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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAPÁ

COLEGIADO DE HISTÓRIA
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM HISTÓRIA E
HISTORIOGRAFIA DA AMAZÔNIA

LEANDRO DE FREITAS PANTOJA

“Nos meandros das vivências, tensões cotidianas e da “crise” da


escravidão negra em Macapá”, 1856-1886.

MACAPÁ
2015
UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAPÁ
COLEGIADO DE HISTÓRIA
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM HISTÓRIA E
HISTORIOGRAFIA DA AMAZÔNIA

LEANDRO DE FREITAS PANTOJA

“Nos meandros das vivências, tensões cotidianas e da “crise” da


escravidão negra em Macapá”, 1856-1886.

Monografia apresentada ao colegiado de História,


Departamento de Filosofia e Ciências Humanas
(DFCH) da Universidade Federal do Amapá, como
requisito final para obtenção do título de especialista
em História e Historiografia da Amazônia.
Orientadora: Msc. Verônica Xavier Luna

MACAPÁ
2015
LEANDRO DE FREITAS PANTOJA

“Nos meandros das vivências, tensões cotidianas e da “crise” da


escravidão negra em Macapá e Mazagão”, 1856-1886.

Monografia apresentada ao colegiado de História,


Departamento de Filosofia e Ciências Humanas
(DFCH) da Universidade Federal do Amapá, como
requisito final para obtenção do título de especialista
em História e Historiografia da Amazônia.
Orientadora: Msc. Verônica Xavier Luna

APROVADO EM:

BANCA
Profa. Titular Verônica Xavier Luna (orientadora)
Julgamento: __________________ Assinatura:__________________________
Prof. (a): _____________________ Instituição: _________________________
Julgamento: __________________ Assinatura:__________________________
Prof. (a): _____________________ Instituição: _________________________
Julgamento: __________________ Assinatura:__________________________

Macapá
2015
Aos meu pais (Hermes e Maiza) que me ensinaram o que sou.
Aos “pretos” escravizados na Macapá de outrora que a todo custo lutaram pela
liberdade.
Agradecimentos

Em agosto de 2013 dei início na Universidade Federal do Amapá a caminhada que


culminou finalmente no trabalho que ora apresento. Foi um percurso difícil, árduo e desafiador,
mas que foi sensivelmente amenizado e certamente menos espinhoso e até prazeroso, dado o
apoio de muitas e queridas pessoas.
O êxito dessa empreitada, portanto, jamais teria sido possível sem a confiança, o apoio
e a orientação primorosa e sempre eloquente da professora Verônica Xavier Luna. Uma
orientadora brilhante e sem igual. Exemplo de humildade, de intelectual, de pesquisadora e de
ser humano. As minhas dívidas com a senhora jamais serão pagas nessa vida. Tanto na iniciação
científica quanto na especialização em história pude contar com a sua disponibilidade e atenção
de modo incondicional. A autonomia e liberdade que sempre me conferiu para expor minhas
ideias e concepções durante o processo de pesquisa foram ingredientes que deram um outro
sabor ao presente trabalho. Mesmo na “loucura” do seu doutorado, é bom lembrar, jamais
relutou em momento algum em me prestar a devida atenção.
Quando de minha estadia no início do curso em 2013 pelas paragens do Pacuí por
ocasião do trabalho, o apoio inicial de duas pessoas foram sobremodo importante. A
compressão por conta das necessárias ausências do trabalho pelo professor Gesivaldo, então
diretor e meu chefe, permitiu com que continuasse a vislumbrar a continuidade e concretização
deste trabalho. Registro aqui minha gratidão pela sua compreensão e apoio.
Quem ouviu sempre as minhas aflições, angústias e preocupações pessoais, acadêmicas
e profissionais, foi a amiga Raquelma. Mais que uma colega de trabalho naquela ocasião, um
aporte afetuoso e moral quando dos momentos mais críticos e nebulosos. Igualmente a sua
compreensão, apoio e paciência conferidos a mim foram fundamentais para vencer mais esta
etapa na minha formação.
Nos últimos meses tive de conciliar, bem como intensificar a rotina de pesquisa, estudo
(na graduação em História na Unifap “pagando disciplinas”) e trabalho. Registro aqui minha
dívida de gratidão pela indelével compreensão dos colegas Pe. Eusébio, Edfran e Rosiane pelas
minhas necessárias ausências do ambiente de trabalho.
De modo muito especial agradeço a querida amiga e colega de curso Pollianna. Uma
grande incentivadora e incondicional apoiadora. Mais do que qualquer outra pessoa você foi
quem possibilitou com que continuasse a sedimentar o árduo caminho percorrido por mim nesta
empreitada. A sua importância está resguardada não só aqui, mas na minha própria história.
Agradeço à minha irmã Aline, “iniciada” nas transcrições documentais da pesquisa pelo
fundamental apoio e ajuda.
Situo que os ouvidos da Martel e do Victor foram os que mais escutaram as minhas
angústias e aflições acadêmicas e pessoais. O ambiente para tal não poderia ser mais propício:
os bares da vida. Nutrir nossa amizade de malte é uma de nossas principais obrigações.
Aos professores Luiz Gustavo e Cecília Maria Bastos agradeço por terem aceitado, sem
titubear, o convite para compor a banca da minha defesa.
Agradeço também aos colegas e amigos da especialização pela convivência, amizade,
socialização e partilha intelectual, em especial aos seguintes: Nil, Danilo, Alana, Sandra,
Diovani, Márcia (Pucca), Jr. Nogueira, Renê.
A Van Lopes, quem de perto acompanhou o desenrolar deste trabalho nos últimos
meses.
Agradeço por fim aos funcionários do cartório de 1º Ofício de Macapá (cartório Jucá)
que gentilmente nos autorizaram a pesquisar com todo suporte e apoio o arquivo da instituição.
“A história dos escravos – como toda a história
humana – foi feita não apenas pelo que se fez a
eles mas também pelo que eles próprios fizeram
por si”. Ira Berlin.

“Toda dor pode ser suportada se sobre ela puder


ser contada uma história”. Hannah Arendt.
RESUMO

A pesquisa procura analisar as razões que concorreram para o processo de depopulação


(processo o qual qualificamos de “crise”) do contingente de escravizados negros na província
do Grão-Pará, destacadamente na cidade de Macapá no interstício histórico entre 1856 a 1886.
Mais do que nos atermos tão somente aos aspectos ou encadeamentos possivelmente conexos
a este fato em tal contexto, tentou-se, concomitante a isso, incorrer por algumas centelhas das
“vivências, experiências e tensões” que certamente envolveram o cotidiano do cativeiro negro
local. Para tanto, então, recorremos a um conjunto de fontes documentais, tanto primária como
impressa e manuscrita, sobre o período estudado tais como: periódicos da imprensa paraense e
eclesiásticos, boletins ministeriais do império, relatórios e falas de governantes, almanaques,
recenseamentos e cartas de alforrias, todos referentes as décadas de 1856, 1860, 1870 e 1880.
Por conseguinte, a análise das fontes teve como base teórica os pressupostos decorrentes da
historiografia da História social da escravidão negra, já bem desenvolvida no Brasil, com
influências, inclusive, em atuais estudos acadêmicos sobre o tema na Amazônia. Portanto, a
fuga escrava, somado as leis emancipacionistas que impactariam relativamente a liberdade dos
escravos da região, bem como as epidemias e moléstias que grassavam no meio urbano local e,
por conseguinte a vitalidade dos escravos, foram entre outros, aspectos determinantes no que
tange ao processo de desintegração demográfica do escravismo em Macapá na segunda metade
do século XIX.

Palavras-chave: Espaço urbano; População escrava; Fugas de cativos; Século XIX;


Amazônia, Macapá.
ABSTRACT

The research analyzes the reasons that contributed to the depopulation process (process which
qualify for "crisis") of enslaved blacks contingent in Grand Para province, notably in the city
of Macapa in the historic interstices between 1856 to 1886. More that landfilling as the only
aspects threads or possibly related to this fact in such a context, an attempt was made,
concomitant to this, by incurring some sparks of "experiences, and tensions" which certainly
involved the daily life of the local black captivity. To this end, then, we resort to a set of
documentary sources, both primary and printed and manuscript on the study period such as
journals of Pará and ecclesiastical press, ministerial reports of the empire, reports and speeches
of leaders, almanacs, census and letters of manumission, all concerning the decades of 1856,
1860, 1870 and 1880. Therefore, the analysis of the sources had as theoretical basis assumptions
resulting from the historiography of the social history of black slavery, already well developed
in Brazil, with influences including, in current academic studies on the subject in the Amazon.
Therefore, the slave escape, added the emancipation laws that would impact the relative
freedom of the slaves in the region, as well as epidemics and diseases that raged on site urban
and therefore the vitality of slaves, were among other key aspects regarding the demographic
process of disintegration of slavery in Macapa in the second half of the nineteenth century.

Keywords: Urban Space; Slave population; Captive leaks; Nineteenth century; Amazon,
Macapá.
LISTA DE MAPA E FIGURA

Mapa 1: Raio representativo da área de circulação de escravos na segunda metade do século


XIX em localidades escravistas adjacentes a Macapá. Fonte: Google mapas 2015. Mapa
retrabalhado pelo autor .........................................................................................................p.53

Mapa: 1 BRAUN, João Vasco Manuel de. Carta topografica: da principal entrada do Rio
Amazônas, pello cannal chamado do norte, com os rios e terras que lhe são confrontantes
pertencem a Praça de Macapá. [S.l.: s.n.], 1790. ................................................................p.55

Figura 2: Traçado urbano da cidade de Macapá na segunda metade do século XIX ..........p. 43
Figura 3: Aspecto do meio urbano de Macapá no período pós-abolição: rua da praia, meados
de 1908-1920 ........................................................................................................................p.45

Gráfico 1: Demonstração da tendência e ritmo do processo de depopulação do contingente de


escravos em Macapá entre 1856-1888..................................................................................p.60

Tabela 3: “Quadro das libertações havidos na província até 31 de dezembro de


1878”.....................................................................................................................................p.66
LISTA DE TABELAS

Tabela 1: População escrava de Macapá (1773-1888) .........................................................p.21

Tabela2: Estimativas demográficas da população escrava de Macapá (século XIX)..........p.58


ÍNDICE

Introdução. p. 13.

Capítulo I

1.1. Macapá: escravidão negra, espaço urbano, deserções e tensões: breves incursões
analíticas. p. 19.

1.2. Outros enlaces entre escravidão e vivências no espaço urbano. p. 40.

Capítulo II

2.1. O “desagregar da escravidão negra em Macapá”: aspectos demográficos, leis


emancipadoras, manumissões e liberdade nas décadas finais do escravismo, 1870-1886. p. 56.
2.2. Repensando as estimativas demográficas da população escrava. p. 56.
2.3. A emancipação propalada nas leis. p. 63
2.4. “De minha livre e espontânea vontade”: a alforria as vésperas da Abolição em Macapá.
p. 72.

III. CONSIDERAÇÕES FINAIS. p. 79


IV. FONTES E REFERÊNCIAS. p. 81.
V. ANEXO. p. 88.
13

INTRODUÇÃO: à guisa de considerações

O poeta cria, o historiador argumenta e reelabora os sistemas de


relação do passado por representações da comunidade social que
estuda, e ao mesmo tempo por seu próprio sistema de valores e de
normas. O objeto da história é, sem dúvida nenhuma, a consciência
de uma época e de um meio, assim como é necessariamente
construção plausível e verossímil de continuidades e de
descontinuidades do passado, a partir de exigências cientificas.
(Arlete Farge)1

Talvez a maior problemática ou obstáculo que se interpõem diante daqueles que se


lançam no desafio laborioso de pesquisar qualquer aspecto da história da escravidão negra no
Brasil, e em especial na Amazônia, seja aquela tocante à carência de fontes documentais.2
Tanto mais quando a abordagem historiográfica deste assunto pretende estabelecer-se a partir
do próprio mundo do ser escravizado. Isto é, do seu universo próprio, da sua intimidade e
vitalidade social 3 numa determinada sociedade e conjuntura, enfim, sua história. Esta pesquisa,
não fugindo a esta “regra”, deparou-se por vezes com tal problemática, aguçada ao extremo
pela amarga e indigesta realidade da inexistência não apenas de arquivos e de outras instituições
públicas locais de fomento e suporte a tal gênero de pesquisa, como também de uma política
séria e perene de salvaguarda, valoração e sistematização dos registros histórico-documentais
pertinentes a história local, dispersos mundos a fora. Situação que por decorrência “obriga”
invariavelmente muitos investigadores locais a recorrerem a instituições alhures, detentoras
legalmente da posse de tais bens, principalmente os de períodos mais recuados da história
amapaense (sécs. XVIII, XIX). Entre as quais destacamos apenas no estado do Pará: o Arquivo
Público do Estado do Pará (APEP), Comissão Brasileira Demarcadora de Limites – MRE/PA,
Biblioteca “Arthur Vianna”, Biblioteca e Arquivo do Museu Emilio Goeldi, Instituto Histórico
e Geográfico do Pará (IHGPA), Coletoria da Fazenda Estadual entre outras.4

1
FARGE, Arlete. O sabor do arquivo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009. p. 93.
2
REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989, p. 14.
3
PANTOJA, Leandro de Freitas. Memória de sujeitos socioculturais da cidade de Macapá 1943 – 1970. Programa
de Bolsa de Iniciação Científica PROBIC/DINTER/UNIFAP, Relatório Final, Agosto/2014, p. 32.
4
C.f.: O 1º Relatório da comissão de arquivos. Confraria Tucujú, Comissão de Arquivos, Macapá, Março de 2009.
14

***

De todo modo, o historiador da escravidão em geral (seja da família, demografia,


resistência ou rebeldia escrava etc.) se depara sempre com uma “situação dilemática”, se
considerarmos que o mesmo, em seu métier de lhe dar com seu principal instrumento de
trabalho – as fontes – segundo dizem Eduardo Silva e João José Reis “(...) está condenado a
trabalhar com as que encontra, não com as que deseja”5. Certos desde o princípio de que boa
parte das fontes as quais desejávamos pesquisar logo que iniciamos os primeiros levantamentos
e procedimentos heurísticos seriam de difícil acesso, ou ainda possivelmente inacessíveis,
mesmo que imprescindíveis ao trabalho, dadas as razões acima expressas, isso não nos
intimidou ou impediu de avançarmos, ainda que a duras penas, no estudo do objeto pretendido
para a pesquisa em pauta, afinal, conforme sentenciam os historiadores alinhavados à temática:
“Rui Barbosa não queimou tudo”.6 Nesse sentido, flexibilizamos e remanejamos não só os
vieses metodológicos previamente elaborados quando eventualmente necessário, como também
certos pressupostos, hermenêuticos e interpretativos relacionados ao trato analítico qualitativo
da heterogênea documentação primária (inclusive manuscrita) oitocentista perscrutada e
analisada, que era, a priori, completamente alheia aos intentos, aspirações e desejos dos
mancípios. Enfim, diante dessas circunstâncias que envolveram o processo de manuseio da
documentação pesquisada e consultada (periódicos da imprensa paraense e eclesiásticos,
boletins ministeriais, relatórios e falas de governantes, almanaques, recenseamentos e cartas de
alforrias, todos referentes as décadas de 1856, 1860,1870), foi salutar e sensato a observação
do tradicional e sistemático “bê-á-bá” metodológico do historiador conforme apontam Flávio
dos Santos Gomes e João José Reis. Qual seja o de ler e apreciar criticamente os documentos,
identificando suas circunstâncias e as intenções dos escribas e aquilo que eventualmente se
esconde nas entrelinhas, explorando pequenos indícios e tentando mesmo ouvir os silêncios.
Além do mais nos aconselham os ditos autores a não nos rendermos aos documentos da
repressão, mas, fundamentalmente usá-los como armas que podem abrir o caminho para a
história dos escravos.7
Prosseguindo, o longo e controverso debate historiográfico referente a escravidão negra
e suas consequências no país, promovido por historiadores e acadêmicos de distintos campos

5
REIS, João José; SILVA, Eduardo. Op., Cit., p. 14.
6
SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2001. pp. 47- 48.
7
GOMES, Flávio dos Santos; REIS, João José (Orgs.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil,
São Paulo, Companhia das Letras, 1996. p.10.
15

das ciências sociais desde meados do século XX, gerou sem dúvida, uma profusão de estudos
cujo alcance e dimensão atual seja difícil de se estimar ou ponderar a rigor, talvez. É fato ainda
que já na década de 1988 – emblemática ocasião ou não,8 para alguns, da efeméride
comemoração do centenário da Abolição da escravatura no Brasil –, as pesquisas e publicações
acadêmicas sobre o assunto já eram relativamente consideráveis em virtude, de um lado, do
referido acontecimento.9 Neste mister, contudo, grande parte desses estudos, e outros pretéritos
aos mesmos, – à exceção de alguns – tendiam ainda a privilegiar como foco de suas investidas
analíticas, e por razões diversas, as tradicionais e históricas zonas de economia de plantations
brasileiras. Um sistema complexo, caracterizado convencionalmente pelo usufruto intensivo de
significativas levas de escravos africanos tidos como engrenagem central de todo encadeamento
produtivo, pela monocultura de gêneros demandáveis, assim como pela fruição necessária de
vastos ou extensos domínios rurais (latifúndio). Além do que, é factual que tais investigações10
objetivando entre outros em compreender a dinâmica ou a natureza das relações escravista nas
ditas zonas (Nordeste açucareiro e áreas do Sudeste), tanto no contexto da sociedade colonial
como na que a sucederia, acabou por “sujeitar” outras regiões (com complexidades e processos
históricos específicos no que diz respeito a ocorrência do fenômeno da escravidão e da presença
do africano) aos ditames de “modelos analíticos” ou explicativos daí decorrentes, “relegando”
outros espaços, ditos “periféricos”, (cuja presença africana era considerada demograficamente
ínfima ou “quase insuspeita” como a Amazônia), a um certo e desditoso “ostracismo
historiográfico”. Nesse sentido, se perguntavam e refletiam criticamente os pesquisadores
Arthur Napoleão Figueiredo e Anaíza Vergolimo-Henry na introdução da obra A presença
africana na Amazônia colonial: uma notícia histórica publicado em Belém em 1990:

Por que a Amazônia foi tão pouco investigada? Talvez porque, durante muito
tempo, não se relativizou a razão histórico-econômica que sustentava a tese
de que a presença do negro na região foi inexpressiva porque o ciclo das
drogas do sertão havia repousado sobre a mão de obra indígena. Uma razão
que refletiu o viés de um modelo de historiografia brasileira que não
aprofundou a análise dos diferentes empreendimentos agrários (lavoura de
arroz e cana) entre outras atividades (obras de fortificação militar)
desenvolvidas na área no correr século XVIII, e nas quais a participação da
mão de obra escrava foi essencial. Ou ainda, que tentou explicar a Amazônia
a luz de um modelo traçado a partir da sociedade escravocrata do Nordeste.
Neste sentido, à proporção que a lavoura da cana não se organizou e portanto

8
Ver crítica de GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. 2. São Paulo: Ática, 1991, pp. 5-13. (Sob o signo
da negação).
9
SCHWARTZ, Stuart B. Op., Cit., p. 21.
10
Ver especialmente o capitulo I, A historiografia recente da escravidão brasileira, de SCHWARTZ, Stuart B.
Escravos, roceiros e rebeldes. pp. 21-88.
16

não se enquadrou no esquema da plantation açucareira, o negro se tornou um


elemento ausente na construção da sociedade amazônica.11

É fato que hoje (ou pelo menos desde as décadas de 1970/80) grande parte do
conhecimento histórico sobre a temática da escravidão negra africana no país advém de
consolidadas linhas de pesquisa – especialmente no campo da História Social – vinculadas aos
muitos Programas de pós-graduação stricto sensu em História das universidades Brasil a fora.
Na região amazônica pesquisas hodiernas engendradas nesta perspectiva têm ampliado, ainda
que de modo comedido, o repertório historiográfico e o conhecimento sobre variados aspectos
do escravismo e em diferentes temporalidades e recortes espaciais. Ainda assim há muito o que
conhecer dos “mundos da escravidão” na região, particularmente no Amapá.
Como parte salutar do processo da presente pesquisa, a feliz tentativa de conhecimento,
diga-se em parte, da amplíssima historiografia sobre o escravismo no país, e em particular na
Amazônia, configurou-se como etapa necessária e primordial. Momento importante porque
permitiu com que situássemos teórica e metodologicamente a abordagem do objeto de
investigação, bem como o traçado e o delineamento de um certo “perfil” ou postura
interpretativa durante o manejo da documentação como já ponderado brevemente linhas atrás.
Foi então que lançamo-nos nesta complexa e trabalhosa faina intelectual.
Entretanto, asseveramos que são parcos os textos ou formulações de síntese ocupados
da análise da produção historiográfica brasileira sobre a escravidão negra. Destacamos aqui a
obra do conhecido brasilianista Stuart Schwartz, Escravos, roceiros e rebeldes publicada em
2001, obra a qual tivemos acesso.12 Na verdade, um capítulo específico deste livro denominado
“A historiografia recente da escravidão brasileira”. Neste texto o autor toma o centenário da
abolição como ponto de partida para um balanço ou recapitulação da historiografia da
escravidão ao longo dos últimos quarenta anos, com menção também aos trabalhos de autores
estrangeiros relacionados ao tema. Procede em seguida de uma discussão das principais
tendências e perspectivas que balizaram as diversas produções surgidas nesse interstício de
tempo no país. O texto do autor ao final nos dá uma dimensão desse colossal avanço do saber
historiográfico. Assim sendo, foi então que compreendemos que, ainda que a historiografia do
escravismo brasileiro tenha avançado de modo significativo e qualitativo e desnudado muitas
questões, problemáticas, mitos e certas concepções generalizantes, especialmente aquelas

11
VERGOLINO-HENRY, Anaíza; FIGUEIREDO, Arthur Napoleão. A presença africana na Amazônia colonial:
uma notícia histórica. Belém: Arquivo Público do Pará, 1990. p. 27.
12
Ver QUEIRÓZ, Suely Robles Reis. “Escravidão negra em debate”. In: FREITAS, Marcos Cezar de Freitas
(Org.). Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998. pp. 103-118.
17

caudatárias das conclusões de Gilberto Freyre, ainda é fato que há muitas lacunas sobre o tema
em particular na região amazônica, como já suscitado. Ainda no processo de levantamento e
análise bibliográfica e já de posse das indicações postas por Stuart Schwartz (que cita poucos
estudos sobre a Amazônia) no sobredito trabalho, nos movimentamos em direção à produção
historiográfica regional. Neste sentido deparamo-nos com interlocutores (considerados
pioneiros no estudo da história da presença africana na região) como Arthur Cézar Reis, Vicente
Salles, Antonio Carreira e Manuel Dias Nunes, Antônio Ladislau M. Baena, Manuel Nunes
Pereira e Arthur Vianna, cujos respectivos trabalhos foram sendo visitados, analisados e
eventualmente joeirados de modo que pudéssemos coligir dos referidos estudos apenas as
poucas informações correspondentes aos anseios estabelecido na pesquisa. Não pondo em
xeque o mérito e a importância dos trabalhos destes autores, de todo modo foi a historiografia
regional mais recente13 (aí incluso teses, dissertações, artigos e outros gêneros ou formulações
acadêmicas) que nos subsidiou de maneira mais contundente e oportuna na construção da
monografia que ora apresentamos. Entre os trabalhos destacamos as contribuições, como se
verá mais a frente, de José Maia Bezerra, Flávio dos Santos Gomes, Jonas Marçal de Queiroz
e Mauro Cezar Coelho, Acevedo Marin, Nírvea Ravena, Patrícia Sampaio e Luís Balkar Sá
Peixoto Pinheiro, Verônica Xavier Luna. Alguns destes autores influenciaram e orientaram
muitas outras pesquisas sobre a escravidão negra na região em programas de pós-graduação em
história tanto na Universidade Federal do Pará (o Programa de Pós-graduação em História da
Universidade Federal do Pará – PPHIST, foi criado em 2004, em nível de mestrado. Em 2010,
teve o seu doutorado aprovado, cuja primeira turma iniciou em meados de 2011), como na
Universidade Federal do Amazonas através do seu programa – PPGH, cujo mestrado iniciou
suas atividades em 2006.

***

Nossa pesquisa objetivou analisar as razões que concorreram para o processo de


depopulação (processo o qual qualificamos de “crise”) do contingente de escravizados negros
na província do Grão-Pará, destacadamente na cidade de Macapá no interstício histórico entre
1856 a 1886. Mais do que nos atermos tão somente aos aspectos ou encadeamentos
possivelmente conexos a este fato em tal contexto ou conjuntura, tentou-se, concomitante a
isso, incorrer por algumas centelhas das “vivências, experiências e tensões” que certamente

13
Ver: QUEIROZ, Jonas Marçal de; COELHO, Mauro Cézar. Amazônia: modernização e conflito (séculos XVIII
e XIX). Belém: UFPA/NAEA; Macapá: UNIFAP, 2001. pp. 159-190.
18

envolveram o cotidiano do cativeiro negro local. Para tanto, desenvolvemos as duas seções que
compõem a presente monografia, a partir do diálogo com vários tipos de documentos, tanto de
natureza primária como impressa e manuscrita sobre o período delimitado na pesquisa tais
como: 1. Periódicos da imprensa paraense e eclesiásticos 2. Boletins ministeriais do império e
relatórios e falas de governantes 3. Almanaques 4. Recenseamentos 5. Cartas de alforrias. Toda
a documentação é referente as décadas de 1856, 1860, 1870 e 1880, a exceção da última
categoria de fontes, todas foram se encontram disponíveis em formato eletrônico na internet.
Por conseguinte, a análise das fontes teve como base teórica os pressupostos
decorrentes da historiografia da História social da escravidão negra, já bem desenvolvida no
Brasil, com influências, inclusive, em atuais estudos acadêmicos sobre o tema na Amazônia.
No primeiro capítulo tentaremos proceder de um exame de caracterização no que tange
ao fenômeno da escravidão negra na cidade de Macapá no decurso da segunda metade do século
dezenove, mais precisamente a partir de 1856 até meados 1870. Dessa forma, alguns aspectos
correlatos e possivelmente característicos do fenômeno em estudo serão apresentados e
circunstancialmente discutidos ao longo desta seção.
O capítulo seguinte procura analisar mais de perto então este “processo de
desagregação” da escravidão negra em Macapá detidamente a partir de 1870 a 1888. Temos
como premissas analíticas no escopo desta parte da pesquisa os seguintes elementos, que se
relacionam, de acordo com nossa investigação – tanto documental como bibliográfica – , com
o referido processo, quais sejam: o relativo impacto de algumas leis emancipadoras no âmbito
do cativeiro em Macapá; e por fim a liberdade escrava conquistada por meio da concessão ou
aquisição de títulos de manumissão ou cartas de liberdades (alforrias) pesquisadas junto ao
arquivo do cartório de 1º Ofício de Macapá (Cartório Jucá) correspondente aos anos de 1883 a
1886.
19

CAPÍTULO I

1.1 Macapá: escravidão negra, espaço urbano, deserções e tensões: breves incursões
analíticas

É “consenso” na historiografia hodierna dos assuntos amazônicos a assertiva quanto à


presença – e trânsito – de escravizados negros africanos e em diversas proporções, radicados
nos distintos espaços da Amazônia Portuguesa em sua época colonial, enquanto capitania, assim
como no contexto de província nos quadros político-administrativos, apriori, do Império luso-
brasileiro. Importa salientar também o fato de que o “primeiro” e “sistemático” impulso
quantitativo-demográfico da população negra africana, compulsoriamente levada a “condição
de cativo” para região, fora possível – consoante os estudos e fontes históricas convergentes ao
tema14 –, devido à criação e posterior subsídio e atuação mobilizados pela então Companhia
Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão,15 (1755-1778 – instituição responsável também
pela entrada regular de escravos negros traficados das praças africanas para a região), numa
historicidade convencionalmente denominada de “Era Pombalina”16 onde asseveradas
iniciativas “transformadoras” engendravam-se burocraticamente em vista do ainda “espaço
colonial” amazônico, neste caso sobre a “recém e juridicamente constituída” vila São José de
Macapá no alvorecer de 1758. A título de reforço do argumento exposto, recorramos as
considerações de Flávio dos Santos Gomes a esse respeito: “A partir da segunda metade do
século XVIII, o tráfico negreiro para essa área [Amazônia] foi incrementado. Este processo foi
decorrência da política pombalina na região. No governo de Francisco Xavier de Mendonça
Furtado (1751-1759), (...) a entrada de africanos para o Grão-Pará desenvolveu-se com maior
velocidade (...)”17, em virtude, segundo o mesmo autor, da criação da companhia acima
indicada. Sendo assim é entre os séculos XVIII, ou seja, a partir dos idos de 1750, e XIX, que

14
VERGOLINO-HENRY, Anaíza; FIGUEIREDO, Arthur Napoleão. A presença africana na Amazônia colonial:
uma notícia histórica. Belém: Arquivo Público do Pará, 1990. O conteúdo desta obra abarca importante repertório
de fontes históricas primárias transcritas acerca da escravidão negra na Amazônia colonial.
15
Cf.: DIAS, Manuel Nunes. Fomento e mercantilismo: a Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão (1755-
1778). Belém: UFPA, 1970, p. 157, RAYMUNDO, Letícia de Oliveira. O Estado do Grão-Pará e Maranhão na
nova ordem política pombalina: Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão e o Diretório dos Índios (1755-
1757). Almanack Braziliense, n. 03, maio, 2006, pp. 124-134. Cf.: também CARREIRA, António. A companhia
geral do Grão-Pará e Maranhão: o comércio monopolista Portugal-África-Brasil na segunda metade do século
XVIII. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1988. 1 v. pp. 149-150.
16
PINHEIRO, Luís Balkar Sá Peixoto. De mocambeiro a cabano: Notas sobre a presença negra na Amazônia na
primeira metade do século XIX. Terra das Águas, vol. 1, nº 1, 1999.
17
GOMES, Flávio dos Santos. A hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos nos
Brasil (séculos XVII-XIX). São Paulo: Ed. UNESP; Ed. Pollis, 2005, p. 46.
20

é possível cautelosamente considerar a afirmação definitiva da força de trabalho cativa negra


africana “multiétnica” nos diversos campos de necessidades, instâncias e distantes rincões da
“sociedade amazônica” e por vias lógicas no contexto do espaço “citadino” da cidade de
Macapá no período compreendido neste estudo. É destacável também o fato de que desde a
centúria dos seiscentos, meados do século XVII, na região identificada com o atual Estado do
Amapá – para não incorrermos em anacronismos ou reducionismos históricos – “registra-se”,
por ocasião de aventureiros Ingleses, Holandeses e outros estrangeiros cobiçosos, “focos” da
presença de africanos assolados nas paragens, das então, Terras do Cabo Norte (situadas entre
o rio Amazonas e o rio Oiapoc (Yapoc) ou de Vicent Pinzon) pelo julgo do cativeiro como
assim explicitou Arthur Cesar Ferreira. Reis em obra dedicada a história amapaense.18
Neste capítulo tentaremos proceder de um exame de caracterização no que tange ao
fenômeno da escravidão negra na cidade de Macapá no decurso da segunda metade do século
dezenove, mais precisamente a partir de 1856 até meados de 1870. Para isso, como se verá,
além de sistemática pesquisa bibliográfica nos valemos também de fontes documentais
primárias impressas, bem como manuscritas sobre o período, tais como: periódicos da imprensa
paraense e eclesiásticos, relatórios e falas de governantes da província paraense, almanaques,
recenseamentos, entre outros. Dessa forma, alguns aspectos correlatos e possivelmente
característicos do fenômeno em estudo serão apresentados e circunstancialmente discutidos ao
longo desta seção.

***

Atendo-nos as quantificações censitárias respeitantes à “demografia escrava” no termo


de Macapá no período correspondente aos anos de 1856 a 1888 (ano da desagregação jurídica
do sistema escravista no Brasil) coligidos da pesquisa realizada pela autora Verônica Luna,19
alocadas na tabela abaixo, é possível tendo-as por base, refletir, ou de outro modo suscitar
algumas críticas, qualificadas contudo e com as devidas ressalvas, naquilo que determinadas
peças documentais contemporâneas deste interstício “expressaram”, as quais não foram
estudadas pela pesquisadora.

18
REIS, Artur Cézar Ferreira. Território do Amapá: perfil histórico. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa
Nacional, 1996, p. 15. Cf.: REIS, Arthur Cézar Ferreira. O negro na empresa colonial dos portugueses na
Amazônia. Lisboa: Papelaria Fernandes, 1961, pp. 02-03; SALLES, Vicente. O negro no Pará, sob o regime da
escravidão. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas e Universidade Federal do Pará, 1970.
19
LUNA, Verônica Xavier. Escravos em Macapá: africanos redesenhando a Vila de São José. João Pessoa-PB:
Editora Sal da Terra, 2011, pp. 71-74. Os números tangentes a segunda metade do século XIX organizados nesta
tabela, serão ao longo deste capítulo, resgatados.
21

Tabela 1: População escrava de Macapá (1773-1888)

Ano 1773 1778 1788 1808 1823 1848 1856 1876 1882 1885 1888

Escravos 325 681 750 706 940 1.870 1.158 563 376 223 211

Fontes: “Cruzamento entre dados oficiais – Arquivo Ultramarino (1773); Mapa das famílias dos índios (1778), e
outros autores regionais (BEZERRA NETO, 2001); (SALLES, 1992) e (ACEVEDO MARIN, 1985) ” constantes
e adaptado do trabalho de Luna (2011, p. 71). Acrescemos os dados de ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth.
Censo de Macapá – 1808. In: Anais do Arquivo Público do Estado do Pará: Secretaria de Estado da Cultura, 1995.
V. I, t. pp. 179-220 e do Almanak Paraense de Administração, Commercio, Industria e Estatistica para o anno de
1883.

Os “registros censitários” acrescidos na tabela acima atinente aos anos de 1808 e 1883
acerca da “demografia escrava” em Macapá, respectivamente quando da sua conjuntura de vila
e adiante cidade, correspondem na devida ordem as seguintes fontes: “Descriptção e estado
actual da população da Villa de S. José do Macapá, anno de 1808” e “Almanak Paraense de
Administração, Commercio, Industria e Estatistica para o anno de 1883”. Ambos indicam
entre outros aspectos, a “contabilidade geral”, ou talvez “estimada” ou aproximada do
quantitativo de escravizados negros alocados na região. Considerando as informações
emanadas daquele censo, é possível por meio de cuidadoso trato paleográfico, considerar
informes como dos: “cabeças de família” (no sentido de que o referido documento destaca
nominalmente o membro “chefe”, ou responsável pela unidade familiar correspondente,
totalizando 304 destas) – destacando sua idade, profissão, “condição civil” etc. – ; o
enquadramento da mão de obra escrava africana (aspecto salutar para o presente trabalho) que
na ocasião, consoante a mesma fonte, destinava-se em sua grande maioria aos “roçados” e a
policultura agrícola (milho, algodão, feijão e mandioca) – além de outros vínculos de trabalhos
como domésticos ou artesanais (como no caso das “pretas” fiadeiras) –, especialmente nos
campos de cultivo de arroz,20 conjuntamente com indígenas e livres. Sobre a “economia
agrícola” em face específica da atividade rizicultora em Macapá, esta foi desde a segunda
metade do século XVIII recorrente entre os colonos que também se somava a cultura dos
gêneros de consumo acima elencados, e, ao que tudo indica, importantes no suprimento da dieta
colonial local e regional do período. Rosa Elizabeth A. Marin analisando com acuidade o
processo de “estagnação e prosperidade de Macapá colonial” (da segunda metade do século

20
Outros aspectos do documento: “Descriptção e estado actual da população da Villa de S. José do Macapá,
anno de 1808” são ressaltados como o “quantitativo de filhos” e suas respectivas “idades”; e a “naturalidade” do
“cabeça de família” etc. Em alguns núcleos familiares, as mulheres, em vista de serem solteiras ou mesmo viúvas
como nos casos das senhoras Maria Joaquina: “idade de 46 annos, branca, viúva” e Maria Roza: “idade 60 annos,
branca, viúva”, entre outras, eram por esse motivo as representantes e provedoras da subsistência dos seus lares.
22

XVIII) no que tange sua inserção na malha econômico-mercantil regional, como possível
“possessão agrícola próspera” no vislumbrar dos administradores, demonstra que: “os colonos
de Macapá e Mazagão inseriram-se na malha da economia mercantil através da produção de
arroz e algodão. A atividade principal, plantar arroz, não concorria com a mandioca,
generalizada nos ‘lugares de índios e em vilas mais distantes”.21 Coerente com estes argumentos
Flávio Gomes assinala que “em termos de agricultura, as principais áreas de desenvolvimento
no Grão-Pará no mesmo período ficavam somente em torno de Belém e delta de Macapá”.22
Neste mister, ainda que “esforços múltiplos” tenham sidos engendrados por um “corpo
de agentes diversos” (burocratas em âmbito geral, colonos, escravos africanos e indígenas e
outros sujeitos) as expectativas de prosperidade econômica local “premente” e “estável” não
alçaram concreção. Em vista disso, e recorrendo a mesma autora, a referida asseverava que:
“(...) a visão desconexa dos sistemas de produção agrícola, beneficiamento e comercialização
conseguiu provocar desequilíbrios, emperrar avanços técnicos apropriados a realidade local e
elevar os rendimentos”.23
Dispensando novamente atenção aos dados sistematizados na tabela acima,
consideramos pertinente observá-los com maior acuidade e circunspecção. Neste sentido, em
1788 indica-se a cifra de 750 escravos sitos na vila de Macapá. Após quase vintes anos, em
1808, pelo recenseamento “computa-se” a soma de 706 (com predomínio numérico de homens,
sobre mulheres, respectivamente 394 e 312), excetuando desse total os indivíduos
discriminados como mestiços24 que, ao todo, quantificavam, entre homens 26, (52%) e
mulheres 24, (48%), cinquenta pessoas. Em vista disso, procedendo de operação subtrativa de
tais números, observa-se que num “intervalo” próximo de duas décadas, isto é, no decurso dos
anos de 1788 a 1808, “apenas” 44 (quarenta e quatro) cativos teriam supostamente “conquistado
a liberdade”, possivelmente pelo meio mais recorrente, a fuga, quase sempre endereçada as
regiões constituídas de amocambados. Compreensão esta, exequível quando de uma leitura
literalmente singela e acrítica da historicidade e ocorrência destes dados.25

21
ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth. Prosperidade e estagnação de Macapá colonial: as experiências dos
colonos. In: GOMES, Flávio dos Santos. (Org.). Nas terras do Cabo Norte: fronteiras, colonização e escravidão
na Guiana brasileira (séculos XVIII-XIX). Belém: Editora Universitária/UFPA, 1999, p. 44.
22
GOMES, Flávio dos Santos. A hidra e os pântanos. Op. cit., p. 45.
23
ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth. Prosperidade e estagnação de Macapá colonial: as experiências dos
colonos. In: GOMES, Flávio dos Santos. (Org.). Nas terras do Cabo Norte. Op. cit., p. 44.
24
Provavelmente “livres” ou sob outras condições compulsórias de trabalho.
25
Por outro lado, não descarta-se o fato de que eventuais erros possam estar contidos nestes números, uma vez
que verificou-se em tal manuscrito algumas imprecisões de cálculos – no que concerne ao quantitativo de escravos
–, postos ao final do documento. A ilegibilidade em alguns trechos da documentação, bem como a qualidade da
sua digitalização inviabilizam a tomada segura de conclusões ou afirmativas, nos possibilitando muito
23

Assim sendo é com alguma estranheza que recepcionamos a denotação demográfica


posta na tabela expressa acima (ou mesmo do próprio conhecimento historiográfico constituído
a esse respeito), a qual aponta para uma diminuta frequência de deserções escravas em quase
dois decênios nessa região setentrional da Amazônia. Nesta ótica evocamos novamente uma
passagem da obra de Flávio dos Santos Gomes para com a referida época: “ainda que não fosse
a única, a região do Amapá era, de fato, um dos principais focos de mocambos. (...) Nessa
região algumas autoridades alegavam que as fugas aumentavam porque não havia
patrulhamento disponível e eficiente”26. Em outro texto o referido autor também assevera o
mesmo aspecto: “na área do Amapá, coincidência ou não, mais do que em outra região brasileira
no período colonial, as fugas de escravos e a movimentação de quilombolas aumentaram
enormemente nas últimas décadas do século XVIII”.27 Do mesmo modo, Jonas Marçal de
Queiroz mesmo não apresentando números concretos, mas não ignorando o fato, assegura
veementemente que neste mesmo contexto:

(...) as fugas para a Guiana Francesa e dos escravos desta para o Grão-Pará
eram tão constantes (...) que as autoridades de ambos os lados
frequentemente negociavam a troca de fugitivos. Essa situação perdurou até
1848, quando um decreto do governo francês aboliu definitivamente a
escravidão nas suas colônias. A partir daí, as fugas de escravos continuaram
ocorrendo, mas apenas num sentido. (...)28 (grifos nossos).

Sobre qual cifra numérica podem ser traduzidas estas constantes evasões de escravos a
qual se refere o autor? De qualquer forma, parece pairar no ar um clima de incongruências no
confronto dos números acima problematizados com a historiografia a qual nos propomos
dialogar.
Ainda referente ao recenseio relativo ao ano de 1808, coligimos também: de um total de
304 cabeças de famílias como outrora indicado, em torno de 138, próximo de 45%, (de acordo
com nossa transcrição posto que acessamos a documentação em seu estado “primário” e em
formato digital. Ver nota número 11) desfrutavam da posse de escravos e cuja distribuição era
numericamente oscilante. Isto significa que no interior destes números tal divisão poderia ser

limitadamente apenas inferir ou conjecturar os informes. Tomamos como exemplo o “número exato” de famílias
proprietárias de escravos na vila neste período.
26
GOMES, Flávio dos Santos. Op. cit., p. 52.
27
GOMES, Flávio dos Santos. Fronteiras e mocambos: o protesto negro na Guiana brasileira. In: GOMES, Flávio
dos Santos. (Org.). Nas terras do Cabo Norte. Op. cit., p. 249.
28
QUEIROZ, Jonas Marçal de. História, mito e memória: o Cunani e outras repúblicas. In: GOMES, Flávio dos
Santos. (Org.). Nas terras do Cabo Norte. Op. cit., p.321.
24

ainda mais desigual. Das possíveis 138 famílias proprietárias de “pretos e pretas”29 neste
período, estimamos que apenas 39 possuíam plantéis entre cinco a no máximo cinquenta e cinco
escravos. Uma estimativa representativa de aproximadamente 28%. Portanto, o percentual de
pequenos senhores na vila era consideravelmente superior.
Sensível na interpretação documental, apontamos para existência de uma suposta “elite
agrária” e escravista local ou de outro modo, para a presença de grupos ou famílias abastadas
(proprietárias) que concentravam boa parte do contingente cativo africano em torno de si, e por
vias óbvias, as terras ou campos agricultáveis. É o caso, para exemplificar, do senhor Manoel
Vaz de Campos, “Lavrador. Natural da Villa de Macapá. Idade 38 annos. Branco. Casado.”
Este chefe de família era “possuidor”, conforme a lacunosa em alguns trechos fonte censitária,
de “numerosa prole”. Além dos seus seis filhos “de sangue” tinha como agregados um “mestiço
chamado Joze Francisco de 25 annos; Joze de 30 annos”; cinco índias viúvas fiadeiras, uma
mestiça e mais dois índios todos postos à lida em suas lavouras. Somado a isso, o grande senhor
Manoel Vaz era detentor ainda de um plantel de 55 escravos africanos. Destes, quarenta eram
também destinados a faina em suas lavouras (algodão, milho, arroz, feijão e mandioca) e o
restante, quinze “pretas”, como fiadeiras. Debruçando-nos sobre tal caso é possível conjecturar
talvez que Manoel Vaz de Campos pudesse ter herdado boa parte dos seus escravos ou mesmo
que alguns destes tenham se reproduzido naturalmente constituindo, quiçá, pequenos “núcleos
familiares”30 e com isso, avultado consideravelmente o seu plantel. Tentamos então verificar
uma possível relação parental ou laços familiares deste senhor mediante consulta ao “Mappa
das Familias, que, a excepção das dos Índios aldeados, se achavão existindo em cada huma da
mayor parte das Freguesias de ambas as Capitanias do Estado do Grão-Pará, e de sua
possibilidade e applicação no anno de 1778”, como estratégia ou meio para se ratificar talvez
esta hipótese, uma vez que Vaz de Campos nestes idos teria a idade de oito anos. Desta feita
nos deparamos neste contexto setecentista com a existência dos cabeças de família, Antônio
José Vaz,31 branco, casado, capitão auxiliar; e Caetano Vaz, também branco, casado e tenente

29
A documentação censitária refere-se aos escravos como “pretas e pretos” quando da discriminação do gênero.
Também ressaltamos que a mesma nos leva a crer que só haviam escravos privados e não públicos no período.
Sobre escravos públicos ver: ROCHA, Ilana Peliciari. "Escravos da Nação": o público e o privado na escravidão
brasileira, 1760-1876. Tese (Doutorado em História Econômica) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.
30
Estudo esclarecedor sobre a família escrava no Brasil do século dezenove encontra-se em: SLENES, Robert. Na
senzala uma flor – Esperanças e recordações na formação da família escrava: Brasil Sudeste, século XIX. 2. ed.
corrig. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 2011.
31
Sobre este militar encontramos referências suas também na obra de Flávio Gomes. Em 1793, na região do
Amapá, as autoridades se empenhavam na captura dos escravos de Thomé Bexiga e os do capitão Antônio José
Vaz (não se sabe exatamente o número de cativos em fuga dos dois senhores): “por serem os que no campo
25

da tropa paga, os quais supomos pertencer ao mesmo “tronco familiar” do senhor Vaz de
Campos. Porém, as informações ali contidas não nos credenciam, portanto, ao estabelecimento
de qualquer conclusão nesta direção, menos ainda sobre o “processo” de constituição dos
empreendimentos econômico-escravistas deste senhor na vila de Macapá destes tempos.
Condição similar e com algumas modestas diferenças era a da senhora Iharezade Jezus
de 70 anos de idade, natural da “Ilha Gracioza”, viúva, “possuidora” de trinta e sete
escravizados africanos de ambos os sexos, e mais oito mestiços destinados ao labor na lavoura
de gêneros e a “fiar”. Por sua vez, Lucas Valente do Couto originário da Praça de Mazagão era
detentor de vinte e quatro escravos africanos, além de dois indígenas na condição de agregados.
Já o senhor Manoel Antônio de Miranda, natural da “Ilha Gracioza”, detinha dezoito escravos
alocados de igual forma. Tamanhos “quantum” de cativos concentradas nas mãos destes e de
outros poucos, enseja a inferência sobre o controle, a violência, resistência (relações
escravagistas) e específicas dimensões da escravatura na vila de Macapá no início do século
XIX. Isto é, o ritmo, a intimidade e vitalidade sociopolítica da escravidão no dia a dia dos negros
e negras agrilhoados nos limites deste “establishment”32 historicamente instituído.
À medida que seguíamos perscrutando outros aspectos na mesma documentação, nos
deparamos na oportunidade com a lavradora, angolana, solteira e possivelmente ex-escrava,
Maria Roza, de 50 anos de idade, dona de um cativo negro posto a servi-la nos serviços
agrícolas. Todavia, não dispomos de indícios (para uma referência a Carlo Ginzburg33 quanto
a “possibilidade metodológica” do “paradigma indiciário”) ou de outras fontes que pudessem
dar conta de forma mais consistente sobre sua “realidade” naquelas circunstâncias históricas,
tendo em vista, que gozava então do status de “liberta” ou “manumissa” e da prerrogativa ou
possibilidade “legal” de escravizar outrem, como por certo fizera. Fato não raro em diferentes
épocas e locais, tanto nos espaços urbanos como nas zonas rurais escravistas. “(...) os escravos
podiam até sonhar em conseguir acesso à terra e eventualmente comprar um escravo, uma vez

participavam todas as novidades de Macapá aos amocambados”. APEP, Códice 277 (1793-1794), Ofício de
Manoel Joaquim de Abreu enviado ao governador dom Francisco de Souza Coutinho, 13.05.1793. Citado por
GOMES, Flávio dos Santos. Op. cit., p. 51. No “Almanach da Província do Pará para o anno de 1869” faz-se
alusão a algumas pessoas, as quais supomos pertencer a mesma linhagem familiar de Antônio José Vaz, a saber:
Francisco Gonçalves Vaz, vereador da Freguesia de S. José de Macapá e um dos suplentes do juiz municipal e
órfãos; Feliciano de Souza Gil Vaz, delegado de polícia e suplente da vereança daquele, e criador de gado vacum
na região do rio Macaquari.
32
Establishment é um termo do inglês significando, consoante o dicionário eletrônico Houass da Língua
Portuguesa (Versão 2.0a – Abril de 2007): “a ordem ideológica, econômica, política e legal que constitui uma
sociedade ou um Estado”.
33
GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas, sinais: morfologia e
história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, pp. 143-180.
26

conquistada a liberdade (...)”.34 A pretexto ilustrativo consideramos brevemente o caso


ressaltado por Manolo Florentino: “em janeiro de 1832 a polícia da Corte autorizou o despacho
de três africanas para Benguela. Remetia-as Maria Carneiro, ‘preta livre’ da qual Luiza, Vitória
e Joana eram escravas [sua] de antiga propriedade”.35

****

A vivência da escravaria nos “derradeiros” anos de 1856 a 1888 em Macapá ensejaram


algumas peculiaridades e, no limite de um contexto maior, drásticas mudanças. A “vila” “cedia”
lugar a “cidade”36 por meio de um ato político-administrativo consubstanciado na lei provincial
nº 281 de 6 de setembro de 1856 durante a vigência da governança do então tenente-coronel
Henrique Beaurapaire Rohan, cujo ato de solenidade de sua inauguração ocorrera dois anos
depois em 1858. Mais ao norte da região a fronteira historicamente litigada com a Guiana
Francesa constituía-se como um verdadeiro “lócus magnético” estratégico para a deserção e
recepção de mancípios e outros sujeitos, visto que aquele território, ainda contestado, era por
vezes motivo de querelas ou contendas diplomáticas que “desarmonizavam” a relação entre os
dois lados.37 Destarte, foi em tom de alerta e com certa preocupação que o Juiz de direito
Francisco Rodrigues Sette “escreveria” da vila de Macapá ao jornal Treze de Maio em abril de
1856 quando logo que por aqui aportara, em cumprimento ocasionalmente, das “(...)
recommendações de V. Ex.ª [de] dar informação circunstanciada acerca do estado deste
Termo, não só no que diz respeito a sua salubridade, e instrucção da população, como a
respeito da segurança individual e de propriedade, e administração da Justiça (...)”. Assim,
revelara que:

34
SLENES, Robert. Op. cit., p. 61. Parafraseando um argumento de Hebe Mattos.
35
FLORENTINO, Manolo. Sobre minas, crioulos e a liberdade costumeira no Rio de Janeiro, 1789-1871. In:
FLORENTINO, Manolo (org.). Tráfico, cativeiro e liberdade: Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005, p. 333.
36
Neste período com a elevação de Macapá ao status de cidade a divisão municipal da província ficou assim
organizada: 30 municípios, sendo 7 cidades e 23 vilas. Relatório do governo da província, ano de 1857. Disponível
em: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/519/000008.html; http://www.crl.edu/pt-br/brazil. Universidade de Chicago.
37
Cf.: CARDOSO, Francinete do Socorro Santos. O poder das autoridades e representações sobre o território
Contestado Franco-Brasileiro. In: COELHO, Mauro et all (Org.). Meandros da história. Belém: UNAMAZ, 2005;
CARDOSO, Francinete do Socorro Santos. Entre conflitos, negociações e representações: o contestado franco-
brasileiro na última década do século XIX. Belém: Associação de Universidades Amazônicas/Universidade
Federal do Pará/Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, 2008; ROMANI, Carlo. Aqui começa o Brasil: histórias
das gentes e dos poderes na fronteira do Oiapoque. Rio de Janeiro: Multifoco, 2013.
27

Este Municipio he sem duvida um dos desta Provincia, em que ha maior


numero de escravos, e todos crioulos ou mulatos. Se não existem fazendeiro
que possuaõ tão grande numero como os da Provincia do Sul, há alguns que
tenhão talvez mais de 40, sendo que mui rara he a pessoa livre, que não
possua um ou dois. Muitos prejuizos porem, tem ultimamente apparecido
nesta qualidade de bens. A proximidade em que estamos de Amapá, e de
Cayenna, e a circunstancia de serem todos os escravos marinheiros, faz com
que eles quando se desgostão de seus senhores, se evadão para aqueles
lugares.38

Neste excerto do relato da autoridade judicial, publicado naquele jornal em sua seção
“Parte Official” e diretamente remetida ao conselheiro Sebastião do Rego Barros39, então chefe
de polícia da província, aspectos importantes incialmente devem ser analisados: a dimensão
étnica (crioulização escrava) e “demográfica” da escravidão40 em Macapá. De maneira
respectiva poderíamos observar que naquele momento a miscigenação multiétnica (entre índios,
negros e brancos, o que atesta as características peculiares da formação étnica e social
amapaense) havia atingido um patamar considerável. O africano “in natura”, “legítimo” é não
mais parte “constituinte” da escravaria local segundo nos informa Sette, ou em outros termos,
“peça” “rara” circulante nessas paragens, posto que muitos cativos já haviam nascidos no
Brasil41 e obviamente na Amazônia e em Macapá. Se consideramos, neste sentido, que o último
carregamento de africanos traficados para a Amazônia se deu em 1834 “através da rota negreira
entre esta região e a África”42 e em setembro de 1850 edita-se a Lei Eusébio de Queiroz43 que
reprimira legalmente o tráfico negreiro transatlântico, e levando em conta o movimento ou fluxo
do tráfico interprovincial entre a Amazônia e outras regiões do Império, “que continuou ativo
mesmo na década de 1880, quando foram aprovadas pesadas taxas na importação de
escravos”44, é possível crer que para o referido contexto a presença de negros africanos
escravizados em Macapá e localidades rurais/distritais circunvizinhas tenha sido cada vez mais
diminuta ou no extremo, inexistente: “um espaço de uma urbanidade mestiça” etnicamente. A

38
Treze de Maio, 7 de maio de 1856, n. 729, p. 2.
39
Treze de Maio, 31 de maio de 1856, n. 749, pp. 1-6.
40
Ver B. Barickmam, Um Contraponto Baiano, p. 263 e Nicolau Parés, “O processo de crioulização no Recôncavo
baiano (1750-1800)” in: Revista Afro-Ásia, n.33 (2005), pp. 87-132.
41
Cf.: especificamente o capítulo I de: PALHA, Barbara da Fonseca. Escravidão negra em Belém: mercado,
trabalho e liberdade (1810-1850). Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Pará, IFCH, Programa de
Pós-Graduação em História, 2011, p. 40.
42
BEZERRA NETO, José Maia. Escravidão negra na Amazônia (Sécs. XVII-XIX). Belém: Paka-Tatu, 2001, p.
33. Cf.: SALLES, Vicente. Op. cit., pp. 60-64.
43
NEVES, Maria de Fátima Rodrigues das. Documentos sobre a escravidão no Brasil. São Paulo: Contexto, 1996,
(Textos e documentos; 6), pp. 84-86.
44
CAVALCANTE, Ygor Olinto Rocha. “Uma viva e permanente ameaça”: resistência, rebeldia e fugas de
escravos no Amazonas Provincial. (c. 1850- c. 1882). Dissertação (Mestrado em História). PPGH – Universidade
Federal do Amazonas. 2013, p. 53.
28

mestiçagem45 ou “crioulização”, portanto era uma tendência que se processava desde os


primórdios da colonização amazônica ao passo que no final da segunda metade do século XIX:
“em 1872 por exemplo, entre o contingente populacional escravo no Grão-Pará, formado por
27.458 indivíduos, somente 2% eram africanos, ou seja, 550 pessoas”.46 Sendo assim, parece
ter eco a “constatação” histórica e empírica descrita por aquele juiz, uma vez que significativa
parte da literatura historiográfica acessada, de forma consensual, corrobora também na direção
deste fato. Aspecto este que não se coaduna de maneira homogênea com a realidade de outras
regiões do Império, especialmente aquelas em vultoso processo de expansão econômica, a
exemplo do sudeste escravista que mesmo após 1850 servia-se ainda de um considerável
contingente de africanos.47
Ao se referir ao contingente de escravos “crioulos ou mulatos”, evocamos um dado
anteriormente mencionado a esse respeito. A convicção do magistrado de que “este Municipio
he sem duvida um dos desta Provincia, em que ha maior numero de escravos” pode ser
“fundada” talvez na estimativa demográfica que se registra para o ano de 1856, cuja monta de
cativos redundava na ordem de 1.158. Se nos atermos num exame comparativo como nos
insinua realizar a sentença em destaque, conjecturamos que no mínimo o referente indivíduo
tenha visitado diversos municípios e localidades “escravistas” da província paraense, ou de
outras, neste ou em anos pretéritos.
Provino Pozza Netto pesquisando o “impacto das ações emancipacionistas no contexto
escravocrata do Amazonas Imperial” 48 entre 1850 e 1887, nos apresenta alguns números, com
ressalvas quanto a fidedignidade dos mesmos, tangentes a população escravizada por estes idos
ali. Dessa forma, situa que em 1856 a província amazonense em âmbito geral calculava a leva
de 992 escravos, com predominante concentração destes na capital como se verá na sequência.
Por sua vez, Ygor Olinto analisando “as fugas escravas no Amazonas da segunda metade do
século XIX”, e secundado pelos dados constantes nos Relatórios de Presidente de Província
de 1856, pondera que para a capital Manaus, no referido ano, o “quantum” de cativos traduzia-
se na cifra de 376.

45
Na Amazônia consoante Bezerra Neto, “o processo de mestiçagem ocorreu de forma multifacetada, envolvendo
os grupos indígenas em suas diversas formas de contato com os conquistadores europeus e com seus escravos
africanos compulsoriamente introduzidos na região”. Op. cit., p. 45.
46
BEZERRA NETO, José Maia. Op. cit., p. 45.
47
MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista (Brasil, século XIX).
3ª ed. rev. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2013, p. 116.
48
POZZA NETTO, Provino. Ave libertas: ações emancipacionistas no Amazonas Imperial. Dissertação (Mestrado
em História). PPGH – Universidade Federal do Amazonas. 2011, p. 23.
29

Outras regiões do interior da supracitada província como Bela Vista, Silves, Barcelos,
Maués e Tefé a população escrava estava na devida ordem assim distribuída: 184, 145, 45, 77,
90. Diante disso dar como certo este autor que a “escravidão no Amazonas conheceu um perfil
(...) eminentemente urbano”.49 Aspecto este, ao que tudo indica e assim entendemos,
característico também do cativeiro negro em Macapá de meados da segunda metade do
oitocentos; porque não durante todo processo de constituição de Macapá como urbes! Contudo,
ressalta-se que Manaus, distintamente de Macapá, como se sabe, constituía-se do recente status
de capital de uma província do Império desde os idos de 1852.
De qualquer forma, do mesmo modo que em princípios da centúria oitocentista houvera
na vila de Macapá uma desigual desproporção ou distribuição da população escrava que
concentrava-se sobremodo em torno de um pequeno grupo de grandes senhoras e senhores
proprietários, na segunda metade da mesma centúria conforme atestou Francisco Sette, “há
alguns que tenhão talvez mais de 40, [e] sendo que mui rara he a pessoa livre, que não possua
um ou dois”.50
A consideração mais imediata e literal a respeito disso pode se relacionar ao fato de que
o acesso a mão de obra escrava nesse contexto talvez não fosse “privilégio de poucos”, e ainda
relativamente fácil: considerando evidentemente as peculiaridades, meios ou formas de acesso
a esse bem circunstancialmente, inclusive por indivíduos manumitidos ou libertos (“negros ou
crioulos senhores”) e lavradores pobres.51 Todavia, sublinhamos ainda que a posse ou
concentração “expressiva” de cativos em torno de alguns poucos proprietários, conforme
aponta o fragmento, (“talvez mais de 40”), implicitamente infere que apenas uma irrisória
parcela da população local ou no limite e quiçá uma “aristocracia rural macapaense” (tendo
em vista que a partir de 1850 com o cessar do tráfico atlântico e com a escassez de novos braços,
os preços dos escravos subiram de forma considerável)52, gozasse desta condição ou apanágio
– provavelmente um relevante indicador de hierarquia e status social considerável nesta
sociedade.

49
CAVALCANTE, Ygor Olinto Rocha. Op. cit., p. 39. Importante salientar que a “província do Amazonas possuía
o segundo maior percentual de escravos vivendo em espaço urbano de todo o Império (50,9%). Somente o Rio de
Janeiro possuía percentual maior de cativos vivendo em ambiente urbano (76,5%)”. Ver CAVALCANTE, Ygor
Olinto Rocha; SAMPAIO, Patrícia de Melo. “Histórias de Joaquinas: mulheres, escravidão e liberdade. (Brasil,
Amazonas: séc. XIX) ”. Afro-Ásia, n. 46, (2012), pp. 97-120.
50
Treze de Maio, 7 de maio de 1856, n. 729, p. 2.
51
Ver: JÚNIOR, Carlos Zacarias de Sena. Entre a pobreza e a prosperidade: o pequeno proprietário de escravos
em Salvador. 1850-1888. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 1997. Disponível em: http://www.ppgh.ufba.br/wp-content/uploads/2014/07/Entre-a-
Pobreza-e-a-Propriedade-final.pdf.
52
GRINBERG, Keila; PEABODY, Sue. Escravidão e liberdade nas Américas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013,
p. 110.
30

Posto isso, não raro fosse talvez se deparar pelo espaço urbano e localidades adjacentes
(ver mapa 1) da cidade Macapá com cativos “crioulos” aplicados em determinadas atividades
produtivas ou quiçá, exercendo com certa margem de autonomia algum ofício ou labor
(vaqueiros, calafates, lavradores, etc.) pelos ditos meios; dado que uma certa concepção teórica
da escravidão admite que: “os proprietários, e a sociedade como um todo, foram sempre
obrigados a reconhecer certo espaço de autonomia para os cativos”.53 Nesta direção
viabilizamos a possibilidade da existência em Macapá de mancípios ladinos, ou seja, a presença
de uma “categoria” de trabalhador escravo característicos dos contextos citadinos. Indivíduos
quase sempre prendados ou qualificados em algum ofício/profissão, habilidade ou atividade
laboral típicas destes espaços como forma de sobrevivência como se tentará verificar mais à
frente quando da análise dos títulos de manumissão (cartas de liberdades, alforrias) concedidos
ou conquistados pelos escravos em Macapá as vésperas da Abolição, entre 1883 e 1886, como
também por meio dos contratos de compra e venda dos referidos.
Abrindo um lacônico adendo sobre a ocorrência da escravidão urbana (diga-se uma
abordagem recente na historiografia brasílica), aludimos para prevalência ainda, ao menos em
nível regional, de um modesto conhecimento historiográfico acerca deste fenômeno
especificamente na temporalidade a qual nos propomos pesquisar.
As poucas formulações acadêmicas sobre a região assentam como recorte analítico a
cidade de Belém e em diferentes momentos do século XIX – dado o fato de ser então, e entre
outros, um salutar “pólo comercial da mão de obra escrava na província, não apenas fornecendo
trabalhadores cativos como importando eles das regiões interioranas”.54 Porém, há estudos
recentes, mencionados outrora em nossa pesquisa, que dispensam atenção para outros espaços
ou localidades da Amazônia, quais sejam os de Provino Pozza Netto e Ygor Olinto Rocha
Cavalcante (considerando cautelosamente as especificidades dos seus respectivos objetos de
estudos) para o Amazonas Imperial a partir de 1850 até meados da década da Abolição, ainda
que não sejam tão diretamente voltados para tal “tipo” de escravidão.
No rol dos estudos históricos sobre a questão da escravidão urbana no Brasil, elencamos
os trabalhos de pesquisadores, alguns clássicos sobre o assunto, como Mary Karasch, Leila
Mezan Algranti, Luís Carlos Soares, Sidney Chalhoub e Sandra Graham para com a cidade do

53
REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo,
Companhia das Letras, 1989, p. 21.
54
BEZERRA NETO, José Maia. “Mercado, conflitos e controle social. Aspectos da escravidão urbana em Belém
(1860-1888)”. História & Perspectivas (UFU), v. 22, n. 41, jul./dez. 2009, pp. 267-298.
31

Rio de Janeiro; João José Reis, para Salvador; Wissenbach, para São Paulo; José Amaral Lapa,
para Campinas; Marcus Carvalho,55 para Recife.
As pesquisas realizadas por José Maia Bezerra Neto para a Belém citadina desdobraram-
se em trabalhos como, Mercado, Conflitos e Controle Social. Aspectos da escravidão urbana
em Belém (1860-1888). Neste texto o autor acompanha as histórias de vários escravos, ainda
que fragmentadas, “presentes nos anúncios, informações e notícias estampadas no Diário do
Gram-Pará – DGP e Diário de Notícias – DN,”. A partir desta premissa elabora uma “(re)leitura
de variados aspectos dessa escravidão (mercado, controle social e os conflitos sociais dentro do
espaço urbano) na capital do Pará”; tema segundo ele, pouco estudado pela historiografia
regional.56 Ao transpormos este recorte ou tal abordagem temática específica ou mesmo a
ocorrência histórica da escravidão negra em âmbito geral para Macapá, especialmente para com
a segunda metade do siècle dix-neuf, a lacuna ou a “obscuridade historiográfica” é ainda mais
delicada, a ponto de ser considerado para alguns uma problemática incômoda e
academicamente “desestimulante” a produção do conhecimento histórico local sobre o assunto.
No decurso desta pesquisa outras produções acadêmicas do sobredito historiador
tocantes a questão acima posta foram se insurgindo. Em Histórias urbanas de liberdade:
escravos em fugas na cidade de Belém, 1860-1888, o foco recai novamente sobre a capital
paraense com alguns incursos analíticos por seus territórios adjacentes. Pesquisando também
neste trabalho os relatos de fugas publicados nos mesmos semanários do estudo acima indicado,
José Maia Bezerra Neto procurou observar a “riqueza das relações no universo social da

55
Estudo pioneiro pode ser encontrado no trabalho da brasilianista KARASCH, C. Mary. A vida dos escravos no
Rio de Janeiro 1808-1850. São Paulo: Companhia das Letras. 2. ed., 2000. Para compreensão do funcionamento
do sistema escravista urbano, indica-se a obra clássica de WADE, Richard. Slavery in the Cities the South, 1820
– 1860. Londres, Oxford University Press, 1964. Cf.: ALGRATI, Leila Mezan. O feitor ausente: estudo sobre a
escravidão urbana no Rio de Janeiro. Ed. Petrópolis/Ed. Vozes, 1988; SOARES, Luís Carlos. “Os escravos de
ganho no Rio de Janeiro do século XIX”. Revista Brasileira de História, São Paulo (Vol. 8/ n.º 16), março de
1988/ agosto de 1988, pp. 107-142. (Número especial sobre escravidão); CHALHOUB, Sidney. Visões da
liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990;
GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e Obediência. Criadas e seus patrões no Rio de Janeiro, 1860-1910.
São Paulo: Companhia das Letras, 1992; REIS, João José. “A greve negra de 1857 na Bahia”. Revista da USP,
São Paulo, (18): Junho/julho/agosto 1993, pp.06-29; REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do
levante dos malês (1835). São Paulo: Brasiliense, 1986; REIS, João José. O levante do Malês: uma interpretação
política. In: REIS, João José & SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989; WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências
ladinas. Escravos e forros em São Paulo (1850-1880). São Paulo: Hucitec; USP, 1998; LAPA, José Roberto do
Amaral. O mercado urbano de escravos (Campinas segunda metade do século XIX). Campinas: IFCH/UNICAMP,
1991; CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade. Rotinas e Rupturas do Escravismo. Recife, 1822-1850. Recife:
Editora da UFPE, 1998. Ver ainda capítulo II de SANTOS, Ynaê Lopes dos. Irmãs do Atlântico. Escravidão e
espaço urbano no Rio de Janeiro e Havana (1763-1844). 2012. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. Disponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-08012013-121005/>. Acesso em: 2014-06-19.
56
BEZERRA NETO, José Maia. “Mercado, conflitos e controle social. Aspectos da escravidão urbana em Belém
(1860-1888)”. Op. cit., p. 268.
32

escravidão urbana”, demostrando, entre outros, como os escravos constituíram ou recorreram


a diferentes estratégias ou meios para com suas vidas em meio ao atribulado contexto citadino
belenense. Assim, histórias de sujeitos até então anônimos, mas cujas “identidades” foram
levadas a publicidade local por via de seus senhores em vista de suas insubordinações e
desobediências (“fujões”), tais como as de Jose, Jorge, Caetano, Olympio, Paulo, Joanna e
tantos outros, vão sendo tecidas ao longo de uma aprazível narrativa.57
Seguindo a mesma trilha temática e orientada por este professor e historiador, não
poderíamos prescindir da dissertação de mestrado de Luiz Carlos Laurindo Junior, intitulada:
A cidade de Camilo: escravidão urbana em Belém do Grão-Pará (1871-1888).58 Defendida em
2012 no programa de pós-graduação em História Social da Amazônia da Universidade Federal
do Pará (PPGHIST/FAHIS/UFPA) o autor levou a cabo seu objetivo de analisar “determinados
aspectos da escravidão urbana negra na cidade de Belém, entre 1871 (ano de promulgação da
Lei do Ventre Livre) e maio de 1888 (quando a escravidão foi abolida) ”.
Influenciado pela perspectiva teórica de Edward Thompson da qual se vale do conceito
de “experiência humana”, bem como da concepção conceitual de “cotidiano” a maneira de
Agnes Heller, fundamentos estruturantes do seu trabalho, o autor procurou focalizar as
“experiências cotidianas” de um contingente populacional [os escravos] que segundo ele,
“apesar de expressivo (pelo menos até meados da década de 1880), não costumava aparecer na
historiografia sobre a Belém de fins do século XIX, comumente chamada de Belém da Belle-
Époque”; crítica endossada por tal e direcionada, entre outros, ao trabalho da professora Maria
de Nazaré Sarges. A passagem em que se pode atestar diretamente isso no trabalho do sobredito
autor refere-se: “se o final do século XIX foi um período de mudanças, foi também marcado
por continuidades. Escravidão e modernidade coexistiram. (...) A historiografia sobre o período
atinente a ‘economia da borracha’, contudo, oscila entre diminuir e ignorar a presença do
escravo na região. O trabalho de Sarges é um exemplo.”59 Distantes da pretensão de uma análise
profícua deste estudo, elencamos pontualmente determinados aspectos constituintes da

57
BEZERRA NETO, José Maia. Histórias urbanas de liberdade: escravos em fugas na cidade de Belém 1860-
1888. Afro-Ásia, n. 28, (2002), pp. 221-250. Ver também: BEZERRA NETO, José Maia; MACÊDO, Sidiana
Ferreira de. A quitanda de Joana e outras histórias: os escravos e as práticas alimentares na Amazônia (séc. XIX).
Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 38, 2009, pp. 1-9. Cf.: BEZERRA
NETO, José Maia. “O que aconteceu com Zacarias? Uma micro-análise da escravidão em seus últimos anos em
Belém”. Histórias & Perspectivas. Uberlândia, n. 25/26, 2001/2002, pp. 307-331. “Ainda que estes não tenham
sido textos específicos sobre a escravidão urbana, trataram de algumas de suas facetas e deram um passo elementar
para estudos vindouros. ” LAURINDO JUNIOR, Luiz Carlos. Op. cit., p. 26.
58
LAURINDO JUNIOR, Luiz Carlos. A cidade de Camilo: escravidão urbana em Belém do Grão-Pará (1871-
1888). Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia, Belém, 2012.
59
Ibid., p. 35.
33

investigação histórica do supramencionado historiador: a escravidão em meio ao processo de


modernidade da cidade de Belém; as ocupações dos escravos nesta cidade; os lugares de
trabalho dos cativos urbanos; suas práticas criminosas, vícios urbanos e controle público, fugas,
sobrevivência etc.
Retomando a coerência do raciocínio anterior a este breve adendo, consideramos factual
que as deserções de escravos no período em análise (1856-1886) se mantiveram em certa
medida num ritmo convulso e regular, sendo, portanto, um dos aspectos que processualmente
ruinou o cativeiro local em termos demográficos.
Daí consideramos, ou melhor, depreendemos das palavras daquele sujeito, o porquê dos
“muitos prejuizos [que] tem ultimamente apparecido nesta qualidade de bens, [dado a]
proximidade em que estamos de Amapá, e de Cayenna, e a circunstancia de serem todos os
escravos marinheiros, [fazendo] com que eles quando se desgostão de seus senhores, se evadão
para aqueles lugares”.60 O itinerário e os “destinos estratégicos” dessas evasões
invariavelmente identificadas com a região fronteiriça e litigada (Amapá e Caiena na Guiana
Francesa, colônia que em 1848 havia abolido definitivamente a escravidão)61, ao lado da
histórica e então recorrente constituição criminosa de quilombos nestas áreas ou próximos a
elas, “inquietavam [sobremaneira] os senhores e as autoridades paraenses”.62 Não foi à toa que
Francisco Sette alarmou esta preocupação nas páginas do Jornal Treze de Maio quando
constatara a ocorrência crônica deste “problema” junto aos senhores/proprietários de Macapá
no ano de 1856. É provável ainda que durante sua passagem tenha recebido algumas queixas e
denúncias acerca daqueles “prejuízos” diretamente destas pessoas, posto que era de seu
conhecimento, pelo que expõem, a existência de sujeitos abastados cujos plantéis de escravos
eram “talvez mais de 40”, o que nos leva a crer que nesse processo fincou relações próximas
com os senhores locais em razão do dever burocrático de prestar as devidas informações
“circunstanciadas” sobre este e outros aspectos da vila.
Em meio a isso e há aproximadamente cinco anos antes em 1851e ressaltando a mesma
questão, o Jornal O Velho Brado do Amazonas noticiava a “recente deserção dos escravos da
vila de Macapá para Caiena”63. De igual maneira, numa passagem de uma edição posterior do

60
Treze de Maio, 7 de maio de 1856, n. 729, p. 2.
61
A partir de 1794, o governo revolucionário francês aboliu a escravidão na Guiana Francesa, porém foi novamente
implantada na década seguinte
62
QUEIROZ, Jonas Marçal de. História, mito e memória: o Cunani e outras repúblicas. In: GOMES, Flávio dos
Santos. (Org.). Nas terras do Cabo Norte. Op. cit., p.320.
63
O Velho Brado do Amazonas, 24/04/1851, pp. 01-02. Citado por BEZERRA NETO, José Maia. “Ousados e
insubordinados: protesto e fugas de escravos na província do Grão-Pará – 1840/1860”. Topoi, Rio de Janeiro, mar.
2001, pp. 73-112.
34

mesmo Treze de Maio, aquele magistrado atendo-se entre outros a um problema relacionado
com a segurança de propriedade na vila, especificamente quanto ao furto de escravos
promovido por uma quadrilha à solta pelas paragens da região, corrobora e reforça esta questão,
ao dizer que: “(...) apparecem tambem clamores a respeito de furtos de escravos; consta que
alguns indivíduos oas aceitaõ, utilisão-se de seos serviços, e quando os castigão, elles temendo
regressar para a companhia de seos senhores, evadem-se para Cayena, ou para Amapá onde
existe não pequeno numero”.64 Isto demonstra limpidamente por um lado que essa região de
fronteira neste momento continuava magnetizando e canalizando vigorosamente as esperanças
e os ímpetos dos escravos de Macapá (e de outras partes) pela vida em liberdade particularmente
naquele recém-emancipado território colonial francês. Muitos embalados talvez pelo exemplo
de coragem e sucesso alçado por um “não pequeno número” de cativos que como muitos
conquistaram a liberdade forçosamente para estes lugares por meio da fuga. Tal afirmativa pode
ser assegurada através de um anúncio da fuga de um escravo de propriedade do senhor José
Bento da Silva, publicado no jornal A Epocha, cujo conteúdo deixa entrever que o referido
cativo se encontrava pelas bandas do Amapá (região do contestado, pela fronteira) desde 1º de
abril de 1857, portanto já há dois anos foragido:

Acha-se fugido desde o 1º d’abril de 1857, o mulato Ludovico de estatura


regular, bexigoso, com uma cicatriz no lado esquerdo do rosto, idade 30
annos, oficial de carpinteiro, trabalha de pedreiro e pintor e entende de
marinheiro, fala francez por ter estado em Cayena, consta estar pelo Amapá
como o nome de Manoel Joaquim; gratifica-se com a quantia acima [300$000
rs.] á quem o apresentar ao anunciante.65

Neste ínterim, é prudente ressaltar que os cativos da região também souberam e a seus
modos, valerem-se contínua e oportunamente da “tensa” conjuntura político-diplomática em
que a sociedade ainda, e mais diretamente o poder provincial Grão-paraense encontrava-se a
época com o território fronteiriço vizinho. O conhecimento e a “consciência” dos fatos por parte
da “comunidade escrava macapaense” tanto da realidade regional bem como da internacional
fizeram com que a liberdade neste estado de coisas conotasse “outra lógica”; impulsionando
cadentemente na segunda metade do dezenove, muitas outras e “qualitativas” evasões
mancípias para as mesmas áreas acima mencionadas: “(...) em momentos diferentes, escravos

64
Treze de Maio, 8 de maio de 1856, n. 730, p. 1.
65
A Epocha, 3 de outubro de 1859, n. 221, anno II, p. 4.
35

perceberam conjunturas políticas e a possibilidade de conquistarem a liberdade. ”66 Agregado


a isso, outros aspectos componentes da realidade na região de Macapá serviriam de fulcro aos
escravizados negros quando da liberdade em vista. A exemplo da debilitada e frágil segurança
pública local especificamente de meados da década de 1858/60.

As notícias editadas pela imprensa paraense, acerca das expressivas fugas de


escravos em direção ao território da colônia francesa, no período posterior ao
término da escravidão na mesma, indica-nos perfeitamente a leitura política
feita pelos escravos, a partir do processo de intercâmbio de informações
havido entre os dois lados da fronteira, fazendo com que as próprias fugas
adquirissem novos significados, embalados pela esperança da obtenção da
liberdade em Caiena.67

A fragilidade e “lacuna que apresenta a força pública” foi um problema recorrente em


Macapá desde os primórdios de sua concepção no período colonial (ainda que durante a segunda
metade do século XVIII esta região tenha passado por um intenso processo de militarização –
fato que não intimidou necessariamente as (constantes) ocorrências de fugas de cativos), bem
como em muitas outras localidades da Amazônia.
Tal problema, somado a necessidades de “cadêas regulares nos diversos termos da
província”, pôde ser averiguado então por meio da leitura de alguns dos Relatórios de
Presidentes e Vice-Presidentes da Província do Grão-Pará (disponíveis no Center for
Research Libraries, http://www.crl.edu/pt-br/brazil) da segunda metade do século XIX,
especificamente das décadas de 1850, 1860 e 1870 em sua seção “Força Publica”.
Acerca disso e por volta de 1858 por exemplo, atestamos que o comando superior local
descrito nas páginas de um desses relatórios era constituído por apenas três batalhões de
infantaria. Destes, um ocupava-se da guarnição das regiões de Macapá e Mazagão e os demais
atendiam as demandas em outros municípios da província como Gurupá e Porto de Moz. O
contingente soldadesco dava-se da seguinte forma e para todos estes locais ainda neste ano, de
acordo com a referida documentação: “força total: 1,742 homens de serviço activo, e 200 da
reserva”. Não dispomos de números exatos acerca dos praças e demais militares destacados ou
presentes em Macapá e Mazagão neste período. Contudo, diante do exposto e daquilo que
relatara aquele juiz de cujo argumentos vemos explorando até aqui, é possível afirmar sem
nenhuma cautela que em tal momento a força pública em Macapá encontrava-se seriamente

66
GOMES, Flávio dos Santos. Fronteiras e mocambos: o protesto negro na Guiana brasileira. In: GOMES, Flávio
dos Santos. (Org.). Nas terras do Cabo Norte. Op. cit., p. 293.
67
BEZERRA NETO, José Maia. “Ousados e insubordinados: protesto e fugas de escravos na província do Grão-
Pará – 1840/1860”. Topoi, Rio de Janeiro, mar. 2001, pp. 73-112.
36

comprometida e deficitária (tanto do ponto de vista do seu contingente militar quanto talvez do
seu aparelhamento logístico), ocasionando, por conseguinte a ocorrência de inúmeros
transtornos para com a harmonia e tranquilidade da ordem pública.
Destarte, também sabedores e atentos a esta “lacuna que apresenta a força pública”, os
negros fugitivos de Macapá, no entanto, nem sempre procuravam se debandar ou rumarem em
direção aos muitos quilombos constituídos pela região, ou mesmo para além da fronteira ao
norte no referido contexto. Em alguns casos, sequer iam para tão longe das vistas senhoriais
como a passagem abaixo infere pensar. A sobrevivência e a possibilidade quiçá de apenas
desfrutar de uma liberdade aventurosa, “efêmera”, audaciosa e próxima do cativeiro originário
nos arredores do perímetro urbano de Macapá, demonstra claramente por um lado, uma entre
outras facetas “peculiares” do “arbítrio” dos escravizados negros enquanto fugidos – os quais
agiram proveitosamente em vista das circunstâncias que os “favoreciam” relativamente tais
“brechas” no sistema escravocrata local. Um processo complexo em que muitas das vezes se
chocavam e convergiam-se diferentes pretensões, desejos, leituras, tensões e realidades.
Diante da argumentação sobredita, evocamos novamente Francisco Sette que seguia
afirmando que:

Não ha rondas nesta Villa, o destacamento que faz a guarnição da Praça, he


insuficiente para o serviço regular d’ella e para rondar; esta falta tem dado
lugar, a que alguns escravos fugidos; que estão acoutados nos arredores, á
noite venhão á Villa furtar o que podem achar mal seguro, sendo que, já tem-
se afoitado a arrombar algumas casas, quando os moradores estão ausentes.
Parece pois que seria tambem de muita conveniencia que o destacamento
fosse aumentado com um numero tal de praças, que se podesse prestar a este
serviço.68

Lançados em fugas e acoitados nas proximidades da vila estes escravos praticavam


talvez toda sorte de delitos, como furtos ou roubos como se pode inferir de modo literal na
passagem acima em destaque. Além dessa primeira e mais imediata compreensão, a atitude
desses escravos pode denotar outra questão também digna ao menos de singela apreciação
analítica. Isto é, a de que tal atitude signifique outrossim uma forma concreta, e circunstancial,
de resistência antagônica ao cativeiro em São José do Macapá. Neste entendimento e com o
subsídio auferido pela leitura de uma seminal obra constante no rol da historiografia da
escravidão brasileira, “Escravidão negra em São Paulo: um estudo das tensões provocadas
pelo escravismo no século XIX”, de Suely Robles Queiroz (1977), averiguamos que práticas

68
Treze de Maio, 7 de maio de 1856, n. 729, p. 2.
37

criminosas como “(...) o roubo era uma forma frequente de protesto” entre os escravos não só
dessa região a que o estudo desta autora se inscrevia, mas, de acordo com outros, como prática
bastante comum ou mesmo vulgarizada em diferentes contextos espaciais (meios rurais,
urbanos) e temporais durante o vigorar do trabalho escravo no hoje Brasil.69
Ainda no encalço desse aspecto, foi precisamente da obra do estrangeiro Henry Koster
de 1809 que a mesma reproduziu o curioso e seguinte excerto que dizia que, para os negros,
‘furtar de senhor não é furtar’, levando-a a ponderar conclusivamente que tal “(...) prática,
antes seria uma forma [para o escravo] de contestação ao sistema”.70
De tudo em voga, vemos que certas conjecturas se insurgem na interpretação específica
destas práticas delituosas levadas a efeito pelos escravos negros de Macapá nessas e em outras
situações. Sendo assim, e aglutinando a coerência da análise exposta, é com deveras certeza
que insistimos que os ditos mancípios desfrutaram da inconveniente e incômoda situação que
era para os proprietários da região o pusilânime controle/coerção social constituído e exercido
até então por parte das autoridades legais encarregadas. Por outro lado, mesmo não nos tendo
chegado em mãos qualquer notícia (seja por vias de toda documentação acessada bem como
pela literatura temática que se perscrutou) acerca de um possível grande “motim, distúrbio ou
celeuma generalizada” capitaneada pelos próprios escravizados em Macapá neste contexto, não
cremos que por tal circunstância o cativeiro aí instituído tenha sido a rigor menos “tenso”,
violento e ou harmônico. Atos da natureza como os de “(...) furtar o que podem achar mal
seguro...” ou dito de outra forma, de violação de bens e posses alheias, demonstram como os
escravos dessa cidade percebiam e agiam em meio as conjunturas de dissensões insurgidas entre
os segmentos desta sociedade, detidamente entre a classe senhorial, barganhando com isso
possíveis vantagens a si e aos pares.71
Reiteramos ainda que optar quando fugidos por não se distanciarem tanto dos limites do
espaço urbano local encerra pois diferentes motivações e incuti em algum grau, distintas e
singulares necessidades, posto que o ato da fuga “era uma ação complexa, (...) [que], além de
motivações, exigia estratégia de sobrevivência, animo antes as adversidades, rotas eficientes
para garantir a vida em liberdade e, principalmente, solidariedades, tanto para fugir quanto para

69
LARA, Silvia Hunold. Campos da violência. Escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750 – 1808.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, pp. 269-295.
70
QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Escravidão negra em São Paulo: um estudo das tensões provocadas pelo
escravismo no século XIX. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977, p. 130.
71
Para pensar o crime e criminalidade nesta perspectiva nos valemos da leitura de MACHADO, Maria Helena
Pereira Toledo. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas (1830-1888). São Paulo,
Editora da Universidade de São Paulo, 2014, pp. 37-46.
38

manter-se sob proteção”.72 De toda forma, manterem-se “foragidos” e acoitados pelas


adjacências do meio citadino local, obrigava assim, e de alguma maneira o estabelecimento de
meticulosas articulações solidárias, ou dito em outros termos, mantinham uma “complexa teia
de relações” chamada por Flávio Gomes de “campo negro”, não só juntos aos igualmente
escravizados, como também, quiçá, com outros “personagens dos mundos da escravidão”
(indígenas, libertos pobres, desertores, regatões, agregados, etc.) vivendo ou não os ditames de
uma condição similar ou de exclusão na região. A insubordinação em alguns casos
materializada na fuga como a que se viu, e a do caso abaixo, poderia significar por um lado não
só uma afronta ou resistência objetiva ao regime servil então instituído, mas também, em alguns
casos dado as circunstâncias, apenas contra uma de suas faces, ou seja: a moral e o poder
“inconteste, legítimo e dominador” do escalão senhorial traduzido comumente na violência e
na humilhação corretora e pedagógica.73 Considerando o exposto, identificamos um anúncio de
fuga de uma escrava da vila Macapá de propriedade do Tenente Coronel Procopio Antonio
Rolla, publicado no jornal Treze de Maio numa edição de 1855, (o referido senhor faleceria
ainda nesta localidade no ano vindouro, em 1856)74, o qual descrevia as seguintes condições
dessa cativa fugitiva de nome Joaquina, de 26 anos de idade, possivelmente empregada aos
afazeres domésticos:

Fugio na madragugada do dia 20 do corrente mez [de janeiro] huma escrava


cafuza, de nome Joaquina, com 26 annos de idade, boca grande, nariz chato,
dentes podres, cara redonda, cabelo curto e algum tanto encarapinhado,
altura regular, pelle grossa, com signaes de bexiga no rosto, está grávida,
aprezenta nas costas indícios de ter sido castigada, e sobre os calcanhares
tem grossos calos; é engomadeira, e levou vestido camiza de algodão e saia
de riscado. Quem a conduzir a seo senhor, o Tenente Coronel, Procopio
Antonio Rolla, ou ao Senr. Capitão Francisco Rodrigues Côrrea, será
gratificado. Belem, 20 de Janeiro de 1855.75 (Grifos nossos).

72
CAVALCANTE, Ygor Olinto Rocha. Op. cit., 57.
73
LARA, Silvia Hunold. Op. cit., pp. 57-98.
74
Seu falecimento também foi anunciado no Treze de Maio, 7 de fevereiro de 1856, n. 656, p. 4. Procopio Antonio
Rôlla já havia anunciado a fuga de outro escravo de sua propriedade no mesmo jornal em meados de 1854. Assim
dizia mesmo anúncio: “Na noute do dia 6 do corrente fugio desta cidade um cafuzinho de nome João pertencente
ao Tenente Coronel Procopio Antonio Rôlla, tem signaes seguintes: huma cicatriz de golpe no braço direito, e
signal de queimadura abaixo do embigo (sic) e umas glandulas nos pes do tamanho de caroços de assahy, é cheio
do corpo, boca grande, olhos lustrosos e avermelhados. Quem apresentar a seu Senr. nesta, e em sua ausência o
Senr. Capitão Francisco Rodrigues Corrêa, será recompensado, e protesta-se contra lhe der coito. Treze de Maio,
28 de dezembro de 1855, n. 428, p. 4.
75
Treze de Maio, 23 de janeiro de 1855, n. 439, p. 4.
39

A rebeldia desta cativa “jovem”, no limite, pode ensejar inúmeras possibilidades no que
tange às imbricações e meandros da relação entre senhor e escravo em Macapá e as decorrências
e tensões desse processo. Isto ainda nos remete a engendrar o entendimento de que nenhuma
violência por mais hostil que possa ser ao trabalhador escravizado, consoante sua condição
histórica e social, não lhe é plenamente incapacitante a ponto de torná-lo refém da apatia ou da
manipulação desmedida de outrem, não concebendo a si próprio a possibilidade ou decisão
“consciente” de resistir ou influir sobre sua própria realidade cotidiana e destino, como no caso
da escrava referida. Outrossim, praticar ou agenciar ações criminosas, desordens ou distúrbios
sociais em circunstâncias propícias a tal, nos remete também a percepção da maneira como o
poder e suas relações “diluíam-se” neste complexo contexto social. Sua dinâmica, “micro-
dimensões” não-duais e alcances entre outras categorias de sujeitos e instituições, bem como a
mobilização e operacionalização das forças e ações por tais agentes no cerne de um complexo
campo de conflitos e interesses, que reverberava, especialmente da parte do segmento escravo,
em reais tensões no cotidiano social urbano e no equilíbrio dessas relações.
Seguindo com o exame de caracterização e movidos por uma “curiosidade
epistemológica”, fomos levados ao seguinte questionamento.
Que entendimento enseja a categórica, “não relativa” e “característica” “circunstancia
de serem todos os escravos [de Macapá] marinheiros” com as ocorrências de fugas? Tocando
novamente sobre a questão das fugas, esta consoante a literatura historiográfica a seu respeito,
configurava-se como uma das formas de resistência mais recorrente entre os escravos na lida
cotidiana contra a ordem senhorial vigente, posto que, segundo Ira Berlin, “ninguém conheceu
a escravidão melhor do que o escravo, e poucos teriam pensado mais sobre o que a liberdade
podia significar”.76 Ygor Olinto coerente com tal perspectiva enunciou em pesquisa recente
que: “em todos os lugares onde a escravidão se instituiu, qualquer que tenha sido a sua força
estruturante ou forma social, a fuga se revelou como a modalidade mais característica de
resistência ao cativeiro”. Na sequência de sua arguição afirma que: “(...) a frágil estabilidade da
ordem escravista ficava exposta cada vez que um escravo fugia, pois, o ato de rebeldia revelava
a impossibilidade de os escravos tornarem-se meras extensões da vontade senhorial: seres
coisificados. ”77
Ao se desgostarem de seus senhores os mancípios de Macapá traziam à tona também
aquilo que talvez a própria servidão os levara a constituir por força quiçá de uma não ignorável

76
BERLIN, Ira. Gerações de cativeiro: uma história da escravidão nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Record,
2006, p. 13.
77
CAVALCANTE, Ygor Olinto Rocha. Op. cit.., p. 56.
40

especificidade geográfica regional da qual certamente se valiam. Os inúmeros rios, lagos,


igarapés e incontáveis furos – “as vias de communicação nesta província são quasi todas
fluviais”78 – imbricados a densidade florestal e faunística local, ambientes estes em que o
trabalho negro compulso – demandado de diversas necessidades na época – também se
manifestou, levou em certa medida e “involuntariamente” (ou o contrário) muitos escravizados
negros a “prendarem-se” habilmente nas artes e meandros da navegação pelos ditos meios,
posto que a lida em muitos destes ambientes “engendrara” num processo relativo e
concomitante, diferentes significados e múltiplas experiências a vida servil, que, no limite ou
extremo das circunstâncias poderiam ser ardilosamente evocadas quando a evasão pudesse
seguramente ser consumada. Tal hipótese sugerida para a “qualidade” de “serem todos os
escravos [de Macapá] marinheiros” afirmada por aquele magistrado com as ocorrências de
fugas nos fez presumir e posteriormente considerar, na análise da mesma peça documental,
outro aspecto a isso relacionado. Ou seja, tal questão pode estar também relacionada com o fato
de que não era tão incomum, particularmente na Amazônia, o “emprego de trabalhadores
escravos em navios, fazendo parte da tripulação”79, segundo aponta novamente José Maia
Bezerra Neto.
A esse respeito, ainda com base no trabalho do mesmo autor, em 1859 por exemplo,
reproduzindo a fala do tenente-coronel Manoel de Frias e Vasconcelos durante a segunda sessão
da 11ª legislatura da Assembleia Provincial dirigida aos nobres deputados presentes, notamos
que: “Segundo o mappa fornecido pelo Capitão do Porto, nas 7 comarcas da província
consta[va] existir em effectiva navegação 351 canôas, e outras embarcações, inclusive 5
vapores da Companhia de Navegação e Commércio do Amasonas, com uma tonellagem de
7:030 e tripuladas por 2:160 individuos dos quais 2:035 são livres e 125 escravos”. Estes
escravos marinheiros de Macapá por fim, conheciam provavelmente muito bem as rotas de
navegação da região as quais circulavam ou já haviam transitado por conta dos trabalhos
forçados a que estavam submetidos no interior destas embarcações. Se “todos são marinheiros”,
isto é, os 1. 158 escravos conforme estimativa demográfica que sem tem sobre o período, como
“afirmava” Sette, suponhamos ainda que muitos destes negros tenham advindo ou percorrido
por diversas outras localidades da província e servido como parte de alguma tripulação
marítima nestes diferentes espaços e constituído nesse processo suas experiências e

78
PARÁ. “Relatorio apresentado á Assemblea Legislativa Provincial do Pará no dia 15 de agosto de 1857, por
occasião da abertura da segunda sessão da 10.a legislatura da mesma Assemblea, pelo presidente, Henrique de
Beaurepaire Rohan”. [n.p.], Typ. de Santos & filhos, 1857, p. 23.
79
BEZERRA NETO, José Maia. “Ousados e insubordinados: protesto e fugas de escravos na província do Grão-
Pará – 1840/1860”. Topoi, Rio de Janeiro, mar. 2001, p. 89.
41

aprendizados maritimos. Mas de qualquer forma cabe relativizar pormenorizadamente a


afirmativa que qualifica indistintamente todos escravos de Macapá dessa maneira.

1.2 Outros enlaces entre escravidão e vivências no espaço urbano.

Com base em algumas “pistas” ou informes deixados por quem passara pela cidade de
Macapá no período em estudo, como no caso do que fora publicado na seção “Crhonica
religiosa” do Jornal de cunho eclesiástico “A Estrella do Norte”80 em 1866 por ocasião da
viagem do então bispo do Pará, senhor D. Antônio de Macedo Costa as freguesias de Macapá
e Mazagão, bem como no auxílio auferido por outras fontes documentais da época, podemos
modestamente esboçar um breve e parcial “perfil” do meio citadino local (com suas possíveis
condições) vivenciado pelos cativos em sua lidas de trabalho e sobrevivência cotidiana.
Dessa forma, em sua seção “Crhonica religiosa” o referido periódico religioso dedicou
em sua edição de 7 de Janeiro de 1866 algumas linhas para dar publicidade a visita eclesiástica
daquele bispo as referidas freguesias. Segundo informava a narrativa, havia 90 anos que
tamanha autoridade católica não dava o ar de sua graça por aquelas paragens, sendo que “a
lembrança da ultima visita pastoral conserva-se como uma tradição, e o nome de D. Fr.
Caetano Brandão, (...) intrépido visitador da diocese, ainda se pronuncia[va] com veneração
em lembrança da sua vinda naquella terra no século passado”81(referindo-se ao período final
do século XVIII); fato que tão logo nos remete compreender o quanto os moradores da região
(possivelmente fiéis cristãos-católicos em larga quantidade) ansiavam – quase que
secularmente – por um “acontecimento” de significativa magnitude, respeito e honra. Assim
sendo, o aportar da comitiva eclesial em Macapá foi da seguinte maneira relatado:

A viagem foi boa, S. Ecx. desembarcou no dia 17 na cidade de Macapá,


afamada pelas febres ali reinantes. Bem situada á embocadura do Amazonas,
Macapá não desagrada, bem arruada, com sua igreja em soffrível estado de
conservação, e que os cuidados das autoridades do logar coadjuvadas pela
atividade do Revd. Vigario estão preservando de uma ruina total que um
descuido mais demorado podia tornar inevitável, completa uma vista que
predispõe o recém-chegado aos esquecimentos das terríveis febres
intermitentes, celebres entre todas as moléstias da Provincia. Pouca gente
reunida achou o Prelado na referida cidade; depois de ter visitado a fortaleza,
magestosa fortificação, e gigantesca, quando o viajante lembra do tempo em
que ella foi construída, S. Exc. Revma. embarcou com sua comitiva para a

80
Disponível em:http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=223859&pesq=macap%C3%A.
81
A Estrella do Norte, domingo, 7 de Janeiro de 1866, n.1, Anno IV, p. 7.
42

villa de Mazagão, a qual afastada da boca do rio esconde-se no fim de um


furo orlado de aningaes, que o tempo vai estreitando cada vez mais. 82 (Grifos
nossos).

Sem nos atermos as motivações de ordem religioso-institucionais da presença do


prelado nestas localidades provinciais, pensamos ser possível extrair daí algumas questões
pertinentes para com aquilo que nos propomos apresentar na presente subseção. Então
procedemos.
Viver nas cidades da Amazônia no século XIX significava também por um lado
conviver, principalmente por parte do segmento escravizado, com os problemas decorrentes de
uma incipiente “urbanização em curso”, isto é, a caminho ou em vias de desenvolvimento
contextualmente falando. Espaços urbanos em processo de reestruturação e redefinição de seus
contornos (ver figura 01, diga-se, uma tendência “nacional” no ensejo) – aspecto factual e ou
comum ainda hoje. Em tempos contemporâneos é possível sem dificuldade alguma identificar
muitas destas sérias demandas típicas dos espaços urbanos na Amazônia. Problemas tais que se
concatenam sobretudo com a qualidade da infraestrutura citadina elementar que se quer
necessária, especialmente a que concerne ao saneamento urbano, em específico das áreas mais
periféricas destes meios.
No rastro dessa raciocinação e secundado pelos informes do relato expresso outrora,
fica clarividente que as moléstias “intermitentes” afamaram, ou mesmo assolavam cruelmente
a população local, mormente a escrava, radicada em particular nos “limites” do perímetro
urbano segundo o que revelam também outras evidências documentais pesquisadas sobre o
período delimitado. Aspecto este que por sua vez tenha em alguma medida impactado na
sobrevivência dos cativos e por consequência redundado, talvez, nas cifras ou estimativas
demográficas então disponíveis sobre os mesmos no referido contexto. Deste modo, de acordo
com os números a esse respeito, será cada vez mais diminuto, até a última década da vigência
“legal” do escravismo em 1888 no Império, o quantitativo de escravizados negros sitos em
Macapá especialmente. Um processo que se dá com “maior fôlego”, relativamente, no intervalo
que vai de 1856 aos idos de 1876 (mas que prossegue num ritmo “modesto” e “regular” a partir
desta data até 1888 em razão de outros fatores) conforme sugere a tabela1 no início deste
capítulo, objeto particular da pesquisa em voga.
Outrossim, convém rememorar que em meados de 1856, dentre as informações as quais
o juiz Francisco Sette fora incumbido de levantar em vista de sua vinda à Macapá, à época vila,

82
A Estrella do Norte, domingo, 7 de Janeiro de 1866, n.1, Anno IV, p. 7.
43

uma delas dizia respeito justamente quanto a sua condição de salubridade. Invariavelmente
umas das grandes preocupações, “políticas”, bem latentes em muitos relatórios dos dirigentes
da província paraense das décadas que se seguiram após a segunda metade do século dezenove
os quais pesquisamos.83 É por isso que em 1868 como já assinalado, Macapá que encontrava-
se aos “esquecimentos das terríveis febres intermitentes, celebres entre todas as moléstias da
Provincia”, fora exposta e com evidente tom de crítica naquela seção do semanário católico,
para que pudesse quem sabe, atrair concomitantemente a atenção das autoridades locais, (em
particular da câmara municipal), e por conseguinte provinciais quanto a ignóbil situação da
saúde pública – ao aspecto sanitário em especifico –, das localidades da região e em âmbito
provincial. Nesta direção aludimos ser conveniente por ora cotejar com outras fontes
documentais contemporâneas a esta acima referida, sobretudo os relatórios dos presidentes da
província paraense, no que tange ao supramencionado problema, ou com outras questões.

83
PARÁ. Relatorio lido pelo ex.mo s.r vice-presidente da provincia, d.r Ambrosio Leitão da Cunha, na abertura
da primeira sessão ordinaria da XI. legislatura da Assemblea Legislativa Provincial no dia 15 de agosto de 1858.
Pará, Typ. Commercial de Antonio José Rabello Guimarães, 1858, p. 28; PARÁ. Relatorio apresentado á
Assembléa Legislativa da provincia do Pará na segunda sessão da XIII legislatura pelo excellentissimo senhor
presidente da provincia, doutor Francisco Carlos de Araujo Brusque, em 1.o de novembro de 1863. Pará, Typ. de
Frederico Carlos Rhossard, 1863, p. 25; PARÁ. Relatorio com que o excellentissimo senhor barão de Santarem,
2.o vice-presidente da provincia passou a administração da mesma ao excellentissimo senhor doutor Domingos
José da Cunha Junior em 18 de abril de 1873. Pará, Typ. do Diario do Gram-Pará, 1873, p. 5; PARÁ. Relatorio
apresentado pelo exm. sr. dr. Francisco Maria Corrêa de Sá e Benevides, presidente da provincia do Pará, á
Assembléa Legislativa Provincial na sua sessão solemne de installação da 20.a legislatura, no dia 15 de fevereiro
de 1876. Pará, 1876, p. 15; PARÁ. Relatorio que ao exm. sr. dr. João Lourenço Paes de Souza, 1.o vice-presidente
da provincia do Gram-Pará, apresentou o exm. sr. dr. Carlos Augusto de Carvalho ao passar-lhe a administração
em 16 de setembro de 1885. Pará, Typ. de Francisco de Costa Junior, 1885, p. 10. A documentação pode ser
consultada diretamente em: http://www-apps.crl.edu/brazil/provincial/par%C3%A1.
44

Figura 1: Traçado urbano da cidade de Macapá na segunda metade do


século XIX

Fonte: ALMEIDA, Candido Mendes de. Atlas do Imperio do Brazil. Rio de Janeiro, 1868.
Mapa retrabalhado pelo autor.

Diante das considerações expostas e reconhecendo publicamente essa questão dizia na


ocasião, em 1 de outubro de 1866, o senhor vice-presidente da província do Pará, o barão de
Arary: (...) “não tem sido bom n´este anno o estado sanitario da província, mormente n´estes
trez últimos mezes durante os quaes a varíola, que encontrou obstáculos a seu desenvolvimento
nas medidas tomadas em Abril e Maio ultimos, invadiu toda a cidade” [de Belém] (...).
Prosseguindo com suas colocações mais adiante expunha ainda que, “outras moléstias,
principalmente as febres intermitentes, tem reinado na capital desde o principio do anno
presente”. Linhas à frente também não se eximiu em ponderar aos nobilíssimos deputados que
principalmente no “interior e mormente nas localidades á margem do Amazonas, as febres
intermittentes continuão (sic) sempre a aparecer com maior ou menor intensidade, e não
poucos de camaras de sangue”.84
Já assinalado num parágrafo anterior, o problema relacionado as enfermidades que
grassavam deveras partes da província como um todo, conjecturamos, hostilizou não raro a

84
PARÁ. Relatorio da presidencia do Pará, apresentado a respectiva Assembléa Legislativa Provincial pelo
excellentissimo senhor vice-presidente barão de Arary, em 1 de outubro de 1866. Pará, Typ. do Jornal do
Amazonas, 1866. p. 13. Câmaras de sangue: significa o mesmo que disenteria. Fonte: CHERNOVIZ, P. L. N.
1890, p. 418. LR. Disponível em: http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/00756310#page/1/mode/1up
45

sobrevivência dos escravos negros e demais sujeitos situados na cidade de Macapá na


temporalidade estudada. Conviver com as moléstias que consternavam intermitentemente esta
e outras tantas localidades (Macapá, localidade “do interior” e margeada ainda pelo rio
Amazonas, como que problemas como estes, à época, decorressem supostamente de um
inexorável “determinismo geográfico”) parecia resplandecer – ao menos em nosso ponto de
vista – como uma “dimensão comum” na vida cotidiana dos sujeitos que viveram aí sob o
regime do cativeiro. Isto se “funda”, ou de outro jeito, apoia-se criticamente mais uma vez nas
palavras do já conhecido magistrado Francisco Sette de quem seguimos até então explorando
suas importantes informações coligidas “empiricamente” da cidade de Macapá no ano de 1856
e que foram publicadas oficialmente em duas edições sequenciais do jornal “governista” Treze
de Maio (referentes ao dia 7 de maio nº 729, e a outra ao dia 8, nº 730.).
Assim, ladrilhando o raciocínio neste sentido, Macapá segundo consta, em décadas
anteriores, isto é, meados da primeira metade do século, já havia passado por uma “impiedosa”
e duradoura epidemia das não raras aí “febres intermitentes”, (...) “que pelo espaço de doze
anos reduzirão a menos da metade a sua população”85, mas que num determinado momento,
pelo menos em 1856, consoante Francisco Sette, estavam “completamente extintas depois que
se limparão as valas que a circulão pelo lado sul.”86 Sobre isso Bezerra Neto aponta que “na
década de 1850, é verdade, a ocorrência das epidemias de febre amarela (1850) e cólera (1855)
podem explicar-nos a diminuição do coeficiente de escravos, bem como a redução do
contingente populacional composto pelas pessoas livres”87. Entretanto situação bem diferente
pôde ser constatada cerca de sete anos depois em novembro 1863 quando o doutor Francisco
Carlos de Araujo Brusque, dirigente provincial de então, apresentou ao poder legislativo local
o relatório de sua administração constando entre outras informações sintéticas, as relativas ao
“estado da saúde pública” da província naquelas circunstancias. Em vista disso assinalamos que
o “estado sanitário” urbano da cidade de Macapá aí descrito era por deveras precário ou no
extremo lastimoso conforme depreendemos na leitura da referida documentação.

85
Treze de Maio, 7 de maio de 1856, n. 729, p. 1.
86
Treze de Maio, 7 de maio de 1856, n. 729, p. 1. Nesta mesma edição o magistrado relatava ainda que por conta
dos (...)“assacús, arvores venenosas, de que estavam ellas [as valas] obstruídas, impedião que as aguas das
enchentes do rio escoassem livremente, permanecendo por conseguinte alagadas, e atulhadas de folhas d´aquellas
mesmas arvores, as quaes apodrecendo, exalavão miasmas que (...) deviam danificar a saúde, o que está [segundo
ele] provado com a fato da extinção das intermitentes depois que foram limpas as mencionadas valas”. Na edição
de 17 de junho de 1861 o Jornal O Publicador Maranhense também noticiava por meio de uma correspondência
enviada ao jornal o problema das moléstias que afamavam intensamente a cidade de Macapá. O Publicador
Maranhense, 17 de junho de 1861, n. 137, ano XX, p. 2.
87
BEZERRA NETO, José Maia. Escravidão negra na Amazônia (Sécs. XVII-XIX). Op. Cit., p.51.
46

Posto isso, da seguinte forma afirmou aquela autoridade a tal respeito: “(...) soffre
Macapá o flagello das intermittentes paludosas, que variando mais ou menos de sinptomas,
não respeitão idade, constituição, e temperamento”. 88

Figura 2: Aspecto do meio urbano de Macapá no período pós-abolição: rua da


praia, meados de 1908-1920.

Fonte: Projeto “Antiga Macapá” - Divisão de Patrimônio e Arquivo Histórico, Prefeitura Municipal de
Macapá: Secretaria Municipal de Educação e Cultura, Departamento Municipal de Cultura. Imagem
retrabalhada pelo autor.

Não obstante as adversidades do cotidiano servil e rigores do extenuante volume de


trabalho a que estavam provavelmente submetidos os escravos radicados na cidade de Macapá,
a convivência e a vulnerabilidade frente as hostis e consequentes “condições sanitárias” urbanas
deste ambiente, que traduziam-se como vimos, em regulares, assoladoras e epidêmicas
moléstias, era por assim dizer, mais um dos meandros que se enlaçava a vida escrava no
universo do cativeiro citadino local em singular. De fato, um aspecto de considerável
importância tendo em vista aquilo que se engendrou como objeto de estudo para a presente
pesquisa, qual seja, o da “depopulação” do contingente escravo negro sito na cidade de Macapá

88
PARÁ. Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa da provincia do Pará na segunda sessão da XIII
legislatura pelo excellentissimo senhor presidente da provincia, doutor Francisco Carlos de Araujo Brusque, em
1.o de novembro de 1863. Pará, Typ. de Frederico Carlos Rhossard, 1863, pp. 27-28.
47

na segunda metade do século XIX. Expunha ainda Francisco Brusque sobre as condições deste
meio urbano:

Ali, [em Macapá] senhores a abertura de valas, cuja limpeza fosse


regularmente mantida, darião o necessario escoamento as agoas estagnadas
dos immnensos charcos, que confinão com os limites urbanos. A destruição
dos assacuseiros, que ali vegetaõ em grande quantidade no seio desses
terrenos alagados, é de indeclinável necessidade para evitar o maior
desprendimento de miasmas, que exhalaõ as folhas cahidas e em putrefação.89

Do ponto de vista do labor dos escravos em meio a tais circunstâncias na segunda


metade do século sobre o qual pesquisamos, outras fontes arroladas e analisadas iluminam ainda
que não a contento, hipóteses ou indícios a esse respeito. Assim sendo, no ano 1869 é publicado
a segunda e anual edição do Almanach do Pará90 coordenado por Carlos Seidl e Octaviano José
de Paiva, uma espécie de boletim ou revista que noticiava entre outras, informações de natureza
administrativa, mercantil e industrial tocantes a província como um todo. Nesta e na edição de
1883 por exemplo, encontramos referências sobre as freguesias de Macapá e Mazagão. Para
aquele de 1869, há algumas informações relativamente pormenorizadas para ambas localidades,
a exemplo da população escrava em Mazagão e das atividades comercias, políticas,
econômicas, do funcionalismo provincial local, bem como de detalhes institucionais e
administrativos referentes a cidade de Macapá.
Notamos então por esta documentação, e outras, sujeitos em Macapá vinculados a
atividades agrícolas e comerciais (lojas de secos, molhados e fazendas), alguns dos quais
senhores escravistas como no caso do então vereador Paulino Antonio Rolla,91 José Júlio
Tavares (nomeado em 1855 como fiscal do corpo de trabalhadores de Macapá, Jornal Treze de
Maio, 7 de outubro de 1855, n. 561, p. 2.), João da Silva Mendes e do tenente coronel Florentino
Banha de Almeida. Outros agentes possivelmente proprietários de escravos também ligavam-
se a mesma atividade com suas “casas de commercio fora da cidade”, a saber, Antonio
Quintela de Miranda, Francisco dos Reis, João Marinho Figueira e Antonio da Silva Borges.
No que concerne à agricultura o mesmo Almanach de 1869 faz menção aos proprietários de

89
PARÁ. PARÁ. Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa da provincia do Pará na segunda sessão da XIII
legislatura pelo excellentissimo senhor presidente da provincia, doutor Francisco Carlos de Araujo Brusque, em
1.o de novembro de 1863. Pará, Typ. de Frederico Carlos Rhossard, 1863, p. 28.
90
Almanach Administrativo, Mercantil, Industrial e Noticioso da Provincia do Pará para o anno de 1869, pp. 389-
400. Disponível em: http://hemerotecadigital.bn.br/.
91
Além disso, Paulino A. Rolla era um dos suplentes do juiz municipal Dr. Alfredo Sergio Ferreira, bem como 3º
suplente do delegado de polícia Feliciano de Souza Gil Vaz. Ele acumulava também outras ocupações públicas
em Macapá.
48

“engenhos de agoardente e mel”, e de igual modo, aos senhores “creadores de gado vaccum”
na região de Macapá, em alguns casos destacando também suas respectivas localizações como
se verá na sequência.92

Figura 3: Quadro das atividades econômicas e industriais de Macapá em 1862.

Fonte: Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa da provincia do Pará na primeira


sessão da XIII legislatura pelo exm.o senr. presidente da provincia, dr. Francisco Carlos
de Araujo Brusque em 1.o de setembro de 1862. Pará, Typ. de Frederico Carlos Rhossard,
1862.

Assim, localizado na histórica e conhecida região quilombola do Curiaú (vide mapa 2),
mencionamos os engenhos destinados à produção de aguardente (jeribita) e mel de propriedade
da senhora escravista Francisca de Almeida Rolla e seus filhos. De igual forma, Antonio
Mariano Marinho Junior era também proprietário de engenhos destinados ao fabrico dos

92
Sidiana Macêdo em pesquisa sobre o abastecimento e a alimentação em Belém na segunda metade do século
dezenove afirma que as localidades de Macapá e Mazagão neste período enquadravam-se entre principais áreas
produtoras. Em meados de 1861, Macapá, assim como o município de Portel e Bragança, responderam por quase
72% de toda a exportação de farinha na província. MACÊDO, Sidiana da Consolação Ferreira de. Daquilo que se
come: uma história do abastecimento e da alimentação em Belém. (1850-1900). Dissertação (Mestrado) -
Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História
Social da Amazônia, Belém, 2009. pp. 32, 56.
49

mesmos produtos só que pela região de Santa Anna. Ainda nos propícios campos da região do
Curiaú, o senhor José Carmeiro da Silva dedicava-se a criação de seu rebanho de gado vacum
(pecuária), assim como outros sujeitos em outras localidades relativamente próximas a Macapá.
É o caso nesse sentido dos seguintes senhores – provavelmente proprietários de escravos como
os Rolla – ocupados da criação do mesmo tipo de gado: Alexandre Antonio Rolla na localidade
de Santo Antonio; Antonio Banha d´Almeida, rio Maruanum; Feliciano de Souza Gil Vaz, rio
Macaquari; Fernando Valente Barreto, próximo ao rio Vila nova; Marcos José Pedro, Ambé;
Procópio Antonio Rolla Sobrinho, também na região Santo Antonio; Sutero José de Miranda
nas proximidades do rio Pedreira e Amandio Mendes d´Oliveira na localidade de Mangabeira.
A existência desses engenhos destinados à produção de aguardente e mel na região pressupõem
de antemão a cultura dos gêneros necessários a esse fim, como no caso da cana-de-açúcar,
matéria prima tradicional para o fabrico de jeribita.93 Além disso, a disponibilidade de terras
férteis e arregimentação de mão de obra complementam em parte o processo produtivo ou de
feitura destes produtos eventualmente para fins comerciais na cidade, com outras vilas ou ainda
para abastecer ou concorrer no mercado da capital da província, como demonstra o quadro
acima das atividades econômicas e industriais de Macapá de meados 1862.
Todas essas localidades elencadas acima junto com os respectivos sujeitos e atividades
econômicas nelas discriminadas na documentação (criação de gado vacum e cavalar, engenhos
destinados à produção de aguardente e mel), contou certamente com a presença de braços
escravos negros como força de trabalho para com as tarefas e atividades necessárias e em
alguma escala quantitativa a qual nos é no momento, alheia, temos o exemplo da família Rolla.94
Em meados de 1881 registra-se ainda, consoante a documentação, a existência de um único
engenho destinado ao fabrico de aguardente ou açúcar em Macapá, movido provavelmente,
segundo a fonte consultada, a água ou por meio de animais. Acerca disso, neste mesmo período
a província paraense contabilizava o número total de 196 engenhos, dos quais boa parte, 116,
situavam-se na localidade interiorana e escravista de Igarapé-Miri, superando em muito a
capital provincial que se servia da existência de apenas 36. 95 No quadro acima, retirado do
relatório do presidente provincial Francisco Carlos de Araujo Brusque, temos uma dimensão

93
Ver: AVELAR, Lucas Endrigo Brunozi. A moderação em excesso: estudo sobre a história das bebidas na
sociedade colonial. 2010. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. Primeiro estudo sobre a aguardente de cana no Brasil
encontra-se em: CASCUDO, Luís da Câmara. Prelúdio da cachaça: etnologia, história e sociologia da aguardente
no Brasil. Belo Horizonte: Livraria Itatiaia, 1986.
94
SANTOS, Fernando Rodrigues dos. História do Amapá, 1º grau. 2. ed. Macapá: Valcan, 1994. pp. 38-39.
95
PARÁ. Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial na 2.a sessão da 22.a legislatura em 15 de
fevereiro de 1881 pelo exm. sr. dr. José Coelho da Gama e Abreu. Pará, Typ. do Diario de Noticias de Costa &
Campbell, 1881.
50

das atividades econômicas desenvolvidas em Macapá em meados de 1862. Pelo quadro, como
se vê, a mão de obra escrava era basicamente aplicada nos serviços agrícolas, na pecuária e
possivelmente nos trabalhos extrativistas.
Sobre os mesmos aspectos relacionados a cidade de Macapá não ignoramos a vila de
Mazagão, no referente ano, também mencionada nas páginas daquele almanaque noticioso.
Segundo informava o sobredito Almanach de 1869, no que diz respeito singularmente às
atividades ou inclinações econômicas desta vila, ponderava os seguintes detalhes quanto a sua
produtividade “industrial e agrícola” anual, que segundo o mesmo, fora apurada ou calculada
da seguinte forma na contextura em pauta: 10,500 arrobas de borracha (significativa produção),
4,580 alqueires com castanha, 5000 arrobas de cacau, 200 arrobas de café, 1,000 alqueires de
farinha de mandioca, 3,000 mão de milho, 300 potes com azeites de andiroba, 600 potes com
mel e 1,300 redes. De todos estes gêneros elencados a vila exportava apenas borracha (em maior
quantidade), castanha e cacau (segundo maior produto das exportações), os demais destinavam-
se ao abastecimento local. Processo favorecido ainda mais pela dinamização comercial que a
introdução da navegação a vapor pelos rios da Amazônia possibilitou.
No que tange a sua população, a documentação ponderava a presença de 4,238
habitantes, dos quais 3,945 (em torno de 93 %) eram discriminados como livres e o excedente
formado por escravos, ou seja, 29396 (representativo de aproximadamente 6,9 %, da população,
um baixo peso demográfico de mancípios). Considerando a obra de Fernando Rodrigues dos
Santos, este autor afirma que até o ano da abolição em 1888 (momento em que antiga praça
seria elevada à condição de cidade), não se verificaria mais na vila de Mazagão Velho a
retomada do surto de progresso que a mesma havia experimentado no final do século XVIII.
Deixa entrever ainda que boa parte dos poucos escravos ainda existentes na região
(quantitativamente não estimado) desempenhavam até o final do regime escravista, atividades
agropastoris e na condição de meeiros junto aos seus senhores.97
É interessante essa afirmativa exposta pelo autor acerca das relações compulsórias de
trabalho nos últimos momentos do regime escravista neste município98, tendo em vista os dados
econômicos acima expressos que sinalizam para a ocorrência de atividades como o extrativismo
e a policultura nos idos de 1869, as quais contavam provavelmente com braços cativos. Tais

96
Almanach Administrativo, Mercantil, Industrial e Noticioso da Provincia do Pará para o anno de 1869, pp. 389-
400.
97
SANTOS, Fernando Rodrigues dos. Op. Cit., p. 40.
98
O município de Mazagão foi criado através da lei Nº226 de 28 de novembro de 1890, portanto o segundo
município criado no Estado. Ver: Mazagão: realidades que devem ser conhecidas/ Coordenado por Benedito Vitor
Rabelo...[ et all.], Macapá: IEPA, 2005.
51

relações de trabalho entre os poucos escravos ali existentes (em 1884 Mazagão possuía uma
população estimada em 78 escravos; ainda neste ano tal número redunda para 60; já em 1887
essa soma cai para 57)99 baseadas neste sistema (meeiros) a que se refere o autor, estabelecido
ainda durante a vigência legal e de crise do escravismo nessa região, cuja uma das acepções
concebida no dicionário Houass significa, “aquele que planta a meias com o dono do terreno, a
quem tem de dar parte do rendimento da plantação”100, pode implicar relativamente e de modo
conjectural talvez, a prática ou existência de uma certa “economia própria dos escravos” nas
terras ou campos senhoriais. Isto é, para aquilo que denominou de modo conceitual e teórico o
historiador Ciro Flamarion de “Brecha camponesa”.101 Ou ainda que tal sistema, no limite,
tenha servido como mecanismo “ideológico” de controle e manutenção da ordem escravocrata
já em irreversível declínio neste momento.102 Enfim, evidenciamos que esta condição levantada
por aquele autor acerca dos escravos de Mazagão os quais qualifica como meeiros, não
encontrou aporte ou mesmo menção na historiografia e mesmo na documentação pesquisada.
De toda forma, depreendemos então, que, assim como em Macapá, Mazagão prosseguia
de modo que tradicional, inclinando-se economicamente para atividades como a policultura e
o extrativismo, com a oferta de gêneros excedentes demandáveis concorrendo no mercado
interno e regional, decerto na capital Belém ou ainda em outras partes da Amazônia.
Além do mais é verificável, assim como em Macapá, a prática e o desenvolvimento de
um comércio local103 por meio dos estabelecimentos, de pequeno ou médio porte, de “seccos,
molhados & fazendas” na figura de comerciantes como os Flexa & Filho, Israel e C.ª. (sic) e
Custódio Duarte da Silva, Antonio José Affonso, Abel Ayres Fulgencio Gomes e etc, bem como
de casas de venda localizadas no interior ou fora da vila, num total de dezenove
estabelecimentos, além das atividades artesanais.
O fato de se ater exclusivamente na exportação de produtos como a borracha, a
castanha e o cacau segundo a documentação, indica-nos de um lado a dimensão ou talvez a

99
PARÁ, Relatorio com que o exm.o snr. general visconde de Maracajú passou a administração da provincia ao
2.o vice-presidente, exm.o snr. dr. José de Araujo Roso Danin, no dia 24 de junho de 1884. Pará, Typ. de Francisco
da Costa Junior, 1884; PARÁ; Falla com que o exm. sr. conselheiro dr. João Silveira de Souza, presidente da
provincia do Pará, abrio a 2.a sessão da 24.a legislatura da Assembléa Provincial em 18 de abril de 1885. Pará,
Typ. da Gazeta de Noticias, 1885; PARÁ, Falla com que o exm. sr. conselheiro Francisco José Cardoso Junior,
primeiro vice-presidente da provincia do Pará, abrio a 1.a sessão da 26.a legislatura da Assembléa Provincial no
dia 4 de março de 1888. Pará, Typ. do "Diario de Noticias," 1888.
100
Dicionário Eletrônico Houass da Língua Portuguesa (Versão 2.0a – Abril de 2007).
101
Ver Ciro Flamarion CARDOSO, Ciro Flamarion. Escravo ou Camponês: o protocampesinato negro nas
Américas. São Paulo: Brasiliense, 1987, e GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial. São Paulo: Ática, 1978.
102
Ver REIS, João José; SILVA, Eduardo. Op., Cit., p. 22-31..
103
LOPES, Siméia de Nazaré. O comércio interno no Pará oitocentista: atos, sujeitos sociais e controle entre
1840-1855. Dissertação (Mestrado em planejamento do desenvolvimento) Nucleo de Altos Estudo Amazonicos –
NAEA, Universidade Federal do Pará, Belém, 2002.
52

“prevalência” que a atividade econômica extrativista, representada pela cultura destes e de


outros produtos, exercia na economia mazaganense ou mesmo na Amazônia neste contexto em
relação à agricultura.104 Quiçá por conta da lucratividade que a mesma já propiciava de forma
considerável aos “produtores” em virtude da crescente valorização e capitalização que já recaía
principalmente sobre a borracha no referido ensejo, (meados de 1870), haja vista as conjunturas
ou circunstâncias econômicas em voga internacionalmente que de certa forma influíram
demasiadamente para isto.
Sobre isso, em seu relatório apresentado à assembleia legislativa provincial em 1870,105
o presidente da província Abel Braga anunciava na referida casa as estatísticas comerciais da
região no ensejo, expondo os números dos principais gêneros silvestres de exportação, tendo a
borracha assumido o primeiro lugar no rol dessas vendas: borracha, 4.890.089 quilos contra os
3.381.246 quilos de cacau, e 2.785.845 quilos de castanhas. Desse modo, Maria de Nazaré
Sarges conclui que a “borracha se constituiu no principal produto voltado para o comércio
internacional, carreando recursos e, consequentemente, permitindo um surto econômico
vigoroso na região”.106
Mas de qualquer forma admitimos de maneira conclusiva com base nos parcos e
fragmentados “indicadores” econômicos fornecidos pela documentação, que a relação entre
agricultura e extrativismo tanto na região de Macapá, quanto particularmente em Mazagão no
contexto oitocentista e escravista em análise, baseava-se sobretudo num processo de mútua
complementariedade para com seus habitantes. Fato que por sua vez possa ter gerado talvez,
particularmente para Mazagão, de modo relativo, maior dinamismo comercial e econômico em
relação a Macapá no período em pauta.
Posto isso, cabe a suspeita de que tais atividades fossem desenvolvidas na sua grande
maioria em pequenas e médias unidades familiares de produção (lavoura cacaueira, cafeeira e
de grãos como o milho e a pecuária), auferidas decerto pela mão de obra negra escravizada,
compulsória, como no caso dos empreendimentos econômicos da “abastada” e influente família
Rolla em Macapá e de outros sujeitos na região de Mazagão. Assim sendo, é fato que o
crescimento econômico da Amazônia na segunda metade do século XIX, especificamente no
interstício de maior pujança (1870 a 1910), auferido pelo aumento da produção e

104
WEINSTEIN, Bárbara. A borracha na Amazônia: expansão e decadência (1850-1920). São Paulo: HUCITEC:
Editora da Universidade de São Paulo, 1993.
105
PARÁ, Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial na segunda sessão da 17.a legislatura pelo
dr. Abel Graça, presidente da provincia. Pará, Typ. do Diario do Gram-Pará, 1871. pp. 28-30.
106
SARGES, Maria de Nazaré. Belém: riquezas produzindo à belle-époque (1870-1912). Belém: Paka-Tatu, 2002.
pp. 76-77.
53

comercialização da borracha,107 contou sem dúvida com a contribuição de inúmeros núcleos de


produção extrativista dispersos por toda província paraense. Mazagão, assim como outros,
entendemos, constituiu-se num destes importantes elos de canalização produtiva de gêneros
silvestres que tornou a cidade de Belém, em particular, o epicentro do progresso e da
prosperidade na região108, graças também à esta especificidade.
Retomando o elo e detendo-nos particularmente as comunidades de Macaquari, Santo
Antônio, Curiaú, Ambé, as margeadas pelo rio Pedreira e Maruanum, que são atualmente
consideradas como áreas remanescentes dos antigos quilombos, segundo consta no portal da
Fundação Cultural Palmares,109 aliado ao fato de que estes espaços contemporaneamente
permanecem habitados em larga maioria por populações negras ou afrodescendentes,
suspeitamos que esta área (destacada no mapa abaixo) tenha se configurado no referente
contexto histórico como um verdadeiro, por assim dizer, “território negro”, onde haveria por
aí não ínfima presença e circulação de escravos empregados e obrigados as suas fainas diárias
pelos proprietários, alguns talvez, “negros senhores”.
Um território que também propiciou concomitantemente, atitudes de resistência e
mesmo a sobrevivência dos escravizados, servindo ainda, de resguardo e acoito incólume aos
mesmos ante as durezas e arbitrariedades que o cativeiro lhes impunham como consequência
por estes e outros atos tidos como criminalizados. Com base nesse raciocínio levamos a efeito
a elaboração de uma representação geográfica a respeito dessas comunidades negras rurais
contíguas a cidade de Macapá, que em meados de 1869 já eram bem conhecidas, povoadas e
exploradas por negros escravizados e senhores de escravos conforme nos impele inferir algumas
fontes documentais pesquisadas.110

107
WEINSTEIN, Bárbara. Op. cit., p. 25.
108
DAOU, Ana Maria. A Belle Époque amazônica. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. pp. 24-32.
109
Cf.: http://www.palmares.gov.br/?page_id=88&estado=AP
110
Almanach Administrativo, Mercantil, Industrial e Noticioso da Provincia do Pará para o anno de 1869, pp. 389-
400.
54

Mapa1: Raio representativo da área de circulação de escravos na segunda metade do século XIX em
localidades escravistas adjacentes à Macapá. Fonte: Google mapas 2015. Mapa retrabalhado pelo
autor.

Sendo a maioria destas localidades citadas acimas e identificadas no mapa 1 próximas


ou cortadas pelos rios e lagos da região, não é de se ignorar que, além dos trabalhos nos
engenhos de mel e aguardente como no caso do Curiaú, assim como nos campos pastoris de
criação de gado vacum nas comunidades de Maruanum, Ambé, Santo Antônio da Pedreira e
Vila Nova como dito acima, suspeitamos também que a atividade pesqueira, o extrativismo e a
agricultura tenham sido praticadas como atividades paralelas ou secundárias e de caráter de
subsistência nestes meios, contando para isso também com a força de trabalho escrava negra.
Além do mais, não restam dúvidas também de que os rios que cortam ou adentram sinuosamente
a geografia local e muitas destas comunidades apontadas na representação geográfica, foram
ou acabaram por ser determinantes no que tange as relações sociais e comerciais bem como ao
próprio processo de ocupação e povoamento interior dessa área em destaque também por
escravos negros; legando assim aos seus descendentes as marcas atuais desse processo,
principalmente quanto a memória e ao semblante étnico e cultural destas históricas localidades
rurais preteritamente escravistas ou quilombolas. A leitura do mapa sinaliza para alguns deles,
os quais consideramos como importantes e legítimas pontes de conexão, acesso e articulação
com o núcleo urbano de Macapá e outros lugares. Isso também pode nos fornece leves indícios
dos possíveis limites desta cidade com o meio rural adjacente naquele contexto.
Nunca é demais reiterar que a relação entre campo e cidade ao menos no ensejo no
Brasil não se dá por exclusão, considerando eventualmente que na centúria oitocentista esta
55

“nação” se caracteriza ainda por ser eminentemente rural. Concordamos então com o
pensamento da historiadora Kátia Mattoso no que diz respeito a tal questão:

Nos séculos XVII, XVIII e mesmo no XIX, cidade e campo são, no Brasil,
estreitamente inter-relacionados. No espaço, seus limites são imprecisos;
economicamente, vivem em estreita simbiose. Seus habitantes não hesitam em
deslocar-se de um para o outro num continuo vaivém de cavalos, mulas,
palanquins e pedestres. As cidades são ‘pomares’, hortas, campos
urbanizados.111

Portanto, é nesse sentido é que “visualizamos” ou pensamos a configuração do espaço


urbano da cidade de Macapá nesta pesquisa a partir do recorte histórico-espacial estabelecido.
Uma cidade que assim como a São Paulo oitocentista (1850-1880) estudada pela professora
Maria Cristina Wissenbach, cuja obra é referenciada na pesquisa histórica de Luiz Carlos
Laurindo Junior para a Belém da mesma época, se “caracteriza pela imprecisão dos limites
entre o mundo rural e o universo citadino”.112 Assim, “transpomos” para Macapá esta
perspectiva tendo na, ainda que rarefeita documentação perscrutada e estudada sobre o tema,
indícios para sustentar esta condição ou fato deste meio urbano. As localidades habitadas,
exploradas e contíguas à cidade de Macapá no período situado demarcam ou dão sentido à
condição desta quanto a imprecisão dos seus limites com o universo rural, bem como a sua
inter-relação com este último meio. O vaivém ou circulação de escravos e demais trabalhadores
e outros sujeitos que transitavam e constituíam sociabilidades nas localidades inseridas nos
limites do “raio geográfico” estabelecido no mapa acima; as atividades econômicas e
comerciais das “casas de comércios” situadas fora e mesmo na cidade cujos produtos se
complementam e abastecem o mercado urbano local e externo da região como no caso de
Mazagão; são aspectos que se imbricam ou se coadunam no entendimento e concepção dos
autores acima referidos.
Por fim, como visto, chama-nos atenção que na segunda metade do século dezenove,
meados de 1869, a conhecida região do Curiaú segundo a documentação pesquisada e
anteriormente citada, era mencionada correlata ao nome de alguns senhores ou proprietários de
escravos, donos possivelmente de extensas glebas de terra na dita região. Temos o exemplo
como se sabe, da senhora escravista Francisca de Almeida Rolla e seus filhos, e o do senhor
José Carneiro da Silva, ambos ligados aos seguintes empreendimentos/atividades econômicas

111
MATTOSO, Kátia de Queirós Mattoso. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2003, p. 13.
112
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas. Escravos e forros em São Paulo
(1850-1880). São Paulo: Hucitec; USP, 1998, apud, LAURINDO JUNIOR, Luiz Carlos. Op. Cit., p.23.
56

respectivamente: engenhos destinados a feitura de mel e aguardente, e o seguinte ocupado da


criação de gado vacum.

Mapa 2: BRAUN, João Vasco Manuel de. Carta topografica: da principal entrada do Rio Amazônas,
pello cannal chamado do norte, com os rios e terras que lhe são confrontantes pertencem a Praça de
Macapá. [S.l.: s.n.], 1790. Disponível em:
<http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_cartografia/cart168417.htm>. Mapa retrabalhado pelo
autor.

Há muitas versões sobre a história dessa localidade negra de Macapá. A referência a


esta vila neste período pode nos levar a repensar a história ou a trajetória desse
lugar113considerado oficialmente como remanescente de quilombo; sua importância
sociocultural e econômica durante o período escravista, bem como do seu controverso e efetivo
processo de ocupação pelos negros – por meio das fugas, de uma possível herança, doação ou
até mesmo compra das terras dessa localidade por parte dos escravos ou negros livres –, tanto
durante a vigência da escravidão quanto no contexto pós-emancipação na região.

113
Ver especialmente o capítulo II de: CAMPOS, Nezilda Jacira Lourinho de. Curiaú: estórias e histórias sobre a
história de uma vila. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual
de Campinas, São Paulo, 2002; SILVA, Sebastião. Menezes da. Curiaú: sua vida, sua história. Macapá (mimeo),
2000.
57

CAPITULO II

2.1 O “desagregar da escravidão negra em Macapá”: aspectos demográficos, leis


emancipadoras, manumissões e liberdade nas décadas finais do escravismo, 1870-1886.

“As décadas de 1870 e 1880 são relevantes para se


compreender a busca incessante dos cativos pela liberdade.
Isto porque, nesse período, temos um quadro de
desregulamento da instituição escravista, de crescimento
do movimento abolicionista, de promulgação da legislação
emancipacionista, fatores estes que colaboraram para o
aumento no número de alforrias e de libertos”.114

O capítulo presente procura analisar mais de perto então este suposto “processo de
desagregação” da escravidão negra em Macapá detidamente a partir do recorte proclamado no
título desta seção. Temos como premissas analíticas no escopo desta parte da pesquisa os
seguintes elementos, que se relacionam, de acordo com nossa investigação – tanto documental
como bibliográfica – , com o referido processo, quais sejam: o relativo impacto de algumas leis
emancipadoras no âmbito do cativeiro em Macapá; a liberdade escrava conquistada por meio
da concessão ou aquisição de títulos de manumissão ou cartas de liberdades (alforrias)
pesquisadas junto ao arquivo do cartório de 1º Ofício de Macapá (Cartório Jucá) correspondente
aos anos de 1883 a 1886. E ainda a questão das fugas que se efetivaram de forma regular pelo
menos durante toda a historicidade delimitada no presente estudo.

2.2. Repensando as estimativas demográficas da população escrava

Não poderíamos prescindir de uma retomada analítica acerca dos “dados ou estimativas
demográficas” que “demarcam” quantitativamente o contingente escravo presente no espaço
geográfico que “delimita” a cidade de Macapá no período oitocentista. Antes de qualquer coisa,
cabe tecermos algumas breves e pertinentes considerações.
Coligir informações estatísticas fidedignas especialmente sobre a população escrava das
províncias do Brasil antes de 1872, constituiu sem dúvida, uma tarefa difícil. Até esta data,

114
LOPES, Daylana Cristina da Silva. Direito e escravidão: embates acerca da liberdade jurídica de escravos na
província do maranhão (1860-1888). Dissertação (Mestrado), Programa de Pós-Graduação em História Social da
Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2013, p. 37.
58

momento em que de fato se realiza o “(...) Primeiro Recenseamento Geral do Império do Brasil,
dando início ao período estatístico, as estimativas disponíveis são conjecturais, via de regra
apoiados em registros religiosos e coloniais e em censos provinciais de qualidade
desconhecida”. 115 Em face dessa problemática os coeficientes respeitantes a população cativa
arrolada e disponíveis para a cidade de Macapá devem e são aqui considerados também como
estimativas conjecturais, principalmente aqueles que cobrem o interstício considerado como
“proto-estatístico”, isto é, todo aquele período anterior ao censo oficial e geral de 1872. Ciente
destas dificuldades José Maia Bezerra Neto, grande especialista na temática da escravidão negra
na Amazônia, colabora com o exposto ao afirmar que “a debilidade dos dados estatísticos acerca
da população da Província paraense, arregimentados por sucessivas administrações provinciais,
também deixa-nos dúvidas acerca da demografia escrava no Grão-Pará sob o regime
imperial”116. De qualquer maneira ainda assim, conforme o referido autor é possível um
conhecimento aproximado sobre este segmento populacional. De toda forma admitimos
também que a ressalva e o cuidado com o manuseio e interpretação histórica de tais dados não
se restringirá aqui somente aquela parte do recorte (1856-1870) pretérita ao recenseamento
oficial. Mesmo tendo-nos em mãos dados coligidos diretamente de fontes documentais
primárias e oficiais do período, elas ainda assim, não traduzem ipsis litteris a realidade ou a
concretude dos fatos que evocam ou que se relacionam na contextura que pesquisamos; um
detalhe em que os próprios sujeitos ou agentes dos discursos impressos nas fontes reconhecem
em alguns momentos.
Autores regionais e outros no esforço dos seus respectivos trabalhos e objetos de
pesquisa histórica legaram certas informações demográficas sobre a população livre e negra
escravizada na província do Pará no século XIX. Vicente Salles, Acevedo Marin, Anaiza
Vergolino-Henry e Arthur Napoleão Figueiredo, Flávio Gomes, Arthur C. Ferreira Reis, Ciro
Cardoso, Antônio Ladislau Monteiro Baena, Domingos Antônio Raiol, Eurípides Funes e
Bezerra Neto são alguns exemplos nesse sentido, alguns dos quais referenciados linhas atrás
neste trabalho. Salientamos ainda que dois importantes conjuntos de fontes documentais
oficiais, primárias e impressas, nos conferiram a primorosa possibilidade de apreciação de
informações estatísticas ainda pouco conhecidas ou mesmo inéditas ao público acadêmico local
correspondente ao contingente escravo e livre de Macapá bem como de Mazagão,

115
Consultar particularmente a seção I “Demografia”, de: Estatísticas históricas do Brasil: séries econômicas,
demográficas e sociais de 1550 a 1988, Rio de Janeiro, IBGE, 1990, pp. 22-29. Disponível em:
http://biblioteca.ibge.gov.br.
116
BEZERRA NETO, José Maia. Escravidão negra na Amazônia (Sécs. XVII-XIX). Op. Cit., p.50.
59

particularmente das décadas de 1870/80. São eles, os Relatórios do Ministério da Agricultura,


Comércio e Obras Públicas (seção “Estado ou elemento servil”) da administração imperial
referentes ao período de 1870 a 1888, bem como os Relatórios dos Presidentes da Província
do Pará dos respectivos anos, cujas informações censitárias arroladas nas províncias eram
remetidas para aquele relatório ministerial.
Seguindo, a partir de 1856, atestamos, será cada vez mais inexpressivo a presença de
escravos negros em Macapá de acordo com os números demográficos disponibilizados e
observados ao longo do referido período; uma tendência que manifestar-se-ia em âmbito
nacional até a completa desintegração do escravismo na década de 1888 no Império. No
capítulo anterior conjecturamos parcialmente algumas possibilidades com vistas a compreensão
de tal processo enfaticamente no contexto dos anos de 1856 a meados da década de 1870. Já
nas duas últimas décadas de suspiro final do escravismo, a realidade aos cativos se esboçará
eventualmente de maneira muito singular, sobretudo no que diz respeito ao acesso ou conquista
da liberdade tanto na região de Macapá como nas demais regiões provinciais do Império, como
no caso para exemplificar, das do Amazonas117 e Ceará, regiões estas onde a escravidão
extinguira-se pioneiramente em meados de 1884, antecipando então em quatro anos a Lei
Áurea. Circunscrevendo ao período de nossa pesquisa, o quadro abaixo apresenta as estimativas
da população escrava da cidade de Macapá.

Tabela 2: Estimativas demográficas da população escrava de Macapá (século XIX).

Ano Escravos
1856 1.158
1872 602
1876 563
1878 398
1882 301
1883 376
1884 234
1885* 253/213
1887 154
1888 211

Fontes: BEZERRA NETO, (2001), Almanak Paraense de Administração, Commercio, Industria e Estatistica para
o anno de 1883; Relatórios dos Presidentes da Província do Pará118, Relatórios do Ministério da Agricultura,
Comércio e Obras Públicas.

117
POZZA NETTO, Provino. Op. Cit., p. 133.
118
PARÁ, Relatorio apresentado pelo exm. sr. dr. Francisco Maria Corrêa de Sá e Benevides, presidente da
provincia do Pará, á Assembléa Legislativa Provincial na sua sessão solemne de installação da 20.a legislatura, no
60

A tabela acima em primeira vista apresenta resultados da população escrava de Macapá


em intervalos de tempo claramente desiguais. O ano de 1856, marco de maior acréscimo do
contingente populacional de escravos na região na contextura da segunda metade do século
XIX, ou do período delimitado em nossa pesquisa, deve ser repensado. A estimativa que se
registra assentada no cômputo de 1.158 escravos no referido ano nos levou a conjecturar que
tal leva fosse provavelmente produto do arrolamento de todos os cativos existentes em toda
região do atual estado do Amapá (Mazagão, Madre de Deus, Santana e de possíveis outros
distritos e localidades) e não exclusivamente da cidade de Macapá neste ensejo.119 Observemos
ainda que num intervalo de dezesseis anos, entre as décadas de 1856 e 1876, (período de maior
intervalo entre os dados demográficos sistematizados na tabela acima), o decréscimo da
população escravizada redundou em mais 51%; o que em contrapartida significou também o
aumento do segmento da população livre na região. A documentação pesquisada nos
informa também que por volta de meados de 1873 a cidade de Macapá contabilizava a presença
de 6.270 habitantes, incluso aí a população cativa,120 e no Grão-Pará, no mesmo ano, a
existência de 15.683 escravos. Se considerarmos apenas os anos de 1872 e 1876, períodos
cronologicamente mais próximos do ano de 1873 e sobre o qual dispomos da estimativa
demográfica “total” da população local expressa acima, é possível inferir, de maneira relativa
e ressalvada que o segmento escravo representeava em 1872 apenas 9% do conjunto da
população de Macapá.
Em 1876, esse percentual reduz-se provavelmente para próximo de 8%. Até o final deste
decênio, em 1878, o contingente escravo decairá paulatinamente chegando possivelmente a um
índice igual ou inferior a 6% em relação ao conjunto populacional desta cidade. Percebemos
ainda uma latente oscilação entre as estimativas demográficas desse segmento da população de

dia 15 de fevereiro de 1876. Pará, 1876; PARÁ, Falla com que o exm. sr. dr. João Capistrano Bandeira de Mello
Filho abrio a 2.a sessão da 20.a legislatura da Assemblea Legislativa da provincia do Pará em 15 de fevereiro de
1877. Pará, Typ. do Livro do Commercio, 1877. PARÁ, Relatorio apresentado pelo excellentissimo senhor doutor
José Coelho da Gama e Abreu, presidente da provincia, á Assembléa Legislativa Provincial do Pará, na sua 1.a
sessão da 22.a legislatura, em 15 de fevereiro de 1880. Pará, 1880.PARÁ, Relatorio com que o exm.o snr. general
visconde de Maracajú passou a administração da provincia ao 2.o vice-presidente, exm.o snr. dr. José de Araujo
Roso Danin, no dia 24 de junho de 1884. Pará, Typ. de Francisco da Costa Junior, 1884. PARÁ, Falla com que o
exm. sr. conselheiro Tristão de Alencar Araripe, presidente da provincia do Pará, abriu a 1.a sessão da 25.a
legislatura da Assembléa Provincial no dia 25 de março de 1886. Belem, Typ. do "Diario de Noticias," 1886.
PARÁ, Falla com que o exm. sr. conselheiro Francisco José Cardoso Junior, primeiro vice-presidente da provincia
do Pará, abrio a 1.a sessão da 26.a legislatura da Assembléa Provincial no dia 4 de março de 1888. Pará, Typ. do
"Diario de Noticias," 1888.
119
BEZERRA NETO, José Maia. Escravidão negra na Amazônia (Sécs. XVII-XIX). Op. Cit., p.123.
120
PARÁ, Relatorio com que o excellentissimo senhor doutor Domingos José da Cunha Junior, presidente da
provincia, abriu a 2.a sessão da 18.a legislatura da Assembléa Legislativa Prov incial em 1.o de julho de 1873.
Pará, Typ. do Diario do Gram-Pará, 1873.
61

Macapá estritamente no período que vai de 1878 a 1888. Também, nota-se que redução
significativa da população escrava de Macapá só veio a ocorrer em 1887.

Gráfico 1: Demonstração da tendência e ritmo do processo de depopulação


do contingente de escravos em Macapá entre 1856-1888.

Estimativas demográficas da população escravizada em Macapá


século XIX
1158

Escravos
602 563
398 376
301 234 213 154 211

1856 1872 1876 1878 1882 1883 1884 1885 1887 1888
Anos
Fonte: Tabela 2. Optamos por utilizar neste gráfico para o ano de 1885 a estimativa de 213 constante
no “PARÁ, Falla com que o exm. sr. conselheiro Tristão de Alencar Araripe, presidente da provincia
do Pará, abriu a 1.a sessão da 25.a legislatura da Assembléa Provincial no dia 25 de março de 1886.
Belem, Typ. do "Diario de Noticias," 1886, pp 29-30.

Assim sendo, tomando o gráfico ilustrativo acima, consideramos que a partir da segunda
metade da década 1850 até os idos finais de 1882, os números tendem para um processo
acentuadamente declinante, e de certa forma regular, no que tange ao contingente de mancípios
negros existentes na região de Macapá, bem como em Mazagão, revelando por sua vez, claros
indícios de uma tendência “relativamente moderada” no que se refere ao “ritmo” do processo
de desintegração demográfica do escravismo nestas localidades, em especial na cidade de
Macapá.
Entretanto, chama-nos atenção que no ano de 1883 os dados apontam para um razoável
“aumento do escravismo” no referendado município. De 301 escravos matriculados pela junta
de classificação local conforme apurou-se na documentação em 1882 (o procedimento de
classificação servil compulsório era necessário para que as quotas dos fundos destinados a
emancipação dos cativos fossem distribuídos proporcionalmente em vista da população de cada
município escravista do Império), salta-se no ano seguinte, em 1883, para 376.
Conjuntura histórica então provavelmente “desfavorável” para tal elevação ou
acréscimo, posto que a escravidão vinha sendo incisivamente combatida pelos movimentos
62

abolicionistas da província paraense pelo menos desde 1854,121 assim como em Macapá mesmo
tardiamente, em particular a partir de 1884, quando entidades como a União Redentora e Liga
Redentora dos Cativos do Pará teriam no ensejo articuladores e representantes
“ardorosamente” “engajados” na referida causa, como no caso do descendente de escravo e
bacharel em Direito Raymundo M. Alvares da Costa e também da já conhecida proprietária de
escravos Francisca de Almeida Rolla, que de acordo com Fernando Rodrigues dos Santos, teria
em ato “filantrópico e benevolente” posto em “liberdade” todos os seus escravos, “como se de
ventre livre nascessem”, ainda neste ano.122
É um momento, portanto, em que ao lado disso, elevadas taxas e impostos incidiam cada
vez mais sobre o processo de comercialização ou aquisição legal de cativos no Império, e em
especial entre as províncias (em 1882 no Grão-Pará por exemplo, o imposto era de cerca de
2:000$000 réis)123, somado ainda, e não menos salutar, ao próprio efeito factual do aparato
jurídico emancipador e gradualista que impactaria relativamente a escravatura nas
municipalidades de Macapá e Mazagão, já em voga desde 28 de setembro 1871 com a chamada
Lei do Ventre Livre e a Lei dos Sexagenários de 1885124, como veremos linhas à frente. Além
é claro, das evasões que provavelmente se efetivaram em alguma frequência neste contexto.
De toda forma, não descartamos ainda a hipótese de que o sobredito acréscimo possa
estar também relacionado com o fluxo de entrada e saída de escravos na província paraense –
para não dizer o tráfico inter e intraprovincial –, que se manteve, até então, frequente ou regular.
Assim nesse sentido, num relatório do ano de 1883 do Ministério da Agricultura por exemplo,
consta no mesmo a estimativa de entrada nos municípios da província de 4.985 escravos contra
a saída de 4.325.125 Logo um fluxo um pouco maior de escravizados (diferença de 660)
introduzidos nos municípios da região neste período em relação aos que realizaram o

121
BEZERRA NETO, José Maia. Por todos os meios legítimos e legais: as lutas contra a escravidão e os limites
da Abolição (Brasil, Grão-Pará: 1850-1888). Tese (Doutorado em História Social), Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, 2009. p. 129.
122
SANTOS, Fernando Rodrigues dos. Op. Cit., pp. 38-39.
123
Sobre isso dizia em 1882 o senhor Dr. João José Pedrosa presidente da província que: “Todas as provincias do
Imperio revelão uma tendencia pronunciada para não obstarem o augmento da população captiva dentro dos
seus respectivos territórios, certas como estão, de que o problema da completa emancipação não tardará a ser
resolvido; e receiosas, portanto, das dificuldades no futuro, trataram precaver-se contra ellas, lançando impostos
prohibitivos sobre a entrada de escravos. PARÁ, Falla com que o exm.o snr. dr. João José Pedrosa abrio a 1.a
sessão da 23.a legislatura da Assembléa Legislativa da provincia do Pará em 23 de abril de 1882. Pará, Typ. de
Francisco da Costa Junior, 1882. pp. 26-27.
124
NEVES, Maria de Fátima Rodrigues das. Op. Cit., p. 87.
125
Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura, Commercio e Obras, 1883, p. 187. Segundo este relatório
as províncias que registraram maior entrada de escravos proporcionalmente foram, Rio de Janeiro com: 83.588,
seguido de São Paulo com 73.230, e Minas Gerais com 64.718. A província do Amazonas que emanciparia seus
escravos no ano seguinte, registrava a saída de 602 escravos, e a entrada de 238, a menor entre as províncias.
63

movimento inverso. Suspeitamos desse modo, que Macapá tenha se enquadrado ou sido afetado
por este processo.
Novamente, importa salientar, as incongruências ou contradições entre os números
demográficos a respeito da população escrava insurgiram-se. Neste caso constatamos tal
problemática particularmente para o ano de 1885 como identificado na tabela 2. No que diz
respeito a estimativa levantada para o referido ano conjecturamos que a “contradição” possa se
dá talvez entre a própria documentação, isto é, em decorrência de algum equívoco no ato de
concepção do referido documento. Fato que reforça novamente o quanto é problemático e
delicado ter que lhe dar com informações dessa natureza na referida temporalidade em virtude
destes e de outros detalhes.
Desta forma, foi Bezerra Netto126 que, apoiando-se nas informações demográficas
levantadas por Acevedo Marin e Vicente Salles concluiu que no sobredito ano de 1885 a
estimativa redundava na soma de 253 cativos existentes em Macapá. Entretanto, quando da fala
do conselheiro e presidente da província do Pará, Tristão de Alencar Araripe no ensejo da
abertura da primeira sessão da 25ª legislatura da Assembleia Provincial, em 25 de março de
1886127, a quantificação dos escravos da região de Macapá segundo consta era, até meados de
junho de 1885, portanto as vésperas da abolição, de 213 (duzentos e treze). Logo claramente
contraditória com o apontado por aquele autor.
Desse total de 2013 é perceptível na documentação uma leve preponderância de
escravos do sexo masculino: um total de 119 (pouco mais de 55%), sobre 94 do sexo oposto
(45%) em Macapá. Já em Mazagão ainda no mesmo período a população servil era composta
de apenas 40 escravos, (mesmo número de cativos da região de Prainha), decomposta entre 19
homens e 21 mulheres. No ano anterior, em 1884, esta localidade computava 78 escravos.
Cabe salientar ainda que a mesma documentação deixa latente que já haviam
municípios na província paraense livres ou praticamente libertos das chagas da escravidão. É o
caso neste sentido, de Juruty, município “totalmente emancipado” do escravismo consoante a
dita documentação. Outros rincões amazônicos como Aveiros, Collares, Salinas e Souzel
possuíam plantéis com menos de 25 escravos. A primeira e o segunda localidades detinham na
devida ordem, 2 e 6 cativos, menor estimativa de toda província. As regiões mais escravistas

126
BEZERRA NETO, José Maia. Escravidão negra na Amazônia (Sécs. XVII-XIX). Op. Cit., p.123.
127
PARÁ, Falla com que o exm. sr. conselheiro Tristão de Alencar Araripe, presidente da provincia do Pará, abriu
a 1.a sessão da 25.a legislatura da Assembléa Provincial no dia 25 de março de 1886. Belem, Typ. do "Diario de
Noticias," 1886, pp 29-30.
64

em termos quantitativos eram a capital Belém, com 6,231 escravos, seguido de Igarapé-miry
com 1,788 (região de muitos engenhos) e Cametá com 1,756.
Consta ainda nesta pormenorizada parte da documentação (fala do conselheiro e
presidente da província do Pará, Tristão de Alencar Araripe de 1886) a “apuração geral dos
filhos livres de mulher escrava na província do Pará”, isto é, os chamados ingênuos. Dessa
maneira, Macapá é apresentada com a existência de 85 ingênuos, dos quais 47 eram do sexo
masculino e 38 do sexo feminino. Até junho de 1884 os indivíduos em tal condição nesta
paragem totalizavam 94128, com prevalência numérica também de uma masculinidade em
relação aos ingênuos do sexo feminino. Para a vila de Mazagão a estimativa registrada era de
16 ingênuos em 1885, já no ano subsequente, em 1884, o número era de 44, uma redução acima
de 50%. De 1884 em diante, à exceção do ano de 1885 em razão das divergências entre as
estimativas, a apreciação interpretativa dos números aponta ainda para uma moderada oscilação
demográfica do escravismo em Macapá até o momento da abolição em 1888. Ou em outros
termos, para um leve e pendular movimento de “acréscimo-declínio-acréscimo” do quantitativo
de mancípios ali existentes, denotando, no limite, a resistência da instituição do cativeiro por
parte de escravocratas conservadores locais.

2.3. A emancipação propalada nas leis

A leitura dos números outrora mencionados leva-nos a crer ou pelo menos sinalizam
que as medidas provenientes da legislação emancipacionista, especialmente a Lei nº 2040 de
setembro 1871, a chamada Lei do Ventre Livre, impactaram timidamente a partir do momento
de sua “execução” o destino e a vida dos escravos e nascituros ingênuos (libertos) das
localidades de Macapá e Mazagão conforme deixam entrever também outras peças documentais
perscrutadas. Este imperativo jurídico consoante Suely Robles de Queiroz, continha em suma
dois aspectos fundamentais: “libertar os filhos de escravos que nascessem a partir da data da
lei, revogando finalmente o célebre e sempre evocado princípio do Direito Romano partus
sequitur ventrem, e alforriar os escravos adultos através do Fundo de Emancipação”.129 A lei
do ventre livre:

128
PARÁ, Falla com que o exm. sr. conselheiro dr. João Silveira de Souza, presidente da provincia do Pará, abrio
a 2.a sessão da 24.a legislatura da Assembléa Provincial em 18 de abril de 1885. Pará, Typ. da Gazeta de Noticias,
1885, pp, 66-69.
129
QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Op. Cit., p. 73.
65

(...) modificou em larga medida os cenários da escravidão no Brasil. Aprovada


na liderança conservadora do Barão de Rio Branco, as disposições da lei
asseguravam a liberdade dos nascidos a partir daquela data, criava um Fundo
de Emancipação para ser utilizado nas manumissões em todas as províncias,
obrigava os senhores a registrar os escravos como medida garantidora dos
direitos de indenização. Os escravos ainda conquistaram o direito de pleitear
na Justiça a compra da liberdade por meio do pagamento de uma indenização
aos seus proprietários, por vezes à revelia da anuência dos senhores. A
revogação da alforria foi proibida. Contudo, os senhores permaneciam com o
direito às condições e cláusulas de prestação de serviços. A lei ainda previa
que no caso de um liberto não cumprir as condicionantes ele ‘será compelido
a cumpri-la, por meio de trabalho nos estabelecimentos públicos ou por
contratos de serviços a particulares’.130

Com efeito a legislação emancipadora ensejou, consoante a historiografia pesquisada,


um “novo” cenário histórico no universo das relações escravistas na sociedade brasileira
oitocentista quando, de um lado, possibilitou caminhos e alternativas legais para acesso a
liberdade por parte do segmento escravizado. Entretanto, verificamos que os resultados das
prerrogativas proclamados especialmente pela instituição do Fundo de Emancipação para com
a libertação dos escravos do império, segundo a vertente historiográfica crítica deste aspecto,131
foram a rigor, bem modestos, ou em outros termos, muito aquém das perspectivas ou
expectativas concebidas. Na província do Grão-Pará, particularmente em Macapá e Mazagão,
os dados empíricos pesquisados sobre as manumissões referentes as décadas de 1870 e 1880
decorridas das ações deste fundo seguiram, resguardadas as devidas especificidades, também
esta tônica. O historiador Vicente Salles tratando em sua obra do papel governamental no que
se refere a questão da abolição – em âmbito geral, provincial e municipal – e ocupando-se da
análise da função e papel do Fundo Emancipacionista, concluiu ter sido muito limitado o papel
do agente governamental. Afirma ainda que a emancipação escrava na região era, na “prática”,
resultado principalmente das ações particulares e das sociedades emancipadoras (vide tabela
3).132 Nesse sentido, constatamos que os proprietários do jornal O Abolicionista Paraense,
revertiam toda a rentabilidade advinda da comercialização do mesmo em favor da libertação
dos escravos da cidade de Belém neste momento.133
Posto isso, tomamos conhecimento de que as estatísticas provenientes das manumissões
por conta do Fundo de Emancipação dos cativos da província paraense também encontravam-

130
CAVALCANTE, Ygor Olinto Rocha. “Uma viva e permanente ameaça”... Op. Cit., p. 121.
131
COSTA, Emília Viotti da. A Abolição. 8ª edição revista e ampliada. São Paulo: Editora Unesp, 2008. p. 58.
132
SALLES, Vicente. O negro no Pará, sob o regime da escravidão. Op. Cit., pp. 279-303.
133
O Abolicionista Paraense, 24 de Junho de 1883, Anno 1, nº 4, p.1.
66

se sistematizadas em alguns dos relatórios da “Secretaria de Estado dos Negocios da


Agricultura, Commercio e Obras” do governo monárquico, bem como naqueles expedidos
pelos presidentes da província, donde constam os referentes aos municípios de Macapá e
Mazagão, os quais nos interessavam.
Por volta de 1883 em relatório, o Ministério da Agricultura anunciava “os resultados
geraes do Fundo de Emancipação, desde sua creação” no ano 1871. Portanto, decorrido treze
anos após a criação deste fundo, (lembrando que no Pará houve Fundos municipais e
provinciais) já haviam sido alforriados na província paraense desde então, 371 escravos em 39
municípios.134 Deste total apenas 8 correspondiam as libertações dos escravos da cidade de
Macapá. Em Mazagão durante todo esse período, apenas 4 cativos teriam sido libertados pelo
dito Fundo de acordo com a documentação. Em relatório do presidente provincial do ano de
1876135, consta que 2 (dois) mancípios foram agraciados com a liberdade pelo mesmo Fundo
em Macapá.
Observemos na sequência as estimativas acerca das manumissões dos escravos da
cidade Macapá e de alguns municípios da província paraense, resultantes das ações do Fundo
de Emancipação, e de outras modalidades de alforrias, referentes ao contexto da década de
1870, coligidos do relatório do senhor José Coelho da Gama e Abreu, presidente da província
em 1880.

134
Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura, Commercio e Obras, 1883, p. 193.
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1969/000204.html.
135
PARÁ, Falla com que o exm. sr. dr. João Capistrano Bandeira de Mello Filho abrio a 2.a sessão da 20.a
legislatura da Assemblea Legislativa da provincia do Pará em 15 de fevereiro de 1877. Pará, Typ. do Livro do
Commercio, 1877.
67

Tabela 3: “Quadro das libertações havidos na província até 31 de dezembro de 1878”.

Modalidades de libertações escravas


Municípios Por título Pelo Fundo de
Por título oneroso gratuito Emancipação
Capital 685 426 14
Vigia 5 51 4
Óbidos 5 86 1
Gurupá 2 27 2
Breves 14 3
Curralinho 4 1 2
Oeiras 3
Chaves 4 2
Santarém 11 58 2
Marapanim 2 3
Ponta de Pedras 14 14
Monte Alegre 9 4 2
Muaná 10 46 1
Macapá 49 30 3
Melgaço 9 5 3
Moju 4 18 1
Curuçá 3 31 3
Soure 3 34 2
Cintra 34 1
Baião 1 2 2
Cametá 71 12
Bragança 68
Monsarás 5 15
Igarapé-miry 36
Mocajuba 8 20 3
Porto de Moz 10 1
Alenquer 18 26 1
Acará 6 23 2
Itaituba 5 2 2
São S. da Boa Vista 12
Ourém 28 3
Cachoeira 33 3
Vizeu 6 1
Portel 1 1
Faro 1 1
Villa Franca 3
S. Miguel do Guamá 54 1 2
Total 956 1244 76

Fonte: PARÁ, Relatorio apresentado pelo excellentissimo senhor doutor José Coelho da
Gama e Abreu, presidente da provincia, á Assembléa Legislativa Provincial do Pará, na sua
1.a sessão da 22.a legislatura, em 15 de fevereiro de 1880. Pará, 1880. pp. 86-87.
68

É sempre importante ter clareza quanto a conjuntura ou historicidade em que os números


apresentados se inscrevem, do contrário eles apenas serviriam como meros artifícios de caráter
ilustrativo e sem denotação de sentido, logo, vagos em si mesmos e perdidos nos labirintos da
trama histórica que representam. Como já havíamos suscitado, os dados até aqui apresentados
no presente capítulo cobrem praticamente duas décadas, isto é, dos princípios dos anos de 1870
até meados de 1888. A passagem abaixo expressa em síntese muito bem a complexidade deste
período, marcado pelo desenlace de processos, fatos e pela vivacidade de expectativas,
frustrações e esperanças de liberdade, principalmente por parte da comunidade escravizada.

“as décadas de 1870 e 1880 são relevantes para se compreender a busca


incessante dos cativos pela liberdade. Isto porque, nesse período, temos um
quadro de desregulamento da instituição escravista, de crescimento do
movimento abolicionista, de promulgação da legislação emancipacionista,
fatores estes que colaboraram para o aumento no número de alforrias e de
libertos”. (Grifos nossos).136

Essa busca em alguns casos sem limites e incessante pela liberdade fez dos escravos
negros das localidades urbanas de Macapá e Mazagão destes tempos, verdadeiros sujeitos
históricos (ainda que a documentação os alijem desta condição), ou ainda, “protagonistas
anônimos de uma história”137 que os mesmos a erigiram num terreno quase sempre minado de
embates, afabilidades, complexidades e interseções juntos com seus pares e demais sujeitos
com quem travavam sociabilidades e aproximações. Enfim, “um jogo de equilíbrio entre
diversos sujeitos sociais”.138 Essas relações podem ser pensadas e concebidas a partir dos dados
dispostos na tabela 3 acima, que sinalizam para prevalência de determinadas formas de
aquisição da liberdade pelos escravos de Macapá nesse contexto, bem como para os meandros
do processo (relações) de constituição e legitimação de cada uma delas entre os principais
agentes envolvidos (Estado, proprietários escravistas e os próprios cativos).
Num relatório de 1874, o governo provincial apresentava um quadro com a
“classificação das libertações”, ou seja, discriminava os agentes e entidades comumente
envolvidas com a causa emancipacionista e o número de alforrias concedidas: “Pelos deputados
provinciais: 4; pela câmara municipal da capital 9; pelo governo provincial 20; pela
Directoria da festa de Nazareth 4; Irmandade do Divino Espirito Santo d`Abaete 1; Sociedades

136
LOPES, Daylana Cristina da Silva. Op. Cit., p. 37.
137
VAINFAS, Ronaldo. A micro-história ou os protagonistas anônimos da história: micro-história. Rio de Janeiro,
Campus, 2002.
138
LUNA, Verônica Xavier. Op. Cit., p. 144.
69

nacionaes 10; Associação philantrópica de emancipação 1; Philantropia de particulares 112;


Próprios manumitidos 151 (os escravos); Possuidores 307.139
Primeiramente, as informações estatísticas presentes na tabela acima apresentam
resultados relacionados ao impacto de uma política pública que objetivava entre outras, a
“gradual extinção do elemento servil” da sociedade brasileira, como diziam os dirigentes
políticos de então, especialmente quanto ao papel do Fundo de Emancipação no referido
processo, considerado para muitos, o principal ingrediente da Lei nº 2040 de setembro 1871.
Provavelmente muitos esperançosos e deslumbrados com a possibilidade da liberdade,
os negros escravos radicados nas cidades de Macapá e Mazagão neste momento, talvez não
tardaram a perceber que a alternativa de emancipação aberta pelo Fundo emancipacionista,
significasse, de fato, uma via burocrática, limitada e recheada de incertezas. É, portanto para
este entendimento que se inclina as estimativas de alforrias bancadas pelo referido Fundo para
com a escravaria de Macapá como se pode atestar na tabela acima. Dessa forma, desde 1871 os
números de libertações custeadas pelo ente governamental na figura do Fundo, foram, tanto em
Macapá como em Mazagão, bem modestos.
Tudo leva a crer ainda que essa tendência desdobrou-se nos anos seguinte até a ocasião
da abolição em maio de 1888. Em 1883 por exemplo, como já assinalamos, e segundo consta
no relatório do ministério da agricultura,140 apenas oito escravos teriam sido manumitidos até
então em Macapá por ocasião do mesmo.
Confrontando as estimativas das demais modalidades de alforrias expostas na tabela
acima, (de título oneroso e de liberalidade particular ou gratuita), é clarividente e discrepante a
disparidade em relação as manumissões auferidas pelo fundo emancipacionista aos cativos de
Macapá. Nota-se que as emancipações concedidas por título oneroso e por liberalidade
particular foram na devida ordem de 49 e 30, totalizando, desse modo 79 libertações. Por outro
lado, aquelas outorgadas pelo Fundo emancipacionista totalizam apenas três (3). Somados todos
esses números temos o valor oitenta e duas (82) manumissões legitimadas num intervalo de
aproximadamente sete anos, ou seja, formalizadas entre os anos de 1871 e 1878.141

139
PARÁ, Relatorio apresentado a Assembléa Legislativa Provincial na primeira sessão da 19.a legislatura pelo
presidente da provincia do Pará, o excellentissimo senhor doutor Pedro Vicente de Azevedo, em 15 de fevereiro
de 1874. Pará, Typ. do Diario do Gram-Pará, 1874. p. 49.
140
Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura, Commercio e Obras, 1883, p. 193.
141
Este período é considerado como de ascensão da economia da goma elástica na Amazônia. Assim sendo é
interessante observar em qual medida se deu a relação entre o apogeu dessa economia com o processo abolicionista
na província do Pará no sentido de contribuir para o robustamente dos recursos do Fundo de emancipacionista.
Ver LAURINDO JUNIOR, Luiz Carlos. A cidade de Camilo: escravidão urbana em Belém do Grão-Pará (1871-
1888). Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia, Belém, 2012. p. 14.
70

Tomando como referência as estimativas demográficas da população escravizada em


Macapá alocadas na tabela 2, bem como no gráfico 3, verificamos que esse período (1871-
1878) configura-se proporcionalmente como o de maior decréscimo da escravaria local (posto
que não temos os números da década de 1860, o que nos conferiria talvez uma outra realidade).
Em 1872 as estimativas apontam para a presença de 602 escravos matriculados na cidade de
Macapá. Já em meados de 1876, a documentação apura 563 cativos; em 1878, este número
decai para 398, e em 1882, para 301. Subtrativamente raciocinando houve então 204 escravos
livres dos grilhões da escravidão em Macapá entre 1872 e 1878, dos quais estimamos que em
torno de 40% (82 escravos) ou mais foram emancipados por meio das modalidades de alforrias
que acima expomos: título oneroso, gratuito e pelo Fundo de Emancipação. Mesmo assim, ainda
temos um saldo de 122 mancipios, que talvez outros aspectos possam estar por detrás como a
fuga, a morte, ou ainda o tráfico interprovincial que se manteve vigoroso nesse momento. Katia
Mattoso afirma que apenas nesse período (de 1872 a 1876) “(...) somente o porto do Rio de
Janeiro recebe 25 711 escravos vindos do norte e nordeste. ”142
Quiçá, reside aí, em termos relativos, a explicação para o processo de declínio da
população escrava de Macapá particularmente neste período de acordo com os dados e
informações coligidos na documentação citada. Salientamos ainda que entre os anos 1883 e
1886 foram outorgadas vinte e duas (22) cartas de liberdades, inclusive cartas com cláusulas
condicionais ou restritivas de liberdade, aos escravos da região de Macapá.143A prevalência de
concessões de alforrias do tipo gratuita e onerosa como se viu, que ampliou de modo
considerável o número de libertos neste contexto em Macapá, parece, portanto, se alinhavar
com as conclusões da historiografia do tema, que assevera ser estes e outros aspectos comuns
ou característicos desta “fase” do escravismo em todas as regiões provinciais do Império.144
A tabela supramencionada como se percebe, omite ou não apresenta os dados das
manumissões de algumas municipalidades da região, como no caso do município de Mazagão.
Tal omissão não fora proposital, mas talvez em virtude de uma gama de problemas e entraves
que envolviam o processo de levantamento, registro e classificação dos escravos nos municípios
da província para serem em seguida manumitidos pelas quotas financeiras do fundo libertador.
Segundo Maria Emília Viotti da Costa várias irregularidades ocorriam tanto na matrícula dos
escravos como no Fundo de Emancipação. A autora afirma que os “proprietários custaram a

142
MATTOSO, Kátia de Queirós. Op. Cit., p. 63.
143
Pesquisadas junto ao arquivo do Cartório de 1º Ofício de Macapá (Cartório Jucá).
144
SCHWARTZ. Stuart B. Op. Cit.; LOPES, Daylana Cristina da Silva. Op. Cit.; COSTA, Emília Viotti da
Op.Cit.; COSTA, Emilia Viotti da. Da senzala à colônia. 4. ed.São Paulo: Fundação Editora da UNESP,
1998.p.456-460; QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Op. Cit.
71

registrar seus escravos”, além do que a lei era burlada de diversas maneiras por aqueles. (...)
“Os escravos que possuíam pecúlio não conseguiam fazer valer seus direitos à alforria. Isso
ocasionava queixas e dava margem a processos”. Outro problema recorrente dizia respeito as
Juntas de Emancipação, que, além dos atrasos para reunirem-se, trabalhavam quase sempre de
maneira irregular, retardando ou comprometendo seu funcionamento. Viotti ainda assevera que
para evadir-se da Lei, proprietários de escravos também “apressavam-se em alforriar, com
cláusulas de prestação de serviços, cativos que se achavam em condições de serem incluídos
preferencialmente nas listas de escravos a serem emancipados pelo Fundo de Emancipação”.
Por outro lado, assinala a referida historiadora que os recursos do Fundo eram muito parcos e
poucos escravos realmente se beneficiaram dele.145
Tal como descrito por Viotti, diversos municípios da província do Pará se encontravam
mergulhados nos ditos e inconiventes problemas, o que deixava talvez, um sem número de
escravos aflitos e no limite das esperanças de liberdade por tal meio.
No Pará pelos idos de 1876 se queixava o dirigente da província Francisco Maria Corrêa
de Sá e Benevides, num tom quase que angustiante, da falta de coletorias e das dificuldades em
constituir as Juntas Classificadoras nos muitos municípios espalhados pela vasta região que
compreendia a província.146 Na fala do seu sucessor, João Capistrano Bandeira de Mello Filho
em fevereiro de 1877, verificamos que o município de Mazagão era descrito com apenas 22
escravos matriculados existentes em 1876147. O que é de se estranhar posto que o referido
município como apontamos linhas atrás, particularmente nesta década, não chegou a ter tão
diminuto contingente de escravos.
Também nesta mesma documentação o sobredito presidente ao mesmo tempo que
relatava um problema comum “herdado” da administração do seu antecessor e sentenciava a
permanência do mesmo em sua gestão; inspirava escrúpulos quanto fidedignidade dos dados
estatísticos respeitantes a população escrava: “o número de alguns escravos de alguns
Municípios foi obtido por estimativa, pois que de uns foram remetidos os dados estatísticos e
de outros, não existindo nelles Colectores, foram os escravos matriculados em Estações
Fiscaes dos municípios visinhos (...).”

145
COSTA, Emília Viotti da. A Abolição. Op. Cit. p. 58.
146
PARÁ, Relatorio apresentado pelo exm. sr. dr. Francisco Maria Corrêa de Sá e Benevides, presidente da
provincia do Pará, á Assembléa Legislativa Provincial na sua sessão solemne de installação da 20.a legislatura, no
dia 15 de fevereiro de 1876. Pará, 1876. p. 52.
147
PARÁ, Falla com que o exm. sr. dr. João Capistrano Bandeira de Mello Filho abrio a 2.a sessão da 20.a
legislatura da Assemblea Legislativa da provincia do Pará em 15 de fevereiro de 1877. Pará, Typ. do Livro do
Commercio, 1877. p. 110.
72

Atrasos nas libertações dos escravos radicados no município Mazagão e de muitos


outros, também foram descritos em alguns dos relatórios dos governantes da província, o que
sem dúvida avultava ainda mais a ânsia e as expectativas dos cativos que se encontravam na
iminência de serem alforriados (libertandos). Problemas dessa natureza ocorreriam em
Mazagão em meados dos anos de 1878 durante a governança do presidente José da Gama
Malcher. Pouco tempo depois em 1880, notificava-se novamente a ocorrência da mesma
situação. Ainda nesse ano, o presidente José Coelho da Gama e Abreu em seu discurso deixava
entrever que a ineficiência dos trabalhos da junta de classificação do município de Mazagão,
era em suma, a causa fundamental dos recorrentes descompromissos e atrasos. Desse modo,
num tom de crítica, expusera que: “Não obstante as reiteradas ordens expedidas ás juntas
classificadoras de escravos dos municipios de Faro e Mazagão, únicos em toda a província,
em que ainda não foi cumprido o preceito legal, ainda não se procedeu as libertações por conta
das quotas do fundo de emancipação distribuídas a taes municípios.148
Em sintonia novamente com os dados apontados na tabela 3, é possível extrair deles
outras possibilidades interpretativas. Em termos absolutos o quantitativo de alforrias
concedidas por liberalidade particular e a título oneroso nesse contexto, foram, evidentemente,
muito superiores em comparação com as provenientes das ações do Estado na figura Fundo de
Emancipação na província do Pará. Mas afinal, a que se deveu isso? Nessa lógica, em 1887
dizia o conselheiro Francisco José Cardoso Junior, vice-presidente da província, de cujo
argumento pode nos dá algumas pistas nessa direção:

Me e grato dizer-vos que muito reduzido está o número do elemento escravo,


e que, contando, com a proverbial generosidade e humanitários sentimentos
dos paraenses, com o vosso patriotismo e com o auxílio do fundo geral de
emancipação, não está longe o dia em que nas páginas da história da vossa
província, se inscreverá o facto glorioso da rendempção total dos
escravisados.”149

Como já demonstrado, desde sua criação em 1871 com a Lei do Ventre Livre, o Fundo
de Emancipação por sua vez, respondeu quantitativamente por um número muito comedido de
libertações escravas, em particular em Macapá e Mazagão. Em contrapartida percebemos, tanto
pelos dados e informações até aqui socializadas e discutidas, quanto pelo saber historiográfico

148
PARÁ, Relatorio apresentado pelo excellentissimo senhor doutor José Coelho da Gama e Abreu, presidente da
provincia, á Assembléa Legislativa Provincial do Pará, na sua 1.a sessão da 22.a legislatura, em 15 de fevereiro de
1880. Pará, 1880. p. 86.
149
PARÁ, Falla com que o exm. sr. conselheiro Francisco José Cardoso Junior, 1.o vice-presidente da provincia
do Pará, abrio a 2.a sessão da 25.a legislatura da Assembléa Provincial em 20 de outubro de 1887. Pará, Typ. do
Diario de Noticias, 1887. p. 75.
73

a respeito do tema, que o envolvimento e a ação, e principalmente o engajamento político-


ideológico da sociedade civil paraense para com a causa emancipacionista, configuraram-se, no
limite, como determinantes no que tange o processo de desarticulação e desgaste da velha
estrutura escravocrata na região amazônica. A mobilização da sociedade em prol da causa
libertária dos escravizados pode ter sido o objetivo angular da Lei do Ventre Livre. Em outras
palavras, “tornar o abolicionismo cada vez mais presente no universo social brasileiro”.150 Por
fim, é nessa via que argumenta o professor José Maia Bezerra Neto em sua tese quanto à questão
da legislação emancipacionista:

“ (...) o espírito da Lei do Ventre Livre não excluía a ação emancipadora da


sociedade civil; uma vez que a instituição jurídica do Fundo de Emancipação
não devia ser unicamente a responsável pela emancipação escrava, mas o
devia fazer como política pública associada e incentivadora da ação particular.
Isto é, que o volume, ou maior número de alforrias particulares ou daquelas
obtidas pelos emancipadores organizados em sociedades não era
necessariamente testemunho da ineficácia do Fundo de Emancipação, mas
parte daquilo que era esperado pela reforma conservadora de Rio Branco: que
os senhores fossem os principais responsáveis pelo término da escravidão, não
necessariamente o governo imperial, tanto que a reforma da Lei de 1871,
através da Lei de 28 de Setembro de 1885, somente teve razão de ser no
contexto da pressão abolicionista da década de 1880”.151

Para os escravos de Macapá e de Mazagão que foram alforriados pela ação


governamental, o Fundo em si cumpriu sua função. Para muitos outros ou a maioria o “Fundo
de Emancipação trouxe muito mais esperanças do que uma mudança concreta em suas vidas”152

2.4. “De minha livre e espontânea vontade”: a alforria as vésperas da Abolição em Macapá.

Entre 1883 e 1886, os tabeliães Manoel Mendes da Silva de Loureiro e João José Ramos
(por um determinado tempo tabelião interino), no recinto do escritório cartorial de Macapá
localizado na antiga rua da Constituição, formalizaram a tão esperada liberdade para alguns
escravos. Elas foram registradas num livro de notas, donde constam ainda escrituras “de bem
de raiz, hipotecas” e como já deixamos entender, cartas de liberdades. O juiz municipal, 1º
suplente em exercício, Antônio de Sousa Palha, foi quem lavrou seu termo de abertura. Ao todo

150
BEZERRA NETO, José Maia. Por todos os meios legítimos e legais. Op. Cit. p. 301.
151
Ibidem, p. 229.
152
NETO, José Pereira de Santana. A alforria nos termos e limites da lei: o Fundo de Emancipação na Bahia.
Dissertação (Mestrado) - UFBA / Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós-graduação em
História social, 2012. p. 24.
74

apenas vinte e duas (22) cartas de alforrias foram registradas neste livro, misturadas juntos a
outros tipos de registros como o de transferência de contrato de locação de serviços de libertos
ou manumitidos. A primeira carta de manumissão identificada, data-se de 12 de dezembro de
1883 e foi passada pela senhora Anna da Conceição Rôlla Machado em favor de sua escrava
de nome Tecula.
No que se refere ao tratamento conferido as vinte e duas cartas pesquisadas, procuramos
analisar a frequência dos tipos de alforria (gratuita ou onerosa como a que se apresentou na
Tabela 3) e o perfil dos escravos que mais se beneficiaram com as manumissões, tendo como
variáveis, sempre que possível, aspectos como: sexo, idade, cor e profissão. No bojo desse
processo, procuramos ainda, em alguns casos, atentar para as razões e condições estabelecidas
para a obtenção da carta de alforria pelos escravizados de Macapá.
Num total de 22 cartas de liberdades arroladas, doze (12) correspondiam aos escravos
do sexo masculino e o restante, dez (10), ao feminino. Em doze (12) constavam a idade dos
cativos, que variava entre 26, 29, 30, 32, 35, 38, 40, 46, 51, 54, chegando mesmo a idade de 64
anos, ou seja, escravos adultos, este último, já idoso e possivelmente improdutivo, portanto “um
peso” para o seu senhor. No que tange ao aspecto “étnico” ou da “cor” dos alforriados,
geralmente se qualificava os mesmos como mulato, preto, carafuso ou cafuzo e crioulo, o que
atesta o aspecto de uma escravaria marcada profundamente pela miscigenação em Macapá.
Nesses contratos de libertações os quais pesquisamos o item profissão constava em apenas três.
É o caso da carta de alforria do libertando Manoel Raimundo, lavrada por seu senhor na
oportuna e especial ocasião de “veneração ao dia que é hoje [25 de dezembro], do nascimento
do salvador e redentor do mundo, nosso senhor Jesus Cristo”. No célebre dia natalino
escreveria o senhor:

Pela presente, declaro eu abaixo assinado que desejando dar uma prova do
alto apreço e estima em que tenho a meu primo e amigo, ilustríssimo senhor
doutor José Maria Leitão da Cunha, que acaba de ser eleito deputado à
assembléia geral legislativa, por este distrito, e também em veneração ao dia
que é hoje, do nascimento do salvador e redentor do mundo, nosso senhor
Jesus Cristo concedo a carta de liberdade ao meu escravo Manoel Raimundo
de sessenta e quatro anos de idade, cor preta, solteiro com a profissão de
pedreiro, a qual consta da matricula especial deste município na relação
numero trinta e cinco, sob o numero quinhentos e setenta e sete de ordem. E
por ser verdade passo a presente digo, ser verdade este meu sentimento, passo
a presente carta de liberdade para que conste onde convier. Macapá vinte e
cinco de dezembro de mil oitocentos e oitenta e quatro – Antonio Maria da
Silva de Loureiro – testemunhas: José Carneiro da Silva, José Antonio da
Costa. Era o que continha a referida carta de liberdade que lêem e fielmente
aqui registrei, e dou fé, aos vinte e seis dias do mês de dezembro de mil
75

oitocentos e oitenta e quatro. Eu Manoel Mendes da Silva de Loureiro,


Tabelião que escrevi e assinei.153

O velho, talvez moribundo, preto, solteiro e pedreiro de profissão Manoel Raimundo,


de 64 anos de idade, teve a 25 de dezembro de 1884 sua alforria “concedida” de forma gratuita,
por seu até então senhor, Antônio Maria da Silva de Loureiro. O dia “do nascimento do salvador
e redentor do mundo” foi a ocasião em que o referido senhor escolheu para demonstrar sua tão
messiânica, justa e caritativa obra ou gesto: a redenção de um velho escravo seu. Aos 64 anos
Manoel Raimundo fora manumitido, e partir de então, seguirá seu devir e procurará manter-se
agora, talvez, tão somente por si na cidade de Macapá ou em qualquer outro lugar na região.
Mas Manoel Raimundo, agora livre, parece não ter deixado nenhuma outra prova para nós em
sua carta de libertação das razões para sua concessão (além da idade avançada), que não fosse
aquela de seu senhor em querer “dar uma prova do alto apreço e estima” que tinha a seu “primo
e amigo, [o] ilustríssimo senhor doutor José Maria Leitão da Cunha”. Alforriar escravos idosos
e de pouca saúde foi uma prática comum154, e ao contrário daquilo que se percebe como uma
atitude senhorial benevolente, como a do escravo Manoel Raimundo e seu senhor, esconde em
si o desvencilhamento da parte senhorial da responsabilidade de manter um escravo
improdutivo e as vezes à beira da morte, como se depreende na carta de liberdade que ora
apresentamos. Sendo pedreiro e lançado a própria sorte o meio urbano continuará sendo
provavelmente o espaço de vivência do liberto Manoel.
As outras cartas de liberdades em que consta a profissão ou ofício do escravo foram
registradas nos anos de 1884, e pertencem aos então libertos Elivio e ao preto de 29 anos
chamado Elisbão. Para o primeiro, Macapá foi o local escolhido, talvez por ter o cartório mais
próximo por outro motivo, para se formalizar a título gratuito a alforria desse escravo tendo em
vista que era “feitor de minha fazenda denominada – Filhos de Eva na ilha de Marajó – distrito
de Soure”,155 dizia seu proprietário o senhor Antônio Farias. Sendo a região marajoara
caracterizada pela presença de muitas fazendas, o escravo Elivio exerceu aí seu oficio de
vaqueiro feitor como consta em sua carta de libertação. Passada em seu favor e sem ônus e pelo
mesmo senhor em 10 de fevereiro, o escravo “Elisbão” era também vaqueiro na referida
paragem.

153
Carta de 26 de dezembro de 1884, 1º Ofício de Notas de Macapá (Cartório Jucá), Livro 01, folha 84.
154
MATTOSO, Kátia de Queirós. Op. Cit., p. 184.
155
Carta de 14 de fevereiro de 1884, 1º Ofício de Notas de Macapá (Cartório Jucá), Livro 01, folha 44.
76

As cartas de liberdades concedidas aos escravos de Macapá e de outras localidades, as


quais pesquisamos, podem ser classificadas de dois modos: aquelas outorgadas a título gratuito
ou por liberalidade particular e as de modo oneroso, ambas podendo conter cláusulas restritivas
de liberdade impostas aos escravos, isto é, cartas condicionais como a que se apresenta abaixo.
Dessas vinte e duas (22) cartas de liberdades concedidas entre 1883 e 1886, nove (9) foram
outorgadas por título gratuito; oito (8) de modo oneroso; e cinco (5) corresponderam à maneira
condicional. Nota-se que as manumissões concebidas a título gratuito foram superiores em
comparação com as demais modalidades de alforrias nesse intervalo de três anos. Mas a ínfima
diferença de apenas uma carta de liberdade auferida de modo gratuito em relação as que se
processou por fins onerosos e também condicional, nos revela de um lado, o forte apego de
alguns senhores e senhoras proprietários de Macapá ainda ao escravismo. Mais ainda quando
analisamos particularmente as cartas formalizadas de modo condicional, revelando certas
contradições morais do agente concedente.
A senhora Francisca de Almeida Rôlla, conhecida em Macapá pelo seu engajamento
especialmente a partir de 1884 na causa abolicionista como membro da Liga Redentora dos
Cativos do Pará, conforme assinalou Fernando Rodrigues dos Santos,156 redigiu a alforria do
seu escravo Euzébio e dirigiu-se em março de 1884 ao cartório local. Junto de algumas
testemunhas provavelmente de seu círculo social, outorgaria com o tabelião João José Ramos,
a tão sonhada “liberdade” (condicional) do sobredito cativo:

Eu abaixo assinada, declaro que de minha espontânea vontade, dou liberdade


ao meu escravo de nome Euzebio, com a condição de me prestar serviços e
ficar em minha casa pelo o prazo de quatro anos a contar desta data até
completar-se esse prazo, vindo a qual poderá gozar de sua liberdade onde lhe
convier ou continuar em minha casa. A dita prestação de serviços não passará
aos meus herdeiros. E para constar faço a presente mim assino. Macapá nove
de março de mil oitocentos e oitenta e quatro; Francisca Rolla de Almeida.
(...)157 (grifos nossos).

Talvez a senhora Francisca de Almeida Rôlla detivesse ainda em si o espirito ou a


consciência escravista que a tornou a maior proprietária de escravos na região de Macapá neste
período sobre o qual pesquisamos, segundo também, Fernando Rodrigues dos Santos. Esta
alforria condicional concedida ao seu escravo Euzébio é a prova de que o apego ao escravismo

156
SANTOS, Fernando Rodrigues dos. Op. Cit., p. 39.
157
Carta de 9 de março de 1884, 1º Ofício de Notas de Macapá (Cartório Jucá), Livro 01, folha 59. Ver anexo A.
77

continuava pairando na cidade Macapá, e principalmente na mentalidade de alguns


proprietários mesmo as vésperas da abolição; já que havia um número bem reduzido de escravos
presentes neste momento na cidade. Ao ser alforriado de modo condicional por sua proprietária,
isto é, com a “condição de me prestar serviços e ficar em minha casa pelo o prazo de quatro
anos a contar desta data”, o escravo Euzébio terá dúvida quanto a sua real condição: livre,
semi-livre, escravo, semi-escravo? Ambiguidades que se tornaram frequentes em sua vida pelos
quatro anos seguintes, quando ao findo do tempo previsto, poderá exercer sua liberdade
plenamente e não mais de modo retardado ou precário.158 Kátia Mattoso expõem: “outra
ambiguidade está em que muitas cartas de alforrias contém cláusulas restritivas: de tempo ou
condições suspensivas, que anulam na prática as consequências da emancipação; o escravo
passa a liberto, mas o uso dessa liberdade lhe é interditado. Uma liberdade sob condições”.159
Uma liberdade sob condições foi o que se estabeleceu nas cartas de manumissão dos
escravos “Catharino, preto, 38 anos de idade”, do preto Francisco, da escrava Tecula e
Constantino. Eis o conteúdo primeiramente, da carta de liberdade do escravo Catharino
outorgada por seu senhor Casemiro José Dias da Cunha em abril de 1885:

Declaro eu abaixo assinado, que sou senhor e verdadeiro possuidor de um


escravo preto de nome Catharino [de] trinta e oito anos de idade, ao qual
depois de prestar-me quatro anos de serviço, contadas da data de hoje, ficará
fora e livre da escravidão. Em firmeza do que passei a presente, na presença
das testemunhas també abaixo assinadas. Macapá cinco de abril de mil
oitocentos e oitenta e cinco.
Casemiro José Dias da Cunha – Theodoro Manoel Mendes - José de Sousa
Netto. Era o que continha a referida carta lêem e fielmente aqui registrei e a
qual me reporto e dou fé. Era (palavra incompreensível). Eu Manoel Mendes
da Silva de Loureiro, Tabelião que escrevi e assino. Manoel M. da S. de
Loureiro.160

Em tese o escravo Catharino mesmo após a abolição em maio de 1888 ainda terá de
cumprir, pelo menos em tese, com o que estabelece sua referida carta de alforria condicional:
prestar serviços ao seu senhor até abril de 1889, momento em que legalmente “ficará fora e
livre da escravidão”, como atesta um fragmento de sua carta de liberdade.
Em algumas cartas de liberdades formalizadas neste momento de crise e descrédito da
instituição escravista no país, é possível verificar as razões ou as possíveis motivações para a

158
MATTOSO, Kátia de Queirós. Op. Cit., p. 180.
159
Ibidem, p. 180.
160
Carta de 5 de abril de 1885, 1º Ofício de Notas de Macapá (Cartório Jucá), Livro 01, folha 102.
78

concessão da mesma ao escravo macapaense. Muito mais comum nas alforrias concedidas de
forma gratuito as razões, além de diversas, “narram a história muito digna dos esforços e das
penas de todo um povo escravo, sedento de míseras liberdades outorgadas pelos senhores mais
calculistas do que generosos”.161
“A carta de alforria é um ato comercial, raramente um gesto de generosidade”162
assevera a historiadora Kátia Mattoso. Entretanto percebemos que as relações entre senhores e
escravos varia, principalmente em momentos de crise pondera a professora Emília Viotti. A
carta de alforria concedida ao escravo Izidorio, cujo senhor João da Silva Mendes escrevera a
25 de dezembro de 1883, registrando-a no dia 31 do mesmo mês no cartório de Macapá, pode
ser representativa da complexidade e variabilidade dessas relações e especialmente do modo
como se teciam, peculiarmente no cotidiano de alguns escravos.

Declaro digo pelo presente por mim assinado, declaro que sou senhor e por
mim dar de um escravo mulato de nome Izidorio de trinta anos de idade,
matriculado na coletoria de rendas gerais desta cidade. No qual o escravo
Izidorio e sem constrangimento de pessoa alguma, concedo desde já a
liberdade e de fato liberto fica de hoje para sempre, a fim que desde já possa
gozar de sua liberdade, como se fora de “ventre” livre nascido, e como livre
que é, por virtude deste meio presente escrito, sem que ninguém o possa
chamar jamais à escravidão, por qualquer pretexto que seja, pois que em
como senhor que sou do “dito” Izidorio, lhe concedo a mesma liberdade, em
remuneração dos livres serviços a mim prestados e com especialidade,
durante a minha enfermidade, na capital desta província e a viagem de ida
e volta a esta cidade. Quero que este meio escrito lhe sirva de prova e lhe seja
propicio em todo o tempo, e para “firmeza” e segurança mandei passar o
presente que assino com as testemunhas presentes. Cidade de Macapá vinte e
cinco de dezembro de mil oitocentos oitenta e três.

João da Silva Mendes – testemunhas - João Baptista Picanço - Pedro Lopes


de Menerio – Manoel Mendes da Silva de Loureiro. Era o que continha a
referida carta que lem e facilmente aqui registrei e a qual me reporto em meu
escritório aos trinta e um dias do mês de dezembro de mil oitocentos e oitenta
e três. Eu Manoel Mendes da Silva de Loureiro, tabelião que escrevi assino.
Manoel Mendes da Silva de Loureiro.163

A leitura dessa documentação traz à tona o modo como senhores e escravos em Macapá
encararam a questão da emancipação dos cativos no momento em que sua extinção era iminente
ou irreversível. Essas cartas de liberdades corroboram também para percebermos uma gama de

161
Ibidem, p. 181.
162
Ibidem, p. 186.
163
Carta de 31 de dezembro de 1883, 1º Ofício de Notas de Macapá (Cartório Jucá), Livro 01, folha 25.
79

estratégias, ações, táticas e processos que envolviam em particular o universo escravo, as quais
eram circunstancialmente evocadas.
A liberdade sem dúvida era o fim último na vida de um escravo e eles a perseguiram em
Macapá de diversos modos e utilizaram, para isso, diversos meios.
Cunhando brechas, afetos, investidas, e particularmente a confiança, quase sempre
confundida com a docilidade, apatia e passividade “comum” aos mesmos. Foi possível perceber
que o abolicionismo atuou em Macapá na figura de alguns representantes, que, conseguiram, a
seus modos e com ferramentas específicas, impactar a escravidão ainda resistente nesta cidade.
80

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um conjunto de fatores intimamente articulados processualmente ruinaram o cativeiro


demograficamente em Macapá entre os anos 1856 e 1886. Entre eles destacaríamos a fuga
escrava, a morte em decorrência das condições dura da própria vida em cativeiro, e
relativamente a legislação emancipadora.
Com efeito o que se viu foi uma historicidade marcada não por fatos, mas por processos
que influenciaram o cotidiano servil. A temporalidade em estudo coadunou com o desenlace de
alguns deles, tanto em âmbito regional, como internacional. O fim do tráfico transatlântico de
africanos em 1850 e mesmo o fluxo de escravos entre as regiões províncias em seguida,
consolidou de modo intenso o processo de miscigenação da escravaria de Macapá. A
emergência da economia gomífera em meados da década de 1870 na região, impactou em
alguma medida as relações de trabalho junto ao segmento escravizado em Macapá e Mazagão.
Além de outros processos envoltos como o movimento ou a propaganda abolicionista que teve
presença e atuação em Macapá.
Estudar a escravidão é sempre correr riscos, e eles não foram poucos. A documentação
é falha, ideológica, alheia ao ser cativo, lacunosa, parcial e sedutora.
Tentamos dar a devida historicidade e trato hermenêutico ao conteúdo das fontes. Os
números demográficos ou estatísticos foram aqui um importante ingrediente, mas sozinhos não
iluminariam absolutamente nada sem o confronto ou o diálogo com outros conjuntos
documentais.
Nas décadas finais do escravismo, a escravidão em Macapá adentrou de fato numa crise
demográfica de maior consistência. De um lado a legislação emancipadora (na figura do agente
governamental que libertou escravos por meio do fundo de emancipação) cumpriu ainda que
timidamente o seu papel no que tange a libertação dos escravos dessa região. Não ignoramos,
portanto, o seu papel no que se refere ao estimulo a libertação voluntária por parte dos
proprietários, fato de salutar sentido no entendimento do processo emancipacionista local e
regional.
Mas além disso é inegável o protagonismo escravo através da resistência ao regime
como um fator decisivo. Tanto mais em uma conjuntura de crise, tanto interna, como aquela
decorrente das questões político-diplomáticas em relação aos domínios fronteiriços na região
do Contestado: comumente a arena do refúgio, do acoito incólume, das sociabilidades e
solidariedades entre os fugitivos.
81

Mas do que procurarmos tão somente o êxito dos objetivos proposto na pesquisa,
queríamos concomitantemente atrair atenção para o tema e a temporalidade rica e instigante
que é a história na segunda metade do século XIX na Amazônia e em Macapá. A escravidão
seguiu-se até os momentos finais de sua legal ruina tanto em Macapá como no município de
Mazagão. Ao final dessa jornada a conclusão mais corrente é a de que tudo ainda estar por fazer
no que diz respeito a história da escravidão negra em Macapá nas décadas finais do escravismo.
Muitas perguntas e dúvidas foram sendo erigidas e quase nenhuma dirimidas.
Fugas foram constantes, crimes, tensões, desordens e relações imbricadas de
complexidades que envolviam aproximações e distanciamentos entre senhores e escravos. Por
tanto, a fuga escrava, somado as leis emancipacionistas que impactaram relativamente a
liberdade dos escravos na região, bem como as epidemias e moléstias que grassavam no meio
urbano local e, por conseguinte a vitalidade dos escravos, foram entre outros, aspectos
determinantes no que tange ao processo de desintegração demográfica do escravismo em
Macapá na segunda metade do século XIX.
82

FONTES E BIBLIOGRAFIA

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pela professora e orientadora deste trabalho Verônica Xavier Luna).

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 Jornal do Amazonas. Manaus. 1883-1884
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 Jornal Treze de Maio. 1854-1860.
 Jornal O Velho Brado do Amazonas. 1851.
 Jornal O Publicador Maranhense. 1861.
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cada huma da mayor parte das Freguesias de ambas as Capitanias do Estado do Grão-
Pará, e de sua possibilidade e applicação no anno de 1778.

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1884).
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sua execução. São Paulo: Typ. Americana, largo de Palacio nº 2, 1872.

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de 28 de setembro de 1871 e os decretos e avisos expedidos pelos Ministérios da
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88

ANEXO A

Carta de alforria condicional passada em favor de um escravo pela senhora


Francisca de Almeida Rôlla em 1884.

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