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CORPOREIDADE E SUBJETIVIDADE EM MERLEAU-PONTY

Luana Lopes Xavier


Universidade Federal de Goiás
luanafilosofia@gmail.com
6. Fenomenologia e Corporeidade

Resumo

O presente texto se propõe na esteira do pensamento merleau-pontyano, compreender as noções de corporeidade e


subjetividade, retomando a problemática relação homem-mundo e a ideia de subjetividade que levou muitas
inquietações ao pensamento de Merleau-Ponty. Mediador da relação entre o sujeito e o mundo, o corpo unido à
consciência torna-se uma consciência corporificada; fundada na experiência sensorial do sujeito. A subjetividade, raiz da
experiência humana, está na interiorização do mundo no sujeito e na sua intrínseca ligação corpórea com o exterior, na
abertura do sujeito ao mundo, no corpo e na relação vital do homem com o mundo.

Palavras-chave: Corpo; mundo; sujeito; subjetividade; Merleau-Ponty.

Introdução

A noção de corpo aparece na Fenomenologia da percepção como a maior aproximação do


homem com o mundo, esta obra mostra a participação efetiva e crucial do corpo no envolvimento
com as coisas no mundo. Pensar o corpo e tentar descrever a sua dimensão não é uma tarefa fácil,
partir da fenomenologia de Merleau-Ponty nos faz reconhecer a autenticidade de um pensamento

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que dá primazia ao corpo e que, nesse mesmo sentido, elabora a ideia de um sujeito nas suas
próprias experiências. Corporeidade que se mostra efetivamente pelos sentidos, pela mão que toca
ou pelo gesto que ganha sentido enquanto se realiza. Experiências que surgem de um corpo e para o
qual criam a consciência, a subjetividade é um dos maiores problemas que Merleau-Ponty coloca. E
se unirmos corporeidade e subjetividade, podemos compreender a proposta desse texto.
O corpo que apontamos aqui é o Leib, corpo-próprio considerado por Merleau-Ponty, o
corpo que se dirige ao mundo e para o qual se revela como sujeito encarnado. O filósofo rompe com
a ideia de um Körper ou corpo como substância, para Merleau-Ponty o corpo está no mundo como
todos os objetos, mas possui uma extensão e capacidade reflexiva. O corpo como mediador da
relação do homem com o mundo se desdobra em outras noções como a intersubjetividade e a
intencionalidade. A experiência perceptiva do sujeito surge mediante a sua presença enquanto corpo
no mundo. O corpo-próprio ou corpo-sujeito vai de encontro com o problema da subjetividade que
aparece na filosofia merleau-pontyana principalmente pela sua retomada do pensamento cartesiano.
A filosofia de Descartes aponta para uma consciência que se constitui em meio à necessidade
de um sujeito pensante frente ao dualismo res cogitans e res extensa. Na esteira desse mesmo
pensamento, a consciência aparece como algo que se abre para o mundo ao contrário do que
Merleau-Ponty pensa em sua filosofia, o corpo está aberto ao mundo e a consciência está
incessantemente em direção a ele. O corpo-sujeito colocado por Merleau-Ponty aparece no interesse
de, contra um pensamento causal, suscitar a íntima ligação do corpo com o mundo pré-reflexivo. As
coisas existem no mundo para mim que sou sujeito, na intrínseca relação que possuo com elas antes
mesmo de se instalarem em meu pensamento, elas surgem para mim no momento em que eu as
percebo pelos sentidos do meu corpo.
A subjetividade humana é necessariamente corporificada ou encarnada, o corpo é o nosso
modo de ser-no-mundo, o corpo por primordialmente mediar a nossa relação com o mundo mostra
onde se encontra a raiz da subjetividade, no nascimento da percepção, mais precisamente no mundo
pré-reflexivo. O ser corporificado é a carne do mundo, a consciência de alguma coisa é sempre a
consciência de um sujeito, as coisas surgem no mundo sempre para uma consciência, elas se
enraízam no nosso corpo e nosso corpo se enraíza ao mundo.

Corporeidade e subjetividade em Merleau-ponty

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Como já citado anteriormente, o corpo para Merleau-Ponty é o Leib, o corpo-próprio ou
corpo-sujeito que se confronta com a ideia de um corpo substância ou Körper. O corpo visto e
compreendido como objeto suprime a relação do corpo com a consciência, a consciência do corpo é
recusada e a alma é repelida. O corpo do qual tratamos aqui possui expressão e fala, é o que nos faz
ser-no-mundo e o que nos vincula a ele. O nosso corpo é intencional, isto é, possui consciência das
coisas porque a nossa consciência é corpórea, essa noção clássica e dicotômica da relação entre
sujeito e objeto é ultrapassada pela fenomenologia de Merleau-Ponty. O nosso corpo possui
presença e espacialidades efetivas, a nossa experiência de mundo se desvela no próprio espaço
objetivo no qual o nosso corpo toma consciência e ganha uma dimensão que não separa o mundo
dele mesmo.
Ser corpo no mundo é ser um Leib, corpo-próprio que ganha sentido por estar no mundo e
ser totalmente apreendido por ele, é estar “atado a um certo mundo”1. Sobre A síntese do corpo

1
Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção, 2011, p. 205.
próprio Merleau-Ponty afirma, “nosso corpo não está primeiramente no espaço: ele é no espaço”2. O
conhecer acerca do mundo surge de um corpo que não é um “ser pensante” mas um corpo que
percebe, que não é a extensão das coisas e nem mesmo uma coisa entre as coisas.
O papel fenomenológico que Merleau-Ponty atribui ao corpo é de uma profundidade em
conceitos e que se faz valer também de uma ruptura ou até mesmo de uma continuação do
pensamento cartesiano. A tradição cartesiana que traça por assim dizer, uma dualidade entre o
sujeito e as coisas no mundo, um pensamento que prima pela certeza e que se coloca acima do
sentido e das representações, acaba por destruir a relação originária entre o eu e o mundo e elimina a
experienciação efetiva do mundo. A relação sujeito-objeto na filosofia merleau-pontyana se dá pela
relação corpo-mundo, e o corpo se realiza enquanto tal a partir da sua espacialidade e do
desdobramento de seu ser no mundo.
O corpo constitui um “drama único”, “motricidade”, “visão”, “sexualidade”, que não está
contido no mundo por causalidades, mas por uma consciência que é no mundo corpo e está sempre
em direção às coisas. O corpo-próprio possui uma unidade, eu sou no mundo, sou no espaço e sou
meu corpo e ele me relaciona a tudo.
“O corpo é, para retomar a expressão de Leibniz, a “lei eficaz” de suas mudanças” 3, diz
Merlau-Ponty comparando o corpo a uma obra de arte, o corpo se desdobra em seus sentidos , um
certo “estilo dos gestos de minha mão” que acaba por implicar num conjunto de movimentos. Todas

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as minhas percepções são ligadas por uma configuração corpórea que, como num quadro em que o
saber está na combinação das cores, se constitui a partir das relações entre o corpo visual e o corpo
tátil, um conjunto que reúne braços e pernas, que vê e que toca, o corpo-próprio, o Leib, é no mundo
uma interpretação de si mesmo que se desenvolve pelos seus gestos, através dos seus sentidos e por
meio do acontecimento corporal. No tocante à noção de corporeidade torna-se necessário
recorrer à questão do perceber e do percebido, à relação carnal do homem com o mundo. Eu não
somente apreendo as coisas no mundo como também me relaciono por uma corporeidade vivente,
isso quer dizer, as minhas apreensões sobre o mundo são manifestações inteligíveis constituídas de
signos e significações. Mas não é só isso, “nosso corpo não é objeto para um “eu penso”: ele é um
conjunto de significações vividas que caminha para seu equilíbrio”4, a cada percepção
enriquecemos o corpo-próprio, a nossa entidade sensorial.

2
Idem.
3
Ibidem, p. 208.
4
Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção, 2011, p. 212.
Há uma relação viva do corpo com o mundo, o sujeito da percepção mantém na experiência
não num processo de tomada de consciência mas pela constituição de um mundo que se dá por um
estilo de consciência. Como Merleau-Ponty enuncia no prefácio da sua fenomenologia, ela é um
estilo de pensamento que se deixa praticar e o corpo no mundo se reconhece dessa forma, por uma
relação vital e anterior às causalidades, por um estilo que antecede uma consciência de estado e que
não é um estado de consciência.
O mundo percebido aparece para o sujeito da percepção, o que percebe com o seu corpo-
próprio, aparecerá para aquele que percebe com o seu mundo.

O sujeito da percepção permanecerá ignorado enquanto não soubermos evitar a alternativa


entre o naturante e o naturado, entre a sensação enquanto estado de consciência e enquanto
consciência de um estado, entre a existência em si e a existência para si. Retornemos então à
sensação e observemo-la de tão perto que ela nos ensine a relação viva daquele que
percebe...5

Contra o racionalismo cartesiano, Merleau-Ponty descreve o corpo como um “eu natural”,


um “corpo sujeito” ou “corpo fenomenal” provido de uma estrutura metafísica. Eu sou o meu corpo
na medida em que sou consciência e possuo um saber sobre o mesmo. E como já colocado
anteriormente, o corpo não é um objeto no mundo, é o que eu “vivo”, o que habito, ele é o veículo
de minha experiência subjetiva, o meu corpo sou eu e sou o meu corpo.

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O mundo é repleto de sentidos que são revelados no mundo pelo meu corpo, por esse corpo-
próprio que imbuído de fala, expressão e sexualidade, é no mundo. O corpo é aquilo que vejo no
mundo, aquilo que sinto e aquilo que sou, meu corpo é tocante e tateado, ele é visível e vidente,
sensível a si mesmo.

Da mesma maneira, será preciso despertar a experiência do mundo tal como ele nos aparece
enquanto estamos no mundo por nosso corpo, enquanto percebemos o mundo com nosso
corpo. Mas, retomando assim o contato com o corpo, o corpo é um eu natural e como que o
sujeito da percepção.6

A subjetividade está na relação do homem com o mundo, a fim de mostrar isso, Merleau-
Ponty rejeita as ideias do racionalismo que visa o corpo como um objeto dentre outros no mundo.
Ao contrário de outras filosofias que consideram a consciência como algo que se abre para o mundo

5
Idem, p. 281.
6
Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção, 2011, p. 278.
ou como algo que se constitui, Merleau-Ponty coloca a noção de corpo-próprio como tema central
da relação entre o sujeito e o mundo.
A raiz da subjetividade está no corpo-próprio, no dado imediato do mundo pré-reflexivo, na
experiência do mundo percebido, a concepção de corpo-sujeito mostra a relação pré-objetiva ou pré-
consciente do homem com o mundo. Em contrapartida ao pensamento causal, Merleau-Ponty faz do
corpo o sujeito da percepção, a subjetividade ignorada pelo idealismo quando o mesmo aponta para
uma consciência de mundo que se constitui e apreende as coisas se mostra em seu pensamento.
À luz de Husserl, Merleau-Ponty concebe o mundo prévio e pré-existente que já está ali
antes de tudo, a consciência surge pela facticidade humana, isto é, pela sua existência e pelo eu ser-
no-mundo. A partir dessa reflexão que traz como tema o corpo no mundo, podemos dizer que a
subjetividade é necessariamente corporificada, somos corpo no mundo e somos no mundo enquanto
corpo. A relação entre consciência e mundo é mediada pelo corpo, cabe unir essas duas noções,
subjetividade e corporeidade, para compreender o olhar de uma fenomenologia que preza pela
experiência do sujeito.
Para Merleau-Ponty o subjetivo está relacionado com o mundo, ele não é um mundo
separado como concebemos constantemente, o subjetivo não é um “eu interior”, pois que, ele é o
entrelaçamento do sujeito com o mundo ou com o seu ser-no-mundo, (In-der-Welt-sein). Diferente
de Descartes que colocou o método da dúvida a fim de obter certezas acerca das nossas apreensões

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do mundo, Merleau-Ponty buscou no pensamento husserliano, ou melhor, retomou a redução
fenomenológica, a “volta às coisas mesmas”, para pensar o homem na sua vida fática e no mundo.
A experiência perceptiva está para o filósofo no corpo, a subjetividade se torna assim a
exteriorização das minhas experiências, visto que ela não é um “eu interior” como citado
anteriormente, está em incessante ligação com o exterior ou com o nosso mundo. O retorno ao
fenômeno da experiência se opõe ao pensamento cartesiano nesse sentido, não há mais uma
dicotomia sujeito-objeto ou uma cisão entre o homem e o mundo, Merleau-Ponty rompe com um
pensamento representativo.
O conhecimento e a consciência do mundo são sempre o conhecimento e a consciência de
alguém, a relação do homem com o mundo da experiência não deve ser exaurida totalmente,
Merleau-Ponty une o corpo e a subjetividade e mostra a intrínseca relação que há entre os dois.
Somos no mundo porque somos corpo, a subjetividade e a corporeidade são uma só. Todas as
certezas da subjetividade são para Merleau-Ponty, o tema constante da filosofia: “... porque,
justamente enquanto pressupostos de todo pensamento, elas são “evidentes”, passam desapercebidas
e porque, para despertá-las e fazê-las aparecer, precisamos abster-nos delas por um instante”.7 A
subjetividade não surge do cotidiano corriqueiro ou senso comum, ela nasce do envolvimento
corpóreo na relação com as coisas no mundo, na certeza dos objetos e das impressões que ligo com
esse mesmo mundo que vivencio.
“O corpo próprio está no mundo assim como o coração no organismo; ele mantém o
espetáculo visível continuamente em vida, anima-o e alimenta-o interiormente, forma com ele um
sistema”.8 Segundo Merleau-Ponty, o corpo que cria consciência é o corpo-sujeito que vai ao
encontro do mundo percebido. O corpo dá condições para todos os outros objetos existirem, ele não
é e nem pode ser um objeto, visto que, o “que impede de ser alguma vez objeto, de estar alguma vez
“completamente instituído” é o fato de ele ser aquilo porque existem os objetos”.9 O corpo próprio é
o corpo-sujeito, ele evidencia a facticidade do sujeito no mundo e nos coloca diante do fenômeno da
experiência, “ele é a própria existência em seu movimento de transcendência”.10

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Referências

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

7
Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção, 2011, p. 10.
8
Idem, p. 273.
9
Ibidem, p. 136.
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