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Relatório de leitura de Problemas de Fenomenologia Hermenêutica,

de Paul Ricoeur

O Homem Falível

Problemas de Fenomenologia Hermenêutica


2021/2022
1º Trabalho de avaliação periódica
Docente: Prof.ª Doutora Maria Luísa Portocarrero Ferreira da Silva
1
Discente: Cátia Margarida Mesquita Marques
A imaginação pura

Neste relatório de leitura, irei abordar o terceiro subtema do segundo capítulo,


intitulado de “A imaginação pura”.

Tendo em conta os subcapítulos anteriores, este começa por referir que o primeiro
resultado através da reflexão sobre a coisa foi produzido. A coisa, descobriu então a
fragmentação, ou seja, por um lado a “desproporção” entre o verbo, que apesar de dizer o
verdadeiro, também arrisca o erro e, por outro, o olhar fixado no aparecer e na perspetiva.
A “desproporção” é, simultaneamente, de acordo com o modo de Kant, a dualidade entre o
entendimento e a sensibilidade, e de acordo com Descartes, a dualidade entre a vontade e
o entendimento. Neste primeiro parágrafo, encontra-se então descrita a “desproporção”
que aparece ao nível teórico.

O aparecimento da “desproporção”, vai causar o problema do terceiro termo, que é


o termo intermediário, ao qual vai ser chamado de imaginação pura. Como diz o autor: “O
espantoso é que esse terceiro termo não seja dado em si mesmo, mas apenas na coisa” 1,
ou seja, a não ser como intenção, o homem não opera a sua própria síntese. Assim sendo,
Ricoeur diz que quando se fala de consciência de síntese ou de síntese como consciência,
esta não é ainda consciência de si.

Ricoeur, pergunta a seguir, o que é a coisa. Para responder a esta pergunta,


apresenta primeiro a definição kantiana de coisa: “É a unidade já realizada num correlato
entre a palavra e o ponto de vista; é a síntese na medida em que é operada do exterior” 2.
Assim sendo, quando está num correlato, a síntese é chamada de objetividade. A
objetividade é então, a unidade inseparável entre um aparecer e uma dizibilidade, pois
pode ser mostrada e dita. Ricoeur faz uma referência a Platão, que compara a fugidia
aparência às estátuas de Dédalo, as quais nada pode prender, representando algo que
aparece e não pode ser dito, excluindo-se do domínio do discurso. Desta maneira,
podemos dizer que a mediação vai surgir na coisa, pois esta é uma aparência, que não
tem categoria, nem conceito, porque não se sabe o que é. A palavra, é determinação da
aparência, pois é a coisa que remete para o homem como ponto de vista e para o homem
como palavra. O autor mostra-nos também que não é na consciência que a objetividade
do objeto reside, mas antes na relação como aquilo ao qual ela se refere, servindo assim
de guia transcendental que o eu puro tem desta síntese na própria consciência.
1
RICOEUR, Paul. O Homem Falível. Edições 70, pp. 65.
2
RICOEUR, Paul. O Homem Falível. Edições 70, pp. 65.
2
Ricoeur vai de seguida, mostrar que a síntese é, acima de tudo, intencional. Desta
maneira, o autor diz que a consciência se torna intermediária, quando se projeta no modo
de ser na coisa, tornando-se meio entre infinito e o finito e as coisas tornam-se síntese
entre sentido e presença. O estatuto da coisa, é então, o que pode aparecer e o que pode
ser realizado na consciência, isto é, a coisa é mediação. São apresentadas de seguida,
duas perspetivas diferentes sobre a verdadeira síntese a priori. A perspetiva de Kant refere
que: “a verdadeira síntese a priori, não é aquela que se enuncia em princípios, ou seja, em
juízos que seriam prévios relativamente a todas as proposições empíricas do domínio
físico”3. Resta posição distancia-se da posição do autor, senda esta: “a verdadeira síntese
a priori, não figura em enunciados, ainda que sejam prévios, ela consiste no carácter
objetal (mais do que objetivo, se objetivo significar científico) da coisa, a saber, esta
propriedade de ser lançada diante de mim, de ser simultaneamente dada ao meu ponto de
vista e suscetível a ser comunicada num discurso compreendido por todo o ser racional.
Que a dizibilidade adira à aparição do que quer que seja eis a objetividade do objeto”. 4 A
objetividade é o modo de ser da coisa, sendo que o autor, fazendo uma referência a
Heidegger, afirma que este está certo quando diz que está representada, na revolução
copernicana, o encaminhamento do ôntico para o ontológico. Assim sendo, para ser um
objeto, toda a coisa se deve conformar à constituição sintética.

Ricoeur, faz uma regressão para referir, qual é a função que torna possível a
síntese na coisa. Esta reflexão é transcendental, pois a sua objetividade funciona como fio
condutor para que a própria síntese subjetiva se torne consciente. O autor diz que, nesta
projeção de objetividade, faz de si mesmo síntese de palavra e de perspetiva. Para
conseguir esclarecer melhor este aspeto, Ricoeur afirma que “A elucidação de uma
imagem à qual recorremos muitas vezes irá servir-nos de transição para ir ao encontro da
ideia kantiana de imaginação pura, a imagem de abertura”.5 Como já foi referido em
capítulos anteriores, o nosso corpo é um local de abertura para o mundo, sendo que a
única função de abertura é dividida na dimensão da perspetiva e da transgressão. De
acordo com Ricoeur: “ A imagem de abertura convoca outra imagem: a da claridade ou da
luz, tal como a encontramos na tradição platónica ou cartesiana. O que é notável nesta
imagem é que ela sugere a ideia de um meio no qual se vê; não vemos na luz, mas na
luz”6, isto é, da mesma maneira que não vemos a imaginação, mas imaginando.

3
RICOEUR, Paul. O Homem Falível. Edições 70, pp. 66.
4
RICOEUR, Paul. O Homem Falível. Edições 70, pp. 66.
5
RICOEUR, Paul. O Homem Falível. Edições 70, pp. 68.
6
RICOEUR, Paul. O Homem Falível. Edições 70, pp. 68.
3
Paul Ricoeur, faz uma referência à Crítica da Razão Pura de Kant, que diz: “tem de
haver um terceiro termo, que deva ser, por um lado, homogéneo à categoria e, por outro,
ao fenómeno e que permita a aplicação da primeira ao segundo. Esta representação
mediadora deve ser pura (sem nada de empírico) e, todavia, por um lado, intelectual e, por
outro, sensível. Tal é o esquema transcendental”7. Desta maneira, podemos afirmar que a
consciência da perspetiva se reflete na sensibilidade, o verbo na consciência da
significação e na possibilidade da afirmação e, de acordo com Kant, que Ricoeur vai seguir
nesta abordagem, é o esquema da imaginação produtora que vai fazer a mediação destes
dois aspetos. Assim sendo, é a imaginação pura que realiza a síntese, sendo que Ricoeur
relembra que esta síntese é de acordo com Kant: “uma arte oculta nas profundezas da
alma humana, cujo segredo de funcionamento dificilmente poderemos alguma vez
arrancar à natureza e pôr descoberto perante os nossos olhos”.8 Kant toma então
consciência, de que existe a capacidade humana de imaginação, mas não consegue
descrever esta dimensão, sendo Ricoeur, mais tarde, na obra posterior, que vai trabalhar
este tema. Existe então, uma espécie de falta de inteligibilidade deste termo mediador. Ao
perguntar pelas origens deste esquema, Kant retrocede até ao problema do tempo para
resolver a inteligibilidade desta mediação. Neste sentido, Ricoeur faz várias perguntas,
divulgando já algumas das suas futuras mediações: “Não será o tempo o misto por
excelência? Não será, por um lado, a condição de toda a diversidade vivida? Não será,
diríamos, num livre comentário da ideia kantiana de diversidade, a condição de toda a
surpresa, de todo o encontro, de toda a incoerência, de toda a inovação, de toda a
aparição, de todo o corte? Em suma, não será essencialmente distendido? Não será esse
carácter desconectado que o torna homogéneo ao fenómeno, para falar de novo como
Kant? E não será, por outro lado, supremamente determinável pelo entendimento, já que
todas as categorias se enraízam na forma de esquema”.9

Para Kant, o esquema é uma aplicação das categorias aos fenómenos e não pode
ser concebido como a origem destes. O esquema dá uma imagem ao conceito e, ao
mesmo tempo, restringe a amplitude das categorias. É pois, a imaginação transcendental
o termo mediador ao nível da desproporção do conhecer e a síntese que ela faz entre o
entendimento e a sensibilidade é a consciência do objeto. Como diz Ricoeur: “A
consciência ainda não é a unidade de uma pessoa em si e para si; ela não é uma pessoa

7
RICOEUR, Paul. O Homem Falível. Edições 70, pp. 69.
8
RICOEUR, Paul. O Homem Falível. Edições 70, pp. 69.
9
RICOEUR, Paul. O Homem Falível. Edições 70, pp. 70.
4
una; não é ninguém; o Eu do eu penso é a apenas a forma de um mundo para alguém e
para todos; ela é consciência em geral, isto é, simples e puro projeto do objeto”.10

O momento transcendental, é a primeira condição de uma teoria filosófica sobre a


desproporção. No entanto, Ricoeur sublinha que existe um excesso no patético que a
reflexão não consegue racionalizar.

10
RICOEUR, Paul. O Homem Falível. Edições 70, pp. 74.
5

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