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Guaratinguetá, 2018
EDITORA PENALUX
Rua Marechal Floriano, 39 – Centro
Guaratinguetá, SP | CEP: 12500-260
penalux@editorapenalux.com.br
www.editorapenalux.com.br
EDIÇÃO
França & Gorj
REVISÃO
Furio Lonza
CAPA
??
FINALIZAÇÃO E DIAGRAMAÇÃO
Ricardo A. O. Paixão
ISBN 978-85-5833-???-?
1. Poesia I. Títulos.
CDD: B869.1
CDU: ?????
21 a página marinha
27 o burgo de gelo (i)
28 dínamo marino
29 penhasco
30 o burgo de gelo (ii)
31 orla
32 arquipélago
34 (::: tempestas ad aeternum :::(
36 o barco na garrafa
38 ínsula na névoa
39 o burgo de gelo (iii)
40 (O) (O)\V/(O) |\N\|(O) (O)\V/N/I|)
41 =( facehugger )=
PARTE DOIS: MARE NOSTRUM
45 romanche
47 a costa amalfitana
51 mágoa no sal
53 viagem fantástica
57 calypso
59 o antro do escafandro
62 bile & enigma
63 martírio
69 Mob-Drift Moby-Dick
73 a noiva das marés
79 no Lago Ness
83 Gojira redivivo (credo para Godzilla)
89 o monstro por ele mesmo
92 o sistema nervoso do Ouroboros
94 avante, Leviatã!
96 Nemo
95 mare nostrum
99 mensagem
103 Quetzalcoátl
A maquinaria marítima em O sal do Leviatã, de
Alexandre Guarnieri
9
distante das outras engrenagens. Há a possibilidade de simbioses e
entrelaçamentos, como a mistura entre as águas e a terra a partir da
imagem da “semeadura”, fazendo analogias entre as diversas camadas
dos elementos da Terra. O mar e o céu também são metáforas inter-
cambiáveis, com seus simulacros e similitudes. Há dramaticidade e
tragicidade nas descrições com a imagem do universo trágico do
mar, que é um abismo insondável prestes a ser descoberto pela verve
poética da linguagem de Alexandre Guarnieri.
Nas descrições do mar, Guarnieri produz as metáforas mais
riquíssimas e inusitadas, laureando sua poesia com o espelho das
dobras e das ondulações de uma linguagem cifrada em códigos e
hermetismos, como a garrafa que é lançada ao mar. Além disso, seu
mar é poliglota, adquire várias linguagens, indo do universal através do
ideário grego como Poseidon até nossa particularidade afro-brasileira
com o símbolo de Iemanjá. Estes campos diferenciados na poesia de
Guarnieri são comparados, revelando a lei da reversibilidade em seus
versos mágicos e cortantes como o sal e seus temperos exóticos. Os
elementos são misturados em sua dinâmica de claridades e segredos.
O mar que pareceria bem ordenado tem sua caoticidade. É anárquico
também, produzindo os símbolos da desagregação, da morte: “~numa
anárquica e bizarra/fauna~parques de sal~(subprofundis)”. O caos
marítimo no meio da maquinaria do mar só vem reforçar o paradoxo
que move o próprio mundo, movente e flutuante. Este hibridismo
comparece até mesmo com a subversão da metáfora do mar como
masculino, pois “mar menstrua”, onde o masculino e o feminino se
misturam numa androginia original que remonta aos primórdios
da humanidade, a um paraíso perdido em meio à fragmentação da
linguagem.
Outro fator primordial em sua poesia é o jogo fônico, com a
musicalidade e ênfase no ritmo, como em “uma ágora larga, agora
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sob a aurora”. Se a essência da poesia é o ritmo, diferentemente da
prosa, como nos ensinou o teórico Emil Staiger, Guarnieri apesar
de ser prosaico, eleva o tom, o ritmo poético ao sabor da linguagem
musical. Como o barulho das águas, sua poesia imita o som rítmico
marítimo com toda a sua multiplicidade de acordes. Seu mar é pai e
mãe de tudo, é origem dos filhos da Terra. O mar greco-brasileiro é
dança sonora a elevar a maré das coisas. As várias camadas do mar
são reveladas, palimpsesticamente, como as escamas dos peixes. O
mar é fogo e gelo, terra e céu, é um mundo em miniatura. O mar é
trânsito entre os elementos e formas do real.
Guarnieri mostra a circularidade das ondas, seu movimento
de ir e vir “ad infinitum”. Como moto-contínuo, ele é o movimento
da própria vida, a existência-mar produz um mar existencial, o mar
que é um monstro de águas e de sais. Ele nos apresenta o que é o
mar, a sua essência e sua aparência, suas verdades e mentiras, suas
formas, como o gelo e aquilo que o circunda como os rochedos, os
penhascos, a orla. O mar pode ter limites circunscritos? O livro de
Guarnieri tem uma precisão matemática que não deixa de colher a
flor metafórica do caos no seu centro. Neste sentido, o mar pode ser
representado pelo círculo, o mar e aquilo que o rodeia, os extremos,
o centro e a circunferência.
Além da força metafórica e lírica de seus versos magistrais,
temos o poema em prosa, com sua prosa poética. Até mesmo a
estrutura de seu livro não é estática, é flexível como o mar, o mar é
linguagem, são as páginas do mar que circulam na sua obra. Nestas
páginas, também temos a trágica história do mar, com seus naufrágios
e desastres. O Kraken, terrível monstro marinho, assim como outros
monstros do imaginário mitológico e bíblico comparecem no seu
livro. Guarnieri faz um rico jogo entre o mitológico e o real, dando
realismo à imagem dos afogados. O Leviatã, monstro marítimo de
11
origem fenícia, que comparece na Bíblia, principalmente em Jó, Salmos
e Apocalipse, já foi tema de um tratado político, como em Thomas
Hobbes, que criticava a arrogância dos homens em quererem dominar
os outros e, neste sentido, Alexandre é escatológico, querendo que a
humanidade desprezível seja devorada pelo monstro num processo
de decepção e distopia do mundo. Em Jó (42, 1-2), temos: “...só sua
visão basta para abater. Torna-se feroz quando o acordam, ninguém
lhe consegue resistir face a face.” O Leviatã representa as forças do caos
querendo engolir o divino. Nossa chama de humanidade é empalide-
cida, pois os homens são predadores e ignóbeis. É desejável o apoca-
lipse e a destruição de tudo, um retorno ao caos original, já que neste
mundo aparentemente ordenado, imperam a maldade e o egoísmo.
Vejamos o que Jean Chevalier e Alain Gheerbrant dizem sobre esse
monstro marítimo: “É curioso observar aqui, caso se admita que o
mar é também o símbolo do inconsciente, receptáculo dos monstros
obscuros e das forças instintivas...” Ou seja, o mar é o próprio monstro
que reside em nós e, numa imagem dostoievskiana, nosso demônio
particular. O mar é paz e guerra, tormenta e placidez, equilíbrio e
desequilíbrio, ordem e caos: “enquanto o mar reclama, no amor/em
que pacificamente recolhe/sua parcela mais calma e ampla/à face de
espelho tão plácido e plano,”.
Não poderiam faltar neste mar as viagens, os descobrimentos
e explorações do homem, ultrapassando sua medida limítrofe para
alcançar o infinito, os abismos da humanidade: “toda profundeza
concebida pelo homem/- conquistada ou ainda inexplorada – “ Além
do mar ser miniatura do mundo, as camadas se sobrepõem, revelando
que o homem também é metonímia do mar, através de sua orga-
nicidade, de seu organismo e fisiologia: “puséssemos uma seringa
hipodérmica/a miniatura de um submarino nuclear/mergulhado em
solução fisiológica e/injetássemos corpo adentro a peça/ a sangue
12
frio, navegaria submerso”. Ou aqui: “por quanto tempo seria capaz
de estudar/nossas fossas abissais, internas,/nossas zonas de guerra,
onde glóbulos/atacassem micróbios entre outros/vírus e furtivos
inimigos batalhando/em tantas trincheiras de carne e nervo?” Neste
sentido, sua poesia trabalha com o mínimo e o múltiplo, o micro e o
macro, o mar de dentro e o mar de fora. A organicidade dos mares
que compõem o mundo.
Guarnieri produz um livro que é a própria gênese do mar, sua
genealogia com seus símbolos, mitos e histórias do mundo real, como
nosso maior cinegrafista marítimo, Cousteau. Assim, ele mistura na
dose certa o mito e a história, os deuses e os homens, o paganismo e
a geografia das horas humanas, lembrando-nos do grande livro marí-
timo de Camões, Os Lusíadas, que misturava os planos do mito e da
história, do paganismo e da Bíblia. O corpo do ser e o corpo do mar se
densificam nas memórias metafóricas de Guarnieri, que personifica o
mar como um monstro marítimo. Outro recurso excepcional do poeta
aqui em questão é a fragmentação da linguagem a partir da divisão
não só de partes dos poemas em várias páginas como de palavras no
interior dos poemas, no final e início dos versos. Essa desarticulação
revela as camadas várias dos homens que não têm uma essência, mas
máscaras cada vez mais profundas como as profundezas no fundo
dos mares. Mas o homem também é feito de fragilidade e liquidez,
a humanidade é líquida e Alexandre Guarnieri faz uma viagem pelo
mar interno dos homens, feitos de sangue e águas.
A “semântica marinha” resume a essência de seu livro e é uma
das expressões que o poeta por ora aqui estudado mostra em um de
seus poemas. Comparece o personagem bíblico Jonas também neste
“mar corporal”. As vítimas do mar representam o símbolo da morte
e da dissolução, mas também de vida, pois o sangue é a morada do
homem. Guarnieri mistura com proeza dois símbolos do mar, uma
13
referência bíblica, Jonas, com uma referência literária, Moby Dick,
através de um monstro marinho, a baleia. Temos também um Jonas
moderno e tecnológico com suas lanchas velozes e barcos tecno. Guar-
nieri expõe a exploração desenfreada no mar, com as imagens de morte
das espécies do mar. Espécies em extinção. Mesclando o antigo e o
contemporâneo, o escritor nos revela as imagens mais inusitadas e
originais. O paralelismo bíblico/literário é enaltecido, assim como o
mítico e o bíblico. Mas os oceanos produzem suas vinganças com seus
“édens submersos”. A natureza numa imagem de retroalimentação dá
de volta o que recebe dos homens com seus náufragos e desapareci-
mentos. A justiça é da natureza não dos deuses, com sua lei de retorno:
“na justa aplicação de uma sentença”. O mar apresenta, dessa forma,
o norte e o desnorteio, o caminho e o descaminho, o conhecimento e
o desconhecimento, a viagem interior do ser, o abismo no qual o ser
se mira. Mar é Narciso, espelho, o líquido e o sólido, carne.
Tudo o que o mar contém é uma síntese dos símbolos, das histó-
rias e geografias do mar. Até mesmo o pirata comparece por aqui. O
mar é ele mesmo e seus desdobramentos, outras formas de águas, como
os lagos, o corpo. Leviatã é ele mesmo e outros ideários de monstros,
como o monstro do Lago Ness também. O livro de Guarnieri apresenta
estes espelhamentos. Os monstros revelam seus arquétipos ao longo
das eras, como Godzilla, as feras, os demônios que nos assustam e que
são as forças inconscientes incontroláveis dos homens. A dor humana
deveria ser transfigurada pelo monstro. Inversamente, não é um anjo
ou uma figura celeste que nos vai salvar, mas o próprio monstro que
há em nós. Nossa megalomania, nosso orgulho, aparece a partir da
letra maiúscula muito bem colocada num dos poemas do autor em
“Homem”, reforçando nossa mania de grandiosidade. O espaço em
branco entre as páginas e os espaços digitados em fragmentação só
reforçam o pleno e o vazio, a nossa capacidade de reflexão e silêncio.
14
O abismo e preenchimento do mar e da própria linguagem. A autoi-
ronia também esta presente com a própria autorreflexão do monstro
que se personifica como um indivíduo, dessacralizando o símbolo
do homem perfeito. O monstro é o caos anterior à organização do
mundo, trevas e zero. Guarnieri quer refundar o mundo pelo mar. É a
partir dele que pode ocorrer a verdadeira mudança. Atingir a huma-
nidade, o paraíso perdido pelo monstro é a grande invenção poética
de Guarnieri, subvertendo as imagens de perfeição e sublimidade. O
sal de Leviatã quer recriar a origem, o abismo, o antes, uma anterior
linguagem, a linguagem guarnieriana. Portanto, Guarnieri no seu
novo livro retoma toda sua linguagem simbólica anterior num novo
fundamento que vai submergir a partir de naufrágios linguísticos,
reinventando uma nova ordem caótica, unindo a ordem e o caos num
mar cheio de desejo de humanidade, o Leviatã e seu sal vão remexer
nas nossas zonas de conforto, cortando com acidez e reflexão nossos
olhos cegos de Narciso que quer enxergar além das profundezas do mar
agitado, trazendo a esperança de um mundo pautado pela linguagem
oceânica. Guarnieri traz para nós leitores uma linguagem nova e plena
de símbolos e significados que só os olhos atentos podem ler com
beleza e inventividade. Um livro realmente desafiador para nossos
mares moventes de dentro.
15
“[...] o homem brinca de deus mas vive no tempo.
e no mar ele nomeia seus medos: mar morto, mar negro,
mar vermelho. o homem é água e enredo.”
Marcus Fabiano Gonçalves
~ /hum ~
21
~ /dois ~
22
~ /três ~
23
~ /quatro ~
24
~ /cinco ~
25
~ /seis ~
26
o burgo de gelo (i)
28
penhasco
29
o burgo de gelo (ii)
30
orla
31
arquipélago
32
(::: tempestas ad aeternum :::(
34
extremidades de ventos severos ( intensos ( nervosos ( venéreos como
no inferno ( são ventos por dentro ( tremendos ::: em alto mar as mais
baixas temperaturas se amarram a uma larga e unitária mordaça :::
o clima declina em crise física ( toda altura é esta estranha úlcera
convulsa como se fosse ininterrupta a pintura de William Turner
::: “por quanto tempo tufão tão nefasto estará afastado da costa?” :::
os metereólogos não logram resposta ::: na pura fúria do Caramuru
( todas as danças da chuva juntas ( em belicoso conjunto proposto
por tribos ocultas ( avultam e nublam o horizonte profundo ( para o
absoluto assombro de reinados navais ( barqueiros nômades e nave-
gadores autônomos ( e nunca ( jamais ( saberemos para onde ( ou
até quando ::: e agora, Joze (Pereira)? se Calicute não te escuta ( se
o pombo-correio jaz sepulto em sua miniatura de tumba ( se resta
anêmico o único anemômetro ( se está louco o lôbrego pluviômetro :::
e agora, Vasco, Pero Vaz de Caminha? a quantas anda nosso Caminho
das Índias? ( para que te presta ( tempestade eterna ( senão para
frustrar nossa conquista marítima mais íntima? senão para derrubar
sobre nós ( além da maresia carnívora que penetra pela fresta todo o
dia ( sua voz ressoada na foz dos trovões e iracundas colunas d’água
ligando o mar à mais aérea nódoa,
35
o barco na garrafa
36
pois saibam, sujos marujos,
que até assim se naufraga,
e onde esperaríamos o gênio
realizando desejos, resta a
miniatura delicada da fragata
prensada através do gargalo,
presa ao interior da garrafa;
37
ínsula na névoa
entregue à queda
38
o burgo de gelo (iii)
| de réptil
(?)
39
(O) (O)\V/(O) |\N\|(O) (O)\V/N/I|)
(((((( ))))))
((branco como osso
((um hibernáculo monstruoso
((ovo do alien no óvni((o ovo da ave
na nave((mas isso é o que não se sabe
(entranhas do cálcio enxertadas ao claustro
(((hermético cárcere lacrado à quase-esfera
(hibris aprisionado à ostra (alabastrina cápsula
para guardar o âmago na câmara ((membrana
clara o invólucro ou casulo (( óvulo recluso )) na
fragilidade do vidro ((( sono anônimo do bicho )))
no ninho ((( ainda mínimo ((( escura urna fecunda
o módulo úmido dentro ((útero ( ou ) átrio)) globo
inoculado à cópula))núcleo))novo ou podre))o corpo
geométrico de uma única pálpebra integral)) vísceras
o revolvem))porque está vivo))bomba-relógio))objeto
biológico cuja origem sugere a viagem ao zero))e uma
antiquíssima ou nova espécie)) mas isso é o que não
se sabe))até que rache))choque))até que mostre))
se animal alado ou aquático))lagarto ou pássaro))
escama ou pena))asa ou barbatana))ou outro))
mutante)) transmutado)) serpente ou ave
Fênix))que saia de repente))e que do ovo
ecloda)) de novo)) este Oroboro))
(((((((((((( ))))))))))))
40
=( facehugger )=
a casca deflagrada
— da superfície lisa
à profundidade áspera ─
o resto, o rastro
— na água ou no raso ─
rastejante ou alado
e instintivamente faminto
por nossos desejos;
41
sibila, vilipendiado,
tal vampiro anfíbio
( fibroso xenomorfo )
desde sempre alojado
em nosso fígado;
até quando
fingiremos desprezar,
interno \ monstruoso
( a carne soterrando
o pântano do sangue )
o nosso próprio
urro primitivo, a voz
desse bicho, seu
violentíssimo
grito?
42
PARTE 2: MARE NOSTRUM
romanche
45
o aparato ligado para assegurar o voo,
mesmo que apenas por alguns segundos,
desligasse, trazendo à realidade a pane,
justamente sobre a fossa de Romanche,
ao contrário, bem abaixo, no coração
aparentemente cálido de todos os mares
interligados, essa multidão de monstros
afogados que os aguarda agarraria com
unhas dentes garras bocarras escan-
caradas toda carne lançada ao Kraken
que mastigaria sangue e osso, sólido
e aquoso, cada parte estraçalhada,
da incauta turma a desafiar, ingênua,
o intransponível abismo entre o novo
e o velho mundos | até que um dos mem
bros do grupo de passageiros, sacudido pelo
solavanco causador d’algum vácuo dentro
da aeronave sente, angustiado, a catapulta
que de dentro de seu pesadelo horrendo
o empurra do sono à vigília, da coluna
à nuca, e desperta, com um berro seco,
assustando a todos, mas estranhamente
sereno, no domínio do seu próprio medo >
corta para > tudo vibra [!] todos gritam >
[ é quando caem as máscaras de oxigênio ]
46
a costa amalfitana
~/
47
~ ~/
48
~ ~ ~/
49
~ ~ ~ ~/
50
mágoa no sal
51
seu único estratagema é fazer
com que todos os descendentes
e filhos, vis, primeiro derramem
todo sal marinho circulando
em seus organismos ímpios,
em seus próprios corações e almas,
toda e qualquer lágrima revele enfim
a presença latente de sua própria
saliva grossa e espumosa, a baba
escorrendo pela barba – o gosto
do sangue também é salgado e
metálico – como ondas largas
e pavor e desencanto, ameaçando
pouco a pouco o ancoradouro,
outrora tão seguro, de nosso júbilo
e regozijo, todo arroubo mais pro
fundo, derrotado rumo ao nada
52
viagem fantástica
53
puséssemos numa seringa hipodérmica
a miniatura de um submarino nuclear
mergulhado em solução fisiológica e
injetássemos corpo adentro a peça
a sangue frio, navegaria submerso
com energia suficientemente gerada
para zelar sempre, sem erro, sem medo,
pelo mais perfeito funcionamento?
54
por quanto tempo seria capaz de estudar
nossas fossas abissais, internas,
nossas zonas de guerra, onde glóbulos
atacassem micróbios entre outros
vírus e furtivos inimigos batalhando
em tantas trincheiras de carne e nervo?
55
no fluido da medula, no sangue
que circula, tanto Nautillus
quanto Proteus completariam
a inusitada esquadra : as vinte mil
léguas submarinas enfim vencidas
na saliva sob nossas línguas...
56
calypso
57
orquídeas submergidas
eletrificam a língua sibilina
das enguias que se esquivam
das lanternas ou dos esguichos
de alguns exímios escafandristas
e fogem
para o raio que as partam
nota:
58
o antro do escafandro
59
que hálito pútrido,
resiliente, se desprende,
da superfície dúbia
de tão abstruso suco?
60
nenhuma ilha à vista,
apenas a caverna da carne
à qual atando-lhe,
aprisionado, com nervos
e ventosas, abrem-lhe no rosto,
um único observatório
e o ilusório voo
— como o do livre pássaro ─
só lhe é possibilitado
em sonho, entretanto,
convencido pela notícia
de que haveria outra saída,
abre nos pulsos, mortíferas,
duas estrias rompidas,
por onde todo molhado evade
e quanto mais seca,
mais lhe convidam
tais escotilhas abertas...
61
bile & enigma
62
martírio
63
enguias albinas símiles a colibris
deslizam suas asas de barbatana
ante a dança surreal de anêmonas
à sanha de todo o atônito plâncton
jorrado do nascedouro ao oceano;
64
das marés da pele outrora a re
pelir o suor em tempo quente ( as
praias banhadas por suas lágrimas )
à sanguínea lama que murmura lá
no escuro do fundo em tumulto ~
do mar corporal onde se ganha
e perde toda sôfrega esperança:
de terra firme e porto novo
~ no outro ~ ao eloquente pélago
sussurrando a ladainha de sua
lamuriosa romaria angustiada ~
fracassado finado de encontro ao
nada, boiando entre navios-fantasma;
65
o cadáver devorado por tubarões
largos e oblongos robalos a rebolá-lo,
cada globo ocular um manjar servido
na bandeja da caveira, alimentando
miniaturas de cardumes beliscando
a polpa ~ do olho ~ pouco a pouco,
até que a carne toda se abra
nessa cicatriz contrária que alastra
seu destino final ao máximo, a total
dissolução no sal; o mar aqui como
o maníaco meticuloso aplicando ácido
muriático ao suculento defunto absoluto
de sua repetida vítima preferida;
66
todo ar há tempos exaurido, o corpo
sangra no abismo do martírio ~
a palavra mar somada ao metafórico
tiro desse afogamento explícito ~
assistido pelos que miram do tomba
dilho um homem debatendo mil cilindros
inflitrados pelo viscoso líquido salino
que lhe extrai o viço/ o ritmo/
o abafado grito ~ todo oxigênio
expulso num único esguicho, remoendo
os trépidos membros por sob
o espelho d’água, que finalmente acalma
em derradeira lástima e cala o rebuliço,
o cio, o som outrora vivo, do sino,
o gorgolejo que dubla na voz um grito,
mudo e úmido, nublando o orgulho;
67
alguém ~ nenhum outro ~ ou ninguém mais
pode contar do mar ( seus atrasos /
seu retardo ) que este mártir afogado
tão íntimo da água gelada e salgada,
as algas a enrolá-lo como mortalha
jamais servirá para mais nada, concluído,
desígnio findo entregue ao limbo
68
Mob-Drift Moby-Dick
69
são milhares de cachalotes
que reagem contra a pilhagem de
uma geração de clones de Jonas,
tão ou mais vorazes que o do
gene original que, tendo apri
morado os métodos de tocaia em
lanchas velozes e barcos tecno
lógicos, despejam novos arpões
entre nervosos anzóis modernos
alvejando no lombo ou no cérebro
estes úmidos soldados de Netuno,
assassinados um a um sem subterfúgio
ou escrúpulo à mais selvagem baleação;
70
vil Moby Dick, eleita por Melville como inex
pugnável! quantos incautos Jonas à procura
de refúgio no tormentoso estômago de um hor
rendo e amaldiçoado monstro, na cárnea caver
na ou claustro onde um tesouro oleoso se enterra
à mercê da cobiça dos homens cujas cidades
se erguem ( e se iluminam ) com os despojos
de tantas baleias massacradas por baleeiros
cegos com medo do fundo do oceano e DELA:
alva contra a luz do dia, negra à luz da lua cheia,
vingadora de todas as outras, austrais, minkes,
orcas, francas do atlântico norte, azuis, brancas,
jubartes, cinzentas, rorquais enormes em sór
dida mortandade, enérgicos cetáceos caçados,
morticínio de golfinhos, carnificina marina!
71
os longos órgãos acompanhando o corte
longitudinal de tão encompridado torso,
a cabeça como o único martelo aterrador
destruindo botes e espalhando cadáveres
de afogados como um mestre desferisse
com ira o irrefreado golpe contra o tabu
leiro de xadrez, sustando então o xeque-mate,
a espadaúda cauda afastando os espadartes
quando o golpe aplaca a sanha dos cardumes
e faz dos homens, antes maus e implacáveis,
o mero plâncton gelatinoso ao sabor de mil
ondas que espalham seus despojos, perdidas
tábuas e fraturados mastros tremulando,
enovelados panos e lânguidas cordoalhas
aportando nas praias de longínquas ilhas;
e nunca saberão, pobres diabos, pelo que
por qual motivo exatamente deram a vida
72
a noiva das marés
73
lúgubre, Cthulhu também reluta
( oculto/ recluso ) ante o compli
cado cálculo dos próprios tentá
culos e neles se entrelaça na tra
ma que entrança barcos e náugrafos
contabilizando resultados brutais
sob o exultado álibi para encher
tamanha pança, tantos torçais
74
que venha a ferina fêmea, metade-
peixe-metade-gente, venha a última
das filhas de Dóris e Nereu onde
quarenta e nove irmãs a precederam
e exaspere em delírio seu lívido balé
marinho ante o vindicativo leitmotiv
75
que incite a sede, instile seca
a saliva, prometa oásis na salina
enquanto a ceia rareie à mesa ─
arenque e carne de baleia, atum
e burbom com fartura ─ deste jurado
marujo que definha à mingua recri
minando a carestia ao estoque de rum
que esvazia e mine seu melhor juízo,
rasgue o linho do mapa antigo, es
traçalhe a carta náutica, na bússola
destruídas a agulha e o ímã,
o norte destituído do caminho,
o sul somado ao mesmo prejuízo
76
e assemelhe-se na cara a aparição
ao camafeu de uma paixão passada,
que o capitão, apegado, guarda
sempre junto da costela quebrada
acentuando a dor, que não passa à cres
cente umidade dentro e fora da fragata
77
já vai um outro, do tombo ao poço,
corsário louco, pirata morto
que alucinou sob a lua, quiçá
consumido pela culpa ( o revanchismo
secreto sob o signo de um terrível
feminicídio ) seu cadáver à deriva
vai sumindo, absorvido por pei
xes carnívoros, além da linha
do horizonte ou do destino, indo,
muito além do tombadilho
78
no Lago Ness
se realmente modelada
pela última era glacial,
que segredos guarda
esta lúgubre lagoa negra
gravemente postada
entre a gratuita turfa
e tamanho musgo, neste
terraço ermo e distante
da mais absurda estatura?
79
se oriundo da falha
geológica, se originário
ou não d’alguma explosão,
que insondável criptídeo
aquático habitaria esta frígida
bacia? ou teria ali
sobrevivido, único fugitivo,
um sauropterígeo marinho,
80
lâminas de barbatana, que
mandíbulas largas sob águas
ácidas ou salgadas estará
disposta a usar como qualquer
pistola rápida posta para fora
exigiria necessário, o disparo?
como qualquer espada rara, caso
sacada, posta além da bainha,
cobraria seu sacrifício de sangue?
81
mesmo que nada aconteça,
e que ela sequer apareça,
mas apenas à distância,
longe demais, nos espreite
estará ainda lá – sob as guelras
da besta-fera, a guerra –, e em
nós, sob nossa pele, entre tantos
outros monstros à espera,
apenas o receio em potência
82
Gojira redivivo (credo para Godzilla)
83
trôpego monstro capaz de atro
cidades, destrua-nos a todos nós
dia após dia, nas mais populosas
metrópoles, entre outras aldeias menores
84
quimera marinha, banhada pelo lacrimoso
halo de toda nossa mais crua agrura,
rebola teu hálito de peixe gorduroso
por sobre nossa suposta bravura
85
venha a nós, arauto da fúria divina ou demoníaca,
mostra-nos atrás da bocarra tuas amígdalas,
socorre e recolhe nossa sombra moribunda
com tua saliva, acode-nos da insípida sina
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com teus enormes olhos dalguma cobra ancestral das mitologias
espreita as pequenas vilas, são repositórios de vítimas, saboreia
os cadáveres crocantes de tantas crianças, banqueteia-te de nós
a céu aberto, temos deliciosos ossos, são órgãos nosso recheio
87
repele a humanidade absoluta como o único e detestável
verme, cura nossa febre, nosso ego severo, atroz é nosso cérebro,
revela em nós todo demérito enquanto espécie sobre a face da Terra,
parte estes exércitos ao meio com teu semblante velho e austero
Godzilla!
88
o monstro por ele mesmo
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sou o perímetro submersível em
qualquer golfo do globo
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sou o que encorpa ou dilui,
dependendo do centro onde
se acoplem meus tremendos
círculos de salitre, lâminas
duma foice helicoidal, à sanha
de minha única glândula salivar;
e antes mesmo
do derradeiro suspiro,
termina
91
o sistema nervoso do Ouroboros
os olhos do dragão
são mil órgãos sexuais
92
a fera que habita
o nosso plexo,
criatura obscura,
prefere a lua
reluta vir à luz
arrasta a asa
a carcaça
de volta ao poço sem fundo
de onde nada escapa
de onde nunca
deveria ter saído
albina ~ sibilina
para caçar
e mastigá-la,
na própria cauda
93
avante, Leviatã!
94
lagostas ~ polvos ~ lulas
entre medusas-da-lua
( que estrebucham )
enquanto calamares
espargem nanquim
do mar à página
em nossa essência
95
Nemo
96
[“Capitão! Meu capitão”, Nemo,
toma o timão | ergue o remo!]
97
mare nostrum
navegar é preciso,
desde que de encontro
ao próprio istmo,
a própria cisma,
ao próprio abismo
de imprecisos signos
sob imprevisto clima
de silos – a um só tempo
marinhos & íntimos –
abrem-se comportas & ninhos
de áqueos símbolos
& delírios arquetípicos
navegar é preciso
desde que
para naufragar
no próprio enredo
98
mensagem
99
a garrafa é atirada n’água
com a força que dobra o
braço quase até quebrá-lo
mas resiste em riste
ao vê-la, longe ( o âmbar )
afastar-se das margens
o brilho verde do vidro
ondulando na espuma branca
anos se passam
décadas em que
lhe crescem cabelos
unhas pelos caem
dentes subtraem-se
à avara cara amarelada
( magra / insone )
por desvario ou fome
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e como miragem
vinda do horizonte
não sabe bem de onde
vem voltando lenta
a mesma garrafa
a mensagem ainda lacrada,
incólume e seca, abraçada
pelo vidro, protegido papiro,
até rolar na areia
para perto de onde
é possível vê-la
e quase lê-lo, dentro,
escrito, o grito silente
( um livro inteiro )
grafado por desespero
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é quando aprende:
peremptoriamente
não há nada além
da curva do futuro
da fronteira da esfera
além da espera e do mundo
que decerto inundou todo
apenas o inominável monstro
devora com gula
as sobras à deriva
deglute ~ debulha ~ engulha
e a um só estoque os engole
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Quetzalcoátl
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Composto em Minion Pro e
impresso em Pólen Soft 80g/m²
em São Paulo para Editora Penalux,
em outubro de 2018.