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VOLPE, Maria Alice (org.). Anais do III Simpósio Internacional de Musicologia


da UFRJ "Patrimônio Musical na Atualidade: Tradição, Memória, Discurso e
Poder". Rio de Janeiro: Unive...

Book · July 2013

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Maria Alice Volpe


Federal University of Rio de Janeiro
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MARIA ALICE VOLPE (ORG.)
ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ

PATRIMÔNIO MUSICAL
NA ATUALIDADE:
TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
Carlos Levi SUMÁRIO
Reitor
Antônio Ledo
Vice-reitor
Debora Foguel APRESENTAÇÃO 9
Pró-reitora de Pós-graduação e Pesquisa Maria Alice Volpe
CENTRO DE LETRAS E ARTES
Flora de Paoli PREFÁCIO 11
Decana
Maria Alice Volpe
ESCOLA DE MÚSICA
André Cardoso
Diretor AGRADECIMENTOS 13
Marcos Nogueira
Vice-diretor
INSTITUIÇÕES PATRIMONIAS E ACERVOS 15
Afonso Barbosa Oliveira - Diretor Adjunto de Ensino de Graduação
Celso Ramalho - Coordenador do Curso de Licenciatura
João Vidal - Diretor Adjunto do Setor Artístico Cultural Tributo biografia musical Guilherme de Mello: 80 anos de falecimento 17
Miriam Grosman - Diretora Adjunta dos Cursos de Extensão
Marcos Nogueira - Coordenador do Programa de Pós-graduação em Música Marcos Santana
Maria Alice Volpe - Editora-chefe
Normalização: Maria Alice Volpe Patrimônio musical e memória: os manuscritos musicais do Museu 25
Projeto gráfico: Gustavo Costa Carlos Gomes
Editoração e tratamento de imagens: Patrícia Perez
Capa: Candido Portinari, Carnaval (1960); imagem cedida por João Portinari (Projeto Portinari) Lenita W. M. Nogueira
Anais do III Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ “Patrimônio Musical na Atualidade:
Tradição, Memória, Discurso e Poder” Acervo Koellreutter: o passado é um meio e um recurso: ||de maneira 39
Maria Alice Volpe (org.) nenhuma um dever||: O futuro, porém é
Conselho Editorial Marcia E. Taborda
André Cardoso
Diósnio Machado Neto
Ilza Nogueira Centro de Referência Musicológica José Maria Neves: patrimônio e 49
Marcos Nogueira
Maria Alice Volpe projeto de futuro
Mary Angela Biason Suely Campos Franco
Régis Duprat
Robin Moore
Meneleu Campos: o catálogo da obra completa consolida os acervos 59
Copyright © 2012 by Autores BNRJ e UFPA
Catalogação: Biblioteca Alberto Nepomuceno/EM/UFRJ Mário Alexandre Dantas Barbosa
500 exemplares

Fontes para o estudo da música sacra em Goiás: 67


o acervo do maestro Balthasar de Freitas
Marshal Gaioso Pinto
Catalogação: Biblioteca Alberto Nepomuceno/EM/UFRJ
UNIVERSO LUSÓFONO 79
Simpósio internacional de musicologia da UFRJ
Anais do III Simpósio internacional de musicologia da UFRJ Patrimônio musical na atualidade:
S612a tradição, memória, discurso e poder / Maria Alice Volpe (org.). – Rio de Janeiro : Universidade A música religiosa de Marcos Portugal (1762-1830): 81
Federal do Rio de Janeiro, Escola de Música, Programa de Pós-graduação em Música, 2013 . o repertório luso-brasileiro
196 p. : il. ; 21cm. António Jorge Marques
Trabalhos originalmente apresentados no III Simpósio Internacional de Músicologia da UFRJ
(3. : 13 a 16 de agosto de 2012 : Rio de Janeiro, RJ)
ISBN: 978-85-65537-03-2 “Era uma vez um príncipe”: uma versão brasileira da ópera Il Guarany de 97
Carlos Gomes
1. Patrimônio Musical – História e crítica. 2. Musicologia – História e crítica. I. Volpe, Maria Alice, org. Lucia de Fátima Ramos Vasconcelos, Alberto José Vieira Pacheco e Adriana
II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Escola de Música. Programa de Pós-graduação em Música.
III. Anais do II Simpósio internacional de musicologia da UFRJ. Giarola Kayama

CDD - 780.5
PATRIMÔNIO MUSICAL E IDENTIDADE 109

Eduardo de Borja Reis (1859-1896): um crítico musical a serviço da 111


República do Brasil
Clarissa Lapolla Bomfim Andrade

The Café and the Espectáculo: collective remembrance, musical materiality 121
and Jewish performance at the Asociación Mutual Israelita Argentina
(AMIA)
Lillian M. Wohl

A prática da Hausmusik em Curitiba: uma perspectiva histórica, identitária 137


e educativa
Elisabeth Seraphim Prosser

DIVERSIDADES ETNOMUSICAIS 149

Preservação da rabeca na Marujada de Bragança, Amazônia, Pará: 151


resultados de uma interferência pública no patrimônio cultural
Mavilda Aliverti

Patrimônio imaterial no cavalo-marinho de Pernambuco 165


Paulo Henrique Lopes de Alcântara

TRADIÇÕES REVISITADAS 173

Uma leitura da adaptação musical de Iannis Xenakis da tragédia grega 175


Orestes de Ésquilo
Pedro Bittencourt

O Órgão da Antiga Sé do Rio de Janeiro como patrimônio virtual: sua 189


atualização hoje
Daniel Vincent Birouste e Paulo Eduardo Martelli
APRESENTAÇÃO

Os Anais do Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ seguem a proposta de


coletâneas temáticas vinculadas ao evento científico de mesmo nome e tem por objetivo
publicar os trabalhos selecionados mediante submissão. Os Anais complementam a Série
Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ, dedicada aos conferencistas convidados, e
conta igualmente com a colaboração estudiosos oriundos de instituições com diversidade
geográfica, intensificando assim o diálogo entre as comunidades nacional e internacional.
O Conselho Editorial empenha-se em contribuir para a catalisação do avanço do
conhecimento científico na área e para a sistematização e aprofundamento da temática
escolhida para cada volume.

Maria Alice Volpe


Editora

ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 11


PREFÁCIO

O presente volume Patrimônio Musical na Atualidade: Tradição, Memória, Discurso


e Poder visa a uma reconceituação do tema em questão, bem como uma ampliação e
aprofundamento das questões teóricas e metodológicas da pesquisa musical, buscando
maior interseção com as políticas públicas e ações comunitárias relativas aos bens
culturais, tangíveis e intangíveis, e as formas de saber, fazer e criar atinentes à música.
O tema “patrimônio cultural” ou “patrimônio musical” tem envolvido ações e questões
concernentes ao levantamento e a preservação dos bens culturais, a pesquisa, a promoção
da diversidade e do valor cultural, a conceituação da distinção entre patrimônio material
(tangível) e imaterial (intangível), a construção de identidades, a educação patrimonial,
a democratização do acesso ao próprio patrimônio enquanto bem cultural e forma de
conhecimento, a inclusão social, as economias criativas e a propriedade intelectual. Ao
propiciar um diálogo frutífero entre pesquisadores musicais, compositores, dirigentes de
instituições culturais e especialistas de áreas afins, o tema apresentado neste volume busca
refletir em que medida a pesquisa e reflexão musicológica, juntamente com a criação
musical e as inovações tecnológicas, podem contribuir para as políticas públicas e ações
institucionais em atendimento às diversas demandas de construção de conhecimento
novo em interseção com a sociedade.

Maria Alice Volpe

ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 13


AGRADECIMENTOS

Aos membros do Conselho Editorial

E aos apoios de
Faperj
Capes
Banco do Brasil

ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 15


INSTITUIÇÕES PATRIMONIAS E ACERVOS
Tributo biografia musical Guilherme de
Mello: 80 anos de falecimento

Marcos Santana
Centro de Estudos Miguel Santana
Projeto Memória Musical da Bahia

Os oitenta anos de falecimento daquele que é considerado o primeiro historiador da


música no Brasil, Guilherme Theodoro Pereira de Mello (1867-1932), traz consigo a
memória ancestral da própria musicologia brasileira. Com o perfil biográfico quase que
ignorado nos meios acadêmicos, esse músico e pesquisador de formação militar, saído da
Casa Pia e Colégio dos Órfãos de São Joaquim em 1883, talvez fosse mais conhecido na
antiga Capital Federal pela característica peculiar de sua intelectualidade, local onde re-
ceberia, postumamente, as louvações do musicólogo Luiz Heitor Correa de Azevedo, seu
substituto na biblioteca da Escola Nacional de Música e editor da terceira edição do livro de
Guilherme de Mello, A música no Brasil: dos tempos coloniais até o primeiro decênio da República.1
O fato é que passados oitenta anos do falecimento de Guilherme de Mello inexiste na
atualidade um estudo crítico voltado para a sua importante obra e, complementarmente,
para a sua trajetória biográfica e musical na Bahia, ampliada até o Rio de Janeiro. A
citação fragmentária quase que obrigatória da referência bibliográfica que ele representa
não tem contribuído suficientemente para que as sucessivas gerações de pesquisadores
da música no Brasil conheçam, extensivamente, o perfil intelectual de Mello, tampouco
a sua divisa de luta pela superação de obstáculos acadêmicos.
Ao deixar a instituição que lhe dera abrigo e formação musical na condição de órfão,
não satisfeito, buscaria mais conhecimentos para alimentar a semente que lhe plantara na
mente fértil o seu mestre de banda Elisiário Epifânio Borges de Andrade. Esse aspecto
da personalidade de Guilherme de Mello pode ser comprovado com o depoimento de
seu editor expresso nos seguintes termos:
Ávido de ciência musical, não encontrando no ensino desse modesto mentor tudo o que
necessitava para esclarecimento de seu espírito, pôs-se a adquirir livros desde os anos
da adolescência, constituindo pouco a pouco a importante biblioteca musical que teve a
fortuna de possuir. (AZEVEDO, 1947, p. 9)
Elucidativo, Luiz Heitor Correa fornece ao leitor dados importantes sobre o perfil biográfico e,
sobretudo, o traço marcante da vocação intelectual levada a termo como prioridade na superação de
limites e na consecução de objetivos práticos. Essa característica de tenacidade no preparo pessoal
com o investimento prioritário nas faculdades intelectuais garantia a realização de um projeto
editorial audacioso, cujo impacto inaugural ainda serve de discussões e debates na atualidade.

1
Um estudo crítico sobre a publicação do livro A música no Brasil de Guilherme de Mello deverá esclarecer,
futuramente, aos leitores as circunstâncias da reedição integral do seu texto no Dicionário Histórico, Geográfico e
Etnográfico do Brasil [2ª edição]. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1922.

ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 19


Breve histórico da Casa Pia e Colégio dos Órfãos de São Joaquim2 os quase dez anos de permanência como asilado também ficaria registrado na sua obra
Fundada em 1799, pelo irmão leigo catarinense, Joaquim Francisco do Livramento, a como um relato autobiográfico de profundo sentimento de pertença:
Casa Pia e Colégio dos Órfãos de São Joaquim é considerada a mais antiga instituição Cabe aqui uma glória para Casa Pia e Colégio dos Órfãos de S. Joaquim, bem como ao extinto
educacional em funcionamento no Brasil. A sua trajetória multissecular distingue-se na Arsenal de Guerra o ter sido a escola donde saíram a maior parte dos nossos musicistas célebres,
história do país pela característica peculiar de acolher menores órfãos, dando-lhes formação tanto na execução dos instrumentos de sopro, como na composição de músicas militares e na
educacional humanística, religiosa e profissional, preparando-lhes para o exercício pleno mestrança de sociedade filarmônicas. Enche-me neste momento a alma de júbilo, somente por
da cidadania através do trabalho qualificado e do protagonismo social. ter sido educado em S. Joaquim, o alistar-me no meio destes artistas, não obstante a minha
Instituição diretamente ligada ao Império, o pioneirismo da Casa Pia e Colégio profissão particular ser o ensino de piano. (MELLO, 1947, p. 278)
dos Órfãos de São Joaquim teria influenciado desde longa data o surgimento de outras
A poucas pessoas é dado o direito de registrar em livro as memórias sobre o apren-
instituições congêneres como o Colégio Pedro II e o Asilo de Meninos Desvalidos no
dizado educacional e artístico. Tampouco, se lhes é facultada a oportunidade de traçar o
Rio de Janeiro; o Instituto Amazonense de Educandos Artífices no Pará e a Escola de
perfil daquele ou daquela que foi responsável pelo desenvolvimento da vocação profis-
Aprendizes do Arsenal da Marinha em Salvador.
sional. Pereira de Mello ao fazer memória do seu mestre de música deixaria em seu livro
Dentre os incontáveis nomes de órfãos que saíram da Casa Pia e Colégio dos Órfãos
um relato sucinto, porém de grande valor musicológico sobre a experiência que teve no
de São Joaquim para exercer dignamente o ofício profissional e qualificado no mercado de
convívio quase diário com Elisiário:
trabalho de Salvador, um ficaria definitivamente associado à instituição que lhe transmitiu
o saber e, sobretudo, a faculdade de refletir, pesquisar, produzir, disseminar, informar, Quem foi este artista sé eu posso dizer, pois, que, como sucessor de Livino na aula de
historiar. Isto aconteceria com Guilherme Theodoro Pereira de Mello. Filho do alferes música do Colégio dos Órfãos de S. Joaquim, foi o único professor que tive. Labutei com
Pedro Theodoro Pereira de Mello e Helena Francisca de Pereira de Mello, ingressou na Elisiário nove anos seguidos, a maior parte como seu contramestre, era de uma exigência
instituição como órfão de pai em 1876 e saiu qualificado em Primeiras Letras, Latim, transcendente, como instrumentista de uma bravura indômita, como compositor marcial
Humanidades e Música em 1883, requerido pela sua genitora.3 de um inspiração heroicamente espartana. (MELLO, 1947, p. 253)
Desse período em diante a trajetória artística e profissional de Guilherme de Mello Depreende-se desse comentário breve toda a formação obtida ao longo de sua perma-
ficaria reservada em grande parte ao anonimato, exceto alguns registros pessoais através nência no orfanato. O jovem Guilherme de Mello sairia tão bem preparado para exercer
dos quais ele circunstancia, institucionalmente, o seu trabalho como professor de música. o nobre ofício da música (termo adotado na instituição), que retornaria anos mais tarde
Ao comentar sobre o declínio institucional do antigo Conservatório de Música da como mestre de banda, substituindo Elisiário Epifânio Borges de Andrade.
Bahia deixa transparecer a sua competência e o seu carisma aglutinador: Por sua vez, a Casa Pia e Colégio dos Órfãos de São Joaquim ao completar 200 anos de
Eu mesmo, durante os poucos meses que lá estive a pedido do Dr. Dotto, em nome da fundação seria escolhida como objeto de estudo do pesquisador Alfredo Eurico Rodrigues
arte, substituindo a cadeira de Princípios de música, cujo lente fora licenciado em virtude Matta e o resultado desse importante trabalho acadêmico orientado pela historiadora
da crise financeira que assolava o Estado, o qual já havia alguns anos, não pagava as Consuelo Novais Sampaio foi publicado em 1999 pela Secretaria da Cultura e Turismo e
subvenções, consegui povoar completamente o salão de minha aula a ponto de não haver Empresa Gráfica da Bahia, através da Coleção Apoio, 46, com o título Casa Pia e Colégio
mais lugares para os alunos. (MELLO, 1947, p. 278) dos Órfãos de São Joaquim: de recolhido a assalariado. Considerado um livro de referência
para estudiosos do assunto não trata diretamente do ensino de música, classificado pela
Em outra passagem revela o seu compromisso com a instituição que lhe dera abrigo,
instituição como ofício nobre, muito menos faz qualquer alusão ao eminente ex-aluno
contribuindo de forma solidário no desenvolvimento de projetos educacionais e profis-
Guilherme de Mello quando comenta sobre os alunos ilustres (MATTA, 1999, p. 150).
sionalizantes, assegurando lhe certa autonomia financeira:
Antes de transferir definitivamente o seu endereço residencial para o Rio de Janeiro em
Como professor, presentemente, desta casa, trabalho incessantemente para que se ajunte a 1928, Guilherme de Mello trilharia o caminho de mestre de música na Casa Pia e Colé-
esta gloriosa tradição artística a outra glória dela ser a regeneradora de nossas orquestras. gio dos Órfãos de São Joaquim (1892) e no Ministério da Guerra, integrando o Arsenal
Para isso iniciei o ensino de violino e algumas noções de canto de que a casa já vai tirando, da Bahia (1899). Publicaria em 1909,4 o livro A música no Brasil: dos tempos coloniais até o
com os contratos, o pecúlio necessário para o seu sustento, bem como ainda da banda primeiro decênio da República. Criaria, por conseguinte, conjuntos musicais vocais e instru-
marcial que lhe é anexa e de seu instrumental. (MELLO, 1947, p. 278) mentais como a schola cantorum e a banda de música do Colégio São Joaquim. Ao deixar a
O sentimento de gratidão e reconhecimento pelos conhecimentos adquiridos durante instituição Guilherme de Mello seria substituído na função mestre de banda e de regente
do coral pelo seu dileto aluno e contramestre Manoel Zeferino dos Santos (1896-1961).
2
A instituição tem funcionado regularmente, na atualidade, com regime de internato e semi-internato. Ao
perceber a importância da trajetória biográfica do ex-aluno Guilherme Theodoro Pereira de Mello e o seu 4 Contemporâneo de Guilherme de Mello, Manuel Raymundo Querino (1851-1923), através de sua obra referencial
reflexo na formação dos atuais alunos, foi criada em 2012, a comenda post mortem Medalha do Mérito Escolar Artistas Baianos (1909) oferece preciosas informações sobre o que seria o ano provável de publicação do livro A música
Guilherme de Mello. no Brasil: dos tempos coloniais até o primeiro decênio da República, universalmente reproduzido como 1908; enquanto os
3
O levantamento de informações mais completas sobre o perfil biográfico de Guilherme de Mello integra as dados “Bahia 1909”, esboçados no rodapé da capa original, encontrada em dois exemplares, um na Bahia e outro no Rio
pesquisas recentes do Projeto Memória Musical da Bahia, Tributo Biografia Musical: 80 anos de falecimento. de Janeiro, chama a atenção do leitor que este e não aquele seria o ano de publicação da referida obra.

20 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 21
Tributo biografia musical: revelando a face oculta de músicos Em 2010, o professor santamarense Basílio Sant’Anna seria contemplado com o regis-
O Projeto Memória Musical da Bahia5 tem sido o principal responsável pela realização tro dos seus oitenta anos de idade. Já em 2011, foram alvo do Tributo Biografia Musical
de campanhas comunitárias sobre educação patrimonial, cultura e cidadania; tem promo- o organeiro e inventor francês Aristides Cavaillé-Coll e o organista belga radicado na
vido o lançamento de publicações, assim como a realização de simpósios temáticos sobre Bahia Herman Coppens, juntamente com o flautista militar Rafael de Souza Barbosa;
a tradição da música organística e sobre o acervo de música sacra na Bahia. Diretamente seguidos do religioso frei Gregório de Frei Paulo e do educador Adroaldo Ribeiro Costa.
vinculado à Associação Amigos do Coral Renascer, Núcleo de Amigos do Canto Coral, Nomes de representação comunitária escolhidos para receberem louvações e homenagens
Núcleo de Amigos do Órgão de Tubos e Centro de Estudos Miguel Santana já desen- pela importante contribuição no desenvolvimento da música na Bahia. Desde 1998 essa
volveu parceria institucional com a Universidade Católica de Pernambuco, Universidade dinâmica tem se repetido com certa regularidade.7
Católica do Salvador, Universidade Federal da Bahia e Arquidiocese de São Salvador da
Bahia, Instituto Feminino da Bahia (Centro de Fé e Cultura), Convento Nossa Senhora Considerações finais
da Piedade, Câmara Municipal de Salvador, Associação Brasileira de Organistas, TV Guilherme Theodoro Pereira de Mello, ex-aluno e ex-mestre de banda da Casa Pia
Pelourinho, Ordem Terceira do Carmo e a instituição educacional Hora da Criança. e Colégio dos Órfãos de São Joaquim; escritor, historiador, musicólogo e co-Patrono
Baseada em iniciativa de caráter educativo e informativo a realização do Tributo Bio- da Academia Brasileira de Música ao se tornar o principal alvo do Projeto Memória
grafia Musical visa o reconhecimento comunitário de lideranças culturais e artísticas que Musical da Bahia, através do Tributo Biografia Musical 2012, recebe, por conseguinte,
atuam ou atuaram na cidade do Salvador e que permanecem de alguma forma, anônimas um tratamento crítico e musicológico na sua trajetória biográfica com alguns acréscimos
para o grande público. nas informações que têm circulado em publicações impressas e digitais.
Sobre esse aspecto, caracterizado na Cidade da Bahia como cultura do esquecimento, o Com essa singela iniciativa amplia-se ainda mais o alcance da memória musical de Pereira
livro de Manuel Querino Artistas baianos (1909), introduz a temática de valorização dos mes- de Mello junto aos pesquisadores da atualidade, despertando o olhar crítico sobre uma obra
tres do passado, assegurando-lhes o conhecimento do perfil biográfico e artístico. Querino, escrita com base em princípios positivistas de etnografia, história e musicologia, que por sua
procurando informar o seu leitor, justificaria a sua iniciativa baseada nos seguintes termos: vez apresenta as limitações naturais de um dado ambiente artístico e cultural e de uma dada
Resolvi traçar o ligeiro esboço que se segue, no intuito de tornar conhecido, si [sic] bem época, cujas instituições ainda refletem resquícios do provincianismo criticado pelo autor.
que resumidamente, o merecimento incontestável de alguns artistas que floresceram nos A biografia de Mello analisada sob a perspectiva histórica e social de um órfão que
séculos XVIII e XIX, a par de poetas, escritores e jornalistas que enalteceram as glórias foi matriculado por sua mãe em uma instituição voltada para a caridade pública, que ao
desta terra, pois a Bahia possue [sic] muita preciosidade na poeira do esquecimento. garantir a sobrevivência de seu filho dar-lhe-ia, por conseguinte, uma formação educacional
(QUERINO, 1909, p. 8) de base militar e complementarmente humanística, para exercer o nobre ofício de músico
com o mesmo preparo de quem exerceria um ofício com menos preparo intelectual, mais
Nesse mesmo raciocínio de solidariedade artística e de compromisso social é que se
pragmático como marcenaria, carpintaria, caixeiro, alfaiate, atendendo às demandas de
insere o tributo prestado à memória de Guilherme de Mello. Ao longo de 15 anos, aproxi-
desenvolvimento do comércio local. Como teria acontecido com os seus dois irmãos
madamente, várias edições do Tributo Biografia Musical foram realizadas, contemplando
Ricardo Theodoro Pereira de Mello e Alexandre Theodoro Pereira de Mello.
professores, regentes, cantores, compositores, musicólogos, historiadores e instrumentistas.
Características peculiares de tenacidade e de determinação em alcançar o alvo persegui-
Agenor Gomes, Hamilton Carvalho Lima, Lindembergue Cardoso, Humberto Portugal
do desde a mais tenra idade marcariam a trajetória do jovem músico baiano. Esse aspecto
de Lima, Eduardo Vieira de Melo, Maria Dulce Calmon Bittencourt Pinto de Almeida,
intrínseco de sua personalidade teria assegurado, extensivamente, a sua permanência na
Maria Angelina de Carvalho Mello, Maria de Jesus, Paulo Gondim, Pino Onis, Lindbergh
luta e conquista de um ideal de vida projetado sobre a realidade concreta da então Capital
Pires, Abigail Carneiro, Madalena Moreira Conceição, Elena Escariz, Djalma Rocha
Federal. Conviver no ambiente cultural e artístico do Rio de Janeiro deveria ter sido a
de Oliveira, Jaime Cavalcanti Diniz, Marieta Alves, Theodoro Serravalle Carda, Pedro
sua meta maior enquanto esteve circunscrito no território baiano.
Sinzig, Pedro Irineu Jatobá, Sílvio Deolindo Fróes, são alguns dos nomes que receberam
Sede da nascente e conturbada Era Republicana, a antiga capital do Império, acolheria
o singelo reconhecimento de sua atuação no desenvolvimento musical da Bahia entre
em 1928 o músico militar Guilherme de Mello, originário da Cidade da Bahia, que ao pu-
finais do século XIX e o decorrer do século XX.6
blicar os seus escritos, históricos musicológicos e etnomusicológicos passaria imediatamente
Ao registrar os 50 anos do falecimento do maestro Heitor Villa Lobos, seria reali-
a historiador. Conquanto a sua carreira profissional chegasse a um ponto de culminância
zado em 2009 o Ano Villa Lobos na Bahia. A ocasião seria propícia para difundir a lei
mais elevado ao assumir o prestigioso cargo de bibliotecário do Instituto Nacional de Mú-
11.679/08, sobre obrigatoriedade do ensino de música nas escolas brasileiras, assim como
sica, antes ocupado pelo eminente músico cearense Alberto Nepomuceno (1864 -1920).
destacar a trajetória biográfica e artística da professora de canto orfeônico Elíbia Moreira
Os últimos registros sobre a trajetória biográfica de Guilherme de Mello ficariam
de Barreiro, do pianista Élsio Carvalho e do corista Sabino Torres.
registrados na seção obituária denominada “fallecimentos”, do Jornal do Commercio, datada

5 Iniciado em 1998, integrou as atividades do Festival Renascer Cantando e do I Simpósio sobre a música coral 7 Algumas publicações temáticas foram produzidas nesse período como forma de assegurar a divulgação mais
no Nordeste, eventos realizados no auditório da Reitoria da UFBA, Salvador-Bahia. ampla do Tributo Biografia Musical. O periódico Aplauso e a série Cadernos de música são os principais veículos
6 Cf. SANTANA, 2007, p. 44-56. de informação através da divulgação impressa do Projeto Memória Musical da Bahia.

22 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 23
6 de maio de 1932, expressos nos seguintes termos: “Maestro Guilherme de Mello – Fa-
leceu ante-hontem e foi hontem sepultado o maestro Guilherme de Mello, bibliotecário
do Instituto Nacional de Música. O extinto, que exercia o cargo há cerca de cinco annos,
era autor de vários trabalhos, entre os quais a ‘Historia da Musica’. Deixa viuva a Sra.
Maria Rosa Gonçalves de Mello e oito filhos, dentre elles. os Srs. Drs. Adherbal de Mello,
medico, e Pereira de Mello, advogado”.
Embora represente um acontecimento de cunho regional e com pouca repercussão
no cenário nacional e internacional o Tributo Biografia Musical Guilherme de Mello,
ora, parcialmente revistado neste artigo, procura contribuir direta ou indiretamente para
a permanência do diálogo entre passado e presente, tradição e modernidade. De uma
maneira extremamente singela, fica registrada nos anais da musicologia histórica brasileira,
com este trabalho, a passagem dos 80 anos de falecimento do músico baiano Guilherme
Theodoro Pereira de Mello, ocorrido no dia 4 de maio.

Referências
MATTA, Alfredo Eurico Rodrigues. Casa Pia e Colégio de São Joaquim: de recolhido a
assalariado. Salvador: SCT/EGBA, 1999.
MELLO, Guilherme Theodoro Pereira de. A música no Brasil: dos tempos coloniais até o
primeiro decênio da República. Salvador: Typografia São Joaquim, 1908.
MELLO, Guilherme Theodoro Pereira de. A música no Brasil: dos tempos coloniais até
o primeiro decênio da República. In: Dicionário Histórico, Geográfico e Etnográfico do
Brasil [2ª. Edição]. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1922.
MELLO, Guilherme Theodoro Pereira de. A música no Brasil: dos tempos coloniais até o
primeiro decênio da República. 3ª edição. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1947.
QUERINO, Manuel Raymundo. Artistas baianos. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1909.
SANTANA, Marcos. Sobre órgãos, organistas e organeiros. Salvador: EGBA, 2007.
SOTUYO BLANCO, Pablo. O patrimônio musical na Bahia. Salvador: EdUFBA, 2006.

24 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER


Patrimônio musical e memória:
os manuscritos musicais do
Museu Carlos Gomes
Lenita W. M. Nogueira
Universidade Estadual de Campinas
O Museu Carlos Gomes, situado na cidade de Campinas, SP, pela quantidade de
documentos musicais que possui, cerca de setecentos, pode ser colocado como um dos
maiores acervos do gênero no Brasil. Mas sua formação foi bastante peculiar, já que,
ao contrário da maioria dos acervos brasileiros, formados a partir de uma reunião de
materiais de diferentes proveniências, este tem como uma característica a procedência
familiar de sua documentação, que se deve basicamente a Manuel José Gomes (Santana
de Parnaíba, SP, 1792 – Campinas, SP, 1868) e seus filhos José Pedro de Sant’Anna
Gomes (Campinas, 1834 – 1908) e Antônio Carlos Gomes (Campinas, 1836 – Belém
do Pará, 1896).
Manuel José Gomes começou a aprender música com o mestre de capela de sua
cidade natal e por volta de 1810 teria estudado em São Paulo com André da Silva
Gomes. Em 1815 fixa residência em Campinas, então Vila de São Carlos, onde passa
a exercer o cargo de mestre de capela, para o qual foi oficialmente designado em 1820.1
Exerceu essa atividade até sua morte em 1868 e durante este período, que ultrapassa meio
século, produziu grande quantidade de manuscritos musicais, englobando composições
próprias e cópias de obras de compositores diversos, hoje integrando o acervo do Museu
Carlos Gomes.

Figura 1 – Manuel José Gomes

1 O referido documento encontra-se no Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo.

ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 27


Como mestre de capela tinha que cumprir diversas tarefas como cuidar da música nas nobreza ou da igreja, e arte de artista, na qual o mesmo, já sem patrão fixo e com poucos
cerimônias religiosas, reger, compor, copiar música, atuar como professor e, por vezes, patronos à disposição, é obrigado a ir ao encontro do público, que é fundamental não só
arregimentar e pagar cantores e instrumentistas. Dentro deste contexto, Manuel José para sua sobrevivência, mas também para que sua obra e seu nome fossem reconhecidos.
Gomes pode ser tomado como um exemplo da atividade musical no Brasil na primeira No caso de Carlos Gomes isso vai ao extremo, já que durante toda a sua trajetória,
metade do século XIX e não seria ingenuidade relevar a importância de seu trabalho teve pouca relação com a música religiosa, exceto por algumas de juventude (no tempo do
como copista, já que várias peças de compositores brasileiros só sobreviveram graças às artesão), sendo seu nicho a ópera e a música vocal profana (no tempo do artista).
suas cópias. Em um período em que não havia impressão musical no Brasil e o papel era Esta pequena digressão tem com objetivo reforçar a diferença entre a prática
um bem de difícil acesso, a música manuscrita tinha grande valor e a circulação deste musical de Manuel Gomes e seus filhos, o que redunda em uma distinção entre os
material foi o que permitiu que grande parte da música produzida no Brasil durante os materiais produzidos por eles no decorrer do século XIX e que hoje formam o acervo
séculos XVIII e XIX fosse preservada. Deve-se observar que as composições que chegaram do Museu Carlos Gomes. Ao invés da produção abundante de missas e peças religiosas,
até nós foram produtos da escolha de músicos como Manuel, que, por razões que não características da produção de Manuel José Gomes (que também produziu obras
cabem aqui, optaram por copiar este ou aquele manuscrito, o que nos leva a lamentar a profanas, mas em menor quantidade), o que predomina na produção de seus filhos são
quantidade de obras que provavelmente foram perdidas nesse processo. peças instrumentais, ópera, música de câmara, de salão e canções não religiosas.
Posteriormente foram agregados outros manuscritos à Coleção Manuel José Não se sabe exatamente como Manuel José Gomes teria formado o seu arquivo de
Gomes, em especial provenientes de seu filho José Pedro de Sant’Anna Gomes, regente música. Em princípio não há nenhum registro de que tenha se deslocado para fora do
orquestral e de banda, professor e empresário no ramo da música. Ele deu continuidade Estado de São Paulo, exceto em 1861 quando foi ao Rio de Janeiro, mas seu propósito
à atividade do pai, mas é importante destacar que sua atuação ocorreu em condições era extramusical, assistir à estreia da ópera A Noite do Castelo de Carlos Gomes. Embora
diferentes. Seu trabalho já não era voltado exclusivamente para a igreja, mas sim ao alguns manuscritos de Manuel Gomes se encontrem no acervo do Museu da Inconfi-
público que frequentava teatros e salões. O que se pretende afirmar é que Sant’Anna, dência, é lícito supor que lá chegaram por outras vias e provavelmente no século XX, já
embora também tenha tido uma atividade musical longeva, já não tem uma atividade que não existe qualquer registro de viagens de Gomes para este local.
de copista tão intensa quanto Manuel. Na segunda metade do século XIX havia maior É possível que Manuel ampliasse seu acervo durante as viagens que fazia com sua
circulação de partituras, já que, além de maior acesso às peças publicadas na Europa, a banda pelo interior do estado, onde certamente entrava em contato com outros músicos
edição musical no Brasil começava a se regularizar. Além disso, houve um declínio na e havia troca de manuscritos. Por outro lado, há registros de que a residência dos Gomes
atividade musical na igreja católica e o músico teve que buscar sua sobrevivência através em Campinas era um ponto de parada para músicos de passagem pela cidade, que pos-
em sua relação com um público, em geral pagante. sivelmente traziam consigo partituras que Manuel se apressava em copiar. Outro fator
que pode ter sido fundamental para a constituição deste acervo é que Campinas era um
ponto de pouso para quem se dirigia para Minas Gerais e Goiás. Possivelmente alguns
tropeiros transportassem partes musicais que, por haver apenas um único exemplar, de-
veriam ser copiadas no momento em que as caravanas paravam para descansar na cidade.
Talvez isso explique o fato de haver neste acervo tantas obras de compositores mineiros.
O inventário de Manuel José Gomes, falecido em 1868, encontra-se no Arquivo do
Poder Judiciário, hoje sob a guarda do Centro de Memória da Unicamp. Neste documento
encontra-se um documento assinado por Sant’Anna Gomes solicitando ao juiz que,
na partilha dos bens do pai, fosse reservado a ele os instrumentos musicais e o arquivo
de música. No mesmo documento há a aquiescência do juiz e Sant’Anna se torna o
proprietário do material, o que talvez tenha sido fundamental para sua preservação. Ali
encontramos os seguintes valores, o que demonstra que, se comparado aos instrumentos,
o arquivo de música era um bem valorizado.

Piano de armário 30$000


Par de tímpanos 1$000
Figura 2 – José Pedro de Sant’Anna Gomes Violoncelo com archo 50$000
Violleta em bom uso 8$000
Cabe utilizar aqui a expressão cunhada por Norbert Elias (1994) em seu livro sobre Violleta velha 4$000
Mozart. Neste texto o autor, ao estudar a vida deste compositor, vai inseri-lo na transição 3 rabecas em bom uso 4$000
entre o que chama arte de artesão, num período em que o músico era empregado da

28 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 29
1 bombo e caixa de rufo usado 40$000
Pelo archivo de Muzica inclusive o armário em que se
achão tudo pela quantia em [ileg.] vivo que sai 100$00

Figura 3 – Relação de bens no inventário de Manuel José Gomes

Por volta de 1905, nove anos após o falecimento de Carlos Gomes, pensou-se em
criar no Centro de Ciências, Letras e Artes, entidade particular com fins científicos e
culturais fundada em Campinas em 1901 e em atividade até nossos dias, um arquivo
dedicado a este compositor. A ideia foi encabeçada por um dos diretores desta entidade,
César Bierrenbach, que começou a recolher diversos documentos sobre o compositor
campineiro. Este material foi acondicionado em duas caixas de madeira decoradas e foi
o embrião do Museu Carlos Gomes, fundado oficialmente em 1954, quando surgiu a
ideia de criar um acervo mais amplo, que englobasse cartas, fotos, documentos, objetos
diversos e partituras relativos a este compositor e até então dispersos.
Não se sabe como e quando a atual Coleção Manuel José Gomes foi incorporada
ao Museu Carlos Gomes, mas podemos supor que, após a morte de Sant’Anna em
1908, os seus manuscritos musicais teriam sido doados ao mesmo Centro de Ciências,
Letras e Artes de Campinas (no qual atuava como diretor de música) e posteriormente
incorporados ao futuro Museu Carlos Gomes. Como naquele primeiro momento da
fundação do Museu o pensamento estava voltado exclusivamente para a reunião de do-
cumentos de e sobre Carlos Gomes, nem se cogitava que a coleção legada pelo seu pai
e irmão poderia ter algum valor histórico e ou artístico-musical. Isso é compreensível,
já que mal se cogitava em uma musicologia brasileira e não havia a ideia da importância
da preservação de documentos musicais. Desta forma, o material, embora preservado,
Figura 4 – Uma Paixão amorosa – Manuscrito autógrafo
ficou relegado e sem organização até a década de 1990, quando foi realizada a limpeza,
da primeira composição conhecida de Carlos Gomes
o acondicionamento adequado e a disponibilização deste acervo através da publicação de
seu catálogo (Nogueira, 1998). A atual Coleção Manuel José Gomes só chegou a nossos
O restante do material foi agrupado na Coleção Manuel José Gomes, da qual constam
dias por serem documentos relativos ao pai de uma ilustre figura nacional, caso contrário
cerca de setecentas obras, sendo que no catálogo trezentas e setenta e nove são apresentadas
poderia ter perecido como grande parte da documentação musical brasileira produzida
com seus incipts e descrição. Esta coleção tem duas partes: além da referida acima, há outra,
em regiões mais distantes da capital do império.
da qual constam apenas e referência e instrumentação, já que são composições bastante
editadas, arranjos de ópera, ou peças que não necessitam descrição.
O arquivo de manuscritos musicais MCG
Como a Coleção Manuel José Gomes é bem mais extensa e tem um aspecto
O livro Museu Carlos Gomes: Catálogo de Manuscritos Musicais foi publicado
musicológico ainda pouco explorado, sendo, portanto, um material menos divulgado e
(Nogueira, 1998) e apresenta o resultado da catalogação do acervo dos manuscritos
pouco editado, embora representativo para a música dos séculos XVIII e XIX no Brasil,
musicais que ali se encontram. Houve uma divisão ao acervo em duas partes, sendo uma
dedicaremos a ela maior atenção a ela neste artigo.
delas dedicada exclusivamente a Carlos Gomes, formada por obras deste compositor,
Com datas-limite que variam entre 1810 e início do século XX, esta coleção tem obras
incluindo alguns manuscritos autógrafos, como a sua primeira composição conhecida,
de compositores diversos, tanto brasileiros como europeus, estes em número reduzido.
a valsa para piano Uma paixão amorosa, óperas, canções e a partitura de uma de sua
Como não poderia deixar de ser, a maior parte das peças foi produzida por Manuel José
única peça instrumental, a Sonata para cordas em Ré, conhecida como Burrico de Pau,
Gomes, seja como compositor ou copista. As suas composições somam sessenta e uma,
além de partes e partituras realizadas por copistas diversos. Este conjunto é denominado
sendo que algumas delas são atribuições, já que as indicações na partitura são pouco
Coleção Carlos Gomes.
esclarecedoras. Este material necessita de um estudo aprofundado, mas até o momento
foi pouco explorado pelos pesquisadores.2

2 Neste sentido temos a destacar a tese de doutorado de Vivian Lis Nogueira Ferreira Dias, defendida na

30 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 31
Algumas páginas adiante temos outro mineiro, Manoel Dias de Oliveira (São José d’El
Rey [Tiradentes], 1738 – 1813), com cinco entradas. É seguido por outro conterrâneo,
José Roiz Domingues de Meireles (Nossa Senhora da Piedade/Pitangui?, ca. 1810-16).
Após mais algumas páginas, nas quais aparecem alguns compositores italianos, estão
os verbetes relativos a Manuel José Gomes que, como informado acima, somam sessenta
e uma composições, todas religiosas. Após estes verbetes aparece o nome de Ormeno
Gomes, neto de Manuel, filho da pianista Joaquina Gomes. Este compositor viveu em
Florença e sua produção musical é mais dedicada à música ligeira. No caso temos o ma-
nuscrito da mazurca Ghilda, com dedicatória à tia Anna Gomes, filha caçula de Manuel.
O verbete seguinte é relativo à Gomes Cardim, maestro português radicado no Brasil,
que transitou entre a música erudita e a ligeira. Trata-se também de uma homenagem a
Carlos Gomes, Marcha Fúnebre, composta no ano da morte deste, 1896. Logo aparece
mais um membro da família Gomes, Joaquim José Gomes de Santana, também filho de
Manuel, de uma geração anterior a Carlos e Sant’Anna. Sabe-se que nasceu em 1831 e
ordenou-se padre em 1856. O seu Processo de Genere et Moribus, trâmite necessário para
todo candidato a padre, encontra-se no arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo
e é um documento relevante pois, para verificar os modos e costumes do candidato, foram
tomados vários depoimentos, inclusive de seu pai, que deveria manter uma pensão para
Figura 5 – Parte de primeiro violino de uma Missa de Capela de Manuel José Gomes manter o futuro padre. Existem ali informações sobre a vida profissional de Manuel
José Gomes e, consequentemente da atividade de um músico no século XIX. Há neste
Fisicamente, a classificação do acervo foi baseada no catálogo publicado em 1998, documento uma declaração de Manuel afirmando que se fixou em Campinas em 1815
que segue a classificação em ordem alfabética por sobrenome do compositor3 e dentro e, pelos depoimentos, pode-se notar que a esta época já adquirira estabilidade financeira.
de cada um deles, segue-se uma divisão por gênero. Como não dispomos de espaço neste Seguindo em frente na descrição do acervo, encontramos o músico português Antônio
artigo para falar de cada um dos noventa e um compositores que têm obras nesta coleção, Leal Moreira (1758 – 1819) com três obras, seguido pela única representante do sexo fe-
destacaremos alguns que consideramos mais representativos. minino neste conjunto, Luiza Leonardo Boccanera, compositora nascida no Rio de Janeiro
O primeiro compositor a figurar no catálogo é Antônio José d’Almeida, compositor em 1858 e falecida em Salvador em 1926, que comparece com mais uma homenagem,
paulistano que viveu entre 1811 e 1876. Foi aluno de André da Silva Gomes e mestre o Hino Carlos Gomes. Com o mesmo propósito, aparece logo a seguir uma composição
de capela da Sé de São Paulo a partir de 1849. A composição que abre o catálogo é um de Luiz Levy (São Paulo, 1861 – Rio de Janeiro, 1935), uma Marcha Fúnebre em me-
Hino Pange lingua para coro misto e pequena orquestra, a formação mais recorrente no mória de Carlos Gomes. Este compositor era filho de Henrique Luiz Levy, clarinetista
conjunto da coleção. e mercador de joias, responsável pela ida de Carlos Gomes ao Rio de Janeiro, onde este
O segundo verbete também é de um paulista, Elias Álvares Lobo (Itu, 1834 – São iniciou sua carreira. A relação dos Levy com Campinas perdurou e ainda meninos Luiz
Paulo, 1901), considerado o primeiro a compor uma ópera genuinamente nacional, A e Alexandre Levy costumavam se apresentar na cidade em duo ao piano. É importante
noite de São João. Viveu por alguns anos em Campinas e ainda possui descendentes nesta destacar a atuação de Luiz Levy frente à Casa Levy, editora criada por seu pai e que teve
cidade. Na Coleção Manuel José Gomes comparece com apenas uma composição, As três importante atuação na edição de obras brasileiras.
horas de agonia. Na sequência aparece o compositor carioca Henrique Alves de Mesquita O verbete de número 139 nos leva novamente para Minas Gerais na figura de um de
(Rio de Janeiro, 1830 – 1896), que, embora tenha se destacado no teatro musical, aqui seus mais representativos compositores, Joaquim José Emerico Lobo de Mesquita (Serro,
aparece com cinco peças, sendo duas religiosas, Credo de São Francisco de Pádua e Missa 1746 – Rio de Janeiro, 1835), que figura com cinco obras, inclusive o famoso Ofício das
Grande em Dó Maior. Outra composição sua é a Polca Carlos Gomes, escrita provavelmente Violetas, sempre em cópias de Manuel José Gomes.
em 1877, uma homenagem a este compositor, com dedicatória a Sant’Anna Gomes. O compositor que aparece na sequência é José Maurício Júnior (1850 – 1881), mas não
Após alguns verbetes vamos encontrar o primeiro dos músicos do ciclo do ouro de se trata do filho do padre José Maurício Nunes Garcia, mas sim de um membro da família
Minas Gerais, no caso o tardio João de Deus Casto Lobo (Vila Rica [Ouro Preto], Maurício. Era natural de Pirassununga, SP, e morreu em Campinas aos 31 anos. São onze
1794 – 1832), que aparece com duas peças: Plorans Ploravit e uma Missa em Ré Maior. as suas composições, a maioria delas profanas, com destaque para Fantasia para Oficleide.4
Do compositor e mestre da Capela Real do Rio de Janeiro por volta de 1816, Fortunato
Unicamp sob nossa orientação em 2008, que trabalhou com a restauração e transcrição musicológica de três
missas deste compositor.
3 No caso de dois sobrenomes, optou-se por classificar pelo primeiro deles. Por exemplo, André da Silva 4 Peças deste compositor podem ser encontradas, por razões não esclarecidas, no Museu da Inconfidência de
Gomes aparece na letra ”S” e não em “G”. Ouro Preto.

32 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 33
Figura 6 – “Suprano” – Ofício das Violetas de Lobo
Figura 7 – Capa do Hino Sacris Solemnis de Jesuíno do Monte Carmelo – Cópia de M. J. Gomes
de Mesquita – Cópia de Manuel José Gomes

Mazzioti, aparecem seis obras. Na sequência encontramos um caso muito eloquente da


vida musical da época, que são as nove composições do padre Jesuíno do Monte Carmelo Jesuíno em Itu, fica claro que, se não fosse a decisão de Manuel José Gomes de copiar
( Jesuíno de Paula Gusmão, Santos, 1864 – Itu, 1819). Devido a ser este um caso peculiar, estas peças, a obra de Jesuíno teria se perdido definitivamente.5
nos deteremos um pouco para nesta figura, misto de padre, compositor, escultor, pintor Voltando à Coleção Manuel José Gomes, após dois verbetes dedicados ao pianista,
e entalhador. A ele Mário de Andrade dedicou uma de suas últimas produções, o livro compositor e editor português radicado no Rio de Janeiro, Arthur Napoleão (1843 –
Padre Jesuíno do Monte Carmelo publicado em 1945, ano da morte do escritor. 1925), um ao músico austríaco que viveu alguns anos no Brasil e foi professor de D. Pedro
Várias obras pictóricas do padre Jesuíno podem ser encontradas em igrejas de São I, Sigismund Neukomm (1778 – 1858), aparece o padre José Maurício Nunes Garcia
Paulo, Santos e Itu. E é neste aspecto que o livro de Andrade insiste, pois embora o autor (1867 – 1831) com dezoito obras, sendo que neste conjunto, segundo as pesquisas de
soubesse que Jesuíno era músico, não tinha subsídios para se aprofundar nesta questão, Cleofe Person de Mattos (1970), existem obras únicas deste compositor, não localizadas
já que não havia na época qualquer documento musical à disposição. Estes documentos em outro arquivo brasileiro.
estavam no Museu Carlos Gomes, na ignorada pilha de papéis que hoje formam a Co- Continuando temos quatro composições do compositor napolitano radicado em
leção Manuel José Gomes. Lisboa, David Perez (1711 – 1778), cujas obras aparecem em vários arquivos brasileiros.
Itu é uma cidade distante cerca de sessenta quilômetros de Campinas, conhecida O verbete de número 216 marca a entrada de Sant’Anna Gomes, num total de trinta e
como a Capital da República. Jesuíno ali chegou como auxiliar do pintor José Patrício cinco obras. Como observamos anteriormente, esta produção é em sua maioria composta
da Silva Manso (1740 – 1801) e ainda não era padre. Após perder a esposa, com a qual por obras profanas, tais como peças para cordas (em sua maioria quintetos) valsas, polcas,
teve quatro filhos, ordenou-se e fundou a congregação do Patrocínio, nunca reconhecida canções e peças para piano, sendo que quatro são religiosas.
pela igreja oficial, talvez pelo “defeito de cor” de seu fundador. Jesuíno tinha uma ligação Outro compositor que aparece fartamente no catálogo é Francisco Manuel da Silva
muito estreita com o futuro regente do império, Diogo Antônio Feijó, que nesta época (Rio de Janeiro, 1795 – 1865) com dezenove obras, todas sacras. Silva teve uma relação
residia em Campinas (ainda Vila de São Carlos). Segundo relatou Andrade (1945), Jesuíno bastante próxima com Carlos Gomes, já que em 1863, quando este recebeu uma bolsa
costumava ir a pé de Itu até Campinas, descalço, papagaio no ombro, somente para se do Imperial Conservatório de Música para estudar na Itália, era diretor desta escola e
confessar com Feijó, que morava a poucos metros de Gomes, na rua que hoje leva seu foi supervisor dos estudos do jovem compositor em Milão até sua morte em 1865. Na
nome (Regente Feijó). Nestas idas Jesuíno certamente conheceu o músico campineiro edição de 1936 da Revista Brasileira de Música, ano do centenário de Carlos Gomes,
que, depois da morte do padre em 1819, participava anualmente como violinista nas festas existem várias cartas que Silva enviou ao bolsista, nem sempre muito assíduo aos estudos.
do Patrocínio em Itu (Andrade, 1945). O recordista de verbetes no catálogo (fora os Gomes) é o português radicado em São
Gomes copiou diversas de obras de Jesuíno e somente por isso a produção deste (se Paulo, André da Silva Gomes (1752 – 1844), com vinte e quatro peças. Ao que tudo
não toda, ao menos parte dela) foi preservada. É importante destacar que se trata de um
dos poucos compositores do período colonial paulista cujas obras sobrevivem até nossos
5 Dentro do mesma situação que apontamos anteriormente, obras do padre Jesuíno também são encontradas
dias e, como não foi localizado até o momento qualquer manuscrito original do padre no Museu da Inconfidência.

34 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 35
Figura 8 – Parte de “Baxo” – Jesu Dulcis memoria de Jesuíno do Monte Carmelo Figura 9 – Missa de Defuntos de A. S. Gomes, cópia de M. J. Gomes, 1810
– Cópia de M. J. Gomes
Arcanjo Ribeiro de Castro Camargo, o regente de banda Azarias Dias de Mello, Emilio
indica, enquanto era mestre de capela em São Paulo, foi professor de Manuel José Gomes Henking, cunhado de Manuel Gomes, entre tantos outros. É muito comum que uma
por volta de 1810. Note-se que todos os manuscritos relativos a Silva Gomes foram, com mesma composição tenha a participação de vários copistas.
apenas uma exceção, realizados por Manuel Gomes e têm data bastante recuada, em geral O Museu Carlos Gomes pertence ao Centro de Ciências, Letras e Artes, entidade
entre as décadas de 1810 e 1830. A obra mais antiga de todo o acervo é uma cópia de particular declarada de utilidade pública em nível federal, estadual e municipal. Apesar
1810 da Missa de Defuntos a quatro vozes e órgão de Silva Gomes, o que reforça a tese da da importância de seus acervos (além do Museu Carlos Gomes abriga a Biblioteca César
ligação entre os dois Gomes (que não têm qualquer parentesco). Segundo Duprat (1995) Bierrenbach, com um grande acervo literário, uma Pinacoteca com obras de importantes
pode-se, inclusive, notar certa semelhança entre as assinaturas de Manuel Gomes e de artistas brasileiros e o Museu Campos Sales), sobrevive com recursos próprios e rara-
André da Silva Gomes. mente recebe algum apoio do poder público para a sua manutenção. Por esta razão aluga
Voltando ao catálogo, temos a seguir mais um mineiro, Jerônimo de Souza Lobo parte de seu espaço físico, o que reduz consideravelmente o espaço para seus acervos e
(Vila Rica [Ouro Preto], 1729 – 1803), que comparece com quatro peças. Com seis atividades culturais.
peças figura Pedro Teixeira de Seixas, compositor de origem desconhecida, não se sabe Dentro deste cenário, o Museu Carlos Gomes tem pouco espaço para exposição de
se seria brasileiro ou português, mas que já atuava como músico no Rio de Janeiro antes seu acervo, que além dos manuscritos descritos aqui, tem um acervo de música impressa,
da chegada de D. João VI. Era regente do Real Teatro São João em 1813 e foi admitido que revela a música que era consumida entre os séculos XIX e XX. Em outros suportes
como músico da Capela Real em 1822. Este autor fecha catálogo das peças com autoria o museu possui um arquivo histórico da maior importância como fotografias, certidões,
definida, seguindo-se uma segunda seção com sessenta e uma peças anônimas. Possivel- cartas, documentos diversos relativos a Carlos Gomes, além de uma série de objetos como
mente, um estudo mais aprofundado neste conjunto pode revelar a autoria dessas obras. o piano e uma harpa que pertenceram a ele. Parte deste material encontra-se acessível ao
A Coleção Manuel José Gomes tem ainda uma terceira parte, que, apresentada de público em uma Sala de Exposições.
caráter diverso, que são descritos sem incipits no catálogo. Esse procedimento foi adotado O arquivo de documentos musicais encontra-se em uma reserva técnica numa sala ao
para manuscritos de peças ligeiras, arranjos de ópera ou para compositores cuja obra é lado e em boas condições de consulta e manuseio. Apesar das dificuldades financeiras e do
fartamente editada como algumas de Giuseppe Verdi, Chopin ou Haydn. Fazem parte pouco espaço disponível para ampliação do acervo, todo este material está à disposição da
desta coleção também algumas peças para banda de música. comunidade e os pesquisadores têm encontrado acolhida para desenvolver seus estudos
Um dado relevante ao se analisar os manuscritos do Museu Carlos Gomes é aquele a partir dele. Não se trata aqui de um patrimônio de Campinas, ele diz respeito a todo
referente aos copistas. Embora a maior parte seja de autoria de Manuel José Gomes, o país, já que ali se encontram obras de alguns dos mais significativos compositores bra-
secundado por Sant’Anna Gomes, foram levantados outros cinquenta e dois nomes. sileiros dos séculos XVIII e XIX e que tem conteúdo e capacidade para dar importante
Além dos já citados, destacam-se outro filho de Manuel, Tomás de Aquino Gomes, José contribuição à musicologia e à história cultural brasileiras.
Emigdio Ramos Júnior, flautista, amigo de Carlos Gomes, o padre de Itu Miguel

36 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 37
Referências
ANDRADE, Mário. Padre Jesuíno do Monte Carmelo. São Paulo: 1945.
DUPRAT, Régis. Música na Sé de São Paulo colonial. São Paulo: SBM/Paulus, 1995.
ELIAS, Norbert. Mozart: sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.
MATTOS, Cleofe Person de. Catálogo das obras do Padre José Maurício Nunes Garcia. Rio
de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1970.
NOGUEIRA, Lenita W. M. Maneco Músico, pai e mestre de Carlos Gomes. São Paulo:
Arte & Ciência, 1997.
NOGUEIRA, Lenita W. M. Museu Carlos Gomes: Catálogo de Manuscritos Musicais. São
Paulo: Arte & Ciência, 1998.
REVISTA BRASILEIRA DE MÚSICA. Edição comemorativa ao centenário de Carlos
Gomes. Rio de Janeiro, 1936.

38 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER


Acervo Koellreutter: o passado é um
meio e um recurso:
||de maneira nenhuma um dever||:
O futuro, porém é
Marcia E. Taborda
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Antecedentes
Em julho de 2006 a Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) estabeleceu
um novo marco para a consolidação do processo de expansão: criou o Curso de Música,
destinado a atender à latente demanda da região e a constituir em curto espaço de tem-
po, um centro integrador da cultura musical do Campo das Vertentes. Nove professores
recém-concursados deram início ao Departamento de Música que então contava com
total apoio da reitoria para o estabelecimento de projetos e de iniciativas. Incentivada pela
criação do curso de música e certamente pela estreita amizade ao então reitor Helvécio
Luiz Reis, Margarita Schack, viúva do maestro e compositor Hans Joachim Koellreutter,
que há anos havia se estabelecido na cidade de Tiradentes (MG), decide passar à Uni-
versidade todo o acervo do músico.

Koellreutter
A importância da atuação de Hans-Joachim Koellreutter para a vida cultural brasi-
leira é inestimável. Compositor, professor e musicólogo alemão (Freiburg, Alemanha,
2 de setembro de 1915 - São Paulo, 13 de setembro de 2005), mudou-se para o Brasil
em 1937, tornando-se um dos artistas mais influentes na vida musical no País. Estudou
composição com Paul Hindemith e Kurt Thomas em Berlim e flauta com Marcel Moyse
no Conservatório de Música de Genebra. Foi aluno do importante regente Hermann
Scherchen, personalidade cujo pensamento lhe marcaria profundamente. Participou da
criação dos Círculos de Música Nova de Berlim e de Genebra. Começava sua carreira de
regente quando Adolf Hitler ascendeu ao poder. Exilou-se então no Brasil, onde esta-
beleceu profundas relações com a cultura musical.
Em 1938 realizou o primeiro recital e ministrou seu primeiro curso, no “Conservatório
Mineiro de Música” (atual Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais),
centro onde, posteriormente, teve atuação marcante. No ano seguinte, fundou o grupo
Música Viva, que tinha como participantes os compositores Luiz Heitor, Brasílio Itiberê,
Luis Cosme, Otávio Bevilacqua e o pianista Egydio de Castro e Silva. O grupo adotava a
composição serial e o expressionismo musical que influenciou toda uma geração de artistas.
Entre seus alunos de composição constaram grandes nomes da música de concerto
brasileira como Cláudio Santoro, Guerra-Peixe, Edino Krieger, Eunice Catunda, Esther

ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 41


Scliar. Envolveu-se numa polêmica com o compositor Camargo Guarnieri, que em 1950 zar encontros com as arquitetas responsáveis pelo projeto do espaço e de alguma forma
publicou a Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil, na qual criticava as propostas tentei fazê-lo compreender a personalidade daquele que daria nome à sala. Sabia que
do grupo Música Viva. Trata-se de uma passagem emblemática na trajetória da música seria no mínimo injusto com a memória de Koellreutter separar cachimbos, seu relógio
no Brasil, cuja documentação consta do acervo Koellreutter. e alguns diplomas e dispô-los à observação pública. Percebi imediatamente que o espaço
Além de compositor, regente e flautista, Hans-Joachim Koellreutter foi antes de tudo só se justificaria se estivesse afinado à atitude vital e instigadora que marcaram a atuação
um professor. Ensinou e influenciou toda uma legião de músicos, populares e eruditos, do mestre. Ainda assim, tratei de saciar a curiosidade alheia, claro com a exposição de
como Djalma Corrêa, Caetano Veloso, Tom Zé, Gilberto Mendes, Marlos Nobre, Tim seu cachimbo, do relógio, e de alguns diplomas, além de sua bíblia, do exemplar da Arte
Rescala, Clara Sverner, Gilberto Tinetti, Marcelo Bratke, Nelson Ayres, Paulo Moura, da Fuga de Bach e do Fausto de Goethe companheiros de toda a vida. Mas a proposta
Roberto Sion, José Miguel Wisnik, Diogo Pacheco, Isaac Karabtchevsky e Júlio Medaglia. norteadora na montagem do Espaço foi a de estabelecer com o visitante uma parceria
O segredo de tamanha variedade foi seu método, baseado na liberdade de expressão criativa. Neste sentido, cabe a ele, por exemplo, a execução em tempo real da obra Concretion
e na busca da identidade de cada aluno. Em entrevista concedida ao jornal Folha de São 1960 (oboé, clarinete, trompete, carrilhão, celesta, xilofone, vibrafone, piano e tantam),
Paulo, sentenciou: “Aprendo com o aluno o que ensinar. São três preceitos: 1) não há que segundo as palavras do compositor trata-se:
valores absolutos, só relativos; 2) não há coisa errada em arte; o importante é inventar o Do primeiro ensaio de estruturação planimétrica. Por planimetria entende-se uma técnica
novo; 3) não acredite em nada que o professor disser, em nada que você ler e em nada de composição que organiza os signos musicais em planos multidirecionais, os signos de
que você pensar; pergunte sempre o por quê”. um idioma musical que renuncia à melodia e à harmonia, pontos fixos de referência, assim
A importância da atuação de Koellreutter foi sinteticamente descrita pelo musicólogo como dualidades dialeticamente opostas, ou seja: consonância e dissonância, tempos forte
José Maria Neves: e fraco, primeiro e segundo tema etc.
Desde 1937, quando chegou ao Brasil, Hans-Joachim Koellreutter ocupa lugar único no
A palavra Concretion (concreção) não se refere ao oposto à abstração ou a um processo
panorama da música brasileira. Sua chegada e a conquista de real liderança no nosso
qualquer de solidificação, mas sim às manifestações de uma consciência nova, que revelam
meio musical coincidem com os últimos anos de ação de Mário de Andrade, parecendo
um processo de o espiritual concrescer com um novo conceito de tempo (temporismo). Pois
significar que cabia a Koellreutter ocupar, na área da música, o espaço deixado vago com
somente quando o tempo deixar de ser percebido como dividido nas três fases do passado,
o desaparecimento do líder modernista. E a pregação de Koellreutter, desde o início,
presente e futuro, ele se torna concreto. (Nota de programa)
vai respondendo aos principais postulados modernistas de renovação da inteligência
brasileira, com recolocação de princípios técnicos e estéticos e na busca de funcionalidade Koellreutter informa ainda que a forma de Concretion 1960 é monoestrutural e variável.
para a música e para a ação do músico. De fato, Koellreutter foi mais que um compositor: Todos os módulos componentes foram extraídos de um só módulo fundamental e sub-
ele foi o mestre de várias gerações de músicos, criadores e intérpretes; e em sua ação no metidos a um processo de transformação. É música sem início nem fim, por assim dizer,
magistério, ele foi mais que um professor: ele foi um animador cultural de excepcional música cuja duração varia entre 8 e 20 minutos; música cujo início parece ocorrer por
qualidade e eficácia”. (NEVES, Encarte do LP Tacape 0012) acaso e cujo fim acontece por interrupção – interrupção sancionada pelo som do tam-tam.
Partindo dessa premissa, o público poderá assumir a função de intérprete e regente da obra,
ao despertar sensores que possibilitem executar a música individualmente, sequenciada
O Espaço Koellreutter no tempo, ou numa atividade musical camerística, fazendo-a soar, simultaneamente, em
Recebida a doação de Margarita Schack, decidiu-se que no dia seguinte ás come- conjunto com outros visitantes, na ordem por eles determinada.
morações do aniversário do maestro, seria inaugurado no Solar da Baronesa – Centro Decidiu-se também pela reprodução da série de doze sons que deu origem à obra
Cultural da UFSJ, o Espaço Koellreutter, sendo a mim designada a função de curadoria Música 1941. O visitante será convidado a brincar com as ideias musicais do compositor
da exposição permanente. Estávamos há dois meses da inauguração e eu, apenas uma ao rearranjar a série por ele criada, ouvi-la e executá-la no teclado onde as notas estão
intérprete de música contemporânea, que tive com Koellreutter, não obstante a profunda indicadas com etiquetas coloridas.
admiração, breve relação social posto que era muito próxima a alguns de seus alunos, me O vasto universo de ideias de Koellreutter está às mãos do público nas frases provo-
vi não apenas frente a quantidade de caixas espalhadas pela sala da Biblioteca da Uni- cadoras por ele perpetuadas ao longo de seu ofício de educador; da mesma forma que
versidade, mas ao espanto de dessacralizar aquela imponente personalidade e ao pudor biscoitinhos chineses nos surpreendem com a mensagem do dia o visitante será fisgado
de remexer seus guardados. ao eleger do grande baú, sua provocação:
Neste exato momento a consciência do desconhecimento do ofício estabeleceu os “Ideias são mais fortes do que preconceitos”
maiores conflitos: Mas eu posso mexer nisso? Será que simplesmente ao abrir as caixas “O risco, o experimento, a negação das regras inveteradas e caducas, são
e escolher materiais não estarei já incorrendo no erro de abordagem de um acervo? Por elementos
que eu? Para além das questões internas havia ainda o desafio: Será que dessas caixas essenciais da atividade artística”.
sairão materiais que justifiquem a criação de um espaço expositivo?
Naturalmente não havia tempo para dialogar com os conflitos. Passei então a organi- “Tudo o que choca, conscientiza”.

42 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 43
O Espaço Koellreutter disponibiliza, ainda, o registro de obras e de imagens do mestre.
Como não poderia deixar de ser, lá está também a curiosa partitura da obra Ácronon,
disposta numa esfera de plástico transparente. Para a compreensão do grafismo da obra,
as cores do diagrama - preto, vermelho e verde sugerem os andamentos lento, moderato
e rápido. O tamanho das figuras informam a dinâmica, gradação de intensidade dos
sons. Os símbolos – círculo, triângulo e quadrado representam a duração: sons de curta,
média e longa duração, respectivamente. As linhas significam a duração das trajetórias
de silêncio e direções possíveis. Segundo Koellreutter:
Ácronon significa ser independente, livre do tempo medido, do tempo do relógio, do
metrônomo e, portanto, em termos musicais, da métrica racional, da duração definida
e determinada, e do compasso. A forma da peça (ternária) é a do ten-chi-jin japonês,
forma variável, assimétrica, de equilíbrio dinâmico, por assim dizer. A estrutura é serial,
obedecendo aos princípios de uma estética relativista do impreciso e paradoxal (conceitos
estéticos aparentemente contraditórios fundem-se), que delega aos intérpretes um alto
grau de liberdade.
Figura 2. Entrada do Espaço Koellreutter
No segundo e terceiro movimentos, uma esfera transparente permite ao pianista distinguir
os signos musicais através de sua espessura, e considerar, assim, no momento da seleção
das unidades estruturais a serem tocadas por ele, o caráter complementar das mesmas.
A partitura está planimetricamente estruturada – o “plano” da esfera, multidirecional
e, praticamente, ilimitado, substitui as “vozes” da partitura tradicional – e compõem-
se exclusivamente de pontos, linhas, campos e simultanóides (complexos sonoros cujos
componentes não podem ser dispostos em terças sobrepostas). (Nota de programa)
Privilegiado o enfoque interativo, respeitou-se também a concepção tradicional de
museu, na qual a memorabilia deve ser destacada. Nas gavetas estão alguns de seus per-
tences - objetos, condecorações, documentos, peças meramente ilustrativas da brilhante
trajetória desse cidadão do mundo.

Figura 3. Partitura de Ácronon

Figura 1. Prédio do Centro Cultural da UFSJ Figuras 4 e 5. Espaço Koellreutter

44 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 45
guarda, três acervos: Acervo de Obras Raras e Antigas da Biblioteca Municipal Baptista
Caetano de Almeida, Acervo do Clube Teatral Artur Azevedo e o Acervo da Academia
São-joanense de Letras. Os esforços desenvolvidos para conservação e disponibilização de
arquivos e fontes primárias da região, através da produção de instrumentos informatizados
de pesquisa que possibilitem o mais amplo acesso às fontes, representam um compromisso
da instituição com a divulgação de documentos e com a preservação da memória.
Nesse sentido era objetivo do Reitor agrupar o acervo Koellreutter junto aos acima
relacionados. Sabendo que futuramente o Espaço Cultural da UFSJ que ainda hoje abriga
a Pró-reitoria de Extensão será destinado apenas a ser um centro de cultura, me pareceu
fundamental deixá-lo junto à sala expositiva. A iniciativa deu certo e após algumas reuniões
com as arquitetas que desenvolveram o espaço, conseguimos uma pequeníssima sala anexa
onde está reunido todo o acervo; composto por fontes documentais de naturezas diversas
tem por mais frequentes os suportes celulósicos: papéis de variados tipos e formatos,
Figura 6. Fundação Koellreutter – Parte do acervo tais como correspondências, partituras, livros, periódicos, recortes de jornais e revistas.
A biblioteca do compositor possui cerca de 800 volumes referentes à música europeia,
música brasileira, filosofia, obras que abrangem as diferentes áreas de conhecimento e
A Fundação Koellreutter interesse do mestre; foi catalogada e encontra-se disponível para consulta na página
Data de 10 de julho de 2007 a escritura pública de instalação e transcrição de ata e de eletrônica da UFSJ. Há grande número de partituras de trabalho com obras que marcam
estatuto da Fundação Koellreutter. Margarita Schack consta como presidente de honra desde a trajetória do Koellreutter flautista aos interesses do regente e do especialista em
e legítima representante dos bens do acervo pessoal e dos direitos autorais do composi- repertório contemporâneo.
tor. Foi estabelecido um conselho denominado curador embora tivesse apenas funções A produção musical do compositor está estimada em 77 obras, algumas editadas e
administrativas e fui designada Presidente da Fundação.1 Como finalidades estatutárias muitos manuscritos; além destes, há no acervo materiais fotográficos, objetos pessoais,
da instituição constavam: textos inéditos, livros não publicados, cartas, palestras, cursos. Registros sonoros como
1. Apoiar e promover o desenvolvimento de atividades culturais, especialmente as discos de vinil, fitas cassete e CDs; há também instrumentos de trabalho como a máquina
relacionadas à música; datilográfica em que produziu inúmeros textos, além de objetos pessoais. Não foi possível
2. Apoiar as atividades de promoção da música nos campos do ensino, pesquisa, estimar o conteúdo e volume de documentos abrigados.
extensão; Como primeira medida visando a organização do acervo foi encaminhado à Fun-
3. Viabilizar o acesso, a recuperação, conservação e exposição do acervo de H. J. dação de Amparo à Pesquisa do estado de Minas Gerais – Fapemig o projeto “Acervo
Koellreutter, de conteúdo misto através do Espaço Koellreutter Koellreutter: tratamento, organização e criação da biblioteca digital” com o objetivo
4. Obter recursos destinados à manutenção de suas atividades; final de constituir um banco de dados a ser disponibilizado a estudiosos, pesquisadores
5. Desenvolver atividades culturais e artísticas de caráter inovador ou experimental; e interessados em geral.
6. Promover a difusão cultural, no âmbito municipal, estadual e nacional; O projeto foi aprovado e foi então organizada a visita da museóloga Maria Cristina
7. Realizar estudos, pesquisas, intercâmbio de conhecimentos e instituir banco de Mendes, vinculada ao Museu Villa-Lobos, para orientação dos procedimentos básicos
dados sobre o acervo; relativos à organização e posterior acesso ao acervo; foi também convidado o técnico
8. Administrar bens e empreendimentos que tenham objetivos de serventia social, Eduardo Lara Coelho representante do Laboratório de Conservação e Restauração de
cultural ou turística; Documentos e Obras Raras da UFSJ, LABDOC, referência na recuperação e conser-
9. Criar condições que facilitem o desenvolvimento das artes em geral, em especial vação de fontes primárias, estreitamente articulado aos projetos e às linhas de pesquisa
ao estudo das obras de H. J. Koellreutter; desenvolvidas pelos diferentes departamentos.
10. Desempenhar outras atividades que lhe sejam cometidas pelo Conselho A partir da orientação especializada foram empreendidos os processos de higienização,
Curador. tratamento técnico de conservação, identificação e arranjo, descrição e catalogação. Foi
também realizada a digitalização da obra e de alguns documentos. A aprovação do projeto
Criada a Fundação, a primeira meta estabelecida foi a de ter o acervo abrigado no previu, com recursos da Fapemig, a compra de equipamentos desde então incorporados
mesmo Centro Cultural onde está localizado o Espaço Koellreutter. ao acervo, computadores, impressora, scanner e máquina fotográfica.
No âmbito da documentação, a Divisão de Biblioteca da UFSJ tem hoje, sob sua Neste primeiro momento de constituição a Fundação não contou com recursos pró-
prios, senão com pequena verba de instalação. Com o objetivo de promover atividades
1 Em março de 2009 assumi a função de docente na Universidade Federal do Rio de Janeiro e por este motivo
me desliguei formalmente da Fundação Koellreutter. culturais foi submetido ao Fundo Estadual de Cultura projeto que teve reconhecimento

46 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 47
de mérito mas que não veio a se concretizar por falta de captação de recursos. Assim Horizonte e Bahia. Não obstante, coube ao Campo das Vertentes, a missão e o privilégio de
sendo a Fundação realizou atividades apenas relacionadas à comemoração da data de receber este acervo. Território neutro, tem por compromisso estimular a criação, o interesse,
aniversário de Koellreutter. ao fornecer as ferramentas de pesquisa que irão manter acesa a chama do conhecimento
Com recursos providos pela Reitoria foi realizado em setembro de 2007 o espetáculo e da criatividade, princípios fundamentais do ensinamento de Koellreutter. Reiterando
“Koellreutter: A música Viva”, evento apresentado no Solar da Baronesa que contou com as palavras do mestre, “o passado é um meio e um recurso:||de maneira nenhuma um
a participação de alunos do curso de música da UFSJ e da Companhia de Inventos. Foi dever||:O futuro, porém é”.
ainda encenado no Teatro Municipal de São João del-Rei, o Concerto – Programa de
Rádio Música Viva – a partir do roteiro do programa apresentado por Koellreutter no Bibliografia
sábado, 26 de janeiro de 1946 na PRA2 cujo texto está reproduzido no livro Música Viva AMADIO, Ligia. Koellreutter: um caminho rumo à estética relativista do impreciso e para-
e H. J. Koellreutter: movimentos em direção à modernidade, de Carlos Kater. Participaram do doxal. Tese de Doutorado. Campinas, São Paulo, 1999.
evento Marilane Santos Sotani (atriz), José Mário de Araújo (radialista), Antonio Carlos
Guimarães (flauta), Iura de Rezende (clarineta), Carla Reis (piano) e Marcia Taborda, ANDRADE, Mário de. Aspectos da música brasileira. São Paulo: Martins, 1975.
Flávio Barbeitas, Michel Maciel e Rafael Ávila (violão). ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo: Livraria Martins
Em agosto de 2008 foi promovido o espetáculo “Koellreutter a Música Viva” com Editora, s.d.
texto de Tim Rescala e encenação da Companhia de Inventos – Teatro de sombras apre-
sentado no Teatro Municipal de São João del-Rei. Participaram do espetáculo os atores KATER, Carlos. Música Viva e H. J. Koellreutter: movimentos em direção à modernidade.
Tim Rescala, Guida Vianna e Luis Salém e os músicos Carla Reis, Marcelo Parizzi e São Paulo: Musa & Atravez, 2001.
Marcia Taborda. KATER, Carlos. Catálogo de Obras de H. J. Koellreutter. Belo Horizonte: FEA / FAPE-
MIG, 1997. v. 1. 55.
Considerações finais
Este breve relato suscita questões fundamentais sobre o que vem sendo feito em KATER, Carlos. KOELLREUTTER, H. J. “Encontro com H. J. Koellreutter”. Cadernos
nosso país na organização e conservação de acervos, responsabilidade que nem sempre é de Estudo: Educação Musical, v. 6, 1997.
atribuída, como vimos, à profissionais especializados. KATER, Carlos. “H. J. Koellreutter: música e educação em movimento”. Cadernos de
A região de Minas Gerais onde se estabeleceu o acervo Koellreutter destaca-se no Estudo: Educação Musical, v. 6, p. 6-25, 1997.
panorama nacional pela atividade musical de instituições centenárias como a Orquestra
Ribeiro Bastos e a Lira São-joanense detentoras de precioso arquivo relacionado à pro- KATER, Carlos. “O Manifesto Música Viva 1945”. Cadernos de Estudo: Educação Musical,
dução musical feita em Minas Gerais nos séculos XVIII e XIX. São acervos constituídos v. 6, 1996.
por famílias que ainda hoje os mantém em uso e em condições impostas pelas limitações
KATER, Carlos. “Nota Sobre H. J. Koellreutter”. Música Hoje, v. 2, p. 26-26, 1995.
financeiras e ideológicas. O acesso é em geral restrito àquela comunidade.
No caso da Fundação Koellreutter partiu-se de um arquivo em que há, aparentemente, NEVES, José Maria. Mestre Koellreutter. Funarte, Rio de Janeiro, 1987.
muitas lacunas, o que torna fundamental o contato com músicos e pesquisadores visando
NEVES, José Maria. H. J. Koellreutter. Encarte do LP Tacape 0012, São João del-Rei, 1983
a incorporação de materiais que se encontram dispersos. O compromisso de organização
tem por meta possibilitar o acesso a fontes primárias, textos inéditos, cartas, periódicos, NEVES, José Maria. Música Contemporânea Brasileira. São Paulo: Ricordi, 1981.
documentos que registram parte fundamental da história contemporânea da música
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1985.
brasileira, que deverão ser consultados e confrontados a partir dos enfoques propostos
por diferentes linhas de pesquisas e abordagens, desde a Musicologia Histórica, História SCHWARZ, Roberto. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1994.
Cultural e Social, a Antropologia da Música, a Etnomusicologia.
Mais que um cidadão brasileiro, Koellreutter foi um cidadão do mundo. Com o movimento SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão – tensões sociais e criação cultural na Primeira
Música Viva introduziu o que hoje é considerada a “segunda fase da modernidade brasileira”, República. 2. Ed. São Paulo: Brasiliense, 2003.
impondo uma dinâmica ao meio musical ao determinar a tomada de posição de artistas e a TRAVASSOS, Elizabeth. Modernismo e música brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
reflexão sobre o papel criador e o exercício da música na sociedade brasileira. Como observou 2000.
o musicólogo Carlos Kater, “H. J. Koellreutter criou com esse nome um movimento musical e
cultural, um grupo de compositores, uma escola de formação e um conjunto amplo e diverso WISNIK, José Miguel. “Getúlio da Paixão Cearense (Villa Lobos e o Estado Novo)”.
de atividades”. In: SQUEFF, Enio & WISNIK, José Miguel. Música: O nacional e o popular na cultura
No Brasil, a semente plantada por Koellreutter foi cultivada especialmente nos centros brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1982.
de ensino que fundou ou desenvolveu em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Belo

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Centro de Referência Musicológica
José Maria Neves:
patrimônio e projeto de futuro
Suely Campos Franco
Universidade Federal de São João del-Rei / CEREM

A música em São João del-Rei


A cidade de São João del-Rei tem sua história fincada em fins do século XVII,
quando da descoberta de veios auríferos na região. Em 1713 o arraial Novo de Nossa
Senhora do Pilar transformou-se em Villa de São João Del Rei e foi definida como
sede da Comarca do Rio das Mortes. A importância administrativa para a Capitania de
Minas Gerais promoveu um rápido crescimento urbano e já neste período a vila possuía
uma paisagem urbana formada por ruas, casarios, igrejas e monumentos com expressivas
manifestações artísticas. Em 1738 é elevada à condição de cidade, constituindo-se uma
das mais importantes das Minas.
Sabemos que a música foi, desde os primórdios, um dos aspectos fundamentais da
identidade cultural dos habitantes desta cidade. Como demonstra José Maria Neves, o
registro documental de atividade musical por ocasião da visita do governador da Capi-
tania confirma que a tradição da música em São João del-Rei remonta aos primórdios
da vida do arraial.
A primeira notícia escrita de atividade musical em São João del-Rei data de 1717, quando
o Governador da Capitania de Minas Gerais, Dom Pedro de Almeida e Portugal, conde
de Assumar, fez uma visita a antiga vila.O manuscrito de Samuel Soares de Almeida relata
minuciosamente a recepção, descrevendo desde a marcha de entrada da comitiva na vila
até a solenidade na Igreja Matriz, ‘ao som de música organizada pelo mestre Antônio do
Carmo. Na Igreja foi entoado o Te Deum, ‘que foi seguido por todo o clero e música, o que
provavelmente indica uma forma alternada de canto em polifonia com os padres cantando
um verso gregoriano e o conjunto musical respondendo com um verso musical, tal como
se faz, ainda hoje, na cidade. (NEVES, 1984, p. 7)

Vindo o Imperador D. Pedro II a São João del-Rei, em agosto de 1881, para a inau-
guração da Estrada de Ferro Oeste de Minas, após assistir a uma cerimônia religiosa,
anotou em seu diário de viagem: “A música do Te Deum foi a melhor que ouvi em Minas;
dizem ser composição do Padre José Maria” (TIRADO, 2011).
Há ainda outros relatos do elemento musical observado por viajantes que por esta
cidade passaram. Vale referir aos comentários do poeta modernista francês Blaise Cendras
a propósito da música ouvida nas cerimônias da Semana Santa de 1924, quando esteve
nesta cidade mineira acompanhado pelos brasileiros vanguardistas, fomentadores do

ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 51


Movimento Modernista. Conta Tarsila que na viagem, Cendrars passava da surpresa ao
entusiasmo; ao ouvir a música mineira cantada em São João del-Rei, disse que era “o mais O Centro de Referência Musicológica José Maria Neves / CEREM
belo cantochão” que já ouvira. Fizeram parte do grupo que viajou para Minas: Mário de
Andrade, Oswald de Andrade e seu filho Nonê (Oswald de Andrade Filho), Tarsila do
Amaral, d. Olívia Guedes Penteado, René Thiollier René Thiollier escreveu igualmente
em breve relato intitulado “De São Paulo a São João del Rei” em seu livro O homem da
galeria. Godofredo da Silva Telles também relata momentos da experiência passada na
cidade mineira em depoimento a Aracy Amaral: “Fomos direto a em São João del-Rei
e lá nos demoramos toda a Semana Santa, assistindo às tradicionais comemorações, tão
populares no interior mineiro” (AMARAL,1997, p. 59).
A história nos revela que alguma das diversas práticas musicais período colonial atra-
vessaram séculos e foram mantidas desde aquele período e sobrevivem notadamente no
âmbito religioso. A organização das festas religiosas, tendo a música sacra como elemento
dos mais destacados tanto nas missas quanto nas procissões, é fator preponderante na Figura 2. Logomarca do CEREM.
manutenção destas práticas, favorecidas pela presença das Associações Religiosas – Ir-
mandades, Confrarias e Ordens Terceiras – promotoras e guardiãs de uma tradição bem A intenção de se criar um Centro de Referência Musicológica e Cultural surgiu na
específica na cidade e também na região. década 1980, período em que ações e reflexões sobre o destino da música em São João
A microrregião dos Campos das Vertentes é caso particular no panorama cultural del-Rei tiveram especial destaque. A intenção tornou-se realidade em 2003, com a criação
brasileiro, preservando costumes que permitiram a permanência viva de quatro corporações do Centro de Referência Musicológica José Maria Neves / CEREM, produto do esforço
musicais, setecentistas. Existindo como organismos vivos, estas corporações não atuaram e determinação de um grupo de pessoas, liderados por Anna Maria Parsons. O projeto
exclusivamente no âmbito religioso, mas alimentaram de música todos os acontecimentos teve como objetivo norteador e finalidade primordial a preservação da memória musical
da vida cultural. (NEVES, 1997, p. 17) brasileira e especialmente de São João del-Rei e região.
Esta iniciativa implicou na recuperação de um imóvel localizado no centro histórico
As corporações musicais Orquestra Lira Sanjoanense e a Orquestra Ribeiro Bastos,
e adaptação para abrigar um importante acervo de documentos – partituras manuscritas
remanescentes do século XVIII e as oitocentistas Lira Ceciliana de Prados e a Orquestra
e impressas, correspondências, recortes de jornais, programas de concertos, monografias
Ramalho de Tiradentes, são exemplos vivos desta permanência. Os dois grupos de São João
e teses, fotografias, instrumentos musicais, objetos e diversos outros documentos.
del-Rei atuaram sempre de forma complementar, dividindo entre si as funções musicais
A instalação do CEREM nesta cidade de Minas Gerais, vislumbrado pelo seu patrono,
das irmandades religiosas e do Senado da Câmara. A presença e atuação ininterruptas
o musicólogo José Maria Neves, justifica-se pela presença de uma significativa atividade
das Orquestras Lira Sanjoanense e Ribeiro Bastos nas principais cerimônias religiosas
musical herdada do período colonial e mantida pelas diversas corporações musicais
católicas celebradas em São João del-Rei, atravessam séculos e chegam até os dias atuais
na atualidade, bem como pela vasta produção musical abrigada em seus arquivos. José
com vitalidade e energia, embora na condição de amadores, prometem continuidade.
Maria Neves (1943 - 2002) foi um dos mais influentes musicólogos que estiveram em
atuação no Brasil. Natural de São João del- Rei, encontrou em sua cidade natal vasto
acervo musical ao qual dedicou boa parte de sua vida como musicólogo e como regente
da Orquestra Ribeiro Bastos, herdeira de grupos criados certamente no século XVIII. O
grupo mantém, ainda hoje, a maioria de seus compromissos tradicionais com a Ordem
Terceira de São Francisco de Assis e com as irmandades de Nosso Senhor dos Passos
e do Santíssimo Sacramento feitos naquela época. Os esforços de divulgação do fazer
musical na região mineira do Campo das Vertentes traduziram-se em diversas ações como
registros fonográficos, concertos da Orquestra Ribeiro Bastos através do Brasil, revisão e
edição de catálogos e partituras.
O CEREM possui biblioteca especializada em música, arquivos sonoros com grava-
ções raras, videoteca musical, sala de reuniões, cafeteria, sala de conferência e concertos,
sala expositiva sobre a atividade musical em São João del-Rei que conta a história dos
diversos grupos musicais atuantes à partir do século XVIII. O espaço expositivo abriga
ainda objetos e instrumentos do ofício de luteria. O acervo do CEREM é composto de
Figura 1. Parte musical do programa da Semana Santa de São João del-Rei, 2010.
dois fundos principais (www.cerem.ufsj.edu.br):

52 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 53
1. Acervo pessoal do musicólogo José Maria Neves tensão tendo como temas e objetos as práticas musicais na região de São João del-Rei.
2. Acervo de livros, partituras e discos do pianista Tarcísio Nascimento Teixeira Propusemos, então, a realização de um encontro entre os pesquisadores nos espaços do
CEREM. A I Jornada de Divulgação de Pesquisas e Extensão, realizada no dia 18 de
novembro de 2010 pelas Pro - Reitorias de Extensão e de Pesquisa da UFSJ em parceria
com o Departamento de Música / DMUSI e primeira iniciativa de cooperação entre as
duas instituições após a implantação do convênio demonstraram a pertinência de um
diálogo entre músicos, pesquisadores, agentes culturais e demais interessados da esfera
pública e privados. Durante todo dia, a sala de conferências do CEREM esteve repleta,
havendo espaço na programação para discussões e cruzamentos temáticos. A jornada
multidisciplinar ofereceu a divulgação de pesquisas e iniciativas de docentes e estudantes
nas áreas de história, musicologia, psicologia, filosofia, todas voltadas ao tema musical. A
equipe do CEREM acolheu os participantes com entusiasmo e sua diretora aproveitou
a ocasião para disponibilizar os espaços e a logística do Centro para algumas atividades
ali mencionadas, como por exemplo, os projetos Laboratório de edição e digitalização de
partituras e manuscritos musicais desenvolvido pela aluna do curso de Música Simone
Ellem Fonseca Nascimento e pelo professor/orientador do Departamento de Música da
UFSJ Marcos Edson Cardoso Filho (DMUSI) e o Programa Música XXI, programa da
Pró-Reitoria de Extensão em conjunto com o Departamento de Música da UFSJ que
Figura 3. Gavetas dos compositores - Sala expositiva do CEREM. promove apresentações musicais de docentes, alunos e convidados em diversos espaços
da cidade e nos Campi avançados da UFSJ.
Na ocasião, Anna Maria Parsons então Diretora Geral do CEREM referiu-se à me-
Projeto de futuro mória do musicólogo são-joanense José Maria Neves, lembrando o seu constante interesse
em promover ações como estas que ora se concretizam em sua cidade natal. Criou-se a
“não vamos deixar que isto acabe em nossas mãos” partir daí, o início de um intercâmbio profícuo entre as duas instituições.
(Depoimento do Ademar Campos Filho, musicólogo e maestro da Orquestra Lira O sucesso do evento deveu-se à grande adesão dos participantes, demonstrando a
Ceciliana de Prados, 1988) importância e a necessidade destas ocasiões de troca entre pesquisa e extensão e da dispo-
nibilização dos resultados á comunidade em geral. Não é demasiado citar aqui alguns dos
trabalhos apresentados: A música e o processo grupal: tradição e representações em corporações
Em 2006 foi criado o curso de música na Universidade Federal de São João del-Rei. musicais dos Campos das Vertentes – Sérgio Rossi Ribeiro / Marcos Vieira Silva (DPISC); O
Professores vindos de diversas localidades do Brasil trabalham no sentido de formar mú- Conservatório Estadual de Música Padre José Maria Xavier na manutenção e transformação da
sicos e professores de música. Neste sentido, podemos afirmar que passados quase cinco tradição no contexto histórico e sociocultural de São João del-Rei – Wevert Emmanuel Tomaz
anos, reconhecemos o efeito multiplicador desta ação que promove direta e indiretamente Benedito / Marcos Vieira Silva (DPISC); Música popular e música erudita na percepção dos
a qualificação, o aperfeiçoamento das diversas agremiações musicais existentes na cidade e músicos de São João Del-Rei: uma análise á partir da filosofia de Adorno – Fabiano Leite França
a continuidade da atividade musical na região. Atualmente, através de convênio firmado / Paulo César de Oliveira (DFIME); A Música e suas articulações identitárias nas corporações
com a Universidade Federal de São João del - Rei em novembro de 2010, o CEREM musicais de São João del-Rei e região: os jovens e a música sacra nos dias de hoje – Rodrigo
inicia uma nova fase implantação de iniciativas que possibilitem a execução de planos Manuel Frade / Marcos Vieira Silva (DPISC); A manutenção da tradição através de suas
integrados e cooperação mútua com outras instituições. O convênio com a UFSJ visa transformações: jovens músicos e a construção de projetos de vida – Aline Moreira Gonçalves
desenvolver e apoiar todas as ações referentes à pesquisa em música e do fazer musical, em / Marcos Vieira Silva (DPISC); As transformações das Corporações Musicais de e Região:
todas suas manifestações e promover e organizar cursos, encontros artísticos e culturais desde a identidade de seus componentes às diferenças de gênero – Mayara Pacheco Coelho /
e outras modalidades de cooperação. Marcos Vieira Silva (DPISC); Programa Música XXI - Rafael Dias Belo / Antônio Carlos
Em 2008, o projeto “Plataforma Jovem”, iniciativa do Departamento de Música da Magalhães (DMUSI); Jovens Músicos para São João Del-Rei: Núcleos “Ribeirinhos” – Arthur
UFSJ e coordenado pela professora Márcia Taborda, levou música ao CEREM com Yanai Barduche / Maria Amélia Viegas (DMUSI); além de projetos de extensão que
apresentações de alunos e professores. implicam no estímulo à formação e manutenção de grupos musicais.
Consultando a programação do IX Congresso de Produção Científica realizado pela
Universidade Federal de São João del-Rei, de 25 a 28 de outubro de 2010, verificamos
que estavam nela incluídas um número significativo de trabalhos de pesquisas e ex-

54 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 55
Figura 4. Participantes da Jornada de Divulgação de Extensão e Pesquisa em Música da UFSJ
novembro de 2010 – São João del-Rei – MG.

Atualmente, o CEREM trabalha na implantação de ações de preservação do patri- Figura 5. Mesa redonda “A música da Semana Santa de São João del-Rei: repertório e liturgia ao
mônio material – manutenção do imóvel e dos equipamentos; tratamento e conservação longo dos séculos”– São João del-Rei, abril de 2012.
do acervo documental – e de fomento suas atividades fins – levantamento detalhado,
quantitativo e qualitativo, do acervo documental, digitalização de todos os documentos O CEREM é um lugar simbólico que abriga as questões relacionadas à música,
do acervo, divulgação e disponibilização para pesquisa; apoio a projetos de pesquisa a elemento fundamental de expressão de identidade, do sentimento de pertencimento e
partir do fundo documental depositado ali depositado. Entre os projetos citamos “Cartas da memória coletiva e individual desta região de Minas Gerais e que representam parte
de José Maria Neves: um olhar sobre o desenvolvimento da musicologia a partir de São importante da historia musical do Brasil.
João del-Rei”, projeto de iniciação científica (PIBIC/CNPQ), coordenado por Edilson
Assunção Rocha, professor do Departamento de Música da UFSJ, que visa o estudo da
correspondência pessoal de José Maria Neves com importantes músicos e estudiosos, tais
como Marlos Nobre, Hans Joachim Koellreutter, dentre outros.
Para além da preservação do seu acervo material, o CEREM como objetivo a promoção
da memória musical e atividades educativas e culturais. Além disso, o CEREM estabelece
estreita ligação com as diversas corporações musicais de São João del-Rei e região e ins-
tituições de arquivos musicais de Minas Gerais e o Brasil. Vale destacar que os objetivos
e metas do CEREM dialogam com aqueles da Fundação Koellreutter, inaugurada em
2006 e instalada no Centro Cultural da UFSJ / Universidade Federal de São João del-Rei
que disponibiliza fontes documentais de naturezas diversas do acervo pessoal de Hans
Joachim Koellreutter, além de um espaço museológico interativo.
Em abril de 2012, o CEREM inaugurou o programa “Ciclos de Conferências sobre
Musica”, coordenado por Suely Franco, com a Mesa Redonda “A música da Semana Santa
de São João del-Rei: repertório e liturgia ao longo dos séculos”. Para o ano, estão previstos
encontros com diversos pesquisadores, eventos e atividades relacionados às comemorações
de 10 anos de morte do musicólogo Jose Maria Neves e 100 anos de morte do compositor
Martiniano Ribeiro Bastos, ambos nascidos em São João del-Rei. Os projetos têm como
perspectivas a continuidade, a regularidade e sustentabilidade das atividades da instituição. Figura 6. CEREM, fachada.

56 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 57
TIRADO, Abgar. “Padre José Maria Xavier”. Disponível em http://www.saojoaodelrei-
transparente.com.br/projects/view/156. Acesso em 04/02/2011.
VIEGAS, Augusto. Notícia de São João del-Rei, 3 ed.. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1969.

Figura 7. CEREM, interior.

A paisagem sonora de São João del-Rei pode ser apreendida pelos sentidos e se revela
nos toques de sinos que veiculam uma linguagem musical própria, no apito do trem “Ma-
ria Fumaça” e na sonoridade de seus diversos grupos musicais. Todos os elementos que
unem o passado musical de São João del-Rei com os projetos de futuro empreendidos na
atualidade fazem de São João del-Rei um centro musical de referência obrigatória para
pesquisadores e musicólogos da música nacional. O CEREM participa do esforço nacional
de preservação da memória cultural através da produção, divulgação de informações e
conhecimentos técnicos e científicos relacionados às atividades musicais.

Referências
AMARAL Aracy A. “A viagem a Minas”. In: Blaise Cendrars no Brasil e os modernistas.
São Paulo: Ed. 34/ Fapesp, 1997.
ESTATUTO do Centro de Referência musicológica José Maria Neves. São João del-
-Rei, 2006.
MAGGIOLI, Flávia; FRANCO, Suely. “Concerto Barroco”. Revista Veredas, CCBB,
Ano 3, n. 31, Rio de Janeiro, 1993.
NEVES, José Maria. A orquestra Ribeiro Bastos e a vida musical em São João del-Rei, 1984.
NEVES, José Maria. Música Sacra Mineira. FUNARTE: Rio de Janeiro, 1997.
NEVES, José Maria. “Tradição Musical de São João del-Rei”. [Ref. 19 Avril 2007].
Disponível em http://www.cidadeshistoricas.art.br/hac/artmus_03_p.php.
SANTOS, Jose, FRANCO, Suely. “Cidades da Música”, documentário realizado no 4º
Inverno Cultural da UFSJ, 1988.

58 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 59
Meneleu Campos: o catálogo da obra
completa consolida os acervos
BNRJ e UFPA
Mário Alexandre Dantas Barbosa
Universidade Federal do Rio de Janeiro

O Catálogo Geral da Produção Musical de Meneleu Campos (1872-1927) é fruto


dos esforços da pesquisa realizada no âmbito do curso de mestrado em música (musico-
logia), sob orientação da Profª Drª Maria Alice Volpe, no Programa de Pós-graduação da
Escola de Música da UFRJ. Tal pesquisa foi por mim desenvolvida como continuidade
do estudo sobre um tema que já vinha estudando desde o período da graduação quando,
como bolsista de Iniciação Científica CNPq, tive a oportunidade de travar os primeiros
contatos com a obra deste compositor e apresentar o resultado em dois trabalhos que
abordavam peças particularizadas (BARBOSA, 2006; BARBOSA, 2007). Desde então
fui me deparando com as lacunas sobre o tema, dentre as quais a questão da catalogação.
O desejo de ter a obra deste compositor devidamente catalogada num trabalho de caráter
musicológico foi ganhando dimensão de dívida historiográfica à medida que um proce-
dimento metodológico padrão ao se iniciar a pesquisa sobre determinado compositor é
verificar se existe um catálogo de suas obras. No caso do músico paraense que foi o foco
principal dos meus estudos desde então, foi possível contar com os valorosos trabalhos do
pioneiro da pesquisa sobre a música do Pará, Prof. Dr. Vicente Salles, que, principalmente
em sua publicação por ocasião das comemorações do centenário de Meneleu Campos
(SALLES, 1972), forneceu informações mais detalhadas sobre aquele cuja efeméride
era alusiva naquela ocasião. Esse trabalho traz como apêndice o que se pode chamar de
primeiro esboço de catalogação da produção musical de Meneleu Campos, crédito de
Marena Salles. Sem dúvida esse trabalho, que foi referido em pesquisas posteriores, tem
incontestável importância, pois, embora careça de um maior rigor metodológico, consegue
dar ao consulente uma ideia das dimensões da obra que abordou.
Em sua dissertação de mestrado, a musicóloga Maria Alice Volpe apresentou o Catá-
logo da Música de Câmara do Período Romântico Brasileiro, no qual pode ser encontrada
catalogada a respectiva parcela da obra de Meneleu Campos, totalizando vinte títulos
(VOLPE, 1994). Esse é, inclusive, o trabalho que proveu o referencial teórico-metodo-
lógico para a consolidação do Catálogo Geral das Obras Musicais de Meneleu Campos.
Outros trabalhos que se dedicaram mais recentemente ao tema Meneleu Campos
abordaram obras particularizadas deste compositor, a Fantasia para violino e orquestra
(REINERT, 2007), o Concerto para piano e orquestra (COSTA, 2011) ou a uma parcela
especifica de sua produção (Ó de ALMEIDA, 2007).
Em projeto patrocinado pela PETROBRÁS e coordenado pelo Prof. Dr. Márcio
Páscoa (Universidade do Estado do Amazonas), dedicado exclusivamente à produção
operística dos compositores amazônicos na Época da Borracha, um dos volumes é de-

ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 61


dicado à edição da versão para canto e piano de Gli Eroi, ópera em 4 atos de Meneleu e BM/UFPA – foi possível constatar certas situações peculiares:
Campos e no volume Ópera em Belém, o compositor e sua obra foram contemplados com a) certas fontes presentes em um dos arquivos completam o conjunto referente a uma
capítulos nos quais o referido musicólogo apresenta suas considerações (PÁSCOA, 2009). mesma peça
A iniciativa de apresentar um catálogo geral aguardou, portanto, quarenta anos após ter O Hino-Marcha em Fá para vozes infantis, por exemplo, que possui versões com acom-
sido esboçado por Marena Salles e representa a concretização de um avanço na pesquisa panhamento de orquestra e com acompanhamento de banda, tem a parte vocal ausente
sobre o compositor, mormente no que tange à sistematização de informação mediante a nos dois conjuntos que fazem parte do acervo da DIMAS/BNRJ. Tal parte, entretanto,
extensa consulta às fontes primárias. pode ser encontrada no acervo da Coleção Vicente Salles, sob a guarda da BM/UFPA.
Similarmente, a Ladainha em Sol para vozes femininas e órgão, que no acervo da BM/
Um patrimônio dividido em dois acervos geograficamente distantes UFPA apresentava-se apenas por duas partes de soprano e uma de mezzo, no arquivo
O trabalho de catalogação foi iniciado no acervo da Divisão de Música e Arquivo Sonoro da DIMAS/BNRJ traz a partitura onde o parte instrumental do acompanhamento está
da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (DIMAS/BNRJ). A consulta ao catálogo deste presente, além de completar o conjunto das partes cavadas com mais um exemplar da
importante arquivo especializado revela a presença de duzentas e trinta e seis entradas parte de mezzo.
referente a obras de Meneleu Campos, entre manuscritos e edições de época. Este total Um terceiro exemplo é a Cantilena árabe em Fá lídio para a voz de baixo com
representa, aproximadamente, oitenta por cento das fontes musicais referentes a composições acompanhamento de orquestra, composta em 1897. Um conjunto de partes pode ser
de Meneleu Campos. O histórico desta coleção também está ligado às comemorações do encontrado no acervo do Rio de Janeiro no qual a parte vocal está ausente. A única fonte
centenário do compositor em 1972, momento em que o pesquisador Vicente Salles loca- capaz de permitir uma reconstituição da peça é um manuscrito cópia, datado “Brasília
lizou o espólio junto a familiares, que por ele foram instruídos a depositar as partituras na 3.4.[19]48” presente no acervo de Belém, numa versão para canto e piano onde a linha
referida instituição. Em meio ao material podem ser encontrados exemplos de partituras vocal encontra-se presente com seu respectivo texto.
em perfeito estado, enquanto algumas já requerem cuidados especiais em vista do seu b) fontes que completam o conjunto de múltiplas versões de uma mesma peça
estado de deterioração, como é o exemplo do Prelúdio “Anoitecendo” para quarteto de O Tango, composto por Meneleu e dedicado ao maestro Andrea Guarneri, além de
cordas com piano, de 1924, e da Marcha Militar “25 de Setembro” versão para orquestra apresentar versões para orquestra e para banda, possui diferentes versões destinadas a
e banda reunidas da peça composta em 1904. Interessante notar entre as edições alguns piano solo. Enquanto as fontes do Rio de Janeiro documentam as últimas versões para
exemplares oriundos da Coleção Guerra Peixe. Outra preciosidade que temos em meio à piano que a peça recebeu, datadas de 1913, os manuscritos de Belém trazem as versões
parcela referente às edições de época é a presença de exemplares que trazem dedicatória mais antigas, datadas de 1897.
manuscrita de próprio punho do compositor aos seus entes queridos, onde a data constante Dentre as peças originalmente compostas por Meneleu em Paris/1913, as Valsas
em tal texto permite saber aproximadamente a época em que se deu a respectiva composição. “Rêve-bleu”, “Infiniment” e “Tendrement” caracterizam-se por apresentar-se em versões
As partituras, tanto manuscritos quanto edições foram vistas uma a uma e a transcrição dos vocais com acompanhamento de piano, de conjunto de câmara ou de orquestra, bem como
dados a serem integrados nos verbetes do Catálogo foi feita in loco. de versões instrumentais diversas. No caso de “Tendrement”, especificamente, faltava a
O acervo de fontes musicais referente a composições de Meneleu Campos sob a versão para piano solo, que ausente em meio ao acervo sob a guarda da DIMAS/BNRJ,
guarda da Biblioteca de Museu da Universidade Federal do Pará (BM/UFPA), por seu pode ser localizada junto ao acervo sob a guarda da BM/UFPA, completando o conjunto
turno, é proporcionalmente bem menor com relação ao da DIMAS/BNRJ. Num total de de versões que a identifica com “Rêve-bleu” e “Infiniment”.
cinquenta e sete partituras, onde também se encontram manuscritos e edições de época. c) dados presentes na bibliografia especializada encontram base documental mais consistente
Essa coleção representa em torno de vinte por cento das fontes musicais disponíveis. Este é o caso, principalmente, dos Quartetos de cordas em Mi e em Ré, cuja referência
Quantitativamente menor, porém não menos importante, esse conjunto possui fontes no catálogo de Volpe (1994) é feita a partir de fontes bibliográficas. Os respectivos ma-
muito caras à pesquisa sobre a produção musical do compositor enfocado nesta pesquisa. nuscritos não chegaram a ser localizados no âmbito desse trabalho dedicado à música de
Em projeto patrocinado pela PETROBRÁS e coordenado pelo Prof. Jonas Arraes, o câmara brasileira do período romântico. Com a devida localização no acervo da Coleção
acervo da Coleção Vicente Salles foi tratado de forma a oferecer condições ótimas de Vicente Salles (BM/UFPA) os dados dos respectivos verbetes já atualizam a informação
consulta. Embora tenha sido possível examinar cada uma das partituras presentes naquela constante em trabalho anterior.
instituição, foram cedidas imagens em arquivo digital de todo o material, através do Também é o caso da Fuga em Sol e da Cena lírica “Carlota”. Através dessas duas
que a catalogação do mesmo foi feita sem requerer a permanência no referido arquivo. partituras recentemente encontradas no acervo da DIMAS/BNRJ, em cujas páginas é
A consulta a esse acervo se deu mediante a viagem à capital paraense viabilizada com possível ler anotações deixadas pelo compositor, fica mais bem documentado o episódio
recursos próprios no final de janeiro deste ano. enfaticamente referido nas obras da historiografia tradicional e nos estudos regionais,
bem como nas iniciativas mais recentes em termos de abordagem do tema Meneleu
A consolidação em um único catálogo Campos – o êxito nos exames de conclusão do curso feito no Conservatório de Milão.
Uma vez integrados no mesmo catálogo os verbetes e subverbetes oriundos da cata-
logação das fontes disponíveis em arquivos geograficamente distantes – DIMAS/BNRJ

62 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 63
Algumas contribuições do catálogo geral aos estudos sobre o compositor coordenado pelo Prof. Dr. Carlos Alberto Figueiredo e disponibilizado on line, adota
1) Identificação de peças inéditas na bibliografia especializada entre seus critérios de delimitação catalogar obras datadas e publicadas, o que excetua
No âmbito da produção camerística o trabalho ora comentado acrescenta cinco títulos a produção de Meneleu Campos para este gênero quer por um motivo ou por outro.
ao já referido catálogo de Volpe (1994), a saber: Fantasia de concerto para violino solista Embora não seja a parcela mais significativa do compositor, não deixa de ser importante
com quinteto de cordas e piano; Marcha Militar em Láb para quinteto de cordas com como reveladora de mais uma faceta deste músico de sólida formação atuante no meio
piano “Allons-Y!”, Tango em mib para quinteto de cordas com piano “Duque-Gaby”, paraense durante o primeiro quartel do século XX.
Valsa em ré para quinteto de cordas com flauta e piano “Amor” e Valsa em Sol para violino,
flauta, trompete, oficleide, contrabaixo e piano “Cecy”. Alguns desafios lançados pelo Catálogo Geral
No âmbito da produção vocal foi localizado um grupo de quatro cenas líricas com- 1) Localização de peças mencionadas na bibliografia e fontes não musicais, mas que
postas em 1898 que, além de acrescentar esses títulos ainda inéditos nos estudos sobre continuam não localizadas.
o compositor testemunham acerca de procedimentos didáticos do mestre Vincenzo Exemplo de obras importantes nesta situação são as composições referidas como
Ferroni, sob cuja orientação encontrava-se Meneleu Campos na condição de aluno do primeiras de Meneleu Campos, a Valsa “Pétalas Esparsas” e a Quadrilha “Graphira”, a sua
Conservatório de Milão à época. Dentre as cenas líricas, em cujos manuscritos encontra- Sonata para violino e piano composta para os exames finais no Conservatório de Milão
-se indicado “Licções de composição”, duas – “Tristi amori” e “La Tilda” – possuem uma e, ainda, os vários arranjos de obras de outros compositores que figuram com frequência
versão completa e duas versões incompletas. nos anúncios de concertos do Conservatório Carlos Gomes durante o período em que
Fontes inéditas também foram encontradas no que concerne à produção com fins Meneleu estava na direção.
didáticos da lavra de Meneleu Campos. Dentre as composições deste gênero estão solfejos 2) Datação das edições de época e manuscritos não datados
a duas e três vozes, lições de canto. Estes itens se acrescentam às já abordadas no projeto A maioria das fontes musicais compulsadas traz data. Dentre os manuscritos, porém
em andamento sobre Meneleu Campos e a educação musical, desenvolvido também pelo cinquenta e sete encontram-se ainda não datados. O total das edições de época de peças
autor deste trabalho (BARBOSA, 2008). de Meneleu Campos que se encontram localizadas – trinta e quatro, dentre elas a maioria
2) Fornecimento de subsídios para o entendimento mais apurado de sua trajetória por editores italianos e algumas por editores brasileiros -, também não trazem informada
A presença de múltiplas versões de grande parte da produção ora em foco revela a a data da edição. Embora se trate de um trabalho musicológico que requeira o domínio
capacidade do compositor em adaptar suas peças a condições específicas de performance. de metodologia especializada, a datação desta significativa parcela muito contribuirá para
Também permite associar versões com a mesma formação instrumental a determinados o avanço dos estudos sobre o compositor.
períodos caracterizando as fases da carreira do compositor. Tal abordagem de cunho 3) Finalização de peças inacabadas
sociológico exemplifica o rendimento que já demonstra a sistematização de dados con- Em meio às obras de Meneleu Campos que constam no Catálogo Geral há dezesseis
solidada no Catálogo Geral das Obras Musicais de Meneleu Campos. casos de partituras cuja escrita musical se encontra incompleta. Não é possível afirmar
3) Economia no acesso às fontes para estudos futuros com certeza absoluta se tratam-se de projetos abandonados pelo compositor ou se tais
O rigor metodológico pretendido na elaboração desse Catálogo, o que inclui a indi- trabalhos foram concluídos em fontes não localizadas. Alguns deles são exemplos únicos
cação da localização das partituras, a identificação de cada peça/versão através de incipt do gênero dentre a variada produção deste músico paraense como é o caso do Poema
abstrato, a transcrição diplomática das informações contidas nos frontispícios, capas e Sinfônico “Os Lusíadas”, a Mazurka “As serpentinas” e a Sonata em Réb para piano. Há
últimas páginas dos conjuntos, tende a economizar a quantidade de acessos in loco para também o caso de uma obra que recebeu múltiplas versões em termos de instrumentação,
trabalhos futuros, evitando dessa forma desgaste das fontes e dos pesquisadores, além de porém uma delas encontra-se inacabada, o Romance sem palavras “T’Amo!”. A conclusão
favorecer o desenvolvimento das respectivas pesquisas com menor investimento de tempo. desses trabalhos composicionais parece um interessante exercício que exigiria uma análise
4) A integração da produção de Meneleu Campos aos estudos dedicados a determi- prévia do estilo de Meneleu Campos.
nados gêneros: 4) Redimensionamento da importância do compositor consoante às parcelas de sua
No Catálogo de Música Brasileira para Orquestra (RIPPER, 1988) publicado pela produção
FUNARTE não se encontra referida a produção orquestral de Meneleu Campos. O O trabalho de Volpe (1994) é exemplar no que concerne a apresentar um balanço da
Catálogo Geral das Obras Musicais de Meneleu Campos, entretanto, revela-o como produção camerística brasileira do período romântico. Nele fica patenteada a importância
compositor de música orquestral representativa. Enquanto os demais compositores do de Meneleu Campos como produtor de obras para este meio de execução, devidamente
período romântico que constam no Catálogo FUNARTE – Francisco Braga (34 títulos), confrontado com seus contemporâneos não só em termos numéricos, mas também
Alberto Nepomuceno (31 títulos), Henrique Oswald (26 títulos), Leopoldo Miguez (14 consoante às tendências estéticas que seguiu em seu labor e das iniciativas que teve na
títulos) e Alexandre Levy (6 títulos) – Meneleu conta com uma produção orquestral equi- propagação da prática camerística nos contextos de sua atuação. O repertório sinfônico
valente a 31 títulos colocando-o, quantitativamente, como o segundo maior compositor e de canto coral e canto solista ainda aguardam por uma abordagem similar.
para este meio de execução dentre os do mesmo período. 5) Priorização das iniciativas de preservação de acervo
O Catálogo de Música Sacra Brasileira: obras dos séculos XVIII e XIX, projeto Diante do estado de preservação em que se encontra o material que resistiu ao desgaste

64 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 65
do tempo como fonte primária para o estudo sobre um dos mais importantes músicos do
Pará, urge frisar que esta documentação ainda se encontra muito vulnerável e seria muito
interessante que projetos de digitalização dessas fontes recebessem o devido incentivo a
fim de se tornarem viáveis institucionalmente.
Esperamos que o Catálogo ora apresentado (DANTAS, 2012) represente mais uma
contribuição ao lado da de outros pesquisadores dedicados ao patrimônio cultural do
Norte do país no sentido de integrar mais essa parcela ao que temos conhecido sobre o
nosso passado musical.

Referências bibliográficas
BARBOSA, Mário Alexandre Dantas. “Notturno e Allegro scherzando, de Meneleu
Campos: contexto de composição, transcrição musicológica e história da recepção”. In:
Anais do XVI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música.
Brasília: ANPPOM, 2006, p. 467-470.
BARBOSA, Mário Alexandre Dantas. “Meneleu Campos: Contexto de criação e recepção
de duas peças líricas de câmara”. In: Anais do XVII Congresso da Associação Nacional de
Pesquisa e Pós-Graduação em Música. São Paulo, 2007.
BARBOSA, Mário Alexandre Dantas. “Meneleu Campos e a educação musical: as
publicações de caráter didático”. In: Anais do XVIII Congresso da Associação Nacional de
Pesquisa e Pós-Graduação em Música. Salvador: ANPPOM, 2008, p. 275-279.
BARBOSA, Mário Alexandre Dantas. Meneleu Campos (1872-1927), um compositor
paraense: trajetória profissional e catálogo geral. Dissertação (Mestrado em Música, Musi-
cologia), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Música. Rio de Janeiro, 2012.
COSTA, Dayse Dias Silva e. Duração e memória: Bergsonismo e o Piano no Concerto em
Lá Maior para piano com acompanhamento de orquestra de Octávio Meneleu de Campos.
Dissertação (Mestrado em Música). Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2011.
Ó DE ALMEIDA, João Augusto de Lima. Meneleu Campos e a música vocal no ocaso da
belle époque paraense. Dissertação (Mestrado em Música), Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Escola de Música. Rio de Janeiro, 2007.
PÁSCOA, Márcio Leonel Farias Reis. Ópera em Belém. Manaus: Valer Editora, 2009.
REINERT. Gina. Fantasia de concerto para violino e orquestra, de Octavio Meneleu Campos:
uma proposta pedagógica. (Dissertação de Mestrado). Porto Alegre: Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, 2007.
RIPPER, João Guilherme. Música brasileira para orquestra: catálogo geral. Rio de Janeiro:
FUNARTE/Instituto Nacional de Música, 1988.
SALLES, Vicente. Centenário de Meneleu Campos. Revista de Cultura do Pará. Belém:
Conselho Estadual de Cultura, 2 (8/9): 167-202, jul./dez., 1972a.
VOLPE, Maria Alice. Música de câmara do período romântico brasileiro, 1850-1930.
Dissertação (Mestrado em Música, Musicologia). Universidade Estadual Paulista, São
Paulo, 1994.

66 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER


Fontes para o estudo da música sacra
em Goiás: o Acervo do
Maestro Balthasar de Freitas
Marshal Gaioso Pinto
Instituto Federal de Goiás

Desde meados do século XX, quando Francisco Curt Lange publicou os primeiros
trabalhos chamando a atenção da comunidade acadêmica para a importância do repertório
musical colonial brasileiro, muitas iniciativas vêm sendo realizadas para a preservação e
divulgação de acervos de manuscritos musicais dos séculos XVIII e XIX, especialmente
nos estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Dentre os pesquisadores que
responderam ao chamado de Lange, destacam-se as obras de Cleofe Person de Mattos
(1970 e 1996), José Maria Neves (1997) e Régis Duprat (1985 e 1995).
Em Goiás, as pesquisas que visam resgatar a herança musical de séculos anteriores estão
ainda em seus estágios iniciais. Após os primeiros passos, dados por pesquisadores ilustres
como Braz de Pina Filho (1975 e 1986), Belkiss Mendonça (1981) e Maria Augusta Rodri-
gues (1982),1 surge no início do presente século uma nova geração de musicólogos dedicados
ao estudo da música em Goiás. Um dos desafios que se apresenta para essa geração é a
identificação e o estudo de fontes primárias, ou seja, acervos contendo manuscritos musicais
dos séculos XVIII e/ou XIX, ou acervos contendo documentos referentes às atividades
musicais propriamente ditas ou às atividades de outra natureza exercidas por músicos.
Sabe-se da existência de vários acervos contendo manuscritos musicais dos séculos
XVIII ou XIX no estado de Goiás. Dentre esses temos o acervo da família Pina, de Pi-
renópolis – certamente o mais célebre de Goiás; o acervo Dorvi/Moreyra, da Cidade de
Goiás; o acervo de Antônio César Pinheiro, de Itaberaí; e o acervo do Maestro Balthasar
de Freitas, de Jaraguá. A presente comunicação tem por objetivo fazer uma apresentação
do acervo do Maestro Balthasar de Freitas.

Balthasar Ribeiro de Freitas


Balthasar de Freitas foi um músico atuante em Goiás nas últimas décadas do século
XIX e primeiras do século XX. Freitas nasceu em 1870, na cidade de Jaraguá, tendo tam-
bém ali falecido em 1936. Nos seus 66 anos de vida, foi compositor, copista, advogado,
político, e, o mais importante para o presente trabalho, herdeiro de um valioso acervo
de obras copiadas e compostas por músicos de gerações anteriores, alguns deles também
representantes da família Ribeiro de Freitas. Esse conjunto de documentos é o que tem
sido designado “Acervo do Maestro Balthasar de Freitas” (Pinto, 2006 e 2010).

1 Faz parte também dessa geração de pioneiros da historiografia musical goiana a Dra. Yara Moreyra, que
atualmente se dedica à pesquisa de manuscritos musicais oriundos da Cidade de Goiás coletados pelo também
historiador Frei Simão Dorvi.

ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 69


O Acervo Música Instrumental
O acervo Balthasar de Freitas pertence à família Ribeiro de Freitas e sua atual respon- A série música instrumental possui o maior número de obras no acervo, com um total
sável é a professora Ivana de Castro Carneiro, bisneta de Balthasar de Freitas. O acervo de 343 peças catalogadas. Essa série é também significativamente mais recente do que a
está dividido em quatro séries distintas: a) música sacra, b) música instrumental, c) música série música sacra. O manuscrito de música instrumental mais antigo do acervo é uma
impressa e d) outros documentos. A série música impressa contém obras escritas para várias cópia da quadrilha Uma Véspera de Reis (MI-187), feita por Joaquim Marques em 1887.
formações instrumentais, de peças para instrumento solo à obras para banda sinfônica. A O manuscrito mais recente produzido ainda durante a vida de Balthasar de Freitas é a
maioria delas é constituída de pequenas danças, mas existem também algumas marchas, sua cópia da marcha Revelação (MI-88), escrita em 1931. Existem ainda algumas cópias
músicas sacras e métodos para instrumento. A série outros documentos é formada por todos feitas após a morte de Balthasar, entre elas uma cópia da Marcha dos Jaburús (MI-84),
os manuscritos não musicais encontrados no acervo. Estão nessa série as cartas pessoais de feita por Francisco Bruno, em 1938. É interessante ressaltar que nem Silvestre Ribeiro
Balthasar de Freitas, documentos relacionados à sua atividade como advogado, bem como de Freitas nem Miquelino Raymundo de Lima, dois dos mais ativos copistas do acervo,
listas de pagamentos de músicos, e também páginas título e capas de música das quais possuem cópias na série música instrumental.
nenhuma partitura ou parte foi encontrada. A maioria dos manuscritos da série música instrumental que apresentam indicação
Existem 507 obras musicais preservadas em manuscritos no acervo, divididos por de local de cópia foram produzidas na Cidade de Goiás, Jaraguá e Bonfim (Silvânia).
sua vez em duas séries: música sacra e música instrumental. O manuscrito datado mais É importante ressaltar, porém, que cerca de 75% das peças dessa série possuem pelo
antigo do acervo é uma página título de um Solo Para Nossa Senhora, de propriedade de menos um grupo de cópias sem qualquer indicação de local de produção. Dessa forma,
Gabriel Raymundo de Lima, que foi copiado em Bonfim (atual Silvânia), em 3 de maio os números aqui apresentados devem ser considerados com bastante cautela (Tabela 1).
de 1836. Infelizmente, nenhuma parte ou partitura dessa obra foi encontrada. Os manus-
critos mais recentes são das décadas de 1930 e 1940, sendo que o mais recente produzido Local de Cópia Número de Obras
ainda durante a vida de Balthasar de Freitas é sua própria cópia da Novena Para Nossa Cidade de Goiás 62
Senhora da Penha, feita em 1935, menos de um ano antes da sua morte. O período em
Jaraguá 37
que a maioria dos manuscritos foi produzida, no entanto, compreende as duas últimas
décadas do século XIX e as duas primeiras do século XX. Bonfim 26
A maioria desses manuscritos é proveniente das cidades goianas de Jaraguá, Cidade Pirenópolis 6
de Goiás, Itaberaí e Silvânia. Existem também cópias de Niquelândia, Pirenópolis, São Corumbá 3
Francisco, Inhumas, Trindade, Campinas (GO), Bela Vista e Corumbá (GO). São ainda Campinas 2
encontradas cópias produzidas fora de Goiás, oriundas de Uberaba, Araguarí e Mariana, São Francisco 2
do estado de Minas Gerais; e Carolina, estado do Maranhão. Araguarí 2
Todos os manuscritos são escritos em conjuntos de partes cavadas; não existe no acervo
Curralinho (Itaberaí) 1
uma única partitura manuscrita em forma de grade. Esses manuscritos foram produzidos
com o intuito de serem utilizados por instrumentistas e cantores em celebrações religiosas Uberaba 1
e eventos sociais, e, de fato, todos apresentam vários sinais de uso. Na verdade, muitas obras Aracatí 1
foram recopiadas diversas vezes com o passar dos anos. Em alguns casos os manuscritos
mais antigos foram pelo menos parcialmente preservados. É interessante ressaltar que cada Tabela 1. Locais de origem dos manuscritos da série música instrumental.
vez que essas obras eram recopiadas, modernizações e adaptações eram feitas pelos copistas,
com o intuito de tornar o velho repertório adequado às condições vigentes na ocasião. O primeiro ponto que nos chama a atenção na Tabela 1 é o número de obras com cópias
Do total de 507 obras, a maioria, ou 449 peças, foi preservada em manuscritos que oriundas da Cidade de Goiás e de Jaraguá. Como um acervo pertencente a uma família
não trazem qualquer referência à autoria da obra. Em apenas 58 casos existe alguma de Jaraguá, esperava-se que a maioria dos seus manuscritos fossem copiados nessa cidade.
indicação de autoria, e, ainda assim, muitas dessas indicações são incompletas ou contra- Em vez disso, de acordo com a Tabela 1, são encontradas 62 obras copiadas na Cidade de
ditórias. Apesar disso, até o presente momento foi possível identificar cerca de cinquenta Goiás, contra apenas 37 copiadas em Jaraguá. A explicação para essa discrepância pode
compositores diferentes com obras preservadas em manuscritos do acervo Balthasar de estar no número de manuscritos sem indicação de local de cópia. Se considerarmos que
Freitas. Entre esses compositores estão nomes ilustres da música brasileira, como José a maioria das cópias feitas por Balthasar de Freitas que não apresentam local de cópia
Joaquim Emerico Lobo de Mesquita e Antônio Carlos Gomes, bem como importantes foram provavelmente produzidas em Jaraguá, o número de obras com cópias dessa cidade
compositores goianos, como Antônio da Costa Nascimento (o Tonico do Padre), Balthasar se elevaria cerca de 300%, saltando de 37 para cerca de 147 obras.2
de Freitas e Basílio Martins Braga Serradourada.
2 É claro que alguns desses manuscritos poderiam ter sido copiados por Freitas em outras cidades, como
Bonfim ou São Francisco. Porém, Freitas parece ter a tendência de omitir o local de cópia quando essa era
produzida na cidade que ele residia.

70 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 71
Se os copistas eram displicentes ao indicar o local de cópia dos manuscritos, a situação é Gênero Número de Obras
ainda pior quando o assunto é a autoria das composições. Das 343 obras catalogadas na série Valsa 108
música instrumental, 305, ou seja, cerca de 90%, não apresentam indicação de autoria. Através
Dobrado 66
de pesquisas em outras fontes foi possível a identificação do compositor de uma pequena
porcentagem desses casos, mas a grande maioria, porém, permanece como obra anônima. Polca 32
Existem 38 compositores identificados com obras na série música instrumental. Curio- Tango 29
samente, apenas seis deles aparecem com mais de uma composição na série: Balthasar de Quadrilha 26
Freitas, com nove peças; Antônio da Costa Nascimento (o Tonico do Padre) e F. Cabral, Marcha 21
com três;3 e Benedito Rodrigues Braga, Francisco Martins Araújo e J. Ribeiro com duas Marcha Fúnebre 12
peças cada. Os outros 32 compositores possuem apenas uma peça cada na série. Alguns Mazurca 12
desses compositores são figuras importantes na história da música no Brasil. Entre eles Samba 6
podemos citar Francisco Manuel da Silva, D. Pedro I, Leopoldo Miguez e Antônio
Hino 5
Carlos Gomes. Compositores mais atuantes na música popular também aparecem na
série, como Américo Jacobino (o Canhôto), José Barbosa da Silva (Sinhô) e o goiano Não Identificado 5
Joaquim Edson de Camargo. Tango Argentino 4
A maioria das peças da série são escritas para banda de música. Essas bandas de música Teatro 4
variavam de cerca de oito ou dez músicos até quarenta ou cinquenta integrantes.4 Os Natal 3
instrumentos utilizados eram: requintas, clarinetes, pistons, sax-horns e trompas, trombo- Havanera 2
nes, bombardinos, helicons, oficleides, bombardões, tubas e percussão, esta normalmente Maxixe 2
constituída de bombo, caixa e pratos. Schottische 2
São ainda encontradas na série algumas obras para grupo de câmera de formação mista, Fado 1
composto de flauta, clarinete, pistom, violino, violoncelo e baixo (uma parte de cada). Essa
Fox-trot 1
era uma formação utilizada por Balthasar de Freitas nos últimos anos de sua atividade
musical; os manuscritos para essa formação foram produzidos entre o final da década Milonga 1
de 1920 e o início da década de 1930. Algumas dessas obras podem ser composições Ragtime 1
originais, mas outras são certamente arranjos e adaptações de peças escritas para banda.
Se por um lado os copistas eram negligentes no que diz respeito à autoria das obras Tabela 2. Gêneros encontrados na série música instrumental.
e às indicações de data e local das cópias, em relação ao gênero musical eles tinham uma
atitude completamente diferente. Pare se ter uma ideia dessa diferença, das 343 obras Como pode ser visto na Tabela 2, os gêneros mais encontrados são a valsa e o dobrado.
catalogadas na série, mais de 80% são desprovidas de indicação de autoria. Por outro lado, Existe também um considerável número de marchas e danças europeias. Na verdade, os
em apenas 19 obras, ou menos de 6% dos casos, não foi possível encontrar a indicação do itens apresentados na Tabela 2 podem, com algumas exceções, serem divididos em dois
gênero da obra no manuscrito. Dessa forma, a leitura dos manuscritos mostra a existência grandes grupos: marchas, por um lado, e danças, por outro. As exceções são três peças para o
de mais de vinte gêneros diferentes de música instrumental, desde o samba até a marcha Natal, quatro para teatro, e cinco peças com gênero não identificado. O grupo das marchas
fúnebre (Tabela 2). é formado pelas marchas propriamente ditas, por marchas fúnebres, hinos e dobrados.
O dobrado é de longe o gênero mais numeroso do grupo, com 66 obras encontradas.
O segundo grupo é formado por danças oriundas de diversas partes do Ocidente. Da
Europa são encontrados a valsa, a polca, a quadrilha, a mazurca, o schottische e o fado. Da
América do Norte vem o fox-trot e o ragtime. Da América Espanhola são encontradas
a havaneira, o tango argentino e a milonga. Finalmente, do Brasil aparecem o tango, o
samba e o maxixe. É possível que algumas dessas danças encontradas no acervo tenham
sido compostas nos países nos quais o gênero se originou, mas a grande maioria foi pro-
vavelmente composta mesmo no Brasil. O gênero predominante nesse grupo é a valsa,
com 108 obras, quase um terço de toda a série.

3 As três peças de Tonico do Padre aparecem no acervo em cópias anônimas.


4 Essa estimativa foi feita levando em consideração os manuscritos do acervo, as listas de pagamentos de
músicos da época, bem como fotografias de bandas de música do interior de Goiás no início do século XX.

72 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 73
Música Sacra de autoria, seja nos próprios manuscritos do acervo ou em fontes externas. Ainda assim,
Existem 164 obras catalogadas na série música sacra do acervo Balthasar de Freitas. muitas dessas atribuições são bastante problemáticas.
O manuscrito musical mais antigo da série é uma cópia anônima do Credo da Missa dos Em vários casos a obra permanece como sendo de atribuição duvidosa, e em pelo
Anjos (BF-006), produzida em 1851. O manuscrito mais recente catalogado na série é menos três casos foram constatadas atribuições conflitantes, com a mesma peça sendo
uma cópia da Missa Santa Ambrósio (BF-001), feita por Sebastião José de Siqueira, em atribuída a compositores diferentes em diferentes cópias. Entretanto, considerando todas
1948. O manuscrito mais recente produzido ainda durante a vida de Balthasar de Freitas essas atribuições conflitantes e duvidosas, foram identificados dezoito compositores na
é sua própria cópia da Novena Para Nossa Senhora da Penha (BF-050), produzida em 1935. série. Desses, Balthasar de Freitas aparece com oito obras, Miquelino Raymundo de Lima
Assim como na série música instrumental, os copistas foram de certa forma negligentes com quatro, e Balthasar José Martins com duas. Se considerarmos também as atribuições
ao indicar os locais de cópias dos manuscritos que formam a série Música Sacra. Dos casos conflitantes, Lobo de Mesquita e Antônio da Costa Nascimento também aparecem com
em que essa localização foi estabelecida, a maioria é proveniente da cidade de Jaraguá. duas obras cada. Os outros treze compositores aparecem com uma obra cada na série.
Existe um bom número de cópias oriundas de cidades como Bonfim, São Francisco e Desses dezoito compositores, 50% são músicos com atuação em Goiás. De Jaraguá
Curralinho (Tabela 3). Uma vez mais, a Cidade de Goiás ocupa um lugar peculiar nessa temos quatro compositores: Balthasar de Freitas, João Caetano Bueno, João Leite da Silva
listagem. Enquanto na série música instrumental a Cidade de Goiás chamou a atenção e Miquelino Raymundo de Lima. Três compositores são de Pirenópolis: Agesislao de
por apresentar mais manuscritos que a cidade de Jaraguá, na série Música Sacra ela chama Siqueira, Manoel Amâncio da Luz e o célebre Antônio da Costa Nascimento. Finalmente,
a atenção por não apresentar nenhum manuscrito. Uma vez mais, as coisas podem não de Corumbá e da Cidade de Goiás são encontrados, respectivamente, Francisco Bruno
ser exatamente como parecem à primeira vista. Apesar de nenhum manuscrito na série do Rosário e Basílio Martins Braga Serradourada (Tabela 4).
apresentar referências à Cidade de Goiás, existem alguns grupos de cópias que certamente
são relacionados com a antiga capital. Esse é o caso das cópias feitas por Joaquim Marques Compositor Cidade
e Padre Pedro Ribeiro da Silva, bem como das cópias dos Motetos dos Passos (BF-152), Balthasar de Freitas Jaraguá
que como sabemos vêm sendo atribuídos a Basílio Martins Braga Serradourada. Todos
João Caetano Bueno Jaraguá
os três nomes acima foram importantes personalidades atuantes na Cidade de Goiás.
Além disso, algumas outras peças da série, como a Missa Dellac (BF-014) e o Memento João Leite da Silva Jaraguá
(BF-147), sobreviveram também em cópias preservadas em acervos da Cidade de Goiás. Miquelino Raymundo de Lima Jaraguá
Agesislao de Siqueira Pirenópolis
Local de Cópia Número de Obras Antônio da Costa Nascimento Pirenópolis
Jaraguá 36 Manoel Amâncio da Luz Pirenópolis
Bonfim 8 Basílio Martins Braga Serradourada Cidade de Goiás
São Francisco 6 Francisco Bruno do Rosário Corumbá
Curralinho 5
Pirenópolis 4 Tabela 4. Compositores de Goiás encontrados na série música sacra.
São José do Tocantins 3
Dos outros nove compositores de fora de Goiás, a maioria é de Minas Gerais. Os
Mariana (MG) 2
mineiros cujas obras aparecem no acervo são: José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita,
Inhumas 1 Manoel Dias de Oliveira, Joaquim de Paula Sousa, José Felipe Corrêa Lisboa, Joaquim
Trindade 1 Antônio Gomes da Silva e João Luís Coelho. São encontrados também Elias Álvares
Campinas (GO) 1 Lobo de São Paulo e Balthasar José Martins do Maranhão. Curiosamente, apenas um
Bela Vista 1 compositor europeu aparece na série. É o compositor Christoph Willibald Gluck. Ainda
Carolina (MA) 1 assim, Gluck é um dos casos de atribuição duvidosa (Tabela 5).

Tabela 3. Locais de origem dos manuscritos da série música sacra. Compositor Local
José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita Minas Gerais
Das 164 peças da série, a grande maioria aparece como obra anônima. Apesar de ter Manoel Dias de Oliveira Minas Gerais
sido possível estabelecer a autoria de algumas dessas obras através da análise de fontes Joaquim de Paula Souza Minas Gerais
externas ao acervo, 137 obras, ou seja, mais de 80% do total, continuam sem apresentar José Felipe Corrêa Lisboa Minas Gerais
uma atribuição plausível de autoria. Em apenas 27 obras foi encontrada alguma indicação

74 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 75
Joaquim Antônio Gomes da Silva Minas Gerais para atender uma demanda bastante prática; serem usados durante performances musicais.
João Luís Coelho Minas Gerais Eles não foram copiados em manuscritos luxuosos para serem dados de presente, como
foi comum em determinada época na Europa; eles não foram copiados para formar algum
Elias Álvares Lobo São Paulo
tipo de antologia histórica; e, finalmente, eles não foram escritos com algum propósito
Balthasar José Martins Maranhão teórico ou pedagógico. Esses manuscritos foram utilizados em performances musicais. No
Christoph Willibald Gluck Europa caso dos manuscritos da série música sacra, essas performances faziam parte de cerimônias
religiosas, tanto litúrgicas quanto paralitúrgicas.
Tabela 5. Compositores de fora de Goiás encontrados na série música sacra. Três tipos de cerimônias religiosas parecem ter dominado as atenções dos que viveram
em Goiás no séculos XVIII e XIX: Missas, novenas e procissões. Também foram impor-
Relação com outros acervos tantes as bênçãos do Santíssimo Sacramento, os serviços fúnebres e todas as cerimônias
Um ponto chama a atenção quando são examinadas as obras sacras do acervo: quase 90% litúrgicas e paralitúrgicas relacionadas à Semana Santa.
dessas peças são encontradas exclusivamente no acervo Balthasar de Freitas. Pelo menos isso é Os manuscritos do acervo Balthasar de Freitas parecem corroborar esse ponto de
o que se pode deduzir hoje dos estudos publicados. Do total de 164 peças que formam a série vista. Das suas 164 obras sacras, 42 são relacionadas com a Missa (incluindo partes do
música sacra, somente dezoito são encontradas em outros acervos; as outras 146 são unica. ordinário, do próprio e segmentos paralitúrgicos cantados durante a Missa); 78 obras são
Existem pelo menos três acervo em Goiás que possuem peças em comum com o relacionadas com novenas ou outras cerimônias similares como triduum e setenários; e
acervo Balthasar de Freitas: o acervo particular de Antônio Pinheiro e o Acervo Dorvi/ 23 são peças cantadas em procissões e bênçãos ao Santíssimo Sacramento. Juntas, essas
Moreyra, com cinco peças cada; e o acervo da família Pina, com, pelo menos, um obra três categorias englobam mais de 80% do total de obras da série música sacra (Tabela 6).
em comum. Entretanto, é provável que com o desenvolvimento das pesquisas da música
em Goiás, tanto o número de obras quanto o número de acervos com obras em comum Categoria No. de Obras
com o acervo Balthasar de Freitas aumente consideravelmente. Missa 42
Hoje o que se pode constatar é que o acervo que possui o maior número de concor-
Novena e Obras Similares 78
dâncias5 com o acervo Balthasar de Freitas é um acervo mineiro, e não goiano: a Coleção
Curt Lange do Museu da Inconfidência de Ouro Preto; essa coleção possui sete obras Bênção do Santíssimo Sacramento e Procissão de 23
em comum. De Minas Gerais temos ainda o Museu da Música de Mariana, com três Corpus Christi
peças; o Arquivo da Pia União do Pão de Santo Antônio, com duas peças; e o acervo da Serviços Fúnebres 5
orquestra Lira Sanjoanense, com uma concordância. Finalmente, de Campinas, estado Semana Santa 11
de São Paulo, temos o acervo do Museu Carlos Gomes, com também uma concordância. Te Deum 2
O estudo detalhado dessas concordâncias leva a algumas conclusões interessantes. Outros 3
Primeiro é a de que existiu um intenso intercâmbio entre músicos de Goiás e músicos
de outras regiões do Brasil. Os detalhes desse intercâmbio, porém, estão ainda por ser Tabela 6. Funções litúrgicas e paralitúrgicas encontradas na série música sacra.
pesquisados. O segundo ponto diz respeito à cronologia das obras do acervo. Se por um
lado os manuscritos datados do acervo são predominantemente das últimas décadas Um aspecto interessante da tabela mostrada acima é a ausência de Matinas ou Vésperas.
do século XIX e primeiras do século XX, a análise das concordâncias (além de outros Na verdade, com exceção de algumas obras para os serviços fúnebres e várias antífonas
aspectos) revela que várias obras foram na verdade compostas no início do século XIX e hinos avulsos que podem tanto fazer parte dos Ofícios quanto de outras cerimônias
ou até mesmo no século XVIII. Além disso, a comparação das obras do acervo Balthasar paralitúrgicas, nenhuma partitura para o Ofício foi encontrada no acervo. Pare ser mais
de Freitas com outros acervos traz benefícios diretos, como a possibilidade de completar preciso, a única obra para Matinas ou Vésperas encontradas em acervos goianos de que
obras que aparecem nos acervos de forma fragmentada e também confirmação, questio- se tem notícia até o momento é o manuscrito das Matinas de Natal, copiados na Cidade
namento e mesmo levantamento de atribuições de autoria. de Goiás e preservados no acervo Dorvi/Moreyra.
Função Conclusão
Existe ainda um outro aspecto dos manuscritos do acervo Balthasar de Freitas a ser Por fim, é importante ressaltar que as pesquisas no acervo Balthasar de Freitas ainda
considerado. Com que propósito esses manuscritos foram produzidos? Qual a motivação estão longe de esgotar o assunto. O aprofundamento e a consequente publicação dessas
dos seus compositores e copistas? Uma resposta simples é: os manuscritos foram feitos pesquisas se constituirão em passos importantes no sentido de se compreender melhor
aspectos culturais e sociais do homem que viveu no Brasil Central muito antes de defla-
5 O termo “concordância” É usado aqui em sentido mais flexível do que o geralmente usado, significando obras grada a “Marcha Para o Oeste”.
em comum entre os diferentes acervos.

76 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 77
Referências
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DUPRAT, Régis. Música na Sé de São Paulo Colonial. São Paulo: Paulus, 1995.
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PINA FILHO, Braz Wilson Pompêo de. “A Música em Goiás”. Revista Cultura, Brasília,
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Padre): Um Músico no Sertão Brasileiro”. Revista Goiana de Artes 7, no. 1, Goiânia, 1986.
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RODRIGUES, Maria Augusta Calado de S. A Modinha em Vila Boa de Goiás. Goiânia:
Editora da Universidade Federal de Goiás, 1982.

78 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER


UNIVERSO LUSÓFONO
A música religiosa de Marcos Portugal
(1762-1830): o repertório
luso-brasileiro
António Jorge Marques
Universidade Nova de Lisboa
Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical – CESEM

As primeiras invasões francesas (1807). A corte portuguesa no Rio de Janeiro:


D.João, Marcos Portugal e a música
O advento das primeiras invasões francesas precipitou a execução de um plano
estratégico pré-concebido: a trasladação da corte portuguesa para o Brasil, incluindo a
Rainha Maria I, e o Príncipe Regente D. João, que tomara a rédeas do poder efectivo no
mês de Abril de 1792, por ocasião do mais grave e definitivo ataque de loucura de Sua
Majestade. Pela primeira e única vez na história a capital de um reino europeu estabelece-
-se no Novo Mundo.
Mal aportou ao Rio de Janeiro, em Março de 1808, o Príncipe Regente tratou de
organizar – na medida do possível – a capela real à imagem da organização e estrutura
que detinha em Lisboa. O soberano era um devoto melómano que gostava de música
sacra de cariz alegre, e passava longos períodos no templo “buscando lenitivo para os seus
desgostos” (PEREIRA, 1946, p. 273). Atente-se a este excerto de uma carta do cónego
presbítero da Capela Real do Rio de Janeiro, António Pedro Gonçalves:
Aqui desde o fim de Setembro, pode se dizer que vivemos debaixo d’agua , tem
sido bem poucos os dias que não tenha chovido, e mt.º e o pior hé que não
obstante isto, o calor é excessivo. [...] Hé sempre incomodo a chuva, porêm aqui
hé dobrado para quem hé empregado na Capella, pois como o tempo não dá
logar a Sua Mag.e de passear; as tardes são passadas na Igreja, mudão-se as horas,
procura-se a muzica mais comprida para entreter athé á noite em nenhuma das
Oitavas sahimos sem ser de noite. Porêm graças a D.s tenho resestido, e passo
sem maior novidade.1 (30 de Dezembro 1819, apud PEREIRA, 1946, p. 276)
A relação profissional de Marcos Portugal com a família real portuguesa remonta a
1782, altura da primeira encomenda – uma Missa com instrumental cantada na Real Capela
de Queluz por ocasião da Festa de Santa Bárbara – referenciada na Relação Autógrafa
(RA),2 redigida pelo compositor em Junho de 1809 e acrescentada até 1816 (PORTU-
GAL, 1809-16). O príncipe João de 15 anos terá conhecido o jovem compositor Marcos
António por esta altura. A relação pessoal e profissional entre ambos foi determinante
para a carreira daquele que viria a ser o mais famoso compositor luso-brasileiro de todos

1 Grifo do presente autor.


2 O nome advém do facto de Manuel de Araújo Porto-alegre ser possuidor do original autógrafo em 1859,
ano em que o transcreveu (com gralhas) e o publicou na Revista Trimensal do Instituto Historico Geographico e
Etnographico do Brasil (Tomo XXII, p. 488-503). Cf. (MARQUES, 2012, p. 81-106).

ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 83


os tempos, condicionando o seu percurso e inclusivamente o rumo que o estilo da sua objectivo expresso de integrar o repertório da Capela Real do Rio de Janeiro.7
música religiosa viria a tomar.3 Neste excerto de uma carta endereçada a D. Carlota Jo-
aquina, é muito significativa a familiaridade com que D. João se refere à missa de Marcos A obra religiosa de Marcos Portugal: disseminação
e à sua inequívoca contribuição para a qualidade da festa: Foi recentemente publicada uma monografia cujo Capítulo 5 constitui um extenso
A festa esteve boa, cantou-se a missa de Marcos e agora mesmo que são 3 ½ da catálogo temático da obra religiosa de Marcos Portugal (MARQUES, 2012, p. 309-688),
tarde que faço esta, se acabou o refeitório. [...] Mafra, 18 de Agosto de 1805.4 que inclui todas as fontes que foi possível encontrar ao longo de uma pesquisa de quase
10 anos. O corpus gigantesco a que se reporta pode ser apreendido no quadro seguinte:
A “sua mania musical empolgava-o de tal maneira que deixava por momentos de
ser o Rei generoso e bom para se transformar num feroz egoísta” (PEREIRA, 1946, p.
273), sendo possessivo e ciumento com relação à música composta para a ‘sua’ capela, e
Entradas Versões AUT8 Versões9 Espécimes
especialmente à música composta por Marcos:
01. Missas
ElRey tem huma soffreguidade na musica que se canta na Capella, que athé a . 23 30 67 255
não quer emprestar nem p.ª se cantar aqui em algumas Festas que se fazem por 02. Vésperas/Salmos/Magnificat
fora, não indo Elle assistir. [...] No anno em q. morreo a Raynha e p. as Exequias . 35 37 65 164
da mesma Snr.ª compôz Marcos huma Missa de Defuntos, constou aqui não 03. Matinas/Responsórios
sei se com motivo ou sem elle, que se tinha cantado em Lx.ª. El-Rey soube-o . 18 23 48 128
foi pellos ares, e dizem-me que mandara Ordem ao Visconde de Santarem 04. Cerimónia de Acção de Graças/Hinos
que indagasse se isto era verd.e e quem a tinha remetido d’aqui, protestando de . 11 16 41 143
mandar para Angola o q. a tivesse remetido: o mesmo sucede agora com outra 05. Varia
do mesmo Marcos chamada da Conceição que aqui se disse ter-se cantado no . 19 26 37 55
Porto. Esteve aqui um Conego de Guimaraens meu hospede gostou mt.º de RE. Duvidosos, espúrios e contrafacta
huma Ladainha que Marcos fez pª a Novena do Carmo alternada com o Povo . 32 . 35 43
pediu-me se eu lha alcançava, disse-lhe que a pedisse a El-Rey não duvidando
que elle lhe desse licença pª a mandar copiar attendendo a ser huma cousa tão
pequena; El-Rey remette-o pª Marcos, o qual não sabendo o q. fizesse, falou a Totais: 138 132 293 788
S. Mag.e que lhe respondêo que o entretivesse, e q. a musica que elle mandava
fazer pª a sua Capella era unicamente pª as suas Funçoens, e que sendo de
outro modo, nenhuma differença haveria das suas ás dos outros. (António Pedro A clara predominância de obras e espécimes luso-brasileiros é facilmente aparente se
GONÇALVES, 30 de Dezembro 1819, apud Pereira, 1946, p. 277) compararmos os números da primeira e última colunas do quadro anterior (com excepção
Não é por isso de estranhar que o Príncipe Regente se tenha ocupado pessoalmente dos duvidosos/espúrios/contrafacta) com os números correspondentes, quando são apenas
da ida de Marcos Portugal para o Rio de Janeiro, dando ordens para que se deslocasse contabilizados os espólios/acervos/colecções dos arquivos/bibliotecas de Portugal e Brasil
àquela Corte com carácter de urgência.5 O compositor chegou ao Rio de Janeiro a 11 (Portugal/Brasil (Mundo)):
de Junho de 1811. Na sua comitiva, além da sua mulher Maria Joanna, viajavam mais 3
pessoas.6 É também quase certo que Marcos levou música de sua autoria copiada com o

3 É um dado significativo que, na RA, as obras religiosas referenciadas compostas por ordem de “S. A. R. o
Príncipe R. N. S.” estão representadas em maioria, especialmente se for tomado em consideração que essas nau S. Sebastião que deverá ter saído de Lisboa em Maio de 1812. V. Id., ff. 64r, 64v, 75v, 76r, 77r, 77v, 78r.
são, quase sem excepção, as de maiores dimensões, e as que empregam as forças vocais e instrumentais mais 7 O copista da Casa Real, Joaquim Casimiro da Silva, recebeu o seguinte aviso do Tesoureiro do Particular,
avultadas. (MARQUES, 2012, p. 86 ss.) João Diogo de Barros Leitão e Carvalhosa a 18 de Setembro de 1810: “Faz-se necessario que v.m.e se desocupe
4 BR-PEm, Arquivo da Casa Imperial do Brasil, I-17-08-1805-JVI. P. c 1-3 de qualquer obra do Theatro por ser m.to precizo que empregue todo o tempo na Copia da Muzica que devo
5 “S. A. R. O Principe Regente Nosso Senhor Foi Servido Ordenar que o mestre do Seminario Marcos mandar para o Serviço da Capella Real do Rio de Janeiro, devendo principiar pela Partitura, que Marcos lhe hade
Portugal fosse para o Rio de Janeiro servir o Mesmo Senhor n' aquella Côrte ; e porque deve partir na primeira entregar, e logo que esteja finda esta copia v.m.e me avizará para lhe remeter outras : Recomendo-lhe a sua exacçaõ
Embarcaçaõ da Coroa q sahir para a refferida Corte, faz-se necessario q Vm.e dê as providencias necessarias costumada e toda a possivel brevidade.” Id., f. 56 v. Algumas destas cópias ainda se encontram em BR-Rcm.
para elle ser pago dos Ordenados que se lhe devem, e de trez Mezes adiantados [...]”, [5º. Livro que serve de 8 Versões da autoria de Marcos Portugal (MP).
Registo de Cartas, pertencentes á Thezouraria do Particular], P-Lant, ACR, L.º 2979, f. 64r 9 A grande quantidade de versões atribuídas a outros autores é uma das mais surpreendentes características
6 Estas 3 pessoas deveriam incluir o seu criado e, possivelmente, os seus amigos e colaboradores: a cantora do corpus em análise. Se por um lado revela o carácter eminentemente funcional deste repertório, por outro
Mariana Scaramelli e o seu marido, o bailarino Luiz Lacombe [Luigi Lacomba], que viria a ser o mestre consagra-o como paradigmático ao longo de pelos menos três gerações de compositores. Um estudo mais
de dança de SS. AA. Imperiais, as filhas de D. Pedro I. O que é certo é que não incluía o seu irmão Simão aprofundado do aproveitamento do modelo e das modificações ou desvios que foi inevitavelmente sofrendo
Portugal, como está escrito em muitas biografias. Este, na companhia de sua mulher e dois filhos, viajaria na ainda está para ser realizado.

84 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 85
P-BRc Braga – Biblioteca Geral do Centro Regional de Braga da Universidade Católica
Portuguesa, Faculdade de Teologia [no antigo Seminário Conciliar]
P-BRs Braga – Arquivo da Sé
Entradas Espécimes P-Csm Coimbra – Seminário Maior da Sagrada Família
01. Missas P-Cug Coimbra – Biblioteca Geral da Universidade
. 23 (23) 233 (255) P-Cul Coimbra – Faculdade de Letras da Universidade
P-CB Castelo Branco – Arquivo da Sé
02. Vésperas/Salmos/Magnificat P-CE Cernache do Bonjardim – Arquivo do Seminário Liceal das Missões
. 35 (35) 164 (164) P-EVc Évora – Arquivo da Sé
03. Matinas/Responsórios P-EVp Évora – Biblioteca Pública e Arquivo Distrital
P-FAc Faro – Arquivo do Cabido da Sé
. 18 (18) 127 (128)
P-FAs Faro – Arquivo do Seminário de S. José da Diocese do Algarve
04. Cerimónia de Acção de Graças/Hinos P-FUdr MN Funchal – Arquivo da Direcção Regional dos Assuntos Culturais
. 10 (11) 115 (143) (Espólio do P.e Manuel Nóbrega)
05. Varia P-FUds Funchal (Madeira) – Arquivo particular do Cónego António Damasceno de Sousa
P-FUg HB Funchal (Madeira) – Gabinete Coordenador de Educação Artística
. 17 (19) 53 (55) (Espólio de João Hermógenes de Barros)
P-FUs RD Funchal (Madeira) – Arquivo do Seminário Maior Nossa Senhora de Fátima
Totais: 103 (106) 692 (745) (Espólio de Joaquim Roque Fernandes Dantas)
P-FUzfg DD Funchal (Madeira) – Arquivo particular de Zélia Ferreira Gomes
(Espólio de Domingos Fernandes Dantas)
Pode concluir-se que foi sobretudo em Portugal e no Brasil que a música religiosa de P-GR Graciosa (Açores) – Igreja Matriz de S. Mateus da Praia da Graciosa
Marcos Portugal circulou, e nestes dois países essa disseminação foi de uma grandeza e P-La Lisboa – Biblioteca do Palácio Nacional da Ajuda
longevidade fora do comum,10 com ênfase para algumas obras.11 P-Lajm Lisboa – Arquivo particular de António Jorge Marques
P-Lant CF Lisboa – Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Fundo Casa de Fronteira)
Para se obter uma melhor ideia deste fenómeno segue-se a lista de arquivos/bibliotecas/ P-Lap Lisboa – Arquivo particular
colecções luso-brasileiros que possuem pelo menos um espécime de uma obra religiosa P-Lbm RISS Lisboa – Basílica de Nossa Senhora dos Mártires
de Marcos Portugal: (Arquivo histórico da Real Irmandade do Santíssimo Sacramento)
P-Lbn Lisboa – Biblioteca do Seminário dos Missionários da Boa Nova
P-Lcg AC Lisboa – Fundação Calouste Gulbenkian, Serviço de Música (Arquivo do Coro)
BR-Bue Belo Horizonte – Universidade Estadual, Acervo do M.º Vespasiano Gregório dos Santos
P-Lcg AO Lisboa – Fundação Calouste Gulbenkian, Serviço de Música (Arquivo da Orquestra)
BR-CCec Cachoeira do Campo – Banda Euterpe Cachoeirense
P-Lf FISC Lisboa – Arquivo da Fábrica da Sé Patriarcal (Fundo da Irmandade de Santa Cecília)
BR-Ie Itabira – Sociedade Musical Euterpe Itabirana
P-Lf FSPL Lisboa – Arquivo da Fábrica da Sé Patriarcal (Fundo da Sé Patriarcal de Lisboa)
BR-Ma Mariana – Museu da Música da Arquidiocese de Mariana
P-Lf FSPS Lisboa – Arquivo da Fábrica da Sé Patriarcal (Fundo do Seminário Patriarcal de
BR-Oi FCLange Ouro Preto – Museu da Inconfidência (Colecção Francisco Curt Lange)
Santarém)
BR-Oi JLPompeu Ouro Preto – Museu da Inconfidência (Colecção José Luiz Pompeu, Campanha)
P-Lff Lisboa – Arquivo particular do Maestro Frederico de Freitas
BR-Oi JNCarvalho Ouro Preto – Museu da Inconfidência (Colecção Joaquim Nunes de Carvalho, Pitangui)
P-Lmcb Lisboa – Arquivo particular do Prof. Manuel Carlos de Brito
BR-Pjar Pindamonhangaba – Colecção João Antônio Romão
P-Ln Lisboa – Biblioteca Nacional de Portugal
BR-Rcm Rio de Janeiro – Arquivo do Cabido Metropolitano
P-Ln CJLM Lisboa – Biblioteca Nacional de Portugal, Área de Música
BR-Rem Rio de Janeiro – Escola de Música da Universidade Federal, Biblioteca Alberto
(Colecção João Leal Macieira)
Nepomuceno
P-Ln CVPF Lisboa – Biblioteca Nacional de Portugal, Área de Música
BR-Rh Rio de Janeiro – Museu Histórico Nacional
(Colecção Valério Peres Franco)
BR-Rn Rio de Janeiro – Biblioteca Nacional
P-Ln EFSP Lisboa – Biblioteca Nacional de Portugal, Área de Música
BR-SJls São João del-Rei – Arquivo da Orquestra Lira Sanjoanense
(Doação de Elisa Lamas - Espólio de Francisco A. N. dos Santos Pinto)
BR-SJrb São João del-Rei – Arquivo da Orquestra Ribeiro Bastos
P-Ln EMSR Lisboa – Biblioteca Nacional de Portugal, Área de Música
BR-SPeca São Paulo – Departamento de Música da Escola de Comunicação e Artes da
(Espólio de Mário de Sampaio Ribeiro)
Universidade de São Paulo, Laboratório de Musicologia
P-Ln FCN Lisboa – Biblioteca Nacional de Portugal, Área de Música
BR-SPieb São Paulo – Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo
(Fundo do Conservatório Nacional)
P-ANs Angra do Heroísmo (Açores) – Arquivo da Sé
P-Ln FCR Lisboa – Biblioteca Nacional de Portugal, Área de Música
P-AGNfa Arganil – Arquivo da Filarmónica Arganilense
(Fundo do Conde de Redondo)
P-AL Alcainça – Arquivo particular do Maestro Filipe de Sousa (posse da Fundação Jorge Álvares)
P-Ln FIPPC Lisboa – Biblioteca Nacional de Portugal, Área de Música
P-BRad Braga – Universidade do Minho, Arquivo Distrital
(Fundo do Instituto Português do Património Cultural)
P-Ln FPM Lisboa – Biblioteca Nacional de Portugal, Área de Música
(Fundo Pavia de Magalhães)
10 Especialmente se for tomado em consideração o facto de todos os espécimes luso-brasileiros serem
P-Ln FSPL Lisboa – Biblioteca Nacional de Portugal, Área de Música
manuscritos. Apenas em França e Inglaterra foi a obra religiosa de MP publicada, mas apenas parcelar e
(Fundo do Seminário Patriarcal de Lisboa)
limitadamente. (MARQUES, 2012, p. 247-57) A delapidação deste património foi enorme, o que implica que
P-Lp Lisboa – Arquivo do Coro Polyphonia Schola Cantorum
os espécimes que sobreviveram representam apenas uma pequena parte de todo o corpus que alguma vez chegou
P-Lr Lisboa – Arquivo da Radiodifusão Portuguesa
a existir.
P-Lsi Lisboa – Sindicato dos Músicos
11 Como se verá mais adiante.

86 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 87
P-Lsa Lisboa – Arquivo da Igreja Casa de S. António (à Sé)
P-Luc Lisboa – Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas,
03.16 Matinas do Natal Dó M 5 2
Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical 04.03 OS Mi b M, TD Si b M, TE Si b M 5 5
P-Mp Mafra – Biblioteca do Palácio Nacional
04.08 Te Deum Ré M 76 4
P-Pcar Porto – Igreja do Carvalhido (Fundo do Grupo Sacro de S. Cecília)
P-Pic Porto – Arquivo particular do Maestro Manoel Ivo Cruz 05.04 Domine, in virtute tua Si b M 1 1
P-Psf Porto – Arquivo da Ordem Terceira de São Francisco 05.07 Ladainha Sol m 5 2
P-PD FCSA Ponta Delgada (Açores) – Biblioteca Pública e Arquivo Distrital
(Fundo do Convento de S. André) 05.09 Lauda sion Lá M 4 2
P-Sp ECRP Setúbal – Biblioteca Pública Municipal (Espólio de Celestino Rosado Pinto) TOTAIS 224 [287] 39
P-Vs Viseu – Arquivo da Sé
P-VV Vila Viçosa – Biblioteca do Paço Ducal
P-VVcns Vila Viçosa – Igreja de Nossa Senhora da Conceição (Régia Confraria de Nossa A priori existem alguns factos históricos que, sobremaneira, condicionam e informam
Senhora da Conceição) os processos de disseminação e trânsito de espécimes musicais, seja no interior de cada
um dos dois países, seja através do Oceano Atlântico:
1. A chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro em Março de 1808 veio desen-
A contagem final por arquivo/biblioteca/colecção é a seguinte: volver, transformar e estimular as práticas musicais locais e, como já vimos, enriquecer
PORTUGAL BRASIL o repertório da Capela Real, seja através de músicas (incluindo as de autoria de Marcos
Arq./bibli./colec. Obras Espécimes Arq./bibli./colec. Obras Espécimes Portugal) que viajaram em sentido Oeste, seja através de um incremento de escrita
58 93 627 16 27 65 dos compositores aí activos;13 o próprio sistema de produção musical e os seus agentes
(músicos instrumentistas, cantores, compositores, professores de música, copistas), além
de papel de música, instrumentos musicais e todos os seus acessórios, etc, sofreram um
Obras religiosas de Marcos Portugal que se encontram em arquivos/bibliotecas/ considerável incremento;
colecções de ambos os países. Os arranjos para a Capela Real do Rio de Janeiro 2. Em Abril de 1821, o Rei João VI e a sua corte fizeram a viagem no sentido inverso,
(vozes mistas e orquestra) a partir do repertório destinado à Basílica de Mafra (vozes e o monarca levou muitas músicas na bagagem que tinham pertencido ao repertório da
masculinas e órgãos) Capela Real; entre estas contava-se uma quantidade considerável de músicas da autoria
O quadro seguinte lista as 17 obras de que, simultânea e actualmente, se podem en- de Marcos Portugal, que hoje se encontram, na sua quase totalidade, na Biblioteca do
contrar vestígios em arquivos/bibliotecas/colecções de Portugal e Brasil:12 Palácio da Ajuda.14
Paralelamente, dois dados que resultaram da pesquisa efectuada também são signi-
ficativos e informam um possível processo de trânsito e utilização, apontando para uma
Número de espécimes explicação quanto à perda de um número considerável de autógrafos: 1. o facto de não
OBRAS 12 PORTUGAL BRASIL ter subsistido qualquer autógrafo do extenso repertório destinado aos 6 (4/5) órgãos da
01.03 Missa Dó M 1 3 Basílica de Mafra,15 e 2. o facto de Marcos Portugal ter realizado muitos arranjos destina-
01.08 Missa Mi b M 19 4 dos à Capela Real do Rio de Janeiro a partir dessas obras:16 um total de 13 (MARQUES,
01.09 Missa Mi b M 78 2 2012, p. 278-80). De notar que estas novas versões são substancialmente diferentes dos
originais, podendo em muitos casos considerar-se que são de facto obras novas, visto
01.18 Missa Si b M 6 1
que apesar de manterem a mesma estrutura, apenas têm em comum algumas melodias
01.21 Missa Festiva Dó M 2 1 (motivos) e encadeamentos harmónicos (Idem, p. 283-5). A menos que o compositor
01.22 Missa Festiva Fá M 6 2 tivesse uma memória prodigiosa, os arranjos deverão ter sido realizados com consulta de
02.29 Miserere mei Deus Mi b M 7 1 uma cópia, ou mais provavelmente do próprio autógrafo. Marcos Portugal deve ter levado
02.31 Vésperas N. Senhora Dó M 1 3
02.35 Vésperas do Natal Dó M 2 2 13 O caso mais conhecido e estudado diz respeito à produção do Mestre da Capela Real (e Imperial) Padre
José Maurício Nunes Garcia após a chegada da corte portuguesa. (MATTOS, 1997, p. 93-102, passim)
[03.05 Matinas da Conceição Dó M 63 -] 14 Assim se explica que relativamente às obras religiosas compostas de raiz no RJ (ou para a CapRRJ) ou às
03.07 Matinas da Epifania Dó M 5 1 versões realizadas para a CapRRJ a partir de versões anteriores, existam na Biblioteca da Ajuda nada mais nada
menos do que 13 autógrafos (de longe a maior concentração a nível mundial), a que se poderiam juntar mais
03.13 Matinas de S. Sebastião Ré M 1 3 três que pertencem ou pertenceram à colecção do maestro Filipe de Sousa (em P-AL [2] e P-Lsi [1]), e uma
quarta na Biblioteca Nacional de Portugal.
15 Um total de 32 obras incluindo as duas versões das 03.11 Matinas de S. Francisco Fá M, e uma versão
12 Os números que antecedem o nome das obras referem-se às entradas do catálogo temático da obra perdida do 02.26 Magnificat Fá M (MARQUES, 2012, p. 1017-9).
religiosa de MP, quinto capítulo de MARQUES (2012, p. 309-688). 16 Para vozes mistas e orquestra ou para vozes mistas 2 vlc, 2 fag e órgão.

88 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 89
os autógrafos para o Brasil visto que ainda se encontram muitas cópias no arquivo do Em acção de Graças Pella feliz chegada de S.A.S. A Princeza Real. [a Arquiduquesa austríaca
Palácio Nacional de Mafra (e também na Biblioteca Nacional de Portugal e na biblioteca Leopoldina]; terá sido apenas cantada nas CapRRJ e CapIRJ;
de Vila Viçosa); como D. João não deveria saber da sua existência no Rio de Janeiro,17 6. 01.22 Missa Festiva Fá M: 3V e 8 esp.; a primeira obra de MP a ser cantada inte-
mantiveram-se na posse do compositor e da sua família (após a sua morte). Um anúncio gralmente na CapRRJ e a primeira obra composta (em Lisboa) expressamente para ser
encontrado no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro publicado quatro anos e meio após cantada no RJ, “por ordem de S. A. R. o Príncipe Regente Nosso Senhor” de acordo com
a morte de Marcos, parece corroborar esta teoria: inscrição no aut.; provavelmente foi levada por um dos seguintes cantores mencionados
Se algum Sr. Professor, ou mesmo curioso quizer comprar 2 caixotes (não no autógrafo: António Pedro Gonçalves, Giovanni Mazziotti ou Giuseppe Capranica; a
pequenos) de diversas composições de musica, partituras originaes, e do melhor estreia deu-se na festa de N. S. do Monte do Carmo a 16 de Julho de 1810; a “temática [do
gosto que neste genero tem apparecido, sendo o seu o seu [sic] autor o insigne Gratias] é evocada em outras obras do Padre José Maurício”, tendo a primeira execução
e bem conhecido Marcos Antonio Portugal, cujas producções se deixarão sido importante para introduzir o “estilo da Capela Real de Lisboa” no Rio de Janeiro
patentear em alguns paizes Estrangeiros, de que lhe resultou o melhor conceito (MATTOS, 1997, p. 86 e 239); atravessou o Atlântico para Leste: o último mestre de
pelo bom acolhimento, e particular consideração a seu auto [sic], etc.; podem capela da Real Basílica de Mafra Frei João da Soledade, realizou uma versão para vozes
dirigir-se á rua da Conceição n. 12, 1º andar.18 masculinas e 4 org (só KGC);
7. 02.29 Miserere mei Deus Mi b M: 3V e 8 esp.; uma das numerosas obras com-
A análise sucinta de cada uma das 17 obras listadas no quadro supra permitir-nos-á
postas para as vozes masculinas dos monges arrábidos e para o conjunto de [4, 5 ou]
compreender o tipo de disseminação e trânsito através do Atlântico e, eventualmente,
6 órgãos da Real Basílica de Mafra, e depois arranjadas (normalmente com alterações
alguns dos fenómenos neles envolvidos:
substanciais) para vozes mistas e orquestra para integrar o repertório da CapRRJ; foi
1. 01.03 Missa Dó M: 2 versões (2V); espécimes (esp.) em Minas Gerais e no Porto
cantado em Minas Gerais;
(P-Psf: “[…] Offerecida / Ao Ill.mo Snr. Manoel Roiz. d’Azevedo / pelo seu particular amigo
8. 02.31 Vésperas N. Senhora Dó M: 2V e 4 esp.; sem Magnificat; possivelmente
/ O P.e Leonardo Pinto da Cunha / para ser cantada na Sua funçaõ dos Santos Martyres /
compostas para a CapIRJ por ocasião da festa de N. S. da Conceição (8 de Dezembro
de Marrocos, na Sua Igreja dos Religiosos Franciscanos / /Extintos / anno de 1853 […]”); o
1824) e (possivelmente) re-utilizando dois salmos de 1816 (DD e LP); existe em P-La
motivo inicial do Kyrie é semelhante ao correspondente da 01.21 Missa Festiva Dó M,
uma p.c. de B (só do DD) copiada por Joaquim Casimiro da Silva que deverá datar de c.
e da Missa Breve Dó M (CPM 114) de José Maurício Nunes Garcia ( JMNG); foi a
1822-36 e, por isso, não é improvável que este salmo tenha sido cantado numa das capelas
única obra composta no período imperial (1822-30) que chegou a Portugal, tendo sido
reais em Portugal; seria assim uma das raras obras compostas no Brasil que integraram o
muito provavelmente utilizada em contexto litúrgico;
repertório de (pelo menos) uma capela real em Portugal; foram cantadas em Minas Gerais;
2. 01.08 Missa Mi b M: 8V e 23 esp.; composta para a Real Capela de Queluz em
9. 02.35 Vésperas do Natal Dó M: 2V incorporadas no próprio aut. (V1 para 2 vlc,
1788 ou 1789, veio a integrar o repertório da Capela Real da Rio de Janeiro (CapRRJ)
2 fag, cb, timp e org [24 Dezembro 1812], e a V2 para orquestra [1815]; os demais ins-
na versão original (2 vlc., 2 fag. e org) e em nova versão para orquestra do autor; foi
trumentos foram acrescentados 3 anos depois); os 5 salmos (DD, CON, BV, LP, LD) e
cantada em Minas Gerais;
o MAG foram escritos originalmente para as vozes masculinas dos monges arrábidos e
3. 01.09 Missa Mi b M: 15V e 80 esp.; uma das mais paradigmáticas (senão a mais
os 6 org da Real Basílica de Mafra; os salmos CON, BV e LD fizeram parte das 02.33
paradigmática) obras do século XIX luso-brasileiro conhecida pelo epíteto de Missa
Vésperas de S. Francisco Dó M datadas de 1807; os salmos DD e LP, e o MAG foram
Grande; ter-se-á mantido no repertório das igrejas/capelas até inícios do séc. XX; prova-
obras autónomas aproveitadas posteriormente; o aut. está em P-AL mas a obra nas ver-
velmente composta por encomenda real em 1782; o espólio de Salvador José de Almeida
sões para vozes mistas nunca foi cantada em Portugal; foram cantadas em Minas Gerais;
Faria (1799) incluía uma cópia; integrou o repertório da CapRRJ e foi cantada em Minas
10. 03.07 Matinas da Epifania Dó M: 3V e 6 esp.; mais uma obra composta para as
Gerais; o Domine Deus serviu de modelo à secção correspondente da Missa de N. S. da
vozes masculinas dos monges arrábidos e para o conjunto de [4, 5 ou] 6 órgãos da Real
Conceição (CPM 106) de JMNG; (MARQUES, 2012, p. 689-700)
Basílica de Mafra (6 [5] Janeiro 1807), e depois arranjadas para vozes mistas e orquestra
4. 01.18 Missa Si b M: 2V e 7 esp.; possivelmente composta por encomenda da Rai-
para integrar o repertório da CapRRJ (1812); a 17 de Agosto de 1893, o espécime em
nha Maria I para ser cantada em N. S. do Livramento (1791 ?); integrou o repertório da
BR-Rem entrou no Instituto Nacional de Música vindo da Fazenda de Santa Cruz, o
CapRRJ e provavelmente da Capela Imperial do Rio de Janeiro (CapIRJ);
que indica que poderá sido cantada naquela residência real;
5. 01.21 Missa Festiva Dó M: 2 espécimes em P-La e BR-Rcm; como foi estreada
11. 03.13 Matinas de S. Sebastião Ré M: estreadas a 20 Janeiro 1814 na CapRRJ;
modernamente em Portugal a 10 de Outubro de 1988 nas IX Jornadas de Música Antiga da
embora o aut. esteja em P-La, nunca foram cantadas em Portugal; a 17 de Agosto de
Fundação C. Gulbenkian (Sergio Vartolo dirigiu o Coro e a Orquestra da Capella Musicale
1893, um dos espécimes em BR-Rem entrou no Instituto Nacional de Música vindo da
di San Petronio) existe também um espécime em P-Lcg AC; estreada a 12 Fevereiro 1818
Fazenda de Santa Cruz, o que indica que poderá sido cantada naquela residência real;
12. 03.16 Matinas do Natal Dó M: 2V e 7 esp.; estreada a 24 Dezembro 1811, foi
17 Se assim não fosse tê-los-ia trazido para Lisboa, à semelhança do que fez com os autógrafos musicais provavelmente a segunda obra que MP compôs de raiz no RJ; apresenta relações temáticas
escritos para a Capela Real do Rio de Janeiro.
18 Annuncio datado de 26 de Agosto de 1834. O grifo é do presente autor. (MARQUES, 2012, p. 132-3) e de instrumentação (sem vl) com a Missa Pastoril (CPM 108) de JMNG; a 17 de Agosto

90 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 91
de 1893, um dos espécimes em BR-Rem entrou no Instituto Nacional de Música vindo original perdeu-se, e apesar do aut. da versão brasileira estar em P-La, esta nunca foi
da Fazenda de Santa Cruz, o que indica que poderá sido cantada naquela residência real; cantada em Portugal;
os espécimes em Portugal indicam que a obra terá sido cantada neste país, provavelmente 16. 05.07 Ladainha Sol m: 6V e 7 esp.; ladainha que terá feito parte de uma Novena
na capela do Conde de Redondo; juntamente com 05.07 Ladainha Sol m, distinguem-se de N. S. do Monte do Carmo composta para a CapRRJ em 1811 (perdida); o provável
por serem as duas únicas obras compostas de raiz para a CapRRJ que se implantaram no único espécime (completo) desta novena foi queimado (juntamente com grande parte do
repertório religioso em Portugal; arquivo musical da Sé do RJ) no átrio da catedral na segunda década do século XX; foi
13. 04.03 O salutaris Mi b M, Te Deum Si b M, Tantum ergo Si b M: 3V e 10 esp.; muito provavelmente cantada em Minas Gerais, como indica o espécime em BR-SPieb
obra a 8 vozes encomendada pelo Cardeal Patriarca para ser estreada na Santa Igreja (BR-SJls) atribuído a um copista provavelmente activo na Capela Imperial; atravessou
Patriarcal no dia de S. Silvestre (31 Dezembro 1800); o famoso castrado, Girolamo Cres- o Atlântico no sentido Leste e integrou o repertório das capelas e igrejas portuguesas;
centini, cantou o Dignare Domine e recebeu 100 moedas; MP levou o aut. para o RJ e, ao 17. 05.09 Lauda sion Lá M: 4V e 6 esp.; uma das obras compostas para as vozes
longo de cerca de 3 anos (1811-4) foi-o modificando e introduzindo alterações, com vista masculinas dos monges arrábidos e para o conjunto de [4, 5 ou] 6 órgãos da Real Basí-
a adaptá-lo ao gosto vigente e aos intérpretes disponíveis (especialmente os cantores); o lica de Mafra (1807), e depois arranjadas para vozes mistas e orquestra (ou 2 vlc, e fag
resultado é um aut. compósito guardado em P-La; terá sido uma das primeiras obras do e org) para integrar o repertório da CapRRJ (1813); uma versão portuguesa para vozes
compositor a ser apresentada na CapRRJ após a sua chegada, por ocasião da cerimónia mistas e orquestra (possivelmente de Joaquim Casimiro da Silva) realizada a partir da
da trasladação de várias imagens para a Igreja de Nossa Senhora da Candelária, a 19 de versão original, terá sido cantada na Capela do Conde de Redondo a partir dos anos 20
Setembro de 1811, e que contou com a presença do Príncipe Regente transportado pelo do séc. XIX; de acordo com as datas encontradas no espécime em BR-Rcm (8/6/1882
novo coche mandado vir de Lisboa; pelo menos o OS e o TE integraram o repertório da e 1/6/1893), esta obra ainda seria cantada na Capela Imperial e na Sé do Rio de Janeiro
CapIRJ, e foram cantados em Minas Gerais; nas duas últimas décadas do século XIX; distinguiu-se por ter tido duas versões para
14. 04.08 Te Deum Ré M: 22V e 104 esp. [!]; a mais internacional e uma das mais orquestra, cantadas simultaneamente em Portugal e no Brasil.
paradigmáticas obras religiosas de MP; composta para o baptizado do infante Miguel A estas 17 obras deverá ser acrescentada pelo menos mais uma: as 03.05 Matinas
(14 Novembro 1802) que teve lugar no Palácio de Queluz; a V2 para vozes e órgão foi da Conceição Dó M (14V e 63 esp.), que juntamente com a 01.09 Missa Mi b M e o
realizada pelo próprio autor, possivelmente a pedido do 14º Conde de Redondo; a sua 04.08 Te Deum Ré M, se constitui como uma das mais paradigmáticas obras religiosas
longevidade rondará os 120 anos, e foi uma das raríssimas obras religiosas a ser editadas de Marcos Portugal. Apesar de não ter sido encontrado nenhum espécime em arquivos
no séc. XIX (apenas parcialmente, por Vincent Novello em Inglaterra, e em França); brasileiros, as 3 entradas (uma para cada nocturno) datadas de 17 de Agosto de 1893, do
o arranjo do Tu devicto para tenor com acompanhamento de vl, vla obrigada, fl, cl, tr, 1º volume do Livro de Registo do Instituto Nacional de Música,19 comprovam que integrou
cor e cb, da autoria de JMNG para o casamento de D. Maria Teresa e D. Pedro Carlos, o repertório da Capela Real e terá sido cantada na Fazenda de Santa Cruz.
realizado a 13 de Maio de 1810, terá marcado a estreia da música de MP na CapRRJ; a
versão original (uma das obras favoritas de D. João) foi cantada na CapRRJ e manteve- Obras religiosas de Marcos Portugal que transpuseram os umbrais das capelas reais/
-se no repertório da CapIRJ, onde veio a ser conhecido como Te Deum dos Baptisados; imperial e passaram a pertencer ao repertório das igrejas/capelas de Portugal e/ou Brasil
a V5 – uma orquestração realizada a partir da V2 – terá possivelmente sido concebida Das 17 obras (18 se considerarmos as 03.05 Matinas da Conceição Dó M) sucinta-
para o casamento do Monarca espanhol Fernando VII que, em 1816, desposou a infanta mente analisadas, constata-se – pelo menos de acordo com as informações fornecidas
portuguesa, Maria Isabel, aluna de MP; ao contrário do que acontece com todas as outras pelas fontes que nos chegaram – que, no que ao tipo de disseminação institucional diz
obras religiosas de MP que foram cantadas em Minas Gerais, e que aí chegaram através respeito existem três categorias de obras:
de cópias que tiveram origem na CapIRJ, o espécime em Itabira (V15) teve origem na 1. Aquelas que foram somente cantadas no Brasil (CapRRJ e/ou CapIRJ, ou num
região de Tomar e foi enviado por correio em 1867-8 (data descoberta através da análise contexto de Corte, p.e. na Fazenda de Santa Cruz), mas das quais existem espécimes
filatélica dos selos que ainda se conservam na última página da p.c. de B); a causa próxima em arquivos portugueses (nomeadamente na Biblioteca da Ajuda) levados por João VI:
da importação desta cópia estará relacionada com o Padre português (também compositor) 03.13 Matinas de S. Sebastião Ré M;
activo em Itabira, José Benedicto Álvares; o maestro Vespasiano Gregório dos Santos 2. Aquelas que foram cantadas nas capelas reais em Portugal e no Brasil (CapRRJ e/ou
(Belo Horizonte) também detinha um espécime da V15; (MARQUES, 2012, p. 701-16) CapIRJ), ou num contexto de Corte (p.e. na festa de Nossa Senhora do Livramento ou na
15. 05.04 Domine, in virtute tua Si b M: 2V e 2 esp.; motete (com versos extraídos Fazenda de Santa Cruz): 01.18 Missa Si b M, 01.21 Missa Festiva Dó M, 01.22 Missa
dos salmos 20 e 60) inicialmente composto para a Real Basílica de Mafra por ocasião do Festiva Fá M, 03.07 Matinas da Epifania Dó M, 05.04 Domine, in virtute tua Si b M;
aniversário de D. João a 13 de Maio de 1807, veio depois a ser cantado no aniversário 3. Aquelas que transpuseram os umbrais das capelas reais/imperial e passaram a per-
onomástico do Monarca a 24 de Junho de 1813; ficou conhecido no Brasil como Hymno tencer ao repertório das igrejas/capelas de Portugal e/ou Brasil: 01.03 Missa Dó M, 01.08
para o dia de S. João; uma das obras compostas para as vozes masculinas dos monges
arrábidos e para o conjunto de [4, 5 ou] 6 órgãos da Real Basílica de Mafra, e depois
19 BR-Rem, Reg.3984-2931, 3984A-2932, 3984B-2933: Matutini per la Festivitá dell’ Immaculata Concezzione
arranjadas para vozes mistas e orquestra para integrar o repertório da CapRRJ; a versão della B.V.M. (3 nocturnos com data de 1802 provenientes da Fazenda de Santa Cruz).

92 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 93
Missa Mi b M, 01.09 Missa Mi b M, 02.29 Miserere mei Deus Mi b M, 02.31 Vésperas 2. Que estratégias e recursos técnicos foi o compositor aperfeiçoando para desenvolver
N. Senhora Dó M, 02.35 Vésperas do Natal Dó M, 03.05 Matinas da Conceição Dó M, um estilo cada vez mais potenciador do grandiloquente espectáculo da Representação
03.16 Matinas do Natal Dó M, 04.03 O salutaris Mi b M, Te Deum Si b M, Tantum Simbólica do Poder Real, que terá culminado com as obras para “toda a orquestra e bas-
ergo Si b M, 04.08 Te Deum Ré M, 05.07 Ladainha Sol m, 05.09 Lauda sion Lá M. tante número de vozes” compostas por alturas da chegada da Arquiduquesa Leopoldina
Quais as características estilísticas responsáveis por (ou facilitadoras de) uma cir- ao Rio de Janeiro e da Aclamação de João VI?21
culação exterior ao contexto cortesão? Um estudo aprofundado está por realizar mas,
globalmente, as obras mais disseminadas e que se mantiveram no repertório das igrejas SIGLAS DE ARQUIVOS E BIBLIOTECAS, ABREVIATURAS
por mais tempo, têm em comum uma relativa acessibilidade técnica, em particular das
secções solísticas, normalmente mais exigentes desse ponto de vista. Em vários aspectos, Aut. autógrafo
uma parte das versões posteriores tendeu a simplificar, resumir, reduzir e substituir, com B baixo (vocal)
o fim de possibilitar a sua integração no repertório de outras instituições com meios mais BR-PEm Petrópolis – Museu Imperial
modestos. Previsivelmente, nenhuma das obras para “toda a orquestra e bastante número BR-Rcm Rio de Janeiro – Arquivo do Cabido Metropolitano
de vozes” escritas para realçar as capacidades técnicas e expressivas dos cantores solistas BR-Rem Rio de Janeiro – Escola de Música da Universidade Federal, Bi-
da Capela Real do Rio de Janeiro (em particular dos castrati), especialmente em ocasiões blioteca Alberto Nepomuceno
de elevado significado sócio-político, conheceu uma disseminação significativa. A maior BV Beatus vir
parte destas obras, dificilmente adaptável a meios mais modestos ou a cantores de nível C Credo
inferior, foi apenas cantada pelos intérpretes para quem foram compostos os solos ou por CapIRJ Capela Imperial do Rio de Janeiro
outros de capacidades técnicas comparáveis, e num contexto semelhante àquele para que CapRRJ Capela Real do Rio de Janeiro
tinha sido inicialmente concebida. (MARQUES, 2012, p. 297-300, passim). Cb contrabaixo
Cl clarinete
Considerações finais mas (certamente) não definitivas COM Confitebor tibi Domine (Salmo 110)
Esta análise foi realizada apenas contabilizando os espécimes sobreviventes mas, na Cor trompa
realidade, as obras de Marcos Portugal existentes no Brasil até inícios do século XX eram CPM ### indica o número da catálogo temático das obras de JMNG organi-
em número muito maior. Esta asserção tem por base, não só a reconhecida e impressionante zado por Cleofe Person de Mattos
delapidação atribuída a causas naturais ou outras, mas ainda as informações contidas DD Dixit Dominus
em três fontes secundárias, nomeadamente os três catálogos realizados pelos sucessivos Esp. espécime(s)
arquivistas da Capela Imperial e da Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro: Joaquim Fag fagote
José Maciel (1888), Miguel Pedro Vasco (1902) e Antonio Romualdo da Silva (1922). O Fl flauta
primeiro catálogo para as obras presentes no arquivo da Capela Imperial não atribuídas a G Gloria
José Maurício Nunes Garcia perdeu-se, mas Sacramento Blake, na entrada do Diccionario JMNG José Maurício Nunes Garcia
Bibliographico Brazileiro que dedica a Marcos Portugal, menciona sumariamente a lista K Kyrie
de Maciel que continha um total de 56 obras: 10 missas, 6 hinos, 7 matinas, 30 salmos LD Laudate Dominum
e 3 cânticos (BLAKE, 1883-1902, vol. VI, p. 220-1). No catálogo de 1902 este número LP Laudate pueri
desce para 44 (VASCO, 1902, p. 17-9), e no de 1922, depois da devastação do arquivo MAG Magnificat
(MATTOS, 1970, p. 59 e 383), apenas restavam 13 obras20 (SILVA, 1922, p. 55-65). Ms. manuscrito
Este valioso património luso-brasileiro ainda está por avaliar, assim como a sua in- Org órgão
fluência em compositores luso-brasileiros contemporâneos e posteriores, nomeadamente OS O salutaris Hostia
José Maurício Nunes Garcia. Outras linhas de investigação profícuas seriam: P-AL Alcainça – Arquivo particular do Maestro Filipe de Sousa (posse
1. Que tipo de técnicas e estratégias utilizou Marcos Portugal para adaptar as obras da Fundação Jorge Álvares)
compostas para os órgãos da Basílica de Mafra à Capela Real do Rio de Janeiro? Quais
foram as suas motivações, e como se articularam com os paradigmas estético-performativos 21 Nomeadamente a 01.21 Missa Festiva Dó M cantada na CapRRJ a 12 de Fevereiro de 1818 “ Com todo
o instrumental, e / para se executar com bastante numero de vozes, […] / Em acção de Graças / Pella feliz
e as novas funcionalidades das obras?
chegada de S.A.S. / A Princeza Real”, e com a participação dos tenores António Pedro Gonçalves e Giovanni
Mazziotti, do baixo João dos Reis, e dos castrados Antonio Cicconi, Giovanni Fasciotti e Pascoal Tani; e
20 Na realidade são 11 obras apenas: o 04.03 O salutaris, Tantum ergo é contabilizado como duas o 04.11 Te Deum Si b M, “Por ordem de S. M. F. / Te Deum Laudamus. / com toda a Orquestra / e com
obras (VASCO, 1902, p. 60), e as 02.31 Vésperas N. Senhora Dó M (VASCO, 1902, p. 58) também são bastante numero / de vozes. / Pª. se cantar na Cappella Real / do Rio de Janeiro, / no dia 6 de Fevrº. anno de
contabilizadas como 2 obras por causa das duas versões com orquestra e órgão. A razão desta discrepância 1818 / Na ocasião da feliz aclamação / de S. M. F. / O Senhor D. João VI”, e com a participação dos mesmos
reside na precisão da comparação com o número de obras do catálogo de 1902. cantores. (MARQUES, 2012, p. 414-6, 627-9, passim)

94 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 95
P-La Lisboa – Biblioteca do Palácio Nacional da Ajuda
P-Lant Lisboa – Arquivo Nacional da Torre do Tombo
P-Lant ACR Lisboa – Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Arquivo da Casa
Real)
P-Lcg AC Lisboa – Fundação Calouste Gulbenkian, Serviço de Música
(Arquivo do Coro)
p.c. parte cava
RJ Rio de Janeiro
TD Te Deum
TE Tantum ergo
Timp timbales
Tr trompete
V versão (versões)
Vl violino
Vla viola
Vlc violoncelo

Bibliografia e (algumas) fontes citadas


BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Diccionario Bibliographico Brazileiro, 7
vols. Rio de Janeiro, Typographia Nacional/Imprensa Nacional, 1883-1902.
MATTOS, Cleofe Person de. Catálogo Temático das obras do Padre José Maurício Nunes Gar-
cia. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura/Conselho Federal de Cultura, 1970.
MATTOS, Cleofe Person de. José Maurício Nunes Garcia: Biografia. Rio de Janeiro,
Ministério da Cultura/Fundação Biblioteca Nacional, 1997.
MARQUES, António Jorge. A obra religiosa de Marcos António Portugal (1762-1830):
catálogo temático, crítica de fontes e de texto, proposta de cronologia. Lisboa, Biblioteca Nacional
de Portugal/Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical, 2012.
PEREIRA, Ângelo. Os Filhos de El-Rei D. João VI. Lisboa, Empresa Nacional de Pu-
blicidade, 1946.
PORTUGAL, Marcos, «Relação das differentes peças de musica, que Marcos Portugal
tem feito desde que S. A. R. o Principe R. N. S. houve por bem empregal-o no seu Real
Serviço [...]», manuscrito autógrafo de 1809[-1816]. Revista do Instituto Historico Geo-
graphico e Ethnographico do Brasil, Tomo XXII, Rio de Janeiro, p. 488-503, 1859.
SILVA, Antonio Romualdo da. Catalogo das Musicas Sacras pertencentes ao Archivo da
Capella Imperial […], ms., 1922, disponível em <http://acmerj.com.br/CMRJ_CME_
SD_Cx046_UD02.htm>
VASCO, Miguel Pedro. Catalogo das Musicas da Capella Imperial actualmente Cathe-
dral Metropolitana do Rio de Janeiro, ms., 1902, disponível em <http://acmerj.com.br/
CMRJ_CME_SD_Cx046_UD01.htm>

96 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER


“Era uma vez um príncipe”: uma versão
brasileira da ópera Il Guarany
de Carlos Gomes
Lúcia de Fátima Ramos Vasconcelos
Universidade Estadual de Campinas
Alberto José Vieira Pacheco
Universidade Nova de Lisboa
Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical – CESEM
Adriana Giarola Kayama
Universidade Estadual de Campinas

A versão brasileira de O Guarani


Em 1870, estreava no Teatro alla Scala, em Milão, a ópera Il Guarany com música de
Antônio Carlos Gomes (1836-1896), e com um libreto em italiano por Antonio Scalvini
(1835-1881), baseado no romance homônimo de José de Alencar (1829-1877). A ópera
seria sempre lembrada como a primeira de compositor brasileiro a ser bem sucedida
na Europa e esta primazia acabaria por fazer dela um troféu para o orgulho nacional
brasileiro. Fato pouco conhecido, no entanto é que a peça conta com uma versão em
português, intitulada O Guarani, ópera baile em quatro atos e publicada em 1938, pela
Imprensa Nacional, no Rio de Janeiro.1 Na verdade, como nos informa seu editor, esta
era a publicação de uma versão em vernáculo que teria sido feita anos antes:
A 7 de junho de 1935, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, por iniciativa do Sr.
Professor La-Fayette Côrtes, foi esta tradução apresentada ao público pelo Sr. Conde de
Affonso Celso, Presidente da Academia Brasileira de Letras e cantada, em oratório, sob
regência do Sr. Maestro Francisco Braga, com os seguintes interpretes: [...] Representada
pela primeira vez nesta versão na noite de 20 de Maio de 1937, em recita de gala, no
Teatro Municipal do Rio de Janeiro.2 (GOMES, 1938, s.n.)
A tradução foi feita por Carlos Marinho de Paula Barros que tem o cuidado de
informar:
Para o poema deste libreto há uma explicação necessária:

Extraído, diretamente, da partitura musical de “O Guarani” de A. Carlos Gomes, ele é a


resultante da tradução que pôde ser adaptada aos diversos ritmos – correspondendo cada
sílaba a uma nota – de acordo com o seguinte preestabelecido:

1 Exemplares podem ser consultados no Museu Carlos Gomes, em Campinas, ou na Biblioteca do Museu
Imperial de Petrópolis, só para citar dois que já puderam ser por nós consultados.
2 A ortografia foi atualizada.

ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 99


1 – Manter o pensamento do poema italiano sobre o qual foi escrita a opera. tida como nacional a música em língua estrangeira, mas com libreto cujo tema fosse
2 – Não alterar, de modo algum, os valores musicais – o que é usual nas traduções deste nativista; ou mesmo qualquer produção musical que impressionasse a Europa e afirmasse
gênero. a grandeza do Brasil” (PACHECO; KAYAMA, 2007, p. 28). Sendo assim, Il Guarany
3 – Que cantasse perfeitamente, sem desprimor para o vernáculo. estava perfeitamente em acordo com estes ideais, já que possuía libreto nativista e tinha
4 – Observar, e, em alguns pontos, restabelecer a verdade histórica dando a dramaticidade sido estreada num dos principais teatros de ópera da Europa.
e a emoção necessárias. Por outro lado, após a semana de Arte Moderna de 1922, estabelece-se no Brasil um
5 – Criar um clima próprio e adequado que desse à opera mais popular do Brasil – a nacionalismo mais radical, com uma clara posição de resistência à hegemonia cultural
brasilidade que não pode ter em idioma estranho. europeia. Não há espaço aqui para descrever este movimento e suas consequências, basta
6 – Atender à tessitura das vozes, à respiração dos cantores, aos tempos de compasso – de ter em mente que, entre outras coisas, ele não considerava lícito que uma composição
modo a recair em cada tempo forte uma tónica prosódica, às pausas, à gravidade ou agudez vocal fosse escrita em língua estrangeira. Sendo assim, a versão brasileira de Il Guarany
das notas, às rimas, etc. pretende, além de homenagear o próprio compositor, atualizar esta obra, trazendo-a
Deste modo, obrigado a tal complexo, é evidente, nem sempre o poema satisfaz ao próprio mais próxima do que se considerava como nacional na primeira metade do século XX.
tradutor que, o não considerando obra original, de mérito artístico – o tem, apenas, como Não podemos esquecer que Carlos Gomes foi justamente um dos compositores mais
anseio e colaboração para o canto em idioma pátrio e um modesto trabalho a serviço da criticados pelos nacionalistas do século XX, por considerarem sua música servil à música
glória de Carlos Gomes. O tradutor.3 (C. M. de Paula Barros in GOMES, 1936, s.n.) europeia. Logo, a tradução aqui em questão pode ser vista também como uma forma de
reabilitar o compositor e sua obra: “um modesto trabalho a serviço da glória de Carlos
Se relembrarmos a já citada intenção do tradutor de criar “um clima próprio e adequado
Gomes” (C. M. de Paula Barros in GOMES, 1936, s.n.). A tradução, na verdade, revela
que desse à opera mais popular do Brasil – a brasilidade que não pode ter em idioma
uma tentativa de dissolução da tensão causada por um paradoxo: os nacionalistas buscam
estranho”, podemos ver claramente que nas origens desta versão vernácula estão razões
no seu patrimônio a própria legitimação e corporificação da nação, mas neste caso este
de foro puramente ideológico. Ou seja, a tradução é claramente uma tentativa de tornar
próprio patrimônio se via demasiadamente “manchado” pela influência estrangeira. Assim,
a ópera mais “brasileira” ou, na verdade, mais próxima do que se considerava como tal
se era impossível ignorar o patrimônio nacional, tornava-se essencial e lícito saneá-lo,
naquele momento histórico. Mais brasileira ou não, o que realmente se consegue com
expurga-lo dos estrangeirismos.
a tradução é aproximá-la dos ideais nacionalistas próprios do século XX, que tiveram
Estes esforços são partilhados pelo próprio governo brasileiro, afinal a edição em
como grande defensor e mentor Mário de Andrade (1893-1945). Como é próprio de
questão nos informa que a prefeitura de Belém do Pará adquiriu os direitos autorais
sua natureza social, estes ideais não são verdades absolutas e sofreram transformações
desta versão em vernáculo e mandou ilustrar para comemorar o primeiro centenário de
no decorrer da história. Afinal, não podemos esquecer que antes do projeto nacionalista
nascimento do compositor, como era de se esperar para um dos heróis da nação.5 Na
liderado por Andrade, artistas brasileiros oitocentistas, contaminados pelas ideias do
verdade o impresso não deixa de informar que “NO GOVERNO DO PRESIDENTE
romantismo europeu, já defendiam no Brasil a criação de uma “arte nacional”. Exemplo
GETULIO VARGAS foi mandada imprimir esta partitura pelo Exmo. Sr. Dr. Vicente
perfeito disto é a publicação em 1836 da Revista Nitheroy por Francisco de Salles Torres-
Rão, Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores” (GOMES, s.n. 1938, grifo
-Homem, Domingos José Gonçalves de Magalhães, Pereira da Silva e Manuel de Araújo
no original). O editor também tem o cuidado ressaltar que da “presente edição foram
Porto-Alegre. É certo que este nacionalismo tinha como foco principal a literatura, mas
tirados três exemplares em grande formato e mais dez, do poema em separado, impressos
não só, afinal, o primeiro número da revista conta com um artigo de Porto-Alegre sobre
em papel linho de Hollanda, todos numerados e rubricados pelo tradutor”. Ou seja, é
música brasileira.
uma edição “monumental” como também são, por exemplo, algumas edições italianas de
Estas sementes do nacionalismo germinaram e o Brasil viu nascer em 1857 a Imperial
luxo de obras de Rossini ou Verdi. Ou seja, é uma edição que além de interesses musi-
Academia de Música e Ópera Nacional,4 que tinha como um dos objetivos fazer produções
cais práticos, buscam em grande medida a materialização ou corporificação do símbolo
musicais em língua portuguesa seja de peças inéditas ou de traduções de repertório estran-
nacional que carregam estampado.
geiro. Foi esta mesma academia que pôs em cena a primeira ópera de Carlos Gomes, não
Desta forma, vemos que músicos e governantes voltam seu interesse para o patrimônio
por acaso composta com libreto em português. Vemos, portanto, que o início da carreira
musical brasileiro. Os primeiros, no esforço de valorizar a música brasileira, buscam adaptar
operática do compositor está profundamente relacionada com o nacionalismo musical do
uma obra fundamental do repertório para que ela estivesse em consonância com os ideais
século XIX. Evitamos chamar este movimento de proto-nacionalismo, por considerarmos
nacionalistas posteriores a 1922. Os segundos, dentro do processo de modernização e
que esta denominação carrega em si a ideia positivista de que o nacionalismo do século
reinvenção do Brasil nos moldes republicanos, se apropriam de um produto do período
XX é melhor ou mais legítimo. O que pode ser dito é que os nacionalistas oitocentistas
monárquico, através de sua reabilitação e remodelação, para que servisse a seus próprios
não pretendiam uma ruptura estética com os moldes musicais europeus, e consideravam
interesses. Ambos são unidos pela ideologia nacionalista que, de acordo com Benedict
suficientemente nacional a música composta com texto em português. “Também era
5 Também razões motivações locais, afinal o impresso também lembra que Carlos Gomes foi “ex-diretor do
3 A ortografia foi atualizada. Instituto de Música de Belém-Cidade que recebeu as últimas manifestações de seu Gênio e berço de Carlos
4 Esta instituição foi alvo de recente pesquisa de doutoramento por André Heller-Lopes (2011). Marinho de Paula Barros, autor da versão brasileira” (GOMES, s.n. 1938).

100 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 101
Anderson (2005), cria ou inventa as nações.6 Em suma, este O Guarani pode ser conside- A ária “C’era una volta un príncipe” é escrita predominantemente em versos hexassi-
rado um entre tantos esforços feitos para reinventar o Brasil e afirmá-lo, pois aquela nação lábicos7 com acentos principais nas quartas e sextas sílabas e versos octossilábicos8 com
imaginada nos moldes monárquicos já não servia aos interesses dos republicanos, nem acentos nas quartas e oitavas sílabas. Em relação aos padrões de acentuação adotados pelo
fazia jus aos anseios modernistas dos artistas. Por outro lado, se hoje em dia esta versão libretista, existem basicamente uma alternância entre sequências de três ou quarto pés
não é vista com frequência nos palcos é menos por falta de qualidade da própria versão e iâmbos9 (-/ -/ -/)10 e a ocorrência da alternância um pé dátilo11 seguido de dois troqueus12
mais pela perda de influência da ideologia política e da estética nacionalista modernista (/ - - /- /-), o que enriquece a rítmica do verso, conferindo-lhe uma musicalidade pró-
que lhe deram vida, somada a certa resistência do público moderno brasileiro em relação pria. Na tradução, o tradutor, ciente desses padrões, imprimiu a sua obra uma sonoridade
a traduções de obras musicais, e mesmo dos músicos tão influenciados hoje em dia pelo rítmica bem semelhante ao poema original, utilizando-se basicamente da mesma paleta
movimento de interpretação com “autenticidade histórica”. métrica, conforme exemplificado a seguir (Exemplo 1).

Análise da versão brasileira da ária ‘C’era una volta un principe’: um estudo de caso
Paul Valéry (1991) diz ser a poesia “o máximo de tensão entre o som e o sentido”,
podemos então considerar que à voz é designado um papel de extrema relevância em
casamento com o poema. Constituindo-se como som mais do que como letra, o poema
transporta-nos a aguçar outros sentidos, especialmente a audição.
Segundo Cerqueira (2006), a proximidade entre música e poesia, enquanto linguagens
de fundamento sonoro e articulação temporal fornece níveis de equivalência das dimensões
verbais do texto poético (prosódia, morfossintaxe, semântica) com os parâmetros acústicos
de altura, duração, intensidade e timbre, formadores dos aspectos horizontais e verticais
da textura musical; o que leva a correspondências diretas e indiretas entre características
estruturais poéticas e musicais (rítmicas, melódico-harmônicas, dinâmicas e timbrísticas).
Esta identificação elementar do perfil formal fornece o fundamento de uma síntese que
se pode definir como a ‘música básica’ do texto, um ponto de partida objetivo e direto
para a composição musical.
O som e sua tensão com o sentido fazem do texto poético um texto, em alguma
medida, intraduzível. Emil Staiger (1972) defende a ideia que “a poesia é singular e irre-
produzível”. “Intraduzível”, entretanto, não é uma condenação. Intraduzível é inseparável.
Podemos, então, pensar que quando um tradutor escreve uma boa tradução, não é porque
ele recuperou algo de um poema, mas sim porque ele, a partir de um contato com aquele,
escreveu outro texto também singular.
Segundo Haroldo de Campos (1992),
Para que a tradução criativa se desenvolva, faz-se necessária uma leitura atenta e crítica
do texto original, cuja beleza se revela suscetível de uma “vivissecção” implacável, que
lhe revolve as entranhas, para trazê-la novamente à luz num corpo lingüístico diverso.
(CAMPOS, 1992, p. 243)
Nesse sentido, Haroldo de Campos se debruça sobre a atividade criativa e retira a
figura do tradutor da função de transportador de conteúdo de uma língua para outra,
oferece-lhe o estatuto de coautor do texto estrangeiro.
Etimologicamente, traduzir (do latim, trans + ducere) significa levar através de. O que se
Exemplo 1 – Tabela com escansão métrica da versão brasileira e italiana
leva? De onde? Para onde? Mediante o que? Mário Laranjeira (2003) diz que as respostas a
essas perguntas são o que expande o lugar da tradução, levando-a para além do linguístico,
situando-a em qualquer área da comunicação cultural em geral, e das artes em particular. 7 Versos com 6 sílabas.
8 Versos com 8 sílabas.
9 Jambo ou Iâmbo: pé formado por uma sílaba átona e uma tônica
6 Neste texto, emprestamos deste autor o conceito de nação como uma comunidade política imaginada por um 10 Serão utilizados os símbolos “-” e “/” para indicar sílabas átona e tônica, respectivamente.
grupo como sendo soberana e geograficamente limitada. Ou seja, a nação não é uma realidade física imemorial, 11 Dátilo: pé formado por uma sílaba tônica e duas átonas
mas sim uma criação humana e, como tal, sujeita às transformações da sociedade que a instaura. 12 Troqueu ou Coreu: pé formado por uma sílaba longa (tônica) e uma breve (átona).

102 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 103
Se por um lado o tradutor, de uma forma geral, procurou manter os padrões métri- Ainda em nível suprassegmental, destacam-se o tratamento dado aos acentos rítmicos
cos durante o processo tradutório, algumas alterações foram feitas, e essas soluções ou que, segundo Carvalho (1987), são os acentos internos que, colocados em determinados
particularidades do seu processo criativo serão objeto de nossa análise, assim como as lugares ou sílabas, marcam a fisionomia musical dos diferentes tipos métricos. Segundo
consequências destas para a interpretação da versão brasileira. o autor, além dos acentos rítmicos principais, existem os secundários, que realçam e
Em relação às particularidades rítmicas da poesia, destaca-se o padrão formado pela imprimem movimento ao verso. Os acentos primários, marcamos com o sinal ‘>’ maior
sequência de um pé dátilo e dois troqueus (/- - /- /-), que coincide com o motivo rítmico e destacado em negrito (Exemplo 5).
recorrente. Esse padrão tem, também, forte influência na caracterização da obra. Abaixo
(Exemplo 2), observa-se o comportamento deste padrão métrico poético e musical.

Exemplo 2 – Aria: Era uma vez um principe/ C’era una volta un principe c. 77 e 78

Na primeira estrofe, uma alteração métrica importante é observada no segundo verso, Exemplo 5 – Tabela de padrões de acentuação suprassegmental
o primeiro tempo da poesia é escrito em pé anfíbraco (-/-). A opção por esse padrão que
se repete nos versos seguintes da estrofe, promovendo uma sonoridade rítmica muito Como se observa pela tabela acima, esses padrões estruturais de acentuação se mantive-
particular ao texto em português (Exemplo 3).13 ram os mesmos nas duas versões, com a exceção do terceiro verso que, na versão brasileira,
desloca a acentuação principal para o primeiro e último tempo forte.
Musicalmente há um desvio do apoio na cabeça do compasso, no caso do português,
em particular, no 3º verso, há de se tomar ainda mais cuidado na articulação das palavras
“de todos”, para se evitar a compreensão “ditoso” por parte do ouvinte (Exemplo 6).

Exemplo 3 – Era uma vez um principe/C’era una volta un principe: c. 79

Através do exemplo abaixo se percebe, entretanto, que embora se tenha optado por
alterações em nível segmental14 (sílabas/pés), os padrões de acentuação prosódicos (em Exemplo 6 – ‘Era uma vez um principe’ compassos 81 e 82: deslocamento da acentuação
nível suprassegmental) mantêm-se os mesmos nas duas versões (Exemplo 4).
Na segunda estrofe, o tradutor, de uma forma geral, mantém o padrão métrico da
poesia italiana. No primeiro verso, entretanto, percebe-se a inclusão de um acento a mais
em nível suprassegmental (Exemplo 7).

Exemplo 7 – Tabela de acentuação suprassegmental

Musicalmente, em decorrência da inclusão desse novo acento, também se observa


Exemplo 4 – Era uma vez um principe/ C’era una volta un principe: c. 77, 78 e 79 um deslocamento rítmico na estrutura do compasso. Este fato resultou não apenas em
acentos rítmicos em tempos fracos do compasso mas também sílabas átonas em tempos
13 Jambo ou Iambo: pé formado por uma sílaba átona e uma tônica fortes, conforme a seguir (Exemplo 8).
14 Os fonemas individuais (no português /e/, /k/, /m/, etc...) são estudados pela fonologia segmental. Existe
ainda a fonologia suprassegmental. Os suprassegmentos são elementos também relevantes para a compreensão
dos significados, mas que estão, por assim dizer, acima dos segmentos, como unidades maiores que englobam
mais de um segmento, dando-lhe ritmo, entonação, tonicidade.

104 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 105
intérprete, tanto na versão brasileira quanto na italiana, precisa ter muita atenção para
não acentuar a cabeça do quarto tempo do compasso (Exemplo 12).

Exemplo 8 – Alterações métricas em nível segmental

Vale salientar que esse deslocamento rítmico, que denominamos de desvios Exemplo 12 – Deslocamento métrico do texto em relação à música
prosódicos,15 é um fenômeno recorrente na música brasileira, em especial na modinha.
Nos versos seguintes da segunda estrofe, percebemos outra alteração significativa Na pauta seguinte, essa alteração faz com que o fraseado da linha vocal seja modificado,
entre a métrica italiana e brasileira. O tradutor, ao escrever métrica diferente à do italiano, conforme indicado abaixo (Exemplo 13). É importante esse caso porque não é só uma
recorreu à sequência característica da obra de um pé dátilo e dois troqueus (/ - - /- /-), questão de deslocamento de acento musical, mas sim uma reelaboração da condução
seguindo o padrão motívico rítmico que observamos anteriormente. Neste caso, a métrica melódica.
brasileira é mais condizente prosodicamente com o motivo rítmico musical do que a
italiana, conforme demonstrado a seguir (Exemplos 9 e 10).

Exemplo 9 – Tabela com escansão métrica segunda estrofe

Exemplo 13 – Deslocamento do texto em relação à música

Verificamos que o esquema rítmico das poesias italiana e brasileira são distintas entre
si. Não obstante à tradução de Carlos Marinho de Paula Barros, na qual se verifica o uso
variado de metros, além de um esquema rítmico difuso, e com poucas rimas externas,
Exemplo 10 – Alterações métricas em nível segmental é preciso notar que essas opções não teriam ocorrido por descuido formal do libretista
e tradutor brasileiro, que também soube lançar mão de recursos que realizassem com
Uma última observação nessa ária seria a ocorrência da frase “Ele teve de amar” ver- eficácia as intenções expressivas nos versos de sua autoria. Percebemos a ruptura com
sus “Egli dovette amar”. Essa frase se repete várias vezes durante a música com prosódia o esquema rítmico original, porém não se perdem de vista as assonâncias, aliterações
distinta. A frase em nível segmental se comportaria da seguinte forma (Exemplo 11): e outras notáveis soluções rítmicas. Outra solução adotada pelo tradutor foi manter o
mesmo esboço fonêmico, mantendo as mesmas vogais em notas de maior importância
ou de clímax das frases, particularmente, em notas mais agudas.

Considerações finais
Ao analisar a versão brasileira da ária C’era una volta un principe da ópera Il Guarany de
Exemplo 11 – Tabela com escansão métrica Carlos Gomes, encontramos diversas soluções importantes adotadas pelo tradutor Carlos
Marinho de Paula Barros. Partindo-se do contexto histórico, entendemos a natureza
O exemplo abaixo demonstra o deslocamento do texto em relação à música. Percebemos da relação texto-música da obra. Verificamos que os pés variados e sem regularidades
contudo, que essa alteração ocorre em ambas as versões. No entanto, no caso do português, aparentes produzem uma sonoridade distinta que a do poema original. Apesar de adotar
a subdivisão da segunda metade do compasso passa a ser binária em vez de ternária. O essas alterações em nível segmental, o tradutor procurou manter os padrões de acentuação
prosódicos (em nível suprassegmental). Tal complexidade repete-se na exploração enge-
nhosa de um padrão metro específico, a sequência de um pé dátilo com dois troqueus, (/
15 Utilizamos os termos “desvio” exclusivamente para denotar “deslocamento”, sem qualquer intenção de se
estabelecer um “juízo de valor”. - - / - / -), que substancialmente influencia a caracterização da obra. Pode-se concluir

106 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 107
que isto se configura como estratégia tradutória concebida para responder ao esquema
rítmico-métrico do poema original. Em relação às rimas, se por um lado o poeta rompeu
com o esquema rítmico original, não perdeu de vista as assonâncias, aliterações e outras
notáveis soluções rítmicas, conferindo aos pontos importantes do poema/música a mesma
paleta fonêmica. Investigou-se também, segundo a ótica do intérprete, algumas possíveis
sugestões de tratamento ao texto brasileiro. Propondo-se uma análise poética e musical
desta singular edição, o presente trabalho visa explicar sua gênese, fomentar sua prática e
ressaltar a importância dessa versão brasileira como resultante de esforços republicanos e
modernistas de valorização da herança musical nacional, o que fez dela própria importante
peça do patrimônio operístico brasileiro.

Referências
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108 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER


PATRIMÔNIO MUSICAL E IDENTIDADE
Eduardo de Borja Reis (1859-1896):
um crítico musical a serviço da
República do Brasil
Clarissa Lapolla Bomfim Andrade
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Eduardo de Borja Reis (1859-1896) foi um importante correligionário republicano


de sua época, atuando como redator, articulista e crítico musical, além de participar
ativamente da vida política da Capital Federal. Foi Primeiro Secretário do Instituto Na-
cional de Música, de 1890 a 1893. Defensor do então presidente da República, Marechal
Floriano Peixoto, assumiu o comando de um batalhão da Guarda Nacional e trabalhou
ao lado de diversos políticos renomados da época, assumindo o cargo de diretor geral
da Secretaria do Conselho Municipal. Suas atividades relacionadas às artes estiveram
sempre ligadas às suas crenças políticas. Acreditava que a educação musical poderia ser
uma importante ferramenta para a consolidação do regime republicano e para o progresso
do Brasil. Em 1892, na Gazeta Musical, descreve o seu projeto de canto orfeônico para
as escolas primárias. Foi completamente esquecido após a sua morte em 1896, mas seu
projeto orfeônico foi adotado nas escolas quase meio século depois, durante o governo
do Presidente Getúlio Vargas, quando Heitor Villa-Lobos passou para a história como
mentor e coordenador do mesmo.
As pesquisas que realizei em colaboração com minha orientadora de mestrado, a
musicóloga Maria Alice Volpe, acabaram por revelar o nome de um crítico musical, cuja
atividade foi relevante no início da era republicana brasileira. Eduardo de Borja Reis, ou
B. R. – como assinava os seus artigos publicados entre 1891 e 1893 no periódico flumi-
nense Gazeta Musical (1891-1893) – uniu o jornalismo, as artes e a política, contribuindo,
sobremodo, para a institucionalização da música no Brasil. Suas atividades relacionadas
às artes não podem ser desvinculadas de suas atividades políticas. B. R. estava a serviço da
Pátria e de seu desenvolvimento que, ele acreditava, só poderia acontecer em um regime
republicano que valorizasse as artes – sobretudo a música – como principal ferramenta
ideológica e de educação do povo brasileiro. Por isso, B. R. empenhou-se em apresen-
tar um projeto de educação musical através do canto orfeônico, tendo como modelo o
projeto orfeônico francês. Em seus artigos publicados na Gazeta Musical, B. R. deixa
claro que o canto orfeônico, além de propiciar educação musical ao povo, serviria como
o mais poderoso instrumento de propaganda dos ideais republicanos daquele período,
de diálogo entre as diversas classes sociais e de união entre as diversas regiões do País,
contribuindo de forma decisiva para a ordem e o progresso da civilização brasileira. No
decorrer deste artigo veremos, com mais detalhes, como B. R. pensou em alcançar tais
objetivos por meio do canto orfeônico.
Os dados biográficos de B. R. são ainda poucos e imprecisos. O primeiro passo para
descobrir a sua identidade – uma vez que ele assinava apenas B. R. – foram os textos

ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 113


da própria Gazeta Musical. Como ponto de partida apoiei-me no fato de seus discursos àquela época, na cidade do Rio de Janeiro. Posteriormente, o Instituto Nacional de Música
terem um caráter marcantemente positivista comtiano. José Murilo de Carvalho ([1990] foi incorporado à Universidade Federal de Rio de Janeiro (UFRJ) e é hoje a Escola de
2009) e vários folhetos da Igreja Positivista do Brasil esclarecem que os positivistas não Música dessa universidade. Conforme demonstro em minha dissertação de Mestrado
escondiam a própria identidade sob pseudônimos. Portanto, “B. e R”. provavelmente (BOMFIM ANDRADE, 2012), o Instituto Nacional de Música e a Gazeta Musical
seriam as iniciais verdadeiras do nome do autor. possuíam fortes vínculos e B. R. aproveitou o periódico como um canal de propaganda e
Passei então a procurar algum artigo na Gazeta Musical onde B. R. revelasse a sua divulgação dos projetos que deveriam ser realizados por esse Instituto.
identidade. Em um de seus artigos (Gazeta Musical, 1892, nº 14) B. R. cita o compositor O Jornal O Paiz (1º de maio de 1896) afirma que Eduardo de Borja Reis nasceu no
Alexandre Levy como exemplo a ser seguido pelos compositores brasileiros. Esse fato Rio de Janeiro, mas foi educado em Portugal, onde desde moço trabalhou na imprensa,
levou-me a ler atentamente o número especial desse periódico dedicado a Levy, por ocasião atuando no Século como redator, ao lado de Magalhães Lima. No Rio de Janeiro, escreveu
de sua morte prematura. (Gazeta Musical, 1892, nº 4, p. 49-64) No final desse número, para o Novidades, Gazeta Musical, O Figaro e O Tempo.
várias personalidades da época escreveram pequenas notas em homenagem a Levy. Leo- O que sabemos ao certo sobre B. R. é que ele foi Primeiro Secretário do Instituto
poldo Miguez assina a primeira delas, seguido de A. Fertin de Vasconcellos (proprietário Nacional de Música até meados de 1893, quando lhe designaram para dirigir a Secretaria
da Gazeta Musical), Carlos Gomes, Arthur Napoleão, J. Cortes, I. Porto-Alegre, Miguel do Conselho Municipal. (O PAIZ, 1896; VELHO SOBRINHO, 1940) Fez campanha
Cardoso, V. Cernicchiaro e E. Pinzarrone. A última nota é a mais extensa, apresenta o ao lado de Floriano Peixoto (então presidente da República do Brasil) e comandou, no
título “Á memoria de um amigo” e está assinada por Eduardo de Borja Reis. Esta foi a posto de coronel, o 14º Batalhão de Infantaria da Guarda Nacional aquartelado em
primeira vez que este nome apareceu na Gazeta Musical. (1892, nº 4, p. 64) Campo Grande. Seu envolvimento com políticos republicanos de sua época foi grande,
A partir daí suspeitei que Borja Reis fosse B. R., suspeitas que se comprovaram ao trabalhando ao lado de Tomás Delfino, Oscar Godói, Augusto de Vasconcelos e Alfredo
descobrir que o coronel Eduardo de Borja Reis foi o primeiro secretário do Instituto Barcelos. Colaborou ainda com os trabalhos de Augusto Severo, seu grande amigo, na
Nacional de Música e homem de intensa participação política em sua época. (VELHO construção de um aeróstato no Realengo (VELHO SOBRINHO, 1940).
SOBRINHO, 1940, p. 420) Essa hipótese confirmou-se ao encontrar, na própria Ga- Quando morreu, aos 36 anos de idade, B. R. deixou a esposa (Carolina de Borja
zeta Musical, mais uma referência ao seu nome e a confirmação do cargo que ocupou no Reis) e cinco filhos menores na maior pobreza, o que levou o diretor central do Partido
Instituto Nacional: Republicano a mobilizar seus amigos e correligionários, a fim de comprar uma casa para
De todo o pessoal administrativo recebi as mais extremadas provas de dedicação e patrimônio dos filhos de B. R. (O PAIZ, 1896).
amizade [...] devendo notar-vos muito especialmente o interesse extraordinario que pelo Na Gazeta Musical, B. R. é um dos autores mais importantes e porta-voz de con-
desenvolvimento e progresso deste Instituto sempre demonstrou o incansavel secretario, o vicções nacionalistas, morais e cívicas, sempre preocupado com a educação musical do
Sr. Eduardo de Borja Reis. (Relatório de Miguéz dirigido ao “Ministro”, Gazeta Musical, povo brasileiro através do ensino do canto orfeônico nas escolas primárias. Será o grande
1892, nº 19, p. 293) ideólogo desse periódico, republicano convicto e familiarizado com os ideais do positivis-
mo comtiano. B. R. emprega expressões e conceitos associados ao positivismo de Comte,
Eduardo de Borja Reis nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 11 de julho de 1859
tais como: “marcha da humanidade”, “grau de civilidade”, “progresso”, entre outros. Além
e faleceu em 30 de abril de 1896. (VELHO SOBRINHO, 1940, v. II, p. 420) As duas
disso, demonstra uma moral rígida e preocupação com a educação do “gosto musical do
fontes nas quais pude, até agora, encontrar informações sobre B. R. – além da Gazeta
povo”, o que para ele significava uma educação cívico/patriótica através da música, o que
Musical – foram o Dicionário Bio-Bibliográfico Brasileiro, de Velho Sobrinho (1940) e o
também o aproxima dos ideais positivistas de sua época.
Jornal O Paiz, de 1º de maio de 1896, noticiando o seu falecimento.
O canto orfeônico nas escolas primárias teria como função religar o “povo” às suas
Segundo Velho Sobrinho (1940, p. 420), Eduardo de Borja Reis era filho de Joaquim
raízes culturais, onde as melodias e ritmos do folclore nacional, ouvidos desde a mais
Antonio dos Reis e de dona Maria Emília de Borja Reis. Cedo teve de abandonar os
tenra infância, despertariam um amor incondicional à Pátria.
estudos de Humanidades, ao qual se dedicava, para atender às exigências de seu pai,
Os elementos folclóricos deveriam ser utilizados com “bom gosto” e as melodias
ferragista, que desejava que o filho se dedicasse à carreira comercial, trabalhando ao seu
“modernamente” harmonizadas, para que, além do amor à Pátria, se desenvolvesse nas
lado no mesmo ramo de negócio. Essa circunstância levou B. R. a abandonar o lar, ainda
crianças um gosto musical refinado. B. R. acreditava até mesmo que essa prática orfeô-
menor de idade, ingressando no teatro como auxiliar de ponto e escrevendo, com facilidade,
nica acabaria ajudando na formação do que ele chamava de “autêntica” música nacional:
pequenos trabalhos para companhias de revistas e comédias. Colaborou em publicações
a música erudita brasileira nasceria da fusão entre o folclore, a música popular urbana
literárias, compondo versos e por ter temperamento boêmio, só afastou-se do meio teatral
e o refinamento técnico da linguagem musical – também chamada por ele de ciência
quando constituiu família. Foi então aproveitado, por indicação de José Rodrigues Barbosa,
musical – vindo da Europa. Dessa forma, com o passar do tempo, a nossa música estaria
na época secretário do Ministro da Fazenda Aristides Lobo, como Primeiro Secretário
pronta para representar o grau de evolução do País, refletindo o progresso rumo a um
do Instituto Nacional de Música. (VELHO SOBRINHO, 1940, p. 420)
estágio superior de civilização, que elevaria o Brasil ao mesmo nível civilizatório das
Essa instituição que substituiu o antigo Conservatório de Música da época do Império,
grandes nações europeias.
foi o órgão de ensino oficial de música do governo republicano da Capital Federal, situada
Chamam a atenção o seu forte moralismo e campanha, dentro da Gazeta Musical,

114 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 115
contra as mágicas, teatros de revistas e operetas quando, opostamente, em sua juventude, ser uma música “original” e de “cunho brasileiro”. Ajudar neste processo era a grande
ele tivera uma vida boêmia, sendo auxiliar de ponto e escrevendo textos para teatro. Por tarefa da elite musical republicana da qual B. R. fazia parte. Para que isso ocorresse, era
outro lado, B. R. elogia a autenticidade das manifestações musicais urbanas das camadas importante não apenas a mistura da música europeia, africana e indígena, como também
mais baixas da população, como as modinhas, os lundus e as serestas, em um aparente o estudo dos grandes mestres europeus: “depois que tivermos [...] imitado todos os mes-
esforço de diálogo entre a música “refinada” e a música “autêntica do povo”. Defende tres, italianos ou alemães, latinos ou saxões, havemos de emancipar-nos deste cativeiro
compositores como Antonio Callado e os instrumentos da boemia, como a flauta e o e criaremos, talvez, um estilo todo nosso, uma música perfeitamente acentuada, que não
violão, lamentando que a prática da seresta houvesse sido proibida pela polícia. (Gazeta se confundirá com a dos outros povos” (Gazeta Musical, 1891, nº 7, p. 7).
Musical, 1892, nº 14) B. R. deixa transparecer a sua visão de qual seria a tendência mais marcante de bra-
Em 1891 a colaboração de B. R. na Gazeta Musical aparece pela primeira vez em um sileirismo na música:
artigo chamado “Contestação”, no qual B. R. faz a réplica a uma crítica de 20 de agosto Mas, observando um pouco, nós vemos que a melodia italiana e a canção popular do
publicada no Jornal do Brasil. Em seu artigo, B. R. expõe as suas ideias estéticas e de edu- norte da Europa, com todo o seu cunho de tristeza são as que mais se coadunam com o
cação musical, em sintonia com as ideias que norteavam o Instituto Nacional de Música: temperamento da massa geral do nosso povo. Em que pese aos apologistas da inovação,
É o caso de perguntar-se ao articulista [do Jornal do Brasil]: Que ideia faz ele da educação aos anti-melodicos, a nossa tendencia é pela musica sentida, plangente, parecida com a
de um povo? Que conceito forma a respeito da influencia das bellas artes e principalmente que nos embalou no berço. É uma questão de estetica do povo, que não pode modificar de
da musica, sobre os destinos da sociedade? Negará por ventura o influxo de uma nova forma alguma a sua maneira de sentir, a sua forma de ver o bello. (Gazeta Musical, 1891,
escola musical sobre a evolução do meio, em que ela se desenvolve? Poderá dizer, em nº 7, p. 7)
consciencia, que o gosto do publico não se educa, se não aperfeiçoa, mediante esses No entanto, B. R. declara que não devemos ficar presos à imitação da melodia lírica
elementos de progresso que as bellas artes, em geral, lhe vão fornecendo, dilatando-lhe italiana, que é uma escola que não se inova. E repete que é da fusão e dos estudos das
a esfera dos conhecimentos, conduzindo-o a horizontes novos, obrigando-o a assistir ás diversas escolas e mestres “que há de vir a ciência musical para unir-se à tristeza do
metamorfoses, que a propria lei da evolução social impõe ao espirito humano em todos os nosso sentimentalismo artístico e fazer a nossa característica musical”. (Gazeta Musical,
ramos de conhecimentos? (Gazeta Musical, 1891, nº 3, p. 4) 1891, nº 7, p. 7) Deve haver a união entre a técnica musical refinada europeia ou “ciência
Em sua coluna intitulada “A Música no Brasil”, B. R. apresenta os tópicos sobre os musical”, com as melodias e ritmos das canções folclóricas dos Estados brasileiros, que
quais escreverá: “características da música brasileira”, “tendências para a nacionalização guardam em sua essência o espírito nacional do Brasil (Gazeta Musical, 1891, nº 9, p. 1).
da nossa música”,” indiferença monárquica pelas belas artes e auxílio prestado a elas pelo B. R. afirma que o estilo da música brasileira do futuro, de nossa individualidade
governo da República”. artística será constituído pelas audácias de nossos artistas ligadas à tristeza natural de
B. R. preocupa-se em investigar o descaso pelas belas artes dos governos anteriores ao nossa melodia e à indolência originada pelo nosso clima. (Gazeta Musical, 1891, nº 7, p.
republicano, atribuindo-o à colonização portuguesa. Para ele, Portugal estava demasiada- 8) Alega que ele não poderia prever quando deixaríamos “de uma vez a imitação para
mente interessado em atividades mercantis e de exploração da terra para poder seguir o constituirmos escola” ou quando chegaria essa época de nacionalização para a nossa mú-
exemplo de nações como a Itália e a França, que trilhavam o caminho das artes. Entretanto, sica, mas era certo que já estávamos criando as bases necessárias para tal acontecimento
afirma que o brasileiro era artista nato pelas influências do clima, da natureza, do cruza- (Gazeta Musical, 1891, nº 7, p. 8).
mento das raças e por uma propensão natural à poesia, que “operaram este reviramento Este “princípio de escola” era representado, segundo ele, por talentosos artistas da
e trouxeram-nos este temperamento especial e indígena muito propenso à Arte.” (Gazeta época que passaram a ter maior destaque com o advento da República. B. R. cita os nomes
Musical, 1891, nº 7, p. 6) A música europeia, importada para cá “desencontradamente”, de Rodolfo Bernardelli na escultura; Zeferino Amoedo, Henrique Bernardelli e Pedro
sem escolas, teria se unido às toadas africanas e aos cantos primitivos da música indígena Américo, entre outros, na pintura; e na música, “as bellas producções de Carlos Gomes e
para formar, segundo B. R., “uma feição característica do nosso povo, feição que há de se os trabalhos magistrais de Miguéz a provarem o arrojo e a imaginação de um e a compe-
acentuar mais e mais e que fará – quem sabe – uma escola, talvez, com um cunho muito tência, a arte, o estudo, a concepção e o talento de outro” (Gazeta Musical, 1891, nº 7, p. 8).
particular de originalidade e de brasileirismo” (Gazeta Musical, 1891, nº 7, p. 6-7). Ideias cosmopolitas de refinamento artístico como parâmetro para o progresso de
B. R. era, como grande parte dos intelectuais brasileiros de sua época, adepto das uma nação unem-se às ideias republicanas de B. R., conforme vemos em frases como:
teorias de Taine e do Mesologismo1. “As conquistas de liberdade pública são conquistas no campo da Arte”; ou “A expansão
B. R. admite que a música brasileira estava ainda caminhando para encontrar sua lin- de liberdades públicas revela-se pelas concepções artísticas, e Miguéz não se manifestaria
guagem própria, segundo ele, devido ao completo descaso de nossos governos monárquicos. grandioso no seu poema sinfônico Ave Libertas! sob um regime hipócrita de monarquia
A música que B. R. vislumbrava para a nova era que se iniciava com a República deveria religiosa” (Gazeta Musical, 1891, nº 7, p. 8).
Assim como B. R. fez críticas aos adeptos do “anti-melodismo”associado entre outros a Wagner,
1 Sobre a influência das teorias deterministas na historiografia musical brasileira, ver VOLPE em artigos futuros B. R. continuará desfavorável ao wagnerismo, se este fosse visto como uma
(2001), capítulo 1 “National Identity in Brazilian music historiography”, parcialmente traduzido in VOLPE opção estética oposta ao “brasileirismo”proposto por ele (Gazeta Musical, 1892, nº 14: p. 209-212).
(2008) no que tange o determinismo geográfico.

116 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 117
Por isso B. R. revolta-se com o desprezo que schumannianos, mozartianos e wagne- concertos populares para a educação do gosto do público. Estes concertos deveriam ser
rianos tem pela música popular urbana e afirma que é preciso “ser brasileiro antes de ser subvencionados pelo governo e “organizados e dirigidos pelo diretor do nosso Instituto.”
wagneriano e alemão”. B. R. reafirma que é necessário, antes de tudo, possuir o sentimento Como um músico não pode vender a sua música como um pintor vende seu quadro, o
de brasileirismo aliado à modernidade e cita como exemplo dessa união, o compositor governo deveria sempre auxiliar as atividades musicais, como fazia o governo da França
paulista Alexandre Levy (Gazeta Musical, 1892, nº 14, p. 211). (Gazeta Musical, 1891, nº 8, p. 3).
B. R. via uma profunda relação entre as manifestações artísticas e o regime republicano, B. R. afirmava que todos os Estados brasileiros tinham sua música característica e
único que poderia dar as condições ideais necessárias à produção artística. Dessa forma, seria da fusão dessas diversas partes que nós formaríamos um todo que provaria a nossa
ele descartava toda a produção musical e instituições de ensino de música do período originalidade. Lamentava que o povo da Capital, apesar de ter o “sentimento apaixonado
monárquico a fim de enaltecer o Instituto Nacional de Música, Miguez e demais artistas de sua nacionalidade”, não conhecia absolutamente “as nossas canções populares, algu-
ligados ao novo regime. Essa nova elite musical era o símbolo do desbravamento da música mas delas de uma simplicidade e poesia verdadeiramente comovedoras, como acontece
nacional, como se nada antes deles – as instituições e o próprio meio artístico no qual se com as canções populares cearenses”. Estas canções em “moldes primitivos” trabalhadas
formaram e no qual o Imperador fora o grande mecenas – houvesse tido alguma impor- pela “ciência musical [dariam] um tipo [de música] especial e muito brasileira” (Gazeta
tância para a formação da música brasileira e do meio musical fluminense pós-monárquico. Musical, 1891, nº 9, p. 1).
A França é uma referência constante nos artigos de B. R., justificando suas escolhas As orquestras municipais, além de formar instrumentistas, ajudariam os compositores
estéticas, e servindo de modelo para a organização das instituições musicais como es- a reunir os elementos folclóricos próprios de cada região do Brasil, contribuindo para a
colas, bandas e orquestras, ou para a solução de problemas técnicos específicos da área síntese de uma música nacional (Gazeta Musical, 1891, nº 9, p. 2).
(composição e interpretação, por exemplo). A política cultural da França também era B. R. defende, assim como Miguez, a criação de cursos noturnos no Instituto, para
exemplo a ser seguido pelo governo brasileiro. B. R. cita em francês, as palavras do tribuno aqueles que não podendo cursá-lo de manhã, pudessem fazê-lo à noite e no futuro, integrar
Jules Favre: “Il n’est pas d’art mieux fait pour élever lês ames, pour detourner le peuple a orquestra que o Instituto viria a ter (Gazeta Musical, 1891, nº 9, p. 3).
des plaisirs grossiers.2 Sempre pensando no máximo aproveitamento da “acentuada aptidão musical de nosso
O Conservatório de Paris era o exemplo da instituição musical que sempre contou povo” e na urgência de se conseguir a nacionalização de nossa música e o bom gosto mu-
com o total apoio do governo francês, que reconhecia a importância dessa instituição sical do povo, B. R. insiste no projeto de organização das bandas militares. Estas levam
educadora do “bom gosto do povo” e “agente eficaz da reforma de seus costumes [que] a todos os pontos do país o estímulo musical, sendo as melhores propagandistas “dos
mais glórias poderia trazer à França” (Gazeta Musical, 1891, nº 8, p. 1). trabalhos de vulto de artistas nacionais e estrangeiros”. Modificando o gosto do público,
Elogia os atos do ministro Aristides Lobo com relação ao incentivo dado à Escola tem grande função educacional.3
Nacional de Belas-Artes e ao Instituto Nacional de Música, sendo as duas, escolas-modelo B. R. desejava que as nossas bandas se assemelhassem às francesas e preocupava-se
“como as não há melhores no estrangeiro”. Os diretores de ambas as instituições são tam- com nossa imagem no exterior: “o estrangeiro que encontra as nossas bandas militares
bém sempre elogiados, considerados “artistas que rivalizam em talento e em patriotismo faz o pior juízo da nossa aptidão na música e não pode imaginar sequer que nós somos
e que são duas promessas” (Gazeta Musical, 1891, nº 8, p. 2). um povo de tendências finamente artísticas.” Entretanto, o problema não lhe parecia
O ambiente artístico republicano é descrito por B. R. como um ambiente onde há de difícil resolução, contanto que o governo acatasse o projeto de reforma das bandas
“solidariedade de irmãos” entre pintores, escultores e músicos. Em um ambiente fecundo militares proposto “pelo diretor do nosso Instituto” (Gazeta Musical, 1891, nº 10, p. 1).
para as artes, “o indígena admirado soube que se venderam telas de artistas nacionais O apelo de 1891 em prol do projeto apresentado por Miguez para a reforma das bandas
por 4, 5, 10 e 20 contos de réis!” E obviamente que “esta expansão artística deve-se à militares termina demonstrando um pouco de desespero pela lentidão das autoridades,
proclamação do novo regime.” (Gazeta Musical, 1891, nº 8, p. 2) lembrando que “o artista brasileiro viu aparecer com a República uma esperança que é
B. R. coloca a música como a arte mais importante de todas no processo civilizador preciso alentar e tornar realidade” (Gazeta Musical, 1891, nº 10, p. 2). E mais adiante afirma
almejado pelos republicanos: “A educação artística de um povo faz-se pela música. É que “a civilização, o alevantamento de um povo está na razão direta de suas manifestações
a música que dá molde novo ao caráter de um povo e só ela é capaz de nele criar um artísticas, e se é um fato que nós somos um povo de artistas, devemos impor-nos pela
sentimento novo” (Gazeta Musical, 1891, nº 8, p. 3). nossa arte, que deve encontrar da parte dos governos todo o apoio e o mais decidido
B. R. declara que o escultor e o pintor já tinham quase seguro o seu futuro, mas o auxílio” (Gazeta Musical, 1891, nº 10, p. 3).
compositor precisava de uma orquestra, de empresários de concerto e de teatros para O Instituto Nacional de Música seria, portanto, o “quartel general” da institucionali-
executar a sua obra. Por isso, era imprescindível a criação de orquestras municipais “de zação da música no Brasil, promovendo concertos populares, divulgando os compositores
primeira ordem”, que executariam as obras de “nossos maestros” e a organização das nacionais de “mérito”, controlando o repertório que as orquestras e as bandas militares
bandas militares, “que atualmente são inúteis e imprestáveis”, assim como a criação de reformadas tocariam nos recantos mais longínquos do País, dando as bases para a formação

3 A função educacional é a principal ferramenta utilizada para civilizar o país. B. R. declara: “Na velha Europa
2 “Nada melhor que a arte bem feita para elevar as almas, para desviar o povo dos prazeres brutos”. (Gazeta ha o maior cuidado na organisação de boas musicas militares, por isso que os governos de lá comprehendem, e
Musical, 1891, nº 7, p. 9, tradução nossa) bem, qual é a missão civilisadora d’essas bandas” (Gazeta Musical, 1891, nº 9, p. 3).

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de uma música “autêntica” nacional. Alem disso, o Instituto Nacional de Música controlaria prática, quase meio século depois, no governo de Getúlio Vargas, tendo Heitor Villa-
o ensino da música nas escolas primárias, indicando somente professores que tivessem -Lobos como mentor e coordenador.
estudado no próprio Instituto. A tudo isso B. R. estava atento e sua preocupação era a de
colocar em prática o mais rápido possível tais projetos, (vinculados sempre ao Instituto Referências
Nacional de Música), a fim de consolidar o regime republicano através de uma ferra- BOMFIM ANDRADE, Clarissa Lapolla. A Gazeta Musical (Rio de Janeiro, 1891-1893):
menta que ele considerava muito adequada: o aproveitamento da “sensibilidade musical” Positivismo e missão civilizadora nos primeiros anos da República no Brasil. Dissertação
do povo brasileiro e o ensino de uma música “oficial”, institucionalizada, com a função (Mestrado em Musicologia). Rio de Janeiro: UFRJ: Escola de Música, 2012.
de cristalizar valores morais e cívicos, que promoveriam a ordem e o progresso do País.
Assim, B. R. propõe o projeto do canto orfeônico nas escolas primárias, ao qual se CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: o imaginário da República no
dedicará em sua coluna intitulada “O Canto Choral”, escrita entre 1892 e 1893 na Gazeta Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, [1990] 2009.
Musical. B. R. faz uma intensa campanha pelo canto em português e pelo uso de melodias VELHO SOBRINHO, J. F. Dicionário Bio-Bibliográfico Brasileiro. Rio de Janeiro:
e ritmos do folclore brasileiro como base do orfeão. (Gazeta Musical, 1892, nº 20, p. 307) Ministério da Educação e Saúde, 1940 (Vol. II, p. 420)
Além disso, propõe que grandes compositores e poetas nacionais escrevessem música e
letras patrióticas para o orfeão, a fim de incutir nas crianças, em sua mais tenra idade, o VOLPE, Maria Alice. “National identity in Brazilian music historiography”. In: India-
amor pela Pátria (Gazeta Musical, 1892, nº 15, p. 229). nismo and Landscape in the Brazilian Age of Progress: Art Music from Carlos Gomes to Villa-
O projeto do canto orfeônico brasileiro proposto por B. R. possuía para ele um grande -Lobos, p. 13-54. Tese de Doutorado (PhD in Musicology/Ethnomusicology). Austin: The
valor democrático e “moralizador” do povo: University of Texas at Austin, 2001. Ann Arbor, Michigan: UMI-Research Press, 2001.
Depois de termos estudado sob differentes phases a necessidade e o valor das agremiações VOLPE, Maria Alice. “A Teoria da Obnubilação Brasílica na História da Música
choraes, precisamos ainda saliental-as pelo seu lado puramente democratico. / Não consta Brasileira: Renato Almeida e a ‘Sinfonia da Terra’”. Música em Perspectiva, Curitiba,
que se tenha conseguido mais a este respeito do que pela creação dos orpheons onde todas Universidade Federal do Paraná, vol. 1, nº 1, p. 58-71, 2008. Disponível em http://ojs.
as classes sociaes se dão as mãos, onde todos os odios e todas as rivalidades desapparecem, c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/musica.
para a grandeza da musica. (Gazeta Musical, 1893, nº 4, p. 49) Periódicos
Gazeta Musical. Rio de Janeiro: Alfredo Fertin de Vasconcellos, 1891-1893.
[...] vejamos qual o meio pratico de crearmos o orpheon brazileiro tão necessario, como
temos dito, ao desenvolvimento de nosso gosto musical, á educação artistica de nosso
O Paiz. Rio de Janeiro, 1º de maio de 1896.
povo, á moralisação das camadas inferiores de nossa sociedade. [...] No Brazil há tres
pontos onde se podia crear o nosso orpheon brazileiro: a Capital Federal, S. Paulo e o
Rio Grande do Sul. S. Paulo, pelo seu elemento estrangeiro e o Rio Grande,pelo mesmo
motivo, correm o risco de implantar o orpheon italiano ou allemão em vez do brazileiro
e trazer para a musica nacional uma influencia com que ella não poderá luctar, e dahi a
absorpção d’essa musica cuja originalidade e cunho especial já são hoje contestados. [...]
Na Capital Federal, não. O elemento estrangeiro é o portuguez e esse é refractario á
musica em geral e ao canto choral especialmente. / Aqui temos [...] a influencia benefica
do Instituto de Musica [...] / Não cessaremos porem de dizer: cantemos em portuguez
e com musica apropriada ao nosso temperamento musical [...] (Gazeta Musical, 1892, nº
20, p. 305-307)
Em seus artigos sobre o canto orfeônico na Gazeta Musical, B. R. explica o projeto
em detalhes, deixando claro os objetivos e a maneira de implantá-lo nas escolas da Ca-
pital Federal e que serviria de modelo para todo o País. O canto em português, o uso de
elementos do folclore nacional, a harmonização das melodias “refinadas” pela “ciência
musical” e letras patrióticas ou referentes às lendas e tradições nacionais que desenvolves-
sem o nosso sentimento de “brasilidade”, são as principais diretrizes do projeto orfeônico
proposto por B. R..
Sem que dessem os devidos créditos a Eduardo de Borja Reis, ou ao Instituto Nacional
de Música por esse projeto datado de 1892, um projeto muito semelhante foi posto em

120 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 121
­­­The Café and the Espectáculo: collective
remembrance, musical materiality and
Jewish performance at the Asociación
Mutual Israelita Argentina (AMIA)
Lillian M. Wohl
University of Chicago

Introduction
Eighteen years after the 1994 bombing of the Jewish mutual aid center in Buenos
Aires, the Asociación Mutual Israelita Argentina (AMIA), musical performance at this
central institution remains deeply influenced by the politics of memory deployed in
response to the terrorist attack that killed 85 and injured hundreds others. Although
cultural programming at AMIA long predates political and social reorganizations
instituted after the bombing, musical programming in particular emerged as a means
for musicians and audiences to explore the personal and communal effects of this tragic
reminder of Jewish alterity. The Auditorio AMIA (AMIA Theater), which occupies two
floors in the new headquarters located on the original site of the attack at Pasteur 633,
was re-inaugurated in 1999 in the lower levels of the building. As a physical space, the
Auditorio AMIA anchors the performance of contemporary, material representations of
Jewish heritage to the memorial specters of this building’s (now) immaterial past. In
this paper, I explore musical performance at AMIA within the context of a discursive
saturation of key themes such as, “memoria” (memory), “olvido” (oblivion) and “justicia”
(justice) in concerts and espectáculos (shows). In two main performance contexts, the Café
Literario series held in the library on the second floor and the espectáculos of Jewish mu-
sical heritage presented in the Auditorio AMIA, I analyze the relationship between space,
musical participation and collective memory in the reconstruction of AMIA. As Edna
Aizenberg laments, the bombing of AMIA “left a dark hole in the Argentine imagina-
tion,” burying under the rubble with the bodies of the dead, the books and documents,
or the “heritage of a community that for a century had struggled to be ‘unmistakably
Argentine’” (Aizenberg, 1996).
In this paper, I explore the intersection of memory and history in Jewish musical heri-
tage to emphasize the embodied, “performatic,” or “oral, aural and gestural acts” evident in
musical performance (Taylor, 2003). I frame this essay around current scholarship looking
toward an embodied “reality/riality” paradigm, exemplified by dance scholar Susan Leigh
Foster, who understands “corporeality” as a way to approach the “study of bodies through
a consideration of bodily reality, not as a natural or absolute given but as a tangible and
substantial category of cultural experience” (Foster, 1996). Exploring corporeality can:
“[a]cknowledge that bodies always gesture towards other fields of meaning, but at the
same time instantiate both physical mobility and articulability” (Foster, 1996). Similarly,

ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 123


Jason Stanyek and Benjamin Piekut refer to the space of the “intermundane” to explore from the Jewish Diaspora. Music provides community participants with opportunities
music’s tangible relation to the “interpenetration between worlds of living and dead,” to experiment with a variety of expressive practices to commemorate Jewish heritage
while featuring “corpaurality,” as a concept to highlight the odd labors of “deadness” through the socialized performance of cultural memory. Furthermore, as the most visible
(Stanyek and Piekut, 2010). They state: Jewish institution in Argentina, AMIA plays a critical role in determining the character of
Jewish music in the Southern Cone. From AMIA, musicians gain access to performance
Deadness produces the resonances and revenances that condition all modes of sonic gigs across the network of Jewish religious and cultural institutions in Argentina, Latin
performance. We engage deadness not as displacement, but as emplacement in layered, America, the United State and Israel. Whereas prior scholarship prioritizes exceptional
rhizophonic sites of enfolded temporalities and spatialities. Within these sites, laborers manifestations of the memorial arts—such as the consecration of monuments, memo-
are corpaural, bodies are always sonic bodies (Stanyek and Piekut 2010, p. 32). rial concerts, and public commemorative displays—this paper focuses on the everyday
practices of artistic remembrance taking place within this active site of Jewish memory.
Following Stanyek and Piekut’s assessment of commercial recording practices in
AMIA and the Politics of Memory
late capitalism, I interpret temporality and emplacement as critical issues in the labor
In 2011, the campaign slogan for the 17th annual Acto Central del Atentado a la AMIA,
of memory, in this case related to the legacy of trauma at sites of memory rather than
the main, public commemoration ceremony for the bombing of AMIA declared: “Tu
commercial recording practice. At AMIA, musical performance helps to maintain the
Presencia en el Acto es un Atentado al Olvido” (Your presence at this demonstration is an
memorial atmosphere by re-invoking the legacy of the attack and the specter of the dead
attack on oblivion). In the weeks prior to the event, posters and t-shirts advertised this
through the sounded performance of memory. These musical practices uphold AMIA as
campaign, circulating over the internet and in print media throughout the city of Buenos
a sacred place of both mourning and cultural renovation. Furthermore, musical perfor-
Aires (AMIA website, 17º Atentado). A variety of key figures in public culture such as
mance at AMIA creates symbolic currents and cultural pathways between the past and
President Cristina Fernández de Kirchner, tennis star Juan Martín del Potro and the
the present, upon which songs themes and other musical material travel, to be reclaimed
2011 Argentine national soccer team, including global soccer sensation, Lionel Messi, lent
by musicians in contemporary performance. As Philip Bohlman argues, “the identity of
their support to the face of the campaign, appearing in photographs holding up t-shirts
Jewishness depends on where Jewish music takes place,” rendering AMIA a place where
and banners in support of the cause for AMIA. Advertisements posted on the AMIA
Jewish music directly confronts multiple memorial concerns, in local and global frames
website in July 2011 appealed to national support in a similarly iconic way, altering the
of reference that construct Jewishness in relation to history and memory (Bohlman,
Argentine national soccer jersey in blue and white to reveal the number “17,” the name
2008). While AMIA is also a public site of traumatic remembrance, on a daily basis it
AMIA and the words “Sin Justicia” (Without Justice) along the rear bottom hem (AMIA
also serves as a space to explore the social experience of music making as an activity of
website, 17º Atentado).
ordinary, serious leisure.
The iconography of this strategic deployment of the politicized discourse of memory
Founded in 1894 as the Jevrah Kedusha Askenazi—a burial society—AMIA was inau-
epitomizes the deliberate effort of AMIA administrators to align the concerns of the
gurated the Asociación Mutual Israelita Argentina in 1945. Throughout the late twentieth
Jewish community and the AMIA cause with national and regional discourses associated
century, AMIA slowly expanded its programming to contend with the diversifying needs
with the enduring legacy of region-wide human rights violations during the military
of the Jewish community (Mirelman, 1990). The Departamento de Cultura, originally
dictatorships in Argentina 1976-1983; Chile 1973-1990; Uruguay 1973-1985 (Roniger
founded in the late 1950s to organize lectures, provide scholarships, support workshops
and Sznajder, 1998; Breckenridge, 2009; Feierstein and Sadow, 2002). AMIA’s appro-
in literature and biblical subjects, publications, and theater works throughout the country
priation of these symbols firmly positions Jewish issues as concerns of all Argentines,
has since refined and expanded its programming initiatives to incorporate members of
with Jewish citizenship emphasized as an unmistakable component of multi-cultural,
the AMIA and the general public, which includes non-Jews, though the organization
Argentine national identity — a belief compromised and complicated by the attack itself
was conceived for Jews.
on July 18, 1994. While the incorporation of a number of national obsessions, namely the
In this paper, I introduce two performance settings in order to frame the critical dis-
beloved sport, fútbol, and President Cristina Fernández de Kirchner (who was re-elected
courses influencing musical performance in the Café Literario and the weekly espectáculos
just a few months later in October 2011), make popular reference to hegemonic symbols
performed in the Auditorio AMIA. Although numerous groups and performers present
of the nation, the connection to the rhetoric of human rights activism in the Southern
shows in AMIA each week, I focus on the musical performances of the Dúo Guefiltefish
Cone aligns AMIA with broader demands for justice in Argentina.1
and two choirs under their direction, the Yiddish choir, Coro Ale Brider (All Brothers
The Jewish community of Argentina occupies a unique position across the global Jewish
and Sisters Choir) and Coro Volver a Empezar (New Beginnings Choir) to explore how
Diaspora as a community deeply engaged with the “culture of memory,” stemming from
performance styles and repertoire contribute to the performance of Jewish memory
the convergence of multiple memory discourses, such as theological imperatives, Diaspora
and the construction of Jewish Argentine identity. Moreover, I detail the consciously
eclectic approach asserted in Jewish musical performance that consumes the global past,
re-presenting these forms as a panorama of transnational aesthetic influences, drawn 1 As sociologist Elizabeth Jelin argues: “the Southern Cone of Latin America is an area where this association
between past violations and the will of a different future is very strongly established” ( Jelin, 2003, p. 3).

124 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 125
and exile, the Holocaust, the military dictatorship and the bombings of the Israeli Em- symmetry of the nine rows of windows of its modernist exterior façade, instills a sense of
bassy in 1992 and AMIA in 1994 (Spitzer 1999; Huberman and Meter, 2006; Agosin, serenity and order—in contrast to the memorial wall of handwritten names, reminding
2005; Kaminsky, 2009; Goldstein, 2006; 2008; 2009). As sociologist Maurice Halbwachs passersby of the chaos and destruction that took place at this site. Set back a noticeable
identified, collective remembrance practices surmount individual engagements with the distance from the street and the sidewalk, AMIA is sleek and new in comparison to
past, operating on a social level as an “invocation of the past by contemporary agents to surrounding buildings. Like a government office, security guards monitor the entrance,
establish current identities” (Olick and Robbins, 1998; Halbwachs, 1992). By addressing and a thick grey blast-proof wall separates the city from the contents of the lot. Large
the cultural traces of forgetting, Yosef H. Yerushalmi famously posed the question: “Is concrete posts called pilones fence in the immediate sidewalk area in front of the for-
the antonym of ‘forgetting’ not memory, but justice” after all (Yerushalmi, 1989[1982])? midable doors. Upon entering the courtyard of the building complex, Israeli sculptor,
Following Yerushalmi, how can musical performance embody memory—individual and Yaacov Agam’s eight-paneled multi-dimensional optical sculpture, “Monument to the
collective—to combat oblivion? How is musical performance at AMIA mobilized as an Memory of the Victims of the Terrorist Attack on AMIA” stands to the right of the
intimate form of unofficial justice-seeking? entrance, while plaques commemorating the vibrant Yiddish theater scene of the early
Despite former President Nestor Kirchner’s 2005 address to the Inter-American 1900s and poster-sized photos of men and women engaged in various social activities,
Commission on Human Rights, in which he accepted responsibility on behalf of the cover the walls just outside the door to the main building. These symbols of art, music,
Argentine government for its failure to prevent the attack and to properly investigate the and dance quietly buffer the core offices from the hustle and uncertainty of life on the
bombing, compounded by recent failures in 2012 to extradite Iranian nationals accused street in Barrio Once.
of involvement in the terrorist attack, the invocation of memory in the service of justice
has served a persistent need in the Jewish community (Zaretsky, 2008; 2008a).2 Musical
performance and artistic expression create opportunities for musicians and audiences to
exert power over the past through the everyday labors of memory. As such, the changing
role of cultural programming staged at AMIA since the early 1990s points to a particular
re-alignment in local values and aesthetics, rooting musical participation as a socially
relevant form of resistance to oblivion, manifesting in the everyday as “serious leisure”
among senior citizens3 (Yúdice, 2003; Thang, 2006).

Musical Performance in the Café and the Espectáculo: Dúo Guefiltefish, Coro Ale
Brider and Coro Volver a Empezar
Every week, people from throughout Buenos Aires travel by subte (subway), or colectivo
(bus), or walk to visit AMIA for afternoon or evening concerts of music of all varieties.
Any given concert may feature music from Broadway hits, to choral arrangements of
Yiddish folksongs, instrumental recitals of Western Classical music and Israeli Eurovi-
sion Song Contest entries in Hebrew to tango and klezmer performances. This eclectic
repertoire runs the gamut of secular and sacred sounds, collected from the transnational
Jewish soundscape. The music passing through AMIA is situated firmly in physical space:
AMIA is a modern-looking building that is nearly impossible to view from the sidewalk
of the narrow street, Pasteur, located between Avenida Corrientes and Avenida Cordóba, Figure 1. The AMIA building. Acto Central del Atentado a la AMIA on July 18, 2012. Photo by L.Wohl.
two main avenues running east and west into and out of the city of Buenos Aires. The
On Tuesday, December 6, 2011, I attended my first concert of the Dúo Guefiltefish,
2 Natasha Zaretsky’s dissertation, “Citizens of the Plaza: Memory, Violence, and Belonging in Jewish Buenos accompanied by the Yiddish choir Coro Ale Brider, in the Café Literario on the second
Aires” discusses emergent memorial practices in the Jewish community in response to traumatic events in recent
history (Zaretsky, 2008a). As she mentions, “although some groups have attributed the bombing to Hezbollah, floor of the building. The Café Literario series features programs organized by the De-
they have not taken responsibility for the attack. Indeed, the lack of concrete information has continued to partamento de Cultura, ranging from adult education courses, book presentations, to
motivate the ongoing advocacy efforts of the social movements that formed” (Zaretsky, 2008a, p. 74). concerts such as this one. The programming series was inaugurated in April 2008 and
3 Leng Leng Tang employs the term, “serious leisure” to refer to the joy and anxiety of performing karaoke to
encourages an intimate atmosphere for concerts, held once or twice weekly in a large
examine singing practices among older persons in Singapore (Thang, 2006). Thang states, drawing from R. A.
Stebbin’s work: “Such commitment displayed by older persons in karaoke suggests karaoke as a ‘serious’ leisure room on the second floor of AMIA. The room used for performances is adorned with
to them. In Stebbin’s (1992) construct, serious leisure differs from casual or relaxing leisure as it demands built-in bookshelves filled to capacity with volumes on the subject of Jewish history and
perseverance, personal effort in the development of specially acquired knowledge and skill. It also often culture. On this evening, the fifteen-or-so members of the Coro Ale Brider (All Brothers
encompasses ‘membership in or identification with a group of participants with distinct beliefs, norms, values,
traditions and performance standards (Mannell, 1993, p.130)” (Thang, 2006, p. 72). Chorus) milled about anxiously to the right side of the room, prior to their performan-

126 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 127
ce. Their movement added a pleasant kinetic energy to the atmosphere, as performers era. Jevel Katz, perhaps the first iconic Jewish popular singer in Argentina, continues to
Horacio Liberman and Mirtha Zucker (of the Dúo Guefiltefish) welcomed the audience, be an emblem of Ashkenazi Jewish heritage. His music and his legacy provide material
introducing themselves to their public. objects to engage with nostalgic and collective memory, especially among first generation
Against the synthesizer-heavy backtrack, Horacio sang Yiddish folksongs in a clear Jews (the children of immigrants) in Buenos Aires (Boym, 2001; Fischman, 2005; 2006).5
tenor voice that maintained a conversational quality. When he finished his solo songs, One important feature of this concert was Coro Ale Brider’s use of the formal musical
the choir members of Coro Ale Brider assembled in the front of the room, squeezing structure, the “popurrí”—a cross-section of different portions of multiple songs, mixed
themselves between tall speakers, a tower of black sound equipment and an old, upright into a unified arrangement according to the stylistic components and lyrical content of
piano. Most of the choir members appeared over fifty years old, and nearly as many the musical material. In this way, the choir was able to draw from a broader variety of the
wore bright smiles in anticipation of singing. The atmosphere transformed as Coro Ale “chestnuts” of Yiddish folksongs such as, “Iome Iome,” “Dos Ist Idish,” and “Tog Ain, Tog
Brider took their places in front, demarcating a clear separation between the performers Ois,” to fit in more references to Jewish culture within the set performance time (Slobin
and their public, as audience members clapped and cooed, waving to the singers and 1996). As a compositional practice, the popurrí is related to the remix to the extent that
sneaking in brief conversations before the start of the show. The choir began by singing these two forms both rely on inter-musical icons to create new meanings; however, in
a familiar arrangement of the well-known Yiddish folksong “Tumbalalaika,” appearing the Jewish Argentine choir context, the eclecticism of the popurrí depends largely on an
un-inhibited, cheerfully combining their somewhat out of tune and slightly out of synch understanding of musical expectations of known qualities, culled from collective memory.
voices with purposeful attention to articulation, enthusiasm and personal enjoyment. That is, in order to appreciate and fully engage with the popurrí material, audience members
Their first song set a tone of participatory engagement that invoked the Eastern Euro- must be generally familiar with the tune or lyrics. Conversely, for a popurrí to successfully
pean (Ashkenazic) Jewish experience in Argentina through the performance of songs in engage an audience, it must include enough well-known material to engender gestural and
Yiddish. With their “feathered” endings and unequal balance between male and female aural participation. As a result, popurrís tend to recycle heavily circulated folk or popular
voices, this performance demonstrated an emphasis on unison singing for social pleasure songs, across sacred and secular repertoires. As opposed to remixes in Jamaican Dub or
rather than aesthetic perfection (Turino, 2008). Hindi Film song, popurrís in Latin America intentionally refer to a body of canonical
Coro Ale Brider proceeded with the Yiddish children’s song, “Az der rebbe zingt” and songs and themes to pay homage to the collective past, in this case, outside of commercial
an arrangement of “Basavilbaso,” a song dedicated to the eponymous colony in the pro- fields. Rather than prioritizing innovation in the production of new improvisations, as
vince of Entre Ríos. This musical reference depicted Jewish colonial life in the interior, is the case with Dub—or to encourage multi-generational participation in an emerging
prior to the process of rapid urbanization that brought waves of migrants to the federal commercial canon, as is the case with evergreens in Hindi Film remixes—Jewish Latin
capital during the in the early twentieth century (Scobie, 1964). The song “Basavilbaso” American popurrís pay homage to the past through emblematic symbols of musical heri-
is largely unknown outside of Argentina, originally composed and popularized in the tage often suited for a single generation or age cohort. (Veal 2007; Beaster-Jones 2009).
Jewish community by the beloved folk singer Jevel Katz, who arrived from Lithuania in As Kay Kaufman Shelemay argues: “[b]oth song texts and tunes encode memories
1930. Its strophic form and repetitive chorus were easy to follow as the choir sang, and of places, people, and events past; in this manner the songs are intentionally constructed
audience members hummed along or otherwise involved themselves musically thorough sites for long-term storage of conscious memories from the past” (Shelemay, 1998). As
foot-tapping, hand clapping, and other gestural forms of participation. such, song texts and tunes allow listeners and performers to access the past to bolster
Jevel Katz, nicknamed the “Jewish Carlos Gardel,” after the beloved tango singer, collective participation. As the concert concluded, Horacio invited people from outside
composed and sung parodies and popular songs in Yiddish, Castellano (Spanish from the of Buenos Aires to declare their geographic origins, finding audience members visiting
Río de la Plata region) and a creolized mix of both languages to large Jewish audiences in from Tel Aviv, Chicago, Buenos Aires’s suburbs, and even “Villa Clara!”—as one spry
theaters throughout Buenos Aires and the colonies of the interior (Baker, 2004). Follo- octogenarian proclaimed, claiming personal connection to another colony of the Jewish
wing his death in 1940, musicians in Argentina such as Max Zalkind have maintained Colonization Agency in Argentina’s interior at the turn of the twentieth century and
Jevel Katz’s musical legacy, performing his works on recordings, in live performances memorialized as an authentic site of Jewish Argentine immigration and collective me-
and even theatrical shows based on his life. In 1941, a commemoration concert was mory. Like a community karaoke session, the Dúo Guefiltefish concert relied heavily on
held in his honor, but, moreover, in the 1980s, a number of concerts and shows based on audience participation and insider knowledge of the musical repertoire and melodies to
Jevel Katz’s life and legacy revived the specter of Katz on the stage for a new generation successfully secure participation. In this performance context at the Café Literario, Yiddish
of fans.4 Like the songs that Katz sung in his lifetime, the recuperation of the work of folksongs triggered mnemonic journeys into individual personal histories, while uniting
Jevel Katz in the later part of the 20th century, highlights the importance of Katz and participants around a common objective of public collective remembrance of the Jewish
his music to access the memories of Jewish life in Argentina—from Europe to Latin Argentine past (A. Assmann, 2011; J. Assmann, 2006).
America, the colonies to the city, Yiddish to Castellano and the past to the contemporary

5 Anthropologist Fernando Fischman defines “first generation” Jews as the children of immigrants, born
4 Based on archival documents held in the Jevel Katz archive at Fundación IWO, Buenos Aires, Argentina. in Argentina or who arrived at a very young age, with connections to Jewish institutions, among other
Accessed August 2010. characteristics (Fischman, 2006).

128 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 129
Musical Performance in the Auditorio AMIA: Coro Volver a Empezar and the trabajo unamos nuestras voces” (Two ants plus two more ants/ Are the beginning of a society/
Origins of Dúo Guefiltefish With energy and courage we share this message/ let us join our voices to our work).”
When the Dúo Guefiltefish performed in the Auditorio AMIA on January 24, 2012, the By the end of the song, all of the choir members had embraced at the edge of the stage,
atmosphere was markedly different from the communal singing session the month before having been transformed into a “gran comunidad” (large community). As Horacio added,
in the Café Literario. Although the Coro Ale Brider was also present and performed a few “the choir combines the personal traits of each member, and each person is important for
of the same songs such as “Iome Iome,” “Dos Ist Idish,” and “Cabaret,” the inclusion of the who they are, for what they do, and how they move through life… As such, each individual
Coro Volver a Empezar, who sings in Castellano, diversified the musical content beyond joined together provides the basis of the strength of a choir.”7 From the stage of AMIA,
Yiddish folksongs. During this espectáculo, a genre prevalent in Argentina and loosely this musical commemoration found an empathetic home in a place of new beginnings
defined as a form of theatrical entertainment or show (often featuring choreography, itself, as Coro Volver a Empezar collectively mourned their friend through the musical
costumes or special effects), the choirs’ presentations were more formal, reducing the labor of memory. As sociologist Elizabeth Jelin remarks, “at a more general, community,
variety of musical content in order to prioritize the performance of full songs (Sirven, or family levels, memory and forgetting, commemoration and recollections become crucial
2010). In the Auditorio AMIA, Horacio and Mirtha asserted more central roles in the when linked to traumatic political events or to situations of repression and annihilation,
performance, singing solos and duets such as their song, “Pimpidieta,” a contrafactum or when profound social catastrophes and collective suffering are involved ( Jelin, 2003).
composition reworking the lyrics of a well-known song by Pimpinela (an Argentine duo,
consisting of Joaquín and Lucía Galán), to teasingly parody the struggle between a wife
concerned about her husband’s cholesterol, and a husband who confesses to the audience
his mischievous plan to sneak a pastrami sandwich. Horacio’s performance antics and
showmanship, entertaining the audience with his borscht-belt style stand-up comedy act,
served as a departure from the informal program in the Café Literario. On this occasion,
the espectáculo presentation was less improvised and less participatory—fundamentally
more presentational as a performance experience (Turino 2008).
Of special memorial significance was Coro Volver a Empezar’s tribute to a fellow choir
member who had recently passed away. As Horacio announced, “A friend of ours in the
Coro Volver a Empezar left us recently, passing away, making us very sad. And with heavy
hearts, we are here today to present this song for her. We want to make this homage to
her with this song because when she joined the choir, I chose her to be the soloist.”6 The
song, “Las Hormigas Mueven la Montaña” (The Ants Move the Mountain), from the Italian
musical comedy, “El Diluvio que Viene,” first premiered in Argentina in the late 1970s and
continues to be performed since its original debut. Coro Volver a Empezar’s performance
of this medium tempo song-march brought into focus additional layers of memory work
performed by musicians at AMIA. Choir member Diana, who had been with the choir
since it began ten years ago, took over the solo, looking out into the wide audience and Figure 2. Mirtha Zucker, Coro Ale Brider, Coro Volver a Empezar and Horacio Liberman performing
making eye contact with various listeners, while moving her head with the phrasing of in the Auditorio AMIA. Photo by L.Wohl.
the verse as she sang into a hand held microphone. As she finished the verse, moving into
the refrain, four choir members joined her at the front of the stage, grasping hold of each This particular performance featured all female members of the Coro Volver a Empezar,
other around the shoulders and adding their voices to Diana’s. As the song developed in who followed up this moving performance with a rendition of “Volver a Empezar,” by
intensity in scalar, ascending motion, more choir members added their voices, moving Alejandro Lerner, the inspiration behind the choir’s name. Alejandro Lerner, a high-profile
from the back of the stage to the front, integrating light choreography with hand gestures Argentine pop rock musician, has performed with artists such as Luis Miguel, Celine
that visually punctuated the lyrical themes of solidarity, unity and support for each other. Dion, Carlos Santana, and Argentine composer, Gustavo Santaolalla, he and remained
As the lyrics of “Las Hormigas Mueven la Montaña” describe, the ants work together engaged with the Jewish community throughout his career. Unrelated to the Coro Volver
to “move the mountain” by joining together in the labor: “Más dos hormigas con otras dos a Empezar’s internal activities, Lerner participated in a series of concerts organized by
hormigas/¡Son principio de una sociedad!/Energía y coraje pasamos este mensaje,/y a nuestro the activist group, Memoria Activa. Memoria Activa, a not-for-profit group founded by
non-family members of the victims of the AMIA, organized demonstrations and public
6 “nos fue una compañera de Coro Volver a Empezar. Sí no fue que si falleció. Y con mucho dolor nos enfentamos todos
y teníamos está actualization... Sé que todos de los integrantes son conmovida… Tuvimos unos días muy tristes. Esta 7 “el coro la suma individualidades y cada una es importante por lo que es y por lo que hace y por como
canción es para ella…Queremos hacer una homenaje—está canción es para ella... porqué cuando ella vino al coro, La se mueve… Así que todo uno más uno hacen todo la fuerza que tiene un coro.” Horacio Liberman. January 24,
elegí que ella sea solista.” Horacio Liberman. January 24, 2012 in AMIA. 2014 in AMIA.

130 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 131
commemorations in the late 1990s and early 2000s to aid legal and financial advocacy At this time, given the urgency in the city left without work. And without knowing what
projects on behalf of the families of the victims of the AMIA bombing. In 1997, 1998 to do and without knowing what what… and well, the people had been very worried. We
and 1999, Memoria Activa held three concerts in Buenos Aires to raise awareness and experienced problems personally, ourselves too. But at the community level, we began
financial support for the cause of AMIA.8 Lerner performed in at least one of the con- to do activities so that the people could be entertained, a little, Fridays after Kabbalat
certs held at the historic Grand Rex Theater in 1999, and he is featured on the recording Shabbat (Shabbat service) in the synagogues. We began with only a few people who heard
on this third concert, El Arte Junto a Memoria Activa, which includes personal testimony about the choir, and we ended with seventy people who stayed on Fridays just to play.
from advocates, family members, and musicians, as well as information about the event To play recreational activities. We bought pizza, and we divided it between us and each
and the musical selections. person paid. It was not-for-profit absolutely. Nor was it a big group. One day in 2002, we
This concert ended on a light note with the audience clapping along in time to Ho- met we didn’t have anything to do, so we organized a choir.11
racio, Mirtha, the Coro Volver a Empezar and the Coro Ale Brider singing Israel’s 1979 The Dúo Guefiltefish and Coro Volver a Empezar continued playing shows at AMIA
winning Eurovision Song Contest entry by Gali Atari and Milk and Honey, “Hallelujah”. and in the Jewish community throughout the early 2000s. By 2006, they had established
As Horacio mentioned during the performance, Coro Volver a Empezar, has experienced, their act and repertoire throughout the region, securing a contract to perform regular
“important journeys, events, people who have come and gone, and each time was a new shows during the summer season at the Teatro Sagasti in Punta del Este, Uruguay. Horacio
beginning, and the concert on this evening marked another new beginning with the and Mirtha consider this opportunity critical to their ability to establish themselves as
passing of [our friend].”9 full-time musicians.12 Although the first years as full-time musicians were difficult, their
The Dúo Guefiltefish officially formed in 2003, somewhat by accident. During a summer status as artists officially sponsored by AMIA opened many doors, and they secured
visit to Miramar, a vacation town on the Atlantic coast south of Buenos Aires, Horacio steady jobs with private parties and invitations to perform at Jewish community centers,
and Mirtha sang in an amateur music showcase at the Shopping Down Town (shopping synagogues and other venues in the interior of Argentina. They have performed in Re-
plaza). They decided on the name “Dúo Guefiltefish” just before they were scheduled to sistencia, Córdoba, Corrientes, Tucumán, Salta, San Juan, Rosario and other former Jewish
perform before a large, mixed, Jewish and non-Jewish audience. Horacio and Mirtha sang colonies such as Moisesville, Basavilbaso, Villaguay, and Villa Clara. Dúo Guefiltefish has
songs in Yiddish and Castellano (Spanish from the Río de la Plata region), recounting the been invited to perform in Latin American countries such as Costa Rica, Bolivia, Chile,
experience as “surprising” due to the enthusiastic reception they encountered from the as well as in Israel and the United States.
large audience. By chance, earlier that day, clouds had ruined an afternoon of sun and In 2007, the director of the Departamento de Cultura, Moishe Korin, asked Horacio and
sand for vacationers, who flocked to the shopping plaza instead of the beach. After their Mirtha to represent AMIA on A North American tour to Miami, Florida. They played at
debut as the Dúo Guefiltefish, Horacio and Mirtha decided to seek additional performan- synagogues such as Temple Menorah and Temple Beth Shalom and in community centers
ce opportunities in Buenos Aires, sticking with the name “guefiltefish,” in honor of the such as the Miami Beach Senior Center and Jewish Community Services of South Florida
pickled fish ball, customarily served at Passover seders by Ashkenazic Jews. As they state to request donations in support of AMIA’s social services programs and regular operations
on their website: “…we call ourselves Dúo Guefitlefish, in order to make clear the type of at AMIA that had been comprised by the effects of the economic crisis (Dúo Guefiltefish
music that we were making” (Dúo Guefiltefish website).10 This success marked Horacio and website and personal communication). During this critical fundraising trip, Dúo Guefiltefish
Mirtha’s deepening engagement with Jewish musical heritage. Prior to working full-time was the only creative presence as artists traveling with key administrators. In 2008, Mirtha
as professional musicians, Horacio managed a textile factory that specialized in shirts, and Horacio formed the Yiddish choir, Coro Ale Brider, again reasserting their commitment
and Mirtha worked in the family business in advertising. As Horacio’s business slowed and interest in the maintenance and transmission of Jewish musical heritage in Buenos Aires.
during Argentina’s economic crisis of the early 2000s, he and Mirtha began devoting
more and more time to music. In 2002, before their debut in Miramar, Horacio and Initial Conclusions
Mirtha convened weekly singing sessions with fellow congregants at the Templo de Planes At AMIA, musical performance provides a structural platform from which musicians
in the middle-class Caballito neighborhood, each Friday evening after Shabbat services. and audiences can enact a wide body of memory practices, in official commemoration
Horacio and Mirtha sought additional participants and advertised this group—a choir events as well as regular concerts supporting Jewish cultural heritage. By emphasizing
they named Coro Volver a Empezar—in various synagogues throughout Buenos Aires. At the role of physical locations (place) and conceptual landscapes (space) in actively
first, they attracted primarily women, singing almost exclusively in Castellano, but have
since added a handful of male singers. As Horacio narrated: 11 “En ese momento, antes la urgencia en la ciudad se quedó sin trabajo. Y sin saber que hacer y sin saber
que [que] y entonces la gente ha sido muy preocupada. Nosotros enfrentamos en persona también teníamos nuestra
problema. Pero al nivel comunitario empezamos hacer actividades para que la gente este entretenida, un poco, los días
8 Personal Communication with José Blumenfeld on December 8, 2011 in Buenos Aires. viernes después de Kabalat Shabat en los templos. …Empezamos con poca gente que se fue enteranda y terminamos
9 “…viajes importantes, actuaciones importantes, gente que se fue, gente que vino y cada vez fue un volver a empezar. haciendolo con setenta personas que se quedaban los viernes solamente jugar. Jugar con actividades recreativas. Y
Hoy después que nos pasó con [nuestra amiga] es un volver a empezar. Horacio Liberman. January 24, 2012 in compramos pizza y lo dividimos entre todos y cada una pagaba. Y era sin lucro absolutamente. Ni se fue formado un
AMIA. grupo muy grande. Cuando en el año 2002, un día teníamos que reunir y no teníamos que hacer, nosotros que estamos
10 “…llamarnos Dúo Guefiltefish, para que de ese modo, el que lo oyese o leyera, no tuviera dudas del tipo de música que integrando en un coro.” Personal communication with Horacio Liberman on February 29, 2012.
hacíamos.” Website Dúo Guefiltefish. Accessed June 2012. <http://www.duoguefiltefish.com.ar/> 12 Personal communication with Horacio Liberman and Mirtha Zucker on February 29, 2012

132 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 133
shaping public and personal memories of violence, Katharina Shramm notes that the Beaster-Jones, Jayson. “Evergreens to Remixes: Hindi Film Songs and India’s Popular
mediation between “violence, memory, body and landscape” produces a “sacralization of Music Heritage.” Ethnomusicology, v. 53, no.3 (Fall), pg. 425-448, 2009.
memorial space” (Shramm, 2011). While arguing that the “politically charged realm of
Bohlman, Philip. Jewish Music and Modernity. New York: Oxford University Press, 2008.
commemoration” combines both official and unofficial acts to transform physical place
into memorial landscapes, Schramm identifies the fact that the process of sacralization Boym, Svetlana. The Future of Nostalgia. New York: Basic Books Press, 2001.
requires continual maintenance through ritual and memorial acts in order to preserve
Breckenridge, Janis. “Text and the City: Design(at)ing Post-Dictatorship Memorial Sites
the sacred atmosphere of a physical site after a traumatic event. At AMIA, both highly
in Buenos Aires. In: Latin American Jewish Cultural Production,” edited by D. W. Foster.
visible official commemorations and less visible, un-official cultural programs support a
Nashville, TN: Vanderbilt University Press, 2009.
canon of social practices utilizing music to produce to unify Jewish identification.
Although public commemorations such as the Acto Central del Atentado a la AMIA Dúo Guefiltefish Website. “Home,” accessed May 30, 2012. http://www.duoguefiltefish.
creates opportunities to collectively mourn, commemorate and protest, on a daily basis, com.ar/home.html.
musical participation provides a broad spectrum of intimate, personal unofficial acts to
contend with the politics of memory. In this essay, I have described how the Dúo Gue- Feierstein, Ricardo and Stephen Sadow. Encuentro: recreando la cultura judeoargentina
filtefish, Coro Ale Brider and Coro Volver a Empezar draw from a wide repertoire of songs 1894-2001: en el umbral del segundo siglo. Buenos Aires: Editorial Mila, 2002.
and performance practices, creating a canon of popular Jewish music that underlines the Feierstein, Ricardo and Stephen Sadow. Encuentro: recreando la cultura judeoargentina 2:
transnational identity of Jewish performance while firmly rooting it in a local, Argentine literatura y artes plasticas. Buenos Aires: Editorial Mila, 2004.
context. The musical labors of these performing groups not only reflect the memorial
atmosphere of AMIA, but they continuously renew this sacralized space. In the wake Fischman, Fernando. “Religiosos, no: tradicionalistas, sí: un acercamiento a la noción de
of recent criticism directed at AMIA and Delegación de Asociaciones Israelitas Argentinas tradición en judíos argentinos.” Revista Sambatión, v. 1, p. 43-58, 2006.
(DAIA) administrators over perceptions of a commercialization of the Acto del Atentado Fischman, Fernando. “La producción cultural judío argentino como patrimonio.” In:
a la AMIA through advertising and merchandising, as well as the controversial decision Martin, Alicia (ed.). Folclore en las grandes ciudades: arte popular, identidad y cultura. Buenos
not to include testimony from a speaker on behalf of the families of the victims on July Aires: Libros de Zorzal, 2005.
18, 2012, musical programs occupy a unique position as a crucial medium to facilitate
open, intimate and individualized engagements with the memorial past (Veiras, 2012). As Foster, Susan Leigh. Corporealities: Dancing Knowledge, Culture and Power. New York:
Yerushalmi suggested, if justice is the antonym of oblivion, it may well be memory—and Routledge Press, 1996.
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136 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 137
A prática da Hausmusik em Curitiba:
uma perspectiva histórica,
identitária e educativa
Elisabeth Seraphim Prosser
Universidade Estadual do Paraná

Curitiba é conhecida como “terra de todas as gentes”, devido às muitas etnias que a
colonizaram. De ponto de passagem, no século XVII, tornou-se cosmopolita e valorizou a
cultura, a arte e a educação. Já no século XIX, contava com uma aristocracia luso-brasileira,
à qual, a partir de meados daquele século, iriam juntar-se imigrantes, principalmente
alemães, poloneses, italianos e ucranianos, que se fixaram na cidade e nos seus arredores.
Entre eles, além de agricultores e trabalhadores, havia comerciantes, professores, artistas
e intelectuais, que logo formaram uma classe média culta. Tanto os aristocratas quanto
essa nova classe cultivavam a Hausmusik,1 uma prática comum de cunho social, cultural
e educativo: as famílias e seus amigos se encontravam para fazer música, trocar ideias
e compartilhar cultura. Trocavam também partituras que, com dificuldade, traziam da
Europa. Um desdobramento dessa prática familiar era o natural envolvimento das novas
gerações. Assim a Hausmusik tornou-se lugar privilegiado de um fazer e de uma educação
musical não formais.
Para Marisa Sampaio (1984, p. 17), “a família foi, incontestavelmente, o principal
núcleo da arte musical no Paraná”. Ali “encontramos inúmeros lares onde a música fazia
parte do cotidiano e dos quais saiu a maioria dos artistas que, – como instrumentistas,
compositores ou professores [e organizadores culturais e pesquisadores] – mantiveram o
contínuo movimento no setor artístico-cultural do Estado.
Entre as muitas famílias em que a prática da Hausmusik fazia parte do dia a dia contam-
-se as famílias Itiberê, Devraine-Frank, Frank-Graf, Jucksch, Seyer, Müller-Seraphim-
-Prosser, Garcez-Duarte, Morozowicz, Soboll-Martins, Brandão, Thomas-Novello,
Savitzky, Klein, Gomes, Thá, Carollo-Damm, Hübner, Chiamulera e outras. Muitos, hoje
músicos profissionais, são a segunda ou terceira geração dessas famílias.

A música em família no século XIX: os Menezes e os Itiberê da Cunha


A música praticada em Curitiba tem a sua origem intimamente relacionada com a
cidade de Paranaguá, a mais antiga do Estado (fundada em torno de 1648), bem como
em Antonina e Morretes, onde foram registradas as primeiras atividades musicais no
Paraná (BRANDÃO, 1996, p. 13).
Paranaguá, antes a capital da Comarca, legou ao planalto músicos de excelente for-
mação. Um exemplo é Bento de Menezes, nascido em Paranaguá em 1830. Desde sua

1 Hausmusik: música realizada na esfera privada, por prazer, entre amigos e familiares, hábito comum na Alemanha.

ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 139


vinda já adulto a Curitiba, foi o “vulto de maior projeção” na música na cidade, até finais Os imigrantes
do século XIX. “A Mansão dos Menezes, situada na esquina das ruas Dr. Muricy com A atividade musical local na segunda metade do século XIX e na virada do século
a Saldanha Marinho, foi testemunho do que melhor pode produzir a chamada música constituía, pois, um espaço da sociabilidade e da cultura. Envolvia o cotidiano da vida
doméstica (familiar). As irmãs de Bento Menezes, Adelaide e Francisca, a quem ensinou familiar e social, com a participação, também, de famílias de imigrantes.
piano e canto, apresentaram-se na Corte”, a convite de D. Pedro II. Seus sobrinhos “fo- Até o início do século XX, é grande o movimento artístico da capital: nas inúmeras
ram educados por Bento de Menezes, que lhes dava aulas de música ensinava a tocarem famílias de imigrantes europeus, principalmente alemães, italianos e poloneses, continua o
instrumentos” (RODERJAN, 1967, p. 2). cultivo da Hausmusik. A música é feita em família, nas escolas, na Igreja, nos clubes sociais
Ele costumava, principalmente nas festas natalinas, preparar os sobrinhos e os filhos e literários e nas diversões populares. As famílias Itiberê da Cunha, Menezes, Monteiro,
dos seus escravos em ingênuos e expressivos corais. Na noite de Natal, todas as crianças Diniz, Assumpção e mais as de imigrantes alemães como os Schleder, os Pletz, os Glaser,
democraticamente de mãos dadas, entravam na grande sala onde estava armado o os Stresser, Hauer, Hertel, Menssing, Haupt e muitos outros, fizeram música doméstica
pinheirinho e entoavam seus cantos antes de ganharem os presentes, diante da comovida ou na sociedade, mantendo bandas e pequenas orquestras familiares ou profissionais.
assistência, constituída dos familiares e dos amigos do estimado maestro. Em sua casa (RODERJAN, 1969, p. 177)
havia três salas de concerto, dois pianos de cauda, um cravo e dezenas de instrumentos Como se vê, eram muitas as famílias envolvidas. No reparo e na manufatura, destaca-
musicais. (RODERJAN, 1967, p. 2) ram-se os Hertel, que mantinham uma oficina para reparos de instrumentos e uma loja
Menezes participava ativamente da vida social, musical e das atividades religiosas da de partituras; e os Essenfelder, que fundaram uma fábrica de pianos. Ambas supriram o
Igreja Matriz. Além disso, criou e organizou a Banda de Música da Polícia Militar do mercado das últimas décadas do século XIX até finais do século XX.
Estado, que, em 1880, foi ouvida pelo Imperador Pedro II, de quem recebeu calorosos Os imigrantes desempenhavam, pois, importante papel na cultura local. Um fator
elogios (BRANDÃO, 1996, p. 14). de agregação e fortalecimento da própria identidade era a manutenção da língua, das
Outro músico de grande destaque em Paranaguá foi João Manuel da Cunha, parente tradições e da música dos países de origem. Assim, não apenas para manter a identidade
de Bento Menezes. Professor, mantinha uma escola particular de música e formara uma de grupo ou para não perder o vínculo afetivo com a terra natal, mas também, para não
banda com seus familiares, amigos e alunos. Transferiu-se para Curitiba em 1854 e, perder certo “grau de desenvolvimento cultural” dos seus países de origem, os imigrantes
juntamente com Menezes, norteou a vida musical da cidade, durante a segunda metade zelavam para que seus bens culturais, entre eles a música, não se perdessem no esqueci-
do século XIX (RODERJAN, 1967, p. 4). Andrade Muricy escreveria: mento. Criaram escolas, jornais, clubes, associações e igrejas e cultivavam a música no
João Manoel, conhecedor do repertório camerístico criou um quarteto de cordas, dos núcleo familiar, incluindo amigos e vizinhos.
primeiros, senão o primeiro, existente no Brasil do interior. Constituíram aquele conjunto o
próprio João Manuel (violino I), seu irmão Jacinto Manuel (violino II), José de Brito (viola) Artistas de fora e artistas locais – o início do século XX
e o Dr. Bento de Menezes (violoncelo e piano). (MURICY in RODERJAN, 1967, p. 7) O novo século traria grande efervescência cultural para Curitiba: “Eram centenas de
mágicos, dançarinas, cantores líricos, atores de teatros de variedade. Viajavam, normal-
João Manoel teve vários filhos. O mais velho, Brasílio, “acrescentara ao seu nome o de
mente, em troupes que eram contratadas por empresas de diversão. [...] Era uma verda-
Itiberê para homenagear o rio com o mesmo nome que banhava Paranaguá, tornando-se
deira maratona de companhias itinerantes em Curitiba”. Os músicos, desde solistas até
então Brasílio Itiberê da Cunha” (BRANDÃO, 1996, p. 14). A partir de então, a família
companhias internacionais de ópera, eram muitos e de várias procedências: Argentina,
adotou Itiberê da Cunha como sobrenome, que se tornou relevante na história da música
Uruguai, França, Itália, Alemanha e do Brasil (BRANDÃO, A., 1994, p. 6).
brasileira de concerto. Jacinto Manuel, por sua vez, lecionava música e mantinha uma
O mercado de trabalho era amplo, com concertos, clubes, associações, cinema mudo,
orquestra e um coral nos quais tomava parte toda a família Itiberê.
hotéis, confeitarias, cafés-concerto, bandas, circos, parques de diversão, ringues de pa-
Entre os demais filhos de João Manoel destacaram-se Celso (depois, Cura da Sé de
tinação, futebol, matinées dançantes etc. Assim, vários músicos, dançarinos e atores de
Curitiba), João (músico e literato, conhecido por Jean Itiberê) e Henrique (músico). Seu
companhias de ópera, opereta, teatro e dança que passavam pela cidade deixaram os seus
neto, Brasílio Itiberê da Cunha Luz (músico), era chamado Brasílio Itiberê II (NEVES,
grupos e radicaram-se em Curitiba. Entre eles, Carlos Frank, Ludwig [Ludovico] Seyer
1996, p. 19). Todos tiveram atuação marcante no meio cultural do país.
e Tadeusz Morozowicz (RODERJAN, 1969, p. 186-187). Estes uniram-se aos músicos
Brasílio Itiberê, como ficou conhecido o filho mais velho de João Manoel, tornou-se
locais e, além de sua atuação artística, criaram grupos de câmara, orquestras, bandas, coros
diplomata, pianista e compositor. Representando o Brasil em várias capitais mundiais,
e escolas de música no âmbito público e no privado.
tornou-se amigo de Liszt, com o qual trocava correspondência2. No âmbito da história
Em 1912, deu-se a estreia da primeira ópera paranaense, Sidéria, de Augusto Stresser
da música brasileira, é citado como precursor do nacionalismo, por ter sido o primeiro
(também filho de músicos). Leo Kessler, regente, foi um dos artistas que se radicou na
a utilizar motivos brasileiros na composição, mais especificamente em A sertaneja, para
cidade. O sucesso de Sidéria consolidou sua reputação de músico e professor. Fundou, em
piano, identificada pelo autor como Fantazia característica, Op. 15.
1916, o Conservatório de Música do Paraná, onde lecionava o violinista e maestro Ludwig
Seyer, cujo filho, também chamado Ludwig Seyer, seguiria os passos do pai, tornando-se,
2 Correspondência de Liszt a Itiberê encontra-se na Casa da Memória, em Curitiba.

140 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 141
igualmente, violinista, professor e maestro. Seyer, o pai, teve uma atuação marcante no sicos, pintores e intelectuais, que tiveram lugar acaloradas discussões sobre a criação de
cenário musical curitibano também como organizador cultural, criando várias escolas de uma sociedade que promovesse concertos e de uma escola superior de música e de artes
música (RODERJAN, 1969, p.189). visuais. Além de, anos depois, participarem da criação da Sociedade de Cultura Artís-
tica Brasílio Itiberê (a SCABI), as três musicistas e Jorge João desenvolveram a carreira
O maestro e organista Carlos Frank e sua família, na Catedral docente, vindo a lecionar na Escola de Música e Belas Artes do Paraná, criada em 1948.
A prática da música em família continuava uma tradição tanto nas famílias luso- Além disso, por quarenta anos, Charlotte fez registrar em álbuns os principais eventos
-brasileiras como nas dos imigrantes. Além disso, nas igrejas católicas ou protestantes, musicais das temporadas do Teatro Guaíra, do Clube Curitibano, do Clube Concórdia,
a música era elemento primordial na realização de missas e cultos. Ela era geralmente da Pró-Arte Brasil e da SCABI, por meio de
dirigida por um músico profissional e era praticada por famílias e outros membros da dedicatórias e assinaturas dos inúmeros artistas – músicos, pintores, poetas e intelectuais –
comunidade, que, assim, eram impulsionados a se aperfeiçoar. que movimentaram a vida artística da capital do Paraná. Os visitantes, raras exceções, eram
Um exemplo eram os ofícios litúrgicos da Catedral, que “atraíam, além dos fiéis, nu- recebidos, após concerto, no lar dos Frank, na rua Gutenberg nº 585. Casas geminadas,
meroso público apreciador da música. Continuando o trabalho de Jacinto Manuel, Carlos pertencia a de trás ao casal e a da frente a Charlotte. As recepções aconteciam ora nessa
Frank [Aloys Karl Frank] coordenava a música na Catedral. Estimulava-o o Monsenhor ora naquela residência. Noites alegres e musicais, saborosas na culinária, acolhedoras na
Celso, irmão de Brasílio Itiberê e sobrinho de Jacinto, que foi vigário da Catedral até o receptividade. (SAMPAIO, 1984, p. 41 e 11)
ano de 1930, quando faleceu” (RODERJAN, 1969, p. 191).
A prática da Hausmusik na família do maestro Carlos Frank continuava viva e ampliava-
O maestro e organista Carlos Frank, como era conhecido, “fez questão que todos os
-se, abraçando um círculo maior. Mantinha-se, porém, o núcleo familiar como centro
seus filhos estudassem música e participassem, como cantores ou instrumentistas, dos
irradiador da ação, que envolvia amigos, colegas e os artistas convidados.
concertos realizados na Catedral”. De 1889 a 1918, quando faleceu, ele esteve à frente
de várias iniciativas musicais da cidade. A sua atuação com seu coral e sua orquestra,
Os Müller-Seraphim-Prosser e os Frank-Graf
“transformavam os ofícios litúrgicos em verdadeiros concertos espirituais”. Seus filhos, o
A trajetória de Ingrid Müller Seraphim demonstra de modo significativo como a
flautista Jorge João e a violoncelista Charlotte, prosseguiram o trabalho do pai (SAM-
música em família influenciou não apenas a sua vida e a sua carreira, mas mudou os
PAIO, 1984, p. 18; RODERJAN, 1969, p. 191).
rumos da música e do ensino dessa arte em todo o país, quando ela, praticante assídua
da Hausmusik até a atualidade, criou a Camerata Antiqua e as Oficinas de Música de
O pastor e maestro Karl Frank e sua família na Igreja Luterana
Curitiba. Nas suas falas nota-se a proximidade que a prática da música no núcleo familiar
A música era extremamente valorizada também nas igrejas evangélicas. O Pastor
proporciona entre as pessoas que participam dela e o seu papel na criação e consolidação
Karl Frank, da Igreja Luterana (da Christus Kirche), chegou em Curitiba em 1910. Pa-
de laços sociais e culturais duradouros.
ralelamente à sua formação teológica, na Alemanha, estudou órgão e piano. Organizou
e desenvolveu inúmeras atividades musicais com membros da comunidade, composta Quando crianças, nos reuníamos em volta do piano à noite. Minha mãe tocava ao piano
principalmente de alemães e suas famílias. Além da música para os cultos, organizava, músicas do folclore brasileiro, alemão e italiano e nós todos cantávamos. O meu pai
concertos, nos quais apresentou extratos do Réquiem de Brahms, do Réquiem de Mozart, adorava. Ele ficava na poltrona lendo o jornal ou a Bíblia. Éramos cinco filhos, quatro
de A criação de Haydn, de obras de Händel, Cantatas e Corais de Bach, além de muitas irmãs e um irmão, ao redor do piano. Maravilhoso! Isto está tudo no meu ouvido até hoje!
outras obras máximas da literatura musical (PROSSER, 2004). Da sua chegada até fins (SERAPHIM, 2010a)
dos anos 1960, foi um dos principais regentes e professores de piano e história da arte da E continua:
cidade. “Foi um amante da música, criou um círculo musical em Curitiba e abriu a porta A música esteve sempre presente na minha vida. Minha mãe tocava piano, cantava...
do universo da música para muitos músicos, hoje profissionais” (AUGUSTIN, 1999, p. Lembro dos meus 5, 6 anos, quando acordava com minha mãe cantando Lieder de
85). Também no âmbito da sua família a música era constante. Sua filha, Esther [Graf ] Schubert, acompanhando a si mesma ao piano. Até hoje, tenho um carinho muito especial
tornou-se maestrina, pianista e professora. por esses Lieder, porque me trazem recordações muito boas... (SERAPHIM, 2010b)

O Trio Paranaense e a SCABI


A família frequentava a pequena Igreja onde o Pastor Karl Frank atuava. Foi com ele,
Em 1932, surgia o Trio Paranaense, formado por Bianca Bianchi (violino), Renée
grande erudito e teólogo e excelente músico e professor, que Ingrid teve sua formação
Devrainne Frank (piano – esposa do flautista Jorge João Frank) e Charlotte Frank (vio-
musical inicial. Além de atuar como professor de piano, regia o coro da comunidade, que
loncelo), que, durante mais de uma década, deram concertos em várias cidades brasileiras.
cantava durante as festividades e os cultos da igreja e em concertos que ele organizava.
As “três moças” eram imigrantes ou filhas de imigrantes e pertenciam a famílias em que
Ela lembra: “Quando eu tinha uns doze anos, minha mãe, minhas irmãs e uma porção de
a prática musical e a mulher eram vistas de modo não tradicional ( Jorge João e Charlotte
amigos, éramos todos componentes do coro do Pastor Frank. Como nessa época eu já ia
eram filhos de Carlos Frank, o músico da Catedral).
muito bem no piano, eu acompanhava o coro ao piano ou ao órgão. Nos ensaios estavam
Foi na floricultura de Charlotte, entre 1935 e 1936, então ponto de encontro de mú-

142 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 143
quase todas as famílias da igreja, todas amigas nossas”. Eram reuniões “tanto culturais Essa igreja é um celeiro de músicos. Além do Pastor Frank, da Esther Graf e seus filhos
quanto sociais e afetivas”. Assim, foi sob a batuta do pastor/músico que fez parte ativa, Frank, Ulrike, Hans, Joachim, Christiano e Martina Graf, lembro de outras famílias
nos anos 40, das estreias brasileiras de partes de obras significativas do repertório musical musicistas, como as de Ludwig Seyer, Cora D’Bruns, Sibylle e Brigitte Rauscher,
(SERAPHIM, 2010a; 2010b). Renate e Anette Weichselbaum. Também a Betty, minha filha, musicista, historiadora e
Elsa Irene, sua irmã mais velha, também participava das atividades musicais daquela professora na Belas Artes, iniciou sua vida musical nessa Igreja. Os filhos do Pastor Valdir
igreja. Mais tarde graduada em Canto pela Escola Nacional de Música, no Rio de Ja- Steuernagel, o Marcell e o Márcio (que foi aluno de história da arte da Betty na Embap),
neiro, recorda com admiração as traduções feitas pelo Pastor Frank, especialmente a do assim como as filhas do Pastor Egon Lohmann e da Rúbia, a Martina e a Caroline, são
Réquiem de Brahms, pois, por causa da guerra, era proibido até cantar em alemão! Elsa todos excelentes músicos. (SERAPHIM, 2011a)
dedicar-se-ia ao repertório barroco e de câmara. Nos anos 1970, atuou como professora Esse relato permite perceber toda uma teia de relações sociais e afetivas, em meio à
da Embap e solista da Camerata Antiqua. prática da música no núcleo familiar. Fazia-se Hausmusik pelo prazer de conhecer novos
Sobre a prática da Hausmusik propriamente dita, Ingrid afirma: repertórios e de estar na companhia uns dos outros.
Fazíamos muita Hausmusik na casa da Tia Emma Jucksch, irmã do meu pai. A casa dela
era ao lado da Igreja. Nessa época, minhas irmãs e eu frequentávamos regularmente Os Morozowicz
esses encontros, assim como o Rudi [Rudolf ] Jucksch (violinista), filho da Tia Emma, A história da família Morozowicz no mundo artístico começa muito antes de ela chegar
o Henrique Hübert (violoncelista) e outros. Com o tempo, a filha do Pastor Frank, a ao Brasil. Henrique Morozowicz (avô paterno do compositor Henrique [de Curitiba]
Esther (pianista), e o Ludwig Seyer (filho) (violinista) passaram a participar conosco. Morozowicz), foi diretor de vários teatros poloneses e reconhecido escritor, dramaturgo
(SERAPHIM, 2011a) e tradutor de peças. Natália, sua esposa, neta de uma pianista russa, foi importante atriz
O maestro Ludwig Seyer (pai) regia as Orquestras do Clube Concórdia e da SCABI. dramática. Seu filho, Tadeusz Morozowicz, nascido em Varsóvia, chegou ao Brasil em
Em algumas ocasiões, Ingrid era convidada para participar de noites de música, na sua 1926 e radicou-se em Curitiba. Sua carreira já era sólida como coreógrafo e solista de
casa. Recorda de uma vez em que estavam lá o Dr. Poeck (químico e pianista austríaco) ballet, tendo realizado tournés nas mais importantes cidades do mundo. Foi responsável pela
e sua esposa (cantora), os violinistas Ludwig Seyer (filho) e Rudi Jucksch, a pianista e primeira escola de ballet do Paraná, segunda no Brasil, junto à Sociedade Thalia, em 1927.
flautista Esther Frank e o pianista e regente Alceo Bocchino. “Com o Dr. Poeck toquei Casou-se com a pianista Wanda Lachowski e com ela teve três filhos, todos dedicados à
muito a dois pianos, pois tínhamos três pianos na casa dos meus pais. Toquei também arte: Henrique, compositor; Norton, flautista e regente; e Milena, que seguiu os passos
em concertos com ele, principalmente Concertos de Bach. Um de nós fazia a parte do do pai no ballet ( JUSTUS; BONK, 2002, p. 25). A formação musical de Henrique tem
solista e o outro a redução da orquestra” (SERAPHIM, 2011b). relação íntima com o ballet de seu pai:
Ingrid estudou com o Pastor Frank até 1945. Em 1948 mudou-se para o Rio, onde Nasci e me criei em Curitiba (1934), filho de pais poloneses. Cidade considerada meio
estudou com Fontainha e Villa-Lobos. Ao retornar, em 1952, passou a dar aulas de piano europeia, cheia de polacos, ucranianos, alemães e italianos, além de outras minorias
na Escola de Música e Belas Artes do Paraná e, em 1954, casou-se com o engenheiro étnicas. A música era uma das atividades marcantes da cidade. […] Por ser um bom
Paulo Seraphim. A Hausmusik tornou-se uma constante na casa do casal, que recebia pianista acompanhador, treinamento que iniciei aos dez anos no Curso de Ballet de meu
familiares, amigos e convidados para fazer música. Também as filhas Elisabeth, Eliane e pai, conheci algumas canções brasileiras do repertório de cantores, inclusive de Bento
Astir participavam ativamente desses momentos. Mossurunga, uma espécie de Smetana paranaense. (MOROZOWICZ, 1995, p. 87-100)
Ela relata o seu envolvimento com o cravo e como ela própria organizava eventos em Henrique casou-se com Ulrike Graf. Sua filha, Carina, tornou-se oboísta. Norton
que havia a prática da música no núcleo familiar e afetivo. casou-se com Glacy Antunes, exímia pianista de Goiânia. Todos praticam a música em
Como sempre gostei muito de música barroca, principalmente de Bach, sempre me família, tanto por prazer quanto profissionalmente.
interessei pelo órgão e pelo cravo. Assim, no início da década de 1960, quando a Belas
Artes ganhou do Consulado Alemão o seu primeiro cravo, logo comecei a estudar cravo, a Os Garcez Duarte
organizar grupos de câmera com os meus alunos, minhas filhas Elisabeth e Eliane e outros Henriqueta Garcez Duarte e seu marido, o engenheiro Eduardo, mostram uma perfeita
instrumentistas. Quando meu marido comprou para mim um cravo, em finais da década simbiose entre uma exímia pianista, professora e organizadora cultural e um apaixonado
de 1960, procurei jovens músicos de Curitiba para refazer aquelas obras de Bach e Haydn, amante da música. A atuação do casal transcende a prática concertística e a docência
que cantei e toquei com o coro da Christus Kirche quando ainda era adolescente. Assim, desenvolvidas por ela, e chega à organização cultural, na qual ambos se envolveram. Entre
mais no espírito da Hausmusik – um encontro de amigos músicos para fazer música por as suas principais iniciativas estão a criação e administração da Sociedade Pró-Música
prazer – com ensaios aos sábados à tardinha, em minha casa, seguidos de um lanche em de Curitiba e a realização dos Festivais Internacionais de Música de Curitiba, ao lado do
que todos confraternizávamos, nasceu a Camerata Antiqua de Curitiba, que coordenei compositor e regente Padre José Penalva, que privava do convívio familiar do casal e do
por vinte e seis anos (de 1973 a 2001) e que continua ainda hoje. (SERAPHIM, 2011a) Maestro Schnorrenberg, de São Paulo. Trata-se de outra maneira de vivenciar a música
Sobre a prática da música familiar na Igreja Luterana, em Curitiba, observa: em família: a da realização conjunta de eventos que foram decisivos para a carreira de

144 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 145
inúmeros estudantes e que congraçaram músicos profissionais brasileiros e estrangeiros de Inglaterra, Espanha, Suíça e tantos outros” (EGG, 2011). Tudo isso, em meio à intensa
primeira linha. Durante as temporadas da Pró-Música e dos Festivais, instrumentistas e atividade musical no círculo familiar. Na casa dos Thomas-Novello, a prática da música
cantores vindos de todas as partes do mundo frequentemente se encontravam nas casas de era ininterrupta e não havia fronteiras quanto a quem era ou não da família, pois todos
músicos locais para uma descontraída experiência de Hausmusik, inclusive na casa do casal. ali, especialmente os alunos, eram considerados “filhos”.

Os Brandão Os Soboll - Martins


Em meados da década de 1940, eram frequentes as Noites de Arte, de iniciativa de Hildegard Soboll Martins e seu marido Gedeão, tiveram papel relevante no cenário
Diretórios Acadêmicos das Faculdades da Universidade do Paraná. Foi a partir deste musical curitibano. Ambos violinistas, regentes e professores, tinham a seu cargo, das
movimento de estudantes e da liderança de Hélio Brandão, que surgiu a Orquestra décadas de 1960 a 1980, ele a Orquestra Sinfônica da Universidade Federal do Paraná
Estudantil de Concertos, regida por Bento Mossurunga. Foi ali que Helio conheceu a e ela a Orquestra Juvenil da Universidade Federal do Paraná. O trabalho didático de
pianista Ophelia Ribas Moreira. Logo se casaram e tiveram sete filhos. Em um Concerto Hildegard frente à Orquestra Juvenil3 marcou toda uma geração de músicos, muitos dos
de Advento, na Igreja Presbiteriana, no início dos anos 70, apresentou-se o coral da família quais, membros das muitas famílias musicistas da cidade: Bettina e Thomas (filhos dos
Brandão, sob regência de Hildegard Soboll Martins. Foi geral o encantamento, dados o violinistas Rudi e Ruth Jucksch); Maria Esther, Maria Alice, Zélia, Eunice, Helinho,
refinamento expressivo e a afinação perfeita do grupo. Além disso, Renato e Maria Luiza (filhos dos músicos Helio e Ophelia Brandão); Elisabeth e Eliane
Todas as noites, no acolhedor salão da mansão da família Brandão, [...] o Dr. Hélio e a (filhas da cravista e pianista Ingrid Seraphim); Simone, Vanessa e Adriane (filhas da
esposa Ophelia criaram o hábito de, após o jantar, fazer música. Assim, seria natural que violista Edna Savitzky); Fernandinho (filho do violinista Fernando Thá); Maria Luiza,
as vocações florescessem e virtuoses aparecessem. Um hábito cultural cultivado no passado Péricles, Elgson, Claudia (filhos do músico e arquiteto Elgson Rodrigues Gomes) Felipe,
por várias famílias, especialmente de origem alemã – as tertúlias lítero-musicais – teve nos Alberto e Alexandre Klein (filhos do engenheiro Felipe Klein); e outros.
Brandão um encaminhamento voltado aos grandes mestres. (MILLARCH, 1991) Hildegard introduziu, ainda, o Método Suzuki em Curitiba, preparando toda uma
equipe para o ensino de violino, piano e flauta doce. Atualmente, a família Savitzky
Segundo depoimento de Eunice, em 1977, mais tarde tornou-se difícil fazer coinci-
continua este trabalho para cordas. Maria Helena Carollo, por sua vez, assumiu a parte
direm os horários de todos os membros da família para ensaiarem à noite. Assim, todos
referente ao piano. Das suas filhas, Helena Alice é violista, casada com Marcos Damm,
acordavam às 5 horas da manhã, mesmo no inverno mais rigoroso, para ensaiar. Dr.
violinista; Helena Bel integra o grupo de MBP O tao do trio.
Hélio, Maria Esther, Maria Luiza e Eunice tocavam violino, Zélia a flauta, Maria Alice
Dos novos núcleos familiares que continuam essa prática, são exemplos as famílias de
o violoncelo, D. Ophelia e Renato revezavam-se ao piano e Helinho tocava o contrabaixo.
Roberto e Alzira Hübner, Egon e Rúbia Lohmann, Alexandre e Catalina Klein, Marco e
Somente Renato não se dedicou profissionalmente à música. Os demais tornaram-se
Alice Helena Damm, Osmar e Salete Chiamulera e outros. Sua história recente, de uma
expoentes, principalmente em música barroca. Eunice deixou o violino e passou a estudar
forma ou outra, está vinculada às famílias citadas.
flauta doce e viola da gamba. Radicou-se na Suíça, onde fez carreira, tocando com os
mais renomados especialistas em execução de época. Incentivou suas irmãs e amigos a
A Hausmusik: dos modelos e da sua continuidade
estudar na Europa e organizou alguns Encontros de Música Antiga, o que teve grandes
São vários os modelos da prática musical no núcleo familiar observados nesses
consequências na execução de época no Brasil.
exemplos. Eles abrangem mais de um século da vida cultural e social da cidade, além
de se mostrarem extremamente importantes na vida privada e na pública, no lazer e na
Os Thomas-Novello
formação de novos músicos, no diletantismo e na profissionalização.
Neyde Thomas e Rio Novello, cantores líricos com vasta carreira na Europa e nos Esta-
Entre os padrões que se podem reconhecer estão
dos Unidos, radicaram-se em Curitiba graças ao convite feito por Ingrid Seraphim e Paulo
· os grupos que se pode chamar de autênticos, que reúnem familiares e amigos
Bosísio para ministrarem aulas na Oficina de Música de Curitiba, ainda na década de 1980
para momentos de laser musical (Menezes, Itiberê da Cunha, Frank-Graf, Müller-
(EGG, 2011). Logo o casal se mudou para Curitiba e fez da sua casa um local de ininterrupta
-Seraphim-Prosser, Jucksch, Seyer, Poeck e Brandão);
vivência e aprendizado do canto lírico. Dividia seu tempo entre a carreira artística nacional e
internacional, o magistério de técnica e aperfeiçoamento vocal em Curitiba e master-classes
em cidades do país e do exterior. Ela foi durante muitos anos professora da Escola de Música 3 Henrique Morozowicz [de Curitiba], Ingrid Müller Seraphim, Henriqueta Garcez Duarte, Padre José de
Almeida Penalva, Hildegard Soboll Martins e Neyde Thomas, tornaram-se os principais expoentes e líderes
e Belas Artes do Paraná e preparadora vocal das óperas do Teatro Guaíra e da Camerata do movimento musical erudito da segunda metade do século XX em Curitiba. Atuaram como concertistas,
Antiqua de Curitiba. Rio, por sua vez, continuaria sua carreira como tenor lírico. regentes, compositores e professores. Criaram e organizaram importantes eventos e instituições, como a
É imensurável a influência do casal no desenvolvimento do canto lírico nacional. Curi- Camerata Antiqua de Curitiba e as Oficinas de Música de Curitiba (Ingrid), os Cursos Internacionais de
Música, os Festivais Internacionais de Música do Paraná e a Sociedade Pró-Música de Curitiba (Henriqueta
tiba, sob sua liderança, tornou-se um grande polo do canto lírico brasileiro. Formariam e Penalva), a Orquestra Juvenil da Universidade Federal do Paraná e a introdução do Método Suzuki em
“um grande número de cantores de destaque, atraindo gente de todo o Brasil para estudar Curitiba (Hildegard), o Coro Pró-Música e o Madrigal Vocale (Penalva) entre outros. Estão entre os mais
na capital paranaense e emplacando alunos na vida musical em lugares como Alemanha, importantes professores da Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Nota-se, novamente, a importância da
Hausmusik, já que todos eles vinham da experiência da prática da música no núcleo familiar.

146 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 147
· os ligados a orquestras e grupos de câmara que participavam de cultos e missas Disponível em: <www.millarch.org/artigo/os-brandao-levam-sua-musica >. Acesso em:
nas igrejas da cidade e que incluíam o regente ou organista, sua família e famílias 31 mar. 2012.
das respectivas comunidades (as duas famílias Frank e seu círculo familiar e social);
MOROZOWICZ, Henrique [de Curitiba]. “Visões de meu passado musical, na pers-
· os que reuniam em suas casas os concertistas cuja vinda a Curitiba ajudavam
pectiva do presente”. Revista da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea, ano 2, n.
a organizar (Devraine-Frank, Müller-Seraphim e Garcez Duarte);
2, Goiânia, p. 87-100, 1995.
· os que resultaram na formação de grupos e eventos permanentes (Menezes,
Itiberê da Cunha, Soboll-Martins, Müller-Seraphim-Prosser, Garcez-Duarte); MURICY, Andrade. “Os 70 anos de Brasílio Itiberê”, Diário do Paraná, Curitiba, 29
· os que faziam com seus alunos um núcleo familiar expandido (Menezes, maio 1966, cad. 2, p. 5. In: RODERJAN, Roselys V. Meio século de Música em Curitiba.
Thomas-Novello). Curitiba: Centro Paranaense de Cultura, 1967.
O papel instrumental desempenhado pela Hausmusik como espaço da sociabilidade
NEVES, José Maria. Brasílio Itiberê, vida e obra. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba,
e da cultura na formação musical nas várias gerações é evidente, assim como as questões
1997.
identitárias que envolve, já que contribui tanto para a profissionalização e a colaboração
profissional dos sujeitos, quanto para o fortalecimento de laços afetivos e traços culturais NEVES, José Maria. Música contemporânea brasileira. São Paulo: Ricordi, 1981.
das comunidades e dos grupos que a praticam.
A prática da música no ambiente familiar, nos seus diferentes modelos, sempre esteve PROSSER, Elisabeth Seraphim. Cem anos de sociedade, arte e educação em Curitiba (1853-
presente na estruturação do cenário musical de Curitiba e contribuiu para o desenvolvi- 1953). Curitiba: Imprensa Oficial, 2004.
mento artístico e didático dos seus músicos. Ampliou a experiência musical e cultural de RODERJAN, Roselys V. “Aspectos da Música no Paraná”. In: História do Paraná, v. 3, p.
cada um, concorreu para a construção do seu conhecimento sobre música, possibilitou o 171-205. Curitiba: Grafipar, 1969, p. 177.
seu aprimoramento musical e ajudou a construir carreiras.
Quanto ao ensino, mostrou-se igualmente relevante, pois o aprendizado musical se RODERJAN, Roselys V. Meio século de Música em Curitiba. Curitiba: Centro Paranaense
dava informalmente. A troca de informações, gravações e de material como partituras de Cultura, 1967.
também contribuiu para uma efervescência cultural e possibilitou o surgimento de músicos, SAMPAIO, Marisa. Reminiscências musicais de Charlotte Frank. Curitiba: Lítero-Técnica,
compositores, pesquisadores e organizadores culturais de peso. 1984.
A Hausmusik oportuniza a difusão de bens culturais e provê estímulo informal ao fazer,
saber e criar música, relacionando-se à construção de identidades e à formação das novas SERAPHIM Ingrid Müller. Entrevista concedida a Josina Melo. Projeto Histórias de
gerações de profissionais da música. Trata-se de uma prática comum de cunho social, Funcionários - Um Resgate da Memória da FCC. Coord.: Josina Melo. Curitiba, mar. 2010a.
cultural e educativo, que não pertence apenas à tradição e à memória, mas continua como SERAPHIM Ingrid Müller. Entrevista concedida a Aparecida Vaz da Silva Bahls. Projeto:
prática comunitária, social e formativa. Música FCC, Fundação Cultural de Curitiba, Casa da Memória. Curitiba, 23 nov. 2010b.

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Kirche, Curitiba, maio 2011a.
AUGUSTIN, Kristina. Um Olhar Sobre a Música Antiga, cinquenta anos de história no
Brasil. Rio de Janeiro: Edição da Autora, 1999. SERAPHIM Ingrid Müller. Depoimento a Elisabeth Seraphim Prosser, 2011b.
BRANDÃO, Ângela. A fábrica de ilusão: o espetáculo nas máquinas num parque de diversões
e a modernização de Curitiba (1905-1913). Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 1994.
BRANDÃO, Hélio. História viva de um ideal: uma orquestra, uma família, um ideal.
Curitiba: O Autor, 1996.
EGG, André. “Curitiba chora a morte de Neyde Thomas”. 1 ago. 2011. Disponível em:
<http:// andreegg.opsblog.org/2011/08/01/curitiba-chora-a-morte-de-neyde-thomas>.
Acesso em: 1 abr. 2012.
JUSTUS, Liana Maria; BONK, Miriam. Henrique de Curitiba: Catálogo temático (1950-
2001). Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 2002.
MILLARCH, Aramis. “35 anos de jornalismo sob a ótica de Aramis. Os Brandão le-
vam sua música para os suíços”. O Estado do Paraná, Almanaque, Tabloide, 8 fev. 1991.

148 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 149
DIVERSIDADES ETNOMUSICAIS
Preservação da rabeca na Marujada de
Bragança, Amazônia, Pará: resultados
de uma interferência pública no
patrimônio cultural
Mavilda Aliverti
Universidade Federal do Pará

A rabeca é o instrumento responsável pelas melodias das danças na manifestação


popular centenária da Marujada em Bragança no nordeste do Pará. Percebendo que
tanto artesãos quanto rabequeiros que participavam da manifestação estavam em idade
avançada e não tinham aprendizes, o Instituto de Artes do Pará – IAP no período de
2004 e 2006, através de projeto patrocinado pela PETROBRÁS fez uma interferência
na Irmandade da Marujada de São Benedito de Bragança com o objetivo de preservar
esses ofícios. A interferência atuou diretamente sobre o ensino e aprendizado de tocar
e construir rabecas. Essa pesquisa teve como objetivo averiguar as consequências dessa
interferência e se justifica pelo registro dessas mudanças. Ao mesmo tempo, este trabalho
se propõe a servir de reflexão para auxiliar futuros projetos que tenham como objetivo
interferência em uma manifestação popular. A pesquisa realizada seguiu a metodologia
exploratória e descritiva, o que possibilitou descrever, explicitar e aprofundar ideias
acerca do objeto de estudo. Foi constatado que a interferência causou impactos leves na
manifestação popular, mas principalmente, teve um efeito expressivo na comunidade no
sentido de oportunizar mais pessoas ao estudo da música.

A Irmandade da Marujada de São Benedito de Bragança


Festividades de São Benedito são comuns no Brasil assim como também eram comuns,
no período colonial, a reunião de pessoas em irmandades com o objetivo de venerar
um determinado santo. As pessoas que se associavam em irmandades, naquele período
eram brancos, homens livres e escravos. Estes últimos motivados, principalmente, pela
necessidade de se organizarem na nova terra e de ter uma liderança como era costume em
seu país de origem. Qualquer outra forma de organização dos escravos que não fosse de
cunho religioso era severamente combatida pelo senhor branco, o que provocava ameaças
de revolta e constante fuga dos negros.
Assim, o Brasil conta com o registro de várias irmandades. Em Belém, no Pará, é de
9 de agosto de 1682 o registro da primeira irmandade de negros denominada Irmandade
de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, a segunda irmandade de negros do Brasil
depois do Rio de Janeiro cujo registro é de 1639.
Vicente Salles (2004) supõe que a Irmandade Nossa Senhora do Rosário dos Homens
Pretos em Belém tenha tido origem na Congada e descreve que era constituída por
Rei, Rainha e Príncipes. Todo ano era feita Coroação dentro da Igreja. Os brancos não

ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 153


aceitaram de bom grado ver seus escravos vestidos com suas roupas e trataram de coibir Outro fator que confirma a hipótese de adoção desse nome pela irmandade são
aquela situação e o Bispo Frei Dom Miguel de Bulhões, através da resolução de 6 de as vestimentas. Elas não lembram em nada roupas de marujos ou de qualquer coisa
maio de 1750, proibiu os folguedos alusivos ao Império no Pará. vinculada a essa atividade marítima. O que as marujas falam é que a sua roupa é uma
Mesmo assim, nos núcleos de colonização “desenvolveram associações religiosas em alusão as vestimentas usadas pelas escravas.
torno do culto aos santos católicos, as confrarias, em dois tipos principais: as Irmandades e De acordo com os bragantinos, a manifestação teve início a partir da intenção dos
as Ordens Terceiras” (NONATO DA SILVA, 2002, p. 8). A Irmandade de São Benedicto de escravos em agradecer aos senhores a permissão dada para louvarem São Benedito e,
Bragança foi criada em 03 de setembro 1798 (data do primeiro compromisso1) em Bragança, paralelamente, a permissão para que pudessem antecipar de uma irmandade religiosa.
no nordeste do Estado do Pará através da iniciativa de quatorze escravos que residiam na As atividades dessa irmandade, desde seu início, não envolveram coroação de rei
cidade. Apesar de não haver nenhum documento comprovando esta informação, o estatuto negro. A figura do rei foi substituída pela figura da capitoa (essa denominação pode ter
de 1985 liga a manifestação da Marujada de Bragança ao início da irmandade. ocorrido mais a frente, quando foi adotado o nome Marujada) e a corte por mordomos
A Marujada de Bragança possui características bem diferentes de outras manifestações e mordomas, deixando explícito o caráter de servidão de seus integrantes.
com o mesmo nome que acontecem no Brasil. Ela se constitui de danças e não tem Atualmente, as comemorações a São Benedito em Bragança duram oito meses,
nada a ver com autos encenados. Bordallo da Silva a descreve da seguinte maneira: sendo constituída em três etapas, motivo pelo qual Armando Bordallo da Silva (1981) a
“Nem uma só palavra é articulada, falada ou cantada, como auto ou como argumentação” descreve como Ciclo de São Benedito.
(BORDALLO DA SILVA, 1981, p. 66).
Quanto ao nome, marujada, não há registros históricos de quando e nem porquê
essa manifestação popular de Bragança o adotou. Esse nome só aparece em documento
oficial em 1946 sendo provável que apenas tenha vindo regulamentar uma prática
existente há muito tempo.
O historiador bragantino Dário Benedito Nonato da Silva sugere que esse nome seja
herança trazida pelos escravos que chegaram à região vindos do Nordeste de quem os
escravos residentes em Bragança teriam ouvido falar sobre os “ritos e autos dramatizados
que se originaram nas águas, mesmo que [a manifestação que acontecia em Bragança]
em nada se assemelhasse ao auto marítimo existente em todo o Brasil com o nome
Chegança de marujos, nem lembrasse as tragédias da Nau Catarineta...” (NONATO
DA SILVA 2002, f. 14).

Fig. 2. Esmoleiros rezando a ladainha.

O ciclo inicia com a esmolação e dura oito meses (de abril a dezembro). Nesse período,
três comitivas formadas por 10 homens saem a pé de Bragança e andam pelo município,
chegando até o Maranhão, cantando folias, rezando ladainhas e arrecadando doações
para o santo nas casas de fiéis previamente agendados. A festa religiosa em si tem início
dia 18 de dezembro e encerra dia 26 com a procissão ao santo. A terceira etapa acontece
no dia primeiro de janeiro quando ocorre a posse dos novos juízes d festividade. No bojo
desses três momentos, além das folias e ladainhas acontecem missas, a procissão de São
Benedito dia 26 de dezembro, cavalhada,2 a louvação dos marujos através das danças da
Fig. 1. Vestimentas das Marujas e Marujo. Marujada, shows de música popular e quermesse. Todo esse longo ciclo é acompanhado

1Compromisso é o equivalente hoje ao estatuto de uma irmandade ou associação. 2 Cavalhada: torneio eqüestre com disputa de dois times.

154 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 155
por música. Entretanto, dentro das atividades de dança da Marujada é que está inserida O grupo instrumental que toca para a Marujada dançar e a acompanha nos cortejos
a rabeca, instrumento alvo desta pesquisa. é chamado de Regional da Marujada Os músicos não são marujos e nem fazem parte da
A principal atividade da irmandade hoje está ligada às danças, que são denominadas irmandade, com exceção do pandeirista, algumas vezes5. São contratados pelo presidente
de “parte cultural” 3 da festa. As danças tradicionais da Marujada são exclusivamente todos os anos durante o período da festividade de São Benedito e quando a Marujada é
instrumentais e executadas por um grupo de músicos que são contratados para tocar a requisitada para fazer alguma apresentação extra.
rabeca, o banjo, o tambor e o pandeiro. Esse grupo é chamado de Regional da Marujada. A importância da rabeca na manifestação se reflete também na hora do pagamento
dos músicos. O rabequeiro é quem ganha mais. Depois dele vem o banjoísta. Aos
A rabeca na Marujada percussionistas é destinada apenas uma “gratificação”.
Não se sabe exatamente quando e nem como as danças que, originalmente eram Não existe nenhum registro oficial que informe exatamente como a rabeca chegou à
e ainda são uma reverência aos senhores, passaram a ser também uma louvação a São região bragantina e nem como passou a fazer parte da Marujada. Por outro lado, marujos
Benedito. Esse acréscimo de intenções pode ter acontecido com o passar do tempo mais antigos afirmam que a rabeca está presente na manifestação desde o seu início.
ou também pode ser que o agradecimento aos senhores, como dizem, tenha sido uma
estratégia dos escravos para terem permissão de tocar seus tambores e executarem suas A interferência
danças. Levanta-se essa hipótese, porque é possível, que em seu início, as danças tenham Em 2004, o Instituto de Artes do Pará – IAP - realizou em Bragança um projeto patro-
sido acompanhadas apenas por tambores e que com o tempo e a presença dos brancos cinado pela PETROBRAS intitulado Tocando a memória: rabeca, cujo objetivo foi resgatar
fazendo parte da irmandade, tenham sido introduzidos outros instrumentos até chegar a arte de construir e tocar rabecas naquela região. O projeto foi justificado pela ausência
à formação conhecida hoje: rabeca, banjo, tambor e pandeiro. de aprendizes, tanto de tocadores quanto de artesãos de rabeca na região, e essa situação
As músicas na Marujada não são cantadas4 As melodias são executadas pela rabe- suscitou preocupação por parte da instituição, por uma provável extinção desses ofícios
ca, apoiada harmonicamente pelo banjo e ritmicamente pelo tambor e pelo pandeiro. em Bragança e consequentemente uma possível ameaça à manifestação da Marujada.
Entretanto, nem os instrumentos e nem as músicas são mencionados em qualquer dos A intervenção foi realizada em princípio, por meio de oficinas de construir e tocar
documentos que regulamentam a irmandade. rabecas com instrutores da comunidade, seguida pela elaboração de inventário editado
pelo IAP com o mesmo nome do projeto. Esse livro tem como conteúdo a origem da
cidade de Bragança, da festa de São Benedito, a presença da rabeca na manifestação,
os passos da construção da rabeca e procedimentos e resultados da Oficina de Tocar
Rabeca. Acompanha o livro um caderno de partituras com a transcrição da Marujada e
um DVD que pretendia realizar em imagens os passos do inventário, mas acabou tendo
uma direção mais artística.
A oficina de construção da rabeca foi entregue à responsabilidade do artesão mais
antigo e, na época, também um dos músicos do regional da Marujada. A metodologia
sugerida pela coordenação das oficinas foi a imitação, visando a preservação da tradição
oral de ensino e aprendizado. Dessa maneira, o artesão confeccionaria um instrumento
e os aprendizes, a partir da observação, tentariam fazer igual. Essa oficina teve um apro-
veitamento aquém das expectativas. Dos dez inscritos, apenas um conseguiu concluir o
instrumento. Isso porque o rapaz tinha experiência com marcenaria e sabia trabalhar com
madeira. Os demais não conseguiram montar seu instrumento.
Em seguida ocorreu a Oficina de Tocar Rabeca que foi entregue ao tocador oficial
da Marujada. Essa oficina iniciou da mesma foram que a anterior: o tocador tocava e os
Fig. 3. Regional da Marujada. aprendizes tentavam imitá-lo. Passado alguns dias de seu início, os alunos foram até o
presidente da Marujada se queixar de que Seu Zito não estava conseguindo “ensinar”. O
que acontecia é que cada vez que o rabequeiro repetia um trecho do Retumbão para os
3 “Parte cultural” foi a denominação dada pela igreja por toda atividade da irmandade que não fosse ligada aos alunos tocarem, ele o fazia de forma diferente e os alunos não conseguiam acompanhar.
ofícios religiosos. Em 1986, a igreja conseguiu retirar da Irmandade da Marujada de São Benedito a organização
A solução encontrada para resolver a situação foi a de procurar um professor de música
da festa religiosa, assim como todos os seus bens como a Igreja de São Benedito, a organização das esmolações
e da procissão. A irmandade a partir dessa data ficou apenas com a coordenação da cavalhada e de seus que pudesse auxiliar o mestre rabequeiro a transmitir seus conhecimentos e maneira de
momentos de louvação através de suas danças.
4 O repertório musical da Marujada não tem nada a ver com a esmolação ou com os cantos católicos
executados nos ofícios da igreja. Danças, esmolação e ofício são atividades distintas da qual a irmandade 5 O pandeirista pode ser marujo caso o presidente não tenha conseguido contratar um percussionista. Nesse
participa. caso ele não recebe o pagamento.

156 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 157
tocar para os alunos. Naquela época estava residindo em Bragança um professor, músico
da Polícia Militar de Belém, que em 2000 fora cedido para o quartel da Polícia Militar
de Bragança para desenvolver atividades socioculturais com a comunidade evangélica
daquela cidade. O presidente da Irmandade de São Benedito e o coordenador das oficinas
entraram em contato com ele para que participasse da oficina.
O professor foi orientado no sentido de não interferir na posição dos alunos de segurar
o violino assim como o arco. O mestre tocador oficial da Marujada deveria estar presente
em todas as aulas e tocar para os alunos. Por sua vez, estes deveriam tentar imitá-lo e
no final da oficina, os alunos deveriam, tocar o Retumbão6 e o Xote Bragantino. Para
poder cumprir o prazo e as metas estipuladas para a oficina, o professor precisou criar
uma partitura numérica que auxiliasse os alunos a memorizar a dedilhação da melodia
no braço do instrumento. O outro recurso que precisou usar foi um afinador eletrônico
para afinar as rabecas dos alunos na mesma altura da rabeca do mestre rabequeiro.
A Oficina de Tocar Rabeca conseguiu alcançar êxito, e todos os alunos inscritos
conseguiram alcançar as metas traçadas.

Consequências da interferência
É importante destacar que, em nenhum momento, na comunidade da Marujada de
Bragança, foi observado algum tipo de rejeição às ideias propostas pelo IAP e nem na Fig. 4. Rabequeiro afinando o instrumento.
forma como elas foram aplicadas. Ao contrário, foi uma ação bem-vinda e isso aconteceu
principalmente pela forma como o projeto chegou até a mesma, através de uma pessoa Devido à formação musical de um dos novos rabequeiros antes de participar da
da própria comunidade que trabalhava no Instituto de Artes do Pará. oficina de Tocar Rabeca do IAP,7 hoje, desempenhando a função de professor de rabeca,
Em 2009 foi constatado, durante as pesquisas de campo deste trabalho, que a vem conduzindo os novos aprendizes a segurar o violino e o arco de maneira quase
utilização da metodologias de ensino e aprendizado adaptado à tradição oral propiciou erudita, isto é, o corpo do instrumento mais perpendicular ao corpo e a mão direita por
a continuidade do ensino e aprendizado de tocar e construir rabeca em Bragança. cima da castanha do arco.
Constatou-se também que é possível formar um rabequeiro que vá atuar na Marujada A medida que o trabalho tornava-se mais elaborado, as pessoas da própria comunidade
sem o aprendizado caseiro, familiar e cotidiano do instrumento próprio da tradição sentiam necessidade de criar associações (isso levou a divisão do grupo). Essas associações
oral. A convivência com os mestres rabequeiros irá propiciar a especialização do futuro tiveram como objetivo dar continuidade ao ensino e aprendizado de construir e de tocar
tocador. rabeca. Ambas procuraram manter o modelo de oficinas implementado pelo IAP.
A oficina de Tocar rabeca também possibilitou a formação de grupos artísticos com
a presença da rabeca. A partir da criação desses grupos a rabeca ganhou nova projeção
na sociedade bragantina para além das fronteiras da manifestação. O grupo, assim como
os novos rabequeiros, passaram a ser requisitados para se apresentarem em locais como
praças públicas durante eventos da prefeitura ou de outro órgão ou instituição local,
tocar em casamentos, missas, em hotéis etc.
O desenvolvimento das atividades musicais com o grupo de rabeca gerou outra
necessidade que foi a introdução da leitura musical. Assim, a partitura numérica introduzida
pelo durante a oficina do IAP foi substituída pela partitura convencional e isso levou a
necessidade de planejar aulas mais estruturadas com conteúdo musical. Entretanto, os novos
rabequeiros que estão atuando na Marujada, aprenderam tirar músicas de ouvido. Essa
habilidade é indispensável para a apreensão do repertório musical dos rabequeiros antigos.
A afinação do instrumento através de aparelhos eletrônicos foi incorporada pelos
novos rabequeiros. Entretanto, por causa da prática cotidiana, eles já conseguem afinar
seus instrumentos sem esse recurso. Fig. 5. Rabeca de cedro construída por Josias.

6 Retumbão, lundu de autoria desconhecida, tradicional da Marujada. 7 Quando foi participar da oficina de tocar rabeca do IAP, ele estudava violino.

158 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 159
Atualmente a arte de construir rabecas em Bragança vem utilizando instrumentos A partir da observação do keiser de um violino de fábrica, os artesãos passaram a
de precisão como paquímetros e trenas além de ferramentas eletrônicas como torno e construir caixas equivalentes para as rabecas, esculpidas no isopor, forradas externamente
lixadeira elétrica. Com as novas ferramentas, estudo da estrutura de violinos de fábrica com napa e internamente com feltro, fechadas por zíper.
e a descoberta de vídeos de luteria italiana na internet, as rabecas bragantinas já estão
alcançando a afinação padrão do violino italiano. Hoje os artesãos de rabeca em Bragança
além de estar utilizando algumas técnicas de construção de luteria, como dobrar as laterais
usando uma estrutura de metal e fogo, estão construindo o instrumento usando as mesmas
proporções dos violinos italianos e também experimentando novas formas no instrumento.
Antes do IAP realizar as oficinas, um dos artesãos antigos percebeu o mecanismo
de estiramento e afrouxamento da crina em um arco de fábrica. Resolveu construir os
arcos das rabecas usando o mesmo mecanismo. Então, adaptou uma porca soldada a um
pequeno parafuso que inserida dentro do arco recebia um puxador de gaveta moldado
nas dimensões do arco e que reproduzia o afrouxamento e estiramento da crina. Esse
mecanismo está sendo usado pelos novos artesãos que procuram dar ao instrumento um
acabamento bem próximo aos violinos de fábrica.

Fig. 8. Rabeca em um keiser construídos pelo artesão formado na oficina do IAP.

Os novos artesãos também criaram uma prensa que reduziu bastante o tempo de
colagem dos tampos das rabecas, aumentando, dessa, forma a produtividade. Assim,
durante as oficinas, é possível colar todos os instrumentos em dois ou três dias.
A projeção sonora acústica dos instrumentos ainda é um assunto que não foi
pensado pelos novos artesãos. Esse problema vem sendo resolvido, até agora, através
da amplificação eletrônica principalmente por causa do aumento de pessoas (turistas
e devotos) que vão assistir as atividades da Marujada durante a festa de São Benedito.
Por conta disso, desde 2004 houve a necessidade de amplificar o som da rabeca, pois
os marujos estavam reclamando que não conseguiam ouvir as melodias para dançar. A
Fig. 6. Mecanismo de estiramento e afrouxamento da crina. formação de grupos artísticos com atuação em eventos externos também contribuiu para
a amplificação da rabeca, assim como também de todos os instrumentos que fazem parte
A crina vegetal é retirada de uma planta conhecida na região por manilha. A fibra do grupo. Hoje é difícil ouvir a rabeca sem amplificação.
é extraída após um processo de molho de alguns dias, maceração, limpeza do resíduo Observando a necessidade de ampliação do som da rabeca, um dos novos artesãos
orgânico e secagem. começou a inserir em seus instrumentos, captadores de som para cabo P-10 (mais
conhecido como cabo banana-banana).

Fig. 7. Crina vegetal.


Fig. 9. Rabeca Com adaptação para cabo P-10.

160 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 161
Como uma forma de manter a tradição do regional tocar acusticamente, a irmandade instrumento, que fez com que imaginassem que os mestres, sem experiência de ensinar
ainda mantém os cortejos para os almoços e os cortejos da igreja para o museu sem outras pessoas e com alunos que não tinham conhecimento do manuseio de ferramentas,
amplificação. de trabalhar com madeira e sem vivência alguma em música, em um mês poderiam ser
Os novos espaços de aprendizado de música abertos em Bragança, por sua vez, capazes de executar a tarefa programada.
passaram a incentivar o aprendizado de outros instrumentos como flauta doce, saxofone, Por outro lado, todas as dificuldades elencadas acima não alcançaram o único aprendiz
clarinete, trompete, etc. que concluiu a oficina do IAP. Por que? Seu pai era marceneiro. Ele cresceu em uma
marcenaria. Aprendeu em casa a fazer alguns serviços com madeira e a utilizar algumas
Discussão e conclusão ferramentas. Ele levava as peças para trabalhar em casa com as ferramentas elétricas da
A primeira ideia dos coordenadores das oficinas do IAP foi realizá-las por meio oficina do pai e isso acelerava o processo da construção de seu “violino”. Todos esses
do método da imitação. A imitação é, segundo Merriam (1964, p. 146), a forma “mais requisitos o fizeram apto a responder a metodologia proposta pelo IAP, enquanto os
simples e indiferenciada de aprendizagem”,8 então, por que não deu certo? outros enfrentaram mais dificuldades. Isso não quer dizer que os demais não pudessem
A aprendizagem por imitação como bem descreveu Merriam é o processo mais conseguir, porém precisariam ser orientados de outra forma, mas a situação ilustra o que
simples, mas parece requerer um ambiente informal e está diretamente relacionada a um Gomes (2003, p.  26) afirma quando fala que a aprendizagem informal “depende das
aprendizado de convivência e a um determinado contexto. Sobre isso, Gomes (1999), oportunidades vividas no meio de pessoas”.
tratando sobre a formação musical de músicos que atuam nas ruas de Porto Alegre Essa reflexão aponta para outro fator que pode ter contribuído para o insucesso da
constatou que aplicação da metodologia inicial: o deslocamento do processo de convivência social ou
o meio de convivência dos músicos, desde criança até de casa para a escola.
a vida adulta, foi fator primordial para o aprendizado J. Vancina (1982, p. 158) define a tradição oral como “um testemunho transmitido
e desenvolvimento de suas habilidades musicais [...]. verbalmente de uma geração para outra”. Geralmente essa transmissão é feita no
Uma formação que, apesar de dizerem ser individual ambiente familiar ou em qualquer outro que não seja o de família, mas que tenha
e sem professor (“eu aprendi sozinho”), aparece ligada caráter de ligação coletiva. Em outras palavras, a transmissão é feita entre pessoas que
à convivência social, às oportunidades e às motivações compartilham um mesmo ambiente e geralmente o aprendiz já possui certa intimidade
encontradas em seu meio (GOMES, 1999, p. 39). com o que está aprendendo por meio da observação.
Prass (1999) tratando sobre os mestres de bateria de uma escola de samba, na
Pessoas reconhecidas por uma sociedade como detentoras de saberes específicos são cidade de Porto Alegre, reproduz a fala deste que dizia que não estava ali para ensinar,
tratadas como mestres e “são referencias vivas. Possuem histórias de vidas de tradição e continua o raciocínio: “quem ensina é a vivência socializadora na quadra, desde a
oral fascinantes e a habilidade de ensinar ofícios e formar seres humanos melhores, com infância, interagindo com a música e dança, com o mundo do samba e do carnaval.”
referências ao passado e a sua ancestralidade” (CASTRO et al., s. d., p. 2). Quando o (PRASS, 1999, p. 12) Continua a autora, comentando sobre o “estudo” do instrumento
IAP decidiu realizar o projeto na cidade, os mestres artesãos não tinham aprendizes há ser realizado apenas na quadra da escola, diferentemente do estudo formal de música
muito tempo. onde o aluno treina sozinho.
A intenção do IAP foi reproduzir nas oficinas a relação de mestre/aprendiz comum É na quadra da escola, porque nela estão os outros
na tradição oral. Algumas coisas podem ter contribuído para não ter dado certo a ritmistas, e é nas trocas, na observação do outro, que se
metodologia inicial. Na Oficina de Construir Rabeca, uma das causas pode ter sido aprende. A escola de samba, enquanto cenário coletivo,
a falta de experiência dos alunos com a marcenaria. Para poderem realizar as tarefas exige um forte envolvimento do aprendente, já que
com sucesso, os alunos precisariam de orientação, além da observação, pois esta não foi raramente ele vai ter momentos de atenção exclusiva
suficiente para eles cumprirem o cronograma. Outro fator que pode ser atribuído a esse para resolução de dificuldades específicas. A atenção do
resultado foi a falta de experiência dos próprios mestres construtores em ensinar o ofício. ritmista é, portanto, redobrada, porque suas batidas se
Essa mesma inexperiência pode ter dificultado a organização da oficina com preparativos refletem na execução coletiva (PRASS, 1999, p. 13).
necessários para facilitar a condução dos passos da construção do instrumento.
Em relação a oficina iniciada pelo mestre rabequeiro oficial da Marujada, pode-se Toda essa situação chama atenção para o contexto onde se realiza o aprendizado
atribuir as mesmas dificuldades: a falta de experiência do mestre com aprendizes e, por meio da tradição oral. Como foi descrito anteriormente, cada atividade dentro
por outro lado, a falta de vivência dos candidatos com a música e com o instrumento. dessas manifestações tradicionais tem um contexto específico onde ocorre naturalmente
Outro fator que pode ter colaborado com o insucesso da proposta inicial foi a própria a integração entre as pessoas e por meio disso, o aprendizado. No caso acima citado
inexperiência dos coordenadores do IAP sobre o processo de construção e ensino do da escola de samba, a vivência com a música e dança acontecia na própria escola. Em
Bragança, tanto artesãos quanto rabequeiros eram iniciados em suas artes no seio da
8 Perhaps the simplest and most undifferentiated form of music learning occurs through imitation. família.

162 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 163
Isso suscita reflexões mais profundas que fogem o âmbito deste trabalho, mas é Bragança (ensino, aprendizado e construção) passam pela decisão dos próprios
interessante observar que na tentativa de adaptar a tradição oral à metodologia formal indivíduos que fazem essa prática, através de suas necessidades e anseios. Sobre isso
em Bragança, houve a necessidade de ser criada a figura do intermediário ou facilitador Blacking (1986) afirma que
entre o mestre e os aprendizes. Uma pessoa que pudesse tratar os conteúdos da sabedoria as mudanças são resultado de decisões feitas por indivíduos sobre o fazer musical ou a
popular didaticamente, mantendo a presença do mestre no convívio dos alunos. Como prática social e cultural, com bases em suas experiências de vida musical e social e suas
a Oficina de Construir Rabeca já tinha sido concluída, a figura do facilitador foi atitudes em diferentes contextos sociais. (BLACKING, 1986 p. 3)
introduzida apenas na Oficina de Tocar Rabeca com o professor Abiezer.
Através desta pesquisa, ficou evidente a importância de ações de apoio às
A aprendizagem musical é um processo de socialização em vários níveis,
manifestações populares tradicionais do país, assim como a necessidade de projetos
principalmente nos processos de transmissão oral da música de uma cultura. A educação
que investiguem as ações e impactos dessas interferências, com o objetivo de avaliar
“pode ser definida como o processo dirigido de aprendizagem, tanto formal quanto
o alcance dessas ações. Isso é importante na medida em que se pretende alcançar cada
informal, realizado, em sua maior parte durante a infância e adolescência – que prepara o
vez mais êxito com os objetivos dessas ações, além de ser um cuidado que se deve ter no
indivíduo para ocupar seu lugar como um membro adulto da sociedade”9 (MERRIAM
sentido de zelo e respeito com a comunidade.
1964, p. 146). Nessa especificidade, por exemplo, está o aprendizado informal de uma
Como contribuição a futuros projetos com esse objetivo, enfatiza-se a participação
atividade (ou mesmo um instrumento) com um membro da família. E finalmente a
da comunidade na elaboração e execução dos mesmos, assim como nas áreas de atuação
escolarização que diz respeito a aprendizagem em horário, local e período específicos
da interferência, para assessorar na formatação das ações e garantir que estas estejam
com pessoas treinadas para aquela atividade específica.
de acordo com o anseio da comunidade. Da mesma forma, é importante que o órgão
A mudança é um fenômeno inerente ao ser humano, isso quer dizer que com ou sem
responsável pelo projeto esteja disposto a modificar e readaptar suas ações de acordo com
a presença da intervenção do IAP na manifestação da Marujada através das rabecas,
as necessidades da comunidade e até mesmo modificá-las, no decorrer da interferência,
algumas das mudanças apresentadas nesta pesquisa iriam acontecer. Childe (1986),
se for o caso.
abordando a evolução do homem, afirma que ajustes culturais provêm, muitas vezes, de
adaptações ao ambiente onde as pessoas vivem. Essa adaptação pode ser física, vinculada
Referências
ao ambiente (clima, solo, vegetação, etc.), e pode ser cultural (costumes, tradições, leis,
crenças religiosas, etc.). Entretanto, tanto as modificações culturais quanto à evolução BLACKING, John. “Identifying processes of musical change”. The World of Music, v.
do homem estão ligados à adaptação ao meio ambiente. Isso tem influência direta na 28, nº1, p. 3-15, 1986.
transmissão das tradições, visto que a herança social não é algo que seja transmitido BORDALLO DA SILVA, Armando. Contribuição ao Estudo do Folclore Amazônico na
geneticamente, mas a partir de ensinamentos que são adquiridos desde o nascimento. Zona Bragantina. 2ª ed. Belém: Falângola, 1981.
Sendo assim, “as modificações na cultura e tradição podem ser iniciadas, controladas ou
retardadas pela escolha consciente e deliberada de seus autores e executores humanos” CHILDE, Gordon. A evolução cultural do homem. Trad. Waltensir Dutra. 5ª ed. Rio
(CHILDE, 1986, p. 33). de Janeiro: Zahar, 1986.
Apesar disso, a interferência institucional acelerou e direcionou um processo de GOMES, Celso Henrique Sousa. “Formação e atuação de músicos das ruas de Porto
mudança que poderia ter acontecido de outra forma. As oficinas de tocar e construir Alegre: um estudo a partir dos relatos de vida”. Revista Em pauta, v. 14/15, novembro/98-
rabeca introduziram um novo processo de ensino e aprendizado dessas duas atividades -abril/99. Porto Alegre, 1999.
que antes eram realizadas unicamente através da tradição oral. De lá para cá, aprender
rabeca em Bragança ficou mais acessível por causa das escolas, mas o candidato deverá HERSKOVITS, Melville J. Man and His Works. Tomos I e II. 4ª ed. em português,
passar por um processo de aprendizado diferenciado da tradição oral, com metodologia traduzido da 8ª ed. em inglês por Maria José de Carvalho e Hélio Bichels. São Paulo:
mais acadêmica e estudo da linguagem musical ocidental. Editora Mestre Jou, 1974.
Em relação ao aprendizado dentro de uma sociedade Herskovits (1974) afirma MERRIAM, Alan P. The Anthropology of Music. Evanston: Northwestern University
que ele é o cerne da questão que levam a mudanças culturais em um processo que ele Press, 1964.
denomina de endoculturativos, isto é, um processo que inicia na infância e continua por
toda a vida. Em se tratando de cultura popular, o processo endoculturativo está mais NETLL, Bruno. The Study of Ethnomusicology: Thirty-one Issues and Concepts. New
próximo da tradição oral e do convívio familiar. Entretanto, essa prática já deixara de Edition. Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 2005.
acontecer em Bragança há algum tempo e foi o que levou à intervenção do IAP.
NONATO DA SILVA, Dário Benedito Rodrigues. A essência beneditina: escravidão e fé
É importante enfatizar que as mudanças que estão ocorrendo com a rabeca em
na Irmandade de São Benedito de Bragança, do século XVIII ao XIX. 2002. 77 f. Monografia
9Education - which may be defined as the directed learning process, both formally and informally carried out, for de conclusão de curso de graduação. Universidade Federal do Pará. Campus Universitário
the most part during childhood and adolescence - which equips the individual to take his place as an adult member of de Bragança. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Bragança/Pa. 2002.
society.

164 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 165
Patrimônio imaterial no
cavalo-marinho de Pernambuco
Paulo Henrique Lopes de Alcântara
Universidade Federal da Paraíba

O cavalo-marinho é um patrimônio cultural característico da zona da mata norte de


Pernambuco que mescla música, dança e poesia, associado a um conteúdo dramático,
cultivado predominantemente por cortadores de cana-de-açúcar que se julgam portadores
de uma tradição transmitida ao longo de gerações. Essa manifestação da cultura popular,
entretanto, encontra-se atualmente em um processo de registro, documentação e patrimo-
nialização, a fim de receber o título de Patrimônio Imaterial, a partir das predisposições do
Decreto-Lei 3.551/00 que instituiu no Brasil o “Registro de Bens Culturais de Natureza
Imaterial”. O objetivo deste artigo é acompanhar a evolução das concepções das políticas
de patrimônio cultural de uma abordagem monumentalista para uma perspectiva mais
antropológica, e encontrar suas consequências no processo de patrimonialização do
cavalo-marinho de Pernambuco.
Quando falamos em patrimônio cultural, estamos nos referindo a uma riqueza produ-
zida no passado e herdada pelo presente, digna de preservação para as gerações posteriores.
Esse patrimônio, entretanto, não é algo dado, uma simples herança a ser transmitida. Ela
é uma produção histórica, fruto das relações e negociações entre diversos grupos sociais. A
princípio, essa preservação se limitava a monumentos e objetos depositários da memória
coletiva. Porém, as alterações sofridas pelas acepções do conceito de cultura e patrimônio,
no campo das ciências humanas, contribuíram para a redefinição e ampliação do rol de
bens a serem protegidos através do que, atualmente, chamamos de patrimônio imaterial.

Por uma pluralidade do Patrimônio Cultural da Humanidade


A noção de patrimônio cultural instala-se na Europa nacionalista de fins do século
XVIII e início do século XIX associada ao conceito de nação, através da escolha e proteção
governamental de objetos e monumentos representantes das origens étnicas e identitá-
rias de cada Estado europeu. Evidentemente a ideia de patrimônio não é uma invenção
moderna. Ela esteve presente no mundo Clássico e na Idade Média, sendo que a “moder-
nidade ocidental lhe impôs os seus contornos semânticos específicos” (GONÇALVES,
2003, p. 22). Essa visão monumentalista do patrimônio acabou por associá-la à ideia de
imutabilidade, centrando a atenção mais no objeto do que nos significados que lhe são
atribuídos ao longo do tempo. A Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura (UNESCO) e outros órgãos internacionais assumiram inicialmente
essa linha que valorizava os “grandes monumentos europeus” em detrimento das culturas
não-europeias ditas “tradicionais”. O eurocentrismo desses órgãos internacionais passou a
ser duramente criticado pelos países e grupos de tradição não-europeia, que passam a lutar
pelo reconhecimento de sua cultura como patrimônio cultural da humanidade. A fim de
atender a essas reivindicações, e se adequar à revisão epistemológica do conceito de bens

ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 167


culturais promovida pelas ciências humanas, que passaram a encarar esse patrimônio mais cênico do cavalo-marinho gira em torno da figura do Capitão, que cede seu “terreiro” para a
do ponto de vista humano e simbólico do que materialista, a UNESCO passou a adotar realização de um baile em homenagem a Santo Reis do Oriente. Para tomar conta da festa,
o conceito de “patrimônio imaterial” para incluir práticas, celebrações, crenças e saberes o Capitão contrata os escravos negros Mateus e Sebastião (também chamados de Mateu e
nas políticas preservacionistas, substituindo a concepção meramente monumentalista Bastião), que de maneira cômica recebem ao longo da noite uma sucessão de figuras que se
por uma concepção mais antropológica.1 Essa transição, todavia, não ocorreu de maneira dirigem ao Capitão para tratar de assuntos profissionais, falar de suas respectivas histórias
imediata, pois a forma de tratamento manteve-se distinta, uma vez que de vida, ou apenas para se apresentar e sambar no terreiro. O conteúdo cênico culmina com
durante muito tempo, o estudo e a salvaguarda das formas de patrimônio cultural a aparição, morte e ressurreição do Boi, última figura a entrar na roda.
normalmente denominadas “imateriais”, em particular aquelas ligadas à vida cotidiana Além dos diálogos das figuras, o conjunto textual do cavalo-marinho é constituído por
e às culturas populares, eram vistas como primos pobres das políticas de conservação do monólogos poéticos conhecidos como loas (louvações), que, segundo Mário de Andrade (1982,
patrimônio, se comparadas com os meios e esforços consagrados às obras de arte e aos p. 30), “fazem hoje parte desengonçada de várias danças dramáticas”,3 cujos conteúdos nem
monumentos. (LÉVI-STRAUSS, 2001, p. 23) sempre se apresentam coerentes com o contexto dramático, e onde a clareza das ideias ocupa
posição secundária em relação às possibilidades de sonorização das palavras declamadas.
O mesmo autor citado afirma que essa distinção de tratamento é consequência do
As danças do cavalo-marinho apresentam grande ênfase na unidade inferior do corpo,
“predomínio longamente confirmado em nossa cultura do escrito sobre o oral, da arte
através de movimentos rápidos e precisos. Suas variações são múltiplas, mas sempre enfati-
erudita sobre a arte popular, do histórico sobre o cotidiano, do aristocrático e do religioso
zam a pisada no chão ou a cruzada de pernas (ACSELRAD, 2002, p. 104). Cada brincador,
sobre o profano” (LÉVI-STRAUSS, 2001, p. 24).
entretanto, pode apresentar uma maneira particular de desenvolver seus passos, chamada
Nos últimos anos, entretanto, essa hierarquização de valores e dicotomia entre duas
de pantinho, elemento coreográfico nativo que expressa um estilo pessoal de sambar.
formas distintas de patrimônio vem sendo dissolvida, a favor de um conjunto coeso de
A música apresenta importância fundamental para o cavalo-marinho, pois inicia e
patrimônio cultural formado pelos seus aspectos materiais e imateriais.
finaliza o ciclo da brincadeira, permeia suas estruturas internas, torna o ambiente propício
para tal manifestação e promove um elo entre os demais elementos de natureza cênica,
O cavalo-marinho em Pernambuco
poética e coreográfica, além de sustentar a brincadeira durante horas ou uma noite inteira,
Constituído por música, dança, poesia e teatro, sendo brincado predominantemente por
sendo de grande importância para a estruturação do tempo, manutenção da atenção da
trabalhadores rurais da cana-de-açúcar da zona da mata norte de Pernambuco (MURPHY,
plateia e conservação da energia dos brincadores (GONÇALVES, 2001, p. 34).
2008, p. 27), o cavalo-marinho é um folguedo que mescla o profano com o religioso, expres-
O cavalo-marinho é brincado ao som de um conjunto musical chamado de banco, formado
sando tanto a realidade cotidiana de seus brincadores quanto o imaginário coletivo da região.
por rabeca (espécie de violino de fabricação local, constituído de quatro cordas afinadas
Chamado de brincadeira ou brinquedo por seus praticantes, o cavalo-marinho, sob a forma
em intervalos de quintas justas), pandeiro (principal instrumento na condução rítmica do
de espetáculo, pode durar até oito horas, estendendo-se do início da noite até o sol raiar, não
cavalo-marinho), ganzá (ou mineiro) e baje (idiofone raspador), onde a rabeca é o único
ocorrendo em um lugar fixo, podendo ser brincado na rua, na praça ou no pátio de uma igreja.
instrumento melódico que interage com as vozes dos instrumentistas em uníssono, duetos,
Sua forma de organização espacial, todavia, é caracterizada pela roda, constituída pela população
ou em uma espécie de contraponto. Brincadores mais antigos afirmam que o bumbo e a
local e das cidades vizinhas, que criam uma moldura humana em forma de um pequeno círculo,
viola também faziam parte do cavalo-marinho, cuja instrumentação era bastante flexível.
onde o espetáculo transforma o familiar espaço público em um novo universo simbólico.
Hoje, entretanto, a formação do conjunto instrumental desse folguedo apresenta-se de
As figuras são os personagens do cavalo-marinho, e os figureiros são os atores que
maneira mais fixa, formado basicamente pelos quatro instrumentos acima mencionados que,
as interpretam durante o desenvolvimento dramático do espetáculo. Em sua grande
eventualmente, podem ser duplicados ou mesmo triplicados, para aumentar a sonoridade.
maioria, as figuras apresentam-se mascaradas, e os figureiros possuem grande liberdade
A parte vocal é realizada pelos toadeiros, que são os próprios instrumentistas do
de improvisação, assemelhando o cavalo-marinho, neste sentido, à Commedia dell’arte
banco. O primeiro toadeiro, geralmente o pandeirista, é responsável por “puxar” as toadas
renascentista. Contando com cerca de 76 figuras, classificadas em humanas, animais,
introduzidas pelo rabequeiro, sendo seguido pelos demais toadeiros que cantam em coro.
fantásticas e bonecos (OLIVEIRA, 2006, p. 501-502),2 a história contada na brincadeira
A responsabilidade do toadeiro não se limita a conhecer o vasto repertório do cavalo-
aborda com muito humor as relações entre patrões e empregados que marcam a trajetória
-marinho, mas inclui a habilidade de criar rimas improvisadas. Segundo Murphy (2008,
e a vida do homem da zona da mata norte de Pernambuco, bem como a expressão da
p. 70), as vozes estão virtualmente em afinação com a rabeca, embora a entoação possa
moralidade, do cotidiano e da religiosidade da região.
ser diferente. A qualidade da voz usada no cavalo-marinho usualmente é aberta e cheia,
As figuras não só representam personagens, mas também etapas da brincadeira. As cenas
mas também é muito comum o uso de um som mais nasalizado.
possuem certa independência entre si, mas de maneira sucinta pode-se afirmar que o enredo
A brincadeira do cavalo-marinho possui alguns gêneros de execução musical, sendo
1 A atuação da UNESCO na ampliação do conceito de patrimônio cultural ocorreu através de documentos as toadas e os baianos os mais característicos.
resultantes das conferências realizadas por essa instituição ao longo do século XX. Maiores detalhes sobre essas
conferências podem ser vistas em PELEGRINI; FUNARI (2008).
2 A classificação do Érico José Souza de Oliveira é fundamentada na classificação de Hermilo Borba Filho, que 3 O termo “danças dramáticas” foi utilizado por Mário de Andrade para nomear os bailados populares que
divide as figuras em três categorias: humanas, animais e fantásticas. Ver BORBA FILHO (2007, p. 20). apresentam um conteúdo narrativo.

168 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 169
Os baianos se caracterizam por ser uma melodia rápida na forma de um pequeno refrão Um passo decisivo para a ampliação do conceito de patrimônio cultural no Brasil ocor-
constantemente repetido, cantado na forma de pergunta e resposta, podendo também ser reu com a publicação da Constituição Federal de 1988, que passou a incluir as expressões
executado apenas instrumentalmente. da cultura popular e dos “bens imateriais” no conjunto de patrimônios culturais brasileiros.
As toadas são constituídas por estrofes puxadas pelo toadeiro e respondidas pelos toa- A grande resposta brasileira à nova e crescente preocupação da UNESCO quanto à
deiros de apoio, alternando com um refrão cantado por todo o conjunto em uníssono ou conservação do patrimônio imaterial foi a criação do Decreto-Lei 3551, de 4 de agosto
em intervalos, geralmente de terças. Evidentemente a forma e o número de estrofes são de 2000, que instituiu no Brasil o “Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial”.
variáveis, bem como certas melodias e textos que podem sofrer pequenas variações de um Esse fundamento jurídico estabelece o registro e inventário como instrumentos para a
grupo para o outro, ou mesmo ao longo do tempo, fruto do contato do cavalo-marinho identificação, documentação e reconhecimento dos bens culturais que não podem ser
com outros folguedos populares, ou pela liberdade de improvisação dos seus toadeiros. conservados através da prática do tombamento. Evidentemente que antes do decreto,
Também é muito comum a hibridação entre melodias e textos de toadas diferentes. folcloristas como Mário de Andrade, Edson Carneiro, Luiz da Câmara Cascudo e Luiz
O patrimônio cultural do cavalo-marinho constitui um vasto repertório de canções, Heitor Corrêa de Azevedo, dentre outros, já realizavam esse tipo de registro. Mas a im-
danças, poesias e histórias, presentes na vida e na memória dos brincadores, sendo trans- portância do decreto reside, principalmente, na responsabilidade atribuída ao Estado para
mitidas ao longo de gerações. com a preservação das inúmeras criações culturais reunidas sob a genérica denominação
No cavalo-marinho, assim como em outras culturas denominadas de “tradição oral”, de “patrimônio imaterial”.
a memória coletiva constitui-se no elemento fundamental de garantia identitária, sendo Dessa forma, o conceito de patrimônio imaterial entrou no cenário político brasileiro
a sua transmissão uma condição necessária para a sobrevivência de suas estruturas ma- na década de 80, encontrando sua expressão máxima no Decreto-Lei 3551, gerando um
teriais e simbólicas. número crescente de políticas públicas de proteção à cultura popular.
Nas últimas décadas, entretanto, a sociedade comumente chamada de “moderna” vem Dentro deste âmbito, no final do ano de 2011, a ONG Associação Respeita Januá-
ampliando a sua preocupação quanto à continuidade e sobrevivência dessas expressões rio (ARJ), sediada no Recife, foi contratada pela Fundação do Patrimônio Histórico e
tradicionais, desenvolvendo, para isso, dispositivos legais de proteção à cultura popular. Artístico de Pernambuco (FUNDARPE) para realizar o registro e documentação dos
processos de formação, produção, reprodução e transmissão de aspectos históricos, artís-
O cavalo-marinho e a política do Patrimônio Imaterial ticos e memoriais do cavalo-marinho pernambucano.
Ao se preocupar com nossa cultura, Mário de Andrade assumiu uma postura pio- Segundo a própria concepção do IPHAN, o primeiro passo para a preservação dos
neira quanto à preservação de tudo que era criado e transformado pelo povo, ao propor bens culturais é conhecê-los e identificá-los. Neste sentido, foi-se constituída uma equipe
um anteprojeto para a criação do Serviço do Patrimônio Artístico Nacional em 1936. interdisciplinar envolvendo as áreas da antropologia, história e etnomusicologia,5 para
No entanto, as suas ideias tomaram um rumo diferente quando o governo do Estado a realização do estudo dos mais diversos aspectos que envolvem o universo do cavalo-
Novo criou o Serviço ao Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN)4 com a -marinho, procurando abarcar as cinco categorias de bens que estruturam um inventário:
promulgação do Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, que limitou o conceito celebrações, formas de expressão, ofícios e modos de fazer, edificações e lugares.
de patrimônio cultural à sua concepção material e monumentalista através da ação do Os procedimentos de trabalho envolvem três etapas básicas: o levantamento preli-
tombamento. Esse documento legal manteve uma visão elitista e conservadora ao excluir minar, que consiste no mapeamento geral do bem a ser inventariado, a delimitação das
do rol de bens patrimoniais as manifestações das classes populares, privilegiando os bens suas regiões de ocorrência e de seus atores envolvidos; a identificação, que se desenvolve
associados aos grupos sociais de tradição europeia, que no Brasil são, em sua grande através de entrevistas e observações de campo, lançando mão de recursos como gravações,
maioria, os grupos identificados às classes dominantes (LONDRES, 2001, p. 189). registros audiovisuais, fichas e questionários; e a documentação, que é a sistematização
Ao optar pela preservação da arquitetura de elite, como igrejas barrocas, casas-grandes, e interpretação das informações levantadas. O produto final consiste na elaboração de
casarões etc. e excluindo as falas, as lendas, os cantos, as magias, a culinária indígena e um dossiê e de um vídeo a serem enviados e submetidos à avaliação do IPHAN como
as festas populares, o governo de Getúlio Vargas e Gustavo Capanema, então ministro solicitação da candidatura do cavalo-marinho ao título de Patrimônio Imaterial.
da Educação e Cultura, contribuiu para produzir uma compreensão restritiva do termo Na fase do levantamento preliminar, pôde-se identificar a existência de doze grupos
“preservação”, entendida exclusivamente como tombamento. de cavalo-marinho em atividade, distribuídos nas pequenas cidades da zona da mata
Somente a partir de meados da década de setenta, o IPHAN começou a cultivar norte de Pernambuco, sendo um deles na região metropolitana do Recife. Com objetivos
uma nova perspectiva de preservação dos bens culturais com a introdução da noção de metodológicos, essas cidades foram agrupadas em três localidades, levando em consideração
“referências culturais” dentro do vocabulário das políticas culturais. Esse novo conceito as proximidades geográficas e, em especial, as similaridades artísticas e estéticas de seus res-
trouxe uma concepção mais antropológica da cultura ao enfatizar a atribuição de sentidos pectivos grupos. Nesta fase inicial também houve a identificação dos brincadores e de futuros
e significados dos diferentes sujeitos aos bens materiais e às suas práticas sociais. informantes locais, bem como a distribuição dos pesquisadores entre as localidades e os grupos.

4 Instituição que precedeu o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), atualmente 5 O autor faz parte da equipe de pesquisa, trabalhando com o estudo da música no cavalo-marinho dentro de
responsável pela preservação do patrimônio cultural, tangível e intangível, do Brasil. uma abordagem etnomusicológica.

170 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 171
A segunda etapa, ainda em andamento, fundamenta-se na identificação dos diferentes O processo de patrimonialização do cavalo-marinho encontra-se em andamento, e
aspectos que compõem o universo do cavalo-marinho a partir de entrevistas, registros ainda não é possível precisar a sua contribuição para a continuidade da tradição desse
audiovisuais, aplicação de questionários e observação de campo, onde cada pesquisador folguedo e de sua música em termos práticos. Embora as políticas culturais sejam ex-
vem exercendo sua atividade de acordo com suas especificidades de formação acadêmica. tremamente importantes, a sobrevivência de uma tradição depende profundamente dos
A última etapa consistirá na elaboração de um produto final na forma de um vídeo e significados e valores que as pessoas lhe atribuem.
de um dossiê de candidatura do cavalo-marinho ao título de Patrimônio Imaterial, ambos É preciso, portanto, encarar esse patrimônio não apenas como um conjunto de práticas,
endereçados à avaliação do IPHAN. fazeres e saberes dignos de proteção e investigação científica, mas também como um
conjunto de significados que homens e mulheres atribuem ao seu mundo para melhor
Patrimônio cultural e poder compreendê-lo e expressá-lo. Partindo desta concepção, acredito que a preservação po-
A preservação de traços culturais é uma demonstração de poder, uma vez que ela envolve a lítica de expressões como o cavalo-marinho, deve ser delineada a partir dos sentimentos,
atribuição de valores, a seleção de critérios e procedimentos. A criação do Decreto-Lei 3551 necessidades e interesses de seus criadores, cabendo a eles a conservação desse patrimônio
marca uma transição de poder quanto à preservação de nosso patrimônio cultural, transferido- cultural enquanto o considerarem significativo para suas vidas e sua história.
-se da autoridade do saber (de folcloristas e intelectuais) para a autoridade política (o Estado),
migrando de uma esfera marcadamente ideológica para uma esfera de negociações políticas. Referências bibliográficas
Se o registro escrito é sempre uma versão da realidade, no caso do processo de pa- ACSELRAD, Maria. Viva Pareia! A arte da brincadeira ou a beleza da safadeza – uma
trimonialização, essa versão é do Estado, que por meio do IPHAN assume o poder e abordagem antropológica da estética do Cavalo-Marinho. Dissertação (Mestrado em An-
a autoridade de seleção e legitimação do que deve ou não ser considerado patrimônio tropologia), Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2002.
imaterial da cultura brasileira (ALENCAR, 2005, p. 86).
Na verdade, todas as práticas, saberes, fazeres e manifestações dotadas de valores e ALENCAR, Rívia Ryker Bandeira. Será que dá samba? Mudança, Gilberto Gil e Patrimô-
significados dentro de uma coletividade sociocultural são patrimônios culturais, inde- nio Imaterial no Ministério da Cultura. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social),
pendente de uma nomeação nos círculos institucionais. Universidade de Brasília, 2005.
O registro, entretanto, não tem como finalidade apenas a atribuição do título de ANDRADE, Mário de. Danças Dramáticas do Brasil (Tomo I). Belo Horizonte: Editora
“Patrimônio Imaterial” a um bem cultural. Ele é o passo inicial para ações posteriores Itatiaia, 1982.
de natureza mais prática.
BORBA FILHO, Hermilo. Espetáculos Populares do Nordeste. 2.ed. Recife: Fundação
o Registro não é apenas uma inscrição num Livro Público ou meramente a outorga de
Joaquim Nabuco, Ed. Massangana, 2007.
um título. Nele estão implicadas uma série de ações em relação ao bem cultural imaterial.
O Registro não é o fim em si. Para o Estado, o Registro é o início. É a partir dele que o GONÇALVES, Gustavo Vilar. Música e movimento no cavalo-marinho de Pernambuco. Mo-
bem cultural imaterial é transformado em Patrimônio Cultural do Brasil e pode receber as nografia (Especialização em Etnomusicologia), Universidade Federal de Pernambuco, 2001.
benesses favorecidas pela jurisdição. (ALENCAR, 2005, p. 84)
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. “O patrimônio como categoria de pensamento”.
A partir do processo de patrimonialização, o Estado passa a ter obrigações para com In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (orgs.). Memória e patrimônio: ensaios contempo-
o bem cultural registrado, no sentido da criação de políticas de valorização e divulgação, râneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 21-29.
bem como ações de apoio aos seus processos de transmissão e continuidade.
O objetivo de um inventário não é o congelamento no tempo e no espaço das tradições LÉVI-STRAUSS, Laurent. “Patrimônio imaterial e diversidade cultural: o novo decreto
populares, uma vez que a tradição encontra-se em constantes processos de ressignifica- para a proteção dos bens imateriais”. In: LONDRES, Cecília (org.). Revista Tempo Bra-
ções. É o seu registro em um determinado momento e lugar, tendo a consciência de sua sileiro. Rio de Janeiro, vol. 147, p. 23-27, 2001.
estrutura mutante, procurando garantir aos seus atores sociais o estatuto de detentores LONDRES, Cecília. “Para além da ‘pedra e cal’: por uma concepção ampla de patrimô-
de uma propriedade cultural/intelectual. Assim, o poder do Estado garante, através desse nio”. In: LONDRES, Cecília (org.). Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, vol.147,
processo, uma nova atribuição de poder a esses atores sociais, proporcionando a eles a p.185-204, 2001.
possibilidade de controle da produção, circulação e consumo de seus saberes e fazeres.
MURPHY, John. Cavalo Marinho pernambucano. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
Conclusão
OLIVEIRA, Érico José de Souza. A roda do mundo gira: um olhar sobre o Cavalo Marinho
A transição das políticas de patrimonialização de uma perspectiva monumentalista
Estrela de Ouro (Condado-PE). Recife: SESC-Pernambuco, 2006.
para uma concepção mais antropológica deve ir além de uma mudança de abordagem
metodológica. É preciso ver a cultura não como uma estrutura ou entidade com natureza PELEGRINI, Sandra C.A.; FUNARI, Pedro Paulo. O que é Patrimônio Cultural Imaterial.
própria, mas como uma criação de pessoas com sentimentos, necessidades e interesses. São Paulo: Editora Brasiliense, 2008.

172 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 173
TRADIÇÕES REVISITADAS
Uma leitura da adaptação musical de
Iannis Xenakis da tragédia grega
Orestes de Ésquilo
Pedro Bittencourt
Universidade Federal do Rio de Janeiro

1 – A adaptação musical de Orestes por Iannis Xenakis: apresentação geral

Me ocorreu poucas vezes musicar um texto. Talvez porque um texto, se é importante, não
precisa absolutamente de música; é suficiente por si mesmo. Também porque eu penso que
o compositor, por respeito ao texto sobre o qual ele escolheu trabalhar, deve fazer com que
o texto seja claramente dito e entendido, o que é muito difícil e muito raro. Naturalmente,
podemos sempre utilizar um texto para torná-lo musical — como por exemplo, através de
fonemas — e para que ele faça, de algum modo, parte integrante da música. Mas então,
não é necessário utilizar um texto completo: podemos muito bem inventar os nossos
próprios fonemas, encontrar por nós mesmos as sonoridades sobre as quais trabalhar.1
(XENAKIS, 1996, p. 25)
Na adaptação musical feita pelo compositor Iannis Xenakis (1922 – 2001) da trilogia
Orestes de Ésquilo, encontramos a influência de culturas de diversas épocas que têm forte
ligação com a vida do compositor: a tragédia grega, o teatro Nô japonês, a música bizantina,
e as sonoridades “xenakianas”. O compositor não teve intenção de realizar reconstituição
histórica, mesmo se algumas convenções das tragédias foram conservadas (a língua grega
antiga, a sobriedade nas cenas de assassinato, os gritos no final). A proposta de Xenakis
foi compor música para um espetáculo audiovisual de forte condensado sonoro, ligando
a poética de Ésquilo com o futuro da música. Para a sua adaptação do clássico, Xenakis
se apropriou de materiais sonoros de civilizações e patrimônios de épocas diferentes,
articulando-as com as suas próprias sonoridades. A análise dessa adaptação de Orestes,
incluindo música, texto e cena, nos revela a importância e as singularidades dessa obra,
revisada muitas vezes pelo compositor.
Com cerca de 150 obras em seu catálogo, Iannis Xenakis compôs 25 peças com voz,
das quais 14 utilizam textos. Apesar do compositor não ter utilizado frequentemente
textos em música, mais da metade das suas obras vocais o fazem. Orestes foi uma das suas
primeiras experiências na adaptação de um texto em música. Em contraste com muitas

1 Todas as traduções de citações em português são do autor desse artigo, sendo que o texto original se encontra
nas notas de rodapé. “Il m’est peu souvent arrivé de mettre un texte en musique. Peut-être parce qu’il me semble
qu’un texte, s’il est important, n’a guère besoin de musique: il se suffit à lui même. Aussi parce que je crois que
le compositeur, par respect pour le texte sur lequel il a choisi de travailler, doit faire en sorte que celui-ci soit
clairement dit et entendu, c’est qui est très difficile et très rare. Naturellement, on peut toujours se servir d’un
texte pour le rendre musical – par exemple par le biais de phonèmes – et pour qu’il fasse en quelque sorte partie
intégrante de la musique. Mais alors, il n’est pas nécessaire d’utiliser un texte complet: on peut tout aussi bien
inventer ses propres phonèmes, trouver soi-même les sonorités sur lesquelles travailler.”

ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 177


de suas obras, a peça apresenta relativa simplicidade na escrita para o coro, ausência de Ypsilanti vinha dos índios, e descobriram suas “nobres” origens gregas.
cálculos matemáticos,2 buscando fontes sonoras na música grega tradicional, na música A estreia foi realizada no dia 14 de junho de 1966, com regência de Constantin
bizantina, no teatro Nô japonês, e sem deixar de utilizar as suas próprias “sonoridades Simonovitch7, num teatro construído num estádio de baseball. Nenhuma gravação ou
xenakianas”3 como veículo. Em Orestes, o compositor também trabalhou cuidadosamente registro dessa versão foi encontrada. Xenakis compôs 1h40min de música (sem pausa)
com a espacialização do som,4 seguindo a estreia de Terretektorh5 em 1966. para os movimentos Agamenon, Coéforas e Eumênides. O texto foi cantado em inglês, a
Se consideramos a trajetória pessoal de Xenakis, Orestes representa uma ponte ao seu contragosto do compositor8. O texto em inglês parece ter sido uma imposição do dire-
país natal, a Grécia, que por muitos anos o condenou à morte oficialmente por “terro- tor do teatro grego de Ypsilanti. A decepção do compositor, precedida de uma série de
rismo político”, por ele ter participado na resistência comunista contra os ingleses, que problemas administrativos9 e seguida de duras críticas à longa duração da peça, podem
ocuparam o país depois da saída dos alemães no final da segunda guerra mundial. Depois justificar as numerosas modificações.
de ter o rosto desfigurado por uma explosão e ser perseguido, Xenakis deixou a Grécia e Nos primeiros manuscritos de 1966, os textos foram escritos em inglês e em grego
se instalou em Paris em 1947, tendo trabalhado por 12 anos como engenheiro no atelier na partitura, e logo após a estreia nos EUA, Xenakis pediu ao seu editor que o texto em
do arquiteto Corbusier, tendo cada vez mais se dedicado à composição musical com as inglês fosse retirado. Em seguida, o texto em grego antigo foi mantido junto com a escrita
ferramentas que lhe eram familiares. fonética. O autor fez outros cortes e modificações para formar a Suite Orestes, com duração
O fato de Orestes ser a única peça revisada pelo compositor no seu vasto catálogo se de cerca de 35 minutos (menos da metade da versão original).
justifica pela sua insatisfação com a estreia em Ypsilanti (EUA) e também pela sua grande
admiração e respeito por Ésquilo, cuja obra foi conhecida durante a sua juventude. Esse 1.2 – Estreia cênica em Gibellina, Itália, 1987
autor clássico grego ganhou o concurso de tragédias 13 vezes, tendo escrito uma centena Vinte anos após a estreia em Ypsilanti, Orestes foi montado com mise-en-scène de
de obras, das quais nos restam apenas 7. Orestes é a única trilogia de Ésquilo que chegou Iannis Kokkos para o festival Gibellina, na Sicília, Itália. Para essa ocasião, Xenakis acres-
completa até nossos dias: Agamenon, Coéforas, Eumênides. centou um prelúdio eletrônico no início (alguns minutos de Mycènes Alpha) e um novo
Orestes apresenta o retorno “vitorioso” do rei Agamenon após os 10 anos da guerra movimento, Kassandra, duo para voz e percussão, inserido no final de Agamenon, pouco
de Tróia, acompanhado de sua prisioneira de guerra, Kassandra. Ao chegar, Agamenon antes da morte de Clitemnestra. Essa peça foi escrita especialmente para os intérpretes
é assassinado por sua mulher Clitemnestra, com a cumplicidade do amante Egidio. Spyros Sakkas (barítono) e Silvio Gualda (percussão). Algumas razões contribuíram para
Clitemnestra é morta em seguida pelo próprio filho Orestes, que por sua vez passa a ser que o sucesso da peça nessa ocasião:
perseguido pelas Erínias, entidades purgatórias, que serão convertidas depois em entidades 1- A obra foi cantada em grego antigo (partitura com escrita fonética), assim como
protetoras de Atenas, representadas pelo coro de crianças no final da adaptação de Xenakis. a Suite Orestes de 1967. Xenakis costumava imaginar com fascinação como os gregos
Em Orestes podemos encontrar, dentre outros, a problemática da instauração do pri- antigos pronunciavam a sua língua. Questionada sobre a compreensão do texto cantado,
meiro tribunal de justiça humano, o tribunal de Atenas, no lugar da antiga justiça divina Marie-Noël Rio, que trabalhou na montagem, declarou:
baseada no “sangue pelo sangue”, fonte de espirais de violência. Tudo isso se passa já numa Orestes não pertence ao gênero psicológico onde é importante compreender exatamente
época distante para os contemporâneos de Ésquilo, mas apresentados sob uma nova forma os diálogos, mas ao teatro épico, que é um debate de ideias: nesse caso, a invenção da lei
para a época, a tragédia, que apresenta o homem como problema. e do perdão pelos homens, que marca o fim do arbitrário sangrento dos deuses. Não há
necessidade de compreender o detalhe do texto, o grego antigo não representou nenhuma
1.1 – Estreia musical de Orestes de Xenakis em Ypsilanti, EUA, 1966 dificuldade, ao contrário: a sua qualidade fonética reforça o potencial de expressão
A encomendada dessa obra foi feita pela cidade de Ypsilanti, (Michigan, EUA) em dramática.10
1965, mesmo ano em que Xenakis obteve a nacionalidade francesa (nesse período o com-
positor vivia em Paris). A inauguração do teatro grego era uma homenagem às origens
nada sobre a estreia de Orestes foi encontrado).
do nome da cidade.6 A partir dessa época, os habitantes deixaram de pensar que o nome 7 Maestro que já tinha trabalhado com Xenakis na estreia de Hiketides as suplicantes de Ésquilo em Epidaure em
1964, com o Ensemble do Teatro Nacional da Grécia. Nessa ocasião o compositor estava todavia condenado à
2 “Não há cálculo, talvez haja reminiscências de cálculos, resultados de cálculos. As vozes devem estar ao serviço morte na Grécia, e por isso não compareceu.
da palavra nos casos de Orestes e Medeia”. Entrevistas radiofônicas com Iannis Xenakis, 3a emissão de 24 de 8 Segundo Spyros Sakkas (barítono) e Françoise Xenakis (viúva do compositor). Comunicação oral de 20 de
agosto de 1992, France Culture, arquivos do INA, BNF, Paris. maio de 2005, Colóquio Internacional Xenakis, Atenas.
3 Em resumo: sons glissandos, sons estáveis e sons pontuais (que podem ser “nuvens”). Para Xenakis, o global se 9 Por diversas razões, Xenakis assinou o contrato da encomenda bem tarde. Quando o regente Simonovic
forma pela organização de partículas elementares. Sobre o uso do cálculo de probabilidades por Xenakis e sobre chegou aos EUA, ele trazia consigo apenas o primeiro movimento, Agamenon. Cartas manuscritas de Xenakis à
sua a noção de massa, consultar SOLOMOS (1996, p. 43). Richard Kirshner, diretor do teatro grego de Ypsilanti, Arquivos Xenakis, BnF-Mus, Paris.
4 Organização dos sons no espaço, seja pelo uso da eletrônica com caixas de som, seja pela distribuição das 10 Entrevista conduzida por este autor; resposta de Marie-Nöel Rio, email de 21 de março de 2005:
fontes sonoras (instrumentos ou objetos) em diferentes pontos do local do concerto. “L'Oresteia n'appartient pas au genre psychologique, où il importe de comprendre exactement les dialogues,
5 Peça para grande ensemble de 88 músicos, onde o maestro se encontra no centro, os músicos e o público mais au théâtre épique, qui est un débat d'idées: ici, l'invention par les hommes de la loi et du pardon, ce
misturados, o circundando. qui marque la fin de l'arbitraire sanglant des dieux. On n'a pas besoin de comprendre le détail du texte pour
6 Demetrius Ypsilanti lutou pela independência da Grécia da Turquia. No ano de 1825 ele defendeu com comprendre ça. Le grec ancien n'a posé aucune difficulté, au contraire: sa qualité phonétique renforce la
poucos homens a cidade de Argos contra um grande exército turco. Página internet www.ypsilanti.org (onde puissance d'expression dramatique.”

178 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 179
2 – A peça foi executada a céu aberto, sobre um imenso platô, a amplificação e a O único registro visual dessa montagem é o filme La geste Gibellina [O gesto
espacialização dos coros e dos instrumentistas garantiram o impacto sonoro, apesar da Gibellina],14 de Hugo Santiago, fonalizado em 1989.
vasta área aberta:
O espaço de Gibellina era imenso, uma espécie de teatro do mundo, era muito interessante 2 – Instrumentação de Orestes de Xenakis
utilizar o que ele oferecia ao máximo. Iannis [Xenakis] não opinou sobre isso. Eram as
escolhas da equipe de realização responsáveis pelo espetáculo.11 Violoncelo
Flauta e Piccolo
3 – A cidade de Gibellina pertencia à Grécia na época de Ésquilo. O poeta morreu
Oboé
em Gela, a cerca de 150Km de Gibellina.
Requinta em mi bemol
4 – A convergência do antigo e do novo na música de Xenakis e em Gibellina. Essa
Clarinete contrabaixo
cidade foi completamente destruída em 1968 por um terremoto. A sua reconstrução
Contrafagote
contou com muitos artistas, ligando de certa forma o seu passado recente trágico com o
Trompete em dó e trompete piccolo em si bemol
seu futuro, com esculturas e construções bastante ousadas, homenageando as vítimas da
Trombone tenor
catástrofe natural. Orestes foi estreada nessas ruínas.
Trompa em fá
5 – A utilização de Mycènes Alpha como prelúdio. Essa peça, realizada no sistema
Tuba
UPIC por Xenakis, se refere à época longínqua e misteriosa que deu origem à maioria
Percussão (3 executantes): 2 tímpanos com pedais (grande e pequena), 2 bongôs, 1
dos mitos da Grécia clássica. O uso de um trecho dessa obra no inicio de Orestes confirma
caixa-clara, 1 bombo (muito grande), 2 wood-blocks, 2 tambores de corda, gongs (grande
a proposta do compositor de mergulhar o Orestes no futuro. A sugestão de incluir essa
e pequeno), 1 chicote, 4 tom-toms, 2 brosses de nylon à long poils, 2 maracas, 1 grande
peça eletroacústica veio de Marie-Noël Rio:
véu metálico, 1 jeu de timbres (próximo de glockenspiel/celesta)
Fui eu quem sugeriu a Iannis (Xenakis) de utilizar Mycènes Alpha em Gibellina, como Cada instrumentista (exceto os percussionistas) toca também os seguintes instrumen-
uma espécie de abertura sobre a paisagem natural. Era ligado a esse espaço, e nós não tos: 1 triângulo (ou barras de aço de tamanho variável), 1 pandeiro sem chapinhas (os 10
repetimos a experiência no Festival Musica 1987 [em Strasbourg, onde foi realizada a pandeiros sem chapinhas são divididos em 5 alturas distintas, 2 por altura), 1 sirene de
primeira gravação mundial]12 boca tipo Acmé, 1 carrilhão de vidro, 1 par de bandeiras metálicas (folhas de alumínio),
6 – O trabalho de mise-en-scène foi feito por uma equipe especializada (Yannis 1 chicote. E mais 5 tambores chacoalhados, 5 chocalhos que serão tocados pelos 10
Kokkos, Marie-Nöel Rio), se levarmos em conta que Xenakis “não era um homem de instrumentistas mencionados.
teatro”.13 Nos permitimos aqui fazer uma nuance sobre as afirmações de Marie-Nöel Rio,
lembrando que Xenakis concebeu diversas peças, como os Polytopes e o Diatope, a partir Coro masculino
de reflexões sobre correspondências entre espaço, imagem e som. Além disso, ler Orestes 18 barítonos (mínimo, ou um múltiplo de 2 ou de 3) que tocam também os seguintes
de Ésquilo em grego antigo nos parece um privilégio para a compreensão da sua poética, instrumentos:
mesmo que ele não seja um “homem de teatro” 1 pequeno tambor ou 1 bongô agudo
7 – A composição do virtuoso duo Kassandra, para barítono e percussão. A adaptação 18 pares (mínimo) de simantras em madeira (madeira maciça ou tubo em madeira
sonora do diálogo desse personagem com o Corifeu deu ainda mais força dramática à percutido com baqueta de madeira dura)
intriga. Os dois intérpretes (Spyros Sakkas e Silvio Gualda) já tinham colaborado an- 18 chicotes (mínimo)
teriormente com Xenakis. 18 sirenes de boca Acmé (mínimo)
18 bandeiras metálicas (mínimo), folhas de alumínio sacudidas
11 Entrevista conduzida por este autor; resposta de Marie-Nöel Rio, email de 21 de março de 2005: “L'espace 18 chocalhos (mínimo)
de Gibellina était immense, une sorte de théâtre du monde, c'était très intéressant de l'utiliser au maximum de 18 pares de simantra metálicas (discos de metal muito agudos percutidos com baquetas
ce qu'il offrait. Iannis n'est pas intervenu là-dedans. Il s'agissait du choix de l'équipe de réalisation, qui avait la de triângulo)
responsabilité du spectacle.”
12 Entrevista conduzida por este autor; resposta de Marie-Nöel Rio, e-mail, 15 de março de 2005: “C'est moi
qui ai suggéré à Iannis d'utiliser Mycènes Alpha à Gibellina, comme une sorte d'ouverture sur l'immense décor Coro feminino
naturel. C'était lié à ce lieu et nous ne l'avons pas reproduit à la reprise au Festival Musica 87 [em Strasbourg].” 18 contraltos (mínimo, ou um múltiplo de 2 ou de 3) que também tocam os seguintes
[Sobre o local da estria, ver nota 22].
instrumentos:
13 Entrevista conduzida por este autor; resposta de Marie-Nöel Rio,e-mail, 15 de março de 2005: “Iannis
[Xenakis] detestava os figurinos de Kokkos, ele preferiria túnicas gregas. Ele era um inovador na música, mas
um conservador em teatro. Ele queria um canhão de luz vermelho em cima da Kassandra, para simbolizar o 14 Esse filme passou na televisão francesa no canal France 3, em 28 de abril de 1990, Arquivos de l'INA, BNF,
assassinato! Esse tipo de coisas. Quando eu digo “conservador”, é uma forma de falar que ele não entendia Paris. Segundo Françoise Xenakis, viúva do compositor, seu marido nunca quis assistir ao filme, que segundo
nada de teatro (onde aliás ele nunca ia). Isso nem é muito importante, e ele nunca perturbou ninguém no palco, ele teve um orçamento excessivo. Comunicação oral, 19 de maio de 2005, Colóquio Internacional Xenakis,
mesmo quando ele não aprovava o que via.” Atenas, Grécia.

180 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 181
18 pares (mínimo) de simantras de madeira (1960, p. 18). O “intruso” aqui é o violoncelo, único instrumento da família das cordas,
18 chicotes (mínimo) sempre primeira voz nos gráficos manuscritos, porém não na partitura editada. Xenakis
18 sirenes de boca tipo Acmé (mínimo) tinha terminado Nomos Alpha16 para violoncelo solo no mesmo período de concepção
18 bandeiras metálicas (mínimo) de Orestes. Essa peça virtuose explora muitas possibilidades técnicas do instrumento, e
18 pares de simantras metálicos (mínimo) especialmente os harmônicos agudos. No prefácio de Chansons Grecques pour piano solo
[Canções gregas para piano solo] de 1951, Xenakis descreve a música popular de seu país,
Coro de crianças e encontramos mais uma possível razão para o uso do violoncelo no Orestes:
20 vozes (mínimo) As melodias cantadas ou tocadas são essencialmente monofônicas. O coro de mulheres,
20 pares (mínimo) de simantra metálicos homens e os coros mistos cantam em uníssono e na oitava, para os casamentos, festas
religiosas ou simplesmente as feiras populares, etc. Quando eles acompanham a melodia,
Público os instrumentos seguem em uníssono e emitem a tônica ou a sub-tônica, à semelhança do
200 pequenas folhas metálicas a serem distribuídas no final da obra, para que eles as “isson”, pedal bizantino. [...] Além disso, as melodias em geral são diatônicas e claramente
sacudam alegremente, se unindo ao espírito do coro. modais, e assim a ação da dominante e da sensível é secundária. [...] por outro lado, eu
Salientamos que no prefácio da partitura editada pela Boosey & Hawkes as percussões utilizo ainda o cromatismo total e a ausência de tonalidade na dança intitulada “Sousta”, que
acessórias (triângulos metálicos, simantras de madeira, chicotes, sirenes de boca) são é executada no vilarejo por uma espécie de violino, um dos ancestrais do violino atual e que
tocadas por todos os instrumentistas (salvo os percussionistas) e todos os membros do emite preferencialmente sons ásperos, ricos em harmônicos superiores.17 (XENAKIS, 1951)
coro masculino, feminino e infantil. O objetivo de Xenakis com isso foi criar desde sons
pontuais até sons de “nuvens” com diferentes timbres, densidades e direções. No final,
3 - Análise de Orestes
até o público participa sacudindo folhas metálicas, em celebração à conversão das Erínias
No começo, nossa análise consistiu na transcrição gráfica da partitura editada sobre
(purgatórias, vingadoras) em Eumênides (protetoras). Essa participação do público é
uma série de folhas coladas e sem interrupção. As partes cantadas, instrumentais ou mistas
atípica, senão inédita nas composições de Xenakis. Segundo o compositor,
foram assim dispostas linearmente, o eixo vertical representando as alturas, enquanto o
Uma das minhas ideias de base era de fazer aparecer na música a poética única da língua eixo horizontal o tempo (em minutos e segundos). Isso nos permitiu uma visão global
de Ésquilo e de resumir num forte condensado sonoro um clima arcaico, mas que ao da obra. Esse procedimento se trata justamente do caminho inverso adotado por Xenakis
mesmo tempo mergulhasse no futuro da música. [...] O drama não pode se exprimir para compor: no início ele desenhou sobre papel milimetrado, para depois transcrever
pela música tonal, atonal ou serial. Isso por conta de suas filiações muito fortes à épocas a partitura de Orestes em notação musical tradicional. Para continuar nossa análise nos
específicas. E além do mais, a “sensibilidade” sonora da antiguidade não combina de forma foi indispensável identificar e classificar a escolha dos versos18 feitos pelo compositor
alguma com as atmosferas sonoras de Wagner, Schoenberg e seus sucessores. Com as de em cada tragédia (Agamenon, Coéforas e Eumênides), para integrar o quadro panorâmico
Debussy e Ravel, talvez. Mas como imaginar o Kabuki ou o Nô tocados com a música qualitativo de versos (ver 3.1). Dessa visão panorâmica, a análise focalizou nos detalhes de
“ocidental” ? Assim também o é, todas as proporções guardadas, com a música do teatro cada sequência, com a tradução do texto em francês, reproduzindo trechos da partitura e
antigo.15 vários exemplos sonoros.19 Convém lembrar que há versos nas sequências instrumentais,
A escolha de 9 sopros, 3 percussões e apenas 1 corda para acompanhar o coro e acrescentados na última revisão do compositor em 1992, que de acordo com ele “deve-
também a sua orquestração nos revelam a vontade do compositor de gerar sonoridades
ásperas e agressivas. 16 Estreada em 1966 por Siegfried Palm em Bremen, Alemanha. Nomos Alpha é na sua concepção a obra mais
A larga tessitura sonora (da tuba ao piccolo) contribui para a atmosfera “arcaica” e ao complexa de toda a produção do compositor. De acordo com SOLOMOS (1996, p. 46), “Se trata também da
“forte condensado sonoro” que Xenakis nos fala. A amplificação dos instrumentos graves obra mais “parametrizada”, não somente de Xenakis, mas talvez de toda a história da música: nela podemos
(contrafagote, clarineta contrabaixo) e também do violoncelo são exigidas pelo compositor, contar treze parâmetros!”
17 Iannis Xenakis, Chansons Grecques pour piano solo, 1951, prefácio da partitura manuscrita (cópia), BnF-Mus,
para um melhor equilíbrio com os outros instrumentos. Podemos fazer um paralelo com Paris. “Les mélodies chantées ou joués sont essentiellement monophoniques. Le choeur de femmes, hommes
a instrumentação básica do teatro Nô japonês : voz, flauta e percussão, segundo ZEAMI et les chœurs mixtes les chantent à l'unisson ou à l'octave, pour les mariages, fêtes religieuses ou simplement
les foires populaires, etc. Quand ils accompagnent la mélodie les instruments suivent à l'unisson et ils émettent
la tonique ou la sous-tonique à l'image de "l'isson", pédale byzantine. [...] De plus les mélodies sont en général
15 Programa do Festival Sigma 3, Bordeaux, 1967. Arquivos do Centre de Documentation de la Musique
diatoniques et nettement modales donc l'action de la dominante et de la sensible est secondaire. [...] J'utilise
Contemporaine (Cdmc), Paris. “Une de mes idées de base était de faire apparaître dans la musique la poétique
d'autre part le chromatisme total et le manque de tonalité dans la danse intitulée "Sousta" qui est exécutée au
unique de la langue d’Eschyle et de résumer dans un très fort condensé sonore un climat archaïque mais qui,
village par une espèce de petit violon, un des ancêtres du violon actuel et qui émet plutôt des sons âpres, riches
en même temps, plongerait dans l’avenir musical. […] Le drame ne peut s’exprimer par la musique tonale, en harmoniques supérieurs.”
atonale ou sérielle. Ceci en raison de leurs filiations trop fortes à des époques spécifiques. De plus, la ‘sensibilité’ 18 Indicados “st” na partitura, abreviação em grego, “que diz respeito aos versos”. A. Bailly, Le Grand Bailly,
sonore de l’antiquité ne s’accommode pas du tout avec les atmosphères sonores de Wagner, Schoenberg et leurs Dictionnaire Grec-Français, Paris, Hachette éditions, 2000, p. 1794.
successeurs. Celles de Debussy et Ravel peut-être d’avantage. Mais comment imaginer le Kabuki ou le Nô joués 19 Ambos ausentes nesse artigo resumido, mas disponíveis na versão completa da tese de mestrado
avec de la musique ‘occidentale’? Ainsi en est-il, toutes proportions gardées, avec la musique du théâtre antique.” (BITTENCOURT, 2005).

182 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 183
riam clarificar a interpretação musical para o benefício do maestro, dos cantores, dos 3.3 – Balanço da análise de Orestes
instrumentistas e do diretor, se eles desejassem ter uma melhor compreensão da peça”.20 A evolução dos coros no Orestes de Xenakis pode ser resumida assim:
Os cortes feitos na versão original de 1966 foram igualmente indicadas, e pudemos Agamenon: coro de homens
constatar que os capítulos de Ésquilo foram seguidos. Mycènes Alpha, Kassandra e La Coéforas: coro de mulheres, 3 vozes graves de mulheres (Electra) + 3 vozes claras de
Déesse Athéna, não farão parte da nossa análise detalhada. homens (Orestes)
Orestes =3 vozes claras de homens Electra = 3 vozes graves de mulheres Eumênides: coro de mulheres, coro de homens + coro de crianças (apenas no final)
Atena=3 altos + 3 tenores Coro/Corifeu=2 vozes sobreagudas de mulheres + 2 vozes
graves de homens Agamenon é o movimento menos falado e também o menos cortado da trilogia. A
orquestração é mais rica do que nos outros movimentos. A proposta do compositor de
3.1 – Quadro panorâmico quantitativo de versos tornar o texto compreensível (para os que falam grego antigo) é clara, o que não será
sempre o caso com Coéforas e Eumênides, que têm momentos de “nuvens” de textos falados
número de número de número de número total de e vozes não sincronizadas. No caso de Eumênides, as vozes estão concentradas no início
versos cantados versos falados versos - partes versos e no final do movimento, na maioria das vezes com texto falado. A escrita declamatória
instrumentais inspirada na música bizantina no início do Agamenon não voltará no Orestes explicitamente.
Agamenon 7 4 19 30 A influência da música japonesa se nota principalmente na instrumentação e na escrita
em cromatismo e em micro-intervalos. Em Coéforas e Eumênides, a influência do teatro
Coéforas 4 30 10 44
Nô se nota pelo uso da percussão: toms, gong e grande bombo.
Eumênides 7 24 1 32 Essa justaposição de elementos oriundos de patrimônios culturais tão diferentes e
Orestes 18 58 30 106 distantes traz consigo uma inovação na representação da trilogia de Ésquilo, confirmando
a concepção plural da obra pelo compositor.
Podemos constatar através deste quadro que de um total de 106 versos no Orestes, 58 A primeira versão de Orestes em Ypsilanti respeitava estritamente a ordem dos versos.
são falados, 29 versos correspondem a sequências instrumentais, e somente 18 são canta- Nas revisões da peça realizadas até 26 anos após a estreia, Xenakis se permitiu a algumas
dos. Entretanto, esses quadros devem ser considerados com algumas reservas: o primeiro modificações, que não comprometem o curso da intriga : V. 121, 688 e 681 em Agamenon;
(qualitativo) se limita a classificar os versos iniciais indicados na partitura, sendo que a V. 459, 466, 471, 476 e 479 em Coéforas; e finalmente V. 984 em Eumênides.
sua extensão não é indicada, com exceção do final de Eumênides. A cronometragem das Os cortes na longa versão original foram na maioria seções instrumentais lentas.
sequências vocais da primeira gravação mundial21 colocadas em relação com a duração Xenakis com isso certamente quis imprimir um caráter mais dinâmico à obra. As cor-
de cada movimento nos deu os seguintes resultados: respondências entre sons, personagens e circunstâncias são numerosas : Xenakis não quis
fazer uma pura abstração musical, como na maior parte da sua produção artística. Em
3.2- Visão global das durações Agamenon, por exemplo, chamamos de “acordes trágicos” os blocos sonoros trinchantes,
estridentes e graves ao mesmo tempo, para assim ilustrar a dor e o luto pela morte do rei.
duração total duração-sequências porcentagem de Em Coéforas são utilizadas percussões acessórias variadas (ver 2 - Instrumentação)
vocais sequências vocais espalhados na orquestra e no coro de homens (posicionados ao lado do público), o que
Agamenon 14’34’’ 3’54’’ 27,4% possibilita uma rica espacialização do som no Orestes. Não levamos em conta aqui os meios
Coéforas 11’43’’ 5’20’’ 45,5% eletroacústicos utilizados, que devem se adaptar a cada local de concerto. Os silêncios de
Eumênides 9’17’’ 5’24’’ 58% cunho dramático são explorados no início de Coéforas, após a morte do rei Agamenon,
e se constituem num elemento raro na obra de Xenakis. O coro de crianças representa
Orestes 35’34’’ 14’38’’ 39,3%
as Eumênides, benfeitoras, protetoras da cidade de Atenas. Uma outra correspondência
entre sons e personagens é a utilização no registro agudo em várias passagens da flauta
Os movimentos são cada vez mais curtos e as vozes cada vez mais presentes. De um
transversa, oboé e clarineta, que chamamos “trio malvado”, para fazer alusão às Erínias,
ponto de vista panorâmico, o uso da voz torna-se mais denso do início ao fim. Porém,
que são também representadas em outros momentos por sirenes de boca.
esse último quadro não distingue os versos cantados dos falados.
Se Xenakis quis compor uma peça de relativa facilidade de execução para os coros
(convém não esquecer da escrita microtonal para as vozes), o mesmo não pode ser
20 Carta manuscrita em inglês de 26 de fevereiro 1992 a Ian Julier, diretor da editora Boosey&Hawkes.
Arquivos Xenakis, Dépôt BnF-Mus, Paris. afirmado quanto à parte instrumental da Suite Orestes, à Kassandra e La Déesse Athéna
21 Oresteïa, CD Montaigne (MO 782151). Maîtrise de Colmar, Ensemble Vocal d’Anjou, Ensemble de Basse (mesmo se essas duas últimas fogem do nosso foco). A primeira gravação mundial (e
Normandie. Gravação ao vivo realizada pela Radio-France do espetáculo produzido pelo Atelier du Rhin et única até a realização dessa pesquisa em 2005) nos revela alguns pontos a serem melhor
Production artistique Réalisations Internationales no Festival Musica de Strasbourg, Igreja Sainte Aurélie, dias 4
e 6 de outubro de 1987. interpretados nas versões posteriores, como os micro-intervalos e os ritmos não sincro-

184 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 185
nizados, que contribuem para o ambiente arcaico e novo ao mesmo tempo, conforme a e curiosos sobre tudo o que é novo. [...] Estamos bem longe do estado hipnótico e
proposta do compositor. desgastado (“blasé”) dos europeus que disseram tudo e não esperam mais nada. É isso que
explica talvez a extrema gentileza nas relações humanas.27 (XENAKIS, s.d.)
4 - Xenakis e o teatro Nô Num outro manuscrito em inglês, provavelmente de 1972, quando o Orestes foi exe-
É certo que em Ypsilanti quando eu me lancei no Orestes, a ideia em meu espírito era de cutado em Tókio, Xenakis propõe o uso de instrumentos, máscaras e figurinos de teatro
realizar um teatro total, ou pelo menos ir nesse sentido. Hoje, o teatro total, com a vida e a Nô para a mise-en-scène! Ele aceitaria mesmo a fonética japonesa para a interpretação
harmonia interna que o definem, só existe verdadeiramente a meu ver fora do Ocidente – de Orestes.
no Japão, em Java, mesmo na Índia, eventualmente na África. Aliás eu penso que na época Alguns instrumentos podem ser substituídos por instrumentos tradicionais japoneses,
em que ela ainda vivia, a tragédia antiga devia ser muito mais próxima do Nô japonês do sempre que isso for possível. Eu penso que a frugalidade da ação do Nô representa um
que a forma pela qual nós vemos uma obra de Ésquilo ou Sófocles representada. Separem profundo poder de expressão dramática que deveria ser refletido na montagem de Orestes.
no teatro Nô a música da ação cênica, ou a ação cênica da música: o resultado em cada vez Eu até admitiria trajes e máscaras japonesas do repertório Nô, corretamente escolhidas,
será uma prova. Essa forma se predispõe a todos os testes suscetíveis de examinarmos a tendo em mente que o drama grego antigo também se servia de máscaras, mesmo se
sua validade teatral. Mesmo isolado, cada elemento do Nô conserva todo o seu interesse.22 nós saibamos muito pouco sobre a maneira e o estilo em que eles se serviam. A fonética
(XENAKIS, 1996, p. 58) também deveria ser inspirada da língua japonesa antiga, como ela é usada no teatro Nô.28
O contato de Xenakis com o texto das tragédias gregas remonta à sua infância, en- (XENAKIS, c. 1972)
quanto que a cultura oriental e o teatro Nô foram descobertos mais tarde pelo compositor As coincidências entre as tragédias gregas e o teatro Nô japonês vão além do uso das
já adulto, em 1961, em um encontro musical internacional no Japão. Ele se fascinou máscaras segundo Xenakis. No Japão, várias culturas coexistem em harmonia : budismo,
com as diferenças culturais e escreveu o texto intitulado em francês “L’éclat du Japon”,23 zen, shinto, cristianismo, ateísmo e as ciências. Da mesma forma, com a arquitetura, as artes
traduzido em inglês sob o título “The riddle of Japan” e publicado em Tókio.24 O título tradicionais e os hábitos familiares. Muitas formas de se viver são possíveis. O compositor
em inglês revela a natureza da língua japonesa e sua abertura a várias interpretações de compara esse agenciamento sociocultural japonês com a civilização helênica, onde todas
um mesmo significando. “Riddle” quer dizer “enigma, mistério, charada, adivinhação”.25 as religiões, assim como o desenvolvimento das ciências eram igualmente aceitas. Xenakis
Uma possível tradução em português seria “O enigma do Japão”. opõe essa tolerância com o ocidente, que sempre quis monopolizar a cultura através de
Na escrita japonesa, as palavras podem ser desenhadas e lidas conforme múltiplas um modelo único, seja ele a religião, o capital ou o estado.
interpretações. De acordo com Xenakis, “a literatura japonesa pode ter ressonâncias
infinitas em sons e imagens”.26 A razão para tal é a tripla natureza da língua japonesa, 5 – Conclusão
que deriva de uma ideografia chinesa sobre a qual são acrescentados dois alfabetos silá-
Minhas composições representam uma visão filosófica em direção à música, uma espécie
bicos japoneses. Xenakis comenta sobre a existência de uma lacuna de precisão entre os
de música universal que é baseada nas verdades musicais universais de todas as épocas e
símbolos, os sons e os pensamentos. A interpretação de signos tem um papel ativo na
civilizações. Elas são ao mesmo tempo muito antigas e muito novas.29 (XENAKIS, 1966)
comunicação dos orientais. Isso poderia explicar em parte a curiosidade dos japoneses, a
vontade e o prazer deles em conhecer outras culturas, além da faculdade de assimilação. Fruto de um espírito científico que construiu uma obra artística complexa e inter-
disciplinar, o pensamento de Xenakis encontra sua origem na antiguidade grega e nas
Pela linguagem e pela cultura o japonês se encontra realmente no clímax mais avançado
ciências atuais, para realizar uma obra musical original e inédita. Num contexto onde a
do pensamento ocidental, que os modos de expressão simbólicos e sonoros têm tanta
dificuldade em acompanhar. [...] Essa polivalência do pensamento os torna alertas

22 “Il est certain que, lorsque à Ypsilanti je me suis lancé dans l'Orestie, l'idée était présente à mon esprit sinon 27 Iannis Xenakis, "L'éclat du japon", manuscrit, Archives Xenakis, BNF, Paris, p. 5. “Par le langage et par
de réaliser un théâtre total, du moins d'aller dans ce sens là. Aujourd'hui, le théâtre total, avec cette vie et cette l'écriture le japonais se trouve d'emblée dans le climax le plus avancé de la pensée occidentale, que les modes
harmonie interne qui le définissent, n'existe à mon sens véritablement qu'à l'extérieur de l'Occident - au Japon, d'expression symboliques et sonores ont tant de peine à suivre. […] Cette polyvalence de la pensée les rend alertes
à Java, en Inde même, éventuellement en Afrique. Je pense d'ailleurs qu'à l'époque où elle vivait encore, la et curieux de tout ce qui est nouveau. […] On est bien loin de l’état hypnotique et blasé des européens qui ont tout
tragédie antique devait être beaucoup plus proche du Nô japonais que de la façon qu'aujourd'hui nous avons de dit et n’attendent plus rien. C’est ça qui explique peut-être l’extrême gentillesse dans les relations humaines.”
représenter une œuvre d'Eschyle ou de Sophocle. Séparez dans le théâtre Nô la musique de l'action scénique 28 Iannis Xenakis, manuscrito provavelmente de 1972, Archives Xenakis, BnF-Mus, Paris. “Some of the
ou l'action scénique de la musique: le résultat sera à chaque fois probant. Cette forme-là se prête à tous les tests instruments can be replaced by Japanese traditional ones whenever this is possible. I think that the frugality of
susceptibles d'examiner sa validité théâtrale. Même isolé, chaque élément du Nô conserve tout son intérêt.” the action in the Noh constitutes a deep power of dramatic expression which should be reflected in the staging
23 Iannis Xenakis, “L’éclat du Japon”, texto manuscrito de 1961, Archives Xenakis, Dépôt BnF-Mus, Paris. A of Oresteia. I would admit even traditional Japanese costumes and masks adequally chosen from the existing
cópia foi gentilmente enviada por Sharon Kanach. Noh repertoire, bearing in mind that the ancient Greek drama used such tools although we very little know
24 Iannis Xenakis “The riddle of Japan” in This is Japan, Tokyo, journal Asahi Shim Bun, 1962. Cópia about the way and the stile they had. The phonetics also should be inspired from the ancient Japanese language
gentilmente enviada por Sharon Kanach. as it is used in Noh.”
25 Dictionnaire Le Robert & Collins Super Senior. 29 Iannis Xenakis, Special Feature, Ypsilati, Release Ypsilanti Greek Theatre, 19 de maio 1966: “My
26 Iannis Xenakis, "L'éclat du japon", manuscrit, Archives Xenakis, BNF, Paris, p. 5. “La littérature japonaise compositions represent a philosophical approach to music, a kind of universal music that is based on the
peut avoir des résonances infinies en sons et en images.” universal truths of music from all ages and civilisations. It is both very old and very new.”

186 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 187
vanguarda europeia preconizava que “todo compositor é inútil fora das pesquisas seriais”,30 ESCHYLE SOPHOCLE. Tragiques grecs. Bibliothèque de la Pléiade. Trad. Jean Grosje-
Xenakis aparece como uma força inovadora sem precedentes, mesmo se ele não encontra an; introdução e notas Raphaël Dreyfus. Paris: Éditions Gallimard, 1967
reconhecimento imediato a partir da segunda metade do século XX.
REINACH, Theodore. La musique grecque. Paris: Éditions d´aujourd´hui, 1926.
Em seu Orestes, a presença de numerosos versos falados, poucos versos cantados e
numerosas sequências instrumentais (com indicações de versos) provam que Xenakis SOLOMOS, Makis. Iannis Xenakis par Makis Solomos. Mercuès: P.O. Éditions, 1996.
transportou a língua de Ésquilo tanto instrumentalmente “num forte condensado sono-
SOLOMOS, Makis. Présences de Iannis Xenakis. Paris: CDMC, 2001.
ro”, tanto pelo texto falado/cantado com a suposta fonética do V séc. A.C. o Ambiente
arcaico é atingido com os instrumentos (“acordes trágicos”) assim como pela voz (gritos SOLOMOS, Makis; GEORGAKI Anastasia. International Symposium Iannis Xenakis-
no final de Eumênides, sequências em recto-tono, uso do falsete). conference proceedings. Athènes: The National and Kapodistrian University of Athens, 2005.
Xenakis selecionou majoritariamente versos do Coro e do Corifeu, o que nos leva
a supor que o seu objetivo com isso era reforçar o personagem coletivo da cidade de VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET Pierre. Mythe et tragédie en Grèce ancienne
Atenas, que conta a sua própria história. A vontade de fazer dos coros os portadores da Tome I. Paris: Editions la Découverte/Poche, 2001.
palavra inteligível (para os que falam grego antigo) justifica os numerosos versos falados VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET Pierre. Mythe et tragédie en Grèce ancienne,
e a relativa simplicidade dos textos cantados (lembramos que o uso de quartos de tom Tome II. Paris: Editions la Découverte/Textes à l’appui, 1986.
par aos coros é comum na peça). O compositor utilizou também vozes superpostas e
não-sincronizadas, gerando nuvens de sons. A transcrição de versos entretanto permitiu VERNANT, Jean Pierre. Entre mythe et politique. Saint Amand: Éditions du Seuil, 1996.
o estabelecimento de uma série de correspondências entre os personagens, a intriga e os XENAKIS, Iannis, Kéleütha. Paris: L’Arche Éditeur, 1994.
instrumentos musicais.
Xenakis se inspirou da integração total das artes nas tragédias e no teatro Nô, e como XENAKIS, Iannis. Musique et Originalité. Paris: Nouvelles Editions Séguier, 1996.
vimos, ele sugere até interseções no uso de figurinos e máscaras japonesas para a monta- XENAKIS, Iannis, Oresteia for baritone, mixed and children´s chorus, and chamber ensemble.
gem. O seu Orestes dificilmente poderia ser apreciado sem a mise-en-scène, levando em Londres: Boosey & Hawkes, 1992.
conta as numerosas “ilustrações” sonoras entre a intriga e a música, como indicamos. O
compositor não quis tentar fazer reconstituição histórica, mesmo se algumas convenções ZEAMI. La tradition secrète du Nô suivi de Une journée de nô. Connaissance de l’Orient.
das tragédias gregas foram mantidas. A respeito de À Hélène para coro de mulheres (ou Tradução e comentários de René Sieffert. Paris: Gallimard/Unesco, 1960.
de homens) e À Colonne, para coro de mulheres (ou de homens) e 18 músicos, compostos
em 1977, SOLOMOS (1996, p. 73) escreve que “é com a primeira que aparece pela pri-
meira vez a tentação de reconstituição histórica. [...] Ele (Xenakis) se interessava desde
então à fonética do grego antigo, o que lhe permitiria introduzir a prosódia, ignorada
deliberadamente em Orestes”.31
Iannis Xenakis optou por inovar pela música e pelas suas sugestões de correspondên-
cias da tragédia grega com outros patrimônios culturais, na sua interpretação da trilogia
clássica de Ésquilo. O seu Orestes permanece uma peça musical de interesse central para
aqueles que desejam conhecer melhor a vida e a obra do compositor.

Referências
BITTENCOURT, Pedro. Une lecture de l’Oresteia de Xenakis. Dissertação (Mestrado em
Música), Universidade Michel de Montaigne Bordeaux 3, França, 2005.
DUFOURCET, Marie-Bernadette; HAKIM, Naji. Guide pratique d’analyse musicale.
Paris: Éditions Combre, 1995.

30 Texto original: “tout compositeur est inutile en dehors des recherches sérielles”, Pierre Boulez, “Schoenberg
est mort”, Relevés d’apprenti. Paris Seuil, 1966, p. 271 (apud SOLOMOS, 1996, p. 22).
31 “c’est avec la première qu’apparaît pour la première fois la tentation de la reconstitution historique. […]
Il [Xenakis] s’intéressa désormais à la phonétique du grec ancien, ce qui permettra d’introduire la prosodie,
qu’ignorait délibérément l’Orestie.”

188 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 189
O Órgão da Antiga Sé do Rio de Janeiro
como patrimônio virtual:
sua atualização hoje
Daniel Vincent Birouste
Manufacture d’Orgues de Plaisance du Gers, France
Paulo Eduardo Martelli
Faculdade de Artes Alcântara Machado

Expomos aqui uma reflexão na qual se funda o programa da terceira reconstrução


do órgão de tubos da igreja Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé no Rio de Janeiro.
Buscamos estabelecer um paralelo entre a evolução da estética sonora do órgão e a
evolução da questão filosófica da individuação. Começando pelo órgão gótico, que pode
aparecer como uma caracterização do pensamento de Santo Agostinho e o pensamento
da emanação divina até o órgão contemporâneo, que pode ser pensado em forma de
rizoma, o que se relaciona com o pensamento da imanência de Deleuze e Simondon. A
evolução da Antiga Sé, que foi Capela Real, Catedral metropolitana e hoje Monumento
Histórico, fez aparecer os sucessivos órgãos intimamente ligados aos destinos deste
monumento. Manter o relacionamento entre o uso contemporâneo deste edifício e a
construção de um novo órgão constitui o objetivo desta proposta.
Tomando como empréstimo o conceito “virtual” de Bergson, desenvolvido por
Deleuze, nosso intuito será, através deste trabalho, pensar esse conceito, relacionando
os vários momentos da história do órgão, no sentido de estabelecer quais eram as
necessidades de cada período e poder chegar assim até os dias atuais para responder à
pergunta: Que escolha faremos para a reconstrução do órgão da Antiga Sé, levando em
conta as necessidades musicais de hoje? Para começar, tentaremos definir o que seria o
virtual segundo Deleuze.
Pois como mostrava Bergson, a lembrança não é uma imagem atual que se formaria depois
do objeto percebido, mas a imagem virtual que coexiste com a percepção atual do objeto.
A lembrança é a imagem virtual contemporânea do objeto atual, seu duplo, sua “imagem
especular”.Também há coalescência e cisão, ou, antes, oscilação, troca perpétua entre o objeto
atual e sua imagem virtual; a imagem virtual torna-se, continuamente, atual, como em um
espelho que se apodera do personagem, tragando-o, e deixa para ele, por sua vez, apenas
uma virtualidade, à maneira de A dama de Shangai. (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 123)
Para responder à pergunta proposta no primeiro parágrafo é preciso verificar em cada
período como se dava a relação de três elementos importantes: o homem, o mundo e o
divino para em seguida pensar o que representava o órgão em cada época.
Durante a Idade Média Deus era o centro de tudo. O órgão gótico tinha como
característica o fato de que cada tecla fazia soar um conjunto de tubos valorizando
oitavas e quintas sem possibilidade de individualização de cada tubo. Podemos fazer

ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 191


um paralelo entre o órgão gótico e o pensamento de Santo Agostinho pelo fato de Deleuze e Guattari: o rizoma1. Podemos contrapor o rizoma à árvore. A Máquina/
que os tubos representavam um composto de seres diferentes do criador, mas que Árvore é um sistema fechado. Obedece a um centro organizador, mas funciona de
conservavam uma essência divina. A hierarquia da fundamental e as oitavas, quintas etc. um modo hierárquico, cada parte obedecendo às ordens centrais ou de vizinhança. A
É o pensamento criacionista inspirado no neoplatonismo, no pensamento da emanação Máquina/Rizoma é um sistema aberto, descentrado, onde cada parte é independente
de Plotino. “É a produção de tudo o que não é Uno a partir do Uno, que emana dele”. e pode ser conectada com outra qualquer, não havendo necessidade de filiações ou
Porém, apesar de se procurar uma harmonia que representasse as esferas, a afinação não hierarquias. Ora, se pensarmos no órgão tradicional ou no órgão unificado, veremos
devia ser tão justa pelo fato do que o órgão desta época não tinha ainda um sistema que se encaixam bem com o conceito de Máquina/Árvore. Pois se pensarmos de que
de regulação para assegurar a estabilidade do ar. Isso provavelmente fazia com que o maneira são dispostos os registros, em forma de fileiras e que os comandos dos registros,
órgão emitisse um som um tanto gritante/brilhante. Esse brilho talvez fosse almejado, sendo mecânicos ou eletrônicos acionam uma fileira inteira de tubos, teremos toda
justamente para significar a centelha divina. De qualquer maneira, era um período onde uma ordem de hierarquias a serem obedecidas – são as famílias de registros. Com esse
o “mágico” ou o “religioso” prevalecia e o órgão concordava com essa aura mística. sistema não é possível uma total independência polifônica tímbrica. Exemplo: no órgão
A partir do Renascimento e o deslocamento do centro para o Anthropos, o órgão unificado não podemos acionar um registro para o soprano e um outro para o contralto
que já vinha incorporando características polifônicas, passou a ter a necessidade de tocados no mesmo teclado. Com a tecnologia IPC, apesar de os tubos poderem estar
uma individualização dos tubos em registros com um ataque preciso afim de realizar dispostos em fileiras, o acionamento de válvula é individualizado, podendo proporcionar
essa música contrapontística. Nessa época existia toda uma busca por um “sujeito” uma grande liberdade de conexões. É um sistema rizomático, que com uma grande
por trás das proposições que pode ser encontrada no pensamento musical da fuga por economia de tubos, abre enormes possibilidades, como melodia de timbres, abertura
exemplo e no campo filosófico podemos fazer um paralelo com pensadores barrocos de válvulas em décimos de segundo, uso de mais de um registro em pequena parte
como Leibniz e seu conceito de “mônada” e Descartes e seu: “Cogito ergo sum”. Porém do teclado, utilização de outras interfaces que não o teclado tradicional como tablete
Spinoza já apresentava seu pensamento de um Deus “imanente”. No período clássico, gráfico, captação gestual ou infravermelho www.modulorgue.com. Mas não só a música
valorizando a melodia acompanhada em detrimento do contraponto, a música ainda contemporânea é beneficiada. O fato das válvulas poderem ser acionadas em velocidades
buscava um sentido com a palavra, com a retórica, ou seja com o “logos”. Nesse período diferentes, modifica o ataque, possibilitando por exemplo, o uso da articulação dental,
o pensamento musical pode ser representado pela forma “sonata” e no lugar do “sujeito” ideal para a música “que fala” como diz Harnoncourt, que vai da música renascentista
e “contrassujeito” da fuga, o tema A, o tema B, desenvolvimento e recapitulação. E até a clássica.
os registros do órgão de uma maneira geral, do período renascentista até o clássico, Esse sistema foi escolhido para o órgão da Antiga Sé do Rio de Janeiro. O novo
necessitavam ter uma articulação dental precisa para essa música “falada”. órgão integrará elementos do órgão polifônico, principalmente com o “Positivo” e o
Se, no período medieval prevalecia Deus, no período clássico o indivíduo. No século “Grande órgão”. Elementos do órgão sinfônico, principalmente com o “Solo” e o
XIX, prevaleceu a “pessoa romântica”. Nesse período de subjetivismo, para responder “Recitativo”, juntamente com toda a novidade tecnológica para a música contemporânea.
a essa necessidade, o órgão passou a ter uma característica sinfônica. Mais harmônico E o importante também é que um órgão não é constituído somente por determinada
do que contrapontístico e com registros individualizados e com tubos geralmente com tecnologia. A harmonização dos tubos pelo organeiro é talvez o maior diferencial na
articulação labial, esse instrumento mais “pintava” do que “falava”. O objetivo era criar construção de um órgão. Só através de sua hecceidade e sua extrema sensibilidade é
um clima psicológico, um sentimento ou um pathos e também podemos dizer que a possível construir um instrumento com um bom estilo e que esteja de acordo com o
relação com a literatura era muito forte. Foi a época do poema sinfônico. A época áurea legado histórico de um determinado patrimônio.
da representação. O legado essencial dos órgãos sucessivos da Antiga Sé é representado pela «boiserie»
Desde Kant, ainda com seu “sujeito transcendental” até Schopenhauer e Nietzsche, constituída de dois corpos: O «Grand Massif»2 e o Positivo. O aspecto visual do órgão
e a crítica que fizeram do “sujeito”, se o centro de Deus cai, cai também o homem. barroco primitivo nos é bem conhecido graças a três quadros: Coroação de D. Pedro I, de
Aparece agora a ideia do pré-individual. Filósofos atuais como Gilles Deleuze e Gilbert Jean-Baptiste Debret; O juramento da Regência Trina Permanente, de Manuel de Araújo;
Simondon exploraram muito o assunto. A função moderna da arte, segundo Deleuze, é e Casamento da Princesa Isabel com Conde D’Eu, de Pedro Américo.
dizer o indizível, é mostrar o não visível. É capturar as forças. Não mais emanação, mas
imanência. Não mais hierarquias. É por isso que propostas modernas para a fabricação
de órgãos de tubos que respondam às necessidades da música moderna não se esgotam.
Dentro dessas propostas está o sistema Individual Pipe Control (doravante
IPC). A tecnologia IPC constitui uma mudança total no relacionamento do músico
1 Rizoma - Um rizoma como haste subterrânea distingue-se das raízes e radículas. Os bulbos, os tubérculos, são
(compositor/intérprete) com o instrumento pelo fato de cada tubo ser considerado rizoma. Princípios de conexão e heterogeneidade: qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer
agora individualmente e não mais como elemento inseparável de um conjunto de fileiras outro e deve sê-lo. É muito diferente da árvore ou da raiz que fixam um ponto, uma ordem. (DELEUZE e
ou registro. Isso permite conexões antes impossíveis e nos faz lembrar de outro conceito GUATTARI, 1995).
2 Grand Massif: trata-se da estrutura onde ficam dispostos todos os tubos do órgão, menos os tubos do
Positivo.

192 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 193
Atualmente, só a fachada de madeira integrada no corrimão do coro, de estilo Rococó,
pertence ao órgão primitivo. Essa é a fachada do antigo Positivo, característica dos órgãos
barrocos. O «Grand Massif», localizado atrás do Positivo é de estilo neo-Louis XVI,
construído em 1924 para substituir o antigo móvel que sustentava os tubos maiores
do órgão inicial. Durante o nosso contato com o órgão da Antiga Sé descobrimos que
o aspecto visual do conjunto de madeira é eclético. A análise detalhada desses dois
corpos de marcenaria nos mostrou que o legado do passado não foi possivelmente
mantido em boas condições: durante a reconstrução do órgão em 1924, todo o gabinete
do Positivo havia sido destruído, sobrando apenas a fachada barroca que servia para
dissimular o maestro. Um grande espaço foi criado no coro para acomodar um grande
coral e o «Grand Massif», que servia para conter os tubos do órgão, foi relegado ao
fundo da tribuna. O projeto musical do órgão de 1924 era claramente desempenhar
o acompanhamento de um coro litúrgico. Sobre o plano sonoro, a posição do «Grand
Massif», no fundo da tribuna, foi um problema real de difusão sonora, agravado pelo fato
Jean-Baptiste Debret - Coroação de D. Pedro I desse «Grand Massif» ter pouca altura. Não só a difusão sonora desse órgão deixava a
desejar, como a relação visual entre o Positivo e o «Grand Massif» ficou desequilibrada.
A fachada do Positivo ficou preponderantemente aparecendo.
A reconstrução proposta do órgão da Antiga Sé está sendo claramente focada na
organização de concertos. Por isso estimamos que os critérios acústicos que levaram ao
estabelecimento do «Grand Massif» do órgão de 1924 não poderiam ser mantidos. É
por isso que nós temos permissão do IPHAN para mover o «Grand Massif» para perto
da parte traseira do Positivo e elevar a base. Também foi aprovado o nosso desejo de
reconstituir todo o armário do Positivo para que o órgão de tubos possa desfrutar de dois
espaços sonoros distintos.
No campo da arquitetura (espacialização sonora e estética visual), o novo órgão da
Antiga Sé aparece em uma nova forma, incorporando todos os elementos antigos a que
tínhamos chegado.
Sem material histórico suficiente para justificar uma reconstituição arqueológica, nós
imaginamos uma atualização do órgão da Sé antiga, relacionando “momentos de sua
historia”.
Manuel de Araújo Porto Alegre - O juramento da Regência Trina Permanente Portanto, pelos “momentos de sua história” queremos dizer tanto os fatos objetivos,
como tudo o que alimenta o nosso Imaginário. Uma realidade histórica pode ajudar a
compreender tal postura: a obra emblemática do Padre José Maurício está intimamente
ligada à história musical desta igreja. Ainda não temos música para órgão do compositor,
apesar de sabermos que ele foi um organista excelente. Segundo a pesquisadora
Cleofe Person de Mattos, “Em algumas poucas peças, o registro do instrumento vem
parcialmente realizado e diz muito pouco do organista famoso que a tradição guardou”
(MATTOS, 1970, p. 32). Propomos, portanto, que nosso imaginário venha a nos suprir
a ausência de partituras realizadas para o instrumento.
Observamos que a história do órgão da Antiga Sé do Rio de Janeiro se divide em
três períodos que correspondem a três usos diferentes desta igreja. No primeiro período,
o órgão era usado para a magnificência das cerimônias políticas na Capela Real. Era
um órgão de estética sonora clássica, com transmissão mecânica e «boiserie» de estilo
Rococó. O segundo período foi marcado pela personalidade do cardeal Arcoverde, que
Pedro Américo - Casamento da Princesa Isabel com Conde D’Eu, em destaque o antigo órgão. realizou importantes obras para dar prestígio a sua catedral. A reconstrução do órgão
deste período participou dessas realizações. A música religiosa de tal período ainda

194 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 195
era influenciada pela estética do órgão sinfônico. O instrumento foi reconstruído com
transmissão pneumática dentro duma «boiserie» eclética.
No período atual, esta igreja não se enquadra como aparato do poder político, nem é
a sede do poder religioso apesar de ser uma paróquia ativa. É um monumento histórico,
abundantemente visitado com programação de numerosos concertos.
Durante os dois primeiros períodos, o órgão -patrimônio musical da igreja Nossa
Senhora do Carmo- foi cada vez adaptado aos usos deste monumento. A estética visual,
o material sonoro e a tecnologia de transmissão passaram por mutações de um período
para outro.
Ao longo destas linhas, tentamos expor a reflexão na qual se funda o programa da
terceira reconstrução deste órgão. Não está mais ao serviço de um poder externo, político
ou religioso, com a missão de promover a magnificência da duração e da estabilidade,
mas sim ao serviço de um poder instável e incerto: a criação artística de nosso tempo.
Começamos este artigo com o conceito virtual de Deleuze e a história do órgão pela
Idade Média e agora o terminaremos retornando a ela com o pensamento do franciscano
Duns Scotus, que nos fala do conceito “hecceidade”. A exclusividade de um ser, que o
torna diferente de todos os outros. Aquilo que ele tem de mais singular. O contemporâneo
Deleuze se encontra agora com o pensamento do padre medieval. Um ateu e o
outro crente em Deus, mas os dois com o idealismo da fé na Vida. Ambos pensaram
a univocidade do ser. E ambos valorizaram mais a experimentação do que a busca de
essências transcendentais. É um bom conceito para substituir os antigos conceitos de
“forma”, “matéria” e “substância”, junto com outros como “informação inicial”, ”potencial
energético”, “ressonância interna”, “ordens de Grandeza” de Gilbert Simondon.

Referências
DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Editora Escuta, 1998.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs Capitalismo e Esquizofrenia. Volume
1 Editora 34, 1995
MATTOS, Cleofe Person de. Catálogo temático José Mauricio Nunes Garcia. Rio de Janeiro:
Conselho Federal da Cultura, 1970.
SIMONDON, Gilbert. L’individuation à la lumière des notions de forme et d’information.
Édition Jérôme Millon, 1958.
www.modulorgue.com/innovations.html improvisações do organeiro e organista Mickaël
Fourcade usando transmissão IPC e somente tubos de órgão sem recurso eletroacústico.
www.modulorgue.com/pieces.html interpretações do organista Marc Chiron usando
transmissão IPC e somente tubos de órgão sem recurso eletroacústico.

196 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER


Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
vol. 1 - Atualidade da Ópera
vol. 2 - Teoria, Crítica e Música na Atualidade
vol. 3 - Patrimônio Musical na Atualidade: Tradição, Memória,
Discurso e Poder
vol. 4 - Verdi, Wagner e Contemporâneos
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