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ENXADAS E COMPASSOS
Salvador
2009
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ENXADAS E COMPASSOS
SECA, CIÊNCIA E TRABALHO NO SERTÃO CEARENSE
(1915-1919).
Salvador
2009
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CDD – 338.98131
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5
À
minha mamãe que em meio aos trocados de bilros em sua “mufada”, bordava suas rendas e
tecia nelas o sonho de ter uma filha formada, e hoje se alegra grandiosamente por ter uma
filha Mestre. Obrigada minha flor por todas as lutas que travamos juntas em busca desses
sonhos. E que venham mais trocados, mais bordados e mais conquistas.
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AGRADECIMENTOS
À Deus por ter escancarado os caminhos, iluminado minha trajetória e ter colocado tantas
pessoas boas na minha vida.
Aos meus avós maternos pelo mimo. Ao avô Messias, por todas as tramas que narrou para
mim, quem dera um dia eu aprenda a contar histórias como você. À vovó Rita, por descortinar
sempre o que ele tentava esconder dessas histórias, também pelo arroz com coco e pelo pirão.
Aos meus avós paternos, Zé e Rosa, por dividirem as experiências sobre a vida na terra
semiárida.
À minha mãe Ritinha, por ser exemplo de coragem, persistência e força e, ao meu pai
Artenisio, no qual as histórias da infância e juventude me animam à luta. A vocês, por me
lembrarem de onde vim.
Aos meus irmãos Thiago e Jarbas pelas memórias das brincadeiras, alegrias e durezas, pelos
planos traçados juntos e pelos mil abraços e beijos nas chegadas e partidas. Amo muito vocês.
Ao meu Orientador Antonio Luigi Negro por ter me amparado e cuidado do meu mestrado com
paciência, atenção e dedicação, sempre me iluminando e me encorajando com palavras boas.
Ao Prof. Frederico de Castro Neves, por acreditar na minha pesquisa e pelas férteis discussões.
Aos meus professores da UFBA, em especial, às professoras e amigas Lina Brandão e Maria
Hilda pelo apoio e atenção e, ao Prof. Guerreiro, pela compreensão.
Aos professores que tive na UFC, em especial, a Profª. Edilene Toledo pela amabilidade e ao
Prof. Almir Leal de Oliveira, pelos compartilhamentos no grupo de pesquisa MECTSAB.
Aos colegas da Secretaria e Coordenação da Pós-graduação, em especial à professora Lígia
Belini e à Soraia Ariane pela atenção e prontidão.
A FAPESB pelo financiamento da minha pesquisa.
Ao Sr. Kleitom Cezar pelo continuo auxílio prestado desde o acesso à documentação do
DNOCS até as revistas Conviver doadas.
Aos meus tios “Neus” – Neuman, Neujarbas, Neuflávio, Neumario, Neudário, Neuberto – e as
minhas tias Marias – Maria Oneida, Maria Alcioneida e Maria Lucineida.
Em especial, à tia Oneida, sempre benevolente e amorosa, me orientando e provendo como
filha. Sem ela muitos sonhos não teriam se realizado; e à tia Lucineida e o tio Rinaldo pelas
doses diárias de força, perseverança e fé;
Também aos primos irmãos: Derec pelo “querer bem”; Virgínia, pelo amor dado e expressado
a mim desde que eu nem me entendia por gente; Gabi e Gui pela gentileza e carinho desde a
divisão dos brinquedos à divisão das complexidades de viver juntos na cidade grande.
Ao meu Sávio pelo amor, companheirismo e palavras de alento; por me suportar nos dias de
desanimo e mau humor; enfim, pelas experiências, lembranças e sonhos; e por me ensinar na
prática que toda história é fruto do “contexto e do processo”.
À família do Sávio, em especial, aos seus pais (Teresinha e Sinval), que me acolheram sempre
com carinho e cuidado, ensinando-me a cultivar integridade, generosidade e determinação;
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À vózinha Mariinha pelas incansáveis orações e por ensinar o sentido do amor ao próximo.
Ao meu conterrâneo e amigo Marcílio Rocha pelo abrigo e afago na Bahia, pelas palavras de
ordem e força, pelas produtivas conversas e por lembrar de mim sempre; e à sua noiva Aline
Adorno pela leveza e carinho.
Aos amigos que comigo fizeram história, pequenos em estatura e grandes em meu coração. Ao
Alexandre pelo companheirismo, amor e presteza, e a Cris pela sinceridade, lealdade e
amizade. Que a nossa trajetória seja mediada sempre por esse amor sem medidas.
À amiga Glória pelo apoio, abrigo, benevolência, afabilidade e cuidado de mãe.
Aos amigos da UFBA, Bel, Joel, Brás, Tati e Luciano pelas conversas, carinhos, abraços e
sorrisos.
Aos amigos do coração, Gê, Tiço, Duzô, Priscila, Sue, Sam, Di e Gerly, pelos dias de trabalho,
de reza e de festa, pelos aprendizados juntos.
Às minhas adoráveis amigas de infância, Eris, Ju e Ana, pelas reuniões de estudo, pela hora do
recreio tomando sopa atrás da sala de aula, pelas brincadeiras no meio da rua, enfim, por
ajudarem a acreditar nos sonhos que eu tinha. Orgulho-me muito de vocês também.
Às minhas professoras de Canaã Tia Maria, que me ensinou os primeiros traços; também as
professoras Perla, Zefinha e a Marilene.
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Vozes da seca
RESUMO
Esta dissertação conta a história de trabalhadores retirantes e engenheiros dentro das frentes
de serviços de açudagem da Comissão de Obras Novas Contra as Secas, em 1915, levando em
conta questões sobre a política e a atuação desta comissão e os conflitos decorrentes no
processo da edificação das obras. A problemática da seca ganha visibilidade nacional depois
da seca de 1877. Muitos discursos e ações surgiram depois desta estiagem prolongada,
associando os problemas dos estados semiáridos (atraso, pobreza, miséria e etc.) à calamidade
climática e tentando remediar seus problemas mediante obras hidráulicas. Em 1915, quando
foi reconhecida oficialmente a seca, uma comissão intitulada Obras Novas Contra as Secas foi
designada para combatê-la. Esta comissão deu início a várias construções. Eram preferidas as
que possibilitassem o escoamento de água e ocupassem um grande número de retirantes com
trabalho nas obras. Com base em pesquisas nas fontes de jornais cearenses sobre o período,
relatório de serviços executados pela comissão em estudo, documentos técnicos diversos,
correspondências, documentos oficiais e obras bibliográficas do período, é traçada a trajetória
da construção de alguns açudes dessa comissão, tendo como principais atores: retirantes
operários e engenheiros. De retirantes a trabalhadores, nos canteiros de obras de açudagem
contra as secas, os operários agiram na reivindicação de meios que garantissem a
sobrevivência, agregando diferentes experiências de trabalho, dentro das frentes de serviços.
Enquanto os engenheiros, crentes na sua racionalidade científica, ficavam diante de uma luta a
que não estavam acostumados: a calamidade da seca e os seus problemas sociais, o que
também provocava embates. No entanto, as questões da seca de 1915 não se limitavam aos
que se concentravam dentro das obras. Dentro desse contexto, outros sujeitos se envolveram
na trama. Presidente do Estado e autoridades locais – prefeitos, vigários, latifundiários e
outros atores da sociedade local –, na região Norte do Ceará, cidade de Sobral e
proximidades, onde foram realizadas as obras, evidenciaram posturas e sentimentos diversos
perante os retirantes da seca de 1915.
ABSTRACT
This dissertation tells the story of workers and engineers “migrants from the drought” fronts
within the service weir committee of New Works Against Drought in 1915, taking into
account issues on policy and actions of this committee and the conflicts arising in the process
of building the works. The problem of gaining visibility national drought after drought in
1877. Many speeches and actions that occurred after prolonged drought associated problems
of state semi-arid (delay, poverty, misery and etc.). A climate disaster and trying to remedy its
problems with hydraulic works. In 1915, when it was declared a drought, a committee was
formed to combat this drought: New Works Against Drought. The committee began the
various buildings. They were the favorite to enable the flow of water and occupy a lot of work
with “migrants from the drought” in the works. Based on research on the sources of
newspapers of the Ceará on time, report of services performed by the committee under study,
several technical papers, correspondence, official documents and bibliographical works of the
period is traced the trajectory of the construction of some dams that committee, with the main
actors “migrants from the drought” and engineers. “Migrants from the drought” of the
workers, an area of works of weirs against droughts, the workers claim to have acted in ways
that ensure the survival, adding different experiences of working within the service front,
while the engineers, believers in their scientific rationality, were front of a fight that was not
used: the scourge of drought and its social problems, which have caused collisions. However,
the issues of drought of 1915 were not limited to those that are concentrated in the works.
Within this context, other subjects were involved in the plot. President of state and local
authorities - mayors, vicar, landowners and other stakeholders of the local community - in the
northern region of Ceará, and nearby city of Sobral, where the works were performed,
demonstrated next to the attitudes and feelings “migrants from the drought” of 1915.
FIGURAS
TABELAS
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO 12
1.1 A PESQUISA: ECANTAMENTOS E DIFICULDADES 13
1.2 “A CAMINHO DA INSPETORIA DE OBRAS CONTRA AS SECAS - IOCS” 17
5. CONCLUSÕES 127
REFERÊNCIAS 133
ARQUIVOS E FONTES 133
BIBLIOGRAFIA 139
13
1. INTRODUÇÃO
Filha de retirante, neta de trabalhador de obras contra as secas, e num Ceará marcado
pelas estiagens, as experiências trágicas das secas sempre fizeram parte do meu imaginário.
Contudo, nunca recordo ter presenciado uma grande seca na minha acanhada cidade Canaã 1,
ao contrário, as lembranças são de fartura, muita farinha, muita rapadura. Entretanto, minhas
experiências sobre as estiagens foram bem diferentes das dos meus avós e pais.
Do mesmo modo, devo citar que o grande passo para a gestão de minha pesquisa foi o
ingresso no grupo de pesquisa Memória Científica e Tecnológica do Semiárido Brasileiro
1
Canaã é distrito do município de Trairí, litoral oeste, localizado cerca de 130 km de Fortaleza.
2
Meu avô paterno trabalhou na construção de estradas e barragens na seca de 1951 e 1958.
15
(MECTSAB), coordenado pelo professor Dr. Almir Leal e pela professora. Drª. Ivone
Cordeiro, em cuja equipe trabalhei ajudando no inventário do acervo do Departamento
Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) , referente às ações dessa instituição no
semiárido.
Com essa trajetória – e influenciada por intelectuais que enxergam a seca como um
processo histórico de práticas e discursos –, foi reforçado meu interesse por estudar algo que
tratasse da seca e suas repercussões históricas e sociais. Assim, nessa dissertação, meu estudo
trata de questões sobre a política e a atuação de uma comissão criada para combater a
calamidade da seca cearense de 1915: as Obras Novas Contra as Secas (1915-1919). Levo em
conta os conflitos ocorridos no processo de edificação das obras e a maneira como os sujeitos
sociais deram sentido às suas práticas e aos seus discursos.
1.1 A PESQUISA
Acredito que a fonte encontrada é como um diamante que, ainda sem ser lapidado,
não oferece o brilho desejado. Sendo o diamante a substância mais dura da natureza, cortar e
lapidar este artefato não é uma tarefa fácil. É necessário encontrar as linhas que cada diamante
16
possui e isto requer um cuidadoso estudo de cada pedra. Do mesmo modo, os documentos
históricos necessitam de um minucioso estudo crítico para entender as contexturas dos
discursos.
Em meio àquele arquivo mal arquitetado, mas que a equipe do MECTSAB, com gosto,
estava organizando, encontrei várias pastas de açudes com fontes que evidenciavam os
mesmo problemas: os aperreios em tempos de secas, principalmente os que envolviam a
ocupação dos retirantes. , por questão de praticidade, iniciei a pesquisa estudando um açude, o
Caio Prado, localizado em Santa Quitéria, Ceará. Posteriormente foi pesquisada a
documentação de outros açudes. Essas pastas do fundo “açudes públicos Ceará” apresentam
desde orçamentos, telegramas, históricos, memórias justificativas, ofícios, até documentos
técnicos, como quadros de cubação, análise de amostra de terra, de amostra de água,
medições, mapas e outros. Estas fontes me forneceram importantes reflexões sobre a relação
estabelecida entre engenheiros das obras, poderes públicos e retirantes da seca. Uma
documentação rica, muito importante para minha pesquisa e de extremo valor para a história
do semiárido, mas que precisa ser mais explorada por outros pesquisadores.
3
Este arquivo está localizado na Praia de Iracema, Fortaleza, Ceará.
4
Esta biblioteca fica localizada na Avenida Duque de Caxias, Fortaleza, Ceará.
17
A partir desse relatório, percebi que as questões aparentes na edificação do açude Caio
Prado eram recorrentes no processo de construção de outras obras, porém optei por restringir
o número de açudes estudados7, já que eram inúmeras as realizações daquela comissão. Os
açudes escolhidos, além do Caio Prado, em Santa Quitéria Ceará, foram: Patos, em Sobral –
CE, e Mulungu, em Itapipoca - Ce. Todas estas obras estudadas foram construídas em regiões
e períodos próximos.
Com essas fontes foi construído o recorte temporal e espacial do meu estudo. O
primeiro foi demarcado pelo ano de criação da Obras Novas e entrega de algumas das obras
concluídas ao estado, entre dois anos de notáveis secas (1915 a 1919). No entanto, esta
pesquisa dar maior ênfase aos efeitos da seca de 1915, já que os açudes em pesquisa foram
construídos para combater os problemas da seca daquele ano.
A comissão estudada atuou em vários estados: Piauí, Pernambuco, Paraíba, Ceará, Rio
Grande do Norte e Sergipe, mas, levando em consideração o grande acervo documental sobre
as obras executadas entre o ano de 1915 a 1919, nos estados semiáridos, pela IOCS e pela
Obras Novas e percebendo a impraticabilidade de dar conta dessa pesquisa num mestrado,
optei por recortar minha pesquisa dentro do espaço cearense. A escolha do estudo de obras de
5
REIS, Aarão. Obras Novas Contra as Secas: Trabalhos executados de 3 de setembro de 1915 a 31 de outubro
de 1918 – Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Aug. Tavares Lyra ministro da Viação e Obras Públicas. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1920.
6
O presente relatório é composto de introdução de 48 páginas, mais 246 de desenvolvimento. Fora isto tem dois
anexos: O anexo A (4 páginas), referente ao ofício de envio dos créditos especiais, e o anexo B(24 páginas)
concernente a um parecer do Clube de Engenharia sobre as secas.
7
A escolha pelos açudes e não pelas estradas de rodagem ficará clara no decorrer dos capítulos.
18
açudagem da região Norte é justificada pela proximidade territorial das construções e pela
recorrência maior de questões similares entre a documentação. Fora isso, não se pode negar
que a escolha por pesquisar açudes do norte do Ceará também foi norteada por sentimentos.
8
Os relatórios de Presidente de Estado estão disponibilizados no site do projeto “Brazilian Government
Document Digitization” no site: http://www.crl.edu/content/provopen.htm. E os Decretos-lei estão localizados na
Plataforma do Senado Federal no site: http://www.senado.gov.br/sicon/PreparaPesquisaLegislacao.action.
19
O estudo da seca e de seus problemas sociais tem levado a refletir sobre vários temas.
Esta diversidade tem sido significante para entender questões desafiadoras. As tentativas de
amenização do problema da seca têm sido pensadas desde o século XIX e atualizadas por todo
o século XX, o que faz a temática uma questão atual.
9
O historiador Frederico de Castro Neves alega que “por todo o século XIX as obrigações dos proprietários de
terras no âmbito da relação de reciprocidade desigual – submissão versus proteção – foi se tornando um encargo
cada vez maior. As heranças dos períodos anteriores da colonização haviam se transformado. Dentro da
organização baseada na produção agropastoril sobressaía a parceria, a divisão do gado em 1 para 4, no caso da
agricultura o parceiro cultiva uma parte da terra para o proprietário, e em troca cede uma parte da produção ou
alguns dias de serviço.” Os pequenos proprietários ficavam com as terras que não eram destinadas as mais
importantes atividades da fazenda, sendo assim, o conjunto de relações era mantido desde que “houvesse uma
disponibilidade de terras e recursos para serem aproveitados”. Contudo, dois acontecimentos ocasionaram o
desmantelo dessas relações. Primeiro, a lei de terras de 1850, pela qual a terra passou a ter valor monetário
20
Sem a proteção dos terratenentes, sem terra para trabalhar e sem comida, as
alternativas encontradas pela maioria dos que sofriam com os flagelos da seca de 1877 foram
as retiradas para cidades litorâneas cearenses, especialmente a capital, e também para outros
estados do Brasil. Milhares de retirantes formaram uma multidão que se aglomerou
especialmente na capital do Ceará (Fortaleza), criando cenas pavorosas nos corações e mentes
cearenses. A elite ficou comovida e assustada. A desgraça mexeu com o imperador que
pronunciou a famosa frase repetida inúmeras vezes pela historiografia da seca: “venda-se as
jóias da coroa, mas não morra de fome um cearense” 10.
estimado. A limitação dos espaços ocorreu de forma rápida, tomando terras de posseiros e pequenos
proprietários, restringindo, dessa forma, os espaços a serem ocupados pelos camponeses na época das secas.
Depois deve ser considerado o crescimento da agricultura comercial do algodão, que ampliou as áreas destinadas
ao mercado externo, principalmente com a guerra civil dos EUA, em 1860. Esses acontecimentos impediram a
proteção dada por latifundiários e a concessão de terras em períodos de estiagem. Para maiores esclarecimentos
leia: NEVES, Frederico de Castro. A multidão e a história: saques e outras ações de massas no Ceará. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2002., p. 42.
10
STUDART, Guilherme (barão de). Climatogia, epidemias e endemias no Ceará. Apud RIOS, Kênia Souza.
Apresentação. IN: Estudos Sobre Secas/ Escritos de Guilherme Schurch Capanema e Giacomo Raja Gabalia..
Fortaleza: Secretaria de Cultura do estado do Ceará, Museu do Ceará, 2006., p. 15.
21
Se, por um lado, esse momento marca o início do movimento que proclama a seca
como um problema de responsabilidade nacional, ele desperta um sentimento que transforma
a região do semiárido numa região problema. O Norte e a instabilidade climática passavam a
ser entendidos como um problema que barrava o avanço do Brasil, sendo um desafio a ser
resolvido pelo saber científico. Muitas pesquisas se avolumaram, quando vários intelectuais,
discorrendo sobre o problema das secas, falando das falências provocadas por estas, das
migrações de famílias em grande número, do desleixo dos homens públicos, elaboraram
propostas de resolução para estas calamidades.
A visibilidade da seca como escassez de água evidenciou como solução mais viável a
empreitada da açudagem. Acreditava-se que essas obras mudariam as ocorrências das
estiagens prolongadas. Dessa forma, ainda no fim do século XIX, vários estudos foram
realizados e açudes, como o Boqueirão de Lavras, o Itacolomi e o Quixadá, foram projetados.
Somente o Quixadá foi iniciado, tendo suspensos seus serviços diversas vezes, foi concluído
em 1906.
Muitas cenas das secas de 1898, 1900 e 1903 se assemelham às da seca de 1877. As
medidas objetivando não somente o combate às estiagens, mas também à desocupação e ao
isolamento de retirantes se avolumaram na medida em que outras secas assolavam o Ceará.
Rodolfo Teófilo13 alega que, na seca de 1898, alguns “mil famintos perambulavam pelas ruas”
à procura de socorro e a “população de Fortaleza assistia revoltada à indiferença do governo”
Accioly. Entretanto ele documenta que a seca de 1900 não foi tão desastrosa por conta do
bom inverno do ano anterior e os retirantes foram auxiliados principalmente com passagens
11
Dentre outros, participaram dos debates: André Rebouças, Conde D´Eu Beaurepaire Rohan, João Martins da
Silva Coutinho, José Rebouças, Carneiro Cunha, entre outros.
12
Um importante acontecimento antes da seca de 1877 foi o envio da Comissão Científica de Exploração.
Criada pela Lei 884, de outubro de 1856, organizada pelo governo imperial por iniciativa do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, tinha como objetivo explorar algumas províncias pouco conhecidas naquele período. A
questão da seca foi citada. Isto é um indício de que estas já começavam a ter uma repercussão cada vez maior em
todo o território, mesmo não tendo ainda tanto destaque como problema nacional e não mobilizando enormes
esforços do governo imperial. De acordo com Renato Braga, em História da Comissão Científica de Exploração,
por mais que o Ceará fosse conhecido por registros de secas, não foi esse o motivo principal do início do estudo
pelo o Estado, mas, sim, porque a província era conhecida como diversa em recursos minerais. Haveria em suas
montanhas ferro e carvão, além de grandes jazidas de minerais preciosos.
13
Rodolfo Teófilo foi um farmacêutico e intelectual do fim do século XIX e início do século XX que deixou
registradas várias ocorrências das secas e seus problemas, em obras literárias e científicas. Um dos seus livros,
intitulado “ A seca de 1915”, foi uma importante produção para a construção dessa dissertação. Teófilo era
opositor da oligarquia acciolyna, o autor alegava que esse grupo fazia “vista grossa” ao sofrimento do sertanejo
retirado pela seca. O grupo de Accioly perseguia-o sob a justificativa de que o farmacêutico agia
desmoralizando o governo.
22
para fora do Ceará. Mas – uma vez encerrada – o governo e os particulares esqueceram
imediatamente que “o Ceará está sempre entre uma seca e outra que vem”14 e não tomaram
providências contra futuras ocorrências.
A IOCS surgiu como uma divisão especial do Ministério da Viação e Obras Públicas
(MVOP) pelo decreto nº. 619, de 21 de outubro de 1909. Este órgão deveria organizar o
combate às secas da região semiárida, compreendida entre os estados do Piauí e norte de
Minas Gerais. A criação do órgão, diferente do que muitos dos estudos apontam, não teve
como objetivos únicos a organização – centralização e unificação dos serviços – das ações
contra as secas que se encontravam naquele momento desordenadas, mas, acima disso, levar o
progresso ao semiárido, tomando “a questão das secas como um problema nacional de caráter
social e econômico15”. As ações do Estado passaram a ser mais diretas, mas isto não significa
que se tornaram mais diligentes.
Inicialmente, a IOCS atuou com estudos sobre a região semiárida. O primeiro inspetor
foi o engenheiro Miguel Arrojado Ribeiro Lisboa16, ele defendia que a seca era “um
fenômeno muito vasto, de natureza tanto física como econômica e social17”. Assim, na sua
administração, o semiárido virou campo de investigação e atuação. Foram elaborados estudos
detalhados da flora, estudos geológicos e mapeamento dos recursos hídricos. O projeto
também teve como meta realizações de obras de açudagem, perfuração de poços, construção
de estradas de rodagem, construção de canais de irrigação e arborização. Arrojado, Lisboa
chefiou a inspetoria até o ano de 1912. Depois dele assumiu o cargo Ayres de Souza ficando
até 1913. Neste mesmo momento foi nomeado para gerenciar a IOCS o engenheiro Aarão
14
TÉOFILO, Rodolfo. A seca de 1915. Fortaleza: edições UFC, 1980., p. 38, 40, 41.
15
OLIVEIRA, Almir Leal de, BARBOSA Ivone Cordeiro e GADELHA Georgina da Silva (organizadores).
Ceará, Ciência, Saúde e Tecnologia. Fortaleza: Expressão gráfica e Editora, 2008., p. 16.
16
O referido engenheiro foi formado pela Escola de Minas de Ouro Preto. O modelo adotado por Henrique
Gorceix, na escola de Minas, visava a uma sólida formação nas áreas de Matemática, Química e Física.
Inspirava-se na Escola Superior Francesa e na Escola de Minas de Saint-Ettienne. Pretendia oferecer formação
de base científica associada a princípios práticos de mecânica de máquinas e metalurgia. A maior parte do
currículo era dedicada à formação de base. Idem, ibidem. p., 18.
17
LISBOA, Miguel Arrojado. “O problema das secas sobre vários aspectos” (publicado nos Anais da Biblioteca
Nacional de 1913). In: DNOCS – pensamentos e diretrizes. Fortaleza, 1984., p.1.
23
Reis, deixando o cargo em 1915 para assumir uma comissão especial, que tinha por objetivo
combater a seca daquele ano.
Por fim, o último capítulo, traz à baila discussões sobre os engenheiros chefes nas
obras públicas das secas, que eram vistas como celeiros do trabalho e do progresso, diante do
problema da estiagem que significava atraso. Estes profissionais enfrentaram o desafio de
conciliar seu saber científico e as questões sociais da necessidade e do dever de amparo aos
retirantes. Fora isso, atenta-se também às posturas governamentais diante dos flagelados das
secas e os sentimentos que envolveram diversos setores da sociedade local cearense.
Desse modo, decidi evitar o uso do termo “flagelado”. Essa nomenclatura é criticada
pelo farmacêutico e intelectual Rodolfo Teófilo, que acreditava que o termo retirante designa
melhor o sujeito das secas. O historiador Frederico de Castro Neves também não é simpático
ao termo, explanando que a nomenclatura “flagelado dilui os sofrimentos e a própria
configuração sociológica das maiores vítimas das secas.18” De fato essa termo dá margem
para minimizar a condição dos retirantes enquanto sujeitos históricos atuantes, suas ações,
agonias e pelejas.
18
NEVES, Frederico de Castro. A multidão e a história: saques e outras ações de massas no Ceará. Op. Cit., p.
83.
25
Fazia cerca de dez anos que uma grande seca não assolava o Ceará e outros estados na
região do semiárido quando chegou o flagelo de 1915, gerando problemas em diversas esferas
e de graves proporções. O desmantelamento das relações sociais no campo, que
desestabilizou a proteção dada por fazendeiros a sertanejos em períodos de estiagem, somado
ao contexto social, político e econômico do Ceará, no início da década de 1910, auxilia no
entendimento do desencadeamento das políticas contra essa seca, na compreensão da
mudança no modo de ver os retirantes e da postura perante os retirantes.
Rodolfo Teófilo, farmacêutico, literato e intelectual da época, relata que outros dois
fatores vão agravar a crise de 191520. Primeiro, “as sociedades mutuárias”, chamadas
“solidarísticas”. Fundadas em Fortaleza e em outros pontos do Ceará, estas sociedades
arruinaram a vida financeira do estado. “Os estelionatários que as criaram recebiam uma
quantia e, no fim de trinta dias, pagavam a quantia recebida, porém decuplada. Quem recolhia
quatro mil réis recebia quarenta mil réis”. “A insânia do jogo dominou a população” e
aconteceu um “verdadeiro contágio”. “Ninguém refletia no absurdo dos juros decuplando em
trinta dias a quantia depositada. Os que pensaram no caso e fizeram entradas estavam de má
fé, sabiam que os que viessem por último seriam logrados.” As “sociedades mutuárias”
espalharam-se por todo o estado e, com seus “efeitos maléficos”, causaram enormes prejuízos,
levando muitos comerciantes da capital de cidade do interior à ruína.
Outro fator apontado era “a guerra da Europa”, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
“Os produtos que importávamos subiram assombrosamente de preço e os que exportávamos”,
a exemplo do algodão, “ficaram muito tempo sem livre saída”, trazendo mais complicações
19
ESTADO DO CEARÁ. Mensagem dirigida à Assembléia Legislativa, em julho de 1916, pelo presidente do
Estado Cel. Benjamim Barroso. Fortaleza: Typographia Moderna, 1915, p. 12
20
TÉOFILO, Rodolfo. A seca de 1915. Op. Cit., p. 44
26
Fora isso, é relevante aludir ao tenso panorama político de 1915. De acordo com
Frederico de Castro Neves – numa referência a Raymond Williams –, dois conflitos vão ser
importantes para a mudança na “estrutura de sentimentos” com relação à seca de 1915: a
deposição de Accioly e a sedição de Juazeiro. Fora isso, deve-se levar em consideração, em
acréscimo, o processo de aformoseamento da cidade.
21
ESTADO DO CEARÁ. Mensagem dirigida à Assembléia Legislativa, em julho de 1916, pelo presidente do
Estado Cel. Benjamim Barroso. Fortaleza: Typographia Moderna, 1915, p. 14.
22
Muitos oligarcas foram depostos no governo do presidente da República do Brasil Hermes da Fonseca com a
chamada “política das salvações”, que visava impedir governos opositores nos estados, entre eles: Nogueira
Accioly, do Ceará, Euclides Malta, de Alagoas, Monsenhor Alfredo Leal e João Lopes Machado, da Paraíba,
Aurélio Viana, da Bahia, e João Antonio Luís Coelho, do Pará. LUSTOSA, Izabel. História de presidentes da
República no Catete. Rio de Janeiro: editora vozes-fundação casa Rui Barbosa, 1989.
27
E todo esse aformoseamento conflita com os “feios e sujos” da seca; era preciso
proteger os signos da modernidade. De acordo com Olivenor, “a presença de milhares de
retirantes na cidade, antes de ser a expressão de uma suposta modernidade, era o retrato vivo
da miséria.”25 Assim, os mesmos “flagelados da seca” que iam de encontro aos símbolos do
moderno, contribuíam com essa tal “modernização” e modificavam os espaços de maneira
ambígua. Com suas ações, trabalhando na capital Fortaleza, em obras públicas nos períodos
de estiagens prolongadas, as mãos dos retirantes das secas iam erigindo melhoramentos
urbanos e ao mesmo tempo incutindo medos e receios aos citadinos.
Dessa forma, os ideais de aformoseamento, que excluíam os sujeitos pobres das secas,
somados às confusões e choques sangrentos causados pela deposição do governo Accioly e a
sedição de Juazeiro, adicionados às mazelas das secas anteriores, enraízam-se na memória de
23
PONTE, SEBASTIÃO Rogério. Fortaleza Belle Èpoque: Reformas Urbanas e Controle Social. - 3ª Ed.
Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2001. Para maiores informações sobre esses acontecimentos ver: o I
capítulo do livro.
24
TÉOFILO, Rodolfo. A seca de 1915. Op. Cit., p. 43.
25
OLIVENOR, José. “Metrópole da fome: a cidade de Fortaleza na seca de 1877-1879. SOUSA, Simone e
NEVES, Frederico de Castro. (orgs) Fortaleza: história e cotidiano - Seca. Fortaleza: edições Demócrito Rocha,
2002. pág. 50.
28
muitos cearenses – tanto da Capital como do Interior – e inserem neles o medo de multidões
que possam gerar revoltas26.
No fim do século XIX e início do XX, além das estiagens que assolavam o Ceará,
perturbando as elites e incutindo medo em relação aos retirantes, a ação de cangaceiros já era
presente, como é visto em relatórios de Presidente de Estado do Ceará desse período. Saques e
invasões abalavam o Interior do estado. Dessa forma, a seca de 1915 vai ser marcada pelo o
medo de que a grande massa de sertanejos, banidos pela estiagem e tomados pela fome,
invadisse e saqueasse propriedades públicas e particulares. Uma parcela da população,
autoridades políticas e religiosas, desconfortáveis com os retirantes, tinha temor que o quadro
de outras secas – fome, prostituição, doenças, criminalidade, destruição e revoltas – repetisse-
se. Foi dentro dessa conjuntura de perturbações econômicas e conflitos políticos e sociais que
a seca de 1915 incorreu, abrindo as portas a uma grande calamidade.
Os anos de 1912, 1913 e 1914 foram de chuvas abundantes. Também o ano de 1915 se
iniciou com boas aparências, com chuvas em janeiro e fevereiro. Contudo, no mês de março,
que é visto como definidor, as chuvas não foram expressivas, desdobrando-se um longo
período de estiagem. Para muitos, não havia dúvida sobre a chegada de uma grande seca.
“Alguns espíritos otimistas apelaram para abril”, e até caíram algumas chuvas, mas, como
alega Rodolfo Teófilo, não foram suficientes para “minorar os efeitos dos flagelos”.27 Passou
maio e veio junho,
26
Para entender como os retirantes da seca se constroem enquanto multidão na história ver: NEVES, Frederico
de Castro. A multidão e a história: saques e outras ações de massas no Ceará. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
2002.
27
TÉOFILO, Rodolfo. A seca de 1915. In: Revista Conviver. Nordeste semi-árido. V.IV. Fortaleza: DNOCS,
2004.
29
28
A cidade de Sobral fica na região norte do Ceará, localizada nas proximidades do Rio Acaraú. Sobral recebeu
o status de cidade, em 12 de janeiro de 1841. A cidade muito cedo polarizou as atividades econômicas, tendo
como principais eixos econômicos a pecuária a e a agricultura, tornando-se também um importante centro
político estadual. Em 1864, já existiam 244 fazendas de criação de gado, exportando entre outros produtos couro
e sola. Anos mais tarde, Sobral ingressou na área industrial começando pelo algodão e aderindo logo depois ao
ramo de fabricação de tecidos. Além dessas outras atividades como a exportação de cera de carnaúba, oiticica,
óleo de algodão, couros peles, mamonas e artigos em palha foram desenvolvidas. Em 1920, a cidade já contava
com 39.003 habitantes enquanto a Capital Fortaleza tinha 78.536. Esses dados mostram, resumidamente, o
quanto esta cidade era importante econômica e politicamente; era a principal no norte, o que explica as inúmeras
obras realizadas em seus arredores durante os períodos de seca, inclusive na de 1915.
29
Jornal A Lucta, 1º de abril de 1915.
30
Trechos de uma poesia encontrada no Jornal A Lucta de 1º de abril de 1915.
31
ESTADO DO CEARÁ. Mensagem dirigida à Assembléia Legislativa em 1º de julho de 1915, pelo presidente
do Estado Cel. Benjamim Barroso. Fortaleza: Typographia Moderna, 1915.p.10. Essa afirmação é realizada num
telegrama expedido para o presidente Wenceslau Braz, em 25/5/1915, no qual o presidente do Estado reclama a
situação desesperada do povo cearense e pede a realização de obras para ocupar braços.
30
Os socorros enfim chegaram, mas a forma de assistência não agradou a todos. Era
alegado que as sementes eram insuficientes e que não havia possibilidade de utilizá-las em
meio ao clima de aridez. Dessa forma, era exigido do Presidente do Estado um socorro
imediato na forma de trabalho, a tempo de assistir os famintos.
32
Os textos dos parágrafos acima têm como base informações retiradas dos livros: TÉOFILO, Rodolfo. A seca
de 1915. Fortaleza: edições UFC, 1980; GUERRA, Felipe. A seca de 1915. In: ROSADO, VIngt-um e ROSADO
Américo. Décimo primeiro livro das secas. Coleção mossoroense. Volume cccv. Editora universitária. Natal
1985.
33
Exemplo: Jornais A Lucta de 19 de maio de 1915 e 26 de maio 1915.
34
Felipe Guerra nasceu no Rio Grande do Norte e viveu entre 1867 e 1951. Ele ocupou cargos de deputado
constituinte estadual, desembargador e procurador-geral do Estado. Em 1915, era juiz de direito da Comarca de
Mossoró. Guerra deixou alguns trabalhos voltados para a questão da seca, que, em sua maioria, tratam da fixação
do homem pela açudagem e pela irrigação e dos problemas, para ele, ligados à questão da seca: educação, saúde
e progresso social e econômico. Sobre a seca de 1915 deixou um valioso trabalho, entre outras obras produzidas
nesse ano, é a que retrata mais enfaticamente as ações especificamente da Comissão de Obras Novas.
35
Jornal A Lucta, 2 de junho d e 1915.
31
espera dos “auxílios do governo”.36 As notícias que chegavam eram de morte do gado,
esgotamento dos recursos para subsistência, saques e “pessoas enlouquecidas pela fome”.
A primeira medida tomada foi o embarque de retirantes para o Norte e para o Sul.
Primeiramente, “os flagelados foram levados para o passeio público”, depois para um local
nominado pelas autoridades públicas de campo de concentração, um lugar sem salubridade
alguma onde eram instalados milhares de retirantes à espera de trabalho ou passagens para
fora do estado. Alguns conseguiam embarcar e logo seus lugares eram preenchidos por outros
de “igual número que chegavam do interior”. “Aos que ficavam davam poucas horas” de
trabalho “nas ruas e praças.” “Esse serviço tinha como compensação o alimento abundante
para todo o pessoal do campo de concentração, a assistência médica e farmacêutica, além de
roupas para os mais necessitados.” Para outros eram dados trabalhos em estradas próximas e
açudes, “com o fim de evitar o expatriamento.” Quando ocorreu a “dissolução do campo de
36
Jornal A Lucta , 9 de junho de 1915.
37
SOBRINHO, Tomás Pompeu. O problema das seccas no Ceará. 2ª edição. Editores: Eugenio Gadelha &
Filho. 1920, P. 27.
38
Idem, ibidem., p. 23 e 25.
32
Apenas em julho de 1915 foi criada uma comissão especial, as Obras Novas Contra as
Secas, para combater a estiagem então corrente. Pompeu Sobrinho informa que só em
setembro “aportou o ex-inspetor das secas, em comissão especial”, quando “a capital
regurgitava de famintos”, “a emigração para fora do estado desfalcava a população válida” e
já “dezenas, senão centenas de pessoas haviam morrido de fome40”.
Nesse tempo em que a seca de 1915 assolou o Ceará e outros estados semiáridos, já
existia a Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS), funcionando com um numeroso pessoal
e muitos regulamentos41, contudo, foi julgada necessária a criação de outra repartição para
executar serviços contra a seca: a Comissão de Obras Novas Contra as Secas, cuja “direção
foi confiada a Aarão Reis, nome acatado e conhecido da engenharia nacional.” 42
Essa comissão foi criada em julho de 1915 e, através do decreto 2.974, de 15 de julho
de 1915, autorizou “abrir os créditos extraordinários, até a importância de 5.000:000$, para
serem aplicados em obras de reconhecida utilidade na zona do Nordeste assolada pela seca”.
Na mesma data, o Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, usando da
autorização constante do decreto legislativo número 2.974, abriu ao Ministério da Viação e
Obras Públicas (MVOP) o referido crédito.
Esta comissão tinha por objetivo principal realizar obras, entre elas, as que
possibilitassem o escoamento de água e ocupassem um grande número de retirantes para
evitar o êxodo imigrantista. Junto ao campo de concentração da seca, localizado no bairro
Alagadiço, em Fortaleza, as construções da Obras Novas fez parte da estratégia de evitar as
migrações e isolar os retirantes temendo invasões e saques. No campo de concentração,
milhares de retirantes foram segregados em más condições de higiene, recebendo péssima
39
ESTADO DO CEARÁ. Mensagem dirigida à Assembléia Legislativa, em julho de 1916, pelo presidente do
Estado Cel. Benjamim Barroso. Fortaleza: Typographia Moderna, 1916. p. 7 e 8
40
SOBRINHO, Tomás Pompeu. O problema das secas. Op. Cit., p. 27.
41
O decreto de número 11.474, de 3 de fevereiro de 1915, relata a reorganização da inspetoria e do quadro do
pessoal dessa repartição, que ficou constituído por 123 funcionários 73 efetivos e 46 adidos. O cargo de inspetor
saiu de Aarão Reis para o chefe da secção técnica José Ayres de Souza.
42
GUERRA, Felipe. A seca de 1915. In: ROSADO, VIngt-um e ROSADO Américo. Décimo primeiro livro das
secas. Coleção mossoroense. Volume cccv. Editora universitária. Natal 1985. P.13.
33
A não-vinculação total com a IOCS significa que o inspetor Aarão Reis tinha autonomia
para tomar as decisões concernentes a esta comissão, quando a Obras Novas não era parte
inteira da IOCS. Mas, deveria haver entre as Obras Novas e os distritos da IOCS uma
convivência na execução das obras de combate às secas. Assim ocorria, pois muitos
profissionais, materiais de construção e estudos de açudagem eram aproveitados da IOCS.
Fora isso, correspondências eram trocadas entre a Comissão de Obras Novas e a Inspetoria
das Secas e os regimentos – concernentes ao funcionamento, hierarquia, deveres dos
funcionários e outros – eram baseados em regulamentos da IOCS.
As “Instruções para a execução de obras contra as secas, a que se refere à Lei n. 2.974,
de 15 de julho de 1915”, e que tinham de “ser executadas por intermédio da inspetoria,”44 só
foram aprovadas pelo ministro Tavares Lira, em 3 de setembro de 1915. Estas instruções
visavam mais à organização burocrática dos serviços informando sobre designação de
profissionais para o trabalho nas obras, liberação de verbas, controle da presença do pessoal
nas obras, organização e cuidado com materiais para a construção e do intermédio da
Inspetoria das Secas. No entanto, muitas dessas instruções só funcionavam no mundo das
idéias, nas palavras do próprio Aarão Reis, os regulamentos eram “feitos para a normalidade
da vida burocrática”, mas não podiam “regular a vida de um momento agitado em que a ação”
precisava “ser pronta para ser profícua”, que era o que as secas exigiam.
43
GUERRA, Paulo de Brito. A civilização da seca: o Nordeste é uma história mal contada. Fortaleza: DNOCS,
1981, p. 49
44
REIS, Aarão. Obras Novas Contra as Secas. Op. Cit., p. 32 a 38.
34
45
Aarão Reis, com a aprovação do Ministério da Viação e Obras Públicas, sob a direção de Tavares Lira
,aprovou a seguinte lista de encarregados para os açudes públicos das Obras Novas no Estado do Ceará.
-Riacho do Sangue _ Engenheiro de 2ª classe adido Pedro Cirlaline
-Patos _Condutor de 1ª classe efetivo Rômulo Campos
-Parazinho _ Engenheiro de 2ª classe adido Floro Edmundo Freire
-Guaíuba _ Condutor de 2ª classe efetivo Américo Nery
-Velame _ condutor de 1ª classe efetivo Henrique Pyles
-Caio Prado_ condutor de 2ª classe adido Severino de Oliveira.
- Várzea da Volta _ condutor de 2ª classe adido José Rodrigues Ferreira.
46
Reis. Aarão. Obras Novas contra as Secas. Op. Cit., p. XXXVIII. Quanto a essas instruções , observa-se, no
terceiro capítulo, o seu funcionamento no cotidiano dos trabalhadores.
35
acordo com Paulo Brito Guerra47, alguns itens não funcionaram bem, como ocorreu em
diversos regulamentos de outros momentos da Inspetoria das Secas. É intrigante pensar os
motivos que levaram à criação da Obras Novas, pois qual seria o objetivo de criar uma
comissão para lidar com os problemas das secas, quando já existia uma repartição nacional de
combate às secas – a IOCS?
O que defende Brito, na sua obra a civilização da seca, é que a Obras Novas foi uma
grande “comissão desmembrada da inspetoria pelo rio-grandense Tavares Lira”, ministro da
Viação e Obras Públicas, “visando aplicar os vultosos créditos especiais”. O objetivo da
criação da comissão especial era “simplificar o processo decisório, ativar a execução de
planos e facilitar a aplicação de verbas”. 48 Quando essas comissões eram criadas, “assumiam
a maior responsabilidade na execução das principais realizações, restando aos distritos das
obras, bastante esvaziados, pouco mais que os trabalhos de conservação, as obras menores”.
Já Felipe Guerra diz não saber o “porquê dessa desautoração à inspetoria”, criando essa
comissão, pois mesmo que em 1914 a IOCS estivesse “produzindo resultados deficientes”,
não era “culpa da repartição”. Já o chefe da Inspetoria de Obras Contra as Secas, Aarão Reis,
discorre, em relatório de 1914, que era “da mais deplorável deficiência os resultados” e “os
esforços” da inspetoria, naquele ano, “no sentido de dar regular desempenho a sua árdua
missão nos estados sujeitos às secas periódicas49”.
De qualquer modo, a Comissão Obras Novas Contra as Secas foi criada e praticamente
tomou para si a responsabilidade na execução dos trabalhos de socorros durante a seca de
1915. O inspetor das Secas, Aarão Reis, não estava satisfeito com os resultados das ações da
IOCS, nos anos anteriores a 1915, de prevenção e combate aos efeitos das secas. Este podia
ser um motivo para a criação da Obras Novas. Outro seria a tentativa de facilitar, apressar a
liberação de créditos, multiplicando as quantias, justificando no fato de serem duas
repartições realizando obras contra a seca, que já estava declarada. Em 1915, Aarão Reis
afastou-se de seu cargo de direção na Inspetoria justamente para dirigir a nova comissão.
47
GUERRA, Paulo de Brito. A civilização da seca: o Nordeste é uma história mal contada. Op. Cit.,p. 49
48
Idem, Ibidem, p. 49
49
GUERRA, Felipe. A seca de 1915. Op. Cit., p.13
36
Aarão Reis, assim como outros profissionais da engenharia, era partidário da idéia de
que o problema da estiagem seria resolvido por meio de obras públicas, especialmente a
construção de estradas de rodagem e açudes. As estradas de rodagem eram importantes por
“dar ao Nordeste brasileiro fácil e geral circulação, não só para os produtos como para os
elementos da produção”. E os açudes públicos seriam para o esforço de “tornar especialmente,
a circulação das águas tão normal, pela arte, quanto e como for possível52.”
É relevante expor, mesmo que de forma sucinta, uma linha do itinerário particular de
Aarão Reis, já que, dessa forma, entendem-se mais facilmente, em seguida, alguns traços da
gestão de Aarão Reis e medidas tomadas na política da Obras Novas. Reis foi inspetor da
IOCS entre os anos de 1913 e 1915, mas, antes disso, teve algumas experiências em serviços
com obras públicas que merecem destaque53.
50
REIS, A. Obras Novas Contra as Secas. Op. Cit., p. 230.
51
Aarão Reis nasceu em Belém, no ano de 1853, tendo como mãe Anna Rosa Leal de Carvalho Reis, que era de
família abastada, e pai Fábio Alexandrino de Carvalho Reis, que foi membro do Partido Liberal do Maranhão,
professor e funcionário público. Mais tarde, ele mudou-se para o Rio de Janeiro, onde teve oportunidade de
frequentar boas escolas como o Ateneu Fluminense e a Escola Central. Na mesma cidade adquiriu os títulos que
lhe possibilitariam o acesso a cargos privilegiados do serviço público. Em 1872, ele concluiu o curso de
engenheiro geógrafo, na Escola Central do Rio de Janeiro (depois Escola Politécnica); bacharelou-se em
Ciências Físicas e Matemática, em 1873, e, em 1874, adquiriu o titulo de engenheiro civil.
52
REIS, A. Obras Novas contra as Secas. Op. Cit., p. 245.
53
As informações sobre os feitos de Aarão Reis na construção de Belo Horizonte foram recolhidas do seguinte
livro: SALGUEIRO, Heliana Angotti. Engenheiro Aarão Reis: o progresso como missão. Belo Horizonte:
Fundação João Pinheiro. Centro de Estudos Históricos e Cultuais. 1997.
37
esteve presente na Obras Novas. A ordem e a hierarquia eram reveladas nos traçados e limites
das ruas, assim como preocupações com salubridade, embelezamento e comodidade54. Na
construção da Capital de Minas Gerais, o engenheiro politécnico teve a liberdade na escolha
da equipe de trabalho. Isto era um traço de Aarão Reis, pois, na Comissão de Obras Novas,
ele também requereu de forma enfática a escolha dos profissionais que compuseram a equipe.
Fora a carreira técnica, Aarão Reis trabalhou deixando uma vasta produção
bibliográfica. Ao longo de sua carreira, ele traduziu várias obras francesas que tratam de
idéias sobre progresso, amor à humanidade e ao bem público57. Além disso, ele escreveu
54
A concepção positivista do plano da cidade também é revelada no prédio, residência governamental, o Palácio
da Liberdade. Ele apresenta, em sua decoração interna, as palavras “Saudação, Trabalho, Fortuna e Esperança”,
além de símbolos à Ordem e ao Progresso, à Liberdade e à Fraternidade.
55
Ainda durante o governo imperial, foi solicitado ao engenheiro estrangeiro, Jules J. Revy, um estudo acerca do
problema das secas. O engenheiro foi responsável pelo o estudo de três açudes: Boqueirão de Lavras, Cedro e
Itacolomí. Os estudos forneciam informações sobre as condições dos terrenos, área cultivável, aspectos da
região, entre outros. Com o projeto aprovado, em 1884, e tendo suspensos seus serviços diversas vezes, foi
concluído em 1906.
56
Além desses dois relevantes trabalhos apontados acima, o engenheiro em questão teve outras funções
importantes: a de diretor-geral da Secretaria de Estado da Agricultura, Indústria, Viação e Obras Públicas(1889-
1990); diretor-geral da E. F. Central do Brasil, no período de 1906 a 1910; engenheiro- chefe da Estrada de Ferro
Elétrica da Tijuca (RJ); fundador e presidente da Empresa Industrial (Fábrica de Fósforos) Serra do Mar (1899-
1906); presidente do Automóvel Clube do Brasil (1909); diretor do Lloyd Brasileiro (1910); diretor dos Correios
e Telégrafos, do Banco da República, hoje Banco do Brasil, membro da Sociedade de Geografia e do Centro
Industrial da então Capital da República; membro da “Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional” e diretor da
“Liga do Ensino do Brasil, além de ter sido membro do Clube de Engenharia e sócio honorário da “Associação
dos Engenheiros Civis Portugueses”. Aarão Reis atuou ainda como professor no curso secundário de Matemática
e Geografia e de Economia Política, Estatística, Direito Administrativo e Princípios de Contabilidade e
Navegação, na Escola Politécnica do Rio.
57
A republica constitucional de laboulaye, em 1873 , a idéia de deus segundo littré, em 1878, e a escravidão dos
negros de condorcet, em 1881.
38
muitos textos técnicos e didáticos58. Dentre os didáticos, pode-se citar duas obras importantes
da sua carreira, destinadas aos seus alunos da Escola Politécnica: Economia política, finanças
e contabilidade59 e Direito administrativo brasileiro60.
Os textos de Aarão Reis devem ser inseridos na lógica do seu tempo. Assim, como
outros sujeitos influenciados pelo positivismo no Brasil, Reis levantou algumas bandeiras,
como a luta pelos ideais republicanos, pela a abolição da escravatura, pelo liberalismo
político, pelo ecletismo. Ademais, escreveu sobre temas que discutem o domínio da natureza,
a regeneração do homem, o progresso do país, problemáticas presentes nas obras de Reis e
que podem ser visualizadas no pensamento que regeu a Obras Novas.
É relevante frisar que a crença de Aarão Reis, assim como de outros profissionais de
sua época, é a de que aos sábios instruídos pela ciência cabia a administração dos negócios
públicos. Em sua essência, Aarão Reis, à frente da Comissão de Obras Novas, reproduziu
pensamentos e sentimentos que são encontrados em suas produções bibliográficas e
experiências como gestor público em outras obras. Tematizando a seca como questão
nacional, ele defenderá as obras de engenharia hidráulica e civil e executará, mediante fundos
e verbas liberadas, construções que uniriam a viabilidade do escoamento da água e o uso da
mão-de-obra dos retirantes. No entanto, ele perceberá que muitas questões sociais das obras
públicas das secas não podiam ser enquadradas e resolvidas pelas tais “leis invariáveis” da
ciência, mediante a racionalidade técnica.
58
Entre trabalhos da sua produção técnica, pode-se citar: A engenharia e as obras públicas no Brasil (1 vol.
1880); A luz elétrica pelo sistema de Edison, aplicada à iluminação particular (1 vol., 1882); A transmissão e a
distribuição elétrica de força (1 vol., 1884); A eletricidade em 1886 (1 vol., 1888); Relatório da Comissão de
Estudo das localidades indicadas para a nova Capital (apresentado ao Governo de Minas Gerais, em 1893);
Relatório Geral dos trabalhos da Comissão Construtora da nova Capital de Minas Gerais, em Belo Horizonte
(2 vol., 1895); Inspetoria de Obras contra as Secas (1 vol., 1924, Imprensa Nacional). Relativamente à sua
produção acadêmica: Trigonometria esférica (tradução da obra de Dubois; 1 vol., Rio de Janeiro, 1872; Lições
de álgebra elementar (1 vol., Rio de Janeiro, 1876); Estatísticas morais e aplicação do cálculo das
probabilidades a este ramo de estatística (Rio de Janeiro, 1 vol., 1880); Curso elementar de matemática.
Teórico, prático e aplicado. I – Aritmética (1 vol., Rio de Janeiro, 1893 Curso elementar de matemática. II –
Álgebra (1 vol., – Cálculo das formações diretas: 2 vol., – Álgebra complementar. Rio de Janeiro, 1902).
59
REIS, Aarão. Economia política, finanças e contabilidade. Rio de Janeiro. Imprensa Nacional, 1918.
60
REIS, Aarão. Direito administrativo Brasileiro. Rio de Janeiro. Villas Boas e Cia., 1923.
39
Aarão Reis, inspetor da Obras Novas, discorre, na epígrafe, sobre a situação do meio e
do homem com a chegada de uma seca, que é posta como empecilho às condições “normais”
de ambos. Ele argumenta que a lida diária fica impossibilitada com o esgotamento dos meios
de sustento e assim, junto a essa exaustão, vêm a fome, o perecimento das forças e a morte.
No início de 1915, quando Aarão Reis ainda era o inspetor do órgão de combate às
secas, foi chamado para uma entrevista com o Jornal do Comércio. Em sua explanação, Reis
exclama que já havia prenúncios da “temerosa seca”, traduzidos “nos telegramas alarmantes”
que recebia diariamente. Este inspetor alega que a seca chegava num momento complicado,
em que os “poderes públicos” tinham “de enfrentar mais esta dolorosa calamidade pública,
sobrevinda em meio das aperturas da mais grave situação financeira”, que vinha
“atravessando a república”. No Ceará, a calamidade era mais agravada “pela profunda
perturbação econômica decorrente das lastimáveis lutas armadas” dos “últimos dois anos”. A
revolta da população da Capital cearense contra o Governo Accioly, em 1912, que culminou
numa violenta manifestação com tiroteios, depredações e mortes, somada a sedição de
Juazeiro, marcada por saques e invasões, dizimando plantações e gado, fragilizou a realidade
política e financeira do Ceará.
61
REIS, Aarão. Obras Novas Contra as Secas. Op. Cit., p. 232
62
TÉOFILO, Rodolfo. A seca de 1915. Op. Cit. P.32
40
Esta solução pela açudagem não era algo restrito à seca de 1915. O açude64 foi
apontado por políticos e intelectuais do século XIX e também do início do XX como a
remediação para o problema da seca. E mesmo existindo alguns estudiosos que criticavam
essa solução, a maioria tinha nos açudes a saída para a problemática reincidência das
estiagens. Esta polêmica faz parte de uma multiplicidade de questões, que pouco foram
exploradas na história das secas, merecendo maior atenção de novos pesquisadores.
Assim, na seca de 1915, o açude também foi pauta importante da política da Comissão
de Obras Novas, pois, entre estradas de rodagem65, perfuração de poços e açudes, os últimos
encontraram-se em número mais elevado no planejamento de combate a esta seca. Entre as
obras planejadas para estados do Nordeste em situação de calamidade, estavam: 15 açudes, 5
a ativar66 e 10 a iniciar, fora os açudes particulares. Entre outras obras, estão 6 estradas de
rodagem e perfuração de poços.
Esta preferência pelo açude ocorre, entre outros motivos, porque a seca era vista como
escassez de água e o açude era posto como mola mestra para resolver este problema, pois
permitia o acúmulo de água e também por absorver as “avalanches de flagelados” que
inundavam as cidades com “tenebroso espetáculo”.
63
O açude Orós só foi construído na década de 1960, mas já existia um açude projetado em tais proporções com
esse nome.
64
De acordo com Guerra (1981, p. 142) “(...) qualquer reservatório de água nascido da interceptação de uma
corrente, e compreende ao mesmo tempo a barragem, isto é, um dique de terra ou concreto que detém o curso
d’água e o lago por ele formado.”
65
Outra obra pública é bastante mencionada pelo inspetor Reis como forma de diminuir os flagelos das secas: as
estradas. Ele alega que, junto aos açudes, as estradas de penetração servirão para “resistir melhor às terríveis
agressões do seu cruel e pertinaz inimigo, sem ter a união que realizar, por conta das secas, despesas
avultadíssimas.” As estradas, além de “facilitarem o acesso” aos variados “elementos naturais”,“ prolongadas até
ao sertão e ramificadas para os pontos convenientes, servirão para facilitar ao governo ir ao socorro das
populações famintas nos mais longínquos pontos do interior, levando-lhes os víveres que o solo requeimado lhes
estiver negando.”
66
Essas obras já estavam em construção.
41
Como explana Aarão Reis, esta obra permitiria “tornar especialmente, a circulação das
águas tão normal, pela arte, quanto e como for possível67”. Sem essa obra e, assim, sem a
água, não haveria “produção da riqueza” e não poderia a nação “elevar-se gradualmente” à
“civilização e ao progresso”. Então, o açude era tido como o antídoto da seca. Essa obra
impediria a anormalidade da circulação da água que era posto por Aarão Reis como
“imprescindível” para a “operação da produção da riqueza”:
No entanto, na política da Obras Novas Contra as Secas, não só pela solução dos
aspectos naturais, o açude era o preferido. Outros aspectos da primazia pelo açude podem ser
apreendidos. Se os açudes eram objetos da ciência para resolver o problema da estiagem pelo
acúmulo de água, com o represamento desta para as secas posteriores, outro problema podia
ser evitado: o êxodo rural. No discurso do inspetor Aarão Reis, é exposta a crença no açude
concluído com o fim de fixar o homem à terra de origem:
67
REIS, Aarão. Obras Novas Contra as Secas. Op. Cit. 245
68
Idem, Ibidem., p. 230
69
Idem, Ibidem., p. 237
70
De acordo com Tomás Pompeu Sobrinho, “nos anos de crise”, havia a necessidade de implantar um plano
especial. Deveriam ser organizadas obras capazes de comportar muitos operários e pouco maquinismo. As
42
maneira emergencial de combater os problemas gerados pela seca de 1915, era interessante
que fossem planejadas construções que acompanhassem o tempo da estiagem. As construções
de açudagem eram pensadas, então, para durar pouco tempo, concentrando mais serviços no
tempo da crise. E além de obras de acúmulo de água, os açudes tinham a missão de dar
trabalho e manter os retirantes ocupados enquanto durasse o flagelo.
grandes obras, “de natureza lenta”, ficariam para os anos normais. SOBRINHO, Tomás Pompeu. O problema
das secas. Op. Cit., p. 59
71
Essa questão é melhor trabalhada, posteriormente na dissertação, tanto no plano das idéias como nas ações dos
engenheiros e retirantes em torno dessa ocupação.
72
REIS, Aarão. Obras Novas Contra as Secas. Op. Cit., p. V.
43
Então, sendo o trabalho visto como elemento edificante e instrumento da ordem social,
a política da Obras Novas tinha o intuito de converter a população faminta em trabalhadores
de frentes de serviços. Assim, as obras objetivavam amparar, mas com o trabalho, que traria o
justo auxílio, afastando a condição aviltante e o ócio.
A aversão ao êxodo dos retirantes vem com força na seca de 1915. É interessante
relatar o fato de que a oposição ao êxodo foi existente em outros momentos de secas. Muitos
intelectuais cearenses e também do restante do país – a exemplo do próprio inspetor da Obras
Novas, Aarão Reis – rejeitavam o apoio dado às migrações nas épocas de crise, quando estas
eram aconselhadas para exportação do problema, apontando outras soluções.
As secas motivam as migrações que são para os retirantes uma forma de contornar os
problemas decorridos da calamidade73. Em muitas estiagens prolongadas, houve levas de
pessoas migrando para o Norte e para o Sul, sendo o Norte o principal destino. A esperança de
fazer riqueza na Amazônia levava os retirantes a enfrentar um percurso perigoso, maus-tratos
e, na chegada, difíceis condições de trabalho nos seringais. Contudo, se a emigração era a
esperança de muitos retirantes em épocas de secas, configurava-se uma saída governamental
diante da falta de recursos, desfazendo-se do problema.
73
É viável pontuar que não se pode naturalizar a relação seca-migração como causa e conseqüência. Ocorrida
uma seca, muitos sujeitos migram buscando soluções para seus problemas, mas a estiagem é um entre os muitos
outros fatores envolvidos na motivação das migrações. Além do que, falar em miséria, em apertos do ponto de
vista econômico, é falar de momentos de chuva e de seca, pois as migrações (assim como a pobreza) não cessam
quando as chuvas caem. Um aluno do mestrado da Universidade Federal do Ceará, Alexandre Isídio Cardoso,
tem uma pesquisa em andamento que discute como a seca não inaugura a miséria e nem a migração, porque
esses dois fatores já estão presentes, o que a estiagem promove é uma potencialização dessa problemática.
44
Muitas dessas obras estavam sob a competência da Obras Novas, e mesmo com os
trabalhos desta comissão iniciando somente em outubro, quando havia meses já durava a
crise, a chegada das construções da Obras Novas tinha um claro objetivo de evitar mais
invasões de levas de retirantes, que já se alastravam desde anunciado o flagelo.
De acordo com ele, a prosperidade da Amazônia aumentava a cada dia devido a esses
braços. Quando muitos retirantes “cearenses e rio-grandenses do norte” eram “seduzidos e
enviados” para tal local pelas autoridades públicas sob “o pretexto de livrá-los da morte pela
fome e pela peste”, nos períodos de estiagem. Diante dessa afirmação de Aarão Reis, cabe
uma crítica: este engenheiro trata o migrante como um sujeito passivo diante do processo,
74
TÉOFILO, Rodolfo. A seca de 1915. Op. Cit, p. 60
75
REIS, Aarão. Obras Novas Contra as Secas. Op. Cit. P.20
76
Idem, Ibidem. P. 8
45
quando alega que os retirantes eram “seduzidos e enviados” para outro estado. Muitos
intelectuais ainda se prendem à visão que resume os retirantes a uma massa inerte, seguindo
ordens das políticas governamentais, no entanto, onde está o papel do próprio migrante? Era
só baixar a cabeça e ir rumo ao Norte ou Sul? Deve-se considerar que, mesmo num momento
de calamidade, as escolhas dessas pessoas em migrar e as linhas que ligavam esses sujeitos ao
Norte ou Sul – família, imaginário, esperança, – eram frutos de sua vontade, não algo imposto
pelo o estado e seguido pelos sertanejos.
Ocorre que esse êxodo causava sofrimento aos que se retiravam, mas causava danos
também aos donos de terras que dependiam dessa mão-de-obra em tempos bons. De acordo
com Frederico de Castro Neves, em anos de chuvas abundantes, os latifundiários mantinham
seus trabalhadores, garantidos por um “sistema de troca de favores”. Contudo, em épocas de
secas, as garantias deste sistema ficavam debilitadas. Existem relatos de grandes donos de
terras, que faliram em épocas de secas; nesses casos, manter os “seus” trabalhando era uma
remota possibilidade77.
No romance o Quinze, de Raquel de Queiroz, essa questão fica evidente quando a
proprietária de terras, Dona Maroca, manda liberar todo o gado do curral e dispensa seus
trabalhadores para que eles escolham outros “destinos”. Assim ocorria, mas muitos migrantes
não retornavam ao seu local de origem, principalmente os que iam para outros estados,
77
Durante muito tempo, os latifundiários asseguraram seus trabalhadores mesmo em tempos difíceis. Em épocas
de secas, havia o costume de conceder terras férteis para o deslocamento dos sujeitos. No entanto, dois
acontecimentos modificaram essas relações. Primeiro, a Lei de Terras, de 1850, com esta a terra passou a ter um
valor monetário estimado, a limitação dos espaços deram-se de forma rápida, restringindo os espaços a ser
ocupados pelos camponeses na época das secas. Outro acontecimento importante que contribui para o
desmantelo dessas relações foi o crescimento da agricultura comercial do algodão, que ampliou as áreas
destinadas ao mercado externo, principalmente com a Guerra Civil dos EUA, em 1870. “Esses dois fatores
fecharam as portas das migrações colocando os camponeses diante do abismo da seca de 77, sem a proteção a
ruína dos camponeses foi rápida e cruel.” NEVES, Frederico de Castro. “A seca e o homem: políticas
antimigratórias no Ceará.” TRAVESSIA, REVISTA DO MIGRANTE. São Paulo:C EM,n.25,maio – agosto,
p.18- 24, 1996. p.19
46
De acordo com Roseane Vasconcelos, a propósito, as secas podem ser vistas como
momentos em que se abrem oportunidades de “fortalecimento das oligarquias sertanejas”,
mediante “a aplicação de verbas do estado para financiar a retenção de mão-de-obra ocupada
na implementação de benfeitorias nas grandes propriedades78”. Percebe-se, então, que
enquanto para alguns a seca representa pobreza, para outros, é um benefício. Grandes
proprietários, haja vista a leitura de alguns documentos oficiais e bibliografia, foram
beneficiados com créditos e obras em suas propriedades sob alegação de organizar meios de
resistência às estiagens.
Declarada a seca de 1915, muitos fazendeiros sem meios de manter seus trabalhadores
recorreram ao Estado para ocupar estes, utilizando como pretexto auxiliar os “flagelados”,
garantindo o retorno da mão-de-obra para os trabalhos nos seus latifúndios.
Outra intenção que acompanha a política de controle do êxodo, realizada pelas Obras
Novas, é o controle e o isolamento desses sujeitos assolados pelas secas dentro de suas
construções. Manter o retirante afastado dos núcleos urbanos da população, especialmente da
Capital Fortaleza, mediante o represamento deles nas obras, era uma medida que objetiva
afastar o perigo e o incômodo da sociedade, aplacando seus receios e ansiedade. 79
78
CARVALHO, Rejane V. Aciole. O estado, a Terra e O Coronelismo. Rio de Janeiro: Coleção Mossoroense.
Série C. Volume DCCI, 1991., p. 20. Nessa afirmação, a autora refere-se ao sistema de prêmios do DNOCS. De
acordo com Paulo Brito, a açudagem em cooperação funciona da seguinte forma: “ O DNOCS efetua os estudos
de campo, elabora o projeto e o orçamento da obra e paga um prêmio ao proprietário, de 50% e até 70%,
tratando-se de obras públicas municipais ou estaduais.” Ocorre que muitos proprietários utilizam somente o
dinheiro do prêmio, utilizando os braços da fazenda e não dá acesso e torna o açude privado, quando não dá
acesso a todos, a água fica retida nele.
79
Essa questão é visível ao longo de outros capítulos e bastante discutida no último tópico do terceiro capítulo
desta dissertação.
47
Localização dos açudes da Obras Novas (cor azul) e os municípios (cor vermelha) onde estão localizados
atualmente.
48
No mapa acima estão situados os açudes que tiveram suas construções iniciadas pelas
Obras Novas entre os anos de 1915 e 1916. As construções localizavam-se onde se
assentavam os que se retiravam. Assim, os retirantes ocupados nas obras podiam ser afastados
dos núcleos populosos, das elites que moravam em cidades como Sobral e Fortaleza,
diminuindo o incômodo que podiam causar.
É relevante ressaltar que algumas dessas obras estavam localizadas nas proximidades
das estações das estradas de ferro Sobral-Fortaleza e Baturité-Fortaleza. Considerando que
estas seriam os principais veículos dos que desejassem chegar à Capital, levantar obras nos
seus arredores era uma medida ardilosa.
Assim, uma das políticas da Obras Novas era criar diversas frentes de trabalho no
Interior para que uma grande massa de retirantes, com seus problemas, ficasse longe da
Capital e dos símbolos do progresso. Todavia, essa medida fazia parte de uma estratégia
maior de isolamento que se somava ao campo de concentração81 da seca de 1915. Para esse
local foram levados muitos retirantes que chegaram à Capital cearense sob alegação de assisti-
los. Lá, eles eram isolados e vigiados, sob uma rotina de fome, epidemias e mortes. O campo
tinha o objetivo de afastar os retirantes da sociedade fortalezense, preservando a higiene e a
moralidade, já que eles representavam um perigo à ordem pública e aos padrões de conduta.
Contudo, para o farmacêutico e sanitarista Rodolfo Teófilo, com péssimas instalações físicas
80
No mapa, está exposta a nomenclatura atual referente aos municípios onde estão situados os açudes. Nas
fontes, são feitas referências quanto a outros nomes de localização dos açudes. As alterações ocorridas no nome
do espaço onde estão localizadas as obras se devem a mudanças territoriais, que tiraram açudes de dentro dos
limites dos municípios para outros, ou nominais, quando alguns municípios mudaram o nome.
81
Na seca de 1932, foram instalados vários campos de concentração, em diversos locais do estado do Ceará, para
o confinamento de retirantes. Segundo a historiadora Kênia Rios, os campos eram justificados como um meio de
assistência aos famintos da seca de 32, mas a realidade que se configurava era outra. Ver: RIOS, Kênia Souza.
Campos de concentração no Ceará: Isolamento e poder. Fortaleza Museu do Ceará/SECULT, 2002.
49
e sanitárias, a medida de aglomeração dos retirantes nesse campo contribuiu para a morte de
muitos.
Rodolfo Teófilo relata, no contexto da seca de 1915, que a Inspetoria das Secas, no
momento em que se instalava o estado de calamidade, não se preocupava em agir diminuindo
os sofrimentos dos retirantes. O diretor da instituição não tinha consciência da gravidade do
problema, não residia “na terra da seca”, morava no “Rio de Janeiro, instalado em um palácio,
82
TEÓFLO, Rodolfo. A Seca de 1915. Op. Cit. 60. O abarracamento que ele cita é o campo de concentração da
seca de 1915, que foi criado para concentrar os retirantes que chegavam à Capital, na seca, isolando-os,
afastando-os do meio social.
50
No início do ano de 1915, Aarão Reis ainda era o inspetor das Secas e era cobrado
para que informasse com urgência sobre as obras já estudadas que pudessem ser iniciadas
para atenuar os efeitos da “calamidade cruel”. Assim, com todos os problemas já em
evidência e muitas cidades importantes sendo ocupadas por “famintos e maltrapilhos”, a
medida tomada foi o início de 27 obras em vários estados: Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí,
Paraíba, Pernambuco e Sergipe.
De acordo com Tomás Pompeu Sobrinho, as providências que foram tomadas pelo
governo federal contra a seca de 1915, através da Inspetoria das Secas e da Comissão de
Obras Novas, “foram tardias e insuficientes”84. Elas foram tardias se se considerar que os
socorros demoraram a chegar – por meio de liberação de verbas e início das obras públicas
para dar serviço ao retirante – e insuficientes por não ter lotado nessas obras uma parcela
diminuta dos necessitados.
Dessa forma, um dos problemas foi a demora de créditos, que só foram abertos em
julho, bem depois dos primeiros alarmes. Rodolfo Teófilo relata que:
83
Em anexo um quadro com as despesas desde a criação da Inspetoria de Obras Contra as Secas até 1919.
84
SOBRINHO, Thomaz Pompeu. História das Secas (século XX). Mossoró: Coleção Mossoroense, volume
CCXXV , 1982. P. 31
85
TEÓFLO, Rodolfo. A Seca de 1915. Op. Cit. 68
86
Idem. Ibidem, p. 51
51
naquele ano duas estradas de ferro no Ceará, a de Sobral e a de Baturité, tornando o trajeto de
alguns retirantes menos sofrido.
87
Isto vai ser uma problemática que permeará toda a dissertação.
88
Idem. Ibidem, p. 69
52
muitos retirantes eram afastados do serviço. O engenheiro não podia manter um trabalhador
enfermo nem podia prestar socorro ao doente, já que a assistência médica, de acordo com as
instruções da Obras Novas, era papel do Estado. O diretor Aarão Reis não atentava para o fato
de que muitas obras eram realizadas no sertão, bem longe dos núcleos comercias e urbanos, e
assim da assistência médica89.
89
GUERRA, Felipe. A seca de 1915. Op. Cit, p 14.
90
SOBRINHO, Tomás, Pompeu. O problema da seccas. Op. Cit., p. 44 e 59.
91
Concluídas:
Açudes: Anajás( Piauí);Bahú, Guaiuba, Patos, Caio Prado, Mulungu, Parazinho e Riacho do
Sangue(Ceará);Saco, Pessoa e 25 de Março(Rio Grande do Norte);Cajazeiras e Bodocongó (Paraíba); Serra dos
Cavalos ( Pernambuco)
Estradas de Rodagem:
Baturité a Guaramiranga e Sobral a Meruoca (Ceará),;Campina Grande a Soledade (Paraíba)
92
Por Concluir:
Açudes: Açude Várzea da Volta, Açude Velame, (Ceará); Açude Arapuá, (Rio Grande do Norte)
Estradas de rodagem: de Floriano a Oeiras, (Piauí); de Macau a Assu, (Rio Grande do Norte)
Aterro da Lagoa Própria, Sergipe.
93
Interrompidas:
Estradas de rodagem: do Rio Branco a Buique, (Pernambuco);de Cajazeiras a Souza, (Paraíba); de Quixadá ao
Riacho do Sangue, (Ceará); Estrada de Rodagem de Mossoró a Alexandria, Rio Grande do Norte.
53
Para o Ceará, a seca de 1915 foi desastrosa. A população muito sofreu e a economia da
região recebeu grandes prejuízos. Contudo, assim como em outras secas, os estragos não
ocorreram somente no ano em que a calamidade foi declarada. Um ano posterior a um ano de
estiagem é difícil, pois muitos recursos estão esgotados, impossibilitando uma volta rápida à
normalidade das ações cotidianas. De fato, o ano de 1916 também foi marcado por muitos
danos.
94
TÉOFILO, Rodolfo. A seca de 1915. Op. Cit, p. 88.
95
GUERRA, Felipe. A seca de 1915. Op. Cit., p. 37
54
Em relatório de 191696, Benjamim Barroso alega que, “diante da crise geral, agravada
pela seca,” houve uma desorganização da “vida do Estado”, estancando por completo “muitas
fontes de riquezas”, avolumando as “dificuldades financeiras”.
Benjamim Barroso acrescenta que muitos foram os agravos morais e sociais, entre
eles, os principais eram a emigração e as mortes. Mesmo com todas as pelejas contra as
migrações, principalmente para fora do estado, grande foi o número dos emigrantes. Pelo
porto de Fortaleza saíram 50.783 passageiros de terceira classe, sendo por conta da união
39.313 e por conta própria, 11.470. Pelo porto de Camocim saíram 6.683, sendo por conta da
união 4.635 e por conta do estado e conta própria, 2.048. Pela fronteira de Piauí, a estimativa
é que cerca de 12 mil pessoas se retiraram. De acordo com as informações do Relatório
Estadual do Ceará, de 1916, o total da emigração foi 70.000, quando a população era avaliada
em 1.300.000 pessoas.
No jornal A Ordem, de 1919, Benjamim Barroso, falando da seca de 1915, alega que
o “morticínio de gente” foi o “maior prejuízo”, pois faleceram naquela seca mais de 27.000
pessoas numa população de mais de um milhão. De acordo com Pompeu Sobrinho, “durante
os meses de 1915, foram importadas sacas de arroz, farinha, feijão”, diversos gêneros
96
ESTADO DO CEARÁ. Mensagem dirigida à Assembléia Legislativa, em julho de 1916, pelo presidente do
Estado Cel. Benjamim Barroso. Fortaleza: Typographia Moderna, 1915. As próximas duas páginas têm
informações retiradas das páginas 7 e 8 desse relatório.
55
alimentícios, valendo cerca de 10.700 contos, para minimizar a fome. Mas muitos morreram
pela exaustão das forças. Ademais, as doenças também foram repensáveis pela dizimação de
muitos cearenses na seca.
Dessa forma, pode-se entender como a análise da questão da seca perde significância,
quando a naturaliza, quando se minimiza esta a um fenômeno natural. A seca desorganiza a
economia e a sociedade, faz emergir vários problemas sociais e incomoda os diversos setores
sociais e políticos.
No entanto, as obras das secas nunca forneciam trabalho para todos os retirantes, o que
cedo gerou descontentamento. A expectativa de uma obra já gerava tumultos e os retirantes
exigiam solução para suas aflições. Na seca de 1915, não aconteceu diferente. Enormes foram
os flagelos e conflitos que ocorreram no cenário de ebulição, naquele ano de crise. Algumas
são evidenciadas neste trabalho: as confusões ocorridas na seca de 1915, nas obras de
açudagem, envolvendo retirantes, trabalhadores, engenheiros, autoridades políticas e
sociedade local.
57
Havendo seca, faltam serviços para os trabalhadores rurais e essa falta de ocupação
desencadeia uma série de outros problemas. O que fazer para evitar esses problemas? Como
impedir que essas questões desorganizem a vida da sociedade local? Como ordenar os
trabalhadores que se retiram pela falta de recursos sem recorrer à prática da esmola? Em
1915, uma das principais políticas foi a ocupação de retirantes nas construções da Obras
Novas. Tentar apreender traços do cotidiano e os conflitos ocorridos em torno do emprego dos
famintos nas obras é uma pretensão deste capítulo.
A garantia de que em caso de calamidade pública todo brasileiro receberia socorro foi
imediatamente transformada pela elite local em recurso de beneficio pelo trabalho dos
retirantes. De “mendigos a trabalhadores”: a caridade agora começava a estar condicionada à
ocupação, refletindo a preocupação com a ordem e com o ócio.
98
GUERRA, Felipe. Ainda o Nordeste. Natal. Typ d´. “a Republica”: 1927. O livro faz crítica a uma brochura de
200 páginas escrita por um engenheiro que foi funcionário da Inspetoria de Obras Contra as Secas, Zenon Fleury
Monteir. Este engenheiro expõe suas impressões sobre as Obras Contra as Secas e sobre seus trabalhadores. p. 2.
58
Uma das estratégias do governo para acalmar os ânimos dos retirantes e impedir que
uma quantidade maior invadisse as cidades foi a criação de obras públicas no Interior. No
entanto, o começo dessas construções, em 1915, tardou. Informes foram dados pelos jornais
cearenses pedindo solução imediata para que as obras fossem realizadas rapidamente em todo
o estado.
99
Jornal A Pátria, 25 de março d e 1915.
100
GUERRA, Felipe. A seca de 1915. Op. Cit., p. 10.
101
Se não chover até o dia 19 de março, dia de São José, pela crença popular, é ano de seca. São José, não por
acaso, é padroeiro do Ceará e o santo devoto de muitos cearenses. As preces feitas a ele são direcionadas a
pedidos de chuvas abundantes e boas plantações. É interessante relatar que, para os "profetas populares",
algumas alterações naturais também anunciam o tempo de seca. Os “profetas populares” são homens que, com as
experiências acumuladas e a sabedoria passada de geração a geração, apontam sinais de que o ano vai ser de seca
ou de chuva, mediante a observação do céu ( lua e estrelas), do vento, do comportamento dos animais, da florada
das árvores, entre outros. Por exemplo: “Se durante o veranico a minhoca se esposa na terra seca, irá chover”;
“Quando o poldro e sua mãe correm no pátio levantando a calda até a suar, é sinal que logo chove”; “Se o
Juazeiro fulora bem em outubro, é sinal que vai ter chuva”; “Quando está perto de chover o vento vem do poente
e não do nascente”; “Se a árvore carrega mais de um lado, é aquele inverno manga, como a gente chama aqui:
chove num canto e não no outro” “Se a lua nova pender para o norte é bom inverno, para o mês, mas se ela
aprumar-se, não tem chuva”;“ Se a formiga de roça está fazendo limpeza em sua casa, tirando a comida velha e
as sujeiras de dentro do formigueiro é bom inverno”. Meu avô Messias sempre ensinou a olhar para céu . De
acordo com ele, se as estrelas que formam o chamado popularmente “caminho de São Thiago” estiverem bem
visíveis no céu, durante os primeiros meses do ano, a estação próxima será de chuvas bem escassas ou seja, é ano
de estiagem. Para saber mais sobre os “profetas populares” e seus saberes, ver:
http://iurirubim.blog.terra.com.br/2009/01/07/%C2%93profetas-da-chuva%C2%94-preveem-o-clima-de-2009/
59
Antes do início das obras contra as secas, o engenheiro-chefe tinha que indicar pessoas
para ocupar cargos importantes, como condutor de segunda classe, auxiliar técnico, auxiliar
de escrituração, armazenista, apontadores, feitores, entre outros. Os respectivos salários eram
sugeridos pelo mesmo engenheiro-chefe da obra e submetidos à aprovação do inspetor.
Somente depois da validação da equipe pelo superintendente da Obras Novas Contra as Secas,
Aarão Reis, as obras poderiam ser iniciadas.
Em alguns casos, essas nomeações eram pautadas pelo clientelismo. Muitos chefes
nomeavam parentes e amigos como auxiliares ou os empregavam mediante indicações
políticas. O chefe do açude Caio Prado, localizado em Santa Quitéria102, trouxe consigo 12
auxiliares, sendo eles seus
3 filhos o qual um era concunhado do Dr. Baptista Demetrio103, que por sua
vez trazia o avô de sua esposa e um protegido. Sr. Carmellito que vinha
acompanhado de um cunhado Sr. Francisco Benicio, fora um Julio Oliveira
de Fortaleza e um Francisco de Sobral104.
102
Mapa com localização da cidade em anexo
103
Que era o condutor de segunda classe da construção do açude.
104
Arquivo da Segunda Divisão Regional do DNOCS. Fundo Açudes Públicos Ceará. Pasta Açude Caio Prado-
n°1. Doc. Avulso. O texto foi enviado por Dijalma Catunda, citado na documentação como homem da
comunidade que é “chefe político e intendente municipal”. Neste, ele informa em que condições chegou
Severino de Oliveira e sua equipe, descrevendo-a. 28 de outubro de 1915. Santa Quitéria.
105
Mapa com localização da cidade em anexo.
106
REIS, Aarão. Obras Novas Contra as Secas: Trabalhos executados de 3 de setembro de 1915 a 31 de outubro
de 1918 - relatório apresentado ao Exmo.Sr.Dr. Aug. Tavares Lyra, ministro da Viação e obras Públicas. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1920. P. 98.
60
3.1.1 EM RETIRADA
“Sem legume, sem serviço, sem meios de nenhuma espécie, não havia de ficar
107
morrendo de fome, enquanto a seca durasse.” Assim como o vaqueiro Chico Bento,
personagem do livro O Quinze de Rachel de Queiroz, muitos dos trabalhadores partiram em
retirada em direção às obras de açudagem da Obras Novas para não morrer de fome. Suas
trajetórias e desejos são similares às do personagem de O Quinze.
O trabalhador das Aroeiras desfaz-se de seus pertences, vende inclusive sua roupa de
couro para conseguir uma soma em dinheiro. Em seguida, decide tentar obter passagens de
trem. Mesmo a distribuição de passagens fazendo parte de um “sistema de apadrinhamento”,
Chico Bento não consegue essa assistência e resolveu ir por terra. Migrou junto com a mulher,
a cunhada e os filhos rumo à Capital.
Num trajeto sofrido, ele recorre à caridade pública, inúmeras vezes. Além de privações
alimentares, outras tragédias se seguiram: a morte de um filho, que ficou à beira da estrada, o
desaparecimento de outro, fora a cunhada que ficou no meio do caminho, no fim do romance
aparecendo grávida. Depois de uma longa jornada, a família de retirantes conseguiu
assistência de um compadre, que conseguiu passagens de trem em direção a Fortaleza. Já na
Capital, consegue serviço nas obras do açude Tauapé.
O escritor Tomás Pompeu Sobrinho108 também discorre sobre a condição dos que se
retiravam por causa da seca. De acordo com o autor, declarada a seca, “um ar de tristeza”
107
QUEIROZ, Raquel de. O Quinze. 49 ed. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1992. p.18
108
Os três parágrafos seguintes são baseados em informações sobre a condição do trajeto dos retirantes contido
no livro Sobrinho, Tomás Pompeu. O problema das secas. Op. Cit.,p. 22, 23, 24, 27.
61
As mães, cujos peitos murchos, descarnados não podem aleitar os filhos que
definham, os abandonam muitas vezes por não poderem mais com a carga
dos pequenos ossos, exaustos de fome e fadiga; e as criancinhas
desamparadas, inanes morrem a margem do caminho, sem mesmo o olhar
compassivo das turbas que passam absorvidas nas suas duras aflições. Os
seus cadáveres vão em breve servir de pasto exíguo aos abutres e aos cães
esfaimados.
Concluindo o trajeto, muitos que iam em direção aos grandes centros, encontravam-
nos “desaparelhados para tais contingências”. Sem “acomodações”, “sem alimento”, e muito
menos “sem trabalho”. As cidades tornavam-se “teatros de cenas e crimes”. Pompeu Sobrinho
alega que “os forasteiros no último estado de miséria, abrigavam-se em massa numa
promiscuidade”. Ali, não faltavam “exploradores” que ofereciam “aos míseros um pedaço de
pão em troca dos mais sagrados sentimentos de honra e dignidade”.
“pobres sertanejos”, sustentando nos braços “crianças com o passo já trôpego, mendigando a
caridade pública nas vilas, cidades e povoados”. Conforme é descrito num relatório de
serviços, os trabalhadores do açude Patos vinham de “pontos distantes dos centros de
população, a 12 léguas de São Francisco de Uruburetama e 10 de Sobral”. Espalhada a notícia
da construção deste açude, como relata o Jornal A Lucta, de 10 de novembro de 1915,
“centenas de pais de família, que de qualquer forma... abandonaram a família, lar, em uma
viagem penosa, dirigiram-se aos locais dos serviços em busca do trabalho rude mais honesto
que lhes minorasse a fome, já bastante adiantada.” Outros, “em romaria”, abandonaram “bens
e, junto à família”, iam em busca da terra da promessa109.”
As obras públicas eram uma das únicas soluções vistas pelos sertanejos em retirada.
Alguns se dispersavam individualmente, cada qual ia à procura de remediar seu problema,
outros partiam em “romaria” junto com toda a família. O açude Patos foi a primeira
construção atacada no norte do estado, na seca de 1915, e por isso, recebia diariamente um
número cada vez maior de retirantes.
109
Jornal A Lucta. 10 de novembro de 1915
110
São Francisco de Uruburetama é o nome fornecido, na documentação, do lugar de construção do açude Patos.
Este vilarejo ficava no entorno da cidade de Sobral. Hoje, a localidade onde foi construído o açude Patos recebe
o mesmo nome da barragem.
63
Então, na intenção de evitar maiores mazelas de uma jornada a pé, muitos retirantes da
região norte escolheram a alternativa de buscar trabalho nas construções da comissão da
Obras Novas Contra as Secas. Arriscar-se num percurso diferente, numa jornada mais curta,
podia significar menos sofrimento. Mesmo sabendo do rigor do trabalho nas obras das secas,
para muitos retirantes da região norte do Estado do Ceará, a saída menos doída era buscar os
serviços nas obras públicas mais próximas. O abarracamento da Capital, na seca de 1915,
chamados pelos poderes públicos de campo de concentração, era uma opção, mas o cotidiano
de abarracamentos também já era conhecido de muitos sertanejos.
111
A historiografia sobre as secas no Ceará mostra variados casos de mortes, prostituição, suicídios,
antropofagia, assassinatos, etc. A memória dos cearenses já estava carregada desses fatos, o que era um dos
fatores para a alternativa de eles ficarem mais próximos dos locais de origem. Os jornais dos anos de 1915 e
1916 chegam a denunciar casos como estes.
64
pagamentos destes eram diferenciados dos destinados aos homens adultos. No primeiro mês
da construção do açude Caio Prado, em Santa Quitéria, em telegrama de 3 de novembro de
1915, o condutor da obra informa que trabalham na obra, além de vários homens, “42
donzelas, doze casadas, 30 viúvas e 30 meninos no total.” Os outros membros da família, que
não conseguiam ocupação, ficavam à espera da “divisão do bolo”.
Com o passar dos dias, a multidão de famintos aumentava ao redor dos açudes da
Obras Novas. Nos agrupamentos de retirantes geravam o medo de que acontecessem revoltas,
fazendo pressão no setor político, nas autoridades religiosas, na sociedade local das
proximidades das construções, na elite letrada, e claro, na direção da Obras Novas, equipe
técnica e engenheiros chefes das construções de açudagem.
112
Arquivo da Segunda Divisão Regional do DNOCS. Fundo Açudes Públicos Ceará. Pasta Açude Caio Prado-
n°1. Telegrama emitido pelo engenheiro condutor da obra Severino de Oliveira. 29 de outubro de 1915. Santa
Quitéria.
65
Sete dias após o inicio do açude Caio Prado, em Santa Quitéria/CE, o engenheiro
responsável pela obra já noticiava as intituladas “avalanches de flagelados”. Sequências de
registros são encontrados noticiando a recorrência desses conflitos. No relatório de Obras
Novas Contra as Secas, na parte referente à construção do açude Caio Prado, o inspetor Aarão
Reis informa que:
O condutor Severino de Oliveira, logo após sua chegada ao local das obras,
atacou ativamente, lutando com dificuldades serias para satisfazer a
multidão de famintos que se apresentavam a reclamar trabalho.114
Este quadro de insatisfação e insistência na busca de trabalho foi algo que ocorreu
também nos demais açudes da Comissão de Obras Novas Contra as Secas, o que dificultava o
período inicial da construção. No açude Mulungu, em Itapipoca, como é informado em
relatório, o engenheiro Rômulo Campos, “forçado pela miséria, que reinava entre os
flagelados,” viu-se “obrigado a admitir número maior de trabalhadores do que realmente
comportava a obra.” 115
113
Arquivo da Segunda Divisão Regional do DNOCS. Fundo Açudes Públicos Ceará. Pasta Açude Caio Prado-
n°1. Telegrama emitido pelo engenheiro condutor da obra Severino de Oliveira. 28 de outubro de 1915. Santa
Quitéria.
114
REIS, Aarão. Obras Novas Contra as Secas. Op. Cit. P. 50.
115
Idem, ibidem. , p. 98.
116
Arquivo da Segunda Divisão Regional do DNOCS. Fundo Açudes Públicos Ceará. Pasta açude Caio Prado-
n°1. Telegrama emitido pelo engenheiro condutor da obra Severino de Oliveira. 16 de novembro de 1915.
Expressões encontradas num documento avulso sobre o açude Patos.
66
Entretanto, é importante perceber que essas ações dos retirantes não podem ser
visualizadas aqui como movimentos planejados com vistas à ocupação de espaços
117
Durante a construção do Açude Forquilha, na seca de 1919, em Sobral, semelhante quadro se repete. Levas de
retirantes invadem a cidade, “famintos, quase nus”, à procura de trabalho. É iniciada a construção do Açude
Forquilha, chefiado pelo engenheiro Rômulo Campos, com um número dobrado de trabalhadores.
67
Fica claro, então, que a ação das “avalanches de flagelados” acontecia na busca por
trabalho “motivada pela fome”. Contudo, era também um reflexo da resistência em prol da
conquista de um direito, que ao mesmo tempo tinha representatividade individual e coletiva.
O trabalho era um direito que os retirantes percebiam que existia, efetivamente, para alguns –
os que conseguiam colocação nas obras – e para outros, não, daí a obstinação contra uma
condição desigual. Então, a fome é um elemento importante a se considerar nessas ações, mas
“não prescreve que eles devam se rebelar nem determina as formas de revolta”. 119
Como foi ilustrado anteriormente, o início da obra era conturbado, pois consistia em
momento de maior concentração de mão-de-obra, num número impossível de ser atendido
pelo engenheiro. Então, quais eram os critérios utilizados para a seleção de quem trabalharia
nas obras públicas de açudagem?
118
NEVES, Frederico de Castro. A multidão e a história: saques e outras ações de massas no Ceará. Op. Cit., p.
10.
119
THOMPSON, E. P. costumes em comum. São Paulo: companhia das letras, 1998. P. 208.
120
Arquivo da Segunda Divisão Regional do DNOCS. Fundo Açudes Públicos Ceará. Pasta Açude Patos nº3.
Documento avulso encaminhado pelo engenheiro Aarão Reis, em 1916.
68
Percebe-se, então, que o trabalho, nesse contexto, não é visto como favor prestado
pelo governo, mas como direito dos que solicitavam faina. A experiência de secas anteriores,
da ocupação da mão-de-obra dos retirantes nas obras públicas, assegurou que a assistência em
forma de trabalho deixasse de ser uma dádiva do governo e passasse a ser expectativa dos de
baixo, quase uma obrigação dos de cima. O requisito que assegurava a conquista desse
benefício era a condição de trabalhadores camponeses, que, pela situação da seca, estavam
sem ocupação e em grande necessidade. Se a condição apresentada era semelhante, então, o
direito era de todos.
Numa época anormal como a atual, tive de lutar para efetuar a instalação
dos serviços. A falta de meios locais, a afluência do povo, a deficiência de
ferramentas, tudo concorreu para amontoar as dificuldades123.
121
Outros documentos de outros açudes públicos do Ceará também mostram que, quando voltava a regularidade
climática, as obras enfrentavam problemas de escassez de trabalhadores. Ponto que é discutido em outro tópico
deste capítulo.
122
Jornal A Lucta. 1º de dezembro de 1915.
123
Arquivo da Segunda Divisão Regional do DNOCS. Fundo Açudes Públicos Ceará. Pasta Açude Patos nº2.
Relatório enviado à Superintendência de Obras Novas Contra as Secas, pelo engenheiro Rômulo campos, sobre
os serviços executados de outubro a dezembro de 1915. 25 de janeiro de 1916.
69
Outro fator foi a incidência da Primeira Guerra Mundial. Em geral, todos os açudes
que estiveram entre as atribuições da Comissão de Obras Novas Contra as Secas enfrentaram
as dificuldades da falta de materiais necessários à obra. Na fala do engenheiro do açude Patos,
em relatório apresentado em janeiro de 1916, é afirmado que “a situação criada pela Guerra”
contribuiu muito para o agravamento do problema de deficiência de material e que, com a
situação normalizada, era preciso, “nas futuras construções, dispor de aparelhagem mais
moderna”.
124
A falta de ferramentas, além de significar dificuldades técnicas para iniciar a obra, representava a
impossibilidade de fornecer trabalho manual a um maior número de trabalhadores.
125
O contato com essas fontes foi possível no momento em que estava engajada no projeto MECTSAB, durante
catalogação das fontes dos açudes públicos do Ceará, do arquivo do DNOCS, em Fortaleza. Dentro desse acervo,
trabalhei com documentos de diversos períodos da história do DNOCS. Muitos documentos referentes a
materiais de construção estão no idioma inglês e alemão, já que muitas firmas fornecedoras eram da Inglaterra e
da Alemanha. Na construção do Açude Tucunduba, localizado próximo aos açudes dessa pesquisa, existe na
pasta nº 10 uma correspondência de 1917 informando sobre o rompimento das relações diplomáticas, comerciais
entre Brasil e Alemanha e assim, sobre os possíveis prejuízos dos pagamentos. No Açude Acarape do Meio,
vários ofícios e telegramas mencionam firmas estrangeiras, como a Dodsworth & Cia – exemplificando um
oficio sobre o fornecimento de material dos Estados Unidos da América do Norte(oficio 961) e a Norton
Griffithis – que, no Ofício nº 104, pede autorização para a compra de materiais e importar de Londres.
126
TÉOFILO, Rodolfo. A seca de 1915. Op. Cit..p.47.
70
Sendo assim, o somatório de retirantes no local da obra pode ser entendido como um
importante meio de pressão deles. As tensões agudizadas pelo ajuntamento de retirantes
“esfomeados”, “maltrapilhos”, levam a um receio geral, por parte das comissões responsáveis
pelas obras, e colocam em questão a funcionalidade e a segurança destas. De sua parte, os
sertanejos entendiam que não era preciso alcançar um extremo e difícil estado de desgraça
para procurar auxílio, que existem outras possibilidades diferentes da esmola e da emigração.
127
Reis, Aarão. Obras Novas Contra as Secas. Op. Cit., p. 161. Para entender os termos técnicos utilizados, ver
dicionário em anexo.
71
Os operários das obras contra as secas vivenciaram uma experiência histórica, rica e
singular. Dentro das obras, a condição de retirante numa situação limite foi o diferencial para
que uma multiplicidade de relações de trabalho peculiares fosse estabelecida. O diferente
local de trabalho, distinto do trabalho no campo e na cidade, o cotidiano e o aprendizado
compõem o arsenal que é discutido neste tópico.
128
Discurso na Câmara de Deputados, em 1906, de Eloy de Souza. In: Revista Conviver. Nordeste semiárido.
V.IV. Fortaleza: DNOCS, 2004. Eloy de Souza (1873-1959) era potiguar. Tinha formação em Ciências Jurídicas
Os textos desse autor, que estão na Revista Conviver, sobre o homem nordestino e as secas foram extraídos do
seu livro: O calvário das secas, editado pela imprensa oficial.
129
Jornal A Lucta. 10 de novembro de 1915.
72
alojamento, mas, quando a noite chegava, ficavam ao desabrigo, o que não era muito diferente
das noites que haviam passado durante a jornada até o local da construção do açude. As
refeições durante o dia também eram feitas com exposição ao sol, até porque, mesmo com o
alojamento, o tempo de refeição não era suficiente para que o trabalhador recebesse o vale,
trocasse por mantimento, preparasse a comida e se dirigisse ao abrigo para lá fazer a refeição.
Em entrevista a um residente da região, o Jornal A Lucta, de nove de fevereiro de 1916,
registra sobre os alojamentos:
“Seu Sebastião, que casas são aquelas que vemos acolá? ... é ali que fica o açude dos Patos...
há muita coisa boa, aonde mora a gente um pouco mais mió”.
Para instalação dos serviços mandei construir uma casa para armazém, uma
para morada dos auxiliares, uma apara oficinas, três grandes barracões para
o pessoal e fiz reparos gerais na casa para o escritório. Para a cobertura
dessas diversas construções comprei telha e palha de carnaúba pela falta
absoluta de outro material mais econômico. Tais construções impunham-se
pela falta de habitações no local.130
130
Arquivo da Segunda Divisão Regional do DNOCS. Fundo Açudes Públicos Ceará. Pasta Açude Patos n°4.
Relatório de serviços realizados enviado à Superintendência de Obras Novas Contra as Secas pelo engenheiro
Rômulo Campos. 25 de janeiro de 1916.
131
Guerra, Felipe. Ainda o Nordeste. Op. Cit. P. 140.
73
Nas obras do açude Forquilha, em 1919, pouco tempo depois de iniciadas, é informado
que já era “um povoado”. “Além de várias casas de telhas, cerca de duzentas casinhas de
132
operários se alinham naquela construção”. Então, mediante os dados relatados nas fontes,
percebe-se que o aspecto dos arredores e das construções dos açudes era de uma pequena vila
em formação, com algumas instalações necessárias para o inicio das obras dos açudes. Nos
meses seguintes, com o levantamento de barracas, barracões e casas era tomada a forma de
um povoado.
A construção do açude Patos durou dois anos e dez meses. E o que, no início, era só
algumas barracas, transformou-se em um povoado. No relatório final das obras, enviado pelo
engenheiro Rômulo Campos, sobre o açude Patos, é relatado que, no começo da edificação,
“existia apenas uma velha e abandonada casa de fazenda” e que, no fim da obra, já era “um
próspero arruado, onde ficaram depois da conclusão das obras cerca de 200 moradores”. 133
132
Jornal A Ordem, 15 de agosto de 1919.
133
Arquivo da Segunda Divisão Regional do DNOCS. Fundo Açudes Públicos Ceará. Pasta açude Patos n°8.
Relatório final dos serviços realizados enviado à Superintendência de Obras Novas Contra as Secas pelo
engenheiro Rômulo Campos. 26 de setembro de 1918.
74
Já o presidente Cel. Benjamim Barroso alega que a “peste quase sempre acompanha
esses infelizes, fazendo-lhe grandes estragos”134. No caso do açude Patos, as enfermidades
atingiram especialmente as crianças. O próprio presidente de Estado expõe que as
aglomerações possibilitaram a disseminação das enfermidades, fazendo críticas às condições
de higiene nas obras. Benjamim Barroso não cita casos de doenças no campo de concentração
do Alagadiço, na mensagem, pois o campo fazia parte da sua política estadual contra a seca de
1915, informar más condições de existência neste era reconhecer falhas na aplicação de seu
plano de governo.
134
ESTADO DO CEARÁ. Mensagem dirigida à Assembléia Legislativa, em 1º de julho de 1915, pelo
presidente do Estado Cel. Benjamim Barroso. Fortaleza: Typographia Moderna, 1915. p.8.
75
Nas obras do açude, entre outros, foram realizados roçado em capoeira fina, nos locais
da barragem, sangradouro, bacia hidráulica, oficinas e abarracamentos; escavação em terras,
piçarra e rocha para cava de fundação da barragem, para a construção da parede e para o
sangradouro; transporte de materiais diversos; umedecimento e apiloamento das terras;136
A partir das descrições acima, pode-se ter uma visão não generalizada dos tipos de
trabalhos desempenhados pelos obreiros dos açudes. Escavação, roçado de terra, transporte de
materiais, umedecimento, apiloamento de terra, fora outros trabalhos que exigiam outros tipos
de conhecimentos, como pintura, alvenaria e carpintaria; tudo demonstrando a complexidade
do canteiro de obras.
135
Guerra, Phelipe. Ainda o Nordeste. Op. Cit. P. 19 e 143.
136
Dicionário de termos técnicos em anexo.
137
Arquivo da Segunda Divisão Regional do DNOCS. Fundo Açudes Públicos Ceará. Pasta açude Patos nº4 .
Relatório dos serviços realizados de outubro a dezembro de 1915, enviado à Superintendência de Obras Novas
Contra as Secas pelo engenheiro Rômulo Campos. 26 de janeiro de 1916.
76
Porém, se existiam outros trabalhadores mais adequados à labuta, por que usar a mão-
de-obra dos retirantes? Por que engenheiros mantinham mulheres, crianças e idosos, correndo
o risco de aumentar o orçamento da obra?
Manter sujeitos ocupados nesse período era afastá-los da ociosidade e, assim, como
alega Chalhoub, de um “estado de depravação de costumes que acaba levando o individuo a
cometer verdadeiros crimes contra a propriedade e a segurança individual...”, pois “se um
indivíduo é ocioso, mas garante sua sobrevivência, ele não é perigoso à ordem social139.”
Então, a atitude caridosa de manter mulheres, crianças, idosos e outros trabalhadores, que na
avaliação do engenheiro e da sociedade não prestavam para o trabalho, era também uma
maneira de mantê-los ocupados e disciplinados.
138
Sobre a construção do açude Forquilha. Jornal A Lucta, 14 de maio de 1919.
139
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle
Époque. 2. ed. Editora Unicamp. 2001. p.75.
140
Jornal A Lucta. 9 de fevereiro de 1916.
77
no Rio Grande do Norte, Felipe Guerra relata que o engenheiro chefe Flávio Castro informa
que existia uma turma só para transportar materiais de outros açudes: “em cabeça e braço,
numa extensão de seis léguas de maus caminhos”, foram transportados vagonetes e trilhos
decauvile, carrinhos de mão, bombas, pás, picaretas e etc.141”
Fonte: Arquivo do DNOCS-CE. Fundo: Açudes Públicos Ceará. Açude Patos, pasta nº4. Relatório de 25 de
janeiro de 1916.
141
GUERRA, Felipe. A seca de 1915. Op. Cit., p. 17
142
Dicionário de termos técnicos em anexo.
78
fotos são anexadas aos dois primeiros relatórios enviados pelo engenheiro-chefe. É sabido que
essa farta documentação representa a preocupação do engenheiro em mostrar os retirantes
ocupados, efetuando os trabalhos já descritos nos relatórios. No entanto, mesmo que a
documentação iconográfica evidenciasse uma situação equilibrada, de uma obra
racionalmente em bom estado, sem dificuldades aparentes, a situação operada era outra, como
se pôde constatar.
Cada operário era responsável pelo seu instrumento de trabalho e cabia ao feitor zelar
e fazer a contagem das ferramentas de sua turma. A fiscalização dos serviços era rigorosa, o
feitor não podia se ausentar do local onde trabalhava sua turma. A este também era dado o
papel de auxiliar, ensinar e instruir os operários. Deveria ainda portar-se “convenientemente
com o pessoal da turma, evitando conversas e pilhérias”. Também deveria evitar a
promiscuidade com o pessoal operário, quer durante as horas de trabalho, quer fora deste.
É interessante pontuar, dentro desse relato do dia-a-dia na obra, que para ser um feitor
era necessário saber ler e escrever, ter boa conduta, não possuir vícios, apresentar-se
decentemente, “sempre de paletó e calçados”. Além disso, deveria mostrar sempre
“autoridade, energia e urbanidade.” De acordo com o jornal A Lucta, de nove de fevereiro de
1916, um instrumento utilizado por este trabalhador era o chicote, no qual a função “era meter
medo na negrada”. Fora isso, para uma rigorosa manutenção da ordem, eram proibidos
143
Arquivo da Segunda Divisão Regional do DNOCS. Fundo Açudes Públicos Ceará. Pasta açude Tucunduba.
Junho de 1917. Este açude esteve entre as atribuições da Inspetoria de Obras Contra as Secas. O documento tem
informações sobre o pessoal jornaleiro, trazendo uma longa lista dos deveres dos feitores nas obras.
79
“qualquer espécie de jogo e o uso de licores espirituosos”; tudo para que não houvesse “o
mínimo distúrbio, o menor ato de desrespeito”.
A documentação que forneceu boa parte dessas informações são livros de regras e
deveres, assim, é possível refletir e entender que, principalmente os horários, não eram
seguidos mecanicamente tal qual desejava o engenheiro e a comissão técnica. Não foram
encontrados muitos outros documentos técnicos que atestem a aplicação desses horários
ferrenhamente no cotidiano. No entanto, os jornais da época informam sempre sobre o
cotidiano de um longo dia de trabalho duro, de difíceis condições de alojamentos e má
alimentação dos obreiros.
Fonte: Arquivo do DNOCS-Ce. Fundo Açudes Públicos Ceará. Pasta açude Patos n°4. Relatório 25 de janeiro de
1916.
Esta fotografia, tirada ao lado esquerdo da construção da barragem do açude Patos, dois
meses depois de iniciadas as obras, mostram trabalhadores – mulheres, crianças, homens
adultos – numa postura alinhada e o engenheiro e dois auxiliares técnicos no meio dos
operários, mas num patamar mais elevado. Esta imagem, assim como as fontes exibidas há
80
Assim, a ciência pretendia superar esse problema também adotando uma nova postura
nas relações de trabalho. A proibição de aguardentes, promiscuidade, a fiscalização rigorosa
para evitar conflitos dos trabalhadores eram um reflexo de que, quando se dava trabalho, a
preocupação não se limitava a saciar a fome dos retirantes, mas também de ensinar novos
valores da moral e dos bons costumes.
Os operários das obras das secas, como mencionado, eram homens de origem
camponesa, acostumados à lida diária com a família num “tempo próprio”. Eram habituados a
batalhar com os seus instrumentos, dominando o seu ambiente de trabalho, tendo seus
próprios saberes, num horário delimitado por ele mesmo. Sem haver divisão entre os que
davam ordens e os que deviam obedecer.144 Um trabalho realizado em diferentes condições
culturais e sociais do realizado no campo da açudagem.
144
NEVES, Frederico de Castro. A multidão e a história: saques e outras ações de massas no Ceará. Op.
Cit.,p.126
81
aceitas pela maioria dos obreiros. Constata-se adiante que alguns conflitos são relevantes para
que a imagem do retirante deixe de ser estigmatizada como “pobres coitados” – vítimas
inermes e obtusas – para que então possa ser reconstruída como sujeitos de importantes ações
no processo histórico.
Dessa forma, a experiência rural era diferente. O trabalho sob comando de um feitor,
dirigido por técnicos e organizado por turmas, ia de encontro aos valores dos sertanejos
acostumados ao trabalho familiar e autônomo. A família do campo com costumes diferentes
dependia agora das políticas de socorros do governo, que tenta educar, disciplinar sob novos
padrões. O retirante teve que dialogar com novas tecnologias e novas hierarquias. Novos
saberes foram adicionados constantemente ao cotidiano de duras atividades físicas, divisão do
trabalho por tarefas e obediência aos dirigentes, onde a recompensa desse esforço nem sempre
significava uma suficiente gratificação.
Numa carta escrita pelo pároco da cidade de Santa Quitéria e publicada no jornal A
Lucta, de 10 de novembro de 1915, era informado que existia no açude Caio Prado “três
categoriais de homens: os de 1a, , que recebem 1$200, os de 2a , que recebem 1$000”, e ainda
os de 3a , que recebiam abaixo de 1$000. Sobre o açude Patos, chefiado pelo engenheiro
Rômulo Campos, era dito que:
A diária dos operários, foi a principio menos, mas hoje é de 1$000 para os
homens, 500 para os meninos, e as mulheres que querem ganhar alguma
coisa, carregam areia, por 1 ou 2 litros de farinha.146
As diárias variavam de açude para açude, não era um valor fixo. Nos documentos,
verificou-se a presença de turmas de meninos e turma de mulheres com atividades diferentes,
empregados nas obras, com o discurso de fortalecer o amparo aos retirantes. Os meninos
recebiam em vales, já as mulheres, conforme alguns documentos, recebiam em forma de
145
Guerra, Phellipe. Ainda o Nordeste. Op. Cit. p. 89
146
Jornal A Lucta. 1º de novembro de 1915.
82
alimento. É relevante informar que não foi encontrada nenhuma fonte sobre mulheres
recebendo diárias em forma de vales.
Fonte: Arquivo da Segunda Divisão Regional do DNOCS. Fundo açudes Públicos Ceará. Pasta açude Patos n°4.
Relatório de serviços. 25 de janeiro de 1915. Diárias da comissão técnica-administrativa.
Os valores das diárias dos operários eram menores que as do quadro técnico-
administrativo. Contudo, na soma geral da obra, pode-se constatar que o gasto efetuado com o
pagamento dos operários do açude Patos foi bem maior:
Estes números são encontrados no balancete final do que foi gasto em cada construção
da Obras Novas Contra as Secas, no relatório final da comissão elaborada pelo inspetor Aarão
Reis. Os valores estão organizados numa tabela de acordo com as somas liberadas em cada
crédito especial. Em todos os açudes da Obras Novas, o gasto com os operários foi mais
expressivo que o efetuado com a equipe técnica da construção dos açudes e com a compra de
materiais.
84
Estes valores também são importantes para averiguar em quais anos os gastos com os
trabalhadores retirantes foram maiores. Pode-se verificar que, somando os valores dos anos de
1915 e 1916, as quantias são bem maiores que nos anos de 1917 e 1918. Isto é reflexo do
grande número de trabalhadores empregados nas obras, nos meses inicias, reforçando a idéia
de necessidade de fornecer trabalho aos sertanejos em momentos de secas. Mas o que
representava essa assistência para os retirantes?
A assistência era dada pela ocupação e esse trabalho assegurava a remuneração, que,
para os retirantes operários, significava a subsistência. Os trabalhadores dos açudes da Obras
Novas sofreram com a falta de mantimentos, principalmente no começo das obras. Conforme
noticia o jornal a Lucta. No açude Patos, no segundo mês de trabalho, os operários realizavam
duas refeições diárias:
Analisando os documentos citados e outros, compreende-se que o vale era trocado por
gêneros para a realização de duas refeições diárias. A alimentação era composta de gêneros
como: farinha, feijão e rapadura. A primeira refeição do trabalhador era feita no próprio local
do trabalho e a segunda nas barracas ou barracões junto aos outros parentes.
147
Jornal A Lucta, 10 de Novembro de 1915.
148
GUERRA, Felipe. A seca de 1915. Op. Cit., p.15
85
que possuíam com os numerosos familiares. Felipe Guerra alega que, em “em fins de 1915,
quando iniciados os serviços, o operário desde meses sob o regime da fome e da desnutrição
era um doente149.” Muitos chegavam a padecer de fome. Nas palavras do escritor Rodolfo
Teófilo, “Morrer de fome não é só ser privado o individuo do alimento por muitos dias, é a
criatura levar semanas, meses, passando mal alimentando-se de migalhas, gastando as
reservas do organismo, enfraquecendo as resistências dele, até se inanir de todo e morrer.”150
149
Idem, Ibidem. P. 15
150
TEÓFILO, Rodolfo. A seca de 1915. p. 70
151
Sobrinho, Tomás, Pompeu. O problema das secas. Op. Cit. p. 38.
86
25 Banha $035
Pompeu Sobrinho alega que, se somassem os gatos com café e sal, seria necessário
para assistir uma pessoa adulta diariamente $350 e uma criança podia ficar em torno de $250.
Mesmo que esses valores não sejam “redondamente” corretos, mediante o preço dos
alimentos e levando em consideração que as famílias eram numerosas e que poucos recebiam
o socorro por meio do trabalho, às vezes somente um integrante do grupo familiar, o parco
salário dos operários era realmente precário para garantir a sua vida e a de sua família.
Dessa forma, se a marcha nas obras era marcada pela fome, o dia-a-dia dos familiares
era ainda mais. Os retirantes que não conseguiam ocupação esperavam pela assistência obtida
através do trabalho dos parentes, já que, longe do núcleo urbano, ficava complicada a
recorrência à caridade pública. Então, para os que não conseguiam serviço, só restava
aguardar pelo magro auxílio que seria levado para casa. Chico Bento, personagem do
Romance O Quinze, na condição de trabalhador do açude Tauapé, reclama justamente sobre
essa condição de subsistência existente:
152
QUEIROZ, Raquel de. O Quinze. P. 64 e 65
87
3.2.4 EDUCANDO...
As obras não deixavam se de ser “escolas para o trabalho”. Nelas, eram educados e
produzidos novos pedreiros, ferreiros, carpinteiros, motoristas, tratoristas, mecânicos, mestres
de obras, entre outros, era feito o operário adequado à situação precisada. Como já foi
discutido, existiam nas obras diferentes categorias de trabalhadores. Os retirantes eram
alocados preferencialmente para o desempenho de serviços manuais que exigiam tênue
qualificação técnica. Contudo, existiam os qualificados diferenciados inclusive pelos salários
recebidos.
153
Essa questão é discutida no terceiro capítulo desta dissertação.
154
GUERRA, Felipe. Ainda o Nordeste. Op. Cit. P. 18
155
Arquivo da Segunda Divisão Regional do DNOCS. Fundo Açudes Públicos Ceará. Pasta açude Patos n°8.
Relatório final dos serviços realizados enviado à Superintendência de Obras Novas Contra as Secas pelo
engenheiro Rômulo Campos. 26 de setembro de 1918
88
sessenta alunos frequentou o curso primário dado na escola açude Patos. O jornal A ordem, de
28 de novembro de 1919, também fala da existência de uma escola no açude Forquilha. Nesse
açude chefiado também pelo engenheiro Rômulo Campos, é divulgada a notícia que a escola
teve uma boa frequência dos alunos, sendo 70 homens e 20 mulheres.
De acordo com Felipe Guerra, dentro das obras das secas, existia a intenção de elevar
moralmente os indivíduos, educando-os dentro de uma “metódica e racional e instrução”,
“que os ensine a agir e aproveitar o fruto do trabalho156”. Para isso era pregada a boa
convivência social para o “recreio do corpo e do espírito”, sendo defendida a realização de
reuniões instrutivas. Nestas, deveriam ser mostrados “os trabalhos dos centros adiantados, o
conhecimento do mundo e, em particular, a História, a Geografia, o completo conhecimento
da grande pátria.”157
Era necessário que o trabalho nas obras auxiliasse para preparar o trabalhador
sertanejo para uma nova ordem no mundo do trabalho e também na vida social fora do
ambiente de trabalho. Havia uma mudança na lógica do trabalho em que eram introduzidos
novos saberes e novas posturas diferentes das quais os trabalhadores sertanejos estavam
156
Guerra, Felipe. Correio de Mossoró. 31 de março de 1915. In: ROSADO, Vingt-um e Rosado, Américo. 17º
livro das secas. Coleção Mossoroense, volume CDII, ano 1988.
157
GUERRA, Felipe. Ainda o Nordeste. Op. Cit. P. 57.
158
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim. Op. Cit. p.50
159
Idem, ibidem, 69
89
As obras das secas tinham o intuito de dar amparo e trabalho aos sertanejos flagelados,
evitando riscos e incômodos à sociedade local, ou seja, constituíam uma maneira de ocupar os
retirantes, impedindo-os de ficar entregues à desocupação. Assim, a ociosidade era convertida
em ocupação e a justa remuneração afastava o retirante da seca, da esmola aviltante e do ócio.
Por conta da seca, os sertanejos não efetuaram o plantio em 1915, então, estavam sem
meios de subsistência. De acordo com Felipe Guerra, “Os retirantes acham se fora dos seus
lugares habituais de trabalho”, quando “cessam ou são interrompidos os serviços” nas obras
de socorros, ficando, dessa forma, sem ocupação. Com a morte do gado e a falência da
90
indústria da pecuária e com escassas sementes, “os patrões com poucos recursos” ficam
“cautelosos e medrosos” para receber de volta o trabalhador. Fora a situação do “pequeno
lavrador” que não tem meios sequer para erguer “sua lavoura”, já que muitos consumiram
inclusive as sementes que seriam destinadas ao plantio160. Depois do longo período de
estiagem de 1915, por volta de março de 1916, desceram as primeiras chuvas, mas a fome
continuou, pois os roçados não foram preparados. Esta é a situação quando começa a escusa
de trabalhadores no inicio de 1916.
Antes de abril de 1916, foram dispensados trabalhadores das obras, no caso do açude
Patos, estes eram preferencialmente os operários solteiros, já que, para os obreiros que tinham
família, o deslocamento do local do açude era mais complicado. No açude Caio Prado, a
situação operada era ainda pior, pois já em 23 de dezembro o jornal A Lucta informa que
Severino de Oliveira “dispensou, em 1 dia, 30 operários dos mais necessitados”.
E os problemas nesse sentido aumentavam. Com a continuidade da alta dos preços dos
gêneros alimentícios e o aparecimento de alguns imprevistos, como lagartos nas plantações, o
número de retirantes à procura de serviços continuava grande:
160
GUERRA, Felipe. A seca de 1915. Op. Cit., 38
161
Arquivo da Segunda Divisão Regional do DNOCS. Fundo Açudes Públicos Ceará. Pasta açude Patos n°2.
doc. avulso que fala, entre outros, sobre a dispensa de trabalhadores.
162
CANDIDO, Tyrone.Trem da Seca: Sertanejos, retirantes e operários. ( 1877-1880) . Fortaleza. Museu do
Ceará. Secretaria de Cultura do Estado do Ceará. 2005.p.66.
91
E, quanto aos retirantes, estes tinham noção do momento intricado pelo qual passava o
engenheiro e os poderes públicos, diante dessa ocorrência, entravam em conflito reclamando
melhores condições de existência. Eles entendiam que só a ameaça da confusão já era
suficiente para assustar os chefes.
Passada a mazela da seca, “um novo flagelo em seus cruéis aspectos” 164 manifesta-se.
As chuvas de 1917 causaram cheias no rio Acaraú, que banharam a cidade de Sobral.
Contudo, fora do centro urbano, as chuvas causaram grandes festejos, os sertanejos
imediatamente iniciaram as plantações.
Nesse contexto, muitas obras da IOCS, e assim também da Obras Novas, foram
paralisadas. De acordo com o presidente de Estado Cel. Benjamim Barroso, este episódio não
foi algo peculiar aos trabalhos iniciados na seca de 1915. Afirma ele que, depois de uma seca,
quando “vem o inverno, suspendem-se todos os trabalhos por aviso oficial, o povo corre para
163
Arquivo da Segunda Divisão Regional do DNOCS. Fundo Açudes Públicos Ceará. Pasta açude Patos n°4.
Relatório de serviços realizados. 25 de janeiro de 1916.
164
Jornal A Ordem. 19 de abril de 1917.
92
seus lares e todas as obras iniciadas e por concluir ali ficam ao abandono, deteriorando-se165,”
até surgir outra crise.
A recusa ao trabalho ocorria pelas péssimas condições de existência dos operários das
obras públicas. Como foi visto, o trabalho no açude era muito árduo e muito diferente do
165
ESTADO DO CEARÁ. Mensagem dirigida à Assembléia Legislativa, em 1º de julho de 1915, pelo
presidente do Estado Cel. Benjamim Barroso. Fortaleza: Typographia Moderna, 1915. p.8
166
Arquivo da Segunda Divisão Regional do DNOCS. Fundo Açudes Públicos Ceará. Pasta açude Patos n°3.
correspondência enviada a Aarão Reis por Rômulo Campos. 5 de janeiro de 1917.
167
Arquivo da Segunda Divisão Regional do DNOCS. Fundo Açudes Públicos Ceará. Pasta açude Patos n°3.
correspondência enviada a Aarão Reis por Rômulo Campos. 12 de novembro de 1917.
93
trabalho no campo, eram situações sociais e culturais distintas. Para o sertanejo, era muito
mais vantajoso e satisfatório voltar para semear sua terra, ou até para trabalhar em terras
alheias, pois mesmo a lida diária, em propriedades alheias, oferecia melhores condições, visto
a série de relações sociais baseadas num sistema de reciprocidade que existia no campo.
O cenário mais geral pode ser entendido quando se analisa o Quadro abaixo.
AÇUDE P A T O S
Quadro nº A
Os engenheiros dos açudes já sabiam que, nos anos chuvosos, existia essa carência de
operários, e, assim, lutavam para manter os trabalhadores na obra para poder concluir o
objetivo. Os trabalhadores tinham consciência disso e, desse modo, conseguiam reduzir a
jornada de trabalho de 10 para 7 horas e meia de trabalho e elevar o valor da diária. O
engenheiro alegava que: “de janeiro em diante, com as chuvas”, precisaria “elevar mais as
diárias, a fim de poder operar com certo numero para o prosseguimento e acabamento das
obras”.168
Em volta do local posso dizer, sem exageros que estão 1600 pessoas(,) e
tenho recusado um numero incalculável, os que se revoltam tenho mandado
fornecer uma quantia em gêneros... para dar comida e assim para evitar que
se aglomere no local um grande número de pessoas170
168
Arquivo da Segunda Divisão Regional do DNOCS. Fundo Açudes Públicos Ceará. Pasta açude Patos n°8.
Relatório dos serviços realizados de outubro a dezembro, enviado pelo engenheiro Rômulo Campos. 14 de
janeiro de 1918.
169
[ quadro de mulheres e meninos trabalhadores em anexo]
170
Arquivo da Segunda Divisão Regional do DNOCS. Fundo Açudes Públicos Ceará. Pasta açude Caio Prado
n°1. correspondência enviada pelo engenheiro Rômulo Campos. 26 de novembro de 1915.
96
171
Arquivo da Segunda Divisão Regional do DNOCS. Fundo Açudes Públicos Ceará. Pasta açude Caio Prado
n°1. documento avulso enviado pelo engenheiro Rômulo Campos sobre trabalhos realizados.
172
NEVES, Frederico de Castro. A multidão na História. Op. Cit. 39
173
GUERRA, Felipe. Ainda o Nordeste. Op. Cit. P.16
174
Aarão Reis. Relatório de obras novas. Op. Cit. 150
97
O engenheiro Rômulo Campos, no relatório final do açude Patos, alega que, em 1915
até fins de 1916, não conseguiu resultado compensador do pessoal operário. De acordo com
ele, isto aconteceu não só pela falta de forças devido à alimentação, mas também em
consequência do “pouco esforço de todos os chamados trabalhos do governo”( grifo dele). O
engenheiro explanava que o operário do Nordeste só procurava serviços em obras do governo
quando “acossados pela seca” e por isso não tinha “o habito do trabalho disciplinado”. No
entanto, ressalta que mesmo “pouco diligente”, o operário, era, em geral, “inteligente
compreendendo com facilidade” seu ofício175.
De acordo com os engenheiros, o operário agregado na obra era barato, mas não podia
corresponder ao número empregado porque “a produção nessa época de depauperamento de
forças” era avaliada como menor em “50% do normal”. Os sertanejos que procuravam os
serviços da Inspetoria eram tidos como “menos dispostos ao trabalho, os mais fracos
trabalhadores da região.”
Essa idéia que associa a qualidade dos trabalhos dos retirantes à sua fraqueza física é
influenciada por um olhar cientifico bastante difundido, no final do século XIX e início do
século XX. Esse olhar qualifica a capacidade desses retirantes limitando-os pelo meio, “pelo
baixo índice cultural” e por “uma dieta insuficiente para um desenvolvimento físico
completo”. De acordo com Frederico de Castro Neves, generalizou-se “a percepção de uma
decadência ou de uma degeneração física e moral por conta da miséria da fome, das agruras
da migração” sobre os “refugiados das secas”. Os “atos violentos ou bárbaros” passaram “a
ser vistos como resultado dessa degeneração”.176
175
Arquivo da Segunda Divisão Regional do DNOCS. Fundo Açudes Públicos Ceará. Pasta açude Patos n°8.
Relatório final dos serviços realizados enviado à Superintendência de Obras Novas Contra as Secas pelo
engenheiro Rômulo Campos. 26 de setembro de 1918.
176
NEVES, Frederico de Castro. Op.Cit. p. 93
98
No final do século XIX e inicio do século XX, são bastante difundidas as idéias
compartilhadas pela literatura que associam o homem ao meio. De acordo com Tomás
Pompeu Sobrinho, os “martírios e sofrimentos” resultantes do “meio físico anormal”
despertavam nos retirantes “perturbações psíquicas” como: “depravação”, “prostituição”,
“toda espécie de vícios e crimes”, desde o “roubo simples” “até a antropofagia178”. Já Rodolfo
Teófilo alega que isto ocorre porque
177
Idem. Ibdem. p. 93
178
SOBRINHO, Tomás Pompeu. O problema das secas. P. 27.
179
Teófilo. Rodolfo. A seca de 1915. Op. Cit. 83
180
Algumas fotos em anexo.
99
3.4 AGINDO.
Outra observação que merece reforço é que partindo do pressuposto que os retirantes
representavam mais um perigo à ordem pública do que aos valores do trabalho, essas obras
simbolizavam mais uma preocupação em ocupar e manter afastados os retirantes e menos uma
inquietação para a educação do trabalho. Até porque o ocioso também figurava uma ameaça à
moral e aos bons costumes.
A seca de 1915 serviu para fortalecer a imagem dos retirantes como sujeitos de
desordem, causando medo e temor, e os próprios trabalhadores retirantes reverteram isto em
barganha para garantir o direito à sobrevivência. Os trabalhadores retirantes não ficaram
passivos, pois reivindicavam o direito ao trabalho e, portanto, à vida, em vários momentos do
processo de construção da obra, resistindo à dura lida, por exemplo, quando abandonavam as
frentes de serviços, normalizada a situação climática, ou quando conquistavam o aumento das
diárias.
Como se observa a seguir, a caridade prestada pelos engenheiros existiu, mas não se
pode enxergar os retirantes na forma de inativos “coitados” e “desvalidos flagelados da seca”
à espera dessa caridade. Dentro desse processo não esperaram que a assistência chegasse e
sim recorreram a ela. Os retirantes passaram a exigir socorros do governo, mudando o caráter
de suas ações, podendo ser compreendidos como sujeitos ativos. Pausadamente as práticas e
experiências se modificaram e o que era um favor foi percebido e defendido como direito.
101
Neste capítulo, discorre-se sobre quem era o engenheiro da Obras Novas, tratando de
sua tentativa de levar a obra de modo cientifico e dos descompassos gerados nessa trama,
quando é posto diante de um problema diferente do que estava acostumado: a lida com a seca
e os retirantes.
181
REIS, Aarão. Obras Novas Contra as Secas. Op. Cit., p. 246.
182
Para saber mais sobre a Belle Époque em Fortaleza leia: PONTE, SEBASTIÃO Rogério. Fortaleza Belle
Èpoque: Reformas Urbanas e Controle Social. Fortaleza. - 3ª Ed. Edições Demócrito Rocha, 2001.
102
Para obter o título de “engenheiro da seca”, “era suficiente andar de polainas e chapéu
183
de engenheiro e passear sempre em automóveis da repartição.” Essa nomenclatura era
dada, também, pelos sertanejos a profissionais que exercessem alguma função técnica ou
administrativa na Inspetoria de Obras Contra as Seca (IOCS) ou em trabalhos a ela
relacionado.
Minas de Ouro Preto 186 veio o primeiro inspetor de Obras Contra as Secas, Arrojado Lisboa.
Estas instituições brasileiras de ensino de engenharia tiveram bastante influência das
Politécnicas da França e, como nos moldes da tradição francesa, as escolas brasileiras
acreditavam que a sociedade poderia ser gerida e planejada por engenheiros.
186
Em 6 de novembro 1875, foi criada a Escola de Minas de Ouro Preto, que teve como primeiro diretor Claude
Henri Gorceix. Segundo José Murilo de Carvalho, aliando a teoria à prática, o ensino da Escola de Minas tinha
uma preocupação com o conhecimento da realidade brasileira e com o desenvolvimento da criatividade e do
espírito de investigação. Sobre a Escola de Minas de Ouro Preto ver: CARVALHO, Jose Murilo de. A Escola de
Minas de Ouro Preto: o peso da glória. 2ª ed. rev. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002.
187
Fundada em 14 de março de 1897, a Escola Politécnica da Bahia recebeu influências da Escola Politécnica do
Rio de Janeiro. Para saber mais sobre a Escola Politécnica da Bahia, ver: COSTA, Cauby Alves da. Frutos da
Seara da Escola Politécnica. Salvador: P&A Gráfica e Editora, 2005. P.9
188
O referido engenheiro foi responsável pela reconstrução e conclusão da construção do açude Caio Prado.
189
Em anexo, uma tabela com as disciplinas cursadas por Domingos Rômulo da Silva Campos quando era aluno
da Escola Politécnica da Bahia.
104
ao de condutor de uma obra. 190 Eles trabalhavam na administração central na Capital Federal,
no cargo de inspetor; na seção administrativa, localizada no mesmo prédio da administração
central, desempenhando serviços de contabilidade, arquivos e demais serviços burocráticos;
na seção técnica, também localizada no mesmo prédio, trabalhando em serviços de preparação
dos projetos, orçamentos das obras, organizando “trabalhos a executar nos distritos, como
também a revisão das folhas de medição por estes enviadas, dos projetos e orçamentos”,
determinados pelo inspetor191. Estes profissionais eram ainda lotados em três distritos
“denominados 1º, 2º e 3º, localizados nas cidades de Fortaleza, Natal e Bahia,
respectivamente,”192 onde trabalhavam na organização, conservação e fiscalização dos
serviços.
190
No organograma anexo a este texto, são listadas diferentes ocupações de funcionários da Inspetoria de Obras
Contra as Secas. Este esquema é necessário também para entender o funcionamento e a hierarquia da Inspetoria
das Secas.
191
Decreto 11.474, de 3 de fevereiro de 1915. Cap. 4 art. 54.
192
De acordo com o decreto 11.474, Art. 58, o 1º distrito compreendia os estado do Ceará e do Piauí; o 2º
distrito, os do Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco, e o 3º distrito, os da Bahia, Alagoas e Sergipe e,
ainda, o norte do de Minas Gerais.
193
Os condutores podiam ser ou não engenheiros formados, em alguns casos, assumiam as posições de
condutores os chamados “práticos”.
194
Os engenheiros e condutores de obras deveriam prestar contas dos trabalhos realizados, para isso enviavam
relatórios de trabalhos realizados, “um documento diário à sede do distrito e outro quinzenal à administração
central dos trabalhos”.
195
Arquivo do quarto distrito do DNOCS. Salvador-Ba. Fundo: Serviço de cadastro. Pasta: Domingos Rômulo
da Silva Campos. Histórico do engenheiro enquanto engenheiro da Instituição. Em 1911, um ano depois de
formado, o referido engenheiro é admitido como condutor de 2ª classe do quadro da IOCS, sendo promovido a
105
Os engenheiros foram peças importantes dentro do contexto que percebia a seca como
um estorvo no crescimento estrutural, econômico e político dos estados do Norte. Assim,
torna-se importante fazer esta ressalva quanto ao papel que os profissionais engenheiros
tiveram na constituição dos conhecimentos organizados sobre a temática da seca dentro das
obras de açudagem.
condutor de 1ª classe em 1/1/1912. Em 1915, foi “designado a servir na Comissão de Obras Novas Contra as
Secas”. Depois de assumir a construção do açude Forquilha/Sobral, em 1919, por um ano, foi provido a
engenheiro de 2ª classe sendo responsabilizado pela construção de mais sete açudes públicos, duas estradas de
rodagem e outros serviços no Ceará. Em 1927, é dado ao engenheiro o cargo de chefe do 2º distrito e, em 1931, é
elevado ao posto de engenheiro de 1ª classe. Mediante a análise desse histórico, vê-se que Rômulo Campos ainda
recebe cargos administrativos de confiança antes de falecer, no ano de 1955. Ele foi chefe de seção de açudagem
e chefe da seção técnica.
196
REIS, A. Obras Novas Contra as Secas. Op. Cit., p. 32. Referente às Instruções para a execução de obras
contra as secas.
197
REIS, A. Obras Novas Contra as Secas. Op. Cit., 12
106
Isto ocorre porque, crentes em ideais positivistas, muitos tentavam seguir uma
natureza precisa e racional, inclusive procurando examinar cientificamente problemas sociais
como os decorrentes de uma seca. Por isso é interessante apreender, mesmo que sucintamente,
alguns traços do ensaio da postura racionalista dos engenheiros das secas e seus
descompassos.
198
SOBRINHO, Tomás Pompeu. O problema das secas. Op. Cit.p. 59
199
SALGUEIRO, Heliana Angotti. Engenheiro Aarão Reis: o progresso como missão. Op. Cit., p. 152.
107
Antes que uma obra fosse iniciada, estudos preparatórios eram elaborados, o que
resultava num documento técnico de açudagem nominado memória justificativa. Nele, pode-
se encontrar: histórico deixado pela comissão de estudos do açude; considerações topográficas
(sítio e paisagem), discriminando se o terreno está apropriado para a construção de um açude
médio, pequeno ou grande; cálculos técnicos de tamanho, largura, altura, volume e materiais a
serem utilizados na construção; e estudos geográficos e geológicos. Além disso, existe na
fonte um orçamento dos gastos da obra, justificativa da construção deste e descrições das
atividades econômicas dos arredores do terreno do açude. Na memória justificativa do açude
Patos200, a pecuária era apontada como principal atividade da região. É exposto que não havia
“numa extensão de muitas léguas” terras “apropriadas à agricultura”, mas que havia pastagens
para o gado, apesar dos “anos de pouca chuva”.
200
Arquivo do Segundo Distrito Regional do DNOCS. Fortaleza-Ce. Fundo Açudes Públicos. Açude Patos/Pasta
II. Memória Justificativa de 20 de setembro de 1911.
201
REIS, A. Obras Novas Contra as Secas. Op. Cit., 98 e 99.
109
Campos”, que condenava o açude por “irregularidades na execução técnica”. Após a vistoria,
foi verificada a “urgente necessidade de modificar a obra, quer quanto às condições de
execução, quer quanto ao projeto, naturalmente baseados em estudos imperfeitos”202. As
falhas resultaram em fortes infiltrações na obra. Então, foi decidida a realização de reparos no
açude, no qual Rômulo Campos ficou responsável, sob alegação de que Severino de Oliveira
não podia mais “inspirar confiança”. No fim dos trabalhos, a despesa elevou-se a mais de
100.000$000.
Na análise desse processo, identificam-se mais algumas questões que ocorriam nas
construções de açudagem. As disputas por poder entre engenheiros, os excessos nas despesas
e as questões que envolviam o condutor da obra e o discurso do amparo ao retirante. Primeiro
o condutor Severino de Oliveira não comunicou ao inspetor Aarão Reis os problemas da
construção e a realização de obras excedentes no açude. Isto desagrada ao inspetor Aarão Reis
que lembra que as instruções deixam claro que não poderia haver “modificação do projeto a
executar” sem “a prévia aprovação do inspetor”205. Isto atinge os “brios” do chefe da
administração da Obras Novas, já que é demonstrado como dever dele a manutenção da
“disciplina nos serviços da Inspetoria.” Fora os conflitos existentes entre os engenheiros e o
inspetor, havia também as disputas que envolviam poder e saber entre os engenheiros, um
exemplo disso são os embates entre os que construíam a obra e os que faziam a fiscalização
final.
202
REIS, A. Obras Novas Contra as Secas.Op. Cit,. 150.
203
Arquivo do Segundo Distrito Regional do DNOCS. Fortaleza-Ce. Fundo Açudes Públicos. Açude Caio
prado/Pasta II. Relatório de justificação apresentado ao engenheiro Tomás Pompeu Sobrinho.Memória
Justificativa 13 de junho de 1916.
204
A obra final do açude Caio Prado, depois de sua reconstrução por Rômulo Campos, foi entregue em 4 de
dezembro de 1917, um ano depois de iniciados os trabalhos de reconstrução. Severino de Oliveira morre antes
que finde o ano de 1916. As causas da morte não são encontradas em documento algum.
205
REIS, A. Obras Novas Contra as Secas. Op. Cit., p 35
110
Outro problema visualizado nos açudes da Obras Novas são os custos do açude. As
despesas eram sempre elevadas se comparadas aos projetos orçamentários iniciais. Alguns
açudes tiveram as contas excedidas em cerca de 100% do orçamento estudado inicialmente.
No açude Caio Prado o orçamento total era de 53: 214.390, no período primeiro da construção
do açude, a despesa elevou-se a 63: 281.564 – período em que o gestor da obra era Severino
de Oliveira. Com a condução do engenheiro Domingos Rômulo Campos, a despesa foi de
51:788$451. O custo final da obra do açude foi de 112:790$115. Em outros açudes, as cifras
também são elevadas, no açude Riacho do Sangue, localizado em Cachoeira, nos arredores de
Sobral, o orçamento era de 697:208$997 e o custo final foi de 1.210:603$467. No açude
Patos, os trabalhos foram orçados em 251:235$93 e dobrou sendo o custo final de
581:718$320.
dos operários. O intelectual do saber objetivo e neutro, baseado em leis invariáveis, sempre
justifica nos documentos a realização de obras contra as secas apontando para a questão
humanista de amparar os retirantes. A construção imediata do açude Mulungu, em Itapipoca,
é defendida porque, “aumentando, dia-a-dia, o número de flagelados pela seca de 1915”, era
preciso iniciar a obra no norte do estado para “auxiliá-los”. Isto ocorre porque o engenheiro
era um funcionário a serviço do governo, associando-se a este na gestão de obras públicas.
Dentro dessas obras os deveres paternalistas do Estado passavam aos engenheiros. As
problemáticas ocorridas, relacionadas à tentativa de empregar muitos retirantes nas obras,
configuram-se num dos principais embates do engenheiro das secas e recebem destaque no
tópico a seguir.
Entre outras atitudes, o condutor da obra, nos momentos de grande calamidade, agiu
empregando trabalhadores em número maior em relação à necessidade desta. Os motivos que
levavam o engenheiro a tal atitude não pode ser limitado a uma só questão, pois a
documentação mostra que as razões para o emprego excessivo de braços nas obras eram
diversas e atuavam em conjunto.
207
Idem. Ibidem.,p. 147
112
Como já foi feita menção no capítulo anterior, antes mesmo de serem iniciadas as
obras de açudagem, retirantes aglomeravam-se à procura de trabalho. Só a expectativa do
começo da obra já era suficiente para que muitos se alojassem nos terrenos onde seriam
realizadas as obras, procurando trabalho. Desde o início, o que fazer com a massa de
retirantes já se configurava num desafio para o engenheiro. Pode-se observar, através da
documentação, que essa problemática envolvia, sobretudo, os condutores das obras, já que
estavam em contato maior com os retirantes. Por causa da exposição a esse contato, eles
acabavam entrando em conflito, inclusive com o inspetor da comissão quando necessitava
208
Jornal o Correio da Semana, de 12 de julho de 1919.
209
Arquivo do Segundo Distrito Regional do DNOCS. Fortaleza-Ce. Fundo Açudes Públicos. Açude Patos/Pasta
IV. Telegrama de 6 de dezembro de 1915.
210
Arquivo do Segundo Distrito Regional do DNOCS. Fortaleza-Ce. Fundo Açudes Públicos. Pasta II açude
Caio Prado. Telegrama de 30 de outubro de 1915.
211
REIS, A. Obras Novas Contra as Secas. Op. Cit..,p 134
113
incluir mais trabalhadores em obras, pois Aarão Reis não permitia o excesso de braços na
construção.
212
Arquivo do Segundo Distrito Regional do DNOCS. Fortaleza-Ce. Fundo Açudes Públicos. Pasta II açude
telegrama 11 de dezembro.
213
O jornal trata do engenheiro Rômulo Campos e do engenheiro Abelardo dos Santos. O último trabalhou na
construção do açude Tucunduba, pela IOCS, no mesmo período e região dos açudes Patos, Caio Prado e
Mulungu.
214
Jornal A Lucta de 10 de novembro de 1915.
114
famintos.” Outro jornal do período, o Jornal A Ordem215, também mostra estima por esse
engenheiro. Rômulo Campos era associado a “um cidadão possuidor dos mais delicados
sentimentos de filantropia... profissional de estatura moral”, reunindo a “vantagem de ser um
atento conhecedor do nosso meio, do nosso solo, do nosso operário, e, sobretudo, num
momento aflitíssimo como este, das necessidades amaríssimas de um povo açoitado.”
215
Jornal A Ordem, 9 de maio de 1919.
216
Arquivo do Segundo Distrito Regional do DNOCS. Fundo Açudes Públicos. Pasta III açude Patos. Relatório
de 25 de janeiro de 1915.Na pasta do engenheiro Rômulo Campos da 4º distrito, documentação pessoal tem um
telegrama de 5 de agosto de 1955 falando da morte e da falta deste, justificado pelos “40 anos que lutou na
repartição”, despertando admiração de todos que trabalhavam ao seu lado, desde colegas até o mais humilde
operário influenciados pelas faculdades espirituais, morais, da sua personalidade”.
217
NEVES, Frederico de Castro. A multidão e a história: saques e outras ações de massas no Ceará. Op. Cit.,
p.101
115
Outro fator que se deve considerar é o contexto do início do século XX. A figura do
técnico detentor de um “saber privilegiado” difunde a idéia desse profissional como alguém
capaz de romper com o atraso e criar riqueza, acreditando que este estaria apto a resolver
problemas sociais. O engenheiro representava um novo tipo de intelectual, vigorava a idéia
que a sociedade poderia ser planejada e governada por engenheiros, que tinham competência
de conduzi-la e torná-la melhor. De acordo com Simom Schwaartzman, “a doutrina positivista
garantia aos engenheiros brasileiros que eles tinham o direito e a competência para governar a
sociedade e sob sua direção torná-la melhor e mais civilizada218”. Os engenheiros, como
discorre Ângela de Castro Gomes, “constituíam uma elite de bacharéis possuidora de uma
cultura humanística, nos moldes da ilustração, quanto de uma tradição política familiar que as
habilitava para o desempenho parlamentar e/ou para o serviço público. 219”
Num parecer ao Clube de Engenharia, Aarão Reis, tratando sobre a solução da seca
como responsabilidade da engenharia, alega que: deveria residir a esperança na “coragem
estóica” e na “resignação evangélica” na lida “contra o inimigo periódico”, tal quadro se
converteria “graças à continuidade da ação energética da união... numa rápida e progressiva
elevação do nível médio generalizado de conforto e bem estar, isto é de civilização.” 220
Estes profissionais acreditavam que a luta contra a seca era uma luta contra um inimigo
do progresso da nação, seria necessário coragem, paciência e continuidade da ação para
solucioná-la. A seca, no pensamento dos intelectuais que geriam as construções da obras
Novas e a IOCS, era personificada como “ente” social, sujeito. Os retirantes eram atores
coadjuvantes, o atraso e a pobreza inerente a estes eram resultado da calamidade climática.
Então, era preciso combater essa oponente nomenclaturada seca e assim resolver os mais
diversos problemas da região semiárida, inclusive os agregados aos sertanejos.
218
SCHWAARTZMAN, Simon. Um espaço para a ciência no Brasil. A formação da comunidade cientifica no
Brasil. Brasília: Ministério da Ciência e da Tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos. 2001.P. 88.
219
GOMES, Ângela de Castro(org). Engenheiros e economistas: Novas elites burocráticas. Rio de Janeiro: Ed.
Fundação Getúlio Vargas. 1998. P.32.
220
REIS, A. Obras Novas Contra as Secas. Op. Cit., p 246. O documento apontado na citação está anexado ao
referido Relatório sendo nominado “As secas do nordeste - Parecer submetido na sessão de 5 de agosto de 1919,
ao conselho diretor do clube de engenharia sobre as secas periódicas a que esta sujeita a região semiárida do
Nordeste brasileiro pelo Dr. Arão Reis.
116
Outro caso interessante e que merece ser pontuado ocorreu no Rio Grande do Norte,
onde a comissão também atuava. O condutor da obra do açude Saco, em Mossoró, procurou
atenuar a disposição regulamentar, quando um retirante ficou doente em serviço. Sendo a
assistência médica, de acordo com as instruções, um dever do Estado, o trabalhador retirante
que adoeceu e não pôde mais executar suas tarefas deveria ter sido dispensado, mas o
engenheiro do açude Saco o incluiu na folha de pagamento. Durante uma semana, o
engenheiro mandou que o nome do operário, retirante fosse “apontado em folha de
pagamento, para receber seu minguado salário. Não seria possível deixar ao abandono esse
flagelado, que vivia em seu rancho, com sua mulher e seis filhos, crianças”. O engenheiro foi
221
REIS, A. Obras Novas Contra as Secas. Op. Cit., p. 32-35.
222
Arquivo do Segundo Distrito Regional do DNOCS. Fortaleza-Ce. Fundo Açudes Públicos. Açude Caio/Pasta
I Prado. Documento relativo ao açude Patos enviado pelo engenheiro Rômulo Campos, em 26 de janeiro de
1916.
GUERRA, Felipe. A seca de 1915. Op. Cit.,p.15.
117
dispensado pela comissão por ter tomado tal atitude de proteção ao trabalhador e para se
retirar teve que vender suas jóias.
Quem averiguou tal caso do açude Saco, localizado no Estado do Rio do Grande do
Norte, foi Felipe Guerra que, no ano de 1915, residia em Mossoró e ocupava o cargo de juiz
de direito da comarca. Esta situação mostra como as questões aqui discutidas, envolvendo
trabalhadores retirantes e engenheiros, não se limitavam aos açudes estudados nesta pesquisa
e nem também se restringiam ao Ceará.
223
Existe uma pesquisa em andamento sobre a relação dos fornecedores com engenheiros nas obras públicas
sendo desenvolvida por Aline Silva Lima.
118
O interesse pelo auxílio aos retirantes ocorreu porque os engenheiros acreditavam que o
uso da ciência positiva nas obras públicas, em áreas de estiagem, gerava a possibilidade de
civilizar os habitantes do sertão, especialmente, os miseráveis e os trabalhadores. Era a chance
para eles – era o que se pensava – superarem a preguiça e despertar para o sentimento de
desejo de prosperidade. Na aurora da República brasileira – e mesmo depois – os engenheiros
da IOCS carregavam essas aspirações, acreditando que estavam destinados a contribuir com a
essa missão, mediante seus métodos, suas técnicas e sua eficiência. Enquanto objetivavam
implementar mecanismos para combater a seca, também lutavam contra o atraso e a
ignorância.
Ficou entendido, dessa forma, que o engenheiro viveu um impasse dentro da Obras
Novas. As questões técnicas representavam desafios. Isto é refletido na tentativa de elaborar
um bom projeto para as obras, no esforço de realizar trabalhos preparatórios e verificar a
aplicabilidade dos projetos, entre outros. No entanto, é notável também que esses embaraços,
224
Arquivo do Segundo Distrito Regional do DNOCS. Fortaleza-Ce. Fundo Açudes Públicos. Açude Patos/Pasta
III. Relatório de 25 de janeiro de 1915.
119
Na construção do açude Patos, num relatório de serviços, o engenheiro alega que muitos
esperavam “maltrapilhos e inanidos” e o número dos que ficavam à espera de trabalho cresceu
bastante, havendo dias em que esteve “na iminência de um ataque, aconselhado por perversos
225
Arquivo da segunda Divisão Regional do DNOCS. Fundo Açudes Públicos. Açude Caio Prado/pasta II.
Telegrama de 9/1/1916 referente ao açude Patos.
226
Jornal A Lucta, 2 de junho de 1915.
120
que entendiam que o dinheiro era para distribuir com o povo227”. No açude Caio Prado,
Severino de Oliveira comunica ao inspetor Aarão Reis, através de um telegrama, que o povo
está em “estado desesperador” e que “pessoas da comunidade insuflam” e “o próprio vigário
da cidade o condena por não empregar todos os famintos”. É comunicado também a tentativa
de agressão de sujeito da localidade querendo “forçar a inclusão de dez homens” na obra.228
É possível perceber vários embates, através das leituras dos jornais de 1915, sobre que
políticas deveriam ser adotadas pelo Estado para a assistência dos retirantes da seca.
Distribuir ou não esmola era uma das pautas discutidas. No entanto, o que predominava nas
discussões não era o amparo com esmolas, mas, sim, com trabalho. O número de discursos,
não somente nos jornais, mas também na documentação dos açudes públicos do Ceará,
propaga em número maior a necessidade de dar ocupação para tornar digna a assistência. Era
pregada uma justificação para a repartição dos socorros, contudo, era alegado que o trabalho
nas obras dignificaria o retirante e a caridade por si só levaria ao ócio.
Em 1915, na região Norte, os pedidos de trabalho eram para que houvesse a construção
de novas obras e a ocupação do maior número de retirantes que fosse possível. Como os
representantes do governo naquele momento eram os engenheiros, a estes era cobrado o dever
da assistência. O flagelo da seca e a necessidade emergencial de lidar com esse problema
obrigam a uma nova gerência do problema. Como já foi visto, o governo, representado pelo
engenheiro, passava então a ser cobrado, as atribuições paternalistas, que antes eram dadas
aos grandes proprietários, eram transferidas a estes profissionais. Ocorria “a permanência de
elementos característicos do modelo paternalista”, que se combinavam e se fusionavam com
227
Arquivo do Segundo Distrito Regional do DNOCS. Fortaleza-Ce. Fundo Açudes Públicos. Açude
Patos./pastaIII. Relatório de 25 de janeiro de 1915.
228
Arquivo do Segundo Distrito Regional do DNOCS. Fortaleza-Ce. Fundo Açudes Públicos. Açude Caio
Prado/pasta III. Telegrama de 3 de novembro de 1915.
121
novas noções e outros conceitos sobre a vida social e comunitária e, especialmente, sobre a
divisão da riqueza social em momentos de escassez229.”
Como já foi explicado, era complicada a situação dos chefes das obras diante da
aglomeração de sujeitos a pedir trabalho, eles ultrapassavam os números de operários
necessários às obras. Mesmo com a pressão dos retirantes e da sociedade, os condutores dos
açudes não conseguiam fornecer ocupação a todos, justificados no desfalque orçamentário
que isto acarretaria e na tentativa de racionalização da obra.
231
Em dois de novembro de 1915 , Severino de Oliveira escreveu ao inspetor Aarão
Reis informando sobre um telegrama recebido do presidente de Estado Benjamim Barroso no
qual o presidente informa ao condutor Severino de Oliveira a acusação de Padre Gonçalo em
relação às “vítimas” e às “desumanidades” por não empregar todos os “famintos”. Severino
de Oliveira justifica o caso a Aarão Reis, alegando que a “desumanidade” referida “procede
229
NEVES, Frederico de Castro. A seca e a cidade: a formação da pobreza urbana(1880-1900). IN: SOUSA,
Simone e NEVES, Frederico de Castro. (orgs) Fortaleza: história e cotidiano- Seca. Fortaleza: edições
Demócrito Rocha, 2002. P.100
230
Arquivo do Segundo Distrito Regional do DNOCS. Fortaleza-Ce. Fundo Açudes Públicos. Açude Caio
Prado/pasta II. Telegrama de primeiro de novembro. (as cartas do delegado, do vigário e do prefeito da cidade
estão anexadas a este telegrama)
231
Arquivo do Segundo Distrito Regional do DNOCS. Fortaleza-Ce. Fundo Açudes Públicos. Açude Caio
Prado/pasta II.
122
em não ser possível admitir mil onde só cabem duzentos e já estão trabalhando
quatrocentos”.232
Na carta do prefeito Djalma Catunda, este alega que, quanto às acusações de falta de
ordem, não houve tumultos e nem perturbação da ordem pública, mas que “infelizmente tem
havido atos de desumanidade por parte, certamente da diretoria do serviço, uma vez que não
admite pessoas acossadas pela fome e manifestas pelo seu abalo psíquico.” Na carta do
delegado José Rodrigues Pinto também são negadas as acusações feitas relacionadas à
desordem na obra, mas discorre que é desumano “preterir pessoas necessitadas no serviço” e
admitir rapazes robustos como era visto ali. O padre Gonçalo afirma que não sabe se “falta
com a verdade ou não”, já que reproduz os depoimentos da população, mas soube de
“inúmeros pobres” que procuraram serviço e não foram alistados ficando “à mercê dos ventos
do infortúnio”.
No momento em que Aarão Reis tem informações sobre a cobrança feita pelas
autoridades ao responsável por uma da Obras Novas, o inspetor responde não permitindo
extrapolar o número de operários “de modo a não exceder respectivo orçamento”,
aconselhando o engenheiro a “fazer compreender as autoridades e amigos” que a missão não
era de “assistência pública e sim de realizar uma obra dentro da verba”. O inspetor conclui
afirmando acreditar que as “autoridades locais” não deixariam “de dar prestígio necessário
aos cumprimentos desses deveres.” 233
Aarão Reis tem consciência do momento delicado que o responsável pela obra do açude
Caio Prado estava passando, sabia que era uma questão que estava envolvendo as autoridades
locais e argumenta que o referido condutor deve defender-se com o discurso de produção da
obra dentro do orçamento, vale lembrar, que, para isso, o inspetor da Obras Novas entra em
232
Em 6 de novembro, Severino de Oliveira envia uma carta ao presidente de Estado justificando. Nesta carta,
Severino de Oliveira diz que as acusações são injustas e que o ato de desumanidade do qual fala “o padre
Gonçalo consiste em não ter eu podido atender a todos os famintos que solicitaram trabalho... devia ter 200
trabalhando e hoje tenho 380. O açude comporta no máximo 250 pessoas, mas o número dos que pedem serviço
é superior a 3000!!!”. Ele explana que cabe ao presidente do Estado julgar se as acusações têm valor, dizendo
que ele também estava “vestindo lágrimas como pai de família, ante as desgraças” que via.
233
Arquivo do Segundo Distrito Regional do DNOCS. Fortaleza-Ce. Fundo Açudes Públicos. açude Caio/Pasta
III Prado. Telegrama de 8 de novembro de 1915.
123
contradição com o próprio discurso inicial de assistência aos “flagelados”, quando discorre
que a obra não é de “assistência pública”.
Após telegramas alarmantes enviados ao inspetor pelo condutor do açude Caio Prado,
Aarão Reis escreve ao prefeito da cidade234 justificando as ações de Severino de Oliveira na
necessidade de “boa marcha da construção” e diz lamentar a “impossibilidade de dar trabalho
a todos”, insistindo para que a “obra seja construída com a garantia que o governo deu para
ela”.
Para reforçar mais ainda a repercussão desse caso é importante expor que os jornais
também denunciavam a distribuição de serviços a homens “sem necessidade” em construções
de estradas e no açude Caio Prado. Era dito nos jornais que homens solteiros, robustos e ainda
familiares de Severino de Oliveira eram lotados nas obras do açude Caio Prado.235 O condutor
mencionado é acusado ainda de rejeitar “velhos, magros e pretos” e de pagar “arbritariamente
os empregados, conforme a lua”. Contudo, quanto às obras do açude Patos, os jornais
permanecem defendendo que o engenheiro Rômulo Campos tinha uma postura diferente, pois
assistia tantos quantos fosse possível sem distinção.
A fonte alega que o chefe da obra do açude Caio Prado rejeitava negros. Isto evidencia
como a discriminação existia em vários domínios da vida social, podendo ser motivo para
inferiorizar sujeitos e diferenciar o tratamento dado a retirantes que estavam sob a mesma
condição de sofrimento, o que também reforça como os retirantes das secas eram vistos como
inferiores, incapacitados, degenerados “pela raça e pelos costumes”, merecendo, na visão da
classe letrada, ser educados e saneados.
234
Arquivo do Segundo Distrito Regional do DNOCS. Fortaleza-Ce. Fundo Açudes Públicos. Açude Caio/Pasta
III Prado. Telegrama de 9 de novembro de 1915.
235
Jornal A Lucta, 23 de dezembro de 1915
124
Considerada um dever social cristão, a prática de doar esmolas esteve presente na seca
de 1915, objetivando o amparo dos desvalidos. Entretanto, o sentimento de caridade depende
do contexto em que está inserida cada seca. Na seca de 1915, a caridade não estava associada
somente ao ato de dar esmolas, mas era refletida em outras ações como: na negociação em
busca de inclusão dos retirantes em obras públicas, no auxílio nas reivindicações por melhores
diárias237, logo que iniciados os trabalhos de açudagem e outros.
A imprensa colaborou muito para a formação da visão que a sociedade tinha acerca dos
retirantes. Estes sujeitos eram qualificados como famintos, pobres, flagelados, contribuindo
para uma postura de relativa caridade para com os que sofriam com a calamidade. No entanto,
os retirantes eram trabalhadores que ficavam numa situação-limite por conta da seca, caindo
na miséria. Nos jornais de 1915, o termo que mais aparece para designar os sujeitos que se
retiravam por conta da seca foi o “flagelado”. Este termo contribuiu em muito para vitimizar
os homens e mulheres que migravam por conta da seca.
Nessa conjuntura, a percepção dos retirantes da seca – leia-se pobreza – passava por
mudanças, o que antes era enxergado como penúria, e que despertava o sentimento de
caridade, passava a ser visualizado também com medo e hostilidade, o que faz com que
muitos setores políticos e religiosos cobrem do engenheiro uma ação no sentido de represar,
isolando e ocupando, os retirantes nos açudes.
236
Ver: NEVES, Frederico de Castro. A multidão e a história: saques e outras ações de massas no Ceará. Rio
de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
237
Já foi visto o quanto o sistema de vales como pagamento era problemático. As diárias eram pequenas e
resultavam em pouco alimento para si e para família. Muitas manifestações em busca de aumento das diárias
foram realizadas pela população.
125
Rodolfo Teófilo explana que a miséria anestesiava “os sentimentos dessa gente, cuja
moral não foi cultivada239”. As imagens de desgraça, pobreza, ignorância e incivilidade
estigmatizavam cada vez mais esses sujeitos. Se já carregavam o imaginário do homem
sertanejo, preguiço e pervertido moralmente, a imagem de todo o flagelo que uma seca
representava tornava os retirantes cada vez mais enquadrados como desocupados, despertando
o sentimento de repulsa. Assim, a cada seca, a ação da sociedade, motivada seja pela
humanidade ou medo, ocorria em busca de ocupação para os migrantes da seca e não mais de
esmola.
Rodolfo Teófilo, no seu livro A Seca, de 1915, que teve sua primeira edição em 1922,
falando sobre o ato de esmolar escreveu: “a esmola nunca, antes o furto. O direito de
conservação é o mais sagrado dos direitos naturais.” 240 Ele aconselhava que, “abandonados à
morte pelos poderes públicos”, os retirantes deviam implorar “dos particulares” “abastados
um pouco de pão, dando-lhes trabalho”.
As obras, para muitos, não era apenas uma maneira de dar assistência em forma de
trabalho, significava também combater os “pobres” e seus vícios que podiam agredir uma
sociedade civilizada. Baseado nas leituras das obras de Sidney Chalhoub, é possível entender
que os pobres eram tidos como perigosos, com “maior tendência à ociosidade, cheios de
vícios e menos moralizados241”.
238
OLIVENOR, José. Metrópole da fome: a cidade de Fortaleza na seca de 1877-1879. SOUSA, Simone e
NEVES, Frederico de Castro. (orgs) Fortaleza: história e cotidiano- Seca. Fortaleza: edições Demócrito Rocha,
2002. P. 58
239
TEÓFILO, Rodolfo. A seca de 1915. Op. Cit., p. 83
240
THEOPHILO, R. A seca de 1915. Op. Cit., p. 55
241
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle
Époque. Op. Cit., p. 76
126
Os retirantes eram elementos indesejados, pois eram percebidos como sujeitos que
podiam agredir a imagem e a ordem pública. E se de início eles eram alvos principalmente das
autoridades públicas, a cada seca, eles passaram a ser também evitados por homens e
mulheres que, buscando a ordem, enxergavam-nos como uma agressão à moral, ao belo, ao
limpo. No entanto, que ordem seria essa? A infração da ordem pública acontecia entre outros,
pela vadiagem, casos de desordem e imoralidade. Pelo que se pode observar, até esse
momento, a ordem que queria se firmar era a almejada mediante o trabalho, isto era pré-
requisito para consolidar a imagem das “pessoas de bem”. Os retirantes, sem ocupação, não se
enquadravam na sociedade “ dos dignos”. Dessa forma, acreditou-se que era preciso submetê-
los à “ordem do trabalho”.
A ciência, figurada na Obras Novas pelos engenheiros, acreditou que podia resolver o
problema da seca e tomou para si essa questão. Dos engenheiros emanaram discursos de
redenção nacional e objetividade na produção da realidade. Dentro das obras, esse
profissional buscou afirmar uma ordem social pautada pela necessidade de manter a ordem e
dar trabalho à população retirante. Mesmo acreditando no dever social da ciência, eles
estavam imbuídos da idéia de que só conhecendo as leis imutáveis e de forma prática e
objetiva podiam interferir nos problemas sociais.
abarcar um maior número de vítimas da calamidade da seca. Ficou visível, contudo, que o
saber prático não deu conta de resolver essas situações. As equações dos problemas sociais da
seca – leiam-se retirantes – puseram em risco a objetividade e racionalidade que o engenheiro
acreditava, pois essas questões não puderam ser matematizadas e operacionalizadas utilizando
os cálculos. Assim, com o medo de atitudes violentas e também verificando a miséria e a
emergência em contornar o problema da fome, os engenheiros negociaram muitas condições e
reconheceram muitas formas de legitimação nas ações dos trabalhadores.
A ciência, figurada na Obras Novas pelos engenheiros, acreditou que podia resolver o
problema da seca e tomou para si essa questão. Dos engenheiros emanaram discursos de
redenção nacional e objetividade na produção da realidade. Dentro das obras esse profissional
buscou afirmar uma ordem social pautada pela necessidade de manter a ordem e dar trabalho
a população retirante. Mesmo acreditando no dever social da ciência eles estavam imbuídos
da idéia de que só conhecendo as leis imutáveis e de forma prática e objetiva podiam interferir
nos problemas sociais.
5. CONCLUSÕES
242
Esses adjetivos são mencionados pelo engenheiro Fleury. Ver: GUERRA, Phellipe. Ainda o Nordeste. Natal.
Typ. D” a republica”. 1927. p. 16.
130
Em 1915, quando mais uma seca assola o Ceará e outros estados semiáridos, as
cidades foram invadidas pelos “protagonistas do fundo”, conforme noticiou A Lucta. As
retiradas tornaram-se uma ameaça à ordem e à civilização. Os retirantes desalojados
representavam perigo. Dispersos em pequenos bandos, andrajosos ou ajuntados em maltas de
dissidentes, os sertanejos mazelados pela estiagem deixavam de ser vistos como dóceis e
passivos para ser vistos com uma massa que poderia provocar um levante geral da pobreza
caso não fossem assistidos.
É verdade, as secas, há tempos, já serviam para aumentar o poder dos chefes religiosos e
políticos que, com recursos simbólicos e materiais, confortavam o sofrimento dos
necessitados. Muitos conselheiros obravam, à frente de seus séquitos, realizações importantes,
mantendo seus fiéis tementes a Deus, disciplinados e laboriosos, consertando estradas,
açudes, igrejas e cemitérios. As secas também podiam – e essa era a novidade da Obras
Contra as Secas – servir para reforçar a autoridade de bacharéis em engenharia, homens por
várias vezes formados em áreas litorâneas urbanas, distantes da área da incidência delas.
Aonde talvez tenha faltado – ou viesse a faltar – forças aos chefes políticos, terratenentes,
militares e religiosos, as secas forneceram o decisivo incômodo da compulsão para o trabalho,
fragilizando práticas costumeiras de recrutamento, contratação e disciplinamento dos
trabalhadores, o que permitia sua substituição ou reelaboração.
Assim, num ambiente de progresso regido pela ciência, eles, os engenheiros, foram os
protagonistas de eficaz combate à seca. Empossados da soberba ciência europeizada do
litoral, a eles cabia ocupar os retirantes em obras que, ao mesmo tempo, incutir-lhes-ia
disciplina e gosto pelo trabalho duro. E o que era fator de desestabilização (as forças da
natureza que desarticulavam a “normalidade” climática) era também fator de
“modernização”, servindo para reforçar ou inventar os meios de contratar mão-de-obra e
prezar pelos valores do trabalho.
Neste concerto orquestrado pelas relações de poder, pela fome e pelos diversos
sentimentos, os conflitos não demoraram a surgir. As “avalanches de flagelados” abateram-se
sobre os canteiros das obras. A assistência social, a ocupação para todos, era exigida. Pode-se
pensar, quem sabe, também na urgência do direito ao trabalho. As aglomerações, “motivadas
pela fome”, exerceram pressão. Só a ameaça das avalanches de flagelados já era o suficiente
133
para deixar as autoridades locais e os engenheiros das obras ansiosos e receosos quanto à
possibilidade de uma revolta maior, principalmente se lhes faltassem serviços.
Os trabalhadores reagiram aos desafios postos no cotidiano das obras, aos mandos das
autoridades, às jornadas da fome, na busca da asseguração de “direitos” mínimos; como se
diria hoje, direito à ocupação, direito à segurança alimentar (sua e da família), direito ao
aumento das diárias e diminuição das jornadas, aproveitando-se do momento de carência de
trabalhadores em anos chuvosos. Sua evasão nas obras, no primeiro sinal de bom inverno,
também era uma forma de resistência, era um indicativo de que não estavam satisfeitos com
os ofícios na Obras Novas e por isso retornavam ao seu cotidiano de trabalhos no campo.
Por fim, a seca, antes vista como um fenômeno natural incontroverso, dada sua natureza
divina, passou a ser um objeto da ciência que contribuiu para fortalecer o pensamento que
evidenciava a estiagem e a fome como a gênese de todos os problemas da região do
semiárido: atraso, pobreza, fanatismo, epidemias, problemas econômicos e etc. O saber
técnico e científico, que visava resolver o problema da seca, não se constituiu de forma
objetiva e neutra como ambicionavam os engenheiros. Aos poucos, como se vê até os dias
atuais – a exemplo da obra de transposição do Rio São Francisco –, este saber também se
tornou instrumento estratégico da política.
135
REFERÊNCIAS
ARQUIVOS E FONTES
ARQUIVOS PESQUISADOS:
Biblioteca Pública Meneses Pimentel, CE.
Setor de Obras Raras e Setor de Microfilmagem
FONTES:
PERIÓDICOS:
A Pátria (Sobral –CE) (01 de abril de 1914 até 24 de abril de 1915)
A Lucta (Sobral- CE) (01 de maio de 1914 a 19 de abril de 1916; 01 de maio de 1918 a 28 de
fevereiro de 1920.)
A Ordem (Sobral- CE) (12 de outubro de 1916 a 17 de maio de 1918; 21 de março de 1919 a
27 de agosto de 1920).
Correio da Semana (Sobral, CE) (31 de março de 1918 a 23 de março de 1920)
CORRESPONDÊNCIAS:
Correspondências diversas. Fundo: açudes públicos Ceará. Açude Caio Prado. Arquivo
do DNOCS, 2ª D.R. Ceará.
- Pasta I
Telegrama enviado pelo encarregado da Obra do açude Caio Prado Severino de Oliveira para
o inspetor da comissão de Obras Novas Contra as Secas Aarão Reis. 01/10/1915.
Telegrama enviado pelo inspetor da comissão de Obras Novas Contra as Secas Aarão Reis
para o encarregado da Obra do açude Caio Prado Severino de Oliveira. 31/10/1916.
Telegrama enviado pelo inspetor da comissão de Obras Novas Contra as Secas Aarão Reis
para ao prefeito Djalma Catunda. Outubro de 1915.
Telegrama enviado pelo encarregado da Obra do açude Caio Prado Severino de Oliveira para
o inspetor da comissão de Obras Novas Contra as Secas Aarão Reis. 23/10/1915.
Telegrama enviado pelo encarregado da Obra do açude Caio Prado Severino de Oliveira para
o inspetor da comissão de Obras Novas Contra as Secas Aarão Reis. Outubro de 1915.
Telegrama enviado pelo encarregado da Obra do açude Caio Prado Severino de Oliveira para
o inspetor da comissão de Obras Novas Contra as Secas Aarão Reis. 28/10/1915.
136
Telegrama enviado pelo encarregado da Obra do açude Caio Prado Severino de Oliveira para
o inspetor da comissão de Obras Novas Contra as Secas Aarão Reis. 03/11/1915
Telegrama enviado pelo inspetor da comissão de Obras Novas Contra as Secas Aarão Reis
para ao prefeito Djalma Catunda. 09/11/1915.
Telegrama enviado pelo encarregado da Obra do açude Caio Prado Severino de Oliveira para
o inspetor da comissão de Obras Novas Contra as Secas Aarão Reis. 22/11/1915
Carta dirigida ao presidente do estado Benjamim Barroso Pelo encarregado da obra Severino
de Oliveira. 06/11/1915.
Carta dirigida ao encarregado da obra do açude Caio Prado Severino de Oliveira pelo
presidente do estado Benjamim Barroso Pelo. Novembro de 1915.
Carta dirigida ao Departamento de Obras Contra as Secas – Obras Novas – pelo prefeito
Djalma Catunda. 31 de outubro de 1915.
Carta dirigida ao Departamento de Obras Contra as Secas – Obras Novas – pelo delegado de
polícia Major Rodrigues Pinto. 31 de outubro de 1915.
Telegrama enviado pelo inspetor da comissão de Obras Novas Contra as Secas Aarão Reis
para o encarregado da Obra do açude Caio Prado Severino de Oliveira. 08/11/1915.
Telegrama enviado pelo inspetor da comissão de Obras Novas Contra as Secas Aarão Reis
para o encarregado da Obra do açude Caio Prado Severino de Oliveira. 09 /11/1915.
Telegrama enviado pelo inspetor da comissão de Obras Novas Contra as Secas Aarão Reis
para o encarregado da Obra do açude Caio Prado Severino de Oliveira. 21 de janeiro de 1916.
Telegrama enviado pelo encarregado da Obra do açude Patos Rômulo Campos para o inspetor
da comissão de Obras Novas Contra as Secas Aarão Reis. 16 de novembro de 1915.
Carta do encarregado da Obra do açude Patos Rômulo Campos para o inspetor da comissão de
Obras Novas Contra as Secas Aarão Reis. 16 de novembro de 1915.
Carta do encarregado da Obra do açude Patos Rômulo Campos para o inspetor da comissão de
Obras Novas Contra as Secas Aarão Reis. 12 de dezembro de 1915.
Carta do encarregado da Obra do açude Patos Rômulo Campos para o inspetor da comissão de
Obras Novas Contra as Secas Aarão Reis. 23 de janeiro de 1916.
- Pasta II
Telegrama enviado pelo encarregado da Obra do açude Caio Prado Severino de Oliveira para
o inspetor da comissão de Obras Novas Contra as Secas Aarão Reis. 09/01/1916
Telegrama enviado pelo inspetor da comissão de Obras Novas Contra as Secas Aarão Reis
para o encarregado da Obra do açude Caio Prado Severino de Oliveira. 13/01/1916.
Telegrama enviado pelo encarregado da Obra do açude Caio Prado Severino de Oliveira para
o inspetor da comissão de Obras Novas Contra as Secas Aarão Reis. 22/01/1916.
Telegrama enviado pelo inspetor da comissão de Obras Novas Contra as Secas Aarão Reis
para o encarregado da Obra do açude Caio Prado Severino de Oliveira. 24/01/1916.
Telegrama enviado pelo inspetor da comissão de Obras Novas Contra as Secas Aarão Reis
para o encarregado da Obra do açude Caio Prado Severino de Oliveira. 01/03/1916.
137
Telegrama enviado pelo inspetor da comissão de Obras Novas Contra as Secas Aarão Reis
para o encarregado da Obra do açude Caio Prado Severino de Oliveira. 12/04/1916
Telegrama enviado pelo inspetor da comissão de Obras Novas Contra as Secas Aarão Reis
para o encarregado da Obra do açude Caio Prado Severino de Oliveira. 25/04/1916.
Telegrama enviado pelo inspetor da comissão de Obras Novas Contra as Secas Aarão Reis
para o encarregado da Obra do açude Caio Prado Severino de Oliveira. 01/03/1916.
Telegrama enviado pelo inspetor da comissão de Obras Novas Contra as Secas Aarão Reis
para o Sr. Rufino Magalhães. 30 de junho de 1916.
Telegrama enviado pelo inspetor da comissão de Obras Novas Contra as Secas Aarão Reis
para o Deputado Moreira da Rocha. 30 de setembro de 1916.
Telegrama enviado pelo engenheiro Pires do Rio que fiscalizou as obras do açude Caio Prado
para o inspetor da comissão de Obras Novas Contra as Secas Aarão Reis. 16/10/1916.
Telegrama enviado pelo encarregado da Obra do açude Patos Rômulo Campos para o inspetor
da comissão de Obras Novas Contra as Secas Aarão Reis. 06/10/1915
Telegrama enviado pelo encarregado da Obra do açude Patos Rômulo Campos para o inspetor
da comissão de Obras Novas Contra as Secas Aarão Reis. 11/10/1915.
Telegrama enviado pelo inspetor da comissão de Obras Novas Contra as Secas Aarão Reis
para o encarregado da Obra do açude Patos Rômulo Campos para. 16/12/1915.
Telegrama enviado pelo encarregado da Obra do açude Patos Rômulo Campos para o inspetor
da comissão de Obras Novas Contra as Secas Aarão Reis. 25/02/1916.
DOCUMENTOS TÉCNICOS:
Documentos técnicos diversos. Fundo: açudes públicos Ceará. Açude Caio Prado.
Arquivo do DNOCS, 2ª D.R. Ceará.
Documento sobre trabalhos executados. Enviado por Severino de Oliveira. Sem data.
Relatório de Serviços realizados no açude Patos. Enviado pelo engenheiro Rômulo Campos
para Aarão reis. 23 de janeiro de 1916.
Relatório apresentado ao Inspetor Aarão Reis pelo engenheiro Pires do Rio sobre a visita de
fiscalização ao açude Patos. 18/10/1916
Relatório de justificação das condições irregulares da obras do açude Caio Prado apresentado
ao chefe do 1º Distrito Tomaz Pompeu Sobrinho pelo enegenheiro Severino de Oliveira. 13 de
junho de 1916.
Relatórios de despesas apresentado ao Ministro da Viação e Obras Publicas pelo inspetor
Aarão Reis.
Documentos técnicos diversos. Fundo: açudes públicos Ceará. Açude Patos. Arquivo do
DNOCS, 2ª D.R. Ceará.
-Pasta I
Histórico do açude Patos. Sem data.
Tabela informando funções e nomes e valores de diárias para o pessoal técnico e
administrativo do açude Patos. 24 de abril de 1916.
- Pasta II
Memória Justificativa do açude Patos, assinada por Tomaz P. Sobrinho. 20/09/1911.
- Pasta III
Relatório de serviços realizados de 01 de outubro a 31 de dezembro. Enviado pelo engenheiro
Rômulo Campos para o inspetor Aarão Reis. 05 de Janeiro de 1917.
- Pasta VI
Relatório informando sobre a média de comparecimento dos operários na obra e sobre a
freqüência dos alunos na escola. Enviado pelo engenheiro Rômulo Campos para o inspetor
Aarão Reis.14 de julho de 1917.
Relatório de serviços realizados do início das obras, em outubro, a dezembro. Enviado pelo
engenheiro Rômulo Campos para o inspetor Aarão Reis. 25 de Janeiro de 1915.
139
Parecer sobre os trabalhos realizados nos açudes Mulungu, patos e Caio Prado. Enviado pelo
engenheiro Rômulo Campos para o inspetor Aarão Reis. 10 de maio de 1916.
- Pasta VIII
Relatório de serviços realizados de julho a outubro de 1917. Enviado pelo engenheiro Rômulo
Campos para o inspetor Aarão Reis. 12 de novembro de 1917.
Relatório de serviços realizados de novembro a dezembro de 1917. Enviado pelo engenheiro
Rômulo Campos para o inspetor Aarão Reis. 14 de janeiro de 1918.
Relatório final dos serviços realizados. Enviado pelo engenheiro Rômulo Campos para o
inspetor Aarão Reis. 14 de janeiro de 1918. 26 de setembro de 1918.
- pasta I
Relatório publicado pela superintendência de Obras Novas Contra as Secas sobre a construção
do Mulungu. 19 de fevereiro de 1916 a 31 de agosto de 1917. 1918.
SOBRINHO, Tomás Pompeu. O problema das seccas no Ceará. 2ª edição. Editores: Eugenio
Gadelha & Filho. 1920.
TEOFILO, Rodolfo. A seca de 1919. Rio de Janeiro: Imprensa Inglesa. 1922.
TEOFILO, Rodolfo. A seca de 1915. Rio de Janeiro: Imprensa Inglesa. 1922.
DECRETOS-LEI
Decreto n. 11.474 - de 3 de fevereiro de 1915
Decreto n. 2.974 - de 15 de julho de 1915
Decreto n. 11.641 - de 15 de julho de 1915
Decreto n. 11.834 - de 22 de dezembro de 1915
Decreto n. 12.028 - de 27 de abril de 1916
Decreto n. 12.410 - de 7 de março de 1917
Decreto n. 12.589 - de 1 de agosto de 1917
BIBLIOGRAFIA
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SCHWARTZMAR, Simon. Um espaço para a ciência: a formação da comunidade cientifica
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ROSADO, Vingt-um e ROSADO, Américo. 17º livro das secas. Mossoró, 1988. Coleção
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RUDÉ, George. A Multidão na História. Estudo dos Movimentos Populares na França e na
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144
ANEXOS
Fonte:
Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh): http://portal.cogerh.com.br
Dicionário de engenharia civil: http://br.geocities.com/andrepcgeo/dicionarioB.htm
ANEXO B
ORGANOGRAMA DE 147
FUNCIONAMENTO DA
IOCS.
Administração central
Inspetor
Distritos( 1º 2º 3º)
Engenheiros de 1ª classe
Engenheiros de 2ª classe
Condutores de 1ª classe
Condutores de 2ª classe
Desenhistas de 2ª classe
oficiais
Primeiros escriturários
Segundos escriturários
Terceiros escriturários
Almoxarifes
Encarregado de depósitos
148
1914 4.300:000$000
Fonte: LYRA, A. Tavares de. As Secas do Nordeste: trabalho lido no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
24 de maio de 1919. IN: ROSADO, Vingt-um (org) Memorial da Seca. Mossoró, 1981, Coleção
Mossoroense., pág. 52 e 52.
Fonte: Arquivo da Segunda Divisão Regional do DNOCS. Fundo açudes Públicos Ceará.
Pasta açude Patos n°8. 26 de setembro de 1918.
5.0 FOTOGRAFIAS PRESENTES NO RELATÓRIO DAS OBRAS NOVAS. AÇUDE CAIO PRADO
Fonte: REIS, Aarão. Obras Novas Contra as Secas: Trabalhos executados de 03 de setembro
de 1915 a 31 de outubro de 1918 - relatório apresentado ao exmo.sr.dr. Aug. Tavares Lyra
Ministro da Viação e obras Públicas. Rio de Janeiro: Imprensa nacional, 1920. págs. 149-158
Fonte: REIS, Aarão. Obras Novas Contra as Secas: Trabalhos executados de 03 de setembro
de 1915 a 31 de outubro de 1918 - relatório apresentado ao exmo.sr.dr. Aug. Tavares Lyra
Ministro da Viação e obras Públicas. Rio de Janeiro: Imprensa nacional, 1920. págs. 97-115.
Barragem
7.0 FOTOGRAFIAS PRESENTES NO RELATÓRIO DAS OBRAS NOVAS. AÇUDE RIACHO DO SANGUE
8.0 FOTOGRAFIAS DAS DUAS ESTRADAS DE RODAGEM CONCLUÍDAS PELAS OBRAS NOVAS.