Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
0 – Introdução
A obra de Paul Ricoeur Philosophie de la volonté II. Finitude et culpabillité, foi escrita
em 1960 e, inicialmente publicada, em dois volumes, tendo como títulos
respectivamente : “L’homme faillibe” livro I e a “Simbolique du mal” livro II. Estes dois
livros tratam da questão da falta e da experiência do mal. Na verdade, eles pretendem
desenvolver e prolongar a temática abordada na precedente obra Philosophie de la
volonté I . Le volontaire et l’involontaire de 1950. O carácter sequencial destas duas
obras é afirmada pelo próprio Paul Ricoeur. Com efeito, Ricoeur não só afirma a
sequência destes dois tomos como também, pré-anuncia desde 1950 o desejo duma
Poética da vontade1, projecto que englobaria um vasto programa tendo em vista uma
concepção metafísica da vontade2. A noção de Poética deverá ser aqui, entendida
evidentemente e, muito concretamente, no seu sentido grego, isto é, de que
significa fazer.
apresenta as instâncias reflexivas que ele utiliza. Nós chamamos instâncias reflexivas, os
modelos a que Paul Ricoeur recorre para traçar significativamente a problemática do mal.
Neste sentido a reflexão fenomenológica, donde ele parte, e o pensamento do logos
grego, isto é do legein, serão os intervenientes activos desta nossa leitura. Sabemos o
quão Paul Ricoeur é um bom e profundo conhecedor do pensamento da história da
Filosofia. Não será escusado nem inútil exprimir, com as palavras de Michel Renaud, que
num artigo seu, também ele consagrado à filosofia de Paul Ricoeur, diz o seguinte a
propósito de Finitude et culpabilité:
“Antes de sublinhar a originalidade do seu pensamento, não será exagerado afirmar que Ricoeur
adquiriu um conhecimento da história da filosofia que poucos filósofos tiveram e que lhe confere
um domínio mais que notável sobre a tradição clássica bem como sobre o presente das mais
variadas correntes filosóficas” 11.
Contudo, o pensamento filosófico de Ricoeur nem por isso deixa de supreender o leitor
vulgar e mesmo o leitor erudito, sobre o seu profundo conhecimento da filosofia da época
moderna e mesmo contemporânea. É realmente daqui que irrompem todas as questões da
chamada filosofia do Cogito, como que re-inventada por Descartes, Kant, Fichte Hegel. É
precisamente daqui que a chamada fenomenologia da vontade é base fundamental para
uma compreensão da falibilidade do homem, e é a partir daqui que se poderá corrigir a
perspectiva duma associação imediata entre finitude e falibilidade ou culpabilidade. Se
prima facie, o título da obra ricoeuriana indicia uma directa sinonima entre finitude e
culpabilidade, é só porque a descrição pura anteriormente aplicada por Ricoeur não tinha
permitido ainda efectuar uma relação entre uma descrição pura, uma empírica da vontade
e uma mítica concreta, para que se pudesse enfim revelar o que nas diversas estruturas
antropológicas do homem permite caracterisar o lado falível desta finitude.
Por outras palavras ainda, o título de Finitude et culpabilité não pretende dizer
que a finitude está associada e é definida essencialmente por um estado de culpabilidade,
ainda que esta fosse definida tão somente no sentido do mal como limitação humana. A
admitir esta hipótese, Ricoeur não adiantaria mais do que fez Kant ao falar da ideia dum
mal radical12.
Na verdade, a descrição pura como método fenomenológico, utlizado para a
descrição duma poética da vontade, que define e estrutura os motivos essenciais do
querer e do agir humanos, exigiu a aplicação duma redução, duma épochè, dentro dos
limites da vontade humana, enquanto conceito e experiência do negativo, de maneira a
que não fosse efectuada qualquer identificação entre finitude e negatividade. Por outro
lado, esta époché será o leitmotif essencial para que que no momento de se descrever e
explicar a própria experiência da negatividade, essa negatividade fosse então recuperada,
tendo em conta os pré-requisitos da fundamentação geral anterior sobre a vontade.
Para Paul Ricoeur o mal é injustificável, o mal é o irracional por excelência, visto
ele ser incompreensível. Paul Ricoeur dirá mesmo que a “falta é o absurdo” 13. E segundo
11
M. Renaud, op. cit., p.405.
12
I. Kant, Die religion innerhalb der Grenzen der blossen Vernunft, in Oeuvres philosophiques.
Bibliothèque de la Pléiade, vol. III. Paris, Gallimard, 1986.
13
P. Ricoeur, Philosophie de la volonté I. Le volontaire et l’involontaire. Paris, Aubier, 1950, p.27.
5
A. Vauchez o mal é o ’, isto é a prova por excelência da filosofia 14, na medida
em que a experiência do mal faz continuamente resistência a uma qualquer explicação
racional. Por esta razão Paul Ricoeur afirma mesmo que “a falta não é um elemento da
ontologia fundamental que seja homogénea aos outros factores que a descripção pura
descobre” tais como os motivos, poderes, condições e limites. Ela não poder ser pensada
senão como irrupção, queda e acidente. Na melhor das hipóteses a questão do mal, da
falta poderá ser perspectivada através duma ontologia negativa, que poderá falar sobre
aquilo que a falta não é.
Será talvez esta a razão essencial pela qual Ricoeur tinha colocado entre
parênteses, o problema do mal e da transcendência em Le volontaire et l’involontaire15.
Postos assim de lado, nesta primeira obra, efectuando assim uma épokê do mal, Ricoeur
vê-se então na necessidade de os retomar, recorrendo para isso, a um outro novo método,
diferente daquele que tinha utilisado no primeiro volume.
Quais são os critérios que segue Paul Ricoeur para efectuar esta abordagem de tão
difícil tema ?
A atitude metodológica é-nos dado, logo, nas primeiras linhas do livro.
O problema do mal define e caracteriza bem o carácter finito do homem. Por esta razão
ele não poderá deixar de ser equacionado e mesmo reelaborado pelo filósofo através, não
duma pura e simples “descrição eidética” ou mesmo duma “empirica da vontade”, mas
através do caracter simbólico do mal, enquanto processo interpretativo da linguagem
mítica do mal. P. Ricoeur procura indícios concretos desta simbólica do mal. Neste
sentido, o método que ele utilisa é o de uma filosofia reflexiva e transcendental. Mas
teremos que explicar em breves palavras o que P. Ricoeur entende por uma “empírica da
vontade” e até mesmo pela “descrição eidética”. Sobre que bases poderemos nós
distinguir estas três possíveis vias metodológicas ? A descrição eidética é do forum
fenomenológico tal como o entende Husserl. A descrição eidética é a descrição dos
fenómenos que se apresentam à consciencia. Por seu lado a empírica da vontade pertence
também ao domínio da fenomenologia. Porém, aqui, teremos que distinguir a dupla
vertente, duma empírica e duma vontade, associados num mesmo acto. A noção de
empírica tem a sua origem na fenomenologia e mais propriamente naquela que foi
inicialmente investigada e apresentada por Franz Brentano. Com efeito este tinha
publicado uma obra em 1874, com o título Psychologie du point de vue empirique”16. O
próprio Husserl tinha dito que sem estes estudos fenomenológicos de Franz Brentano ele
não teria chegado aonde chegou17. Para Franz Brentano o objecto e o método desta
psicologia empírica consiste na percepção interna dos fenómenos psíquicos. É a
experiência dos nossos actos perceptivos internos que constituem o objecto fundametal
desta psicologia empírica.
Husserl discute a relação entre a psicologia empírica e a fenomenologia em
Ideen, no § 79. Trata-se de efectuar a distinção entre a fenomenologia e o processo de
introspecção que era a base do conhecimento psicológico experimental de então.
14
A. Vauchez, Faute et liberté. Paris, Les Belles lettres, 1969,p 1.
15
P. Ricoeur, Philosophie de la volonté I, p23.
16
L. Gilson, La psychologie descriptive selon Franz Brentano. Paris, Vrin, 1955.
17
Idées directrices pour une phénoménologie. Traduction de P. Ricoeur. Paris, Gallimard, 1950, p. 23. Ver
a este respeito também : Roderick M. Chisholm, «Brentano’s Descriptive Psychology», in The Philosophy
of Brentano. Editado por L. Mclister. London, Duckworth, 1976, p. 91.
6
É real e mesmo voluntário o desejo de Paul Ricoeur por uma analise do fenómeno do
mal que não seja puramente descritivo e ideal ou transcendental. Para Paul Ricoeur a
eidética não poderá satisfazer as exigências requeridas para uma abordagem e mesmo
reflexão transcendental e prática, na medida em que ela «consiste numa análise
estritamente inteligível das articulações volitivas “neutras”»22.
18
I. Kant, Anthropologie du point de vue empirique, p.959.
19
P. Ricoeur, «Méthodes et tâches d’une phénoménologie de la volonté», in Problèmes actuels de la
phénoménologie. Bruxelles, 1952, p.120.
20
Ver a este propósito os § 84, §114 ,§ 117 e § 118.
21
J. S. Teixeira, in Didaskalia, vol. 7, 1977, 58.
22
Idem, p.57.
7
“La description analytique des intentionnalités enchevêtrées dans la conscience voulante n’est
qu’un premier palier de la phénoménologie; il reste à ressaisir le mouvement d’ensemble de la
conscience ouvrant du futur, marquant son paysage de ses gestes et ouvrant à travers ce qu’elle ne
fait pas”25.
É evidente que as três questões referidas em cima, exprimem que há uma intrínseca
interligação entre uma fenomenologia enquanto decifragem necessária da experiência do
mal, e ao mesmo tempo uma exigência duma regra de interpretação dessa mesma
experiência do mal. Mas para isso foi preciso que Paul Ricoeur sintetiza dentro do campo
da investigação duma empírica da vontade os três aspectos essenciais do homem falível.
Neste momento inicial ele associa fenomenologia da intencionalidade com uma
fenomenologia da vontade e da afectividade. Só desta forma ele pode então dizer “a
descrição analítica da intencionalidade directamente ligada à consciência volitiva não é
senão um patamar da fenomenologia”26. Mas para que ele possa completar o seu
percurso fenomenológico da chamada empírica da vontade onde inicialmente ele des-
mito-logizou, ele necessita de repensar a mitica simbólica, efectuando o processo inverso,
mitologisando, isto é, repensando a capacidade de sentido que o símbolo pode produzir
tendo em vista a reflexão fiosófica.
26
P. Ricoeur, «Méthodes et tâches d’une phénoménologie de la volonté», p. 123.
9
“ Tous les méchants ignorent ce qu’ils doivent faire et ce qu’ils doivent fuir, et c’est cela même qui
les rend méchants et vicieux”31.
27
P. Ricoeur, Finitude et culpabilité, p. 101.
28
M. Renaud, Fenomenologia e hermenêutica, p. 417.
29
Vejamos por exemplo a tradução latina da epístola de São Clemente aos Corintios, que foi escrita no
século II, onde é traduzida por voluntas.
30
Cf. P. Ricoeur, Philosophie de la volonté II. Finitude et culpabilité, p. 51.
31
Ética a Nicómaco, III,1,14.
10
Isto significa o quê ? Que para a concepção aristotélica e mesmo grega a noção de
culpabilidade não se traduz pelo grau de maior ou menor consciencia do sujeito en face
de si mesmo mas duma culpa ou duma falta em face duma regra. A falta é então definida
pelo juìzo do outro, que neste caso é a do legislador, em última análise a polis. O mesmo
se pode afirmar do pensamento socrático-platónico onde a distinção entre acto voluntário
e involuntário é nitidamente a fonte principal da inspiração aristotélica.
Mas, ao contrário, a unidade do voluntário e do involuntário proposta por Ricoeur
é já originariamente um certo compromisso com a tese aristotélica. É precisamente no
livro III da Ética a Nicómaco que Aristoteles discute o estatuto dos actos volountários e
involuntários. Com efeito, os actos voluntários são aqueles que são efectuados a partir
duma escolha, isto é, duma deliberação previamente reflectida, ao contrário dos actos
involuntários, que são cometidos por ignorância. Somente estes segundo Aristóteles, são
involuntários e por isso podem ser designados por “falta” .. O conceito de
está directamente ligado à noção de falha e de erro involuntário,
isto é, à ignorância (). Evidentemente que esta unidade do voluntário e
involuntário que propôe Ricoeur, só pode ser perspectivada na linha aristotélica quando o
ponto de vista desta unidade seja afirmada a partir duma fronteira entre consciência e
não-consciência.
32
P. Ricoeur, «Méthodes et tâches d’une phénoménologie de la volonté», pp.126-127.
11
Qual é o objectivo fundametal e nós poderemos dizer até mesmo, a ideia central
que orienta toda a leitura ricoeuriana sobre a questão do mal ? Onde vai ele buscar esta
temática e quais as razões que o levaram a tal propósito? Por outras palavras Ricoeur
pretende responder de forma significativa à questão : porque é que o homem falha ? A
escolha duma paráfrase das Meditações de Descartes é só por si significativa :
“Si je me considére comme participant en quelque façon du néant ou du non-etre, c’est-à-dire, en
tant que je ne suis pas moi-même le souverain être, je me trouve exposé à une infinité de
manquements, de façon que je ne me dois pas étonner si je me trompe” 37.
33
Idem, p. 126.
34
Os autores antigos traduziram proairesis como fonte de decisão.
35
A , como já verificamos atrás tem por vezes uma outra tradução, a de vontade. Em Platão ela
tem uma pluralidade de significações, tais como, desejo, coragem, cólera.
36
P. Ricoeur, «Les problèmes actuels de la phénoménologie», p.132.
37
Descartes, Méditationes de prima philosophia. Paris, Librairie philosophique Vrin, 1978, p. 54.
12
O homem é um ser falível e não lhe faltam ocasiões onde ele experimenta este sentimento
e esta lógica de falibilidade. Ela é ainda reconhecida através do conceito de desproporção
como o exacto oposto do ser analógico38. O estabelecimento directo entre proportio e
disproportio seria a linguagem apropriada para explicitar este desiquilíbrio do homem
consigo mesmo. “ O ponto de partida é uma visão global da não-coincidência do homem
consigo mesmo, ou seja da desproporção e mediação que o homem é e opera no próprio
acto de existir”39
A desproporção é explicada em termos cartesianos pela relação entre finito e
infinito, ser e nada, e para os quais a máxima pascaliana oferece exemplo paradigmático:
“Deux infinis, milieu ou disproportion de l’homme”. “Desproporção” e “meio” ou
“intermédio” são os dois conceitos mais importantes desta précompreensão da
falibilidade do homem. O mesmo Pascal, falando de Santo Agostinho afirma que este
teria deduzido uma certa ideia de desproporção que se apresentaria aos nossos espíritos,
como que para falar da grande distância entre Deus e nós40.
Também os textos platónicos são aqui evocados de novo como que fazendo
ressurgir das questões pré-filosoficas as verdadeiras questões filosóficas. Qual o lugar por
excelência da falibilidade humana ? É precisamente naquilo que Paul Ricoeur chama a
“patética da miséria” (pathétique de la misère) que faz referência explicita ao mito
platónico de Poros e Penia, descrito no Banquete.
A atitude ricoeuriana diante deste pathos que se revela como sendo a miséria do
homem será reconstituido todo ao longo do livro fazendo apelo a uma explicitação do
sentido transcendental do homem patético. Para isso Ricoeur opera uma primeira redução
que consiste em colocar o problema, não a partir do eu, mas a partir do objecto diante de
mim, isto é, eu sou consciência para mim. Só a partir desta consciencia de mim para mim
se poderá elevar então à condição de possibilidade. È neste sentido que a análise
filosófica transcendental é orientada pela antropologia filosófica. Ora é nesta consciencia
de mim para mim que a noção de falha é perceptível no horizonte duma fenomenologia
da vontade que mostra a passagem duma concepção de cogito descrito pela objectividade
a um cogito inscrito na experiencia vivida (cogito prático e afectivo).
Nós podemos então concluir que a grande hipótese que orienta todo este trabalho
consiste precisamente no seguinte : há a necessidade de se aliar a uma reflexão pura sobre
a questão do mal, uma compreensão da patética da miséria, enquanto visibilidade ôntica
do problema.
38
Basta-nos lembrar que em Tomás de Aquino a noção de proportio significa precisamente a analogia. Cf.
De Veritate qu. 2, art. . Veja-se a este propósito a análise que faz Paul Ricoeur en La métaphore vive,
pp.348-352 sobre a teoria da analogia em Tomás de Aquino. Os termos proportio e proportionalitas são
duas expressões para designar o conceito genérico de analogia.
39
J. S. Teixeira, Paul Ricoeur et la symbolique do mal, op. Cit. p. 65
40
Cf. Pascal, Récit des deux Conférences, in Oeuvres complètes (Pléiade). Paris, Gallimard, p.550.
13
A síntese trancendental é a análise ontológica que Paul Ricoeur faz desta patética
da miséria. A patética da miséria antes de exprimir que o homem é um ser intermediário,
ela dá a substância mesmo da sua própria mediação. Por outras palavras é a patética da
miséria a substância fiosófica com a qual nós teremos que nos confrontar realmente. Mas
como falar então sobre esta substancia tendo em conta o discurso filosófico ? Como falar
e donde partir para poder falar tendo em conta a etapa transcendental desta mediação ?
Paul Ricoeur parte da noção de sintese kantiana da imaginação transcendental. É
precisamente a imaginação que ocupa o lugar de terceiro termo, e portanto de intermédio
na relação entre o entendimento e a sensibilidade, entre sujeito e objecto. Kant na Crítica
da razão pura enuncia a chamada synthesis speciosa e a sinthesis intellectualis, que são
efectuadas pela imaginação (Einbildungskraft) transcendental e pelo entendimento.
A sintese transcendental denota esta desproporção entre objecto e sujeito, entre os
diversos intervenientes no acto de conhecer, de receber e de determinar. Na verdade,
segundo Ricoeur existe uma limitação perspectivista do perceber que é sempre efectuado
segundo um ponto de vista. È por esta razão explica Ricoeur que Kant identificou
finitude e receptividade41. A revolução coperniciana é enunciada por Ricoeur corrigindo a
perspectiva epistemológica de Kant : esta síntese transcendental não consiste em
esteblecer uma unidade entre o sujeito e a presença do objecto percebida a partir dos
cânones do objecto, mas consiste antes, na relação do ôntico ao ontológico, isto é da
coisa considerada como ente por entre os entes a qual reenvia à própria constituição
ontologica. Por outro lado a noção de sintese kantiana é construída e operada de um
exterior. Ora, para Ricoeur, a sintese é-nos dada no próprio acto do aparecer fenomenal,
que é dele mesmo já sintese, afastando-se assim, da perspectiva kantiana. Desta forma
explica-se Ricoeur dizendo :
“Preferi eu dizer que a síntese é antes de tudo síntese do sentido e da aparência mais do que síntese
do inteligível e do sensível para salientar que a objectividade do objecto é constituída sobre o
objecto mesmo. Constatamos o ponto sobre o qual nos distanciamos de Kant : a verdadeira síntese
a priori não é aquela que se enuncia nos principios, quer dizer nos juízos que seriam os primeiros
em relação a todas as proposições empíricas do dominio físico (…) a verdadeira síntese a priori
não figura nos enunciados mesmo primeiros; ela consiste no carácter objectal (mais do que
objectivo, se objectivo quer dizer científico) da coisa, a saber, esta propriedade de ser abandonada
(être-jeté) diante de mim mesmo, de ser o meu ora o meu ponto de vista e susceptível de ser
comunicado num discurso compreendido por todo o ser razoável. Que a dizibilidade adere à
aparição do que quer que seja, aqui está a objectividade do objecto” 42.
A distanciação que reclama Ricoeur tem em vista uma aproximação com a leitura
heideggeriana da crítica da razão pura. E é por esta razão que a crítica da percepção e da
receptidade objectiva em Kant, leva a concluir Ricoeur da estreiteza deste horizonte
fechado ainda que aberto por uma teoria do conhecimento. Mais ainda a uma
denunciação do carácter de finitude desta perspectiva que é no fim de contas uma
consequência positiva para a uma avaliação do ser desproporcionado e do ser em falta. É
precisamente aqui que se efectua a passagem do finito para o infinito e é precisamente
aqui que se torna evidente a desproporção entre receptividade objectiva e abertura que
poderia ter uma outra designação ainda que deficitária : a corporeidade. Abertura não
41
P. Ricoeur, Finitiude et culpabilité, p.38.
42
Idem, p.56.
15
significa ainda corporeidade total mas significa uma abertura que tem o seu ponto de
partida no corpo enquanto lugar de mediação com o mundo.
É nesta sequência que Paul Ricoeur vê a necessidade duma “segunda etapa duma
antropologia da desproporção” que “é constituída pela passagen do teórico ao
prático”43.
Com efeito esta antropologia da desproporção está alicerçada em dois pilares
fundamentais : a questão do finito e infinito e a questão do teórico e prático. O que está
por detrás desta intenção ricoeuriana ? Como não podia deixar de ser, é o problema da
totalidade que é a pedra angular da problemática do mal. Não se poderá abordar a questão
da totalidade senão por degraus sucessivos. Na verdade a questão da totalidade coloca
precisamente dois problemas : a ) a passagem duma síntese transcendental a uma síntese
prática; b ) a passagem duma teoria do conhecimento a uma teoria da vontade. Isto
significa que existe realmente a necessidade duma compreensão da sintese prática tendo
em vista uma efectuação gradativa desta totalidade do ser intermédio. Além disso existe
igualmente uma urgência em expôr e explicitar uma filosofia da afectividade, isto é do
sentimento para que seja possível estabelecer as bases de compreensão deste ser
intermédio. De novo esta ideia insistente sobre a noção de ser intermédio, tema bastante
aflorado por Platão. O mesmo se pode dizer desta ideia de acesso a uma totalidade por
possíves gradações. (Filebo 17 e).
A sintese prática é bem mais complexa na sua estrutura que a sintese teórica,
resultante da desocultação expressa na patética da miséria. Esta sintese prática pretende
ser uma sintese da sintese. Por esta razão ela não pode funcionar unicamente e
exclusivamente segundo o modelo da desproporção mas também o da proporção ou se
quisermos do analogon44. Em que consiste esse primeiro analogon ? Consiste em querer
ter como modelo da sintese transcendental a percepção quando agora na sintese prática
será o conceito de desejo que reune essa particularidade.
Existe três grandes motivos essenciais que são constituintes da sintese prática : 1 ) o
carácter, subdividido este em a ) perspectiva efectiva, e b ) perspectiva prática; 2 ) a
felicidade, e por último 3 ) o respeito. A tríade apresentada na síntese transcendental é
agora retomada sob um outro ponto de vista, a da síntse prática, a qual estrutura segundo
esta ordem nova. O paralelismo mais estreito entre a sintese teórica transcendental e a
sintese prática consiste na procura duma estrutura de mediação. O que outrora na síntese
transcendental teórica, constituia a imaginação transcendental como lugar de mediação,
passa agora na síntese prática, a ser efectuada, pelo “carácter” como termo de mediação
na pessoa.
“Todos os aspectos de finitude «prática» que se pode compreender a partir da
noção transcendental, de perspectiva, podem resumir-se na noção de carácter. Todos os
aspectos de infinitude «prática» que se podem compreender a partir da noção
transcendental, de sentido, podem resumir-se na noção de felicidade. A mediação
«prática» que prolonga aquela da imaginação transcendental projetada no objecto, é a
constituição da pessoa no respeito. É para mostrar a fragilidade desta mediação prática do
respeito, na qual a pessoa é o face a face, que visa esta nova análise”45.
43
Idem, p. 64.
44
Idem, p. 69.
45
Idem, p. 66.
16
A questão donde parte Paul Ricoeur para falar afectiva poderia ter como título
genérico e em tom interrogativo a seguinte expressão : como falar do mal de sofrimento
que o homem experiemnta quotidianamente e existencialmente ?
A comprennsão da “miséria” do homem encontra neste último capítulo a acmê de
toda a reflexão anterior. Depois de ter reflectido sobre a coisa que é ter, diante de mim o
ser humano na sua simples fragilidade imediata, depois de ter reflectido sobre o que é a
pessoa como ideal do eu, surge então a questão, de que maneira se poderá reconquistar a
profundidade deste ser em miséria que foi anteriormente perdido pela estreiteza da
análise ? Por outras palavras poder-se-á compreender este sentimento de fragilidade que
anteriormente foi reduzido por uma análise da desproporção enquanto objectividade da
coisa e humanidade da pessoa ?
Qual o conceito mais importante desta fragilidade afectiva ? É o conceito de
isto é de coração, de sentimento aquele que exprime por si só o lugar de mediação
por excelência. Aquele que produz precisamente a passagem do ao , que
permite enfim a passagem do teórico ao prático. Segundo Ricoeur é a partir desta função
mediana do sentimento que se poderá instaurar uma terceira instância duma antropologia
da falibilidade.
O mito da tripartição da alma, apresentado na República de Platão conta-nos a
composição tripartida desta alma, que é por essência mistura. Na constituição desta alma
encontram-se um campo de forças : razão, desejo, e coração ( ). As potências da
alma enquanto constituintes essenciais da alma, revelam a natureza deste ser frágil e
instável; é isto o que constitui o .46 do qual nós já tinhamos falado a propósito do
acto voluntário e involuntário. É ele que ocupa o lugar de medição entre , e
l’ .
A analogia que Platão faz correponder entre a organização da cidade, isto é, da
politeia, e a distinção das três partes da alma é reveladora da intrínseca constuição
ontológica dos seres que partilham uma parte racional, ( ), uma parte
desiderativa e uma parte irascível, lugar da coragem e da cólera
( ).
Platão faz uma primeira tripartição da alma na República onde ele estabelece uma
primeira analogia entre a forma de governo do estado e a composição da alma segundo
três princípios distintos : o da razão, o da cólera ou ira, e finalmente o da concupiscência.
Estes três pricípios estão adscritos essencialemnte à forma de governar na polis que
define essencialmente a classe dos guardiãs. Vejamos o que Platão nos diz, tendo em
conta que é esta mesma concepção platónica que inspira Paul Ricoeur na sua
46
A noção de é muito ambivalente. Ricoeur fala duma trilogia das paixões descritas por Kant. Estas
paixões definidas como Habsucht (possessão ), Herrschsucht (de dominação), Ehrsucht (de honra) são as
figuras “déchues” da afectividade humana.
17
"Não é portanto sem razão que consideraremos que são dois os elementos, distintos um do outro,
chamando àquele pelo qual ela raciocina ( o elemento racional (da alma,
e aquele pelo qual ama, tem forme e sede e esvoaça em volta de outros desejos, o elemento
irracional (e da concupiscência ( companheiro de certas satisfações e
desejos.
(
.)
Por conseguinte -prossegui eu vamos distinguir na alma a presença destes dois elementos. Porém
o da ira () pelo qual nos irritamos ( ), será um terceiro, ou da mesma natureza
de algum destes dois ? (…)
Porventura será diferente da razão, ou uma qualquer das suas formas, de maneira que haverá na
alma, não três, mas dois elementos, o racional e o concupiscível ( )?
Ou tal como, na cidade, esta se compunha de três classes - a negociante, a guerreira e a deliberativa
também na alma a terceira servia este elemento irascível ( ) auxiliar do racional por
natureza, quando não foi corrompido por uma má educação ? - É forçoso que seja o terceiro" 47.
Se há três partes, parece-me que haverá também três espécies de prazer ( ) cada um
específico de cada uma delas. E do mesmo modo com os desejos ( ) e poderes. - Uma
parte era aquela pela qual o homem aprende ( ) outra, pela qual ele se irrita ( );
quanto à terceira, devido à variedade de formas que ostenta, não dispomos de um nome único e
específico, mas designámo-lo por aquilo que é mais eminente e mais forte : chamamos-lhe
concupiscência () devido à violência dos desejos relativos à comida, à bebida, ao
amor e a tudo quanto o acompanha"49.
48
Esta divisão está na origem da divisão das potências da alma segundo os autores medievais,
nomeadamente São Tomás de Aquino. Cf. Suma Teológica I, q. 82 a. 5.
49
República 580 d - e
50
P. Ricoeur, Finitude et culpabilité, p. 28,
51
Cf. Etica a Nicómaco, III, 4, 1111 b 19 sgs.
52
Fedro 237 d.
53
República 403 a.
54
Banquete, 203 a.
19
Eros é um ser intermediário, pois ele não se define como sendo o "belo em si" ou
"o bem em si", nem porque ele é a ciência ou a ignorância, mas, ao contrário, porque ele
ocupa o espaço intermédio, entre o saber e a ignorância, entre a sabedoria e o não
conhecimento ()56.
Esta tensão ontológica que caracteriza a naturaza de Eros está na base duma desiguldade
e duma desproporção entre a sensibilidade e a razão, entre o desejo e a racionalidade. O
que provoca então esta desproporção, segundo Ricoeur ? Não é concerteza, neste diálogo,
o Banquete, que se encontram as razões desta desproporção e desta dualidade. Na
verdade, vimos já na República, como na constituição da tripartição da alma, enquanto,
razão, desejo e humor, estes três princípios estão na base do homem sábio e experiente.
Somente ao filósofo é dado a possibilidade de associar directemente a inteligência com a
experiência. A simbiose perfeita do homem feliz. Somente ao filósofo é-lhe dado a
possibilidade de possuir um prazer que atinge a contemplação do ser 57. Neste sentido a
admiração pelo sublime e belo deverá ser procurado também do lado da empiria ou
mesmo da metaempiria58: Mas então em que se fundamenta a pobreza do homem, a tal
que é partilhada pelo carácter híbrido do seu ser, quer na sua dimensão afectiva, quer na
sua dimensão intelectual ? Em que bases se constrói esta verdadeira pathétique de la
misère ? O optimismo afirmativo da Banquete, onde o Eros era descrito, como um ser
que "filosófa ao longo de toda a sua vida" (), é agora
substituído pelo pessimismo do Fedro e até mesmo de certas passagens da República.
Na verdade, o Fedro retoma, de certa forma, um e outro mito, contados no
Banquete e elabora uma mítica da fragilidade e da queda" 59. O amor, ao ser definido no
Fedro, "como um desejo", reafirma uma vez mais um dos lugares comuns de outros
diálogos platónicos60. No entanto, quando se trata de explicar a natureza do desejo, Platão
não hesita em distinguir um desejo inato, definido como desejo de prazer ( ,
) e um desejo adquirido, este último definido como sendo aquele que aspira ao
melhor. Estas duas tendências do desejo, que lutam dentro do homem conduzem, a duas
tendências : a primeira à desmesura ( ,), enquanto que a outra conduz à razão
() e à sabedoria (). A desmesura deste ser mortal que vive segundo uma
irracionalidade e segundo o amor e ao delírio 61. É a esta bipolaridade antropológica,
definindo a essência da alma mortal, que Ricoeur caracteriza como sendo a fragilidade :
"A fragilidade é a dualidade humana do sentimento"(…) "um primeiro sinal desta
55
Banquete 202 d.
56
Banquete, 202 a.
57
República, 582 c.
58
P. Ricoeur, Finitude et culpabilité, p. 94.
59
P. Ricoeur, Finitude et culpabilite, p. 30.
60
Fedro 237 d.
61
Fedro, 241 a.
20
fragilidade" está "na diferenciação do prazer e da felicidade que realizam o desejo vital
e o desejo intelectual"62.
Apesar desta leitura, no Fedro dum amor desiderativo negativo, há no entanto, na
parte final do diálogo, uma associação do amor ao caráter divinatório e portanto, à
inspiração divina. Platão ao relacionar directamente o Eros com um bios philosophicos,
eleva de certa maneira o carácter específico do desejo amoroso à própria razão 63. Ao
contrário da , que está ligada ao desejo sensível e volitivo. No Fédon vemos
que a vida filosófica está por vezes sob o efeito duma prisão : ela é a obra do desejo
sensível e visível. Neste estado da alma, tudo é ilusão e fruto dos sentidos e só a alma,
quando possui o seu auto-conhecimento, é fruto do inteligível e do invisível. A alma do
verdadeiro filósofo deverá manter-se à distância dos prazeres ( , dos desejos
(), das penas ou aflicções (64
a República o homem irascível, que cede aos prazeres desordenados leva-o a
querer possuir o amor das honrarias (), o amor de dominar () e,
finalmente, o amor de possuir ()65 Esta trilogia dos prazeres, aproxima-se da
trilogia das paixões em Kant, enunciadas como : paixão da possesão (Habsucht), paixão
da dominação (Herrschsucht) e paixão da honra (Ehrsucht); estas são abordadas por Kant
na sua Antropologia do ponto de vista empírico66.
"Pois então - E a parte irascível ( ) não diremos que está sempre a tender, toda ela, para
dominar (), vencer (), ter fama () ?67.
Embora a terminologia platónia seja por vezes variada, todo ao longo do discurso,
nada altera, no entanto, ao conteúdo filosófico e intencional.
A degradação do ser humano está nesta fragilidade das suas emoções e paixões, o
homem não consegue ordenar e relacionar o seu ser consigo mesmo. "O «Soi» é neste
sentido ele mesmo um entre-dois, uma transição"68.
Ora, segundo Ricoeur, toda a desproporção afectiva se encontra aqui nesta
interrelação entre a dimensão afectiva do homem que é de ela mesma e na sua origem
bipolar, dupla e não simples, e a dimensão racional e intelectiva. Uma desproporção entre
a ordem do conhecimento que apresenta nela mesma já uma desporporção entre o ponto
de vista da perspectiva e o ponto de vista da verdade e a ordem do sentimento, que é na
sua origem vital, também, de ordem dupla. Assim sendo Ricoeur refuta uma tradição
segundo a qual a natureza das afecções assenta numa concepção de ordem progressiva
dos sentimentos indo dos mais simples para os mais complexos. Ricoeur contraria esta
tradição afirmando que o homem vital é na sua constitução básica esta relação entre
62
P. Ricoeur, Finitude et culpabilité, p. 142. Cf. Fedro 251 d.
63
República, 499 b-c; Fedro 250 d : neste diálogo Platão estabelece uma estreita relação entre amor e
pensamento ().
64
Fédon, 82 e- 83 c. Nos estóicos estão enunciadas quatro formas de afeçtos (). Cf. Joannes ab
Arnim, Stoicorum veterum Fragmenta, vol. II. De Afectibus. Stoicae affectum definitones apud nemesium
de natu.hom. 416. Teubner, Stuttgart, 1964.
65
República 586c -d
66
I. Kant, Anthropologie du point de vue empirique, in Oeuvres philosophiques, III. Les derniers écrits
(Bibliothèque de la Pléiade). Paris, Galllimard, 1986, pp. 1088-1090.
67
República 581 b.
68
P. Ricoeur, Finitude et culpabilité, p. 123.
21
animalidade e humanidade. E é por esta razão que o coração ocupa o lugar intermédio
entre os extremos, desejo vital, amor intelectual.
“Pode-se colocar sob o signo deste , ambíguo e frágil toda a região
mediana da vida afectiva entre as afeções vitais e as afeções espirituais, em resumo toda
a afectividade que faz a transição entre o viver e o pensar, entre o e o ”69.
Ricoeur contraria igualmente a tese kantiana duma degradação "déchéance" originária da
afectividade humana. Da mesma maneira que a suposição kantiana duma precedência na
deficiência ontológica da sensibilidade que justificaria uma radicalidade do mal na
natureza humana. Assim como a objectividade do objecto não poderá por si só fechar-se
completamente à verdade duma "aparição", no campo do conhecimento humano, da
mesma maneira a sensibilidade não poderá justificar, no âmbito duma antropologia
afectiva e práxica, uma predeterminação, enquanto origem e fundamento, da radicalidade
do mal. Só desta conjugação bipolar do conhecimento humano aberto à verdade e a uma
restauração do valor positivo do originário enquanto sensibilidade e humanidade se
poderá verificar os motivos de base duma anterioridade da valorização afectiva e
originária e em seguida verificar os motivos da queda e da degradação70.
O Eros, diz Platão, é tirânico. Mas é tirânico porque o homem não conseguiu
ordenar os seus prazeres e as suas paixões. Sendo assim, o carácter deste homem é
definido como aquele que vive na desmesura e cujos ditames são os seu prazeres. "O eros
tirânico introduz-se na sua alma e gouverna todos os seus movimentos".
O homme frágil, é frágil porque erra e porque há uma desmesura ( ) no seu
próprio querer. No Fédon existe toda uma antropologia da fragilidade
( /) que a define como fragilidade natural do homem (109 d).
A falibilidade descrita e sentida em L’homme faillible deverá ser entendida no
sentido do mal de sofrimento e não do mal moral ou ético. Que entendemos nós por mal
de sofrimento e em que o distinguimos do mal ético ou religioso ? Por uma lado, Ricoeur
coloca-se numa outra perspectiva da tradição filosofica que considerava que o mal moral
é o fruto duma limitação natural das creaturas (Leibniz). Desta forma este mal assumiria
a designação de mal metafísico. Ora a posição de Ricoeur é a de corrigir esta posição
dizendo que a ideia de limitação em geral, ou se preferirmos de limitação formal, é
insuficiente para explicar o mal. Contudo, Ricoeur deverá por outro lado responder à
necessidade de justificar como nas estruturas gerais do conhecer, sentir e agir humanos a
ideia de finitude limitativa está patente enquanto capacidade de produzir a falha e o erro.
Neste sentido a noção de finitude enquanto ideia-limite não poderá satisfazer por si só a
ideia de mal mas o conceito de falibilidade permite a transição gradativa dum conceito
natural de mal para um conceito ético e religioso do mal.
Mas então onde residirá a tal ideia de limitação que não seja somente sinónimo de
limitação natural e formal para um conceito de limitação especifica duma categoria de
falibilidade humana? E então na noção de desproporção enquanto relação entre finito e
infinito, ser e nada, em suma os diversos graus de ser que se podera finalemente chegar a
uma ideia de falibilidade humana.
A fragilidade é o lugar donde brota esta capacidade do mal. Essencialmente esta
capacidade revela o carácter dum ser que não coincide com ele próprio. A fragilidade, a
69
Idem.
70
Idem, p. 127.
22
falibilidade não é ainda a falta, mas é no entanto, o terreno de mediação, de transição para
a falta e donde ela se posiciona “se pose”.
Ricoeur ao efectuar uma “esquematização duma ontologia do sentimento” tenta
mostrar como na constituição desta esquematização os diferentes caracteres específicos
desta ontologia, apresentam, por si só, uma ambiguidade e uma desproporção. A
desproporção é, em última instância, o “excedente” da proporção analógica, resultante da
esquematização. A falha ou a falta, não é analógica, não é a proporção, a falha é a
diferença ontológica do ser sofredor, isto é, da Dor ou, se quisermos, da Angústia
(Angst). Mas surge então a questão de saber se esta ontologização do sentimento, na sua
vertente positiva e negativa, não levará em última instância, a uma ontologização do mal?
O mesmo se poderá questionar a propósito duma ontologia do entendimento que coloque
a falha como intrínseca ao processo de conhecimento racional.
Primum : Paul Ricoeur, refuta toda e qualquer explicação que atribua ao sentimento, ao
prazer a origem do mal. E para isso ele baseia-se em Aristóteles. Como já referimos, no
início desta exposição, a falta () não é, segundo o estagirita, o fruto do prazer,
mas é todo o acto que é acompanhado de ignorância. O Prazer é, ao contrário, a
finalidade (), a perfeição da felicidade.
Secundo : É a desproporção entre o princípio de prazer e o princípio de felicidade que
faz aparecer a razão deste conflito humano que caracteriza a própria fragilidade humana.
Tertio : a ontologização deverá ser entendida aqui como o recurso entrecruzado duma via
analógica e duma via negativa, em vista do ser e do bem supremo. A angústia é o
sentimento enquanto diferença ontológica. É uma ontologia da diferença onde o primado
do optimismo originário que representa duma certa forma o optimismo socrático, quando
é afirmado que "ninguém é mau voluntariamente" e até mesmo aristotélico, quando este
afirma, que "ninguém é voluntariamente perverso nem feliz", poderá fundamentar uma
das principais tentativas de Ricoeur nesta ontologia por "via negativa" do negativo.
Sendo assim, é segundo a linguagem ontológica heideggeriana da tonalidade (Stimung)
que Ricoeur escolhe para expressar a deficiência ontológica na ontologia.