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Pã , levado pelo desejo, vai no encalço da ninfa Siringe, que para lhe
escapar se transforma num canavial. Em vez do corpo – pro corpore – são
canas que Pã abraça, e o seu suspiro de desconsolo provoca sonoridades
nas canas, surgindo assim uma arte noua. A consumação do desejo físico é
substituída pela criação artística, pela música/poesia, simbolizadas pela
flauta que Pã vai criar. E o seu som é melancólico como um lamento –
similem querenti.
A música é um Ersatz do corpo desejado, e esta é uma música triste.
A criação artística, traço distintivo da cultura no seu nível mais elevado,
que se eleva mesmo ao plano divino, vem colmatar a frustração do desejo e
remediar a falência da natureza. A arte substitui o acto.
Outra isotopia do mito é o carácter de permanência da arte, que
perpetua o encontro de Pã e de Siringe: hoc mihi conloquium tecum ‘
dixisse’ manebit. Temos reunidos os elementos fundamentais do nosso
fauno.
Nos Emblemas do italiano Alciato, 1º edição em 1522, Pã é
representado como símbolo da natureza, mas assinala-se o seu carácter
dúplice e complexo: é semicápreo, semidivino, metáfora evidente do
homem: a parte superior é logos, cultura, arte; a parte inferior é animal
lascivo, privado da razão.
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Camões conhecia e utilizou Alciato, como se pode confirmar também pela sua Ode sétima, em que
mostra conhecer o emblema 120.
que o homem é o único que ergue a cabeça para cima, enquanto os outros
animais olham para o chão, e extraem daí as suas conclusões.
Claro que nos podemos questionar sobre o carácter contrastante
destas formulações camonianas, basicamente pagãs, com a moral sexual do
seu tempo, mas temos de verificar que a forma argumentativa supõe que
não se trata de uma ruptura com os valores da sociedade do seu tempo,
marcadas por uma moral sexual bastante diversa, mas em que o quadro
moral clássico funciona como espelho, como ponto de partida de uma
reflexão crítica sobre o seu próprio tempo. Mas a argumentação supõe que
não há ruptura decidida e absoluta.
Os discursos poéticos dos faunos, numa primeira fase, são preces
persuasivas, nomeadamente a primeira fala (precibus), mas gradualmente o
canto, um canto alongado, transforma-se num substituto magoado da
consumação do desejo (pro corpore). Desistiu-se da perseguição, as ninfas
metamorfosearam-se em música, tornam-se pretexto do canto, a flauta
substitui o corpo, a cultura, a natureza.
O segundo fauno argumenta largamente com a mitologia ovidiana,
escrevendo uma espécie de mini-metamorfoses, em que a mitologia
funciona como paradigma de comportamentos a imitar e a evitar, na
tradição do uso helenístico e romano da mitologia pelos poetas elegíacos.
Das muitas oitavas da fala do segundo fauno, a grande maioria são
exempla mitológicos a corroborar a impiedade que constitui a rejeição de
eros e as funestas consequências que daí advieram a personagens
mitológicas. No «espesso monte» da natureza, em que Camões situa estes
Faunos, encontramos refinados literatos de tradição alexandrina.
Camões, ele próprio, é sem dúvida um fauno. É na épica e na poesia
bucólica, géneros mais próximos da matriz clássica, que tem as suas pernas
de bode. O desejo que sempre tarda, a sensualidade de muitos do seus
versos, a carnalidade das suas descrições da mulher, são uma Afrodite
pandemos, uma Venus uulgaris, que contrasta com una concepção do amor
mais espiritualizada, a sua Afrodite urania, celestis, que encontramos na
poesia lírica, mais italianizante.
Só na ilha, esse espaço ideal de perfeição sonhada, é que o fauno
Camões, o fauno artista, encontrará o apaziguamento desta tensão, criando
uma visão de plenitude harmoniosa da dimensão natural e cultural do
homem, a realização do desejo e a elevação do espírito através do
conhecimento da máquina do mundo.
Mas também na Écloga dos Faunos a substituição do corpo pela
flauta é triste, e disso são testemunho os versos finais. Se a criação artística
parte de uma frustração, de uma limitação no âmbito da natureza, é à
infelicidade que conduz. A perda da dimensão natural é causa de
melancolia.
Mas com quem falo, ou que estou gritando,
Pois não há nos penedos sentimento?
Ao vento estou palavras espalhando;
a quem as digo, corre mais que o vento.
A voz e a vida, a dor me estão tirando,
E não me tira o tempo o pensamento.
Direi, enfim, as duras esquivanças
Que só na morte tenho as esperanças.