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I
dentre todos os predicados sobre o mar que se possa elencar, tal-
vez um dos que mais mantenha a atenção de um olhar atento e sensível
seja o seu movimento, a um só tempo variado e repetido. Para acom-
panhá-lo com precisão, é necessário desvencilhar-se de tudo aquilo
que estiver ao redor e mergulhar a atenção no ir e vir das ondas, nesse
ritmo cíclico e natural, às vezes tão alheio às concepções de existência
do homem contemporâneo. No vasto campo das artes, talvez a músi-
ca seja aquela que mais se aproxime da dinâmica marítima, ao exigir
do ouvinte uma contemplação igualmente hipnótica e submersa, que
prescinda do mundo além-som durante o tempo da escuta, que recla-
me a repetição das canções para uma compreensão mais aprofundada
– porque, assim como cada onda quebra diferentemente sobre a areia,
cada escuta pode fazer emergir novos pensamentos e sensações.
Não é exatamente uma surpresa fazer do mar tema para a músi-
ca. Há muito tempo ele é cantado, em diversas partes do mundo. No
entanto, talvez tenham sido poucos os compositores que, de fato, atin-
giram uma consonância entre a matéria musical e aquilo sobre o que
ela canta, entre o tempo indefinível do mar e o tempo de uma can-
ção, o qual, ainda que limitado em um fonograma, exija um mergu-
lho contínuo na multiplicidade de questões levantadas. No Brasil, o
conjunto de canções que – acredito – melhor consegue concentrar e
espraiar essa atmosfera é aquele do álbum Canções praieiras (1954), de
II
Penso em falar de Canções praieiras de maneira mais ou menos
linear, isto é, acompanhando a ordem a partir da qual o álbum é cons-
truído, pelo fato de que ela não me parece aleatória, e sim um impor-
tante elemento constituinte da obra. Assim, retornando à primeira
canção, de título “Quem vem pra beira do mar”, podemos considerá-la
um anúncio do que virá nos próximos vinte e três minutos e meio, ao
longo de oito canções. É uma apresentação temática, evidentemen-
te, mas não só: também são introduzidos a posição do cancionista e
o modo como ele trata os seus temas. O primeiro ponto, já referido e
Após todo esse trajeto analítico, fica claro que talvez só um mari-
nheiro devoto de Iemanjá considere doce morrer no mar. Daí a impes-
soalidade da voz do refrão, como se o eu lírico feminino repetisse essa
máxima para expor, resignadamente, o conhecimento dessa mitologia
do cais, com a qual discorda e contra a qual nada pode fazer. É o seu
canto lamentoso contra o canto sedutor da sereia. Daí essa canção ser
cheia de arestas, atravessada por uma tensão que não se resolve. A me-
lancolia do canto e do instrumento ressignificam o refrão, como se o eu
lírico confessasse: dizem que é doce morrer no mar, mas eu não acho.
Aliás, se repensarmos a canção “O bem do mar”, podemos relacionar
aquele sentimento de absoluto experimentado pelo pescador à sua re-
lação com Iemanjá. O bem do mar é o próprio mar porque é lá que vive
“E se ela [a história] não vos parecer bela a culpa não é dos homens
rudes que a narram [os homens do cais]. É que a ouviste da boca de
um homem da terra, e, dificilmente, um homem da terra entende o
coração dos marinheiros” (amado, op. cit., p. 17).
III
A última canção do álbum de fato o encerra, pois é a voz de um
sujeito finalmente distanciado do universo praieiro – tanto que seu
título é “Saudade de Itapuã”. O eu lírico relembra o coqueiro, a areia, a
morena. E confessa: “Eu nunca tive saudade igual”. Note-se que, quan-
do o seu olhar não está mais colado ao universo praieiro, o que ele re-
memora não é mais o trabalho braçal ou os casos de morte no mar, mas
sim os prazeres de se estar sobre a areia, sob o sol. Até o vento é manso
aqui, fazendo “cantiga nas folhas”. São reminiscências seletivas. E as-
sim, nesta canção, o eu lírico fala de Itapuã deixando claro que o faz de
um outro lugar, de um outro ponto de vista, no sentido literal mesmo
Referências bibliográficas
amado, Jorge. Mar morto. São Paulo: Martins Editora, 1965.
caymmi, Dorival. Canções Praieiras. Gravadora Odeon, 1954.
freud, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Penguin & Com-
panhia das Letras, 2013.
longo, Mirella Márcia. “Memórias do cais: Caymmi, canções e fontes”.
In: Literatura e sociedade, nº 4. São Paulo, USP/FFLCH/DTLLC,
1999, pp. 68-77.
risério, Antonio. Caymmi: uma utopia de lugar. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1993.
notas
1. “Jankélévitch escreveu: a música nos envolve e é assim que nos atra-
vessa, pois ela é vasta e infinita como o mar".