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A melancolia do fauno

Luís M.G. Cerqueira


luiscerqueira@campus.ul.pt

De sexo falaremos, e de lascívia. É essa a ideia basicamente


associada à figura dos faunos, sátiros e afins. Relegados pela cultura
clássica para as profundezas dos bosques e da natureza, cujas forças básicas
personificam, estão aparentemente afastados do mundo do logos e da
sociedade humana. Nessas brenhas os procuraremos: precisamos de nos
aproximar deles para os conhecermos melhor.
Tomemos como ponto de partida a versão ovidiana do mito de
Siringe, Metamorfoses, I, 679ss:

restabat referre uerba


et precibus spretis fugisse per auia nympham,
donec harenosi placidum Ladonis ad amnem
uenerit; hic illam cursum inpedientibus undis
ut se mutarent liquidas orasse sorores,
Panaque cum prensam sibi iam Syringa putaret,
corpore pro nymphae calamos tenuisse palustres,
dumque ibi suspirat, motos in harundine ventos
effecisse sonum tenuem similemque querenti.
arte noua vocisque deum dulcedine captum
'hoc mihi colloquium tecum' dixisse 'manebit,'
atque ita disparibus calamis conpagine cerae
inter se iunctis nomen tenuisse puellae.

Pã , levado pelo desejo, vai no encalço da ninfa Siringe, que para lhe
escapar se transforma num canavial. Em vez do corpo – pro corpore – são
canas que Pã abraça, e o seu suspiro de desconsolo provoca sonoridades
nas canas, surgindo assim uma arte noua. A consumação do desejo físico é
substituída pela criação artística, pela música/poesia, simbolizadas pela
flauta que Pã vai criar. E o seu som é melancólico como um lamento –
similem querenti.
A música é um Ersatz do corpo desejado, e esta é uma música triste.
A criação artística, traço distintivo da cultura no seu nível mais elevado,
que se eleva mesmo ao plano divino, vem colmatar a frustração do desejo e
remediar a falência da natureza. A arte substitui o acto.
Outra isotopia do mito é o carácter de permanência da arte, que
perpetua o encontro de Pã e de Siringe: hoc mihi conloquium tecum ‘
dixisse’ manebit. Temos reunidos os elementos fundamentais do nosso
fauno.
Nos Emblemas do italiano Alciato, 1º edição em 1522, Pã é
representado como símbolo da natureza, mas assinala-se o seu carácter
dúplice e complexo: é semicápreo, semidivino, metáfora evidente do
homem: a parte superior é logos, cultura, arte; a parte inferior é animal
lascivo, privado da razão.

O mesmo se diga do seu confrade, o sátiro, que no emblema LXII é


representado de forma semelhante, a ilustrar não a Natureza mas a Luxúria,
insistindo o texto na concupiscência dos sátiros relativamente às ninfas.
Em Camões, na famosa Écloga dos faunos, a sétima, encontramos
esta dimensão dúplice dos Faunos e o reconhecimento da complexidade da
condição humana, misto de natureza e cultura. São semicápreos, como em
Alciato1, mas são-nos também apresentados em primeiro lugar como
artistas. Com eles se identifica o poeta, pastor/cantor da poesia bucólica,
que, tal como os faunos, também canta e também sofre a frustração erótica.

As doces cantilenas que cantavam


Os semícrapros deuses, amadores
Das Napeias, que os montes habitavam,
Cantando escreverei; que, se os amores
Aos silvestres deuses maltrataram,
Já ficam desculpados os pastores.

Após uma secção narrativa em que o poeta /pastor relata o encontro


dos dois faunos com as ninfas que surpreendem a banhar-se e perseguem
sem êxito, é dada a palavra a cada um deles, que se queixam amargamente
das ninfas fugidias.
O primeiro fauno argumenta com a formulação de um eros como
força cósmica poderosa e positiva, imposta pela natureza e por Deus, numa
reformulação do conceito de eros que encontramos na antiguidade clássica,
em que a sexualidade é força positiva, benéfica, e sobretudo legítima,
retomando concepções pagãs, mas argumentando também com os desígnios
de Deus, num esforço de integrar a perspectiva clássica na mundividência
cristã. As ninfas afastam-se simultaneamente das leis de Deus e das da
natureza.

Amor é um brando afeito


Que deus no mundo pôs e a Natureza
para aumentar as coisas que criou.
De amor está sujeito tudo quanto possui a redondeza (…) precibus
Entre as ervas dos prados
Não há machos e fêmeas conhecidas
E junto ũa de outra permanece?

É certo que no Cristianismo o desejo foi diabolizado, e que a


iconografia do fauno passa na Idade Média para a figura do diabo. É lugar
comum falar-se da rejeição do corpo por parte do Cristianismo. Dizia-nos
ontem o Professor Segurado e Campos que a criação do homem à imagem
e semelhança de Deus o afasta do seu lugar na natureza.
Note-se contudo que já os autores antigos, Platão à cabeça,
estabelecem a dicotomia da elevação do espírito por oposição à matéria, e o
lugar excepcional do homem na scala mundi: dizem-nos Cícero e Boécio

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Camões conhecia e utilizou Alciato, como se pode confirmar também pela sua Ode sétima, em que
mostra conhecer o emblema 120.
que o homem é o único que ergue a cabeça para cima, enquanto os outros
animais olham para o chão, e extraem daí as suas conclusões.
Claro que nos podemos questionar sobre o carácter contrastante
destas formulações camonianas, basicamente pagãs, com a moral sexual do
seu tempo, mas temos de verificar que a forma argumentativa supõe que
não se trata de uma ruptura com os valores da sociedade do seu tempo,
marcadas por uma moral sexual bastante diversa, mas em que o quadro
moral clássico funciona como espelho, como ponto de partida de uma
reflexão crítica sobre o seu próprio tempo. Mas a argumentação supõe que
não há ruptura decidida e absoluta.
Os discursos poéticos dos faunos, numa primeira fase, são preces
persuasivas, nomeadamente a primeira fala (precibus), mas gradualmente o
canto, um canto alongado, transforma-se num substituto magoado da
consumação do desejo (pro corpore). Desistiu-se da perseguição, as ninfas
metamorfosearam-se em música, tornam-se pretexto do canto, a flauta
substitui o corpo, a cultura, a natureza.
O segundo fauno argumenta largamente com a mitologia ovidiana,
escrevendo uma espécie de mini-metamorfoses, em que a mitologia
funciona como paradigma de comportamentos a imitar e a evitar, na
tradição do uso helenístico e romano da mitologia pelos poetas elegíacos.
Das muitas oitavas da fala do segundo fauno, a grande maioria são
exempla mitológicos a corroborar a impiedade que constitui a rejeição de
eros e as funestas consequências que daí advieram a personagens
mitológicas. No «espesso monte» da natureza, em que Camões situa estes
Faunos, encontramos refinados literatos de tradição alexandrina.
Camões, ele próprio, é sem dúvida um fauno. É na épica e na poesia
bucólica, géneros mais próximos da matriz clássica, que tem as suas pernas
de bode. O desejo que sempre tarda, a sensualidade de muitos do seus
versos, a carnalidade das suas descrições da mulher, são uma Afrodite
pandemos, uma Venus uulgaris, que contrasta com una concepção do amor
mais espiritualizada, a sua Afrodite urania, celestis, que encontramos na
poesia lírica, mais italianizante.
Só na ilha, esse espaço ideal de perfeição sonhada, é que o fauno
Camões, o fauno artista, encontrará o apaziguamento desta tensão, criando
uma visão de plenitude harmoniosa da dimensão natural e cultural do
homem, a realização do desejo e a elevação do espírito através do
conhecimento da máquina do mundo.
Mas também na Écloga dos Faunos a substituição do corpo pela
flauta é triste, e disso são testemunho os versos finais. Se a criação artística
parte de uma frustração, de uma limitação no âmbito da natureza, é à
infelicidade que conduz. A perda da dimensão natural é causa de
melancolia.
Mas com quem falo, ou que estou gritando,
Pois não há nos penedos sentimento?
Ao vento estou palavras espalhando;
a quem as digo, corre mais que o vento.
A voz e a vida, a dor me estão tirando,
E não me tira o tempo o pensamento.
Direi, enfim, as duras esquivanças
Que só na morte tenho as esperanças.

Aqui, o triste sátiro acabou,


com saluços que a alma lhe arrancavam. querenti
E os montes insensíveis que abalou,
Nas últimas respostas o ajudavam,
Quando Febo nas águas se encerrou
Cos animais que o mundo alumiavam,
E co luzente gado apareceu
A celeste pastora pelo céu.

Gostaria agora de vos falar de um outro Fauno, este francês, de nome


Mallarmé, que em 1876 publica na versão final um soberbo poema L’
après-midi d’un faune, marco do simbolismo francês, em que a palavra é
realmente música.
No calor da tarde, um fauno acorda da sua sesta, na modorra cálida
da bucólica Sicília, e recorda o encontro que teve com duas ninfas: o
acontecido e o sonhado misturam-se, e a linguagem torna-se lugar do
acontecer. A linguagem é fixação, permanência do objecto do desejo. O
primeiro verso enuncia este carácter permansivo da arte, que encontramos
desde Ovídio: “Ces nymphes, je les veux perpétuer.”
Mas a linguagem poética é agora ela própria a consumação do
desejo, o acontecer sexual. A flauta aparece metaforicamente como falo,
“não há murmúrio de água que não seja o som da minha flauta a derramar
acordes líquidos sobre o arvoredo”.

Ne murmure point d´ eau que ne verse ma flute


Au bosquet arrosé d’accords

A sensualidade é expressa por magníficas metáforas de significado


sexual evidente, mas em que se mantém um decoro aparente. Passamos a
um patamar em que a linguagem se assume como espaço de uma realidade
alternativa, instaura uma realidade fantástica.
Embora haja dois tipos de letra, que pretendem distinguir a realidade
recordada e o devaneio onírico do fauno, nem o próprio fauno sabe
distinguir a realidade do discurso. Se as duas ninfas que ele encontrou de
manhã o rejeitaram, no seu devaneio ele possui a própria rainha das ninfas:

Etna! C’est parmi toi visité de Vénus


Sur ta lave posant ses talons ingénus,
Quand tonne une somme triste où s´épuise la flamme.
Je tiens la reine!

A flauta funde-se com o corpo, numa ambiguidade magistral, que


torna este texto especialmente difícil de traduzir.
Foi a partir deste texto que Claude Debussy compôs o seu poema
sinfónico Prélude à ‘l’après midi d’un faune, de 1894, obra que representa
também ela um marco na evolução da técnica musical, com a subversão das
relações harmónicas tradicionais.
A flauta, cujo solo inicia a peça, introduzindo o tema dominante, o
andamento preguiçoso, o carácter vago e onírico, a sensualidade, a
melancolia que se sente por entre a sensualidade, a ausência de um clímax
musical óbvio, a sugerir a ausência de um orgasmo físico, dão corpo sonoro
à essência do poema de Mallarmée.
E para terminar um fauno radical: Vaslav Nijinsky, bailarino
virtuosístico mas não virtuoso, que em 1912 coreografa esta música - a sua
primeira coreografia para os Ballets russes.
A sua opção é inversa relativamente às anteriores. Este fauno lança
fora a flauta: já não é a cultura que persegue, mas as ninfas,
obstinadamente, e a sua coreografia salienta o carácter animal do fauno
através dos gestos angulosos. É um momento de charneira na evolução da
dança, o nascimento da dança moderna: a dança torna-se autónoma
relativamente ao gesto rítmico da música, abandona-se o academismo do
bailado clássico e os seu gestos arredondados. As bailarinas apresentam-se
sempre de perfil, imitando os vasos gregos, como forma de localizar num
universo clássico o desenrolar do bailado.
Ao ser rejeitado pelas ninfas, o fauno de Nijinsky não desiste e
consuma o seu desejo de forma onanista, simulando masturbar-se em palco,
segurando o lenço da ninfa que lhe escapara, criando assim o maior
escândalo da história da dança.
Confronta assim, de forma radical, as noções de moral sexual da
sociedade do seu tempo, assumindo uma ruptura com os valores
generalizados. Ao ser confrontado por Diagilev, «que fizeste?», responde
com a célebre frase, «Não fui eu, foi o fauno». Esta ruptura foi tão violenta
que a coreografia se eclipsou em poucos anos do repertório, e só foi
recuperada em 1980, com a descoberta das anotações de Nijinsky, depois
de muitas mudanças nos costumes.
Este choque com a cultura e os valores morais da sociedade do seu
tempo, juntamente com a evolução pessoal do bailarino e coreógrafo, com
a sua sexualidade desenfreada e transgressiva, com a sua esquizofrenia
galopante, parecem indicar que o fauno biológico é tão catastrófico como
um fauno artista, e mais destrutivo.
Como não ceder à tentação de relacionar este afastamento da cultura,
na sua dimensão social, esta valorização do lado animal do fauno, com a
sexualidade transgressiva de Nijinsky, amante do empresário Diagilev,
casado com Romola e de vida pessoal muito conturbada?
Como não recordar a afirmação de Alciato relativamente à ausência
de ratio na metade inferior do fauno, ao verificar que Nijinsky morre
esquizofrénico, e fisicamente degradado, tendo dançado pela última vez aos
29 anos, e morrido aos 31, uma morte prematura precipitada pela
esquizofrenia e pela degradação física?
Se cortarmos o homem a meio, o resultado é catastrófico: se o fauno
espiritual é triste; o fauno animal degrada-se. `
Porque fogem sempre as ninfas? Por que correm mais do que o
vento? A consumação do desejo é fugaz, o apaziguamento apenas físico
não comporta uma serenidade completa ou duradoura, que sempre nos
escapa.
Se não podemos rejeitar a natureza, ela também não nos basta. É este
o drama do homem/fauno, cuja evolução o tornou, ainda que parte da
natureza, um caso aberrante de sucesso, precisamente devido à construção
de uma dimensão cultural que o afastou dela.
A literatura e as artes em geral não são certamente formas de
conhecimento, muito menos rigoroso e científico, apesar de alguns
equívocos históricos, resultantes do nosso complexo de não sermos
cientistas, como a leitura psicanalítica dos romances de Flaubert, tão em
voga há umas décadas. Mas o carácter permansivo da literatura veicula a
experiência humana de muitas gerações, o que nos dá algum entendimento
da humanidade no seu devir.
A figura do fauno propiciou uma reflexão sobre a complexidade da
condição humana, e neste mito, ainda que secundário na mitologia antiga,
cristalizou-se uma realidade profunda, expressa na verdade da poesia; do
ponto de vista sociológico possibilitou uma afirmação do desejo em
sociedades que culturalmente o reprimiram; propiciou uma reflexão sobre a
criação artística e inspirou obras de arte com grande importância na
evolução dos processos estéticos.
Que mais podemos pedir a um Fauno?

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