Para além das distinções de classe que envolvia a vivencia da
viuvez, quando analisamos sob uma perspectiva de gênero, a ausência
do marido era vista com desconfiança pelas autoridades policiais e pelos
representantes jurídicos. Estar viúva, muitas vezes, poderia significar
para as mulheres pobres entrar em uma vida de desonestidade como, por
exemplo, viver da renda da prostituição. A importância de ter um
homem como fator de garantia moral era elemento bastante reforçado
183
(APEC) Nº 1936/02. Auto de declaração das testemunhas. p. 13 e 14
184
Embora nessa documentação não se tenha registrado nenhuma retirada de
menores das famílias em que pertenciam – mesmo quando a conduta dos pais e
responsáveis não se alinhavam às condutas desejosas para os cuidados das
crianças – como aconteceram em outros lugares do Brasil, o medo de alguma
forma de punição por parte das autoridades era questão bastante percebida nos
depoimentos dos familiares que compuseram esses processos. A preocupação
por afirmar que os infantes e os adolescentes estavam em bons cuidados, e que
os seus responsáveis faziam o possível para mantê-los sob “bons costumes” é
algo bastante demarcado nas narrativas dessas ações.
185
A viuvez das mulheres é um tema que precisa ser pensado historicamente, de
forma complexa e situacional. Na Fortaleza de inícios do século, embora
pudesse simbolizar um estado em que as mulheres gozavam de mais liberdade –
como ficou evidenciado no trabalho de Mário Martins, ao destacar que as
mulheres viúvas das classes médias e abastadas tinham mais autonomia em
gerenciar os bens materiais familiares depois da morte dos maridos; para o caso
de mulheres pobres, a situação de viuvez poderia significar encargos maiores de
responsabilidades familiares. (VIANA JÚNIOR, 2010, p. 06)
240

quando se questionava as condutas femininas nesse momento. (SOUSA,


1997, p. 75) Essa questão aparece como fundamental para
problematizarmos a preocupação de Maria Honorata em afirmar que
vivia honestamente apesar de sua condição de viúva, assim como
também apareceu nos depoimentos realizados pela vizinhança e que
buscavam reforçar sua versão. Maria do Carmo Vieira Sampaio,
conhecida por “Carminha” – 23 anos de idade, casada eclesiasticamente,
residente no Pirambu, sabendo ler e escrever – no momento de sua
declaração na delegacia, destacou:

Que conhece a viúva Maria Honorata, que vive


honestamente de lavagem e engomados. Mora
no Pirambú, onde também mora a depoente; Que a
mesma tem entre outros, duas filhinhas: uma de
nome Terêza ou Terezita de seis (6) anos, e outra,
Maria Eunice de 5 (cinco) anos; que a mesma
cria os filhos muito bem (...)186

Por se tratar de um caso que envolvia crianças muito pequenas,


um dos elementos centrais da condução do processo foi um olhar
acurado sobre a honra da mãe das menores, questão que esteve
registrada em vários depoimentos e pareceres do inquérito policial e da
ação judicial. Neste caso, o papel da vizinhança foi central para se
afirmar a boa conduta de Maria Honorata. Como assinalava o
depoimento de “Carminha”, demonstrar que a mãe cuidava bem das
filhas(os), assim como demonstrar que vivia de trabalhos honestos, foi
fator importante para fundamentar o encaminhamento da ação, e
perpassou a maior parte dos inúmeros depoimentos desse processo.
Foi bastante comum que a honra das mães ou das mulheres que
faziam parte da família da vítima fosse discutida durante a ação. Afirmar
que a mãe, a tia e a avó eram reconhecidamente desonestas e que davam
“maus ensinamentos” às menores, era também argumento
recorrentemente utilizado como forma de macular a imagem da vítima e
sugerir que esta não era tão honesta, a exemplo das parentas. 187 Quando
se referia a meninas e mulheres com mais de 16 anos, a avaliação da

186
(APEC) Nº 1936/02. Auto de declaração das testemunhas. p. 56.
187
Como já fora destacado no trabalho de Marta Abreu, a preocupação com os
ambientes em que estavam inseridos os envolvidos em crimes sexuais era
elemento importante de avaliação das condutas.
241

conduta sexual – visto como sinônimo de “honra” – era fundamental nos


processos de violência carnal. Particularmente quando as violências
tratavam de vítimas muito jovens – cuja violência era tida como
presumida – foi possível observar que a inquirição do comportamento
sexual das mães e das mulheres da família era metodologia investigativa
recorrente utilizada por delegados, juízes, advogados e promotores. Em
alguns momentos desses processos, observar a vida e os afazeres da mãe
e das mulheres que faziam parte da parentela das menores passava a ser
o elemento principal da investigação.
Na declaração realizada por José Sodoma no inquérito policial,
este afirmava que a mãe e a tia ensinavam prostituição à menina Anna
Elias. Disse que a menor o teria dito que:

(...) sua tia, irmã de Pereira, e que mora um pouco


adiante da Cachoeirinha, e em companhia de sua
mãe – a velha Francisca Zuniba, foi quem lhe a
ensinou a ter relações com os menores, no
caminho da Escola, e que a mesma mandava que
ella Naninha, andasse com um menino,
enquanto ella, sua tia, andava com outro, que
era esse último filho do prêto da quitanda da
Cachoeirinha, o qual dava mil réis (1000), e mais
a caixa de pó e outros agrados (...).188 (grifos
meus)

Essa questão também pôde ser observada no processo de crime de


Estupro contra a menor Maria Izabel em 1937. Perguntado pelo curador,
a testemunha sugerida para a defesa do acusado José Ângelo, chamado
Francisco Alves de Oliveira – 38 anos, casado, vigilante, sem saber ler e
escrever, natural de Quixadá – falava sobre a conduta da tia que
convivia com a menor. Disse que:

(...) antes do facto denunciado, nunca ouviu falar


de mal da conduta da ofendida (...); que a
ofendida reside com uma tia, no calçamento, digo,
com uma tia entre a Floresta e as oficinas do
Urubú, tia esta que é falada como meretriz; que
dizem que dita menor foi creada por uma avó

188
(APEC) Nº 1931/04. Auto de declaração das testemunhas. p. 45.
242

bem como por essa tia, com quem vive ainda


hoje; que em virtude do mal proceder da tia de
Maria Izabel, o respondente já ameaçou de
expulsá-la (...). 189 (grifos meus)

A testemunha de defesa do réu, apesar de afirmar nunca ter


“ouvido falar” de nenhum mau comportamento da vítima, afirmava que
sua tia, a quem alugava o lugar que moravam, era mulher reconhecida
pelo mau procedimento. Essas afirmativas foram feitas como forma de
elaborar suspeitas sobre a conduta moral e sexual da própria menor. A
indagação sobre os comportamentos das parentas da ofendida foi
questão de grande valia para tentar manchar a própria honra das vítimas,
e foi recorrentemente utilizado por aqueles que construíam as defesas
dos réus. Utilizando-se desses e de outros depoimentos das testemunhas
de defesa, o advogado do acusado emitia seu parecer, afirmando:

Aí está a bela companhia com quem Maria Izabel


permanece, (ilegível) reprovável é o
procedimento dessa tia da menor, que, morando
em terrenos da testemunha, quer esta expulsá-la,
certamente pelo escândalo que vive tal mulher.
Como então, permanecendo num ambiente
assim, poderemos afirmar que sua corrupção,
da ofendida, não se operou sob o influxo
deletério da má educação que recebeu? (...) 190

Além de exprimir as relações de poder entre os populares, que


costumeiramente demonstravam um olhar vigilante sobre a conduta das
mulheres, em especial, as que viviam sem presença masculina; a
preocupação com o ambiente em que as vítimas estavam inseridas era
relevante para as autoridades médicas e jurídicas como forma de
avaliação dos cuidados que eram oferecidos pelos pais, mães e
familiares a essas menores. Como vimos no primeiro capítulo, a
preocupação por parte do pensamento jurista positivista com a
influência que os ambientes exerciam na formação das pessoas
degeneradas, ativava os preconceitos e hierarquias sociais, de raça, e de

189
(APEC) Nº 1937/01. Auto de declaração das testemunhas. p. 64-65.
190
(APEC) Nº 1937/01. Parecer do advogado de defesa. p. 112-113.
243

gênero que constituíam as relações sociais das muitas cidades em


desenvolvimento no início do século XX.
Quando pensamos a violência como um construto histórico, é
possível afirmar que o processo educativo materializado nesses
ambientes jurídicos não só reafirmavam distinções sociais, como
também, construíam discursos hierarquizantes sobre o tema do sexo e da
sexualidade.
Mais afrente do processo, o mesmo advogado de defesa,
ponderando o valor de verdade que deveria ser dado às falas das vítimas
de crime sexual, afirmava que estas, tinham também muito a ganhar
quando lançavam acusações sobre os réus, principalmente quando se
referiam a homens “distintos”, como era o seu cliente. O advogado,
opondo-se ferozmente à formação da culpa apresentada no inquérito
policial e à acusação elaborada pela promotoria, demonstrava grande
parte das hierarquias sociais que interpelavam a inquirição sobre as
condutas dessas vítimas. Disse:

Por aí se conclue da desonestidade das pesquisas


policiais, agindo de pleníssima má fé, pois o fato
de ter estado uma cabocla na casa de alguém não
poderia determinar suspeita alguma, máxime
atendendo-se para que, dada a promiscuidade
da creação dessa gentinha de condição inferior,
raras são as caboclas, na capital sobretudo, que
conservam a sua virgindade (...).191 (grifos
meus)

Nas páginas seguintes, criticando a fala do promotor – que teria


afirmado que a acusação de uma ofendida, somado a um laudo médico
eram suficientes para estabelecer um inquérito investigativo -, dizia:
“que arma perigosa se colocaria às mãos de nossas girls morenas, de
nossas caboclas viçosas, si se arvorasse em doutrina o pensamento
insólito do doutor Promotor de Justiça!”. Novamente, a caboclice
somada à condição de ser mulher e empregada doméstica, como era o
caso de Maria Izabel, era construída discursivamente como
desqualificações que relativizavam a própria ideia de violência.
Nesse sentido, a vítima de crime sexual deveria “provar” que
tinha o direito de ser protegida pela justiça. Essa prova deveria estar
191
(APEC) Nº 1937/01. Parecer do advogado de defesa. p. 116.
244

devidamente costurada e creditada com os ditames sociais, raciais e de


gênero que dominavam a linguagem e os procedimentos jurídicos nesse
momento. Relembro aqui a preocupação por parte desses discursos
oficiais em difundir os ideais de feminilidade, masculinidade e de
organização familiar que se buscavam no início da república brasileira.
Médicos e representantes da justiça empenhavam-se em indagações
sobre os elementos que se referiam a essas questões.
No corpo de delito efetuado na menor Tereza, de seis anos de
idade, realizado na presença da mãe, os médicos-legistas destacavam a
condição de doente que marcava a constituição física da menina.
Ressaltaram que:

Tereza Lopes da Silva, parda, brasileira, cearense,


com seis anos de idade, residente na Praia do
Pirambú. A paciente é de constituição fraca,
raquítica e de aparência doente. Informa a sua
progenitora que a noite passada de 28 para 29 do
corrente mais ou menos ás 23 horas, ao despertar,
notou que a porta de sua casa se achava aberta;
levantando-se para fechal-a notou, com sua
surpresa a ausência de suas duas filhas menores.
(...)192 (grifos meus)

A “aparência de doente” afirmada pelos médicos legistas que


cuidaram do caso foi destacada tanto em Tereza como em sua irmã
Eunice. Demarcar esses elementos no momento da realização do exame
significava demonstrar o nível de violência vivido pela menor, mas
também, operar um discurso educativo sobre a própria mãe das vítimas.
Afirmar a ideia de criança bem nutrida, limpa e de boa aparência como a
idealização de saúde que era disseminada para os infantes por esses
profissionais na cidade, significava inquietar a própria percepção de
maternidade materializada na vida de Maria Honorata.
No caso de Sebastiana Nilce, além dos aspectos que refletiam a
conduta da mãe e da irmã que conviviam com a menor, alguns dos
relatos dos representantes da justiça destacavam o ambiente familiar
“promíscuo” em que esta viveria. O promotor de justiça do caso, Dr.
Hélio Caracas, ao elaborar a denúncia contra o acusado destacava essa
questão. Alertar quanto à promiscuidade do lar que vivia a ofendida foi

192
(APEC) Nº 1924/01. Auto de corpo de delito. p. 8.
245

uma forma encontrada pelo promotor de reforçar o modelo de família


defendida pelos representantes da justiça:

Morava o indiciado no Arraial Moura Brasil, nesta


cidade, em companhia de seu irmão Antonio
Fructuoso da Silva, soldado, o qual vivia, como
ainda vive, em concubinato com Maria Alves
Vieira, irmã, por sua vez, da victima,
SEBASTIANA NILCE VIEIRA, menor, de oito
(8) annos de idade (...) Valendo-se da
promiscuidade existente no lar illegitimo, do
qual ainda fazia parte Maria Angélica do Paraizo,
progenitora de ambas, o accusado, FRANCISCO
FRUCTUOSO DA SILVA, sob o amparo da noite
que lhe serviu de cumplice, attrahiu, certa vês, a
menor SEBASTIANA NILCE VIEIRA (...) 193.
(grifos meus)

Como destacou a historiadora Sílvia Arend, nesse momento no


Brasil a reelaboração da figura da criança em moldes burgueses estava
diretamente relacionada a diferentes alterações nas normas familiares.
Exemplo disso foi a demarcação das “funções” que caberiam a homens
e mulheres no seio familiar, e também, das necessidades específicas da
criança. Afirmou que:

No plano das práticas e dos valores, esse arranjo


familiar caracteriza-se: pela composição pai, mãe
e filhos; pela presença do amor romântico entre os
cônjuges; pela existência do amor materno e
paterno em relação aos filhos; a criança e o jovem
passariam a ser considerados como seres em
formação que necessitam de cuidados materiais e
afetivos; a sexualidade do casal deveria ser
pautada pela prática da monogamia e pelo
heteroerotismo. (AREND, 2011, 92).

Nesse sentido, afirmar a “promiscuidade” vivida no ambiente


familiar de Sebastiana Nilce foi uma forma encontrada pelo promotor de

193
(APEC) Nº 1931/01. Denúncia do Promotor de Justiça. p. 02. O sublinhado
do texto é próprio da fonte original.
246

reafirmar esses valores burgueses de organização familiar e estabelecer


uma comparação com a realidade que vivia sua família. Esses discursos
foram diretamente conflitados com muitas das situações familiares
encontradas nesses processos. A ausência da figura paterna ou a
presença de pais que tinham papel secundário da administração da
família194; a presença das mães como provedoras; lares compostos por
diferentes pessoas da parentela – cunhados(as), primos(as), tios(as),
avós(ôs) –; crianças que trabalhavam para auxiliar no próprio sustento e
no sustento da família; dentre outros fatores, apareceram de forma
conflitante com os discursos burgueses que eram defendidos por
médicos e representantes da justiça cearense.
Rosa, Maria Pedra e Maria Honorata são exemplos de mulheres
pobres e trabalhadoras que cuidavam sozinhas das filhas e dos filhos. O
uso estratégico da mãe dedicada e esforçada era uma forma encontrada
por essas mulheres de não serem responsabilizadas pelas violências
sofridas pelas filhas e filhos, de garantirem que o caso fosse
devidamente apurado, e de se esquivarem dos juízos de valor que
recorrentemente eram direcionados as suas pessoas. Além de
sobreviverem, no geral sem a ajuda aparente de outros familiares, essas

194
Um exemplo de pai que apareceu como compositor do ambiente familiar,
mas que assumiu uma imagem absolutamente secundária diante do
protagonismo da esposa foi no caso de violência contra o menino Simphonio em
1922. Conhecido como o “cego Simphônio”, o pai do menor apareceu nos
relatos dos processos como um homem “inválido”, vivendo do trabalho da sua
esposa que em vários momentos tentou justificar o seu protagonismo com
relação à administração familiar e à mobilização da vizinhança para prestar
queixa na delegacia e levar o caso para a justiça. Afirmava que: “seu marido é
cego, e se acha adoentado, motivo por que mandou mandou (sic) a depoente
queixar-se à polícia, e (ilegível) que processasse o criminoso”. p. 09. A situação
de cegueira do pai do menor, também de nome Simphônio, pode ser explicada
como uma marca em consequência da varíola. Embora não exista uma
confirmação dessa informação no processo, sabe-se que muitas das pessoas que
sobreviveram à epidemia de varíola na cidade em fins do século XIX perderam
a visão em decorrência da doença. Em alguns casos, essas pessoas passavam a
ser estigmatizadas e também identificadas pela própria marca da sequela, como
no caso de Simphônio, que aparecia referenciado no processo como o “cego
Simphônio”.
247

mulheres precisavam demonstrar publicamente que cuidavam e zelavam


pela honra e pela saúde de suas filhas e filhos.195
Os depoimentos prestados por essas mulheres foram bastante
importantes na compreensão dos ambientes em que viviam as vítimas de
crime sexual e que representavam boa parte da vida das famílias pobres
da capital. Em casas pequenas, muitas vezes em áreas mais ruralizadas e
distantes da ideia de “desenvolvimento” que marcava o perímetro
central, a vida cotidiana das mulheres pobres – muitas delas chefas de
família – eram objetos de debate no decorrer das ações como forma de
construir discursivamente a imagem da vítima em questão.
No caso da menor Francisca Galdino de Sousa, menor de 9 anos,
conhecida como “Francisquinha”, que vivia em companhia da mãe e do
padrasto, muitos desses elementos foram discutidos. No decorrer desse
processo, a mãe da ofendida vira uma peça central de debate entre
testemunhas e representantes da justiça. Em 1937, ao ficar sabendo que
a menor “Francisquinha” teria sido vítima de estupro pelo padrasto,
Maria Raymunda efetuava uma queixa do ocorrido na delegacia da
capital, instaurando um inquérito policial contra Jorge Rodriguez Lima –
padeiro, 33 anos, sabendo ler e escrever. A mãe da menor ao ser
chamada a depor afirmou que o seu “amasio”, com quem vivia a três
anos, tentara violar sua filha enquanto se encontrava trabalhando na sua
“banca de frutas”.
Segundo a denúncia, o acusado teria praticado diferentes
“indecências” contra a menor em momentos anteriores, como “abraçar,

195
O protagonismo feminino na gestão de famílias pobres não fora
exclusividade da cidade de Fortaleza. Muitos trabalhos apontaram para as
lideranças de mulheres quanto às atividades familiares e subsistência dos filhos
no início do século, rompendo grandemente com os modelos de família das
elites do país, cuja figura paterna era relacionada ao espaço público, ao sustento
do lar e à defesa da família; muitas dessas mulheres, não apenas assumiam a
responsabilidade do cuidado dos filhos, mas também, eram de grande
importância no provimento da família. O trabalho de Raquel Caminha também
expõe as divergências cotidianas que culminaram na movimentação de crimes
de calúnia, injúria e ferimentos, em que as mulheres saíam em defesa da própria
honra e da honra da família. Denunciar as pessoas da vizinhança ou conhecidos
por ofenderem ou expressarem verbalmente alguma “injúria” à elas e às suas
famílias demonstrava, segundo a historiadora, uma forma de autonomia dessas
mulheres, e também, uma forma de defesa utilizada por elas. (ROCHA, 2011)
248

beijar e apalpar as partes genitaes da menor” 196. Depois de reconhecer


que Jorge Rodriguez já teria tentado duas outras vezes aproveitar-se de
sua filha, a mãe decidiu efetuar a denúncia. A terceira tentativa do
acusado – que mobilizou a queixa – teria acontecido na mata, no
momento em que a menor fora apanhar alguns galhos para “fazer fogo”.
Nesse momento, sua mãe estava no trabalho, pois passava o dia na
venda das frutas, enquanto o acusado, por trabalhar no período da
madrugada na função de padeiro, acabava por passar todo o dia na
companhia da menor, situação que teria possibilitado os momentos de
“imoralidades”. Segundo a denúncia do promotor de justiça:

Todos estes factos eram levados ao conhecimento


de Maria Raymunda do Carmo, pela própria filha,
que promettia sempre uma providencia e nunca
deu, talvez pelo receio de perder os amôres do
amante caprino, tornando-se por isso mesmo,
cumplice das tentativas de estupro, dada a sua
condemnavel inaccção (sic), na defesa da honra
da menor. 197 (grifos meus)

O corpo de delito realizado na menor, todavia, atestou que não


existia nenhuma marca de violação e que esta se mantinha virgem, e em
consequência desse fator, a denúncia passava de Estupro para Atentado
ao pudor. Esse elemento, somado às indagações de que Maria estava
sendo conivente com a atitude do amasio, passaram a ser centrais
durante o inquérito, fazendo com que a própria promotoria ao elaborar a
acusação, denunciasse tanto Jorge Rodriguez como tentador do pudor da
menor, como Maria Raymunda por cumplicidade do crime. A partir
desse momento, em que faltavam provas que atestassem “a
materialidade” da culpa de Jorge, a mãe passou a ser a principal
inquirida nos debates da ação. Sua conduta sexual, sua relação de
amasia, seu lar “imoral”, e sua péssima conduta maternal que
supostamente privilegiava os “amôres” do amásio em detrimento dos
cuidados da filha, passavam a ser principais temas de discussão.

196
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:
Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 03, Processo Nº 1937/03.
Parecer do Promotor de Justiça. p. 02.
197
(APEC) Nº 1937/03. Parecer do Promotor de Justiça. p. 02.
249

É importante perceber, que para os casos de violências sexuais, os


discursos que orientavam a interpretação da violência considerando o
ambiente familiar da ofendida, novamente, reforçavam a necessidade em
direcionar a responsabilidade da violência para o histórico da própria
vítima. Em muitos momentos, os componentes que marcavam o crime
eram secundarizados diante da relevância colocada para os sujeitos que
compunham essas ações. Nesse sentido, as mulheres que faziam parte
dos ambientes familiares dessas menores também passavam por juízos
morais sobre seus comportamentos, e recorrentemente tinham suas
condutas debatidas, podendo levantar suspeitas sobre a veracidade da
denúncia.
No caso de Francisca Galdino, o julgamento do ambiente e das
relações familiares na qual estava inserida, e principalmente, o debate
acurado sobre a conduta de sua mãe foram determinantes para a
desvalidação da denúncia. O acusado foi declarado inocente por falta de
provas, pois foi compreendido que se tivesse a intenção de corromper a
menor ou de estupra-la, o teria feito, já que dispunha de todas as
possibilidades para tal, como ficar constantemente sozinho com a
menor, e de ter superioridade em idade e força para fazê-lo. Como
concluía o promotor em segundo parecer:

Em face do exposto, sou inclinado a acreditar que


tudo resultou de uma scena de ciúmes da mãe
da menor, que era concubina de Jorge e tinha
interesse em não perder a sua amizade, como
affirmam as testemunhas. Levantando a
acusação contra Jorge, por meio de um ardil
miseravelmente architectado, a mãe da menor
visava com certeza prendê-lo ao seu amôr, tanto
mais procedente se se entender que, vivendo
ultimamente em desharmonia com a concubina, o
denunciado ia voltar ao convívio de sua esposa
legitima, como ele mesmo declara. (...)198

A conclusão da promotoria, que fora acatada pelo juiz que julgou


o caso, demonstrava o aspecto disciplinador que caracterizava esses
espaços judiciais. A sexualidade da mãe e seu comportamento amoroso
eram colocados como conflitantes com as condutas exigidas para uma

198
(APEC) Nº 1937/03. Parecer do Promotor de Justiça. p. 82 e 83
250

mãe atenciosa e que acima de qualquer questão deveria priorizar a


proteção das (os) filhas(os). Nesse caso, o conflito entre as idealizações
da mulher-mãe e da mulher que priorizava alguns aspectos da vida
pessoal, principalmente os relativos à sexualidade, costuraram a tônica
dos relatos e pareceres dos representantes da justiça.
Quando pensamos os discursos jurídicos e médicos sobre a
sexualidade das mulheres nesse momento, é possível observar que o
comportamento sexual idealizado era aquele que estivesse a serviço do
modelo de mulher-mãe. Como afirmou Jurandir Freire Costa, as
mulheres passaram a gozar de alguma liberdade sexual em fins do
século XIX e inícios do século XX, no entanto, essa “liberdade” estava
cerceada pelo matrimônio higiênico e pelo exclusivismo do marido, e
deveria ser cuidadosamente controlada em benefício da estabilidade
conjugal e da proteção à infância. (COSTA, 1983, p. 262) Nesse sentido,
a partir desses discursos, manter uma vida conjugal afastada dos
princípios higiênicos e que colocasse em risco a vida das filhas(os) era
uma das faltas mais graves que poderiam ser cometidas por uma mulher,
e que segundo a conclusão desse caso, teriam sido cometidos por Maria
Raymunda.
Além das figuras femininas que compunham o entorno familiar
das vítimas de crimes sexuais, e que apareceram problematizadas por
diferentes questões no cotidiano criminal, outro elemento importante
que perpassou esses ambientes, foi a figura do pai dessas vítimas.
Durante as ações, a ausência paternal, ou a impossibilidade por algum
fator da não participação dos pais nos autos judiciais, também foi algo
que pôde ser observado em vários dos casos que trataram de menores
ofendidas(os) sexualmente. Algumas das meninas ofendidas, como no
caso da própria Sebastiana Nilce em 1931, foram registradas pelos pais,
porém, na grande maioria dos casos, ou não foi possível saber
informações sobre eles ou as meninas e meninos viviam exclusivamente
sob a responsabilidade das mães, como visto anteriormente; além de
alguns poucos casos em que as meninas eram órfãs e viviam sob os
cuidados de outros familiares.
251

Imagem 5199

199
Na imagem 3, que corresponde ao registro civil da menor Sebastiana Nilce,
autenticado pelo Cartório João de Deus em 1931. Esse registro fora realizado
no decurso do processo criminal com o objetivo de afirmar a menoridade da
ofendida, e também, a responsabilidade civil sobre ela. A feitura de
documentação durante o processo foi uma prática que aconteceu em alguns
casos, pois alguns menores não possuíam documentação.
252

A imagem acima nos traz algumas informações importantes sobre


as relações familiares da menor Sebastiana Vieira Nilce. A primeira
delas é que a menina não possuía registro civil, atividade que acabou por
se realizar no decorrer do processo como forma de oficialização dos
responsáveis pela vítima, e também, da sua menoridade. A ofendida,
assim como sua irmã mais velha possuíam o mesmo sobrenome – que
era diferente do sobrenome da mãe – o que poderia indicar que eram
filhas do mesmo pai e que este, em algum momento de suas trajetórias
poderia ter se encarregado da paternidade. Porém, o pai – assim como na
maior parte dos casos aqui estudados – não foi mencionado em nenhum
momento durante processo. Desse modo, ao ser elaborado um registro
civil em 1931 para viabilizar o encaminhamento do processo, a menina
Sebastiana fora registrada exclusivamente pela mãe, Maria Angelica do
Paraizo.
Somente em uma minoria dos casos de crimes sexuais os pais
estiveram presentes como queixosos ou como pessoas que fizeram parte
do cotidiano familiar das vítimas. Parte disso pode ser explicado não
apenas pela simples ausência dos pais no ambiente familiar, mas
também, porque muitos dos pais buscavam outras formas de “resolver”
esse tipo de problema. No caso da menor Anna Elias em 1931, essa
questão apareceu colocada nos depoimentos de vários testemunhos. A
denúncia de Estupro, neste caso, só se materializou depois de o pai da
menor ter tentando por conta própria resolver a questão do estupro e do
rapto da filha. Antes de chegar ao conhecimento da polícia e da justiça,
o que só aconteceu semanas depois do seu desaparecimento, o pai teria
buscado encontrar Anna Elias, primeiramente com a ajuda de alguns
vizinhos, e posteriormente sozinho.200

200
É interessante pensar que a justiça republicana, assim como a medicina
higiênica, buscou adentrar os espaços domésticos como forma de disciplinar os
comportamentos das pessoas mais pobres, que eram vistas como ameaçadoras
da ordem burguesa que se construía no Brasil. Os processos criminais, nesse
sentido, precisam ser analisados de forma bastante cuidadosa, pois as queixas e
a solicitação da intervenção judicial nem sempre era marcada por um viés
autoritário de ação policial e judicial. No que se refere aos crimes sexuais, que
eram de foro privado, a queixa realizada por parte dos populares demonstrava
também que essas camadas viam na justiça uma possibilidade de resolução das
violências. Acredito que pensar também as possíveis motivações que poderiam
253

É importante lembrar que a questão da “defesa da honra”, que


muitas vezes era “limpa” com as próprias mãos, fazia parte da gama de
possibilidades da atuação dos homens que viram suas filhas e filhos
serem vítimas de crime sexual. Em dois processos aqui estudados – de
Lygia Bezerra em 1929 e de Anna Elias em 1931 – os pais das menores
antes de levarem ao conhecimento das autoridades a violência que as
filhas teriam sofrido buscaram por conta própria apurar o caso. Como
afirmava Noélia Sousa, a honra masculina na cidade de Fortaleza em
inícios do século XX estava diretamente relacionada ao controle da
sexualidade das mulheres de sua família. (SOUSA, 2010, p. 157)
Como aparece registrado em vários dos testemunhos do processo
de Anna Elias, após o rapto da menina, “Pereira”, como era conhecido,
iniciou uma busca nas redondezas do bairro onde moravam. Depois de
algum tempo de procura sem sucesso, e após tomar conhecimento de
que a menor teria sido levada para o interior do Ceará, o pai da ofendida,
segundo a maior parte dos relatos, teria viajado por diversas cidades do
interior em busca de sua filha. Vários vizinhos e ajudantes de busca
relataram essa atitude. Osório Pereira de Paiva – 35 anos, jornaleiro, não
sabendo ler nem escrever – declarou sobre isso que:

(...) de facto há alguns mêzes passados, já neste


anno, esteve ajudando a seu vizinho conhecido
por <Pereira>, a procurar a menina de nome
Naninha, que foi raptada pelo individuo conhecido
pelo nome de “José Lobato”; que Pereira andou
por muitos dias, pelo sertão, á procura da filha
até que José Lobato foi prêso e mandado para esta
Capital (...).201 (grifos meus)

O depoimento de outro vizinho, chamado José Elias da Luz – 29


anos, não sabendo ler nem escrever, agricultor nas terras que se

levar os populares a buscar o auxílio da polícia e da justiça para a resolução de


contendas cotidianas seja elemento que ainda precisa ser analisada de forma
aprofundada por parte da historiografia brasileira. Essa relação entre populares e
poderes policiais e judiciais não devem ser vistos apenas pela ótica da repressão
e da disciplinarização que marcou esse momento em várias cidades brasileiras,
mas também como lugares que representavam negociações complexas do
cotidiano.
201
(APEC), Processo Nº (1931/4). Auto de declaração das testemunhas. p. 33.
254

suspeitava ter sido a vítima violentada, e por onde o acusado teria fugido
em companhia da vítima – também apareceu de forma central na atitude
do pai em buscar a filha raptada:

Disse que de facto já em uma tarde deste anno, a


convite do então seu vizinho Ozorio Pereira de
Paiva (...) esteve procurando a menina de nome
“Naninha” filha do Sr. conhecido por “Pereira”
(...), e a qual acabava de ser carregada pelo
individuo conhecido pelos nomes de “José
Lobato” hospede do mesmo “Pereira”; que
seguiram a pista e vestígios deixados por José
Lobato e “Naninha” desde a Cachoeirinha até nos
carros velhos das officinas do R.V.C., no Urubú;
que encontraram pannos sujos, dentro de um
cercado, e reconheceram esses panno como sendo
de uma calça que “José Lobato” andava com ella,
que “Pereira” pae de “Naninha” andou por
muitos dias, pelo sertão, á procura da filha; que
“José Lobato”, foi prêso e mandado, do interior
para esta Capital juntamente com “Naninha”
(...).202 (grifos meus)

Ressaltando muitas das questões desse depoimento,


principalmente sobre o fato de Pereira empreitar-se na busca da filha, o
depoimento de José Ferreira Lima – 21 anos, solteiro e tecelão de
fábrica – traz algumas outras questões que foram interessantes sobre a
sociabilidade e as relações familiares em que poderia viver a menor em
questão, e também sobre a diversidade de versões desse caso. Disse que:

(...) há alguns mêzes passados certa tarde, pelas


13(trêze) horas, mais ou menos, estava na
quintanda do sr. conhecido por “Pereira”, quando
a mulher do mesmo o avisou de que sua filha
“Naninha”, acabava de fugir; que, a convite de
“Pereira”, esteve procurando “Naninha” (e José
Lobato, pois souberam logo ter sido este que a
raptara), – pela Cachoeirinha, floresta Urubú
Barro Vermelho; (...) que não os encontrando

202
(APEC), Processo Nº (1931/4). Auto de declaração das testemunhas. p.35-36.
255

Pereira andou pelo sertão, á procura da filha;


que, tendo sido elles presos no interior do Estado
e mandados para esta Capital, “Naninha” foi
entregue ao pae; que “Naninha” tem de 10 (dez)
para 11(onze) annos de idade; que José Lobato
vivia hospedado em casa do mesmo Pereira pae
de Naninha; que soube também que Lobato –
antes de furtar “Naninha”, roubou as roupas
da mesma; que José Lobato antes de raptar
“Naninha”, embriagou-se em casa de Pereira e
brigou com a mulher do mesmo.203 (grifos
meus)

A versão relatada por José Ferreira Lima, homem ajudante nas


buscas de “Naninha”, apresentou outros elementos sobre o fato do rapto
da menor. Embora em seu relato existisse concomitantemente a ideia de
rapto e de fuga – normalmente usados como ideias distintas nos demais
relatos -, a narrativa efetuada pelo depoente, reafirmou ser o raptor da
filha de Pereira alguém que convivia e transitava em sua própria casa, e
que poderia ter fugido com a menor pela própria vontade dela. Esta
versão estabelecia uma tensão entre a submissão e a vontade da vítima
diante do rapto. Esses fatores nos levam a lançar um olhar que busque
complexificar as experiências dessas(es) infantes e que ultrapasse as
ideias de que eram seres essencialmente inocentes, desprovidos de
vontade própria, e também, de qualquer tipo de desejo sexual.
Antagonizar autonomia e violência é construir uma perspectiva que não
faz jus as variantes que marcaram (e ainda marcam) as violências de
cunho sexual.
Como abordei anteriormente, pensar os limiares entre a violência
e a autonomia nessa tipologia de crime, que envolvem crianças e
menores de idade, foi um desafio bastante complexo, pois o estudo das
sociabilidades dessas crianças e adolescentes, a partir dos processos
criminais, nos leva a refletir, por exemplo, as outras várias
possibilidades de vivências e de violências que poderiam marcar a vida
desses menores.
Problematizando as disputas discursivas sobre a questão da
violência sexual, ao pensar sobre as diferentes relações de poder que
costuravam as narrativas das pessoas que compunham os processos

203
(APEC), Processo Nº (1931/4). Auto de declaração das testemunhas. p.38-39.
256

judiciais, foi possível perceber que além das hierarquias de gênero, de


classe e de raça que marcavam essas narrativas, as hierarquias entre
adultos e crianças também estiveram demarcadas nesses processos.
Foi bastante frequente – nos casos contra menores de idade – a
exposição nos depoimentos de que ao vivenciarem momentos de
violência, ou de praticarem alguma “imoralidade”, estes ressaltarem que
não comunicaram prontamente os familiares, ou mesmo não expuseram
as experiências de violência que tiveram por medo de serem
“açoitados”, agredidos ou castigados pelo pai ou pela mãe. A exposição
de maus tratos, agressões físicas e verbais, além de violações sexuais
por parte dos parentes apareceu, em alguns casos, expostas muitas vezes
de forma naturalizada, ou mesmo compondo as vivências relacionadas a
essas menores de idade.
A menor Maria Daniel, que só reconheceu que teria sido
violentada mediante o pedido de casamento de seu namorado Francisco
Terto, confessou a este que o motivo que a levou a permanecer em
silêncio foi o medo que tinha da reação de sua mãe. O namorado, ao ser
indagado na delegacia sobre a demora da vítima em denunciar o autor
do crime, disse que Maria Daniel “não commonicou ha mais tempo com
medo de sua mãe”204; elemento que foi explorado pelo Delegado Dr.
Faustino Nascimento no relatório do inquérito:

Tendo seu antigo namorado Francisco Terto da


Silva, há mais ou menos 8 dias lhe consultado se
queria casar-se com ele, respondeu-lhe
negativamente em virtude de ter sido deflorada há
mais ou menos dois mezes por Francisco José,
facto este que segredou por temer ser castigada
por sua mãe (...).205

O medo do castigo também pareceu nos relatos no menor


Francisco Simphonio, em 1922. A própria mãe do menor ao narrar o que
acontecera com o filho referia-se ao medo do Simphonio ao responder
as suas perguntas. Afirmou que “hontem, cerca das dezessete e meia
horas, chegou chorando em sua casa seu filho de sete anos de edade,

204
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:
Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 03, Processo Nº (1931/02).
Auto de declaração das testemunhas. p. 15
205
(APEC), Processo Nº (1921/02). Auto de declaração das testemunhas. p. 21
257

Francisco Siimphonio, e as perguntas da depoente, respondeu ele,


pedindo que não o açoitasse (...). (grifos meus).206 Os processos de
crimes sexuais que tiveram as (os) menores como vítimas foram fontes
bastante interessantes, pois nos permitem ter acesso às narrativas não
apenas sobre a violência que movia os depoimentos, mas também, sobre
o entorno das relações familiares e das sociabilidades em que estavam
inseridos.
O acusado “José Sodoma”, ao defender-se da acusação de Rapto
e Estupro, usou de uma narrativa que visava sensualizar a figura da
vítima, como vimos anteriormente, mas também, buscava indicar que
esta não fora raptada, pois havia decidido sair de casa por vontade
própria. Na narrativa apresentada pelo acusado – que somou mais de
quarenta páginas do processo – foi exposta detalhadamente uma versão
sobre as diversas situações de violências que a vítima teria vivenciado
em sua própria casa, e por isso decidido ir-se com ele para outro lugar.
As primeiras narrativas encontradas no seu relato se relacionaram às
experiências de violências sexuais que a vítima teria vivido antes de
conhecê-lo, o que justificaria não ser ele responsável pelo seu
desvirginamento. Disse:

(...) que Naninha informou mais ao declarante que


tinha sido deflorada pelo sobredito José Bidú (....);
que Naninha adiantou ainda que esse seu
defloramento têve logar em certa cacimba, onde
eles iam buscar agua; que Naninha informou
também que, José Bidú, a fim de fôrçal-a,
segurou-a pela garganta, de formas que ella
não podendo suportar tal apertão de garganta,
sujeitou-se a José Bidú e que ao chegar em casa
seu pae observou que ella se achava com a
garganta inchada, interrogou-a a respeito
dizendo ella que tinha sido uma dôr e que,
afora essa vêz em que a deflorou – José Bidu
têve pela segunda vêz, relações com ella, em
caminho do alludido “Grupo Escolar”; que
“Naninha” contou ainda que José Bidú têve
pela terceira (e ultima vêz), – relações com ella,
porém, por traz, isto é, pela veia anal,

206
(APEC), Processo Nº (1922/01). Auto de declaração das testemunhas. p. 09.
258

adiantando, ainda, que nessa occasião, ella não o


quis aceitar, pela frente, isto é, pela veia natural,
por estar gripada, e que devido á diarreia de que
estava atacada sujou toda a José Bidú, que sahiu
correndo e que tendo ella, chamado pela vizinha –
D. Maria, a mesma ainda viu José Bidú alli (...);
que o declarante interrogando a “José Bidú” sobre
taes relações com Naninha, o mesmo confirmou o
que lhe fôra contado por “Naninha”; que esta
informou-lhe mais, que, certa vêz, quando voltava
da bodega do Sr. Joaquim Cafumba, na Floresta
(Urubú), tinha sido forçada por seu tio –
Antonio (primo de seu pae), o qual têve
relações com ella pela veia anal, e que ella,
tendo levado esse facto ao conhecimento de
Pereira, seu pae, o mesmo tomou uma satisfação
com Antonio, em quem deu uma pancada, sendo
intrigados por isso e que ella devido a taes
relações, ficou se vazando por algum tempo
(...).207

Na narrativa exposta por José do Nascimento, apesar de bastante


confusa sobre o encadeamento das informações, explorou uma vivência
da menor extremamente marcada pela violência. A primeira delas, que
estaria relacionada à violência sexual, foi relatado como a forma com
que a menina “Naninha” teria vivido sua primeira experiência sexual.
Mesmo que elaborada como forma de fundamentar sua própria defesa
sobre a acusação de desvirginamento, o relato do acusado versa sobre

207
(APEC), Processo Nº (1931/4). Auto de declaração de testemunhas. p. 46.
Embora o Código de Menores de 1927 previsse punições para mães, pais e
tutores que aplicasse castigos “imoderados” – como disposto no Art. 137 e Art.
138 – durante o estudo desses processos foi bastante comum observar o
exercício de práticas de agressões contra as (os) menores vítimas de violência
sexual. Essas práticas podem ser entendidas a partir de duas perspectivas: a
primeira se relacionava à naturalidade com que a correção dos menores via
“agressão física” fazia parte do cotidiano social de muitas famílias, de modo
que, em nenhum momento essa questão foi mais sistematicamente
problematizada pelos representantes jurídicos. E o segundo elemento implicava
na própria desconfiança colocada para as declarações dos infantes, que
primeiramente, aos olhos de alguns dos familiares eram vistos como
responsáveis pelas coisas que lhes acontecia.
259

possíveis experiências de violência que marcavam o cotidiano dessas


menores.
A narrativa construída nesse depoimento mostra como a relação
sexual teria sido efetuada pelo uso de força e de agressões físicas, ao
destacar que “Naninha” teria sido forçada e obrigada a manter relações
sexuais com o garoto conhecido por “João Bidú”, no momento em que
estava a caminho do grupo escolar que frequentava. Além disso,
informava também, que esta teria sofrido violência para ter relações
sexuais com o seu “tio”, primo do seu pai, o que seria motivo de uma
intriga entre os dois até aquele momento.
Mesmo que o objetivo central desta narrativa de José do
Nascimento não seja explicitar as vivências baseadas na violência, mas
principalmente esquivar-se da acusação, foi possível perceber a forma
com que as primeiras experiências da menor poderiam ter sido fruto de
violações tanto de pessoas conhecidas que viviam nos arredores de sua
casa, como de pessoas mais próximas, como o próprio tio. Além desse
relato, que atraia as atenções para essa questão, os maus tratos que
teriam feito parte da vida de Naninha antes de partir para o interior do
Ceará, também foram levantados no depoimento do acusado como uma
importante motivação para Naninha ir embora em sua companhia rumo
ao interior do Ceará. Disse que:

(...) propriamente não seduziu a Naninha, nem tão


pouco a convidou para fugir, – ella é que, depois
de lhe declarar não ser virgem, e de se lhe entregar
toda, como acima vai narrado, – passou a rogar-
lhe que lhe tirasse da casa dos paes onde ella –
além de passar privações – era maltratada, isto
é, castigada demasiadamente; que Naninha
contou-lhe que, em certo tempo, Pereira lhe
havia dado uma surra tão grande, – com uma
bengala de fogo – que ella ficou muito tempo
doente, e escarrando sangue, e, ao que sentasse
no “Grupo Escolar de São Jerardo”, a Professôra
do mesmo Dona Maria de Lourdes ao têr
conhecimento de facto, levou-o ao sub Delegado
de Barro Vermêlho (...) que, por sua vêz, mandou
prendêr Pereira; que uns 4 (quatro) dias antes de
sua fugida, a mãe de Naninha tinha dado uma
grande surra na mesma, allegando que
260

Naninha era malcreada, sendo que essa ultima


surra o declarante assistiu (...).208 (grifos meus)

Nem sempre os pais, as mães e os familiares representavam


unicamente um viés protecional dessas menores, pois como vimos,
muitas vezes apareceram como pessoas que poderiam exercer violências
diversas sobre essas meninas (os). Esse elemento é importante, pois nos
mostra os conflitos existentes entre muitas das experiências de vida das
(os) infantes aqui analisadas e os ideais de família propagados pelas
normas burguesas; como também, a forma com que as relações
familiares e as sociabilidades desses menores foram fundamentais na
investigação das denúncias dos crimes sexuais. Analisar essas questões é
tarefa bastante complexa, pois nos exige uma articulação entre
preocupações colocadas para os estudos com perspectiva de gênero,
assim como, para a História social da infância.
A partir do estudo dessas fontes foi possível lançar um panorama
sobre alguns dos elementos que marcaram o cotidiano das pessoas
populares, em especial, das mulheres e crianças que foram vítimas de
agressões sexuais. A construção da vítima era efetuada a partir de seu
lugar social, e também, da influência que esse lugar supostamente
exercia sobre suas condutas e comportamentos. A atuação dos médicos e
representantes jurídicos, cada vez mais, estava marcada por uma análise
do criminoso e da vítima, e não apenas com a natureza do crime que se
investigava. Disciplinar a sexualidade degenerada era atuar em
diferentes elementos que marcavam a conformação da feminilidade e da
masculinidade desse momento, daí, portanto, a forma educativa com que
os ambientes familiares e os parentes foram indagados na condução
desses processos.
Nesse sentido, esse tópico buscou não apenas mostrar os
ambientes sociais que marcavam a vivência das meninas e meninos que
apareceram como vítimas, mas também, a forma com que esses
ambientes foram objetos de indagação e disputas durante a ação
criminal. Esses ambientes, mais do que demarcarem uma realidade
social concernente às vitimas e seus familiares, construíam sujeitos
“honestos”, “desonestos”, “degenerados” ou não, no momento em que
eram conflitados com os padrões morais enunciados por esses discursos
médicos e jurídicos.

208
(APEC), Processo Nº (1931/4). Auto de declaração das testemunhas. p. 47.
261

Assim, embora o cotidiano de pobreza que vivia boa parte dos


meninos, meninas e mulheres que apareceram como vítimas de crime
sexual seja elemento central para a elaboração de discursos sobre o sexo,
a sexualidade e a violência, esses, mais do que “evidências” de que a
atuação jurídica esteve fundamentalmente centrada nas camadas pobres
da sociedade, também são fundamentais para pensarmos as ausências
existentes nesse corpo documental. Estariam as camadas abastadas
livres desse tipo de violência? Por que os crimes sexuais que chegaram à
apreciação jurídica na cidade de Fortaleza, foram majoritariamente
marcados por segmentos de classes populares? Como dito acima, sem
dúvida uma das respostas mais plausíveis está relacionava à vontade de
estabelecer uma relação pedagógica entre justiça e camadas populares,
em que as autoridades judiciárias apregoavam os modelos de família e
de comportamentos sociais que se desejava nesse momento. No entanto,
outros elementos podem ser considerados quando problematizamos
essas ausências.
O primeiro deles seria o fato de que as camadas mais abastadas
pudessem buscar outras formas de lidar com essas questões,
demonstrando até mesmo as dificuldades que poderiam representar a
publicidade desse tipo de violência em arranjos familiares que
envolvessem pessoas de classe média e classe alta. Outro elemento
fundamental era a dificuldade, por parte dos discursos de médicos e
representantes da justiça, em alinhar os discursos de degeneração sexual
aos ambientes sociais e às relações familiares compostas por pessoas
ricas, que em regras gerais, também eram brancas, ou não gozavam de
um reconhecimento desqualificador vividos pelas pessoas “de cor”.
Tanto nos debates que suscitei sobre a construção do criminoso
no capítulo anterior, como nas disputas sobre a imagem das vítimas de
crimes sexuais estava presente uma tentativa, por partes desses discursos
oficiais, em construir uma conceituação normativa, um discurso sobre a
própria ideia do que seria uma violência sexual, e de quais os sujeitos
sociais que ocupam legitima ou conflituosamente o estatuto de
criminoso (a) ou ofendida (o) nesse tipo de crime.
Atentando para as hierarquias que eram edificadas e/ou
reforçadas por esses homens de elite, assim como estabelecidas pelos
próprios populares, o exercício feito nesse capítulo, foi o de perceber a
forma como essas diferenciações construíram discursos sobre a
violência sexual, idealizando a imagem da vítima, e principalmente,
262

mobilizando o gênero como aspecto de julgamento. Os ideais de


feminilidade apareceram diversa e contraditoriamente retratados nos
relatos que apresentavam juízos de valor sobre as condutas desses
sujeitos e sujeitas envolvidos (as). A violência sexual, e a consequente
elaboração dos discursos sobre a honestidade feminina, como dizia a
historiadora Joana Maria Pedro, era uma questão de classe, que também
mobilizava arraigadas relações de poder baseadas na raça, no gênero e
nas idades da vida das pessoas.
Assim, encerro este capítulo na certeza de que na Fortaleza de
inícios do século XX, as disputas sobre a construção da vítima de crime
sexual esteve profundamente marcada por uma série de relações de
poder e de discursos que visavam disciplinar os comportamentos
femininos, e construir uma sexualidade feminina como subserviente,
resignada e voltada absolutamente para as suas finalidades maternais e
matrimoniais. Os pareceres oficiais, emitidos por médicos eugenistas e
por homens da justiça – que muito representavam o pensamento das
elites comerciais e intelectuais da capital – consolidaram imagens que
perpassaram (e ainda perpassa) muitas das formas de interpretar esse
tipo de violência.
263

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

(...) gênero é a lente de percepção através da qual,


nós ensinamos os significados de macho/fêmea,
masculino/feminino. Uma “análise de gênero”
constitui nosso compromisso crítico com estes
significados e nossa tentativa de revelar suas
contradições e instabilidades como se manifestam
nas vidas daqueles que estudamos. (...) (SCOTT,
2012, p. 332)

A partir das escolhas realizadas para este trabalho e do longo


caminho de interpretação pude delinear alguns remates sobre o tema da
violência sexual. Esta, não apenas no Estado do Ceará, ou na cidade de
Fortaleza, ocupa ainda hoje um lugar entre os principais temas de debate
na área do Direito e na atuação de diferentes segmentos dos movimentos
feministas. Analisar a conduta pregressa de vítimas e criminosos, e
desvendar os ambientes que supostamente “propiciaram” esse tipo de
prática fez, e ainda faz, parte dos elementos centrais que envolvem uma
ação judicial dessa tipologia de crime.
Em dezembro de 2013, uma adolescente de 14 anos andava nas
ruas de Manaus, cerca das 23 horas, quando foi obrigada a entrar no
carro de um homem que a levou para uma casa abandonada, e lá a
estuprou209. Na internet a notícia circulou gerando um sem-número de
comentários que julgavam a menina e seus familiares. Diziam: “O que
essa menina faz andando às 23 horas na rua? Tava procurando,
encontrou!”; “Boa coisa não estava fazendo nesse horário na rua”, ou
perguntavam: “Onde estava a mãe dessa menina?”.
Questionamentos e comentários como esses não são novidade no
cotidiano das mulheres, meninas e meninos que são vítimas de agressão
sexual no Brasil. As indagações e pré-julgamentos focadas
principalmente sobre as vítimas parecem ainda ser as primeiras
articulações explicativas para refletir sobre esse tipo de crime. Quando
as pessoas vitimadas são pobres, negras, ou não se encaixam nos perfis

209
As informações sobre o caso se encontram em artigo publicado na página do
Instituto Patrícia Galvão. Link:
http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/index.php?option=com_content&view
=article&id=6530:13122013-em-caso-de-estupro-a-vitima-sera-a-culpada-
sempre&catid=43:noticias Acessado em: 12/01/2014
264

comportamentais vistos como passivos e subservientes, esses pré-


julgamentos tendem a ser ainda mais fortes e agressivos. A sexualidade
masculina baseada na violência dificilmente é colocada como um
problema a ser resolvido nesses comentários. E ainda assim, quando é
colocada, o acusado é considerado asqueroso, problemático e doentio, e
é construído a partir de uma tônica de excepcionalidade no que se refere
ao tema.
Segundo o Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes
(Viva) do Ministério da Saúde, a vergonha e o medo, além do
sentimento de culpa, são os principais motivos da não denúncia em
casos de violência sexual no Brasil atualmente, principalmente nos casos
cujos parentes e pessoas próximas são os principais violadores, e que
correspondem a maior parcela dos casos de abuso sexual no Brasil.
Só no ano de 2012 foi registrada, a cada hora, a entrada de duas
mulheres vítimas de abuso sexual no Sistema Único de Saúde.210 Além
disso, o mapa da violência demonstra que de todos esses casos, 75% no
total, são de violências sexuais cometidas contra crianças, adolescentes e
pessoas idosas. A impunidade, principalmente quando se refere aos
crimes cometidos em âmbito familiar, é considerada como um dos
maiores problemas no combate a esse tipo de violência. Segundo o
Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no ano de 2013 o
número de estupros ultrapassou o de assassinatos no país, cerca de 50
mil casos contra 47 mil crimes de homicídios, sem contar com as
denúncias de tentativas de estupro.211
Esses dados nos mostram a atualidade do tema da violência
sexual para os debates que envolvem a justiça, o poder público e a
sociedade organizada no geral. Mesmo com inúmeras mudanças no
Código Penal e nos Estatutos de proteção à infância que visibilizassem
esse tipo de violência fora e dentro do ambiente doméstico, e
estimulassem a denúncia e a punição dos violentadores, além de
melhorarem a assistência das pessoas vitimadas, muitas das questões

210
Esses casos são estimados em quantidade bastante superior, pois tais
dados não consideram a rede privada de saúde. Informações em:
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/03/130308_violencia_mulh
er_sus_kawaguti_rw.shtml Acesso em: 12/01/2014
211
Link: http://www.compromissoeatitude.org.br/mulheres-estao-
denunciando-mais-afirma-ministra-sobre-estupros-globo-news-02122013/
Acesso em: 12/01/2014
265

que envolvem esse tema precisam ainda ser debatidas no âmbito da


cultura para que efetivamente sejam construídas outras “visões de
mundo” sobre o sexo, a sexualidade e o direito ao corpo. Além dos
aspectos que envolvem o âmbito judicial, acredito, cada vez mais, na
necessidade de que esses temas sejam refletidos nas diferentes
tecnologias cotidianas que nos fazem hierarquizar e relativizar as
situações de violências vividas por diferentes pessoas e grupos na nossa
sociedade; entendendo a forma com que essas tecnologias dialogam e se
reelaboram em espaços policiais e judiciais.
Pensar a violência historicamente, em especial, a partir de uma
perspectiva de gênero, nos ajuda a compreender diversos elementos que
compuseram as hierarquias e preconceitos que fizeram e fazem parte dos
crimes de cunho sexual. Ainda hoje, diversos julgamentos morais,
cenários e sujeitos que estiveram presentes em muitos dos crimes
analisados nessa pesquisa são utilizados como argumentos que
deslegitimam a resolução de casos de violência sexual, ou mesmo as
impedem de serem visibilizadas em espaços públicos; construindo e/ou
reforçando relações desiguais entre as pessoas.
Atento aqui para a necessidade de discutir a resolução de
conflitos desse tipo de violência não focalizando somente o caráter
punitivo, mas principalmente, as várias questões morais e cotidianas que
circundam os momentos anteriores e posteriores às denúncias e
julgamentos desses casos, e que transcendem as relações vividas entre as
vítimas e seus agressores, fazendo parte de ideias compartilhadas em
uma dada coletividade. Por que ainda hoje muitas vítimas se sentem
envergonhadas e culpadas pelos crimes que sofreram? Por que ainda
hoje muitas vítimas são estigmatizadas e têm seus corpos maculados
após uma violência sexual? De que modo a sexualidade de homens e
mulheres são construídas na sociedade, e muitas vezes, norteiam
hierarquias e legitimam algumas violências? Analisar historicamente
essas questões é uma forma de perceber a violência dentro de um raio de
legitimidade social, entendendo os diferentes elementos que são
compartilhados em uma dada circunscrição.
A maternidade como algo natural à vida das mulheres, as
interdições morais sobre as “liberdades sexuais” femininas, a violência
como elemento compositor de masculinidade, a sexualidade masculina
vista como uma necessidade e um impulso instintivo, dentre outros
elementos, ainda fazem parte de argumentos cotidianos que tangenciam
266

as violências de cunho sexual; e muitas vezes, parecem estar em


descompasso com uma série de conquistas em âmbito judicial.
Ao entender essas violências como violências de gênero, ou
marcadas pelo gênero, parto de alguns cuidados colocados por Heleieth
Saffioti, ao atentar para a necessidade de uma não reafirmação da
posição de vítima como uma compreensão essencialista, em que as
mulheres ou os sujeitos que são violados em sociedades patriarcais
sejam vistos como presos a essas condições. (SAFFIOTI, 2001, 121) Por
pensar o gênero como uma relação de poder que se configura em
constantes disputas, entendo que o estudo de experiências concretas nos
auxiliam pensar as nuanças existentes entre os estereótipos oficiais e as
vivências das pessoas, e, por conseguinte, possibilita observar suas
constantes transgressões e conflitos; além das diferentes feições que
assumem historicamente.
Como propunha o estudioso da violência Theofilos Rifiotis,
quando analisamos a violência precisamos superar as visões redutoras
proporcionadas pela dicotomia vítima-acusado, entendendo as diferentes
oscilações, conflitos e impasses construídos nessas posições.
(RIFIOTIS, 2008, p. 226) O exercício de organizar dois dos capítulos
por essas divisões foi objetivado na tentativa de superá-las, na tentativa
de observar a forma com que o sujeito vitimado e o sujeito
criminalizado se materializou a partir de construções discursivas, e,
portanto, históricas, elaboradas a partir de diferentes relações de poder, e
que precisam ser analisadas contextualmente. Esses sujeitos, quando
problematizados à luz de uma perspectiva cotidiana aparecem
recorrentemente conflitados com as idealizações que se estabeleceram
em um dado espaço-tempo.
Na cidade de Fortaleza de inícios do século, a violência sexual
assumia muitas das disputas próprias do cotidiano social vivido nesse
espaço e nesse momento. Para os discursos oficiais, a violência sexual
era vista como um “exterior”, como um resultado quase biográfico da
má formação de um caráter estranho àquela sociedade moderna, racional
e baseada nos “bons costumes” que parecia se idealizar. Diante dos
conflitos sociais e das “ameaças” que pareciam fazer parte da cidade,
esse “exterior” assumia, cada vez mais, o corpo, as condutas, as
características, as paisagens daqueles e daquelas que não faziam parte da
modernização, aformoseamento e novos valores que dominavam os
discursos das elites da capital. Nesse sentido, a articulação entre as
267

desigualdades de classe, assim como as hierarquias raciais, e


principalmente de gênero, foram primordiais para a problematização da
forma como se desenvolveram os embates discursivos em torno desse
tipo de violência.
Construir as violações sexuais como um desvio próprio daqueles
sujeitos degenerados, ou um fruto do mau comportamento de meninas
“entendidas das coisas” era tentar reafirmar quatro elementos centrais:
reforçava-se o ambiente da família burguesa, com pai e mãe ocupando
suas “funções” como um lugar de proteção e harmonia; disseminava-se
uma disciplina sexual voltada para o ambiente familiar e para as práticas
sexuais procriativas; construía-se uma sensibilidade sobre o tema da
violência sexual resguardando algumas licenciosidades masculinas e
polarizando os comportamentos sexuais femininos; e finalmente,
reforçava-se a criminalização da pobreza como um lugar de produção de
sujeitos degenerados.
Nesse sentido foi possível perceber neste trabalho a importância
em se analisar a violência dentro de uma perspectiva histórica, cotejando
as elaborações culturais e discursivas que denotaram diferentes relações
de poder, em especial, as marcadas pelo gênero no cotidiano criminal e
judicial. Desse modo, problematizar os discursos que buscavam
naturalizar os elementos constituidores da violência em inícios do século
XX, foi um cuidado metodológico perseguido nessa investigação. Como
afirmou a historiadora Marta Abreu,

(...) ao ser julgado um crime de defloramento,


estupro ou atentado ao pudor, resultante da quebra
de uma norma jurídica sexual, emergiam os
valores sociais mais amplos da sociedade, pois era
também na quebra de outras normas morais e
sociais que se determinava a absolvição ou a
condenação do réu. Ou seja, a conduta total do
indivíduo é que iria, ou não, redimi-lo de um
crime; não estava em pauta apenas o que havia
sido feito, mas aquilo que o acusado e a ofendida
eram, poderiam ser ou seriam. (ESTEVES, 1989,
p. 41)

Nesse sentido, analisar a violência sexual a partir de uma


perspectiva de gênero, possibilitou perceber a forma com que as
disputas em torno da violência construíam e/ou reforçavam relações de
268

gênero, buscando normatizar compreensões sobre a sexualidade, a


maternidade, a família, os comportamentos ideais, a masculinidade e a
feminilidade; dentre outras várias questões que perpassavam os debates
efetuados nesses processos. Desse modo é possível afirmar que em
âmbito judicial muitas das narrativas e pareceres efetuados nessas ações,
assim como a própria natureza dos procedimentos que marcavam a
condução das investigações, e as concepções de violência asseguradas
pela legislação republicana expressavam – novamente tomando de
empréstimo a definição de violência de Rifiotis – “visões de mundo”
fundamentadas na naturalização de muitas violências cotidianas
marcadas pelo gênero. (RIFIOTIS, 1997, p. 5) Quando penso as
violências de gênero como uma “visão de mundo” – que em muitos
momentos está marcada por sentidos de positividade dos
comportamentos sociais – entendo que esta é uma questão central na
articulação de diferentes discursos sobre a violência sexual. Entender o
aspecto disciplinar da criminalização e da judicialização desses conflitos
em inícios do século XX, portanto, foi fundamental para a compreensão
da condução desses processos e da construção de discursos sobre a
violência.
Finalmente, é importante enunciar que muitos elementos nos
escapam quando realizamos uma pesquisa em processos judiciais,
principalmente quando tratamos de um corpo documental das primeiras
décadas do século passado. Os crimes que fizeram parte desse trabalho
são apenas uma pequena amostra das violências sexuais que marcaram o
cotidiano da cidade de Fortaleza, pois certamente, além de muitos
processos terem se perdido por más condições de arquivamento, nem
sempre essas violências chegaram a virar denúncias ou processos
judiciais. Muitos casos ficaram em espaço doméstico, encontrando
outras formas de resolução que não o âmbito jurídico. Outros, não
passaram da denúncia policial nas delegacias da cidade, além daqueles
que nem foram cogitados a ser entendidos como violências sexuais.
Problematizar essas “ausências” também foi questão importante no
estudo desse tema.
Além do assunto das fontes, ao escolhermos algumas questões a
serem abordadas, necessariamente, trabalhamos com ausências e
recortes que nos acompanham no decorrer da escrita. Detalhes, lugares,
argumentos e relações precisam ir sendo alojadas nos segundos e
terceiros planos das nossas narrativas. Sem dúvida, uma dissertação é
269

um longo trabalho de recorte e de muitas escolhas. No entanto, a escolha


central realizada neste trabalho foi entender a forma como essa tipologia
de violência foi construída em inícios do século, numa cidade
extremamente marcada por inúmeras desigualdades, constantemente
ameaçada pelos segmentos pobres oriundos de outros lugares, e que
objetivava “educar” a população quanto às normas de comportamentos
social, e também, de condutas de gênero.
Nos mais diversos espaços da capital – sejam nos ambientes
públicos, no cotidiano das famílias ou nos “lugares ermos” – diferentes
episódios de violência aconteciam imersos nas mais diversas relações de
poder. Sexo e violência foi uma combinação que marcou muitas
experiências de homens, mulheres, meninas e meninos durante as
primeiras décadas do século XX na capital cearense. Além das disputas
sobre a temática da violência, pensar a atuação de setores da elite da
capital, como médicos e representantes da justiça – contribuindo para a
idealização das imagens das vítimas e dos criminosos, traçando uma
longa teia disciplinar sobre os comportamentos tidos como
“desregrados”, “imorais” e “degenerados” – foi de grande importância
para entender, em um diálogo com alguns trabalhos que
problematizaram essas questões em outras cidades do Brasil, como a
violência sexual ia sendo construída na legislação republicana brasileira,
assim como problematizar sua apropriação no cotidiano criminal.
Nesse sentido, e em conclusão, é necessário expressar que uma
das finalidades almejadas para essa dissertação foi contribuir para os
estudos em torno da violência sexual, através de uma ótica de gênero, na
esperança de colaborar para as reflexões sobre o tema e sobre sua
historicidade.
270
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Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 01, Processo Nº
1919/04. (Crime de Estupro)

Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:


Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 01, Processo Nº
1920/01. (Crime de Estupro)

Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:


Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 01, Processo Nº
1922/01. (Crime de Atentado ao Pudor)

Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:


Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 01, Processo Nº
1924/01. (Crime de Estupro)

Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:


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Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 01, Processo Nº


1926/01. (Crime de Atentado ao pudor)

Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:


Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 01, Processo Nº
1926/02. (Crime de Estupro)

Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:


Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 02, Processo Nº
1926/04. (Crime de Estupro)

Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:


Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 03, Processo Nº
1928/01. (Crime de Atentado ao pudor)

Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:


Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 02, Processo Nº
1929/01. (Crime de Atentado ao pudor)

Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:


Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 02, Processo Nº
1931/01. (Crime de Estupro)

Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:


Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 02, Processo Nº
1931/02. (Crime de Estupro)

Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:


Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 02, Processo Nº
1931/04. (Crime de Estupro)

Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:


Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 02, Processo Nº
1932. (Crime de Lenocínio)

Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:


Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 02, Processo Nº
1933/02. (Crime de Estupro)
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Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:


Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 03, Processo Nº
1934/01. (Crime de Atentado ao pudor)

Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:


Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 03, Processo Nº
1936/01. (Crime de Estupro)

Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:


Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 03, Processo Nº
1936/02. (Crime de Estupro)

Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:


Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 03, Processo Nº
1937/01. (Crime de Estupro)

Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:


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1937/02. (Crime de Estupro)

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Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 03, Processo Nº
1938/01. (Crime de Estupro)

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Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 03, Processo Nº
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1938/03. (Crime de Estupro)

Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:


280

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1939/01. (Crime de Estupro)

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