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Editora Penalux,

Guaratinguetá, 2018
EDITORA PENALUX
Rua Marechal Floriano, 39 – Centro
Guaratinguetá, SP | CEP: 12500-260
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EDIÇÃO
França & Gorj

REVISÃO
Furio Lonza

CAPA
??

FINALIZAÇÃO E DIAGRAMAÇÃO
Ricardo A. O. Paixão

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

G916s GUARNIERI, Alexandre. -


O sal do Leviatã / Alexandre Guarnieri. -
Guaratinguetá, SP: Penalux, 2018.

100 p. : 22,5 cm.

ISBN 978-85-5833-???-?

1. Poesia I. Títulos.

CDD: B869.1
CDU: ?????

Índices para catálogo sistemático:


1. Literatura Brasileira

Todos os direitos reservados.


A reprodução de qualquer parte desta obra só é permitida
mediante autorização expressa do autor e da Editora Penalux.

SUMÁRIO

9 Apresentação: A maquinaria marítima em


O sal do Leviatã, de Alexandre Guarnieri

PARTE HUM: MARÉ ALTA

21 a página marinha
27 o burgo de gelo (i)
28 dínamo marino
29 penhasco
30 o burgo de gelo (ii)
31 orla
32 arquipélago
34 (::: tempestas ad aeternum :::(
36 o barco na garrafa
38 ínsula na névoa
39 o burgo de gelo (iii)
40 (O) (O)\V/(O) |\N\|(O) (O)\V/N/I|)
41 =( facehugger )=
PARTE DOIS: MARE NOSTRUM

45 romanche
47 a costa amalfitana
51 mágoa no sal
53 viagem fantástica
57 calypso
59 o antro do escafandro
62 bile & enigma
63 martírio
69 Mob-Drift Moby-Dick
73 a noiva das marés
79 no Lago Ness
83 Gojira redivivo (credo para Godzilla)
89 o monstro por ele mesmo
92 o sistema nervoso do Ouroboros
94 avante, Leviatã!
96 Nemo
95 mare nostrum
99 mensagem
103 Quetzalcoátl
A maquinaria marítima em O sal do Leviatã, de
Alexandre Guarnieri

Alexandre Guarnieri é um poeta perspicaz. Premiado em


primeiro lugar com seu excelente livro Corpo de Festim no Prêmio
Jabuti, neste seu quarto livro de poemas, O sal do Leviatã, adquire
sua mais plena maturidade com uma obra extremamente costurada
matematicamente com precisão e beleza. Seus livros anteriores falam
da questão da máquina, da estrutura das coisas, da ordenação, seja da
maquinaria seja do corpo ou do espaço. Aqui não poderia faltar nova-
mente seu viés literário. O novo cenário agora é todo o mar com sua
simbologia desde a gênese, o caos, até a ordenação implícita nas suas
engrenagens. Como metonímia do mundo, o mar se elabora como uma
síntese de nossa realidade, seja interior ou exterior, o que Guarnieri
faz magnificamente bem. No poema que abre o livro, temos: “~ (as
camadas dançarinas da máquina marinha~”. Como em outros livros
seus, o autor utiliza sinais gráficos para representar ideias e imagens.
O til sugere a simbologia das ondas do mar, seu caráter ondulatório
de coisa fluida e aberta aos vários sentidos.
A simetria do mar não deixa de ter suas ondulações com a
mistura de ordem e desejo, o “cio” no mar com suas “pérolas” hipnó-
ticas nos seduzem com suas armas secretas de metáforas ricas em
revelar as cores do mar, sua diversidade em meio à identidade do
homem. A poesia de Guarnieri analisa todo o maquinário dentro das
coisas, sua estrutura. Analisa a fundo o esqueleto das formas, suas
engrenagens mais profundas com o toque cortante das palavras exatas
e inaugurais. Isso não quer dizer que esta estrutura seja apartada,

9
distante das outras engrenagens. Há a possibilidade de simbioses e
entrelaçamentos, como a mistura entre as águas e a terra a partir da
imagem da “semeadura”, fazendo analogias entre as diversas camadas
dos elementos da Terra. O mar e o céu também são metáforas inter-
cambiáveis, com seus simulacros e similitudes. Há dramaticidade e
tragicidade nas descrições com a imagem do universo trágico do
mar, que é um abismo insondável prestes a ser descoberto pela verve
poética da linguagem de Alexandre Guarnieri.
Nas descrições do mar, Guarnieri produz as metáforas mais
riquíssimas e inusitadas, laureando sua poesia com o espelho das
dobras e das ondulações de uma linguagem cifrada em códigos e
hermetismos, como a garrafa que é lançada ao mar. Além disso, seu
mar é poliglota, adquire várias linguagens, indo do universal através do
ideário grego como Poseidon até nossa particularidade afro-brasileira
com o símbolo de Iemanjá. Estes campos diferenciados na poesia de
Guarnieri são comparados, revelando a lei da reversibilidade em seus
versos mágicos e cortantes como o sal e seus temperos exóticos. Os
elementos são misturados em sua dinâmica de claridades e segredos.
O mar que pareceria bem ordenado tem sua caoticidade. É anárquico
também, produzindo os símbolos da desagregação, da morte: “~numa
anárquica e bizarra/fauna~parques de sal~(subprofundis)”. O caos
marítimo no meio da maquinaria do mar só vem reforçar o paradoxo
que move o próprio mundo, movente e flutuante. Este hibridismo
comparece até mesmo com a subversão da metáfora do mar como
masculino, pois “mar menstrua”, onde o masculino e o feminino se
misturam numa androginia original que remonta aos primórdios
da humanidade, a um paraíso perdido em meio à fragmentação da
linguagem.
Outro fator primordial em sua poesia é o jogo fônico, com a
musicalidade e ênfase no ritmo, como em “uma ágora larga, agora

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sob a aurora”. Se a essência da poesia é o ritmo, diferentemente da
prosa, como nos ensinou o teórico Emil Staiger, Guarnieri apesar
de ser prosaico, eleva o tom, o ritmo poético ao sabor da linguagem
musical. Como o barulho das águas, sua poesia imita o som rítmico
marítimo com toda a sua multiplicidade de acordes. Seu mar é pai e
mãe de tudo, é origem dos filhos da Terra. O mar greco-brasileiro é
dança sonora a elevar a maré das coisas. As várias camadas do mar
são reveladas, palimpsesticamente, como as escamas dos peixes. O
mar é fogo e gelo, terra e céu, é um mundo em miniatura. O mar é
trânsito entre os elementos e formas do real.
Guarnieri mostra a circularidade das ondas, seu movimento
de ir e vir “ad infinitum”. Como moto-contínuo, ele é o movimento
da própria vida, a existência-mar produz um mar existencial, o mar
que é um monstro de águas e de sais. Ele nos apresenta o que é o
mar, a sua essência e sua aparência, suas verdades e mentiras, suas
formas, como o gelo e aquilo que o circunda como os rochedos, os
penhascos, a orla. O mar pode ter limites circunscritos? O livro de
Guarnieri tem uma precisão matemática que não deixa de colher a
flor metafórica do caos no seu centro. Neste sentido, o mar pode ser
representado pelo círculo, o mar e aquilo que o rodeia, os extremos,
o centro e a circunferência.
Além da força metafórica e lírica de seus versos magistrais,
temos o poema em prosa, com sua prosa poética. Até mesmo a
estrutura de seu livro não é estática, é flexível como o mar, o mar é
linguagem, são as páginas do mar que circulam na sua obra. Nestas
páginas, também temos a trágica história do mar, com seus naufrágios
e desastres. O Kraken, terrível monstro marinho, assim como outros
monstros do imaginário mitológico e bíblico comparecem no seu
livro. Guarnieri faz um rico jogo entre o mitológico e o real, dando
realismo à imagem dos afogados. O Leviatã, monstro marítimo de

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origem fenícia, que comparece na Bíblia, principalmente em Jó, Salmos
e Apocalipse, já foi tema de um tratado político, como em Thomas
Hobbes, que criticava a arrogância dos homens em quererem dominar
os outros e, neste sentido, Alexandre é escatológico, querendo que a
humanidade desprezível seja devorada pelo monstro num processo
de decepção e distopia do mundo. Em Jó (42, 1-2), temos: “...só sua
visão basta para abater. Torna-se feroz quando o acordam, ninguém
lhe consegue resistir face a face.” O Leviatã representa as forças do caos
querendo engolir o divino. Nossa chama de humanidade é empalide-
cida, pois os homens são predadores e ignóbeis. É desejável o apoca-
lipse e a destruição de tudo, um retorno ao caos original, já que neste
mundo aparentemente ordenado, imperam a maldade e o egoísmo.
Vejamos o que Jean Chevalier e Alain Gheerbrant dizem sobre esse
monstro marítimo: “É curioso observar aqui, caso se admita que o
mar é também o símbolo do inconsciente, receptáculo dos monstros
obscuros e das forças instintivas...” Ou seja, o mar é o próprio monstro
que reside em nós e, numa imagem dostoievskiana, nosso demônio
particular. O mar é paz e guerra, tormenta e placidez, equilíbrio e
desequilíbrio, ordem e caos: “enquanto o mar reclama, no amor/em
que pacificamente recolhe/sua parcela mais calma e ampla/à face de
espelho tão plácido e plano,”.
Não poderiam faltar neste mar as viagens, os descobrimentos
e explorações do homem, ultrapassando sua medida limítrofe para
alcançar o infinito, os abismos da humanidade: “toda profundeza
concebida pelo homem/- conquistada ou ainda inexplorada – “ Além
do mar ser miniatura do mundo, as camadas se sobrepõem, revelando
que o homem também é metonímia do mar, através de sua orga-
nicidade, de seu organismo e fisiologia: “puséssemos uma seringa
hipodérmica/a miniatura de um submarino nuclear/mergulhado em
solução fisiológica e/injetássemos corpo adentro a peça/ a sangue

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frio, navegaria submerso”. Ou aqui: “por quanto tempo seria capaz
de estudar/nossas fossas abissais, internas,/nossas zonas de guerra,
onde glóbulos/atacassem micróbios entre outros/vírus e furtivos
inimigos batalhando/em tantas trincheiras de carne e nervo?” Neste
sentido, sua poesia trabalha com o mínimo e o múltiplo, o micro e o
macro, o mar de dentro e o mar de fora. A organicidade dos mares
que compõem o mundo.
Guarnieri produz um livro que é a própria gênese do mar, sua
genealogia com seus símbolos, mitos e histórias do mundo real, como
nosso maior cinegrafista marítimo, Cousteau. Assim, ele mistura na
dose certa o mito e a história, os deuses e os homens, o paganismo e
a geografia das horas humanas, lembrando-nos do grande livro marí-
timo de Camões, Os Lusíadas, que misturava os planos do mito e da
história, do paganismo e da Bíblia. O corpo do ser e o corpo do mar se
densificam nas memórias metafóricas de Guarnieri, que personifica o
mar como um monstro marítimo. Outro recurso excepcional do poeta
aqui em questão é a fragmentação da linguagem a partir da divisão
não só de partes dos poemas em várias páginas como de palavras no
interior dos poemas, no final e início dos versos. Essa desarticulação
revela as camadas várias dos homens que não têm uma essência, mas
máscaras cada vez mais profundas como as profundezas no fundo
dos mares. Mas o homem também é feito de fragilidade e liquidez,
a humanidade é líquida e Alexandre Guarnieri faz uma viagem pelo
mar interno dos homens, feitos de sangue e águas.
A “semântica marinha” resume a essência de seu livro e é uma
das expressões que o poeta por ora aqui estudado mostra em um de
seus poemas. Comparece o personagem bíblico Jonas também neste
“mar corporal”. As vítimas do mar representam o símbolo da morte
e da dissolução, mas também de vida, pois o sangue é a morada do
homem. Guarnieri mistura com proeza dois símbolos do mar, uma

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referência bíblica, Jonas, com uma referência literária, Moby Dick,
através de um monstro marinho, a baleia. Temos também um Jonas
moderno e tecnológico com suas lanchas velozes e barcos tecno. Guar-
nieri expõe a exploração desenfreada no mar, com as imagens de morte
das espécies do mar. Espécies em extinção. Mesclando o antigo e o
contemporâneo, o escritor nos revela as imagens mais inusitadas e
originais. O paralelismo bíblico/literário é enaltecido, assim como o
mítico e o bíblico. Mas os oceanos produzem suas vinganças com seus
“édens submersos”. A natureza numa imagem de retroalimentação dá
de volta o que recebe dos homens com seus náufragos e desapareci-
mentos. A justiça é da natureza não dos deuses, com sua lei de retorno:
“na justa aplicação de uma sentença”. O mar apresenta, dessa forma,
o norte e o desnorteio, o caminho e o descaminho, o conhecimento e
o desconhecimento, a viagem interior do ser, o abismo no qual o ser
se mira. Mar é Narciso, espelho, o líquido e o sólido, carne.
Tudo o que o mar contém é uma síntese dos símbolos, das histó-
rias e geografias do mar. Até mesmo o pirata comparece por aqui. O
mar é ele mesmo e seus desdobramentos, outras formas de águas, como
os lagos, o corpo. Leviatã é ele mesmo e outros ideários de monstros,
como o monstro do Lago Ness também. O livro de Guarnieri apresenta
estes espelhamentos. Os monstros revelam seus arquétipos ao longo
das eras, como Godzilla, as feras, os demônios que nos assustam e que
são as forças inconscientes incontroláveis dos homens. A dor humana
deveria ser transfigurada pelo monstro. Inversamente, não é um anjo
ou uma figura celeste que nos vai salvar, mas o próprio monstro que
há em nós. Nossa megalomania, nosso orgulho, aparece a partir da
letra maiúscula muito bem colocada num dos poemas do autor em
“Homem”, reforçando nossa mania de grandiosidade. O espaço em
branco entre as páginas e os espaços digitados em fragmentação só
reforçam o pleno e o vazio, a nossa capacidade de reflexão e silêncio.

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O abismo e preenchimento do mar e da própria linguagem. A autoi-
ronia também esta presente com a própria autorreflexão do monstro
que se personifica como um indivíduo, dessacralizando o símbolo
do homem perfeito. O monstro é o caos anterior à organização do
mundo, trevas e zero. Guarnieri quer refundar o mundo pelo mar. É a
partir dele que pode ocorrer a verdadeira mudança. Atingir a huma-
nidade, o paraíso perdido pelo monstro é a grande invenção poética
de Guarnieri, subvertendo as imagens de perfeição e sublimidade. O
sal de Leviatã quer recriar a origem, o abismo, o antes, uma anterior
linguagem, a linguagem guarnieriana. Portanto, Guarnieri no seu
novo livro retoma toda sua linguagem simbólica anterior num novo
fundamento que vai submergir a partir de naufrágios linguísticos,
reinventando uma nova ordem caótica, unindo a ordem e o caos num
mar cheio de desejo de humanidade, o Leviatã e seu sal vão remexer
nas nossas zonas de conforto, cortando com acidez e reflexão nossos
olhos cegos de Narciso que quer enxergar além das profundezas do mar
agitado, trazendo a esperança de um mundo pautado pela linguagem
oceânica. Guarnieri traz para nós leitores uma linguagem nova e plena
de símbolos e significados que só os olhos atentos podem ler com
beleza e inventividade. Um livro realmente desafiador para nossos
mares moventes de dentro.

Alexandra Vieira de Almeida


Escritora e Doutora em Literatura Comparada (UERJ)

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“[...] o homem brinca de deus mas vive no tempo.
e no mar ele nomeia seus medos: mar morto, mar negro,
mar vermelho. o homem é água e enredo.”
Marcus Fabiano Gonçalves

“Só. Estou só. O mar que me circunda


é um dédalo de arcaicas escrituras,
de alígeras e esfíngicas criaturas
cujo perfil o azul do oceano inunda.”
Ivan Junqueira

“Há quem diga que a espuma no oceano


é uma linguagem. [...]; palavras são detritos
como algas, conchas ou brincos
oferecidos à deusa das águas. Eu só
deslizo as pinças entre possibilidades.”
Cláudio Daniel
PARTE HUM: MARÉ ALTA
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a página marinha

“e enquanto você lê/ o mar está virando suas


páginas escuras,/ virando/ suas páginas escuras”
Denise Levertov

~ /hum ~

~ ( as camadas dançarinas da máquina marinha ~


imersas na única carroceria cavilhada
de crustáceos por sobre suas mil costelas
de acrílico, cristalinas ~ nestas esteiras líquidas ~
escorregadios entre si, porque diluídos, seus
mancais de alumínio ~ ( sob dilúvios de molusco
~ afluem acordes ao prístino desígnio ~
sobre o prisma do mais íngreme dos precipícios
~ ( rangem os fractais do mar original ) ~
os naufrágios ~ um cântico trágico os
atrai, ária da cantata, tão íntima ao
ritmo contínuo no qual conchas submersas
por círculos de sal são as peças do oráculo
à odisseia onde tudo espirala e reveza ) ~

21
~ /dois ~

~ ( na sua aparelhagem de esmeris há


diamantes lapidando a orla, órbita sólida,
outrora erguida sobre a rocha insólita ~
nos atóis / tanto óticos / quanto táteis /
seu azul total coroado de corais simétricos:
corola entre pétalas ) ~ os olhos do
oceanógrafo atentos ao cio submergível das
pérolas mais secretas ~ alagado amálgama
de lágrimas e plâncton cuja superfície
entretecida é sua trêmula e lustrosa
pele de enguia, estrutura lenta e solúvel
onde deslizam os enigmas da hidrodinâmica ~
migram escamas, grinaldas de espuma ~
o mar como o semeador de âncoras ~ porque
todas as suas ondas são nada além de roldanas ) ~

22
~ /três ~

~ ( trinta mil estrelas afogadas sob a água


iodada ~ ( milagrosa lâmina submarina ~
flâmula, simulacro claro ~ essa galáxia
de desastres e luminosidade sufocada ) ~
eis o orgulho do mar à sua massa d’água,
inigualavelmente larga ~ garoupas / corvinas /
orcas retornam a esse aquário maravilhoso ~
de arcas afundadas e naus frágeis ~ a fer-
rugem luta, fracassando o metal de tesouros
obscuros ~ há algo além do h2o ~ ali ~
~ ( e não só lá ) ~ onde o mistério é cego
ao último instante da Atlântida ~ sua piscina
idílica ~ o mar ~ riquíssima mansão vítrea
habitada por marlins / sereias / tritões ) ~

23
~ /quatro ~

~ ( o labirinto intramarino ~ tremeluzindo


espelhos vivos ~ de vincos cor de vinho
~ murmúrios / marulho ) ~ o mar possui cristas
dorsais, que eriça ~ seus ladrilhos são
incorpóreos menires sob a fossa abissal ~
há cariátides de cristal decorando os
recônditos de seu salão principal ~ ( Iemojah,
rainha dos redemoinhos ~ Iemanjá manejando jangadas
na encruzilhada das águas) ~ há um pomar esquecido,
de astrolábios outrora dourados, agora tão
corroídos ~ náufraga morada dos astros ~ de uma
mínima astronomia de ostras / se estrelas-marinhas
são sóis irrisórios ~ nebulosas mergulham / e polvos
retorcem seus tentáculos constelares ) ~

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~ /cinco ~

~ ( apesar das algas bioluminescentes /


afoga o fogo ~ o mar ~ submerge o gênio
sob o afago salgado de seus ângulos ~
( vértices repletos, que resvalando, são o jogo
côncavo de curvas que o circundam / gases
/ cardumes alhures / peixes sem eixo / imensos
lumes borbulham ~ numa anárquica e bizarra
fauna ~ parques de sal ~ ( subprofundis )
~ onde águas-vivas habitam, mascaradas
por vidrarias raras e itálica cristaleria ~
nos receptáculos de tão pequenas glândulas
lacrimais há toneladas de um sal concentrado
~ ( o que criaria, afinal, a imensa gama
de algas estranhas sob águas instantâneas? ) ~

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~ /seis ~

~ ( emaranhado por marés o mar menstrua,


regulado sob os trâmites da lua ~ seu
diafragma flagrado em água máxima ~
múltiplo o acúmulo que flui ~ feminino
e hidrovascularizado ~ e muito embora de
marcado em cartas náuticas, o mar escoa
para todos os lados ~ entorna e retorna
uma ágora larga, agora sob a aurora ~
aura do arco aquarelado sobre o sal das
catedrais de prata e coral ~ pátria de fúria
e maresia ~ safras de madrepérola e safiras
~ e Poseidon, pai-do-mar ~ armado do único
tridente entre tantas espadas de barbatana,
possui ~ celeste ~ sua lavoura de azuis ) ~

26
o burgo de gelo (i)

“[...] o iceberg sobe e desce; seus píncaros de vidro/


[...] o pano leve/ é levantado por cordas finíssimas/
de aéreas espirais de neve./ [...] o iceberg seduz a alma/
(pois os dois se inventam do quase invisível)/ a vê-lo
assim: concreto, ereto, indivisível”
Elizabeth Bishop

límpida espécie de alabastro: os abismos do


prisma abrem-no claro tanto quanto livres
os alvores polidos do vidro e dentro, imagem
(en)contra imagem, margem contra margem,
um engenho de espelhos reflete as câmaras
do horizonte, iluminadas | minério aberto,
puro, casto: flor de cálcio, lágrima da pedra
a única pétala quando recria o arco-íris | lar
anguloso, lapidado e branco, céus internos
o afogaram, calcinado, cristal congelado;
se o gelo calcificasse [ isento ] paralisado
dínamo marino

“[...] aonde anda a onda?


a onda ainda/ ainda onda ainda anda/ aonde? [...]”
Manuel Bandeira

“a onda dobra outra onda [...] assombro abaixo do som [....]


longas palavras em ondas vertigem e sombras”
Roberto Dutra Jr.

vaga enquanto arma a água toda


em que se esvai levando a soma aquosa
ao sonoro devir da arrebentação
~ ergue o quanto anda: carga aonde leva
e traz na água algas agora, sobre cardumes
que alardeiam ~ e se uma gravidade a atrai
à praia, sem freios ( um dínamo marino agindo ),
na areia outra, contrária, quer devolvê-la
ao oceano doutro lado, ( vira e revira
no ir e vir de seus espasmos ) ~ longa, ondula
~ a água alarga e salga — e segue
como se sangrasse : sangria do signo cíano ~
e singra para que siga ainda a água,
que ao ímã de cada maré adere ou repele
~ logra a onda longa aonde aguarda lá, largar-se
( inunda o fundo onde inúmeras ondas
se ajuntam ) à outras ondas, longínquo banho,
em moto-contínuo; bainha junto à linha da baía
~ para quebrar com ímpeto ~ ad infinitum

28
penhasco

assoalho visitado às bordas do fiorde


suas escarpas de basalto | o espaço
entre o ar e o mar embaixo que quase
julgaríamos raso apesar da maré alta
| hirtas suas afiadas bordas |
símiles às de uma faca árabe
( arqueada ( cimitarra (
| o que as navalhas da erosão
erigem é este grupo de rochedos
pouco a pouco sendo degolado
assim o penhasco largo | vasto:
ponto turístico para narcisos
e suicidas | amplo plenário de
pedra d’onde observam o sol
nascer | ou se pôr | platô sólido
observatório possível | existe
essa muralha terrena | pesaroso
mármore erguido| lugar de uma
solidão extrema | avizinhando o
pélago triste a esse chão de limites

29
o burgo de gelo (ii)

essência adormecida, coração no sono |


dimensões de estrela se entreabrem: sua
última luz constrói-se no açúcar, transparece
num sussurro sua lúcida brancura | se sua cor
de água, de nada, se este azul anil, veloz
e levíssimo, alvorecesse, toda sombra, da
mínima à soberba, não sobraria à luz
exilada no antônimo da sua substância | íntegro
prisma: limbo ínfimo ou bloco ciclópico, mas
maciço porque a íntima simetria volumétrica
aglomera as próprias fímbrias diagonais,
é por isso que prospera sua porção submersa

30
orla

) ornato em pedra ( mas repleto de areia cor de pérola,


as praias recortadas da imensidão de seu tecido,
modeladas de um círculo macio ( pássaros sonoros
o rodeiam, santuário, revoando com o vento dos verões
entre dunas que se arredondam e ondas de onde sopram,
plenos, horizontes remotos ) da área plana à beira-mar,
à barreira rochosa, se espalham os módulos da orla e a
vida sob suas órbitas ( que sempre se recolocam ao longo
desse diálogo com o oceano, bem além da seda da
enseada ) os ares da maresia na zona fronteiriça entre
os alumínios do azul e a amarelidão molhada da
areia fina enquanto ondas a reviram no refino ) ainda (

31
arquipélago

quatro grupos vizinhos de lindas ilhas virginais, reunidas


em arquipélago gregário, desenham este coliseu relegado
a léguas além do continente, módulo duma ilíada meridional;
veleiros trafegam a passeio, entregando alienígenas,
ilustres turistas do istmo ou eventuais criaturas
visitadoras de uma delas em quaisquer das outras sólidas
ilhotas; távolas avistadas n’água, contra o horizonte
retilíneo, muito antes do último tsunami : no refluxo
do pacífico sul ou nos limites do extremo menos terreno
do arco caribenho; a ortodoxia as criou fixas na geografia,
tranquilas ilhas anfíbias ligadas ao velho mapa inalterado
do mundo : cada escama um bloco ligado ao globo ( são cimos
de montanhas naufragando; o azul as exulta : o conjunto flutua )
enquanto o mar lhe açoita as franjas, nunca as enxuga,
ao contrário, debruça tufões, nuvens de chuva,
durante a estação enfurecida; aves migratórias esperarão
a hora de (re)pousar, passado o amplo temporal,
nessa arena serena, provisória morada contra o sal

32
(::: tempestas ad aeternum :::(

( ::: ( à anatomia da frente fria ( alturas nublam no acúmulo esta


rígida camisa de granizo com que o medo copula ::: de tão leve o
veludo ::: névoas evolam e renovam nuvens lúgubres que evoluem
seus plúmbeos volumes ::: o inverno ou o verão ( se revelam ( ou se
rebelam ( ante o impacto de duas massas de ar que estão em guerra
::: cumulus ( nimbus ::: são vapor puro seus sísmicos mecanismos de
pingos ( movidos às vísceras cíclicas da hidrologia ::: toda a blindagem
lacrada aos fenômenos da meteorologia ::: as gotas como sistêmicas
agulhas da acupuntura úmida e lúcida que o alívio de um dilúvio
inicial salpica sobre os poros do solo ::: porque depois virá a água
pulverizada às toneladas ( largada do radioso hangar da atmosfera da
Terra ( onde os vários níveis do velame reverberam ::: brancos como
membranas nascidas de braços climáticos ::: ventos abertos as criam
no céu ( mordaças aladas ( debruçando açúcares do novelo diáfano
e solúvel das chuvas ::: por vezes assíduas no verão do sul ( severas
na invernada do norte ::: espécies de seda inflada fremindo módulos
vaporosos ::: a tamanha fumaça fria que dança desprovida de vértebras
::: as engrenagens da tempestade agem engravidando absurdos ventres
pluviométricos ::: um gélido gigante modelando o inverno interfere
no áspero sintoma do desalojado planisfério ( sob as

34
extremidades de ventos severos ( intensos ( nervosos ( venéreos como
no inferno ( são ventos por dentro ( tremendos ::: em alto mar as mais
baixas temperaturas se amarram a uma larga e unitária mordaça :::
o clima declina em crise física ( toda altura é esta estranha úlcera
convulsa como se fosse ininterrupta a pintura de William Turner
::: “por quanto tempo tufão tão nefasto estará afastado da costa?” :::
os metereólogos não logram resposta ::: na pura fúria do Caramuru
( todas as danças da chuva juntas ( em belicoso conjunto proposto
por tribos ocultas ( avultam e nublam o horizonte profundo ( para o
absoluto assombro de reinados navais ( barqueiros nômades e nave-
gadores autônomos ( e nunca ( jamais ( saberemos para onde ( ou
até quando ::: e agora, Joze (Pereira)? se Calicute não te escuta ( se
o pombo-correio jaz sepulto em sua miniatura de tumba ( se resta
anêmico o único anemômetro ( se está louco o lôbrego pluviômetro :::
e agora, Vasco, Pero Vaz de Caminha? a quantas anda nosso Caminho
das Índias? ( para que te presta ( tempestade eterna ( senão para
frustrar nossa conquista marítima mais íntima? senão para derrubar
sobre nós ( além da maresia carnívora que penetra pela fresta todo o
dia ( sua voz ressoada na foz dos trovões e iracundas colunas d’água
ligando o mar à mais aérea nódoa,

senão para nada? ( ::: (

35
o barco na garrafa

que vento, tormenta, qual


embargo causado pelo caos
atravessou o aço deste barco?

qual a história de seu rapto,


de sua carcaça aprisionada
ao arrecife, pelo casco?

terá afundado em álcool


— em rum, a nau afogada ─,
no premente e estrepitoso
jorro da única talagada?

terá sido enfeitiçado


o capitão embriagado
pelo canto da sereia
ou pela água envenenada?

36
pois saibam, sujos marujos,
que até assim se naufraga,
e onde esperaríamos o gênio
realizando desejos, resta a
miniatura delicada da fragata
prensada através do gargalo,
presa ao interior da garrafa;

haverá outra escolha ( brinquedo


camuflando o medo ─ mero modelo )
senão estilhaçá-la ao peso
do arremesso ( pequena parcela
do mar ou a própria alma
sequestrada ) a singela peça
do artesanato naval, minuciosamente
trabalhada ou frágil granada
lançada contra a parede da sala?

37
ínsula na névoa

cercada pela tempestade que ameaça


sua secreta falésia de pétalas
toda e qualquer ilha, o mesmo símbolo
em todo ímpeto que habita, o mesmo nível
em todo mar que ataca a pedra:
a mesma meta
correnteza perpétua
se há algo que a ilha renega e é eterno
( refundando o deslimite )
é esta névoa
que atraiçoa seu único insulano,
um passo em falso :

entregue à queda

38
o burgo de gelo (iii)

poliedro : elo geométrico, ileso e sereno,


mas frágil porque age nele — dentro, entre
seus centros — um mecanismo de degelo,
uma engenharia mínima, de segredos | eco-luz
secreto e cristalino, úlcera de brilho, a relíquia
de sua velha matéria é fóssil onírico, vidro divi
nizado, labirinto destilado, intacto e ancestral
| memória de luzes milenares, plano perpétuo
entronizado em excêntricos reflexos | este objeto,
séptil, enterrado sob o gelo, sendo gerado em
útero perverso, fecundo, o ovo nele contido

| de réptil

(?)

39
(O) (O)\V/(O) |\N\|(O) (O)\V/N/I|)

“ovo/ novelo/ novo no velho


[...] mero número do zero”
Augusto de Campos

(((((( ))))))
((branco como osso
((um hibernáculo monstruoso
((ovo do alien no óvni((o ovo da ave
na nave((mas isso é o que não se sabe
(entranhas do cálcio enxertadas ao claustro
(((hermético cárcere lacrado à quase-esfera
(hibris aprisionado à ostra (alabastrina cápsula
para guardar o âmago na câmara ((membrana
clara o invólucro ou casulo (( óvulo recluso )) na
fragilidade do vidro ((( sono anônimo do bicho )))
no ninho ((( ainda mínimo ((( escura urna fecunda
o módulo úmido dentro ((útero ( ou ) átrio)) globo
inoculado à cópula))núcleo))novo ou podre))o corpo
geométrico de uma única pálpebra integral)) vísceras
o revolvem))porque está vivo))bomba-relógio))objeto
biológico cuja origem sugere a viagem ao zero))e uma
antiquíssima ou nova espécie)) mas isso é o que não
se sabe))até que rache))choque))até que mostre))
se animal alado ou aquático))lagarto ou pássaro))
escama ou pena))asa ou barbatana))ou outro))
mutante)) transmutado)) serpente ou ave
Fênix))que saia de repente))e que do ovo
ecloda)) de novo)) este Oroboro))
(((((((((((( ))))))))))))

40
=( facehugger )=

sem que saibamos,


há algo sendo gestado,
sempre, segredo ou não,
o ovo chocará
sem que saibamos
o que virá - monstro
ou anjo - esse híbrido
feito de tudo aquilo
que desejamos sem saber
e do que queremos,
conscientemente;

a casca deflagrada
— da superfície lisa
à profundidade áspera ─
o resto, o rastro
— na água ou no raso ─
rastejante ou alado
e instintivamente faminto
por nossos desejos;

41
sibila, vilipendiado,
tal vampiro anfíbio
( fibroso xenomorfo )
desde sempre alojado
em nosso fígado;

até quando
fingiremos desprezar,
interno \ monstruoso
( a carne soterrando
o pântano do sangue )
o nosso próprio
urro primitivo, a voz
desse bicho, seu
violentíssimo
grito?

42
PARTE 2: MARE NOSTRUM
romanche

ao vogar sobre nuvens de grande


volume numa altíssima altitude
( afora o fato ocuparem assentos
no centro de uma caixa de aço,
pressurizada ), o que este pequeno
grupo de passageiros cumpre, sem
se dar conta, separado por mais
de 500 anos na história humana,
é o itinerário contrário ao das
grandes navegações | por horas
estiveram a trinta e nove mil
pés sobrevoando o seio do oceano
e o que não poderiam suspeitar
é que muito abaixo de seus corpos
suspensos pelo calculado abracadabra
da aviação comercial, espreita/ espia
todo o panteão marinho, o rei/ a rainha,
o séquito de sereias, e servos observam
lá no alto, pelo filtro largo deste
espelho d’água, a linha reta que
a queima do combustível desenha
acima de suas cabeças que borbulham,
submersas | há templos de pedra,
secretos, entre fendas e cavernas,
para honrar todos os desastres
aquáticos e naufrágios, e se todo

45
o aparato ligado para assegurar o voo,
mesmo que apenas por alguns segundos,
desligasse, trazendo à realidade a pane,
justamente sobre a fossa de Romanche,
ao contrário, bem abaixo, no coração
aparentemente cálido de todos os mares
interligados, essa multidão de monstros
afogados que os aguarda agarraria com
unhas dentes garras bocarras escan-
caradas toda carne lançada ao Kraken
que mastigaria sangue e osso, sólido
e aquoso, cada parte estraçalhada,
da incauta turma a desafiar, ingênua,
o intransponível abismo entre o novo
e o velho mundos | até que um dos mem
bros do grupo de passageiros, sacudido pelo
solavanco causador d’algum vácuo dentro
da aeronave sente, angustiado, a catapulta
que de dentro de seu pesadelo horrendo
o empurra do sono à vigília, da coluna
à nuca, e desperta, com um berro seco,
assustando a todos, mas estranhamente
sereno, no domínio do seu próprio medo >
corta para > tudo vibra [!] todos gritam >
[ é quando caem as máscaras de oxigênio ]

46
a costa amalfitana

~/

essas pedras íngrimes sobre as quais


foram depositadas, nas gretas, cidades
inteiras como punhados de açúcar
salpicados num pão de grossa crosta,
mergulhado n’água salgada numa das pontas,
a outra já tocando o trigo da terra com que
( ao sol ) foi cozido; as escarpas são facas
golpeando o Mar Tirreno; aqui, em Amalfi,
toda ocupação humana desafia o abismo,
solucionando o vazio com rústica engenharia;

47
~ ~/

uma dessas cidades está debruçada sobre


o golfo, e sereias comandadas por Caríbdis
espiam suas casas, a vida citadina, por entre
os barcos naufragados por barbatanas
de madrepérola, quando subitamente emergem
partindo-lhes os cascos como figos e limões
da Sicília, mordidos por dentes famintos;

48
~ ~ ~/

aqui toda ação dos homens e mulheres


transcorre precariamente equilibrada
entre a pedra e o mar, todo ângulo
descendente despenca numa parede de sal
que salta para abraçar separadamente
cada queda e tudo outrora construído
pressente alguma catástrofe iminente
encomendada por vingativas divindades
marítimas, o Kraken, mais dia menos dia,
reclamará sua quantidade de carne
bronzeada, as sirenas afogarão os líderes;

49
~ ~ ~ ~/

os monstros marinhos movem antigos moinhos,


há vinho e pedra e terra e pão de sal,
barcos entre grotas se reencontram
como amigos que, separados há séculos,
molham suas bocas sedentas de bebida
encorpada; há névoa e caminhos que desafiam
o equilíbrio diante destes nefastos penhascos
e se me repito aqui, esquecendo as palavras
que vieram antes, é porque já são meras
borbulhas ocultas sob o negrume de águas
escuras e eu, você, os barcos se misturam
às algas do fundo e já nos afogamos todos
faz tempo e isso não passa de um sonho
de quem morreu num desastre como os
descritos em escrituras das quais saíram
e sairão ainda por milênios, todos os mitos
que conhecemos e porventura virão

50
mágoa no sal

enquanto o mar reclama, no amor


em que pacificamente recolhe
sua parcela mais calma e ampla
à face de espelho tão plácido e plano,
Poseidon calado trama ( da sub
marina treva ) suas táticas de guerra,
– tem o tridente como arma secreta,
tripartida seta – contra todos os
que habitam a superfície da Terra;

51
seu único estratagema é fazer
com que todos os descendentes
e filhos, vis, primeiro derramem
todo sal marinho circulando
em seus organismos ímpios,
em seus próprios corações e almas,
toda e qualquer lágrima revele enfim
a presença latente de sua própria
saliva grossa e espumosa, a baba
escorrendo pela barba – o gosto
do sangue também é salgado e
metálico – como ondas largas
e pavor e desencanto, ameaçando
pouco a pouco o ancoradouro,
outrora tão seguro, de nosso júbilo
e regozijo, todo arroubo mais pro
fundo, derrotado rumo ao nada

52
viagem fantástica

para Julio Verne e Harry Kleiner

toda profundeza concebida pelo homem


– conquistada ou ainda inexplorada –
sombria, ameaçadora ou prodigiosa,
toda mais longínqua profundidade,
recriada imaginativamente por séculos,
jazendo a apenas alguns centímetros
da superfície da pele, sob a trama de
nervos que segue a construir os sonhos,
da medula ao cérebro humano, esse
antro chiaroscuro – esponjosa massa
cinza sob o osso do crânio duro;

53
puséssemos numa seringa hipodérmica
a miniatura de um submarino nuclear
mergulhado em solução fisiológica e
injetássemos corpo adentro a peça
a sangue frio, navegaria submerso
com energia suficientemente gerada
para zelar sempre, sem erro, sem medo,
pelo mais perfeito funcionamento?

54
por quanto tempo seria capaz de estudar
nossas fossas abissais, internas,
nossas zonas de guerra, onde glóbulos
atacassem micróbios entre outros
vírus e furtivos inimigos batalhando
em tantas trincheiras de carne e nervo?

55
no fluido da medula, no sangue
que circula, tanto Nautillus
quanto Proteus completariam
a inusitada esquadra : as vinte mil
léguas submarinas enfim vencidas
na saliva sob nossas línguas...

56
calypso

ígneas enguias bicéfalas


se entreolham, tresloucadas

com guinchos finíssimos, unís


sonas, ensaiam o silvo coletivo
e quase enguiçam no líquido re-
buliço, agarradas em algazarra

parecem aparvalhadas na água


como certas larvas aneladas
recém-saídas dos ovos;

ascendem os olhos de fósforo,


ardendo aos milhares, em pares
contra o breu inóspito

faróis cujas luzes


lançam fachos quase sólidos
para o horizonte subaquático;

57
orquídeas submergidas
eletrificam a língua sibilina
das enguias que se esquivam
das lanternas ou dos esguichos
de alguns exímios escafandristas
e fogem
para o raio que as partam

nota:

mas pouquíssimo antes disso


tiveram suas almas
registradas em vídeo,
para Cousteau, por seu
melhor cinegrafista
em seu milésimo mergulho
de scuba ( o Aqualung ),
sob uma falésia da Catalunha

58
o antro do escafandro

o poço de nódoas negras


borbulha sobre raízes, algas
no centro de todo pântano,
no fundo do alagado lodo;

algo obscuro subjaz,


oculto, tampouco olhos,
se mergulhassem, em óculos
apropriados, a devida roupa,
captariam-lhe o contorno;

que presença se debate


sob a indômita flora
deste remoto charco?

59
que hálito pútrido,
resiliente, se desprende,
da superfície dúbia
de tão abstruso suco?

pobre escafandrista do espírito,


humilhado, nadando no corpo
umidificado por litros
d’água amarga e sangue rubro...

trancafiaram-no ali à revelia,


quem seria? Deus? Satã, terá sido?
quiçá outras cruéis deidades
de algum antigo paganismo remissivo?

60
nenhuma ilha à vista,
apenas a caverna da carne
à qual atando-lhe,
aprisionado, com nervos
e ventosas, abrem-lhe no rosto,
um único observatório
e o ilusório voo
— como o do livre pássaro ─
só lhe é possibilitado
em sonho, entretanto,
convencido pela notícia
de que haveria outra saída,
abre nos pulsos, mortíferas,
duas estrias rompidas,
por onde todo molhado evade
e quanto mais seca,
mais lhe convidam
tais escotilhas abertas...

é por estas duas chagas,


já ferozmente alargadas
pela habilidade da faca,
que lhe escapa a alma
( já tão cansada ),
há tanto pressurizada...

61
bile & enigma

o sumo mergulho no auto


fágico lago ─ mar inver
so, água amarela sob
óleo negro | a mirada
de Narciso o traga, há
tempos Édipo está cego
diante do espelho esfa
celado “decifro-me
assim devoro hora a hora
meu próprio corpo
ferida aberta, além do
nojo, o único poro do
cadáver expurga lodo

mira a severa marca


exposta na carne
hipócrita: eis a nódoa
intransponível
da morte

62
martírio

até que o atávico e elástico


arrasto o reparta entre as omo
platas e vincos cor de vinho rodo
piem, redivivos, à pátina sangrada
de seu único termostato platinado
a mostrar graus que decaem e gradual
mente degradam ou retrogradam
à sua temperatura corporal,
atravessa essa carcaça de baleia,
presa ainda à densa profundeza,
como aquela a que outrora a vida
do próprio Jonas esteve prisioneira;

63
enguias albinas símiles a colibris
deslizam suas asas de barbatana
ante a dança surreal de anêmonas
à sanha de todo o atônito plâncton
jorrado do nascedouro ao oceano;

aqui toda semântica marinha


apenas se resume à capacidade
de resistir aos elos de uma
corrente invisível que repuxa
braços, músculos e ossos, des
guardados por quaisquer dos lados;

64
das marés da pele outrora a re
pelir o suor em tempo quente ( as
praias banhadas por suas lágrimas )
à sanguínea lama que murmura lá
no escuro do fundo em tumulto ~
do mar corporal onde se ganha
e perde toda sôfrega esperança:
de terra firme e porto novo
~ no outro ~ ao eloquente pélago
sussurrando a ladainha de sua
lamuriosa romaria angustiada ~
fracassado finado de encontro ao
nada, boiando entre navios-fantasma;

65
o cadáver devorado por tubarões
largos e oblongos robalos a rebolá-lo,
cada globo ocular um manjar servido
na bandeja da caveira, alimentando
miniaturas de cardumes beliscando
a polpa ~ do olho ~ pouco a pouco,
até que a carne toda se abra
nessa cicatriz contrária que alastra
seu destino final ao máximo, a total
dissolução no sal; o mar aqui como
o maníaco meticuloso aplicando ácido
muriático ao suculento defunto absoluto
de sua repetida vítima preferida;

66
todo ar há tempos exaurido, o corpo
sangra no abismo do martírio ~
a palavra mar somada ao metafórico
tiro desse afogamento explícito ~
assistido pelos que miram do tomba
dilho um homem debatendo mil cilindros
inflitrados pelo viscoso líquido salino
que lhe extrai o viço/ o ritmo/
o abafado grito ~ todo oxigênio
expulso num único esguicho, remoendo
os trépidos membros por sob
o espelho d’água, que finalmente acalma
em derradeira lástima e cala o rebuliço,
o cio, o som outrora vivo, do sino,
o gorgolejo que dubla na voz um grito,
mudo e úmido, nublando o orgulho;

67
alguém ~ nenhum outro ~ ou ninguém mais
pode contar do mar ( seus atrasos /
seu retardo ) que este mártir afogado
tão íntimo da água gelada e salgada,
as algas a enrolá-lo como mortalha
jamais servirá para mais nada, concluído,
desígnio findo entregue ao limbo

68
Mob-Drift Moby-Dick

o primeiro Jonas na barriga


da baleia para roubar-lhe
o próspero óleo, o sperma,
a cera inteira ( para acendê-la ),
a alma salgada desentranhada
da carcaça, até que roubá-las
seja agradável ( abrigo no mar
gelado ), como a turba faminta
de bezerros roubaria das tetas
ensanguentadas o leite de tantas
madrastas e amas escravizadas;

69
são milhares de cachalotes
que reagem contra a pilhagem de
uma geração de clones de Jonas,
tão ou mais vorazes que o do
gene original que, tendo apri
morado os métodos de tocaia em
lanchas velozes e barcos tecno
lógicos, despejam novos arpões
entre nervosos anzóis modernos
alvejando no lombo ou no cérebro
estes úmidos soldados de Netuno,
assassinados um a um sem subterfúgio
ou escrúpulo à mais selvagem baleação;

70
vil Moby Dick, eleita por Melville como inex
pugnável! quantos incautos Jonas à procura
de refúgio no tormentoso estômago de um hor
rendo e amaldiçoado monstro, na cárnea caver
na ou claustro onde um tesouro oleoso se enterra
à mercê da cobiça dos homens cujas cidades
se erguem ( e se iluminam ) com os despojos
de tantas baleias massacradas por baleeiros
cegos com medo do fundo do oceano e DELA:
alva contra a luz do dia, negra à luz da lua cheia,
vingadora de todas as outras, austrais, minkes,
orcas, francas do atlântico norte, azuis, brancas,
jubartes, cinzentas, rorquais enormes em sór
dida mortandade, enérgicos cetáceos caçados,
morticínio de golfinhos, carnificina marina!

71
os longos órgãos acompanhando o corte
longitudinal de tão encompridado torso,
a cabeça como o único martelo aterrador
destruindo botes e espalhando cadáveres
de afogados como um mestre desferisse
com ira o irrefreado golpe contra o tabu
leiro de xadrez, sustando então o xeque-mate,
a espadaúda cauda afastando os espadartes
quando o golpe aplaca a sanha dos cardumes
e faz dos homens, antes maus e implacáveis,
o mero plâncton gelatinoso ao sabor de mil
ondas que espalham seus despojos, perdidas
tábuas e fraturados mastros tremulando,
enovelados panos e lânguidas cordoalhas
aportando nas praias de longínquas ilhas;
e nunca saberão, pobres diabos, pelo que
por qual motivo exatamente deram a vida

72
a noiva das marés

reluta suplantar o trauma


a viperina nereida vilipendiada,
subtraída das águas pela consecução
dos séculos neste reinado de trevas
— mastros apontaram no horizonte
como arpões e espadas fincadas
contra o mar ( sobre suas espáduas ),
eterno desfile de homens e armas ─
sua progressiva guerra secando
a Terra, navegando e pilhando
~ corais ~ seres ~ riquezas ~
egressos daqueles édens submersos

73
lúgubre, Cthulhu também reluta
( oculto/ recluso ) ante o compli
cado cálculo dos próprios tentá
culos e neles se entrelaça na tra
ma que entrança barcos e náugrafos
contabilizando resultados brutais
sob o exultado álibi para encher
tamanha pança, tantos torçais

é quando os oceanos conclamam


a sua vingança, assombrando
quem quer que nele lance redes,
naufragam corvetas ante a vendeta,
a reconquista de sua natural herança
— toda a prata que afundou, baús de
ouro e pérolas roubadas sob a água ─
na justa aplicação de uma sentença

74
que venha a ferina fêmea, metade-
peixe-metade-gente, venha a última
das filhas de Dóris e Nereu onde
quarenta e nove irmãs a precederam
e exaspere em delírio seu lívido balé
marinho ante o vindicativo leitmotiv

que ressurja, esvoaçante, translúcida


cândida e úmida, o visite, gelada,
em sonhos molhados, como os do menino
que mirou no pélago as tantas léguas
a perder de vista e viu tetas e glú
teos e sumo e sêmen jorrado do leme
que faça do sexo um desafio impossível
às leis da física, provoque os mais
longos orgasmos além do tempo e espaço

75
que incite a sede, instile seca
a saliva, prometa oásis na salina
enquanto a ceia rareie à mesa ─
arenque e carne de baleia, atum
e burbom com fartura ─ deste jurado
marujo que definha à mingua recri
minando a carestia ao estoque de rum
que esvazia e mine seu melhor juízo,
rasgue o linho do mapa antigo, es
traçalhe a carta náutica, na bússola
destruídas a agulha e o ímã,
o norte destituído do caminho,
o sul somado ao mesmo prejuízo

76
e assemelhe-se na cara a aparição
ao camafeu de uma paixão passada,
que o capitão, apegado, guarda
sempre junto da costela quebrada
acentuando a dor, que não passa à cres
cente umidade dentro e fora da fragata

talvez assobie a sua noiva-fantasma


então rápida, volátil, saque a
atávica faca, ocultada sob a concha
da axila desta aquática, nefasta fada,
tremulante como alga, alma penada,
ou a própria miragem da mulher amada,
e o apunhale no coração, armada,
a espada contra a carne trespassada

77
já vai um outro, do tombo ao poço,
corsário louco, pirata morto
que alucinou sob a lua, quiçá
consumido pela culpa ( o revanchismo
secreto sob o signo de um terrível
feminicídio ) seu cadáver à deriva
vai sumindo, absorvido por pei
xes carnívoros, além da linha
do horizonte ou do destino, indo,
muito além do tombadilho

78
no Lago Ness

se realmente modelada
pela última era glacial,
que segredos guarda
esta lúgubre lagoa negra
gravemente postada
entre a gratuita turfa
e tamanho musgo, neste
terraço ermo e distante
da mais absurda estatura?

que mistérios encerram


estas altas terras, onde
tão soturna névoa cobre
a sinistra orla, desde
o lado norte, muito melhor
observável do topo do Cas
telo de Urquhart, posto
sobre promontório raro
perante este estranho lago?

79
se oriundo da falha
geológica, se originário
ou não d’alguma explosão,
que insondável criptídeo
aquático habitaria esta frígida
bacia? ou teria ali
sobrevivido, único fugitivo,
um sauropterígeo marinho,

que este grupo de crédulos


habitantes afirma que existe
e insiste tê-lo visto, sempre
faminto? estará preservado
em seu lar milenar, estaria
em perigo, acuada ou ferida,
a viperina fera submarina,
forçada a fugir ou lutar?
que cristas de faca, que

80
lâminas de barbatana, que
mandíbulas largas sob águas
ácidas ou salgadas estará
disposta a usar como qualquer
pistola rápida posta para fora
exigiria necessário, o disparo?
como qualquer espada rara, caso
sacada, posta além da bainha,
cobraria seu sacrifício de sangue?

81
mesmo que nada aconteça,
e que ela sequer apareça,
mas apenas à distância,
longe demais, nos espreite
estará ainda lá – sob as guelras
da besta-fera, a guerra –, e em
nós, sob nossa pele, entre tantos
outros monstros à espera,
apenas o receio em potência

de cada aparição possível,


e do quanto esse medo nos
alicia e nos aprisiona consigo,
do balé ameaçador das sombras,
do bicho-papão no armário,
mesmo improvável, do quanto
o medo da própria extinção
nos mantém vivos e, enquanto
espécie, minimamente... unidos

82
Gojira redivivo (credo para Godzilla)

venha, submersa fera,


egressa do obscuro fundo
de tudo o quanto se pode
conhecer longe da luz

remexe de súbito teu


bucho bruto e profundo
e engole de uma só vez,
sujo, esse nosso mundo

83
trôpego monstro capaz de atro
cidades, destrua-nos a todos nós
dia após dia, nas mais populosas
metrópoles, entre outras aldeias menores

mata sua fome em nossa morte,


bebe nosso sangue em sua sede,
sê benevolente, mete de uma vez
os dentes e mastiga, inteira, a nossa dor

84
quimera marinha, banhada pelo lacrimoso
halo de toda nossa mais crua agrura,
rebola teu hálito de peixe gorduroso
por sobre nossa suposta bravura

com sua truculenta lenda, inunda de receio


nosso mantra: sê benigno conosco em nossa
altivez terminal, lança-nos o último tsunami
enquanto o apocalipse bíblico via oceano pacífico

85
venha a nós, arauto da fúria divina ou demoníaca,
mostra-nos atrás da bocarra tuas amígdalas,
socorre e recolhe nossa sombra moribunda
com tua saliva, acode-nos da insípida sina

malogra todo o orgulho megalômano do Homem


com teu nodoso e salobro vômito, ronda as ilhas,
assusta as tribos, são lâminas tuas barbatanas de iguana,
da úmida penumbra escuta nossas súplicas inconclusas

86
com teus enormes olhos dalguma cobra ancestral das mitologias
espreita as pequenas vilas, são repositórios de vítimas, saboreia
os cadáveres crocantes de tantas crianças, banqueteia-te de nós
a céu aberto, temos deliciosos ossos, são órgãos nosso recheio

gigante submerso, tenebroso e sombrio, mil cascatas


frias fazem-te escorrer pelas costas tamanho visgo,
mosaico de suores, licores sobre o negro macramê de escamas,
mergulha na lama do mar salgado toda palavra fraca, vã

87
repele a humanidade absoluta como o único e detestável
verme, cura nossa febre, nosso ego severo, atroz é nosso cérebro,
revela em nós todo demérito enquanto espécie sobre a face da Terra,
parte estes exércitos ao meio com teu semblante velho e austero

com tua baforada de fogo e enxofre, como a dos dragões,


ergue nossos navios de guerra, aniquila as ridículas marinhas,
os arsenais em terra, as esquadras navais e aéreas, que não nos
servirão mais quaisquer armadas... revela-nos o juízo final, enfim,

Godzilla!

88
o monstro por ele mesmo

em mim luz nenhuma germina


por tão intimidada e mínima;
é zero, entretanto leve, essa treva
que ao revés vos entrego
o sutil e irreversível véu
de retrovertida temporalidade...

muito já se especulou entre vós


o que haverá precedido a mecânica,
a física newtoniana, algo anterior à roda, à alavanca,
ao fósforo, à pólvora ( à hóstia e à História ),
à domesticação da pele e do elétron,
ao barro fabril ( à descoberta das Américas ),
a aura que ( volátil, nevoenta ),
desertasse à claridade da memória,

89
sou o perímetro submersível em
qualquer golfo do globo

sou o alcatrão mesmo da caverna total,


ou ainda, primevo, imediatamente anterior
à toda a ancestralidade compulsória
( ao Big Bang, ao Fiat Lux ), o mais absoluto “antes”
da invenção do vosso trabalho na Terra,
de toda a conversão da matéria
por esforço ou acidente;

sou o negro declínio implícito,


e a densa substância de que sou feito
– o esquecimento – é só um álibi
para não iluminar coisa alguma;

90
sou o que encorpa ou dilui,
dependendo do centro onde
se acoplem meus tremendos
círculos de salitre, lâminas
duma foice helicoidal, à sanha
de minha única glândula salivar;

frutifico o breu, a derradeira área


cujo veludo mais escuro fez debruçar
do ombro do próprio Adão
o muro de uma sombra cor de chumbo
sobre o Jardim do Éden
( que se apaga – perdido alvitre –
como no Paraíso de Milton )

e antes mesmo
do derradeiro suspiro,
termina

91
o sistema nervoso do Ouroboros

os olhos do dragão
são mil órgãos sexuais

as mandíbulas da víbora armada


sobre o tronco do crocodilo,
ata-se à cabeça absurda
da telúrica medusa que reluta

o fel da fera exsuda


entre nossas próprias vértebras
cérebros e pernas, a quimera

92
a fera que habita
o nosso plexo,
criatura obscura,
prefere a lua
reluta vir à luz
arrasta a asa
a carcaça
de volta ao poço sem fundo
de onde nada escapa
de onde nunca
deveria ter saído

albina ~ sibilina
para caçar
e mastigá-la,
na própria cauda

93
avante, Leviatã!

há milênios congelado no ártico da própria alma,


o insano bloco de gelo encapsulando o núcleo frígido
daquele que preferiu refugiar-se nesse imenso palácio
emerso das próprias mágoas afogadas, e lá,
Leviatã sob o globo, degelá-lo lentamente
para alimentar o inesgotável estômago
deste animal interno cuja carcaça ancestral,
guarnecida por mil tentáculos de aço,
há tanto naufragada nos arrecifes de bile
sob oceanos nervosamente tingidos de amarelo
entre álcoois salicílicos e o salobro veneno do óbvio

agora que o violento lampejo aqueceu até derreter


a crosta desta jaula maciça onde esteve preso
o monstro por tanto tempo, que suas lágrimas se
misturem à água salgada onde se arriscam,
ariscas, perigosas camarilhas de águas-vivas,

94
lagostas ~ polvos ~ lulas
entre medusas-da-lua
( que estrebucham )

enquanto calamares
espargem nanquim
do mar à página

primeiro surgem borbulhas simples,


quase serenas, mínimas, emergindo
inofensivas, mas algo virá depois,
muito maior, da profundeza,

ameaçar ~ corromper ~ destroçar


uma a uma,
mesmo pequenas
e excêntricas,
as nossas certezas e crenças

até que a treva vença


definitivamente
infiltrada

em nossa essência

95
Nemo

quais avançadíssimas tecnologias –


engenharias navais/ oceanografias –
dominariam o submundo marinho,
para suprimir inteira, a inarredável
necessidade da superfície terrestre?
abandonar decrépitos continentes/
refundar o mundo, novo, à bordo de
um sonho, ou do submarino eletrônico;

reclamar do tenebroso lodo


(conformador do sólido todo)
sua parcela salina e aquífera
para sobreviver, neste périplo,
entre as mais temíveis feras:
domar o Kraken, matar a quimera,
aliar-se à Poseidon, dono do mar,
juntar de Lakshmi, só as lágrimas;

[“Capitão! Meu capitão”, Nemo,


toma o timão | ergue o remo!]

superar a dor de um aborto prematuro


para renascer no útero proveitoso
de todos os oceanos juntos, inundar
a alma, mergulhar na prolífera crença
de que, enfim, é possível desistir
de montanhas, rios, desertos, florestas
para desaguar no definitivo mar –
lar de todas as viagens imagináveis;

96
[“Capitão! Meu capitão”, Nemo,
toma o timão | ergue o remo!]

o meio líquido como o paraíso perdido,


escafandros como anjos, resgatando
o fator humano! conclamemos pois,
em nós mesmos, nossos próprios Nemos!
para mergulhar e desvendar nos espelhos
das nossas profundezas e medos,
não como narcisos em rasos copos d’água
se afogando em parcos problemas corriqueiros,
mas como renascidos de um dilúvio bíblico,
entre a arca e o submarino, como híbridos
e anfíbios, habitando o próprio abismo, entre
as trevas e o braseiro: caminho do meio e,
como Nemo, sejamos eternos primeiro,
supremos e extremos, depois meros mortais,
perecíveis, terrenos “Capitão! Meu capitão”,
Nemo! ( no molhado ou no seco ) envolvendo
de carne & lástima ~ de graxa ~ de escárnio
& sátira, as pobres caveiras que seremos;

“Capitão! Meu capitão, Nemo!”,


ao mesmo tempo irado e tão sereno,
por que é sempre tão difícil
à relva, às ondas, ao vento,

dizer adeus antes do exílio?

97
mare nostrum

navegar é preciso,
desde que de encontro
ao próprio istmo,
a própria cisma,
ao próprio abismo
de imprecisos signos
sob imprevisto clima

de silos – a um só tempo
marinhos & íntimos –
abrem-se comportas & ninhos
de áqueos símbolos
& delírios arquetípicos

ébrias caravelas & finisterras


foram cantadas em prévias épocas
por tantos cronistas & poetas

se somos osso & solo


há também amor & medo,
caldo & desterro ~
sangue ~ sêmen ~ segredo

navegar é preciso
desde que
para naufragar
no próprio enredo

98
mensagem

ma garrafa aporta à praia, vazia,


decerto espoliada do mesmo nau
frágio de que ele próprio fora vítima;
a sobrevivência árdua, a solidão
da ilha impregnam palavras na fibra
com a qual trabalha à tinta
seu pedido de socorro, em rimas,
escrevendo este mesmo livro
em pergaminho

como não descobrir-se poeta


todo aquele que naufraga,
entregue à desolação da alma?
e desde que escasseou
o coco, a pesca, o sonho
do resgate iminente
restam apenas palavras
recolhidas na madrugada
como orvalho sobre a palma
o sal do Leviatã temperando a lenda

99
a garrafa é atirada n’água
com a força que dobra o
braço quase até quebrá-lo
mas resiste em riste
ao vê-la, longe ( o âmbar )
afastar-se das margens
o brilho verde do vidro
ondulando na espuma branca

anos se passam
décadas em que
lhe crescem cabelos
unhas pelos caem
dentes subtraem-se
à avara cara amarelada
( magra / insone )
por desvario ou fome

100
e como miragem
vinda do horizonte
não sabe bem de onde
vem voltando lenta
a mesma garrafa
a mensagem ainda lacrada,
incólume e seca, abraçada
pelo vidro, protegido papiro,
até rolar na areia
para perto de onde
é possível vê-la
e quase lê-lo, dentro,
escrito, o grito silente
( um livro inteiro )
grafado por desespero

101
é quando aprende:
peremptoriamente
não há nada além
da curva do futuro
da fronteira da esfera
além da espera e do mundo
que decerto inundou todo
apenas o inominável monstro
devora com gula
as sobras à deriva
deglute ~ debulha ~ engulha
e a um só estoque os engole

e tudo que ainda flutua,


Crusoé,
um dia
afundará

102
Quetzalcoátl

a cabeça do ancestral, encapsulada


pela crisálida milenar, repousa, sonâmbula,
na árida almofada mineral ( todo corpo
no sudário, pedra no solo ) sobre cujo delicado
fóssil ─ joia ─ está seu único sonho representado :
o peixe-serpente, tendo nadado nos oceanos
do futuro, retorna ao passado ─ de sal
& água, primordiais ─ ( e para alcançá-lo,
— imortal & sábio, o DNA de Quetzalcoátl
— morde o próprio rabo ) entretanto nos escapa,
animal emplumado, quando transformado
em dragão recamado, ou no mais sagrado
& raro dentre todos os outros pássaros

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Composto em Minion Pro e
impresso em Pólen Soft 80g/m²
em São Paulo para Editora Penalux,
em outubro de 2018.

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