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A CONSISTÊNCIA DA POEIRA

Damián Cabrera1

Y Yhavé dijo a la serpiente: Por cuanto esto hiciste, maldita serás


entre todas las bestias y entre todos los animales del campo; sobre
tu pecho andarás, y polvo comerás todos los días de tu vida.

Génesis, 3, 14

En el sudor de tu rostro comerás el pan hasta que vuelvas a la


tierra; porque de ella fuiste tomado: pues polvo eres, y al polvo
serás tornado.

Génesis, 3, 19

Existe a possibilidade de que o abstrato adquira materialidade. Sons e grafias,


repetidos com insistência, são capazes de passar da impressão sensível à impressão sobre a
superfície externa e interna dos corpos: tornam-se corpo elas mesmas. Não é à toa que
alguns sofrem com seus apelidos, e que o efeito deles — o sofrimento que eles causam —
seja chamado de dor. Você pensa nesses efeitos, mas também quer fazer uma chamada de
atenção para um caminho inverso: o caminho de uma desintegração. Uma dissolução: o
passo de uma densidade sólida — com seu peso — para uma consistência leve.

1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Estudos Culturais da Escola de Artes, Ciências e
Humanidades da Universidade de São Paulo. damiancabrera@usp.br. São Paulo, Brasil.
ALTO, PARANÁ

y el Alto Paraná eterno correrá


su cuerpo rumbo al mar

Marilý Morales

Embelezar o passado constitui quase uma convenção estratégica, quando diante de


um presente desolador não há correspondência possível com um ideal. Olhando para a
paisagem dominante do Paraguai do presente, e pontualmente a do bosque atlântico do Alto
Paraná — aquela que se dirige do Atlântico em direção ao Chaco —, e que paralelamente
corre rumo a uma transformação irreversível — e havendo tido a possibilidade de ver os
últimos rastros do que foi, do que deixando-de-ser-está — é difícil não cair na tentação da
convenção nostálgica: embelezar o passado e tornar infernal o presente.
Para isso você começa pensando nos trabalhos e em como eles têm marcado essa
paisagem. Mas não partindo dos trabalhos humanos.
O trabalho vegetal de evadir a escuridão, de fazer caminho no sentido da luz:
minucioso no seu tecido radicular, na sua dança de folhagens; volumoso no assobio de
folhas enquanto a terra é povoada, enquanto a luz é povoada. Apesar das rochas, e seus
penhascos. Apesar e em cooperação com a ingestão animal, e com sua evacuação. O cervo
dando à luz seu filhote, nos meandros do riacho: o filhote é albino, e sua pele branca está
coberta de placenta: a mãe corre, porque há rugido de jaguar; corre enquanto dá à luz seu
filhote fantasma, em meio à comoção. Pele grossa, e urina de raposa, e a pena verde e a
pena vermelha. E um cantar.
Outro trabalho, o da água. Chove. A chuva, rica em relâmpagos, ruge contra as
árvores. Os galhos testam sua elasticidade, e há lares que se estilhaçam e ovos molhados ou
quebrados. O rio — habitado por peixes agora escondidos detrás de alguma rocha —
adquire a cor vermelha do sangue; mas não é sangue, é a cor da terra: Rodhic Kandiudox,
argilosa, de origem basáltica. Os cadáveres — os das árvores — viajam pelo rio, e caem na
catarata. Os rios também cantam: seus redemoinhos assobiam; remetem a sereias solitárias
quando por debaixo de um ilhote a água se esfrega contra as superfícies rochosas como o ar
contra as cordas vocais.
As madrugadas cobertas com uma névoa branca, que demora em ir embora quando
nasce um sol que nunca alcança as tocas. Uma anciã cumprimenta a névoa com fumaça de
tabaco, enquanto alguém profere uma oração, e um violino — um rave2 — incongruente
cumprimenta o amanhecer dos pássaros e das orquídeas; e às vezes a fumaça do incêndio
alia-se à névoa, e a congestão de fugas animais (eis que as plantas não podem fugir) é terror
e espetáculo que inaugura o futuro da plantação, e o distante futuro das colheitas, e o mais
distante futuro da chicha de milho e o futuro da festa3.
A barragem que segura o derramamento é frágil: a membrana que separa o
sustentável do insustentável é quebradiça, e a empresa fora de lugar é capaz de sufocar
aqueles belos incêndios mínimos, susceptíveis de tradução em festa — que em suas
capacidades específicas e seus modos tem sustento para a réplica, para a reiteração cíclica
—: a empresa fora de lugar é capaz de apagar a chama pequena com um fogo incinerador.
Fogos maiores sobre a fogueira menor. Toda a ação das mãos que constroem o sentido
colonial do desenvolvimento — essa linha supostamente inquestionável de uma evolução
(o progresso) liberam as faíscas da incineração: a queima da diferença fundamental que a
biologia selvática é, e da festa e do ritual — e sua economia — que imbricada nessa
biologia está.
O que tem acontecido com essa paisagem que coincide com o nome do Paraguai
tem sua violência.
No seu popular livro In The Dust of This Planet. Horror of Philosophy, vol. I, o
escritor Eugene Thacker sugere que existe a possibilidade de pensar a partir de linguagens
desbordantes, que fogem do rigor lógico que se espera da filosofia: enxergar o pensamento,
por exemplo, nas ficções de terror; que se expressam não a partir de conceitos abstratos,
mas sim a partir de uma diversidade quase impossível. “Or, as Plato once put it, “hair, mud,
and dirt” (THACKER, 2011, p. 17).
Estabelecendo vínculos entre ficções de terror, apocalípticas, demoníacas, e o estado
do mundo, os modos de relacionamento dos homens com o mundo e as concepções de

2
Instrumento musical de cordas utilizado pelos Mbya Guarani.
3
Para marcar com algum tipo de selo sua entrada, você recorre aos estandartes ideais. Com risco de soar
ingênuo e romantizar uma ausência, você deixa como senha que estas primeiras aparições no texto são
expressões fantasmais: uma presença residual que subsiste e que retorna potenciada para assombro (uma
assombração). São também as primeiras palavras de um testemunho, cuja verdade pode ser questionada, e,
porém, também ratificada por documentos. Mas a tarefa aqui é invocar essas aparições.
mundo dos homens, Thacker fala das transformações efetuadas nesse mundo a partir do
trabalho dos seres humanos:

On the one hand, we are increasingly more and more aware of the world
in which we live as a non-human world, a world outside, one that is
manifest is the effects of global climate change, natural disasters, the
energy crisis, and the progressive extinction of species world-wide. On
the other hand, all these effects are linked, directly and indirectly, to our
living in and living as a part of this non-human world. Hence
contradiction is built into this challenge — we cannot help but to think of
the world as a human world, by virtue of the fact that it is we human
beings that think it (THACKER, 2011, p. 9).

Assim como algumas das primeiras inscrições literárias do Alto Paraná fizeram o
desenho do território em chave de sublime desbordante4 — tais como a descrição de Barrett
do espaço labiríntico da selva nas suas crônicas —, existe agora um passo dessa descrição
da exuberância para um desenho desolador. (Não será à toa, também, que o primeiro filme
alto-paranaense, Gritos del Monday (2016), seja um filme de terror). Assim, tem existido
no mundo uma infinidade de textos literários que fazem o desenho do mundo a partir dessas
visões da destruição, da dissolução do mundo — desde textos bíblicos até livros futuristas
como as Crônicas Marcianas de Ray Bradbury —.
A capital do Alto Paraná é Ciudad del Este. Para fundar a cidade foi necessário
fundar a colônia, o colonial. O sistema de produção que predominou nesta beira do rio
Paraná, desde faz algumas décadas, tem reproduzido — vale dizer, cultivado — um arranjo
de corpos em disposição para um trabalho. Inseminado com os argumentos dos primeiros
colonialismos que fizeram uma estratificação global, o colonialismo paraguaio tem
reproduzido um fazer colonial no seu avanço por territórios outros, com uma violência
cega. O que tem acontecido é que se fez desaparecer o cenário sublime onde a vida e uns
modos de vida eram possíveis, para uma substituição. A economia da reciprocidade e as
formas políticas democráticas que tinham florido neste espaço, e as flores que derramam
perfume e cor — ou as penas floridas — foram substituídas pela beleza des-familiar da
lavoura, e finalmente com a uniformidade da plantação de soja na que um dia fosse selva; e

4
Ver KANT, Inmanuel. “Crítica del juicio” seguida de las observaciones sobre el asentimento de “Lo bello
y lo sublime”. Alejo García Moreno y Juan Rovira (trad.). Disponível em:
http://www.cervantesvirtual.com/obra-visor/critica-del-juicio-seguida-de-las-observaciones-sobre-el-
asentimiento-de-lo-bello-y-lo-sublime--0/html/
por que não falar dos pastos para alimentação do gado no que um dia foi o Chaco, uma das
áreas com maior desflorestação no mundo. E ao mesmo tempo, há uma cidade que floriu.
O desenho urbano de Ciudad del Este antecedeu a vida urbana, porque era urgente
fundar. Mas sem as fundações sólidas da necessidade (sem que a trama de ruas e edifícios
administrativos respondesse a uma necessidade real) e sem a perícia para uma vigilância
dessa natureza, o crescimento da cidade foi um transbordamento. A cidade entrou em
erupção e cresceu como falha desde sua violência fundadora. A cidade feia. A linha
desenhada pela Rodovia Internacional número 7, Dr. José Gaspar Rodriguez de Francia,
constitui uma das primeiras penetrações violentas; a doma do rio Paraná com a construção
da usina hidroelétrica de Itaipú, crime que inferiu a morte das Sete Quedas (crime fundador
da modernidade paraguaia); a Ponte da Amizade foi a assinatura lapidária de uma condena
inesperada: um tratado, por metonímia, que condenou uma história a sofrer suas novas
datas turbulentas, torrenciais e incendiárias5.
O horizonte transparente que a plantação de soja desenha, homogêneo e dual, entre
o azul e o verde, busca iluminar todas as manchas e protuberâncias da superfície. Fazendo
agonizar sua própria diferença, a sociedade paraguaia projeta ingenuamente seu
colonialismo no colonialismo procedente do Brasil, e o potência: o resultado é a
aniquilação de tudo aquilo que é radicalmente diferente e paradoxalmente, ao mesmo
tempo, semelhante; significando a própria anulação, a própria morte. Mesmo que um
paraguaio da cidade o ignore, a morte de um campesino em Curuguaty ou de um Mbya
Guarani em Yva Poty é a morte de um flanco da sua memória (a amputação de um braço
que depois retorna como membro-fantasma com uma coceira impossível de coçar).
Mas a cidade feia é uma cidade de muitas línguas. Há uma comunicação possível e
comemorável na comunidade de Babel. A contiguidade de diferenças que se ameaçam
mutuamente pode ser uma possibilidade de persistência, de alternativas: de resistência. Ali
onde nenhuma língua é A Língua, são possíveis todas as línguas. Até a interseção pode ser
festa, quando em duas línguas ao mesmo tempo é dito o poema, e inclusive quando numa
só língua falamos em outras. Mas sem baixar guarda, porque a ameaça do abstrato tem
impactos físicos.

5
Eis o conto La doma del jaguar de Hugo Rodriguez-Alcalá, como outra expressão do mesmo sistema: a
natureza e um modo de interação com ela, subordinados por uma razão moderna, capitalista. RODRIGUEZ-
ALCALÁ, Hugo. La doma del jaguar. Asunción: El Lector, 2006.
Aqui a sua tese: Ciudad del Este é uma cidade cheia de fantasmas.
Essa cidade na beira de um rio.

DISTÂNCIA DOS RIOS

No Alto Paraná a relação com os rios têm sido dramática. Mas talvez o encontro
com eles na sua natureza não esteve isento de dramatismo: seus caudais portentosos
coroados por cataratas (e algumas delas sobrevivem em ambas as beiras do Paraná do qual
são subsidiários), seus penhascos e sua urgente flora ictiológica. Vale dizer, a relação que a
modernidade no Alto Paraná têm tido com seus rios foi traumática. Não falta dizer que seu
desenho estruturou a colonização; abundantes seus contornos, porém, as sociedades que são
no Alto Paraná — as visíveis — fazem hoje sua vida mais à margem deles do que nas suas
margens: e uma forma primordial de relacionamento com eles não dista dos modos em que
tem sido interpelada a selva (havia que fazer a vida fora da selva, e houve que desterrá-la
para fazer a vida no seu lugar): a doma e a exploração, no fim, sua negação e escravização.
O caminho dos rios, talvez pouco transitáveis, tem sido substituído por uma prótese:
uma rede de rodovias que imita suas direções, correndo paralela a eles; o milagre de sua
energia tem sido objeto de traduções. A vergonha só foi possível graças à negação de uma
língua; e o mesmo código que tem regido para silenciar a linguagem da natureza serve para
silenciar outras línguas e outros modos de ser possíveis no lar das línguas: a doma e a
exploração, no fim, sua negação e escravização.
Porém, pelo caminho do rio, em particular, há modos de fazer e modos de viver em
trânsito; por imaginar um diálogo possível com estes, pode-se lembrar da anedota de uns
estudantes de filosofia que desceram até as beiras do Paraná para contrabandear cigarros,
atravessando de um lado para outro da fronteira, burlando uma vigilância fronteiriça:
burlando uma vigilância.
O trabalho marginal de passar mercadorias de uma margem para outra do rio —
esse caminho marginado — pode servir de desculpa para falar sobre um terreno de trânsitos
que se estende além de sua franja escorregadia, e fundamentalmente aquém do Paraná: a
fronteira. E sobre esses controles fronteiriços.

A LÓGICA DO FALSO: PARALELO, SUCEDÂNEO, TRUCHO, MAU, FULE

As tecnologias de vigilância registram os espaços de produção e circulação velando


por estabilidades e possíveis falhas. Os aparelhos de vigilância de um mercado encontram
pontos cegos em algumas zonas do seu reparto mundial: Ciudad del Este pode ser
considerado um deles. O esplendor da produção e mediação de produtos ilegítimos
(deformações a partir de uma forma prévia, um legítimo) já passou; mas configuram
práticas residuais numa cidade que está sofrendo drásticas transformações que
possivelmente alterem definitivamente seu modo de ser e a sustentabilidade de um modo de
fazer em relação com uma exterioridade definidora; e, porém, — e em razão dessa
exterioridade e suas ânsias — estas práticas têm fixado sobre os perfis do território e seus
habitantes uma representação determinante que tem se petrificado. Do que pode nos falar
esta realidade? A dicotomia legítimo/ilegítimo extrapola sistemas: os dispositivos de
reconhecimento e verificação distributiva dos espaços para a forma e a deformação, para o
legítimo e o ilegítimo traspassam o horizonte de produtos, se desdobram por um espaço
físico e acabam determinando o estatuto de sujeitos e também de comunidades pelas vias
que o nome e o ato de nomear dispõem; pelo desvio delimitador que o nome significa, e no
nomear desviado pela força de uma proximidade: é o caudal de um rio o nomear que
empurra a palavra, o nome próprio, pela força de um fluxo.
Talvez valha a pena prestar atenção para as palavras que, espalhadas sobre os
objetos que circulam neste pequeno e explosivo mercado de fronteira, acabam
determinando espaços e enclausurando sujeitos.
De origem caló — cigana — a palavra fule (ful em caló e em sua variante
empregada na Argentina) significa falso, fingido, não autêntico. No Paraguai o nome é
adjetivo, e é usado para qualificar produtos de qualidade suspeita. A princípio para designar
a procedência chinesa de alguns produtos, a palavra mau — da China de Mao? —, acaba
definindo, também, a natureza ilegítima de objetos, independentemente de sua procedência
(mesmo quando são de fatura local). Contrabandeada do lunfardo6 argentino, a palavra
trucho também designa a natureza falsa ou fraudulenta de produtos, mas também se aplica
a pseudoprofissionais que exercem suas práticas sem um aval ou garantia que as sustente.
O adjetivo sucedâneo delimita por via similar o horizonte de validez de um produto, mas
em chave, talvez, menos pejorativa, assumindo-se uma similitude ou parecido, mas sem a
pretensão de substituir o original. Do mesmo jeito, a palavra paralelo designa um espaço
fronteiriço, contíguo, para um produto, como se ele estivesse destinado a outra dimensão, a
uma coexistência menos problemática, em tanto no batismo não há intenção de que o
produto outro substitua o produto mesmo (cuja qualidade está garantida pela sua mesmice,
pela sua proliferação em repetição inequívoca); apesar de que na eleição do produto, o
consumidor acabe realizando uma substituição, não sem risco de disfunção, com as
vantagens econômicas que supõe.
E mesmo assim é possível afirmar que a cópia anula de certa forma o original.
Walter Benjamin descrevera os procedimentos de reprodução na arte que as novas
tecnologias tinham possibilitado: mediante elas investia-se na supressão da aura do
original:

Cada día cobra una vigencia más irrecusable la necesidad de adueñarse de


los objetos en la más próxima de las cercanías, en la imagen, más bien en
la copia, en la reproducción. Y la reproducción, tal y como la aprestan los
periódicos ilustrados y los noticiarios, se distingue inequívocamente de la
imagen. En ésta, la singularidad y la perduración están imbricadas una en
otra de manera tan estrecha como lo están en aquella la fugacidad y la
posible repetición. Quitarle su envoltura a cada objeto, triturar su aura, es
la signatura de una percepción cuyo sentido para lo igual en el mundo ha
crecido tanto que incluso, por medio de la reproducción, le gana terreno a
lo irrepetible. Se denota así en el ámbito plástico lo que en el ámbito de la
teoría advertimos como un aumento de la importancia de la estadística. La
orientación de la realidad a las masas y de éstas a la realidad es un proceso
de alcance ilimitado tanto para el pensamiento como para la
contemplación (BENJAMIN, 1989, p. 25).

A falsificação pode ser também essa outra coisa que é um exercício crítico: copiar,
reproduzir, falsificar, é pôr em crise os estatutos de legitimidade e propriedade capitalista
sem sair do capitalismo. Minar desde dentro de um espaço delimitado por legitimidades que
6
Gíria originada e desenvolvida em Buenos Aires, Argentina.
acabam impondo uma taxonomia das práticas produtivas e das práticas de consumo: nelas
se abre a circunscrição das unidades autorizadas a produzir e daquelas autorizadas ou
habilitadas para o consumo; cindidas das entidades reprodutoras bastardas e dos sujeitos
inabilitados para o consumo do original — privado a uma minoria —. A falsificação é
perigosa em tanto desestabiliza essa taxonomia, permitindo que através da reprodução
incessante os produtos do conhecimento humano cheguem às massas. Já não importa que os
selos de garantia sejam inexistentes, ou que a não originalidade do produto possa ser
verificada: se bem o valor capital simbólico do produto como marca de classe estaria fora
de um alcance (mesmo que possa sobreviver pela similitude que a mimese permite) a
funcionalidade material, manual, prática do objeto é alcançada.

FRONT3IRA

Persistir no nome. Desde o primeiro batismo, e numa prática sobre o espaço,


qualquer fronteira poderia supor um olhar para frente, de frente, e levantar-se em oposição;
prover a aquilo detrás, que se pretende protegido, de alguma forma de contenção diante de
um avanço, ou uma proximidade; e, no muro de umas vigilâncias, autorizar saídas e
ingressos; sob ameaça de morte e expropriação, sob ameaça de proibição de entrada e
ameaça de desterro, expulsão. A fronteira era, num princípio, uma frente de batalha: uma
trincheira, um muro. A borda externa da muralha, ali onde o fio do parapeito corta em dois:
o resguardo e a caída ao vazio é o limite. Mas, sem muros de Berlim, as fronteiras são
quase sempre franjas e nunca linhas.
Interrogando as representações do espaço fronteiriço, para fazer o desenho de uma
cartografia da fronteira paraguaia com o Brasil na literatura, Marina Cantero recolhe
interpretações teóricas que buscam definir a natureza do espaço fronteiriço. Assim,
identifica estas imagens, não carentes de espessura poética, nas quais fala de fronteira como
encruzilhada (Gloria Anzaldúa), fronteira como ponte (Frauke Gewecke) e fronteira como
não-lugar e as joga num horizonte menos virtual e mais real, assumindo que esse espaço
ambivalente que se dá em chamar fronteira é um lugar habitável:
Efectivamente, si el lugar común piensa la frontera como límite (las
fronteras geográficas, las fronteras políticas, etc.), las prácticas y
relaciones cotidianas entre habitantes de, por ejemplo, dos lugares
distintos, reelaboran esa imagen para convertirla en una franja habilitante
de tránsitos, intercambios y mezclas (CANTERO, 2014).

Justamente o rio, que na geografia política determina o limite do território do


Estado, que se representa como limitação, como um impedimento simbólico para o trânsito,
é também, porém, a fronteira através da qual se produzem os cruzamentos, os intercâmbios:
o rio é uma ponte.
(O rio é sublime. Fonte de alimentos, os corpos das formigas7 se nutrem com a
carne dos peixes que povoam o rio. A energia proporcionada pelo alimento será empregada
num trabalho: por exemplo, no contrabando de mercadorias pelo rio. Isto é, seu ganha-pão).
Agora bem, se o rio delimita no mapa as fronteiras políticas, as fronteiras
econômicas e as fronteiras culturais têm outras configurações. O limite, no caso da cultura,
está muito mais aquém da geografia política do Paraguai — esse animal retraído que
retrocede diante de uma presença (a colonial) e que se apresenta em transformação, quer
dizer, em resistência —.
Na encruzilhada, a fronteira das línguas é ainda mais difusa, mas se expressa, por
exemplo, na fala coloquial, numa polifonia que é enquanto se transita pelo mercado: essa
coexistência de sons heterogêneos que é Ciudad del Este na hora de comerciar e ainda de se
apaixonar. E na literatura que por vezes se faz nas congestões léxicas, de puras misturas
que nada significam literalmente, mas cuja pura forma significa obliquamente, através do
gesto, a natureza da fronteira.
A vigilância da fronteira se dá, como o recurso do nome, em diversos planos de
significado e materialidade. Assim como para o comércio as polícias exercem um rígido
controle sobre mercadorias que transitam a fronteira, os autoritarismos culturais também
fixam as representações enclausuradas das imagens que repetem e projetam como as únicas
autorizadas e legítimas, negando inclusive sua constituição múltipla; mesmo assim e à
margem dessas vigilâncias — como uma expressão da mesma configuração sistêmica — é
possível o contrabando imperceptível nas produções simbólicas e, também, debaixo da

7
Nome dado aos micro-contrabandistas.
língua, traindo a autoridade. Como seja, o contrabando de um lado para outro do rio tem
consequências diversas.
A palavra fronteira, na sua etimologia, remete a uma verticalidade, mas é possível
pensa-la como uma franja horizontal (mas, não é também o horizonte o círculo que
contorna?). Mais preciosa é a palavra espanhola orilla, que do latim ora (borda, extremo,
limite, costa) está baseada em os, oris (boca, voz, entrada, abertura). Fechamento e abertura
ao mesmo tempo, a palavra está aparentada com outras como oráculo, orifício e oração8.
As terras de borda são rodovias de duplos, múltiplos sentidos: e no extremo Leste do
Paraguai há uma abertura para a entrada e para a saída. Há ali uma boca simbólica (pode ser
boca, mas também qualquer outro orifício do corpo) para uma penetração: mas a penetração
é sempre ambivalente, pois o membro que penetra é ao mesmo tempo penetrado no interior
de um corpo, por fluidos e afetos. A palavra também é penetrada: existe nessa cópula um
intercâmbio de fluidos, mas sobre tudo de fluxos de sentido que tornam o nome instável.
Jacques Derrida reflexiona a partir da obra de Paul Celan sobre uma palavra,
Schibboleth, e as ideias e imagens, os gestos implicados nela:

Multiplicidad y migración de lenguas, sin duda, y en la lengua misma,


Babel en una sola lengua. Schibboleth marca la multiplicidad en la
lengua, la diferencia insignificante como condición del sentido. Pero al
mismo tiempo la insignificancia de la lengua, del cuerpo propiamente
lingüístico: sólo desde el lugar puede adquirir sentido. Por lugar entiendo
tanto la relación con una frontera, el país, la casa, el umbral, como todo
sitio, toda situación en general a partir de la cual, prácticamente,
pragmáticamente, se anudan las alianzas, se establecen los contratos, lo
códigos, las convenciones que dan sentido a lo insignificante, instituyen
contraseñas, pliegan la lengua a lo que la excede, la convierten en un
momento de gesto y de paso, la hacen pasar a segundo plano o la
“rechazan” para reencontrarla (DERRIDA, 2002, p. 44).

A fronteira é um espaço ambivalente entre duas posições de território — e isto


talvez valha tanto para uma geografia política como para uma cartografia dos muitos
poderes, e ainda do sentido da língua, nas palavras cuja significação está marcada pelo
lugar —. A forma que é a palavra tem uma base instável, cintilante, que no seu pulso é
susceptível de mudança. Talvez como o sentido na linguagem, o espaço fronteiriço esteja
marcado por instabilidades e mobilidades cujos momentos fortes de significados são

8
Assim, os orifícios do corpo, todos os orifícios do corpo, são fronteiras de entrada e saída.
sempre expressões possíveis num lugar e numa data, segundo os sujeitos e as forças que
permitem sua aparência: ausentes estes momentos, estas instâncias e suas forças, as
expressões do espaço mudam, assumem novas formas, assim como o sentido.
É por isso que as metáforas da fronteira a descrevem em múltiplas chaves: a
fronteira se expressa segundo determinadas condições e segundo os olhares. Assim, a
fronteira como não-lugar é análoga a descrição foucaultiana de espaço heterotópico, um
espaço que pode ser radicalmente outro ou um espaço destinado a desaparecer: instável; ali
onde é a multiplicidade, há incompatibilidades compatibilizadas: “Em geral, a heterotopia
tem como regra justapor num lugar real vários espaços que normalmente seriam, ou
deveriam ser, incompatíveis” (FOUCAULT, 1966). A fronteira como ponte fala da
possibilidade de trânsitos. A fronteira como encruzilhada fala mais de cruzamentos antes
que de trânsitos: da possibilidade de uma marca, a impressão que a tensão intensíssima
pode deixar sobre um corpo, as múltiplas crises e interferências possíveis, felizes ou
infelizes.
E ali aparece diante de você, e da sua data e as forças que te encurralam, a Tríplice
Fronteira em suas pontes, na fixação instável de seus lugares, e sobre tudo na sua
encruzilhada. E você volta para a orilla (para a beira, a terra profunda). Se se tem dito que
a palavra limite é ineficaz para nomear estas secções de abertura/fechamento, e se
etimologicamente a palavra fronteira, também — dado que sua etimologia remete à ideia
de frente —, alude a uma verticalidade, como um muro, que beleza mais eficaz pode-se
pretender além da palavra orilla? Provavelmente muitas, mas eis ali um lugar para pensar.

VISÕES DO INFERNO

E a pesar de uma beleza, há um horizonte infernal.


No primeiro Alto Paraná cifrado pelo escrito, na sua primeira fronteira literária, as
chaves de descrição oscilavam entre diversas paisagens infernais. Porque há muitos
infernos. Contrário a certo inferno civilizado possível, determinado por um logos e uma
técnica, o inferno da natureza é um sublime desbordado. E ainda assim ambos compartem
signos de representação. Há uma história de imagens comuns. Assim, a cena confusa que
alberga a dor e o padecer humanos podem aparecer sob diversas formas, mas, entre elas,
algumas das hegemônicas são o caos, o labirinto e o deserto9.
Em primeira instância, a visão do Alto Paraná, e sobre tudo da que fora a selva do
Alto Paraná (o Bosque Atlântico), está mediada pelas expectativas para uma vida
obstaculizadas pelas condições hostis do lugar. E, porém, havia vidas ali possíveis, que ali
tinham um paraíso, como o que a cosmovisão Guarani adjudica em chave mítica, mas
ainda assim material segundo o ideal do yvy marane’ỹ. O inferno também pode ser
representado segundo as vidas tortuosas que foram obrigadas a ser no lugar, já seja que a
vontade própria tenha sido lançada em direção a um novo território, em busca de uma nova
vida, já seja que corpos trabalhadores tenham sido obrigados a padecer ali em favor de um
programa que os dispôs ali segundo as hierarquias do trabalho capitalista, nas quais a
escravidão não estava excluída.
A verdade é que estes trabalhos reconfiguraram o espaço infernal para lançar diante
dos olhares um novo espaço. A homogênea paisagem da soja que domina hoje o Alto
Paraná parece revestida de uma aura bela: o horizonte verde das plantações fez desaparecer
a maranha verde dos bosques; sua natureza agora é abarcável com o olhar, e não parece
estranho que o mesmo espaço que despejou uma diferença biológica seja o apelido de
outros despejos da diferença. O sistema de produção que possibilita a paisagem homogênea
também pulsa por encurralar e exterminar outros sistemas de produção que podem supor
uma interrupção no continuum da paisagem. E é por isso que pode-se afirmar que o deserto
verde da soja não é outra coisa que um inferno: o lugar onde as expectativas para uma vida
vem-se obstaculizadas pelas condições hostis do lugar.

9
Para uma genealogia destas representações infernais ver CABRERA, Damián. “Notas para representarse.
Decires em frontera” In: ARAUJO PEREIRA, Diana (org.). Cartografia Imaginária da Tríplice Fronteira.
São Paulo: Dobra, 2014, e em CANTERO, Marina. Cartografias de frontera. Asunción: Viento Fuerte, 10 de
dezembro de 2014. Disponível em:
http://www.vientofuerte.com/news/2014/12/10/cartografias-de-frontera/
NOMES

O curso destas configurações espaciais do território também esteve marcado por


transformações do nome. Era necessário que em suas distintas datas os programas que
faziam suas incursões topográficas no processo de devastação estivessem acompanhados
por seu correspondente topônimo. Os nomes trocados dos distritos e das cidades no Alto
Paraná se correspondem com os distintos programas. Talvez o mais evidente deles, mesmo
que lateje no segredo de um desejo de progresso — isto é, de um bem-estar no porvir —
tenha a ver com os nomes de origem indígena ou mesmo em guarani paraguaio que foram
substituídos durante a ditadura stronista por nomes próprios de militares. E, à margem, as
palavras que circulam por este novo espaço, expostas à procedência heterogênea de seus
colonos, também tenham sido atacadas por sentidos diversos que persistem móveis ao redor
da palavra; como no jogo das cadeiras, fazendo que cada vez um sentido se assente e outro
caia, segundo quem é o autor que profere as palavras, segundo quem seja o destinatário que
as leia.

BABEL

Dada a heterogeneidade e as polifonias que a acompanham, como não falar da


fronteira das línguas?
Estas porosas fronteiras no Alto Paraná são terreno fértil para compreender um
estado das condições sociais e econômicas nas quais um setor da população se desenvolve.
Já seja que as situações de opressão econômica e cultural sejam traduzidas para o âmbito
linguístico, ou que estas situações possam ser subvertidas criativamente.
Se bem o Paraguai tem vivido sua história sob a luz de muitas línguas, várias delas
desaparecidas, em geral por condições adversas, os territórios em disputa e as interferências
entre espanhol e guarani têm sido centrais. Junto ao mito da miscigenação, o Paraguai tem
vivido sob o mito de um bilinguismo —como realidade falseada ou como ideal buscado—.
Mas o cenário fronteiriço oferece uma nova multiplicidade, a partir das histórias culturais e
linguísticas que são em proximidade no espaço atravessado pelo presente de diversas
coletividades de imigrantes que com variadas intensidades e em múltiplas datas têm se
aglutinado nas colônias e ainda na capital do Alto Paraná, Ciudad del Este.
Ali onde coexistem diversas línguas e onde elas se encontram, é preciso lembrar
também que cada momento da língua na qual fazemos a nossa cultura está precedido por
histórias prévias de coexistências e encontros, de negações e apropriações, e que estes
processos se devem às memórias delas, como nossas tradições às memórias das nossas
culturas. Gina Saraceni o descreve na hora de falar sobre as línguas maternas:

la lengua madre no es una sino más que una; es decir, que nunca es una
sola porque en ella habitan, en una simultaneidad problemática, otras
lenguas que revelan la presencia en su interior de una alteridad radical que
hace posible la propiedad de y en la lengua (SARACENI, 2012).

Qual é a língua dos paraguaios desta beira? Em que língua escolher falar(-se) se
habita em duas? Os distintos estratos aos quais a diglossia consigna ao espanhol e guarani
estão determinados por uma história de colonização e subordinações violentas dos falantes
da língua majoritária em função subalterna: o guarani. Ainda hoje, ser falante de guarani é
estar exposto a um mundo de hostilidades e exclusões. Talvez por isto, conjugado com
certos estatutos de invisibilidade e isolamento culturais associados ao Paraguai e a história
peculiar das línguas, o espanhol seja a língua hegemônica na hora de escrever, o pouco que
tem se escrito no Paraguai. Já Augusto Roa Bastos e outros autores tinham descrito o
estranhamento que acompanha a escrita em outra língua; mesmo quando se escreva em
espanhol, diante da língua escrita, é possível que alguém se enfrente a língua própria como
diante de uma língua estrangeira. Custa compreender que para muitos paraguaios o
espanhol seja uma língua estrangeira, mesmo que falem ou escrevam nela; como para
tantos representa falar ou escrever em guarani. “Dali o estranhamento a priori da idéia de
um escritor “desabrigado””, diz George Steiner, “de um poeta, romancista, dramaturgo não
completamente em casa na língua de sua produção mas deslocado e em hesitação na
fronteira” (STEINER, 1990).
A escrita em Babel resulta ainda mais inquietante quando nos enfrentamos ao
fenômeno das escritas que se produzem abertamente no espaço fronteiriço de confluências
e contaminações, de intercâmbios e cruzamentos. A literatura popular já tinha no jopara10
uma expressão profanadora dos limites aos quais o castelhano e o guarani estavam
consignados pela norma; e poetas como Emiliano R. Fernández popularizaram canções
cujas letras brincavam com a representação da fala na qual as línguas aparecem misturadas,
ou iam além forçando misturas com fins poéticos. No século XIX os jornais de trincheira
tinham feito uso de estratégias similares (aliando-se, inclusive, à imagem). Mas com a
busca de modernidade na literatura do Paraguai, estas interferências supuseram problemas
que foram resolvidos de modo diferente por diversos autores.
Enquanto Gabriel Casaccia defendia uma representação literal da fala (muitas vezes
ressaltada nos seus diálogos em letras em negrito e ainda com notas de tradução no rodapé),
Augusto Roa Bastos falava de uma escrita em castelhano, internamente desenhada pelo
guarani. Carlos Villagra Marsal levou a um limite este programa no seu Mancuello y la
perdiz (1965) no qual o castelhano é torturado pela sintaxe do guarani. Enquanto na poesia
contemporânea, a obra poética de Jorge Canese foi uma das primeiras experiências urbanas
nas quais o guarani se misturou com o espanhol prolificamente. No final dos anos 80,
Canese entrou em contato com o escritor curitibano Wilson Bueno, que publicara em 1992
seu romance Mar paraguaio, obra na qual castelhano, guarani e português se misturam
criando uma obra profundamente lírica. A experiência de Bueno impulsiona de certo modo
a obra de Canese, e ambos se tornam referência para uma geração de escritores das Três
Fronteiras que fundam uma língua literária denominada portunhol selvagem.
Algumas expressões literárias desta Babel nos empurram a um horizonte no qual a
legibilidade do texto parece quase proibida, e onde o que é possível ler é o gesto da mistura,
— ora o desenho dos limites, ora o apagamento deles —, habilitando a possibilidade de ler
na pura forma do texto a encruzilhada fronteiriça e talvez um horizonte utópico da língua.
Mas também é possível afirmar, especulando, que nessa paisagem da(s) língua(s) está
cifrada a paisagem do território em processo de erosão.
Sobre a possibilidade de compreensão ou de tradução destes textos para uma
sensibilidade nas chaves convencionais, Jacques Derrida lança uma interrogação:

10
Mistura de espanhol e guarani. Nome também de um prato que inclui uma grande variedade de produtos
das hortas populares. Basicamente significa pintado, manchado.
Notemos um dos limites das teorias da tradução: tratam com bastante
frequência das passagens de uma língua para outra e não consideram
suficientemente a possibilidade para as línguas, mais de duas, de estar
implicadas num texto. Como traduzir um texto escrito em diversas línguas
ao mesmo tempo? Como “devolver” o efeito de pluralidade? E se se
traduz para diversas línguas ao mesmo tempo, chamaríamos isso de
traduzir? (DERRIDA, 2006, p. 20).

O emaranhado de línguas, de léxico e de imagens que nos lançam textos de autores


como Jorge Canese parecem destinados desde o início a essa intraduzibilidade. Existe a
expectativa, diante de textos como Mar paraguaio (1992) de que só em uma cultura, só
numa comunidade de falantes poliglotas e fronteiriços o texto poderia ser plenamente
compreendido; o sentido, por tanto, também se dissipa. E, porém, mesmo na sua
intraduzibilidade os textos nos dizem algo: desde essa sua própria natureza intraduzível,
até — obliquamente — uma paisagem policromada na qual um discurso assim seria
possível, mesmo que imaginado.

PAISAGEM DA SOJA

Ay, rincón feliz donde nací,


ay, tierra de amor, tierra de sol.
Tiene luna llena sin igual,
noches estrelladas, cielo azul.
Ay, tu amanecer y atardecer,
ay, tu anochecer primaveral...

Luis Alberto del Paraná

Entre o corpus de canções populares nacionalistas que em espanhol representam a


paisagem paraguaia, se destaca a Acuarela paraguaya de Luis Alberto del Paraná como
uma tentativa falida de inscrição do elogio ao país de Stroessner. As belezas descritas por
Paraná evocam aparências universais fixadas na epiderme superior do céu e nas qualidades
de um clima regional; nada na superfície terrestre para comemorar, nada em particular. Não
é também a aquarela essa materialidade e essa técnica para pintar paisagens aguadas cujas
cores diluídas se expressam com certa transparência sobre um fundo visível? Penso também
na canção marcial Patria Querida, bastarda da Madelon francesa que celebra as mesmas
aparências imateriais e universais: o céu azul, a luz e o brilho da aurora. Mas, o que há na
superfície? No seu ensaio Escrbir la nación Lia Colombino pergunta-se pelas tentativas de
inscrever o nacional, e esboça uma série de lugares, móveis e instáveis, desde a falta, nos
quais o nacional poderia estar no Paraguai. Dentre eles, destaca-se o papel das ruínas como
monumentos de um país: assim como essas canções nacionalistas, as ruínas também se
apresentam num movimento em direção a uma imaterialidade e a leveza através de
corrosão: as ruínas de Humaitá e as ruínas jesuíticas, nossos grandes monumentos,
constituem dois desses momentos ruinosos e máximos do Paraguai, com valores distintos
como justamente os descreve Lia: um deles como lápide da nação paraguaia emergente,
fundada no cenário bélico, o outro como cenografia de um momento colonial
(COLOMBINO, 2011, p. 102).
Por sua parte, você acha que o novo monumento, a nova ruína do Paraguai da soja e
do gado é uma poeira movediça, o monumento móvel da colonização moderna do Paraguai.
Claro está, não seria o único monumento móvel do Paraguai: como uma estátua de
Francisco Solano López mudada três vezes de lugar em Assunção.
Essa paisagem desenhada como aquarela pela ditadura stronista no Paraguai foi
culturalmente negligente diz Ticio Escobar, e mesmo assim eficiente. Culturalmente,
podemos prestar atenção a alguns momentos dramáticos da sua negligência e censura dos
fazeres simbólicos diferentes: seu machismo e sua homofobia, seu militarismo, uma
precária folclorização de valores “criolos” ou mestiços, e a negação da diferença em tanto
falha ou marca de influência exterior.
O Paraguai também teve uma prolífica produção que, não sem reservas, poderia se
chamar de indigenista, descrita, por exemplo, por Rubén Bareiro Saguier (1990) e
Bartomeu Melia (2010), Escobar afirma que enquanto os indígenas “são transformados em
essência da nacionalidade e são colocados nos altares da tradição, os setores populares e as
etnias atuais são expulsos de cena” (ESCOBAR, 2010, p. 93).
Quando no Alto Paraná apareceram os primeiros murais do correntino Jorge
Aguirre, eles foram recebidos com certa expectativa positiva numa cena onde não parecia
haver lugar para outra coisa que não fosse comércio e agronegócio, mas logo os murais se
multiplicaram, sempre da mão do mesmo artista ao serviço dos governos conservadores e
da Itaipu Binacional; recentemente o grafiteiro Oz Montania foi contratado pelo shopping
que –paradoxalmente se chama Jesuitas Plaza- para pintar o maior graffiti do Alto Paraná.
O que têm em comum essas expressões muralistas e grafiteiras? A arte pública no Paraguai
da soja busca uma representação idealizada do indígena –nem importa sua etnia-, esvaziado
de si mesmo, em chave romântica, enquanto a situação real dos indígenas são as lixeiras
públicas.
O Estado se apropria da imagem deles, a reinventa, e os expulsa da cena pública:
capitalizando-os simbolicamente os nega.
Casos como o dos Aché, os proto-guarani que hoje plantam soja, ou os chaquenhos
Maká que hoje vendem seus colares e bolsas artesanais no centro de Ciudad del Este e
Assunção, são análogos à uma recente descoberta espectral: a dos tigres da soja. Com seu
hábitat desaparecido, onças que, se acreditava, estariam extintas na região, têm sido
avistadas nas plantações de soja e atacando o gado.

CINEMA SUBTERRÂNEO

Para completar a paisagem espectral preciso de uma paisagem subterrânea. No


Paraguai existe a lenda do pláta yvyguy, literalmente dinheiro subterrâneo em guarani.
Seriam tesouros enterrados pelos paraguaios em fuga durante a Guerra Grande, e que se
popularizou e inaugurou uma busca histérica. Diante da impossibilidade de fazer fortuna
sobre essa terra (com um Estado esquartejado, assim como parte importante da força de
trabalho da sociedade paraguaia), a lenda, fundada em achados reais mas também em
mapas e relatos apócrifos foi revestida de magia e constitui um ponto nuclear na
imaginação popular dos paraguaios.
Existe agora uma efervescência no cinema paraguaio, me apresso a dizer que os
filmes representam, literal ou obliquamente, os argumentos e arquétipos da lenda do pláta
yvyguy (tesouros enterrados). A minha tese é que, só o acaso ou a traição podem salvar os
paraguaios pobres do tédio de seus infernos soporíferos. Em 7 caixas (2012) de Juan Carlos
Maneglia y Tana Schémbori11, o protagonista Víctor tem que guardar umas caixas para
receber em troca cem dólares que lhe ajudariam a comprar um celular para cumprir o seu
sonho de auto-representar, de por sua imagem na tela (é, sem querer também, quase uma
metáfora da incipiente indústria cinematográfica paraguaia): um sonho que para alguém de
sua classe só é possível nos cenas de crimes apresentadas nos noticiários. Em 2013 foi a
estreia de Costa Dulce de Enrique Collar e em 2014 Latas Vazias de Hérib Godoy, os dois
filmes sobre homens jovens e solitários, com vidas familiares desarticuladas que buscam os
tesouros enterrados, com uma certa sensação de transgressão sexual heterossexual e com
momentos de vaidade solitária e reflexiva. Eles só parecem concentrados na busca do
milagre, em desenterrar o tesouro, o único para imaginar um futuro possível. E no filme
Luna de cigarras de Jorge Bedoya, Gatillo trai o seu chefe, o Brasiguaio, numa transação
de venda de terras para o cultivo de maconha no Paraguai. Todos querem se dar bem, num
país e numa sociedade sem futuro. No filme Latas vazias o tesouro é desenterrado, foge das
mãos de quem o encontra, mas reaparece em meio ao lixo, mostrando que o verdadeiro
tesouro esteve sempre diante dos olhos do protagonista Alfonso, mas também está na
superfície celestial, no horizonte.
(O Yvy Marane’y12, diz Melia, não era só um ideal místico, mas também um solo
real, o chão sobre o qual era possível colar os pés, para ará-lo cultivá-lo). Os paraísos do
Paraguai têm estado desaparecendo, e só um milagre poderia salvar os paraguaios do nada
desértico e sua poeira fantasmal: sua terra de cemitério.

FANTASMAS

O trabalho monumental das máquinas que aram a terra deixando sua trilha linear,
para que no futuro das sementes, o horizonte de brotos alcance altura e ascenda as
expectativas do produtor. Nenhuma erva daninha atrapalhe a área homogênea da lavoura,
nenhum verme desove nas folhas tenras, dos talhos cada vez mais verticais.

11
Eles agora estão rodando o filme Buscadores, com a mesma temática: buscadores de tesouros enterrados.
12
A Terra Sem Mal da cosmologia Guarani.
As árvores solitárias como o timbó ou o quebracho e o algarrobo sobressaem no mar
de verde como guardiões de outro tempo: são os sobreviventes de uma batalha perdida:
sobreviventes devindos monumentos sepulcrais, ali onde a vida floresce, porém, sob outras
formas que são as autorizadas. As arvores de timbó, os peterevy com suas flores
branquicentas, são fantasmas da selva, ou uma de suas aparições.
Já seja que o inverno não tenha sido abundante em chuvas ou os dias de verão
tenham sido secos, às vezes a paisagem se tinge com presenças: é uma poeira vermelha que
veio cobrir com suas sombras translúcidas a atmosfera.
Os tratores atravessam e aram o campo, e deixam sua marca no terreno. Superficial
ou profunda, esta é uma marca intensa. A violência do despejo persiste e o fantasma se
incorpora e sai de passeio: o fantasma do bosque e da vida que ali era se incorpora nas
nuvens de poeira que passeiam pelo campo e visitam as cidades; deixam seus hematomas
nas paredes das casas ou tingem o macacão (“guardapolvos” em espanhol) da menina que
vai para a escola arrastando os pés e é atropelada por uma força que o caminhão arrasta,
visível agora graças à poeira.
A poeira no Alto Paraná, e por que não, no Chaco, é uma poeira-fantasma, é uma
presença subsistente que não se resigna a desaparecer, mesmo que sua mera presença seja o
sinal da desaparição.
A poeira fantasma é o sobrenome, o outro nome, e a isca para a violência ali forjada.
Num país como o Paraguai onde seus maiores monumentos são suas ruínas, os paredões de
poeira que se passeiam por vastas regiões do país são as modernas ruínas do Paraguai, o
momento de uma erosão que se faz visível, o passo de uma matéria sólida para uma leveza
incessante.
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