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Na beira do mar: uma

leitura de Canções praieiras,


de Dorival Caymmi
Juliana Ramos Gonçalves

Jankélévitch a écrit : La musique nous enveloppe et c'est ainsi


qu'elle nous pénètre car elle est vaste et infinie comme la mer¹
Pascal Quignard, Boutès

I
dentre todos os predicados sobre o mar que se possa elencar, tal-
vez um dos que mais mantenha a atenção de um olhar atento e sensível
seja o seu movimento, a um só tempo variado e repetido. Para acom-
panhá-lo com precisão, é necessário desvencilhar-se de tudo aquilo
que estiver ao redor e mergulhar a atenção no ir e vir das ondas, nesse
ritmo cíclico e natural, às vezes tão alheio às concepções de existência
do homem contemporâneo. No vasto campo das artes, talvez a músi-
ca seja aquela que mais se aproxime da dinâmica marítima, ao exigir
do ouvinte uma contemplação igualmente hipnótica e submersa, que
prescinda do mundo além-som durante o tempo da escuta, que recla-
me a repetição das canções para uma compreensão mais aprofundada
– porque, assim como cada onda quebra diferentemente sobre a areia,
cada escuta pode fazer emergir novos pensamentos e sensações.
Não é exatamente uma surpresa fazer do mar tema para a músi-
ca. Há muito tempo ele é cantado, em diversas partes do mundo. No
entanto, talvez tenham sido poucos os compositores que, de fato, atin-
giram uma consonância entre a matéria musical e aquilo sobre o que
ela canta, entre o tempo indefinível do mar e o tempo de uma can-
ção, o qual, ainda que limitado em um fonograma, exija um mergu-
lho contínuo na multiplicidade de questões levantadas. No Brasil, o
conjunto de canções que – acredito – melhor consegue concentrar e
espraiar essa atmosfera é aquele do álbum Canções praieiras (1954), de

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Dorival Caymmi, obra que me parece não apenas um cantar sobre a
natureza marítima, mas a própria continuação do seu movimento, seja
ele um convite à jangada ou uma tempestade temerosa. Não bastasse a
sofisticação estética que emerge da simplicidade – o álbum é bastante
conciso, todo à base de voz e violão, sem espaço para excessos –, essas
canções ganham em significação ao serem absolutamente atreladas à
experiência histórica de um lugar específico, num tempo igualmente
específico: as comunidades pesqueiras do recôncavo baiano no início
do século XX.
Embora Caymmi não tenha sido um pescador ou canoeiro, suas
canções praieiras revelam bastante intimidade com aquele universo,
como se o cancionista, ao cantá-lo, dele também fizesse parte. Essa
característica confirma-se e explicita-se quando nos precipitamos em
seu mar sonoro, com especial atenção às letras. O ponto de vista do
narrador ou do eu lírico não é o de quem olha para essas comunidades
distanciadamente, do alto da cidade grande. Não: os seus pés também
estão no cais ou na areia, às vezes até mesmo numa jangada, sobre as
ondas verdes do mar. É um ponto de vista de dentro, de alguém que
partilha esse universo e canta suas belezas e tragédias. Logo na canção
de abertura, ouvimos: “Andei por andar, andei / E todo caminho deu
no mar”, e depois: “Quem vem pra beira da praia, meu bem / Não volta
nunca mais”. Estamos, portanto, diante de um sujeito que, apesar de se
enveredar por caminhos diversos, acaba sempre voltando pra beira do
mar, daquele mar do recôncavo, como se ele também estivesse sujeito à
ação da lua sobre a maré. Também nós, os ouvintes, ficamos sujeitos a
essa ação após uma primeira escuta. Este é o texto de alguém que tenta
se aproximar intimamente dessas canções.

II
Penso em falar de Canções praieiras de maneira mais ou menos
linear, isto é, acompanhando a ordem a partir da qual o álbum é cons-
truído, pelo fato de que ela não me parece aleatória, e sim um impor-
tante elemento constituinte da obra. Assim, retornando à primeira
canção, de título “Quem vem pra beira do mar”, podemos considerá-la
um anúncio do que virá nos próximos vinte e três minutos e meio, ao
longo de oito canções. É uma apresentação temática, evidentemen-
te, mas não só: também são introduzidos a posição do cancionista e
o modo como ele trata os seus temas. O primeiro ponto, já referido e

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comentado, ficará mais claro ao pensarmos especificamente sobre cada
uma das letras do álbum, poesias nas quais Caymmi “estetiza realida-
des que vivenciou de forma integral e imediata” (risério, 1993, p.
12), no dizer de Antonio Risério.
Quanto ao modo do cantar/tocar, percebemos logo de início que
ele não é festivo ou alegre, nem mesmo quando o andamento das can-
ções se intensifica. Ouvimos antes um som que parece contemplar, e
que muitas vezes será envolto pela melancolia. Precisamos estar aten-
tos a esse modo das canções, ele sublinha e traz à tona aquilo sobre o
que se canta. Sobretudo porque o universo praieiro não é unilateral: “A
onda do mar leva / A onda do mar traz”. Leva e traz não apenas o can-
cionista, mas também o jangadeiro, o peixe, a tempestade. A natureza
é cíclica, dá e tira sem cessar. O modo de vida referido e estetizado por
Caymmi é arcaico quando comparado aos nossos dias – e até mesmo
aos dias contemporâneos às Canções praieiras, se pensarmos no con-
texto da década de 1950. O tempo dessas canções é outro, refere uma
relação íntima com a natureza, o que inclui estar submetido a ela, in-
clusive quando é indomável e cruel. A vida nas comunidades praieiras é
portanto cíclica, “não no sentido da repetição abstrata, metronômica,
mas no sentido do retorno fundamental dos eventos. Mais assemelha-
da à pulsação mesma do mundo do que ao relógio obsessivo” (idem,
ibidem, p. 74).
A segunda canção, “O bem do mar”, introduz outra polaridade
que permeia todo o universo praieiro: o olhar do pescador sobre aqui-
lo que ele ama e escolhe. A voz de um narrador aproxima o ouvinte e
dá o mote: “O pescador tem dois amô / Um bem na terra, um bem
no mar”. Bem, aqui, não é apenas um sinônimo de querido, de amado.
A construção nos autoriza a pensar nessa palavra também como um
advérbio, que caracteriza e encerra cada ser estimado no lugar que lhe
é conferido, um estando como fincado no solo (“bem na terra”) e o
outro, submerso e espraiado nas águas (“bem no mar”). São bens que
não se misturam, e a voz que vem a seguir, não mais a do narrador, mas
a de um sujeito participante dessa realidade – como mostra o uso de “a
gente” –, o confirma:

O bem da terra é aquela que fica


Na beira da praia quando a gente sai
O bem de terra é aquela que chora

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Mas faz que não chora quando a gente sai
O bem do mar é o mar, é o mar
Que carrega com a gente pra gente pescar
(caymmi, 1954)

O bem da terra é, portanto, a mulher, que nessa comunidade tem


uma posição sedentária, o que não significa isenta de funções. O bem
do mar, por outro lado, é ele próprio, que dá o alimento e o trabalho. A
forma como isso é dito, entretanto, sugere algo ainda além: “O bem do
mar é o mar, é o mar”. Esse verso, tão simples em sua construção, é can-
tado de modo muitíssimo enfático, o acento da canção inteira recai so-
bre ele. Esse verso é o ápice, o instante preciso em que uma onda atinge
sua altura máxima antes de se desmanchar com vastidão. A repetição
e o acento não são gratuitos. Eles revelam o absoluto, como quando
o mar torna-se oceano. Penso aqui no “sentimento oceânico” referido
por Freud – “Um sentimento de vinculação indissolúvel, de comunhão
com todo o mundo exterior” (freud, 2013, p. 8) –, e que talvez o
pescador o experiencie por alguns instantes, ao estar em meio às águas.
Digo isso passando sob a óptica do próprio Caymmi, que aponta já no
título a escolha feita dentre os amores, e que talvez seja aquela que mais
dê ao pescador a sensação de plenitude: o bem do mar.
Se nessa última canção a ideia de mar acentuava sobretudo as
benesses do que ele dá (ao menos do ponto de vista masculino) em
“O Mar”, a terceira do disco, as tragédias que ele causa são finalmente
explicitadas, para além do que poderia fazer supor os versos introdu-
tórios: “O mar / quando quebra na praia / é bonito, é bonito”. Aqui
não é mais só a mulher quem “chora mas faz que não chora”. O próprio
homem também demostra apreensão (“Pescador quando sai / Nunca
sabe se volta nem sabe se fica”), assim como aqueles do seu entorno
(“Quanta gente perdeu seus maridos, seus filhos / Nas ondas do mar”).
E tudo isso cantado de modo grave e desassossegado. Mas logo após
essa introdução o cancionista incorpora outro ritmo para iniciar o re-
lato de um episódio. Ele conta a história de Pedro, que “vivia da pesca /
Saía no barco / Seis horas da tarde / Só vinha na hora do sol raiá”, e que
tinha como admiradora apaixonada Rosinha de Chica. Uma manhã,
porém, Pedro não retornou de sua pesca noturna. O seu corpo apare-
ceu posteriormente, na praia, “roído de peixe”. O relato não especifica
a causa dessa morte: não se fala em tempestade ou em mar revoltoso. O

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que se sublinha são, antes, os efeitos que essa morte causou:

Pobre Rosinha de Chica


Que era bonita
Agora parece
Que endoideceu
Vive na beira da praia
Olhando pras ondas
Andando, rondando
Dizendo baixinho
Morreu, morreu
(ibidem)

E o que é a loucura, senão ser ou estar alheio às instâncias organi-


zadoras da vida comum, incluindo-se aqui o tempo e suas subdivisões
mecânicas? Rosinha de Chica, ao endoidecer, incorpora uma atitude
cíclica e repetitiva diante do que lhe é doído e inexplicável, a qual se
espelha na própria construção poética, que equipara o movimento das
águas à reação da moça, por meio dos sons nasais: “Olhando pras on-
das / Andando, rondando / Dizendo”. Aliás, a atitude de Rosinha é
exatamente oposta à própria ideia da morte, que abarca a impossibili-
dade de repetição e retorno. Note-se que, a partir desses versos que des-
taquei, o andamento da canção se desacelera gradualmente e as vogais
são cantadas de modo prolongado, o que enfatiza a melancolia do que
se diz – como se o narrador se solidarizasse com a dor da personagem,
incorporando o tempo subjetivo de Rosinha à sua canção.
Ao final dessa estrofe, o refrão é retomado: “O mar/ quando que-
bra na praia/ é bonito, é bonito”. E é com essas palavras contemplativas
que Caymmi finaliza a sua canção, que acabara de relatar a morte de
um pescador e o consecutivo enlouquecimento de sua admiradora. São
esses versos que criam uma expectativa inicial, a qual é desfeita durante
a narração, e que ao final circunscrevem o ouvinte numa zona de es-
tranhamento. Por que é bonito, se mata? Ora, os pescadores descritos
por Caymmi estão, como já dito aqui, intimamente relacionados com
a natureza. O mar inspira-lhes, ao mesmo tempo, fascínio e assombro:
“O mar que tudo lhes dá, tudo lhes toma” (amado, 1965, p. 150), in-
clusive a vida. Daí essa espécie de mote pelo avesso que, embora pareça
desdizer o que é narrado, acaba na verdade complementando o sentido

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da canção.
Um procedimento semelhante é utilizado por Caymmi em “É
doce morrer no mar”, única canção do álbum feita em parceria – com
o escritor Jorge Amado, a partir de frases do seu romance Mar morto
(1936). A pequena introdução instrumental já anuncia um tom bas-
tante melancólico, que será mantido e esmiuçado ao longo de toda
canção. Após alguns poucos segundos, emerge a voz grave de Caymmi,
que apresenta o refrão: “É doce morrer no mar/ Nas ondas verdes do
mar”. E essa formulação estranha, que aproxima a ideia de afogamento
a certa doçura (nas águas do mar, que são salgadas!), ganha status de
afirmação: “No contexto, a descendência melódica parece indicar cer-
teza e distensão” (longo, 1999, p. 70), nas palavras de Mirella Longo.
Embora eu não concorde com a ideia de distensão (o que se verá mais
bem explicado a seguir), o refrão atua de fato como uma máxima, como
a comprovação de uma realidade. Mas essa morte seria doce pra quem,
então, já que a voz que a relata é de uma melancolia tão latejante? As
estrofes seguintes dão algumas pistas, quando o canto, que até então
era impessoal, adquire uma voz de contornos mais definíveis: “A noite
que ele não veio foi/ Foi de tristeza pra mim/ Saveiro voltou sozinho/
Triste noite foi pra mim”. Estamos, assim, diante de uma voz feminina,
que lamenta a perda trágica de um amor. Ao retratar o universo praiei-
ro, Caymmi realmente o faz à beira do mar. Nesta canção, isso significa
incorporar o lugar da mulher, que acompanha com o olhar a partida de
um saveiro. É uma relação de alteridade criada pelo cancionista, que,
ao assumir um corpo e uma posição que não são originalmente seus, dá
voz a uma realidade que o toca.
Em seguida, após a repetição do refrão, uma nova estrofe comple-
menta a história: “Saveiro partiu, de noite foi/ Madrugada não voltou/
O marinheiro bonito/ Sereia do mar levou”. Aqui, introduz-se novo
elemento, que até então só tinha aparecido como sugestão, na primeira
canção do álbum, ao se falar “nas águas de Dona Janaína”. Numa comu-
nidade pesqueira da Bahia, onde o candomblé é bastante respeitado e
praticado, a “sereia do mar” não seria outra senão Iemanjá (nome que
de fato aparecerá na estrofe seguinte). Dentre todas as representações
dessa entidade religiosa, “sereia” talvez seja aquela que mais sintetize
o sincretismo sofrido pelo candomblé ao longo dos tempos. E essa é
uma imagem cuja força é remota e dúbia. Desde os mais antigos mitos
das mais diversas tradições, as sereias fascinam e amedrontam marujos.

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Elas atuam no cerne de um limiar: entre a promessa dos prazeres do
seu canto e o horror do afogamento. Essa imagem, nesta canção, dá
força a uma possível leitura que se solidifica a partir da última estrofe:
“Nas ondas verdes do mar meu bem/ Ele se foi afogar/ Fez sua cama
de noivo/ No colo de Iemanjá”. O eu lírico da canção, relembremos, é
feminino. O seu canto é lamentoso porque é o relato de uma perda.
Mais que isso: é lamentoso porque é a constatação resignada da atração
fatal sofrida pelo seu homem, que se foi afogar, e não se afogou sim-
plesmente. É a constatação de uma mulher que, estando inserida no
universo mitológico do candomblé, sabe que Iemanjá não é apenas a
mãe protetora dos marinheiros, mas é também sua amante num único
momento da vida que é, na verdade, a morte. O trecho a seguir, de Mar
morto, ilustra bem esse sentimento:

Lívia pensa com raiva em Iemanjá. Ela é a mãe-d'água, é a dona do


mar, e por isso, todos os homens que vivem em cima das ondas a te-
mem e a amam. Ela castiga. Ela nunca se mostra aos homens a não
ser quando eles morrem no mar. Os que morrem na tempestade são
seus preferidos. E aqueles que morrem salvando outros homens, esses
vão com ela pelos mares em fora, igual a um navio, viajando por to-
dos os portos, correndo por todos os mares. Destes ninguém encontra
os corpos, que eles vão com Iemanjá. Para ver a mãe-d'água muitos
já se jogaram no mar sorrindo e nunca mais apareceram. Será que
ela dorme com todos eles no fundo das águas? Lívia pensa nela com
raiva. (amado, op. cit., p. 31, grifos meus)

Após todo esse trajeto analítico, fica claro que talvez só um mari-
nheiro devoto de Iemanjá considere doce morrer no mar. Daí a impes-
soalidade da voz do refrão, como se o eu lírico feminino repetisse essa
máxima para expor, resignadamente, o conhecimento dessa mitologia
do cais, com a qual discorda e contra a qual nada pode fazer. É o seu
canto lamentoso contra o canto sedutor da sereia. Daí essa canção ser
cheia de arestas, atravessada por uma tensão que não se resolve. A me-
lancolia do canto e do instrumento ressignificam o refrão, como se o eu
lírico confessasse: dizem que é doce morrer no mar, mas eu não acho.
Aliás, se repensarmos a canção “O bem do mar”, podemos relacionar
aquele sentimento de absoluto experimentado pelo pescador à sua re-
lação com Iemanjá. O bem do mar é o próprio mar porque é lá que vive

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a divindade dos marinheiros.
A ressignificação do mote “é doce morrer no mar” é um dos ele-
mentos que faz com que a canção tenha a sofisticação que tem – carac-
terística ausente no livro de Amado, pois a falta do teor melancólico
torna esses dizeres menos complexos e com uma força menor. Com-
parando ambos, Mirella Longo diz que “a canção não contempla o
projeto de transformação social presente na literatura de Jorge Amado
dos anos 30. Pelo contrário, ela afirma a fatalidade e a converte em
doçura” (longo, op. cit., p. 71). Embora eu discorde absolutamente
dessa “conversão em doçura”, reconheço que, nas canções praieiras, de
fato não há um projeto de transformação social. No entanto, acho que
isso se dá principalmente por conta da posição adotada por cada autor
em relação a suas obras. No prólogo de Mar morto, Amado faz uma
espécie de advertência:

“E se ela [a história] não vos parecer bela a culpa não é dos homens
rudes que a narram [os homens do cais]. É que a ouviste da boca de
um homem da terra, e, dificilmente, um homem da terra entende o
coração dos marinheiros” (amado, op. cit., p. 17).

O narrador de Mar morto é, assim, alguém que apesar de ter uma


admiração sincera pela vida no cais, reconhece-se fora dela, o que é
muito diferente da posição de Caymmi, que parece trazer o coração
dos marinheiros para junto do seu. Aliás, o teor político do romance se
dá sobretudo porque o autor insere personagens intelectuais no con-
texto praieiro, como a professora Dulce e o médico Rodrigo, as quais,
por não fazerem parte originalmente daquele universo, reconhecem
suas mazelas de modo diferente.
Retomemos, agora, uma faixa precedente de Canções praieiras:
“Pescaria (Canoeiro)”, a quarta do álbum, que descreve a pesca marí-
tima com rede. O ritmo dessa canção é diferente do das demais; mais
acelerado, é como se mimetizasse a agilidade necessária a essa atividade:
“Cerca o peixe/ Bate o remo/ Puxa a corda/ Colhe a rede/ Ô canoeiro/
Puxa a rede do mar”. Embora eu não concorde com Risério quando ele
diz que essa canção tem uma “vívida alegria” – pois a considero antes
concentrada no trabalho que festiva –, de fato “ainda não estamos aqui
num mundo em que o desempenho produtivo implique a supressão da
individualidade” (risério, op. cit., p. 45). Trata-se de uma comuni-

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dade pesqueira, e a voz que a canta está muito próxima dela como um
todo, como também de cada um em particular. Ela sabe que “Vai ter
presente pra Chiquinha/ Ter presente pra Iaiá”, e o diz utilizando os
nomes íntimos dessas personagens. Além disso, esse “desempenho pro-
dutivo” não suprime a individualidade porque depende quase exclusi-
vamente do corpo do pescador, da sua resistência física, da sua relação
com o meio natural, da sua experiência e perspicácia na observação dos
movimentos ao redor. Digo quase exclusivamente porque, ao pescar
no mar, esses homens dependem não apenas do seu conhecimento e
trabalho, mas também do que a natureza dispõe. E talvez esse seja um
ponto considerável para interpretar o único momento dessa canção
que destoa do seu aspecto geral, por cessar o andamento rítmico das es-
trofes e incorporar um tom melancólico, desacelerado: “Louvado seja
Deus, ó meu pai”. Aqui, é a voz do próprio pescador que parece surgir,
como se ele fizesse de modo lamentoso um agradecimento (em caso de
muito peixe na rede) ou uma súplica (em caso de escassez).
Ainda quanto à individualidade preservada no universo praieiro,
lembremos que em “O mar” estamos falando, por exemplo, de Rosi-
nha de Chica, e é comum, em comunidades pequenas, que as pessoas se
refiram umas às outras a partir de suas relações de parentesco, ou ainda
a partir das funções que desempenham. Assim, na canção “A janga-
da voltou só”, a sexta do álbum, o narrador caracteriza os personagens
da maneira como são conhecidos em seu arraiá: “Chico era o boi do
rancho / Nas festas de Natal” e “Bento cantando modas/ Muita figu-
ra fez”. Na introdução dessa canção, o violão sugere um clima de sus-
pense, ainda mais acentuado pelo intervalo entre os versos do refrão:
“A jangada saiu/ com Chico Ferreira/ E Bento”, e depois: “A jangada
voltou só”. Temos, mais uma vez, uma história de morte no mar: “Com
certeza foi lá fora/ Algum pé de vento/ A jangada voltou só”. A ação
do vento, que impulsiona e dá movimento à jangada, é também a que
pode derrubá-los. Outra canção de Caymmi – que não se encontra em
Canções praieiras –, de nome “O vento”, descreve bem a importância
desse elemento natural para o trabalho do pescador:

Vento que dá na vela


Vela que leva o barco
Barco que leva a gente
Gente que leva o peixe

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Peixe que dá dinheiro
(caymmi, 1954)

No entanto, o seu refrão diz “Vamos chamar o vento” de modo


que também sugere suspense e desassossego, pois o vento é desejável
e necessário para impulsionar a vela, mas também pode soprar de um
jeito indomável e ameaçador. É a natureza a inspirar fascínio e receio
nos homens junto a ela, o que também se dá na penúltima canção do
álbum, “A lenda do Abaeté”, e dessa vez com algum teor sobrenatural.
As notas graves da introdução ao violão sugerem sobriedade, que se
mantém no início da letra: “No Abaeté tem uma lagoa escura/ Arro-
deada de areia branca”. A seguir, algumas cenas são descritas, como a
da lavadeira que, ao trabalhar junto à lagoa, “Vai se benzendo porque
diz que ouve/ Ouve a zoada do batucajé”, e também a do pescador que
“dá pancada se o filhinho brinca/ Perto da lagoa do Abaeté”. Esse lugar
em Itapuã já foi cenário de muitos afogamentos, o que criou uma aura
de mistério em torno dele – a ponto da lavadeira escutar o som dos
atabaques ao se aproximar. Mas eis que o canto se modifica e adquire
um matiz contemplativo pra falar das belezas da lagoa e de seu entor-
no sob a luz da lua, para depois, como que acordando dessa admira-
ção incontida, voltar a expressar temor: “Credo cruz te desconjuro/
Quem falou de Abaeté?”. Diante do que se desconhece ou não se pode
dominar, adota-se uma posição de respeito, refletida na sobriedade de
algumas das canções desse álbum, mas também no trato íntimo dessa
comunidade com as coisas ao redor, como o apreço ao mar e a devoção
a Iemanjá.

III
A última canção do álbum de fato o encerra, pois é a voz de um
sujeito finalmente distanciado do universo praieiro – tanto que seu
título é “Saudade de Itapuã”. O eu lírico relembra o coqueiro, a areia, a
morena. E confessa: “Eu nunca tive saudade igual”. Note-se que, quan-
do o seu olhar não está mais colado ao universo praieiro, o que ele re-
memora não é mais o trabalho braçal ou os casos de morte no mar, mas
sim os prazeres de se estar sobre a areia, sob o sol. Até o vento é manso
aqui, fazendo “cantiga nas folhas”. São reminiscências seletivas. E as-
sim, nesta canção, o eu lírico fala de Itapuã deixando claro que o faz de
um outro lugar, de um outro ponto de vista, no sentido literal mesmo

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– o próprio Caymmi, aliás, deixara sua terra natal (Salvador) em 1938, aos
24 anos. E é esse mesmo sentimento que engendra, posteriormente e com
resultado bem diverso, uma canção como “Saudade da Bahia”, de 1957.
Ainda haveria muito pra se pensar a respeito de Canções praieiras,
inclusive sobre em que medida a visão de Caymmi estaria ou não atinada
com questionamentos sociais ou com as transformações pelas quais passa-
va, então, a região do recôncavo baiano. Mas é difícil precisar esse “então”,
esse tempo no qual as canções praieiras se situam, justamente porque esse
álbum é o resultado de um cruzamento de tempos. Há o tempo da vivên-
cia, o da lembrança, o da composição, o do registro em fonograma. Há
o tempo subjetivo, da percepção de um homem quanto ao que ele vive,
relembra e esquece; o tempo histórico, esse suceder de eventos que se pre-
tende o mesmo para cada indivíduo em cada espaço distinto; e ainda o
tempo da natureza, esse que ambos, homem e história, às vezes subjugam
por achar que não faz parte de sua travessia. Canções praieiras não aspira
ao todo. É, antes, um recorte, e sendo um recorte comunica com precisão
e beleza aquilo a que se propõe. Talvez ele esteja mesmo mais próximo
da natureza e das relações de alteridade, em detrimento das preocupações
sociais de Jorge Amado, por exemplo. Mas essa escolha não é menos legí-
tima. Pelo contrário, num tempo em que não mais conhecemos a direção
dos ventos e trabalhos manuais, essas canções de Caymmi são um respiro
aliviado, ainda que melancólico.

Referências bibliográficas
amado, Jorge. Mar morto. São Paulo: Martins Editora, 1965.
caymmi, Dorival. Canções Praieiras. Gravadora Odeon, 1954.
freud, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Penguin & Com-
panhia das Letras, 2013.
longo, Mirella Márcia. “Memórias do cais: Caymmi, canções e fontes”.
In: Literatura e sociedade, nº 4. São Paulo, USP/FFLCH/DTLLC,
1999, pp. 68-77.
risério, Antonio. Caymmi: uma utopia de lugar. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1993.

notas
1. “Jankélévitch escreveu: a música nos envolve e é assim que nos atra-
vessa, pois ela é vasta e infinita como o mar".

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