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Frederico de Castro Neves A Multidão e a História


© Copyright 2000, Frederico de Castro Neves
Direitos cedidos para esta edição à
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Coleção
OUTROS DIÁLOGOS
Coordenação
Daniel Lins

Revisão
Argemiro de Figueiredo

Editoração
Dilmo Milheiros

Capa
Simone Villas Boas

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte.
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Neves, Frederico de Castro


N424m A multidão e a história: saques e outras ações de massas no Ceará/ Para
Frederico de Castro Neves. - Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza,
CE: Secretaria de Cultura e Desporto, 2000
.- (Coleção Outros diálogos; 3) Berenice
Inclui bibliografia e
ISBN 85-7316-217-1 Clarice
l . Multidões - Ceará - História. 2. Revoltas - Ceará - História. 3.
Movimentos sociais - Ceará - História. I. Ceará. Secretaria de Cultura e sempre
Desporto. II. Título. III. Série.

CDD 302.33
00-0947 CDU 316.353

Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, por


qualquer meio, seja ela total ou parcial, constitui violação da Lei n° 5.988.
SUMARIO

INTRODUÇÃO 9

CAPÍTULO I
L Fortaleza, "Capital de um Pavoroso Reino" 25
II. Origens da Seca 42
III. Lições da Tragédia 47

CAPI'TULO II
I. Primeiras Experiências 63
II. Novas Estruturas de Sentimentos 92

CAPÍTULO III
I. A Multidão Ganha Visibilidade 105
II. A Lei e a Ordem 110
III. Consequências e Desdobramentos } 116

CAPÍTULO IV
I. O Estado Intervém 135
II. A Seca Local e a Guerra Mundial 141
III. O Padrão "Estado Novo" 152

CAPÍTULO V
I. A Multidão se Movimenta 161
II. Novos Homens, Velhas Estruturas 170
III. A Força da Tradição 180

CAPÍTULO VI
I. A Negociação 199
FREDERICO DE CASTRO NEVES
INTRODUÇÃO
II. Os Pobres e os Poderes .208
IH. O Medo da Multidão .. .220

CAPÍTULO VÊ
I. A Multidão e a Tradição Oral .233

CONCLUSÃO . .247

TABELAS . . . . .251

BIBLIOGRAFIA 255
Aconteceu em 1942, por exemplo. A multidão acomoda-se por perto.
Muitos trazem mulher e filhos. Todos vêem no chefe sua única esperança .
para escapar vivo e não passar fome. Mas o chefe, normalmente, ainda não
tem condições nem ordem de empregar. Eles vão ficando.

Assim o ex-engenheiro do Departamento Nacional de Obras Contra as Se-


cas (DNOCS), Paulo de Brito Guerra, começa sua descrição de um conflito entre
retirantes e chefes de serviço encarregados das obras de combate às secas. Tais
conflitos são tão comuns em épocas de seca - note-se o "por exemplo" - que
passaram a fazer parte da própria paisagem do sertão.
Depois de março, as plantações perdidas, o gado doente, morto ou transferi-
do para áreas úmidas, "muita gente já pensando em escapar" começa a "sondar
os conhecidos mais ricos, as Prefeituras, as Agências do Governo" e, após o dia
19 - dia de São José e passagem do equinócio -, "tem início, real ou oficial, a
odisseia da seca". Com a movimentação dos retirantes, à procura de proteção e
assistência, os focos de conflito se multiplicam.
Procurando descrever as "vicissitudes de qualquer chefe de serviço nas Agên-
cias do Governo no interior", o Dr. Guerra nos deixa entrever o processo de
"negociação" que se estabelece entre autoridades e retirantes, para que a deman-
da por comida e trabalho não se transforme em invasões descontroladas e saques
aos armazéns. Uma "negociação" em que poucas palavras são enunciadas, mas
que a própria presença dos retirantes nos canteiros de obras públicas funciona
como um eloquente e apaixonado discurso.

Há passamentos - (vertigens). Se o chefe nada faz, nada promete, eles vão


ficando. E a multidão se avoluma. Se os emprega, no outro dia chegam
mais, aos borbotões. Nos municípios próximos - acontecia isso -, as Pre-
feituras, assediadas, alugavam caminhões e mandavam despejar os inopor-
FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

tunos nos acampamentos do Governo, ou seja, do DNOCS, com uma carta O controle sobre milhares de homens despreparados para este tipo de tarefas
de apresentação ou mesmo sem ela. não é fácil e "um engenheiro muitas vezes é obrigado, sozinho, a comandar uma
legião" - as comparações com organizações militares são inevitáveis.
A aglomeração de pessoas à espera de solução é o principal argumento e, ao O que parece um caos impenetrável se complica ainda mais quando a multi-
mesmo tempo, o mais poderoso meio de pressão que os retirantes trazem para o dão se impacienta e resolve tomar atitudes por sua conta e risco.
cenário da "negociação"; e a fome - ou a perspectiva de passar fome - é a moti-
vação essencial. O crescente volume da multidão constitui uma pressão irresistível, Enquanto isso, verificam-se ameaças e assaltos a barracões. Em 1942, em
que precisa ser neutralizada antes que a revolta tome conta dos espíritos, outrora poucas horas, foram roubadas muitas toneladas de batata e mandioca dos
pacíficos e conformados, dos homens do campo. É preciso responder aos argu- campos irrigados. Movimentada a polícia, o roubo foi tomado e mais tarde
mentos: "Aí é que o chefe tem que se desdobrar em promessas, em radiogramas, distribuído a todos, com advertências. 1
em meias medidas, para evitar a revolta. Se mostrar fraqueza ou desânimo estará
perdido". As atitudes de "contra-ataque" devem se restringir, como bem sabe o enge-
Os chefes de obras do DNOCS precisam, portanto, ser mais do que tecnica- nheiro, a admoestações, promessas ou conversas; a ação da polícia somente deve
mente competentes; fundamentalmente, necessitam desenvolver uma habilidade ser requisitada em casos extremos e deve ser estritamente controlada de modo a
política que os livre de situações complexas como essa. Mais do que isso, preci- evitar uma explosão geral de revolta que transforme o conflito em rebelião.
sam conhecer os códigos desta negociação para poder colocar em prática um Os ataques da multidão, por outro lado, oferecem às autoridades - chefes de
conjunto de atitudes capazes de contra-argumentar, ou "contra-atacar". serviço, prefeitos, delegados, vigários etc - a concretização das ameaças veladas
que todos vislumbram nas concentrações de retirantes. São amostras que alimen-
Entre as medidas adotáveis como contra-ataque, até que tenha lugar o alis- tam um medo constante que todos experimentam: uma ruptura no processo de
tamento oficial, estão o contato pessoal, a conversa promissora, a distribui- "negociação" que o inviabilize, deixando aberto o conflito, sem possibilidades
ção de um pouco de alimento (farinha ou pão e rapadura), com a condição de solução negociada, meio caminho para uma explosão social.
de sumirem. Porque naturalmente muitos ainda poderiam resistir em casa
mais umas semanas, mas o pavor do futuro próximo os precipitou na estra-
da. Uma tática é aceitar só os que já arrastam consigo a família, o que é
prova de miséria. Outra, empregar só os que trazem qualquer ferramenta:
Dezesseis anos depois dos episódios relatados pelo Dr. Guerra, a multidão
uma enxada, uma pá ou foice. De início, só os casados.
permanece ativa durante os períodos de seca e, mais do que isso, ocupa os terri-
tórios mais inusitados, como o espaço urbano de Fortaleza, a capital do Ceará.
As "medidas" e "táticas" colocadas em prática pelo engenheiro, para não Na manhã do dia 24 de março de 1958, um grupo indefinido de retirantes
ficar "perdido", demonstram um ambiente de conflito e negociação. E algumas "esteve no Palácio da Luz, a fim de solicitar auxílio ao Governador", mas não foi
soluções, no meio deste clima tenso, são encontradas, mesmo que provisórias: recebido. Na confusão que se seguiu, uma tentativa de assalto ao Mercado Cen-
"Havendo alguma terra disponível, muitos casos ficam resolvidos, pois os pe- tral assustou comerciantes e autoridades. O jornal procurou atenuar o episódio,
quenos proprietários, neollagelados, pedem primeiro uma vazante, depois pe- informando que "quase não houve furtos, a não ser uns poucos quilos de peixe
dem emprego. Evitam todos, quanto possível, pedir esmola". que se encontravam nas calçadas". No entanto, "para evitar novas arremetidas, o
Mas o "alistamento oficial", apontado como solução derradeira, nem sempre mercado cerrou os seus portões por cerca de uma hora". Por outro lado, a repor-
resolve o conflito; às vezes, é um fator a mais no caldo da insatisfação generali- tagem enfatiza que o ato não foi de iniciativa dos "pacíficos camponeses", mas
zada: "Após o alistamento, as coisas se complicam. Geralmente, há pouca ferra- de "uma malta de desocupados" que se juntou a eles, formando uma multidão
menta. As tarefas de campo e de escritório são redobradas, mas o pessoal dispo- heterogénea; ainda por cima, os atacantes "foram açulados por elementos ten-
nível para executá-las é quase o mesmo". denciosos, com o visível propósito de colocar mal o Governo".

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

De qualquer maneira, o Governador, "tão logo tomou conhecimento da situ- que detonasse (sic!) a intenção de saquear". O Governador Paulo Sarasate, nova-
ação", providenciou transporte para "o pessoal que realmente queria trabalhar" mente instado a intervir, "organizou um movimento de socorro com viaturas de
dirigir-se até o canteiro de obras da construção da rodovia Parangaba-Messejana, rádio-patrulha", as quais foram utilizadas para transportar alimentos para os fa-
dois distritos muito populosos da capital, e - depurados dos "desocupados" e dos mintos. Depois da distribuição, os retirantes "foram enviados ao ponto de con-
"tendenciosos" - "os sertanejos foram imediatamente incorporados às turmas centração em Messejana". O pagamento, contudo, permanecia atrasado e, nova-
que estão construindo aquela estrada".2 mente, a multidão se dividiu: alguns aceitaram os alimentos e foram para o acam-
O deslocamento dos retirantes, contudo, não resolve o problema. Uma se- pamento, outros reagiram com protestos e reclamações inconformadas, e outros
mana depois, cerca de "1.800 flagelados tentaram invadir Messejana à procura ainda resolveram retomar o caminho para Parangaba.6
de alimentos". Alguns deles são identificados como aqueles que "já tentaram O desfecho destes conflitos é parcialmente ignorado. A rodovia só foi inau-
invadir o Mercado Central, dias antes, e foram enviados para esse serviço pelo gurada alguns anos depois da seca, embora os trabalhos dos retirantes continuas-
Governador". sem até 1959. O comércio de Parangaba fechou naquele dia com receio de saque,
A situação no acampamento da construção da estrada não estava das melho- mas retomou suas atividades assim que possível. Os retirantes continuaram a
res. Os "salários estão atrasados há dois dias e não há armazém de fornecimen- pressionar as autoridades por pagamentos, fornecimento regular e outras deman-
to".3 De fato, a situação "está-se tornando quase insustentável, dada a quantidade das básicas por todo o ano de 1958 e começo de 1959; com as chuvas a partir de
de homens que ali buscam trabalho": "Os serviços, até agora iniciados, são muito março deste ano, a maior parte retornou para o interior do estado, para as terras
poucos, distantes um do outro, insuficientes, portanto, para dar ocupação a todos que ainda possuíam ou ocupavam em arrendamento.
os necessitados". No entanto, tudo leva a crer que estes eventos fazem parte do mesmo movi-
Por outro lado, "não há ferramenta para todos" e "a verba destinada aos mento que se iniciou com a tentativa de assalto ao Mercado Central e se ampliou
aludidos serviços não é de molde a garantir ocupação para tanta gente durante para as obras de construção da rodovia que circunda a capital. Parece, também,
muito tempo". O Governador, mais uma vez, é chamado a intervir "para verificar que tem a ver com o saque ao armazém do Serviço de Assistência e Proteção às
o que é possível fazer, com os limitados recursos de que dispõe o Estado, para Vítimas da Seca (SAPS), em Messejana, apenas quatro dias depois dos eventos
fazer face à difícil situação que se criou com a seca".4 Com "promessas" e "meias de Parangaba - assalto que deve ter sido bem proveitoso, pois o posto "tinha sido
medidas", os responsáveis pela obra procuraram convencer os retirantes a retornar abastecido recentemente", e que contou com a colaboração de trabalhadores re-
ao acampamento em Messejana. cém-chegados de Russas, além de "espertos e aproveitadores" que "conseguiram
Mas as promessas de pagamento, porém, não convencem um grupo de reti- surrupiar mercadorias em grande quantidade". Parece, do mesmo modo, que a
rantes, que "começou a se mover para Fortaleza". Outro grupo permanece nos presença constante de cerca de 2 mil retirantes rondando o comércio de Messejana,
arredores de Messejana, ameaçando o comércio. Um novo impasse se estabelece, que permaneceu "temeroso de ser visitado a qualquer instante", se relaciona com
enquanto, por via das dúvidas, os comerciantes fecham as suas portas. O conflito, a suspensão dos serviços de construção da rodovia e até mesmo com a "dispensa
por alguns momentos, foi pacificamente resolvido pela polícia, que distribuiu em massa dos flagelados", que ocorreria semanas depois, quando os retirantes
leite - do próprio bolso do Secretário de Polícia, segundo o jornal - e, com o rumam imediatamente para o movimentado centro do distrito assim que sabem
auxílio de alguns comerciantes, outros géneros alimentícios. O chefe dos servi- da notícia de que seriam transferidos para outros serviços em Guaiuba e Pacatuba.
ços conseguiu, ainda, o pagamento de um dia de trabalho para evitar um novo Pode ser ainda que mantenha mais afastadas relações com o assalto a uma mercea-
deslocamento dos descontentes.5 ria no bairro próximo de Mondubim e com o aparecimento de várias reses abati-
No entanto, o conflito apenas desloca-se para a outra ponta da estrada. No das em Pajuçara e Mondubim nos primeiros dias de maio.7
dia 4 de abril, cerca de "2 milhares de flagelados dirigem-se à Parangaba em Mas, certamente, estes eventos, assim como aqueles descritos pelo Dr. Guerra,
busca de alimentos". O proprietário de uma padaria, assediado pelos retirantes, demonstram uma determinada forma de "negociação" política que possui carac-
"entregou todo o estoque que possuía". A população da localidade estava terísticas específicas e que não pode ser avaliada a partir dos padrões e códigos
"intranqiiila", mas o jornal assegura que "nada havia na atitude dos flagelados da política representativa, dita "moderna". A multidão, como se viu, negocia

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

através da pressão direta, dos pedidos e exigências, dos saques e, especialmente, Uma série de ações em seguida, por seu turno, produz um efeito impactante de
da exposição pública de suas misérias, que a seca aguça e dá visibilidade. gerar o medo entre a população, medo este que se espalha com as notícias de
Nos canteiros de obras públicas ou nas áreas comerciais urbanas, esta "ne- ataques variados em locais diferentes e com as manchetes sensacionalistas dos
gociação" se verifica em tempos de seca e a multidão escolhe as suas estratégias jornais.
em função das opções disponíveis. As formas de pressão variam conforme as Estas intenções deliberadas e estas estratégias, contudo, nem sempre foram
características, habilidades e capacidade de decisão demonstradas pelos negocia- consideradas pelos estudiosos dos movimentos sociais populares rurais. Em maio-
dores - e o livro do Dr. Guerra transforma-se, neste aspecto, num manual para ria, esses estudos permaneceram no interior do campo denominado por E. P.
um bom interlocutor. Assim, as ações empreendidas pelas multidões de retirantes Thompson de "visão espasmódica".10 Tal como os autores criticados por esse
constituem-se em atos de vontade que precisam ser examinados em sua própria historiador inglês, os estudiosos brasileiros enfatizam o estímulo biológico - a
especificidade e naqueles pontos em que se cruzam com as teias mais amplas das fome - e com isso encerram a pesquisa exatamente no ponto em que esta deveria
relações sociais. começar.
Contudo, estas ações devem ser compreendidas tanto com relação ao curso De fato, a tome é um elemento importante a considerar — e o próprio
dos eventos quanto ao entendimento subjetivo dos agentes envolvidos sobre suas Thompson o tez - nas ações dos famintos em tempos de seca, "mas a fome não
próprias condutas, já que as intenções humanas, entre outros fatores, determinam prescreve que eles devam se rebelar nem determina as formas da revolta"."
seu comportamento.8 Ações e intenções, portanto, possuem um significado que No entanto, esta vinculação estreita entre fome e ações da multidão acabou
os passos da pesquisa tendem a revelar e, juntos, constituem "a unidade da ordem por afastar este tema quase completamente dos estudos históricos e sociais. Mes-
cultural" que instaura e dá sentido às "formas de existência social".9 mo as melhores pesquisas sobre os movimentos populares no meio rural despre-
Assim, no relato do Dr. Guerra transparecem alguns métodos de pressão zam os saques e as invasões como estratégias deliberadas de enfrentamento dos
utilizados pelos retirantes. O principal deles é a concentração maciça exigindo - conflitos sociais aguçados pela seca, incluindo-as, ao contrário, no rol das "rea-
na forma, às vezes, de pedidos que apelam à caridade - trabalho e alimentos, ções", normalmente "desesperadas", dos retirantes face a uma inacreditável si-
deixando como último recurso, como bem enfatiza o engenheiro, a esmola pura e tuação de miséria, que o momento de crise acentua.
simples. As autoridades locais, por sua vez, aprendem a se desfazer dos "inopor- Um outro elemento acabaria por selar definitivamente o destino dos estudos
tunos" transferindo para os escritórios do governo federal a responsabilidade de sobre as ações da multidão: a seca.
atender às reivindicações dos retirantes. Estes pressionam as autoridades que lhes Entendida como um fenómeno natural, sobre o qual os homens apenas so-
parecem mais "poderosas", isto é, aquelas que aparentam ter melhores condições frem os efeitos, a escassez - ou melhor, a irregularidade - de chuvas, caracterís-
de satisfazer as necessidades urgentes do momento. Há, portanto, opções de es- tica do semi-árido nordestino, transforma-se no pano de fundo básico que deter-
colha e estratégias de conduta que são implementadas pelos flagelados, inclusive mina os movimentos dos sertanejos em busca da sobrevivência. A seca é, assim,
a hora certa de usar a violência dos saques e das invasões. entendida basicamente como um "momento para repensar a pobreza",12 como
Na capital, as opções são mais variadas, aumentando as possibilidades de chave explicativa para todo o processo de conflitos sociais que movimenta o
escolha. As "marchas da fome", seguidas de alguns atos de saque e pressões sertão.
sobre os comerciantes, normalmente surtem alguns efeitos imediatos. A proximi- A fome e a seca, portanto, compõem um quadro estrutural que as ações dos
dade com os governantes auxilia, certamente, nesta compreensão de que o cami- retirantes necessariamente devem refletir:] a seca provoca a fome generalizada
nho político mais viável para os retirantes, nesta "negociação", é a pressão direta que leva os sertanejos a movimentarem-se em busca de alimentos e que, final-
da multidão. Como se viu na exposição dos eventos de 1958, os grupos se divi- mente, famintos e desesperados, atacam e invadem as cidades e armazéns para
dem e discordam das estratégias a serem empregadas: uns aceitam os termos saciar suas necessidades vitaisí A ação, assim, é apresentada como um "espas-
negociados, outros procuram reiniciar as pressões sobre o comércio ou sobre os mo" biológico resultado do aguçamento das condições críticas do organismo de-
governantes. Isso demonstra um debate interno em que as opções à disposição bilitado pela carência alimentar.13 Enquanto tal, não pode ser incluída entre as
são cuidadosamente avaliadas e em que o consenso nem sempre é alcançado. atividades coletivas, organizadas e políticas das massas rurais; pelo contrário, os

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

estudos reforçam a imagem dos saques como uma ameaça ao tecido social, à Há, assim, uma grande dificuldade em considerar esse sujeito como "históri-
civilização, às conquistas políticas da modernidade: "A fome dos trabalhadores, co", apesar de "coletivo", já que o que o constitui é a necessidade e não a vonta-
simultaneamente denúncia, crítica e ameaça de explosão social materializada nas de. Revela-se também uma outra dificuldade: compatibilizar a miséria com a
constantes invasões, tem presença marcante em todos os documentos dos traba- consciência, restringindo deste modo a própria noção de cidadania aos limites
lhadores".14 formais das instituições estabelecidas.17
Daí por que os estudos que tratam dos movimentos sociais - que, portanto, De modo geral, portanto, pode-se identificar que a pouca atenção dada às
privilegiam a atividade política das classes populares - esquecem ou desprezam ações coletivas das multidões tem duas matrizes, que, de certa forma, se comple-
as invasões, ameaças e saques dos retirantes em tempos de seca, centrando suas mentam.
análises no sindicalismo rural e outras formas de organização dos trabalhadores A primeira se refere à tradição de "um pesado investimento da teoria mar-
pobres ou, por outro lado, no famoso binómio "cangaceirismo e messianismo". xista no domínio das interpretações sobre os movimentos sociais", que, apesar da
Os movimentos de invasão e saque efetuados por multidões de retirantes são, ênfase excessiva nas organizações e instituições operárias, possibilitou o apare-
assim, ignorados por boa parte da literatura disponível sobre movimentos sociais cimento de obras que, no interior mesmo desta tradição, questionavam a ortodo-
rurais no semi-árido nordestino. xia urbano-industrial. Merece referência a obra de Eric Hobsbawm, Os Rebeldes
Até mesmo quando se procura incluir as invasões e os saques entre as "for- Primitivos, que, publicada no final dos anos 1950, "representou uma significati-
mas de mobilização dos trabalhadores rurais" durante as secas, esse impasse teó- va mudança na direção dos estudos de inspiração marxista voltados para a temática
rico permanece. Ao rejeitar "o estudo dessas ações diretas dos camponeses como dos movimentos sociais" pois privilegiava "a análise dos processos revolucioná-
irracionais", reconhecendo que as concentrações de trabalhadores "hoje, como rios em países de estruturas sociais predominantemente agrárias".18
ontem, têm um forte conteúdo de pressão social" e que as invasões e saques No entanto, esta obra de Hobsbawm - assim como Bandidos e, de certa
"constituem uma prática que os camponeses incorporaram à sua experiência po- forma, também o livro escrito em parceria com George Rude, Capitão Swing -
lítica vigente nos anos de seca", no entanto, outro esquema semelhante substitui desenvolve algumas questões problemáticas para quem pretende abordar a polí-
a "visão espasmódica": "Se as reuniões, as passeatas, os atos públicos, os enca- tica das multidões. Expressões como "primitivos" ou "pré-políticos", utilizadas
minhamentos coletivos podem ser portadores do novo, as invasões ou os saques para designar os movimentos da "turba tradicional", revelam um certo determi-
configuram o velho, convivendo com o novo". nismo com relação às ações dos trabalhadores do campo. 19 Por outro lado, as
Assim, a conclusão necessária é que o saque "é o pedido de socorro de uma diferenças entre os trabalhadores rurais e urbanos permanecem em termos funda-
categoria social que se vê ameaçada em sua sobrevivência física", "é o grito dos mentais para a compreensão das atividades políticas.
excluídos que ecoa mesmo em conjunturas marcadas pela presença de formas
institucionalizadas de organizações representativas dos trabalhadores como os (...) a industrialização substituiu o menu peuple pela classe trabalhadora
Sindicatos, sem forças suficientes para se imporem frente às forças de poder do- industrial que tem na organização e na solidariedade duradoura a sua razão
mesma de ser, tal como a razão de ser da turba clássica é a intermitência e o
minantes".15
motim rápido.20
Visto por outro ângulo, pode-se perceber a formação de um "sujeito co-
letivo", que, em função das circunstâncias, permanece preso às "condições-
Dito de outra forma, o baixo desenvolvimento tecnológico e a dependência
limite".
ante as forças da natureza fariam com que "a mobilização duradoura" não encon-
trasse afiliados "em uma massa rural inteiramente submetida aos imperativos da
Para que um grupo de excluídos possa se levantar contra uma norma tão sobrevivência". Mas, como esta dependência é igualmente política, o círculo se
fundamental [a propriedade privada], é preciso que se constitua um sujeito fecha.
coletivo - a multidão - amalgamado pela fome e pelas condições-limite de
sobrevivência, que não pode mais esperar pelas providências normais. Para O camponês pobre, ou o trabalhador rural sem terra, que depende de um
este sujeito, um confronto desta natureza é a alternativa à morte.16 grande proprietário para a maioria ou para a totalidade de sua subsistência,

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

não possui qualquer controle tático. Ele se encontra inteiramente sob o do- nas ciências sociais. Djacir Menezes, por exemplo, já preconizava que o sertane-
mínio de seu empregador, sem recursos próprios suficientes para sustentar jo, ao agir socialmente, ao procurar alternativas para o mundo em que vivia,
a luta política. tornava-se "violento" ou "místico". Entendia ele que o atrasado mundo rural co-
locava os homens em posição de subalternidade com relação à natureza e, por
Assim, a ação do trabalhador rural é sempre determinada do exterior, "pelas conseguinte, ao mundo civilizado. Assim, a população rural, submetida a uma
condições económicas e sociais", já que não tinha sua "razão mesma de ser" na sacrificada posição no mundo social, formava uma "legião impressionante de
"solidariedade duradoura" ou na "organização" e, consequentemente, "é pouco vítimas esquecidas (...) cujo comportamento social recua no tempo a formas an-
provável, portanto, que camponeses pobres e trabalhadores rurais sem terra ve- teriores de evolução civilizada". 26
nham a rebelar-se, a menos que possam apoiar-se em algum poder externo capaz Impressão semelhante causa a leitura de Os Sertões. O homem sertanejo, se-
de desafiar o poder que os oprime".21 Nos momentos maiores de crise, portanto, gundo Euclides da Cunha, tinha uma irresistível tendência a se transformar em
"era-lhe impraticável continuar a não resistir", "sua situação tornava inevitável "jagunço" ou em seguidor de um místico - ou "paranóico", como ele qualifica
algum tipo de rebelião".22 Como consequência, a "modernização" dos movimen- António Conselheiro. A analogia que ele usa para explicar o aparecimento dos
tos de camponeses só acontece quando são "absorvidos pelos movimentos so- movimentos sertanejos é geológica: "é natural que estas camadas profundas da
ciais modernos": "Parece-nos que não há modernização, ou que esta ocorre de nossa estratificação étnica se sublevassem numa anticlinal extraordinária". A con-
forma muito lenta e incompleta, quando o problema fica entregue aos próprios figuração racial e a relação com o meio hostil determinam, para ele, as possibilida-
camponeses".23 des de desenvolvimento político do sertanejo. Assim, a mestiçagem combina-se
Os "modernos" movimentos revolucionários, portanto, substituiriam pro- com o misticismo e a impotência ante as forças da natureza reproduz-se no mundo
gressivamente as "tradicionais" rebeliões populares. social: "a raça forte não destrói a fraca pelas armas, esmaga-a pela civilização".27
A segunda destas matrizes reafirma, para o caso brasileiro, essa mesma dis- Dessas duas matrizes, portanto, surge a compreensão geral das ações da
tinção hierárquica entre os movimentos sociais urbanos e rurais. De fato, os mo- multidão como "atrasadas", "primitivas", "pré-políticas", "instintivas", "reações
vimentos populares no campo só são considerados como tais no momento em espasmódicas" e "biológicas" aos estímulos da fome e aos instintos de sobrevi-
que são "absorvidos" pelo métodos, formas institucionais e modelos de represen- vência etc.
tatividade característicos dos movimentos urbanos.24 Quando fogem aos orga- Caminho distinto percorreu esta pesquisa, aproveitando o saber acumulado
nismos típicos de classe, como os sindicatos rurais ou as Ligas Camponesas, os de algumas (poucas) pesquisas que já apontavam para direções próximas.28
movimentos rurais são incluídos no campo do "cangaceirismo e messianismo". Desprezando as distinções entre "político" e "pré-político", ou entre "novo"
O principal destes trabalhos, e referência para grande parte dos estudos sobre o e "velho", as análises foram se dirigindo para a compreensão de que as relações
mundo rural brasileiro, é o livro Os Camponeses e a Política no Brasil, de José sociais de tipo paternalista, que pareciam enterradas junto com o processo de
de Souza Martins. A sua crítica à "perspectiva evolucionista" se resume ao "eta- modernização da sociedade brasileira no período que se inicia no final de século
pismo" que lhe é característico e ele apenas observa que os movimentos messiâ- XIX e vai até a década de 1950, permaneciam - e permanecem - orientando
nicos e de banditismo social, "pré-políticos", permanecem acontecendo no Brasil muitas das práticas políticas, culturais e sociais dos homens que habitam os ser-
ao mesmo tempo em que ocorrem os "movimentos políticos" do sindicalismo e tões do Ceará. Assim, as suas ações estão referenciadas e delimitadas pelas alter-
de outras organizações de classe - o "velho" convivendo com o "novo". Assim, nativas e possibilidades existentes no horizonte destas relações paternalistas, e
suas análises dos movimentos políticos dos camponeses não alcançam as ações somente em relação a este campo podem ser compreendidas. O seu "controle
da multidão - e o mundo rural tradicional permanece basicamente dominado, no tático" e seus "recursos próprios suficientes para sustentar a luta política" estão,
universo das pesquisas sociais, pelo "cangaceirismo e messianismo".25 portanto, condicionados pelas experiências que vivenciam e pelas "determina-
É interessante observar, talvez mais como curiosidade, que essa perspectiva ções" de sua realidade socioeconômica e cultural. 29
de análise - que reduz toda a complexidade da cultura política tradicional dos Desta forma, não se pode transportar para este mundo "tradicional", em que
homens do campo ao "cangaceirismo e messianismo" - tem antecedentes ilustres a maioria das relações sociais é mediada pelos conhecimentos pessoais e pelo

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FREDERICO DE CASTRO NEVES
A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

reconhecimento direto, as normas e valores vigentes na sociedade "moderna", na É a este trajeto - sinuoso e difícil, cheio de cenas de sofrimento e lances de
qual "a maioria dos sujeitos sociais tem sua inserção social relacionada ao lugar solidariedade - que convido o leitor a percorrer comigo a partir das próximas
que ocupam no salariado, ou seja, não somente sua renda, mas, também, seu páginas deste livro.
status, sua proteção, sua identidade"; proteção, ao mesmo tempo, que, sendo
resultado de um longo processo de conquistas incorporadas à legislação, faz com
que "o trabalho não fosse apenas a retribuição pontual de uma tarefa, mas que a
ele fossem vinculados direitos".30 Este trabalho foi originalmente apresentado como Tese de Doutorado em
Na tentativa de apreender a constituição da multidão como um sujeito polí- História Social na Universidade Federal Fluminense. As generosas sugestões da
tico, portanto, foi necessário examinar o processo histórico de formação dos con- Banca Examinadora, formada pelos Profs. Drs. Rachel Soihet, Gladys S. Ribeiro,
flitos que lhe deram origem, até que se estabelecesse uma tradição de ações dire- António Jorge Siqueira, Jorge Ferreira e Sidney Chalhoub, se não foram integral-
tas como mecanismo de pressão política, por parte dos trabalhadores rurais que mente incorporadas ao texto, por um motivo ou por outro, mereceram minha
se deslocam de suas terras durante as secas, os retirantes, para obtenção de rei- mais respeitosa atenção.
vindicações e conquistas específicas. No processo de elaboração de uma Tese, necessariamente deixamos pen-
Este processo demonstra, ao contrário da "visão espasmódica", uma com- dentes algumas dívidas com inúmeras pessoas que, aqui e ali, ajudaram com
preensão generalizada e "plebeia" de que a distribuição da riqueza social deveria alguma informação, dica de documentação, sugestão de leituras, orientações
ser regulada, em momentos de crise, por um conjunto de regras morais que se etc. Somente assim as dificuldades de preservação e catalogação de documen-
diferencia das regras usuais do mercado. A intervenção requerida pela multidão tos são superadas.
no mercado de alimentos e de trabalho evidencia a presença de uma "economia Obtive bolsa de doutorado da CAPES, no Programa Institucional de
moral" que orienta, motiva e, principalmente, legitima as ações da multidão. 31 Capacitação Docente e Técnica da Universidade Federal do Ceará (UFC). Meus
Assim, busquei encontrar essas origens da multidão na seca de 1877 (Capí- colegas do Departamento de História da UFC desdobraram-se em cumprir todas
tulo I), quando, pela primeira vez, o fenómeno da escassez ou irregularidade de as inúmeras atividades dos cursos de graduação e especialização, para que eu
chuva no semi-árido do nordeste brasileiro transformou-se numa "questão soci- pudesse me afastar por quatro anos. Apesar das restrições governamentais à
al" relevante, já que extrapola os limites das fazendas e do mundo rural para contratação de novos professores, o Departamento, apesar do pequeno número
invadir o universo urbano, "moderno" e "civilizado". de docentes, mantém uma política séria e permanente de qualificação do pessoal.
Os conflitos e alternativas que se seguem, nas secas seguintes, de 1877 a A Fundação Cearense de Amparo à Pesquisa (FUNCAP) financiou a passagem
1919 (Capítulo II), parecem envolver um ensaio em que experiências de mobili- aérea para que eu pudesse apresentar uma parte da Tese (Capítulo VII) no encon-
zação e estabelecimento de estratégias são efetivadas, não só por parte dos reti- tro anual da American Oral History Association, em New Orleans, EUA.
rantes mas também pelas autoridades que se contrapõem à multidão. A Prof Rachel Soihet, minha orientadora, sempre procurou, além de orien-
No período do primeiro governo Vargas (1930 a 1945), um amadurecimento tar-me academicamente, estimular-me para a confecção do trabalho, acreditando
em torno das táticas e das estratégias é atenuada por contextos específicos em sempre na minha capacidade para realizar alguma coisa de boa qualidade. Agra-
que ocorrem as secas - em 1932, a Revolução Constitucionalista de São Paulo, e, deço à ProP Fátima Gouvêa por ter intermediado o nosso encontro.
em 1942, a Segunda Guerra Mundial (Capítulos III e IV). O Prof. Jorge Ferreira, na momentânea ausência da ProP Rachel, foi funda-
A década de 1950, por conseguinte, assiste ao estabelecimento desta tradi- mental na consolidação do trabalho, num momento de encruzilhada em que eu
ção das ações diretas e a formação amadurecida da multidão como um sujeito não estava seguro das alternativas a seguir.
político que se apresenta na arena política das relações de poder no sertão sempre Maria José e Eveline levantaram e organizaram grande parte dos jornais,
que as situações de seca e de fome se repetem (Capítulos V e VI). Por outro lado, para o período de 1928 a 1959. Mardônio pesquisou incansavelmente no Arqui-
a multidão constitui-se também em importante referencial para a memória, que vo Público à procura de processos ou inquéritos judiciais. Elmadan e Gertrudes,
uma série de depoimentos orais pode revelar (Capítulo VII). como sempre, fizeram o possível para que as fontes microfilmadas estivessem à

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

disposição da pesquisa. Walda Weyne colocou as fontes disponíveis no Arquivo 14 CARVALHO, Rejane V. Accioly. A Seca e os Movimentos Sociais. Mossoró: Fundação

Público do Ceará sempre ao meu alcance, apesar dos sérios problemas enfrenta- Guimarães Duque, 1991. p. 35. (grifo no original)
15 PARENTE, Eneida R. Seca, Estado e Mobilização Camponesa: a expressão da resistência
dos por essa instituição. O amigo Praxedes conduziu-me pelos árduos caminhos
coletiva dos trabalhadores rurais cearenses na seca de J 979-1983. Dissertação de Mestrado
da legislação penal brasileira, apresentando-me ao "crime multitudinário" e ao em Sociologia apresentada à UFC. Fortaleza: 1985. pp. 144-147 e 185-200. (grifos no origi-
"furto famélico". Sérgio Paula e Sérgio Filho prepararam no computador as re- nal) Esta autora faz um importante levantamento das ações da multidão no Ceará durante a
produções dos jornais e as fotografias. seca de 1978-1982, sendo, neste estado, o único trabalho (conhecido por esta pesquisa) que
valoriza os saques e as invasões como formas políticas - embora, para ela, limitadas - de
Maria de Jesus abriu-me as portas de sua casa e das redes de entrevistas em mobilização dos trabalhadores rurais.
Iguatu e nas redondezas. Sem ela, os depoimentos seriam impossíveis. 16 SOUZA, Luís Eduardo de. "Resistência Popular ao Genocídio." In: CPT/CEPAC/IBASE.
Sr. Batista, Sr. Valdemiro, D. Nair, Sr. Lauristo, D. Luzia, Sr. Pedro e sua O Genocídio do Nordeste (1979-1983). São Paulo: Mandacaru, 1989. p. 98.
esposa, D. Laurenice, Sr. Francisco, Sr. Raimundo, Sr. Manuel, Dr. Mendonça, 17 Cf. DE CERTEAU, Michel. A Arte de Fazer. A Invenção do Cotidiano. São Paulo: Ática,
Sr. Salviano, Sr. Porfírio, Sr. Aloísio e todos aqueles com quem pude conversar 1993. p. 25.
em Iguatu, Quixelô, Icó e Orós, mudaram os rumos da pesquisa, transformando- 1S DE DECCA, Edgar S. "Rebeldia e Revolução na História Social." In: BRESCIANI, M.
Stella M. et alli (orgs) Jogos da Política. Imagens, Representações e Práticas. São Paulo:
a em algo vivo, de carne e osso. As conversas com essas pessoas me fizeram ver
Marco Zero/ANPUH, 1992. pp. 13-15.
que, talvez, essa Tese possua um sentido social mais amplo, revelado por esta
19 Cf. PAMPLONA, Marco A. A Historiografia do Protesto Popular e das Revoltas Urbanas.
convivência de poucos dias; de qualquer forma, só eles poderão senti-lo em toda Rio de Janeiro: PUC-RJ. 1991. (Rascunhos de História, n° 3) p. 5. O próprio Hobsbawm
a sua profundidade. procura relativizar a sua posição: "Eu não utilizaria mais esse termo [pré-político] sem uma
Apesar da presença destas pessoas em trechos ou mesmo na concepção des- qualificação bastante cuidadosa. O que eu queria dizer não era que as pessoas não eram de
nenhum modo políticas, mas que eram políticas antes da invenção da terminologia, do contex-
te trabalho, somente eu posso me responsabilizar pelo resultado final. to moderno e do complexo institucional da política - o cenário moderno, o teatro moderno da
política, o drama moderno da política." HOBSBAWM, Eric J. "Entrevista com Eric Hobsbawm."
Estudos Históricos. Rio de Janeiro: vol. 3, n" 6, 1990. p. 271.
Referências bibliográficas
20 HOBSBAWM, Eric J. Rebeldes Primitivos. Estudos de Formas Arcaicas de Movimentos

1 GUERRA, Paulo de Brito. Flashes das Secas. Fortaleza: DNOCS, 1983. pp. 21-23. Sociais nos Séculos XIX e XX. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.p. 127. (grifos no original)
2 O Povo, 24 de março de 1958. 21 WOLF, Eric R. "Revoluções sociais no campo." In: SZMRECSÁNY1, Tomás e QUEDA,

3 O Democrata, Io de abril de 1958. Oriowaldo (orgs.) Vida Rural e Mudança Social. 3 ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1979.
pp. 97-98.
4 O Povo, 1° de abril de 1958.
22 HOBSBAWM, Eric J. e RUDE, George. Capitão Swing. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
5 O Democrata, 02 de abril de 1958.
1982. p. 18.
6 O Democrata, 04 de abril de 1958.
23 HOBSBAWM, Eric J. Rebeldes Primitivos. Op. Cit. p. 16.
7 O Povo, 08 de abril de 1958; O Democrata, 10 de abril, 06 e IO de maio de 1958.
24 Cf. por exemplo: GRZYBOWSKl, Cândido. Caminhos e Descaminhos dos Movimentos
* Cf. ROSALDO, Renato. "Celebrating Thompson's Heroes: Social Analysis in History and Sociais no Campo. Rio de Janeiro: FASE, 1987.
Anthropology." In: KAYE, Harvey J. e McCLELLAND, Keith. (eds.) E. P. Thompson: Criticai
25 Cf. MARTINS, José de Souza. Os Camponeses e a Política no Brasil. 3 ed. Petrópolis:
Perspectives. London: Polity Press, 1990. p. 115.
Vozes, 1986. pp. 27-31. Cf. também FAÇO, Rui. Cangaceiros e Fanáticos, l ed. Rio de Janei-
9 SAHLINS, Marshall. Cultura e Razão Prática. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. pp. 227-228. ro: Civilização Brasileira, 1983.
'"THOMPSON, E. P. "A economia moral da multidão inglesa do século XVIII." In: Costumes 26MENEZES, Djacir. O Outro Nordeste. 3 ed. Fortaleza: UFC/Casa de José de Alencar, 1995.
em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 150. pp. 79-86.
1' THOMPSON, E. P. "Economia moral revisitada." /;;.- Costumes em Comum. Op. Cit. p. 208. 27 CUNHA, Euclydes da. Os Sertões: campanha de Canudos. 37 ed. Rio de Janeiro: F. Alves,
Cf. CASlMIRO, Liana M. Carleial de. Seca: Momento para Repensar a Pobreza do Ceará. 1995. pp. 125-165. No caso de Canudos, todavia, "as armas" foram muito mais eficazes do
Fortaleza: FIEC/IEL, 1984. que o processo civilizador - ou demonstraram o seu fracasso.
- Cf. por exemplo: "a fome conduz às invasões ao comércio e, principalmente, a armazéns de 2XCf. QUIROGA F. NETO, Ana M. "As Frentes de Emergência e o Movimento dos Saques:
géneros alimentícios". BARREIRA, César. "Seca: Reprodução do Poder e Rebelião." Socie- atenuação e expressão do conflito no meio rural paraibano." In: ANPOCS. Movimentos So-
dade e Estado. Brasília: BnB, v. l, n" l, jan/jul 1990. p. 15. ciais. Para além da dicotomia rural-urbano. Recife: Centro de Estudos e Pesquisas Josué de

22 23
FREDERICO DE CASTRO NEVES
CAPÍTULO l
Castro, 1985. pp. 101-116; D1N1Z, Ariosvaldo da S. "Movimentos Sociais no Meio Rural
Nordestino: a Questão dos Saques." Política & Trabalho. João Pessoa: Mestrado em Ciências
Sociais/UFPB, 1986. pp. 91-110; BANDEIRA.Francinaldo. "Historicidade dos Saques." Textos
de História, n° 3. Cajazeiras-PB: UFPB, s.d. Esses artigos são resultados do mesmo grupo de
pesquisa, que tinha lugar no programa de pós-graduação em Ciências Sociais da UFPB, em
João Pessoa, mas que, infelizmente, não teve continuidade.
29 Sobre o paternalismo, Cf. THOMPSON, E. P. "La Sociedad Inglesa dei Siglo XVIII: Queria
de clases sin clases?" In: Tradición, Revuelía y Consciência de Ciase. 3 ed. Barcelona: Edito-
rial Critica, 1989. pp. 15-20; GENOVESE, Eugene D. Rotl, Jordan, Roll. The World lhe Slaves
Made. New York: Vintage Books, 1976. pp. 3-7 e 661-665. Genovese destaca a possibilidade
de similaridade entre sistemas "não liberais" de controle de classe a partir do estabelecimento
dos deveres mútuos. ("A common declaration that the strong must protect and lead the weak in
return forobedience and labor gives ali nonliberal systems ofclass ruleacertain similarity.")
Sobre as ligações entre paternalismo e coronelismo, Cf. MARTINS, Paulo H. "Coronelismo,
Poder Burguês e Movimentos Populares." Presença: Política e Cultura, n" 5, dez 84/fev 85. I. Fortaleza, "Capital de um Pavoroso Reino"
pp. 139-147.
30CASTEL, Robert. "As transformações da questão social." In: BELFIORI-WANDERLEY, ffiQ A "grande seca" de 1877 - ou a "seca-tipo", como preferia Rodolpho
Mariangelae/a//i (orgs) Desigualdade e a Questão Social. São Paulo: EDUC, 1997. pp. 169-
175.
Theophilo, seu grande cronista - trouxe para dentro de Fortaleza a presença
31 Cf. THOMPSON, E. P. "A economia moral da multidão inglesa do século XVIII." Op. Cit.
impactante de multidões de retirantes esfaimados e andrajosos a implorar por
p. 152. Este conceito, elaborado para o contexto do século XVIII inglês, foi objeto de uma ajuda, "contaminando" a cidade com sua miséria explícita, suas doenças, seus
série de interpretações em contextos diferentes, o que lhe garante uma certa eficácia, observa- "vícios", sua fome, seus crimes e sua ofensiva ameaça à civilização. A vida urba-
das as especificidades. Cf. Id. "Economia moral revisitada." Op. Cit. pp. 203-266. Para uma na passa a ser o cenário privilegiado do drama da seca. .
avaliação das possibilidades de utilização deste conceito fora de seu contexto original, Cf.
NEVES, Frederico de C. "Economia Moral versus Moral Económica: o que é economicamen- —í> Em termos de intensidade, duração, extensão ou mortalidade, no entanto, a «-/- n
te correio para os pobres?" Projeto História. São Paulo: n° 16, 1998. pp. 39-57. seca de 1877 não se diferencia tanto de outros períodos de escassez, nem mesmo V" ^ ^
em termos de prejuízos económicos. Mas, ao contrário destas épocas, a seca x-"l '
adentrou o mundo do poder constituído, avançou sobre o centro imaginário deste "* .(..
poder, sem respeitar-lhe os "canais competentes", e atingiu o cerne da aventura
civilizatória que a elite local imaginava experimentar neste momento.

Enquanto a seca foi problema para o mundo dos despossuídos, ela era uma
senhora desconhecida, não merecia mais que breves notas em pé de páginas
de jornais, mas, quando chega ao mundo dos proprietários, ela não só é
percebida, como é transformada no cavalo de batalha de uma elite necessi-
tada de argumentos fortes, para continuar exigindo seu quinhão, na partilha
dos benefícios económicos e dos postos políticos em âmbito nacional. 1

O "mundo dos proprietários", contudo, vivia momentos_dg_euforia. A partir r.


de 187Q,_aj)reocupação estética com o ''aformojejm^nto'^de_Fortaleza traduzia '~
uma sintonia das elites locais com_ag_noyas_conçepções_sobre j) espa.çp_urhano
como um espaço público a ser por elas usufruído. A necessidade de uma organi-
zação e uma disciplinarização deste espaço implicava na imposição de novas '
estratégias de ordenamento social e político. Assim, a remodelação da cidade não v v9J
^ «?
24 25 O v^
JkZ' „£
FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

se constituía apenas numa técnica de planejamento urbano, mas numa mecânica havia 114.000 retirantes, que transformavam Fortaleza "na metrópole da fome,
de controle das atividades desenvolvidas pelos diversos grupos sociais, na qual capital dum pavoroso reino".4 Outros centros enfrentavam o mesmo problema,
não havia lugar para miseráveis em busca de uma mutualidade perdida. como Aracati. cidade de 5.000 habitantes, que "estava comportando mais de
£fM Os^ planos de exp^nsão__prpjetayam Fortaleza em direção à civilização de 60.000"; Mossoró, no Rio Grande do Norte, com apenas 4.000 habitantes, aten-
modelo europeu, traçando geometricamente as ruas, praças e bulevares, preten- deu a mais de 32.000 retirantes. 5
dendo dar-lhe um arde metrópole. A criação dg asj[osjiospitais, teatros ej3utras_ ^" PÊJJHÍESLl£J°^a sensação de que_aquela multidão de miseráveis agride a ,$
A ' instituições que constituem o_pa]co_da_vkla urbana moderna foi pensada e plane- sensibilidade de uma elite urbana civilizadj:^s_pj3bj^sje^em_esrriolas,,
\ jada a partir destes anos. A contratação do arquiteto-engcnheiro Adolfo Herbster perarnbu]arn pelas ruas sem ocupaçãg^utijjzam as áreas públjcasjla cidade, como
pela Câmara Municipal tinha o claro objeti vo de disciplinar o espaço urbano com praças e ruas, e trapaceiamLpara_qbterjnaiores_ganh,os da_earida_de. Os jornais
vistas à sua adaptação aos novos tempos e estava em completa sintonia com os denunciam "esse espetáculo" da mendicância por ser "deponente contra os nos-
ideais de modernidade. Os lucros do algodão - apesar do reinicio da desfavorá- sos costumes, alem de ser, a maior parte das vezes, imoral e repugnante".
,0 vel concorrência com o Sul dos EUA, que reorganizara sua produção depois da Theophilo, mais uma vez, horroriza-se com o aumento da criminalidade e da
Guerra Civil, ocasionando a diminuição da exportação, que retornou aos índices prostituição, bradando contra os "seductores que infestavam a deshoras os abar-
de 1864 - ainda ressoavam nas empresas de comércio, como a Boris et Frères. racamentos prostituindo até creanças de dez annos" e contra os "audazes
•' rapineiros" que "penetravam ás vezes no mais recôndito aposento para furtar": "a
O anno de 1877 veio encontrar a população do Ceará fruindo as venturas de cidade testemunhava scenas de anarchia"!
um bem estar de trinta e dois annos. Longe iam na memória de todos as
...... scenas horríveis de 1845. Não se pensava que cedq^ou tarde egual calami- Entre esta onda maltrapilha vomitada pela miséria, se encontrava em muito „- .
dade havia de voltar, que a secca, maldito legado do povo cearense, viria de pequena escala a pureza de costumes, a honestidade e a gratidão. O vício
novo cobril-o de lucto. parecia ter contaminado todos os famintos. Viam-se em todas as edades
creaturas pervertidas. 6
Rodolpho Theophilo - farmacêutico, intelectual, político, sanitarista etc -
ainda acrescenta que, "com suas 45 ruas, largas, espaçosas, cortando-se em ân- Assim, por tudo isso, a seca de 1877 assumia "não apenas o aspecto de flagelo
gulos rectos, com suas 16 praças todas ornadas de frondosas árvores, com seus público, mas também de estranha e dolorosa novidade": "Para a geração que
elegantes e numerosos edifícios públicos, illuminada a gaz, abastecida d'agua", tinha, então, o comando da vida pública nacional, na administração, no Parla-

4>, Fortaleza "veio a ser uma das mais lindas cidades do Império". 2
Os 32 anos de regularidade climática - o que significava pensar em abastan-
ça e, principalmente, estabilidade social — faziam pensar que "o que se passou no
mento, no comércio, na indústria, no ensino, a seca, tal como se apresentava, era
um fato novo".
Poucos anos depois, em 1889, já se percebia que "até então [1877] não se
anno de 1845 era um quadro lúgubre apagado pelo attrito de seis lustros". 3 sabia o que era uma sêcca!"7
(gjy Assim, a chegadajjgsjetirantes à Fortaleza - após um cortejo de_misérias____ Por outro lado, a marcha dos retirantes em direçãojis ci.dades_.dojjtpraj_ era
em que não faltam cenas de desespero, mortes, suicídios, antropofagia-etc marcada pelos mais impressionantes obstáculos. O abandono de suas casas e plan-
voca na população urbana e em suas autoridades uma reação dupla.JDe um tações só acontecia quando as últimas esperanças de chuvas já se haviam desya-_
o pavor ante uma multidã^^e^_aos_rK)ucos, vai tomando de assalto o espaço necido e os últimos grãos, que ficariam para as sementes, sido consumidos. Isso
urbano tão cuidadosamente constituído. À "angustiosa expectativa" em que "vi- significa que, logo no início da ]onTaQ^]á_erjj2recjTÍo_p estado de saúde _e^de
viam todos", seguiu-se o pânico que "apoderou-se de todos os espíritos". Segun- nutrição destas famílias. Já saíam famintos de suas terras.
-• do o censo de 1872, Fortaleza possuía uma população de 21.000 habitantes, que
o historiador Raimundo Girão acredita ter acrescido em mais 4.000 até 1877; ele
"No fim de março, começou o povo a deslocar-se" e, "a 14 [de abril], che-
gou á Fortaleza, vinda de Uruburetama, a primeira caravana de retirantes, com-
avalia, com base nos cálculos de Rodolpho Theophilo, que em setembro de 1878 posta de 35 pessoas que se aboletaram no morro do Croata". Encontravam-se já

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

"no mais completo estado de miséria" e tinham "sobre o corpo immundos tra- tias, "disformes e inchados, tendo os corpos crivados de carbúnculos, soffrendo
pos": "macilentos, descarnados, pareciam múmias de pé". No fim do ano de 1877, as dores de tão terríveis pústulas malignas", depois de, "como corvos esfaima-
no entanto, "raro era o dia em que não entrassem, do centro, de tresentas a qui- dos", devorarem "uma vacca quasi em estado de decomposição".1
nhentas pessoas".8 ^ A seca, por outroj^dp^ acaba_cpm as fontes_de_águ_a1 tornando as longas
Os sertões desabitados, "redgzjdos a desertos",9 foram imediatamente ocu- distâncias em verdadeiros desertos, fazendo corn_çiug_og_retirantes se precipitas-
Á , padosjor bandos armados que se enfrentavam na disputa peljis áreas de controle, sem, descuidadamente,_||sgbre_os_caldeir5es d' agua que encontravam, com a qual,
aterrorizando as populações que ainda permaneciam nas cidadesjlo interior. Gru- quente,' impura, a grandes^gpjg^enchiam o estômago"; a insalubridade, muitas
t? , pos de bandidos se tornaram famosos, como os Vlriatos, os Matheus e os Calangros^ vezes, era responsável pela transmissão de doenças, como as "febres paludosas".
V;,5 E?ies,jyisjjircjidosJejm_OT parajnelhor Tomados pelo desespero, muitas vezes, alguns retirantes cometem crimes
.ir' combinar os meios faceis_e_segurps de assako". Originados a partir de crimes, de contra os de suas próprias famílias, na tentativa de aliviar-lhes o sofrimento ou,
lutas entre famíliai^jángângas,v_pMe-m,s.erJdent.ificados CQrno_ps antepassados^ simplesmente, para alimentar-se. Em Quixadá, um pai, que "trazia aos hombros
dos c^ngjc^iros^as_primeiras.d_éc_adasJjo_sécul_o__XX.10 um fílhinho de dous annos de edade", depois de ser tomado por alucinações,
Os caminhos em direção ao litoral transformavam-se em cenários de aconte- "desvairado, atira ao chão a inocente creança, precipita-se sobre ella, suffoca-a
. cimentos impressionantes, "theatro das mais pungentes scenas": "As caravanas entre as mãos, estrangula-a e leva-a ao fogo". Em Assaré, "uma infeliz de 14
: de retirantes a marchar sempre, como o Ashaverus da legenda, supplicando annos, parda, chamada Maria, em um d'esses momentos de luta entre a vida e a
embalde á muda immensidade uma gotta d'agua para lhes mitigar o calor dos morte, na tarde do dia 12 de fevereiro, matou a duas irmãs menores" e "alimenta-
l lábios incendiados pela sede!"" va-se a desgraçada fratricida com a carne dos cadáveres, quando foi sorprehendida
f* Arvores secas, cadáveres insepultos, carcaças de animais mortos, "creanças, pela justiça". .
l• que semi-mortas tinham sido abandonadas por pães desalmados, a servir de pasto Na ausência dj^sj^pjT^jKgjmijíj^dj^
l ' aos esfaimados morcegos", compunham o ambiente em que viajavam estes ho- cia, no limiar da morte física, os retirantes retiravam das lavouras que ajnda_se
"' mens e mulheres, "suppondo encontrar adiante a paz e um novo theatro".'2 Sem mantinham alguns frutos para mitigar a fome. Contudo, a resposta de proprietá-
ií alternativas, "se deslocam precipitadamente em fuga para a Capital, onde os ani- rios e moradoresjTejnjejrjjre^era^pacffJM. No Cariri, por exemplo, zona sul do
!•! ma a tranquilidade de que, nella se lhe fará effectiva, sem intermittencias, a estado e área mais úmida - que resiste melhor à estação seca e, portanto, junto
l protecção que o Estado lhe concede".13 com áreas litorâneas, é mais procurada pelos agricultores em fuga -, os descuida-
Os retirantes procuravam quaisquer meios para sobreviver, mesmo tendo dos invasores eram recebidos à bala e "rara era a noite em que as deshoras não se
que enfrentar a violência ou a indiferença: "nas cidades exploravam a caridade ouvissem (...) o estampido do bacamarte do assassino" e "raro era o dia em que
publica, nas serras viviam da caça, das raízes e fructos silvestres e do furto nas não amanhecessem na visinhança dos cannaviaes quatro a cinco cadáveres de
^0
lavras". Muitos, porém, morriam "envenenados pelas raízes silvestres", especial- infelizes". Mas "o crime ficava impune, porque o retirante era considerado como
^ <, c. mente a mucunã, leguminosa bastante conhecida pelos sertanejos, que, "preveni- cão leproso que ia empestar a terra alheia".
>' ^ dos sempre contra as suas propriedades nocivas, só se utilisam d'ella, quando Em outros lugares, o retirante era castigado com violência - era açQÍt_a_do.e
-f' 'i ?vr\í lhes têm faltado todos os meios de subsistência"; assim mesmo, o preparo da tinha seus cabelos raspados - antes de ser mortgjs seu cadáver atirado ao campo, f 5» c ç
'*>$'• farinha de mucunã deveria obedecer a um rigoroso processo de lavagens repeti- quando não era, simplesmente, jissassinado pelo_propjri£tárip__dasjerras, incpmo- f ,'
das, com vistas a "prival-a do principio toxico". Além da mucunã, outros recur- Harinjymjieu^sajyj^^djrei momento, a distinção entre - "
sos de que se valiam os retirantes durante sua jornada eram o chique-chique, a saque e roubo, que se tornará mais nítidjt_cprn i_a .sequência deL secas e saques
macambira, o croata e a "gomma da carnaubeira". 14 durante o século XX, ainda não está
Animais mortos, de peste ou de fome, cujas carcaças apodreciam pelos ca- tenham tido mais sorte ao_e_ncpntrar propri_etáripAmais_carid.osos.pu_surpreeridi,:
minhos, também podiam ser consumidos pelos retirantes durante sua caminhada dos pelas circunstâncias, de modo gera| a tomada de alimentos pelos famintos era
em direção às cidades. Muitos sucumbiam nessa tentativa, acossados por molés- qualificada como_sjropifiSLtouhQ_.e ír.atado.como M-IÍL

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U' FREDERICO DE OUTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

A chegada de um grupo de retirantes a uma cidade era, assim, além de um rial, que assegurava a todo brasjleiro o direito de receber socorro em caso de
"espectáculo contristador", um momento de preocupação, pois, junto a ele, um calamidade públicMoi[rar^djmerit^tr_aristpxrnada pelas elites locais num instru- ,
conjunto de outros problemas i r i a m abalar o cotidiano dos moradores: mento de coerção ao trabalho". 20 Se a caridade nada pede em troca, os socorros ,y•'' ,
criminalidade, mendicância, prostituição, doenças... A_seca passou a ser um pro- oficiais jamais poderiam ser oferecidos sem que se transformassem em um invés- f. <ç^\o pa
blema que afeta djretamerjLe a população urbana e, mais cio que isso, a coloca
junto_aos_se^tores_sociais que mais sofrem seus et'eitgsJ3sj;etirantes exigem, com de tais trabalhos e com eles, em vez de mendigos, teremos trabalhadores", "evi- /\• vt
(^ * <$'
sua presença. |nje^ejadaij.ima solução imedjata para suas aflições: trabalho, co- tando-se assim a ociosidade, que nestas, assim como em todas as circunstâncias, • -•**"
mida,esmolas... Não é à toa que Rodolpho Theophilo irá dizer, mais tarde, que torna-se a nascente de todos os vícios". 21 Ao mesmo tempo, "não pode ser fun- -'
"flagelados somos todos nós durante a calamidade" e pergunta: "não será um cão publica a alimentação do ócio e da preguiça, nem a fomentação da inércia, da
flagelo ter-se a porta cheia de famintos, de manhã à noite, pedindo esmola pelo imprevidência e da mendicância pela charidade official não temperada pela orga-
amor de Deus?"17 nização do trabalho". 22 Por outro lado, uma preocupação com a ordem não impe-
Chegando à capital, as esperanças de terminarem com seu sofrimento eram d|a_que o trabalho fosse utilizado "como elemento vital na ordem e na consgcu-
imediatamente frustradas, já que os serviços organizados para absorver esta mão- cjjojja tranquilidade públjca". objetivando combater "o ócio gerador de pertur-
de-obra não obedeciam às regras das relações de trabalho então habituais em bações internas"; mesmo assim, os serviços atenderiam a estes propósitos, espe-
tempos normais; eram formas de ocupar estes retirantes que ocupam a cidade e, cialmente por não demandar do governo o dispêndio com salários, já que "exi-
portanto, não precisavam obedecer aos mecanismos de mercado. gem apenas as despesas de alimento e vestuário".23
^ Assim, tanto o calçamento das ruas centrais de Fortaleza - onde habitava
_ Os commissarios, distribuidores de socorros, tinham ordem de dar ração ao sua elite orgulhosa da beleza, organização e simetria de sua cidade, o qug pode
retirante unicamente no dia de chegada. No dia seguinte, se queria ter direi- ser apreciado nas fotos e postais de início do século XX -...quanto os trilhosjja
to a socorro, devia de ir á pedreira do Mocuripe, uma légua distante da extensão da estrada de ferro de Baturité.- qiLejríaj.rjinoraLas_.pAnúrias dos reti-
capital, carregar pedras! Uma viagem de duas léguas, com o peso de 15 rantes das secas seguintes, além de possibilitar o transporte do algodão a_partir_da
kilogrammas, pouco mais ou menos, aos hombros, seria nada para um década de 1910 - seriam obras implantadas_nes_tas condições,dejrabalho. resulta-
organismo são e vigoroso, mas para um enfermo, que tinha os membros
dos dojssfor^ç^QbjgjTimTiano de retirantes JTacos,_andrajpsos e indigerites. A
tolhidos do cançasso de tantos dias de jornada, era bastante para acabar de
beleza da cidade foi construída pelas "múmias famintas" e cada pedra do calça-
extenual-o, roubando-lhe depois a vida. 18
mento pode guardar um sofrimento inenarrável. São produtos do traba|ho_dos
retirantes de 1877, apresentados,_ ngsjrelatórios, 6ojrio_ simples ^'melhoramentos
Enfim, "o retirante, se queria comer, trabalhava, como também a mulher, a
filha e o filho menor". públicos, resultantes ja_sêcca"24^__
Na capital, assim como em Aracati, o governo procurou organizar os acam-
Não tinham dó do sexo fraco. Todos os dias pela manhã seguiam aquelas pamentos de refugiados - os "abarracamentos", ajuntamentos de retirantes que
pobres mulheres para a pedreira do Mucuripe, e de lá voltavam, alto dia, procuravam se arranjar sob as árvores ou construindo precárias barracas de palha
trazendo uma pedra para os calçamentos que se estavam fazendo. Aquelas - através de comissões de socorros formadas por pessoas pertencentes às classes
infelizes, escavadeiras, trambecando de inanição, faziam esta viagem de mais abastadas da cidade. Os abarracamentos foram divididos em distritos, que a
duas léguas, quer estivessem grávidas ou assistidas. 19 princípio eram nove, mas que chegaram a onze ao final de 1878, e os retirantes
divididos em turmas. Foram criados cargos remunerados para a direção destes
($) A_ajuda_ofic[al, assim, ag_contrái;iq da "caridade pública", estava condido- ^ distritos - comissários, administradores, encarregados de escrituração etc - en-

* nada, pelo meng^ern_parte^ao trabalho, e. "fosse como medida de mero combate quanto que os chefes de turma eram escolhidos entre os próprios retirantes, "vo-
_ ,. ^ à seca^cgmo necessidade de disciplina social^ou como ideal de pr^gressp_rnate- luntariamente". Várias instruções baixadas pelos Presidentes da Província no ano .
0' rial para a província, pode^sejJjzer que a política assistgncjalista do Estado impe- de 1878 demonstram a dificuldade de administrar esta população faminta. As

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

obras públicas e as esmolas, assim como a alimentação, eram objeto de inúmeros Os pobres da capital, "uma classe que soffria atrozmente em consequência
tipos de irregularidades. Aproveitadores procuravam meios de enriquecer às cus- da seca", classificada como "pobreza envergonhada", também mereceria as aten-
tas dos recursos destinados aos socorros, utilizando-se da singeleza e fragilidade ções dos dirigentes do governo. Uma "commissão domiciliaria", composta por
dos métodos de controle e fiscalização. 25 "membros distintos da sociedade cearense", tratou de esquadrinhar as famílias
Outras instituições, como a Maçonaria, procuravam recolher subscrições, pobres residentes em Fortaleza com o objetivo de estabelecer quais, "por seu
com o objetivo de colaborar na assistência caridosa aos "deserdados da fortuna". estado de pobreza, não podiam subsistir sem auxilio do Estado".30
A Loja maçónica "Fraternidade Cearense", por exemplo, "teve grande atuação (5à A emigração para a Amazónia era uma outra forma de evitar o contato. jlém
no amparo aos flagelados da seca de 1877", dirigindo apelos aos "irmãos" de de sej;, igualmente, urn outro recurso parajfugir dos efeitos da seca, do ponto de
todo o País, através do "Boletim do Grande Oriente do Brasil", para que sejam vista dos retirantes. Mesmo assim, era uma outra viagem perigosa a ser enfrenta-
enviados donativos, que terão "a aplicação mais sancta que a ocasião depara". da, tanto pelos obstáculos relativos às condições dos navios, quanto pelo trabalho^
Afirmam os maçons cearenses que "esta oficina não pode ficar surda aos clamo- nosjeringais da floresta amazônica. ..
res das vítimas da seca, que tem reduzido milhares de famílias à indigência e Já no embarque, os retirantes enfrentavam os mais inusitados desafios, com
condenado à morte outras pela fome". Relatam, porém, que a Loja "participa das os desmandos dos responsáveis pelo alistamento e alojamento das famílias.
dificuldades e deficiências de meios que a situação tornou commum a todas as
classes e corporações".26 O embarque era feito de um modo afflictivo. Os encarregados do transporte
para as lanchas arrancavam as creanças dos braços maternos e levavam-nas
A_necessidade de controlar os abusos, por outro lado, assim como definir
como fardos que sacudiam sem piedade no fundo da embarcação. As mu-
rigorosamente os critérios para a distribuição dos benefícios, levou ao estabeleci-
lheres eram carregadas a empurrões, sem o menor respeito, entre ditos in-
mj;n_to_de_uma JSguJameoiLacJp_doj^ocgnx^e_dpA beneficiário^^ dividindo os
decentes. A moça, a donzella não encontrava no meio daquella multidão
retirantes em categpjms, conj;OTm^ea_griji£i^a]mente, sua situação de saúde. selvagem e sem caridade, o respeito devido a seu estado.-11
Os soccorros autorisados foram os seguintes: esmolas para os inválidos e
As denúncias contra os maus tratos não demoraram e "todos os dias a im-
famílias que não podessem subsistir com o seu trabalho; salário para os
prensa da capital registrava scenas que se passavam com os infelizes que deixa-
validos que fossem empregados em serviços públicos; alojamento e roupa
vam o torrão natal". Em 12 de setembro de 1877, o vapor Pernambuco deixa o
indispensável; rações para os recem-chegados e emigrantes; medicamentos
e dietas para os enfermos; transporte para os emigrantes.27 porto em direção ao Pará, levando apenas uma parte dos retirantes alistados para
a viagem, separando famílias e abandonando bagagens. No cais, "só se ouviam
)^) Ao mesmo tempo, uma tentativa de disciplinar a própria instalacão_ej3rgani- prantos e gritos de desespero"; no navio, o comandante "olhava para aquella
zagjig_dos_jbarracarnentos já se insinuava, buscando controlar os movimentos scena angustiosa com uma frieza, com uma indifferença de bruto".32
dos retjrantes no interior da_cida.dexJo que, mais tarde (1915), jria se transformar Embarcar, contudo, nem sempre poderia ser a melhor solução. Os relatos
•^- em Campo^e^Conceatraçãja^E.stabeleçendo uma divjsjtó entre os sertanejos em conhecidos das condições de trabalho e salubj"ijajejTgj_seringais amazonenses
•'0'jf «,'0' turmas lideradas por um dentre eles, uma hierarojjjaj}j._supervisão^oficial e, espe- traziam insegurança e temor. Porém, tudo parece fazer crerjjue a política de mj-
cjaJmeji^jdeterminan_dQ_que a distribuição dos socorros sejajfeita no interior dos gração para o Norte foi uma estrat£§d^gffly_ejmajnejitalj!3ra-desafogar os equipa-
abarracamentqs,_o_pgder.BÚblico_BQde,ria manter restrita _a circulação^ dosjndi-^ mentos urbanos da enorme pressão exercida pelos milhares de retirantes sem
gentesjndesej.ad.os.,Tentando limitar os contatos da população local com os men- teto, sem alimento, sem saúde.
digos, o Presidente da Província ordena que "o socorro ás famílias abarracadas Se a opção de emigrar para a Amazónia já era arriscada desde o embarque, a
será publicamente prestado nos próprios abarracamentos, em dias marcados para estadia na capital cearense e nas cidades litorâneas maiores poderia não ser muito
cada um deles".28 Este contato, por vezes, parece que as autoridades o viam como diferente.
sujo ou impuro: "Immediatamente tratei de promover por todos os meios ao meu Além dos infortúnios relativos aos trabalhos, aos socorros, aos abarraca-
alcance a limpeza da capital, de retirar para fora delia os indigentes".29 mentos etc, as epidemias iniciaram uma nova e rápida frente de mortalidade entre

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

os retirantes. Febres, diarreia, desinteria, anasarca, beribéri e, de modo especial, livres de ver um corpo (...) semi-nú, banhado de pus e exhalando um cheiro ex-
a varíola hemorrágica - "moléstia terrível e fatal, e ainda não conhecida na traordinariamente fétido e nauseabundo"; horrorizando, principalmente, o saber
província" - fizeram um número incalculável de vítimas. Segundo Rodolpho médico consciente do farmacêutico ocupado em enfrentar com vacinas fabricadas
Theophilo, "a população adventícia da capital decrescia de um modo espantoso": em seu próprio vacinogêneo doméstico uma epidemia que se alastrava sem ces-
em 40 dias, entre setembro e novembro de 1878, a população caiu de 114.404 sar.-36
para 108.656 por obra das doenças que grassavam nos abarracamentos. Ele cal- Ao lado dasjdojmçjs_, aj^m^aJid^
culava em 40.000 os "variolosos" em novembro; em dezembro, já eram 80.000! os anos 1877, 1878 e 1879, apavorando autoridades, observadores g retirantes. •', V
No dia 10 de dezembro do mesmo ano, "haviam fallecido de varíola 1.004 pesso- Todos, de uma forma ou de outra, sofriam os efeitos do caos em_que se tornou a
as na capital e seus subúrbios"; a sobrecarga de trabalho para os coveiros fez com vida urbana e rural no Ceajá._
que restassem 230 "cadáveres insepultos" para o dia seguinte: "A varíola havia No interior, os grupos de salteadores ocupavam o espaço vazio deixado pela
chegado ao auge do furor! O pânico estava disseminado pelos habitantes da cida- população retirante e ameaçavam livremente as cidades quase desabitadas. Os
de, o lucto cobria todas as famílias e a tristeza morava em todas as habitações!"3 efetivos policiais foram reduzidos a quase zero, em função da necessidade de
Em 1878, o número total de mortos foi avaliado entre 57.766 e 24.849.34 O controlar a situação na capital e mesmo com a redução dos meios de subsistência
lazareto da Lagoa Funda não dava conta da demanda de doentes. Mesmo com a no interior. Os Presidentes da Província, em seus relatórios, deixavam transparecer
criação de novos lazaretos, elevando a capacidade de atendimento para 6.000 essa preocupação com a "tranquilidade pública".
doentes, e com a dedicação de médicos, enfermeiros e religiosos, a mortalidade
não decresceu. Sob pretexto da fome, os crimes de furto e roubo se têm desenvolvido em
longa escala, especialmente nas comarcas do sertão, onde os meios de viver
Um lazareto, pode-se dizer, é um lago de pus onde bóiam enfermos, mori- são mais escassos e mais fácil o emprego da violência, não sendo por isso
bundos e mortos! E a morada do soffrimento, é um foco de podridão, á cuja de admirar que frequentes homicídios vão completando a obra da perversi-
vista todos fogem excepto as affeições caras e sinceras e a caridade, subli- dade.37
me filha de Deus. D'estes tristes logares tudo havia fugido excepto o medi-
co, que a sciencia havia atado ao leito do enfermo, os enfermeiros que a Os^"malfeitores" percorriam os sertões, encetando disputas com grupos ri -
falta dos meios de subsistência prendia ali, e as irmãs de caridade que, fieis vais aterrorizando as vilas pobres ou empobrecidas; sem enfrentar uma socieda-
.
a seu voto, iam procurar a humanidade nos seus mais angustiosos momen- grupos tinham origem em
tos, para cumprirem assim a promessa que haviam feito ao Crucificado. 35 crimes de morte, cometidos contra familiares ou amigos, e a consequente organi-
zação de um bando, normalmente de foras-da-lei, para perseguir os assassinos. A
O transporte dos mortos era, segundo Theophilo, um outro foco permanente vingança movida pela família de Adelino Araújo, por exemplo, deu origem ao
de disseminação das epidemias. Quando o morto era homem de algumas posses, bando dos "Pellados", liderado por Sebastião Pellado. Os "Calangros" - nome
mesmo que poucas, "deitavam o cadáver em uma rede, depois prendiam-no pelas relacionado a João Calangro, condenado por roubo de gado e fugitivo da cadeia
extremidades em um longo páo, e dous homens conduziam-no para o cemitério"; do Crato — formaram-se em defesa do assassino, Innocencio Vermelho, e, em
quando não, "era o corpo envolvido em um pedaço de estopa velha, da que havia pouco tempo, o bando já reunia mais de 60 salteadores. Outro grupo, que se
servido para enfardar a carne do sul, depois amarravam-no pela cabeça, cinta e formou em hostilidade a estes, foi liderado por José Matheus.38
pés a um páo e conduziam-no á valia commum". O trajeto para o cemitério, Na cidade, os furtos são frequentes. Grupos de assaltantes se formam, apro-
porém, incluía as ruas centrais da cidade, orgulho de seus habitantes, e ainda não veitando o grande movimento de pedintes pelas ruas, abordando pessoas e casas.
atacadas pela epidemia. Os carregadores, normalmente embriagados, frequente- Rodolpho Theophilo, para quem "o furto se havia desenvolvido entre os retiran-
mente cansavam-se no caminho, "paravam e deitavam a rede com o cadáver so- tes de maneira incrível", chamou a atenção para um aspecto peculiar do principal
bre a calçada, mesmo nas ruas mais publicas e frequentadas", horrorizando as grupo de assaltantes da capital. A assim chamada "companhia da russega" - uma
famílias, que "fugiam de chegar ás janelas de suas casas, porque não estavam referência ao instrumento usado pelos assaltantes - "era composta em sua totali-

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

dade de meninos de 7 a 12 anos".39 Soltos pela cidade, longe da família e do oferta pessoal. Aceitaria um emprego para ganhar um salário, embora concordas-
controle paterno, encontravam uma certa liberdade na circulação pelo espaço se que "o transporte de pedras" fosse "uma medida vexatória e extravagante",
urbano, na conquista do temor da população, nas possibilidades de uma alimen- indigna de sua posição. Mantinha sua dignidade. O mesmo não acontecia com os
tação melhor às custas de pequenos ou grandes furtos nas casas de pessoas abas- outros retirantes, que mendigavam, carregavam pedras e procuravam por todos
tadas. os meios ganhar sem trabalhar.42
^ej^^ de..uma. crise sem A_cQrrupção era outro crime ajse_es.rjalhar_pelo.ieireno^ri0^adiç.o_da_desor: •>
precedentes, com o rápido empobrecimento de grande parte da _popula.çãoj_jn- ganização social. As denúncias se sucediam, os relatos também. Poucos, jjo_en-
cluindo homens de p.osses d.a£Ídade.e.do campo, as autoridades percebessem^ue tantoi_ajém.de_alguns^u£rjerd^arr^seus empregos com^ipjiados^foram puni-
"são q£ analphabetos, os proletários, os homens carecidos de todos os benefícios dos. O jornal O Retirante fazia denúncias semanais, cobrando dos Presidentes da
da civilização que commettem a quasi totalidade dos crimes".40 Província uma posição mais firme contra os atravessadores, os açambarcadores e
De fato, a fragilidade da fiscalização e a crítica situação dos retirantes aca- os corruptos, entendendo que a responsabilidade no atendimento às vítimas da
bavam por colocá-los com o pretexto e a ocasião em mãos. O transporte de géne- seca - de proteção aos pobres em momentos de escassez - era do governo, na
ros para os abarracamentos, feito pelos próprios retirantes, era o momento ideal impossibilidade de os próprios proprietários poderem fazê-lo. Este jornal - que
para subtrair aos sacos de farinha algo mais para alimentar a família. "Todos trazia como subtítulo: "ORGAM DAS VICTIMAS DA SECCA" - foi criado
furtam", brada Rodolpho Theophilo, "porquanto muito convencidos estavam de com o objetivo de dedicar-se à "causa dos famintos", procurando enfocar os pro-
que tudo era do Rei e por consequência lhes pertencia". Na polícia, quando era o blemas contemporâneos do ponto de vista dos retirantes. Era de propriedade do
caso de haver prisões, "defendiam-se dizendo que estavam com fome". Sr. Francisco Perdigão, que, "abalado com o soffrimento dos indigentes, atacava
Duas fontes de legitimação se pronunciavam aqui. A primeira, abortada pela desabrido a administração, ultrapassando muitas vezes os limites da accusação
Proclamação da República, estabelecia uma vinculação direta com o Imperador séria e moralisada, e ferindo com insultos ao presidente da província". 43 O
D. Pedro II, que simboliza e personifica a caridade e a proteção aos pobres. A abolicionista José do Patrocínio, em missão jornalística a serviço do jornal cario-
segunda, que se desenvolverá por todo o século XX, assegura a imposição da "lei ca Gazeta de Notícias, teve diferente impressão. Para ele, O Retirante significava
da vida" que se sobrepõe à "lei do direito", garantindo um suporte moral indis- apenas o veículo de "uma resistência hedionda contra o pujante caráter do presi-
pensável para os famintos que roubavam alimentos. dente Aguiar"; apresenta o jornal como "o poste infamante em que a própria
Por outro lado, a muamba, nome dado ao objeto dos furtos, era assunto das família do honrado presidente foi amarrada para ser coberta da baba asquerosa
conversas e da poesia popular. dos mais infames detratares que a terra tem produzido".44
De qualquer maneira, os comerciantes, em períodos de escassez, sempre são
A barca da muamba objeto da desconfiança popular. As denúncias do jornal .continuavam e os preços
Corre mais que o vapor, subiam desconsoladamente^ Os géneros colocados à disposição dos retirantes
Ai amor!41 foram objeto de ampla exploração. As verbas dos socorros públicos, segundo
denúncias dos jornais, "não conseguiram socorrer senão as comissões, os
O romance A Fome reforça esta visão dos pobres como criaturas à beira de comissionados, as subcomissionadas e protegidas", em que "fica muita casa-far-
um ataque de perversão, possuidoras de valores morais e éticos bastante frágeis e ta, muita grimpa erguida com os despojos da miséria".45 De fato, segundo o nos-
sempre propensas às formas pouco confessáveis de ganhar a vida. Mesmo entre so cronista, "os especuladores tiravam partida das condições anormaes" e, indo
os desafortunados da seca, contudo, o autor faz distinção entre os pobres e os contra o livre funcionamento do mercado, algumas autoridades procuravam in-
homens de posição. O coronel Manuel de Freitas, por exemplo, era um proprietá- tervir, aumentando a oferta de alimentos.
rio de terras que perdeu tudo com a estiagem, mas que, mesmo vivendo na cidade
inteiramente às custas de um corrupto comissário de socorros, não concordava A carne verde custava 640 a 800 réis o kilogramma! A camará municipal de
em receber dinheiro da verba "Socorros Públicos", aceitando a ajuda como uma Fortaleza, achando exaggerados aqueles preços, resolveu abrir competência

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

com os marchantes, e mandou matar gado por sua conta, fazendo d'este entregou-se "sem resistência" ao mesmo comissário Arruda. Pela manhã, "saiu
modo descer os preços a 320 e 400 réis por kilogramma.46 incorporada às prostitutas": "uma noite de crápula bastou para crestar aquela flor
de quatorze anos".48 Os padrões da desigualdade social se reproduzem na econo-
;,_assassinatos e brigas. Uma das mia da sedução.
^ <l grandes preocupações das autoridades e dos moradores era com a prostjtujçJõT Neste clima, em que imperam a fome, os desmandos, os crimes e o caos, os
^' 9 U ^ "apodrecia a população advgnticiajda capitaJ^.Uma predisposiçãcTnãturaT conflitos abertos não demoram a surgir. Sinais de uma reacão coletiva um_pou-
aos vícios morais e ao crime poderia ser resultado da miséria, mas sempre seria cojnais articulada começavam a aparecer n_Q_intenç>L_dos abairacjmenjos.jias
necessário o agente "seductor", nem sempre, ou quase nunca, um pobre retirante, ruas, nos postos de distribuição de alimentos, chegando ao palácio do governo.
mas "o miserável grande, que á custa do valor de suas moedas, comprava em sua Ajynncípio. os retirantes realizam petições às autoridades, reclamando
porta a honra das donzellas a vis e asquerosas mulheres, que a natureza desgraça- medidas de atendimento ou protestando contra a insuficiência das medidas exis-
damente fizera mães!" tentes. Uma atitude nova, diferente dos padrões rurais de relacionamento com
as autoridades, em que os proprietários assumemjntegralmente esta interme-
Historiando os factos com a imparcialidade que nos impõem o dever e o djação_eoitr^Q_fljie^esjejitend£m^^
critério, não podemos deixar de estigmatisar a infâmia de opulentos, que, gentesdo Estado -_e a submissão dos camponeses_épartejntegrante de sua
devorados pela sensualidade brutal dos jumentos, pactuam com mães cor- ^ntegração social. _
rompidas e desalmadas, comprando-lhes friamente a honra das filhas.
Em 7 de dezembro [de 1877], os retirantes domiciliados em Arronches, não
^ As mulheres, em Theophilo, aparecem como santuários da virtude, mas com recebendo rações, havia muitos dias, vieram ao palácio do governo, em
poucas possibilidades de ação autónoma. A prostituição é sempre um ato exter- numero superior a 500, todos chefes de família, implorar do presidente uma
no, vindo de um agente corruptor que, contra a vontade da mulher, a leva à per- esmola para não morrerem á fome.
versão através de variados estratagemas, dos quais a pressão financeira é prepon-
derante. A miséria aparece sempre como origem de inúmeros vícios e crimes. A reação foi de desprezo pela ação dos pobres. A eles não era dado o direito
Uma vez prostituídas, todavia, as mulheres jamais se livrarão desta marca e "va- de manifestar-se publicamente, de ocupar a cena da capital, área destinada a pes-
garão por muitos annos, como negros testemunhos da bruteza humana", "perdi- soas com instrução e posses. Sem tomar conhecimento da ocupação das áreas
das pela libidinagem dos réprobos sociaes": "Vimos algumas meninas perdidas próximas ao palácio pelos retirantes, "o presidente demittiu imediatamente o
pela perversidade d'esses covardes. Entre ellas duas menores de dez annos e já subdelegado de policia e exonerou a commissão de socorros, pelo facto de terem
tão pervertidas como a mais devassa Messalina".47 deixado sahir da povoação os infelizes famintos".
Novamente o romance A Fome pode lançar algumas luzes sobre esta ques- No entanto, a ação não foi de todo mal-sucedida, já que, "n'este mesmo dia,
tão. Carolina, filha do coronel Manuel de Freitas, resiste aos assédios do comis- foi mandado tomar conta da commissão um official do 15° batalhão de infantaria,
sário Arruda, firme em seus princípios morais, mesmo adoecendo por má ali- o qual conduziu algumas saccas de farinha para distribuir com os retirantes".49
mentação e tristeza. Nem lê o livro emprestado pelo comissário - "Permita que Assim, uma medida disciplinar se combina a outra de caráter conciliatório,
peça o favor de dá-lo a meu pai; nada leio sem que ele o autorize". - por ser um procurando articular duas formas de ordenar o espaço urbano: a autoritária e a
"romance de época", desses "estudos psicológicos, que devem ser lidos por espí- paternalista. De qualquer maneira, o desconhecimento oficial destas atitudes que
ritos cultos e amadurecidos", segundo o coronel, muito zeloso pela educação da colocam em questão a ordem revelam-se nos relatórios e, ao mesmo tempo, reve-
filha. Já Vitorina, uma órfã pobre, filha de retirantes, largada num abarracamento lam a percepção de que, para as autoridades, a política não inclui os pobres.
de indigentes famintos, sem educação ou, principalmente, orientação de um pai
ou irmão mais velho, não tem a mesma sorte e cede às tramas infames dos Também em abono dos sentimentos cordatos e pacíficos da população con-
"seductores". Ameaçada de ter sua "dieta" cortada, e depois de ser alcoolizada, vém produzir a confissão de que, qualquer que tenha sido o lance apertado

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FREDERICO DE CASTRO NEVES
r A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

de sua situação e os inummeros soffrimentos que ella lhe haja imposto, volve um temor diantejja possibijiclade concreta de JJJTI confronLQ generalizado
ainda não sahio do terreno legal, nem empunhou o facho da desordem e entre os_gobres e a população abastada^da cidade: "No.diaern que negarem .so-
anarchia, procurando na violência dos direitos mais sagrados a satisfação corros, ou estes não_gstiverern em proporções^corn as_exigências da pqpulaçãp
de suas mais palpitantes necessidades.50 esfomeada,_repetir-se-lião aquelas sangrentas .e Jioxoyejs. scenas de que a história,
tantas_vezes nos fala".54.
Em março de 1878, no entanto, a situação financeira da província era a pior Assim, mais do que a miséria, teme-se a revolução, representada pela de-
possível.51 Os víveres destinados aos retirantes escasseavam, os produtos à dis- monstração violenta da insatisfação dos pobres para com a ordem constituída.
posição nos mercados" da capital estavam com os preços excessivamente eleva- Uma ordem, aliás, ainda permeada por elementos ambíguos de modelos que se
dos e, por fim, "se achavam exhauridos e esgotados os cofres da Thesouraria de digladiam. Mas o que se tem presente nestas representações é a ideia matriz de
Fazenda". A distribuição das rações tornava-se muito irregular e os pagamentos que a pobreza não só é origem dos vícios do corpo e da alma, dos crimes e da
foram restringidos. No dia 18, "depois que voltaram da pedreira", os retirantes, desonra, como também da revolta e da revolução.
sem receberem as rações "havia três dias", encontraram a pagadoria em condi- Concretamente, o temor da população era de que os retirantes, em desespe-
ções de distribuir novas rações apenas para poucos. O protesto foi geral e "os ro, atacassem as propriedades, as casas e estabelecimentos comerciais para satis-
retirantes, que haviam sido excluídos, atacaram a pagadoria". O conflito se gene- fazer sua fome animal e, embriagados pela violência, destruíssem o próprio teci-
ralizou entre os famintos e uma pequena força policial foi "debandada a pedra- do social.
das". Com a chegada dos reforços, a repressão foi imediata, colocando em con- De fato, as mudanças no interior da ordem paternalista ainda não haviam
fronto as pedras com "tiros de espingarda", obrigando os retirantes a se dispersa- sido tão radicais para permitir uma interpretação das regras do jogo fora do
rem desesperadamente pelas ruas próximas à praça do Herval, fugindo das balas modelo clássico de relacionamento do tipo "submissão versus deferência".
e das espadas dos policiais a cavalo. Ao final, algumas crianças foram encontra- Mas, mesmo-assim, alguns relatos nos indicam mudanças significativas nestas
das entre os feridos. relações.
Rodolpho Theophilo ironiza a vitória das forças da ordem: "A's 3 horas da No dia 12 de março de 1878, em Aracati, alguns retirantes "assaltaram uma
tarde, voltava o exercito pacificador, precedido de uma banda de musica, tocan- lancha que descarregava géneros do governo, de bordo do vapor Conde d'Eu, e
do os hymnos da victoria, e tendo á frente o bravo que mandou atirar sobre furtaram 43 saccas de farinha". O que, a princípio, parecia ser um furto a ser
miseráveis que estavam morrendo á fome!" consignado entre os atos criminosos comuns, negligenciado pelas autoridades,
A atitude dos responsáveis pela manutenção da ordem revoltou o farmacêu- mais tarde se percebeu ser algo que se articulava com maior complexidade. Um
tico, muito mais inclinado a medidas de natureza humanitária, que se aproximam mês depois, um novo ataque "provava evidentemente o interesse que havia da
dos modelos clássicos de relacionamento do paternalismo: "A população inteira parte dos agitadores do socego publico em desmoralisar o novo agente" [de dis-
da capital deplorava tão triste acontecimento, que ter-se-hia evitado com algu- tribuição de géneros]. Desta feita, apesar da proteção policial requisitada, as ca-
mas saccas de farinha e poucos fardos de carne".52 noas que descarregavam o vapor Ipujuca "foram assaltadas por uma turma de
Sem embargo da permanência^de elementos, marcantes do paternalismojTas oitenta emigrantes". O conflito resultou na "morte de cinco dos assaltantes e
relaçõesjintre os pobres, as autoridades governamentais, os proprietários e a popu- muitos ferimentos"; nenhum dos soldados, porém, "sahiu com o mais leve
lação urbana, novajJgjTT^s_dejMn]fejtação de uma energia contestatória, represa- ferimento".
da pela submissão e garantida pela proteção.,se gestavam jieste novo contexto. Isso Os ataques, apesar do impacto que causaram, não abalaram as formas de
gerava um clima de^ejTsão_em_cjue_os_c;onfljtos se sucedjamj_^rara_era_a_rjnsãC' percepção que se desenvolviam a respeito da capacidade que homens pobres,
effectuada pela_cayalaria ou infantariajque não.produzisse.um^ass.aasjíi.aío".™ camponeses, submissos, tinham de agir autónoma e coletivamente na busca de
.^4 Assim, atitudes de ceQojnodo previstas e temidas passam a ter lugar num seus interesses, mesmo que os mais imediatos. Haveria, sempre, os "advogados
ambiente socmljDropíciqj propagação da revolta. Não só se s abi a d a i n s ufj ci êa: do povo", os "perturbadores da ordem publica" que "não perdiam occasião de
cia dos socorros, mas das cenas de miséria e conflito aqui descritas, o que desen- sublevar os retirantes" etc.55

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A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

Já em seus primeiros atos, portanto, a multidão é desqualificada enquanto As melhores terras, no entanto, se destinavam às atividades principais da
sujeito. fazenda, ou seja, à pecuária e, mais tarde, ao algodão. As piores restavam para a
No entanto, o que tornou essa seca uma calamidade tão extraordinária rela- sobrevivência dos pequenos proprietários, vaqueiros e parceiros, que dependiam
ciona-se com o momento em que os deveres paternalistas passaram a ser exerci- da proteção dos grandes proprietários em períodos de escassez ou mesmo para a
dos, em sua maior parte ou, mais exatamente, em escala social, pelo Estado. utilização de máquinas e equipamentos ou para a comercialização dos poucos
excedentes. Sobre estes setores recaía - e recai - o impacto da seca.63
II. Origens da Seca
Nos annos regulares tudo corre bem. Em outubro brocam-se os roçados.
Não é tão difícil estabelecer o momento em que o Estado passou a assumir Juntam-se, para este fim, os parentes e amigos da visinhança, permutando
os deveres paternalistas em períodos de secas. Por todo o século XIX, as obriga- entre si os dias de serviço. Cada um abre o seu roçado, que o mais das vezes
ções dos proprietários de terras no âmbito da relação de "reciprocidade desi- não exede de duzentos passos em quadro. Em fins de dezembro está quei-
gual" 5 ' - submissão versus proteção - foi se tornando um encargo cada vez mado, em princípio de janeiro cercado e prompto para o plantio. Começado
maior. As heranças dos períodos anteriores da colonização haviam se transfor- o inverno, lançam-se as sementes na terra, serviço feito pelo chefe da famí-
mado. As condições em que a ocupação do território aconteceu favoreciam a lia ajudado da mulher e filhos menores. As primeiras plantações constam
implantação de um modelo de relacionamento baseado na mutualidade. de feijão ligeiro, milho de sete semanas, gerimum e melancia; depois vem a
Essa ocupação do interior se fez primordialmente através da pecuária. O mandioca, o algodão, o milho e o feijão. Entre a plantação dos legumes
sertão era a "civilização do couro". E "o couro era o boi": "O avanço colonizador mais ligeiros e a colheita, accupa-se a família com a limpa do roçado, en-
quanto seu chefe, para alimental-a, trabalha a jornal nas lavras dos mais
ganhava terreno fincando currais onde antes somente pisava o índio bravio. E
abastados; o salário é gasto na compra da farinha de que se alimentam com
cada curral iria ser uma fazenda, que se garantia juridicamente com a obtenção
os preás fornecidos pelas armadilhas: fojos e qu.ix.os. Chegado o tempo da
da sesmaria ou data".57
colheita, os pequenos lavradores se consideram felizes. Alimentam-se com
Toda a atividade económica girava em torno do gado e seus derivados, como os legumes e, vendem o algodão para comprar roupa.64
as "charqueadas", "instaladas nos estuários dos rios Jaguaribe, Acaraú e Coreaú".58
As poucas profissões industriais ou manufatufeiras se relacionavam à indústria Essa citação, apesar de longa, mostra com alguns detalhes a rotina da ati-
da carne seca; outras, artesanais, se relacionavam à lida com o gado. No entanto, vidade produtiva dos setores da agricultura de subsistência em "tempos nor-
os cuidados com o gado eram reduzidos: "O gado, no sertão, é criado á lei da mais", nos "anos regulares", quando não há seca. A produção é quase que intei-
natureza, solto pelo mato em fora, sem o menor processo de pecuária inteligen- ramente destinada à obtenção da "segurança alimentar"; um pouco de algodão
te".59
se destina ao mercado e é "trocado" por produtos essenciais. Nas "lavras dos
De modo geral, neste contexto, "dentro da organização sócio-econômica mais abastados", ao contrário, as principais atividades eram de natureza co-
baseada na produção agropastoril sobressaía a parceria",60 em que vaqueiro e mercial: o gado e o algodão. O autor observa também que "suor escravo não
proprietário dividem o gado, ao final do ano, na proporção de l para 4; no caso da veríeis ali correr; é o trabalho livre e fecundo, amenisado ás vezes ou pela
agricultura, o parceiro cultiva uma parte da terra do proprietário e, em troca, cede saudosa modinha cearense ao tanger da viola ou por intermináveis histórias de
uma parte da produção ou alguns dias de serviço.61 Porém, uma boa parte das cobras ou de onças".
atividades rurais se detinha na cultura de subsistência, complementando, para o Tal conjunto de relações podia se manter estável enquanto houvesse uma
vaqueiro, a renda advinda da "quarta", e, para os poucos escravos, a alimentação disponibilidade de terras e recursos para serem aproveitados durante as secas.
e o vestuário. Para os parceiros, eram as atividades primordiais. Assim, é lícito Nestes momentos de escassez de água, enquanto o gado era transferido para
afirmar que "ao sertanejo pobre abrem-se duas carreiras: ou é vaqueiro de um áreas mais úmidas (serras e praias) ou para o Piauí, os moradores poderiam trans-
fazendeiro qualquer ou agregado, isto é, morador nas terras do fazendeiro, traba- ferir-se também ou, em casos extremos, habitar os currais temporariamente aban-
lhando como jornaleiro seu, podendo ser expulso da noite para o dia".62 donados, vivendo às custas da caridade do proprietário. Essa movimentação, por-

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peculiar: as consequências da "guerra civil" - a ativa presença cearense na Con-


tanto, não chegava a pressionar significativamente a vida urbana em geral, nem a
federação do Equador - e as epidemias. No entanto, este autor ainda observa que
estrutura da capital em particular.
"não consta que a pública administração tomasse, durante a calamidade de 1825,
A economia predominantemente agropastoril suportava esse modelo. Basea-
o menor interesse em minorar a desgraça do povo" e que "o governo geral só em
da em pouco capital investido, pouca mão-de-obra e muita terra, essa atividade
fins de 1826, ou seja, em 1827, quando o mal passava, mandou alguma farinha
económica estendia-se por todo o território cearense, incorporando novas áreas
mais como reserva para os períodos secos do que como investimentos diretos em para o Ceará, que não se aproveitou".
João Erigido, outro observador, acrescenta que "foi tríplice, pois, o flagelo
aumento da produção.
que pesou sobre o Ceará - a guerra, a fome e a peste"; e centra suas descrições
Esse modelo, assim, pode ser caracterizado como "tradicional", em que acon-
muito mais nas lutas políticas que se travavam na Província.
tece uma "reprodução simples ou simplificada do processo de produção agríco-
Já o Barão de Studart, por outro lado, apenas nota, sem maior destaque, que
la". Neste contexto, "o equilíbrio continua tão frágil, que todo elemento gerador
"neste anno o Ceará foi assolado por grande sêcca".67 O clima político cearense
de uma ligeira modificação o perturbará profundamente" 65 ; a seca, portanto, não
estava, na verdade, dominado pelos conflitos gerados pela Confederação do Equa-
atua sobre uma matéria bruta, mas sobre um conjunto de condições sócio-históri-
dor, as reações do governo imperial e, especialmente, as execuções públicas das
cas definidas, nas quais se insere fundamentalmente a organização socioeconômica
camponesa de tipo "tradicional". principais lideranças locais.
Em 1845, um novo período seco se apresentou e novas descrições de cala-
A seca representava, a despeito de todas essas medidas compensatórias, um
midades: "atos horrendo e crimes de homicídios, que se tornaram então numero-
momento de dificuldades profundas, grande mobilidade da população e mortali-
sos, sendo quase todos ocasionados por questões de alimento", "as mulheres,
dade intensa. Até o século XVIII, porém, a principal vítima da seca era o gado.
morrendo à fome, depois de venderem por quase nada as últimas jóias de ouro
Os cronistas e estudiosos se referem preferencialmente às perdas materiais, espe-
que possuíam, entraram a vender a própria honra" etc. Fala-se em "milhares de
cialmente no que se refere ao rebanho, o que nos sugere uma pouco significativa
mortalidade humana, quadro que se modifica radicalmente ao longo do século victimas".
Neste momento, contudo, já se percebe que "a caridade pública por si não
XIX. No entanto, o "nomadismo" da população sertaneja pode ser responsabili-
podia acudir às precisões de tanta gente, e o governo, à espera das ordens do
zado por uma recorrente "desorganização do trabalho".66
ministério, a quem tinha dado parte do estado da Província, demorava-se em dar
O ano de 1825, segundo o Senador Pompeu, "começou e continuou sob a
as providências urgentemente reclamadas por tão críticas circunstâncias". 68 Fari-
influência de tríplice calamidade: seca e fome, guerra civil e morticínio, e mais
nha foi distribuída entre os retirantes e "grandes palhoças" foram levantadas no
logo a peste da bexiga", acrescentando que "esse cortejo de calamidade foi ainda
"Campo d'Amélia" para receber as famílias que se "arranchavam nos matos". A
agravado pelo recrutamento extenso e horrível dos braços válidos restantes da
existência e/ou eficácia destas medidas, porém, já estavam sendo questionadas:
Província".
segundo Rodolpho Theophilo, um crítico das ações governamentais, "fizeram-se
preces, o governo remetteu esmolas, e ficou n'isso"; "entregue á sua habitual
A mortalidade do povo nos centros e nos povoados, mesmo na capital, foi
incúria, não pensou o governo em estudar os meios de atenuar os effeitos de
horrível. Todavia, nos maiores povoados as vítimas de fome foram raras,
futuras seccas".69 A ação oficial, quando acontece, é ainda pontual e episódica.
porque a alimentação veio de fora da Província; porém a aglomeração de
De fato, o governo provincial ainda não havia assumido esta função de proteger
povo imigrado do centro concorria para aumentar a mortalidade. Estima-se
em um terço da população a que morreu, quer de guerra, assassinatos, pes- os pobres em caso de seca, o que era pensado como parte integrante da esfera
te, fome, e a que emigrou, ou foi recrutada. privada das relações paternalistas. A "demora" ou a "incúria" faziam parte deste
momento de transição, em que as obrigações estão indefinidas.
De qualquer maneira, o que se quer argumentar é que a presença do governo
Por mais que esta avaliação esteja incorreta ou inexata, a percepção de uma
- mesmo que discutível - na gestão da pobreza, em períodos de secas, é um
crescente mortalidade em função da seca já se faz presente, associando a fome
fenómeno que se vai articulando ao longo do século XIX, substituindo, aos pou-
com as doenças e com o aumento da criminalidade, mesmo que em situação

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cos, a "caridade pública", que se mostra cada vez mais insuficiente para dar conta percorrer os campos, amansar os animaes, fazer alguns queijos durante o
das carências de uma população retirante que aumenta sem parar. A fome trans- inverno, pegar as rezes destinadas a venda.74
forma-se, a cada período de seca, em uma questão de calamidade pública, a ser
enfrentada e/ou resolvida no espaço público da cidade, pelo poder público. As Isso significava que as reservas de terras para os períodos secos eram pro-
relações diretas e interpessoais que mantinham a "reciprocidade desigual" nos gressivamente reduzidas. Não só as melhores terras seriam destinadas ao gado e
limites do espaço privado das propriedades entravam em crise - uma crise que ao algodão. As atividades de subsistência e de produção de alimentos cediam
tinha inúmeras causas. lugar para uma agricultura em grande escala, voltada para o mercado externo,
As condições económicas que se relacionam com essas transformações se que, mesmo utilizando primordialmente a mão-de-obra livre, não incorpora a
referem a mudanças ocorridas nas atividades agrícolas. Talvez, a principal res- totalidade das terras. De um modo geral, portanto, pode-se afirmar que, após
ponsável por estas mudanças tenha sido a cultura do algodão. Desde 1777, "se 1850, "a agricultura comercial entrava numa nova fase, subordinando a de sub-
cogitou do algodão como elemento comerciável" 70 e, ao longo das primeiras sistência".75
décadas do século XIX, foi assumindo a posição de principal produto na pauta de Para a estrutura da economia camponesa, como foi aqui delineada, esta di-
exportações do Ceará, enquanto que a elevação dos preços no mercado interna- minuição de sua reserva significava a impossibilidade de "atravessar" a seca em
cional estimulava o investimento dos proprietários de terras e comerciantes da condições mínimas de "segurança alimentar", em que a proteção oferecida pelo
capital. proprietário torna-se insuficiente e as famílias tornam-se, assim, "retirantes" à
procura de trabalho e comida. Com a seca, o "filho dos sertões longínquos (...)
De um anno para outro, a provinda cobriu-se de algodoaes: derribavam-se perde as plantações, e com ellas a esperança de alimento para a família".76 O
as mattas seculares do littoral ás serras, das serras ao sertão; o agricultor
"frágil equilíbrio" desta economia "tradicional" torna-se ainda mais frágil, à mercê
com o machado em uma das mãos e o facho n'outra deixava após si ruínas
das irregularidades e da inclemência da natureza. Mais precisamente: as reservas
ennegrecidas. Os homens descuidavam-se da mandioca e dos legumes, as
garantiam economicamente a relação de dependência ao proprietário, significa-
próprias mulheres abandonavam os teares pelo plantio do precioso arbusto;
era uma febre que a todos hallucinava, a febre da ambição.71 vam a possibilidade desta dependência direta se concretizar com a reprodução
das famílias camponesas no interior da agricultura "tradicional" e das fazendas
Os lucros dos comerciantes e proprietários foram facilitados pelas decorrên- de criar, sem alterar suas bases.
cias da Lei de Terras de 1850, que permitiu a tomada de terras de posseiros e Ao mesmo tempo, devido a esta mobilidade crescente da população campo-
pequenos proprietários com base no direito de compra e a incorporação, pela nesa em busca da proteção estatal no espaço público da cidade, os períodos de
força e pela lei, das terras indígenas ao território da província. 72 escassez transformam-se em um problema social'que afeta o conjunto da socie-
A Guerra Civil nos EUA (1861-1865), por outro lado, veio estimular ainda dade cearense e, portanto, ganha visibilidade social e espaço nas políticas ofi-
mais a produção do algodão, abrindo novos mercados antes dominados pelas ciais. Assim, diante desse quadro, a seca de 1877 se apresenta como de gravíssi-
plantações do Sul escravista. A exportação, que nos anos até 1864 mal chegava a mas proporções, fechando o ciclo dos períodos de escassez em que apenas se
1.000.000 kg, atingiu mais de 8.000.000 kg na safra de 1871-2, cifra que só foi contabilizavam as perdas, se conjeturavam quanto às razões da irregularidade de
retomada na década de 1910 com a introdução de importantes mudanças tecnoló- chuvas 77 e se lamentavam as mortes - a seca torna-se, a partir de então, um "fe-
gicas 73 nómeno social".
Na pecuária, porém, as atividades permaneciam presas ao modelo tradicio-
nal, extensivo, "á lei da natureza". O próprio Presidente da Província criticava
III. Lições da Tragédia
nos produtores a postura passiva diante da criação do gado.
A seca de 1877-1880 trouxe novidades no campo das relações de poder que
A administração das fazendas é entregue a homens ignorantes dos preceitos ficaram incorporadas ao imaginário político e social. O impacto deste evento
da industria, e muito mal retribuídos. Ordinariamente só se occupam em sobre as formas de perceber a pobreza, a migração, a caridade e as responsabili-

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dades sociais não pode ser medido quantitativamente; porém, muitas dessas trans- Começa a se desenhar a noção de que há uma incompatibilidade completa e
formações vieram a compor decisivamente o ambiente cultural no qual a multi- profunda entre a miséria e a consciência, entre a preocupação com a satisfação
dão passará a agir durante o século XX e, especificamente, após 1932. Alguns das necessidades mais imediatas e a capacidade de ação racional, entre o
pontos deste processo de mudanças merecem ser destacados, principalmente em despojamento da fome e o controle emocional e físico, característica dos homens
termos de novas referências simbólicas, novas atitudes e novas experiências. civilizados. Algo que irá ganhar contornos mais nítidos quanto mais se repetirem
as cenas de 1877; a clara visão de que "a necessidade intima de viver embota os
1. Novos símbolos sentimentos mais delicados e altruisticos" e que "o instinto de conservação é
ordinariamente mais forte que qualquer outro", aproximando cada vez mais dos
A presença ostensiva de uma população retirante na cidade de Fortaleza - animais o homem que se encontra nesta desconfortável posição de ter que lutar
que pode ser considerada um exemplo do que aconteceu em todas as cidades pela vida no nível mais elementar.
mais importantes do Ceará, especialmente as litorâneas - provocou uma pressão
simbólica sobre a população local que pode ser comparada à proporção dos nú- Os largos dias de jejum esgotaram todas as reservas do organismo e a tez
meros: cerca de 114.000 sobre 25.000!78 macilenta do bando famélico, que se arrasta, denota a fraqueza extrema, o
A pressão era exercida sobre todos os equipamentos urbanos e sobre todas sofrimento atroz, e a vista inexpressiva revela o embotamento dos mais
as estruturas de sentimentos que a população experimentava com relação à po- delicados sentimentos humanos. 79
breza e à caridade. Ruas, praças e bulevares tomados por famintos sem noções de
higiene, demandando esmolas, água e comida por três anos; o espaço público Assim, o relacionamento entre retirantes e população urbana vai ganhando
recém-adquirido pelos habitantes da cidade é invadido por pessoas que não o contornos mais nítidos, que, no entanto, revelam a formação de um campo de
compreendem. Multiplicados por incongruências culturais que impediam uma conflitos em que se confundem medo e terror, complacência e intolerância, cari-
compreensão mútua, os conflitos gerados por essa convivência forçada - e con- dade e violência.
turbada pela insuficiência dos meios de atendimento assistência! - acabam por Os refugiados da seca, a partir de agora, encontrarão nas cidades este ambi-
desenvolver uma nova estrutura de sentimentos com relação aos migrantes da ente ambíguo, que os empurra para uma posição de pedintes submissos, a espera-
seca: a caridade desinteressada - que, para os cristãos, abençoa quem a pratica e rem com total resignação as providências que as autoridades puderem tomar,
não quem a recebe - com que os primeiros retirantes são recebidos logo é substi- mas, ao mesmo tempo, que os permite incorporar novas formas de comporta-
tuída pela desconfiança, pelo medo e até pelo horror. mento político, mais diretas e reivindicativas, embora presas ao modelo paternalista
O relato de Rodolpho Theophilo é claro neste ponto: ele mesmo, um intelec- de relacionamento com as autoridades.
tual que acompanha os mais recentes debates de ideias pelo mundo, e que se Do ponto de vista da população urbana e suas autoridades, a necessidade
proclama um observador isento, imparcial e neutro dos acontecimentos a que que começa a se formar neste instante é a de manter os retirantes fora de um
assistia e, principalmente, de que participava diretamente, demonstra o horror limite de contato, longe dos espaços públicos frequentados principalmente pelas
ante a decadência física e moral de uma população de milhares de conterrâneos, elites aburguesadas da capital. Este comportamento - como iremos ver - irá se
os quais deveriam merecer de sua parte os mais elevados elogios, como "bravu- desenvolver com a repetição, mesmo em menor escala, dos acontecimentos cho-
ra", "coragem", "destemor", "abnegação" etc. Ao expor as fraquezas morais - cantes da seca de 1877. Cada vez mais esta necessidade se manifestará, alcançan-
especialmente com relação à prostituição e ao tratamento dispensado às mulhe- do as atitudes individuais e coletivas, isoladas ou institucionalizadas. Ao mesmo
res - tanto dos retirantes quanto dos responsáveis pelos socorros, Theophilo des- tempo, e até anteriormente - veja-se as medidas de controle dos abarracamentos
tila um desprezo de "homem civilizado" por sobre uma massa de "bárbaros" que e das casas dos "pobres envergonhados" -, uma outra necessidade se desenvolve.
se amontoa em palhoças imundas ou que se utiliza de suas posições na sociedade Controlar os movimentos dos retirantes, impedir sua livre circulação pelas cida-
para seduzir mulheres indefesas - para ele, aliás, as mulheres parecem sempre des e até por todo o território do estado, vai ser a principal medida a ser imple-
indefesas. mentada pelos governos provinciais ou estaduais desde então. Não é a seca o

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principal objeto a ser combatido por essas medidas, mas a movimentação dos de pobres na cidade tomaram características de controle e disciplinamento dos
refugiados, a migração, que, a partir deste momento, deixa de ser no sentido movimentos dos retirantes, restringindo a moradia, o trabalho e a circulação den-
"das áreas secas para as áreas úmidas" para se tornar "do campo para a cidade". tro do espaço urbano.
Tais medidas de controle e de gestão da miséria serão objeto de uma aprendiza- A chegada dos retirantes às cidades implicava uma necessidade de distribuir
gem permanente, tanto para as autoridades que as implementam, quanto para alimentos em escala jamais pensada pelos habitantes, nem pelos governantes.
os retirantes; tomarão aspectos variados, assumindo formas de assistência social, Esta distribuição constituiu-se, inicialmente, numa extensão da caridade pessoal
distribuição pública de alimentos, alistamentos, trabalho compulsório e cam- que distribuía esmolas e restos de comida aos mendigos. No entanto, o número
pos de concentração. Terão como objetivo comum, no entanto, "fixar o homem de pessoas a ser beneficiado exigiu um sistema de compra, armazenamento e
no campo".80 distribuição que requeria uma organização eficiente e ágil. Neste aspecto, o gover-
Tais necessidades se ligam a um outro sentimento que se gesta neste mo- no provincial procurou interferir nas relações de mercado através da compra em
mento: o medo! A multidão revoltada dos retirantes assaltando lanchas de ali- outras localidades de géneros de primeira necessidade, alterando os fluxos "nor-
mentos ou enfrentando abertamente os policiais armados no centro da capital mais" de preços em tempos de crise, ou fazendo um acordo com o comércio local
aparece agora como uma ameaça a todas as formas de relacionamento social que "a fim de abastecer o mercado de géneros de primeira necessidade e vendel-os á
se encontram presentes na sociedade local, tanto a paternalista, "tradicional", população e ao próprio governo (...) mediante preços justos e rasoaveis".82
quanto a liberal, "moderna". O período de secas será marcado, daí em diante, por No entanto, esta interferência não era consensual entre os governantes, que,
uma expectativa que não é somente rural, isto é, não se refere apenas aos perío- em geral, achavam que o mercado conseguiria encontrar um ponto de equilíbrio
dos da semeadura ou ao aproveitamento das colheitas, mas está relacionado inti- entre a oferta e o súbito aumento da demanda.
mamente às cenas de miséria protagonizadas pelos retirantes... nas cidades. A
partir de 1877, a seca não é mais um simples fenómeno climático de ausência ou A respeito do supprimento de géneros alimentícios, tenho por verdadeiro o
irregularidade de chuvas, mas é um fenómeno de caráter social, em que o cenário principio da não interferência do Governo, sempre que os commerciantes
se expande até alcançar todos os recantos da sociedade, no campo e na cidade, e podem regularmente abastecer os mercados. É obvio, com effeito, que a
seus atores não são somente os que sofrem as penúrias ou que passam fome, mas interferência do Governo produz uma alta geral.
são todos os que se vêem envolvidos com estes; e cada vez mais fica difícil fugir
deste contato. Estavam convencidos de que, "aberta a concorrência, vem mais cedo ou
Pensar em seca, portanto, não é mais pensar apenas na ausência de chuvas mais tarde a normalidade dos preços, e as compras se podem fazer á medida das
que causa a destruição das colheitas, mas é, prioritariamente, pensar na massa de necessidades, dispensando grandes depósitos, e poupando transportes".83
retirantes famintos e esfarrapados a invadir as cidades na busca de alimentos e A interferência do governo no mercado de alimentos ocorria, portanto, aten-
trabalho. A expectativa que se vai formando neste anos, com a repetição contínua dendo, por um lado, a um imperativo moral de socorrer pessoas necessitadas - na
das mesmas cenas, se refere ao temor deste contato, ao medo da multidão de mais clássica tradição da caridade cristã-e, por outro lado, a uma figura jurídica
pobres.81 presente na Constituição do Império, garantindo o socorro aos pobres em casos
de calamidade pública. Esta posição se chocava com estes princípios do livre
2. Novas atitudes mercado. A hesitação dos governantes, criticada insistentemente pelo jornal
O Retirante, encontra neste dilema sua explicação.
As atitudes de proteção aos pobres em tempos de escassez, portanto, se mo- Ao mesmo tempo, a primeira tentativa de manter um controle sobre os reti-
dificam. O que era um comportamento restrito à esfera privada, resolvido no rantes vem do esquadrinhamento de suas condições de moradia. Os acampamen-
interior da relação entre moradores/parceiros e proprietários de terras, torna-se tos, estabelecidos espontaneamente pelas levas de famílias que chegam do interi-
um assunto de Estado a ser decidido nas esferas públicas de governo. E, como or, são divididos em "distritos", cada distrito com seu comissário e seu adminis-
vimos, as medidas tomadas para neutralizar o impacto da presença da multidão trador, e os retirantes são organizados em turmas lideradas por um dentre eles.

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FREDERICO DE CASTRO NEVES
A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

Tais turmas têm função não somente de prepará-los para as tarefas nas obras a mento. Os sertanejos, em períodos de secas, não deviam mais esperar, a partir
serem implementadas, mas também na distribuição dos socorros e das palhoças de então, serem inteiramente atendidos em suas necessidades nos locais de tra-
disponíveis. Isso demonstra uma intenção de estabelecer um espaço de convi-
balho e moradia - os currais, as fazendas, as casas dos grandes proprietários.
vência entre os pobres recém-chegados e a população urbana, inclusive os "po- Tornavam-se "retirantes" em direção às cidades, onde poderiam ser socorridos,
bres envergonhados". A ocupação indiscriminada do espaço urbano pelos famin- onde poderiam obter a assistência sem a qual estariam condenados à morte pela
tos incomoda especialmente as elites de Fortaleza, ocupadas em acompanhar o fome.
ritmo da civilização e do progresso. Os caminhos de "retirada", portanto, são modificados durante a seca de 1877.
Outro ponto a merecer atenção - dentre estas novas atitudes com relação aos Se, antes, os trajetos principais eram na procura de áreas mais úmidas ou de
pobres em geral e aos retirantes em particular - é com respeito ao trabalho. currais abandonados das grandes fazendas, agora se estabelece como fundamen-
O estabelecimento de obras públicas na capital e em suas redondezas - para tal o sentido do campo para a cidade.86 A cidade, centro do poder e das decisões
"ocupar" estes retirantes e, ao mesmo tempo, justificar a distribuição dos socor- administrativas, incorpora ainda mais um sentido real e imaginário - o de centro
ros, já que "não deve ser função pública alimentar o ócio e a preguiça" - é uma da assistência aos pobres refugiados. Os retirantes aprendem rapidamente este
nova tentativa de direcionar as já vacilantes energias destes pobres para uma trajeto, incorporam-no às suas estratégias de sobrevivência no semi-árido; e, em
atividade física extremamente árdua e mal remunerada, para que seus ímpetos vista disso, cada vez mais a cidade torna-se o cenário primordial da seca, com a
"revolucionários" ficassem aplacados. O trabalho cumpre uma função moralizante presença constante dos famintos em suas ruas. Assim, ao primeiro sinal de seca,
explícita: a caridade, por si só, leva o pobre à resignação e ao ócio, ao receber as estradas em direção à Fortaleza se enchem de famílias inteiras de agricultores
alimentos e outros benefícios sem contribuir com o esforço de seu trabalho para cujas terras - na maioria dos casos, lembre-se, arrendadas em parceria - se torna-
com a sociedade que lhe sustenta neste momento de crise. É preciso compensar, ram imprestáveis para a agricultura de subsistência. As novas condições - modos
de alguma forma, "os sacrifícios do Estado em soccorro das victimas da sêcca".84 de relacionamento, atitude das populações urbanas, a caridade individual, as obras
Ao mesmo tempo, um novo mercado de trabalho se forma com a presença e iniciativas governamentais — se incorporam ao arsenal de opções que o sertane-
de uma mão-de-obra muito barata e disponível para qualquer atividade. Não só o jo tem à sua disposição dentro dos modelos sociais em que transita, transforman-
carregamento de pedras para o calçamento das ruas, mas a abertura de novas do-se em experiências concretas de vida.
estradas, a construção de prédios públicos e o prolongamento das linhas da estra-
da de ferro são serviços executados pelos retirantes. A expansão da capacidade
do Estado em oferecer obras para a população urbana se expande com esta força 3. Novas experiências
de trabalho utilizada até as últimas consequências; homens, mulheres e crianças,
Uma difícil aprendizagem teve lugar durante estes anos de seca (1877-1880).
indistintamente, sem qualquer limite em termos de tempo e intensidade do esfor- O retirante foi obrigado a travar contato com novas tecnologias, novas formas de
ço, eram incorporados em regime de quase escravidão.85 As obras começam com
moradia, novas hierarquias, novas relações familiares, novas relações com o meio
a seca, incorporando a mão-de-obra dos lavradores sem condições de trabalhar a
urbano, novas percepções sobre o crime e sobre a mendicância etc. Isso possibi-
terra e sem alternativas de outras terras. litou-lhe um acúmulo de experiências que, de certa forma, somaram-se ao "caldo
O "fechamento" das terras para os camponeses joga nas mãos do Estado cultural" do paternalismo em crise, gerando novas percepções e sensibilidades
uma enorme mão-de-obra pouco qualificada, mas submissa e disponível para sobre o social e sobre, especialmente, os critérios de distribuição da riqueza du-
qualquer tarefa. A degradação do homem do campo que se vê obrigado a mendi- rante os momentos de crise e escassez.
gar o coloca, a princípio, disponível para qualquer trabalho, sob quaisquer cir-
Os acampamentos em Fortaleza careciam das mais elementares condições
cunstâncias.
higiénicas. "Alojados em palhoças e á sombra das árvores", os retirantes não
De qualquer maneira, o atendimento assistência! às "vítimas da seca" con- mantinham com o terreno ocupado a mesma relação "ecológica" que mantinham
centrou-se nas cidades de Fortaleza e Aracati, inaugurando um novo mecanis-
nos sertões. A cidade exige novas atitudes com relação ao corpo, à higiene e à
mo de socorro, em que o espaço urbano torna-se o palco principal deste atendi- moral.

52
FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

O governo procurava interferir na localização dos abarracamentos, mas, se- no campo e afastadas do trabalho nas obras públicas, vagar pela malha urbana
gundo Rodolpho Theophilo, a "imprevidência na escolha do local para os aloja- torna-se uma diversão... e uma ocupação para a "companhia da russega". Essa
mentos dos emigrantes fez em breve sentir os seus perniciosos effeitos", ou seja, aprendizagem manifesta-se no momento da reivindicação: a utilização da praça
em função da posição com relação ao vento, em breve as epidemias iriam grassar pública para o protesto, o espaço em frente à Assembleia Provincial transforma-
entre os famintos e se transmitiriam rapidamente por toda a cidade.87 do em espaço de reunião, o enfrentamento com a força policial pelas ruas, utili-
Porém, os que chegavam iam instalando-se aleatoriamente, transgredindo a zando os becos estreitos como trajetos de fuga. Os retirantes, membros de uma
ordem que as autoridades pretendiam impor. A vida em comum nos abarraca- multidão anónima e desqualificada, passam a fazer parte da paisagem urbana.
mentos era nova para os retirantes. Acostumados a uma vida familiar isolada, Por fim, novas tecnologias médicas são colocadas à disposição dos sertane-
nuclear, léguas de distância do vizinho mais próximo, o amontoado de palhoças jos no momento de sua chegada à vida urbana. Portadores potenciais da doença e
impunha uma convivência diferente, em que todos lutam contra todos pelas va- das epidemias, seus corpos tornam-se presas de um sem-número de experiências,
gas nas obras, pela ração diária, pela esmola governamental e privada... Mulhe- visando a proteger a população urbana de uma propagação letal. As vacinas,
res, velhos, crianças e adultos desconhecidos, habitando quase o mesmo espaço, especialmente, ocupavam um lugar importante neste rol de mecanismos de defe-
construíam uma nova rede de sociabilidade que, apesar de transitória, iria deixar sa. Nos abarracamentos, a vacina era obrigatória; no sertão, no entanto, algumas
marcas em todos. dificuldades foram encontradas pelo serviço provincial de saúde.
A hierarquia de poder nos abarracamentos não era de todo estranha para os
sertanejos. Os comissários e seus ajudantes, de certa forma, reproduziam os pa- É, pois, de esperar que sejam acometidos os retirantes, habitantes do sertão,
drões de relacionamento entre proprietários e parceiros, embora a urgência da onde a vacina tem sido repelida com tal horror, que um professor de primei-
situação conferisse aos que distribuíam as esmolas e recrutavam os trabalhadores -ras letras, tendo recebido ordem de só admitir meninos vacinados em sua v-;.,-,«r.a6».- . -.

um poder despótico ainda maior, que eles faziam questão de exercer diretamente escola, viu-se obrigado a fechá-la por não ter um só aluno. 88
em toda a sua plenitude. No trabalho, porém, esta nova hierarquia se apresentava
de forma realmente desconhecida. O trabalho em turmas e sob o comando enér- De qualquer maneira, a presença de médicos no interior dos abarracamen-
gico de um superior contrastava radicalmente com o trabalho familiar e autóno- tos, dedicando-se a atender e a observar cada movimento estranho dos retirantes,
mo desempenhado nas terras arrendadas e representava uma divisão do trabalho tentando prevenir ou neutralizar as epidemias, era uma novidade ambígua. De
mais aprofundada entre executantes e planejadores. Seja no carregamento de pe- um lado, pessoas que, em muitos casos, nunca viram um médico passavam a ter
dras para o calçamento das ruas, seja na construção de alvenaria dos prédios a quem reclamar de suas dores e dúvidas com relação a seu corpo. De outro lado,
públicos, ou seja na construção das linhas de trem, o saber relacionado ao traba- era um estranho a vasculhar os corpos, último reduto de autonomia e intimidade,
lho acumulado pelos camponeses é inteiramente desprezado, com a exceção do tocá-los e maculá-los com a vacina ou outros exames e medicamentos, procuran-
desbravamento das matas para a passagem das linhas férreas. São atividades no- do em cada um a origem do mal que ameaça a todos. A fundação dos lazaretos é
vas e desnecessárias no contexto da vida rural do semi-árido tal como praticado emblemática desta relação. A remoção dos doentes e a mudança dos abarraca-
na agricultura "tradicional". Além disso, a presença de engenheiros, muitas ve- mentos de S. Luiz, Pajehú e Meirelles foi objeto de críticas por parte de alguns
zes vindos da capital do Império ou até do estrangeiro, aumentava a estranheza setores da imprensa - leia-se O Retirante: "Diziam que tão precipitada mudança
do retirante, já que a fonte do poder exercido por eles era o saber e não mais a servia unicamente para augmentar os soffrimentos dos infelizes enfermos, trans-
propriedade. portados sem as cautellas necessárias, á descreção de homens ébrios!"
Por outro lado, a organização da vida urbana, com seus códigos e suas nor- Reconhecendo os abusos desta mudança, Rodolpho Theophilo ainda argu-
mas, era estranha para os sertanejos. Cedo, porém, em função da necessidade de menta pela sua ineficácia, "porquanto a atmosphera achava-se saturada de miasmas
percorrer as casas para esmolar, ou de atravessar a cidade com pedras ou defun- e havia bexigosos em quasi todas as casas".89
tos às costas, os trajetos das ruas, praças e casas tornam-se familiares e conheci- A questão, contudo, é que uma nova experiência vai ser incorporada: o con-
dos. Para as crianças, principalmente, desligadas das atividades normais da vida tato com uma medicina oficial, curativa e intervencionista, que considera o reti-

54 55
FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

rante um foco de doenças e o seu corpo um campo de batalha entre o médico e a s GUERRA, Felipe. "Secas do Nordeste." In: ROSADO, Vingt-un (org.) Memorial da Seca.
Mossoró: Coleção Mossoroense, 1981. p. 231. Cf. também SOUZA, Itamar de. e MEDEIROS
doença. Uma medicina social cujo "primeiro objetivo", como diz Foucault, "é a F.°, João. Os Degredados Filhos da Seca. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1983. p. 52.
análise das regiões de amontoamento, de confusão e de perigo no espaço urba- <• Cearense, 29 de abril de 1877; THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-
,, on
no". 90
1880). Op. Cit. pp. 80, 124-125, 353-354 e 365.
Por fim, todas estas experiências passam a ser parte deste arsenal de com- 'CÂMARA, José Aurélio Saraiva. Fatos e Documentos do Ceará Provincial. Fortaleza: Im-
portamentos possíveis que o sertanejo pobre passa a ter disponível em momentos prensa Universitária, 1970.pp. 110-111.
de seca. Após 1877, estes relacionamentos irão se definir melhor em função da «THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. pp. 81-84 e
repetição de fenómenos semelhantes. 131.
9CEARÁ. Falia com que o Exm. Sr. Dezembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa,
Presidente da Provinda do Ceará, abriu a 2" Sessão da 23" Legislatura da Respectiva Assembléa
Referências bibliográficas no dia 2 de julho de 1877. Op. Cit. p. 39.
"'THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. pp. 103-105.
1 ALBUQUERQUE JR, Durval M. "Palavras que calcinam, palavras que dominam: a inven- "Durante a seca de 1877-79 é que se intensificou o fenómeno do banditismo na região, passan-
ção da seca do Nordeste." Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH/Marco Zero, do a ser conhecido como cangaço." ALBUQUERQUE JR, Durval M. "Palavras que calcinam,
vol. 15, n°28, 1995. p. 120. Para uma interessante comparação com outras secas, Cf. U. Falas palavras que dominam: a invenção da seca do Nordeste." Op. Cit. p. 115. Curiosamente, era
de Astúcia e de Angústia: a seca no imaginário nordestino — de problema a solução. Disserta- seu relatório de 2 de julho de 1877, o Presidente da Província do Ceará faz uma curta menção
ção de Mestrado em História apresentada à UNICAMP. Campinas: 1988. pp. 15-83. A seca a um criminoso chamado "Cangaço".
como fenómeno social complexo é "inventada" em 1877 e, desde então, assume estas caracte- 11 THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880).. Op. Cit. p. 117.
rísticas. Podemos falar, portanto, que a seca, tal como a entendemos, tem origem neste mo-
mento. 12 W. Ibidem. pp. 118 e 332.
13 CEARÁ. Relatório com que o Exm^.Sr. Dezembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pes-
THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (]877-1880). Rio'dèr Janeiro: Impren-
2
sa Inglesa, 1922. p. 71 -72. Sobre a remodelação urbana de Fortaleza nos anos de 1870 a 1930, soa passou a Administração da Provinda do Ceará ao Exm. Sr. Conselheiro João José Ferreira
Cf. PONTE, Sebastião R. Fortaleza Belle Époque Fortaleza: FDR/MuItigraf, 1993.; e CAS- d'Aguiar, Presidente da mesma Provinda, em 23 de Novembro de 1877. Fortaleza: Typographia
TRO, José L. de. Falares de Localização e de Expansão da Cidade de Fortaleza. Fortaleza: do Pedro II, 1877.p. 20.
Imprensa Universitária/UFC, 1977. Sobre as casas comerciais, Cf. TAKEYA, Denise M. Eu- 14 THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (l877-l880). Op. Cit. pp. 81 e 91-92.

ropa, França e Ceará. São Paulo: Hucitec; Natal: Ed. UFRN, 1995. pp. 116-159. Sobre a Gustavo Barroso fala também de "uma batata inculta, sem nome, que existe no sertão, ainda
presença de Herbster em Fortaleza, Cf. NEVES, Berenice Abreu de C. O Engenheiro e a não estudada botanicamente, cujos efeitos tóxicos sobre os órgãos do sistema nervoso da vida
Província: Adolfo Herbster e o Ceará na segunda metade do século XIX Fortaleza: Biblioteca de relação são violentos e rápidos, cegando, emudecendo, ensurdecendo". BARROSO, Gustavo.
Carlos Studart do Museu do Ceará, 1993.; e CASTRO, José L. de. "Contribuição de Adolfo Terra de Sol. (Natureza e Costumes do Norte). 5 ed. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1956.
Herbster à forma urbana da cidade de Fortaleza." Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: n° p. 32.
108, 1994. (Separata) Além do sul dos EUA, outras áreas algodoeiras que faziam concorrência "THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. p. 124.
seriam o Egito t a índia. Coincidentemente, eram territórios de tradicional presença inglesa,
16 W. Ibidem. pp. 118, 171, 97 e 98.
cujas fábricas eram os principais consumidores desse algodão. Cf. JUCÁ, Gizafran N. M. "À
Guiza de Introdução — O Espaço Nordestino. O Papel da Pecuária e do Algodão." In: SOU- 17 W. A Seca de 1915. 2 ed. Fortaleza: Ed. UFC, 1980. p. 55.
ZA, Simone (Coord.) História do Ceará. 2 ed. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1994. 18 Id. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. p. 132.
p. 20.
19 W. A Seca de 1915. Op. Cit. p. 65.
3 CEARÁ. Falia com que o Exm. Sr. Dezembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa,
20 CHAVES, José O. de Souza. Fortaleza e os Retirantes da Seca de 1877-1879: o real de um
Presidente da Província do Ceará, abriu a 2"Sessão da 23"Legislatura da Respectiva Assembléa imaginário dominante. Dissertação de Mestrado em História apresentada a UFPE. Recife:
no dia 2 de julho de 1877. Fortaleza: Typographia do Pedro II, 1877. p. 36.
1995. p. 91.
4 GIRÃO, Raimundo. Evolução Histórica Cearense. Fortaleza: BNB/ETENE, 1985. p. 201. O
21 Cearense, 18 de abril de 1877 e 26 de julho de 1877.
Presidente da Província, por seu turno, calculava em 220.000 os atendidos pelos socorros em
22 CEARÁ. Falia com que o Exm. Sr. Dr. José Júlio de Albuquerque Barras, Presidente da
1878 nas cidades de Fortaleza, Maranguape, Acaraú, Baturité, Pacatuba e Aracati. Cf. CEA-
RÁ. Falia com que o Exm. Sr. Dr. José Júlio de Albuquerque Barras, Presidente da Provinda Provinda do Ceará, abriu a l" Sessão da 24" Legislatura da Assembléa Provincial, no dia 1°
do Ceará, abriu a /"Sessão da 24"Legislatura da Assembléa Provincial, no dia l"de Novem- de Novembro de 1878. Op. Cit. p. 44.
bro de J878. Fortaleza: Typographia Brasileira, 1879. p. 42. Ressalte-se que nem todos os 23 FROTA, Luciara S. de Aragão e. Documentação Oral e a Temática da Seca. Brasília: Cen-
retirantes chegados a estas cidades eram incorporados aos serviços de socorros. tro Gráfico do Senado Federal, 1982. p. 156.

56 57
. ^
FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

24 CEARÁ. Relatório com que o Exm. Sr. Dezembargador Caetano Eslellita Cavalcanti Cf. o próprio THEOPHILO, Rodolpho. Varíola e Vacinação no Ceará. Fortaleza: Oficinas do
Pessoa passou a Administração da Provinda do Ceará ao Exm. Sr. Conselheiro João Jornal do Ceará, 1904.
José Ferreira d'Aguiar, Presidente da mesma Provinda, em 23 de Novembro de 1877.
37 CEARÁ. Relatório com que o Exm, Sr. Conselheiro João José Ferreira de Aguiar passou a
Op. Cit. p. 22.
Administração da Provinda do Ceará ao Exm. Sr. Dr. Paulino Nogueira Borges da Fonseca,
25 Cf. Instruções baixadas pelo Conselheiro Aguiar, Presidente da Província entre novembro
3° Vice-f residente da mesma Provinda, em 22 de Fevereiro de 1878. Op Cit. p. 3.
de 1877 e fevereiro de 1878. Cit. p. THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará
3S THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. pp. 103-110.
(1877-1880). Op. Cit. pp. 160-162.
39 Id. Ibidem. pp. 353-354. Depois de afamada por seus roubos espetaculares, a "companhia
26 D'ALBUQUERQUE, A. Tenório. A Maçonaria e a Grandeza do Brasil. 3 ed. Rio de Janei-
ro: Aurora, s.d. pp. 537-540. da russega" foi o pretexto final para a criação da "Colónia Orphanologica Christina" pelo
Presidente da Província, pressionado pela "necessidade de abrigar a infância orphã". Id.
27CEARÁ. Falia com que o Exm. Sr. Dr. José Júlio de Albuquerque Barras, Presidente da
Ibidem. p. 390.
Província do Ceará, abriu ai" Sessão da 24" Legislatura da Assembléa Provincial, no dia 1°
40 CEARÁ. Falia com que o Exm. Sr. Dr. José Júlio Albuquerque Barras, Presidente da
de Novembro de 1878. Op. Cit. p. 48.
Provinda do Ceará, abriu a l" Sessão da 25" Legislatura da Assembléa Provincial, dia 1° de
28THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. p. 186. julho de 1880. Fortaleza: Typographia Brasileira, 1880. p. 5.
CEARÁ. Falia com que o Exm. Sr. Dr. José Júlio de Albuquerque Barras, Presidente da
2>J
41 THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. p. 194.
Província do Ceará, abriu a I" Sessão da 24" Legislatura da Assembléa Provincial, no dia 1°
de Novembro de 1878. Op. Cit. p. 37. 42 Id. A Fome. Violação. Op. Cit. p. 116.
30THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. pp. 179-180. «THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. p. 172.
A comissão era composta pelo coronel José Francisco da Silva Albano, o Dr. António Pinto 44 Gazeta de Notícias, 12 de setembro de 1878. Apud. CÂMARA, José Aurélio Saraiva. Fatos
Nogueira Accioly e o Padre António Pereira Alencar. e Documentos do Ceará Provincial. Op. Cit. p. 151. A série de reportagens de José do Patro-
^Id. Ibidem. p. 133. cínio, acompanhada de um conjunto de impressionantes fotografias, originou "uma das pri-
meiras tentativas de utilização da fotografia pela imprensa brasileira". ANDRADE, Joaquim
32 M.Ibidem. pp. 133 e 113-114. TheophiIo procurou registrar as desventuras dos migrantes na M. F. e LQG ATTO, Rosângela. "Imagens da seca de 1877-78 no Ceará: uma contribuição para
Amazónia escrevendo o romance O Paroara. Em outro romance, A Fome, de 1890, ele relata o conhecimento das origens do totojornalismo na imprensa brasileira." Anais da Biblioteca
o mesmo episódio com o vapor Pernambuco e ainda comenta: "era a emigração a última Nacional. Rio de Janeiro: v. 114, 1994. p. 74.
desgraça reservada ao cearense; e a emigração forçada, porque não queriam sair e o governo
45 O Retirante, 28 de outubro de 1877. Em sindicância empreendida, em face das denúncias de
da província a isso os obrigava, diminuindo todos os dias os socorros". Id. A Fome. Violação.
Rio de Janeiro: José Olympio; Fortaleza: Academia Cearense de Letras, 1979.p. 127. Segundo "fraudes e engodos", ficou constatado que o "cerne das irregularidades aprovadas se ligam ao
modo de como foi empregado o dinheiro fornecido pelo Império", já que "a escrituração do
Girão, deixaram o Ceará, durante a seca de 1877-1880, 54.875 pessoas, a grande maioria em
Tesouro no Ceará estava em dia". FROTA, Luciara S. de Aragão e. Documentação Oral e a
direção aos seringais da Amazónia. Cf. GIRÃO, Raimundo. Pequena História do Ceará. 4 ed.
Fortaleza: Ed. UFC, 1984. p. 248. Temática da Seca. Op. Cit. p. 155.
46 THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. pp. 326-327.
33 THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. pp. 229 e
240-241. 47 W. Ibidem. pp. 353 e 389.
34 Para o primeiro número, Cf. CHAVES, José O. de Souza. Fortaleza e os Retirantes da Seca 48 W. A Fome. Violação. Op. Cit. pp. 107, 113 e 137-140.
de 1877-1879. Op. Cit. p. 85. (Levantamento com base no jornal Cearense de 05 de novembro 49 W. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. pp. 136-137.
de 1879,03 de dezembro de 1879 e 11 de janeiro de 1880.) Para o segundo, com base no relato 50 CEARÁ. Falia com que o Exm. Si: Dezembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa,
de Rodolpho Theophilo, Cf. PONTE, Sebastião R. Fortaleza Belle Époque. Op. Cit. p. 85. Em Presidente da Provinda do Ceará, abriu a 2"Sessão da 23"Legislatura da Respectiva Assembléa
apenas dois meses de 1877, ainda segundo Ponte, "a epidemia vitimou 27.378 retirantes nos no dia 2 de julho de 1877. Op. Cit. p. 38.
arrabaldes de Fortaleza".
51 "E ao Ceará o que custou a secca de 1877-79?", pergunta o Barão de Studart: "o desapare-
35 THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. p. 238. cimento total da industria creadora, que é a principal riqueza cearense; a ruina de toda fortuna
36 Id.Ibidem. pp. 224-225. No conto Violação, apesar de ter como referência histórica a epide- particular; 180.000 mortos, cabendo á Fortaleza 67.267; 125.000 expatriados, ou a perda equi-
mia de cólera em 1862, Rodolpho Theophilo também relata esta forma de transporte dos cor- valente a 375 mil contos." STUDART, Guilherme Barão de. Climatologia, Epidemias e
pos e manifesta toda a sua indignação ante o "barbarismo" dos carregadores, homens Endemias do Ceará. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 1997 (ed. Fac-sim. Fortaleza:
"envilecidos pela miséria", normalmente "galés" (condenados pela Justiça) a procura de ali- Typ. Minerva, 1909).pp. 45-46.
viar suas penas. Cf. THEOPHILO, Rodolpho. A Fome. Violação. Op. Cit. pp. 248-256. Para "THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. pp. 177-178.
uma pequena análise deste conto, Cf. NEVES, Frederico de C. "Cenas de Civilização e Para uma aproximação muito interessante entre humanitarismo e paternalismo, Cf.
Barbárie." O Povo, Fortaleza: 02.06.95. Suplemento "Sábado", p. 4. Para uma análise das HIMMELFARB, Gertrude. La Idea de Ia Pobreza. Inglaterra a princípios de Ia era industrial.
condições sanitárias em Fortaleza neste período e uma descrição da campanha de vacinação, México: Fondo de Cultura Económica, 1988. pp. 209-223. A autora mostra como a ética

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

paternalista pode ser "autoritária, hierárquica, orgânica e pluralista" e, de certa forma, igual- <w THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. pp. 71-72.
mente humanitária, já que englobava ricos e pobres como parte do mesmo todo social e definia Quanto ao número de mortos, é conveniente destacar a dificuldade que estes observadores
a pobreza como um fato da natureza. tinham para avaliar com exatidão a extensão da mortalidade por toda a Província, assim como
"THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. p. 225. na própria capital. Essa dificuldade permanecerá ao longo de todo o século XX, permitindo
54 Cearense, 25 de outubro de 1877.
avaliações inteiramente contrastantes e díspares. Em face disso, concordamos que, como em
outros contextos históricos, "os números que citaram devem ser considerados com cautela;
55 THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. p. 253. mas o que importa é o que sentiram". MOLLAT, Michel. Os Pobres na Idade Média. Rio de
56 MOORE JR, Barrington. Injustiça. As bases sociais da obediência e da revolta. São Paulo: Janeiro: Campus, 1989. p. 216.
Brasiliense, 1987. p. 682. 70 GIRÃO, Raimundo. Evolução Histórica Cearense. Op. Cit. p. 146.
57 GIRÃO, Raimundo. Pequena História do Ceará. Op. Cit. pp. 85-86. A expressão "civiliza- 71 THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. p. 22. O algo-
ção do couro" é atribuída a Capistrano de Abreu, que afirma ainda que "a criação do gado dão foi, inclusive, responsável pela consolidação de Fortaleza como "capital do estado, sede
influe sobre o modo por que se forma a população". ABREU, J. Capistrano de. Caminhos do poder". Cf. SILVA, José B. da. "O Algodão na Organização do Espaço." In: SOUZA,
Antigos e Povoamento do Brasil. São Paulo: Xerox do Brasil/Câmara Brasileira do Livro, Simone (Coord.) História do Ceará. Op. Cit. pp. 87-91. Cf. também: LEITE, Ana C. O Algo-
1996. (Ed. fac-sim. Rio de Janeiro: Livraria Briguiet, I930.)p. 226. dão no Ceará. Fortaleza: SECULT-CE, 1994. pp. 55-68; e LEMENHE, M" Auxiliadora. As
58 GIRÃO, Valdelice C. Ai Oficinas ou Charqueadas no Ceará. 2 ed. Fortaleza: SECULT-CE, Razões de uma Cidade. Fortaleza: Stylus Comunicações, 1991. pp. 97-125.
1995.p. 101. 72 Os índios foram subitamente declarados extintos com a simples afirmação de que "já não
59 BARROSO, Gustavo. Terra de Sol. Op. Cit. p. 44. existem aqui Índios aldeados ou bravios". Assim, a proteção dada por lei aos aldeamentos foi
60 ARAÚJO, M" do Carmo R. "O Poder Local no Ceará." In: SOUZA, Simone (Coord.) His-
suprimida. Cf. CEARÁ. Relatório apresentado á Assembléa Legislativa Provincial do Ceará
tória do Ceará. Op. Cit. p.~109. pelo Exm. Sr. Dr. José Bento da Cunha Figueiredo Júnior. Ceará: Typographia Cearense,
1863. p. 19.
61 Cf. BARREIRA, César. Trilhas e Atalhos do Poder. Conflitos Sociais no Sertão. Rio de
73 GIRÃO, Raimundo. Evolução Histórica Cearense. Op. Cit. p. 154.
Janeiro: Rio Fundo, 1992. pp. 81-83.
74 CEARÁ. Falia com que o Exm. Sr. Dr. José Júlio de Albuquerque Barras, Presidente da
62 BARROSO, Gustavo. Terra de Sol. Op. Cit. pp. 187-188.
Provinda do Ceará, abriu a 1° Sessão da 24" Legislatura da Assembléa Provincial, no dia l
63 Em outras palavras, "em região onde a maioria da população vive da pequena agricultura, a
de Novembro de 1878. Op. Cit. p. 20.
falta de chuvas suficientes para as colheitas e pastagens forçosamente abala e desorganiza a
75 PINHEIRO, Francisco J. "O homem livre/pobre e a organização das relações de trabalho
economia e a própria vida da sociedade". GUERRA, Paulo de B. A Civilização da Seca.
no Ceará (l 850-1880)." Revista de Ciências Sociais. Fortaleza: vol. 20/21, n° 1/2, 1989/1990.
Fortaleza: DNOCS, 1981. p. 21. Mesmo assim, é conveniente ressaltar que a expressão "chu-
vas suficientes" se refere não só à quantidade, mas à regularidade. No semi-árido, a chuva "cai p. 199.
76 THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. p. 352.
irregularmente no correr dos anos; irregularmente no correr de uma mesma estação e irregu-
larmente sobre a própria superfície". LISBOA, Miguel R. Arrojado. "O Problema das Secas." 77 Muitas são as teorias desenvolvidas a respeito das causas da escassez ou irregularidade das
Boletim DNOCS. Rio de Janeiro: v. 6, n" 20, nov/1959. pp. 42-55. chuvas. Nenhuma delas, todavia, conseguiu estabelecer-se como "verdadeira". Há, por exem-
64 THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. pp. 77-78. Cf.
plo, a teoria das "correntes aéreas" e a das "manchas solares", muito comuns até as primei-
também: ANDRADE, Manuel C. de. A Terra e o Homem no Nordeste. 5 ed. São Paulo: Atlas, ras décadas do século XX. Cf. GIRÃO, Raimundo. Evolução Histórica Cearense. Op. Cit.
1986. p. 159. pp. 183-193; THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. pp.
431-436; ALVES, Joaquim. História das Secas (Séculos XVII a XIX). Fortaleza: Edições do
65 SCHWARZ, Alf. "Lógica do desenvolvimento do Estado e lógica camponesa." Tempo So- Instituto do Ceará, 1953. p. 242; SOBRINHO, Tomaz Pompeu. História das Secas (Século
cial. São Paulo: vol. 2, n" l, 1990. pp. 85-86. XX). Fortaleza: Ed. BatistaFontenele, 1953. pp. 61-75. Hoje, a ciência atribui a ocorrência da
66 ALEGRE, Sylvia Porto. "Fome de Braços - Questão Nacional. Notas sobre o Trabalho livre seca, assim como das enchentes no sul, a um fenómeno conhecido por "El Nino", em que há
no Nordeste no século XIX." Revista de Ciências Sociais. Fortaleza: vol. 20/21, n° 1/2, 1989/ um aquecimento extraordinário das águas do Oceano Pacífico, dificultando a formação de
1990. p. 127. nuvens sobre o nordeste do Brasil. Com a análise dos primeiros efeitos deste fenómeno, seria
67 STUDART, Guilherme Barão de. Datas e Factos para a História do Ceará. Vol. 2. Fortale- possível prever as ocorrências meteorológicas para o ano seguinte. Já os "profetas populares",
za: Typographia Studart, 1896. p. 43. Para os depoimentos de João Brígido e do Senador por sua vez, procuram indícios nos próprios fenómenos da natureza para prever a chegada da
Pompeu, Cf. GIRÃO, Raimundo. Evolução Histórica Cearense. Op. Cit. pp. 195-196. Sobre a seca, tais como o comportamento sexual das lacraias, as orelhas ou os testículos dos jumentos,
"guerra civil", Cf., por exemplo, ARAÚJO, M' do Carmo R. "A Participação do Ceará na a produtividade das abelhas, a posição dos astros, os pulos dos peixes no mar, o coaxar dos
Confederação do Equador." In: SOUZA, Simone (Coord.) História do Ceará Op Cit pp sapos e a observação de determinadas plantas. Cf. O Povo, 17 de novembro de 1997.
145-154. 78 Ou 60.000 sobre 5.000 no caso de Aracati e 32.000 sobre 3.000 no caso de Mossoró-RN.

68 THÉBERGE, Pedro. "Extractos." Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: n° 25 1911 p w SOBRINHO, Thomaz Pompeu. O Problema das Seccas. Ceará: Typo-lithographia Gadelha,
231. 1917. p. 24-25.

60
l 61
FREDERICO DE CASTRO NEVES
CAPÍTULO II
79Cf. NEVES, Frederico de C. "A Seca e o Homem: Políticas Anti-migratórias no Ceará."
Travessia. Revista do Migrante. São Paulo: CEM, n" 25, maio-agosto, 1996. pp. 18-24.
80 Elias Canetti fala do "temor do contato" como o "temor do contato com o desconhecido", o
que também, de certa forma, se relaciona com o nosso tema; acrescenta que este temor é de
natureza individual e só é superado pela experiência coletiva: "somente na massa é possível ao
homem libertar-se do temor do contato". Cf. CANETTI, Elias. Massa e Poder. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995. pp. 13-14.
81CEARÁ. Falia com que o Exm. Sr. Dezembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa,
Presidente da Província do Ceará, abriu a 2" Sessão da 23" Legislatura da Respectiva Assembléa
no dia 2 de julho de 1877. Op. Cit. p. 37.
82CEARÁ. Falia com que o Exm. Sr. Dr. José Júlio de Albuquerque Barros, Presidente da
Provinda do Ceará, abriu a l" Sessão da 24" Legislatura da Assembléa Provincial, no dia l
de Novembro de 1878. Op. Cit. p. 42.
83 CEARÁ. Falia com que o Exm. Sr. Dr. José Júlio Albuquerque Barros, Presidente da
Provinda do Ceará, abriu a Ia Sessão da 25" Legislatura da Assembléa Provincial, no dia 1° I. Primeiras Experiências
de julho de 1880. Op. Cit. p. 61. Ao mesmo tempo, "a construção de obras públicas e de
núcleos coloniais para ocupar a população pressupunha a ideia de que o desemprego só pode- O final do século XIX assiste a mais duas secas, em 1889 e 1900. Nestas,
ria ser combatido através de atividades físicas árduas e mal remuneradas". DINIZ, Ariosvaldo assim como nas seguintes, as mesmas cenas de miséria, doenças, crimes e morte.
da S. "O trabalhador pobre no imaginário das elites nordestinas (1850-1920)." In: GARCIA O quadro "objetivo" não se altera significativamente, mas a surpresa revelada
JR, Atrânio et alli. Brasil Norte e Nordeste. Estudos em Ciências Sociais. Rio de Janeiro:
ANPOCS, 1991. p. 34.
por estas cenas em 1877 já não é a mesma. De certa forma, a surpresa vai sendo
84 Cf. ALBUQUERQUE JR, Durval M. Falas de Astúcia e de Angústia. Op. Cit. p. 72.
substituída pelo temor e pelo desprezo, que se combinam paradoxalmente com
85 Id. Ibidem. p. 70. uma cada vez mais relutante solidariedade cristã.
86 THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. p. 102. Retomar estes relatos significa refazer o percurso de constituição do rela-
87 O Retirante, 08 de julho de 1877. cionamento entre retirantes e a cultura urbana, entre a multidão de pobres e a
88 THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. p. 231-232. população das cidades, entre famintos desesperados e as autoridades estatais.
89 FOUCAULT, Michel. A Microfísica do Poder. 7 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988.p. 90. Assim, não se trata apenas de horrorizar-nos com as descrições - como faz
Raimundo Girão, para quem "seria porventura sadismo repetir ou repintar ta-
manhas desgraças, só para descrever outras igualmente dolorosas, verificadas
em 1888, 1900, 1915, 1919, 1932, 1942, 1952, 1958, 1980-84, números que
valem como negras cruzes às margens de uma estrada de expiações, aberta
friamente pelo destino para um povo andar e tropeçar". Porque, se "não muda-
riam as cenas, nem o painel, nem os protagonistas, nem o enredo",1 certamente
mudariam experiências importantes para o delineamento de novas sensibilida-
des urbanas e novas estratégias de relacionamento com os pobres em períodos
de secas.

O debate, no momento da seca de 1889, girou em torno da imigração dos


retirantes para o sul do País e da criação da Hospedaria Geral de Emigração,
instituição fundada pelo novo Presidente da Província, o paulista Caio Prado,

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

com "o fim de acolher, durante a curta demora nesta capital, os infelizes que, As noticias que temos do interior principalmente do norte da província são
acossados pela secca, tentavam escapar ao flagello pela emigração, e asylar tem- desoladoras. Em Sobral já morre gente de fome; em Santa Quiteria, Ipú e
porariamente o inevitável excedente do pessoal admitido nas diversas obras de Tamboril a população está completamente desanimada. Em toda parte a
secca assume proporções aterradoras; e os poucos géneros alimentícios ex-
soccorros, excedente em grande maioria composto de mulheres, creanças, velhos
postos á venda são por preços extraordinários, incompatíveis com os recur-
e valetudinários, que só na assistência do estado podiam encontrar meios de so-
sos dos pobres.
breviver aos rigores da calamidade".2
Depois de chuvas insuficientes em 1888, as perspectivas para o ano seguinte Neste momento, é a região norte da província a que mais sofre os efeitos das
não eram as mais otimistas. Já em janeiro se publicam notícias e outras notas migrações. "Sobral, porem, pelo annuncio dos trabalhos da via férrea, tem sido o
relacionadas à seca ou até mesmo um "Bemdito da secca". ponto central para onde teem convergido os mais indigentes".7 A simples expec-
tativa da organização de uma obra pública já se torna um pólo importante de
Estanques as fontes, as plantas sem vida,
atração para os retirantes à procura de assistência.
Os rios a secco, em triste aridez,
Assim, ao final de março, já 23.600 operários se achavam empregados em
Desfeião, enluctão da terra os encantos
diversas obras públicas espalhadas pela província, especialmente na construção
Que outr'ora o inverno a custo refez,
E os filhos coitados, da terra inditosa de açudes.8 A seca já era uma realidade! No entanto, não havia consenso entre os
Debandão sem rumo, sem norte a seguir, jornais a respeito das medidas a serem empregadas na ajuda aos retirantes de
Exhaustos, procuram paizes mais férteis mais esta seca.
Da secca e da fome procurão fugir. Para alguns, "é impossível fugir á imigração" e, "conquanto não se possa
. -. - , * ~ . . . - . - . contestar que seja um mal para a província, todavia todos reconhecem que é um
Da fome, da secca, mal inevitável". Isto porque a seca que se instala em 1888 e 1889 tem caracterís-
De todo este horror, ticas especiais que a tornam, em certos aspectos, pior do que a de 1877-80.
Da peste horrorosa, Esta grande estiagem, segundo o Constituição, "veio em seguida a grandes
Livrae-nos, Senhor.3 invernos e encontrou a província inteiramente abastecida de agua", o que não
acontece neste momento, já que "d'ahi para cá ainda não houve um inverno que
Em Sobral, "é contristador o espectáculo de miséria que todos os dias assisti- fizesse agua em grande quantidade e actualmente essa está faltando em todas as
mos e a extrema penúria a que tem chegado a população pobre d'esta localidade": localidades do interior". Assim, "em S. Benedito, por exemplo, um dos logares
"caravanas de milhares de famintos em grande numero vindos de vários pontos da mais frescos, está já secco um açude que resistiu até 78". Com isso, o fluxo de
província em busca de trabalho na via-ferrea de Sobral, percorrem diariamente as retirantes para a capital torna-se gigantesco, e "as obras publicas, açudes e estra-
ruas d'esta cidade implorando a caridade particular, já justamente esgotada".4 das de ferro, que há projetado o governo, por mais numerosas que sejam, nunca
Observa-se novamente que "os sertões fazem-se de todo inhabitaveis, por serão sufficientes para dar trabalho a todos os necessitados". Neste interessante
falta absoluta de meios de subsistência, e as populações movem-se precipitada- artigo, o articulista ainda faz observações pertinentes a respeito dos próprios reti-
mente, fugindo á fome". De novo, "as caravanas de retirantes apresentam aspec- rantes. Segundo ele, os que primeiro se retiram, "logo que faltam as chuvas", são
to repulsivo", compostas de seres "magros como esqueletos, andrajosos, semi- "aquelles que dispõem de menos recursos, que não possuem terras e vivem ex-
nus, famintos, homens e mulheres carregando a rede suja, ultimo bem de que se clusivamente de trabalhar a jornal para os proprietários"; estes, no entanto, não
separam, e filhos rachiticos, doentios, lívidos de fome ou opilados de alimenta-
são os "mais infelizes".
ção selvagem e toxica".5
A expectativa com relação ao ano de 1889 é das piores: "pouco falta infeliz- Os creadores de pequena escala, se assim nos é permittido chamal-os,
mente para que se possa dizer que a secca está definitivamente declarada em aquelles que possuem um pedaço de terra, que hão preparado terrenos para
1889", "ainda é geral a descrença que reina a respeito de novo inverno".6 a lavoura, que possuem alguns bens; esses só abandonam suas terras quan-

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FREDERICO DE CASTRO NEVES
A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

do há desapparecido o ultimo resto da sua minguada fortuna. Faltando as


Caravanas enormes de pessoas trapilhas, inanidas, entram diariamete nesta
chuvas em Janeiro, appellam para Março e quando faltam em Março,
capital, e são recolhidas na celebre hospedaria, a espera que o governo lhes
appellam ainda para Abril. Resulta d'ahi que quando resolvem emigrar,
mande atirar á praia de qualquer província do sul, onde substituirão os es-
estão completamente esgotados.9
cravos, ou do norte, para serem devorados pelas febres, que ali são
endémicas! 12
Esta divisão no interior dos retirantes e as dificuldades para a assistência daí
decorrentes justificariam, segundo este jornal, a opção pelo estímulo à imigra- A "expatriação forçada" é apresentada como um ato de violência cujo prin-
ção. As caravanas de famintos vão se avolumando ao longo do ano seco, com as cipal responsável é o Presidente da Província, o conservador Caio Prado - que,
condições de saúde piorando cada vez mais, obrigando não só a um aumento de além de conservador, é paulista. O Cearense questionava: "Que significa mandar
admitidos nas obras públicas, como também exigindo um volume ainda maior de o Sr. Caio recrutar emigrantes nas vésperas de vapores para o Sul, mandar trancai-
alimentos a serem distribuídos imediatamente aos que chegam à capital ou às os no asylo, fazel-os acompanhar, escoltados por soldados, até a praia e forçal-os
cidades maiores da província.
a embarcar quando a isto se recusam? Que significa tudo isso??!"
Para o Cearense, no entanto, a questão se colocava de outra forma, que, O embarque violento e desrespeitoso é denunciado. A presença de 47 praças
evidentemente, assumia colorações mais políticas do que humanitárias. A migra- com alferes, ajudante de ordens da presidência e o comandante do corpo de polí-
ção estimulada aparecia aqui como "uma deshumanidade que se está praticando cia, segundo o jornal, demonstra o caráter de obrigatoriedade da opção pelo sul,
para com os nossos infelizes irmãos", "uma affronta que se está fazendo aos brios além do interesse direto do governo provincial. Ao mesmo tempo, "quando al-
do Ceará"!10 Além de despovoar a província, impedindo seu desenvolvimento guns dos infelizes recusam alistar-se para aquelles portos e imploram passagens
económico em períodos "normais", a destinação preferencial para o sul do País, para a região amazonica, não tem ingresso no asylo, porque é esta a ordem do
onde os migrantes eram recebidos por representantes do próprio governo imperial,
presidente da província". 13
demonstrava espúrias intenções. Assim, se a migração é inevitável, "é natural
O Cearense, numa série de artigos, denuncia a presença de "duas crises" que
que se procure colocar taes braços nos logares mais próximos e ricos afim de que,
assolam devastadoramente a província: a seca e o governo Caio Prado. O "Bemdito
passada a crise, possam voltar a província onde não só deixam familia, como até
da Secca" já incluía uma quadra relativa ao Presidente.
bens de raiz". Neste período, pelo menos para o jornal, "a abundância dos recur-
sos naturaes da região amazonica não pode ser comparada com a das regiões do
Aguirre cruel
sul do Império", e "o emigrante ali chegado pode, pois, sem depender de ninguém,
Nos rege, que horror!
applicar-se a industria extractiva daqueles produtos, existentes em terrenos quasi
Do lobo do prado
devolutos, e em pouco tempo constituir um património regular". A preocupação Livrai-nos, senhor!
com uma dada forma de inserção económica torna-se argumento, já que o que
está em jogo é a possibilidade de retorno dos cearenses à província e que isso seja
Mas este tratamento desumano é contestado por outros observadores.
feito com benefício para o Ceará. Portanto, se "o emigrante do Sul tem que sujei-
Lassance Cunha, por exemplo, engenheiro encarregado da construção do prolon-
tar-se ao salário que jamais o enriquecerá", já que "raras vezes passará de traba-
gamento da estrada de ferro de Baturité, afirma que "o retirante, antes de embar-
lhador assalariado", "no Amazonas o emigrante cearense pode tornar-se rico
car, era despojado dos andrajos imundos que lhe cobriam a nudez e vestido con-
proprietário"."
venientemente, e a bordo tinha para fiscalizar seu bom tratamento, um emprega-
Ao mesmo tempo, colocava-se em questão a liberdade de escolha dos
do da província, para tal fim comissionado, que o acompanhava em toda a via-
próprios retirantes: ir para o sul, onde o desconhecido o espera, ou ir para o
gem".14 O Constituição trava um intenso debate com o Cearense a respeito desta
norte, onde uma extensa rede de conhecimentos já está estabelecida desde a
questão e denuncia também, por sua vez, a presença de "duas crises": a seca,
última seca. O tratamento dispensado aos retirantes é motivo de denúncias
freqiientes. como calamidade climática, e "o demónio da calunia e da difamação, como cala-
midade moral". 15

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A MULTIDÃO E A HISTÓRIA
FREDERICO DE CASTRO NEVES

capricho, pelo arbítrio soberano e absoluto dos encarregados de sua construção".


A Hospedaria Geral dos Emigrantes também é objeto de denúncias, apesar
Uma grande preocupação com a racionalidade no planejamento e execução das
da divulgação pela imprensa de um relatório bastante auspicioso. Segundo seu
medidas assistenciais passou a fazer parte do vocabulário dos socorros públicos
Inspetor, o Capitão Manoel Thomé Cordeiro, "é completo o seu estado de acceio"
em tempo de seca e o controle sobre as despesas torna-se questão central na
e "não pode ser mais lisongeiro o estado sanitário deste estabelecimento". Nos
organização destas medidas. Por outro lado, outras preocupações motivavam esta
meses de janeiro e fevereiro de 1889, circularam pela Hospedaria cerca de 11.200
retirantes, chegando a estarem asilados 3.000 ao mesmo tempo, mas, apesar des- atitude.
ta aglomeração, "não se deu o menor distúrbio, graças a Índole pacifica do cearense
Além disso, essas obras constituem grandes agglomerações de povo em
e ápromptas medidas por mim adotadas". Destas pessoas, 4.744 foram embarcadas
alguns pontos da provincia, as quaes eu avalio em mais de 140 mil pes-
para o sul e 4.043 foram para o norte do País, sendo registradas 42 mortes e 312
soas, que fora das terras de lavoura, deixão passar o tempo de as preparar
dispensas, restando ainda em março 1.580 hospedadas à espera de embarque.16 para plantação, de modo que chegando o tempo das chuvas, essa grande
A morte do Presidente Caio Prado implica a mudança da política com rela- parte da população nada plantará, e nada poderá colher para sua manuten-
ção aos retirantes. O novo Presidente, desde a posse, já antecipa um estratégia de ção durante o anno seguinte; e, então, ou continuará a pezar sobre os
desmonte das medidas tomadas pelos adversários. cofres públicos, ou se constituirá elemento permanente de perturbação da
ordem publica.
Encontrei os serviços relativos aos soccorros ministrados a população
flagellada pela secca nesta província, em completa anarchia; e trabalho com Uma massa de pobres aproximando-se lentamente dos centros de poder vai
afinco para não só introduzir a ordem e o methodo nestes importantes servi- progressivamente atemorizando as autoridades provinciais novamente, estimu-
ços, como diminuir as despezas que com elles_se tem feito que, creio, pode-
lando o aparecimento de frequentes discursos de defesa da ordem. Os aconteci-
rão baixar de dous terços. Aproximando-se a época do preparo e amanho
mentos de 1887-1880 retornam à memória como lições a serem aprendidas ao
das terras para as plantações, ordenei aos chefes dos serviços da secca que
lidar com a multidão de retirantes. A política conservadora de Caio Prado contri-
fossem colocando progressivamente, porem sem interrupção, os retirantes
buía, segundo o novo governo, para a organização e fortalecimento desta nova
que conservão sob sua direção, nas terras que devem cultivar, afim de as
prepararem para receberem as plantações na época própria; fornecendo- entidade - a multidão —, que passa a fazer parte da cena política e social, embora
lhes alimentos até a primeira colheita, e fiscalisados os seus serviços de não seja reconhecida como um agente político.
lavoura, de modo que só possão obter bilhete para receberem géneros Ao mesmo tempo, como não podia deixar de ser, a preocupação política se
alimentícios os que effectivamente trabalharem nessas terras, salvo caso de combina com motivações de ordem moral para o estabelecimento de um novo
força maior, ou impossibilidade real para o trabalho.17 padrão de relacionamento com os retirantes. Mesmo não os reconhecendo pro-
priamente como sujeitos, o Presidente os situa como agentes da desordem, que
A opção era clara daí em diante: redução dos serviços públicos, fim da polí- ameaçam a moralidade e a lei estabelecidas pela sociedade dita "civilizada". Os
tica de migrações, com o fechamento da Hospedaria, e estímulo ao internamento pobres e sua vida promíscua, mais uma vez, aparecem como foco de doenças,
dos retirantes de volta à suas terras, sustentando-os até a primeira colheita. Para a crimes e vícios do corpo e da alma. Aquilo que é uma condição da pobreza apa-
nova situação, "era intuitivo que o governo tomasse o patriótico encargo de rece como condição intrínseca dos homens pobres.
soccorrer a população, animando-a ao mesmo tempo para o trabalho, localizan-
do-a e evitando o êxodo que é a maior desgraça desta laboriosa província".18 Finalmente, essas grandes agglomerações de homens, mulheres e crianças,
O Senador d'Ávila mandou, em instruções expedidas algumas semanas após vivendo em commum, em posição miserável, têm ocasionado uma depres-
a posse, "parar com todas as obras em andamento por conta da verba de soccorros são moral verdadeiramente assustadora em grande parte da população da
públicos", convencido de que "nenhuma destas obras está sendo construída ten- provincia. O vicio da embriaguez, a devassidão de costumes, a prostitui-
ção, o jogo e todos os vícios, se desenvolvem espantosamente nessas
do por base um estudo e um orçamento previamente organisado, sendo, pelo
contrario, todas iniciadas e dirigidas, em sua construção, exclusivamente pelo agglomerações de povo, contaminando-as.'9

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

Novamente o espectro de 1877 paira sobre as elites cearenses. As denúncias certamente incomodava uma grande parte da população urbana, fato que se refle-
de um comprometimento moral que acomete a população pobre - e que se propa- te nas críticas dos jornais de oposição. Um contato, por outro lado, que não tarda
ga rapidamente, como as epidemias - retornam à mente da população urbana. em se tornar difícil e conflituoso.
Estudos científicos sobre os efeitos da fome no organismo são unânimes em afir- Em Pacatuba, no dia 1° de setembro de 1889, "houve grossa pancadaria nos
mar que "a exaltação do calor e da acção do sol acentua as psychoses tropicaes, infelizes retirantes que, agglomerados á porta do armazém, esperavam que lhes
que também se aggravam pelas modificações provenientes de um estado de ane- pagassem as rações e desenganados tentaram apoderar-se dos viveres". Dois dias
mia excessiva".20 A obsessiva preocupação com o crime e com a prostituição irá depois, a tentativa foi melhor sucedida, quando os "pobres trabalhadores famin-
figurar mais de uma vez nas propostas de relacionamento com os retirantes que tos que o Sr. Ávila tenta matar á fome, deixando-se arrastar pelo instincto da
chegam às cidades em tempos de seca. própria conservação, penetraram hoje pelas 8 horas da manhã no armazém do
E, de certa forma, a expectativa de uma perturbação da ordem é confirmada deposito de viveres, á estrada de Mecejana, conseguindo retirar alguns volumes";
pelos acontecimentos. Se, antes da morte de Caio Prado, os conflitos se davam a repressão não demorou, e, perseguidos, alguns foram presos e, "com a mais feia
nos próprios locais organizados para recepção e embarque dos retirantes, como a perversidade, espaldeirados brutalmente". No dia seguinte, "uma multidão de
Hospedaria, os locais de obras e o porto, no governo do Senador d'Avila a rua cerca de 400 pessoas, homens e mulheres, atacou o deposito de viveres no Pagehú",
passou a ser o palco de novas cenas de confronto entre a multidão e as forças mas, desta vez, "não houve pancadaria". No dia 6, "um grupo de famintos, mu-
policiais, sendo registradas pontualmente pelos jornais. lheres pela maior parte, atacou três carroças que conduziam viveres da intendência
Com o fim das obras e o fechamento da hospedaria, para a tal casa de soccorros da Jacarecanga e tomou vinte e tantas saccas de
géneros diversos". Em Baturité, área serrana próxima à capital, "homens, mulhe-
- - numerosa multidão de famintos, que avulta de dia em dia, agglomera-se res e crianças, em numero avultado, á porta do armazém de soccorros, ameaçam
andrajosa e mendiga em torno do palácio do governo ou dispersa-se pelos arrombar as portas" e o correspondente afirma que "qualquer demora nas provi-
subúrbios, azylando-se á sombra das arvores, improvisando ranchos dencias produzirá inevitáveis desordens". A sequência de conflitos leva as auto-
miseráveis, nos terrenos devolutos, mendigando ás portas das casas comer- ridades a reverem sua posições e, em 20 de setembro, o "vice-presidente da
ciais e particulares.
província restabeleceu o regimen de trabalho, como meio de prestar soccorros ás
victimas da secca".22
Uma multidão heterogénea, formada de "turmas de operários dispensados de va- No entanto, alguns episódios ainda permanecem assombrando as elites lo-
rias obras em execução", "caravanas de retirantes que se destinavam á Hospeda- cais com o perigo da desagregação social.
ria de Emigração" e os que Em Barbalha, zona sul da província, "um grupo de 500 pessoas atacou o
armazém de géneros do governo e conduziu tudo que alli havia" e o jornal afirma
affluem de toda parte, não só necessitados como vadios, da população fixa que "o povo está amotinado e receia-se desordens". Os armazéns de Burity e
ou adventícia, arrastados pela seducção dos soccorros directos, distribuídos Milagres foram igualmente atacados e saqueados. No Crato, "um grupo de ho-
largamente, a pretexto da internação das populações que o governo enten- mens atacou o armazém de soccorros á cargo da comissão nomeada pelo vice-
deu opportuno nesta ephoca, em pleno rigor da secca, empregai-as em tra- presidente arrebentando á pedradas as portas e, engrossado este grupo por cerca
balhos de lavoura. 21
de duas mil pessoas que affluiam de diversos lados, conduziu tudo o que havia no
armazém". Se aqui não houve reação policial, em Burity o delegado prendeu um
Uma forma de relacionamento baseada na oferta de trabalho, mesmo que certo Canuto, que, "reunido a um grupo de desordeiros", teria sido responsabili-
desordenado e infrutífero, é, assim, substituída pela distribuição de alimentos, na zado pelo ataque; esta prisão detonou um grande tiroteio na cidade, que resultou
certeza do retorno das chuvas e das condições de plantio. em mortos e feridos. 23
Contudo, a proteção dos pobres em tempos de crise, assumida diretamente, Uma certa aprendizagem, a respeito do momento exato de realizar a pressão
impõe à cidade um contato diário com uma massa crescente de famintos, o que já direta, ia acontecendo entre os retirantes.

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II preendida a afirmação de que "Fortaleza não parecia uma cidade civilisada e


christã, parecia uma terra de bárbaros".25
Em 1900, de fato, "não mudariam as cenas" em que se viam envolvidos os O barbarismo, para o ilustrado farmacêutico, é a negação dos hábitos da
homens do campo, com a chegada de uma nova seca. O novo Presidente do Esta- civilização duramente construídos ao longo de uma vivência urbana considerá-
do, logo ao desembarcar na capital, se deparou com "o mais tocante e vivo teste- vel; hábitos que se constituem num conjunto de condicionamentos adaptados à
munho da infeliz situação dos retirantes de vários pontos do interior do Estado, situação de uma vida equilibrada e, principalmente, sob o controle moral e polí-
agglomerados na praia, sob as arvores, em completo desabrigo, expostos aos tico de uma elite consciente de seu papel de portadora do progresso.
raios de um sol abrasador", chamando a sua atenção "o aspecto da nudez, da O novo Presidente procura encontrar uma "base estável de um plano de
fome, da miséria que a todos attribulava". 24 assistência publica, organisado de modo a produzir salutares effeitos, medidas
A desestruturação da pequena lavoura pela seca colocava novamente os ar- definitivas no presente e no futuro, além de outra medida, de expediente provisório,
rendatários e, posteriormente, os pequenos proprietários na estrada, em busca enquanto aquellas não fossem decretadas". Sem outras alternativas à vista, o pla-
dos "socorros", sujeitos a todas as angustiantes atribulações do trajeto para a no não inova: como medidas definitivas, "a construção de açudes e prolonga-
.
capital ou outra cidade do litoral. "A emigração do interior do Estado para a mento das estradas de ferro, em trafego no Estado"; como medida provisória, "a
Fortaleza augmentava todos os dias", comentou Rodolpho Theophilo, e, em pou- emigração da população adventícia que, accumulada na capital, desassistida de
co tempo, "a situação do Ceará ia se tornando cada vez peior". todo regimen hygienico, no auge da miséria, vivendo ao relento, era um perigo
As ruas ocupadas por uma multidão de pedintes andrajosos, a perambular para a saúde publica, que a mais vulgar prudência aconselha conjurar".
pelas casas e praças, em busca de ajuda, de esmolas e alimentos, davam a sensa- A tentativa de manter a população de retirantes longe dos limites das cidades
ção de uma cidade ocupada: para a população urbana e seus representantes polí- mais importantes, especialmente a capital do Estado, torna-se cada vez mais evi-
ticos ou seus intelectuais, restava a ideia de que estavam "completamente sitia- dente agora. As obras públicas a serem implementadas teriam uma função não só
dos por uma columna de famintos trapilhos". de equipar o Estado de um sistema de armazenamento dágua capaz de fazer fren-
Como sempre, a caridade individual ou particular procurou dar conta dessa te à irregularidade de chuvas, mas principalmente de manter o homem do campo
população de famintos, com esmolas e distribuição de alimentos, seja nas casas, no campo, longe das cidades onde se torna um perigo para a salubridade social.
conforme apareciam os pedintes, seja em situações organizadas por grupos de Se estas obras não fossem suficientes, e mesmo com elas a capital se enchesse de
senhoras ou associações beneficentes. O volume das migrações, no entanto, em "bárbaros", a solução é a transferência destes retirantes para o Pará e o Amazo-
meados do último ano do século XIX já superava a capacidade da população nas, "cujos Governadores, revelando sua sympathica solidariedade com o infor-
urbana em atender, com socorros, às necessidades urgentes dos retirantes sem a túnio do Ceará, buscavam acolher seus filhos, estendendo-lhes mão protectora e
ajuda, apoio e organização do Estado. Dito de outra forma, isso significava que amiga, no seio dos seus Estados". A migração para a região amazônica é preferí-
"a caridade particular por maior que fosse já não podia alimentar a população vel, segundo ele, do que o desconhecido sul do País, pois, entre outros motivos,
esfomeada que vagava pelas ruas da capital de manhã á noite". "aos cearenses não se afigura um exílio a emigração para esses dous Estados do
Por outro lado, a desordem provocada pela pressão que a chegada desta massa Norte, ligados ao nosso por estreitas ligações commerciaes e outras ordens de
"adventícia" exerce sobre os equipamentos urbanos gera a percepção de uma interesses, há muito estabelecidas e que lhes facilitam promto regresso á terra
desagregação da sociabilidade, ameaçada por hábitos, procedimentos e necessi- natal".26 A questão levantada aqui tem a ver com a debandada de braços, fre-
dades incompatíveis com os ditames da modernidade. Sistemas de esgotos, água quentemente denunciada pela oposição em 1889, despovoando o interior e tra-
potável, iluminação, arruamento, controle de doenças, vestimentas, moralidade zendo enormes prejuízos para os produtores, que, ao passar a seca, procuram
de comportamentos, locais de encontros e lazer, tratamento interpessoal, todos retomar suas atividades normais.
esses elementos se viam transgredidos pela presença dos retirantes, que, além de "Atividades normais", aliás, frequentemente idealizadas pelas autoridades
esfomeados, eram analfabetos e desconheciam essa rede de relações que confor- ou pelos jornalistas como resultado de uma terra fecunda que gera riquezas incal-
ma a cidade e delimita a experiência urbana. Neste sentido é que pode ser com- culáveis. O período de chuvas, ao contrário do período de seca - apresentado

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como tempo trágico -, é mostrado como a época da fartura e da bonança. Um era normalmente protelado ao máximo e as verbas chegavam ao Estado com
artigo de jornal, assinado por Mário Netto, ilustra muito bem este conjunto de atraso, depois de um grande endividamento do governo estadual. Em 1900, so-
representações. Durante os invernos, segundo ele, o Ceará é "um pomar encanta- mente em outubro foi sancionada a lei que garantia 10 mil contos de réis "para
do, um encantado viveiro, onde a vida animal e vegetal tem a pajança exhuberante socorrer as populações do norte, flageladas pela seca", depois que mais de 10 mil
dos trópicos". "Os vastos sertões", ao contrário dos tempos de seca, "são celleiros retirantes já se encontravam em Fortaleza - que contava com uma população de
de prodigiosas e incalculáveis riquezas agrícolas e pastoris". A organização da cerca de 50 mil habitantes - e cerca de 290.000 sofriam as necessidades decor-
vida social aproxima-se da natureza a um tal ponto que "a moeda se desvalorisa, rentes da estiagem.
volta-se ao regimen primitivo das permutas", e a riqueza torna-se acessível a Esta demora, ainda segundo o Dr. Pedro Borges, foi responsável pelos con-
todos: "não há pobre de Deus que não possua um mundo seu, dentro do qual flitos que se seguiram envolvendo retirantes e as forças policiais que acompanha-
possa viver sem dependências". As desigualdades sociais se diluem na abundân- vam os carregamentos de alimentos a serem distribuídos no interior. A expansão
cia, "porque alli a terra, a mãe fecunda e amorosa, distribue os thesouros de seu das estradas de ferro e seu uso para o transporte de víveres tornavam as estações
seio igualmente por todos os filhos": "a vida sertaneja cearense é de um de trem os locais preferidos para aglomerações de retirantes insatisfeitos e famin-
communismo perfeito"! Os agricultores formam uma "tribo de proletários, que tos, à espera da passagem de algum trem de mantimentos. Relata o Presidente
exploram as parcelas de terrenos que lhes são arrendadas, por conta própria e que "na estação de Massapé, da ferrovia de Sobral, cerca de dous mil famintos,
independentemente da retribuição dos serviços prestados aos fazendeiros". Esta reunidos na plata-forma e circumvisinhanças da estação, aguardavam a passa-
visão idílica se transforma com a chegada da seca. Com ela - que se aproxima gem do trem procedente de Camocim, carregado de viveres, para o assaltarem,
"com a hesitação de uma ladra", "como um espectro sinistro" - vem "a Fome quando por ali passasse". A expansão do telégrafo, por outro lado, aumentou as
sinistra que bate às portas dos pobres" e "a miséria que despoja os cabedaes dos possibilidades de defesa contra os ataques da multidão: "o chefe do trem, avisado
ricos". Tudo se modifica e "por toda a parte e em todas as direcções - o mesmo a tempo, não parou na estação, evitando, d'esse modo, o assalto planejado".
deserto e o mesmo cemitério silencioso". O que era um paraíso se torna um infer- Essas pouco veementes exortações ao governo federal - que se tornaram
no, de onde "os animais já foram tangidos para as pastagens verdes do Piauhy ou comuns em tempos de seca - não evitaram que, ao primeiro sinal de chuvas, no
transportados aos mercados do Pará" e "os homens partiram para os Estados início de 1901, as obras fossem imediatamente suspensas. Somente do açude de
visinhos, emigraram para o Norte e para o Sul, agglomeraram-se na capital, fa- Quixadá - obra iniciada em 1877 e terminada apenas em 1906 - foram dispensa-
mintos, esqueléticos e immundos, dizimados pela fome, pelas febres e pelas fadi- dos mil operários. Atenuando esta situação, um esforço conjunto formado por
gas das viagens infindas". Ao fim da seca, "os poucos q' sobrevivem á selecção "alguns Estados, por associações de beneficência, por donativos promovidos e
implacável não receberam como um escarmento o indizível martírio" e voltarão angariados por cidadãos beneméritos, em honra ao sublime sentimento da frater-
ao torrão natal "com a antiga confiança e a soffreguidão da saudade, perdoando e nidade social e da grande lei histórica da solidariedade humana", assim como da
esquecendo todas as injurias da sorte e todas as torturas do passado". Seu destino "Associação Comercial de Fortaleza e de algumas pessoas que se julgavam
é, portanto, comparado ao destino de Sísifo.27 influentes", veio socorrer as iniciativas estaduais com créditos e géneros.28
No mundo real, as medidas empregadas na assistência social, contudo, como Ao final, a própria "caridade particular" foi a grande tónica do relaciona-
reconhecia o próprio Presidente do Estado, não chegavam a satisfazer sequer a mento com os retirantes na seca de 1900, reforçando os termos da relação
8% da população necessitada. Segundo seus cálculos, um total de 311.674 pessoas, paternalista "submissão versus proteção"; e a tendência das experiências acumu-
1/3 da população do Ceará, estavam "reduzidas á penúria e nas condições de ser ladas pelos agricultores que se retiram de suas terras em tempos de escassez con-
soccorridas"; porém, só 24.112 foram "amparadas pelos soccorros a cargo do tinua a se orientar para a transformação da cidade - e especialmente Fortaleza -
governo federal", já que as medidas de assistência a cargo do governo estadual
no principal cenário da seca.
limitavam-se à distribuição de alimentos. De fato, o "cumprimento do dispositivo Isso não impediu, contudo, o "esgotamento" deste sentimento cristão em
constitucional" - art. 5° da Constituição de 1891 - "que impunha ao Executivo a função de sua abusiva "utilização" por retirantes e habitantes de Fortaleza. A
obrigação de providenciar adequadamente" os socorros em casos de emergência chegada das chuvas apaga a principal chama que motiva a caridade: a necessida-

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de - e todo o seu "cortejo" de miséria e fome - decorrente da seca. Agora, os marcantes desse processo a construção do Mercado de Ferro (1897), das princi-
"adventícios" deveriam deixar o espaço urbano, permitindo que a população possa pais praças (1902-3) e do "requintado" Teatro José de Alencar (1910).
usufruir, sem constrangimentos, de seus equipamentos. Por um lado, estes investimentos podem ser entendidos, de uma forma geral,
Rodolpho Theophilo, mais uma vez, percebia a mudança na estrutura de como um "processo que buscou racionalizar a cidade e disciplinar seus habitan-
sentimentos com relação ao retirante. Em meados de 1901, segundo ele, "o inver- tes" e, assim, estavam conectados à "emergência de novos grupos dominantes" e
no havia arrefecido um pouco a caridade pública" e, conseqiientemente, "a pie- à diversificação social que resultava do amplo desenvolvimento das atividades
dade que nos inspirava o retirante já não era tão grande como em começo da comerciais e industriais que experimentava a cidade. No pólo oposto, a presença
secca". Tempo de chuva é tempo de trabalho na terra, é tempo de combater a de uma massa de mão-de-obra desqualificada e circulante preocupava as autori-
mendicância com maior ênfase, é tempo de não aceitar a ociosidade: "Dávamos a dades, fazendo-as escolherem as estratégias urbanas mais adequadas à vigilância
esmola e ao mesmo tempo exprobavamos que o pedinte continuasse a mendigar e ao controle social, como a construção de largas avenidas e praças, sempre bem
pelas portas quando tão bom inverno fertilisava todo o Ceará!" cuidadas, e a tentativa de fazer vigorar o rigoroso Código do Posturas de 1893,
Era momento de devolver o retirante ao seu espaço "natural" e, para isso, que permanecia como letra morta. As casas e locais de lazer popular também
devia ser estimulado a deixar a capital. A preocupação com a ociosidade mani- foram devidamente esquadrinhados pelo "poder disciplinar" local, buscando eli-
festava-se nitidamente neste momento em que as atividades agrícolas poderiam, minar os focos das doenças do corpo e do espírito, além de combater a prostitui-
finalmente, ser retomadas^ "Elles [os retirantes] não podiam partir sem ter ao ção e a criminalidade, e "foi a partir dos governos seguintes, de 1896 a 1930, que
menos o pão para a jornada; mas também não podiam ficar por mais tempo em realmente se tornaram mais recorrentes os investimentos de normalização ur-
Fortaleza, na mais vergonhosa ociosidade, deixando passar a epocha de semear a bano-social em Fortaleza". Curiosamente, é o início deste período marcado
terra".29 também pela maior centralização e repressão política, com o controle oligárquico
Mesmo assim, apesar de todos os esforços para fazer retornar ao interior exercido despoticamente pelo Dr. António Pinto Nogueira Accioly, o qual, di-
essa massa de retirantes, "a seca de 1900 deixou em Fortaleza uma população reta ou indiretamente, esteve no comando da máquina estatal cearense de 1892
adventícia de três a quatro mil pessoas, facilitando a formação da periferia a 1912. Este oligarca - genro do Senador Pompeu, homem de grande influência
favelada".30 política na Província durante o Império - iniciou sua carreira política ainda sob
a monarquia, como deputado e senador; uma carreira que a Proclamação da
III República não abortou, já que ele não só a ela aderiu imediatamente, como
ainda assumiu o controle do republicanismo local, fundando o Partido Republi-
Em 1915, uma nova seca acomete a população sertaneja, assumindo propor- cano Federalista.31
ções assustadoras que faziam lembrar 1877. Repetiam-se as mesmas cenas, os Mas, por outro lado, esse conjunto de saberes e práticas não se organizou
mesmos personagens e o mesmo enredo, mas o painel já não era mais o mesmo, "racionalmente" a partir de uma necessidade percebida pelas elites locais e da
especialmente na capital. tentativa de sua resolução. Tinha como contraponto a permanente ameaça ao
Fortaleza havia passado, nestes primeiros anos do século XX, por um pro- progresso representada pelas "visitas" periódicas de retirantes à capital, trazendo
cesso de transformações que aprofundava rapidamente as tendências de "afor- consigo um arsenal cultural extremamente diferente daquele que as ilustradas
moseamento" já verificadas a partir de 1870, com o delineamento urbano defini- autoridades pretendiam elaborar para os cearenses.
do por Adolfo Herbster. Após 1900 - ou, mais especificamente, 1896 -, contudo, Assim, a teoria do "controle social" necessita ser devidamente relativizada
uma série de melhoramentos havia dotado a capital de novas ruas e calçamentos, em função das ações - planejadas e racionais ou não - dos setores populares que,
iluminação moderna, um sistema de transporte, enfim toda uma sorte de equipa- por seu turno, mantinham uma relação distinta com a vida urbana.
mentos urbanos, inclusive teatros e cinemas, ao lado de instituições do saber, As medidas de "disciplinamento" urbano, levadas à efeito em Fortaleza nos
como a Academia Cearense e o Instituto Histórico do Ceará, que a podiam situar primeiros anos do século XX, eram, de certa forma, produto da presença ostensi-
no rumo da modernidade, como pretendiam seus dirigentes. São momentos va destes setores na cidade, partícipes mas nem sempre cúmplices deste progra-

i.'-' • 76 77
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ma de remodelamento e "aformoseamento". O "poder disciplinar" não agia sobre questão e que ambas encontram-se intrinsecamente ligadas e dessa ligação de-
uma massa inerme ou sobre uma "tabula rasa", mas, na verdade, respondia a pende a sua manutenção e reprodução".34
situações nem sempre controláveis ou desejáveis pelas elites locais. Independentemente, portanto, dos significados imaginários conferidos pela
E Fortaleza, nestes anos, não tinha somente a lembrança das "invasões" de população às reformas em curso em Fortaleza, os três dias de insurreição causa-
retirantes famintos das secas. Dois acontecimentos vieram ativar expressivamen- ram pânico e medo entre os moradores mais abastados das áreas centrais da cida-
te o terror urbano ante as multidões enfurecidas. de, onde os investimentos em equipamentos urbanos estavam se dando de forma
Em 1912, a queda da oligarquia Accioly resulta de uma insurreição popular mais intensa.
em que, durante três dias, "a Cidade se transformou em palco de guerra, com Mas a deposição de Accioly e a posse de Franco Rabelo na Presidência do
tiroteios, emboscadas, trincheiras e barricadas". Aproveitando a oportunidade do Estado não conseguiram resolver os conflitos políticos estabelecidos entre as oli-
"salvacionismo" desencadeado pelo Presidente Hermes da Fonseca, o movimen- garquias locais. Dois anos depois, em 1914, outros desentendimentos entre as
to oposicionista consegue um amplo apoio da população urbana contra os vinte principais lideranças estaduais levaram a uma nova guerra civil, denominada pela
anos de controle da máquina estatal pelo Comendador Accioly e seus aliados. historiografia de "Sedição de Juazeiro", quando "da região do Cariri veio um
Inesperadamente, porém, a ira da multidão volta-se também contra os símbolos exército de sertanejos, comandados por coronéis acciolistas e abençoados pelo
da modernidade, com a consequente depredação de praças, postes de iluminação, Padre Cícero, para depor pela forças das armas o novo governo".35 Se este exér-
lojas, fábricas e bondes. Nem mesmo os mais radicais inimigos do oligarca pode- cito não chegou a entrar na capital, em função de um acordo de última hora,
riam imaginar ou apoiar estas atitudes tão pouco civilizadas. RodolphoTheophilo, contudo, trouxe o pânico à sua população, que viu as cidades vizinhas — como
um destes, brada inconformado: "nada respeitaram os bárbaros"; qualificava a Pacatuba, Baturité e Maranguape - caírem diante dos "cabras" e serem impiedo-
violência popular como um "crime sem punição imediata"; a praça, destruída samente saqueadas e parcialmente destruídas; "desde o Crato até Fortaleza, em
"quando nada mais faltava para saciar a sua loucura", se transformou em "ruí- uma extensão de mais de cem léguas, tudo foi saqueado, os seleiros roubados, e o
nas" depois que "a loucura do populacho havia passado por ali na sua faina de que não puderam conduzir queimaram". A "horda de bárbaros protegidos pelo
destruição".32 Note-se que Rodolpho Theophilo utiliza deliberadamente a pala- governo do Marechal Hermes" provocou uma "onda exterminadora", que "ate-
vra bárbaro para designar toda e qualquer manifestação de agressividade contrá- morizou de tal modo a população dos lugares em que passou, que esta abandonou
ria à organização racional da vida social e urbana, identificada à noção de civili- as casas e fugiu aterrada, deixando à discrição dos bandidos os seus haveres".
zação. Assim, tanto os retirantes que não possuem noções de higiene e sucum- Para Rodolpho Theophilo, este episódio, "tristíssima página da história política
bem à "imoralidade" em decorrência da miséria, quanto os revoltosos que ata- do Brasil", foi um dos fatores de agravamento da seca de 1915, já que "era tempo
cam os equipamentos urbanos mais modernos, assim como quaisquer outros que de se plantarem os roçados, de se fazerem as sementeiras", mas que "tudo ficou
ameacem a ordem civilizada, são bárbaros. arrasado, destruído, como se um incêndio tivesse lavrado naquelas paragens, ex-
O inusitado dessas atitudes, segundo Sebastião Ponte, faz com que "não se- cetuando as casas dos amigos dos sediciosos".
ria descabido indagar se aquelas investidas furiosas sobre alguns dos signos da Rodolpho Theophilo anota ainda outros fatores a agravar a crise de 1915.
modernização urbana não significaram, também, uma forma, mesmo que difusa, Em primeiro lugar, "as sociedades mutuárias fundadas em Fortaleza e depois em
de protesto contra uma nova ordem urbana que se instaurava", o que o leva a diversos pontos do Estado". Chamadas "solidarísticas", tais sociedades - "uma
indagar a respeito das noções de "ordem" e "desordem" como estruturadoras da armadilha na qual caíram os tolos e os de má fé" e que "raríssimos foram os que
realidade social.33 escaparam ao contágio do vício" - arruinaram a vida financeira do Estado. Em
Aquilo que, do ponto de vista das autoridades e das elites, parece "ordem" e segundo lugar, "a guerra da Europa" traz importantes complicações económicas,
racionalidade, do ponto de vista das camadas populares pode parecer "desor- alterando os preços dos principais produtos cearenses de exportação, especial-
dem", uma desestruturação da "ordem das ruas", que, por sua vez, parece "de- mente o algodão. Este último fato iria desagradar profundamente o farmacêutico,
sordem das ruas" para as autoridades, levando-nos a concluir que "a perspectiva pois "não era o jagunço do Padre Cícero, bronco e matador, de trabuco ao ombro
do que é 'ordem' e 'desordem' se dá de acordo com o lugar social dos agentes em e facho na mão, que vinha retrogradar muitos séculos a civilização, mas o ho-

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mem culto da Europa". "Essa guerra", segundo ele, "foi uma desilusão para os Foram obras reivindicadas durante todas as secas anteriores como alternativa de
que acreditam que a cultura do espírito destrói no homem os seus maus instin- trabalho para os retirantes em locais próximos às suas moradias, para que não
tos", e o leva a conclusões pessimistas: "para mim, a besta humana é a mesma precisassem deslocar-se à capital em busca de socorros; no entanto, findou por
das primeiras idades da terra, quando andava nua e era antropófaga", com a dife- permitir o abandono das terras antes mesmo do período tradicionalmente estabe-
rença de que "o homem moderno mata com mais arte, rouba com mais astúcia e lecido para o decretação da seca: 19 de março, dia de São José. Isso fez com que
corrompe com maior elegância".36 alguns intelectuais, como Rodolpho Theophilo, concluíssem que a "gente que
A produção de um saber sobre a cidade, que organiza as experiências de aos primeiros sinais de seca abandona os lares é ruim, saindo não faz falta, é
"controle social" e de disciplinarização do espaço urbano, se constitui, portanto, vagabunda por instinto e preguiçosa por índole"; ao contrário, "o sertanejo traba-
em contraste e em confronto com estas invasões recorrentes dos "bárbaros" re- lhador fica em sua casa, sofrendo as maiores privações, alimentado-se da mucunã
voltados ou famintos, ou ambos, acontecendo em contextos específicos. Assim, e de outras plantas bravas, esperando à custa dos maiores sacrifícios que termine
uma nova estrutura de sentimentos se delineia nas relações entre a cidade e os o flagelo". Ao mesmo tempo, ele percebe que é para os "preguiçosos" que se
"bárbaros", prenunciando intervenções mais radicais e excludentes. devem destinar os serviços da seca, retirando-os da cidade, "onde se achavam,
Quanto aos agricultores e sua trajetória em direção às cidades, a repetição do esmolando".38 Aqui, o farmacêutico apresenta uma versão moralizada a respeito
mesmo "cortejo de misérias", de que a composição do personagem Chico Bento, do fluxo migratório em tempos de seca. Uma rígida moral baseada na ética do
do romance O Quinze, de Rachel de Queiroz, é emblemático. O "vaqueiro das trabalho, que define os que são preguiçosos, e abandonam a produção assim que
Aroeiras" se vê obrigado a soltar o gado à própria sorte, já que, para os proprietá- se avizinha uma crise, e os que são trabalhadores, e resistem bravamente às in-
rios da fazenda, "é melhor sofrer logo o prejuízo do que andar gastando dinheiro tempéries. O artigo do jornal Constituição, de 8 de outubro de 1889, ao contrário,
à toa em rama e caroço, pra não ter resultado". Quanto a ele, "pode tomar um apresenta uma versão baseada na posse.da terra e dos instrumentos de trabalho:
rumo" ou, se quiser, ficar nas Aroeiras, "mas sem serviço na fazenda". Sem saí- os que deixam mais cedo suas terras são os que menos possuem e nada têm por
da, sem salário, sem trabalho, as terras esgotadas, decide vender sua parte na que lutar; os que resistem mais algum tempo são os que possuem alguma coisa e
"quarta" - "um boiote, uma vaca solteira e um garrote", além da roupa de vaquei- têm algo, mesmo que pouco, a perder. De qualquer maneira, seja qual for a ver-
ro, "toda de couro de capoeiro" - e parte para o longo trajeto da migração: "ago- são, a conclusão é a mesma: são os últimos — trabalhadores, segundo Theophilo,
ra, ao Chico Bento, como último recurso, só restava arribar". Procura uma passa- ou pequenos proprietários, segundo o Constituição - que chegam à cidade em
gem de trem para Fortaleza, mas não consegue: "porque não vai por terra?", piores condições de saúde, pois só empreendem a viagem rumo ao litoral quando
pergunta o "homem das passagens", "agora é que retirante tem esses luxos... no todos os recursos locais já se esgotaram. Além disso, encontravam a estrada, a
77 não teve trem para nenhum". A distribuição gratuita das passagens também cidade e os mecanismos de socorros já sobrecarregados, desde o bilhete de pas-
logo foi incorporada ao sistema de apadrinhamento que caracteriza quase todas sagem de trem até a vaga em alguma obra pública. Encontram, também, a popu-
as relações sociais no sertão. "O governo ajuda", um amigo consola, mas "o lação urbana já saturada com a mendicância, a prostituição e com a permanente
preposto é que é um ratuíno". "Cambada ladrona", desabafa o vaqueiro.37 exposição pública da miséria.
De fato, a construção do prolongamento das estradas de ferro de Baturité e As obras, assim, têm a função não só de tentar evitar a chegada dos retirantes à
Sobral facilitara em muito o trajeto dos retirantes rumo às cidades litorâneas. cidade, como também de tentar esvaziar a cidade do excesso de retirantes que pressio-
Estas obras, realizadas com a mão-de-obra dos próprios retirantes, objetivava nam seus equipamentos e - por que não dizer? - a paciência de seus habitantes.
reduzir o sofrimento dos que saíam de suas localidades em busca de abrigo e A onda de migrações atinge todo o Estado. Além de Fortaleza e das cida-
proteção, além de facilitar o retorno desses mesmos refugiados de volta ao inte- des do litoral, era "na região das duas ferrovias, nas obras de açudagem e nas
rior de onde partiram - sem falar, é claro, dos objetivos económicos. Ao mesmo estradas de rodagem, mandadas executar pelo Governo Federal, onde se davam
tempo, tornavam a viagem muito mais acessível e, por conseguinte, fazia com maiores agglomerações de pessoas esqueléticas, esfarrapadas, sujas, sem a
que os agricultores largassem suas terras mais cedo ante a ameaça de seca, já que minima hygiene, mal encontrando agua para beberem", segundo o próprio Pre-
agora inexistia o temor da própria viagem, antes tão presente na vida sertaneja. sidente em seu Relatório.

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Para Chico Bento e sua família, de qualquer maneira, o trajeto teve que ser da moda. Em todas as secas chamou-se ao sertanejo que emigra "retirante"
"tirado" a pé, "feito animal", como tradicionalmente sempre se fez, enfrentando e não "flagelado". Flagelados somos todos nós durante a calamidade.41
todas as dificuldades já enfrentadas pelos mais velhos. Um dos filhos morre no
caminho, o outro some sem explicações. Andou de Quixadá até Acarape, quando A mudança de nomes, todavia, não é inocente nem casual: o Campo não é
um encontro inesperado veio auxiliá-lo em sua angústia: um antigo conhecido, um acampamento espontâneo, como o eram os abarracamentos, assim como
um "compadre", era agora delegado da cidade - "uma alma boa, o compadre flagelado dilui os sofrimentos e a própria configuração sociológica das maiores
Luís Bezerra" - e, somente assim, através da mesma rede de apadrinhamento que "vítimas da seca", melhor expressos em retirante. A expressão curral manifesta
o havia condenado à caminhada, conseguiu passagens de trem para Fortaleza, não só a impotência do pobre como uma das origens da assistência paternalista
além de alimentos e roupas. Chegando à cidade, uma realidade surpreendente, no interior das fazendas, já que os currais abandonados serviam de moradia para
pois, ao chegarem à "Estação do Matadouro", "sem saber como, acharam-se os retirantes em tempos de seca.42
empolgados pela onda que descia, e se viram levados através da praça de areia, e De qualquer maneira, comportando permanentemente "mais de 8 mil pes-
andaram à pé por um calçamento pedregoso, e foram jogados a um curral de soas", o Campo atendeu a uma preocupação expressa nas últimas palavras cita-
arame onde uma infinidade de gente se mexia, falando, gritando, acendendo fogo". das do Presidente do Estado: "fiscalização" e "desrespeito ao pudor". Esperava-
Arranjaram-se como puderam, conseguiram alguma farinha para enganar o estô- se evitar cenas de mendicância, criminalidade e prostituição recorrentes durante
mago, e somente no dia seguinte se deram conta de que estavam no Campo de as secas anteriores através do isolamento dos retirantes, mantendo-os afastados
Concentração do Alagadiço. Chico Bento, sem entender muito bem o que se da população urbana.
desenrolava a sua volta, resignava-se amargurado: "posso muito bem morrer aqui; Rodolpho Theophilo, nosso companheiro de viagem pelas secas, discordava
mas pelo menos não morro sozinho".39 da ideia e ponderou com o Cel. Barroso que "aglomerar os retirantes era matá-
Este era um investimento de novo tipo em Fortaleza, reorganizando as rela- los", relatando exemplos anteriores, como em 1900, quando os refugiados "se
ções entre as autoridades e a população urbana, de um lado, e os retirantes, de agasalharam não só sob as árvores dos subúrbios como também nas das praças e
outro. Um tipo de investimento mais intervencionista e excludente, na medida ruas de Fortaleza" e a mortalidade entre eles foi relativamente baixa. Baseava-se
em que explicita as tensas relações da cidade com seus "invasores" famintos e em argumentações eminentemente humanitárias e médicas para reprovar a cria-
andrajosos. ção de um espaço de exclusão que é, ao mesmo tempo, um espaço de transmissão
de epidemias fatais. Preocupava-o principalmente a ideia de que "esse abarraca-
Nesta Capital os flagellados foram agasalhados, a principio, no Passeio mento, mesmo ao ar livre, se empestaria e empestaria a cidade no fim de alguns
Publico, emquanto o numero não excedeu de três mil, mas para logo subiu meses". Mas o Presidente, segundo o farmacêutico, "não quis tomar o exemplo
de uma maneira tão rápida que foi preciso retiral-os e localizal-os em um de 1900, alegando que assim não poderia fiscalizar a distribuição dos socorros e
vasto terreno no Alagadiço, cercado, bem arborizado, que tomou o nome de velar pela honra das famílias que a seca expatriava".43
Campo de Concentração, em que foram feitas ligeiras installações, inclusi- Racionalidade na assistência pública e controle dos comportamentos consi-
ve de luz eléctrica que facilitava a fiscalização á noite. Isso deu logar a que derados "desviantes" foram, portanto, as preocupações que orientaram as medi-
não fossem registrados actos de desrespeito ao pudor.40 das de socorros em 1915 e que presidiram o relacionamento entre os pobres e os
habitantes da cidade.
Rodolpho Theophilo estranha ainda a mudança de nomes. No entanto, a estratégia escolhida não surtiu os efeitos desejados, o que re-
presentou, numa avaliação posterior, "um erro palmar da Administração Pública
Os retirantes estiveram no Passeio Público até se preparar no Alagadiço o da época", pois o campo, "como era de se esperar, resultara improfícuo" e "trata-
futuro "abarracamento", o qual tomou, não sei por quê, nome de "campo de va-se de uma densa concentração humana em promiscuidade, que o Governo não
concentração" e o povo balizou de "curral". O retirante perdeu o seu antigo podia manter em boas condições de higiene e moralidade por falta de recursos
e expressivo nome e começou a chamar-se "flagelado". Coisas do tempo e financeiros e pessoal competente e honesto que o administrasse". 44

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Aliás, "higiene e moralidade" eram os elementos principais sobre os quais mem quando se avizinhava da animalidade" e gera "intoxicações da ideia", que
se detinham com maior atenção os observadores. A falta de asseio manifestava- provocam "extraordinária ferocidade ou sórdido egoísmo".49
se imediatamente através do olfato ("que mau cheiro se sentia!", pensava Con- Atitudes grotescas se sucedem, como suicídios, assassinatos e não raros ca-
ceição, a personagem central de O Quinze, "que custo, atravessar aquele sos de antropofagia, além da utilização de crianças esqueléticas como recurso
atravancamento de gente imunda, de latas velhas, e trapos sujos!"), o que, de para conseguir esmolas de transeuntes condoídos e outros expedientes condená-
certa forma, pode ter sido influência das teorias médico-sociais da época, em veis, em que "a caridade pública individual viu-se explorada até as últimas possi-
especial a "teoria da infecção", as quais valorizavam os ares como transmissores bilidades".50
de doenças e, portanto, entendiam que o olfato era o único dos sentidos capaz de Era moeda corrente entre os analistas locais - da "situação" ou da "oposição"
perceber os miasmas causadores das epidemias.45 Nossas fontes para 1915, na - a ideia de que a "miséria anestesia os mais puros sentimentos do homem bem
maioria bem informadas, provavelmente sentiam no mau cheiro o perigo de con- educado, quanto mais os sentimentos dessa gente, cuja moral não foi cultivada (...)
taminação e morte. Somente alguns abnegados chegavam perto do campo e mes- seres inferiores pela raça, pela falta de educação doméstica e cívica, criados na
mo entravam por seus becos imundos para praticar a caridade; algumas irmãs de satisfação de sua índole má e péssimos instintos, na prática de atos reprovados".51
caridade, senhoras caridosas - Conceição e a "virtuosa esposa" do Cel. Barroso, De resto, foi diante do "inédito e lamentável espetáculo" representado pela
por exemplo - e os médicos, além dos "comissionados" responsáveis pela distri- aglomeração de retirantes nas áreas centrais da capital que orgulhosamente se
buição dos socorros e das vagas de trabalho, eram os principais atores urbanos a moderniza, percebido pelas elites como "promiscuidade e imundície aos olhos de
circular por entre os famintos. milhares de espectadores e também de exploradores da miséria"52 que o Cel.
As pessoas, cercadas, comprimiam-se na busca da sobrevivência num pre- Barroso decidira pela criação do campo.
cário estado sanitário. A morte rondava o campo de concentração, fazendo suas O Passeio Público, ao mesmo tempo, significava, na época, a "principal área
principais vítimas entre as crianças ("Fortaleza é um cemitério de crianças", bra- de lazer e sociabilidade" da cidade e a "vitrine ideal para o desfile das elegân-
dava R. Theophilo). Com o passar do tempo, as pequenas chuvas de setembro e cias",53 um espaço de sociabilidade feito à imagem e semelhança das elites lo-
outubro - as "chuvas do caju" - e a consequente "proliferação das moscas e cais, ocupadas em "europeizar-se", o que significava "civilizar-se". A ocupação
maior contaminação da água potável"46 e a distribuição de leite adulterado às deste espaço por estes "seres inferiores" em estado de miséria e inanição é, por-
crianças, o "estado sanitário se foi aggravando, de sorte que, em Dezembro, já tanto, ofensiva à civilização, à moral e aos bons costumes.
apresentava effeito assombroso na elevação da curva da mortalidade".47 Os ca- Assim, apesar de todos os esforços individuais e principalmente apesar de
dáveres empilhavam-se à espera de transporte, ao longo da linha de bonde que toda a vigilância, em face das condições gerais do campo e do progressivo avan-
passava ao lado do campo. ço das moléstias infecciosas, Rodolpho Theophilo ainda observaria desolada e
De fato, não havia uma estrutura sanitária no campo, que mais parecia um causticamente:
"depósito de seres humanos". Os "banheiros", por exemplo, ficavam "à sotaven-
to do abarracamento, no fundo do cercado, ao poente (...) onde os famintos, numa O Campo de Concentração transformou-se em Campo Santo, e o Governo
promiscuidade de bestas, defecavam, ficando as fezes expostas às moscas", le- do Estado viu-se obrigado a dissolvê-lo. O Dr. Benjamim Barroso não lo-
vando à necessária conclusão de que "aquele atentado à sã higiene não podia grou ver o seu ideal realizado: uma seca sem prostituição e sem furto. Nas
deixar de ter consequências desastradas".48 Não é à toa que R. Theophilo, com repetidas visitas que fiz ao abarracamento vi certos derriços que só pode-
seu olhar higienista, se refere várias vezes àquela população concentrada como riam ter acabado em pouca vergonha. A fome com seu cortejo de padeci-
uma "esterqueira humana". mentos dilui todos os bons sentimentos do coração humano. Uma mulher
aviltada pela miséria mais facilmente cede à tentação da carne, do que outra
Por outro lado, o tema da promiscuidade amiúde abordado por nossos obser-
a coberto de necessidades.54
vadores tinha certamente um conteúdo moral. Temia-se o furto e a prostituição,
na certeza de que a fome é um campo propício para o desenvolvimento de per- Enfim, em resumo, o Campo de Concentração do Alagadiço aglomerou num
versões éticas de todo tipo, além do que "desperta sentimentos atávicos do ho- terreno "cercado e arborizado" milhares de pessoas num ambiente de parcas ins-

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talações físicas e piores condições sanitárias, onde os números da morte também período pouco nos informam a esse respeito. Mesmo assim, os comentários do
se concentraram: em geral, era mais fácil morrer no campo do que fora dele! Os Presidente do Estado, na introdução mesmo de seu relatório, parecem ser exage-
observadores parecem concordar que "nada mais repugnante e contrario as re- rados ao enaltecer o sucesso de sua ação.
gras mais elementares da higiene e caridade do que o Campo de Concentração
dos retirantes do Alagadiço, em 1915".55 Ainda parece ouvirmos em tumulto o queixume de um povo bom a debater-
A seca de 1915, portanto, ficou marcada por esta experiência, no relaciona- se na agonia de misérias que não vão bem longe. Soffreu com coragem
mento entre retirantes e habitantes, de isolamento e reclusão daqueles para o inimitável os horrores da secca sem commeter desatinos; morreu de fome
sem roubar nem saquear.57
alívio destes. Um corte pode ser feito, então, marcando este momento em que a
cidade procura proteger-se do contato com os miseráveis e fazer retornar a seca
Conceição, por outro lado, a heroína de Rachel de Queiroz, tem ouvidos
ao seu cenário anterior, o campo. As medidas, daí em diante, se direcionarão para
mais sensíveis e argutos para perceber a "toada dolorida" que "chegava de mistu-
uma estratégia de "fixar o homem no campo", cujo significado é diverso. Ao
ra com o hálito doentio do Campo".
mesmo tempo em que representa a tentativa de evitar as migrações em suas ori-
gens, criando mecanismos de manter os agricultores desterrados pela seca em
No céu entra quem merece
locais próximos às suas áreas tradicionais de trabalho, representa também uma No mundo vale quem tem
forma de retirar a seca - e, principalmente, seus protagonistas principais - do Eu como tenho vergonha
cenário urbano, cuja destinação para uma sociabilidade burguesa e civilizada já Não peço nada a ninguém
foi aqui discutida; isso significa, certamente, combater o aumento da criminalidade, Que me parece quem pede
da prostituição e da mendicância nos espaços urbanos, onde não só incomodam a Ser cativo de quem tem.
sensibilidade dos abastados das cidades como agridem uma imagem de civiliza-
ção compatível com os investimentos de capital necessários para a implantação IV
de uma infra-estrutura moderna e adaptada ao ritmo frenético da circulação de
bens e serviços que caracteriza o capitalismo do século XX. A Fortaleza provin- Antes de 1930, ainda uma outra seca, de "pequenas proporções",58 levou a
cial, onde a caridade predomina sobre a racionalidade da organização social bur- alguns novos conflitos e reativou as formas de relacionamento entre as cidades e
guesa, cede terreno a uma cidade moderna que se pretende estruturada segundo os retirantes.
padrões modernos e liberais de ordenamento social e, principalmente, de relacio- Depois de 1915, um período de enriquecimento se seguiu com a alta nos
namento com os pobres. A partir de então, e especialmente depois de 1930, decli- preços do algodão. O desenvolvimento de melhoramentos técnicos e, especial-
na a criação de entidades beneficentes e aumenta a fundação de organismos, na mente, a introdução da variedade "mocó" fizeram com que os níveis de exporta-
maioria estatais, de apoio ou estímulo aos "trabalhadores", "operários", "agricul- ção alcançassem os de 1871-2, época de ouro da produção algodoeira do século
tores" ou "pequenos produtores", eufemismo para os pobres que pressionam pe- XIX, chegando a mais de 9.000.000 kg em 1918.59 Combinada com bons perío-
riodicamente os equipamentos urbanos. dos de chuvas regulares, trouxeram lucros para os comerciantes, uma "abastança
Com o início das chuvas em 1916, imediatamente o governo tomou medidas phenomenal" para o "pequeno lavrador" e para o Estado, já que "os impostos
para "internar" o retirante de volta aos sertões. No entanto, muitas vezes havia encheram o erário publico". Os tempos de riqueza e expansão das atividades
formas de burlar a distribuição de passagens, o que levava Rodolpho Theophilo a produtivas fizeram com que "o Presidente do Estado fascinado por tão grandes
achar que "o retirante não perdia ocasião de furtar". "Recebia o socorro e tomava o receitas esqueceu-se de que governava a terra das seccas e começou a dotar o
trem imediatamente para o interior, mas, nas primeiras estações, descia e voltava à Ceará de melhoramentos, que só podiam possuir os Estados ricos".60
pé para a capital", "de novo se alistava, recebia novo socorro e tomava o trem".56 De fato, os melhoramentos iniciados pelo Intendente Idelfonso Albano entre
As medidas tomadas em 1915, de qualquer maneira, aparentemente levaram 1912 e 1914 foram incorporados à vida urbana de tal forma que impulsionaram
a uma redução dos conflitos entre retirantes e autoridades. As fontes para este outras obras públicas e privadas, destinadas a dotar a cidade de um conjunto de

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equipamentos capaz de incluir a cidade no circuito das mais modernas capitais semelhante por parte das autoridades e, desta vez, "com esses exemplos o Dr.
do País. Assim como a construção ou reforma das praças centrais de Fortaleza e João Thomé deixou os retirantes aboletarem-se onde bem quizeram, como fez o
a instalação da rede elétrica na capital, a fundação do "cine-theatro Majestic", em Dr. Pedro Borges em 1900". Esta permissividade, embora pareça "desamor do
1917, veio incrementar a vida cultural local e constituir um cenário urbano onde governo deixando ao abandono as victimas da secca", é, segundo Rodolpho
a sociabilidade burguesa pudesse ser exercida, sem as amarras culturais ligadas Theophilo, o melhor antídoto contra as epidemias, já que "os factos provam que
ao passado provincial e/ou colonial.61 abarracar famintos, sem hygiene, é assassinal-os" e que "a vida do retirante e a
Ao mesmo tempo, a par das reformas urbanas, várias obras vieram dotar o saúde está mais garantida com esse abandono".
Estado de um conjunto de açudes e barragens, públicas e particulares, construí- Poucas epidemias, de fato, assolaram os retirantes em 1919. A varíola, "com-
das entre 1915 e 1919, que pretendiam formar uma barreira contra a falta dágua. panheira inseparável da seca", como diz Rodolpho Theophilo, estava sob controle,
Assim, segundo um observador, isso possibilitou que "as populações do interior em parte graças aos esforços do próprio farmacêutico e seu vacinogêneo domésti-
tinham adquirido boas lições, com o flagelo de 1915, pelo que souberam enfren- co. A peste bulbônica, porém, importada do sul com a farinha de mandioca e outros
tar a estiagem com melhores elementos de resistência".62 géneros que para aqui vieram, conseguiu alarmar algumas autoridades locais e na-
No entanto, nas cidades do interior, apesar destas medidas preventivas, em cionais, assim como a febre amarela. Em julho, "começou a funccionar em Fortale-
1919 "a onda de famintos espraia-se na visinhança das Estações da Via-ferrea, za a Commissão Federal de Prophylaxia da febre amarela, sob a direção do Dr.
vivendo das esmolas dos passageiros e da caridade dos habitantes do lugar". Oliveira Borges", trazendo para o Ceará "grande número de empregados, com gran-
Com o tempo, porém, e ã certeza de falta de chuvas, "a população adventícia vai des vencimentos, como se aqui não houvesse pessoal". Os resultados, segundo o
avolumando-se até constituir um perigo para os naturaes" e chega, então, "a farmacêutico, seriam "nullos", em parte por conta das condições de infra-estrutura
occasião de enxotal-os para
t- a Capital",
t- t-para o que
-i "os habitantes cotisam-se e da cidade, que não possuía água encanada; por outro lado, a Commissão "teve que .-.
pagam a passagem delles no trem". luctar com a ignorância ema vontade da população que impedia por todos os meios
a marcha do serviço". Os mata-mosquitos encontravam muitas dificuldades para
Os vagons enchem-se de retirantes gordos, fortes, vestidos de roupas ainda atingir os focos nas casas: "muitos oppunham-se à entrada (...) e quando consen-
sãs, mas sujas, nojentos, exalando um cheiro de porcaria que embebeda. tiam não deixavam examinar os depósitos dagua", "a maioria das donas de casa
Este fartum especial da sujidade é tal que empesta o trem inteiro, vindo da não permittia (...) allegando os maridos não estarem em casa".
cauda deste.63 "Com semelhante gente mal educada como fazer a prophylaxia de uma cida-
de!", desabafava Rodolpho Theophilo.
Rodolpho Theophilo renova suas teorias a respeito dos que se retiram logo Com a chegada de alguns casos da peste, a Commissão "teve ordem do Rio
que a seca é "declarada", em março. "A gente que em Março retira-se para o de agir contra a peste bulbônica, continuando a prophylaxia da febre amarela".
littoral é vagabunda", já que o período da colheita, normalmente, é abril, o que Mas os recursos para esta outra epidemia eram mais escassos ainda e, após uma
"prova que não semeou". Assim, mesmo reafirmando ser contrário à emigração, desinfecção, o farmacêutico observa que "os ratos ficaram no goso da melhor
que "sempre foi e será um grande mal para o Estado", o farmacêutico afirma que saúde como as baratas e até os mosquitos". Por sorte, estas doenças não chega-
"a população que se desloca logo que se declara a secca é preguiçosa e vagabun- ram a alcançar números expressivos entre os retirantes.65
da e o Estado nada perdia vendo-a sahir do seu território".64 Em dezembro, todavia, "24.000 retirantes famintos, esfarrapados e sem
A capital foi sendo tomada novamente por retirantes famintos, que espera- trabalho de espécie alguma" já se encontravam em Fortaleza. Destes, somente
vam proteção por parte do governo e da população urbana, na forma de trabalho 1.100 eram diretamente atendidos pelo Dispensário dos Pobres, "instituição
e esmolas. Os trens, todos os dias, "derramavam uma onda de famintos na capi- apreciável do Sr. Arcebispo - grande amigo dos pobres - e dirigida pelas se-
tal", que "espraia-se pelas ruas da cidade e á noite pelos subúrbios para pernoitar nhoras de caridade, verdadeiras heroinas do amor ao próximo", construída pela
á sombra das arvores". As lembranças dos abarracamentos de 1877 e do Campo Liga das Senhoras Catholicas e "que tão bons serviços vem prestando aos
de Concentração de 1915 ainda eram fortes o suficiente para evitar uma medida desfavorecidos da fortuna".66

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As obras públicas se reduziam a "pequenos serviços em Fortaleza" e a "aber- meroso grupo de flagellados assaltou algumas carroças de géneros que se diri-
tura de comissões de soccorros". A demora na efetivação de obras para ocupar as giam da praia para o centro da cidade". No mesmo dia, "na Praça do Ferreira
massas de retirantes preocupava alguns habitantes, desconfiados que "quando houve um meeting que durou 4 horas", após o que "uma multidão de famintos
começarem os trabalhos para os flagellados descalços, os de casaca já têm lhe dirigiu-se ao palácio do governo a fim de pedir ao Dr. João Thomé para ser inter-
comido a verba".67 Nos poucos serviços em andamento, predominava a desorga- prete de suas desgraças junto aos poderes da Nação", no sentido que "o Governo
nização e a fraude. Além disso, os salários pagos pelo governo eram insuficientes Federal envie soccorros directos aos famintos". Não só não foram recebidos, já
e ainda sofriam descontos, "uma porcentagem para os cofres da Nação a título que "a policia prohibiu a aproximação dos flagellados", como "com escândalo
não sei de que e mais outra para pagar o medico"; por outro lado, "os géneros geral a policia embalada dispersou o cortejo de flagellados composto de homens,
alimentícios vendiam-se por altos preços", "além da má qualidade". Para compli- mulheres e creanças". No dia seguinte, "repetiram-se aquelles actos de desespe-
car ainda mais a vida dos retirantes, o chefe dos serviços, no mais das vezes, era ro". No mercado, "os famintos arrebataram cestas de pães e se apoderaram de
"um homem máo" - "ás vezes um pelintra nascido e educado na calaçaria da algumas bancas de comidas feitas"; "ás 2 horas assaltaram e saquearam mais
Capital da República", "ás vezes um tyrano" que suspendia os operários "pela uma carroça de géneros". Com o tumulto, "muitos armazéns da praia fecharam as
mais leve falta por dez e mais dias (...) allegando ser necessário a disciplina" - suas portas" e "os caminhões da Light no serviço de transporte de géneros trafe1
que "não tinha dó da miséria destes brazileiros a quem a Nação não fazia favor gam guardados por policiais armados de carabinas". A reação do Presidente do
em soccorrer visto a Constituição mandar prestar-lhes assistência em tempo de Estado é rápida e "com força embalada". A prisão de um flagelado causa uma
calamidade". O resultado observado era que "a fome e a nudez andavam de mãos grande confusão, em que a "multidão de famintos tentou tomar o preso apedre-
dadas nos serviços das obras contra as seccas" e "os operários e suas famílias jando os soldados". Outras detenções são efetuadas, sob a alegação de que insu-
estavam semi-nús".68 flaram os famintos ao ataque. O advogado Augusto Bacurau, revoltado com sua
Ao que parece, o governo do Estado quis deixar ao máximo possível por "arbitraria prisão", publicou um "longo e vehemente artigo" que causa "enorme
conta das instituições de caridade, ou da caridade individual, o atendimento à sensação" na cidade, já que "termina dizendo que João Thomé lhe há de dar
população de retirantes. Talvez, mas isso as fontes não nos informam diretamen- plena e cabal satisfação logo que deixar o governo". Como resultado deste con-
te, o Presidente João Thomé e seus auxiliares estivessem convencidos de que flito, o "governo mandou logo iniciar os trabalhos da estrada de rodagem a
uma excessiva intervenção do Estado no mercado de alimentos e de mão-de-obra Canindé, enviando para este serviço cerca de 4.000 retirantes mediante a diária
pudesse ser mais inconveniente do que mesmo a presença dos famintos na capi- de l$800", mais 2.000 são enviados de trem para Maranguape, e para outros
tal, e o movimento do mercado, ele mesmo, pudesse fazer retornar a oferta de serviços serão "alistados igualmente quantos operários appareçam". Outras ver-
vagas de trabalho e de preços ao nível considerado normal, apesar das condições bas federais suplementares são enviadas para o Dispensário dos Pobres, num
especiais de escassez por conta da seca. A caridade, portanto, e não medidas total de 75 contos de réis, "afim de evitar novos assaltos", evitando também o seu
governamentais de intervenção no mercado, seria o instrumento mais correto para fechamento. 70 As autoridades, como na maioria dos casos, combinaram atitudes
relacionar-se com os retirantes, definindo esse relacionamento no círculo da es- repressivas com ações conciliadoras, demonstrando aguda sensibilidade no trato
fera privada, das iniciativas individuais ou de grupos de indivíduos, como a Liga com os retirantes revoltados e famintos.
das Senhoras Catholicas, inserindo a assistência social no âmbito de ação da vida Como se vê, apesar da repressão violenta e dos ânimos exacerbados, o con-
religiosa.69 flito resultou na concessão das reivindicações dos retirantes por parte do gover-
Em vista da precariedade das obras, o Dispensário dos Pobres tornou-se a no, de que podemos concluir que uma negociação se efetuou. Sem palavras, po-
entidade que conseguia maiores recursos para assistir os famintos, através da rém, sem representantes ou entidades reunidos com outros representantes ou en-
recepção em seu alojamento ou através da distribuição de esmolas e refeições. tidades, os pobres e famintos que ocupavam a cidade durante a seca de 1919
Assim, é em torno desta instituição que se travam os maiores conflitos durante conseguiram chegar a um objetivo, defini-lo e alcançá-lo através de uma ação
esta seca, que se estendem ao ano de 1920. direta, tumultuaria e coletiva, para o que o conceito de "negociação coletiva atra-
Em 30 de janeiro, em face da ameaça de fechamento do Dispensário, "nu- vés da arruaça"71 parece ser bastante operacional.

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Com as chuvas de 1920, reiniciou-se o processo de retorno dos agricultores tural e uma dieta insuficiente para um desenvolvimento físico completo. Tais
aos seus locais de moradia nos sertões. Mas alguns permaneciam nos subúrbios, olhares, advindos do enfrentamento direto com a presença dos retirantes no coti-
"restos da secca de 1919". Aproveitando uma doação da Maçonaria do Rio Gran- diano urbano em períodos de secas - expressos, por exemplo, nos jornais e nas
de do Sul, o próprio Rodolpho Theophilo responsabilizou-se por este serviço e obras de Rodolpho Theophilo e Tomás Pompeu Sobrinho -, se complementam
mandou "emissários propor-lhes [aos retirantes] a volta a suas casas, dando-lhes com outras visões oriundas da literatura e da produção intelectual brasileiras em
passagens, algum dinheiro, viveres para a viagem e roupa aos mais nus". Nova- geral. Mas, talvez, a contribuição que mais conseguiu influir na conformação
mente, porém, os retirantes e os habitantes pobres da cidade encontravam formas desta visão científica - ou "cientificista" - do problema das secas e do homem
de ludibriar e aproveitar-se da iniciativa, de modo que "foi uma lucta terrível este sertanejo tenha sido Os Sertões, de Euclides da Cunha. O determinismo geográ-
serviço de internação". Alguns aceitaram, mas "a maioria para illudir recebendo fico se manifesta na própria organização do livro, mas, especialmente, na dispo-
o auxilio e deixando-se ficar". A "repartição da internação" ficou localizada na sição e análise do meio que circunda o sertanejo e, segundo ele, o conforma. A
própria residência do farmacêutico, mas, mesmo assim, "habitantes da capital própria expressão de elogio ao rude vaqueiro e agricultor - "o sertanejo é antes
que moravam nas areias, a ralé da cidade, vinham apresentar-se como flagellados de tudo um forte" - é matizada pelas circunstâncias ambíguas da vida sertaneja e
que desejavam voltar para o sertão", "outros recolhiam o dinheiro, os viveres e a do biótipo deste homem: "desgracioso, desengonçado, torto", é "o homem per-
passagem e ficavam". Isso convenceu definitivamente o filantropo "do desbria- manentemente fatigado" que "reflete a preguiça invencível, a atonia muscular
mento dessa gente que a fome degradou".72 perene", mas que, no entanto, "basta o aparecimento de qualquer incidente" que
"naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações com-
II. Novas Estruturas de Sentimentos pletas". Esta ambiguidade reflete "o caráter selvagem" da luta pela vida nos "ser-
tões do Norte", com "os horrores da seca e os combates cruentos com a terra
Esses anos de secas e relações entre a vida urbana e os retirantes, de 1877 até ácida e exsicada", "as cenas periódicas da devastação e da miséria, o quadro
1919, trazem importantes modificações nas estruturas de sentimentos73 que deli- assombrador da absoluta pobreza do solo calcinado". É um homem que "atraves-
mitam a percepção dos fenómenos das secas e das migrações, assim como da sa a vida entre ciladas, surpresas repentinas de uma natureza incompreensível" e
presença recorrente dos retirantes nas cidades. Vários elementos aqui menciona- "reflete, nestas aparências que se contrabatem, a própria natureza que o rodeia";
dos sofreram transformações, inflexões ou foram simplesmente eliminados. Con- e "é natural que o seja", pois "viver é adaptar-se".74 Essa essência ambígua se
vém, portanto, oferecer uma visão de conjunto destas novas sensibilidades. combina, no momento da seca, com as "psicoses tropicais", com a degradação
Em primeiro lugar, a percepção de uma decadência ou de uma degeneração moral resultante da necessidade e com as doenças epidêmicas para instituir sim-
física e moral por conta da miséria, da fome e das agruras da migração parece ter bolicamente o retirante como uma criatura inferior, capaz de atos "bárbaros" em
se generalizado nestes primeiros anos de relacionamento com os refugiados da momentos de dificuldades, que ocupa o espaço urbano sem a bagagem cultural
seca. Os atos violentos ou "bárbaros" - antropofagia, suicídios, assassinatos de necessária para compreendê-lo. E essa barbárie ocupa o centro das percepções
membros das famílias - passam a ser vistos como resultado desta degeneração, sobre os pobres e constitui um elemento da própria natureza da miséria.
que "embota os sentimentos mais delicados" etc. Um olhar científico se estabele- Em segundo lugar, a presença dos retirantes no cenário urbano está, em de-
ce a este respeito, conformando um campo de produção de certezas a respeito do corrência deste primeiro aspecto, associada ao incremento das doenças, da
retirante e sua "natureza" sub-humana, justificando ações de controle social ou criminalidade, da mendicância, da corrupção e da prostituição. A própria ideia de
mesmo de repressão violenta. Ao longo das secas, na virada do século XIX para seca transforma-se nessa imagem multifacetada. Assim, a proximidade de uma
o XX, este olhar científico produz "verdades" que delimitam o campo de atuação nova estação seca, a partir dos sinais já agora também conhecidos pela população
social e principalmente política destes seres "inferiores pela raça e pelos costu- urbana, provoca uma ansiedade e um temor que se intensifica à medida que se
mes", nomeando e, ao mesmo tempo, qualificando a capacidade de discernimento vão confirmando as mais pessimistas expectativas. Num mesmo movimento, as
ou racionalização da realidade dos sertanejos como limitada pelo meio e pelas lembranças - próprias ou transmitidas - dos episódios de 1877 e a recorrência
dificuldades "naturais" de sua vida sujeita a um baixo índice de "progresso" cul- deles em períodos posteriores geram, combinadas, uma identificação da chegada

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FREDERICO DE CASTRO NEVES r A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

dos retirantes com um período em que se deve forçosamente conviver com os mosidade, tensas e, por vezes, os protestos e atitudes dos famintos não conse-
elementos da barbárie que a cidade se preocupa em controlar e combater, um guem obter a solidariedade que costumam ter, pelo menos nas páginas dos jor-
sacrifício a ser feito em nome da caridade e da solidariedade com as vítimas do nais. A presença do Estado, aqui, irá recosturar esta ligação ameaçada pela ex-
"flagelo". Por outro lado, há que se fazer uma distinção entre os pobres urbanos cessiva mendicância. No entanto, permanece a necessidade de qualificar os po-
. e os pobres "adventícios", entre aqueles que a miséria já degradou e aqueles que bres, classificá-los em "envergonhados", "flagelados" ou "aproveitadores", para
lutam para manter sua dignidade, entre os que já mendigam por ofício e aqueles que a esmola não se torne nem um vício, um estímulo à preguiça e à ociosidade,
que o fazem envergonhadamente; uma classificação das várias espécies de po- nem uma ofensa aos trabalhadores e pais de família que, pelo menos no discurso
bres se torna, portanto, necessário estabelecer para que se possa aplicar as medi- das elites intelectuais, procuram sustentar dignamente suas posses sem o auxílio
das corretas para cada caso, livrando a população urbana do desassossego dos do Estado.77 O exercício da caridade passa a ser regulado por essa classificação -
excessos e dos abusos, da "exploração da caridade particular". Assim, o conheci- que irá tomar forma mais definida com a proposta elaborada pelo Rotary Club e
mento científico elaborado sobre os pobres em geral e sobre os retirantes da seca exposta por Raimundo Girão, durante a década de 1950 - e direcionado àquelas
em particular pode ser o instrumento de classificação dessa massa de pobres, categorias dos mais "necessitados", os quais, em tempos de seca, se identificam
colocando uma ordem no mundo estranho e desconhecido, mas ao mesmo tempo aos "flagelados". Em função disso, a caridade "oficial" se dirigirá prioritariamente
temido, da pobreza.75 Além disso, a caridade precisa ser regulada, regrada, para a esta categoria, mas procurando afastá-la do convívio da cidade e, portanto, do
poder ser estendida aos que realmente a merecem. exercício direto da caridade individual. Mais uma vez, o objetivo dos planos de
Em terceiro lugar, as ambiguidades existentes no exercício da caridade por "combate às secas" se orientará para "fixar o homem no campo", impedindo-o de
parte da população urbana revelam, cada vez mais explicitamente, as mudanças chegar à cidade. Esta ambiguidade se refletirá nas medidas destinadas a identifi-
nas-estruturas de sentimentos com relação aos retirantes das secas. De um lado, a car os verdadeiros mendigos - os inválidos, os velhos, os trabalhadores sem em-
prática deste sentimento cristão fundamental - que abençoa muito mais quem o prego etc - e combater os "excessos" da mendicância urbana. 78
exercita do que quem o recebe - se combina perfeitamente com a reciprocidade Em quarto lugar, a preocupação com a mendicância e com seus excessos - a
paternalista, já que, segundo os cânones da Igreja Católica, "o forte devia susten- vagabundagem contumaz - levará necessariamente a uma valorização de seu in-
tar o fraco e o segundo servir o primeiro", e, como ponto essencial dessa relação, verso: o trabalho. Os socorros, outrora concedidos simplesmente como um fator
estaria a base da caridade. 76 A esmola, portanto, podia ser considerada uma espé- de proteção (pública ou privada), não poderão mais ser dissociados de uma retri-
cie de dever social para com os pobres, especialmente em momentos de escassez. buição em forma de trabalho. Assim, não só a seca equipa as propriedades rurais
Isso se reflete na forma como os observadores e os jornalistas se revoltam contra com açudes, as cidades com calçamentos e obras e o Estado com estradas de
a "exploração da caridade" pelos famintos e, principalmente, pelos aproveitado- ferro - os "melhoramentos da seca" -, como igualmente constitui uma força de
res: um limite que foi ultrapassado, mas que dificilmente pode ser determinado, trabalho periodicamente disponível e permanentemente disciplinada. Ao mesmo
pois inscreve-se imaginariamente nas relações entre os cristãos e a pobreza variá- tempo em que a proteção aos pobres em tempos de escassez vai sendo transferida
vel e flutuante - apesar de extremamente impactante - que frequenta as cidades para o âmbito do Estado, a exigência com o merecimento à assistência social vai
durante as secas. Assim, as circunstâncias particulares de cada momento de seca cada vez mais sendo delineada através do trabalho regular, disciplinado, árduo e
podem determinar o estabelecimento deste limite e as formas de transgredi-lo. mal remunerado, uma pedagogia pouco sutil em que a aprendizagem está condi-
Por outro lado, as constantes transgressões a esses limites produzem um "cansa- cionada pela necessidade e pela fome. O "direito" à proteção estatal é, então,
ço" no exercício da caridade por parte das populações urbanas, especialmente em dependente de uma disposição incondicional para o trabalho; sendo o trabalho
Fortaleza, onde as fontes são mais abundantes. Isso não somente gera uma ani- nas obras públicas um "favor", os direitos assegurados nas relações costumeiras
mosidade contra o aumento de retirantes na cidade, como alimenta as reivindica- - seja na fazenda, seja no trabalho doméstico ou artesanal - são temporariamente
ções para que o Estado assuma mais efetiva e eficientemente as obrigações de suspensos. Não há, por assim dizer, limites para a exploração da mão-de-obra
proteção à população "flagelada" em forma de socorros públicos e assistência dos retirantes, já que sua condição de "desterrados" os obriga a aceitar qualquer
; social. As relações entre retirantes e habitantes tornam-se, em função desta ani- serviço em troca da assistência social. Na visão que se estrutura nestas primeiras

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

décadas do século XX, qualquer trabalho para o retirante é melhor do que ne- vulcânica também empregada para entender as revoltas da plebe urbana euro-
nhum, mesmo que os bens construídos sejam inúteis: o importante é ocupar o peia. Por outro lado, as políticas de encarceramento da população retirante em
retirante para que ele não mendigue, nem cobre direitos, nem proteste. Por outro seus próprios "abarracamentos", ou em "campos de concentração" especialmen-
lado, os retirantes logo aprendem que, por vezes, antes de reivindicar comida, te criados pelo poder público, revelam a desconfiança geral com relação aos po-
devem exigir "serviço"; aprendem, sobretudo, a interpretar os movimentos da bres, especialmente com determinados pobres, aqueles que, degradados pela mi-
política naquilo em que ela se refere à assistência aos pobres e isso significa séria e pela fome, estariam dispostos a cometer qualquer tipo de comportamento
saber quando reivindicar trabalho e quando pedir auxílios diretos, de acordo com para saciar suas necessidades vitais mais elementares. A cada seca, as classes
a tendência dos governantes, no momento da seca.
pobres - e principalmente os retirantes - são observadas, classificadas e percebi-
Em quinto lugar, os conflitos gerados pela aglomeração de retirantes famin- das como classes perigosas, portadoras dos vícios do corpo e da alma, que po-
tos nas cidades levam, portanto, a um receio generalizado de um "levante geral dem contaminar a sociedade inteira através do contato direto. Para sublimar este
da pobreza".79 As desigualdades sociais, na percepção do paternalismo clássico, perigo potencial, as estratégias se dirigem para o afastamento, o enclausuramento,
normalmente estão associadas a um fenómeno da natureza e, assim, não causam a apartação, o isolamento e a proteção das cidades contra a invasão dos pobres.
graves fissuras no tecido social. No entanto, a presença reiterada da multidão de Em sexto e último lugar, diante destas considerações, parece ter sentido,
retirantes acaba por abalar esta concepção e apresentar a possibilidade de uma para esta situação específica, a sugestão de Elias Canetti acerca do "temor do
revolta dos pobres contra um sistema social injusto. De fato, as desigualdades contato", apesar da excessiva - e, por vezes, abusiva - generalização que se
não são desconhecidas, Tnas são percebidas como um fato natural. Os atos da depreende da leitura de Massa e poder?2 Não nos referimos, aqui, ao "temor do
multidão que se insinuam nos momentos de seca e de crise na assistência social, contato" como uma característica da humanidade em geral, nem pensamos na
como foi apresentado em diversas oportunidades aqui neste capítulo, colocam multidão como uma forma de sublimar este temor através da compactação numa
em questão esta segurança e, de uma maneira muito pouco clara, inscrevem o massa de seres humanos abstratos. Falamos de uma situação histórica particular,
fenómeno da pobreza como um elemento pertencente ao mundo social, resultan- em que um conjunto de fenómenos se conjuga para nos sugerir esta ideia. A
te de ações, deliberadas ou não, de sujeitos sociais precisos, cuja responsabilida- recorrência dos acontecimentos já descritos em momentos de seca, assim como o
de pode ser auferida. Isso impõe à sociedade a responsabilidade adicional de curso assumido pelas relações entre a multidão de retirantes e as autoridades
procurar soluções, isto é, de enfrentar diretamente a questão da pobreza, da men- urbanas, geram uma desconfiança generalizada com relação às migrações e aos
dicância e seus excessos, além dos comportamentos desviantes ou criminosos, migrantes pobres. As políticas de segregação destes pobres, em face do elevado
como o roubo e a prostituição. Esses elementos configuram uma desconfiança volume deste fluxo irregular, respondem a esta desconfiança e, ao mesmo tempo,
contra os pobres em geral, especialmente em momentos de seca, levando a uma contribuem para a estruturação de um receio indefinido e generalizado com rela-
identificação, já analisada em diversos contextos históricos, entre classes pobres ção aos "adventícios", que pode ser descrito como "temor do contato". A popula-
e classes perigosas. A fronteira entre estas duas noções torna-se, ao longo do ção das cidades prefere dar esmolas a grupos organizados de pobres, albergados
tempo, cada vez mais ténue e imprecisa, revelando que também os jornais e as em instituições como o Dispensário dos Pobres, a distribuir o óbolo diretamente
fontes intelectualizadas do Ceará na virada do século estavam atentas para "os aos passantes nas ruas; os governantes optam por concentrar os retirantes em
sinais de uma irrupção das forças subterrâneas da sociedade".80 Parece que a locais determinados, longe do espaço urbano, a fim de distribuir os socorros:
expressão "forças subterrâneas" se encaixa melhor na estrutura de sentimentos vagas em obras públicas e donativos. Esta postura, tomada após a série de acon-
que se forma então, porque revela a emergência de energias ocultas de natureza tecimentos que descrevemos, sugere algo semelhante ao "temor do contato", que
indefinida, pouco identificadas à atividade política propriamente dita. As reações só se institui após estes acontecimentos, o que nos leva a crer que resultam deles
dos retirantes, descritas como resultantes da fome e da miséria, podem ser perce- e não de uma natureza humana abstraia que se revela neste momento. Um outro
bidas, a partir desta noção, como "respostas espasmódicas" ou impulsos componente deste "temor" pode ser acrescentado: a preocupação, expressa várias
involuntários de preservação da vida, tal como E. P. Thompson descreveu no
vezes por Rodolpho Theophilo, com a defesa da civilização, o que o faz identifi-
caso da historiografia inglesa.81 As "forças subterrâneas" se associam à metáfora car os atos da multidão de retirantes ou de pobres revoltados como "bárbaros".

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A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

Tal preocupação manifesta uma outra associação interessante, entre pobreza e este estado o torna excessivamente fraco para organizar-se coletivamente ou to-
barbárie, já que as atitudes tomadas pelos pobres frequentemente assumem, mar qualquer atitude mais ousada;85 e o espaço privilegiado para este auxílio é a
segundo Theophilo, esta característica. Assim, os pobres, quando se manifes- cidade.
tam, o fazem "barbaramente", contrapondo-se aos ditames da organização so- Os movimentos da multidão, portanto, que irão se intensificar nos anos se-
cial moderna e aos processos civilizatórios em curso nos centros urbanos. Um guintes, vão encontrar estas estruturas de sentimentos já razoavelmente
outro perigo, portanto, a ser devidamente sublimado e neutralizado pelas auto- estabelecidas e daí por diante deverão, dentro dos termos ditados por elas, nego-
ridades, que se associa ao perigo das epidemias também frequentemente de-
ciar com as autoridades urbanas.
nunciado pelo farmacêutico. 83 Mais uma vez, a necessidade de evitar o contato Assim, a seca, agora transformada definitivamente em um fenómeno social
com essa massa torna-se o principal objetivo das medidas de governo com rela- e político muito mais do que meramente climático, passa a constituir-se em uma
ção aos retirantes que orientam o programa de "combate às secas" que se vai chave importante na compreensão da realidade histórica e social do Ceará, já que
aos poucos estabelecendo no Ceará como parte fundamental da política estatal, funde, no momento de sua eclosão, os vários elementos da cultura ligados à con-
a figurar em todos os programas do governo estadual, desde então, como um de cepção sobre a vida no campo, sobre a natureza e sua relações com a vida social,
seus itens fundamentais. sobre a pobreza e sobre a possibilidade de ação autónoma e consciente por parte
dos retirantes famintos que clamam por comida, trabalho, remédios e roupas.

Referências bibliográficas
As estruturas de sentimentos aqui delineadas, portanto, conformam o am-
biente social e político onde se instituirão daí por diante as relações entre os 1 GIRÃO, Raimundo. Evolução Histórica Cearense. Op. Cif. p. 203.
retirantes e o universo da vida urbana. A permanência de elementos característi- 2 Libertador, 12 de julho de 1889.
cos do modelo paternalista se combina e se fusiona com novas noções e outros 3 Cearense, 19 de janeiro de 1889.

conceitos sobre a vida social e comunitária e, especialmente, sobre a divisão da 4 Cearense, 10 de abril de 1889.
riqueza social em momentos de escassez. 5 Constituição, 12 de janeiro de 1889.

A transferência parcial da assistência paternalista exercida pelos coronéis 6 Constituição, 27 de fevereiro de 1889 e 15 de março de 1889.
1 Cearense, 16 e 19 de março de 1889.
para uma assistência igualmente paternalista exercida pelo Estado exigiu a incor-
poração das áreas urbanas ao fenómeno da seca, colocando a população das cida- x Constituição, 30 de março de 1889.
9 Constituição, 08 de janeiro de 1889.
des no "olho do furacão". De fato, mesmo se uma ruptura do pacto paternalista
111Cearense, 13 de janeiro de 1889. O Cearmse era um "órgão liberal", enquanto que o Cons-
tenha acontecido já em 1877, pois que "os homens pobres e os escravos foram tituição era um "órgão conservador" que tinha o apoio do Libertador. Ser situação ou oposi-
abandonados pelos coronéis-pais-patrões, rompendo o pacto tradicional de leal- ção, neste momento, tinha grande importância para estes jornais, não só porque eram os repre-
dade e apadrinhamento",84 o Estado assume esta dívida com todas as suas obri- sentantes dos próprios partidos que dividiam a cena política no Império, mas também porque
toda a divulgação dos atos oficiais era veiculada pelo jornal da situação, que na primeira
gações costumeiras. A ordem de grandeza assumida pelas migrações e pela ne-
página mantinha uma seção intitulada "Parte Official", contendo os atos e despachos do go-
cessária assistência emergencial obriga a uma nova "administração da miséria", verno provincial e suas secretarias. O Presidente da Província era Caio Prado, um conserva-
cuja dimensão ultrapassa as possibilidades materiais dos proprietários rurais, to- dor, que faleceu em maio de 1889, em meio à seca, sendo substituído pelo liberal Henrique
mados individualmente. A ruptura do pacto, assim, não representa uma ruptura d'Ávila. A posição que os jornais tomam diante das medidas assistenciais muda na metade do
ano, assim como as próprias medidas.
do tecido social e uma ordem ainda baseada nos termos da reciprocidade perma-
1' Cearense, \ de janeiro de 1889.
nece forte, exercendo pressões e estimulando atitudes. O pacto, mesmo parcial-
12 Cearense, 23 de março de 1889.
mente rompido, ainda está de pé!
13 Cearense, 13, 20 e 22 de janeiro de 1889.
O sertanejo percebe, ao mesmo tempo, que não é necessário chegar a um
14 C/f. p. ALVES, Joaquim. História das Secas (Séculos XVII a XIX). Op. Cit. pp. 233-234.
estado profundo de miséria e inanição para procurar auxílio, inclusive porque
15 Constituição, 25 de janeiro de 1889.

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A MULTIDÃO E A HISTÓRIA
FREDERICO DE CASTRO NEVES

pp. 227-240; e PORTO, Eymard. Babaquara, Chefetes e Cabroeira. Fortaleza no início do


16 Constituição, 28 e 30 de abril de 1889.
século XX. Fortaleza: SECULT-CE, 1991. Tal como na Europa do século XIX, "na distinção
17 CEARÁ. Falia com que o Exm. Sr. Senador Henrique Francisco d'Avila, Presidente da entre pobreza e miséria, a noção de barbárie atua como elemento explicativo da condição
Provinda do Ceará, Abrio a 2" Sessão da Assembléa Legislativa Provincial, no dia 15 de primitiva da turba urbana". BRESCIANI, M" Stella M. "A Cidade das Multidões, a cidade
julho de 1889. Fortaleza: Typographia Brasileira, 1889. p. 8. aterrorizada." In: PECHMAN, Robert M. (org.) Olhares sobre a Cidade. Rio de Janeiro: Ed.
lí( Cearense, 24 de agosto de 1889. UFRJ, 1994. p. 19.
19 Cearense, 07 de setembro de 1889. Instruções dirigidas, pelo Presidente da Província, aos 33 PONTE, Sebastião R. Fortaleza Belle Époque. Op. Cit. p. 50. Para uma crítica aos excessos
"Comissários Geraes", responsáveis pela administração dos socorros. da teoria do "controle social", Cf. HIMMELFARB, Gertrude. La Idea de Ia Pobreza. Op. Cit.
2(1 SOBRINHO, Thomaz Pompeu. O Problema das Seccas. Op. Cit. pp. 24-25. pp. 431-465.
21 Libertador, 23 de julho de 1889. 34 CHALHOUB, Sidney, RIBEIRO, Gladys e ESTEVES, Martha de A. 'Trabalho escravo e

22 Libertador, 02, 04, 06, 07 e 23 de setembro de 1889.


trabalho livre na cidade do Rio: vivência de libertos, 'galegos' e mulheres pobres." Revista
Brasileira de História. São Paulo: ANPUH/Marco Zero, vol. 5, n° 8/9, set.l984/abr.!985. p.
23 Cearense, 15 de novembro de 1889. O debate em torno da emigração e das medidas a serem
104.
implementadas no momento da seca superou, nos jornais cearenses, o espaço de qualquer
35 PONTE, Sebastião R. Fortaleza Belle Époque. Op. Cit. p. 51.
informação séria sobre a campanha republicana. Assim, somente alguns dias depois da procla-
36 THEOPHILO, Rodolpho. A Seca de 1915. Op. Cit. pp. 43-47. (Note-se novamente o uso da
mação os jornais mais importantes da capital, ligados aos partidos monarquistas, noticiaram a
mudança de governo. O farmacêutico Rodolpho Theophilo, mais uma vez, percebeu as sutile- expressão "bárbaros".) Sobre a revolta, inspirada por Padre Cícero e liderada por Floro
zas do ambiente político: "A noticia da mudança da forma de governo chegou ao Ceará, como Bartolomeu, Cf. também ld. A Sedição do Joazeiro. São Paulo: Ed. Revista do Brasil, 1922.;
em quasi toda parte, inesperadamente. Na véspera do acontecimento na província inteira tal- DELLA CAVA, Ralph. Milagre em Juazeiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.; CAMURÇA,
vez não se contassem três republicanos. Dois dias depois da proclamação da republica dava-se Marcelo. Marretas, molambudos e rabelistas. São Paulo: Maltese, 1994.
justamente o contrario, era difficil encontrar três monarchistas." THEOPHILO, Rodolpho. "QUEIROZ, Rachel de. O Quinze. 52 ed. São Paulo: Siciliano, 1993. pp. 21-31. Este roman-
Seccas do Ceará (2ametade do sec. XIX). Ceará: Typ. Moderna/Ateliers Louis, 1901. p. 36. ce, escrito em 1930, quando a autora tinha cerca de 20 anos, é considerado um marco impor-
24 ESTADO DO CEARÁ. Mensagem apresentada á Assembleia Legislativa do Ceará em l" tante do movimento chamado "romance de 30", que procurava refletir a realidade regional, em
de julho de 1901 pelo Presidente do Estado Dr. Pedro Augusto Borges. Fortaleza: Typ. suas mais cruas manifestações e suas relações com a natureza agreste do semi-árido.
Económica, 1901. p. 24. Convém assinalar que o Dr. Pedro Borges trabalhou arduamente nos 38 THEOPHILO, Rodolpho. A Seca de 1915. Op. Cit. pp. 37-38.
abarracamentos e lazaretos de Fortaleza, em 1877-1880, como médico responsável pelo com- 39 QUEIROZ, Rachel de. O Quinze. Op. Cit. pp. 83-87; NEVES, Frederico de C. "Curral dos
bate às epidemias e outras doenças que grassavam entre os retirantes. Bárbaros: os Campos de Concentração no Ceará (1915 e 1932)." Revista Brasileira de Histó-
25 THEOPHILO, Rodolpho. Seccas do Ceará (2" metade do sec. XIX). Op. Cit. pp. 68, 80 e ria. São Paulo: ANPUH/Contexto, vol. 15, n" 29, 1995. pp. 96-105.
148. 40 ESTADO DO CEARÁ. Mensagem dirigida à Assembleia Legislativa do Ceará em 1° de
26 ESTADO DO CEARÁ. Mensagem apresentada á Assembleia Legislativa do Ceará em 1° julho de 1916 pelo Presidente do Estado Cel. Benjamim Barroso. Fortaleza: Typographia
de julho de 1901 pelo Presidente do Estado Dr. Pedro Augusto Borges. Op. Cit. p. 29. Moderna, 1916. p. 7.
27 A Cidade (Sobral), 15 de agosto de 1900. 41 THEOPHILO, Rodolpho. A Seca de 1915. Op. Cit. pp. 54-55.

28 ESTADO DO CEARÁ. Mensagem apresentada á Assembleia Legislativa do Ceará em 1° 42 Na seca de 1877, por exemplo, no "Curral do Açougue", onde as reses eram abatidas, "fer-
de julho de 1901 pelo Presidente do Estado Dr. Pedro Augusto Borges. Op. Cit. pp. 42-44; vilhavam, em ruidosa diligência, legiões de operários construindo a penitenciária de Sobral",
SOBRINHO, Tomaz Pompeu. História das Secas (Século XX). Op. Cit. pp. 192-196. A Cida- já que, segundo o romancista, "acertara a Comissão de Socorros em substituir a esmola
de, de 29 de setembro de 1900, incentiva a realização uma campanha de arrecadação de recur- depressora pelo salário emulativo, pago em rações de farinha de mandioca, arroz, carne de
sos: "façam-se subscrições, angariem-se donativos, inventem-se recursos de toda a espécie". charque, feijão e bacalhau, verdadeiras gulodices para infelizes criaturas, açoitadas pelo flagelo
29 THEOPHILO, Rodolpho. Seccas do Ceará (2ametade do sec. XIX). Op. Cit. pp. 166-167.
da seca a calamidade estupenda e horrível que devastava o sertão combusto". OLÍMPIO, Do-
mingos. Luzia Homem. São Paulo: Editora Três, 1973. pp. 23-24.
311 FROTA, Luciara S. de Aragão e. Documentação Oral e a Temática da Seca. Op. Cit. p. 179.
43 THEOPHILO, Rodolpho. A Seca de 1915. Op. Cit. pp. 52-53. Além de argumentar com
31 PONTE, Sebastião R. Fortaleza Belle Époque. Op. Cit. pp. 18, 28 e 37. Cf. ANDRADE,
base na experiência passada, Theophilo foi conferir in loco e concluiu: "a primeira visita que
João M. "A Oligarquia Acciolina e a Política dos Governadores." In: SOUZA, Simone (Coord.) fiz ao 'Campo de Concentração' deu-me a certeza de que em breves dias teríamos aí um
História do Ceará. Op. Cit. pp. 213-222. A Intendência da capital, durante os governos de
Accioly ou de seus aliados - Coronel Bizerril Fontenele (1892-96) e Dr. Pedro Borges (1900- 'Campo Santo'", ld. Ibidem. p. 57.
04) -, foi confiada a Guilherme Rocha. 44 SOBRINHO, Tomaz Pompeu. História das Secas (século XX). Op. Cit. p. 32.

45 Cf. CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril. Cortiços e Epidemias na Corte Imperial. São
32 THEOPHILO, Rodolpho. A Libertação do Ceará (A Queda da Oligarquia Accioly). Lisboa:
Typographia A Editora Ltda., 1914. p. 123. Cf. também: SILVA, Virgínia T. da. "Aspectos da Paulo: Cia. das Letras, 1996. pp. 62-67; e CORBIN, Alain. Saberes e Odores: o olfato e o
Crise Política de 1912 no Ceará." In: SOUZA, Simone (Coord.) História do Ceará. Op. Cit. imaginário social nos séculos dezoito e dezenove. São Paulo: Cia. das Letras, 1987. Rodolpho

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v. .-
FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

Theophilo transitava, como a maioria dos higienistas de sua época, entre os paradigmas da « SOBRINHO, Tomaz Pompeu. História das Secas (século XX). Op. Cit. p. 38. A iniciativa
"infecção" e do "contágio": ao mesmo tempo em que defendia ardorosamente a vacinação de armazenar água como forma de prevenir a seca ficou conhecida como "solução hidráulica",
contra a varíola, falava em "atmosfera saturada de miasmas" e "ares putrefatos". que, em seus fundamentos, permanece até hoje como base para os programas governamentais
46 SOBRINHO, Tomaz Pompeu. História cias Secas (século XX). Op. Cit. p. 27. de "combate às secas", mesmo que "desmoralizada pela vida". Cf. DOMINGOS NETO, Ma-
47 ESTADO DO CEARÁ. Mensagem dirigida à Assembleia Legislativa do Ceará em 1° de nuel, e BORGES, Geraldo A. Seca Seculorum. Flagelo e Mito na Economia Piauiense. 2 ed.
julho de 1916 pelo Presidente do Estado Cel. Benjamim Barroso. Op. Cit. p. 8. Teresina: CEPRO, 1987.p. 97.
48 THEOPHILO, Rodolpho. A Seca de 1915. Op. Cit. p. 60. «THEOPHILO, Rodolpho. A Secca de 1919. Op. Cit. p. 21.
49 SOBRINHO, Tomás Pompeu. O Problema das Seccas. Op. Cit. pp. 24-25. 64 Id. Ibidem. p. 22.
50 Id. História das Secas (século XX). Op. Cit. p. 25. 65 Id. Ibidem. pp. 22-23 e 60-67.
51 THEOPHILO, Rodolpho. A Seca de 1915. Op. Cit. p. 83. 66 Correio do Ceará, 26 de dezembro de 1919; ESTADO DO CEARÁ. Mensagem dirigida à
Assembleia Legislativa do Ceará em 1° de julho de 1920 pelo Presidente do Estado Dr. João
52 SOBRINHO, Tomaz Pompeu. História das Secas (século XX). Op. Cit. p. 25.
Thomé. Fortaleza: Typ. Moderna, 1920.pp. 33-34.
53 PONTE, Sebastião Rogério. Fortaleza BelleÉpoque. Op. Cit. p. 35.
67 Correio do Ceará, 26 de dezembro de 1919.
54 THEOPHILO, Rodolpho. A Seca de 1915. Op. Cit. p. 103.
68 THEOPHILO, Rodolpho. A Secca de 1919. Op. Cit. pp. 44-46. O farmacêutico desanima-
SOBRINHO, Tomás Pompeu. O Problema das Seccas. Ceará: Typo-lithographia Gadelha,
55 se, observando que "infelizmente a maioria dos homens é insensível aos soffrimentos de seus
1917. p. 25, nota 11. As análises sobre o Campo de Concentração de 1915 foram desenvolvi- semelhantes".
das a partir de NEVES, Frederico de C. "Curral dos Bárbaros: os Campos de Concentração no 69 A concepção cristã da caridade "transforma a humildade espiritual num impulso para Deus,
Ceará (1915 e 1932)." Op. Cit. pp. 96-105. Os números "oficiais" indicam que dos cerca de e visa aliviar a humilhação material e social dos pobres". Assim, "a responsabilidade da misé-
300 mil afetados pela seca (quase 1/3 da população do Estado), 70 mil emigraram e 27 mil ria não cabe apenas à conjuntura económica e às estruturas sociais", mas é uma "questão de
morreram. Cf. ESTADO DO CEARÁ. Mensagem dirigida à Assembleia Legislativa do Ceará consciência". MOLLAT, Michel. Os Pobres na Idade Média. Op. Cit. pp. 21 e 289.
em 1° de julho de 1916 pelo Presidente do Estado Cel. Benjamim Barroso. Op. Cit. p. 7.
7(1 A Ordem (Sobral), 06 e 07 de fevereiro de 1920; Correio da Semana, 07 de fevereiro de
56 THEOPHILO, Rodolpho. A Seca de 1915. Op. Cit. p. 78.
1920.
57 ESTADO DO CEARÁ. Mensagem dirigida à Assembleia Legislativa do Ceará em l" de
71 HOBSBAWM, Eric J. "Os Destruidores de Máquinas." In: Os Trabalhadores. Estudos so-
julho de 1916 pelo Presidente do Estado Cel. Benjamim Barroso. Op. Cit. p. 5. bre a História do Operariado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. p. 17. Através da "técnica da
58 Os critérios para avaliar a extensão de uma seca são sempre discutíveis. Os órgãos técni- destruição" ou das insurreições rápidas, várias categorias de trabalhadores da Inglaterra do
cos costumam utilizar a escala pluviométrica para medir a quantidade de chuvas, ou de falta século XVIII e inícios do XIX exerciam pressão sobre os empregadores para obter alguma
de chuvas. Prefiro, neste trabalho, o critério da mobilidade dos trabalhadores rurais: quanto espécie de modificação nas relações de trabalho.
maior a migração para as cidades - e os consequentes conflitos e medidas de controle dessa 72 THEOPHILO, Rodolpho. A Secca de 1919. Op. Cit. pp. 84-85. Ao trazer o serviço para sua
massa de famintos no espaço urbano - considero mais grave a seca. Este critério inclui residência, Theophilo conseguia fazer alguns pobres vacinarem-se contra a varíola.
outro, referente aos anos seguidos de irregularidade climática. É certo que, quanto mais
73 Utilizo aqui a expressão "estrutura de sentimentos" na forma delineada por Raymond
tempo dura a falta de chuvas, maior o número de pessoas que deixam as terras e procuram o
auxílio nas cidades. Williams, em O Campo e a Cidade na História e na Literatura. São Paulo: Cia. das Letras,
1989 e em Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. Uma "estrutura" porque as
-AGIRÃO, Raimundo. Evolução Histórica Cearense. Op. Cit. pp. 155-160. A recomposição formas de perceber estão articuladas, embora não haja necessariamente um único elemento
das plantações perdidas na seca de 1915 foi o momento de retomada do aprimoramento articulador; "sentimentos" porque se trata de uma sensação nem sempre consciente ou racio-
tecnológico em máquinas e sementes selecionadas. nalizada. No entanto, esta "estrutura de sentimentos", por assim dizer, organiza a percepção e
60 THEOPHILO, Rodolpho. A Secca de 1919. Rio de Janeiro: Imprensa Inglesa, 1922. pp. 9-10. dirige a elaboração de conceitos sobre a realidade. Forma, assim, um conjunto de convicções
61 PONTE, Sebastião Rogério. Fortaleza Belle Époque. Op. Cit. pp. 54-57. Várias fábricas, internalizadas e pouco problematizadas que se constrói ao longo do processo histórico, em
especialmente têxteis, foram inauguradas no Ceará no rastro dos lucros da cultura algodoeira. associação com ele, dando-lhe sentido na vida cotidiana e entendimento no interior da teia de
Uma sociabilidade burguesa, portanto, que convivia com sua antítese, o movimento operário. relações na qual se está inserido necessariamente. Cf. também as interessantes reflexões de
Em 1917 ocorreu a primeira greve "realmente operária", a que se seguiram outras em 1918, Hannah Arendt, em A Condição Humana. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.
1925 e 1929. Id. Ibidem. pp. 35 e 57. Cf. também: SOUZA, Simone. e OLIVEIRA, Francisco pp. 194-200.
de A . O Movimento Operário Cearense na l"República. Fortaleza: UFC/NUDOC (Cadernos 74 CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Op. Cit. pp. 129-135.
do NUDOC, Série História, n° 3), s.d. A presença da Igreja Católica e de outras entidades, 75 A percepção de um mundo distinto pertencente à pobreza não é nova na civilização ociden-
como a Maçonaria, na organização operária foi igualmente importante na formação de um tal e tem a ver com o triunfo da noção moralizante do trabalho. Assim, o "mundo diferente" é
"movimento" operário. Cf. PARENTE, Francisco J. C. "O Movimento Operário na T Repú- o dos sem trabalho, dos vagabundos que vivem às custas do trabalho alheio, seja através do
blica." In: SOUZA, Simone (Coord.) História do Ceará. Op. Cit. pp. 347-358. furto, da mendicância ou da assistência pública. Cf. GEREMEK, Bronislaw. Os Filhos de

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FREDERICO DE CASTRO NEVES
CAPÍTULO III
Caím. Vagabundos e Miseráveis na Literatura Europeia (1400-1700). São Paulo: Cia. das
Letras, 1995 np. 41-86. O mundo da pobreza pode também ser percebido como um "país
ignoto". Cf. HIMMELFARB, Gertrude. La Idea de Ia Pobreza. Op. Cit. pp. 357-455.
76 MOLLAT, Michel. Os Pobres na Idade Média. Op. Cit. p. 46.
77 Assim dizem Luís Gonzaga e Zédantas, na canção intitulada Vozes da Seca: "Mas doto uma
esmola/A um homem que é são/Ou lhe mata de vergonha/Ou vicia o cidadão". Ao mesmo tem-
po, como alternativa à esmola desmoralizadora, os poetas "pedem" ajuda aos poderes da Repú-
blica: "Dê serviço à nosso povo/Encha os rios de barragem/Dê comida a preço bão/Não esqueça
a açudagem". A poesia popular reproduz, nesse caso, as demandas originadas em jornais e orga-
nismos urbanos: trabalho, comida e, principalmente, obras de acumulação de água.
78A originalidade da situação se refletirá nas atitudes dos próprios mendigos da capital, que
muitas vezes se utilizarão desta ambiguidade em benefício próprio; por exemplo, vestindo-se
com as roupas características dos agricultores retirantes ou esmolando "envergonhadamente",
como faria um "pai de família" recém chegado à cidade. Cf. ARAÚJO, M" Neyára de O. A
Miséria e os Dias. (História Social da Mendicância no Ceará). Tese de Doutorado em Socio- I. A Multidão Ganha Visibilidade
logia apresentada a FFLCH/USP. São Paulo: 1996.
7yTema também presente na tradição ocidental. Cf. DELUMEAU, Jean. História do Medo no Em 1932, o trem já havia se tornado o principal meio de transporte dos reti-
Ocidente (1300-1800). São Paulo: Cia. das Letras, 1989. pp. 151-203. Curiosamente, este rantes que procuravam abrigo na capital. As estradas de ferro da Rede de Viação
autor nos fala que "a classe perigosa para as autoridades e para todos os possuidores de outrora
é, então, a dos mendigos itinerantes, que, acredita-se, transportam com eles todos os pecados
Cearense cobriam boa parte das vias de acesso à capital através dos ramais de
do mundo, inclusive a heresia, a libertinagem, a peste e a subversão" (p. 201). A ideia de uma Baturité (sertão central e sul), Sobral (zona norte) e Soure (atualmente Caucaia,
desconfiança geral contra os que circulam sem pouso fixo e que, assim, não compartilham das cobrindo as áreas próximas da região oeste). Assim, muitos dos conflitos que se
raízes sociais comuns, parece sedutora para indicar uma desconfiança ambígua para com os seguiram giravam em torno das estradas de ferro, das estações de embarque e,
retirantes.
mais propriamente, do embarque de retirantes em direção à Fortaleza.
80 BRESCIANI, M" Stella M. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza. 5 ed.
São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 110. Cf. também CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril. Op. Com as ferrovias - sustenta o Ministro José Américo de Almeida - evitava-
Cit. pp. 20-21. se "a extenuação das longas caminhadas, que subtraem aos retirantes a aptidão
81Cf. THOMPSON, Edward P. "A economia moral da multidão inglesa no século XVIII." Op. ao trabalho produtivo". 1 A jornada em direção à capital é atenuada, embora não
Cit. passim.
tenha se tornado confortável. O trabalho dos retirantes das secas anteriores -
82 Neste trabalho, Canetti procura classificar as formas coletivas de organização popular em
especialmente 1877, quando foi encampada a Estrada de Ferro de Baturité - equi-
"massa", "turba" e "malta", generalizando as suas conclusões, através de exemplos, como
características das sociedades em geral, apesar de sugerir, pela escolha dos exemplos - quase pou o Estado com uma malha ferroviária que, se não era exatamente ampla, pelo
sempre de sociedades primitivas ou de religiões não cristãs -, que estas formas estão presas a menos cobria as principais rotas de comércio e de escoamento da produção
um estágio primitivo da organização social, indicando uma visão evolucionista do processo agropecuária pelo porto de Fortaleza.
histórico. Está claro que esta é uma obra datada e intensamente marcada pelo "terror infundido
a Canetti, ainda jovem, nas ruas de Viena e Berlim, pelas primeiras manifestações populares
Rodolpho Theophilo já havia percebido a importância das estradas de ferro
de adesão ao nazi-fascismo", conforme explica Francisco Foot Hardman na "orelha" do livro. na atenuação do trajeto dos retirantes em busca de socorro, assim como fator
Cf. CANETTI, Elias. Massa e Poder. Op. Cit. pp. 13-200. económico de relativa importância. Do ponto de vista humanitário, ressaltava as
83 Isso sem falar no perigo da revolução, que irá se manifestar mais nitidamente na década de diferenças entre os que chegavam à capital em diferentes ocasiões, quando vi-
50. O pensamento geral se resume na frase: "a miséria é subversiva". MENEZES, Djacir. O
Outro Nordeste. Op. Cit. p. 187. nham a pé e quando conseguiam embarcar em algum trem. Observou os retiran-
84 ALBUQUERQUE JR, Durval M. "Palavras que calcinam, palavras que dominam: a inven-
tes de 1915, quando já havia a estrada de ferro de Baturité, e constatou que "esta-
ção da seca do Nordeste." Op. Cit. p. 118. vam gordos, fortes e rosados"; "as crianças, rubicundas, bem mostravam ter vin-
85 Parece correio acreditar que há um ponto de enfraquecimento físico que, se ultrapassado, do dos ares puros e sadios do sertão"; não havia, neles, os "traços da miséria
não permite mais que pessoas subnutridas se revoltem. Cf. THOMPSON, Edward P. "A eco- orgânica" que costumava encontrar nos corpos dos que chegavam à Fortaleza
nomia moral revisitada." Op. Cit. p. 206.
nas secas anteriores - "que diferença das múmias de 1877!" Porém, dessa

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FREDERICO DE CASTRO NEVES
r A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

constatação tirou conclusões que reforçavam as suas convicções acerca das cir- ainda inventavam juro" e decretava, revoltado: "o que havia era safadeza", "la-
cunstâncias das migrações: "o meu espírito diante deles não me comoveu", pois droeira". Tudo isso fazia com que a seca se tornasse pior a seus olhos, pois
"fiquei convencido de que aquela gente era preguiçosa e havia corrido antes de desestruturava completamente este precário mundo, de dependência e submis-
enfrentar o flagelo".2 Para o higienista, deixar o sertão antes de amargar a deca- são, em que o mais importante era alcançar uma estabilidade na miséria, e que o
dência das colheitas, a fome e a morte dos familiares, evitando as longas e peno- sinal de abastança era poder comprar uma "cama de couro" para "sinha" Vitória,
sas caminhadas por centenas de quilómetros até a capital, era sinónimo de pre- sua esposa, eternamente insatisfeita com a desconfortável "cama de varas". De-
guiça. Não alcançava ele a formação de uma nova estrutura de sentimentos, além pendia do patrão e dos comerciantes da cidade; e a vida de retirante - apesar de
de mudanças económicas significativas, que levava os lavradores cearenses a sua resignação, pois sabia que "matar-se-ia no serviço e moraria numa casa alheia,
não esperarem mais pela assistência paternalista no interior das fazendas e, ao enquanto o deixassem ficar", e "depois sairia pelo mundo, iria morrer de fome na
mesmo tempo, a confiarem mais ainda nas suas capacidades de previsão das se- catinga seca" - era frágil como o leito dos rios no semi-árido, passageira e hostil.
cas, baseadas na experiência de várias gerações de relacionamento com o meio
ambiente hostil da caatinga. Não era mais necessário, para eles, experimentar os
Nem lhe restava o direito de protestar. Baixava a crista. Se não baixasse,
primeiros sofrimentos para decidir-se pela "retirada". Eles já sabiam o momento. desocuparia a terra, largar-se-ia com a mulher, os filhos pequenos e os ca-
A seca, de fato, já há muito tempo se havia tornado um objeto de conheci- carecos. Para onde? Hem? Tinha para onde levar a mulher e os meninos?
mento para o vaqueiro errante, para o camponês tradicional e para todos os que Tinha nada!
transitavam pelas áridas^estradas do sertão. Décadas de experiência haviam
elaborado um saber que se transformava em resignação diante de seu próprio A cidade, portanto, seria o destino possível, nem tanto desejado, pois sabia
objeto. que "chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela". O
"Se a seca chegasse" - pensou Fabiano, o personagem de Graciliano Ramos ciclo da economia tradicional é frágil a ponto de expulsar permanentemente seus
em Vidas Secas - "não ficaria planta verde"; "chegaria, naturalmente", resigna- integrantes para outro universo ao primeiro sinal de crise: "o sertão continuaria a
va-se, "sempre tinha sido assim, desde que ele se entendera"; "e antes de se en- mandar gente para lá", "mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como
tender, antes de nascer, sucedera o mesmo - anos bons misturados com anos Fabiano, sinha Vitória e os dois meninos".
ruins". A civilização o assusta, pois representa um novo horizonte de sentidos, onde
A trajetória de Fabiano é, em muitos aspectos, semelhante à de Chico Bento, a linguagem é regida muito mais pelo uso sofisticado da palavra do que pelas
um dos personagens de O Quinze, e pode ilustrar muitas questões relativas ao convenções da lealdade tradicional, o que para ele significava a possibilidade de
processo de passagem do vaqueiro ao retirante, suas angústias e sofrimentos, ser enganado. O campo, local onde se cultua uma simplicidade por vezes
além das relações económicas, políticas e sociais que o envolvem. O personagem identificada à inferioridade étnica, se contrapõe a esse universo novo; como "uma
de Graciliano também é vaqueiro e "recebia na partilha a quarta parte dos bezer- forma natural de vida - de paz, inocência e virtudes simples", que pode ser tam-
ros e a terça dos cabritos", conforme a convenção vigente em quase toda a área bém associada negativamente a urn "lugar de atraso, ignorância e limitação", se
do sertão nordestino. No entanto, ao contrário de Chico Bento, que cultivava contrapõe à cidade vista como "a ideia de centro de realizações - de saber, comu-
com a família uma pequena parcela de terra, Fabiano dedicava-se inteiramente à nicações e luz", mesmo que também se possa associar a "lugar de barulho,
pecuária e "como não tinha roça e apenas se limitava a semear na vazante uns mundanidade e ambição".3 O contraste entre campo e cidade se constrói na vida
punhados de feijão e milho, comia da feira, desfazia-se dos animais, não chegava dos retirantes, como Fabiano, através de uma rede de desconfianças mútuas.
a ferrar um bezerro ou assinar a orelha de um cabrito". Isso tornava-o presa fácil A revolta, porém, permanecia subterrânea em Fabiano, latejando em sua
para o comércio da cidade e para as espertezas do patrão: "quando não tinha mais mente como o sol do cerrado de sua vida errante e cheia de incertezas.
nada para vender, o sertanejo endividava-se"; "ao chegar a partilha, estava
encalacrado, e na hora das contas davam-lhe uma ninharia". O vaqueiro, só con- Aparentemente resignado, sentia um ódio imenso a qualquer coisa que era
sigo mesmo, reclamava, protestava, pois "tomavam-lhe o gado quase de graça e ao mesmo tempo a campina seca, o patrão, os soldados e os agentes da

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

prefeitura. Tudo na verdade era contra ele. Estava acostumado, tinha a cas- Contudo, alguém mais afoito, ou mais faminto, ou mais seguro a respeito
ca muito grossa, mas às vezes se arreliava. Não havia paciência que supor- da justiça de sua atitude, forçou as portas do vagão e os outros, formando uma
tasse tanta coisa. grande massa irresistível, o seguiram, como se estivessem apenas esperando a
- Um dia um homem faz besteira e se desgraça.4 ordem para o ataque. Num ambiente de grande tensão e dramaticidade, a mul-
tidão atacou o carregamento, derrubando violentamente as portas dos vagões e,
Essa revolta poderia emergir em momentos pouco esperados, inconsciente- diante da perplexidade dos funcionários da estrada de ferro e de alguns poucos
mente, na bebedeira e no trato com os familiares, como ele dependentes e sub- soldados hesitantes, imediatamente levou 48 fardos de charque para longe da
missos; ou, ao contrário, na percepção de uma injustiça evidente, baseada nos praça, para os "abarracamentos" construídos precariamente com folhas e ou-
paradigmas da tradição e do costume que são, por definição, justos ou simples- tros materiais perecíveis, sob algumas árvores mais frondosas. Lá, os alimentos
mente resultantes de uma prática que se perde no tempo, aparecendo como natu- foram avidamente consumidos pelos retirantes e suas famílias famintas, num
ral para os habitantes do sertão.5 Os rumos da revolta também são incertos. estranho banquete.
A vida errante dos retirantes tinha na linha férrea, já em 1932, um ponto de Segundo o jornal O Povo, "não poude haver resistência da parte dos funcio-
convergência, que o trabalho dos retirantes das secas anteriores havia tornado pos- nários em vista do número vultuoso de assaltantes".6 A novidade desta ação, que
sível. Mas, diferentemente de Chico Bento, esta era uma alternativa ausente na significava a realidade da violência dos retirantes subvertendo a sua tradicional
trajetória de Fabiano. Ele circula pelos sertões secos, encontra currais abandonados resignação, talvez tenha contribuído para paralisar os agentes da ferrovia e os
e continua seu destino de retirante, em que o fim se confunde com o começo. policiais. O espetáculo, apesar de pressentido, parecia inusitado.
Nas cidades do interior, no entanto, com a expansão das linhas, as praças das A um só tempo, os códigos do paternalismo - delimitando rigidamente o
estações de trem tornaram-se os principais pontos de encontro dos retirantes que lugar destinado aos homens pobres do campo no interior da hierarquia de poder-
se convenceram de que o melhor a fazer durante a seca era alcançar a capital do pareciam ter sido quebrados e as regras da política representativa, ainda incipientes,
Estado o mais rápido possível. pareciam não ter sido absorvidas. O ataque, porém, pretendia retomar uma or-
Neste momento crucial, em que o "inverno" de 1931 havia sido fraco, insu- dem que, do ponto de vista dos retirantes, parecia ter sido abandonada: a prote-
ficiente para a manutenção das colheitas, a praça da estação ferroviária da peque- ção aos pobres em tempos de seca.
na cidade de Orós, já naquele dia 11 de janeiro de 1932, encontrava-se ocupada Todavia, a multidão, estimada à princípio em 300 pessoas, não ficou satis-
por centenas de retirantes esfomeados, quando apitou o "horário" da Rede de feita. Os retirantes não estavam seguros a respeito de uma proteção razoável na
Viação Cearense trazendo um carregamento de charque para ser distribuído entre pequena cidade e sabiam que esta carga não lhes saciaria a fome por mais que
outros retirantes, acampados em Jaguaribe Mirim. Orós era o fim da linha do algumas horas; decidiram, portanto, entrar no trem e seguir para a capital, onde
trem; dali em diante os fardos de charque e farinha deveriam ser carregados em esperavam obter uma assistência mais duradoura. Pensavam em estar próximos
"lombo de burro" até seu destino. aos centros decisórios, em que a caridade dos habitantes e das autoridades da
Em sua grande maioria, eram homens desesperados: as famílias permanece- capital não os deixaria passar por mais privações. Ocuparam os vagões destina-
ram na periferia da pequena cidade, esperando uma solução para suas aflições. dos para carga e, apesar do grande desconforto, exigiam a partida para Fortaleza.
Eles sabiam que uma demora ou um fracasso poderiam significar a morte; com Os comerciantes e os curiosos habitantes da pequena cidade, assim como
alguma coisa haveriam de retornar ao acampamento. Alertados ou não por al- suas autoridades ameaçadas pela transgressão, apesar da perplexidade e de uma
guns comerciantes, temerosos de serem saqueados, sobre o conteúdo daquela reticente solidariedade cristã, viam, silenciosamente, com bons olhos a partida
carga (o que não se conseguiu provar), a multidão já se impacientava quando o da multidão sediciosa, temendo novos acontecimentos. Não lhes agradava aque-
trem encostou na estação, fazendo grande estardalhaço e levantando muita poei- la imagem constrangedora de trabalhadores transformados em homens famintos,
ra. Uma confusão se formou imediatamente, amedrontando os funcionários da pedintes, clamando por piedade, nem muito menos a convivência com tragédias
Rede de Viação Cearense, que procuravam defender a carga sob sua responsabi- cotidianas de pessoas morrendo de fome nas calçadas. Um confuso sentimento
lidade e cumprir as ordens recebidas. de culpa e de alívio tomava conta daquelas pessoas em vista da partida dos reti-

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

rantes. No entanto, os funcionários hesitaram. Após uma rápida troca de telegra- divulgados na imprensa da capital, dando conta das "horríveis privações" por
mas com a capital, acontece uma difícil negociação quase sem palavras com os que passam as famílias dos presos, abandonadas à própria sorte.8
amotinados, onde mais valem promessas concretas do que argumentos sistemáti- Uma análise deste processo poderá trazer algumas luzes sobre as formas de
cos e coerentes acerca das leis de propriedade. Depois de um outro debate entre perceber a multidão por parte das autoridades, neste momento, assim como as
funcionários e autoridades, os retirantes concordaram em voltar às suas barracas formas assumidas pela legislação no que diz respeito aos movimentos "espontâ-
e esperar pela mobilização do comércio. neos" dos retirantes famintos.
Liderados pela Associação Comercial, os donos dos armazéns organizaram Em sua argumentação, o ilustre advogado procura neutralizar as acusações
rapidamente uma coleta de alimentos que mitigou por alguns dias a fome da feitas a seus "pacientes" através de duas ideias básicas: 1a) é impossível imputar
multidão. Cada comerciante doou uma pequena amostra de suas mercadorias, a três pessoas um ato cometido por uma multidão, já que os "autores foram em
temendo perdê-las em sua totalidade. grande numero, numero mesmo incomputavel"; 2a) a prisão foi ilegal, pois não
"emanou de qualquer ordem de autoridade constituída, constando, apenas, se
II. A Lei e a Ordem acharem denunciados, além de outros, pelo dr. Procurador da República".9
Este segundo argumento remete às tensões entre o aparato judiciário e as
Com a multidão "acalmada", a paz parecia ter retornado à Orós e a ordem decisões discricionárias dos Interventores Federais no contexto dopós-30.0 poder
natural das coisas parecia ter sido restaurada: os pobres, resignados, esperavam de prender e de sustar os habeas-corpus, concedidos aos Interventores pelo Dec.
pelas precárias soluções vindas dos poderosos ou pela definitiva solução vinda n° 19.398 de 11.11.30, deveria se referir somente aos crimes políticos e, através
de Deus Todo-Poderoso. deste poder, os revolucionários talvez pretendessem cercear uma reação oligárquica
Uma semana deppis_deste acontecimento, contudo, quando tudo parecia crer no âmbito do-Judie-iário. Assim, ao qualificar os assaltantes do trem de Orós
que a situação estava controlada, um destacamento policial chega à Orós e pro- também como "elementos perigosos á ordem pública", a Interventoria cearense
cura por entre aquelas barracas miseráveis os supostos líderes daquele saque, por procurava extrapolar em seus poderes e ampliar seu raio de ação reguladora do
ordem direta do Sr. Interventor Federal no Ceará, o Capitão Carneiro de Men- social, passando por cima das "velhas" normas jurídicas tradicionais, baseadas
donça. Após uma rápida incursão, três retirantes são presos, identificados numa no controle pessoal dos coronéis e estabelecidas antes mesmo da chamada Repú-
breve investigação baseada nas muitas testemunhas visuais: José Bento Filho, blica Velha.
Leopoldo Bento do Monte e Manoel Leandro. Além destes, considerados "os Assim, o conjunto disponível de leis, sua aplicação e interpretação, parece
responsáveis diretos do ataque e assalto" pela Procuradoria, os policiais prendem variar de significado conforme as necessidades de momento, em que alguns deli-
• seis negociantes de alimentos, "acusados de haverem (...) influenciado no animo tos precisam ser mais intensamente punidos ou que as disputas entre os magistra-

dos famintos dali para atacarem a estação ferroviária e retirarem géneros alimen- dos fazem pender a balança da Justiça para um lado ou outro. Além disso, a
tícios".7 necessidade de um exemplo, em situações de exceção, parecia motivar ainda
São todos levados para a cadeia pública localizada em Icó, sede da comarca, mais a atuação das autoridades e o interesse no caso. No entanto, as divergências
e depois transferidos para Fortaleza. entre o Interventor, os juizes e os proprietários não ultrapassariam jamais um
O Dr. Raimundo Gomes de Matos, conceituado advogado da capital, imedia- nível em que os conflitos de classe se mostrassem transparentes e compreensí-
tamente entra com dois pedidos de habeas-corpus, um para os retirantes e outro veis. A defesa da propriedade deveria, de qualquer forma, ser preservada.
para os comerciantes. Estes, assim que chegam à Fortaleza, "devidamente escol- O Juiz Dr. Luís Moraes Corrêa considera portanto, que aquela qualificação
tados por um tenente da Força Pública do Estado", são libertados por força de "não modifica a natureza do delito (crime comum) atribuído aos pacientes" e
uma decisão do Dr. Luís de Morais Corrêa, Juiz Federal, beneficiados pelo "salu- concede o habeas-corpus, o que é reafirmado pelo Juiz do STF, Dr. Plínio Casa-
tar remédio jurídico"; aqueles, os pobres, ficam presos até o julgamento de um do, que afirma definitivamente: "é patente que se trata de crime comum".
novo pedido de habeas-corpus, o que não aconteceu antes de abril, apesar dos Para além da querela entre magistrados e interventores, o que ainda interes-
insistentes apelos em telegramas vindos do interior, recebidos pelo advogado e sa nesta questão é constatar que não se conseguiu, a partir da legislação em vigor,

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

imprimir àquele saque um consistente conteúdo político. Apesar de tentar associá- um sujeito consciente de sua ação mas uma racionalidade e um projeto global
lo a urna ação que atenta contra a "tranquilidade pública e a segurança indivi- que nega ou restabelece a ordem. Entende-se que a ação da multidão, pelo con-
dual", a Interventoria não consegue tornar este atentado em um ato consciente de trário, provém do desespero, que seguramente nada tem a ver com a política.
ameaça à organização social e política, que, portanto, poderia ser absorvido em Agindo pelo impulso da fome e do instinto de sobrevivência, o homem não pode
sua alçada definida pelo Governo Provisório. O saque permanece no âmbito do ser responsabilizado pelos seus atos.
estritamente privado: o ataque contra a propriedade, o roubo. Porém, um roubo Por outro lado, o primeiro argumento do advogado, de uma certa forma, já
com situações atenuantes, que as práticas do paternalismo absorvem de uma anula o segundo, ao definir o saque como inimputável pelo fato de ter sido come-
maneira específica. tido por um número incalculável de pessoas. Esta era uma novidade no campo
No contexto do paternalismo oligárquico, a escassez permanece como uma das disputas jurídicas, não prevista pelo Código Penal de 1890, que "determina-
sombra pairando sobre todos, especialmente sobre os camponeses pobres, viven- va, frequentemente, contusão prejudicial entre a criminalidade da multidão e a
do permanentemente no limiar da miséria absoluta, à procura de uma precária autoria incerta".14
"segurança alimentar". Gerenciar este desequilíbrio latente é uma das funções Uma ação efetivada por um sujeito coletivo formado espontaneamente não
hegemónicas centrais do paternalismo, que deve exercê-la socialmente, no inte- tem como ser criminalizada e isso, apesar das distâncias efetivas entre a cultura
rior do jogo de forças em que se constituem as relações sociais baseadas na "reci- popular e a estruturação jurídica, reflete uma posição da sociedade a respeito,
procidade desigual". É inerente à dominação paternalista, no entanto, pretender argutamente percebida pelo advogado, que se mostrava atento aos debates con-
controlar este jogo completamente no âmbito da esfera privada, o que não se temporâneos sobre os direitos sociais e sobre a chamada "questão social",15 isto
combina com um julgamento institucional, baseado em leis universais que regem é, sobre a nem sempre desejada intromissão dos pobres na arena política.
- u m a esfera pública, seja por parte do governo ou da Justiça. 10 Ao mesmo tempo, De uma certa forma, sua formação espontânea, sua violência ritual, a fome.
porém, impõe-se à magistratura uma noção corrente a respeito da pobreza e das como sua motivação principal e seu objetivo definido garantem à multidão uma
ações motivadas pela fome, inserida num ambiente social que de certa forma as legitimidade social que ultrapassa os princípios básicos do Direito e até mesmo
legitima, como derradeiro recurso diante da morte. as normas informais consagradas pelo paternalismo. A reciprocidade "submissão
Este tipo de roubo já era, de certa forma, esperado e temido pela população versus proteção" só está garantida em tempos de relativa estabilidade económica
e pelas autoridades paternalistas, que imediatamente o recobrem de característi- e política, quando é possível a cada um cumprir com suas obrigações.
cas especiais que o diferenciam do roubo comum, cometido pelos motivos mais A crise em suas formas mais agudas - a seca, a escassez, a fome - autoriza
fúteis. Um levante da multidão de pobres remete imaginariamente aos atos revo- uma quebra deste pacto paternalista quando a proteção não é suficiente. 16
lucionários e violentos que abalam civilizações inteiras, "que a história tantas Neste caso, pode-se deduzir que uma ação coletiva, tal como esta, dificil-
vezes nos fala"." Não se trata somente de subtrair a alguém uma parte de sua mente pode ser criminalizada quando não se consegue identificar os líderes ou os
propriedade inatacável, mas agora é o conjunto do tecido social que está sob insufladores. Ao mesmo tempo, a costumeira resignação camponesa autoriza uma
ameaça. Ao mesmo tempo, aquele que comete o delito está submetido a uma desconfiança de que esta ação teve influência de elementos externos. Daí porque,
pressão última: a fome. O saque, portanto, distancia-se do roubo, tanto na ótica das junto com as supostas lideranças, a polícia do Interventor Carneiro de Mendonça
autoridades e da população ligadas às práticas paternalistas quanto na ótica dos procurou prender alguns comerciantes, os quais, embora indiciados como
próprios camponeses. 12 "insufladores", são rapidamente libertados por interferência da Justiça.
O conteúdo político deveria corresponder, igualmente, a um sujeito respon- A multidão, portanto, como um elemento estranho às normas jurídicas que
sável ou a ser responsabilizado pela ação, o que igualmente é negado à multidão. penalizam o indivíduo, permanece à margem do horizonte de pensamento dos
Diante da morte iminente, o homem iguala-se aos animais na luta pela sobrevi- legisladores modernos. O crime é cometido por uma pessoa ou por um "concurso
vência mais elementar, segundo a visão corrente.'-1 O ato de saciar sua fome físi- de pessoas" e a participação na "multidão em tumulto" torna-se apenas um ele-
ca, assim, mesmo superficialmente associado a uma subversão da ordem pater- mento atenuante.
nalista vigente, não é reconhecido como um ato político, em que se exige não só Curiosamente, estas noções serão incorporadas ao Direito brasileiro apenas

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FREDERICO DE CASTRO NEVES
T A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

com o Código Penal de 1940, parcialmente reformado em 1984, e de certa forma senão os temperamentos excepcionais. No seu ímpeto aniquilador, a multi-
autorizam o surgimento da multidão em situações extraordinárias e de extrema dão comumente comete excessos e derrama sangue inocente. Só após o seu
gravidade, como a relatada aqui. retorno à calma e ao raciocínio, passada a excitação que a empolgou, é que
Por um lado, como já foi ligeiramente mencionado, afirma-se para o agente acorda do pesadelo sofrido aquele que, ao seu contacto, se tornou crimino-
a circunstância atenuante quando "cometido o crime sob a influência da multidão so. Como punir os delitos assim perpetrados?21
em tumulto, se não o provocou".17
Trata-se do "crime multitudinário" - em que não há apenas um agente ou As ações que fogem à regra da política representativa, portanto, insistindo
alguns poucos agentes identificados ou identificáveis mas um número incontável no modelo de ação coletiva e direta, são - e devem ser - imediatamente identifi-
e não identificável de agentes - que é "praticado por uma multidão em tumulto, cadas com um estágio primitivo e pretensamente superado das relações políticas.
espontaneamente organizada no sentido de um comportamento comum contra E é este tradicionalismo o que atenua o crime, já que praticado no interior de um
pessoas ou coisas".18 Destaca-se, aqui, a concepção de "espontâneo" como um contexto cultural que, embora seja considerado ultrapassado, permanece em al-
movimento dirigido para um fim específico e que se desfaz após atingi-lo ou guns setores da sociedade moderna.
fracassar em seu objetivo, sobre o qual não se consegue discernir uma liderança A multidão, assim, se contrapõe ao indivíduo, núcleo da sociedade segundo
permanente ou uma entidade organizadora que possam ser responsabilizadas cri- os padrões liberais de concepção do mundo. Enquanto tal, carrega suas mais
minalmente. Estão intimamente associados, assim, o adjetivo espontâneo ao subs- negativas qualidades e é responsabilizada pela decadência e degeneração do "gé-
tantivo tumulto, reproduzindo uma visão característica da modernidade política, nio" individual.
baseada nas noções integrativas de racionalidade e representatividade. A políti- Portanto, a multidão somente pode constar nos códigos legais quando "em
ca representativa busca, através da escolha de representantes - que substituem a tumulto", o que demonstra a dificuldade de &ua.criminalização. O indivíduo per-
coletividade na ação - , evitar a formação de multidões que agem sem um plano de-se no interior da multidão, confunde-se em sua personalidade e em sua identi-
definido, irracionalmente, conforme seus instintos e emoções mais imediatas. 19 dade, passando a agir conforme os instintos indefinidos e volúveis da multidão
A negociação entre representantes substitui a violência e a irracionalidade das sempre em fúria. 22
manifestações das multidões "desorganizadas" de pobres e das multidões "orga- Por outro lado, o Direito introduz a noção de "estado de necessidade" para
nizadas" que são os exércitos. Em contraposição a estas formas "civilizadas" e incluir "quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua
"racionais" de manifestação política e social, as multidões, ou as turbas, "mere- vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio".23 Nestas
cem uma outra atenção: indicam uma aglomeração ocasional e temporária, agres- circunstâncias, não há sequer a ilicitude, já que o sujeito não está em condições
siva às instituições sociais" e possuem, portanto, um "poder destruidor da ordem de não cometer o delito - que, assim, deixa de ser delito. Dentre as situações
social".20 características do "estado de necessidade" encontra-se sintomaticamente o "furto
As "massas tumultuarias", assim, são vistas como um mal que ameaça a famélico", em que há "subtração de alimentos para salvar alguém de morte por
civilização; elas "enchem todos os horizontes e invadem a esfera política, pesan- inanição".24 Assim, o sujeito é considerado inimputável pela lei, pois encontra-se
do nas reformas, superpondo-se ao indivíduo, afogando com a sua mediocridade numa situação-limite que o leva a cometer uma ação normalmente considerada
o fulgor do génio e as grandes conquistas da humanidade". A multidão "ulula criminosa.
semelhante à hiena e braveja sequiosa de sangue". A legislação, a despeito de suas iniciativas modemizantes no campo das
• relações sociais e políticas, parecia referendar uma prática tipicamente paterna-
A sugestão que a inflama exerce, às vezes, sobre os indivíduos que a for- lista e cristã: acolher os que têm fome, perdoar os crimes cometidos na necessida-
mam uma espécie de fascinação quase irresistível. Exagera o fator antropo- de e no desespero. E, ao mesmo tempo, a caminhada "racionalizadora" em curso,
lógico. Exalta o ódio reprimido. Anestesia, instantaneamente, a consciên- no rastro das ferrenhas críticas às "oligarquias" e sua política de tipo tradicional
cia e desperta e anima os sentimentos de crueldade que permanecem ador- - isto é, que não é regulada por leis universais institucionalmente estabelecidas,
mecidos. A sua força é um tufão violento, a cujo sopro não se esquivam mas que flutua ao sabor das relações pessoais baseadas em critérios subjetivos

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como honra, dever, lealdade etc -, parecia, paradoxalmente, aprovar uma ação sertões Central, Centro-Sul e Inhamuns. Em todas elas, a mesma característica de
coletiva que se contrapunha aos modelos corporativos altamente hierarquiza- "espontaneidade", de formação da multidão "em tumulto", de claros e imediatos
dos e "organizados" que se procurava implantar no pós-30. As iniciativas "re- objetivos e de, especialmente, fugacidade.
volucionárias" retomaram, assim, aspectos significativos da cultura política da Contudo, neste novo contexto político do pós-30, de centralização do Esta-
Primeira República, baseados na ideia de reciprocidade, absorvendo o Estado do, a seca de 1932 foi entendida, desde o início, como uma "questão nacional",
muitas das obrigações antes atribuídas aos próprios proprietários, os "oligarcas" ligada à segurança pública, a ser enfrentada através da conjugação dos vários
e os "coronéis". Nesta ambiguidade o novo governo se debateu, deixando uma órgãos oficiais ligados à assistência social e pública. A coincidência da seca com
forte herança que permaneceu na cultura política brasileira, sintetizada no a "crise paulista", como veremos, foi outro fator que ajudou a criar esta interpre-
"trabalhismo". 25 tação.
Mesmo que analfabetos em sua grande maioria e parcialmente isolados em Ao contrário das secas anteriores, os governos federal (Ministério de Viação
suas comunidades rurais, portanto, mas como se impulsionados por este estímulo e Obras Públicas e Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas - IFOCS) e esta-
legal, os sertanejos cearenses começaram, a partir deste episódio de 1932, a to- dual (Departamento das Secas, criado especialmente para esta seca) se articulam
mar atitudes semelhantes, procurando intervir mais diretamente nas iniciativas planejadamente, pela primeira vez, para evitar as migrações e todas as questões
assistenciais durante os períodos de secas. De fato, dificilmente poderíamos clas- decorrentes da mobilização dos camponeses.
sificar estas iniciativas como "intervenções planejadas" contra uma política Tratava-se de uma seca que "surpreendeu a todos, pelo seu raio de ação, sua
assistencial inexistente, insuficiente ou inadequada. Os retirantes buscavam en- extensão e sua devastação"27 e que "alastrou-se por uma área enorme".
contrar quem mitigasse a sua fome, quem os ajudasse nos seus momentos de
privações e desespero, reatando fios perdidos de laços societários de ajuda mútua As notícia-s-da frustração das lavouras, o mal estado da criação por falta ou
que a dura realidade da seca jogava por terra. deficiência das pastagens nativas começaram a chegar com muita insistên-
Uma lógica paternalista do "apadrinhamento" é seletivamente reconstruída cia à Capital. Por isto, bem cedo, foram transmitidas às autoridades fede-
para dar lugar a ações violentas de ameaça e saque, as quais parecem romper com rais aflitivas solicitações de providências imediatas.28
esta lógica, mas não conseguem separar-se dela nem fora dela podem ser com-
preendidas. Assim, logo nos primeiros meses do ano, o Ministro da Viação e Obras Pú-
Porque, na verdade, estas ações demandam a reimposição da ordem pater- blicas percebeu que "urgia uma vastíssima organização do trabalho, para com-
nalista, baseada nas relações costumeiras de "reciprocidade desigual", em que portar os milhares de homens validos que ainda podiam dar alguma coisa de si,
todos, apesar das diferenças de status, possuem uma obrigação e é este dever antes que fossem mais devastados pela fome"29 e, para isso, um grande esforço
que sustenta a ordem do social. A resignação e a submissão se correspondem, deveria ser empreendido pelo governo.
neste sistema, à proteção em tempos difíceis, o que inclui a caridade durante as Mas essa percepção não foi só elaborada em face da destruição das colheitas
secas. 26 ou de um colapso da economia. As pretensões de controle da sociedade e de
racionalização das atividades estatais esbarravam numa crua realidade que os
III. Consequências e Desdobramentos jornais já percebiam, temiam pelo pior e denunciavam que "o exército sinistro de
esfomeados marcha pelas estradas em demanda de Fortaleza".30
Neste mesmo ano, foram mais 12 ações que podem ser incorporadas a este Depois daquele saque em Orós, Fortaleza já se via, no início de abril, "inva-
novo modelo que se moldava neste momento. Invasões dos mercados, ameaças dida pela onda faminta", e a chegada de um trem "mixto" (carga e passageiros),
de saque às feiras ou apenas a presença desafiadora e incómoda de levas e levas vindo de Senador Pompeu com cerca de 300 retirantes espremidos nos vagões
de gente faminta perambulando pelas ruas das cidades, sem destino nem ocupa- de carga, causou grande sensação: "um dos quadros mais dolorosos, mais
ção, passam a preocupar cada vez mais as autoridades urbanas. As áreas "afeta- contristadores da atual crise climatérica que assoberba o Estado". A esta cidade
das" correspondem mais ou menos às áreas de maior irregularidade pluviométrica: do interior - Senador Pompeu localiza-se na microrregião do "Sertão Central" -

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acorriam multidões de famintos na perspectiva da reabertura, pelo governo, da como este comovem o coração de quem é pai e cuja repetição ameaça tornar-se
obra de construção do açude Patú, iniciada em 1923 e que se encontrava inter- frequente". Denuncia ainda que "espíritos exaltados concitam famintos ao saque
rompida. Aglomeravam-se nas praças e ruas próximas à estação, vivendo da es- dos armazéns e casas particulares que presumem abastecidas, bem assim á casa
mola e do apoio de comerciantes ou do vigário local. Já haviam tentado assaltar do prefeito, a exemplo do que foi feito em Orós".
"um trem de passageiros que por ali passou, mas não conseguiram". Um dia Os trabalhos que já haviam sido iniciados em Morada Nova não comporta-
antes, este mesmo trem foi "assaltado por cerca de 80 flagelados que, pondo ram, por outro lado, o "afluxo de numeroso grupo de flagelados procurando tra-
dormentes na linha, o obrigaram a deter-se e nele viajaram até Senador Pompeu". balho", que passaram a andar pelas ruas "implorando a caridade publica, que não
O "mixto", porém, não teve a mesma sorte: "os desgraçados, em grandes grupos, pôde mais socorrêl-os". Comerciantes apelam à redação do jornal para obter do
invadiram os vagons e de lá não saíram, nem deante de ameaças, nem mesmo a governo "outros serviços urgentes", a fim de "minorar a sorte de nossos irmãos".32
força". Em Fortaleza, após uma estafante viagem, sem água e sem alimentos, Em fevereiro, Icó teve a mesma sorte; um comerciante foi atacado "a pu-
uma importante comitiva foi acionada para receber os retirantes: o Chefe de Po- nhal" por "um grupo de famintos" e, sozinho, reagiu à bala, mas "saiu ileso".33
lícia capitão Falconiére, o prefeito municipal Sr. major Tiburcio Cavalcanti e os Em março, cerca de 500 pessoas tomam de assalto o mercado de Iguatu e levam
delegados de polícia Ubirajara Negreiros e Franklin Monteiro Gondim, acompa- algumas mercadorias; o "Prefeito, sem recursos, não pode resolver aflitiva situa-
nhados de uma patrulha de 12 guardas civis. Ficou decidido que os retirantes ção".34
iriam ser desembarcados nas estações de Otávio Bonfim e Central e abrigados Ao mesmo tempo, retornam as especulações sobre a abertura de um progra-
nos albergues noturnos da Polícia Marítima e do Otávio Bonfim. Na primeira ma de migrações para a Amazónia. No fim de março, notícias de um agenciador
estação, porém, o trabalho da polícia para organizar a chegada foi dificultado de empregos para uma fábrica de tecidos em Santarém, Pará, agitam algumas
pela "massa popular", já que "todos avançavam para os vagons e queriam ver de áreas de Quixadá, já que "as populações deslocam-se, palmilhando as estradas
perto o horrível quadro", enquanto que "cerca de três centenas de famintos, ho- em busca do litoral" e "o Estado não tem recursos para sustentar essas legiões
mens, mulheres e crianças, amontoados nos dois primeiros vagons, uns por cima famintas que diariamente se multiplicam". 35
dos outros, a quererem descer de uma vez, a pedirem comida e água", tornavam Em abril, além do caso mencionado, em Afonso Pena, Girau e Senador
impossível um desembarque minimamente organizado; afinal, em face da confu- Pompeu "foi o trem invadido por levas de flagelados que suplicavam passagens
são generalizada, todo o desembarque foi transferido para a estação Central, onde para Fortaleza"; "a muito custo puderam os funcionários da R.V.C, dissuadi-los
se pensava poder organizar melhor a recepção. Logo se percebeu, também, que de seu intento". Segundo o informante do jornal, "não haverá trabalho oficial
os albergues seriam pequenos demais para alojar os famintos e o governo, "muito capaz de conjurar a situação, pois o numero de famintos é incomputável, em toda
bem inspirado", segundo o jornal, resolveu construir um alojamento, "no trecho parte crescendo diariamente". Conclui que "o recurso é dar passagem para o nor-
compreendido entre Pirambu e o Porto", "com suficiente capacidade para abrigar te ou sul", pois "dentro do Ceará esses milhares de desocupados não podem ficar,
a multidão de retirantes".31 sob pena de causarem graves embaraços ao governo". Complementa seu informe
Era uma cena impactante, que reacendia os temores ante a multidão de po- com a notícia de uma "criança morta a beira de um caminho, sendo devorada
bres famintos e andrajosos e fazia retornar lembranças de episódios de secas pelos urubus, enquanto perto do cadáver arquejava uma irmãzinha, que foi salva
anteriores, principalmente porque não se tratava de um episódio isolado. A "onda da morte certa pela fome".36
faminta" se movimentava por todo o Estado. Em Juazeiro do Norte, os retirantes, "movidos pelo desespero da fome, as-
Ainda em janeiro, o Prefeito de Iguatu envia ao Governo estadual um exalta- saltaram alguns estabelecimentos", provocando "justificada apreensão tanto no
do telegrama, expondo a situação local. Afirma que sustentou "100 famílias du- comercio local como á praça de Crato". A "multidão de famintos", "insuflados
rante quase um mês, distribuindo equitativamente por meio de trabalho honesto pelos profissionais do crime", atacou a feira nova de Juazeiro, "cujo comercio
na estrada de rodagem". No entanto, sua residência é "assediada constantemente alarmado pelas continuas ameaças permanece fechado". A intervenção do advo-
por homens validos, implorando trabalho afim de não perecer de fome", o que gado Alfeu Aboim e do Desembargador Olivio Camará, pedindo calma e "pro-
acaba acontecendo com uma "creança de seis anos de idade": "casos dolorosos metendo enviar telegrama ao governo expondo a situação", evita a ampliação do

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saque. Os telegramas que chegam à redação do jornal - assinados pelo Prefeito Juntava na casa dele e ele distribuía, litro por litro, para o pessoal. Em vez
local, pelo Juiz de Direito, pelo Presidente da Associação Comercial etc - assina- de tá aglomerado na prefeitura, a prefeitura não tinha condições nesse tem-
lam a "insegurança" e os "horrores da fome" que reinam na cidade: esta encon- po, aí era o Monsenhor quem distribuía na casa dele. Eu ajudei muito a
tra-se "despoliciada e repleta de famintos que estão morrendo de fome em plena medir litro de farinha pra botar para os flagelados.
rua". A iminência de uma generalização do saque é vivamente sentida pelas auto-
ridades, que procuram precaver-se através dos recorrentes pedidos de auxílio ao A presença de pessoas do campo e da periferia da cidade transforma a
multidão em algo heterogéneo, que surpreende a população urbana e exige no-
governo estadual e federal. No dia 11 de abril, "cerca de cinco mil famintos com
enxadas, pás, mais ferramentas ao hombro, amanheceram em frente á casa do vas formas de relacionamento: "Vinha criança, quem morava aqui pela rua vi-
Prefeito pedindo trabalho". Os "recursos particulares" estão esgotados: "espera- nha com as crianças, quem morava nos sítios, na zona rural, vinha os pais de
família".
mos sejam enviados socorros".37
Ainda em abril, cerca de 600 retirantes tomam uma composição de trem, E as autoridades locais eram solicitadas a "negociar" com a multidão em
entre Senador Pompeu e Quixadá, viajando até a capital, onde são alojados no termos que pudessem ser entendidos por todos, o que significava prometer ali-
Matadouro Modelo. No caminho, em Quixadá, "vieram a falecer quatro crian- mentos e trabalho e, efetivamente, providenciar um "fornecimento" imediato:
ças", mortes provocadas "pela debilidade em que se achavam as pequenas víti- "Padre era visado nesse tempo de seca, padre, prefeito, as autoridades do lugar".
mas do flagelo e, também, em consequência do excessivo calor no trem". O jor- A proteção anteriormente proporcionada no interior das fazendas é definiti-
nal, diante desta e de outras notícias semelhantes, resolve solicitar da R.V.C, a vamente abandonada pelos proprietários e nem sequer mais esperada - embora
regularização do tráfego de trens pelo Estado em face das recorrentes invasões com uma certa nostalgia dos tempos passados - pelos retirantes.
dos vagões pelos retirantes. "O governo não deve oferecer resistência á onda
Tinha patrão que tinha dez moradores mas conresse tempo eles não susten-
fugitiva que invade os trens", mas deve estabelecer "trens para a condução de
tavam ninguém, que os bancos naquele tempo não emprestava dinheiro pra
retirantes e trens para os passageiros e transportes comuns".38 De fato, os "trens ninguém, nesse tempo quem emprestava era os coronéis, 1%, 2%... Não
são assaltados e agora os chefes de comboios já não impedem a vinda dos tinha banco.40
flagelados para a capital",39 afirma em tom de denúncia o jornal católico.
De modo geral, estas ações são rápidas e resultam na distribuição de alimen- Assim, neste momento, nos primeiros meses de 1932, as migrações já agita-
tos, passagens e, principalmente, promessas entre os retirantes. Comerciantes, vam todo o Estado, desorganizando a produção agrícola já debilitada pela falta
padres, prefeitos e até advogados "negociam" diretamente com a multidão - atra- de chuvas. O objetivo destas migrações eram as cidades do litoral, especialmente
vés de exortações e se utilizando de um profundo conhecimento da realidade dos a capital, e os locais onde o governo implementava ou planejava uma obra de
sertanejos e dos meandros das relações de poder baseadas no paternalismo - grande porte, como uma estrada ou um açude. A capital, mais uma vez, tornava-
procurando oferecer garantias para a abertura de frentes de trabalho ou medidas se o refúgio principal para a população em fuga: somente em um dia, l .349 reti-
assistenciais que amenizem os sofrimentos imediatos daquela população. Assim, rantes chegam à Fortaleza, protagonizando "cenas impressionantes" de miséria,
a assistência paternalista se combina com a assistência oficial, transformando os loucura e desespero que abalam a opinião pública local.41 As lembranças de se-
"negociadores" locais em intermediários entre as demandas da multidão e as obras cas anteriores e, especialmente, do Campo de Concentração do Alagadiço de
estatais. Um modelo de campo de forças - de pressões e contra-pressões - que 1915, atemorizavam a população da capital e formava-se rapidamente o consen-
estará mais plenamente desenvolvido na década de 50. A ameaça da multidão so de que "o governo precisa sem demora fixar os flagelados no interior", pois
força os limites do paternalismo e o faz ser incorporado aos mecanismos estatais "nada aconselha mantenha o governo em Fortaleza milhares de homens em abar-
de assistência pública. racamentos, inactivos, augmentando as dificuldades de vida dos aqui já existen-
Em Iguatu, "o pessoal quis invadir a rua, o Monsenhor saiu com a comissão, tes • 42

em cada armazém ele pedia uma saca de feijão, uma saca de farinha, uma saca de A "afluência de famintos desnorteava", portanto, os responsáveis pelas obras
arroz, rapadura, sabão". públicas a cargo do IFOCS, pois "não havia improvização capaz de atender a

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avalanche humana que se precipitava para os logares onde se iniciava uma obra viços relativos a socorros aos flagelados" e se articulará aos órgãos federais, es-
ou se supunha iniciar".43 No final de abril, já eram 30 mil os desalojados pela pecialmente o EFOCS, na implementação da política de assistência.
seca, somente entre Crato e Senador Pompeu.44 O Ministro José Américo de Almeida, por seu turno, cogita, a princípio, a
A reação do governo, portanto, devia ser imediata. No mesmo mês de abril, implementação definitiva do novo Regulamento do IFOCS, de 1931, que prevê
a Interventoria do Ceará "tomou urgentes providencias", promulgando três im- a "installação de hospedarias de retirantes, durante as secas prolongadas", por-
portantes decretos para organizar a assistência aos retirantes e "evitar o desloca- que, assim, "ficarão evitados o extravio das populações sertanejas e a prática
mento deveras temível para a saúde e a tranquillidade publicas das populações humilhante da mendicidade, como único meio de subsistência, na incidência da
sertanejas que emigravam para diversos pontos, principalmente para a capital".45 calamidade". Pretendia ele "evitar as grandes agglomerações urbanas", con-
As ações da multidão se acumulavam nos primeiros meses do ano e exigiam uma vencido de que "a história das outras secas devia condenar esses ajuntamentos
resposta rápida de um governo que se pretendia forte. improdutivos, que haviam acarretado os maiores damnos moraes e materiaes";
Em primeiro lugar, com o Decreto n° 564, o governo "restabelece o comissa- enfaticamente, "manifestava a mais systematica opposição a esse processo de
riado de alimentação pública no Ceará" com o objetivo de "regular as relações socorro aos famintos". No entanto, face ao "cataclysmo que se abateu sobre
comerciais referentes à alimentação pública", intervindo diretamente no merca- todo o norte, na sua força destruidora ou nos seus reflexos", "as circunstâncias
do de alimentos para garantir um abastecimento mínimo e preços razoáveis. Dentre foram mais poderosas do que esse pensamento da experiência de um passado
suas atribuições, constavam-se: "verificar semanalmente o estoque de géneros de tantos infortúnios". São criados, então, vários Campos de Concentração,
alimentícios", "inquerir do custo de produção desses géneros", "limitar os preços espalhados pelas várias rotas de migração no sentido do interior para a capital:
máximos", "assegurar o abastecimento", "fazer aquisição de géneros alimentí- sul (Crato), centro (Senador Pompeu, Quixeramobim e Cariús) e norte (Ipu).
cios sempre que fôrjiecessário estabelecer o equilíbrio do consumo", "requisitar Em Fortaleza,_.dqis pequenos campos foram instalados (Urubu e Tauape). A
ou desapropriar por necessidade pública toda espécie de género necessário à ali- direção dos campos, segundo determinação do Ministro, ficou a cargo do go-
mentação" etc. Ou seja: o governo percebia claramente que o livre fluxo do mer- verno estadual, "que lhe imprimiu um impeccavel regime de disciplina e
cado, num momento de crise, poderia ter graves consequências para o abasteci- moralidade".47
mento e, assim, corroborava as noções populares a respeito da distribuição da A concentração dos retirantes foi facilitada pelo próprio sentido das migra-
riqueza social durante a escassez. O desequilíbrio entre oferta e procura, ocasio- ções, orientadas para "onde se iniciava uma obra ou se supunha iniciar".
nando a alta de preços em momento de graves comoções populares, era entendi- A disposição dos campos pelo território do Estado revela uma nítida preocu-
do como uma caso de segurança pública, que requeria uma intervenção rápida e pação estratégica em proteger a capital das invasões dos retirantes. Os campos de
direta, desprezando os organismos da política representativa e outras intermedia- Ipu, ao norte, e Senador Pompeu, Cariús e Quixeramobim, ao centro, cobrem as
ções políticas. linhas das estradas de ferro de Sobral e Baturité, respectivamente, principais ve-
Com o Decreto n° 565, em segundo lugar, o governo estadual "abre o credito ículos de transporte da população sertaneja em direção à Fortaleza. Ao sul, auxi-
extraordinário da quantia de 200.000$000, para socorro dos flagelados da crise liado pelo campo de Cariús, o campo do Burity, localizado na estrada que liga as
climatérica que o Estado ora atravessa", complementando o Decreto n° 21.048 de cidades de Crato e Juazeiro do Norte, recebe as migrações que se dirigem às
16.02.1932, em que o governo federal abria créditos ao Ministério da Viação, áreas úmidas do vale do Cariri, vindas do Sertão Central cearense e das áreas
"considerando a urgência em atender a situação dos 'sem trabalho', nos Estados secas de outros Estados. Na capital, os campos foram dispostos nas proximidades
do nordeste, que ainda perdurará por algum tempo, em consequência dos efeitos das estações de trem, procurando evitar a passagem dos retirantes pelas áreas
da crise climatérica que vem assolando aquela região".46 centrais da cidade.
Em terceiro lugar, o Decreto n° 566 "crea o Departamento de Secas", "con- Por outro lado, na medida do possível, o governo procurou obedecer algu-
siderando que o poder público está na obrigação de socorrer as vítimas desta mas recomendações dos higienistas na estruturação dos campos, localizando-os
crise climatérica de modo a minorar os seus sofrimentos e amenizar o resultado em áreas supostamente mais salubres - como o campo do Urubu, próximo à praia
de seus efeitos". O novo órgão procurará "centralizar e uniformizar todos os ser- - ou aproveitando construções já estabelecidas - como o campo do Patú (Sena-

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

dor Pompeu), que ficou instalado nos prédios destinados inicialmente aos operá- nhos de mão surgiram de todos os feitios e de todos os materiais, ora reduzidos a
rios das obras de construção do açude de mesmo nome, e o campo do Tauape, uma sombra do que haviam sido, ora caricatura grotesca do instrumento que pro-
localizado na antiga feira do Matadouro Modelo, em Fortaleza.48 curavam imitar". O trabalho nas obras se desenrolava improvisadamente, como
Estas disposições geravam novas disciplinas e, como não poderia deixar de um grande teatro a entreter o estômago dos retirantes: "os que possuíam esse
ser, novos conflitos e resistências. De um lado, os retirantes - normalmente pe- arremedo de ferramenta eram admitidos imediatamente e iam simular nas turmas
quenos proprietários e arrendatários que praticavam uma agricultura familiar de um trabalho imaginário cujo efeito se iria evidenciar mais tarde no encarecimen-
subsistência associada (ou não) a uma pecuária rudimentar - travavam contato to das obras".50
com uma nova forma de vida em comum, mais coletiva, dividindo barracas, ba- Para Tomaz Pompeu Sobrinho, no entanto, as dificuldades provinham muito
nheiros, postos de saúde e refeitórios, ao mesmo tempo em que se relacionavam mais da ineficiência e despreparo do IFOCS. Segundo ele, "a Inspetoria, incrivel-
com novas tecnologias de trabalho - a divisão de tarefas e a obediência ao chefe mente desprevenida, nem mesmo sonhava com a possibilidade de uma seca".
- e de higiene - do tipo "obturação hidráulica" e "descarga geral" dos banheiros. Desta forma, estranhamente, "a seca, ainda uma vez, causava surpresa à Reparti-
De outro lado, as pressões sobre os hábitos comuns dos retirantes, especialmente ção, a quem cabia prevenir os seus terríveis efeitos!" Os trabalhos, quando che-
de higiene, geravam descontentamentos e revoltas. A vacinação, o corte dos ca- garam, "nem sempre foram orientados por bons projetos de serviços" e as obras
belos e os exames para detecção de doenças infecciosas provocavam resistências eram "mal distribuídas". Mesmo assim, "a direção dos serviços foi satisfatória,
e reclamações. No campo do Ipu, o terror do isolamento fazia com que os doen- nada ocorrendo de anormal".51
tes frequentemente fugissem em direção aos "logares communs, apesar das E que "anormalidade" poderia esperar o conceituado estudioso cearense?
enérgicas medidas empregadas" e "até mesmo as creanças sarapentas eram en- A grande preocupação das autoridades, como se pode inferir das considera-
volvidas totalmente entre lençoes, dando a impressão de um amontoado de panos ções feitas até aqui, era com a "disciplina e moralidade", como destacou o Minis-, •
velhos", para que não se sujeitassem aos exames; assim, "muitos casos positivos tro. O aumento da criminalidade, da prostituição e da mendicância eram as prin-
[de sarampo] eram escondidos por ocasião das visitas dos médicos e auxiliares". cipais ameaças que elas percebiam contra a civilização, a ordem e a organização
Um enfermeiro denuncia uma certa "curandeira Raimunda de tal", "que vem in- social. Assim como Rodolpho Theophilo - que morreu neste ano de 1932, mas
terrompendo os serviços de assistência, prejudicando ainda mais a saúde dos não deixou registradas suas últimas impressões sobre mais esta seca -, viam a
pobres ignorantes que dão créditos a suas bruxarias e beberagens", e que procura chegada dos pobres retirantes, sujos e andrajosos, como a presença de um passa-
"aconselhar o povo a não aceitar as vacinas". No campo do Patú, em Senador do de barbárie que pretendiam sublimar através do apelo civilizatório da ordem e
Pompeu, os retirantes reclamam dos guardas, "que são grosseiros e intratáveis da racionalidade. As ambiguidades da formação social brasileira mostravam-se
quando distantes dos superiores", e dos barbeiros, que transformam "uma medi- expostas cruamente a seus olhos, sem disfarces, na recorrente invasão de ho-
da de higiene numa humilhação injustificável". 49 mens, mulheres e crianças destituídos das mais elementares capacidades de sub-
Colocam-se em choque, mais uma vez, o saber médico - científico, urbano e sistir por eles mesmos e, portanto, inteiramente dependentes das autoridades go-
intervencionista - com o saber popular - enraizado na tradição, nos usos das vernamentais. Como, então, sustentar a utopia liberal contratualista que se gestava
ervas e outros produtos provenientes do meio ambiente conhecido e, especial- no Brasil desde o final do século XIX e que pressupunha a instituição da socieda-
mente, conectado às expectativas místicas e religiosas dos sertanejos. de através de um pacto entre indivíduos de iguais capacidades de percepção do
A administração deste gigantesco sistema de contenção da população reti- real?52 Como, por outro lado, compatibilizar estas desigualdades com os para-
rante não foi assim tão simples. Os campos deveriam estar conectados a obras em digmas do corporativismo que se prenunciara na década de 1920 e que iria se
andamento, organizadas pelo IFOCS. Mas "havia falta de tudo", reclamava o tornar oficial durante o período getulista?53 Entre estes dois pontos de vista tran-
Inspetor deste órgão federal: ferramentas, projetos, pessoal técnico, transportes, sitavam estes intelectuais que procuravam entender o fenómeno da seca e encon-
material de construção, água, "só não havia falta de boa vontade, de dedicação e trar soluções para o que consideravam seus efeitos; ao mesmo tempo, entre estes
de patriotismo". Nestas condições, "aceitava-se como ferramenta tudo que lem- pontos de vista organizavam suas formas de pensar a ordem e a desordem no
brasse mesmo de longe um instrumento de trabalho": "picaretas, enxadas, carri- mundo social.

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FREDERICO DE CASTRO NEVES
T A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

O Ministro, assim, só consegue encontrar um exemplo de "anormalidade": zer aos retirantes - em sua maioria agricultores, cuja vida se resume à procura de
"nesta promiscuidade, só se verificou um caso de attentado ao pudor, praticado uma "segurança alimentar" mínima e cujo trabalho é exercido com a própria
por um abastado comerciante que foi, desde logo, preso e processado".54 família em pequenas parcelas de terra em condições de baixo índice tecnológico,
A concentração compulsória em campos fechados e vigiados, a imposição ou vaqueiros, que se prendiam através da "quarta" às fazendas de criar no sertão
de normas, regras e valores estranhos ao mundo da economia rural familiar, as quase desabitado - uma maior capacidade de produção, ou, melhor dizendo, iria
exigências higiénicas aplicadas violentamente sobre uma população que desco- incorporá-los ao imaginário do capitalismo moderno cuja "significação social
nhecia seus efeitos e sua efetividade, a manutenção de milhares de pessoas con- central" se traduz na procura incessante de maior produtividade,60 o que os qua-
centradas num "estado sanitário lastimável" que "deixa muito a desejar" e que dros da economia "tradicional" não permitem desenvolver. Por outro lado, "uma
favorece a proliferação de epidemias de "tifo, paratifo e desenteria", além da frente de serviço na seca pode representar também uma grande Escola", em que
"diarreia", atingindo uma "situação quasi desesperadôra", além da utilização ex- são "formados" novos pedreiros, oleiros, seleiros, carpinteiros, enfermeiros, fer-
tensiva do trabalho gratuito de mulheres e crianças,-"55 tudo isso era, portanto, reiros, tratoristas, motoristas, mecânicos, niveladores, topógrafos, enfim, "gente
considerado "normal", indigno de ser anotado pelos criteriosos observadores da que ficou servindo ao Nordeste e ao Brasil".61
seca. O que os preocupa, com maior ênfase, é o "attentado ao pudor"... De fato, os campos de concentração foram, desde o início, entendidos como
Esta estratégia de controle da movimentação da população rural, contudo, "órgãos encaminhadôres de operários para as obras de socorro", mesmo que se
que pretendia "evitar as grandes agglomerações urbanas", e apesar de sua tenham transformado "em outros centros de ociosidade que só à custa de grandes
grandiosidade - quase 90 mil retirantes concentrados em janeiro de 1933 -, não esforços puderam ser extintos". 62 Para o Ministro, os campos serviam "de
logrou o sucesso esperado: "fixar o homem no campo", evitar a pressão sobre os entrepostos para os retirantes encaminhados aos serviços públicos" e a questão
centros urbanos. A partir de 1930, a migração para acapital tornou-a um grande que se colocava, fundamentalmente, era a preservação de uma mão-de-obra que
centro populacional, sem estrutura básica e com muitas favelas.56 se dispersa com a seca: evitar o "extravio das populações sertanejas e a prática
Mas uma outra preocupação se incorporava à iniciativa do isolamento dos humilhante da mendicidade", preservar "a aptidão ao trabalho produtivo",63 pois
retirantes: a conexão com o trabalho em obras públicas - "cada centro de serviço "de maneira nenhuma se deveria o governo manter os flagelados concentrados
tinha ao seu lado um outro campo de concentração".57 O trabalho, neste momen- sem trabalhar, com isso os pondo em péssimo costume".64
to, passa a ser visto em seus aspectos pedagógicos, como um antídoto à Desfazer esta imensa estrutura de socorro e controle da população de reti-
criminalidade e à mobilização indesejada, e acompanhará, a partir de então, to- rantes, por outro lado, tornou-se um grande problema operacional e, assim, "mui-
dos os planos de assistência aos migrantes. Mante-los em atividade física árdua e to mais penoso tornou-se o esforço applicado em dissolver a immensa massa
mal remunerada, na qual novos saberes técnicos são incorporados, aprofundando humana incorporada a esses serviços".65 O governo, consciente de que "acabar
a divisão do trabalho, levando até estes sertanejos a separação por tarefas e a esse modo de auxílio sem proporcionar aos flagellados os meios necessários ao
obediência cega aos chefes, era preocupação que se esboçava neste momento. seu regresso, seria abandonal-os aos azares da sorte, em regiões pouco propicias",
Não se pensava, em geral, no aproveitamento técnico da obra que se estava cons- procurou os meios necessários para possibilitar o trajeto de retorno dos refugia-
truindo, mas no "aproveitamento do operariado". Assim, foi suspenso o emprego dos aos seus locais de origem. E, assim, "o Ministro José Américo de Almeida
de novas máquinas nas obras e na conservação das estradas; até mesmo "o (...) a quem o Ceará deve a continuidade de sua vida económica financeira e a
apiloamento da terra nos açudes foi sempre feito manualmente, empregando-se própria conservação dos núcleos de população sertaneja (...) autorizou a R.V.C, a
nesse mister milhares de operários". A orientação do trabalho nas obras oscilava fornecer, por intermédio da administração do Estado, as passagens precisas ao
entre "as razões de parcimonia" e "os motivos imediatos de socorro às popula- transporte dos flagellados aos seus municípios".66 Em abril de 1933, restavam
ções famintas".58 Acreditava-se, por fim, que o trabalho intensivo e regular, mes- "apenas" 3.279 "habitantes" nos quatro campos que ainda estavam abertos.
mo que "imaginário", mas exercido "compulsoriamente", traria, "ordinariamen- Para o Inspetor do EFOCS, no entanto, para quem as migrações significavam
te, progresso, sobretudo na ordem económica, política, artística e científica ou "as causas predominantes do pequeno rendimento do operariado", infelizmente
técnica".59 Acreditava-se que a experiência nos campos de concentração iria tra- não cessaram os "motivos que mais influenciaram no encarecimento das obras",

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

já que, mesmo com o fim da seca, "permaneceram muitas famílias obrigatoria- e da formação da multidão e as pressões submetidas às populações que buscam
mente nas obras federais á falta de acolhimento nos trabalhos da agricultura"; refúgio nas cidades.
para ele, essa "era a escória da população que o governo por alguns meses ainda
se veria obrigado a sustentar, até que as condições de vida no sertão melhorassem
com as primeiras colheitas".67 Referências bibliográficas
A imprensa, por sua vez, denuncia que, já em pleno período chuvoso, "con- ' ALMEIDA, Ministro José Américo de. O Ministério da Viação no Governo Provisório. Rio
tinuam abarrotados de famintos os Campos de Concentração neste estado" e que, de Janeiro: Officina dos Correios, 1936. p. 221. Para ele, como veremos, o importante era
em vista disso, "permanece ainda como no auge da calamidade o governo a man- preservar a mão-de-obra na agricultura.
ter milhares de braços inactivos em barracas ante-higiênicas, gastando com isso 2 THEOPHILO, Rodolpho. A Seca de 1915. pp. 51 e 63.
dezenas de contos diários".68 3 WILLIAMS, Raymond. O Campo e a Cidade na História e na Literatura. Op. Cit. p. 11.
De certa forma, os campos estabelecem uma distinção entre pobres e indi- 4 RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 51 ed. São Paulo: Record, 1983.
gentes, entre aqueles que podem "atravessar" uma crise por conta própria e aque- 5 Cf. SIQUEIRA, António J. "O Direito da Fala (Violência e Política em Vidas Secas)." Revis-
ta Brasileira de História. São Paulo: Marco Zero/ANPUH, v. 12, n" 23/24, set. 91/ago. 92. pp.
les que necessitam de ajuda do Estado, estigmatizando estes últimos como inca-
91-98.
pazes e miseráveis. Esta identidade se estabelecerá a partir da intervenção gover- 6 O Povo, 11 de janeiro de 1932.
namental que procura classificar os níveis de pobreza com o objetivo de raciona- 7 O Povo, 14 de março de 1932.
lizar a assistência e, especialmente, definir aqueles que precisam ser assistidos. O 8O Povo, 28 de março de 1932.
retirante faminto, impotente diante das dificuldades e incapaz de prover o pró- 9Recurso de Habeas Corpus (1932) n" 24.571 do Supremo Tribunal Federal. Infelizmente, a
prio sustento e o de suaíamília, se vê estigmatizado como indigente, e é colocado parte inicial deste processo não foi encontrada.
sob a proteção das instituições governamentais de assistência pública durante o 1(1 "Na lógica de uma política moldada pelo mandonismo, imaginar a Justiça como instância

período de emergência. O estigma dos campos, assim, poderia constituir uma imune à força do poder local dos fazendeiros, é sonhar, ou, como afirmava o velho Pule,
Senhor da fazenda Albuquerque Ne, 'é coisa de doido'." Para outro coronel sertanejo, Napoleão
crueldade muito maior, ou mais afixada na memória, do que as próprias condi- Siqueira, "quem vai a Juízo perde o juízo". SIQUEIRA, António J. "Imaginários da Exclu-
ções "reais" de trabalho e moradia que se estabeleceram nestas áreas delimita- são." In: MONTEIRO, John e BLAJ, liana (orgs.) História e Utopias. Textos apresentados no
das.69 XVII Simpósio Nacional de História. São Paulo: ANPUH, 1996. p. 442.
Mesmo assim, apesar de todas as dificuldades, o Ministro podia vangloriar- 11 Cearense, 25 de outubro de 1877.
se que, por conta desse auxílio do governo federal, "os núcleos de população se 12Cf. QUIROGA F. NETO, Ana M. "As Frentes de Emergência e o Movimento dos Saques."
In: ANPOCS. Movimentos Sociais. Para além da dicotomia rural-urbano. Recife: Centro de
livraram dos saques das multidões famintas, que já se pronunciavam, aos primei- Estudos e Pesquisas Josué de Castro, 1985. p. 113.
ros rebates da calamidade". 70 De fato, ele não poderia ser mais claro com relação 13 "A premência das condições desperta sentimentos atávicos do homem quando se avizi-
às intenções fundamentais do programa de "socorro às vítimas da seca" de 1932... nhava da animalidade." SOBRINHO, Thomaz Pompeu. O Problema das Seccas. Op. Cit. p.
Alguns dos elementos desta nova visão sobre as migrações dos camponeses 25, nota 10.
pobres durante as secas, todavia, mantiveram-secomo princípios básicos nas ações 14 OLIVEIRA, Elias. Criminologia das Multidões. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1966. p. 8.
governamentais. Os problemas gerados pelas migrações ultrapassaram definiti- 15Cf. GOMES, Angela de Castro. Burguesia e Trabalho. Política e legislação social no Brasil
(1917-1937). Rio de Janeiro: Campus, 1979. pp. 199-236. É conveniente lembrar dos "incrí-
vamente os limites das fazendas e de uma assistência local e primária no âmbito veis desafios que representavam para a cultura europeia e para a sociedade civilizada a emer-
das relações paternalistas e tornaram-se um problema específico a ser resolvido gência dos homens pobres na cena política reivindicando pela primeira vez o direito à cidada-
pelo Estado, que buscará racionalizar sua atuação para permitir uma redução do nia plena". BRESCIANI, M" S. M. "Carlyle: A Revolução Francesa e Engendramento dos
Tempos Modernos." Revista Brasileira de História. São Paulo: Marco Zero/ANPUH, vol. 10,
impacto migratório sobre as cidades, buscando desesperadamente "fixar o ho-
n°20, mar/ago 1991. p. 102.
mem no campo".
16 Thompson - cujas análises sobre e lei e a Justiça parecem ultrapassar os limites de sua
O contexto político do pós-30, no entanto, iria desembocar em novas alter- pesquisa específica (Cf. Senhores e Caçadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. pp. 331-
nativas nas relações entre retirantes e autoridades, alterando os limites das ações 361.) - já observara isso com relação à multidão inglesa do século XVIII: "(...) a ética popular

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sancionava a ação direta da multidão, enquanto que os valores de ordem apontados pelo mode- S. et alli. Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. 3 ed. São Paulo: Ed. Revista dos
lo paternalista se opunham a ela categoricamente". THOMPSON, Edward P. "A economia Tribunais, 1990. p. 875.
moral da multidão inglesa do século XVIII." Op. Cit. p. 152. Por outro lado, há que se reportar
à questão dos direitos. A "reciprocidade", em si mesma, não garante que a proteção possa ser 25 Cf. GOMES, Angela M. de Castro. A Invenção do Traballúsmo. Rio de Janeiro: IUPERJ,
exigida. "É assim mesmo no Estado-Assistência, embora se queira fazer pela retórica o mila- 1988. pp. 205-228; FONSECA, Pedro C. Dutra. Vargas: O Capitalismo em Construção. São
gre da cidadanização. Com frequência reporta-se ao princípio segundo o qual o Estado tem o Paulo: Brasiliense, 1989. pp. 147-248.
dever de socorrer o pobre. Porém - como bem o esclarece Simmel - este dever não corres- 26 Aqui outras semelhanças com a multidão inglesa do século XVIII. "These actions were not

ponde, para o pobre, a nenhum direito de socorro, uma vez que o direito que equivale àquele intended as an attack on estabilished authority. (...) What they expected, what they demanded
dever do Estado não é o direito do pobre, mas o direito que tem todo cidadão a que a contri- and what they sought to achieve was lhe reimposition of order, of customary relationship."
buição que paga em forma de impostos seja de tal modo aplicada, que os fins públicos da CHARLESWORTH, A. and RANDALL, A. "Morais, Markets and the English Crowd in 1766."
assistência aos pobres sejam realmente conseguidos, a fim de resguardar a segurança da so- Past and Present, n° 114, 1987. p. 208.
ciedade. Ou seja, a ação social de assistência não tem no pobre o seu fim último, mas o manu- 27 ALMEIDA, José Américo de. José Américo de Almeida (depoimento, 1976). Rio de Janei-
seio de certos meios objetivos, materiais e administrativos, destinados a suprimir os perigos e ro: FGV/CPDOC - História Oral, 1979. (dai.) p. 52.
danos que aquele significa para o bem comum." ARAÚJO, M° Neyára de O. A Miséria e os 28 SOBRINHO, Tomás Pompeu. História das Secas {século XX). Op. Cit. p. 40.
Dias. Op. Cit. p. 159.
M ALMEIDA, Ministro José Américo de. O Ministério da Viação no Governo Provisório. Op.
17 Lei n° 7.209, de 11.07.1984. Art. 65, III, e. Esta lei é uma reformulação ("reforma penal")
Cit. p. 195.
do Código Penal de 1940, em que permanecem os elementos ligados à multidão.
30 Correio do Ceará, 06 de abril de 1932.
'"JESUS.DamásioE. ás. Direito Penal. Vol. I:: Parte Geral. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 1990.
31 O Povo, 09 de abril de 1932.
p. 186.
32 O Povo, 14 de janeiro de 1932.
l y No entanto, a partir de um ponto de vista oposto, pode-se também pensar que os partidos,
espinha dorsal da política representativa, são "os próprios instrumentos eficientes através dos 33 O Povo, 22 de fevereiro de 1932. A reportagem mistura ações de retirantes com assaltos

quais o poder do povo é reduzido e controlado". ARENDT, Hannah. Da Revolução. 2 ed. São comuns, em que "mascarados atacaram a residência do velho Cosme de Tal, que perdeu um
Paulo: Ática, 1990. p. 215. filho na luta".
20 BRESCIANI, M" Stella M. "Da Perplexidade Política à Certeza Científica: Uma História 34 O Povo, 09 de março de 1932.

em Quatro Atos." Revista Brasileira de História. São Paulo: Marco Zero/ANPUH, vol. 12, n° 35 O Povo, 30 de março de 1932.
23/24, set. 91/ago. 92. pp. 32-33. 36 O Povo, 08 de abril de 1932.
21 OLIVEIRA, Elias. Criminologia das Multidões. Op. Cit. pp. 3, 19 e 87. Este autor-que vê 37 O Povo, 12 de abril de 1932. O jornal noticia a morte pela fome. no município de Pereiro, de
a multidão como o momento em que "os espíritos superiores são superados pelos interiores" um "velho de cento e dezoito anos de idade", que "costumava dizer": "venci as secas de 1845,
(p. 72) - segue quase literalmente as lições de Gustave Lê Bon, para quem, "pelo simples fato 1877, 1888, 1898, 1900, 1915 e 1919, mas não sei se vencerei as de 1930 a 1932". O telegrama
de fazer parte de uma multidão, o homem desce, pois, muitos graus na escala da civilização". que informa esta notícia insinua que "eleja sentia o peso da catástrofe, que estava reservada
LÊ BON, Gustave. Psicologia das Multidões. Rio de Janeiro: F. Briguiet e Cia, 1938. p. 11. não só a ele como para grande parte dos cearenses". Segundo o Recenseamento Geral de 1940,
Segundo este autor francês, a multidão se forma a partir de três fatores: a força do número, o o município de Juazeiro do Norte, incluindo as áreas urbana e rural, contava com 38.145
contágio e a sugestão. Na mesma linha de raciocínio, pode-se pensar também que "a multidão habitantes (56. !46 em 1950); em sua maioria, são habitantes da sede do município (41.999 em
é um terreno em que o micróbio do mal se desenvolve facilmente, ao passo que o micróbio do 1950), ao contrário da grande maioria dos municípios cearenses neste período, em que a popu-
bem morre quase sempre, à míngua de encontrar condições de vida". SIGHELE, Scipio. A lação é eminentemente rural.
Multidão Criminosa. Rio de Janeiro: Simões, 1954. p. 58. Como se vê, as metáforas biológica
™ O Povo, 13 de abril de 1932.
("contágio", "micróbio") e geológica ("tufão") e a preocupação com o progresso e a civiliza-
39 O Nordeste, 11 de abril de 1932.
ção dominam a percepção e a produção de saberes sobre a multidão.
40 Entrevista com o Sr. Raimundo Gouvêa, de Iguatu-CE.
22 De fato, a emergência da multidão como sujeito na cena política, desde a Revolução France-
sa e por todo o século XIX, despertou sempre nos homens cultos e letrados a sensação de que 41 O Povo, 16 de abril de 1932.

estavam diante da "parte malsã ou pervertida do povo; a multidão é o lado animal, primitivo, 42 Correio do Ceará, 04 de abril de 1932.
instintivo, regressivo da humanidade". COCHART, Dominique. "As Multidões e a Comuna: 43 IFOCS (Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas). Relatório dos Trabalhos Realizados
análise dos primeiros escritos sobre Psicologia das Multidões." Revista Brasileira de História. no triénio 1931-33. Apresentado ao Ministro José Américo de Almeida pelo Inspetor Luiz
São Paulo: Marco Zero/ANPUH, vol. 10, n° 20, mar/ago 1991. p^ 123. Augusto da Silva Vieira. Fortaleza: Tipografia Minerva, 1934. p. 49.
23 Lei n" 7.209, de 11.07.1984. Art. 24.
44O Povo, 26 de abril de 1932.
24JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. Op. Cit. p. 322. Cf. também: Id. Código Penal Ano- 45 ESTADO DO CEARÁ. Relatório apresentado ao Exmo. Presidente da República pelo
tado. São Paulo: Saraiva, 1989. pp. 80 e 425. Para uma jurisprudência, Cf. FRANCO, António Interventor Federal Cap. Roberto Carneiro de Mendonça. 22 de setembro de 1931 a 05 de

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

setembro de 1934. Fortaleza: Imprensa Official, 1936. p. 62. Como se vê, a preocupação com chegavam a pesar 15 quilos e, de acordo com as exigências da administração, tinha que os
as epidemias e com a criminalidade continua presente. Os decretos encontram-se em: Diário mesmos serem elevados até a altura dos joelhos, para provocar maior peso e firme compactação".
Oficial do Estado do Ceará, 15 de abril de 1932. p. l. Ele descreve a construção do açude Lima Campos como "um teatro de misérias, onde protago-
46LOPES, Américo. Actos do Governo Provisório dos Estados Unidos do Brasil. 61" Parte nista era uma multidão faminta, suja, andrajada e submissa, trabalhando como autênticos es-
(1932). Rio de Janeiro: Ed. Livraria Jacyntho, 1932. p. 308. Observe-se que, para os governantes cravos diante de verdadeiros carrascos transformados em feras humanas". LIMA, Manuel P.
deste momento, "flagelados" se identificam a "sem-trabalho". de. Icó em Fatos e Memórias. Icó-CE: s.ed., 1995. p. 152.
47ALMEIDA, Ministro José Américo de. O Ministério da Viação no Governo Provisório. Op. •w SOBRINHO, Tomás Pompeu. História das Secas (século XX). Op. Cit. pp. 46 e 55.
Cit. pp. 191-197. As lotações máximas foram as seguintes: 59.863 no campo do Burity (Crato) 6(1Cf. CASTORIADIS, Cornelius. A Experiência do Movimento Operário. São Paulo:
em janeiro de 1933; 31.906 no campo de Cariús em julho de 1932; 18.811 no campo do Patú Brasiliense, 1986. pp. 40-46; e A Instituição Imaginária da Sociedade. 2 ed. Rio de Janeiro:
(Senador Pompeu) em maio de 1932; 7.266 no campo de Ipu em julho de 1932; 5.399 no Paz e Terra, 1986. pp. 399-418.
campo do Urubu (Fortaleza) em fevereiro de 1933; e 4.839 no campo de Quixeramobim em 61 GUERRA, Paulo de Brito. Flashes das Secas. Fortaleza: DNOCS, 1983. p. 25.
junho de 1932 (este campo só "funcionou" de abril a junho). O campo do Otávio Bonfim foi
62 IFOCS (Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas). Relatório dos Trabalhos Realizados
fechado em outubro de 1932 e sobre ele os dados não são claros. No total, chegaram a ser
no triénio 1931-33. Op. Cit. p. 61.
concentrados, no máximo, 89.431 retirantes em janeiro de 1933. Cf. Tabela III. Por outro lado,
o governo, "tendo determinado essa concentração" dos retirantes, "onde lhes será garantido 63 ALMEIDA, Ministro José Américo de. O Ministério da Viação no Governo Provisório. Op.

relativo conforto", procura proteger o espaço urbano da capital contra a avalanche de mendi- Cit. pp. 198 e 191.
gos e pedintes e "resolve prohibir aos mesmos esmolarem pelas ruas". Correio do Ceará, 07 64 Correio do Ceará, 16 de junho de 1932.
de abril de 1932. 65 ALMEIDA, Ministro José Américo de. O Ministério da Viação no Governo Provisório. Op.
48É possível identificar dois-eritérios no planejamento dos campos em 1932: de localização e Cit. p. 240.
de organização. Cf. NEVES, Frederico de Castro. "Curral dos Bárbaros: Os Campos de Con- 66 ESTADO DO CEARÁ. Relatório apresentado ao Ermo. Presidente da República pelo
centração no Ceará (1915 e 1932)." Op. Cit. pp. 108-109. Interventor Federal Cap. Roberto Carneiro de Mendonça. Op. Cit. pp. 65-66.
49O Povo, 12 e 16 de abril de 1932; Gazeta de Notícias, 23-de março de 1932; Correio da 67 IFOCS (Inspetoria Federal de Obras Contra as Seca^Kelatório dos Trabalhos Realizados
Semana, 19 de novembro de 1932. no triénio 1931-33. Op. CU. p. 64.
50IFOCS (Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas). Relatório dos Trabalhos Realizados
68 Gazeta de Notícias, 15 de fevereiro de 1933.
no triénio 1931-33. Op. Cit. p. 49.
M Esta argumentação se aproxima das análises sobre os reformatórios de indigentes na Ingla-
51 SOBRINHO, Tomás Pompeu. História das Secas (século XX). Op. Cit. pp. 42-43.
terra pré-industrial, onde "ser pobre era respeitável, mas ser indigente era uma desgraça".
52 Cf. BRESCIANI, M" Stella M. "Razão e Paixão na Política." Op. Cit. pp. 20-21. HIMMELFARB, Gertrude. La Idea de Ia Pobreza. Op. Cit. pp. 219-220. A entrevista com o
53Cf. MUNAKATA, Kazumi. A Legislação Trabalhista no Brasil. 1 ed. São Paulo: Brasiliense, Sr. Manoel, de Iguatu, demonstrou a dificuldade dos homens do campo em aceitar a lembrança
1984. pp. 62-82. da proteção assistencial: ele recusou-se a falar sobre sua presença nas obras de construção do
54ALMEIDA, Ministro José Américo de. O Ministério da Viação no Governo Provisório. Op. açude Feiticeiro, em 1932, alegando enfaticamente que nunca precisara de ajuda para "atra-
Cit. p. 197. "Será crível?", duvida Tomás Pompeu Sobrinho. vessar a seca".
70 ALMEIDA, Ministro José Américo de. O Ministério da Viação no Governo Provisório. Op.
55O Povo, 12 de julho de 1932; Correio da Semana, 05 e 19 de novembro de 1932; IFOCS
(Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas). Relatório dos Trabalhos Realizados no triénio Cit. p. 244.
1931-33. Op. Cit. pp. 62-63. Numa outra avaliação, o "improviso não pode deixar de ter o seu
preço que foi cobrado nos aspectos sanitários, higiénicos, rendimento de trabalho, moralidade
e admissão do número de pessoas que, ultrapassando as expectativas, tornou impraticável o
funcionamento dos campos de trabalho como. se idealizara". FROTA, Luciara S. de Aragão e.
Documentação Oral e a Temática da Seca. Op. Cit. p. 206.
56 O Ministro José Américo e Tomás Pompeu chegam a falarem 105 mil concentrados, mas
esse número não se sustenta em confronto com as outras fontes disponíveis. Para o processo
de crescimento de Fortaleza no pós-30, Cf. SILVA, José B. da. Os Incomodados não se Reti-
ram. Fortaleza: Multigraf, 1992. pp. 21-44.
57 IFOCS (Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas). Relatório dos Trabalhos Realizados
no triénio 1931-33. Op. Cit. p. 61.
58Id. Ibidem. pp. 61-62 e 64. Segundo um atento observador, que tinha 11 anos em 1932,
"muitos daqueles malhos [para o trabalho de "apiloamento", ou seja, compactação do solo]

132 133
T
CAPITULO IV

I. O Estado Intervém

O contexto político, no sentido oficial e estatal do termo, económico e insti-


tucional em que se desenrola a seca de 1932 é, em vários aspectos, diferente das
secas anteriores.
Em primeiro lugar, as mudanças institucionais decorrentes do movimento
que chegou aojgpder em outubro de 1930 se efetivaram nos Estados de maneira
desigual.

A "Revolução de 30" no Ceará, tal como ocorreu em outros Estados do


Brasil, desaloja do poder as oligarquias mais tradicionais, sendo o espaço
político temporariamente ocupado pelos tenentes revolucionários e as oli-
garquias dissidentes que assimilaram o ideário político da aliança liberal.1

A fragilidade da estrutura partidária e a crise económica que se arrasta desde


meados do século XIX favorecem a centralização do poder nas mãos dos
Interventores e permitem a ampliação da ação revolucionária, apesar da "hetero-
geneidade de intuitos das suas mais fortes correntes formadoras".2
Para o "Norte", visto de uma forma geral e superficial, o engajamento no
processo revolucionário significava a possibilidade de uma "redenção política e
económica", em função da presença marcante, na direção nacional do movimen-
V to, de importantes lideranças locais, como Juarez Távora, que poderiam trazer
para a região benefícios que eram negados, segundo os reclamos das elites, pelos
governantes "oligárquicos" da República Velha. Como se pode observar, tratava-
JD se de uma continuidade política com relação ao paternalismo oligárquico em
suas formas mais elementares - a troca de favores, o beneficiamento pessoal -
que se procurava restaurar num momento de ruptura da ordem institucional. O
que se pretendia com uma "participação mais efetiva na política do País" era a

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-
FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

proximidade de grupos locais específicos com as esferas reconhecidas do poder grupos dominantes mais tradicionais. Esta foi uma das razões de sua queda. Seu
federal, situadas em São Paulo e Rio de Janeiro. 3 substituto - Moreira Lima - conseguiu menos ainda, ao alinhar-se ostensivamen-
Assim as possibilidades de uma ação centralizadora das Interventorias se te ao grupo tavorista, e permaneceu apenas oito meses no cargo. A posterior
faziam mais fortes no Ceará que nos Estados do sul do País. Apesar disso, não eleição, pela Assembleia estadual, do Dr. Meneses Pimentel, ligado à LEC, veio
seria possível aos Interventores desenvolver uma ação de governo, mesmo que dar maior estabilidade ao governo: permaneceu à frente da administração do Ce-
prioritariamente apenas para "implementar as medidas administrativas do Go- ará até 1945.6
verno Federal", sem que houvesse um intercâmbio político com as elites dirigen- Em segundo lugar, a crise nacional provocada pela Revolução Constitucio-
tes e, de modo mais amplo, com as classes dominantes locais. nalista de São Paulo coloca em questão a necessidade de uma resolução imediata
A escolha do primeiro Interventor levou em conta alguns desses critérios, e sem conflitos do "problema" da seca.
mas sua ação esbarrou exatamente no seu envolvimento com grupos locais já De um lado, a centralização política nos primeiros momentos do período
estabelecidos com relativo poder de barganha nas relações de poder ao nível revolucionário favoreciam a tomada de decisões sem a consulta aos grupos locais
estadual. Mesmo sendo irmão de uma das maiores lideranças nacionais do movi- nem o respeito a trâmites democráticos de participação política. Podiam ser to-
mento revolucionário, o Interventor Fernandes Távora encontrou desde cedo gran- madas medidas de assistência à população "flagelada" a partir de ordens diretâ-
des dificuldades para administrar os conflitos de interesses entre os grupos mente emanadas do Ministério da Viação e Obras, via Interventoria, sem neces-
oligárquicos mais tradicionais t outros que assumiam uma postura política mais sariamente passar pela intrincada rede de interesses patrimoniais envolvidos nas
"moderna", de respeito formal aos princípios da Justiça e da equidade moral na relações de poder nos sertões. Segundo um membro da "comissão technica
atividade política, além de necessitar atender aos reclamos mais populares da constituída para inspeccionar os actuaes trabalhos da Inspetoria das Secas", Sr.
Revolução. O curto período à frente do governo cearense demonstra a dificulda- Maurício Joppert, essa foi uma das mais fortes razões para o sucesso do
de de compatibilizar esses amplos, complexos e contraditórios interesses e "sua "programma desenvolvido pelo Sr. Ministro José Américo", realizado em um
saída se prenderia basicamente às fundas divergências que de logo se estabelece- profícuo "ambiente technico e moral elevado" e dentro do "mesmo methodo de
ram entre o tradicional político, de formação civilista e liberal, com o radicalismo trabalho, a mesma uniformidade de commando".7 A "vastíssima organização do
dos tenentes, sequiosos de reformas mais profundas". 4 Sua substituição pelo Cap. trabalho" pensada pelo Ministro só poderia ser implementada a partir da "mesma
Roberto Carneiro de Mendonça vinha contemplar esta preocupação com a cen- uniformidade de commando" e de um "ambiente technico" favorável. A centrali-
tralização e com os destinos do movimento revolucionário, buscando uma maior zação política se combina com uma visão técnica - ou "tecnificada" - dos pro-
autonomia dos Interventores com relação às oligarquias e, assim, possibilitando blemas sociais, fortalecendo-se mutuamente, especialmente no momento de uma
a "prática de atos isentos de quaisquer paixões ou interesses subalternos" ao "exer- guerra civil que mobiliza todos os esforços económicos da Nação e o governo
cer imparcialmente as funções de administrador". Ao mesmo tempo que "neutro federal vê-se na obrigação de estabelecer um regime de "economia de guerra", a
politicamente", o novo Interventor era "militar" e "estrangeiro", "critérios que fim de enfrentar os revoltosos do Estado mais rico da federação.
passaram a nortear a escolha dos Interventores nortistas". 5 De outro lado, o comprometimento das lideranças cearenses com o movi-
No entanto, após um curto período de conciliação entre oposicionistas (oli- mento de 30 impunha a necessidade de um posicionamento imediato contra as
garquias "decaídas") e situacionistas ("tavorismo"), o novo Interventor passa a pretensões paulistas. Esses líderes pretendiam que o alinhamento total com a
alinhar-se quase ostensivamente ao grupo de oposição. Este malabarismo políti- "Revolução" garantiria para o "Norte" uma posição favorável no jogo de forças
co, apesar de contrariar as orientações revolucionárias dos tenentes, garante ao políticas nacionais, já que a vitória governista ameaçaria, mesmo que superfi-
. Cap. Mendonça uma grande margem de atuação, especialmente em situações cialmente, o predomínio paulista sobre a política e a economia do País, consi-
especiais, como a seca, na qual aspectos técnicos, pouco identificados às ativida- derado pelas elites locais como o principal fator da sua decadência. O jornal O
des políticas no sentido tradicional, podem ser alegados como prioritários. O Povo, portanto, imediatamente aprova a criação do "segundo Batalhão provi-
alinhamento do Interventor passa a ser integral após as eleições de 1933, para a sório destinado a colaborar militarmente com as forças federais, em defesa da
Assembleia Constituinte, e a vitória da Liga Eleitoral Católica, representante dos Ditadura, ou seja, da própria Revolução de 30, ora agredida pelos reacionários

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

paulistas". A "inoportuna Rebelião Paulista", segundo ainda o jornal, "traz, em a "ocupar" uma mão-de-obra desocupada num momento de crise, mas também,
seu bojo, urna sede de domínio que, se tivesse de ser saciada, acarretaria a de forma incisiva, no mercado de alimentos, regulando os preços e o abasteci-
desgraça do Norte", já que "a hegemonia paulista sempre foi funesta aos nos- mento de produtos de primeira necessidade.
sos interesses regionais". A "Revolução de 30", ao contrário, veio "criar para o O "commissariado de alimentação publica", restabelecido em abril, já deter-
Norte condições próprias até então desconhecidas". 8 Como, então, hesitar em minava uma intervenção maciça nos preços e nas quantidades de produtos dispo-
sua defesa? níveis no mercado, especialmente de Fortaleza. Tais medidas foram ampliadas
Assim, a atenção dada pelo governo à rebelião paulista se justificava aos pelo Decreto n° 796, de 17 de outubro de 1932, criando a "Commissão de Abas-
olhos da imprensa e das lideranças cearenses, apesar da necessidade de uma ação tecimento Publico", "que ficou incumbida da fiscalização de todo território do
imediata em razão da seca. Estado". Vale a pena transcrever na íntegra as "principais funcções da commissão
• . Em outubro, porém, com o fim das hostilidades em São Paulo, a atenção do de abastecimento".
governo pôde ser cobrada com maior intensidade.
a) - organizar na capital do Estado o cadastro de todos os armazéns, merce-
Com a rebellião paulista a attenção de nosso povo voltou-se para o sul. arias e quaesquer estabelecimentos em que sejam expostos á venda géneros
Enquanto se fallava no front, no movimento de tropas e na organização de de primeira necessidade; b) - proceder ao levantamento do stock de artigos
batalhões provisórios, enquanto se exaltava o desassombro das forças de primeira necessidade existentes naquelles estabelecimentos comerciaes;
dictatoriais e a estratégia do general Klinger, os nossos pobres do Campo c) - manter perfeito serviço de estatística dos géneros alimentícios entrados
de Concentração eram de algum modo esquecidos. na capital do Estado, por qualquer via; d) - organizar semanalmente e fazer
publicar todos os sabbados tabeliãs de preços máximos para a venda de
As queixas apareciam timidamente na imprensa. Os relatórios as desprezam. géneros alimentícios; e) - obter cotações de"differentes artigos no interior,
A assistência aos retirantes da seca cearense ocupou um evidente segundo plano na capital e nas demais praças do paiz; f) - solicitar das repartições publi-
cas informações sobre os preços de transportes de mercadorias; e g) - final-
nas prioridades governamentais daquele momento, o que, em função das razões
mente, exercer rigorosa fiscalização relativamente á execução das tabeliãs
já mencionadas, não causou o desagrado que se esperaria entre os jornalistas e
de preços em vigor.
políticos locais. Do ponto de vista material, porém, a ajuda financeira concedida
pelo Ministério da Viação ao governo do Ceará, destinada à assistência aos reti-
Com a nova comissão, segundo avaliação do Interventor, "todo commerciante
rantes, passou da média de 200:000$000 de abril até agosto de 1932 para
ficou impossibilitado de reter géneros alimentícios em seus estabelecimentos ou
800:000$000 em novembro, chegando a 1.500:000$ em março de 1933.9 O fim
depósitos, com o intuito de provocar elevação de preços". A penalidade aos in-
da guerra civil abre os cofres da Nação e as cobranças podem ganhar maior visi-
fratores atingia multas de 500$000 a l :000$000 "e ao dobro, nas reincidências".
bilidade no espaço público.
A ação contra os especuladores, objetivando controlar os preços dos alimentos
consumidos especialmente pelos retirantes, abrangia todo o território do Estado e
Hoje, porem, quando a Pátria Brasileira foi integralisada no regime da or- atingiu "commerciantes grossistas", "retalhistas" e "encarregados de fornecimento
dem e da paz, chamamos a attenção de nossos leitores, novamente, para o nos serviços da Inspectoria Federal de Obras Contra as Secas", evitando que "os
estado do Campo de Concentração do Ipú, o qual acabamos de visitar nesta
operários e a população do Estado fossem explorados na compra dos géneros de
semana. 10
primeira necessidade"."
O Governo Provisório usava toda a sua autoridade, advinda da situação dis-
Diante dessas limitações e possibilidades, o governo pôde realizar seu "am-
cricionária daquele momento, para intervir na economia e regulamentar as ativi-
plo" programa de assistência aos retirantes, intervindo diretamente no mercado
dades que pudessem alterar a ordem pública, gerando a insatisfação popular pelo
local. Essa intervenção não se deu somente no âmbito do mercado de trabalho, aumento dos preços. O mercado, nesta visão autoritária, tinha uma função na
através da criação de vagas "artificiais" de trabalho em obras públicas destinadas segurança pública; regular suas atividades, portanto, era uma atribuição do Esta-

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

do, tal como o entendiam os principais mentores do novo regime. A visão liberal popular. No segundo caso, porém, as intervenções no mercado de trabalho e ali-
de igualdade de todos frente ao mercado era progressivamente substituída pela mentos se tornavam comuns, regulando a ordem económica para que a miséria e
noção de que "o Estado Nacional erguia-se em função do fundamento da desi- a fome não se alastrassem a níveis insuportáveis, destruindo as redes de relações
gualdade dos homens e das nações e postulava soluções políticas específicas para sociais e políticas que mantinham - ou pretendiam manter - o homem preso aos
cada povo" e que se tratava, portanto, fundamentalmente, de "buscar os meios de vínculos da dependência pessoal, da obediência e da submissão. 13 Do ponto de
tornar a autoridade mais justa e mais eficiente no enfrentamento da questão so- vista destas autoridades, é daí - deste alastramento da fome e do risco da morta-
cial da necessidade". O Estado, assim, em contraposição à visão liberal, "não lidade em massa - que surge a reação destruidora dos retirantes, como um "es-
mais devia restringir-se às suas funções protetoras de polícia, mas atuar como um pasmo" de preservação última da vida.
verdadeiro coordenador na distribuição da riqueza nacional". Isso se combinava Os governantes do regime autoritário do pós-30 não pensavam diferente.
perfeitamente ao "ideal de justiça social" preconizado pelos "revolucionários", Entre eles também predominava a "visão espasmódica"; mas, ao contrário do
cujo "critério de valor" era exatamente "o ideal de respeito ao trabalho e aos que acontecia antes, não hesitavam no momento de intervir na ordem económica,
frutos do trabalho". 12 pois o desequilíbrio social significava, para eles, ameaça à ordem política, ao
A "questão social" que se formulava então relacionava-se, portanto, à ideia regime, à segurança nacional.
de "necessidade", cujas exigências se combinavam, em parte, com as reivindica- Esta intervenção, todavia, por mais que pareça fruto de um planejamento
ções da multidão que se apossou das mercadorias em Orós e outras cidades do centralizado e racional, portanto moderno, se conectava às expectativas construí-
Ceará. Por vias diversas, o autoritarismo do regime do pós-30 e o comunitarismo das dentro do "modelo" paternalista de ordenamento das relações sociais. Curio-
"tradicional" dos retirantes em busca de alimentos percebiam o mercado muito samente, mas nem tanto, as perspectivas racionalizadoras do regime "revolucio-
mais pela lente da "moralidade" - daquilo que deve servir ao Estado ou aos po- nário" de 30 arti.culavam-se aos padrões ditos "oligárquicos", mais uma vez, dan-
bres em momentos de escassez profunda - do que pela percepção liberal de um do a este momento a característica de complexidade pelo qual é conhecido e
automatismo advindo de leis invisíveis que não se pode - ou não se deve - deter estudado.
ou regular. Nos momentos em que o liberalismo predomina nas esferas de estruturação
Por outro lado, a "distribuição da riqueza nacional" também estava atrelada do Estado, direcionando as políticas sociais, o conflito com os padrões paternalistas
às especificidades de cada momento, de cada situação. A escassez proporcionava se estabelece com maior intensidade; nestes momentos, a resistência "moral" na
ao regime uma rica oportunidade para exercitar essa capacidade de controlar o percepção do mercado em tempos de crise se fortalece e ganha visibilidade em
mercado e de impor uma ampla regulamentação no sentido de garantir "o ideal ações diretas e, muitas vezes, violentas.
de respeito ao trabalho e aos frutos do trabalho". As criticas ao liberalismo, que
reifica o mercado, encontram neste momento de crise uma forte justificativa e
II. A Seca Local e a Guerra Mundial
uma ampla base social no sentido de garantir um apoio geral às intervenções
estatais nas relações económicas. O regime, assim, tornava público um domínio As formas de relacionamento, entre retirantes e autoridades, estabelecidas
considerado como pertencente à esfera privada. pelo regime do pós-30 permanecem, pelo menos em alguns aspectos, na seca de
Até 1930, as relações entre os governantes e os retirantes haviam se baseado 1942. A possibilidade de envolvimento do Brasil na Segunda Grande Guerra, no
num terreno movediço mal delimitado, de um lado, pelos costumes tradicionais entanto, se apresentava como um elemento a fornecer características peculiares a
da vida sertaneja, e, de outro, pelo liberalismo que dominava a esfera do Estado este momento. Era, mais uma vez, um elemento que agia de modo a favorecer
no Brasil, com todas as suas peculiaridades. As demandas colocadas pelos refu- uma intervenção direta no mercado de trabalho e alimentos, conforme ocorreu
giados da seca, nesse contexto, eram recebidas pelas autoridades ora com des- em 1932. O clima de guerra favorece soluções autoritárias.
dém, confiantes na capacidade do mercado de reequilibrar-se por si mesmo e na Os técnicos encarregados de observar e analisar as condições climáticas e as
secular submissão do homem do campo, ora com temor, diante das possibilida- obras públicas encaminhadas em função das secas já previam que o ano de 42
des de revolta contidas na formação da multidão como agente de organização poderia ser difícil.

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

O inverno de 1942 encontrou, entretanto, o proletariado rural do Nordes- morrendo de fome". Aproveita para fazer "angustioso apelo bondoso coração
te enfraquecido para qualquer resistência maior; sem recursos do ano an- Vossência sentido minorar tão agudo sofrimento consequentes implacável flagelo
terior, em que as chuvas foram notoriamente escassas; lutando, desde o seca". Segundo ele, a "caridade pública está completamente esgotada."
início, contra a carestia exorbitante dos géneros alimentícios de primeira Em Crateús, segundo o prefeito, "caravanas desses infelizes famintos, es-
necessidade; sem o apoio indispensável do proprietário rural que, com farrapados, percorrem vias públicas implorando caridade, havendo já morte
raras exceções, o abandonou à sua sorte, ou melhor, o entregou a proteção
dos poderes públicos aos primeiros sinais de mau inverno. Daí a inquieta- inanição."
O prefeito de Jaguaribe informa que a "população sobretudo rural andrajosa
ção provocada pelas primeiras irregularidades das precipitações e que cul-
e faminta há muitos meses está morrendo inanição" e que estão "esgotadas todas
minou no quasi pânico que se seguiu à falta de chuvas no equinócio de
Março.' 4 nossas reservas". Arrisca-se a prever que "ainda este ano assistamos mortandade
a fome em escala desconhecida Ceará". Finaliza com uma angustiada conclusão:
O Superintendente identifica, aqui, mais uma vez, a passagem de uma pro- "é uma calamidade indescritível". 16
teção realizada no âmbito da propriedade privada para a proteção "oficial" a Vários serviços - principalmente construção ou reforma de estradas, as "ro-
cargo do Estado. Por outro lado, a "inquietação" da população rural se verifica dagens" - são imediatamente "atacados" pelos órgãos governamentais, "ocupan-
em função não só de um "mau inverno" de 1941, mas principalmente de uma do" os milhares de trabalhadores, cuja "afluência tumultuaria", como afirma o
"carestia exorbitante" que a atormenta já no início de 1942, chegando a um Superintendente do DNOCS, gera graves desequilíbrios no encaminhamento das
"quasi pânico" em março, quando o "mau inverno" é seguido por outro. O obras.
adjetivo "exorbitante", utilizado pelo técnico do governo, pode significar, enun- Em Aurora, "primeira localidade a ser invadida pelos flagelados", foram
ciado neste momento do Estado Novo, uma impaciência com relação às forçam colocados "1.800 homens no serviço, que já estava em andamento, dajpdovia
do mercado de alimentos, que, ao primeiro sinal de seca, se "desequilibra", Crato-S. Pedro-Lavras, onde já trabalhavam 4.000 operários"; em Jaguaribe, ou-
permitindo um aumento desordenado de preços. Isso pode demonstrar o estado tros 1.600 "já estão trabalhando". O Interventor Meneses Pimentel não perde
de ânimo dos intelectuais e técnicos - encarregados de interpretar e solucionar tempo e imediatamente toma inúmeras providências, principalmente no sentido
os problemas sociais gerados pela "seca" - para com o liberalismo, neste mo- de dar "serviço aos necessitados".17
mento em que um processo de centralização política já se efetivara com relati- A "negociação coletiva através da arruaça" já está em andamento e os can-
vo sucesso no Brasil, na vitória da política trabalhista e corporativista de Getú- teiros de obras transformam-se imediatamente em arenas políticas onde se desen-
lio Vargas. Assim, a necessidade de uma rápida e eficiente intervenção gover- rola um embate estranho, de pressões e contra-pressões, onde mais vale o
namental no mercado de alimentos e trabalho ganha espaço, mais uma vez, envolvimento pessoal que domina os códigos da cultura do que uma racionalidade
entre as autoridades encarregadas de promover a "proteção dos poderes públi- universal baseada na legalidade ou na capacidade técnica.
cos" ao "proletariado rural". Os "chefes", engenheiros que comandam os acampamentos de obras, têm
Em 19 de março de 1942, portanto, dia de São José, a seca é novamente que tentar conciliar a capacidade da obra em receber novos trabalhadores, a ne-
"decretada" no Ceará, com todos os atributos que já conhecemos. Os jornais cessidade técnica de cada uma delas e o direcionamento dado pelos dirigentes do
anunciam que "Fortaleza começa a ser invadida pelos Flagelados da Seca" e que órgão. Eles, assim como os policiais, procuram evitar maiores conflitos, mas re-
dificilmente se poderá conter "a avalanche humana que ruma" para as "regiões conheciam a urgência da fome e, assim, aceitavam as bases de legitimação que a
menos expostas á seca". A "visita dos deserdados da sorte", "andrajosos e famin- própria multidão imprime aos seus movimentos. Quando ocorria algum assalto
tos", vem provocando as igualmente conhecidas providências tomadas pelos ór- nos acampamentos e fornecimentos, geralmente o resultado do "roubo" era "mais
gãos estatais, com vistas a "atenuar o flagelo". 15 tarde distribuído a todos, com advertências", pela própria polícia. 18
Alguns prefeitos procuram sensibilizar o próprio Presidente Vargas e en- A atitude com relação ao saque é ambígua; a polícia toma, mas imediata-
viam telegramas relatando a situação em seus municípios. mente devolve os alimentos aos saqueadores. Mas esta ambiguidade é caracterís-
De Morada Nova, o prefeito relata a "horrenda situação" de "nossos patrícios tica do modelo paternalista, que é assumido pelo Estado, transformando-se em

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

paternalismo oficial. Nas mãos dos chefes e dos responsáveis pelos alistamentos 1940 e 35.097 em 1950; a sede do município, ocupada por mil pessoas em 1942,
recaía a responsabilidade de negociar com a multidão nas áreas de trabalho, en- só chegaria a 3.953 habitantes em 1950.20
quanto que, nas cidades, esta era tarefa dos padres, prefeitos e outras autoridades O impacto dessas invasões sobre o comércio, sobre as autoridades locais e
locais. Com a "conversa", o "contato", a "promessa", os chefes procuravam "acal- sobre a população urbana pode ser facilmente imaginado, apesar das dificulda-
mar" uma multidão que se impacientava com a falta de medidas ou com a demora des dos observadores em avaliarem com exatidão estas quantidades e dos inte-
nas atitudes práticas de distribuição de alimentos; e precisam, obviamente, co- resses dos correspondentes dos jornais em exagerar o evento, além dos limites da
nhecer em profundidade os padrões culturais e as expectativas sociais dos reti- "invasão". Os retirantes procuravam as áreas centrais das cidades, áreas normal-
rantes, associados a uma agricultura de tipo tradicional - a pequena propriedade mente próximas aos mercados de alimentos, feiras livres e prédios das prefeitu-
(própria ou arrendada) familiar - cujos objetivos económicos se resumem à ob- ras. As áreas residenciais não eram diretamente afetadas pela presença dos fa-
tenção de uma precária e provisória "segurança alimentar". Sem esse conheci- mintos, muito embora eles circulassem pedindo esmolas; mas, como em toda
mento, ele "estará perdido": a multidão, fora de controle, poderá tomar atitudes cidade pequena, as notícias correm rápido e a presença de uma multidão como
imprevisíveis ou, no mínimo, violentas, assumindo com as próprias mãos a tarefa essa causa curiosidade e espanto.21
de obter os alimentos tão necessários. O próprio Interventor, Menezes Pimentel, resolve, em telegrama, alertar o
O Superintendente do DNOCS, por seu turno, procurando demonstrar ao Presidente da República do perigo das concentrações de retirantes nas cidades
Ministro a "gravidade real da situação que se esboçava para as populações rurais cearenses.
de grande parte do Nordeste", relata que, em Iguatu, "em cinco dias, haviam sido
alistados, para os trabalhos da construção da rodovia Central do Piauí, cerca de Para evidenciar agudeza situação, cumpre-me esclarecer V. Ex. que estão
10.000 homens, reduzidos a 7.000 por ocasião da minha primeira visita (17 de se concentrando milhares famintos numerosos municípios Estado, havendo
abril) em consequência das chuvas recentemente caídas, e que já eram cerca de cerca 6.000 Sobral, 4 a 5.000 Senador Pompeu, l .000 Jaguaribe, aproxima-
8.000 na minha segunda passagem (dia 23), com o retorno de alguns desiludidos damente 2.000 Canindé e outros tantos Tauá e muitos outros pontos inte-
ou menos corajosos". 19 De fato, o jornal O Povo, em sua edição de 7 de abril de rior. Nesta Capital existem cerca 5.000 flagelados.
1942, informa que "em Iguatu acham-se atualmente mais de.5 mil flagelados e
em Jaguaribe e Icó, respectivamente, 2 mil e um milheiro", e que a "situação Conclui que "praticamente não há mais zona onde não se manifeste fome,
assume proporções alarmantes", apesar da distribuição de feijão e farinha, "ad- não se concentre população flagelada pedindo trabalho".22
quiridos pelo Governo". No entanto, o alistamento de um número exagerado de novos trabalhadores,
As "proporções alarmantes" da situação podem ser mais ainda inferidas se praticamente da noite para o dia, provoca distúrbios inesperados na estruturação
comparamos os números oferecidos pelo jornal e pelo Superintendente com os dos trabalhos, alterando a rotina produtiva e exigindo modificações técnicas. O
dados dos censos populacionais de 1940 e 1950. Superintendente do DNOCS assinala que "a capacidade de absorção de trabalha-
O município de Iguatu, segundo o Recenseamento Geral de 1940, contava dores dessas obras não é proporcional ao montante das dotações corresponden-
com uma população total de 34.699 habitantes, acrescida para 41.922 no Recen- tes", indicando problemas financeiros. Mas, ao mesmo tempo, ele ressalta que "a
seamento Geral de 1950. Os habitantes da cidade, a sede do município, no entan- construção mecânica intensiva - que não pode ser alterada de repente, para a
to, chegavam a apenas 10.063 em 1950! Isso significa que a quantidade de reti- manual, sem graves prejuízos - reduz grandemente esta capacidade, e a Inspeto-
rantes na cidade em 1942 significava cerca de metade da população urbana. O ria terá de examinar cuidadosamente cada caso, para evitar a desorganização dos
alistamento realizado pelo DNOCS em março de 42 equivale à totalidade da po- seus serviços". Assim, algumas obras, ou alguns setores no interior de alguma
pulação urbana de Iguatu. O mesmo acontece com Jaguaribe e Icó. Jaguaribe obra, não podem ser modificados imediatamente de modo a permitir o "emprego
contava com 13.331 habitantes em I940e 16.971 em 1950; 2.000 retirantes ocu- de grande escala de operariado não especializado". Colocam-se, aqui, em con-
pavam a cidade em 1942, quando a população da sede do município chegaria a fronto uma racionalidade técnica, voltada para a alta produtividade e melhor apro-
2.533 pessoas somente em 1950! Icó, por sua vez, tinha 29.042 habitantes em veitamento dos recursos com menor custo, e uma necessidade de atender à "in-

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tensificação dos socorros". A solução, "verificada a insuficiência desses recur- por outro lado, "o Canindé real" localiza-se "nas ruas e nas casas onde o operá-
sos", é "atacar novas obras, em pequeno número, e distribuídas de maneira a rio, o povo reside" - "é o da fome e do desespero". A resignação popular, ainda
atender razoavelmente às necessidades das diferentes regiões evitando-se uma segundo este correspondente, está na relação com o governo, segundo um padrão
dispersão de esforços que a experiência de crises anteriores tem mostrado ser, tipicamente paternalista, das relações pessoais de reciprocidade: "o povo espera
por todos os motivos, desaconselhável". Além dessas obras novas, especialmen- porque o homem que o governa é o mesmo que o salvou em 1932", "daí a espe-
te construção de estradas, outras medidas foram sugeridas para fixar os homens rança ainda alimentada pelos pobres". O governo deve suprir as carências da
que se deslocam em pontos fixos, fora das cidades, onde causam problemas polí- caridade particular e prover os pobres, no momento de crise, das condições míni-
ticos, sociais e administrativos: "a distribuição de famílias de retirantes pelas mas de existir.
vazantes das bacias hidráulicas dos açudes públicos construídos", "a localiza-
ção de famílias retirantes nas áreas irrigadas dos Postos Agrícolas" e "a locali- A caridade particular tem seus limites, determinados pelas suas possibili-
zação, ainda em pequenos lotes, de famílias retirantes nas áreas das bacias de dades económicas. Chega onde lhe é possível chegar. Não pode fazer mui-
irrigação já dominadas pelos canais e ainda não cultivadas pelos respectivos to, para não passar para o mesmo plano do pedinte. Só temos um remédio,
proprietários". 2 - 1 que é o da caridade dos homens de governo!
Do ponto de vista organizacional, portanto, a presença dos retirantes causa
problemas administrativos que devem ser resolvidos dentro dos limites de uma E conclui, resumindo as esperanças de todos os que estão envolvidos por
implacável racionalidade técnica, que procura alocar as "peças" disponíveis de este manto do paternalismo oficial: "todos esperam nas providências do Dr. Ge-
acordo com uma lógica de melhor aproveitamento dos recursos e de menor índi- túlio Vargas!"25
ce de desperdício, de acordo com uma visão ampla da organização social, vista A pressão da multidão sobre a caridade local mostra os limites de ação de
de cima, como um todo, que despreza as injunções e "interferências" culturais e uma e de outra. Se, por um lado, a caridade "tem limites", por outro lado a pres-
locais, especialmente se vindas do modelo paternalista das relações sociais. Os são da fome coloca os retirantes em situação de confronto e disputa, em que "o
retirantes, segundo a visão dos técnicos, deveriam ser distribuídos pelo território, faminto vê, ordinariamente, noutro faminto um rival que, se não existisse, seria
em obras e serviços a serem definidos exclusivamente pelo órgão técnico compe- um competidor a menos na disputa das migalhas que mal lhe entretém a vida".26
tente, inseridos em relações de trabalho que não dominam, mas que são as mais Em Orós, o "comércio ficou dando comissão durante muitos dias".
adaptadas (tecnicamente falando) às circunstâncias. Esta racionalização dos so-
Se juntavam todos e faziam aquela cota para dar o que comer à pobreza.
corros evitaria a "esmola desmoralizante", o que é reforçado pelo correspondente
Senão os cabras comiam, invadiam mesmo. Aí um proprietário deu um boi
de O Povo em Alto Santo, que afirma que "gente pobre aqui não aceita esmola,
para matar, para eles comerem. Pegaram à mão mesmo, mataram esse boi,
pede trabalho". 24 A demanda por trabalho, como se verifica, não especifica a sangraram, tiraram o couro lá mesmo na praça, cada um cortou um pedaço.
natureza do objeto a ser produzido nem as relações de produção a serem empre- Eu me lembro bem que eu tirei no corredor um saco lá e dei no pé, que se
gadas. não corresse os outros tomavam, né'?27
Ao mesmo tempo, as poucas chuvas caídas em abril deram a impressão de
que haveria "inverno", e isso serviu para arrefecer as iniciativas governamentais Com as migrações, ao mesmo tempo em que algumas cidades se transfor-
de socorro aos retirantes. Todavia, a confirmação da seca haveria de trazer de mam em pólos de atração para os retirantes, atraindo também as obras públicas,
volta as queixas e as mesmas cenas de desespero e infortúnio. outros centros urbanos perdem vitalidade e ficam economicamente estagnados,
Em Canindé, por exemplo, a situação, segundo o jornalista, parece crítica; existindo em função unicamente da assistência pública. Aracati, por exemplo,
ele, porém, ao contrário da maioria, deixa escapar alguns indícios a respeito das outrora um grande centro comercial da zona litorânea e que chegou a ser uma das
diferenças de classes e suas relações com a seca, apontando duas cidades distin- sedes da assistência na seca de 1877, recebendo cerca de 60.000 retirantes, en-
tas, sofrendo de maneiras diferentes o drama da seca. Por um lado, "podemos ver contra-se em 1942 com seu comércio "quasi completamente paralizado". Apesar
outro Canindé neste momento, porém, nas salas dos agraciados pela fortuna"; da cidade estar "cheia de flagelados, que acorrem de todos os recantos do muni-

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cípio, em procura de meios de não morrer de fome", não há atividade económica, "objetivo de alistar e recrutar trabalhadores para a 'Batalha da Borracha'". A
política ou social capaz de absorver de alguma forma esta população - seja pela especial coincidência de tais efeitos e necessidades da guerra com a eclosão de
geração de empregos, seja pela caridade - e "todos esses homens, com suas famí- mais uma seca fez com que a sede do novo órgão fosse - sintomaticamente -
lias, dedicam-se à mendicância, emprestando um aspecto de miséria à cidade". instalada em Fortaleza, onde mais facilmente se poderiam encontrar "flagelados
Os transportes coletivos que fazem o trajeto de Aracati para Fortaleza, conheci- candidatos a seringueiros".-"
dos popularmente por "sopas", "viajam sempre sem nenhum passageiro, o que Antes mesmo da criação do SEMTA, a emigração para o Norte já havia se
vem, de um certo modo, atestar a falta de movimento na vida da cidade". A iniciado, nos moldes conhecidos das outras secas, sob a coordenação do Conse-
- f i • f • • • • ' • u 98
situação, ressalta o correspondente, 'e das mais criticas imagináveis /" lho de Imigração e Colonização do Brasil em cooperação com a Delegacia Re-
As correntes de migração e movimentação dos retirantes, como já era sabi- gional do Trabalho. Um esquema de transportes foi montado para receber e
do, acompanhavam as obras estabelecidas pelo DNOCS e os técnicos, intelec- transladar os retirantes para Belém e Manaus. O Lloyd Brasileiro colocou um de
tuais e políticos pareciam unânimes em afirmar que "somente os serviços públi- seus navios à disposição para fazer a linha de Fortaleza a Belém "até que se
cos poderiam concorrer ponderàvelmente para minorar a situação, que se agrava- desafoguem os maiores centros de aglomeração dos flagelados no Ceará".32 Os
va progressivamente". No entanto, apesar dos créditos abertos pelo Governo Fe- embarques, porém, foram suspensos após "os torpedeamentos dos nossos navios
deral "para atender ao custeio de diversos serviços a cargo do 1° Distrito da Ins- mercantes em águas da Bahia pelos bandidos fascistas".33
petoria de Secas", chegou-se à conclusão de que "a crise não podia ser tão facil- Ao mesmo tempo, novos campos de concentração foram organizados na
mente superada, como se julgava anteriormente, embora o flagelo fosse realmen- capital, procurando evitar o trânsito dos retirantes pelas ruas da cidade. Em
te parcial". 29 outubro, os campos foram unificados no campo do Alagadiço, sob a direção
A solução, mais uma vez, foi a emigração; agora, todavia, dentro de um das irmãs Marianas, do Dispensário dos Pobres. Uma comissão de senhoras,
novo contexto, em que o "discurso do Poder reduz brasilidade a parâmetros geo- liderada pela Sr.a Anita Gentil Barbosa, administra o campo, procurando ofere-
gráficos e económicos" e que a grande tarefa imposta pelas novas condições da cer socorro para as crianças, vestuário e assistência hospitalar; arrecada um
realidade nacional seria "eliminar os 'vazios demográficos' e fazer com que 'as "generoso auxílio do comércio" e promete prestar contas do dinheiro arrecada-
fronteiras económicas coincidam com as fronteiras políticas'", conforme discur- do, "uma vez findos os seus trabalhos".34 O campo, também chamado de alber-
so do Presidente Vargas em Manaus, em 1940, pregando uma "cruzada" para a gue, no entanto, não era "rigorosamente o que desejavam realizar as autorida-
Amazónia nos moldes da "Marcha para o Oeste", que se efetivava então no Cen- des do Ministério do Trabalho", com 2 mil retirantes se amontoando "sob a
tro-Sul do País.30 O momento favorável permitiu a formação de um "Exército da sombra de árvores frondosas, encontrando-se, por conseguinte, expostos à chu-
Borracha", formado para lutar nofront dos seringais amazônicos e arregimentado va", em condições higiénicas precárias. Mas, além das providências imediatas,
nas áreas secas do semi-árido nordestino, especialmente do Ceará. como a construção de calçamento e de banheiros de emergência, o jornal noti-
As complicações económicas decorrentes da Segunda Guerra Mundial colo- cia que "já foi iniciada a construção de uma moderna hospedaria, com possibi-
cam para os países aliados o problema do abastecimento de borracha, um ele- lidade de abrigar 6 mil pessoas".35
mento importante na fabricação de veículos, pneus e armamentos em geral, tor- A campanha realizada pelo SEMTA, contudo, ganha contornos "científi-
nando a sua obtenção uma questão estratégica muito importante para o esforço cos". A propaganda passa a ser o principal mecanismo de mobilização dos
de guerra. Assim, os seringais da Amazónia retornam ao centro do comércio flagelados e adesão da opinião pública, utilizando intensamente um conjunto de
internacional da borracha - de onde haviam sido desbancados pela concorrência imagens e textos - "um dos recursos largamente utilizados pelos intelectuais do
asiática - devido à expansão bélica japonesa sobre as áreas de produção na Ásia. Estado Novo"35 - que construíam a ideia de uma Amazónia ideal, terra da "pro-
No entanto, "como o problema do povoamento do vale [amazônico] ainda não missão", da "fartura" e da "esperança", que se contrapõe ao Ceará, terra da "seca".
tinha sido resolvido, organizou-se em caráter emergência! uma nova onda migra- A genialidade do artista francês Jean Pierre Chabloz vem se somar a estas pro-
tória para o Norte", e, para isso, o governo cria, em novembro de 1942, o SEMTA postas, produzindo uma série de pinturas e cartazes em que são veiculadas as
(Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazónia) com o imagens paradisíacas de uma Amazónia tropical, feliz e próspera, onde todos

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encontram trabalho e onde a água é abundante. Ao mesmo tempo, os desfiles dos sejam tomadas "medidas suficientes" que solucionem a "vexatória situação" em
"soldados da borracha" pelas ruas de Fortaleza, assim como os programas que se encontra o comércio local.41 Ao mesmo tempo, as estações de trem conti-
radiofónicos diários, contribuem para a formação de uma adesão em massa à nuam sob a constante ameaça de assalto pelos retirantes. Em Luna, cerca de 50
emigração e, por conseguinte, à contribuição brasileira ao esforço de guerra dos pessoas invadiram o trem e viajam em direção à Fortaleza nos vagões de carga.
aliados. Não é por acaso que os retirantes eram alistados e preparados como sol- Na estação de Arrojado Lisboa, um número indefinido de famintos tomou de
dados que iriam se deparar com uma "batalha" e que estavam envolvidos numa assalto o comboio da R.V.C, "com o propósito de viajar até a capital cearense". A
"guerra". O discurso bélico contribuía fortemente para a imposição de um con- regularidade do serviço ferroviário ficou comprometida, segundo a notícia, pelas
junto de medidas drásticas que se fazia crer que se contrapunham radicalmente à "constantes ameaças de assaltos dos flagelados", que colocam dormentes nas
realidade da seca; o fim da guerra iria demonstrar o contrário: o soldado é esque- linhas e exigem pela força a entrada nos vagões.42
cido e o campo de batalha abandonado. 37 A chegada de um "inverno" regular em março de 1943 recoloca a necessida-
O "albergue" do Alagadiço torna-se um posto de seleção para os candidatos de de encaminhar os retirantes de volta aos seus locais de moradia no interior do
a seringueiros, onde o Serviço Especial de Saúde Pública concentra seus esforços Estado. Com o auxílio da Legião Brasileira de Assistência e do Governo Esta-
para inspecionar aqueles que estão realmente aptos para enfrentar o trabalho na dual, o Dispensário dos Pobres empreende uma campanha de auxílio ao regresso
floresta amazônica. Um acordo entre Brasil e EUA garantia remédios, passagens, dos retirantes ao interior, com a concessão de passagens de trem, sementes e uma
salários para médicos e enfermeiros, enfim, toda uma infra-estrutura de apoio ao quantia em dinheiro. O campo de concentração do Alagadiço, sem função, foi
Serviço. Os médicos, liderados pelo Dr. Albino Figueiredo, trabalham sem parar alugado pelo SEMTA para "a formação de um dos seus núcleos de famílias em
e chegam a inspecionar 900 pessoas num só dia, "um verdadeiro 'record' e uma Fortaleza".43
prova evidente da eficiência do Serviço Especial de Saúde Pública". 38 A construção de uma nova hospedaria, no entanto, não foi interrompida e no
Também como resultado deste acordo foi instalado em Fortaleza o escritório dia 15 de março de 1943 era inaugurada a Hospedaria Getúlio Vargas, que "pode
central da Divisão de Migração, sob a direção do Dr. Charles Wagley, professor ser apontada, hoje, como um modelo de organização". A cerimónia de inaugura-
de Sociologia da Universidade de Columbia (NY) e um "homem culto e de extra- ção teve a presença do próprio Ministro do Trabalho, Sr. Marcondes Filho, além
ordinária capacidade de trabalho"; segundo O Povo, "o ilustre sociólogo ameri- do Interventor Menezes Pimentel, do General Gil Castelo Branco e de outras
cano vem tendo uma atuação eficiente no desempenho da importante missão que altas autoridades. O discurso oficial da cerimónia ficou a cargo do Delegado
lhe foi confiada pelo governo daquela nação amiga".39 Era ele, agora, quem su- Regional do Trabalho, Dr. Raul Domingues Uchôa, que "teceu um hino à fortale-
pervisionava todo o trabalho de recolhimento, seleção, assistência médica e em- za do cearense que vai, com energia e patriotismo, desbravar a Amazónia
barque dos retirantes que se dirigiam à Amazónia. A necessidade de controle ciclópica". A nova hospedaria foi programada corri uma "capacidade para man-
sobre as migrações durante a seca se combinava com a necessidade estratégica ter, com relativo conforto, um total de l .200 pessoas", em que cada família "par-
de estimular as migrações para a área dos seringais amazônicos. ticipa diariamente de três refeições e aguarda, confiante, o dia do embarque para
Contudo, apesar destes maciços investimentos, e mesmo em função deles, o extremo norte".44 A presença de altos dignitários do Estado Novo indica a
as estratégias de controle da população retirante refletiam os conflitos, que, por importância dada a esta nova instituição, encravada na encruzilhada de dois pla-
sua vez, não cessavam de acontecer. O Interventor Federal, em seu telegrama a nos estratégicos do governo brasileiro naquele momento: controlar a mobilidade
Vargas, reconhecia que em "vários lugares tem havido tentativas de assaltos, de- da população retirante durante as secas e participar efetivamente do esforço de
predação de casas comerciais, obrigando fechamento de estabelecimentos, guerra aliado com a produção da borracha amazônica. Apesar de pretender ser
negócios, repartições arrecadadoras, inclusive da União".40 uma instituição permanente, "tinha por finalidade oferecer pouso provisório, na
Em Senador Pompeu, por exemplo, o comércio permanecia fechado. Uma travessia daqui para o Norte, aos flagelados nordestinos que iam compor o exér-
comissão da Associação Comercial denuncia a presença ameaçadora de 2.000 cito da borracha - não por coincidência também o exército da reserva".45
flagelados na cidade e "apela mais uma vez" aos "sentimentos humanitários" do O encerramento de mais um período de seca traz para as mentes mais inquie-
governo para que este interfira junto ao "chefe da Nação" no sentido em que tas uma necessidade de avaliar o sofrimento passado e fazer um balanço de seus

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resultados. O Monsenhor José de Lima, Vigário de Icó, por exemplo, registra as equilíbrio que a crise decorrente da seca havia desfeito. Elas duvidavam, enfim,
suas impressões amarguradas sobre o ano de 1943. que quaisquer medidas de controle do mercado de trabalho e alimentos, a serem
aplicadas no momento da seca, poderiam sanar o problema da escassez e da fome;
A História do Nordeste deve estar horrendamente manchada com a nódoa pelo contrário, parece que elas temiam que fossem causar mais danos à popula-
indelével que foi bem o rastro da miséria provocada pela seca. E quando ção pobre e, principalmente, ao próprio mercado. Conscientemente ou não, in-
se diz Seca no Ceará já se supõe o estiolamento de tudo - dos campos, da cluíam-se no debate acerca do próprio liberalismo e sua fundamentação social e
alegria, da felicidade e até do espírito - tudo é gemido e lamento. A cida- moral, além de sua eficácia prática para resolver situações de conflito; de fato,
de se ressente deste estiolamento, pouco ou nada se fazendo sob o ponto aludiam ao lugar a ser ocupado pelo mercado numa sociedade sujeita a crises
de vista que se chama movimento religioso. A Páscoa deste ano foi apa-
periódicas, que, se não são rigorosamente previsíveis, são parte da própria rela-
gada.46
ção estabelecida entre a sociedade, tal como se estruturou no semi-árido, e a
natureza. 47 A hesitação que manifestavam demonstrava que a crítica ao liberalis-
III. O Padrão Estado Novo mo efetuada pelos próceres do Estado Novo se resumia, prioritariamente, ao campo
político; quanto ao mercado de alimentos, permanecia a crença em uma auto-
No relacionamento entre retirantes das secas e autoridades, que constitui um regulação espontânea que tende "naturalmente" a encontrar um equilíbrio entre
dos aspectos centrais de nossa análise, o período de Vargas e o Estado Novo trou- seus componentes e que a intervenção só deve ser efetivada no caso de uma
xeram algumas peculiaridades que é preciso explicitar mais conclusivamente. situação crítica. A distinção entre liberalismo político e económico servia para
As estruturas de sentimentos que se constituíram ao longo dos anos de 1877 que se pudesse "negar o primeiro, mas apenas corrigir-se os exageros do segun-
a 1932.apòntavam para uma combinação nas formas de percepção da pobreza, da do", de modo que o intervencionismo do Estado "não deveria chegar aos exces-
mendicância e, especialmente, dos mecanismos de assistência aos pobres em sos totalitários de negação do mercado e do valor económico de uma liberdade
momentos de crise. Há um só tempo, os modelos liberal e paternalista - entendi- privada do indivíduo". 48 A presença da multidão exigindo proteção, assim, vem
dos como formas ideais de concepção do social - eram colocados em prática por forçar estas autoridades a intervir, já que coloca em questão a "segurança" social
autoridades e reclamados pelos retirantes, dependendo da situação histórica que e ameaça a ordem instituída. Assim, a regulamentação do mercado proposta im-
se apresentava. plicitamente pelos retirantes, através de suas ações "espontâneas" e "tumultua-
Porém, a princípio, era o modelo liberal que se pensava estar mais de acordo rias", se contrapunha aos princípios do "livre mercado" defendidos pelo libera-
com os padrões de desenvolvimento que se pretendia para o Brasil. Em vista lismo económico em suas várias versões. Se, para este, o mercado segue leis que
disso, a hesitação em intervir diretamente no mercado de trabalho e de alimentos lhe são inerentes e "naturais", para a multidão o mercado deve ser dirigido e
poderia nos levar a uma dupla e complementar interpretação. regulamentado em tempos de crise para que não haja fome e sofrimento; enfim,
Indicava, por um lado, uma esperança de que o equilíbrio entre oferta e de- às leis do mercado se contrapõe a "lei da vida", evidenciando uma visão rigida-
manda retornasse aos padrões "normais" sem que fosse necessária essa interven- mente moralizada que se opõe a uma visão técnica e pretensamente objetiva. De
ção ou, antes, que essa intervenção poderia ser mais um fator a piorar a crise. Os fato, ao exigir distribuição de alimentos e abertura de frentes de trabalho, os
relatórios das autoridades responsáveis pela aplicação de possíveis medidas cor- retirantes forçavam um tipo de redistribuição da riqueza social que se baseia no
retivas - Ministros, Interventores e técnicos do IFOCS/DNOCS - eram claros em pressuposto de que a escassez é socialmente localizada, ou seja, que apenas uma
condenar as práticas anteriores de concentrar ou "abarracar" os retirantes, criar fração da população é afetada pela "seca", enquanto outra continua fruindo dos
frentes de trabalho que não fossem adequadas às capacidades técnicas dos órgãos benefícios da produção social. Obviamente, só é possível distribuir alimentos se
encarregados pelas obras ou, mais enfaticamente, a simples e "desmoralizante" há alimentos em quantidade suficiente para ser distribuído. Este argumento práti-
distribuição de alimentos ou esmolas. Apesar do ambiente político favorável à co, em sua efetividade, coloca em questão uma outra abordagem básica do pen-
intervenção, com as restrições aos mecanismos de participação política formal, samento liberal, que afirma que as crises são provocadas por um "declínio na
tais autoridades procuraram, a princípio, deixar o mercado "livre" para buscar o disponibilidade de alimentos", que, todavia, não leva em consideração o relacio-

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namento das pessoas com o consumo e a produção de alimentos, o que necessa- dos géneros de primeira necessidade e com a queda nos preços dos lotes abando-
riamente envolve sistemas de poder, propriedade e direito. 49 A escassez, portan- nados pelos retirantes, mesmo em momentos como o período "pós-30" ou o Esta-
to, não seria um fato natural, mesmo se relacionada a um fenómeno climático, do Novo. A agilidade administrativa demonstrada pelas autoridades em 1932
mas resultado de uma dada forma de relações sociais que perpetuam as desigual- contrasta com a hesitação comumente evidenciada em outros momentos. Talvez
dades e baseiam-se na produção de conflitos generalizados de interesses. isso se deva à presença do paraibano José Américo de Almeida à frente do Minis-
Este debate se reproduz nas interpretações formuladas sobre a seca. Ela pode tério da Viação e Obras Públicas num momento em que o Governo Provisório
ser vista, na perspectiva assumida pela grande maioria dos técnicos e autoridades necessitava demonstrar um amplo controle da situação política, especialmente
governamentais, como um fenómeno da natureza que provoca uma escassez pe- em função da guerra civil em São Paulo. Mas, por outro lado, a relativa indepen-
riódica, que deve ser combatido através do acúmulo de água em reservatórios dência política do Interventor Carneiro de Mendonça, ainda observada naquele
cada vez maiores, priorizando "a captação de água e a melhoria e modernização ano, pode ajudar a explicar esta rapidez de movimentos: ele ainda podia ser visto
tecnológicas com vistas ao aumento da produtividade". A questão social embuti- como um "tenente" que pretendia se colocar acima dos conflitos entre grupos
da na seca é tratada como uma incompatibilidade entre as possibilidades finan- políticos rivais, imagem que se desfez no ano seguinte. Em 1942, ao contrário, a
ceiras do Estado e as soluções técnicas já conhecidas para superar ou neutralizar estreita vinculação do Interventor Menezes Pimentel com grupos políticos e eco-
a ausência ou irregularidade no abastecimento de água. O resultado é um discur- nómicos tradicionais impedia a mesma capacidade de intervenção técnica; esta
so que se lamenta da falta de recursos e, no mesmo movimento, cobra incessante- ocorreu mais pela necessidade (externa) de braços para os seringais amazônicos,
mente do governo federal uma política especial de financiamento para o "Nor- no contexto do esforço de guerra dos aliados. De qualquer maneira, em termos
deste", isto é, para a implementação de obras públicas de "combate às secas" ou gerais, o trabalhismo demonstrou uma sensibilidade muito maior do que os go-
para o incremento da economia "regional" que ampliaria aquelas possibilidades vernos "liberais" para com a chamada "questão social".
financeiras. Como se vê, esta perspectiva se inclui perfeitamente na abordagem O controle estatal dos preços dos alimentos ou a sua distribuição aos retiran-
liberal citada, assumindo integralmente a teoria do "declínio na disponibilidade tes eram atitudes adotadas em casos extremos, quando a iminência de uma revol-
de alimentos". Mas a seca pode ser entendida também a partir da ideia de que a ta era sentida pelas autoridades, em que a "segurança nacional" estava em jogo.
"estrutura fundiária e económica do Nordeste condena o pequeno produtor a cul- O açambarcamento e a especulação de preços nas mercadorias fornecidas aos
tivar apenas essas culturas de ciclo curto, sensíveis às variações do tempo e às retirantes alistados em obras públicas, porém, eram amplamente conhecidos. As
chuvas irregulares", que "não se adaptam ao meio físico". As relações sociais, mudanças nas formas de pagamentos dos serviços demonstram esse conheci-
nesta outra perspectiva, tornam-se o ponto central na distribuição da riqueza so- mento e a dificuldade em superá-lo positivamente: em 1932, quando "já se veri-
cial e se relacionam diretamente com a escassez, que, de certa forma, beneficia ficava a inflação nos preços dos géneros ao dispor dos trabalhadores", ora "o
aqueles que controlam as linhas de força sobre as quais estas relações são produ- abastecimento de víveres pela Cruz Vermelha" era abandonado "por implicar
zidas, através da ampliação dos latifúndios nos momentos de seca e da redução maior dispêndio de recursos", ora "um sistema de fornecimento de víveres local
periódica do valor comercial das culturas produzidas pelos pequenos produtores sob a indicação e fiscalização do governo do Estado" era aplicado; mesmo assim,
num sistema de agricultura tradicional, onde se objetiva tão-somente obter uma como os "atrasos no pagamento começaram a se intensificar", o Interventor, "para
precária "segurança alimentar".- 50 não perturbar o andamento dos trabalhos e para que os comerciantes particulares
As ações da multidão estão, portanto, conectadas, mas nem sempre articu- não cortassem os suprimentos", resolve distribuir os géneros, "evitando dessa
ladas, com as disputas teóricas encetadas no âmbito - para ela inacessível - do forma a paralisação dos trabalhos". 51 A irregularidade e frouxidão nas regras de
mundo letrado onde se desenvolvem as políticas do Estado e as teorias econó- abastecimento de víveres aos retirantes concentrados ou incorporados às obras
micas. públicas, além das dificuldades na fiscalização, favorecia a corrupção e o apro-
Por outro lado, a hesitação das autoridades significava também o receio de veitamento por parte dos pequenos e grandes comerciantes, timidamente denun-
enfrentar e entrar em confronto direto com comerciantes de alimentos e outros ciados na imprensa - amarrada por compromissos políticos e económicos e, mais
negociantes ou proprietários de terras que enriqueciam com o aumento de preços do que isso, controlada de perto pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propa-

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ganda) e pelo DEIP (Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda). Por mente na esperança de retorno a um "ponto de equilíbrio" do mercado com a
parte dos retirantes, o momento das secas apenas agravava a desconfiança em retirada das medidas intervencionistas.
relação aos comerciantes, transformando os locais de "fornecimento" em locais
de permanente conflito. De qualquer maneira, a população retirante aos cuidados
do governo formava um mercado tentador de dezenas, às vezes centenas, de mi- Referências bibliográficas
lhares de "consumidores" - na verdade, só um consumidor: o Estado - para os 1 SOUZA, Simone. "As Interventorias no Ceará (1930-1935)." In: SOUZA, Simone (Coord.)
negociantes de géneros alimentícios. Além de compensar uma discutível queda História do Ceará. Op. dl. p. 321.
do consumo em função da crise, o "fornecimento" abre a oportunidade de mani- 2 GIRÃO, Raimundo. Pequena História do Ceará. Op. Cit. p. 207. Este historiador tradicional

pular verbas públicas de emergência, "a fundo perdido", além de manipular os completa com argúcia sua visão acerca das ambiguidades do movimento de 30: "a ala militar
queria impor a execução de seu programa de reforma básica, econômico-administrativa, que
próprios retirantes em seu analfabetismo e sua inabilidade na compreensão dos alimentara os anseios das intentonas de 1922 e 1924, ao passo que a ala política não se mostra-
mecanismos escritos de comunicação. Outra fonte de recursos ilícitos era na cons- va inclinada a sair das simples renovações de métodos da prática do regime, sem descer a
trução dos açudes e estradas, onde amplas possibilidades de super faturamento maiores excessos".
ou irregularidades eram abertas pela falta de infra-estrutura de fiscalização, mui- 3 SOUZA, Simone. "As Interventorias no Ceará (1930-1935)." Op. Cit. p. 323. A expressão
"Norte" ainda não havia sido comumente substituída por "Nordeste" em 1932. Esta última,
to embora tais "deslizes" fossem menores do que os que ocorreriam em 1958.
uma simbólica muito mais expressiva pelo forte apelo à territorialidade, está presa ao "Movi-
Além dos lucros monetários, uma conexão entre os políticos e os comerciantes mento Regionalista Tradicionalista" de Recife, liderado por Gilberto Freyre, e os posteriores
garantia lucros políticos significativos para as lideranças locais, que negociavam desdobramentos da luta pelas definições regionais no Brasil. Cf. FREYRE, Gilberto. Manifes-
vagas nos alistamentos e outros benefícios possíveis, como alistamento de várias to Regionalista. 4 ed. Recife: Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, 1967.; e espe-
cialmente ALBUQUERQUE JR, Durval M. A Invenção do Nordeste e outras artes. São Pau-
pessoas da mesma família, ou de crianças, ou em vários "barracões" ao mesmo
lo: Cortez, 1999.
tempo. 52 4 MONTENEGRO, João Alfredo de S. "O Tenentismo e a Revolução de 30." In: SOUZA,
Assim, a convicção liberal na capacidade do mercado de retomar o equilí- Simone (Coord.) História do Ceará. Op. Cit. p. 318. Cf. também: Id. Fernandes Távora e o
brio em momentos de crise, apesar das críticas oficiais do regime ao liberalismo Tenentismo no Ceará (1921-l924). Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto do Ceará, 1982.;
e GIRÃO, Raimundo. Pequena História do Ceará. Op. Cit. pp. 207-208.
político, permanecia influente entre as autoridades encarregadas de implementar
*A Nação, 29 de setembro de 1931; SOUZA, Simone. "As Interventorias no Ceará (1930-
as medidas de assistência aos retirantes. Ao toma-las, os dirigentes estatais -
1935)." Op. Cit. p. 328.
estaduais ou federais - sabiam estar indo contra os princípios do mercado; fa-
6 GIRÃO, Raimundo. Pequena História do Ceará. Op. Cit. p. 208.
ziam-no, porém, na defesa da "segurança pública". Isso poderia explicar a recep- 7 ALMEIDA, Ministro José Américo de. O Ministério da Viação no Governo Provisório. Op.
ção dos primeiros retirantes à Fortaleza, em 1932, pelas principais autoridades Cit. p. 222-223.
locais, especialmente policiais, além da vigilância permanente sobre os campos * O Povo, 24 de agosto de 1932.
de concentração e de trabalho e sobre os passos dos retirantes pelas cidades. 9 ESTADO DO CEARÁ. Relatório apresentado ao Exmo. Presidente da República pelo

Durante este período (1930 a 1945), o padrão de relacionamento entre reti- Interventor Federal Cap. Roberto Carneiro de Mendonça. Op. Cit. p. 64.
í rantes e autoridades, apesar das críticas ao liberalismo político efetuadas pelo 10 Correio da Semana, 05 de novembro de 1932. Esse artigo foi o primeiro de uma série de
quatro reportagens sobre as condições do Campo de Concentração do Ipu.
regime e da rapidez e profundidade das intervenções realizadas em 1932 e 1942,
1 ' ESTADO DO CEARÁ. Relatório apresentado ao Exmo. Presidente da República pelo
se baseou ainda nos pressupostos do liberalismo económico, da ideia de "merca- Interventor Federal Cap. Roberto Carneiro de Mendonça. Op. Cit. p. 65. A "efficiencia dessa
do livre" e da crença nas "leis" do mercado, modelando uma forma de solucionar commissão" é demonstrada por um quadro que mostra a "quantidade de multas impostas ao
os conflitos decorrentes das invasões de retirantes que combina elementos do comercio do Estado".
paternalismo - a presença direta das autoridades nos locais "críticos", o controle 12 GOMES, Angela M. de Castro. A Invenção do Trabalhismo. Op. Cit. pp. 220-222.

13 Cf. FRANCO, M" Sylvia de C. Homens Livres na Ordem Escravocrata. 3 ed. São Paulo:
do mercado de alimentos (em 1932) e a imediata distribuição de alimentos e
Kairós, 1983. pp. 60-106; QUEIROZ, M' Isaura P. O Mandonismo Local na Vida Política
vagas em obras públicas, que se assemelham à prática da "proteção" aos pobres Brasileira e outros ensaios. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976. Sobre o liberalismo, Cf.
em tempos de dificuldades - com a abordagem clássica do liberalismo, especial- BRESCIANI, M' Stella M. Liberalismo: Ideologia e Controle Social. Tese de Doutorado em

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FREDERICO DE CASTRO NEVES
T A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

História apresentada à FFLCH-USP. São Paulo: 1976.; e COSTA, Emflia V. da. Da Monar- 32 O Povo, 20 de junho de 1942. No dia seguinte à esta reportagem, iriam ser embarcados 600
quia à República: momentos decisivos. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas Ltda., flagelados para o "Extremo Norte".
1979. pp. 27-29. 33 O Povo, 31 de outubro de 1942.
14 DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas). Relatório das Trabalhos Rea- 34O Povo, 01 de outubro de 1942. Somente em 29 de abril de 1943 a comissão declara que a
lizados no ano de 1942. São Paulo: DNOCS, 1942. p. 35. "missão está finda", ressaltando que a continuidade do trabalho de assistência só foi possível
O Povo, 27 de março de 1942.
15 com a ajuda do Governo do Estado, da LBA, do Comité Britânico de Socorro às vítimas da
^An/uivo Nacional, Telegramas Recebidos pela Secretaria da Presidência da República, 1942. guerra, do Arcebispo de Fortaleza e do SEMTA. Gazeta de Notícias, 29 de abril de 1943.
35O Povo, 31 de outubro de 1942. De fato, a construção da Hospedaria Getúlio Vargas se
17 O Povo, 28 e 30 de março de 1942.
encerrará em março de 1943 e se tornará um dos pontos de maior conflito durante as secas da
111 GUERRA, Paulo de Brito. Flashes das Secas. Op. Cit. pp. 22-23. década de 50.
|IJDNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas). Relatório das Trabalhos Rea- 3 6 LENHARO, Alcir. A Sacralizacão da Política. Op. Cií. p. 54.
lizados no ano de 1942. Op. Cit. p. 34.
37VIEIRA, M1 do Socorro G. O "Soldado da Borracha". Op. Cit. pp. 27-46. Chabloz veio ao
2(10 Recenseamento Geral de 1940 não discrimina os dados sobre a população urbana e rural. Ceará para trabalhar neste projeto, mas acabou se ligando profissional e afetivamente ao Esta-
21"Você morava em casa e ninguém ia agredir sua casa não. O negócio deles era o comércio, do; tornou-se cidadão honorário de Fortaleza e do Ceará e seus restos mortais se encontram no
o açougue." Entrevista com o Sr. Raimundo Gouvea, de Iguatu. D. Laurenice, da mesma cida- cemitério Parque da Paz, na capital. Cf. CHABLOZ, Jean Pierre. Revelação do Ceará. Forta-
de, porém, diz que "o povo tinha medo do movimento de muita gente, da multidão", mas leza: SECULT-CE, 1993.
ressaltando também que "eles nunca mexeram nas casas, só no comércio". E conclui: "graças 3110 Povo, 05 de janeiro de 1943. Estava prevista a criação de mais quatro núcleos de inspeção
a Deus nunca assisti uma cena dessas não". no interior do Estado, com "a finalidade de proceder a assistência médica aos emigrantes das
"Arquivo Nacional. Telegramas Recebidos pela Secretaria da Presidência da República, 1943. suas zonas".
-' DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas). Relatório das Trabalhos Rea- -w O Povo, 13 de janeiro de 1943.
lizados no ano de 1942. Op. Cit. p. 27. O Superintendente observa ainda que "a afluência 411 ArquivQ_Nacional,
Telegramas Recebidos pela Secretaria da Presidência da República, 1943.
tumultuaria de trabalhadores às obras cresce de valor como índice do desequilíbrio da vida na Nunca é demais observar que as fontes que utilizamos, normalmente provenientes das classes
região quando se considera o fato iniludível de lutarmos, em regra, com dificuldade de braços dominantes, "exprimem mais um projeto ou um programa do que uma operação" e é nesta
para o andamento normal dos trabalhos da Inspetoria, o que tem condicionado a mecanização inflexão que devemos examiná-las. PERROT, Michelle. Os Excluídos da História. Operários,
progressiva de nossos serviços" (p. 34). Isto é: em tempos "normais", há falta de mão-de-obra prisioneiros, mulheres. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. pp. 54-55.
para as obras do DNOCS, o que é resolvido com a mecanização; no entanto, em tempos de
seca, quando há excesso de mão-de-obra, a mecanização impede a absorção de novos traba- 41O Povo, 05 de janeiro de 1943. Segundo o Recenseamento Geral, Senador Pompeu tinha
lhadores não qualificados. O lato de que o Departamento foi criado para buscar alternativas e 20.181 habitantes em 1940 e 25.209 em 1950. A população da cidade, porém, chegaria a
soluções para os tempos de secas não preocupa o Superintendente. 15.681 somente em 1950. A observar também que as demandas por ajuda passam a ser enca-
minhadas diretamente ao governo federal e, assim, o governo estadual torna-se um mero inter-
24 O Povo, 28 de março de 1942. mediário entre as necessidades locais e os órgãos federais.
25 O Povo, 05 de maio de 1942. Nesta mesma edição, vários comerciantes de Iguatu enviam 42 O Povo, 09 de janeiro de 1943.
telegrama ao jornal, pedindo providências do governo em face da "horrorosa situação" da
cidade que "se encontra superlotada de flagelados sem pão". O comércio, obrigado a fechar as 43O Povo, 05 de fevereiro de 1943; Gazeta de Notícias, 29 de abril de 1943. O prefeito de Boa
portas, encontra-se numa "situação aflitíssima". Viagem, no entanto, reclama da falta de sementes, pois as que chegaram não foram suficien-
tes: "temos boas chuvas e falta absoluta de sementes". Arquivo Nacional, Telegramas Recebi-
26 SOBRINHO, Tomás Pompeu. História das Secas (século XX). Op. Cit. p. 56. dos pela Secretaria da Presidência da República, 1943.
27 Entrevisia do Sr. Lauristo André Pinheiro, de Icó. O Sr. Lauristo nasceu e viveu sua juven- 44 O Povo, 16 de março de 1943.
tude em Orós, que, na época, era um distrito pertencente ao município de Icó. "Comissão", ou
"fornecimento", é a parte a ser distribuída a cada retirante, uma "cesta básica" que, normal- 45 ARAÚJO, M' Neyára de O. A Miséria e os Dias. Op. Cií. p. 146.
mente, compreendia farinha e rapadura, às vezes feijão e carne de charque. 46 Livro de Tombo da Paróquia de Iguatu. pp. 46-47.
2S O Povo. i l de maio de 1942. 4 7 SalimRachid, em interessante artigo, levanta essa questão, comparando os estudos de Adam
2'' SOBRINHO, Tomás Pompeu. História das Secas (século XX). Op. Cit. pp. 49-50. Smith e alguns de seus seguidores com as políticas levadas à cabo na Inglaterra e na índia. Ele
conclui que as "leis de mercado", assim, se contrapõem à máxima romana - aceita por alguns
3 0 LENHARO. Alcir. A Sacralizacão da Política. 2 ed. São Paulo: Papirus, 1986. pp. 56-57. políticos ingleses do século X V I I I e, de certa forma, implícita em todas as relações entre
31VIEIRA, M1 do Socorro G. O "Soldado da Borracha". Discurso da Emigração numa Eco- sociedades desiguais e a pobreza - que assegura a primazia da subsistência popular sobre as
nomia de Guerra. Monografia de Bacharelado em História apresentada à UFC Fortaleza' leis económicas: Salus populi Suprema Lex. RACHID, Salim. 'The Policy of Laissez-faire
1993. pp. 7-8. During Scarcity." The Economic Journal, 90 (September 1980). pp. 493 e 498-499.

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FREDERICO DE CASTRO NEVES
CAPÍTULO V
411 GOMES, Angela de Castro. A Invenção do Trabalhismo. Op. Cit. p. 223. "O grande proble-
ma da propriedade e do capitalismo surgia quando entravam em conflito com os interesses
nacionais, o que podia ser evitado pela importante inovação que consistia em 'usar' o capital
para o desenvolvimento da nação", (p. 222)
4yTHOMPSON, E. P. "A economia moral revisitada." Op. Cit. p. 229. A expressão "declínio
na disponibilidade de alimentos" é representada pela sigla FAD ("rbod availability decline").
50CERQUEIRA, Paulo C. L. "A Seca no Contexto Social do Nordeste." In: CPT/CEPAO
IBASE. O Genocídio do Nordeste (1979-1983). São Paulo: Mandacaru, 1989. p. 36.
51 FROTA, Luciara S. de Aragão e. Documentação Oral e a Temática da Seca. Op. Cit. p. 209.
52 Id. Ibidem. p. 205. Fabiano (Vidas Secas) e Chico Bento (O Quinze) - personagens de ficção
inseridos em contextos culturais reais que a observação e a intuição dos artistas permitem que
eles, em suas narrativas, os descrevam com fidelidade e, mais que isso, sensibilidade - mani-
festam enfaticamente uma contínua e rancorosa suspeição sobre os comerciantes, mesmo que
as relações entre agricultores e comerciantes se caracterizassem pela "informalidade mais do
que o cálculo racionalizante, lealdade pessoal mais do que impessoalidade", conjunto de rela- I. A Multidão se Movimenta
ções complexas em que certamente se inclui a desconfiança. DIAS, Gentil M. "Os Novos
Padrões de Controle e Dominação no Campo: Mudança e Continuidade no Nordeste." Dados. Depois das experiências acumuladas nestes anos de confronto, tanto os ho-
Rio de Janeiro: IUPERJ, n° 15, 1977. p. 130. Por outro lado, no momento dos conflitos, "o mens do campo quanto as autoridades já possuíam um arsenal de possíveis ações
agricultor tradicional não encontra em sua frente atores individualmente identificáveis, mas
sobretudo toda a esfera mercantil, contra a qual sua ação é impotente". SCHWARZ, Alf. "Ló- a serem tomadas em situações de escassez. Assim, a década de 1950 significou,
gica do desenvolvimento do Estado e lógica camponesa." Tempo Social. São Paulo: vol. 2, n° para os retirantes das secas, o estabelecimento e a consolidação de uma tradição
l , 1990. p, 94. Já os conflitos no "fornecimento" são relatados nas entrevistas do Sr. Aloísio nas formas de pressão e negociação com as autoridades urbanas. A multidão,
Filgueiras, do Sr. Francisco Gomes, do Sr. Pedro Alcântara e de sua esposa. Os mecanismos de
alistamento eram bastante frouxos em 1932. Um "feitor" reunia um grupo de 25 operários e o
como forma de organização possível no contexto social de onde se originam os
apresentava ao "chefe do serviço". Este, confiando no feitor—por conhecimento prévio ou por vaqueiros e pequenos produtores rurais, afirma-se como uma alternativa política
instinto -, incorporava a "turma" aos trabalhos e os conseguia um vale para "abastecer" ou diante da rápida degradação das condições de vida experimentada nos momentos
"fornecer" no barracão indicado. O Sr. Francisco Gomes, em sua entrevista, descreve com
de seca, em que a escassez toma proporções radicais. Uma alternativa que mais
detalhes este processo, com todas as suas nuanças de apadrinhamento, parentesco, confiança
mútua e sobretudo muita capacidade de driblar os obstáculos. podemos compreender se menos nos prendemos aos limites institucionais impos-
tos à noção de cidadania, com a qual se pretendia explicar as potencialidades de
ação no interior do campo estruturado pela política representativa. Mas se uma
característica dos movimentos sociais populares é 'exatamente a construção de
um modelo organizacional surpreendente, 1 situado fora dos parâmetros estabele-
cidos pelas instituições dominantes, o exercício da cidadania pode ser pensado e
efetivado em cada contexto específico, a partir das possibilidades contidas em
cada situação histórica concreta, em que formas culturais antigas podem servir
para encobrir pretensões e objetivos presentes.
Assim, em março de 1951, quando as chuvas já escasseavam nos sertões do
semi-árido cearense, os homens do campo, mais uma vez, não esperaram pela
carência total de meios de subsistência para abandonarem seus lares e empreen-
deram, mais uma vez, sua caminhada em direção à proteção governamental. Ao
mesmo tempo, estes homens aprenderam que a pressão exercida no ponto cen-
tral da organização social - a propriedade - pode ser eficaz, no sentido imediato
de resolver os problemas mais prementes. O resultado é uma resoluta formação

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

de grupos de retirantes que se encaminham às cidades e aos canteiros de obras do mentos, molambudos e sujos", "verdadeiros espectros humanos". Ao mesmo tem-
governo, exigindo trabalho e alimentos através dos mecanismos conhecidos da po, o cotidiano urbano se modifica.
invasão, da ameaça e do saque.
Antes mesmo do dia de São José (19), quando tradicionalmente a seca é Diariamente, o caminho do cemitério é transitado por uma legião de moci-
"declarada" oficialmente, o Prefeito de Crato denuncia a "trama urdida por ele- nhas que conduzem, entre flores, um caixãozinho azul e sem tampa. É o
mentos interessados na sublevação da ordem pública, insuflando a que os neces- futuro do Brasil que ali caminha, em demanda de sua última hospedaria, para
sitados invadam as propriedades particulares", e já inicia uma série de obras na dizer aos que assistem àquele drama diário que a seca também mata crianças,
também leva aos lares a sua mensagem de desolação. E a fome dos pais, a
cidade para ocupar as "pessoas flageladas pela falta de chuvas".2
penúria e a miséria, que distribui a morte. Há fome, há miséria, há desgraça
Poucos dias depois, a Prefeitura da cidade de Campos Sales é invadida por
em tudo, e a seca estimula o roubo, o saque, o assalto à mão armada.
uma "leva de flagelados composta de 765 pessoas" que exigia uma distribuição
imediata de alimentos. O Prefeito local informa sobre "várias tentativas de levan- A cidade, "repleta de flagelados", "atravessa os dias mais difíceis de todos
te ali verificadas, praticadas por centenas de homens e mulheres famintos" e "dis- os tempos". Apenas 600 homens, "escolhidos entre os que possuem família",
tribui l .700 litros de farinha, grande quantidade de rapaduras e algum dinheiro". foram empregados na construção de uma ponte sobre o rio Jaguaribe e "os co-
No entanto, "os referidos flagelados, ao se retirarem, ameaçaram voltar segunda- merciantes estão receosos de um iminente assalto dos desempregados". Os que
feira, dia 26, declarando que, dessa vez, atacariam o comércio", se não conse- conseguem transporte - o que não devia ser fácil, já que "em frente à Prefeitura
guissem uma solução mais permanente para o problema. As casas comerciais encontram-se enormes levas deflageladossolicitando passagens" - partem ime-
fecharam e a situação na cidade é de "extrema gravidade", segundo o Prefeito, diatamente para a Paraíba e para São Paulo, deixando desabitadas as áreas rurais
que afirma ainda que "estamos na iminência de vermos atacado o comércio, em de vários municípios. Ao mesmo-tempo, os preços dos géneros de primeira ne-
consequência da grande concentração de retirantes". Ele, pretendendo demons- cessidade "sobem astronomicamente, escandalosamente, de vez que os depósi-
trar um controle sobre a situação e um efetivo aprendizado nas negociações dire- tos, por pequenos que sejam, se encontram retidos pelos açambarcadores, pelos
tas com a multidão, informa ao jornal que a invasão da Prefeitura só "não se aproveitadores das circunstâncias". 5
consumou em virtude da intervenção serena que adotei".3 Nas estradas em direção ao sul do país, inúmeros caminhões adaptados para
Em Coreaú, a situação é "verdadeiramente angustiante" e "as perspectivas transporte coletivo - o conhecido "pau-de-arara" - circulam com milhares de
são cada vez mais sombrias", pois "muitos habitantes já começaram ase deslocar famílias em busca de trabalho em São Paulo, onde "ficam os pobres trabalhado-
para a Serra da Ibiapaba e os que ainda permanecem, se não houver socorro a res nordestinos completamente atoa, sem rumo certo". Sob a alegação de comba-
tempo, serão forçados a invadir a cidade, ameaçando o comércio e aos que dis- ter o aliciamento de trabalhadores por pessoas inescrupulosas e de zelar pela
põem de grande quantidade de géneros armazenados". Além disso, como se não segurança das estradas, o governo federal resolve proibir a continuação desta
bastasse a ameaça de saque, "está grassando um surto epidêmico da chamada precária "migração motorizada" nas estradas de rodagem estaduais, aplicando o
gripe 'coreana', causando inúmeras vítimas, sobre tudo entre as crianças, em disposto nos artigos 64,7, 65 e 68 do Código Nacional de Trânsito. O "impressio-
virtude da alimentação insuficiente e grosseira".4 nante cortejo" dos veículos que se dirigem a São Paulo evidencia, por outro lado,
Nas proximidades da cidade de Iguatu, ainda no mês de março, "levas e a "falta de braços para a lavoura", que sofre com a falta de chuvas e, sem traba-
mais levas de retirantes rogam transporte aos veículos que se dirigem para a capi- lhadores, sofrerá com a ausência de mão-de-obra.6
tal, e, quando não conseguem, lançam mão da força, da ameaça, transformando- Outras invasões acontecem em Capistrano de Abreu, em Canindé e em
se, assim, em salteadores improvisados". Para o correspondente do jornal, essa Acaraú, onde "o comércio está na iminência de sofrer um assalto dos flagelados"
transformação acontece "porque grande e feia, triste e medonha é a cara da ne- e o próprio Prefeito reconhece que "é evidente que essa gente terá que invadir e
cessidade, que não mede distâncias nem fronteiras". Os trens constituem os meios assaltar casas, fazendas e povoados, para não sucumbir". 7 A cidade de Pentecoste,
de transporte mais procurados pelos retirantes e "trazem a fotografia esquisita" segundo o Deputado Raimundo Gomes, transformou-se em uma verdadeira "con-
da seca, cheios de retirantes "que definham e vão morrendo à míngua, sem ali- centração operária".8

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

Em Crateús, uma multidão estimada em mil retirantes ameaça assaltar o co- quatro rezes e tomando outros géneros. "O espetáculo era doloroso": "os bois
mércio. A "situação é gravíssima", embora o jornal noticie que eles apenas fazem abatidos viam-se ao longe rodeados por aquela multidão faminta, que se fartava
"apelos dramáticos" e "até o presente momento se mantém pacificamente". No sobre os despojos, como urubus na carniça". Após o ataque, o comércio, "teme-
entanto, comerciantes e funcionários rapidamente organizam uma distribuição roso de um assalto", distribuiu géneros alimentícios no valor de 4 mil cruzeiros,
de alimentos "procurando conter o ímpeto da população faminta" e o delegado "o que veio remediar, momentaneamente, a triste situação". Uma comissão de
local, alegando que eles não estão pedindo mas "exigindo alimentação", pede habitantes, liderada pelo próprio Deputado Perilo Teixeira (UDN), tentou dialo-
"que seja reforçado o policiamento desta cidade, a fim de reprimir qualquer pos- gar com a multidão, mas foi a palavra do padre Abelardo Ferreira Lima que "se-
sível ataque ao comércio local". Dias depois, as ameaças "ainda perduram de renou a turba e evitou os excessos contra a propriedade"."
assaltos aos estabelecimentos comerciais, caso não lhes seja mitigada a fome". No segundo semestre, novamente Itapipoca é palco das ações da multidão.
Os retirantes "realizaram ali uma das primeiras manifestações de rebeldia contra Em agosto, 500 "cassacos" - trabalhadores das obras do governo - invadem o
a fome", segundo o jornal, ao invadirem o trem que se dirigia à Fortaleza. Em acampamento de construção de uma estrada de rodagem exigindo trabalho. A
Nova Russas, os vagões foram tomados por cerca de 600 operários, que "de qual- polícia intervém e evita o ataque à casa do engenheiro responsável, enquanto O
quer maneira viajaram até Crateús".9 Democrata denuncia o "terror policial contra os trabalhadores". Em outubro, 700'
Mas é em Itapipoca que as cenas mais impactantes acontecem em 1951. As homens tentam invadir o comércio da cidade em represália às promessas não
denúncias apresentadas pelo Deputado Perilo Teixeira na Assembleia Legislativa cumpridas de alistamento nas obras de construção do açude Assunção, feitas pelo
parece que prenunciavam os acontecimentos que estavam por vir. Assim como mesmo Deputado Perilo Teixeira, que nem apareceu no local. Em novembro,
outros oposicionistas, ele criticava as excessivas interferências políticas na dis- cerca de mil operários da construção da rodovia Itapipoca-Acaraú invadiram mais
tribuição de verbas para obras de combate às secas no Estado e cobrava uma ação uma vez a cidade, ameaçando o comércio e exigindo alimentos, em protesto con-
governamental mais intensa para que a situação dos retirantes "seja amenizada" tra o esvaziamento do fornecimento da obra. Após muitas ameaças, resolvem
antes que fatos lamentáveis ocorressem. Propunha ainda o ressurgimento do "Exér- tomar um trem de mantimentos e seguir para Fortaleza. 12
cito da Borracha" como alternativa diante das pressões dos retirantes sobre os Com a generalização das obras nos pontos mais diversos do território, res-
equipamentos urbanos. 10 Poucos dias depois, cerca de 800 flagelados saquearam pondendo às ações da multidão, os fornecimentos tornaram-se importantes pon-
o matadouro e "fizeram aqui aquela estranha justiça com as próprias mãos". A tos de conflito permanente entre retirantes e representantes dos órgãos estatais.
"marcha da fome", que se inicia nos povoados e nos "sítios" e termina nas ruas Além de Itapipoca, os fornecimentos de Pentecoste e Itapagé foram atacados por
centrais da cidade, exige o auxílio costumeiro - alistamento e distribuição de grupos de centenas de "cassacos" enfurecidos diante dos preços, da qualidade ou
alimentos - mas nada consegue. Assim, como nada foi feito, "deliberaram os da inexistência de alimentos disponíveis.1-1
flagelados simplesmente não morrer de fome". Os fornecimentos, em verdade, eram armazéns privados que funcionavam
com autorização do engenheiro responsável da obra. Fornecia alimentos e ou-
O deplorável acontecimento verificou-se inesperadamente, embora a popu- tros produtos aos retirantes em troca das anotações nas "cadernetas", que ates-
lação daquela cidade viesse demonstrando receios e apreensões em virtude tavam a frequência e o salário a que o trabalhador teria direito. Além do abuso
mesmo da grave situação daquele Município, grandemente afetado pela nos preços inflacionados, os fornecedores fraudavam as cadernetas utilizando-
seca. se de muitos meios, aproveitando-se, em geral, do quase completo analfabetis-
mo reinante entre os homens do campo. A obrigatoriedade do abastecimento
Os comerciantes e a população da cidade devem ter "estremecido de pavor no "barracão"14 da obra prendia o operário ao fornecedor através de um siste-
quando os flagelados, rosnando nas portas de seus estabelecimentos, implanta- ma de endividamento crescente. Por outro lado, "os géneros fornecidos pelos
ram, naquelas 24 horas em que dominaram Itapipoca, a ditadura e o terror da barracões por preços exorbitantes estiveram ou sob controle de políticos, ou
fome". "O 22 de maio de 1951", segundo o comentarista Paulo Bonavides, "foi eram propriedades destes",15 evidenciando mais uma vez a infiltração das lide-
um dia de luto". Os retirantes atacaram principalmente o matadouro, abatendo ranças políticas nos mecanismos de socorro público em momentos de seca,

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

buscando, além dos ganhos pecuniários, manter o controle direto sobre suas gravidade da situação", pois o número de flagelados "tem aumentado considera-
"bases" eleitorais. velmente nestes últimos dias".
Com o fim do ano e as esperanças de chuvas, os serviços são desmobilizados Em Saboeiro, a casa do vigário local esteve tomada por "numerosos flagelados
e uma nova fonte de conflitos se instala. Alguns homens, acreditando no "in- clamando por comida", que "exigiam o fornecimento grátis e imediato de géne-
verno" que se aproxima, abandonam as obras públicas para retornarem às suas ros alimentícios".
terras. Outros decidem permanecer no canteiro, à espera de sementes e de uma Em Santanópolis, novamente, "mais de mil flagelados em situação deses-
garantia de boas chuvas para a próxima safra. O repórter de O Povo, Fenelon peradora" cercam a cidade, que era habitada por 5.858 pessoas em 1950, e
Almeida, identifica "três categorias de operários nas obras de emergência do procuram alistar-se nas obras do açude Latão. Todos sentem-se "ameaçados
Governo: os que têm roçados para plantarem, seus ou de um patrão; os malan- pelos flagelados, que não têm meios de subsistência pelo fechamento das obras
dros, que temem, por comodismo, o trabalho árduo do eito e que, por isso mes- pelo governo".18
mo, preferem os serviços públicos, onde, pela sua condição de flagelados mal Mais de l .500 trabalhadores dispensados dos serviços de construção da estra-
alimentados, não lhes é exigida grande produtividade; e, finalmente, uma ter- da de ferro Central do Ceará "perambulam pelas ruas" de Crateús e Independência,
ceira categoria de operários composta dos que são realmente úteis aos serviços e "chegam a ameaçar o comércio do interior, na tentativa suprema de obter supri-
e que, por isso, têm ali a sua colocação assegurada permanentemente". 16 Ele mentos para a subsistência de suas famílias". Os caminhões, vindos do interior
percebe, mais uma vez, que os flagelados são incorporados aos serviços como desses municípios, "chegam a todo instante, despejando, como mercadoria barata,
operários desqualificados, para os quais o trabalho nas obras públicas repre- os operários da Central do Ceará, agora transformados em simples mendigos".
senta uma "ocupação", uma forma de mante-los nas proximidades de suas ter- Em Cascavel, o comércio "cerrou as portas" ante a invasão dos flagelados,
ras e longe das ruas e dos mercados. que "perambulam pelas ruas em busca de alimentos".
Os retirantes dispensados, todavia, concentram-se nas cidades e promovem Em Juazeiro, "os flagelados perambulam pelas estradas" e cerca de 200 ho-
novas invasões a mercados, depósitos e feiras. mens rodearam o caminhão do vereador Benedito Pinheiro, que transportava gé-
Já em janeiro, Camocim, no litoral norte do Estado, é invadida por 300 reti- neros alimentícios, e ameaçaram saqueá-lo. Antes disso, o próprio vereador re-
rantes, que "ameaçam atacar o comércio" e que "não se conformam mais com as solve distribuir os alimentos.' 9
esmolas e assistência que lhes são prestadas". São "pais de família", "lavradores Na Assembleia Legislativa, por outro lado, o Deputado Péricles Araújo fala
que atingem agora o auge do desespero vendo as lagartas e a falta de chuvas da "situação de completa intranquilidade e insegurança" em Iguatu e recebe tele-
liquidando completamente as plantações". Em Independência, a multidão que gramas da Associação Comercial local pedindo providências contra as inúmeras
ocupa o centro da cidade é formada de trabalhadores dispensados de várias obras. violências praticadas na cidade.20 A situação da cidade de Brejo Santo é comen-
Em Cedro, os "flagelados famintos" atacam o mercado e ameaçam voltar no dia tada por duas vezes, referindo-se os Deputados às "ameaças à ordem pública"
seguinte, já que os fornecimentos das obras públicas encontram-se vazios. Em por conta de certos "acontecimentos" gerados pela seca.21
Santanópolis, a situação é "calamitosa", pois as obras foram suspensas e os ope- O período de chuvas, mais uma vez, vem com atraso e com poucas perspec-
rários dirigem-se à cidade em busca de alimentos. 17 tivas para as plantações, pelo terceiro ano consecutivo. A pressão dos retirantes
No entanto, as obras não conseguem absorver a totalidade dos retirantes não se faz demorar.
que deixam suas terras à procura de ajuda e as invasões às cidades continuam a Em janeiro de 1953, Santanópolis mais uma vez recebe ameaças e seus habi-
ocorrer. tantes continuam a assistir a uma "parada da fome, de consequências imprevisíveis,
Em Camocim, novamente, cerca de 500 retirantes "arrombaram o depósito pois a verdade é que talvez ninguém tenha resignação para morrer de inanição de
da Prefeitura, julgando haver algum género armazenado", e "percorrem as ruas braços cruzados, não obstante a índole conformista da nossa gente".22
desta cidade, ameaçando atacar os armazéns, bancos e repartições públicas, caso Em fevereiro foi a vez de Itapipoca, onde 300 homens ocupam as áreas cen-
não venham a receber alimentos e trabalho, com urgência". O Deputado Murilo trais da cidade no início do mês e, vinte dias depois, 900 retirantes "clamam por
Aguiar informa ao jornal que "o comércio e a população estão alarmados ante a serviços remunerados".

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Em Itapagé, o Delegado e seus auxiliares conseguem, "com habilidade", malizando-se a situação".26 Disputas políticas entre PSD e UDN agravaram o
manter a situação sob relativo controle. cenário de incertezas, com o estabelecimento de um clima de acusações mútuas e
Independência, cidade de 5.045 habitantes, foi invadida por mil flagelados produção de boatos, o que resultou em novo "saque efetuado durante a distribui-
no dia 15 e por 600 três dias depois. ção de géneros, procedendo os próprios beneficiários à apressada partilha do
"Cenas indescritíveis" foram presenciadas pelos enviados da Campanha de obtido".27
Alimentos do Nordeste (CAN), Coronel Severino Sombra e Dr. Colombo de Souza, Até o final do ano e a volta das chuvas, todavia, O Democrata ainda informa
em Canindé. a invasão de Cascavel por três vezes (700 flagelados em agosto, 900 em setem-
Em Irauçuba, duas vacas de raça, "destinadas à procriação", foram mortas e bro e mais 200 no distrito de Andreza), Sobral ("milhares de trabalhadores"),
o correspondente do jornal denuncia que "pessoas pouco escrupulosas aproveita- Cariré (500) e Senador Pompeu (800). O jornal afirma que, em agosto, foram "13
ram-se para insuflar ainda mais os ânimos abalados, distribuindo panfletos em as cidades invadidas por multidões de homens famintos".28
que pregam o saque e a desordem". Em dezembro de 1953, contudo, acontece um evento que destoa da paisa-
O Bispo de Sobral, Dom José Tupinambá da Frota, denuncia a "fome intensa gem das ações dos retirantes cearenses. É instalada, no dia 19, na sede da "Socie-
na região" e adverte que "trezentos homens armados pretendem invadir" a cida- dade 24 de Junho", situada na Praça da Bandeira, em Fortaleza, a "Conferência
de e ele nada pode fazer "por falta absoluta de meios".2-1 da Seca e dos Flagelados". Precedida de "dezenas e dezenas de assembleias" -
Em março, novas invasões ocorrem em Iguatu, Crato, Morada Nova, Jaguaribe que se realizaram em concentrações de retirantes próximas às obras públicas, em
e Aracati. Em Solonópolis, a zona rural transformou-se em um "teatro de miséria sindicatos e associações populares -, a conferência contou com a presença de
e desespero" e "trezentos flagelados invadiram a Prefeitura, tendo levado todos cerca de 200 delegados, inclusive representantes dos flagelados acampados em
os géneros existentes e que tinham sido ali depositados pela C.A.N.".24 frente à Hospedaria Getúlio Vargas,_ajém da "numerosa assistência". Uma dele-
Em abril, as invasões se espalharam pelo curso do rio Jaguaribe e pelo Ser- gação da Comissão Organizadora saiu em caravana, percorrendo as áreas de
tão Central e os alvos foram as cidades de Aracati, Limoeiro, Ipueiras, Iguatu, maior concentração de trabalhadores flagelados pela seca e realizando assem-
Jaguaribe, Russas, Caio Prado, Cedro, Campos Sales, Quixeramobim, Pacajus, bleias para discutir preliminarmente os problemas relacionados à seca e às medi-
Aracoiaba e Cascavel. das de socorro público, além de indicar os delegados à conferência na capital do
Um grupo de 50 flagelados parou o trem que faz a ligação entre Iguatu e Estado.
Cariús, que imediatamente "foi tomado de assalto pela multidão", que não pre- Os "debates se prolongaram até a noite de domingo" e as "muitas e impor-
tendia assaltar nem passageiros nem carga, mas sim transportar-se para Cariús. tantes resoluções" tiradas pelos delegados podem iluminar as propostas que ron-
Lá chegando, apesar do comércio, previamente prevenido, já ter fechado suas davam pelas cabeças destes líderes rurais.
portas, os retirantes "arrombaram as portas do estabelecimento que julgaram ser As resoluções aprovadas se dividiam em dois tópicos: "Medidas de combate
o mais sortido de géneros da cidade", pertencente ao Sr. Júlio Boaventura, e "abas- à seca" e "Amparo às massas flageladas".
teceram-se à vontade". Entre as medidas propostas, nenhuma tocava nos pontos cruciais do latifún-
Em Granja, 500 flagelados "atacaram a Prefeitura e o mercado público, le- dio e da reforma agrária, num momento em que estas questões já empolgavam,
vando todo o género existente nos depósitos". de certa forma, as organizações de trabalhadores rurais de todo o país. Exigiam
Em Icó, uma "onda de flagelados invadiu a cidade e assaltou a Prefeitura e "construção imediata" de açudes e barragens, "construção de canais de irriga-
vários armazéns". O coletor federal na cidade é acusado de insuflar os famintos e ção" e poços artesianos, além do fornecimento de moto-bombas "por emprésti-
foi preso.25 mo" aos agricultores.
No mesmo mês, "um grupo de flagelados atacou violentamente um depósito Quanto ao segundo item, pouco era acrescentado às propostas governamen-
de géneros da Prefeitura Municipal de Camocim, carregando parte da mercadoria tais e aos reclamos dos Deputados nos debates da Assembleia Legislativa. Pre-
existente". Na luta que se travou, o Prefeito "procurou defender a investida" e tendiam "emprego para todos os flagelados desempregados, sem exceção de es-
saiu "arranhado". Com a chegada das autoridades policiais, "voltou a calma, nor- tado civil, a começar dos 14 anos de idade", salário mínimo de Cr$ 30,00 "pago

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em dinheiro, semanalmente", e a "instalação de postos médicos" nos locais de cada vez mais longínquo. Era como se essa operação de "esquecimento", que
trabalho dos flagelados. 29 mais se assemelha a uma "supressão" deliberada, funcionasse como um meca-
As propostas saídas da Conferência da Seca e dos Flagelados, assim, aproxi- nismo de eliminação de tais manifestações dentro da própria realidade social.
mavam-se estreitamente das sugestões encaminhadas pelo próprio Governador Assim, se nada sabem sobre os movimentos da multidão, eles não constam
Raul Barbosa ao Ministro da Viação e Obras, novamente o paraibano José Américo entre os temas de pesquisa e, não constando nas obras que formam o escopo
de Almeida. Resumiam-se aos aspectos técnicos e assistenciais do problema da
básico de formação da intelectualidade local, nem sequer podem requisitar um
terra e da seca: irrigação, obras de emergência, serviços médicos etc.30
direito à existência histórica.
Assim, essa rica oportunidade de reflexão - que acabou esquecida até pelos Dentre esses intelectuais, dois se destacam pela importância na formação de
registros históricos - não conseguiu sensibilizar nem as autoridades, no momen- uma cultura histórica local, como membros ativos do Instituto do Ceará, e pela
to em que as chuvas faziam esquecer que o Ceará está sempre entre uma seca que interferência institucional como homens de governo que ocuparam cargos de alto
vai e outra que está a caminho, como dizia Rodolpho Theophilo, nem os próprios escalão ou como referências académicas às equipes técnicas governamentais:
homens do campo sujeitos à retirada durante o período de seca. Foi uma expe- Tomás Pompeu Sobrinho e Raimundo Girão. No começo desta década de 1950,
riência única de reunião dos próprios retirantes para uma discussão de seus pro-
eles escreveram dois importantes livros, que permaneceram (e permanecem ain-
blemas, em que suas angústias e sofrimentos pudessem ser colocados entre seus
da) como referência nos estudos de história, geografia e outras áreas das ciências
pares, dispensando o tom normalmente queixoso e submisso que se depreende
sociais sobre o Ceará em geral e sobre as secas em particular: História das secas
dos relatos de jornais. (século XX) e Pequena História do Ceará.
De qualquer maneira, esse conjunto de ações da multidão formada por re-
Nestes trabalhos é apresentada uma visão do progresso local como resultado
tirantes da seca recoloca o problema da modernização das atividades agrícolas,
da ação modernizadora do Estado sobre os efeitos das secas, apesar das críticas
de um lado implementada por projetos de "combate às secas", que se propu-
que fazem aos órgãos encarregados desta ação e, mais precisamente, às interfe-
nham a debelar seus mais perniciosos efeitos, e de outro lado desafiada pelas
rências políticas dos potentados locais - os "coronéis" - sobre estes órgãos, obs-
campanhas nacionais pela reforma agrária, que traziam para a reflexão sócio-
truindo ou corrompendo seus objetivos principais.
histórica um amplo material crítico sobre a produtividade agrícola e sobre o
De um lado, a presença cada vez mais forte das estradas, cortando as áreas
latifúndio.
secas do semi-árido cearense, traziam capitais, saberes e mercadorias, incorpo-
Afinal, os retirantes - pequenos produtores e vaqueiros - provinham de
rando as áreas rurais aos padrões produtivos e culturais do capitalismo mais "avan-
áreas socioeconômicas consideradas "atrasadas" ou "tradicionais".
çado". O "ciclo do automóvel", porém, segundo Girão, estava intimamente
conectado em sua origem à gestão do Presidente Epitácio Pessoa, com respeito às
II. Novos Homens, Velhas Estruturas obras de combate às secas. Assim, por outro lado, as obras públicas, pensadas
como alternativa à mobilidade dos agricultores, eram vistas como condutoras do
Por mais que as multidões que se mostravam cada vez com maior ênfase
progresso.
no espaço público das cidades estivessem intrinsecamente ligadas a uma estru-
Os funcionários oficiais, coordenando a construção de barragens e rodovias,
tura agrária de tipo "tradicional" - isto é, de pequena produção de subsistência
"quais bandeirantes de nova estirpe", tornavam-se dirigentes desse progresso,
associada à pecuária extensiva - havia em curso um perceptível processo de
mesmo "sem o perceberem".
incremento tecnológico associado a transformações sociais importantes que al-
teravam a estruturação da realidade agrária brasileira e cearense no período do
pós-guerra. Isso fazia com que intelectuais e estudiosos de uma maneira geral, Andaram por todos os lugares, pelas grotas e planos, os chefes, os enge-
nheiros, os turmeiros, os operários, demarcando, medindo, cavando, ater-
preocupados em acompanhar de perto esse processo, centrassem suas análises
rando, numa agrimensura inquieta e incessante, ao sol e à chuva ou pela
nestes elementos de "progresso" e "modernização", remetendo as manifesta-
noite, para que dos levantamentos surgissem as estradas, os açudes, os po-
ções políticas e económicas ligadas às estruturas tradicionais para um passado ços, as irrigações, vale dizer a própria alma da terra desúmida.

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E não só a natureza é transformada pela ação desbravadora destes novos de um desajustamento", em que, também inevitavelmente, "perde uma parcela
pioneiros da ciência e da técnica. As relações sociais também são igualmente mais ou menos apreciável do seu self anterior" e, ao retornar ao "seu meio social
afetadas pela ação dos "novos bandeirantes". nativo", "traz na alma os estigmas dos conflitos que experimentou".
De modo geral, Sobrinho percebe que há uma ampliação nos horizontes, em
E, também, quantas novas aldeias, futuras cidades, outra civilização, lim- que os limites do meio social "tradicional" tornam-se amarras e, assim, são per-
pando os olhos dos tabaréus, que não enxergavam o mundo moderno que cebidos pelos próprios retirantes como delimitadores de suas possibilidades. A
rolava, sem eles verem, nas rodas dos automóveis, cujos velocímetros, de "velha arnbiência social", apesar das "modificações introduzidas pelo processo
agora em diante, e não mais o passo das alimárias, seriam o estalão das suas violento da seca", é "praticamente inoperante".
deliberações e dos seus negócios. A seca, em si mesma, é destruidora, segundo ele. Seus efeitos são sempre
"depressivos", e "a análise cuidadosa das decorrências de uma seca calamitosa
O mundo rural "tradicional", segundo Girão, estaria sendo esmagado pelo traz revelações insuspeitadas, sempre ruinosas, não só na ordem económica e
avanço inexorável de um processo civilizatório nitidamente urbanizador e moral, como também na ordem política e até religiosa".32 Porém, é a ação institu-
tecnicista, onde não há lugar para o incrédulo "tabaréu" que ainda guia sua vida cional de combate à seca e seus efeitos que gera um conjunto de modificações
pelos ritmos cíclicos da relação com a natureza. Uma nova sensibilidade, ordena- estruturais, a desdobrar-se em outras tantas transformações sociais e psicossociais
da pelo movimento dos automóveis e pelo trabalho incessante e transformador, que representariam um progresso para o mundo do semi-árido "tradicional".
parece se desenhar à frente do intelectual, que se esforça para acompanhar este Porém, os ganhos culturais se manifestam em vários aspectos. De um lado, o
movimento intenso com pinceladas rápidas de elementos empíricos, como se a retirante "perdeu superstições nocivas e traz apreciáveis elementos culturais es-
própria história estivesse marcada irremediavelmente, a partir de agora, por este tranhos impressos indelevelmente em potencial na sua personalidade". De outro
ritmo frenético. O "progresso", assim visto, parece ter se revestido de uma capa lado, do ponto de vista técnico e material, ele "é mais capaz, mais instruído, e em
de verdade óbvia que dispensa comprovações ou demonstrações históricas. geral introduz cousas novas no seu estilo de vida".
A s s i m , os serviços de obras contra as secas — mesmo que "feitos No entanto, todas estas transformações deixam sequelas importantes, que,
atabalhoadamente, mal começando uns, ficando em metade outros e só muito segundo o intelectual, provocam uma certa decadência moral, resultado mesmo
poucos chegando ao fim" -- "injetaram no sertão bisonho a porção de sangue do progresso material que se efetiva. Portanto, "essas vantagens podem vir a
novo necessário ao aceleramento do sistema circulatório da fisiologia meio custa de uma sensível depressão na ordem religiosa e moral".
esclerosada do Nordeste". 31 Os princípios de uma "outra civilização" eram des-
tilados por meio das "ações de combate às secas", mudando a fisionomia do Não é somente o corpo que se consome, minado pela desnutrição forçada
sertão. que leva à extrema inanição, à morte; mas, também, a alma se degrada. A
Para Pompeu Sobrinho, por outro lado, cujas preocupações se dirigem mais seca é um grande desajustador social, uma fonte de imoralidade, uma causa
aos aspectos psicossociais, os socorros públicos trazem para o meio social do de desespero que mina a fé cristã, um eficiente tator de criminalidade.
sertão um conjunto de transformações, de "transições e conflitos culturais", que
se refletem em um "terrível complexo de emoções depressivas que se desenca- Assim, o "primitivo meio social" é apresentado não só como "atrasado",
deia cruelmente na alma dos retirantes". No entanto, este complexo termina por "acanhado", "inculto" ou improdutivo, mas também idealizado como o local onde
merecer uma avaliação positiva, pois o estudioso conclui que "há, ordinariamen- as famílias vivem "bem organizadas e felizes" e onde a personalidade do retiran-
te, progresso, sobretudo na ordem económica, política, artística e científica ou te o conduz "placidamente na vida", "tudo em plena harmonia com o sistema
técnica". Assim como Girão, aposta nos ganhos culturais experimentados pelos social local".33
retirantes em contato com esta "outra civilização", apesar de perceber que um O progresso assume um caráter urbanizador por excelência, com todas as
conflito de personalidade se gera inevitavelmente. O retirante, "ao deixar o seu características associadas de velocidade, conhecimento, tecnologia e complexi-
acanhado meio social", "experimenta desde logo e progressivamente as pressões dade. O contraste entre cidade e campo, portanto, aparece mais claramente nestas

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T
A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

obras da década de 50, quando tais características se manifestam na realidade De fato, pode-se pensar em uma série de iniciativas estatais no sentido de
social cearense, diversificando-a e trazendo dificuldades, para os estudiosos em- prover o Nordeste de uma infra-estrutura moderna, mais próxima do que se espe-
penhados em superar os "arcaísmos do passado", em compreender e alcançar os ra dos padrões ocidentais capitalistas do pós-guerra. Além de uma maior
limites e os objetivos deste processo. profissionalização e qualificação dos funcionários do DNOCS, a criação de uma
De qualquer modo, estas representações sobre cidade e campo se colocam estrutura de crédito - o BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento Económi-
no interior de um contexto geral de apropriação de certas categorias das chama- co) e o BNB (Banco do Nordeste do Brasil), que se somam ao IAA (Instituto do
das "civilizações ocidentais", onde se generalizaram "atitudes emocionais pode- Açúcar e do Álcool) - e de órgãos de estudos e pesquisas que iriam desaguar na
rosas".34
SUDENE (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste) pretendiam esta-
Para estes autores cearenses, portanto, a vida campestre aparece recorrente- belecer as bases de um desenvolvimento económico mais acelerado, baseado na
mente como um mundo arcaico que a velocidade do progresso vai, aos poucos, transferência de capitais e prioritariamente na atividade industrial, expandindo as
destruindo. Suas mais essenciais características vão se consumindo ante o avan- atividades mercantis. 36 Eram iniciativas que iriam se fortalecer ainda mais com o
ço das forças de "modernização": os meios de transportes e de comunicações, os Plano de Metas do Presidente Juscelino Kubitschek, a partir de 1956.
açudes, o incremento tecnológico e a industrialização. No entanto, são medidas que favorecem, de um lado, a industrialização - e,
portanto, o desenvolvimento dos setores ligados às atividades urbanas - e, de
O automóvel e o cassaco mostraram ao matuto coisas desconhecidas, ideias
outro lado, a concentração cada vez maior da terra e redução das culturas a serem
novas, desejos novos, vontade nova, e o transfiguraram. O comércio pas-
sou do costado das burralhadas para o lastro dos caminhões, mais lépido, produzidas nas fazendas. No entanto, a expansão da economia de mercado res-
mais fácil e, por isso mesmo, mais intenso, mais extenso. Os jagunços e os tringia os pontos de comercialização das áreas de cultura de subsistência, estran-
mandões criminosos assustaram-se com ò barulho dos motores de explosão gulando-as economicamente e tornado-as mais frágeis ainda frente aos fenóme-
e retiraram-se e desapareceram. As moças das casas de fazenda, que só nos da oscilação de preços e das secas.
ouviam o mugido dos bovídeos e a cantarola dos vaqueiros, viram os moços O próprio Girão reconheceu que "a pecuária e o algodão ainda eram as duas
de fora - engenheiros e feitores de obras, que as tiraram de lá, como boas maiores colunas do edifício da riqueza cearense",37 o que se refletiu, não em
esposas, para as febricitações da cidade. Os coronéis do mato leram os maior diversificação tecnológica e de relações de trabalho, mas em uma "conso-
jornais e ficaram sabendo aquilo que ignoravam. lidação do latifúndio". Em 1952, com a seca, a produção de algodão, uma das
"colunas", desabou de 37.000.000 k para 17.000.000 k. Para o Governador do
O sertão e os sertanejos nunca mais seriam os mesmos, já que uma "con- Ceará, a seca permanecia um entrave às transformações necessárias na infra-
cepção diferente de vida mudou velhos hábitos, velhas usanças e destruiu pre- estrutura de transportes e comunicações, pois "dois anos de calamidade climática
conceitos".
diminuíram sensivelmente os resultados de um trabalho paciente e bem orienta-
O matuto, o tabaréu, as moças das casas de fazenda, os coronéis, os jagun- do, impedindo mesmo que fossem adotadas iniciativas mais arrojadas no sentido
ços são objetos passivos ante o avanço inevitável e sutil do progresso que os de abreviar a execução de um programa de reaparelhamento e ampliação dos
absorve, que os dilui em novos ambientes aos quais eles, necessariamente, terão serviços, além do início de obras essenciais que há anos são reclamadas".38
que se adaptar. Além de passivos, ou por isso mesmo, são representados como A meia, a terça, o cambão e todas as formas de relacionamento "tradicio-
símbolos de um passado "arcaico" que é preciso sublimar para que a história nais", características do sertão dominado pelos coronéis, povoado por tabaréus
possa ter um novo sentido de mostrar que as luzes emanadas pelos centros de e matutos e fustigado pelas secas, permaneciam predominando nas grandes fa-
produção da cultura (a Europa, os EUA, Rio de Janeiro e São Paulo) encontram zendas de gado e nos latifúndios, onde os moradores ainda permaneciam liga-
no sertão focos de recepção onde possam se refletir. É preciso mostrar, mesmo dos à sujeição - obrigatoriedade de um dia semanal de trabalho gratuito (o
sem uma comprovação ou argumentação propriamente histórica, que "o Nordes- cambão) para o dono das terras. Através dela, para o morador, o pagamento
te reviveu, forjou-se para a luta moderna e o Ceará foi a tenda em que se caldeou pelo uso da terra manifesta-se como um "aluguel exorbitante pela pequena área
a nova têmpera".35
de cultura e pela choupana - às vezes construída por ele próprio — em que

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habita"; por outro lado, o morador, "não tendo contrato escrito, não possui ga- Esta permanência, por um lado, redefine a própria noção de "Nordeste". A
rantias de permanência na terra, podendo a qualquer momento ser despedido e partir de então, a região não poderá mais ser pensada como, ao mesmo tempo,
ter que procurar área para trabalhar em condições idênticas em outra fazen- "/oc«i da crise e 'berço da civilização', 'origem da nacionalidade', 'guardião dos
da".39 Com a seca, de qualquer maneira, perde toda a produção e o acesso à valores verdadeiramente brasileiros', ideia sistematizada genialmente por Gil-
terra torna-se inútil. berto Freyre". A combinação das ideias de crise e seca produziu "a noção do
Os agricultores permanecem presos a um sistema de produção baseado na Nordeste como uma 'região atrasada'; e mais: que esse atraso possui uma causa,
pecuária ou na cotonicultura associados à cultura de subsistência; uma economia por assim dizer, natural - a seca".4í
de tipo "tradicional", em que a baixa produtividade combina-se com uma parca Por outro lado, esta redefinição conceituai se inclui no conjunto de saberes
capacidade de investimentos. São meeiros, parceiros ou condiceiros cuja renda é que se organiza institucionalmente para dar suporte à própria ideia central de
mínima e a fragilidade diante da seca é alta. São os primeiros a sofrer os efeitos desenvolvimento, com a qual se pensava ordenar os projetos de planejamento
da escassez e a fugir das terras ressequidas em direção às obras do governo ou às social e económico em curso na década de 1950. O "atraso" foi pensado em
cidades do litoral. 40 contraposição ao "progresso" que o planejamento económico objetivava para o
Assim, os mecanismos estatais de desenvolvimento, ao invés do pretendido país.
e alardeado estímulo ao desenvolvimento autónomo e integrado que reforçaria o As ações políticas, portanto, efetivadas neste período, haveriam, necessaria-
sentido de uma economia nacional, "agem no sentido de manter a economia da mente, que ser contrastadas com estes modelos cognitivos que enquadram aquilo
região no seu papel de fornecedora de capital, mão-de-obra e divisas (estas de- que se convencionou chamar de "Nordeste" e seus desdobramentos - "política
pendentes da expansão do mercado externo) ao núcleo industrial do sul". Os regional", "história regional" etc.46
. investimentos-existiam, de fato. mas "se configuravam essencialmente como in- -Assim, os conflitos que
• se desenrolam no semi-árido -.área "atrasada"
. de
vestimentos improdutivos, com a função imediata de minimizar o problema — uma "região atrasada", cujo atraso é definido exatamente pela extensão do semi-
sobretudo social - suscitado pelas secas".41 árido, que ocupa quase a totalidade do território do Ceará - aparecem como "pro-
Ao mesmo tempo, o controle — ou a "captura" - dos organismos estatais, blemas" exatamente por manifestarem politicamente este atraso. Em vista disso,
como o DNOCS, por parte de setores oligárquicos comprometidos com a perma- a própria noção de "desenvolvimento regional", tão integrativa neste momento,
nência dos laços "paternalistas" e "tradicionais", reorientava estas políticas no assume um conteúdo efetivamente político e não económico, porque "o desen-
sentido do reforço dos mecanismos de negociação direta através da concessão de volvimento do Nordeste se torna necessário para a manutenção do padrão de
verbas para obras a critério dos chefes políticos locais. Assim, apesar dos esfor- integração do sistema político e social nacional, e não para a expansão, em ter-
ços de profissionalização e da efetiva ampliação dos conhecimentos técnicos so- mos económicos, do sistema capitalista de produção no Brasil".47
bre o semi-árido, "o investimento do DNOCS reforçava a estrutura arcaica: ex- Na "região" delimitada pela simbólica "Nordeste", portanto, uma série de
pandia a pecuária dos grandes e médios fazendeiros e contribuía para reforçar a conflitos se desenrola na década de 1950, envolvendo principalmente os setores
existência do 'fundo de acumulação' próprio desta estrutura, representado pelas rurais. Além dos movimentos da multidão, as disputas entre setores da Igreja
'culturas de subsistência' dos moradores, meeiros, parceiros e pequenos sitian- Católica e comunistas pela criação e controle de sindicatos rurais se somavam às
tes".42 E é a destruição deste "fundo de acumulação" a primeira e principal con- posições independentes das Ligas Camponesas. Tais conflitos, por conseguinte,
sequência da irregularidade de chuvas, transformando, quase imediatamente, o acontecem em torno da questão fundiária ou das propostas de reforma agrária.
morador ou o vaqueiro em retirante, em flagelado. 43 Após o encontro de bispos em Campina Grande, em 1956, a que se seguiu
Assim, a despeito das relativas transformações ocorridas especialmente nos outro quatro anos depois, em Natal, a Igreja busca posicionar-se nas questões
meios de comunicação e transportes, as "arcaicas" estruturas econômico-sociais sociais. É inegável, porém, que este posicionamento tem como referência a atua-
do sertão seco permaneciam determinando, no sentido de "estabelecendo limites ção de comunistas e outros ativistas políticos de esquerda, que buscavam organi-
e exercendo pressões"44, as possibilidades de ação política, tanto para os mora- zar e "conscientizar" as "massas camponesas", conforme a proposta revolucio-
dores/retirantes quanto para os próprios proprietários de terras/coronéis. nária predominante na época.

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

De um lado, a disputa política com o marxismo se reflete em questões teóri- De qualquer maneira, a "ênfase revolucionária" conferida às Ligas e ao mo-
cas, nas quais a Igreja busca ressaltar os aspectos sociais em contraposição à mento de grande inquietação nas áreas rurais nordestinas marcou as posições e
ênfase económica típica dos comunistas. Para os bispos, "não há na reforma agrária atitudes governamentais com relação aos problemas do campo. O ano de 1958,
preconizada um problema exclusivamente económico", pois "reveste-se, antes assim, marcava uma nítida expectativa: além da ampliação do movimento das
de tudo, de significação eminentemente social". Ligas Camponesas, a eclosão de uma nova grande seca e ano de eleições nos
Por outro lado, a questão da ordem e da estabilidade social é enfatizada Estados.
continuamente. O temor de uma ruptura importante do tecido social, numa con- As possibilidades de politização de todos os problemas sociais, neste mo-
juntura internacional em que a Guerra Fria contrapunha dois campos irreconciliá- mento, eram grandes; e aqueles relacionados à seca não fugiam desta perspec-
veis, fazia com que fosse enfatizada a necessidade de uma mudança na estrutura tiva. Como um fator complicador, as expectativas com relação à extensão e
agrária para que as propostas comunistas não conseguissem empolgar os traba- intensidade da seca eram as piores possíveis. Em 1957 as safras já estavam
lhadores rurais. Assim, com a reforma agrária proposta pelos bispos, "se terá um perdidas e logo em abril de 58 o Presidente Kubitschek visitava a região, reco-
instrumento adequado para conseguir-se um ambiente de estabilidade social, de mendando a formação de um grupo de trabalho para "solucionar de vez esse
fixação do homem, e sobretudo, de resistência a perturbações da paz de que de- angustiante problema que, de tempos em tempos, tem de enfrentar a Adminis-
vem desfrutar todos os homens".48 tração".
n-'-
Mas o que perturbava o relacionamento da Igreja com seu rebanho rural não De fato, foram atendidos mais flagelados do que em 1932 e a percentagem
era só o "espectro do comunismo". O crescimento das Ligas Camponeses, desde da população afetada subiu de 9% naquela seca para 13% em 58, com a estiagem
1955, produzia "a combinação revolucionária potencialmente mais explosiva da atingindo, mais uma vez, os Estados do Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba. O
América Latina", segundo a revista Life, de 10/7/61, que enfatizava também que DNOCS e o DNER empregaram cerca de 520.000 pessoaa.oas mais variadas
esta radicalidade não era "obra de Castro ou do comunismo", mas "determinada obras estabelecidas em cooperação com os proprietários das terras.52
por velhos e simples fatores: a miséria e a compaixão". A seca de 1958 alcançou tamanha repercussão que não só transformou a
Uma das reivindicações básicas das Ligas Camponesas era a "aplicação ple- chamada "questão regional" em "problema nacional", como, a partir de então, "o
na à população rural dos direitos assegurados na Constituição, na legislação tra- Nordeste passa a se configurar como um problema de segurança nacional".53 Em
balhista e demais leis que beneficiam os trabalhadores urbanos".49 De fato, desde vista disso, "passaram a ser consideradas de interesse militar as funções exercidas
1954, em seu discurso de 1° de maio, o Presidente Getúlio Vargas cogitava desta na SUDENE por oficiais do exército e engenheiros militares", já que os órgãos
ampliação, mas isso ficou somente na intenção e as massas rurais mantiveram-se de segurança passaram a considerar as secas como um "rastilho onde se poderia
afastadas da ação direta do trabalhismo em seus tentáculos políticos mais carac- ter ateado o fogo das insurreições". 54
terísticos.50 Parece ser consenso na historiografia que "os camponeses foram os Assim, esta nova seca se apresentava numa conjuntura diferente e nova, em
grandes ausentes do Estado varguista" e, por isso mesmo, "o pacto estabelecido que as ações da multidão haveriam de se contrapor a um conjunto de representa-
entre Estado e classe trabalhadora não surtiu entre os camponeses os mesmo ções que as situavam fora do ambiente cultural no qual elas se constituíram origi-
efeitos ocorridos entre os trabalhadores urbanos", chegando "ao mundo rural como nariamente: o paternalismo. Contudo, mesmo que apresentadas num quadro de
ecos de um som longínquo". 51 insurreições contra a ordem capitalista, as ações mantinham suas mais tradicio-
Partindo de Pernambuco, no entanto, o movimento e a influência das Ligas nais características.
alcançaram boa parte dos estados nordestinos, mas pouco chegaram até o sertão Apesar do alardeado surgimento de um "novo homem" nos sertões - que,
cearense. Os jornais locais, por exemplo, praticamente ignoram a presença de segundo os intelectuais, iria redimir a região - as "velhas estruturas" de organiza-
Ligas e seu esforço de organização em território cearense. Assim, as áreas do ção económica e social do semi-árido permaneciam "estabelecendo limites e exer-
semi-árido seco ficaram afastadas do círculo de influênciae da visibilidade nacio- cendo pressões", delimitando as possibilidades e alternativas políticas. A multi-
nal que este modelo de politização das lutas dos lavradores sem terra e pequenos dão de retirantes, portanto, permaneceria "negociando" nos termos em que apren-
agricultores alcançou. deu a conseguir atender às suas mais urgentes necessidades, dentro de um con-

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

texto em que esta "negociação" pudesse ser exercida entre os próprios retirantes os alistados nas obras de construção de várias estradas de acesso a Iguatu. Segun-
e as autoridades urbanas. do o jornalista Júlio Braga, estes retirantes "estão acantonados numa área por
A seca de 1958, ao contrário do que previam os intelectuais, seria o tempo demais restrita, surgindo, daí, uma quase promiscuidade amoral e, sobretudo,
de solidificação de uma tradição de ações coletivas, efémeras, diretas e autóno- nociva à saúde, com o perigo da irrupção de um surto epidêmico".
mas - o tempo das multidões! A situação se agrava e o esperado acaba por acontecer. No dia 8, cerca de 8
mil "homens famintos" atacam o comércio local, "avançando de preferência nos
depósitos de géneros e mercados de carne". Segundo o jornal, "muitos dos fa-
III. A Força da Tradição
mintos estavam sem se alimentar há mais de vinte horas". As associações locais
Na seca de 1958, a presença das multidões de lavradores rondando as casas - Associação Comercial, União Artística, Sociedade Operária, Círculo de Operá-
comerciais e os mercados públicos das cidades mostrou-se ainda mais vigorosa. rios Católicos, Associação dos Auxiliares do Comércio, Associação Rural - se
O fraco período de chuvas no ano anterior deixou-os, mais uma vez, expostos à mobilizam imediatamente; tentam distribuir comida para aplacar a ira da multi-
escassez e à miséria, com as colheitas destruídas e o gado enfraquecido e doente. dão e apelam às autoridades estaduais no sentido de que haja uma revisão nos
Assim, nos meses de março e abril - quando as chuvas já deveriam estar alistamentos, ampliando o número de obras e aumentando as diárias pagas aos
nutrindo as plantações - concentraram-se ações que espalharam a ansiedade e o retirantes para Cr$ 70,00.
•' temor pelas cidades do Sertão Central cearense, alcançando um número cada vez O alistamento, feito às pressas para "acalmar" a multidão, muitas vezes não
maior de participantes. possui o necessário respaldo financeiro e algumas obras são suspensas ou o salá-
Iguatu foi uma das primeiras cidades a ser invadida, depois que a "pouca rio não é pago. A dispensa de operários é novamente motivo para conflitos e
pastagem desapareceu e as primeiras plantações morreram". No sábado, dia de confrontos, que são percebidos-pela-eomissão de autoridades que visita a cidade.
feira, "o movimento estava paralisado, notando-se grande aglomeração de fa- Comandada pelo próprio Governador Paulo Sarasate, e composta pelo dire-
mintos sob os ficus de benjamim": "Eram numerosas famílias com crianças pas- tor-geral do DNOCS e representantes de outros órgãos de assistência social, além
sando fome, a ponto de chorarem continuamente, sendo o povo, apesar de com- do prefeito local, padres, deputados e jornalistas, a comissão vistoriou "diversas
padecido, impotente para atenuar a miséria reinante". frentes de trabalho onde mourejam milhares de flagelados". Como resultado des-
Os comerciantes temem por um "vexame", "tendo-se em vista que os cria- sa visita, DNOCS, DAER e Prefeitura passam a trabalhar coordenadamente para
dores não podem dar abrigo e sustento a tão elevado número de famintos". A oferecer as vagas de trabalho reclamadas pelos retirantes, de modo que eles não
"onda de famintos que perambula pelas ruas e praças mendigando alimentos" é fiquem "ociosos". Ao mesmo tempo, a margem de lucro dos fornecedores foi
crescente e todos temem "que possam ocorrer assaltos ao comércio local", como fixada em 15%, com o objetivo de evitar a especulação com os géneros distribuí-
aconteceu no distrito de Suaçurana, de onde já chegam "dessas desagradáveis dos a preço de custo pela COFAP, o órgão do governo estadual encarregado do
notícias". Na mesma semana, a situação já é "alarmante", porque os retirantes abastecimento. O DNOCS e a Prefeitura passam a ter o poder de fiscalizar o
estiveram "no mercado de carne à procura de alimentos, sendo atendidos na sua tabelamento de preços. O salário diário dos retirantes, contudo, permaneceu em
maioria pelos marchantes". A "negociação coletiva através da arruaça" já estava Cr$ 40,00.55
em andamento: poucos dias depois, o alistamento de trabalhadores para obras no Em Icó, ainda no Sertão Central, foram distribuídos pelo Prefeito três bois
município chega a 3 mil e rapidamente alcança 5 mil. Somente no dia 25 de para os famintos retirantes, que "não deram, porém, para contentar a todos os
março foram alistados 800 retirantes, causando temor entre os fornecedores, "por necessitados". A situação piora, com a cidade "invadida por levas de famintos,
sentirem que a qualquer momento faltar-lhe-ão recursos para garantir o estoque pedindo alimentos e outros recursos". Ainda em março, cerca de 400 "sertanejos
permanente dos géneros de primeira necessidade". Os postos de abastecimento famélicos", que diariamente "batem às portas do comércio", "pressionados pela
para os alistados, como em 1951-3, logo se tornam focos de protestos contra "a fome", atacam o armazém da Cooperativa dos Rodoviários, que abastece os ser-
exploração desumana e desenfreada dos fornecedores". vidores do DAER, e entram em choque com o "destacamento da polícia local,
Os números crescem continuamente e, no início de abril, já chegam a 13 mil que passou a guardar o edifício do armazém".

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Em abril, a quantidade de retirantes circulando pela cidade - que tinha 9. da com a composição (social, ocupacional e outras) dos que deles participam".60
habitantes pelo Recenseamento Geral de 1950 - chega a 8 mil, "dos quais seis Por outro lado, a ação tende a ser efetivada pacificamente, na medida do possí-
mil encontram-se alistados em serviços de emergência". Os outros vivem da ca- vel, sendo raríssimos os casos em que há qualquer agressão física a comerciantes
ridade, negociando com os comerciantes um pouco de alimento em troca da ma- ou conflitos violentos com a Polícia. Arrombamentos e alguns prejuízos mate-
nutenção da tranquilidade. 56 riais, afinal, são inevitáveis.
A cidade de Senador Pompeu, devido à sua posição estratégica com relação A visão sobre os ataques manifestada na imprensa e em outras fontes se
à rede ferroviária do Ceará, também tornou-se um centro de convergência dos aproxima de uma certa cumplicidade, apresentado os retirantes como "pobres
retirantes. De lá, chegavam "notícias verdadeiramente alarmantes, com a cidade famintos", "desesperados", ou "trabalhadores transformados em marginais". Em
cheia de camponeses famintos e desesperançados", "transformados em simples geral, é uma visão matizada pela caridade cristã e, conseqiientemente, por uma
marginais", "causando justificada apreensão entre as famílias locais, principal- relativa solidariedade para com os que sofrem os efeitos da falta de chuvas, que,
mente o comércio". O Prefeito alistou 500 homens, que, "munidos de latas", afinal, é um flagelo que vem (ou não vem) dos céus. Os sertanejos são os sofredo-
"foram colocados para transportar areia para o aleitamento de praças e outros res que, ao lado de suas famílias, procuram o apoio dos poderosos para não mor-
serviços na cidade". rerem de fome. A sua revolta não afronta alguns valores morais vigentes na socie:
Por outro lado, "é comum os trens serem invadidos por flagelados", na ten- dade, apesar de relativizar o conceito central de propriedade privada, mas de-
!
tativa de chegarem até um centro de oferta de trabalho. Até mesmo os vagões de manda a reimposição dos padrões costumeiros de relacionamento com os pobres
carga são utilizados para transportar os retirantes. O Prefeito afirma que a situa- em momentos de escassez, através da proteção (distribuição de alimentos e ou-
ção é "caótica", pois não há como "amparar a legião de famintos que enche a tras ações de caridade) e intervenção no livre jogo de forças no mercado (forma-
cidade".57 f _ção de frentes de trabalho e medidas de tabelamento ou controle de preços e
Fortaleza, a capital, desta vez não se viu livre da pressão da multidão de abastecimento de produtos de primeira necessidade).
retirantes. A situação se modifica quando a multidão penetra o mundo urbanizado
A construção da rodovia Parangaba-Messejana movimentou a periferia da da capital. Fortaleza, nesta década de 1950, passava por uma série de trans-
cidade, com "marchas", protestos, saques e conflitos com a polícia.58 formações sociais que se refletia, de um lado, na preocupação dos adminis-
Em pouco tempo, as áreas centrais da capital também começam a ser ocupa- tradores com "o planejamento físico-territorial em termos de organização es-
das pelas "multidões de famintos". No dia 22 de abril, "um grupo de flagelados pacial" e, de outro lado, na vigilância cada vez mais apurada sobre a moral e
andou em bando precatório por diversos pontos da Capital, inclusive na feira os costumes.
livre da Piedade, procurando comida". Como em outros casos, "ao grupo se jun- A introdução de uma série de equipamentos de1 tráfego, assim como a aber-
taram um sem número de desocupados, aproveitando-se das ocasiões para prati- tura de novas ruas e avenidas, procuravam "adequar o espaço urbano central à
car saques". Ao contrário, "os realmente flagelados" limitaram-se a "pedir ali- nova realidade vivenciada pela Capital", tarefa que estava sempre a reboque de
mentos, não praticando qualquer sorte de arruaças".59 um "crescimento populacional desordenado".61
Estas últimas notícias colocam em relevo um outro aspecto a respeito dos Ao mesmo tempo, "a perseverança eclesiástica em vigiar o comportamento
ataques da multidão: aquilo que Geoge Rude chamou de "os rostos da multidão". social continuava firme". Através do jornal O Nordeste, órgão oficial da Arqui-
Como se viu até aqui, e se continuará a ver adiante, os alvos dos ataques da diocese, as lideranças cristãs cearenses criticavam os novos hábitos "indecoro-
multidão de sertanejos normalmente se resumem à obtenção de alimentos, espe- sos" e denunciavam os locais de maior incidência de crimes contra a moral. Fu-
cialmente aqueles mais tradicionalmente utilizados em sua dieta normal, como gindo das áreas mais populosas, o lazer das elites expandia-se para a orla maríti-
carne ou charque, feijão e farinha. Isso se refere à própria formação da multidão, ma, onde clubes foram construídos para o deleite social das boas famílias da
composta basicamente de pequenos produtores rurais (parceiros, arrendatários cidade, enquanto que, na periferia, uma extensa rede de casas de jogos e de pros-
ou pequenos proprietários) e vaqueiros sem terras, confirmando a tese de que "a tituição demandava uma presença cada vez maior de um aparato policial repres-
natureza dos distúrbios e das atividades da multidão está estreitamente relaciona- sivo a tentar extirpar alguns hábitos populares considerados pouco "civilizados",

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incompatíveis com os novos padrões de cidade que se pensava experimentar no recursos da municipalidade, tornando a "situação insustentável". A cidade per-
contexto do pós-guerra.62 manece "sob ameaça constante de saque motivado pela fome".64
Aqui, portanto, como já observamos em capítulos anteriores, a visão corren- A zona norte do estado passou a sofrer os mesmos tipos de ataques, mani-
te sobre a multidão se aproxima ainda mais das versões de Gustave Lê Bon e de festando uma generalização que aterrorizava as lideranças políticas. Em
outros pensadores, que a definem como uma turba de criminosos e degradados, Camocim, "cerca de 1.500 flagelados" se postaram "defronte o Banco do Bra-
ou, pelo menos, de desocupados e marreteiros. A presença deste "resíduo" hu- sil, em atitude agressiva, clamando por urgentes providências das autoridades".
mano que a estrutura urbana não consegue absorver integralmente, sobre os quais Depois de fechar as portas das lojas, a Associação Comercial "foi forçada a
já havia se construído um saber classificatório e discriminatório, de certa forma fazer fornecimentos durante uma semana, a fim de evitar assaltos aos estabele-
corrompe os intuitos e os atos da multidão de retirantes, para quem a ação é uma cimentos comerciais".65
retomada de alguns princípios de justiça social perdidos entre os modelos liberal Jaguaribe, às margens do "maior rio seco do mundo", ainda em abril, "foi
e paternalista de relacionamento com os pobres. As notícias, neste caso, tratam invadida por cerca de 2.500 flagelados, todos em situação de quase desespero".
de maneira diferenciada as duas categorias sociais envolvidas nos saques, dife- O Prefeito destinou uma área "a pouca distância da cidade" para alojar temporaria-
renciando, na verdade, posições coletivas a respeito da formação de um sujeito mente os retirantes e "foram distribuídos até se esgotarem géneros alimentícios,
político que, por vezes, é relativamente autorizado (quando formado pelos serta- enquanto que, doados por vários fazendeiros, foram abatidas inúmeras reses". As
nejos que fogem da seca) e, em outras ocasiões, é completamente desautorizado medidas, porém, foram "paliativas" e "a situação está das mais críticas".66
(se formado pelos desempregados urbanos). Boa Viagem, por sua vez, foi "invadida por quase 5.000 flagelados, que
Assim, apesar de certas expressões enfáticas - do tipo "revolucionários da saquearam o comércio". O abastecimento da cidade ficou gravemente afetado. A
fome", "atilas", "legionários da fome", "horda tártara", "vândalos da fome" etc - reportagem acusa a presença de "elementos udenistas insuflando o povo a prati-
e de certas associações com movimentos de rebelião política do passado,63 as car desordens". Os alistamentos para a construção da estrada que liga a cidade a
representações elaboradas sobre as multidões e suas ações se mantêm no padrão Tauá e Campos Sales não foram suficientes para atender ao excessivo número de
referido da condescendência para com os que não têm outra saída senão roubar retirantes. No local da obra instalou-se um conflito que só terminou com a distri-
para viver. A "rebelião dos pobres" que se anuncia frequentemente não penetra o buição de 14 sacas de farinha e 14 cargas de rapadura entre os quase mil retiran-
campo propriamente político, permanecendo presa aos grilhões do ciclo vital que tes que esperavam a vez de alistarem-se. Mesmo assim, "os que não foram aten-
ata o homem à natureza e o aproxima dos animais. didos no expediente da manhã invadiram o Mercado Central". Foram levados,
A linguagem se modifica, no entanto, quando os pobres urbanos se unem por iniciativa do Prefeito, para um "local distante" e o alistamento foi reiniciado,
aos flagelados na confusão que se segue a um saque e tentam apropriar-se das assim como uma nova distribuição de alimentos. 67
mercadorias em momentânea disponibilidade. Afirma-se a mudança através da Nos meses de março e abril, 68 além dessas cidades atacadas, mais 37 muni-
ênfase nos objetivos do ataque - uns, desesperados, atacam para sobreviver; cípios, espalhados pelas várias microrregiões do estado, foram afetados pelas
outros, ociosos, se aproveitam do caos para se beneficiar materialmente. E tam- ações da multidão. Até cidades serranas, como Baturité, e litorâneas, como Cas-
bém nos resultados da negociação com as autoridades - uns, submissos e hu- cavel, Camocim ou Pacajus, onde a falta de chuvas não altera direta ou significa-
mildes, querem e conseguem trabalho; outros, arrogantes e anti-sociais, dis- tivamente o ritmo da economia, foram incorporadas ao fenómeno da seca, já que
pensam as ofertas de alistamento, permanecendo numa ociosidade viciada, são centros para onde convergem os retirantes de municípios vizinhos em busca
embora frutífera. de melhores condições de sobrevivência. Ações que variam de forma, desde pe-
No interior, todavia, as invasões continuavam, conseguindo reunir um nú- quenas invasões de grupos de 300 ou 400 retirantes, sozinhos ou com suas famí-
mero crescente de retirantes. lias, até ataques à residência do prefeito, como aconteceu na cidade de Marco.69
Em Ipueiras, cujo centro urbano possuía 9.093 habitantes em 1950, foi ocu- No segundo semestre de 1958, a proximidade das eleições trouxe a oportu-
pada "por cerca de dois mil homens todos com fome e sem trabalho". O Prefeito, nidade para novos conflitos, em função das acusações de aproveitamento eleito-
o Padre local e um deputado procuraram socorrer esta multidão, esgotando os ral das situações de invasões de retirantes. As verbas de emergência, a fundo

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perdido, são permanentemente manipuladas por políticos, administradores ou Em Icó, os próprios funcionários da Prefeitura estiveram recolhendo os títulos de
comerciantes no intuito de tirar proveito político ou económico. A chamada "in- eleitor dos flagelados, "bem como o compromisso de voto", "tornando, assim, o
dústria da seca" desenvolve-se em ritmo acelerado durante a seca de 58, em que serviço de emergência do açude Lima Campos um instrumento político, a fim de
a mobilidade dos retirantes era uma ameaça aos "currais" tão zelosamente guar- garantir a vitória do candidato pessedista".75 Em Itapajé, denúncias sobre "perse-
dados pelos cabos eleitorais. O medo de perder os votos fazia com que os políti- guições políticas nos serviços do DNOCS" agitaram o clima eleitoral, ocasionan-
cos se desdobrassem para conseguir obras ou algum donativo que assegurasse a do conflitos e troca de acusações pela imprensa. Dias antes, um engenheiro do
presença dos "seus" eleitores nos municípios de origem.70 As obras valorizavam DNOCS foi assassinado por um fornecedor, aparentemente por desentendimen-
as terras através de um sistema de estradas e abastecimento dágua ou irrigação, tos políticos que acabaram por envolver também os "cassacos".76
mas nada era cobrado ao proprietário, que, ao contrário, deixava de pagar os A suspensão de pagamentos e/ou de fornecimentos aos retirantes passaram a
salários aos seus empregados, já que estavam todos alistados no DNOCS ou DAER ter, neste momento, conotações mais políticas. No entanto, não eram as ações
e recebiam salários do governo. Assim, um círculo vicioso se mantinha e tornava que apareciam como "políticas", mas uma interferência externa oriunda de um
as áreas do semi-árido cada vez mais vulneráveis à seca.71 campo exterior a elas e considerada, quase sempre, nociva e perniciosa, geradora
As denúncias, portanto, são permanentes por todo os anos de seca. Na As- de novos conflitos. A "política" se insinuava por entre os "simplórios flagela-
sembleia, o deputado Quintilio Teixeira denuncia irregularidades no alistamento dos", fazendo-os, inconscientemente, marionetes de jogos políticos que não do-
das obras do DNOCS por "elementos com objetivos eleitorais",72 mas é ignorado minam.
pelos seus pares. A discussão em plenário se volta para os pedidos de socorros e Denúncias de irregularidades e disputas políticas nacionais fizeram com que
de obras para os municípios onde os deputados mantêm suas bases eleitorais. Ao o DNOCS suspendesse o pagamento aos fornecedores das obras de emergência.
mesmo tempo, as denúncias partem somente dos candidatos da oposição (UDN), A situação de agrava e o deputado Franklin Chaves pronuncia discurso em que
"que não têm acesso ao DNOCS", apesar do próprio líder do PTB na Câmara denuncia que o estado está "às portas de grave convulsão social". Ao mesmo
Federal, deputado Fernando Ferrari, reconhecer que "há donos da seca, indústria tempo, as críticas do General Lott e do ex-Ministro José Américo de Almeida ao
da seca, homens que estão ganhando dinheiro com a miséria e com o sofrimento, DNOCS e ao DAER "levantam a possibilidade de um controle do Exército sobre
pois verbas, quer liberadas pelo plano federal, quer votadas extraordinariamente as obras de emergência".77 Mais uma frente de insatisfações se abria.
para socorrer os miseráveis, são em parte desviadas ou criminosamente roubadas Em agosto, "milhares de flagelados invadem Iguatu" novamente à procura
pela politicalha mais infame daqueles pobres confins". 73 de comida. Alguns "comandos precatórios" tentaram assaltar alguns armazéns,
Parecia ser um consenso entre a imprensa e outros órgãos de divulgação de que "passaram a funcionar de portas fechadas". Os fornecedores das redondezas
ideias que, naquele período de seca, "a política tem seus dias de glória, tripudiando
h sobre a infelicidade dos sertanejos". Os alistamentos transformam-se na princi-
decidiram fechar as portas até que o DNOCS resolva pagar o devido, com "refle-
xos imprevisíveis para a tranquilidade pública", já que "notícias recentes dão
pal arma eleitoral usada pelos políticos locais para ganhar a simpatia do eleitor e, conta que maiores levas de flagelados famintos se encontram a caminho de Iguatu,
assim, disputam encarniçadamente entre si pelo controle das listas e, principal- provenientes de outras frentes de trabalho do DNOCS". O Governador reforça o
mente, da direção local do órgão encarregado da obra. O acesso às frentes de policiamento local, com a ajuda de soldados do Tiro de Guerra, e providencia a
trabalho, portanto, é facilitado para aqueles "que se comprometem, de antemão, "vinda de numerário para pagar os fornecedores".78
com os chefes", já que "há identidade entre chefe político e de frente de trabalho Em Aurora, os "flagelados revoltam-se com a exploração nas obras públi-
do DNOCS ou DAER".74 cas". Um conflito generalizado se seguiu a um desentendimento com o encar-
Em Nova Russas, o engenheiro "encarregado de efetuar o alistamento de regado das cadernetas na obra da rodovia Crato-Farias Brito, com cerca de 800
operários para a estrada Nova Russas-Monsenhor Tabosa só aceita aqueles que homens tentando invadir o escritório do DNOCS para que fosse cumprida a
pertencerem ao P.T.B., ou seja, os que forem indicados pelo prefeito Oriel Mota". "decisão de renovação das cadernetas". O engenheiro fugiu e a multidão vol-
Em Pacajus, o prefeito e outros dirigentes do PTB local "determinaram aos seus tou-se para o comércio local. Em pouco tempo, "pelo menos 3.000 trabalhado-
cabos eleitorais que somente alistassem eleitores que pertencessem às suas hostes". res" já ocupavam as áreas centrais da cidade, exigindo comida. Um conflito

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maior foi evitado pela "mobilização dos chefes políticos locais", "que distribuem Em Iguatu, Acaraú, Marco e Saboeiro, episódios semelhantes se repetem,
alimentos".79 tomando o quadro geral do estado verdadeiramente "explosivo".84
Em outubro, a situação piora porque "várias frentes de trabalho do DNOCS O deputado Almir Pinto, ocupando a tribuna da Assembleia, faz veemente
foram fechadas sumariamente logo após as eleições". Como era de se esperar, apelo ao Comandante da 10a Região Militar, General Inimá Siqueira, "encarecendo
"isso criou dramas indescritíveis para os flagelados". Os pagamentos aos for- a designação de uma comissão de militares para observar o drama vivido pelos
necedores, ao mesmo tempo, continuam irregulares e eles se deslocam até o flagelados da seca das várias frentes de serviço, ocasionado pelo fechamento dos
Rio de Janeiro "para falar com o Presidente e tentar obter o dinheiro a que têm fornecimentos". O parlamentar não acredita mais que a capacidade de intervenção
direito".80 dos órgãos do governo possa controlar a situação social e, assim, "não esconde seu
A reação a estas medidas, todavia, é imediata. Uma nova onda de invasões e temor de que uma rebelião da fome venha a se desencadear pelos sertões". Pede,
saques desafia a capacidade de negociação das autoridades municipais, já, a esta portanto, a intervenção do Exército para que seja debelada a onda de ataques à
altura, com uma reduzida possibilidade de alistar novos retirantes em obras do propriedade em várias localidades do estado. Segundo ele, a própria Assembleia
governo. "está sem moral para solicitar ao Governo ajuda aos flagelados".85
Saboeiro, Sobral, Canindé e Mombaça foram igualmente invadidas em no-
Com a paralisação do fornecimento, teremos, na certa, uma invasão em
massa de flagelados às cidades do interior e até mesmo à capital, pois cen- vembro por levas de flagelados em busca de alimentos e alistamentos. Em Cam-
tenas de milhares de pessoas estão na contingência de matar a fome de pos Sales, um "ajuntamento de mais de 3.000 flagelados" se colocou "à porta do
qualquer jeito, não retrocedendo mesmo quando haja a necessidade do uso DNOCS à procura de alistamento". O comércio permanece "receoso de inva-
da violência.81 são".86
Somando-se aos problemas políticos que se avolumavam, o período de iní-
Um grande conflito iniciou-se em Trairi, que "foi atacada por levas de fa- cio da estação de chuvas trouxe a expectativa de mais um ano de seca. A prepa-
mintos, que procuravam saquear o comércio". Nas escaramuças, algumas fontes ração das terras para o plantio ficava, assim, inteiramente prejudicada, principal-
falam em vítimas fatais, embora o delegado local não confirme.82 mente porque os agricultores estavam presos às obras públicas e aos magros salá-
No município de Uruburetama, "dois mil famintos mataram quatro ovelhas rios pagos pelo governo. Nestas circunstâncias, as possibilidades de negociação
e uma vaca, para saciar a fome" na fazenda São Miguel. Em Catuana, "foi tam- se reduzem ainda mais. As chuvas, contudo, chegariam apenas em janeiro e feve-
bém assaltada uma propriedade, onde foram abatidas duas reses pelas vítimas do reiro de 1959. Até lá, os sertanejos continuaram a invadir cidades e saquear mer-
flagelo". Extraordinariamente, os retirantes, nestes casos, atacaram as fazendas cados ou armazéns.
de gado, substituindo, segundo o jornal, "o direito da lei pelo supremo direito da Em Canindé, a morte pela fome de um trabalhador deu origem a uma inva-
fome". Os proprietários "não ofereceram a menor resistência, porque era impru- são de 4.000 pessoas sobre o comércio local. O "comércio cerrou as portas te-
dência como foram sobressaltados pela presença de tão estranhos personagens, mendo novos assaltos", mas "os legionários da fome, ante a atitude dos comer-
que somente a fome sabe criar" e porque foram, sobretudo, "moralmente abati- ciantes, acorreram ao armazém do SAPS, rebentaram-lhe as portas e carregaram
dos pelas condições de miséria das criancinhas". todas as mercadorias nele depositadas". O Secretário de Polícia mandou reforços
para a cidade, mas a expectativa geral é de que "os famintos tão logo acabem a
(...) os 'atilas' da fome, em bandos enormes, transformam os caminhos do
sertão numa paisagem danada, onde aparecem as linhas trágicas da miséria, ração levada do armazém do SAPS invadirão as casas comerciais".87
da nudez, da inanição com ameaças de epidemias. Homens e mulheres, que Barbalha, no sul do estado, "foi invadida por mil flagelados", trabalhadores
parecem mais quadros de morte, carregam uma corte de crianças tão ma- dispensados pelo DNOCS, que "ameaçam saquear o comércio". A Polícia, de
gras que se assemelham a sacos de couro com miniaturas de esqueletos.83 prontidão, "tenta evitar o saque contendo a multidão aglomerada na Praça do
Rosário". No mesmo dia, o posto do DNOCS em Itapagé é ocupado por 5.500
A linguagem das reportagens, como se vê, é enfática e impactante, procu- operários, que "passam privações à falta de pagamentos". Na cidade, "comércio
rando traduzir fielmente em palavras a tragédia dos sertanejos. e donos de propriedades temem saques e assaltos".

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

O jornalista Rogaciano Leite afirma que "chegou o fim do mundo para os do que a própria vida, ameaçada continuamente e, aparentemente, sem possibili-
flagelados" de Icó. O canteiro de obras do açude Lima Campos, segundo o vigá- dades de alternativas.
rio local, "está transformado em uma praça de guerra, com soldados de Icó, Iguatu Neste momento, era "dramática a situação no vale do Cariri". Esta é uma
e Orós em forma para dispersar a bala os flagelados que estão advindo das frentes zona normalmente fértil para onde afluem os lavradores arruinados pela seca.
de serviços de onde foram dispensados, com o estômago vazio de alimentos e a Com a crise nos fornecimentos, no entanto, "mais dois mil flagelados estão em
alma vazia de esperanças". As desigualdades nos efeitos da seca são denunciadas marcha para o Crato" e "por meios violentos querem obrigar o governo a efetuar
pelo religioso. o pagamento de salários atrasados".

Enquanto isso, os donos da seca compraram com o dinheiro dos flagelados Verdadeira multidão de cassacos entrou na cidade empunhando as picaretas
vivendas luxuosas em Fortaleza, eletrolas, baixelas caras, mobílias precio- com que vinham trabalhando e que naquele momento de alucinação pela
sas, caminhões, construíram grupos residenciais em Icó, cercaram de ara- fome serviriam como armas contra qualquer medida de repressão que a
me os seus terrenos, construíram açudes, tornaram-se ricos e poderosos. Polícia tentasse tomar.

Ao mesmo tempo, os conflitos são resolvidos segundo os padrões violentos Vários armazéns foram saqueados, causando um prejuízo calculado em cer-
do coronelismo, em que a submissão é o valor mais importante e a rebeldia a ca de 100 mil cruzeiros: "A legião faminta e justamente revoltada com a situação
transgressão mais grave: "Enquanto os flagelados passam fome, dinheiro não de miséria que todos atravessam e com descaso generalizado do DNOCS, apro-
falta para manter grupos de capangas armados que rondam com rifles os barracos veitou o ensejo para se abastecer do que fosse possível".
dos operários e desfazem os grupos famintos a coices e coronhadas". O Dr. Sabóia, chefe da Comissão do Vale do Jaguaribe, responsável por to-
O padre ainda denuncia os rufiões "que exploram a inocência e candura de dos os serviços na região, prometeu para a parte da tarde apresentar uma solução
pobres mocinhas que servem nos acampamentos" e lamenta o "mar de lama, a para o problema, mas "se enfiou na boleia de uma caminhonete e tomou destino
podridão moral e social que essa gente vem derramando sobre o sertão". Conclui ignorado". Os próprios fornecedores "quiseram quebrar o avião" da Comissão
que "o DNOCS se constitui hoje a maior fábrica de corrupção que se tem notícia em represália à fuga do responsável, mas foram dissuadidos pelo Prefeito. O
nos anais da bandalheira do Brasil". jornalista conclui, revoltado: "o DNOCS rouba, mata gente de fome e institui no
O jornalista comenta que este "é um depoimento que faz arrepiar os cabe- sertão nordestino a maior escola de corrupção do século XX".89
los". Os flagelados "não têm mais para onde ir, nem para quem apelar", "chega- Curiosamente, ao lado das questões relativas à corrupção nos órgão de assis-
ram ao derradeiro aviltamento, atingiram a culminância da humilhação: ver suas tência social e às reações dos cassacos à sua desmobilização, esta reportagem
filhas seduzidas e maculadas, em troca de um prato de comida ou de um pedaço coloca em questão um tema importante para se pensar os movimentos da multi-
de chita para vestir, enquanto que as filhas dos industriais da seca passeiam, sor- dão. Segundo ela, os retirantes estavam num "momento de alucinação", mas, ao
ridentes, em automóveis de luxo". Por fim, lamenta que o Ministro Lúcio Meira mesmo tempo, manifestavam uma revolta "justificada". Assim, se, por um lado,
não tenha visto tudo isso: "é de estarrecer a nação!"8 não estavam de posse de suas faculdades de raciocínio e discernimento, por outro
A indignação moral demonstrada pelo jornalista com as informações do vi- lado, manipulavam o complexo conceito de Justiça para justificar sua ação. A
gário parece ser compartilhada por amplas parcelas dos responsáveis pelo noticiá- rebelião, embora matizada pela fome, não deixa de estar conectada a uma visão
rio nos jornais da capital. Ao mesmo tempo, parece descender diretamente da ira coletiva sobre o que é justo ou injusto para os homens pobres do campo. Assim,
de Rodolpho Theophilo contra os "seductores" que se aproveitavam da pobreza o "momento de alucinação" não significa uma perda total do entendimento das
para corromper as meninas pobres. Por permitirem a decadência moral de suas normas e valores que devem orientar a organização da sociedade e, especialmen-
filhas, as famílias famintas de retirantes acabam culpabilizadas por sua própria te, as relações com os pobres em momentos de escassez.
sorte, como se a manutenção da "honra virginal" pudesse, para os retirantes, num Esta visão contraditória desenvolve-se ao combinar elementos de uma dada
momento crítico de fome e desesperança, possuir um valor moral absoluto maior visão do campo político com uma solidariedade cristã para com os que sofrem. A

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

política representativa aparece nesta versão, de um lado, como impermeável a Contudo, uma tradição de ações da multidão ficou solidificada após este
ações coletivas/diretas e, de outro lado, como incompatível com a mera satisfa- período. Uma tradição que inspira temor e que exige ser respeitada nas negocia-
ção das necessidades vitais mais básicas que aproximam o homem dos animais. ções políticas e sociais que se estabelecem a partir de então. Tradição que é per-
Neste pântano em que se movem os conceitos modernos de política e de cidada- cebida como uma continuidade que trará consequências importantes, inevitáveis
nia e que a cultura organiza as diferenças - combinando noções e comportamen- e imprevisíveis para toda a sociedade e que deve merecer transformar-se em prio-
tos de matrizes distintas - é que a multidão procura legitimidade. E, legitimando- ridade para todos os governantes.
se nas próprias ações, ocupa deliberadamente o espaço público, despertando, ao
mesmo tempo, temor para com as ações movidas pelo desespero e solidariedade Os senhores deputados, que se acham em Fortaleza contando votos, que
para com os que se revoltam contra as injustiças da vida. corram para as suas cadeiras na Câmara Federal e clamem por socorro para
Enquanto isso, em Jaguaribe, cidade com 7.838 habitantes pelo censo de o nosso Estado. Digam ao Governo que cesse, se preciso, as construções de
1950, o Prefeito eleito nas recentes eleições telegrafa para os jornais informando Brasília e, se necessário, por medida de economia, faça voltar o Batalhão
que "acabam de chegar a esta cidade cinco mil flagelados que ameaçam invadi-la de Suez. Cesse todas as viagens de turismo e de passeio. Cesse tudo o que
com expectativa de saque". Parece que as expectativas se confirmaram: no dia a vaidade conta porque os vândalos da fome começaram a grande marcha.
Marcha para onde ninguém sabe. E, até onde vai, só a distância do inverno
seguinte, os jornais informam que "4 mil famintos saquearam o mercado de
Jaguaribe". Os retirantes "fizeram justiça com as próprias mãos, invadindo o o dirá.93
mercado e de lá retirando carne e géneros". O impacto da ação fez com que se
refletisse sobre as possibilidades de evitar ou reprimir esse tipo de ação coletiva
e violenta: "e o pior de tudo é que não se pode, em sã consciência, tomar qualquer Referências bibliográficas
medida de caráter repressivo contra esses movimentos, que são antes de tudo em
1 Cf., por exemplo, ARENDT, Hannah. Da Revolução. Op. Cit. pp. 172-224. Para uma realida-
defesa da própria existência".90 de brasileira recente, Cf. SADER, Eder. Quando Novos Personagens Entram em Cena. São
Com a chegada das chuvas em quantidade abundante e a possibilidade de Paulo: Companhia das Letras, 1986.
um bom "inverno", o DNOCS resolve, quase que imediatamente, suspender as 2 O Povo, 17 de março de 1951.
obras de emergência e dispensar os flagelados, para que estes possam dedicar-se 3 O Povo, 21 e 27 de março de 1951. A Prefeitura de Baturité sofre o mesmo tipo de ataque.
a preparar o plantio em suas terras. Muitos retirantes, de retorno a seus lares 4 O Povo, 24 de março de 1951.
desfeitos, "dizem adeus a barracão e pau-de-arara". Porém, muitos nem têm ter- 5 O Povo, 28 e 31 de março de 1951.
ras e a grande maioria sequer tem como manter-se até a próxima safra, o que 6 O Povo, 31 demarco, 02 e l O de abril de 1951.

desperta um novo motivo para revoltas e críticas ao DNOCS. Segundo o deputa- 10 Povo, 04 de abril, 28 de maio e 26 de novembro de 1951.

s Ata da 23a Sessão Ordinária da l" Sessão da 13" Legislatura da Assembleia Legislativa do
do Adail Barreto, "é crime abandoná-los à própria sorte", pois "logo que pude-
rem trabalhar na lavoura", os sertanejos "abandonarão espontaneamente o Estado do Ceará, 19 de abril de 1951.
9 O Povo, 25 e 29 de maio, 21 de junho de 1951.
DNOCS". Ao mesmo tempo, o fechamento das frentes de trabalho é o pretexto
10 O Povo, 09 de maio de 1951; Ata da 34a Sessão Ordinária da l' Sessão da 13" Legislatura da
para a última grande ação da multidão nesta seca. Em Alencar (um distrito do Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, 05 de maio de 1951.
município de Iguatu), "dois mil flagelados invadiram o escritório do DNOCS".
11 O Povo, 23 de maio de 1951.
Protestam contra as demissões e a grande reivindicação é justamente para conti- 12 O Democrata, 31 de agosto, 16 de outubro e 29 de novembro de 1951. Este era um jornal
nuarem recebendo a diária de Cr$ 40,00 enquanto iniciam o plantio. 91 ligado ao Partido Comunista no Ceará. A atitude do Deputado Perilo Teixeira contrasta com as
Depois disso, alguns telegramas imprecisos ainda chegam à Assembleia críticas que dispara da tribuna da Assembleia sobre "os modos de proceder dos dirigentes do
DNOCS contra os sertanejos empregados nos serviços de emergência". Ata da 169" Sessão
dando conta de "alterações da ordem pública" em Ipueiras, Campos Sales, Tauá, Ordinária da Ia Sessão da 13a Legislatura da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, 17
Cratot Quixeramobim e Brejo Santo. 92 No entanto, não há outras informações a de outubro de 1951.
respeito. 13 O Democrata, 05 e 23 de julho de 1951.

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

14 Nome popular do fornecimento, que lembra o armazém mantido pelos donos de terras em 4 0 COHN, Amélia. Crise Regional e Planejamento. Op. Cit. pp. 43-44.
suas propriedades, a que o morador frequentemente ficava preso por dfvidas. 41 Id. Ibidem. pp. 55-56.
15 FROTA, Luciara Silveira de Aragão e. Documentação Oral e a Temática das Secas. Op. 42 OLIVEIRA, Francisco de. Elegia para uma Re(li)gião. 4 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
Cit. p. 254. 1985. p. 54. Não é à toa que a sede do DNOCS foi transferida do Rio de Janeiro para Fortaleza
16 O Povo, 11 de janeiro de 1952. depois de um amplo processo de reivindicações por parte de políticos, jornalistas e empresári-
1 7 OPovo,31 de janeiro, 01, 06 e 19 de fevereiro de 1952. os locais. Cf, por exemplo, o editorial "O Deslocamento do DNOCS", em O Jornal, 05 de
agosto de 1958. Essa transferência também constituiu-se numas das teses aprovadas no "En-
18 CÂMARA, João. Almanaque do Ceará - 1953. Fortaleza: Typ. Royal, 1953. p. 21. contro de Salgueiro", em que deputados estaduais do Nordeste debateram os problemas relati-
19 O Povo, 13 e 20 de março, 14 de abril, 20 e 27 de junho, 07 de julho e 16 de setembro de vos à seca. Cf. Ata da 109" Sessão Ordinária da 4a Sessão da 14* Legislatura da Assembleia
1952. Legislativa do Estado do Ceará, 04 de agosto de 1958. Seguindo uma especial geografia do
2(1 Atas da 62a e 66° Sessões Ordinárias da 2' Sessão da 13a Legislatura da Assembleia Legislativa poder "regional", DNOCS e BNB ficaram nas mãos da "oligarquia algodoeiro-pecuária" (em
do Estado do Ceará, 10 e 16 de junho de 1952. Fortaleza), enquanto SUDENE e IAA ficaram sob controle da "burguesia agroindustrial" (em
Recife), segundo a terminologia de Francisco de Oliveira.
21 Atas da 50" e 151" Sessões Ordinárias da 2 a Sessão da 13 a Legislatura da Assembleia
Legislativa do Estado do Ceará, 26 de junho e 27 de setembro de 1952. 43 Cf. FURTADO, Celso. Dialética do Desenvolvimento. Rio de Janeiro: Ed. Fundo de Cultu-

22 O Povo, 23 de janeiro de 1953.


ra, 1964. p. 168. O relatório do GTDN, coordenado pelo próprio Celso Furtado no final da
década de 50, afirmava: "Analisando-se os efeitos da seca nas três camadas da economia das
23 O Povo, 05, 11, 14, 16, 18, 19,20,21 e 23 de fevereiro de 1953. zonas semi-áridas - a de agricultura de subsistência, a do algodão mocó e a da criação - .vemos
24 O Povo, 02, 05, 17, 23 e 27 de março de 1953. que a gravidade do fenómeno e seu prolongamento em crise social se devem ao fato de seus
25 O Povo, 01, 04, 08, 10 e 14 de abril de 1953.
efeitos incidirem de forma concentrada na primeira das referidas camadas". GTDN (Grupo de
Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste). Uma Política de Desenvolvimento Económi-
26CÂMARA, João. Almanaque do Ceará - 1954. Fortaleza: Typ. Royal, 1954. p. 20. co para o Nordeste. 1 ed. Recife: SUDENE, 1967. p. 65.
27FROTA, Luciara Silveira de Aragão e. Documentação Oral>e a Temática das Secas. Op. 44 Cf. WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Op. Cit. p. 91.
Cit. p. 228.
45 NEVES, Frederico de Castro. "Imagens do Nordeste." In: Id. (org.) Nordeste: Identidade,
2!< O Democrata, 28 de agosto e 13 de setembro de 1953. Imagens e Literatura. Fortaleza: UFC/NUDOC (Cadernos do NUDOC, Série História, n° 17),
29 O Democrata, 19, 22 e 23 de dezembro de 1953. O apoio entusiástico deste jornal - o único 1996. p. 22. Cf. FREYRE, Gilberto. Manifesto Regionalista. Op. Cit.
que registrou a conferência - leva à conclusão de que foram os comunistas que tomaram a 46 Cf. ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. "As Malvadezas da Identidade." In: NEVES,
iniciativa e assumiram a direção deste evento. Frederico de Castro, (org.) Nordeste: Identidade, Imagens e Literatura. Op. Cit. pp. 11-18.
30 ESTADO DO CEARÁ. Mensagem Apresentada à Assembleia Legislativa em 15 de março 47 COHN, Amélia. Crise Regional e Planejamento. Op. Cit. p. 64.
de 1953 pelo Governador Raul Barbosa. Fortaleza: Imprensa Oficial, 1953..p. 297.
411 /
Encontro de Bispos do Nordeste, Campina Grande - maio de 1956. Rio de Janeiro: Presi-
11 GIRÃO, Raimundo. Pequena História do Ceará. Op. Cit. p. 258.
dência da República, 1960. pp. 47-48. O encontro teve amplo apoio por parte do governo
32 SOBRINHO, Tomás Pompeu. História das Secas (século XX). Op. Cit. p, 20. Para este federal.
autor, somente em um aspecto "não tem agido a seca.como fator negativo apreciável": as 49 ANDRADE, Manuel Correia de. A Terra e o Homem no Nordeste. Op. Cit. p. 225.
manifestações artísticas. "Em certos casos", ele avalia, "até se houve como verdadeiro estimu-
lante (romances, poesias, etc)." 50 Cf. CAMARGO, Aspásia. "A Questão Agrária: crise de poder e reformas de base (1930-
1964)." In: FAUSTO, Bons. (org.) História Geral da Civilização Brasileira. Tomo III: O Brasil
33 Id. Ibidem. pp. 54-56.
Republicano. 3° Vol.: Sociedade e Política. 5 ed. São Paulo: Bertrand Brasil, 1991. p. 147.
34 WILLIAMS, Raymond. O Campo e a Cidade na História e na Literatura. Op. Cit. p. 11. 51 FERREIRA, Jorge L. "José e os Sírios: Opressão Social e Cultura Política Camponesa."
35 GIRÃO, Raimundo. Pequena Historiado Ceará. Op. Cit. pp. 258-259. Revista Brasileira de História, São Paulo: ANPUH/Marco Zero, v. 11, n° 22, mar. 91/ago. 91.
36 Cf. ANDRADE, Manuel Correia de. A Terra e o Homem no Nordeste. Op. Cit. pp. 194-204; p. 176.
COHN, Amélia. Crise Regional e Planejamento. 1 ed. São Paulo: Perspectiva, 1978. pp. 31- 52 COHN, Amélia. Crise Regional e Planejamento. Op. Cit. p. 68-69.
56; CARVALHO, Inaiá M" M. de. O Nordeste e o Regime Autoritário. São Paulo: Hucitec/
SUDENE, 1987. pp. 43-82. 53 W. Ibidem. p. 103.
54 FROTA, Luciara Silveira de Aragão e. Documentação Oral e a Temática das Secas. Op. Cit.
37 GIRÃO, Raimundo. Pequena História do Ceará. Op. Cit. p. 259.
p. 259.
38ESTADO DO CEARÁ. Mensagem Apresentada à Assembleia Legislativa em 15 de março 55 CÂMARA, João. Almanaque do Ceará - 1959. Fortaleza: Typ. Royal, 1959. p. 27; O Povo,
de 1953 pelo Governador Raul Barbosa. Op. Cit. pp. 8 e 58. 10, 12, 17 e 26 de março, 02,08, 11 e 14de abril de 1958; O Democraía, 08 de março e08 de
39 ANDRADE, Manuel Correia de. A Terra e o Homem no Nordeste. Op. Cit. pp. 168-169 e 194. abril de 1958. Em 1950, a cidade de Iguatu tinha 19.589 habitantes e o município 41.922.

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

56O Povo, 12 e 18 de março, 16 de abril de 1958; O Democrata, 13 de março de 1958. A 79 O Democrata, 12 de setembro de 1958.
população total do município de Icó chegava a 35.097 pessoas em 1950. 80 CÂMARA, João. Almanaque do Ceará - 1959. Op. Cit. p. 62.
57 O Povo, 21 e 26 de março de 1958. 81 O Jornal, 21 de outubro de 1958.
58 O Povo, 21, 24 e 26 de março, 03 e 08 de abril de 1958; O Democrata, 01, 02 e 04 de abril 82 O Jornal, 16 de outubro de 1958.
de 1958. Cf. relato na Introdução.
113 O Jornal, 20 de outubro de 1958. Note-se como são destacados a piedade e o envolvimento
59 O Povo, 22 de abril de 1958. pessoal dos proprietários no relacionamento com os retirantes, mesmo que numa atmosfera de
6(1 RUDE, George. A Multidão na História. Estudo dos Movimentos Populares na França e na conflito e transgressão de normas tidas como "naturais".
Inglaterra, 1730-1848. Rio de Janeiro: Campus, 1991. p. 211. 84 O Povo, 20 e 31 de outubro de 1958; O Jornal, 24 de outubro de 1958.
61 RIBEIRO, Francisco Moreira. "De Cidade à Metrópole (1945 a 1992)." In: SOUZA, Simo- 85 Ata da 163" Sessão Ordinária da 4a Sessão da 14' Legislatura da Assembleia Legislativa do
ne de. et. alli. Fortaleza: A Gestão da Cidade. Uma história político-administrativa. Fortale- Estado do Ceará, 28 de outubro de 1958 (sublinhado no original); O Jornal, 29 de outubro de
za: Fundação Cultural de Fortaleza, 1994. p. 73. 1958.
62 JUCÁ, Gizafran N. M. O Lazer em Fortaleza (1945-1960). Fortaleza: UFC/NUDOC (Ca-
86 O Povo, 2 1 , 27 e 28 de novembro de 1 958.
dernos do NUDOC, Série História n" 18), 1996. pp. 14-23.
87 O Povo, 05 de dezembro de 1958; O Jornal, 02 de dezembro de 1958.
63 Sempre do passado! Não foi estabelecida, a partir das fontes disponíveis, nenhuma conexão
com projetos ou programas para o futuro que pudessem ser associados a expressões como *" O Povo, 03 de janeiro de 1959.
socialismo ou comunismo. A utopia das multidões revoltadas parece ser um governo dos "ri- 89 O Povo, 09 de janeiro de 1959; CÂMARA, João. Almanaque do Ceará - 1960-61. Fortale-

cos piedosos", em que a proteção aos pobres seria rápida e abundante em momentos de crise. za: Typ. Royal, 1961. p. 18.
64 O Povo, 08 de abril de 1958. 90 O Povo, 16de janeiro de \959; O Jornal, I7e 18 de janeiro de 1959.

<* O Povo, l O de abril de 1958. 91 O Jornal, 29 de janeiro de 1959; O Povo, 28 de janeiro de 1959.

66 O Povo, 11 de abril de 1958. A sede do município de Jaguaribe tinha 7.838 habitantes em 92 Ata da 50a Sessão Ordinária da l* Sessão da 15a Legislatura da Assembleia Legislativa do

1950. Estado do Ceará, 22 de maio de 1959.


67 O Democrata, 19 de abril de 1958; O Povo, 23 de abril de 1958. Pelo censo de 1950, na 93 O Jornal, 20 de outubro de 1958. (grifos meus)

cidade de Boa Viagem habitavam 14.273 pessoas.


68 As chuvas deveriam ter se iniciado nos últimos meses do ano anterior e o mês de março é
considerado pelos sertanejos como a última e definitiva chance de inverno. Nestes meses (março
e abril) se concentraram cerca de 70% das ações da multidão no ano de 1958. Cf. Tabela I.
69 Cf. várias edições de O Povo e O Democrata. Em Marco, cerca de 200 retirantes "armados
com cacetes" não se contentaram com as medidas usuais tomadas pelo administrador local. O
jornal assinala, como curiosidade, que "uma anciã de 110 anos de idade encontrava-se entre os
flagelados". O Povo, 24 e 25 de março de 1958.
70 Cf. FROTA, Luciara Silveira de Aragão e. Documentação Oral e a Temática das Secas. Op.
Cit. p. 256.
71Cf. COHN, Amélia. Crise Regional e Planejamento. Op. Cit. pp. 68-71 e 90-92; e CALLADO,
António. Os Industriais da Seca e os "Galileus" de Pernambuco. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1960. p. 57.
72 Ata da 41 a Sessão Ordinária da 4a Sessão da 14a Legislatura da Assembleia Legislativa do
Estado do Ceará, 14 de maio de 1958.
73 CÂMARA, João. Almanaque do Ceará -1959. Op. Cit. p. 31; O Povo, 17 de maio de 1958.
74 CÂMARA, João. Almanaque do Ceará - 1959. Op. Cit. p. 30.
75 O Povo, l O de abril de 1958.
76 O Jornal, 03, 06 e 07 de setembro de 1958.
77 O Jornal, 07 de agosto e 02 de setembro de 1958.
78 O Povo, 06 de agosto de 1958.

196
.

CAPITULO VI

I. A Negociação

Na década de 1950, como já se pôde observar, o padrão de negociação entre


os retirantes amotinados e as autoridades urbanas se diferenciou significativa-
mente daquele observado durante o Estado Novo. Naquele período, além do
centralismo característico, fatores importantes demandaram a atenção das autori-
dades responsáveis pela negociação - a Revolução Constitucionalista de São Paulo,
em 1932, e o esforço de guerra brasileiro na II Guerra Mundial, em 1942. Assim,
as medidas tidas como necessárias foram tomadas rapidamente, inibindo um avan-
ço das ações da multidão que poderia ser visto .como uma ameaça à ordem
estabelecida.
No entanto, a volta.de uma política representativa liberal, após a "redemo-
cratização" de 1945, tornou esta negociação mais dinâmica e localizada.
De um lado, as medidas eram tomadas levando-se em conta, sempre, os inte-
resses político-eleitorais das lideranças locais, que procuravam manter sob seu es-
trito controle tanto os canais de reivindicação como o alistamento de trabalhadores
e até mesmo o andamento da obra, interferindo não só na política de concessão de
benefícios mas igualmente na qualidade e viabilidade técnica das construções.
De outro lado, cedo os retirantes perceberam que a pressão permanente seria
a melhor arma para,ampliar as medidas de assistência e os socorros. Assim, uma
proliferação de ações da multidão foi se ampliando para todas as áreas do estado,
espalhando o medo e incorporando todas as zonas urbanas ao palco da seca, onde
se desenrolam cenas impactantes que, normalmente, a sensibilidade urbana evita
assistir. Aliás, a exposição destas cenas iria tornar-se um novo e poderoso meca-
nismo de pressão.
" No meio deste conflito constante, permaneciam pairando nas instituições e
nas iniciativas particulares um sentimento de solidariedade para com as vítimas

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

da seca, que fazia com que cidadãos organizassem campanhas, recebessem dona- Apesar disso, as fontes para este período enfatizam muito mais o conteúdo
tivos ou procurassem dar um sentido mais humanitário às medidas de controle da político das medidas de emergência. Estavam todos muito mais preocupados em
população retirante. É possível - e mesmo provável - que muitos dos chefes ou criar uma ocupação para que os retirantes não ameacem ou ataquem as cidades,
encarregados de obras ou alistamentos estivessem movidos pela caridade e pro- do que em estabelecer uma pedagogia do trabalho que acabe com o ócio periódi-
curassem conferir à sua ação um caráter de verdadeiro auxílio ao próximo. Uma co. Os retirantes, assim, eram vistos como perigosos à ordem pública mais por
linha de continuidade pode ser traçada desde a ação higienista de Rodolpho sua potencialidade de revolta do que por uma agressão aos valores burgueses de
Theophilo - que passa pelas campanhas de senhoras de Fortaleza, ou em 1915, glorificação do trabalho.
na ajuda humanitária aos concentrados no Alagadiço, ou em 1932 e 1942, com a Portanto, desde a primeira sessão do período legislativo de 1951, em março,
organização das campanhas lideradas pelas Irmãs Marianas, ou até mesmo pela quando a primeira seca da década já se manifestava, a Assembleia tornou-se um
ação rápida e eficaz do Ministro José Américo de Almeida em 1932 - até as palanque para as reivindicações de prefeitos e deputados, quase sempre girando
campanhas de solidariedade da década de 1950, como a organizada pelo compo- em torno de obras, alistamentos, denúncias etc. Os telegramas e os abaixo-assi-
sitor Humberto Teixeira, intitulada "Ajude teu irmão", visando a "angariar e dis- nados são quase diariamente lidos pelos parlamentares, que procuram influenciar
tribuir donativos às populações flageladas do Nordeste" e que teve o apoio do a direção dos serviços responsáveis - especialmente DNOCS e Secretaria de
jornalista Carlos Lacerda, ou a que foi dirigida por jornais de São Paulo, que Agricultura - para que suas bases eleitorais sejam atendidas. São telegramas que
"colocaram à disposição do Arcebispo do Ceará a importância de Cr$ 500.000,00 inevitavelmente "pedem providências", ou seja, a construção de estradas e açu-
angariada em subscrição pública e destinada a minorar os sofrimentos das víti- des no município em questão. Os prefeitos, deputados e outras lideranças locais
mas da seca".'
que apresentam propostas na Assembleia, ao fazê-lo, já sabem de antemão as
Isso, porém, não impede que se possa analisar este relacionamento entre soluções disponíveis e procuram trazer para os seus locais as verbas federais de
retirantes e autoridades como uma negociação que coloca em posições contrárias emergência e os programas que beneficiam os produtores rurais e mantêm a mão-
uma tentativa de retomada de uma ordem paternalista perdida (ou em crise) e de-obra rural em seu município.
uma tentativa de controle da mobilidade e revolta da população rural em tempos O tema da seca e das medidas de controle da população rural, no entanto,
de seca. É claro que esta ideia de "controle social" deve ser vista como uma não é exclusivo nos debates da assembleia, pois os parlamentares enfrentam ou-
intenção e não como uma operação efeti vá, com o que se evita a possibilidade de tras questões políticas do estado. Assim, nem sempre é um tema a dominar com-
tomar as representações construídas pelas autoridades e por outros agentes da pletamente os debates parlamentares. Em 1952 e 1953, por exemplo, "competiu"
informação como retratos fiéis da realidade. Por outro lado, o "controle social" com outro assunto polémico, que muitas vezes monopolizou a atenção dos depu-
só ganha sentido em sua relação com os movimentos que se contrapõem à sua tados: o jogo do bicho.3 Já em 1958, apesar da sequência crescente de ações da
imposição. A dialética disciplina versus resistência pode, assim, ser examinada multidão por todo o estado, as atenções se voltavam muito mais para o processo
em sua dinâmica própria, lembrando sempre que "nunca um sistema disciplinar eleitoral em curso, especialmente no segundo semestre.
chegou a se realizar completamente", pois, "feito para triunfar sobre uma resis- No entanto, nem só através de pedidos de obras os deputados procuravam
tência, ele suscita imediatamente uma outra".2 intervir na questão da seca. Suas propostas visavam igualmente a preservar cer-
As "obras", assim, expressavam uma forma de atendimento às reivindi- tos direitos habituais que o livre jogo do mercado anula ou compromete. Logo no
cações dos retirantes que não quebrava nem com o padrão costumeiro (pater- início da seca de 1951, o deputado Péricles Moreira pede à Federação das Asso-
nalista) de socorro aos pobres, nem com a ética do trabalho que se procurava ciações do Comércio e Indústria do Ceará (FÁCIL) que seus associados "limitem
impor continuamente pelo Estado - especialmente no pós-30 - e pela "opi- o seu lucro sobre os géneros de primeira necessidade destinados aos flagelados".
nião pública" controlada por setores urbanos, comerciantes e industriais. Si- O deputado Edival Távora, ainda em 51, "apela aos poderes competentes, em
tuavam-se na interface destes dois modelos de relacionamento com os pobres nome do povo, para que não permita o aumento dos géneros de primeira necessi-
e constituíam-se em mecanismos eficazes de sustentação de uma ordem polí- dade, especialmente o pão"; no mês seguinte, o mesmo parlamentar critica o
tica ambígua.
governo por permitir a saída de "géneros reservados aos flagelados através da

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

fronteira cearense" e ainda pede a restauração da Comissão Estadual de Preços. colocados em fila para receber uma senha e/ou um saco de comida para matar a
O deputado Guilherme Gouvêa consegue aprovar uma medida em que "os géne- fome. Ao mesmo tempo em que livravam a cidade de uma ação violenta que põe
ros de primeira necessidade são excluídos do imposto de vendas e consigna- em risco as bases da ordem social fundada no respeito à propriedade, reforçavam
ções".4 as medidas de socorro aos retirantes com as quais podiam barganhar sua posição
Até mesmo ao nível municipal esta campanha de reivindicação por obras no comando político da cidade. Conseguiam, assim, reverter uma ação transgres-
empolgava as atividades parlamentares. Em Iguatu, o vereador Matias Lavor re- sora, transformando-a em um momento teatral de deferência aos chefes que reco-
clama a construção do açude Carnaúba, "obra esta que virá servir grande número nhecem os "direitos" que os agricultores têm à vida e à proteção em tempos de
de moradores do Distrito de Alencar, que, sem referido serviço, forçosamente crise. Este "teatro", como já assinalou Thompson, é parte constitutiva das rela-
retirar-se-ão em busca de outras construções".5 ções de poder que se estabelecem em bases pessoais e em laços de mutualidade.
Na seca de 1958, o deputado Gomes de Freitas pede que o governo proíba a Assim, mesmo que as autoridades o vejam como o momento de sua afirmação, de
"exportação dos sub-produtos de algodão e trigo, a fim de que a pecuária de seu poder e de sua incontestável liderança, os retirantes podem vê-lo como o
nosso Estado possa ser amparada nos momentos de maior necessidade". O depu- "contra-teatro" de uma conquista através da rebelião, ou da retificação de uma
tado Expedito Machado solicita prioridade para transporte de géneros destinados falta ou de uma injustiça. 8
ao Ceará.6 Por outro lado, a imprensa reforça esta permanente reivindicação por obras
Como em outras circunstâncias já anotadas, procurava-se intervir no mercado para impedir a mobilidade e/ou a agressividade dos retirantes.
de alimentos - além do mercado de trabalho com as frentes de serviço - para que o Após observar que a cidade de Iguatu estava "repleta de flagelados" em
fluxo de mercadorias, determinado pelas leis de oferta e demanda, não deixasse o março de 1951, o repórter ainda conclama em termos gerais: "exigimos prontas
estado completamente desprovido de abastecimento, aumentando as condições para providências do^órgãos governamentais". Em maio, com Crateús invadida por
a revolta e a rebelião. No momento da crise, as condições normais de funcionamen- mil flagelados, a reportagem já é mais específica: "urge sejam ordenados imedia-
to do mercado deveriam se subordinar a interesses "maiores", ou seja, a defesa da tamente ataques aos serviços federais aqui". Mas o' tom geral nesta seca ainda é
vida de famílias em perigo. Porém, outros interesses "menores" igualmente pode- generalizante. Em Acaraú, o correspondente clama "por providências imediatas
riam motivar as demandas por modificações dos fluxos do mercado. por parte do Governo". Depois de sofrer a ameaça de saque por trezentos retiran-
A intervenção estatal no momento da seca, como já se viu, cria condições tes, o Prefeito de Camocim afirma que o Governo "deve oferecer serviços aos
para o beneficiamento das propriedades particulares através do pagamento dos flagelados locais". Em Santanópolis, "é urgente que o governo adote as medidas
salários e através da construção de uma infra-estrutura de açudes e estradas, va- reclamadas pela situação". Ao final da seca, porém, as reivindicações já são mais
lorizando as terras e, contrariando suas intenções explícitas, possibilitando uma específicas. O Prefeito de Santanópolis reclama a construção do açude "Latão".
expansão da grande propriedade rural pouco produtiva, o latifúndio. Logo, mui- Em Itapagé, "as últimas esperanças do povo se voltam para a construção do açu-
tos dos pedidos por obras e alistamentos guardavam intenções inconfessáveis de Souza Lima". Signatários de um telegrama chegado de Boa Viagem reclamam
que nem sempre a imprensa local soube investigar. A Comissão de Abastecimen- a "construção da rodovia Nova Russas-Monsenhor Tabosa, a qual servirá de
to do Nordeste (CAN), por outro lado, após uma apreensão de géneros distribuí- amparo a centenas de famílias dos municípios circunvizinhos". Já em Itapipoca,
dos pelo órgão sendo vendidos em casas comerciais, é frequentemente acusada a opção é pela "rodovia Itapipoca-Assunção, cujos trabalhos não foram inicia-
de "ser um meio do qual se servem os açambarcadores para controle dos géneros dos". Na cidade de Crato, já estão em andamento "estudos de obras de emergên-
de primeira necessidade".7 cia destinadas a dar emprego ao maior número possível de pessoas, inclusive a
De qualquer maneira, o alistamento e a distribuição de alimentos eram mo- construção do açude 'Miranda Mata'". Em Jaguaribe, o Prefeito espera que as
mentos em que se renovava um laço entre as lideranças locais e os lavradores que obras de "revestimento do campo de aviação" da cidade evitem "a invasão e a
viviam nos "sítios", longe das rápidas e fugazes notícias urbanas. A ameaça de depredação que estão prestes a se consumar". O Prefeito de Iguatu, desta vez,
invasão e saque, as autoridades respondiam com um ritual de glorificação do encaminha a reivindicação junto com a denúncia, demandando a "construção da
paternalismo, em que centenas e às vezes milhares de homens do campo eram rodagem Canto-Cedro".9
FREDERICO DE CASTRO NEVES
l A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

Na seca de 1958, desde o início, a demanda geral é por obras específicas mente, a malha viária do estado foi amplamente desenvolvida, mais uma vez,
(açudes e estradas) e não simplesmente por "providências urgentes" ou "servi- com o trabalho dos retirantes. A "era do automóvel", tão exaltada por Raimundo
ços federais". O Prefeito de Senador Pompeu queixa-se de que "nenhuma obra Girão, tinha, assim, uma dívida para com o tabaréu transformado em cassaco,
pública está sendo executada no município" e listas as suas principais suges- que empenhou seu máximo esforço nas frentes de trabalho em que se engajou,
tões: "rodovia Senador Pompeu-Quixeramobim, campo de pouso, rodovia Se- sob condições nem sempre aceitáveis - sem instrumentos de trabalho, sem ali-
nador Pompeu-Acopiara (passando por Piquet Carneiro), açude Patu e ponte mentação adequada, baixos salários etc, nem muito menos sob a proteção das leis
sobre o rio Banabuiú". Em Marco, após a multidão ter invadido a residência do trabalhistas.
Prefeito, a reportagem sugere que o governo invista na rodovia Marco-Granja As ações dos retirantes amotinados faziam com que as lideranças nacionais
ou no açude Canoas. Já o "povo" de Uruburetama, "palco de invasão de 500 se deslocassem até as áreas "críticas" para, pessoalmente, reafirmarem o poder
homens famintos", "apela para o magnânimo espírito de justiça do excelen- de empregar os recursos do Estado em prol de suas bases ou das bases de seus
tíssimo senhor Presidente da República, para que autorize a construção do correligionários políticos. Em 1951, a primeira dama D. Darci Vargas vem inspe-
açude Mundau'. O vigário de Maracanaú, ao saber que o município iria ser cionar os serviços da Legião Brasileira de Assistência; e, dois anos depois, o
excluído do plano de emergência, ameaçou: "queremos trabalho ou daremos Ministro da Agricultura, Sr. João Cleofas, pessoalmente "vem percorrendo vários
trabalho". O Prefeito de Guaraciaba do Norte "acha que a situação estará Estados do Nordeste assolados pela seca, prometendo tomar medidas tendentes a
resolvida se forem atacados os seguintes serviços: construção da estrada Ara- minorar os sofrimentos das populações". Em 1958, foi a vez do próprio Presiden-
ras-Lontras, passando em Reriutaba e Guaraciaba; construção da rodovia São te Juscelino Kubitschek, com sua comitiva de "jornalistas e cinegrafistas ofi-
Benedito-Ipu; construção do posto médico em Guaraciaba, cujo terreno já ciais", vistoriar as obras em andamento na região e "verificar in loco a situação
está doado".10 de nossa gente flagelada pela seca".'-*
Em Maranguape, 400 retirantes invadiram o centro da cidade, "deixando a Ao mesmo tempo, por algumas vezes, os termos da negociação entre autori-
população em sobressalto". Graças à "habilidade das autoridades e comercian- dades e retirantes ficam claramente expressos na informação. Depois de uma
tes, o Mercado Público não foi invadido e saqueado". invasão e saque em Camocim, em 1953, afirma-se que "diante dessas ocorrên-
cias o governo vem tomando providências, isto é, prometendo atacar diversos
À frente da contra-invasão se encontra o Prefeito, que com outras pessoas, serviços programados que ficam burocraticamente encalhados nas repartições
membros das classes produtoras, conseguiram alguma alimentação, que competentes". Após o assalto à sua residência, em 1958, o Prefeito de Marco,
satisfez durante o tempo em que entrou em contacto com o Governador. "assim pressionado, cria um serviço de emergência". No ano seguinte,
Prontamente, o governo atendeu o pedido e prometeu trabalho para todos,
nas obras em Campos Belos."
diante da ameaça de assaltos ao comércio das cidades do Cariri, por ondas
de flagelados e trabalhadores das obras de socorro em virtude da falta de
Em Bela Cruz, a demanda é pela construção do Ramal rodoviário. Para pagamento cujo atraso já é de vários meses, foi determinado pelo governo
Camocim interessa a estrada de rodagem Camocim-Granja. Para Quixeramobim, sejam atendidas as reivindicações não só dos trabalhadores como dos for-
o açude Mondubim. Para Assaré "a ligação rodoviária Taboleiro-Crato ou a cons- necedores.14
trução do açude Boqueirãozinho". O Ginásio de Iguatu foi reformado graças ao
trabalho dos retirantes empregados pelo DAER. Em Ibiapina, o Prefeito já está As interdependências entre facções políticas e obras de emergência igual-
"fazendo o alistamento do povo que vai trabalhar na construção da rodagem Sobral- mente geravam conflitos que eram resolvidos das maneiras mais criativas. A
Guaraciaba, via Reriutaba". 12 maioria dos serviços era dirigida para os municípios onde a presença dos partidos
Enfim, as obras são reivindicadas a partir dos interesses das lideranças polí- governistas era mais forte. No início da década de 1950, o domínio do PSD na
ticas locais e, por vezes, parecem refletir uma demanda anterior, que a situação política estadual se baseava no controle dos cargos e das verbas destinadas às
excepcional da seca propiciou uma retomada. A estrutura urbana e, principal- obras de combate às secas. As bases da UDN, principal partido de oposição,

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

portanto, eram preteridas na partilha dos recursos e das medidas emergenciais O coronel, no entanto, mais envolvido nas tramas da esfera pública, reco-
disponíveis. Em Santanópolis, por exemplo, no sul do Estado, "sendo reduto nhecia a importância da compaixão, mas sabia que a obrigação política de assistir
udenista, não houve nenhuma obra de emergência": "temeroso de saque ao co- aos flagelados da seca era do Estado, a quem ele, como liderança local, poderia
mércio, o prefeito municipal despachou os flagelados em caminhão para Assaré, recorrer em casos de necessidade. Assim, quando sua esposa insistia em distri-
onde havia serviços em andamento". 15 Os conflitos decorrentes da presença dos buir alimentos para os retirantes, ele reclamava:
retirantes na cidade eram, portanto, igualmente despachados para outro municí-
pio, onde a negociação poderia ter um fim mais favorável à manutenção da or- - Biluca, assim não é possível, temos prejuízos todos os dias e você ainda
dem e onde o ónus do possível fracasso recairia sobre as costas de adversários dando tudo a esse povo, não somos governo não.
políticos.
Por fim, neste momento de consolidação de uma tradição de movimentos da A esposa retrucava:
multidão em períodos de secas, já está completamente consolidada a visão de que
é o Estado quem tem a obrigação de assistir e proteger os pobres. Assim, os - É preciso fazer a caridade, Pídio, essa gente anda morrendo de fome. Será
proprietários privados já não têm qualquer dever de proteção direta, embora man- possível que você não tenha compaixão?
tenham os benefícios políticos decorrentes dessa assistência.
O coronel acabava rendendo-se menos aos argumentos do que à insistência
A assistência aos retirantes, desta forma, ou é exercida por iniciativas priva-
da esposa, que "procurava naqueles rasgos de caridade aliviar um pouco, ainda
das - que podem partir de pessoas ou instituições - ou é exercida pelo Estado,
que por breve instante, o sofrimento alheio e ficar em paz com sua própria cons-
que possui, aliás, o dever de fazê-lo. Saindo da esfera privada das relações de
mutualidade, contudo, a proteção aos pobres em tempos de seca permanece presa ciência".
ao controle pessoal sobre os organismos estatais, exercido pelos mesmos proprie- - Compaixão eu tenho, mas assim não há quem aguente!
tários, mas agora dividindo esse controle com políticos profissionais, técnicos
governamentais, funcionários de repartições federais, partidos e outras categorias A caridade, segundo entende o coronel Elpídio, é exercida no âmbito
sociais. Este controle privado da esfera pública garante uma certa linha de conti- privado das iniciativas, das possibilidades e das vontades de cada um. Quan-
nuidade nas relações de poder no semi-árido, que, mesmo transformando-se con- do as necessidades coletivas ultrapassam esses limites, a tarefa deve ser re-
forme o processo de mudanças sociais do pós-guerra, permanece atada às lide- metida para a esfera pública do Estado, onde essa obrigação é de certa forma
ranças locais e seus mecanismos de formação de clientela. Os coronéis, assim,
socializada.
mesmo que desalojados do centro desta rede patrimonialista de interdependên- Assim, o dever de proteção, típico do paternalismo, é remetido para a esfera
cias, mantêm um lugar privilegiado que os permite permanecer por muitos anos de atuação do Estado, que, por sua vez, é dominada pelos próprios proprietários
ainda na cena política do sertão. e seus representantes políticos. Os tentáculos do paternalismo, portanto, se infiltram
O romance Os cassacos, de Luciano Barreira, pode oferecer alguns indícios no aparato estatal e perdem visibilidade, já que este é um campo onde os interes-
preciosos na análise desta questão. Na crise que sobrevem com a seca, sobressa- ses públicos e impessoais deveriam se sobrepor aos interesses privados e às rela-
íam as diferenças entre o coronel Elpídio e sua esposa, D. Biluca, no tratamento ções personalizadas.
dispensado aos retirantes que cruzavam as terras da família. 16 A visão deste personagem da ficção combina-se com o estilo de redação dos
D. Biluca - para quem "de nada vale a alguém se dizer católica, para negar artigos de jornais e outras fontes disponíveis para a década de 1950, que são
um pedaço de pão a quem tem fome, ou um copo d'água a quem tem sede, pois praticamente unânimes em afirmar a obrigação do Estado, ou do "governo", em
esse princípio do evangelho encerra um belo e humano ensinamento de renúncia assistir e socorrer os retirantes, atendendo às reivindicações dos líderes locais.
e de fraternidade" - procurava atender às pessoas que necessitavam, com o espí- Os donos de fazendas, ao contrário, também são enquadrados como vítimas da
rito de uma solidariedade cristã que muitas vezes sacrificava seus próprios bens seca, já que perdem grande parte do rebanho, da sua produção e de "sua" mão-
em função da caridade. de-obra, que é dispensada para procurar subsistência por conta própria. O pró-

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

prio coronel Elpídio, "vendo frustradas as esperanças de chuvas, suspendeu os As "obras", assim, como já foi visto, atendiam a essa situação de conflito e
serviços da fazenda, conservando apenas dois homens para ajudar Manuel no estabeleciam uma ponte entre interesses políticos de manutenção da ordem e
trato do gado, serviço que a cada dia ia se tornando mais pesado". Assim como interesses económicos de valorização das propriedades.
Chico Bento e Fabiano, que em outras secas fizeram o mesmo, os trabalhadores - Os açudes, sob responsabilidade do DNOCS, eram construídos "em coope-
vaqueiros e moradores - das propriedades do coronel foram dispensados para ração" entre o governo e os proprietários, cabendo a estes apenas a concessão
procurar vaga "nas obras do açude Banabuiú ou na construção da estrada do dos trabalhadores e ao governo o pagamento de salários e organização da obra.
Piranji". Ao final, as propriedades ficavam amplamente beneficiadas por um sistema de
Ao mesmo tempo, combina-se com uma visão popular que, segundo açudagem - poderia transformar-se em irrigação conforme os interesses do dono
Rodolpho Theophilo, remonta à seca de 1877, quando os retirantes subtraíam das terras - que propiciava, além da valorização monetária com relação ao valor
géneros destinados aos abarracamentos, convencidos de que "tudo era do Rei e da terra, uma nova e poderosa fonte de barganha política para o coronel. Isso
por consequência lhes pertencia". Ao mesmo tempo, ao final da seca, em 1880, porque, com as propriedades mais beneficiadas, ela passava a absorver um maior
não acreditavam que o governo tinha suspendido os socorros, afirmando que "o número de moradores, que significavam votos; além disso, a valorização das
Rei era muito rico e não deixava morrer de fome a sua pobreza".17 Mesmo mais terras implicava maior possibilidade de acesso a empréstimos bancários e, prin-
recentemente, esta visão parece combinar-se com a perspectiva de que os ali- cipalmente após a criação da SUDENE, a benefícios estatais em financiamento
mentos pertencentes ao governo poderiam ser objeto de "furto" ou saque, depen- de projetos. Em 1952, o governo estadual construiu, "em cooperação" com Pre-
dendo da situação. O saque, assim, assume um caráter de punição ao mau feituras do interior e com particulares, 145 açudes, utilizando verbas orçamenta-
governante, que não distribui ou que acumula irregularmente aquilo que pertence rias próprias e verbas especiais de emergência; destes, 142 foram construídos em
a todos. Os pobres, cada vez mais, "reivindicam direitos sociais de acesso a re- propriedades privadas e apenas 3 em áreas públicas.20
cursos (no caso os alimentos) que a eles pertenciam, posto que acumulados e As estradas eram construídas pelo DAER, que estabelecia as condições de
retidos pelo Estado".18 D. Luzia, retirante em todas as secas de 1932 a 1970, trabalho, a divisão de tarefas e a organização das turmas. Cortando as áreas secas
procura justificar um saque com a pergunta capciosa e insinuante: "e não era do do sertão, as novas vias de transporte possibilitavam maior rapidez de comunica-
governo?" ção entre as cidades, entre os mercados; pessoas e mercadorias circulavam com
Ao mesmo tempo, desde a seca de 1951-1953, "já se acentuara, quanto aos maior presteza e qualidade. Assim, como a estrada de ferro de Baturité, que faci-
flagelados, urna certa compreensão de ser o Estado obrigado a assisti-los".19 A litou a vida dos retirantes no início do século, as novas estradas de rodagem
passagem da assistência pessoal e direta das relações mútuas do paternalismo permitiam a passagem dos caminhões "pau-de-arara" que transportavam famílias
clássico já haviam sido inteiramente substituídas pela assistência oficial, garanti- inteiras em direção às áreas onde se esperava obter proteção, trabalho ou esmo-
da pela Constituição como "verba de emergência em casos de calamidades públi- las; transportavam também os retirantes revoltados que invadiam os mercados
cas" e não mais como favor pessoal. das cidades do interior e se aproximavam perigosamente dos subúrbios da capi-
O favor, agora, é a garantia de acesso à assistência oficial. tal, exigindo a tomada de medidas que restringissem essa circulação indesejada,
como a proibição dos "pau-de-araras" e a construção de estradas na periferia de
II. Os Pobres e os Poderes Fortaleza.
Nas obras, os agora operários são organizados em turmas de 25 a 40 ho-
Do outro lado da negociação, as autoridades procuravam estabelecer um mens e distribuídos entre as diversas construções a partir de critérios que va-
plano de atuação que pudesse neutralizar as investidas da multidão. A "assistên- riam desde a proximidade com o local de moradia dos retirantes até o puro e
cia oficial" precisava atender não só às necessidades dos políticos e proprietários simples interesse pessoal do encarregado. Os acampamentos - às vezes ainda
rurais, mas responder satisfatoriamente às pressões cada vez mais intensas dos chamados de "campos de concentração" - reúnem, assim, milhares de traba-
retirantes durante as secas. As medidas, de parte a parte, eram decididas em fun- lhadores em barracas improvisadas, em condições de higiene e alimentação
ção das ações do outro.
bastante precárias.

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

Em 1951, a construção de um açude no município de Pentecoste é objeto de De fato, muitos dos conflitos que acontecem no interior das frentes de servi-
denúncias. Um "regime de senzalas" estaria ali instalado, com 2 mil operários ço se relacionam às novas relações de produção em que se vêem envolvidos os
sendo atendidos por apenas quatro fornecedores e uma série de benefícios a apa- retirantes. Originariamente homens do campo, vaqueiros e pequenos produtores,
drinhados ou protegidos que revoltam os trabalhadores. A "exploração, a fome e que trabalham com a família num ritmo estabelecido por eles próprios, eles en-
as doenças" tornam o "campo de concentração" um local de morte e de desespe- frentam agora uma rigorosa separação entre planejadores e executantes, entre
ro. Em vista das denúncias, uma comissão liderada pela própria D. Darci Vargas, aqueles que dão ordens e aqueles que as recebem, num sistema de trabalho que
Presidente da LBA, visita a área a fim de propor uma série de "providências não permite a tomada de decisões quanto ao tempo e aos objetivos da produção,
necessárias para tornar mais efetivo o programa de socorro". Expondo os resulta- exigindo estrita regularidade e coordenação entre os vários grupos. As tarefas
dos da visita, o Ministro da Viação e Obras faz um pronunciamento na Câmara são realizadas coletivamente, exigindo uma nova postura diante do trabalho. A
Federal exaltando as providenciais medidas contra a seca e as boas condições disciplina requerida por este novo sistema é estranha e o assalariamento muitas
sanitárias dos acampamentos dos operários do DNOCS, "apesar das inevitáveis vezes não é bem assimilado, causando inúmeros casos de revoltas, já que o reti-
instalações de emergência". Mesmo assim, espera "em Deus que a presente crise rante quer obter no fornecimento uma ração que considera mínima para ele e sua
climatérica será atravessada sem que os índices normais de mortalidade no Nor- família, e não somente aquilo que o salário pode comprar. O poder despótico dos
deste sofram qualquer aumento". 21 feitores, administradores e encarregados é inaceitável - não porque seja despóti-
O interesse de tão altas autoridades da República indica uma preocupação co, já que o poder dos coronéis também o é - porque se origina das funções que
generalizada, ainda nesta primeira seca da-década, com a resolução dos proble- ocupam e do controle que exercem sobre o trabalho e não provém da propriedade
mas decorrentes da mobilidade e do potencial de revolta dos retirantes da seca. sobre a terra, considerada uma origem legítima do poder.
Indica, igualmente, uma inclinação do trabalhismó para com as "massas rurais"" Assim, as representações construídas sobre o processo de trabalho nas-fren-
que até então haviam sido afastadas dos benefícios do "pacto entre Estado e clas- tes de serviço - do tipo "regime de senzala" - podem estar relacionadas a uma
ses trabalhadoras". Inclinação que o suicídio de Getúlio Vargas talvez tenha abor- visão do trabalho como extensão da família, de um ponto de vista do lavrador que
tado... "domina", de certo modo, o ambiente, os instrumentos e os saberes - dentro das
O "regime de senzala" também foi instalado na "residência" de Patos, no suas possibilidades "determinadas" pelas condições culturais e tecnológicas -
município de Jaguaruana. Ali, os operários "estão comendo o pão que o diabo necessários para o desempenho das funções de morador ou vaqueiro nas grandes
amassou". fazendas do sertão seco. Um regime de trabalho que o período de emergência
jogava por terra.
Além de sujeitos a salários de fome, os pobres cassacos são obrigados a Em 1958, a pressão eleitoral e a necessidade de controlar as revoltas de
trabalhar 11, 12 ou 13 horas por dia para poder receber, integral, a irrisó- retirantes tornaram os alistamentos mais abundantes e, ao mesmo tempo, as obras
ria quantia de 18 cruzeiros. Isso porque é estipulada pesadíssima cota de mais frágeis, do ponto de vista técnico. Neste momento, surgiu a expressão "açu-
produção que, se não atingida, o trabalhador só perceberá a diária de 9 de sonrisal", designando aquelas barragens que, tão logo caem as primeiras chu-
cruzeiros. vas, se desfazem imediatamente. A necessidade de "ocupar" a "mão-de-obra li-
berada pela seca" fazia com que o mais importante, nas obras, fosse a função de
As tarefas são destinadas à turmas de 40 retirantes, mas poucas atingem esse absorver o maior número possível de alistados.
número; mesmo assim, têm que ser executadas dentro do prazo marcado. O clima O governo federal, através do DNOCS e do DAER, como também já foi
é de revolta entre os cassacos, que andam "maltrapilhos, famintos e demonstran- visto, empregou 520.000 retirantes em todo o Nordeste, sendo a principal cifra
do insatisfação". O feitor geral da obra - "um mau... feitor", segundo a reporta- até então. As obras eram feitas a partir de solicitação das lideranças locais, con-
gem - estabelece um regime de terror entre os operários, que, por qualquer moti- forme uma combinação entre as prioridades técnicas e políticas. Isso fazia com
vo, são dispensados da obra, com a imediata suspensão do pagamento. Para o que o número de operários em cada "residência" fosse muito alto, chegando a 17
repórter, somente "o inverno dar-lhes-á a alforria". 22 mil em Pentecoste, 14 mil na construção do açude Araras, l mil no Banabuiú etc.

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

O alistamento "político", no entanto, gerava problemas de receita para o gover- Banabuiú", a "infame prisão dos que não queriam morrer de fome vendo os gor-
no, que via os recursos sumirem na proporção inversa da afluência de retirantes dos bois do engenheiro viverem tranquilos", e o seu feitor, que apoiou a ação, foi
para os locais onde se supunha haver oferta de vagas.23 preso imediatamente na cadeia de Quixadá. Os "guardas do DNOCS" vigiavam o
Ao mesmo tempo, a "exploração" dos retirantes era percebida muito mais "curral feito de arame farpado", feito recentemente "com os maiores cuidados de
como "exploração política", ou seja, controle sobre os títulos de eleitor e, princi- segurança pois haviam sido empregados muitos fios de arame, uns dez pelo me-
palmente, privilégios no alistamento para correligionários do PSD, partido do nos". Ali, "naquela modesta cópia do nazismo", não havia abastecimento de co-
governador Paulo Sarasate. A situação nas "residências", no entanto, não era mida e até a água só era conseguida com a caridosa colaboração dos moradores
melhor do que em 1952. das redondezas.25
A existência de uma cadeia privada, sob controle dos guardas do DNOCS,
É um quadro tétrico, o de uma concentração de flagelados. Acossados pela como a descrita no romance, não era impossível. O poder concentrado nas mãos
fome, tomados de terrível fraqueza física, vão bolando, como se diz em dos engenheiros, administradores, feitores gerais e apontadores era grande o su-
gíria, sem tecto, sem abrigo, ao Deus dará. O seu desconforto é flagrante, ficiente para suportar a ideia de afastar os alistados "problemáticos" e concentrá-
dolorosíssimo o seu drama.
los em uma prisão arbitrária, à margem da lei. No entanto, não foram encontradas
outras fontes.26
As famílias sertanejas, normalmente grandes, somente sustentadas com uma
Mas se, no interior, as obras constituíam-se no principal trunfo das autorida-
diária de 40 cruzeiros, o equivalente a 2 k de feijão, permaneciam dependentes
des na negociação com os retirantes, na capital a situação era diferente.
do alistamento de um número o maior possível de membros, ampliando o núme-
As obras forneciam uma barreira que dificultava a afluência de retirantes em
ro de "cadernetas" para aumentar as possibilidades de urna alimentação razoável.
direção à capital. Assim, os retirantes que chega-vam até Fortaleza eram incorpo-
O próprio Presidente Juscelino Kubitschek entra "em contacto direto com aquela
rados aos contingente de pobres urbanos e tratados enquanto tal. Perdiam a iden-
gente resignada e heróica" ao visitar as obras do açude Araras, onde uma série de
tidade de "flagelados da seca" e só a retomavam quando protestavam e/ou exi-
conflitos chegara até a Câmara Federal ainda na seca anterior, quando foi objeto
de debates e denúncias. 24 giam medidas de proteção.
De qualquer maneira, a seca era - e ainda é - um momento em que o número
No romance Os cassacos, as passagens ambientadas na "residência" das obras
de mendigos e pedintes aumenta consideravelmente, exigindo a tomada de medi-
do açude Banabuiú lançam outras luzes sobre as relações de trabalho nas frentes
das destinadas ao amparo ou ao controle destes pobres. Fortaleza, segundo se
de serviço.
via, corria o risco de "transformar-se para sempre numa verdadeira e repugnante
A falta de fornecimento para a semana foi pretexto para uma ação dos
hospedaria de aleijados, cegos, famintos, pedintes, malandros e desajustados de
cassacos, que mataram e comeram algumas reses da fazenda em que trabalha-
toda espécie". Em vista disso, foram propostas várias medidas para "resolver" o
vam. Os rumores se espalharam pelas barracas e, pouco a pouco, foi crescendo a
problema da mendicância.
coragem para enfrentar as barreiras interiorizadas da submissão. O vaqueiro da
A Secretaria de Polícia, por um lado, numa medida que "merece aplausos"
fazenda, diante da massa de homens resolutos, estremeceu e nada pôde fazer para
da imprensa, "baixou uma portaria ordenando fossem retirados da faixa urbana
salvar os animais. A força da multidão era irresistível.
para os pontos periféricos da Capital todo o infeliz contingente de mendigos e
Uma oscilação de vultos tumultuou aquele mar de cabeças sombrias, como flagelados que vinham afeiando dolorosamente com suas tétricas figuras a paisa-
o vento agita as águas do mar no começo da tempestade. A massa silencio- gem humana e social de Fortaleza".
sa moveu-se, acercando-se da porteira como que tangida por secreta voz de Por outro lado, o deputado Mariano Martins apresenta proposta de criação
comando. Forte muro de corpos, massa humana conscientizada pela fome. de uma "Colónia de Mendigos" destinada a recolher e assistir os "mendigos e
vítimas da seca". Porém, a proposta do Rotary Clube apresenta-se como me-
Em represália, os membros da "turma 52", considerada culpada pelo ataque, lhor estruturada e procura classificar os mendigos a fim de melhor encaminhar
foram encarcerados no "campo de concentração da Comissão do Vale do a questão.

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

Segundo o plano do Rotary, "são os mendigos classificados em seis catego- nia não obteve abrigo, "muito embora estivesse com os seus documentos legali-
rias: o verdadeiro, o falso, o incurável, o curável, o asilável e o não asilável". zados".28 As próprias representações que contrapunham a Amazónia, como o
Para cada categoria, um encaminhamento diferente, de modo a que não permane- lugar das águas, ao Ceará, como lugar das secas, declinaram rapidamente: o "pa-
ça um único mendigo que não esteja efetivamente sendo observado e assistido raíso verde" havia se tornado o "inferno verde", onde ardem os migrantes cearenses
pelos poderes públicos. nas chamas da miséria e das doenças.
Cedo, porém, a Hospedaria integrou-se ao sistema de atendimento aos
Para o falso mendigo estariam atentos os olhos da polícia, capturando-o e flagelados e sua maior clientela foram os retirantes que chegavam diariamente à
dando-lhe a punição necessária; para o verdadeiro mendigo seria estabele- capital, engrossando a camada de pedintes urbanos. Algumas passagens para
cido o critério de ver se o mesmo seria ou não asilável, quer dizer, indiví- Manaus ainda foram providenciadas nesta primeira seca da década de 1950,29
duo sem família e sem responsabilidade com o lar. mas a Hospedaria acabou tornando-se um novo centro de disputas e conflitos. Ao
invés de passagens, agora os retirantes hospedados no prédio do Alagadiço rei-
O asilável seria "internado no Asilo de Mendicidade"; o não asilável seria vindicavam, assim como os flagelados de todo o estado, trabalho em serviços de
"devidamente assistido em seu domicílio". Para pôr em prática este plano, se- emergência.
ria necessária a criação de um órgão de articulação — a Sociedade de Repressão Várias "passeatas da fome" foram realizadas pelos retirantes da Hospedaria,
à Mendicância — para recolher as contribuições governamentais e particulares e exigindo trabalho e protestando contra as péssimas condições de alojamento. O
para estabelecer um planejamento de atuação nos bairros mais "afetados" e nos número de "hospedados", inicialmente calculado em 1.200, rapidamente ultra-
períodos em que haja um incremento na quantidade de mendigos. A Sociedade passa o limite das possibilidades de atendimento. O governo tenta encontrar uma
de Repressão à Mendicância chegou mesmo a ser criada oficialmente, mas como solução através.do alistamento para obras no interior, mas essa solução não era
um órgão ligado à Secretaria de Polícia da capital, limitando-se a exercer as bem vista pelos retirantes, que não pretendiam retornar aos lugares de onde ti-
atividades policiais de expulsão dos mendigos das áreas mais "bem frequenta- nham saído, preferindo viajar para o Acre ou para o sul do país.30
das" da cidade. 27 Uma série de acusações de irregularidades acontecidas na Hospedaria, in-
Assim, as soluções propostas passavam necessariamente pela repressão, pela clusive com denúncias do jornalista Calos Lacerda, que esteve em Fortaleza para
reclusão ou pela exclusão, pois os pobres, além de sujos, doentes e potencial- vistoriar as ações governamentais, agitou o plenário da Assembleia Legislativa.
mente criminosos, agridem, "com suas tétricas figuras", o profundo senso estéti- Foi formada uma comissão de deputados para verificar as denúncias e propor
co de uma elite ainda orgulhosa de sua formação europeia, embora superficial, e soluções, mas não foram divulgadas as suas conclusões.31
do espaço público que construíra para si - as edificações que constituem o qua- Os alimentos para os abrigados acabaram em outubro, quando estavam hos-
drilátero central, que já se ampliava para as áreas mais altas (o bairro da Aldeota) pedadas l .600 pessoas e mais algumas centenas se arranjavam "debaixo dos ca-
e para a orla marítima, da cidade de Fortaleza. jueiros existentes nas proximidades"; uma "hospedaria de galhos e flores" que se
Nenhuma das propostas foi efetivamente aplicada e a mendicância na capi- organizava nas redondezas. Por falta de dinheiro, o diretor da Hospedaria "tem
tal continuou entregue às instituições de caridade que já existiam - o referido ordens superiores para não receber mais ninguém e, embora haja lugar de sobra,
Asilo de Mendicidade, a Casa dos Cegos, o Dispensário dos Pobres, a Sociedade até a dormida para as crianças é ele forçado a negar".32
São Vicente de Paulo, o Asilo de Alienados e, principalmente, a Hospedaria Ge- Essa situação permanece até o final de agosto de 1952, com um número cada
túlio Vargas. vez maior de flagelados acampados no terreno em frente ao "prédio bonito, am-
Inaugurada em 1943 como um "modelo de organização" para receber provi- plo, mais ou menos suntuoso" da Hospedaria. O Delegado Regional do Trabalho,
soriamente e encaminhar os retirantes que iriam emigrar para a Amazónia, a neste período, decide suspender os serviços "até que lhe fossem proporcionados
Hospedaria tinha perdido muitas de suas funções originais depois que a "Batalha os recursos necessários à continuação dos trabalhos". Muitos retirantes, assim,
da Borracha" declinou em seu ímpeto inicial. Os vínculos com a imigração esta- decidem acampar em frente ao Palácio da Luz, sede do governo, e tentam nos
vam suspensos e até mesmo um "soldado da borracha" que retornou da Amazô- meses seguintes, inutilmente, obter uma audiência com o governador, que decla-

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A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

rã, afinal, através de seu secretário, que "o governo não abrirá a Hospedaria e
ria Getúlio Vargas é qualquer coisa de impressionante, de chocante mesmo, refle-
nem dará passagens para a Amazónia".33
tindo em toda a sua extensão a miséria a que foram jogados milhares e milhares
Mesmo com a chegada das chuvas, nos primeiros meses de 1953, a "Hospe-
de cearenses". Os retirantes vivem "num regime de campo de concentração" - a
daria é bem um retrato fiel, acentuadamente desolador, de um Estado que cada
escritora Rachel de Queiroz chama a Hospedaria de "Dachau cearense" - e amea-
dia empobrece mais". Sem vagas no interior do prédio, algumas centenas de reti-
çam "realizar marcha da fome sobre o centro de Fortaleza". Sob os cajueiros, nas
rantes, acampados nos terrenos circunvizinhos, "em meio a tanta promiscuidade
redondezas, "milhares de pessoas passam fome e dormem em horrível promis-
e desconforto", ainda "esperam embarque para o Norte ou para o Sul". As chuvas
cuidade". O ritmo da migração para a Amazónia é muito mais lento do que a
pioram as condições sanitárias e um surto de gripe assolou as famílias que não
chegada de novos retirantes vindos do interior, alegando "que a diária que ofere-
têm mais onde se proteger. Somente em abril, "mais de uma dezena de crianças já
cem nas diversas frentes de trabalho do Governo não dá absolutamente para manter
morreu de fome debaixo daqueles cajueiros do Alagadiço". Em maio, calcula-se
viva a família".38
que "morre uma criança por dia", "vítimas de dispepsia, diarreia, vómitos, doen-
Os conflitos não demoram a acontecer. No início de maio, "centenas de
ça de olhos e outras enfermidades". Ainda mil retirantes estão abrigados no inte-
flagelados que estavam acampados ao redor da Hospedaria atacaram o local de-
rior da Hospedaria, mas os embarques para Manaus e Belém se encontram provi-
predando vidraças de janelas, cozinha e refeitório". O "quebra-quebra" aconte-
denciados. Por fim, apenas 320 homens ainda aguardam embarque em maio,
ceu depois que a "administração não amparou os retirantes apesar de ter acertado
embora as condições de saúde continuem precárias.34
com o governador Paulo Sarasate que algumas centenas de flagelados seriam
Ao final da seca, Fortaleza é uma "cidade cheia de mendigos", transformada
abrigados".39
no "paraíso da mendicância". As medidas governamentais reduzem-se às ações
Em junho, já são 7 mil os abrigados na Hospedaria, com as condições de
da Polícia, retirando os pedintes das ruas e, apesar de se reconhecer que a seca é
higiene e saúde piorando muito. Uma média de três crianças morrem por dia»_,
o principal responsável pelo aumento dos mendigos, o Serviço de Assistência às
chegando a 420 mortes entre janeiro e junho. Os flagelados "queixam-se de que
Vítimas da Seca "só existe no nome, a fim de justificar um bom emprego para
estão passando por sérias privações alimentares, submetidos a um regime de fome
afilhados dos atuais donos do poder".35
permanente".40
No início de 1958, novamente os retirantes começam a se amontoar nas
Enquanto "sobe consideravelmente o número de sertanejos vindos do inte-
proximidades da Hospedaria, que permanecera fechada desde a última seca. So-
rior", "são pequenos os embarques para a Amazónia e o Sul". Em Belém, contu-
mente em março, porém, o agora já "velho casarão da Rua Olavo Bilac" reabre
do, a Hospedaria do Tapanã já está superlotada "com mais de quatro mil nordes-
suas portas aos emigrantes, embora apenas como um local para dormir, "porque
tinos" e "morrem diariamente de cinco a sete crianças em consequência da preca-
comida, que é bom e necessário, o INIC não fornece devido faltar verba para
riedade da assistência médica". Na Amazónia, as condições de vida e de trabalho
isso". Cerca de 200 retirantes já esperavam a abertura da Hospedaria, número
podiam ser até piores do que aquelas deixadas para trás, no Ceará. Para os proprie-
que cresce imediatamente com a chegada de várias famílias vindas de estados
tários de seringais e outros empreendimentos agrícolas, muito mais vantajoso,
vizinhos, como Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco. 36
neste momento, era a contratação dos recém-chegados japoneses, pois, além da
Menos de um mês depois de reaberta, já "cerca de duas mil pessoas estão
força de trabalho, trazem consigo uma razoável poupança acumulada. Como se
abrigadas" na Hospedaria, e centenas de retirantes "para ali se deslocam diaria-
pode ver, parece que a emigração de cearenses para a região amazônica permane-
mente", chegando a três mil já no final de abril. Os administradores tentam ali-
cia um empreendimento duvidoso, desde o tempo em que Rodolpho Theophilo
viar a situação solicitando barracas para acomodar os excedentes - a lotação total
escreveu o romance O Paroara com o objetivo de desmistificar e combater a
da Hospedaria seria de l .200 pessoas, com "relativo conforto", segundo o discur-
política de emigração como forma de "resolver" o problema dos refugiados da
so de inauguração - e reativando as linhas de emigração para a Amazónia. 37
seca. Mesmo assim, os administradores permanecem insistindo na tentativa de
A situação agrava-se rapidamente. Ainda no mês de abril, o jornal O Povo
embarcar o maior número possível de retirantes para outros estados, inclusive
informa que "estão recolhidas à Hospedaria 3.500 pessoas e mais de 2.500 acam-
solicitando o apoio da Marinha de Guerra. 41
padas nas imediações". O "quadro que se desenrola, presentemente, na Hospeda-
No entanto, "chegam 3 mil e saem apenas 750", e, como consequência, "a

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

super-lotação gera problemas de difícil solução", pois os retirantes que chegam ludidos com as possibilidades de sobreviver com um mínimo de "segurança ali-
estão cada vez mais acostumados aos padrões de negociação estabelecidos entre mentar" no sertão seco.
a multidão e as autoridades, em que a força do número e a pressão permanente Para os dirigentes da Hospedaria, no entanto, o "motim foi insuflado por
são armas poderosas, que eles já aprenderam a usar e, por outro lado, as autorida- agitadores imiscuídos em meio à massa de homens pacíficos e ordeiros". Se-
des já aprenderam a respeitar. gundo eles, nas imediações da rua Olavo Bilac há "cerca de um terço de indiví-
duos que se aproveitam da situação para tirarem proveito": "não vieram do
Os flagelados que chegam diariamente vindos dos pontos mais distantes do
interior", "são elementos aqui radicados", "aventureiros e marreteiros de todos
sertão seco querem um abrigo nas imediações do edifício, e exigem comida
e direito a transporte grátis para São Paulo, Paraná ou Belém. E os adminis- os tipos" etc.44
tradores, impossibilitados de recuar, não só por questões de humanismo, Os próprios retirantes, mais uma vez, são considerados incapazes da ação
como também de salvaguarda de segurança pessoal, são obrigados a fazer política. Portanto, não há diálogo possível. Para os "insufladores", somente a
malabarismos de toda sorte, visando contentar a todos, pelo menos aparen- repressão.
temente.42 Com as chuvas de fim de ano, todavia, a afluência de retirantes à Hospedaria
vai diminuindo aos poucos. Ao embarque de emigrantes para outros estados pas-
Em outubro, a Hospedaria atingiu sua população máxima: 11 mil pessoas sam a se somar agora os sertanejos que retornam às suas terras e aos seus locais
ocupando "literalmente todas as dependências, galpões e corredores do casarão de trabalho. Em dezembro, segundo O Povo, "somente" 4 mil ainda permanecem
do INIC, espraiando-se pelas circunvizinhanças do prédio, sob os cajueiros da à espera de passagens, embora O Jornal afirme que no mês seguinte ainda have-
rua Olavo Bilac".43 riam 8 ou 9 mil flagelados na "fatídica Hospedaria", onde as condições de vida
É neste momento que acontece o maior confluo, envolvendo os retirantes ainda seriam péssimas, com uma média diatia.de 6 mortos. De qualquer maneira,
abrigados na Hospedaria Getúlio Vargas. Um protesto contra as condições de as chuvas são o mais eficiente incentivo ao retorno que a administração poderia
permanência e a repressão policial provoca uma revolta generalizada. Uma mul- encontrar. As passagens, de trem da RVC ou de caminhão do DNOCS, são
tidão "arranca das mãos de seus captores" um flagelado preso pelos guardas e, a fornecidas somente para os vacinados, juntamente com uma "quota de alimentos
partir daí, "registrou-se um começo de motim". Os soldados fizeram alguns para a manutenção destes enquanto se estabelecem nos lugares de destino" e uma
disparos, "visando atemorisar os insubordinados", mas estes decidiram deixar a parcimoniosa distribuição de sementes, "para o plantio".45
Hospedaria para ir ao centro da cidade, "pedir providências ao Governador". No Segundo os relatos dos jornais, as autoridades - neste momento em que "des-
Palácio da Luz, "já então acrescidos de um número regular de desocupados", os pacham" de volta para o interior os retirantes que, durante mais de um ano, ocu-
retirantes foram recebidos não pelo chefe do governo estadual mas "por um con- param o espaço urbano com seus andrajos e sua fome - pareciam cumprir mais
tingente da P.M. e por uma tropa de choque do Corpo de Bombeiros". O Gover- alegremente com suas obrigações funcionais, ao mesmo tempo em que podiam
nador Flavio Marcílio - assim como o Conselheiro Estellita em 1877 - recusou- assumir um tratamento mais "humanitário" com relação aos retirantes. Afinal, ao
se a receber os "amotinados" famintos e os fez retornar aos canteiros de obras no contrário do que ocorrera durante todo o ano de 1958, as verbas rapidamente
interior do estado, que haviam abandonado para tentar os socorros na capital. chegaram às mãos dos administradores, destinadas à distribuição de alimentos e
Afirmou ainda que "só posso é remeter essa gente novamente aos Departamentos sementes, às passagens e à vacinação de todos os que retornavam ao interior.
de Seca e de Estradas de Rodagem". Dentre as medidas que considera "aconse- Assim, em março de 1959, "com a segurança do inverno", a Hospedaria
lháveis" para resolver o problema da Hospedaria, ele destaca "o envio de barcos "está ameaçada de ficar deserta até o dia 15".46
para conduzir essa gente para outros pontos do território nacional". A presença dos retirantes na cidade, porém, não poderia ser apagada tão
Os retirantes reivindicavam mudanças e melhorias no cardápio servido na cedo. Um rastro de miséria permaneceria nas esquinas e nas praças, no aumento
Hospedaria, que feria os hábitos alimentares sertanejos, além de reclamarem da do número de mendigos e de criminosos e, especialmente, na presença incómoda
acomodação e da superlotação. Por outro lado, pretendiam também obter as pas- de um número "assustador" de crianças nas ruas, pedindo esmolas, crescendo
sagens prometidas por administradores e políticos para deixarem o estado, desi- nas "casas improvisadas, abaixo dos cajueiros e à margem dos canais". Crianças

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

cujo "drama" alimenta o crescente medo de um descontrole social projetado para As medidas são reclamadas, portanto, com o objetivo de afastar aquela "vaga
o futuro, para uma sociedade em que elas se tornarão adultos revoltados, violen- faminta" dos lares das famílias da cidade. A solidariedade, explícita no apelo à
tos e desregrados - criminosos] Um medo que se baseia no pressuposto de que as assistência oficial e justificada pelas graves carências dos flagelados, esconde
crianças que "começam pedindo esmolas, acabam batendo carteiras".47 um desejo implícito de evitar o contato com seus andrajos, seu cheiro, suas for-
E o legado das secas com que a cidade precisa aprender a conviver e supor- mas que agridem uma sensibilidade urbana que, a despeito das desigualdades
tar, senão encontrar meios para sublimar. flagrantes que percorrem o espaço da cidade, procura manter uma aparência de
prosperidade e, principalmente, de estabilidade.
Ao mesmo tempo, é estabelecida uma fronteira que demarca os limites entre
III. O Medo da Multidão uma sociedade urbana e um mundo exterior, rural. Ao fazê-lo, porém, os nítidos
Como vimos, a formação da multidão de retirantes à procura de comida e limites demarcados pelas hierarquias sociais e pelas desigualdades parecem di-
trabalho durante as secas se constitui num fenómeno que atinge alguns elementos luir-se; as divisões e diferenças sociais que caracterizam esta sociedade de clas-
básicos da sociabilidade urbana, interferindo no cotidiano e nas relações de po- ses parecem menores diante da "invasão" destes "estrangeiros" sem nome - ou
der estabelecidas. Não só a noção básica de propriedade privada é relativizada com um nome genérico: "flagelados". Enfim, ao estabelecer um nós e um eles, os
pela ação do saque, mas igualmente algumas características da cultura brasileira discursos e as práticas de relacionamento com os retirantes procuram fortalecer
sertaneja relativas à hierarquia social - como as definições do lugar reservado ao os laços sociais ao mesmo tempo em que apelam a estes laços para a manutenção
pobre numa sociedade cristã e o lugar do trabalhador numa sociedade do trabalho da estabilidade.
- são ameaçadas pela rebelião. A chegada de retirantes estranhos, pessoas sem vínculos com estes laços de
Assim, a presenç/rdos retirantes amotinados, famintos e revoltados, ao mes- -: sociabilidade urbana, coloca em dúvida a segurança do conhecimento partilhado
mo tempo em que revela estas faces nem sempre visíveis da sociedade, abala as pela comunidade quanto aos costumes, linguagem e ligações familiares. 49 Os
certezas contidas no cotidiano da sociabilidade, na tradição e no costume herda- retirantes, homens do campo, são os outros, são matutos e tabaréus que desco-
do de gerações passadas, perdidas no tempo mítico. Esta ameaça pode ser perce- nhecem as regras da comunicação e da convivência "moderna" e "civilizada",
bida como uma sensação de medo diante da possibilidade de desintegração dos pois, "numa sociedade em que as relações de homem para homem ainda desem-
valores tradicionais, que, inscritos numa ordem cósmica que explica e dá sentido penham um papel importante, não ser reconhecido por pessoa alguma e ser inca-
à existência, parecem provir da própria natureza humana. Vistos assim, tais valo- paz de declarar-se ligado a alguém é um sinal, levado ao extremo, de isolamen-
res parecem inabaláveis e eternos. No entanto, a multidão os ameaça de várias to".50
formas. Definitivamente, portanto, não são todos os lares que as autoridades devem
Como uma ameaça à família e aos valores comunitários, a multidão é forma- defender.
da por homens desconhecidos, que vêm de fora, de quem pouco ou nada se sabe,
a não ser que sentem fome e que sua ira é, de certa forma, justa. Urgem imediatas providencias da parte das autoridades estaduais e fede-
rais, como medida de emergência, (...) pois, em caso contrário, teremos os
nossos próprios lares assaltados pelos famintos que se encontram
A escassez de chuvas, acentuada como se encontra, tem dado motivos a
perambulando pelas ruas, sem pão e sem abrigo. 51
justas apreensões por parte da população deste município, que se vê a bra-
ços com uma situação verdadeiramente desoladora. Diariamente, é consta-
tada a presença entre nós de pessoas flageladas, acossadas pela falta de A política de socorros assume um aspecto de defesa dos lares ameaçados
chuvas, procedentes de outras regiões do Estado. Cada dia a situação se pelos retirantes, que, novamente, são identificados a bárbaros que ocupam um
torna pior, reclamando de parte dos poderes públicos urgentes medidas de território que não lhes pertence e impõem uma nova lei, substituindo "o direito
salvação para as populações famintas e carecidas do auxílio pronto dos da lei pelo supremo direito da fome".52 A "lei da vida", que orienta até mesmo o
responsáveis pelo bem estar coletivo.48 próprio código penal quando este estabelece o "estado de necessidade" e o "furto

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

famélico"53, superpõe-se à "lei dos homens", que, por vezes, permite que a lógi- micos, mas recupera "a dimensão pessoal das trocas", reafirmando as hierarquias
ca do mercado transforme os pobres em miseráveis, os trabalhadores em vaga- sociais ao mesmo tempo em que afirma-se como "uma festa". É um instante em
bundos, os remediados em pedintes, os mal nutridos em desnutridos. que os homens do campo trazem para o mundo urbano o exercício de uma rela-
Ao contrário, os retirantes não têm lares, já que "perambulam pelas ruas" ção, mesmo no âmbito das trocas comerciais, marcada pela sua personalidade,
continuamente, sem pouso fixo. Seus "lares", se é que se pode chamar assim, são em que indivíduos se relacionam diretamente, conhecendo-se mutuamente. Im-
"choupanas" ou "casebres" perdidos no meio do sertão, que são periodicamente primem a este evento económico - que aparece como simples troca entre coisas,
abandonados em função das secas. como diria Marx - uma substância de trocas culturais entre pessoas que possuem
A distinção entre cidade e campo ganha, assim, do ponto de vista da popula- experiências diferentes de vida, com diferentes formas de inserção de classe,
ção urbana, de onde partem as principais fontes de que dispomos, uma nova género, educação etc. No entanto, espaço social aparentemente libertário por com-
abordagem: entre nós e os outros. O temor diante da multidão é ressaltado pela pleto, a feira reanima os laços de dependência e submissão dos homens do campo
visão permanente de uma invasão, de um exército da fome que ocupa o território aos comerciantes e intermediários, que dominam as regras do jogo e manipulam
urbano e o faz refém de suas reivindicações. preços e lealdades, combinando o cálculo racional com a lógica da reciprocidade
O "bem-estar" requerido pelas lideranças locais e pela imprensa, portanto, em benefício do lucro máximo e rápido.56
traduz-se na estabilidade de uma gestão equilibrada da pobreza urbana através A chegada dos retirantes é, ao contrário, ameaçadora. Aproximando-se em
dos mecanismos já conhecidos da repressão, da reclusão e da exclusão. grupos, desconfiados, "perambulam pelas ruas" sem destino claramente delinea-
A vida rural passa a ser vista como um .outro mundo, onde outras regras do até que, fortalecidos pela força do número, decidem exigir alimentos, subver-
vigentes regulam a ordem do social e, portanto, divergem das regras do mundo tendo a lógica do mercado de cereais, e serviços, alterando os fluxos do mercado
urbano. Outros hábitos, outros valores, outras maneiras de relácionar-se cornos'* de trabalho. A visão estabelecida sobre os homens do campo como.flrdgiws,
circuitos das mercadorias e da distribuição da riqueza social. De certa forma, o pacíficos e humildes se altera radicalmente: "quando a fome crescer, essa multi-
período da seca é o outro da abundância e da tranquilidade presentes na normali- dão mansa e dócil será uma horda tártara".57 A inversão havida na natureza pare-
dade da vida sertaneja, na qual "a seca é uma incidência esporádica, felizmente ce reproduzir-se no comportamento dos homens.
espaçada em lustros ou em décadas".54 Normalmente, os contatos com a popula- A fome, portanto, se insere nesta estrutura de sentimentos de uma forma
ção rural aconteciam nas feiras, quando se "proporcionava aos moradores do especialmente contraditória.
interior o desejo de se encontrarem para discretear amistosamente sobre interes- Por um lado, fornece uma base consistente para a solidariedade experimen-
ses recíprocos ou simplesmente alimentar relações de amizade, tão indispensá- tada pelas populações urbanas com relação aos retirantes. Afinal, eles não ata-
veis à sua existência moral que, à falta de preocupações inteligentes, se torna cam os mercados para obter ganhos materiais ou lucro monetário; eles agem para
quase exclusivamente composta de sentimentos". A chegada destes homens à saciar a fome! São lavradores que perderam suas colheitas e que, bem ou mal,
cidade, assim, é silenciosa e respeitosa: "O povo miúdo, composto de pequenos procuram na assistência social uma forma de compensação pelos prejuízos; além
lavradores e artífices, começou a entrar desde às seis da manhã, carregado de disso, na maioria das vezes, principalmente depois da seca de 1932, procuram
cereais, de frutas; de aves domésticas ou cantoras e de artefatos de suas toscas nas cidades formas de alistarem-se em obras públicas ou privadas em que pos-
indústrias".55 sam retribuir com trabalho os benefícios recebidos.
Ordeira e tranquilamente, os nexos entre os mundos rural e urbano se reno-
vam alegremente, no clarão do dia, com os frutos da natureza sendo trazidos - O que os trabalhadores do sertão necessitam é de uma ajuda mais eficiente
quase que ofertados - para a cidade por homens simples e sem ambições munda- do Governo. É de trabalho remunerado, ainda. De novas verbas para a emer-
nas ou artificiais. A alteração desta ordem, por conseguinte, constitui uma inver- gência. De agricultura nas vazantes dos açudes e nos terrenos baixos e
são nos valores básicos que organizam esta relação entre cidade e campo. A feira, úmidos. De remédios com que evitar possíveis surtos epidêmicos e de ali-
contudo, momento privilegiado de concretização desta relação, não significa ape- mentos com que não morram de fome. E isso o que pedem os trabalhadores
nas uma oportunidade de câmbio de mercadorias e de circulação de bens econô- do hinterland.x

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

São "trabalhadores" os que pedem, pertencentes à "pobreza que moureja na mática", num estado de "verdadeira aflição", com "reflexos imprevisíveis" para
abandonada e esquecida agricultura". 59 Não são os pobres urbanos já viciados na todos.68
esmola e na vida desregrada das ruas. As autoridades sofrem pressões ^iretas e temem até pela sua integridade
Os pobres que sentem fome durante as secas, portanto, são aqueles que mais física ou de seu património ameaçado pelos retirantes em revolta. Em Marco, a
perto se aproximam do modelo dos "pobres de Cristo", merecendo a caridade de residência do Prefeito foi invadida. Já o Prefeito de Guaraciaba do Norte está
todos os cristãos, pois trazem o corpo marcado pelas "chagas de Cristo" e, sendo "receoso de voltar com as mãos vazias", depois de um encontro com o Governa-
os "mais amados por Deus", "herdarão a Terra".60 A máxima "pão para os que dor, pois teme "um assalto a qualquer hora por parte dos famintos".69
têm fome" pode, assim, transformar-se em prática nas ações de distribuição de As diversas instituições da sociedade civil se mobilizam para publicar "an-
alimentos e de esmolas aos retirantes. gustiosos apelos". A Associação Comercial de Iguatu denuncia que "será inevi-
Assim, as medidas a serem tomadas para proteção das cidades devem ser, tável a invasão desta e de outras cidades (...) caso não surjam medidas urgentes".
em geral, "sociais e não policiais", pois estas "não são aconselhadas em casos O vigário de Icó afirma que "periga a tranquilidade da população" diante dos
dessa natureza" 61 : "Seria um crime duplo permitir-se a fome e, ainda, que a Polí- flagelados "nus e famintos" que ameaçam invadir a cidade. 70
cia pratique violências contra os pobres famintos". 62 Por outro lado, a fome requer uma reflexão acerca das possibilidades de
Torna-se comum, portanto, a mudança de funções das forças encarregadas manutenção de uma sociedade "civilizada" no futuro, já que as debilidades físi-
da repressão, que, ante essa estrutura de sentimentos que se solidariza com os cas, intelectuais e morais - decorrências diretas da desnutrição crónica - amea-
"pobres famintos", passam a assumir um encargo assistencial. Em Tururu, por çam comprometer irremediavelmente as novas gerações que nascem e crescem
exemplo, o próprio Delegado de Polícia "percorreu o comércio, angariando re- em convivência com a seca e suas consequências.
cursos para acalmar os flagelados",63 assumindo, assim,-.as funções normalmente Tomás Pompeu Sobrinho já alertava, ern.49J7, que "a exaltação do calor e
destinadas aos Prefeitos ou representantes das associações comerciais; ou seja, da acção do sol acentua as psychoses tropicaes, que também se aggravam pelas
passam, também os policiais, a "negociarem" com a multidão amotinada. modificações provenientes de um estado de anemia excessiva". 71 Assim se vin-
Os apelos, assim, se sucedem, denunciando a fome generalizada e a miséria culavam as moléstias decorrentes da desnutrição aos distúrbios de personalidade,
dos "infelizes conterrâneos", mas sempre alertando para o perigo que as cidades permitindo a associação entre fome e imoralidade que percorreu toda a produção
correm "diante da previsão de maiores e mais tremendas consequências para bre- de conhecimentos dos efeitos da seca sobre o "organismo humano". Quase 70
ves dias"64: "Não se sabe o que irá acontecer em Itapagé. (...) Os géneros reparti- anos mais tarde, os avanços no conhecimento científico pareciam confirmar a
dos com os retirantes são dosados, dando apenas para adiar o saque que todos perplexidade do pensador cearense; porém, numa outra perspectiva. Comparan-
esperam".65
do gráficos de desenvolvimento das crianças da região Nordeste - e, mais especi-
Os jornais continuam denunciando que há "miséria e fome por toda parte" e ficamente, do semi-árido - com os de outros países ou com um "padrão" estabe-
que "a situação é muito grave". A "situação de intranquilidade" se espalha por lecido como "normal", a conclusão é de que "os resultados da fome são desastro-
todo o Estado.66
sos para a população infantil". Se "a desnutrição compromete o crescimento e
As autoridades procuram controlar a situação através de sua presença pes- desenvolvimento das crianças", problemas de baixa estatura estão associados ao
soal, mas nem sempre isso é possível. Em Itapipoca, o Deputado Perilo Teixeira baixo peso no nascimento e baixo ganho de peso nos primeiros dias de vida.
prometeu alistamento aos flagelados; mas, em face da presença nas ruas de uma Além disso, uma "relação sinérgica entre desnutrição e infecção" tem proporcio-
multidão de cerca de 700 pessoas famintas e amotinadas, ele desapareceu e a nado um aumento na mortalidade infantil ou comprometendo o desenvolvimento
Prefeitura teve que, imediatamente, distribuir alimentos para que o comércio não das capacidades físicas e intelectuais dos jovens, no futuro. Assim, não só a preo-
fosse saqueado.67
cupação com a moral predomina entre os estudiosos, mas igualmente a constata-
E na seca de 1958 que este pânico se dissemina pela imprensa, contami- ção de que "está se formando nesta área de desnutrição crónica uma geração de
nando a população das cidades. A população, "intranquila", percebe uma situa- nanicos e débeis mentais".72
ção "delicada", "angustiosa", "alarmante", "desesperadora", "temerosa", "dra- Ou seja: uma "sub-raça" que protagoniza "cenas horripilantes" de "homens

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

se igualando aos animais na luta pela sobrevivência".7-1 Assim, essa preocupação dade de decisão reduz-se à deliberação de não morrer de fome, qualquer ação
com o futuro da sociedade se apresentará também como uma preocupação eugênica, deverá acontecer unicamente pela via do "tumulto", da "arruaça".
em que a raça humana poderia estar regredindo a um estágio inferior de civilização Em Fortaleza, diante de um agrupamento humano, "composto, em sua maio-
em função das privações da seca e suas repercussões de longo prazo. ria, por mães de família", os órgãos policiais encarregados da repressão "não
De fato, a angústia com relação ao futuro de toda a sociedade e com relação atentaram para as razões que animaram os desesperados ante a situação de misé-
à qualidade dos homens que a constituirão merece um lugar importante na refle- ria em que vivem". Assim, a única forma de compreensão passa necessariamente
xão dos formadores de opinião, já que as crianças de hoje - os homens do futuro pela "informação de que o movimento era insuflado e encabeçado por elementos
- estão "morrendo à mingua". Para a juventude flagelada, a "sociedade, que lhe comunistas". O campo de ação delimitado para a multidão reduz-se ao desespero
negou o destino do Bem, que lhe negou o alimento, o abrigo e as vestes, é o mal". de "trabalhadores transformados em mendigos".76
As crianças - nos acampamentos improvisados de retirantes, nas estradas A conexão entre fome, desespero e formação da multidão é, assim, direta e
ressecadas ou nas ruas da cidade hostil - ao invés de viverem uma vida de crian- imediata, em que todos - autoridades, jornalistas e populares - percebem, como
ças, "ouvindo histórias de castelos de ouro, de fadas, do Pinocchio", passeiam em Itapagé, que "no próprio instante em que as casas comerciais suspenderem o
por entre os setores mais degradados e desfrutam das migalhas que sobram dos auxílio que vêm prestando, inevitavelmente os flagelados saquearão a cidade
produtos mais deteriorados da sociedade. Vivem no lixo produzido pela socieda- apreensiva".77
de que se pretende da abundância. Resultados de um processo de degradação Os retirantes, portanto, são "escravos da fome", que não possuem outra saí-
social intenso que se reproduz por gerações, elas passam a habitar os locais me- da a não ser esperar resignadamente pela ajuda oficial. Uma resignação que es-
nos higiénicos e permanecem "morando por baixo das pontes, onde correm as panta os espíritos mais acostumados à vida no sertão, que concluem que "resistir
. águas e a imundície,..ao lado dos animais, se misturando com estes", e desejando àquela siwação sem um ato de desespero é realmente espantoso!": "Era demais!
tão-somente "os cereais que apodrecem nos armazéns". Não é possível deixar de Não sei como o organismo e a alma podem suportar tanto sofrimento! O homem
pensar, com preocupação, no futuro de uma sociedade formada por pessoas que é realmente mais forte do que tudo quanto se pode imaginar".78
se desenvolvem neste meio. Dos homens que a povoarão, nada se poderá esperar Os armazéns correm perigo quando o desespero toma conta dos retirantes
a não ser mais degradação e imoralidade. Estes serão os "futuros facínoras, os famintos; como em Iguatu, onde "comandos precatórios perambulam pelas ruas
marginais, os loucos, os doentes físicos, as mulheres sem nome, sem moral, sem da cidade em verdadeira situação de penúria" e, "já desesperados, tentaram as-
família", a "classe baixa da humanidade". Este será o futuro das crianças flageladas saltar alguns armazéns, que passaram a funcionar de portas fechadas".79
que, em 1959, "choram de fome nos braços das mães miseráveis".74 Cresce, portanto, a compreensão de que o espaço para a ação da multidão de
Não haveriam razões de sobra para o medo? Não haveriam razões de sobra, retirantes é o desespero e, assim, deve-se evitá-lo através da distribuição de ali-
ao mesmo tempo, para destituir estes homens - retirantes famintos e amotinados mentos na hora certa, que, certamente, somente alguns comerciantes ou autorida-
que se instalam nas bordas das cidades - de sua capacidade de decisão sobre seus des mais experientes conseguiam dominar com segurança. O risco, aqui, é per-
próprios atos e sobre os rumos da sociedade, enfim, de seu potencial político? mitir que o desespero transforme-se em descontrole, e a ação interdita rompe os
No máximo, aos retirantes é reconhecida a possibilidade de um espaço de limites da resignação, ameaçando a propriedade e os laços comunitários. Uma
deliberação, mesmo que reduzido: "Como este [o governo] não lhes veio em ação que, por não ser reconhecidamente política, ameaça as conquistas "civiliza-
socorro, deliberaram os flagelados simplesmente não morrer de fome". das" que separam a humanidade do reino dos instintos animais, já que "um ho-
Por outro lado, pode-se deduzir algum conteúdo político, por conta e risco mem com fome é uma fera perigosa"!80
do próprio analista: "Porque morrer de fome se há no país dinheiro e alimento em
mãos privilegiadas e egoístas, se há tubarões que levam esta nação às vascas da
agonia só por se manterem no luxo e na corrupção?"7 Referências bibliográficas
Nesta situação, o diálogo torna-se difícil, o entendimento fica bloqueado 1 CÂMARA, João. Almanaque do Ceará - 1954. Op. Cit. pp. 16 e 20.
pela incapacidade de perceber as intenções da multidão. Se o máximo de capaci- 2 PERROT, Michelle. Os Excluídos da História. Op. Cit. p. 55.

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3 Uma convenção de estudantes udenistas, em 1950, aprovou declaração que coloca como uma mavam demorar muitos anos para serem concluídas. A velocidade na construção em tempos
das tarefas do partido para a década que se inicia: "protestar contra a prática desenfreada da de seca, todavia, era muito maior do que em tempos "normais". Cf. FROTA, Luciara Silveira
jogatina no Ceará, sob as vistas complacentes do Governo do Estado". MOTA, Aroldo. Histó- de Aragão e. Documentação Oral e a Temática das Secas. Op. Cit. p. 232.
ria Política do Ceará, 1950-1954. Fortaleza: ABC Fortaleza, 1997. p. 139.
25 BARREIRA, Luciano. Os Cassacos. Op. Cit. pp. 198-211. Note-se as aproximações com
4Atas da 6a, 147° e 162° Sessões Ordinárias da 1° Sessão da 13° Legislatura da Assembleia fenómenos da natureza ("mar", "vento", etc). O autor, por outro lado, demonstra uma
Legislativa do Estado do Ceará, 29 de março, 21 de setembro e 09 de outubro de 1951; CÂ- indisfarsável repulsa para com a polícia do Banabuiú: "recrutada entre os que se revelavam os
MARA, João. Almanaque do Ceará - 1953. Op. Cit. p. 49. melhores entre os intrigantes, puxa-sacos e delatores", tidos como "criminosos confessos,
5 Atas da Câmara Municipal do Município de Iguatu, p. 191, Sessão de 08 de abril de 1953. desordeiros, cachaceiros contumazes" e "não faltava nem mesmo um pederasta de nome
6 Atada 38a Sessão do Período de Convocação Extraordinária da 3" Sessão da 14° Legislatura Rosinha, que alguns chamavam de miss polícia do DNOCS".
da Assembleia Legislativa do Ceará, 03 de março de 1958; Ata da 12* Sessão Ordinária da 4a 26 Régis Lopes, com base em depoimentos orais, obteve a informação de que no campo de
Sessão da 14° Legislatura da Assembleia Legislativa do Ceará, 08 de abril de 1958. concentração do "Burity", no município de Crato, em 1932, havia uma prisão, "um cercado de
7 CÂMARA, João. Almanaque do Ceará - 1953. Op. Cit. pp. 13 e 21.
madeira bem alto e seguro" no qual eram trancafiados os transgressores da ordem. Cf. LOPES,
Régis. Caldeirão. Op. Cit. p. 80.
s Cf. THOMPSON, E.P. "Folklore, antropologia y historia social." Entrepasados - Revista de
Historia. Buenos Aires: Afio II, n° 2, 1992. p. 70. 27 A proposta do Rotary foi apresentada pelo historiador Raimundo Girão. O Povo, 21 de
outubro de 1951; Atada 170° Sessão Ordinária da l°Sessãoda 13° Legislatura da Assembleia .
9O Povo, 31 de março, 25 de maio e 26 de novembro de 1951, 31 de janeiro e 19 de fevereiro Legislativa do Estado do Ceará, 18 de outubro de 1951. Essa preocupação com o "falso men-
de 1952, 23 de janeiro, 14, 19 e 21 de fevereiro, 02 e 23 de março e 09 de abril de 1953. digo" parece estar de acordo com a tradição cristã europeia, vigente desde o final da Idade
10 O Povo, 21, 24 e 26 de março, 01, 02 de abril de 1958 Média, estabelecendo que somente os "verdadeiros" pobres são dignos de compaixão. Por
11 O Povo, 08 de abril de 1958. outro lado, este critério permite distinguir entre os mendigos e os vagabundos. Cf. GEREMEK,
12 O Povo, 10, 11, 16, ! 8 de abril de 1958. Bronislaw. Os Filhos de Caim. Op. Cit. p. 43. Para este autor, essa diferenciação "segue a
tradição da legislação justiniana".
13 CÂMARA, João. Almanaque do Ceará - 1954. Op. Cit. p. 13; O Povo, 30 de julho de 1951;
28 O Povo, 13 de fevereiro de 1951.
CÂMARA, João. Almanaque do Ceará - 1959. Op. Cit. p. 31; O Povo, 19 de abril de 1958.
2y CÂMARA, João. Almanaque do Ceará - 1952. Op. Cit. p. 18.
14 CÂMARA, João. Almanaque do Ceará - 1954. Op. Cit. p. 20; Id, Almanaque do Ceará -
1959. Op. Cit. p. 28; Id. Almanaque do Ceará- 1960-1. Op. Cit. p. 18. (grifos meus) 30 O Povo, 24 e 28 de março e 31 de agosto de 1951; CÂMARA, João. Almanaque do Ceará

13 FROTA, Luciara Silveira de Aragão e. Documentação Oral e a Temática das Secas. Op.
- 1952. Op. Cit. pp. 20 e 28.
Cit. p. 255. 31 Ata da 121° Sessão Ordinária da 1° Sessão da 13° Legislatura da Assembleia Legislativa do

16 BARREIRA, Luciano. Os Cassacos. Rio de Janeiro: Nova Cultura, 1976. pp. 60-63. Este
Estado do Ceará, 21 de agosto de 1951.
romance é ambientado na seca de 1958 e seu autor, um jornalista, teve "que participar de 32 O Povo, 13 de outubro de 1951.
pesquisas, buscando no campo, onde o drama se desenrolava, material mais puro e verdadeiro, 33 O Povo, 29 de julho e 28 de agosto de 1952; O Democrata, 25 e 27 de novembro e 01 de
colhido ao vivo, capaz de lançar luz sobre os assuntos mais controvertidos" (p. 7). dezembro de 1952.
I7 THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. pp. 194 e 306. 34 O Povo, 24 de fevereiro, 17 de abril e 30 de maio de 1953.
l!i QUIROGA F. NETO, Ana M". "As Frentes de Emergência e o Movimento dos Saques." Op. 35 O Povo, 30 de junho e 30 de julho de 1953.
Cit. p. 113.
36 O Povo, 06, 13 e 18 de março de 1958; CÂMARA, João. Almanaque do Ceará - 1959. Op.
|IJ FROTA, Luciara Silveira de Aragão e. Documentação Oral e a Temática das Secas. Op. Cit. p. 27.
Cit. p. 226.
37 O Povo, 08 e 25 de abril de 1958; CÂMARA, João. Almanaque do Ceará - 1959. Op. Cit.
211 ESTADO DO CEARÁ. Mensagem Apresentada à Assembleia Legislativa em 15 de março p. 30.
de 1953 pelo Governador Raul Barbosa. Op. Cit. pp. 287 e 290.
3lt O Povo, 29 e 30 de abril de 1958; CÂMARA, João. Almanaque do Ceará - 1959. Op. Cit.
21 O Povo, 04 de abril, 11 de maio, 30 de julho e 30 de agosto de 1951. pp. 32 e 34.
22O Povo, 06 de maio de 1953. Em Itapipoca, segundo as lembranças do jornalista Edmundo 39 O Democrata, 03 de maio de 1958.
de Castro, acontecia o mesmo: "os que trabalharam naquela senzala jamais esquecerão os
4(10Jornal, 26 de julho de 1958; O Povo, 09 de setembro de 1958.
vexames e humilhações pelas quais passaram." O Povo, 03 de abril de 1958.
41O Povo, 08, 21de junho e 03 de setembro de 1958; CÂMARA, João. Almanaque do Ceará
23 O Povo, 07 de abril de 1958. A construção do açude Orós, o maior de todos, só teve início
em setembro de 58. - 1959. Op. Cit. p. 40. Para as condições de recepção e trabalho na Amazónia, além da "con-
corrência" com os japoneses, Cf. CARVALHO, Afonso de. "A tragédia dos nordestinos na
24 O Povo, 17 e 19 de abril de 1958. O Democrata, l O de novembro de 1953. As obras costu- Amazónia." In: CÂMARA, João. Almanaque do Ceará - 1960-1. Op. Cit. pp. 105-106.

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42 O Jornal, 18 de setembro de 1958. (grifos meus)


66 O Povo, 23 e março de 1953, 10 e 14de abril de 1953.
« O Povo, 31 de outubro de 1958.
67 O Democrata, \ de outubro de 1951.
44 O Jornal, 31 de outubro de 1958. A expressão "essa gente", no interior das declarações do 68 Cf. inúmeras edições de O Povo, O Democrata e O Jornal. O pânico é muito mais dissemi-
Governador, me parece carregada de um profundo desprezo, que se desdobra na impaciente nado na imprensa do que entre a própria população urbana, como veremos. A "população" a
tentativa de remeter a solução do problema às esferas federais, através da denúncia de retenção que se referem as reportagens normalmente vem qualificada pela expressão "principalmente
de verbas, e na imediata ação policial para expulsar os retirantes das áreas centrais da cidade. os comerciantes".
45 O Jornal, 03, 04, 05, 13, 17 e 18 de janeiro de 1959; O Povo, 17 de dezembro, 28 e 31 de 69 O Povo, 25 de março de 1958 e 02 de abril de 1958.
janeiro e 05 de fevereiro de 1959.
70 O Povo, 22 de outubro de 1958 e 04 de dezembro de 1958.
46CÂMARA, João. Almanaque do Ceará - 1960-1. Op. Cit. p. 30. Curiosamente (ou não?) a 71 SOBRINHO, Thomaz Pompeu. O Problema das Seccas. Op. Cit. p. 25.
Hospedaria é um tema ausente dos debates na Assembleia Legislativa em 1958.
72 PEREZ, Emília et alli. "Nordeste: A Seca Temporária e a Fome Permanente." In: CPT/
47 O Povo, 31 de janeiro de 1959; O Jornal, 26 de janeiro de 1959. CEPAC/IBASE. O Genocídio do Nordeste (1979-1983). Op. Cit. p. 80. Os autores indicam
4I< O Povo, 17 de março de 1951. Carta do correspondente do jornal em Crato. (Grifos meus) uma longa série de estudos que apontam na mesma direção.
49 Cf. GEREMEK, Bronislaw. Os Filhos de Caim. Op. Cit. p. 9. O autor acentua que "a fragi- 73 SOUZA, Itamar de. e MEDEIROS F.°, João. A Seca no Nordeste: um falso problema.

lidade do homem diante da natureza e das condições naturais e sociais do seu meio subordina- Petrópolis: Vozes, 1988. p. 160; Veja, n° 780, 17 de setembro de 1983. p. 66. Cf. também:
va-o à força da solidariedade grupai". ZISMAN, Merialdo. Nordeste Pigmeu: Uma Geração Ameaçada. Recife: CEDIP, 1987.
50MOLLAT, Michel. Os Pobres na Idade Média. Op. Cit. p. 242. 74 O Povo, 31 de janeiro de 1959. Reportagem de Assis Tavares.
O Povo, 21 de março de 1951. Telegrama do Prefeito de Campos Sales. (Grifos meus)
51 75 O Povo, 23 de maio de 1951. Reportagem de Paulo Bonavides.
52 O Jornal, 20 de outubro de 1958. 76 O Povo, 20 de fevereiro e 20 de junho de 1952.
53 Na verdade, não há sequer o crime, porque quando alguém com fome, portanto em "estado 77 O Povo, 14 de fevereiro de 1953.
de necessidade", comete um furto de alimentos, ele "não.podia de outro modo evitar", o que 78 O Povo, 03 de abril de 1958.
exclui a "ilicitude". Cf. JESUS, Damásio E. de. Código Penal Anotado, Op. Cit. p. 425; Lei n" 79 O Povo, 06 de agosto de 1958.
7.209, de 11.07.1984. Art. 24.
80 O Jornal, 10 e 11 de janeiro de 1959.
54QUEIROZ, Rachel de. "Apresentação." In: SALES, António. Aves de Arribação. Rio de
Janeiro: JoséOlympio; Fortaleza: Academia Cearense de Letras, 1979. p. 4. A escritora desta-
ca ainda uma outra originalidade deste "romance nordestino e, mais do que nordestino,
cearense": "é um livro que, passado todo no interior do Ceará, não diz uma palavra sobre
seca!"
55 SALES, António. Aves de Arribação. Op. Cit. p. 43.
56Cf. VIEIRA, Sulamita. Feira: Espaço de Liberdade ou de Ilusões? Fortaleza: UFC/NEPS
(Série Estudos e Pesquisas, n" 7), novembro/1986. (mlmeo) p. 13.
57 O Jornal, 24 de outubro de 1958.
58 O Povo, 20 de junho de 1952.
™ O Povo, 16 de abril de 1958.
60 Cf. MOLLAT, Michel. Os Pobres na Idade Média. Op. Cit. p. 250.
61 O Jornal, 20 de outubro de 1958.
62 O Povo, 01 de abril de 1953.
63 O Democrata, 29 de março de 1958.
64 O Povo, 14 de abril de 1952. O título desta matéria é "Angustioso Apelo do Povo de
Santanópolis" e é assinada por "representantes de todas as classes deste município".
65O Povo, 14 de fevereiro de 1953. Chegam no gabinete do governador, dos Ministros e do
próprio Presidente da República insistentes "pedidos de socorro de todo o interior". O Povo,
18 de fevereiro de 1953.

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CAPITULO VII

A Multidão e a Tradição Oral

Também na memória, a presença da multidão configura um espaço de rela-


ções sociais que se incorpora ao cotidiano da vida urbana. Diferente das fontes
escritas, porém, a memória tem a prerrogativa de atualizar os acontecimentos,
conforme pontos de referência que, se não são aleatórios, podem variar ou modi-
ficar-se ao rlongp do tempo. Entre o evento e a lembrança muitas experiências se
abrigam em cada memória individual e a transformam.
Assim, procurar na memória de pessoas que experimentaram um contato
direto com a multidão - seja como espectadores que sentiram o clima tenso de
sua presença na cidade, como participantes'que engrossaram o coro dos amotina-
dos, como autoridades que buscaram uma negociação ou como comerciantes que
sentiram diretamente a sua ira - é refazer um tortuoso trajeto de memorização,
em que muitas das versões escritas já estabelecidas sobre o papel e as causas da
fome e da seca são, de certa forma, incorporadas.'
Por outro lado, em contraste com as fontes escritas, a memória das pessoas
comuns pode ajudar a esclarecer ou estabelecer novas linhas de compreensão e
interpretação sobre as ações das multidões de retirantes, além de levantar novas
indagações a respeito da cultura política que as envolve e modela e na qual estão
ativamente inseridas.
De modo geral, a "visão espasmódica", presente nas fontes escritas e na
historiografia, se reproduz entre vários dos entrevistados e se expressa em for-
mas peculiares e paradoxais. Aparece claramente em sua versão do determinis-
mo biológico para o Sr. Lauristo, um ex-funcionário do DNOCS em Icó: "o ca-
bra, antes de morrer de fome, espirra". Ou seja: o ato de exigir ou, principalmen-
te, tomar comida nos armazéns e nas lojas significa apenas um reflexo biológico
diante da desnutrição critica e da possibilidade iminente da morte.2 A fome, como

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

já foi visto em relação às fontes escritas, transforma-se, aqui também, em expli- te impotente, já que a visão urbana e "civilizada" de política pressupõe um domí-
cação básica para as ações da multidão e é apreendida em sua dupla representa- nio não só dos códigos da representatividade, em contraposição à "anarquia" e à
ção: como justificativa para a ação - que, assim, é aceitável por todos - e como "desordem" características da ação direta, como também dos códigos da cultura
signo da barbárie que ameaça a civilização, concretizada na presença ostensiva letrada na qual esta política moderna se constitui e se constrói. Afastados desses
de pessoas desesperadas, em busca da mais elementar das condições da vida hu- códigos, os retirantes estariam, assim, incapacitados para o exercício da política
mana que é o alimento, tomando a iniciativa das ações no espaço público urbano. e a expressão de sua revolta somente poderia ser compreendida como resultado
A questão social e seu fundamento, a necessidade, superam, desta forma, as exi- de uma "explosão dos instintos", de uma manifestação da fome e do instinto de
gências básicas da democracia e da política representativa.- 1 Assim, subvertem-se
conservação.
as prioridades éticas. Falando sobre os saques, D. Luzia, por exemplo, não acha- Mas, ao mesmo tempo, o depoimento do Sr. Pedro indica algumas leituras
va que fosse certo, "mas se o povo estava com fome, tem que comer". dissonantes, que se distanciam desta "visão espasmódica", feitas a partir de um
Por outro lado, aparece também em sua versão do determinismo sociológico mundo moralizado pela caridade cristã que, de certa forma, sacraliza a pobreza e
com relação às camadas rurais, entendidas como submissas e incapazes de qual- se opõe ao descaso ante o sofrimento dos pobres, especialmente em momentos
quer atitude autónoma, necessitando sempre de algum elemento externo para críticos de escassez e fome. Ele afirma também que a fome "é doença fácil de
detonar a ação. Uma senhora, filha do Sr. Valdomiro, um comerciante de Iguatu, curar, mas é doença grande" — indicando possibilidades de leitura bastante com-
insinua: "sempre tem umas pessoas para insuflar, né?" O Sr. Aloísio, um outro plexas - e que, em consonância com a solidariedade geral em relação aos famin-
comerciante, pessoa letrada e participante em sua comunidade, sugere que "a tos, "o capitão passou ordem pra polícia, não era pra triscar em nenhum, nem na
maioria do roubo é de pessoas aqui mesmo da cidade, da periferia", as quais ponta do dedo", "que ali não era ladrão não, era fome, era necessidade; não era
"viam os flagelados, sabiam que eles, coitados, não tinham iniciativa de fazer",e roubo não, era fome". Ele faz, portanto, uma distinção muito nítida entre aqueles
"tomavam a frente, empurravam, se aproveitavam e esses eram os que mais tira- que tomam alimentos para fazer disso um negócio, "vender nas bodegas", e aqueles
vam"; O Dr. Mendonça, ex-prefeito de Iguatu, acusa a presença de "elementos outros que agiam movidos pela necessidade, "que não agravavam ninguém, que-
vermelhos" a incitar os famintos e aposta que eram os "aproveitadores" que inva- riam era comer".4 Esta visão é corroborada pelos depoimentos de comerciantes e
diam os armazéns e não os retirantes. Já o Sr. Raimundo, o sacristão local, afirma espectadores, que ressaltam a "ordem" dos ataques da multidão - "dentro do
que "o pessoal do mato é muito tolo".
normal", segundo o Sr. Valdemiro - porque investiam somente contra lojas de
alimentos, não agredindo nem ofendendo qualquer pessoa ou qualquer casa. D.
Eles não sabiam o que era comunismo, socialismo, achava que era tomar de Nair, antiga professora de Iguatu, acrescenta:
quem tem. A vida deles era tomar de quem tem. Mas o pobrezinho mesmo
ia chegar e atacar? Não ia não. Só ia porque tinha quem mandasse, alguém
eles nunca fizeram arbitrariedade, eles nunca usaram de grosseria, de que-
daqui da rua ia com eles e... esses desocupados...
rer à força, eles vinham com fome, mas enchiam a barriguinha deles, a
cestinha deles, o saquinho deles e eles se retiravam, não tinha esse negócio
O próprio Sr. Pedro, um agricultor pobre, relata que "teve gente em Iguatu de quebrar, de fazer bagunça; eles atacaram muitas vezes, mas não fizeram
que foi presa, que não precisava... se colocava no meio deles e já sabia qual era as bagunça não.
casas, conhecia as casas que tinha género, se colocava no meio deles e ia roubar
e vender nas bodegas". É certo que a memória, ao atualizar as informações, embaralha temporalidades e
O "pessoal do mato", "coitados", "pobrezinhos", "tolos", são expressões transita por conceitos. A "bagunça" a que se refere D. Nair é a agressão a pessoas
que se confundem, relacionando a vida rural com simplicidade de espírito, obe- e a bens. O "ataque", quando se resume a obter comida para quem está faminto,
diência e resignação. O homem do campo - em função do contato direto com a não constitui uma altercação da ordem.
natureza, de sua vida levada com um mínimo de desenvolvimento tecnológico e Para o Sr. Valdemiro, cujo armazém não chegou a ser arrombado - embora
afastado da crucial noção burguesa de produtividade - é visto como politicamen- fale que os retirantes "andaram saqueando coisinha pouca" -, nunca chegou a

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FREDERICO DE CASTRO NEVES l A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

haver propriamente "conflitos": "não tinha nada de embaraço não, de quebra- incluir-se na outra: pobres do campo, agricultores com pequenas propriedades ou
quebra, nem nada não". No entanto, se algum comerciante permanecia com as arrendatários, que trabalham e produzem, mas que enfrentam obstáculos gigan-
portas abertas, "eles massacravam ali um pouco", mas logo "chegava a polícia, tescos na sua labuta diária, como a falta de chuvas, como a falta de terras... São
intervinha e eles se afastavam". Segundo ele e sua filha, os eventos se restrin- pobres que possuem precários meios de sobrevivência, que a falta de chuvas
giam à área do comércio, para onde muitos curiosos acorriam, e as casas, apesar inutiliza. Uma distinção que, muitas vezes, os próprios poderes públicos procu-
de situarem-se nas proximidades, permaneciam abertas e em segurança. O co- ram realizar: a pobreza "recatada" e os vagabundos, os que não encontram traba-
merciante se assusta com essa possibilidade: "as casas não!" lho e os que se recusam a aceitar o trabalho oferecido.
O Sr. Raimundo também minimiza a repercussão das invasões. Ele afirma Um outro aspecto a ser destacado se refere à negociação entre autoridades e
que, a partir de 1942, a multidão "invadia, coisa pouca, quebra-quebra nas bode- retirantes. De fato, não era um diálogo em que sempre tomavam parte os prefei-
gas, nos armazéns, mas depois acalmava logo, o pessoal tomava as providências, tos locais. Na maioria das vezes, os próprios comerciantes tomavam à frente nas
a polícia chegava..." Por outro lado, "ninguém ia invadir sua casa não" porque "o negociações e distribuíam alimentos entre os famintos.
negócio deles era o comércio e o açougue". Em primeiro lugar, "havia a Associação Comercial que reunia o pessoal do
As "providências" seriam a distribuição de alimentos e o alistamento; a po- comércio, arrecadava os alimentos, levava para um determinado local" e distri-
lícia ajudava para acalmar os ânimos e organizar os retirantes para que pudessem buía, segundo o Sr. Valdemiro. Já segundo D. Nair, "eles entraram no mercado
receber os benefícios, os quais, de outro ponto de vista, pareciam conquistas de uma vez e quiseram a carne toda, mas os comerciantes franquearam logo, deixa-
um processo de luta travado entre os retirantes e a população urbana. ram eles carregarem a carne toda e eles tiravam o que queriam e iam embora". Os
A ação da polícia, segundo estes depoimentos, é correia quando se limita a comerciantes, interessados diretos na paz com os retirantes e na dispersão da
afugentar os famintos e a ajudar na distribuição-dos víveres; nunca quando ma- multidão, intervinham rapidamente na distribuição de sacas de farinha ou feijão,
chuca ou prende retirantes. Estes devem ser objeto da proteção ou da assistência além de carne, a fim de desmobilizar os famintos. Em Orós, em 1942, "o comér-
social para poderem suportar a passagem de mais uma seca e não deveriam ser cio é que dava de comer até fazer a comissão" e "doavam até boi ao pobre do
mais penalizados ainda com uma ação policial violenta. D. Luzia descreve a ação trabalhador", conta o Sr. Lauristo; ele assinala ainda que "não tinha polícia não",
da polícia. a negociação se fazia diretamente entre os retirantes e os comerciantes.
Em segundo lugar, o prefeito assume diretamente o papel de negociador. O
Fazia medo, a polícia encostava, mas era só pra fazer medo, não atirava em Sr. Aloísio lamenta-se que, antes, "os prefeitos tinham mais autoridade do que os
ninguém, nem nunca matou ninguém, nem tomava nada não. Que o povo prefeitos de outras épocas para evitar". Estará a relembrar-se de um tempo em
não tinha medo, o povo quando está com fome fica assim. Não tem medo que as relações pessoais de reciprocidade eram suficientes para garantir a estabi-
não. Enfrenta mesmo. Não teme não. Quando os policiais viam que não lidade social? É possível. O próprio Sr. Pedro reafirma esta posição: "o Dr. Gouvêa
dava, arredavam.
[prefeito de Iguatu por duas vezes na década de 1950] fez um barracão aí na
estação e colocou o pessoal; ele não deixou invadirem a cidade". A posição de
Outra é a visão sobre os que se aproveitam da estada dos retirantes nas cida- estar diante da multidão, com o objetivo de neutralizar ou evitar qualquer ação de
des para retirar géneros das casas comerciais. Segundo ainda D. Luzia, "com os invasão ou saque, não é muito confortável e alguns políticos, acostumados ao
aproveitadores tinha boca quente". O Sr. Pedro, ao falar neles, parece manifestar "modelo paternalista", conseguiam proezas consideráveis através das promes-
sua concordância com a ação policial: alguns "se colocavam no meio deles e iam sas, da exortação, do alistamento e da distribuição de alimentos. Sempre de uma
roubar pra vender nas bodegas". Estes eram ladrões ("iam roubar"), não tinham a forma direta, frente a frente com os famintos revoltados. O Dr. Mendonça, por
fome a justificar suas ações. Eram "eles" que se "colocavam" no meio dos reti- outro lado, fez questão de reafirmar uma posição firme contra a mera distribuição
rantes, dos necessitados; constituem uma outra categoria de pobres, pobres urba- de alimentos, associada por ele a simples esmola que vicia os pobres. Além dis-
nos, desempregados, que vivem de pequenos empregos, à margem da lei e da so, distribuir era uma bandeira de luta de seus opositores políticos e dos "elemen-
sociedade. O Sr. Pedro procurava, talvez, definir estas categorias e, obviamente, tos vermelhos".

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

Quando, nesse tempo, nessa primeira vez, que eu cheguei lá na Prefeitura, Mas eu tomei uma atitude: alistei. Alistei! Chegava aqui, tem uma enxada,
no dia 17 de março, era segunda-feira, fui tentado muitas vezes por elemen- qualquer coisa, e vão trabalhar. Todo mundo saía pra trabalhar. Saía da
tos vermelhos que eu desse... como é que chamava?... comissão. Que eu Prefeitura com ordem para receber mantimentos e começar a fazer qualquer
desse comissão! A comissão que eles chamavam era dar alimentos etc.
coisa.
Assim, ele inclufa a negociação com os retirantes no conjunto de relações
Ele opõe a esmola, que considera humilhante - para quem recebe, mas prin-
políticas estabelecidas entre os grupos locais.
cipalmente para quem oferece -, a uma oportunidade de trabalho, de prestar um
O Sr. Raimundo, contudo, informa uma diferença no tempo. Em 1932, se-
serviço em troca do alimento. O trabalho, portanto, em sua função pedagógica. A
gundo ele, o "comércio mesmo não tinha condições, era fraco" e os retirantes
esmola, a simples distribuição de víveres, podia ser vista como uma atitude
"não tinham amparo nenhum". O padre era a figura central de negociação. Ele
desonrosa para todos e para a sociedade. Subverte o lugar destinado aos trabalha-
recorda que os retirantes "vinham logo atrás do padre para arrumar recursos".
dores numa sociedade do trabalho. Para merecer o alimento que recebe, o retiran-
te faminto deve dar em troca um pouco do seu esforço para a coletividade que o
O pessoal quis invadir a rua, o Monsenhor saiu com a comissão. Em cada
armazém ele pedia uma saca de feijão, uma saca de farinha, uma saca de acolhe: consertar o calçamento das ruas, limpar as calçadas, consertar estradas,
arroz, rapadura, sabão. Juntava na casa dele e distribuía, litro por litro, para reparar açudes, "qualquer coisa"...
o pessoal. Em vez de estar aglomerado na Prefeitura, a Prefeitura não tinha Mas nem sempre o alistamento significava trabalho. Às vezes, o alistamento
condições nesse tempo, era o Monsenhor quem distribuía na casa dele. Eu era uma forma de dispersar a multidão, de acalmá-la, embora nem sempre ocor-
ajudei muito a medir litro de farinha pra botar para os flagelados. resse o previsto. É de novo D. Luzia quem nos informa.

No entanto, ele também reproduz a ideia de uma "infiltração" no interior do Tinha aqueles que vinham dizer: tal dia tinha alistamento. Aquela conversa
movimento dos retirantes nas secas durante a década de 1950. "Tinha um ta! de do povo mesmo, né? Aí juntava aquele povão e ia para o sindicato, chegava
comunista que insultava" - ele diz — e que gritava para os agricultores: "vai, vai, lá no sindicato e o povo dava comida. Dava comida o comércio, o povo
toma, toma, é pra tomar"! Ele conclui que "esses caras que mandam são daqui da encontra o pão, o povo ia no sindicato, mas o sindicato não podia dar comi-
rua mesmo", fazendo, como o Sr. Pedro, uma distinção entre os pobres que mere- da pra aquele horror de gente, aí ia para o comércio, ia para o prefeito, aí
dava rapadura, saco de farinha, bolacha, tudo. E o povo comia tudo, quem
cem a caridade pública - os agricultores que perderam suas colheitas com a seca
podia tirar até pra levar pra casa, levava. Aí tinha que tomar uma decisão
- e os desocupados da cidade, que não a merecem. Para os primeiros, a fome gera
pra dar um emprego ao povo, porque ficar aí todo dia só pra quebrar não
uma solidariedade reticente para com seu sofrimento e uma justificativa para
dava porque ia acabar com o comércio. Tinham que tomar uma decisão e
suas ações; para os outros, o desprezo. Ao mesmo tempo, essa distinção permite
dar o emprego. Aí aparecia mais depressa.
delimitar os campos da revolta: os agricultores são "muito tolos" e nada fariam se
não fosse o incentivo dos pobres urbanos. Assim, esses últimos, além de despre- O alistamento aparece aqui como uma forma de organizar a multidão para o
zíveis pela vagabundagem, são perigosos porque detonam um potencial de rebe- recebimento dos géneros arrecadados e não como uma forma de conhecer a força
lião que a fome alimenta entre os retirantes. Justifica, assim, a prisão dos "cabras de trabalho disponível e distribuí-la pelos serviços a serem executados. O alista-
que faziam movimento com os outros". mento - como se depreende das opiniões do Dr. Mendonça, por exemplo - apare-
Em terceiro lugar, a própria polícia atua como elemento de negociação, evi- ce como uma estratégia racional ligada à ordem do trabalho, ao mundo isento da
tando os ataques aos estabelecimentos comerciais e distribuindo, ela mesma, os moralidade cristã que pretende ser o liberalismo económico, mas, na verdade,
alimentos arrecadados. Os policiais, segundo o Sr. Valdemiro, "levavam pra de- está preso aos mecanismos de negociação pessoal e direta do paternalismo mais
legacia e ali mesmo distribuíam alimentos e eles voltavam".
"tradicional".
Mas o Dr. Mendonça coloca outras questões quando procura resolver seus Mas D. Luzia nos alerta para uma outra questão: o outro lado da negociação.
impasses políticos com os opositores. A forma de negociar característica da multidão é a pressão direta sobre os

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

representantes do Estado. O efeito desta pressão era, na maioria das vezes, o uns tempos pra cá, é fazer uma estrada veia aí que não dá nada, né? Só pra esca-
alistamento e a distribuição de alimentos. Os retirantes, certamente, sabiam que, par mesmo..."
quanto maior a pressão que exerciam sobre o comércio local e sobre os prefeitos, Manter a população de retirantes ocupada em atividades árduas e cansativas,
mais rapidamente as autoridades iriam agir: afinal, "tinham que tomar uma deci- além de mal remuneradas, poderia ser uma eficiente forma de evitar sua subleva-
são". Assim, o próprio alistamento - ou mesmo a simples notícia ou boato - era ção. Para o ex-prefeito, eles tinham que "fazer qualquer coisa", não importando o
uma forma de reunir os retirantes e colocá-los frente a frente com o problema resultado do trabalho; a própria "paz" na cidade era o efeito do trabalho. Os
crucial da alimentação daqueles que estão com fome. A resolução de um proble- frutos deste trabalho não são, assim, materiais, mas essencialmente políticos.
ma imediato, que afeta a todos, exige uma tomada de posição. Reunidos em seu Porém, a professora também nos alerta para os efeitos que a política de alis-
sofrimento e sua revolta, os flagelados "famintos e desesperados" conseguem tamento causa sobre o mercado de trabalho.
reunir forças para obter, seja de que forma for, os alimentos que precisam para si
e para suas famílias. A multidão, portanto, atua como um sujeito político em Tem vindo uma tal de emergência, não é? Viciou demais o povo. Quando
formação, cujas ações configuram certamente um ato de vontade e não apenas chega na tal de emergência, ninguém quer trabalhar o dia de serviço. Nem
uma reação biológica ou "espasmódica". que você morra de vontade de pagar, você não encontra quem queira. Con-
O Sr. Lauristo, talvez sem querer, reforça esta leitura dos movimentos da fiado só naquilo que recebe do governo.
multidão, ao procurar definir os pobres que invadiam as cidades em 1942: "Na-
quele tempo, o sujeito era muito sério. O trabalhador vinha pra um negócio des- A interferência do Estado na ordem económica em momentos de crise pro-
ses porque era obrigado, tinha que vir mesmo. Porque o cabra, antes de morrer de duz alterações nas relações de trabalho que podem ter efeitos permanentes. O
fome, espirra. Tem que dar no pé!" "dia de serviço" pago por particulares tende a aproximar-se do salário pago pelo
Os agricultores "sérios", segundo ele, os que realmente sofrem com a seca e governo nas obras de emergência, para cima ou para baixo. Em tempos "nor-
merecem a solidariedade da população urbana, só deixam suas terras quando não mais", de chuvas regulares, com a fartura de mão-de-obra, o salário atinge o seu
há outra alternativa, quando não há mais como trabalhar. Assim, eles se diferen- ponto mais baixo e, com a chegada da seca, a presença das "frentes de emergên-
ciam dos pobres da cidade. Mas, por outro lado, apesar de sugerir uma "visão cia" recuperam, às vezes, os patamares do salário mínimo. Na seca, com a disper-
espasmódica", o Sr. Lauristo deixa escapar que, mesmo assim, havia um temor são dos trabalhadores, a tendência dos salários é de subir e encontra como teto,
dos comerciantes de que algo poderia acontecer se os retirantes não fossem aten- novamente, o que é pago pelo governo aos "flagelados". A reclamação de D.
didos em suas reivindicações: "se ninguém ajudasse, os cabras saqueavam tudo Nair se insere neste segundo momento, em que o governo interfere no mercado
mesmo". E pergunta: "o sujeito ia morrer de fome no meio da calçada?" de trabalho, na tentativa de "amparar" os trabalhadores, ao mesmo tempo em que
O relacionamento entre retirantes e comerciantes assume, claramente, neste evita a dispersão da mão-de-obra. Apesar de fazer subir, em certos casos, o valor
caso, a característica de "negociação coletiva através da arruaça", como afirmou da diária, esta ação garantia a continuidade das relações de trabalho no sertão,
Hobsbawm com relação aos mineiros ingleses do início do século XIX.5 favorecendo, a médio e longo prazo, os ganhos dos proprietários. Mesmo a atua-
D. Nair, ao mesmo tempo, ao falar do alistamento nas obras de emergência, ção planejadora da SUDENE, a partir da seca de 1970, todavia, tem sido de man-
queixa-se do trabalho inútil: "inventaram a fazer que estavam trabalhando pra ter um padrão favorável aos grandes proprietários. 6
receber aquela migalha pra viver, mas não empregaram numa coisa que diga Por outro lado, inúmeras eram as estratégias encontradas para burlar as for-
assim que vai dar um resultado ao município ou o estado". O trabalho, aqui, mas de controle das "cadernetas" de pagamento, que confirmavam a presença do
apenas como "ocupação", uma estratégia de ocultar a simples distribuição de trabalhador em seu canteiro de obras, uma "carteira de trabalho" provisória.
alimentos, a "antiga" caridade individual transformada em ação estatal: "era só
um passatempo; um passo do tempo", arremata com estilo. Em 58, de meus filhos, só o que estava no Paraná e o que estava no Rio de
O Sr. Lauristo confirma que a "emergência" empregava a pobreza apenas Janeiro não se alistaram nessas rodagens. Mas todos os outros se alistaram
para "escapar", com exceção da construção do açude Orós; "a emergência, de como meninos. Chegava o administrador e cortava todos. Aí chegava o Dr.

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

Gouvêa, que era o prefeito, muito amigo de meu marido, e dizia: 'amanhã pobres os que se revoltam violentamente, subvertendo a hierarquia social e
vamos botar os filhos do Jucá tudinhode novo'. A f i a lá e botava tudinho de ameaçando, mesmo que implicitamente, os poderes constituídos locais. A mul-
novo. Quando o administrador olhava a idade, cortava de novo. (...) Tei- tidão inspira temor porque traz para a cena urbana - locus da política moderna
mou assim até o fim. Mas a fartura não era brincadeira. Por isso eu lhe digo - indivíduos excluídos da capacidade de intervir politicamente em uma ordem
que 52 foi ruim porque foi difícil, mas em 58 eles tinham 5 ou 6 cadernetas. hierárquica rígida que os condena à obediência e à submissão. Os pobres, en-
Não precisava nem se fornecer em todas. Duas ficavam para o pagamento.
quanto categoria formada e construída pela religiosidade cristã, merecem res-
Fazia o fornecimento em 3 e 2 ficavam intactas para receber o dinheiro na
quinzena ou no fim do mês. peito na medida em que permanecem no lugar social para eles estabelecido e,
assim, reproduzem a própria vida de Cristo. Mas, quando se afastam deste lu-
D. Nair, aqui, nos mostra algumas formas de burlar os mecanismos de con- gar, colocam em xeque a própria disposição dos lugares e, por conseguinte, o
trole do alistamento. Aquilo que para os retirantes é uma conquista difícil e pro- poder de organizá-los.
gressiva - como mostra o depoimento de D. Luzia: "alistava primeiro os pais de Estes "lugares sociais" definidos se associam a uma visão da sociedade e do
família; aí pronto, só os pais de família não dava, né?" - para outros que têm cosmos, integrando homem e natureza como partes de um todo organicamente
acesso às relações pessoais com as autoridades é uma forma de conseguir alguns instituído. Subvertê-los é pôr em risco toda uma concepção do mundo e das coi-
benefícios a mais e mesmo uma certa melhora no orçamento doméstico normal: a sas, abalando certezas profundas e arraigadas. Os pobres, ao fazê-lo, injetam no
"fartura" só era possível para estes. O alistamento de crianças, apesar de não tecido social uma linha de incertezas, insuportável para os governantes e
permitido, constituía-se na maneira de garantir a alimentação de grandes famílias aterrorizante para os governados.
sertanejas e era uma forma de burlar os baixos salários das frentes. 7 Ao mesmo tempo, os canais de comunicação política são igualmente amea-
O Sr. Batista conta que, em 1958, não só estava alistado sendo menor de çados. A rede dê intermediários quVse interpõe entre governantes e governados,
idade como tinha várias "cadernetas". Pela manhã, percorria rapidamente as vá- constituída em parte pelos mecanismos da política representativa e em parte pe-
rias barracas para conseguir responder à chamada dos "apontadores" das várias las teias de apadrinhamento e favoritismo do padrão paternalista, sofre, com a
turmas de operários que construíam uma estrada de rodagem em Lavras da ação da multidão, uma ruptura que é percebida tanto pelas autoridades quanto
Mangabeira. pelas pessoas comuns e que precisa ser rapidamente refeita, sob pena de compro-
Mas, apesar do "pacto" informal entre retirantes e população urbana, ga- meter toda a estrutura das relações de poder.
rantindo uma solidariedade social e a integridade das residências, o medo mui- Mas há um outro aspecto trazido à tona pelas fontes orais, que diz respeito
tas vezes se apossava dos moradores, especialmente aqueles que moravam nas ao lugar ocupado pelas ações dos retirantes no interior da memória coletiva, do
proximidades das áreas centrais das cidades, onde se concentravam os arma- modo como esta pode ser descortinada pelos depoimentos individuais.
zéns de alimentos. O Sr. Valdemiro, secamente, afirma que as pessoas sentiam Creio ter podido demonstrar que quase todos os depoimentos procuram
"bastante" medo. Já D. Laurenice, moradora de Iguatu, diz que "o povo tinha minimizar, senão subtrair, a presença e a força da multidão no espaço urbano e na
medo do movimento de muita gente, da multidão" e que "graças a Deus" nunca memória. Trazem para a normalidade da vida cotidiana as ações e os conflitos
presenciou uma cena de ataque. Para D. Nair, "tinha muita gente que ficava provocados pela revolta dos retirantes famintos, neutralizando seus efeitos de
preocupada, trancava suas portas", principalmente "aquelas que moravam no longo prazo e, especialmente, tornando possível a lembrança sem trauma.
centro comercial". A expressão "dentro do normal", utilizada por mais de um depoente, indica
A multidão, enfim, mete medo por uma série de fatores superpostos. Não essa tentativa. Os saques e as invasões são recordadas como eventos sem grande
só pela possibilidade de uma grave quebra da ordem social - e até mesmo de impacto na vida da cidade, embora as fontes escritas procurem exatamente res-
uma ordem "cósmica" que organiza a existência humana em geral, estabele- saltar o contrário. Iguatu, cidade privilegiada para a coleta de entrevistas pela
cendo as diferenças entre as pessoas como riqueza e pobreza - que é efetiva- incidência de um grande número de ações da multidão, vivenciou conflitos que
mente colocada em prática pela multidão revoltada, ameaçando a base econó- podem ser classificados como de grande extensão e, no entanto, as pessoas que
mica fundamental da sociedade, a propriedade privada. Mas também por serem os experimentaram - principalmente como espectadores ou comerciantes - os
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A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

relembram como pequenas cenas causadas pela fome dos retirantes, relacionada demonstrada durante todos os anos de fartura e trabalho normal nas fazendas. Os
à seca.
retirantes são trabalhadores que "caem" na miséria em função de um elemento
D. Laurenice, por exemplo, lembra nitidamente dos eventos do dia 7 de abril imponderável - a seca - e, respeitosamente, imploram, dentro dos parâmetros do
de 1958, marcado na sua memória por um outro evento familiar. Recorda-se que, pacto paternalista, alimentos e trabalho para continuar vivendo; não são, assim,
naquele dia, "estava havendo um alistamento aí, negócio de geração de emprego, pobres "viciados" nem "revoltados", que não merecem a proteção da sociedade.
estradas", e que "tinha muita gente nas ruas". Seu marido, um comerciante de São "pobres de Cristo" que a caridade pública pode e deve amparar.
alimentos, esteve fora durante todo este dia e, quando chegou em casa, contou Este "quadro" que configura as ações da multidão na memória, neutraliza os
que havia "baixado as portas também", junto com os outros comerciantes. Ape- conflitos decorrentes da presença da multidão a exigir - e não pedir - comida e
sar de morar bem próximo à área comercial da cidade, ela não consegue lembrar- trabalho e, principalmente, remete ao esquecimento as ações mais violentas e
se do local onde estava se dando o acontecimento. O alistamento, portanto, en- radicais, como os saques. A fome, como explicação e justificativa, despolitiza as
caixa-se na lembrança deste dia como um evento distante, até sem importância. ações, tornando-as um reflexo biológico de uma situação-limite em que a ameaça
No entanto, os jornais anunciaram, neste dia, o alistamento de cerca de 8 mil à vida é iminente. A organização da multidão não é, portanto, incluída como um
pessoas em Iguatu e que grandes ameaças de conflitos aconteceram durante todo ato de vontade de pessoas que dominam códigos da cultura e que, a partir desses
o dia.8 Os comerciantes, entre eles - supõe-se - o marido de D. Laurenice, procu- códigos e suas possibilidades, procuram as estratégias possíveis e as soluções
raram acalmar a multidão distribuindo alimentos. O trabalho e a tensão devem ter
imediatas para seus problemas.
sido grandes e deveriam ter marcado as lembranças familiares. O silêncio a que é relegada a multidão desempenha, assim, um papel impor-
Em todas as entrevistas, a primeira reação era de negar ou minimizar a ex- tante no enquadramento da memória, pois mantém protegida a rede de relações
tensão das ações da multidão. Às vezes, como a própria D. Laurenice, as lem-
sociais em que se situa.
branças aparecem aos poucos, como se nem tivessem sido marcadas na memória Por outro lado, as relações sociais paternalistas não se encontram "puras" e
com o impacto que parecem ter nas fontes escritas.
precisam concorrer com as formas de exercer o poder que são vinculadas a um
O Sr. Manoel, por outro lado, um agricultor pobre que trabalhou em várias "modelo" liberal de relações sociais. No entanto, o silêncio, ao encobrir as ações
construções durante as secas, fez questão de afirmar sua independência diante da multidão e proteger as teias de relacionamentos do paternalismo, protege igual-
das obras públicas e dizer que "nunca precisou do governo para atravessar a mente os fundamentos da política representativa "moderna". A multidão, como
seca" nem "nunca passou fome". Ele bloqueou a entrevista e apenas poucas forma de organização direta, espontânea e temporária, não se combina com as
informações a equipe conseguiu obter, as quais, coincidentemente, desconfir- instituições criadas para canalizar os conflitos sociais em uma cadeia de repre-
mavam as suas primeiras afirmações. Talvez, o Sr. Manoel desconfiasse dos sentantes da população, que deveriam dialogar e/ou polemizar sobre os interes-
entrevistadores - era a primeira entrevista: as redes ainda não haviam sido "ex- ses coletivos, de forma mais "civilizada" e "racional". A multidão, por conse-
perimentadas" e a equipe ainda estava indecisa sobre as estratégias de contato guinte, é vista como um fator "tradicional", "bárbaro" e "irracional" que ainda
- e tentava, com suas negativas, mudar para si mesmo o significado de sua permanece, como resquício de um passado cada vez mais distante, nas áreas mais
participação em algum movimento da multidão. Ou, então, procurava delimitar pobres e "atrasadas" da sociedade brasileira, exatamente aquelas em que a natu-
as distâncias entre o pobre, que sobrevive por conta própria, e o miserável, que reza suplanta o génio humano e as forças do progresso encontram dificuldades
necessita da ajuda do governo para sobreviver. Seja como for, sua resistência para se instalar.
mostra que o tema é mais impactante do que muitos depoimentos procuram A multidão, por um lado, ultrapassa os limites das relações paternalistas
deliberadamente mostrar.
"tradicionais" e, por outro lado, não consegue encontrar canais de diálogo na
Poderia se pensar, portanto, que um "trabalho de enquadramento" 9 procu- política representativa "moderna". Permanece, assim, como um elemento estra-
rava definir este tema a partir de um referencial tipicamente paternalista. Os nho na história e na construção da memória coletiva. O silêncio, com o qual se
pobres, em momento de escassez e dificuldades imensas, buscam o auxílio dos procura recobri-la, é a forma de "enquadrar" o que não corresponde aos modelos
poderosos locais, que procuram oferecer seus favores em troca da submissão de sociedade ideal, seja nos padrões paternalista ou liberal.

244 245
FREDERICO DE CASTRO NEVES
CONCLUSÃO
Referências bibliográficas
1 Para esta pesquisa, foram realizadas entrevistas temáticas dispostas em quatro "redes": parti-
cipantes, comerciantes, espectadores e autoridades. A área privilegiada foi íguatu e os municí-
pios próximos - Quixelô, que era um distrito de íguatu, Orós e Icó — por concentrarem a
maioria das ações das multidões pesquisadas nos jornais.
2 Thomaz Pompeu Sobrinho, no início do século, já destacava a presença de "perturbações
psychicas" entre os retirantes famintos, causadas pela "exaltação do calor e da acção do sol"
que "acentua as psychoses tropicaes, que também se aggravam pelas modificações provenien-
tes de um estado de anemia excessiva". As "intoxicações da ideia", provocadas por tais modi-
ficações no temperamento, fazem com que o "facto mais fútil toma proporções gigantescas,
determinando scenas de extraordinária ferocidade ou sórdido egoísmo, que a torpidez de todos
os phenomenos vitaes mascara". Assim, ele conclui que "a necessidade intima de viver embo-
ta os sentimentos mais delicados e altruisticos" e que "o instinto de conservação é ordinaria-
mente mais forte que qualquer outro". SOBRINHO, Thomaz Pompeu. O Problema das Seccas.
Op. Cil. p. 25.
L/epois de 1959, a tradição das ações diretas das multidões de retirantes em
3 Cf. ARENDT, Hannah. Da Revolução.. Op. Çit. pp. 47-53.
períodos de secas permanece ativa. Novas secas em 1970-1, 1978-83, 1993-4 e
Uma pesquisa que contempla uma seca mais recente (1978-1982), igualmente baseada em
4
depoimentos orais, observa a mesma distinção entre saque e roubo. Os armazéns estatais, mais 1998 fazem retornar ao cenário urbano, de Fortaleza e das cidades do interior, os
numerosos neste período, constituíam-se agora nos alvos preferenciais da ação das multidões. conflitos entre autoridades e sertanejos amotinados. Todavia, a organização de
O fato de serem do governo facilita a elaboração de uma justificativa para o saque, além de um novo conjunto de instituições, destinado a promover o desenvolvimento regio-
facilitar o próprio saque ao concentrares alimentos num grande depósito, normalmente,pouco
vigiado. Cf. QUIROGA F. NETO, Ana Maria. "As Frentes de Emergência e o Movimento dos nal, irá modificar algumas das posições assumidas pela multidão,,,
Saques." Op. Cit. pp. 101-116. O depoimento de D. Luzia, que "se retirou" em todas as secas Com estas instituições, comandadas pela Superintendência de Desenvolvi-
de 1932 a 1978, reforça esta leitura: "e não era do governo?" mento do Nordeste (SUDENE), os comerciantes e até mesmo as autoridades lo-
5 HOBSBAWM, Eric J. Os Trabalhadores. Op. Cit. p. 15.
cais conseguiram abstrair-se de suas responsabilidades costumeiras na negocia-
6 Cf. CARVALHO, Inaiá M. M. O Nordeste e o Regime Autoritário. Op. Cit. pp. 204-234. ção com a multidão. Este papel agora passa a ser assumido majoritariamente,
7 Na seca de 1978-82, as próprias entidades dos trabalhadores reivindicavam o alistamento de
mas nunca exclusivamente, pelos técnicos e representantes dos órgãos estatais,
mulheres e. jovens de até 12 anos. Cf. NEVES, Frederico de Castro. Imagens do Nordeste.
Fortaleza: SECULT-CE, 1994. pp. 89-110. refletindo uma tendência que já podia ser observada no período que estudamos.
* Cf. O Povo, 08 de abril de 1958; O Democrata, 09 de abril de 1958. Esses órgãos passam a estocar e armazenar alimentos em locais específicos,
9Cf. POLLAK, Michael. "Memória, esquecimento, silêncio." Estudos Históricos. Rio de Ja- que se transformam, ao contrário do que pretendiam os planejadores económi-
neiro: vol. 2, n" 3, 1989. pp. 9-12. cos, em novos alvos dos ataques da multidão. Os retirantes aprendem rapidamen-
te que podem conseguir uma quantidade maior de alimentos em grandes arma-
zéns, com uma vantagem adicional: são organismos governamentais, que são
cada vez mais percebidos como gerentes do bem comum. Os alimentos estoca-
dos podem ser pensados, a partir de então, como pertencentes aos próprios reti-
rantes, já que armazenados com o objetivo de ser distribuído entre os mais famin-
tos ou servir de pagamento aos que se alistam em obras públicas.
Assim, as feiras e as áreas comerciais e centrais das cidades se preservam da
presença incómoda dos retirantes que invadem os espaços urbanos à procura de
assistência. Isso, porém, não afasta a possibilidade de generalização dos confli-
tos, já que a multidão permanece se utilizando da pressão coletiva baseada na
quantidade como forma principal de luta; mas os comerciantes se protegem dos

246 247
FREDERICO DE CASTRO NEVES
A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

saques transferindo para o Estado o ónus dos ataques dos retirantes, socializando
as suas perdas. ração. A formação de instituições representativas substituem, assim, a presença
direta da população, a qual deve - ou deveria - dominar os códigos da represen-
Por outro lado, a partir do final da seca de 1978-83, diversas entidades liga-
tatividade para poder participar deste jogo. No entanto, este processo de redução
das aos trabalhadores rurais vão lentamente compreendendo a importância dos
das atividades políticas - ou, melhor dizendo, de concentração, nas mãos dos
movimentos da multidão para a estruturação da cultura política dos sertanejos e
representantes, das mais poderosas redes de ativação de processos políticos - faz
passam a apoiar e, às vezes, até mesmo organizar os retirantes em seu ímpeto de
com que aqueles que não dominam esses códigos sejam imediatamente excluí-
"fazer justiça com as próprias mãos". Há, portanto, a formação de uma série de
dos, ou não incluídos. Esta cisão permite que seja pensada uma divisão da socie-
novos intermediários políticos que procura ocupar este espaço vago entre a orga-
dade entre "o povo, sujeito da política individualizada e polida, e a plebe, ralé
nização "espontânea" da multidão e o sistema representativo que possibilita a
que se move indistinta e diretamente pelos interstícios do sistema político ofici-
criação de entidades que pregam a luta por uma nova ordem social. A tradição de
al".1
formação da multidão por retirantes, que se consolidou na década de 1950, ganha
Assim, é natural que, do ponto de vista da política representativa, as ações
novos contornos ao incorporar novas experiências - convivência com sindicatos,
da multidão sejam consideradas não-políticas,)á que não fazem parte deste cam-
partidos, órgãos da Igreja, organismos internacionais etc - que fazem com que a
tradição se renove. po de constituição de representantes e de instituição de uma imagem da política
como racional e civilizada.
Mas presença da multidão na arena política traz à tona ainda uma outra
Os jornais, os intelectuais e os políticos, portanto, somente poderiam pensar
questão: se a definição do campo político está intimamente ligada à noção de
a ruidosa atividade da multidão como "primitiva", em que suas principais moti-
representatividade, como conciliar a política das multidões com a política ofi-
cial? vações são a fome e o instinto de sobrevivência.
Como o Dr. Murneau, personagem do filme Kafka, que apenas vê na multi-
Os eventos descritos nas páginas anteriores mostraram que a negociação
dão uma negação das experiências individuais; a multidão é transformada numa
estabelecida entre a multidão e seus interlocutores passa por fora dos canais ins-
entidade amorfa, sem rostos nem vontades, sem voz nem capacidade de expres-
titucionais da política representativa e, quase sempre, ignora ou mesmo atropela
são de sentimentos, pronta para ser dominada e manipulada pelos espíritos "su-
as instituições que poderiam - ou deveriam - representar os trabalhadores rurais:
periores" que conhecem os códigos da civilização e da modernidade e que po-
sindicatos, partidos etc. Por outro lado, os objetivos da multidão se dirigem para
dem, assim, qualificar o que é fruto da vontade ou é resultado de instintos subter-
aS possibilidades de assistência que o Estado pode oferecer. Há, portanto, uma
inserção contraditória da política das multidões na política oficial. râneos.
A multidão age pela via direta, dispensando intermediários, e se utiliza da
- É mais fácil controlar uma multidão do que um indivíduo. A multidão
pressão física, por vezes violenta, como arma de luta; seus argumentos são pouco
tem um objetivo comum. O indivíduo tem objetivos incertos.
racionais - a fome, a miséria etc - e suas palavras são escritas com a exposição
de suas mazelas, para horror da sensibilidade burguesa que governa as cidades.
Mas a "despolitização" da multidão, contudo, se estende aos inúmeros tra-
Os seus objetivos são imediatos e sua utopia oscila entre um governo "bondoso"
balhos que tratam dos movimentos populares rurais e que, assim, reproduzem as
que protege os pobres e uma terra de pequenos proprietários que não necessitam
representações construídas pelas classes dominantes sobre um sistema ideal de
de governo algum. De fato, os retirantes que formam as multidões revoltadas não
política e sobre as condições ideais para participar de suas instituições.
chegam a formular um programa social, embora muitas vezes deixem explícitas
Todavia, este livro pretendeu mostrar uma cultura política que se institui ao
algumas propostas isoladas para a organização da sociedade, especialmente no
largo do sistema representativo oficial e que, mesmo assim, se constitui em um
que diz respeito à distribuição da riqueza em tempos de crise e escassez.
universo de entendimento sobre a realidade social que orienta e legitima a ação.2
Ao contrário, a política "moderna" se estrutura em torno de um sistema re-
Um universo que inclui uma expectativa sobre as atitudes corretas a serem toma-
presentativo, em que se institui uma arena política formal válida para todos - o
das pelos poderosos ou pelos governantes, uma relação paternalista com as estru-
Parlamento - onde as questões políticas devem ser objeto de discussão e delibe-
turas de mercado de alimentos e de trabalho e, especialmente, uma tradição - que

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FREDERICO DE CASTRO NEVES A MULTIDÃO E A HISTÓRIA

se forma ao longo dos anos que se seguem à seca de 1877 e se consolida na


:cada de 1950 - de pressão política direta e violenta sobre os responsáveis pelas í
o t— C=> o
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2
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2
lê proteção ou assistência social em tempos de seca, crise e escassez H —

Assim, as relações ou negociações entre governantes e retirantes insubordi- N


W 1 1 1 1 , , 1 i o 1
s são marcadas por um profundo sentido de imprevisibilidade > já que não Q
orgamzadas ou orientadas por um sistema institucionalizado de procedimen-
'tocolos que permitem, sem grande instabilidade, avanços ou recuos
)essa forma, identificar a multidão, pela espontaneidade e pelo imediatismo
O 1 1 1 s o 1 i * 1

aractenzam sua ação, como um objeto de manipulação permanente é esque-


complexidade da cultura política sertaneja e, ao mesmo tempo, colocar-se E- 1 1 1 o 1 1 i 0
1
0
> lado dos que pretendem manter no círculo restrito dos ilustrados a definição
3 que é "civilizado" e o que ê "bárbaro".
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Colocando-se do ponto de vista dos próprios retirantes, ao contrário as ex- W 1 1 1 1 CO O i o 1

ienc,as de sofrimento e miséria podem ser associadas a outras de valentia e


dariedade, dentro da multiplicidade e complexidade que caracteriza a exis- W O
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tencia humana.
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Apesar desta vida miserável, o povo insistiu com coragem nas ruas nas
repartições municipais, exigindo emprego e comida. Quando as autorida-
ss não o receb.am, procurava armazéns e mercados, lançava mão daquilo sa 5
1 1 l 1 04
s 1 i o !

a que Unha direito. Muitos resistiram à morte através desses atos, dos ges- í S z
tos de solidariedade e partilha fraterna de muitos irmãos.4 1 1 1 S •S 1 i 1 1

Q
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1 O 1 o 1 1 i s 1

Referências bibliográficas
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i h p, A , Str°- "Exclusa°da P° lítica ou Política d a exclusão?" In: MONTEIRO
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pá =
1 1 <o s OO i x 1

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Cf. ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Op. CU. p. 232. Pd
3

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s 1 o g § i o 1

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IBASE. de Crateús ' «•• CPT/CEPAC/
ordeste (1979-1983). Op. Cit. p. 17.
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TABELA III

POPULAÇÃO DE RETIRANTES NOS CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO EM 1932

^x. Meses Abr Maio Jun Jul Ago Set Out Nov Dez Jan Fev Mar Abr
Campos^^^ 32 33

Fortaleza 1.500 1.500 1.500 1.500 1.500 1.500 1.500* 1.443 3.620 5.177 5.399 153 156
Patú 3.976 18.811 14.719 9.648 2.587 2.988 3.237 4.317 8.231 10.497 8.982 3.548 522
Quixeramobim 3.087 4.787 4.839 - - - - - - - - - -
Burity - 8.176 16.175 18.851 23.565 29.899 21.699 27.979 43.840 59.863 39.952 22.410 2.153
m
Ul
Cariús - 16.570 27.685 31.906 1 8.989 11.876 1.809 2.609 4.834 9.608 10.411 2.883 448 >

Ipu - 5.590 6.627 7.266 4.822 3.284 3.884 3.606 3.633 4.086 3.671 2.408 -

TOTAL 8.563 55.434 71.545 69.171 51.463 49.547 32.129 39.954 64.158 89.431 68.415 31.402 3.279

* Esta média (dos meses de abril a outubro) foi obtida através da comparação entre os dados fornecidos pelo Ministro (número de concentrados)
e pelo Interventor (número de rações distribuídas). Em Fortaleza havia dois campos: Urubu, próximo à praia, e Otávio Bonfim (fechado em
outubro de 32), próximo à estação de trem de mesmo nome.
'*
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A Nação
A Ordem (Sobral)
Cearense
Constituição
Correio do Ceará
Correio da Semana
Fraternidade
Gazeta do Ceará
Gazeta de Notícias
Libertador
O Democrata
O Jornal
O Nordeste
O Povo
O Retirante

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