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Damián Cabrera1
Génesis, 3, 14
Génesis, 3, 19
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Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Estudos Culturais da Escola de Artes, Ciências e
Humanidades da Universidade de São Paulo. damiancabrera@usp.br. São Paulo, Brasil.
ALTO, PARANÁ
Marilý Morales
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Instrumento musical de cordas utilizado pelos Mbya Guarani.
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Para marcar com algum tipo de selo sua entrada, você recorre aos estandartes ideais. Com risco de soar
ingênuo e romantizar uma ausência, você deixa como senha que estas primeiras aparições no texto são
expressões fantasmais: uma presença residual que subsiste e que retorna potenciada para assombro (uma
assombração). São também as primeiras palavras de um testemunho, cuja verdade pode ser questionada, e,
porém, também ratificada por documentos. Mas a tarefa aqui é invocar essas aparições.
mundo dos homens, Thacker fala das transformações efetuadas nesse mundo a partir do
trabalho dos seres humanos:
On the one hand, we are increasingly more and more aware of the world
in which we live as a non-human world, a world outside, one that is
manifest is the effects of global climate change, natural disasters, the
energy crisis, and the progressive extinction of species world-wide. On
the other hand, all these effects are linked, directly and indirectly, to our
living in and living as a part of this non-human world. Hence
contradiction is built into this challenge — we cannot help but to think of
the world as a human world, by virtue of the fact that it is we human
beings that think it (THACKER, 2011, p. 9).
Assim como algumas das primeiras inscrições literárias do Alto Paraná fizeram o
desenho do território em chave de sublime desbordante4 — tais como a descrição de Barrett
do espaço labiríntico da selva nas suas crônicas —, existe agora um passo dessa descrição
da exuberância para um desenho desolador. (Não será à toa, também, que o primeiro filme
alto-paranaense, Gritos del Monday (2016), seja um filme de terror). Assim, tem existido
no mundo uma infinidade de textos literários que fazem o desenho do mundo a partir dessas
visões da destruição, da dissolução do mundo — desde textos bíblicos até livros futuristas
como as Crônicas Marcianas de Ray Bradbury —.
A capital do Alto Paraná é Ciudad del Este. Para fundar a cidade foi necessário
fundar a colônia, o colonial. O sistema de produção que predominou nesta beira do rio
Paraná, desde faz algumas décadas, tem reproduzido — vale dizer, cultivado — um arranjo
de corpos em disposição para um trabalho. Inseminado com os argumentos dos primeiros
colonialismos que fizeram uma estratificação global, o colonialismo paraguaio tem
reproduzido um fazer colonial no seu avanço por territórios outros, com uma violência
cega. O que tem acontecido é que se fez desaparecer o cenário sublime onde a vida e uns
modos de vida eram possíveis, para uma substituição. A economia da reciprocidade e as
formas políticas democráticas que tinham florido neste espaço, e as flores que derramam
perfume e cor — ou as penas floridas — foram substituídas pela beleza des-familiar da
lavoura, e finalmente com a uniformidade da plantação de soja na que um dia fosse selva; e
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Ver KANT, Inmanuel. “Crítica del juicio” seguida de las observaciones sobre el asentimento de “Lo bello
y lo sublime”. Alejo García Moreno y Juan Rovira (trad.). Disponível em:
http://www.cervantesvirtual.com/obra-visor/critica-del-juicio-seguida-de-las-observaciones-sobre-el-
asentimiento-de-lo-bello-y-lo-sublime--0/html/
por que não falar dos pastos para alimentação do gado no que um dia foi o Chaco, uma das
áreas com maior desflorestação no mundo. E ao mesmo tempo, há uma cidade que floriu.
O desenho urbano de Ciudad del Este antecedeu a vida urbana, porque era urgente
fundar. Mas sem as fundações sólidas da necessidade (sem que a trama de ruas e edifícios
administrativos respondesse a uma necessidade real) e sem a perícia para uma vigilância
dessa natureza, o crescimento da cidade foi um transbordamento. A cidade entrou em
erupção e cresceu como falha desde sua violência fundadora. A cidade feia. A linha
desenhada pela Rodovia Internacional número 7, Dr. José Gaspar Rodriguez de Francia,
constitui uma das primeiras penetrações violentas; a doma do rio Paraná com a construção
da usina hidroelétrica de Itaipú, crime que inferiu a morte das Sete Quedas (crime fundador
da modernidade paraguaia); a Ponte da Amizade foi a assinatura lapidária de uma condena
inesperada: um tratado, por metonímia, que condenou uma história a sofrer suas novas
datas turbulentas, torrenciais e incendiárias5.
O horizonte transparente que a plantação de soja desenha, homogêneo e dual, entre
o azul e o verde, busca iluminar todas as manchas e protuberâncias da superfície. Fazendo
agonizar sua própria diferença, a sociedade paraguaia projeta ingenuamente seu
colonialismo no colonialismo procedente do Brasil, e o potência: o resultado é a
aniquilação de tudo aquilo que é radicalmente diferente e paradoxalmente, ao mesmo
tempo, semelhante; significando a própria anulação, a própria morte. Mesmo que um
paraguaio da cidade o ignore, a morte de um campesino em Curuguaty ou de um Mbya
Guarani em Yva Poty é a morte de um flanco da sua memória (a amputação de um braço
que depois retorna como membro-fantasma com uma coceira impossível de coçar).
Mas a cidade feia é uma cidade de muitas línguas. Há uma comunicação possível e
comemorável na comunidade de Babel. A contiguidade de diferenças que se ameaçam
mutuamente pode ser uma possibilidade de persistência, de alternativas: de resistência. Ali
onde nenhuma língua é A Língua, são possíveis todas as línguas. Até a interseção pode ser
festa, quando em duas línguas ao mesmo tempo é dito o poema, e inclusive quando numa
só língua falamos em outras. Mas sem baixar guarda, porque a ameaça do abstrato tem
impactos físicos.
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Eis o conto La doma del jaguar de Hugo Rodriguez-Alcalá, como outra expressão do mesmo sistema: a
natureza e um modo de interação com ela, subordinados por uma razão moderna, capitalista. RODRIGUEZ-
ALCALÁ, Hugo. La doma del jaguar. Asunción: El Lector, 2006.
Aqui a sua tese: Ciudad del Este é uma cidade cheia de fantasmas.
Essa cidade na beira de um rio.
No Alto Paraná a relação com os rios têm sido dramática. Mas talvez o encontro
com eles na sua natureza não esteve isento de dramatismo: seus caudais portentosos
coroados por cataratas (e algumas delas sobrevivem em ambas as beiras do Paraná do qual
são subsidiários), seus penhascos e sua urgente flora ictiológica. Vale dizer, a relação que a
modernidade no Alto Paraná têm tido com seus rios foi traumática. Não falta dizer que seu
desenho estruturou a colonização; abundantes seus contornos, porém, as sociedades que são
no Alto Paraná — as visíveis — fazem hoje sua vida mais à margem deles do que nas suas
margens: e uma forma primordial de relacionamento com eles não dista dos modos em que
tem sido interpelada a selva (havia que fazer a vida fora da selva, e houve que desterrá-la
para fazer a vida no seu lugar): a doma e a exploração, no fim, sua negação e escravização.
O caminho dos rios, talvez pouco transitáveis, tem sido substituído por uma prótese:
uma rede de rodovias que imita suas direções, correndo paralela a eles; o milagre de sua
energia tem sido objeto de traduções. A vergonha só foi possível graças à negação de uma
língua; e o mesmo código que tem regido para silenciar a linguagem da natureza serve para
silenciar outras línguas e outros modos de ser possíveis no lar das línguas: a doma e a
exploração, no fim, sua negação e escravização.
Porém, pelo caminho do rio, em particular, há modos de fazer e modos de viver em
trânsito; por imaginar um diálogo possível com estes, pode-se lembrar da anedota de uns
estudantes de filosofia que desceram até as beiras do Paraná para contrabandear cigarros,
atravessando de um lado para outro da fronteira, burlando uma vigilância fronteiriça:
burlando uma vigilância.
O trabalho marginal de passar mercadorias de uma margem para outra do rio —
esse caminho marginado — pode servir de desculpa para falar sobre um terreno de trânsitos
que se estende além de sua franja escorregadia, e fundamentalmente aquém do Paraná: a
fronteira. E sobre esses controles fronteiriços.
A falsificação pode ser também essa outra coisa que é um exercício crítico: copiar,
reproduzir, falsificar, é pôr em crise os estatutos de legitimidade e propriedade capitalista
sem sair do capitalismo. Minar desde dentro de um espaço delimitado por legitimidades que
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Gíria originada e desenvolvida em Buenos Aires, Argentina.
acabam impondo uma taxonomia das práticas produtivas e das práticas de consumo: nelas
se abre a circunscrição das unidades autorizadas a produzir e daquelas autorizadas ou
habilitadas para o consumo; cindidas das entidades reprodutoras bastardas e dos sujeitos
inabilitados para o consumo do original — privado a uma minoria —. A falsificação é
perigosa em tanto desestabiliza essa taxonomia, permitindo que através da reprodução
incessante os produtos do conhecimento humano cheguem às massas. Já não importa que os
selos de garantia sejam inexistentes, ou que a não originalidade do produto possa ser
verificada: se bem o valor capital simbólico do produto como marca de classe estaria fora
de um alcance (mesmo que possa sobreviver pela similitude que a mimese permite) a
funcionalidade material, manual, prática do objeto é alcançada.
FRONT3IRA
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Nome dado aos micro-contrabandistas.
língua, traindo a autoridade. Como seja, o contrabando de um lado para outro do rio tem
consequências diversas.
A palavra fronteira, na sua etimologia, remete a uma verticalidade, mas é possível
pensa-la como uma franja horizontal (mas, não é também o horizonte o círculo que
contorna?). Mais preciosa é a palavra espanhola orilla, que do latim ora (borda, extremo,
limite, costa) está baseada em os, oris (boca, voz, entrada, abertura). Fechamento e abertura
ao mesmo tempo, a palavra está aparentada com outras como oráculo, orifício e oração8.
As terras de borda são rodovias de duplos, múltiplos sentidos: e no extremo Leste do
Paraguai há uma abertura para a entrada e para a saída. Há ali uma boca simbólica (pode ser
boca, mas também qualquer outro orifício do corpo) para uma penetração: mas a penetração
é sempre ambivalente, pois o membro que penetra é ao mesmo tempo penetrado no interior
de um corpo, por fluidos e afetos. A palavra também é penetrada: existe nessa cópula um
intercâmbio de fluidos, mas sobre tudo de fluxos de sentido que tornam o nome instável.
Jacques Derrida reflexiona a partir da obra de Paul Celan sobre uma palavra,
Schibboleth, e as ideias e imagens, os gestos implicados nela:
8
Assim, os orifícios do corpo, todos os orifícios do corpo, são fronteiras de entrada e saída.
sempre expressões possíveis num lugar e numa data, segundo os sujeitos e as forças que
permitem sua aparência: ausentes estes momentos, estas instâncias e suas forças, as
expressões do espaço mudam, assumem novas formas, assim como o sentido.
É por isso que as metáforas da fronteira a descrevem em múltiplas chaves: a
fronteira se expressa segundo determinadas condições e segundo os olhares. Assim, a
fronteira como não-lugar é análoga a descrição foucaultiana de espaço heterotópico, um
espaço que pode ser radicalmente outro ou um espaço destinado a desaparecer: instável; ali
onde é a multiplicidade, há incompatibilidades compatibilizadas: “Em geral, a heterotopia
tem como regra justapor num lugar real vários espaços que normalmente seriam, ou
deveriam ser, incompatíveis” (FOUCAULT, 1966). A fronteira como ponte fala da
possibilidade de trânsitos. A fronteira como encruzilhada fala mais de cruzamentos antes
que de trânsitos: da possibilidade de uma marca, a impressão que a tensão intensíssima
pode deixar sobre um corpo, as múltiplas crises e interferências possíveis, felizes ou
infelizes.
E ali aparece diante de você, e da sua data e as forças que te encurralam, a Tríplice
Fronteira em suas pontes, na fixação instável de seus lugares, e sobre tudo na sua
encruzilhada. E você volta para a orilla (para a beira, a terra profunda). Se se tem dito que
a palavra limite é ineficaz para nomear estas secções de abertura/fechamento, e se
etimologicamente a palavra fronteira, também — dado que sua etimologia remete à ideia
de frente —, alude a uma verticalidade, como um muro, que beleza mais eficaz pode-se
pretender além da palavra orilla? Provavelmente muitas, mas eis ali um lugar para pensar.
VISÕES DO INFERNO
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Para uma genealogia destas representações infernais ver CABRERA, Damián. “Notas para representarse.
Decires em frontera” In: ARAUJO PEREIRA, Diana (org.). Cartografia Imaginária da Tríplice Fronteira.
São Paulo: Dobra, 2014, e em CANTERO, Marina. Cartografias de frontera. Asunción: Viento Fuerte, 10 de
dezembro de 2014. Disponível em:
http://www.vientofuerte.com/news/2014/12/10/cartografias-de-frontera/
NOMES
BABEL
la lengua madre no es una sino más que una; es decir, que nunca es una
sola porque en ella habitan, en una simultaneidad problemática, otras
lenguas que revelan la presencia en su interior de una alteridad radical que
hace posible la propiedad de y en la lengua (SARACENI, 2012).
Qual é a língua dos paraguaios desta beira? Em que língua escolher falar(-se) se
habita em duas? Os distintos estratos aos quais a diglossia consigna ao espanhol e guarani
estão determinados por uma história de colonização e subordinações violentas dos falantes
da língua majoritária em função subalterna: o guarani. Ainda hoje, ser falante de guarani é
estar exposto a um mundo de hostilidades e exclusões. Talvez por isto, conjugado com
certos estatutos de invisibilidade e isolamento culturais associados ao Paraguai e a história
peculiar das línguas, o espanhol seja a língua hegemônica na hora de escrever, o pouco que
tem se escrito no Paraguai. Já Augusto Roa Bastos e outros autores tinham descrito o
estranhamento que acompanha a escrita em outra língua; mesmo quando se escreva em
espanhol, diante da língua escrita, é possível que alguém se enfrente a língua própria como
diante de uma língua estrangeira. Custa compreender que para muitos paraguaios o
espanhol seja uma língua estrangeira, mesmo que falem ou escrevam nela; como para
tantos representa falar ou escrever em guarani. “Dali o estranhamento a priori da idéia de
um escritor “desabrigado””, diz George Steiner, “de um poeta, romancista, dramaturgo não
completamente em casa na língua de sua produção mas deslocado e em hesitação na
fronteira” (STEINER, 1990).
A escrita em Babel resulta ainda mais inquietante quando nos enfrentamos ao
fenômeno das escritas que se produzem abertamente no espaço fronteiriço de confluências
e contaminações, de intercâmbios e cruzamentos. A literatura popular já tinha no jopara10
uma expressão profanadora dos limites aos quais o castelhano e o guarani estavam
consignados pela norma; e poetas como Emiliano R. Fernández popularizaram canções
cujas letras brincavam com a representação da fala na qual as línguas aparecem misturadas,
ou iam além forçando misturas com fins poéticos. No século XIX os jornais de trincheira
tinham feito uso de estratégias similares (aliando-se, inclusive, à imagem). Mas com a
busca de modernidade na literatura do Paraguai, estas interferências supuseram problemas
que foram resolvidos de modo diferente por diversos autores.
Enquanto Gabriel Casaccia defendia uma representação literal da fala (muitas vezes
ressaltada nos seus diálogos em letras em negrito e ainda com notas de tradução no rodapé),
Augusto Roa Bastos falava de uma escrita em castelhano, internamente desenhada pelo
guarani. Carlos Villagra Marsal levou a um limite este programa no seu Mancuello y la
perdiz (1965) no qual o castelhano é torturado pela sintaxe do guarani. Enquanto na poesia
contemporânea, a obra poética de Jorge Canese foi uma das primeiras experiências urbanas
nas quais o guarani se misturou com o espanhol prolificamente. No final dos anos 80,
Canese entrou em contato com o escritor curitibano Wilson Bueno, que publicara em 1992
seu romance Mar paraguaio, obra na qual castelhano, guarani e português se misturam
criando uma obra profundamente lírica. A experiência de Bueno impulsiona de certo modo
a obra de Canese, e ambos se tornam referência para uma geração de escritores das Três
Fronteiras que fundam uma língua literária denominada portunhol selvagem.
Algumas expressões literárias desta Babel nos empurram a um horizonte no qual a
legibilidade do texto parece quase proibida, e onde o que é possível ler é o gesto da mistura,
— ora o desenho dos limites, ora o apagamento deles —, habilitando a possibilidade de ler
na pura forma do texto a encruzilhada fronteiriça e talvez um horizonte utópico da língua.
Mas também é possível afirmar, especulando, que nessa paisagem da(s) língua(s) está
cifrada a paisagem do território em processo de erosão.
Sobre a possibilidade de compreensão ou de tradução destes textos para uma
sensibilidade nas chaves convencionais, Jacques Derrida lança uma interrogação:
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Mistura de espanhol e guarani. Nome também de um prato que inclui uma grande variedade de produtos
das hortas populares. Basicamente significa pintado, manchado.
Notemos um dos limites das teorias da tradução: tratam com bastante
frequência das passagens de uma língua para outra e não consideram
suficientemente a possibilidade para as línguas, mais de duas, de estar
implicadas num texto. Como traduzir um texto escrito em diversas línguas
ao mesmo tempo? Como “devolver” o efeito de pluralidade? E se se
traduz para diversas línguas ao mesmo tempo, chamaríamos isso de
traduzir? (DERRIDA, 2006, p. 20).
PAISAGEM DA SOJA
CINEMA SUBTERRÂNEO
FANTASMAS
O trabalho monumental das máquinas que aram a terra deixando sua trilha linear,
para que no futuro das sementes, o horizonte de brotos alcance altura e ascenda as
expectativas do produtor. Nenhuma erva daninha atrapalhe a área homogênea da lavoura,
nenhum verme desove nas folhas tenras, dos talhos cada vez mais verticais.
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Eles agora estão rodando o filme Buscadores, com a mesma temática: buscadores de tesouros enterrados.
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A Terra Sem Mal da cosmologia Guarani.
As árvores solitárias como o timbó ou o quebracho e o algarrobo sobressaem no mar
de verde como guardiões de outro tempo: são os sobreviventes de uma batalha perdida:
sobreviventes devindos monumentos sepulcrais, ali onde a vida floresce, porém, sob outras
formas que são as autorizadas. As arvores de timbó, os peterevy com suas flores
branquicentas, são fantasmas da selva, ou uma de suas aparições.
Já seja que o inverno não tenha sido abundante em chuvas ou os dias de verão
tenham sido secos, às vezes a paisagem se tinge com presenças: é uma poeira vermelha que
veio cobrir com suas sombras translúcidas a atmosfera.
Os tratores atravessam e aram o campo, e deixam sua marca no terreno. Superficial
ou profunda, esta é uma marca intensa. A violência do despejo persiste e o fantasma se
incorpora e sai de passeio: o fantasma do bosque e da vida que ali era se incorpora nas
nuvens de poeira que passeiam pelo campo e visitam as cidades; deixam seus hematomas
nas paredes das casas ou tingem o macacão (“guardapolvos” em espanhol) da menina que
vai para a escola arrastando os pés e é atropelada por uma força que o caminhão arrasta,
visível agora graças à poeira.
A poeira no Alto Paraná, e por que não, no Chaco, é uma poeira-fantasma, é uma
presença subsistente que não se resigna a desaparecer, mesmo que sua mera presença seja o
sinal da desaparição.
A poeira fantasma é o sobrenome, o outro nome, e a isca para a violência ali forjada.
Num país como o Paraguai onde seus maiores monumentos são suas ruínas, os paredões de
poeira que se passeiam por vastas regiões do país são as modernas ruínas do Paraguai, o
momento de uma erosão que se faz visível, o passo de uma matéria sólida para uma leveza
incessante.
BIBLIOGRAFIA
DERRIDA, Jacques. Schibboleth. Para Paul Celan. Jorge Pérez de Tudela (trad.). (Madrid:
Arena Libros), 2002.
DERRIDA, Jacques. Torres de Babel. Julia Barreto (trad.). (Belo Horizonte: Editora
UFMG), 2006.
ESCOBAR, Ticio. El mito del arte y el mito del pueblo. 2ª edición. Asunción: Centro de
Artes Visuales/Museo del Barro, 2010.
THACKER, Eugene. In The Dust of This Planet. [Horror of Philosophy, vol. 1].
Washington: Zero Books, 2011.