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DISSERTAÇÃO

Luis Augusto Santos N°USP:10823125

Disciplina: Filosofia Contemporânea III Profº: Alex Moura

Título: Merleau Ponty além das antinomias

Bem, em nosso brevíssimo texto falaremos um pouco das passagens iniciais de O Visível e o
Invisível de Merleau-Ponty. Mais especificamente, exporemos a proposta do livro de retornar
"às coisas mesmas”, salientando aí a busca de uma ontologia, mostrando o papel central que a
fé-perceptiva ocupa neste gesto; a partir disso, buscaremos apresentar as antinomias e
paradoxos que surgem da noção de fé-perceptiva. Em seguida, almejamos mostrar que os
recursos fornecidos pelo pensamento reflexionante são aparentemente suficientes para
superar as antinomias intrínsecas da fé-perceptiva. Por fim, expomos como este recurso
funciona bem somente dentro de um circuito fechado, mas que não satisfaz as exigências
postas pelo autor em sua investigação.

Introdução

O intuito de O Visível e o Invisível é falar da experiência silenciosa da percepção antes da


reflexão. Nesta investigação que se dirige a um lugar silente, que precede o verbo e o funda, o
autor coloca como necessário um gesto de reeducação do olhar e de retrabalho do conceito. É
ao filósofo a quem cabe esta tarefa. A tarefa de refazer o que fora feito anteriormente, de se
desprender do que fora dito em busca do não dito, de recomeçar a pensar desde de as
condições mais fundamentais de nossa estada no mundo.

Merleau Ponty chama a atenção para este incessante processo de reconstrução das noções
básicas da filosofia, este constante retorno ao começo que o filósofo empreende. Este
movimento de refundação é o próprio retorno ao problema do mundo, é a explicitação de que
a obscuridade da evidência do mundo se mantém refratária a quem intenta desvelar seu
mistério.

A fé perceptiva

“Vemos as coisas mesmas, o mundo é aquilo que vemos”. Com esta frase Merleau Ponty abre
seu prolífico e trabalhoso livro. A significação dessa oração remete ao que o autor chama de
fé perceptiva. A fé perceptiva é o conjunto de opiniões não expressas, implícitas no próprio
ato de perceber e que nos leva invariavelmente a dar crédito ao que percebemos. Importante
salientar que é uma fé por que, ainda, não se trata de uma certeza, não nos livra da incerteza,
não é uma fé como uma escolha nossa. É uma fé natural, corporal em certa acepção, uma fé
que é base da reflexão e da vontade individual.

Ponty salienta que embora essa fé perceptiva seja natural aos homens, ela se situa antes da
articulação enunciativa e que, por sua estrutura, é cercada de tanta obscuridade que as
dificuldades só se multiplicam quando tentamos formulá-la em teses. A dificuldade começa
inicialmente a partir dos três termos envoltos nessa fé perceptiva: 1) o que é este nós ou este
eu que percebe, 2) o que é esta percepção ou ato de perceber, 3) o que é isto que percebo, este
mundo que percebo.

Paradoxos da percepção

A obscuridade da fé perceptiva tem alguns aspectos interessantes: a) a fé na percepção nos


coloca de imediato num campo de credulidade, nos insere num terreno luminoso, auto
evidente, nos faz dar crédito imediato ao que vemos, nos faz fundir, irrefletidamente, o signo
da verdade com os elementos da percepção; b) a fé perceptiva, por ser tão evidente em sua
naturalidade, acaba por passar despercebida, exatamente por sua presença ser o que de mais
constante experienciamos - este paradoxo faz da fé perceptiva um meio de campo onde duas
tensões conflitantes encontram um ponto de equilíbrio; c) aquilo que é percebido não
corresponde necessariamente a objetos espaciais definidos, ela comporta também aquilo que
percebemos mas que não é visível d) essa percepção natural e irrefletida carrega consigo um
espectro reflexivo em potencial, que fornece, por assim dizer, conteúdos para o pensamento
elaborado, ou melhor, abre espaço para toda discursividade sobre o mundo e para todo ato
reflexivo.
Ponty começa a trabalhar os paradoxos surgidos da fé-perceptiva através de uma recuperação
dos binômios de que a filosofia se serviu para tentar resolve-los. Ponty aborda o dilema
clássico do subjetivismo e do objetivismo. Diz ele que embora eu tenha uma evidência do
mundo imediatamente acessível nos sentidos ou uma evidência mediada pela
memória/imaginação, a certeza que recobre essas evidências ainda é uma visão nossa, em
outras palavras, seja ela da natureza que for, ainda assim é uma evidência para um eu, fazem
parte de uma “vida interior”.

Ponty argumenta que não se trata da dúvida acerca da verdade ou da falsidade das percepções
ou produções mentais, pois a própria constatação da falsidade de um sonho ou de um delírio
depende de uma referência de verdade, portanto, afirmar o mundo e a verdade do mundo está
posto no próprio ato de denunciar a ilusão. Continua o autor dizendo que as ilusões do sonho
ou do delírio tem por referência a percepção, mas que não podemos considerar a percepção
como derivada daqueles.

A aposta de Ponty é justamente a de não igualar sonho e percepção, mas mostrar as


diferenças intrínsecas entre eles. Sonho e percepção têm estruturas diferentes, como por
exemplo o sonho não ser observável, enquanto a percepção o é, apresentando muito menos
lacunas do que aquele. Assim, a partir da diferença entre delírio/sonho e percepção, o valor
ontológico de ambos pode ser encontrado; mais ainda, a partir desse valor ontológico superior
da percepção plena, podemos desenrolar várias outras possibilidades de saber.

A conclusão precedente abre espaço para outro questionamento, que fala sobre a natureza de
nosso acesso ao mundo. O autor inicia essa discussão retomando o problema da ilusão, aqui
ele usa a imagem de um tecido, no qual a percepção seria um tecido serrado e a ilusão um
tecido roto, com várias lacunas. O problema não é, como antes, acerca da verdade ou da
falsidade de cada experiência, mas sobre como o nosso acesso ao mundo e à verdade do
mundo se dá.

Por mais que tenhamos identificado diferenças importantes entre o sonho e a percepção,
como o fato do primeiro desaparecer diante da segunda, ainda temos o problema de achar
provas que garantam que tomamos a decisão certa ao postular a percepção como mais
confiável que o sonho. A questão do que serve de referencial reaparece quando pensamos que
também temos boas razões para comparar sonho e percepção. Diante disso, Ponty aponta que
devemos encontrar o caminho para ultrapassar essa ambiguidade através da filosofia
reflexiva, ela será capaz, talvez, de descrever a nossa abertura para o mundo e, assim,
compreender o lugar e a constituição ontológica da percepção em seu duplo sentido.

Nesse sentido, Ponty recusa as formulações do pirronismo por este trabalhar com as noções
do ser em si e do mundo de representações da “vida interior”. A questão para a
fenomenologia é o problema do mundo, não a questão do interior e do exterior, pois a
filosofia reflexiva não supõe este dois lados da moeda, ela trata do que antecede a isso, do
que é condição para esse tipo de formulação. Abandonar os preconceitos ontológicos para
poder observar como se dá nossa experiência com o mundo é o propósito de Ponty.

Outro paradoxo importante que surge da noção de fé-perceptiva é o paradoxo do outro. Ponty
aborda essa questão observando como a nossa própria percepção gera o problema de como
lidar com percepções vindas de diferentes corpos. Ponty defende que a percepção emerge de
um corpo, que a percepção se situa nele - porém isso não é a afirmação de que as coisas
existem em nossa mente. Disso decorre que se mal temos a certeza de acessar as coisas
mesmas com nossa percepção, temos menos ainda certeza de que um outro corpo, dotado e
atravessado por outros arranjos sensitivos, perceba o mundo ou às coisas mesmas.

Esta situação se torna ainda mais paradoxal quando pensamos que a nossa percepção também
é completamente descartada por esse outro, para quem nós somos o outro. Assim, o problema
do acesso ao mundo só intensifica sua obscuridade quando pensamos na existência do corpo e
da percepção dos outros.

Esta situação assim entendida acaba por tornar razoável o pensamento de que vivemos cada
qual em um mundo privado, e que nenhum de nós acessa ao mundo ele mesmo.

Afirma o autor que a barreira que parece separar dois mundos privados é ultrapassada
quando somos surpreendidos pelas palavras do outro, pelas mudanças do outro, pela
capacidade que esse outro tem de penetrar nosso espaço interior e imprimir nele novos
elementos. Isso é como que a evidência de que eu e esse outro compartilhamos de cores,
gestos, sensações e referências em comum. Este fator faz com que a fronteira que tendia a
separar-nos em mundos incomunicáveis ceda um tanto, faz com que nossa comunicação seja
possível pelo fato de partilharmos de certa linguagem comum, faz com que se abra uma
possibilidade de que vivamos e percebamos um mundo em comum.

A opção adotada por Ponty para pensar esse paradoxo é, novamente, a do retorno ao mundo.
Não adentramos a vida interior do outro através de nosso contato com ele, não chegamos ao
seu interior através de nós mesmos. A ponto, o elo a trilha que nos conecta é justamente o
mundo, as coisas que percebemos entre nós. Como o gramado diante de nós me faz crer que o
outro esteja sendo afetado por este verde, esta aposta me faz adivinhar o que se passa no
mundo interior do outro.

Ponty faz questão de salientar que isso não resolve o problema da percepção. Esta emergência
de um mundo comum, compartilhado por mim e por outros, é uma ampliação da certeza que
banha a percepção, porém, esta certeza permanece tão obscura quanto antes, pois ainda não
somos capazes de explicá-la, nem articulá-la em tese sem que cairmos em paradoxos.

Uma vereda : o pensamento reflexionante

“A criança compreende muito além do que sabe dizer, responde muito além do que poderia
definir, e, aliás, com o adulto, as coisas não se passam de modo diferente” (pág, 26).

Assim, cremos não só na verdade daquilo que percebemos, como também cremos que este
mundo percebido é comum a todos nós. Esta certeza natural é a que qualquer criança é capaz
de expressar, através da relação que estabelece entre suas percepções e seu mundo privado. O
exemplo da criança de como nossa relação inicial com o mundo se dá é interessante porque
faz com que nos remetemos à gênese do pensamento. Quando observamos este caso
podemos ver como a percepção do mundo se dá através da própria experiência de estar no
mundo, que esse acontecimento é simultâneo e fundante de um mundo para nós e origem de
nós mesmos.

Este perceber está situado em um corpo, este corpo que percebe bebe das sensações para se
constituir como eu. Através dessa relação do corpo perceptivo com o mundo está a gênese do
pensamento. Assim, o pensamento só ganha forma e sentido através da referência ao mundo,
o pensamento não se efetua sem retirar sua matéria prima do mundo, não teria sentido algum
se não derivasse da convicção imediata no mundo, que é uma verdade que não pensamos,
mas que percebemos como verdade.

Ponty argumenta que nessa empreitada para a compreensão de como estes aspectos tão
imcopossíveis se dão na percepção é preciso que o filósofo reflexione. Supere a bifurcação
entre mundo para nós ou mundo em si através da reflexão.

A maneira de superar esta bifurcação confusa do mundo como ser em si ou ser para nós é
através da reflexão. A reflexão consegue converter esta aporia numa terceira coisa, daquelas
duas dimensões contraditórias entre si pode surgir, através de um ato reflexivo, mais uma
dimensão, onde aquelas duas podem ser compreendidas e reconstituídas superando as
contradições que mantinham.

Enquanto, anteriormente, tomávamos a percepção da coisa como uma evidência do ser em si


do mundo e os fantasmas como indicações de que o mundo era um ser para nós, agora
passamos a considerar tanto a percepção como a imaginação sob o nome de “pensamento”.
Se ambos são pensamento, temos uma nova maneira de trabalhar a relação entre eles.

Ver e sentir podem ter a sua relação íntima desvelada, a pureza do pensamento que os une e
os sustenta pode ser descrita através do ato reflexionante. Se submetemos a imaginação a essa
mesma análise percebemos que o pensamento que o forma não é pensamento de ver nem de
sentir. O pensamento da imaginação não pode ser visto, por isso devemos esquecer os
critérios de verificação que podíamos aplicar ao ver e ao sentir. Ao fazermos isso podemos
encarar esse pensamento que não podemos ver como algo ao que cabe uma outra forma de
inquirição e de descrição, podemos retomá-lo sem precisar optar pelo visível ou pelo
invisível, mas alocando-os adequadamente numa reconstituição reflexiva que mostra como
ambos podem estar juntos.

Através do pensamento reflexionante Ponty logra superar as antinomias da fé perceptiva,


particularmente aquela que opunha um mundo em si e um mundo para nós. O termo
pensamento é de suma importância para isso, pois, ao entender como pensamento tanto a
relação imediata de nosso corpo com as coisas como também aquilo que se passa dentro de
nós, em nosso “mundo privado”, podemos entender a passagem, a mudança de
funcionamento de um e outro registro para, assim, inquirir e conceituar de modo diferente o
que se dá ora na percepção ora na imaginação.

A percepção nada mais é do que o exercício de nossa potência de pensar. Através dessa
potência nós vamos até as próprias coisas, deslizando nossa visão por sobre os objetos
mesmos, porém, nossa percepção é mediada por nosso corpo e este é nosso acesso ao mundo,
condição de possibilidade de qualquer pensamento. Por isso, podemos superar a antinomia e
abdicar da escolha entre um mundo em si e outro para si através dessa relação constitutiva
singular: vamos até as próprias coisas, ao mundo ele mesmo, porém, percebemos o mundo
enquanto pensamentos nossos, portanto, situados em nosso âmago, que é, dado o descrito,
essencialmente relacional. Assim, a percepção “Aberta sobre a própria coisa, não deixa de ser
menos nossa, porquanto a coisa é, doravante, o que pensamos ver - cogitatum ou noema”
(pág, 41)

Ao conceituar desse modo, fica patente que as coisas exteriores, ditas objetivas “são
exteriores apenas ao meu corpo, não ao meu pensamento, que sobrevoa a ambos” (pág, 42)

Problemas da Filosofia Reflexiva

Seguindo seu estilo em elipse, Ponty retorna à questão sobre o nosso contato original com o
mundo. Os questionamentos ao pensamento reflexionante surgem da fidelidade ao que o
autor assumiu e definiu como foco de sua investigação no início da obra, buscando sempre
em nosso contato com o mundo a fonte para relatar essa relação.

Um dos primeiros problemas apontados na resposta fornecida pela filosofia reflexionante é a


questão da reconstituição. O movimento feito pela filosofia reflexionante busca explicar
nosso vínculo com o mundo confundindo o fim com o início. Ela faz uma reconstituição de
nossa experiência com o mundo que acaba por nos tornar o centro das coisas, o local de onde
o mundo parte. Isto é feito de um modo em que as pegadas/evidências de nossa vinculação
com o mundo sejam interpretadas e reconstruídas de modo contrário a como de fato se dão,
colocando-nos como fonte de sentido de onde o mundo deriva.
Em suma, a filosofia reflexionante fere o intuito de relatar nossa experiência inicial com o
mundo recorrendo a uma reconstituição idealista que postula o sujeito como referência
central, para o qual o mundo é seu pensamento. De modo mais preciso:

“Enquanto esforço para fundar o mundo existente sobre um pensamento do mundo, a reflexão
se inspira a cada instante na presença prévia do mundo de que é tributária, e a que empresta
toda sua energia” (pág 45).

Em razão deste movimento, a filosofia reflexionante comete o mesmo equívoco que a


ciência, toma o mundo como pressuposto sobre o qual não reflete, mas fecha-se sobre si
mesma num circuito auto-referencial que não explica sua condição de possibilidade básica, o
próprio mundo.

Bibliografia:

- PONTY, Maurice Merleau. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 1971.


- SACRINI, M. A. F. Fenomenologia e Ontologia em Merleau-Ponty. Tese de
Doutorado em Filosofia - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP.
São Paulo, 2008.
- MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. Trad. Carlos Alberto
Ribeiro de Moura. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011

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