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Com comentários de Albert Low

Além
do
Despertar
Textos do Mestre Hakuin
sobre Meditação Zen

Tradução
Edvaldo Batista de Souza

Editora Teosófica
Brasília-DF

2
Revisão Técnica RacheI Lourenço
Capa: Usha Velasco
Diagramação: Reginaldo Mesquita

Dedicado ao meu Primeiro Professor


Zen Yasutani Roshi

Sumário
Prefácio 05
Introdução 06
Hakuin e a importância do Despertar 06
Sobre o estudo do koan 07
A prática de Hakuin 07
Os despertares de Hakuin 09
Hakuin e o Mestre Zen Shoju 10
Sobre a diversidade da Vida Espiritual 11
Os escritos de Hakuin 13

PARTE I - O Cântico do Mestre Hakuin em Louvor ao Zazen 14


Texto Zazen Wasan de Hakuin Zenji 14
Texto e Comentários 15

PARTE II - As Quatro Maneiras de Saber da Pessoa Desperta 33

Introdução ao Texto 33
Saber, Conhecimento e Sabedoria 33
O saber e a prática do Zen 34
O jarro e a argila 35
A origem da ideia das Quatro Maneiras de Saber 36
As quatro maneiras de saber como quatro maneiras de perguntar: 37
“Quem sou eu?”
A prática para o leigo 37
3
Observação 39

O Texto de Hakuin 40
As quatro maneiras de saber da pessoa desperta 40
A maneira de saber do Grande L pelho Perfeito 40
A maneira de saber a igualdade 40
A maneira de saber por diferenciação 40
A maneira da perfeição da ação 40
O Portal da Inspiração 41
O Portal da Prática 42
O Portal do Despertar 43
O Portal do Nirvana 44

Comentários sobre as Quatro Maneiras de Saber 45


São os três corpos inerentes? 45
O Conhecer do Grande Espelho 49
Saber a Igualdade 55
Saber por diferenciação 57
A maneira da perfeição da ação 57
A importância de continuar a prática após o despertar 59
O Portal da Inspiração 68
O Portal da Prática 73
O Portal do Despertar 79
O Portal do Nirvana 85

4
Prefácio

A EDITORA TEOSÓFICA tem o prazer de apresentar uma obra sobre o elemento mais
básico da prática budista, a meditação. Shakyamuni Buda, sempre relutante em pregar aos
seus discípulos, solicitou-lhes que se sentassem, se concentrassem na respiração, e
conhecessem sua própria Mente. Ele os encorajou a julgar, pelos frutos dessa prática, se o
seu caminho era um caminho digno.
As palavras são úteis somente até um certo ponto. Elas são meios hábeis que nos
dirigem ao início do caminho, o dedo que aponta para a lua da iluminação. Infelizmente,
elas podem facilmente obnubilar-nos a visão, assim como as nuvens podem obscurecer a
lua. A experiência direta é essencial, razão pela qual os instrutores do Zen, de Bhodidharma
a Dogen, de Hakuin a Albert Low têm ensinado que "apenas sentar-se" é o caminho mais
direto para o "conhecimento".
Aqui, então, estão dois textos essenciais sobre sentar-se. Composto no século XVIII
pelo grande reformador Zen, o japonês Hakuin, Zazen Wasan, ou O Cântico em Louvor ao
Zazen e As Quatro Maneiras de Saber da Pessoa Desperta, apontam para a realidade do
mundo à nossa volta e para o caminho de sua descoberta no Zazen.

Os Editores.

5
Introdução
Hakuin e a importância do Despertar
No início do seu livro, Wild Ivy, o mestre Zen Hakuin diz: "Qualquer um que queira
tornar-se membro da família Zen deve antes de mais nada atingir o kensho - a realização do
caminho do Buda¹. Durante toda sua vida Hakuin fez soar este brado, exortando todos que
quisessem ouvir para se esforçarem a fim de atingir o kensho (despertar). Ele citou
Bodhidharma, que disse.² "Se alguém sem kensho fizer um esforço constante para manter
seus pensamentos livres e desapegados, não apenas é um grande tolo, mas também
comete uma séria transgressão contra o dharma. Termina na indiferença passiva da
vacuidade, e não é mais capaz do que um bêbado em distinguir o bem do mal. Se alguém
quiser pôr em prática o dharma da não-atividade, deve pôr fim a todos os apegos mentais
penetrando o kensho. A menos que tenha o kensho, ninguém jamais poderá esperar atingir
o estado de não-fazer".
1 Waddel, Norman (tradutor) (1999) Wild Ivy. The Spiritual Autobiography of Zen Master Hakuin. Shambala
Publlcations. Boston. p. 1.
2 Waddel. Norrnan (tradutor) (1994) The Essential Teachings of Zen Master Hakuin. Shambala Publications:
Boston. p.27.
Outros mestres do Rinzai Zen enfatizavam a Importância do kensho como a joia da
prática Zen. O despertar estava no âmago do ensinamento do Buda, e distinguia o seu
ensinamento de outros ensinamentos do seu tempo. Mesmo o ilustre Keizan, Instrutor de
Soto Zen, disse:³ "Embora nada haja para dar ou receber, o satori deve ser tão conclusivo
quanto conhecer o seu rosto apenas pelo toque no nariz".
3 Lucien Stryk and Takashi Ikemoto (editores e tradutores) (1965) Zen: Poems, Prayers, Sermons,
Anecdotes, Interviews. Doubleday Anchor original: New York. P.49.
O que destacava Hakuin dos outros instrutores era o vigor com que assinalava a
importância do kensho, e a diligência com que seguia seus próprios ensinamentos. Ele
simplesmente ria-se dos instrutores que desdenhavam do kensho como algo desnecessário
ou mesmo impossível, e dizia.4 "[Este tipo de instrutor] faz lembrar alguém que não tem
força para levar a comida até a boca, e que todavia insiste em não estar comendo porque a
comida é ruim". Outras vezes, quando conversava com os monges que eram indisciplinados
e que não apreciavam o dharma, ele era mais cáustico:5 "Eu nunca gostei de monges do
tipo desses aí. Eles são comida para tigre, sem dúvida. Eu espero que um tigre os faça em
pedacinhos. Os ladrões perniciosos - mesmo que você matasse sete ou oito deles por dia,
você ainda permaneceria totalmente sem culpa. Por que estamos tão infestados deles?
Porque os jardins ancestrais foram negligenciados. Eles correram para semear. A folhagem
verdejante do dharma murchou e somente a terra devoluta permanece".
4 Waddel (1994) Op.Cit. p. 45.
5 ibid. p.13.
Ele relembra do Cristo que se irritava contra os escribas e fariseus:6 "Mas ai de vós,
escribas e fariseus, hipócritas! Pois que fechais aos homens o reino dos céus; e nem vós
entrais nem deixais entrar aos que estão entrando. Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas!
Pois que percorreis o mar e a terra para fazer um prosélito; e, depois de o terdes feito, o
fazeis filho do inferno duas vezes mais do que vós".
6
6 São Mateus 23.
Infelizmente, como disse Hakuin:7 "Não resta dúvida, a prática do Zen é um
empreendimento formidável". Pelo fato de ser tão difícil muitos estão aquém da meta
última, todavia continuam a ensina; uma forma de sentar-se imóvel. Hakuin reclamava
constantemente desses instrutores, acima de tudo aqueles que rejeitavam a prática do
koan. Ele dizia:8 "Das pessoas Zen de hoje, que estão contentes em sentar-se
sossegadamente submersas no fundo de seus 'tanques de águas tranquilas', geralmente se
ouve: 'Não se aprofunde nos koans. Os koans são 'pântanos'. Eles irão sugar a sua
autonatureza. Também não se envolva com as palavras escritas. Elas são complicados
emaranhados de cipós que agarram o seu espírito vital e lhe sufocam a vida.' "
7 Waddel (1994) op. cit. p.72.
8 ibid. p.24.

Sobre o estudo do koan


O estudo do koan começa com os koans rompedores de "Mu!”9 ou "Qual era o seu
rosto antes de seus pais terem nascido?" ou, posteriormente, do próprio Hakuin, "Qual é o
som de uma só mão batendo palmas?" Eles são chamados 'rompedores' porque, se
trabalharmos com eles, poderemos romper a tela das ideias e conceitos habituais rumo à
claridade da Mente Una. Após a pessoa ter compreendido o koan rompedor, ela trabalha
com várias coleções de koans. O método para esta prática foi primeiramente introduzido
no Zen-Budismo durante a Idade de Ouro do Zen, que durou do século VI ao século X. Na
época de Hakuin a prática estava em declínio, e uma de suas grandes contribuições foi
reviver o estudo do koan e torná-lo mais uma vez uma parte viva do Caminho Zen. Por esta
razão, muitos mestres Rinzai de hoje seguem sua ancestralidade até Hakuin.
9 O koan completo é assim: "Um monge perguntou ao Mestre Zen Joshu: 'Um cachorro tem a natureza do
Buda?'. Joshu respondeu '(Mu!)' (Não!)". Para mais informações sobre este e outros koans rompedores,
vide Low, Albert (1995) Tlle World: a Gateway. Commentaries on the Mumonkan. Charles E. Tuttle:
Boston. p. 25.
Hakuin não apenas defendeu incessantemente que se mergulhasse nos koans, como
também insistiu sobre a necessidade de se ler e estudar as obras do Budismo, incluindo os
antigos Mestres Zen. O biógrafo Torei disse:10 "As palavras e expressões dos Mestres Zen
jamais lhe deixaram. Ele as usava para iluminar os velhos ensinamentos por meio da mente,
para iluminar a mente por meio dos velhos ensinamentos". Ele considerava a prática da
escrita¹¹ "o exercício do prajna verbal", o que, sem dúvida, é a razão pela qual ele tanto a
praticou.
10 Waddel (1999) p.xxx.
11 ibid. p.XXXi.

A pratica de Hakuin
Hakuin nasceu em 1686 e aos 15 anos Já havia sido ordenado na tradição Zen. Ele
seguia seus próprios preceitos e conhecia bem as lutas amargas do Zen. Certa vez ficou tão
desiludido com a prática Zen que a abandonou em favor da leitura e estudo da literatura
chinesa e japonesa da época. Mesmo assim, voltou à prática e continuou seu treinamento
7
até os 35 anos , quando começou a ensinar, não apenas a monges, mas também a leigos.
Como muitas pessoas que seguem em frente e não desistem da prática do Zen, Hakuin
era impelido por grande ansiedade e angústia. Esta angústia o afligiu desde cedo em sua
vida. Ele contava sobre uma ocasião em que ficou apavorado com a água quente do banho.
Sua mãe não conseguia compreender o seu terror, e ele gritava:¹² "Mãe, você não
compreende. Eu não posso sequer entrar na banheira sem tremer os joelhos e sem que o
meu sangue congele. Pense apenas no que será quando eu tiver que enfrentar os fogos do
inferno sozinho. O que eu vou fazer? Não há saída? Eu tenho que sentar e esperar
calmamente até que a morte chegue? Se você souber algo, por favor, diga-me. Eu quero
saber tudo! Tenha pena de mim. Salve-me. Esta agonia intolerável continua noite e dia - eu
não consigo mais suportá-la".
12 ibid. p.10.
Quando ele posteriormente desiludiu-se com o Zen, a causa foi sua ansiedade aguda.
Ele ouvira falar do mestre Zen Yen-t'ou (Ganto), e escreveu: "Desejando aprender mais a
respeito da vida deste sacerdote, consegui uma cópia do livro Praise of the True School, e
Kin e eu lemos o livro todo. Eu aprendi que Yen-t'ou morreu violentamente nas mãos de
bandidos." Ele disse que essa foi uma descoberta muito desalentadora: "Yen-t'ou era um
em um milhão, verdadeiramente um dos dragões de sua época". Hakuin disse que se Yen-
t'ou pôde ser assaltado e morto por bandidos, "como poderia um monge comum, como eu,
ter esperança de evitar cair nos três caminhos do mal depois da morte? Um monge budista,
concluí eu, deveria ser a criatura mais inútil sobre a face da terra".
Ele lastimou o dia em que se tornou monge: "Olhe para mim' Um pária de aparência
desprezível. Eu certamente não posso retornar à vida leiga - eu morreria de vergonha. E da
mesma forma seria humilhante evadir-me para algum lugar e me atirar numa cova úmida.
Uma coisa é certa, estou no fim da minha busca religiosa. Que fracasso total, miserável, eu
me tornei".
Durante anos ele insistiu na meditação sobre o enigma da morte de Yen-t'ou. Um dia
ele alcançou um profundo despertar e gritou: "Eu sou Yen-t'ou!".
Uma história famosa demonstra que ele estava realmente curado de sua terrível
ansiedade. Um samurai o visitou e perguntou: "O céu e o inferno realmente existem?"
"Quem é você?", perguntou Hakuin.
"Eu sou um samurai", respondeu o homem.
"Você, um guerreiro!", gritou Hakuin. "Que tipo de senhor empregaria você? Você tem
uma aparência ladina".
O samurai ficou tão zangado que começou a puxar a espada. Hakuin zombou: "Oh,
você tem uma espada! Decerto é cega demais para me ferir".
O samurai desembainhou a espada.
Hakuin disse: "Aqui se abrem os portões do inferno!". Ouvindo isso, e reconhecendo a
disciplina do mestre, o samurai pôs de lado a espada e curvou-se.
"Aqui se abrem os portões do paraíso", disse Hakuin.
Não esqueçamos que anos de trabalho intenso foram necessários antes que ele
pudesse livrar-se desse terror. Este medo e ansiedade o levaram à sua natureza mais
profunda onde pôde encontrar a paz que não conseguiu encontrar externamente.

8
Os despertares de Hakuin
Aos 22 anos, enquanto assistia a palestras sobre os dizeres e escritos de um mestre
Zen, Hakuin chegou ao seu primeiro despertar. Isso deve ter sido o que no Zen é chamado
de "provar o Zen com a ponta da língua". Mais tarde, enquanto lia, ele teve um despertar
mais profundo. Em vez de lhe fazer abandonar a prática, este despertar impeliu-o a praticar
mais intensamente. Ele disse¹³ que "havia se concentrado noite e dia no koan Mu sem
descansar por um momento sequer". Todavia não conseguia obter uma realização mais
profunda.
13 Yampolsky, Philip (tradutor) (1971) The Zen Master Hakuin, Selected Writings. Columbia University
Press: New York. p.118.
Ele continuou praticando ativamente por mais dois anos: "Noite e dia não dormia;
esqueci o que era comer ou descansar. Subitamente uma grande dúvida manifestou-se em
mim. Era como se eu estivesse congelado no meio de uma cobertura de gelo que se
estendia por milhares. de quilômetros. Uma pureza encheu meu peito, e eu não conseguia
seguir adiante nem recuar. Parecia que eu estava fora de mim e somente o Mu
permanecia. Embora eu estivesse sentado no Salão de Conferências e estivesse ouvindo a
palestra do Mestre, era como se estivesse ouvindo uma discussão que acontecia ao longe,
do lado de fora do salão. Às vezes parecia que eu estava flutuando no ar".
Ele permaneceu nessa condição por vários dias, e então:14 "Eu consegui ouvir o som do
sino do templo e de repente fui transformado. Era como se o gelo tivesse sido esmagado ou
se uma torre de jade estivesse caldo com um estrondo". Todas as suas antigas dúvidas
“sumiram como se o gelo tivesse derretido. Em voz alta eu gritei: Maravilhoso, maravilhoso.
Não existe nenhum ciclo de vida e de morte que tenhamos que atravessar. Não existe
nenhum iluminado. Os mil e setecentos koans que chegaram até nós vindos do passado não
tem o menor valor' ".
14 ibid. p.118.
Ele então disse algo que irá soar estranho para muitas pessoas, senão completamente
ultrajante:15 "O meu orgulho elevou-se como uma montanha majestosa, a minha arrogância
avançou como uma onda. Complacentemente pensei para comigo mesmo; 'Nos últimos dois
ou três mil anos ninguém pôde realizar um rompimento tão maravilhoso como este.' "
(ênfase acrescentada)
15 ibid. p.118/9.
Sustentando nos ombros a sua "gloriosa iluminação", ele partiu imediatamente para
Shimano para visitar o Mestre Shoju.
A maioria de nós imagina que, quando alguém se ilumina, todas as ilusões e falhas,
inclusive toda arrogância, orgulho e presunção, desaparecem misteriosamente.
Como veremos posteriormente, quando eu comento sobre The Four Ways of Knowing
of an Awakened Person (As Quatro Maneiras de Saber da Pessoa Desperta), isso, na
realidade, não acontece.
Lamentavelmente, algumas pessoas, que têm um despertar superficial, e que depois
escrevem e falam a respeito de maneira incessante, alimentam este tipo de equívoco. Elas
terminam por criar todo um mito em torno da experiência, a qual, porque os outros
desejam acreditar que a magia e os milagres são possíveis, é aceita como verdade. Quando
9
surge um instrutor autêntico que não se ufana do seu despertar e que se comporta como
uma pessoa comum, é frequentemente rejeitado porque não se enquadra na mitologia.

Hakuin e o Mestre Zen Shoju


Para sua felicidade, Hakuin encontrou um instrutor experiente e lhe disse o que havia
acontecido. Ele também, como era o costume, presenteou o instrutor com um verso. O
Mestre Zen Shoju disse:16 "Este verso é o que você aprendeu com os estudos. Agora me
mostre o que a sua intuição tem a dizer.", e estendeu a mão direita. Hakuin respondeu: "Se
houvesse algo intuitivo que eu pudesse demonstrar, eu o vomitaria.", e fez um barulho
como se estivesse engasgando-se. O mestre perguntou: "Como você entende o Mu de
Chao-Chou?" Hakuin respondeu: "Que tipo de lugar possui Mu ao qual as pessoas possam
prender braços e pernas?". O Mestre torceu o nariz e disse: "Aqui está um lugar para
prender braços e pernas". Hakuin não sabia como responder e o mestre caiu na gargalhada:
"Seu pobre demônio morador de um buraco!", exclamou ele. Hakuin o ignorou, mas o
Mestre continuou: "Você de alguma maneira acha que tem compreensão suficiente?"
Hakuin respondeu: "O que você acha que está faltando?"
16 ibid. p.119.
O mestre começou a falar sobre o koan que fala da morte do Mestre Zen Nansen.
Hakuin tapou os ouvidos e se apressou para fugir da sala. Na saída, o Mestre o chamou:
"Hei, monge!" e, após Hakuin ter parado e se voltado, ele acrescentou: "Seu pobre
demônio morador de um buraco!".
Daí em diante, toda vez que Hakuin ia visitar o Mestre, este o chamava de "demônio
do buraco".
Uma noite, o Mestre estava sentado refrescando-se na varanda. Hakuin levou um
outro verso que tinha escrito. "Ilusões e fantasias", disse o Mestre. Hakuin repetiu-lhe suas
palavras de volta em alto brado, no que o Mestre o agarrou e lhe deu Vinte ou trinta socos,
e depois o empurrou para fora da varanda.'
Hakuin disse:17 "[Isto aconteceu] após um longo período de chuvas. Eu fiquei deitado
na lama como se estivesse morto, mal respirando e quase inconsciente. Não conseguia me
mover. Enquanto isso, o Mestre, sentado na varanda, dava gargalhadas. Pouco depois,
recobrei a consciência, levantei-me, e curvei-me para o Mestre. Meu corpo estava banhado
de suor". O mestre gritou para ele: "Seu pobre diabo morador de um buraco!"
17 ibid. P 119
Depois disso, Hakuin entregou-se, sem parar para dormir nem para comer, a uma
prática desesperada baseada no koan sobre a morte de Nansen. Um dia ele teve um leve
despertar e foi para o aposento do Mestre testar sua compreensão, mas o Mestre não
aprovou. Tudo o que ele fez foi chamá-lo de "pobre diabo morador de um buraco",
Hakuin começou a pensar que era melhor deixar o instrutor e ir para outro lugar. Um
dia ele foi para a Cidade mendigar comida e encontrou um louco que tentou agredi-lo com
uma vassoura. Subitamente, Hakuin descobriu que tinha compreendido o koan sobre a
morte de Nansen que o mestre tinha lhe dado. Então ele também compreendeu outros
koans que lhe haviam confundido. Ele voltou para Shoju e lhe disse o que tinha visto, e a

10
compreensão que tinha obtido. O Mestre não aceitou nem rejeitou o que ele disse; apenas
riu alegremente. Porém, daí em diante, parou de chamar Hakuin de "pobre diabo morador
de um buraco". Depois, Hakuin experienciou dois ou três despertares posteriores,
acompanhados de um grande sentimento de alegria:18 "Às vezes, há palavras para expressar
tais experiências, mas, para meu pesar, outras vezes não há palavra alguma. Era como se eu
estivesse vagando pela sombra lançada por uma lamparina. Então retornei e me devotei ao
meu velho instrutor Nyoka, que adoecera"
18 ibid. p.120.
Um dia ele leu um trecho do verso dado por Hsi-keng a seu discípulo Nampo enquanto
se despediam: "Enquanto nos separamos, um bambu alto encontra-se ao lado do portão;
suas folhas agitam a brisa fresca para você como despedida." Ele foi tomado de grande
alegria, como se uma vereda escura tivesse subitamente sido iluminada. Inconscientemente
ele gritou: "Hoje pela primeira vez entrei no samadhi das palavras". Ele se levantou e
curvou-se em reverência.
Este não foi o fim da jornada de Hakuin para o interior de si mesmo, mas fornece
material suficiente para avaliar tanto o vigor de sua prática quanto a profundidade de sua
realização. Mostra também a sinceridade de sua determinação. Quão poucas são as pessoas
que, após terem tido um despertar espontâneo, estão preparadas para buscar alguém para
verificar sua autenticidade. Adernais, quantas estariam preparadas para aceitar (o que
parece ser) o estranho comportamento de Shoju?

Sobre a diversidade da Vida Espiritual


Uma importante distinção é feita entre as práticas que levam ao Samadhi, e as que
levam ao despertar. Como vimos, o Zen Rinzai enfatiza estas últimas. Conforme citei Hakuin
antes: "Aconteceu de eu ouvir o som do sino do templo e fui subitamente transformado.
Era como se uma cobertura de gelo tivesse sido esmagada, ou uma torre de Jade tivesse
caído com um estrondo". Todas as suas dúvidas anteriores "desapareceram como gelo
derretido".
Por outro lado, uma reportagem da revista Newsweek19 relatou o estado de Samadhi
da seguinte forma: "Havia um sentimento de energia centrado em mim... que escorria para
o espaço infinito e retornava... Havia um relaxamento da mente dualística, e um intenso
sentimento de amor. Senti um profundo afrouxar das barreiras à minha volta, e uma
conexão com algum tipo de energia e estado de ser que tinha a qualidade de clareza,
transparência e alegria. Senti um intenso e profundo senso de conexão com tudo,
reconhecendo que jamais houve de fato uma separação verdadeira". Como se pode ver,
estes dois relato referem-se a situações enormemente diferentes. Samadhi é uma
experiência, e tem um dualismo incipiente embutido dentro de si."
19 God in the Brain: How we are wired for spirituality - Newsweek, May 7 2000 - p.53.
O kensho não é uma experiência. Com o kensho, a maneira como experienciamos é
mudada fundamentalmente. Com o kensho, o sono, a inteligência criativa é despertada, e
ao mesmo tempo é dissolvida a crença profundamente arraigada na oposição entre o
mundo e eu. Porque o antiquíssimo senso de separação dissolve-se, a angústia, o desespero

11
e o medo que haviam acompanhado e ardido em chamas durante toda a vida são também
dissolvidos.
A primeira vez em que o Buda começou sua peregrinação ele encontrou três
instrutores. Todos os três lhe ensinaram uma meditação diferente que levava ao Samadhi.
Ele as rejeitou todas, embora fosse proficiente em todas as três a ponto de os instrutores o
convidarem para permanecer com eles e tornar-se ele mesmo um instrutor. Em vez disso,
ele passou outros seis anos de provação antes de atingir o despertar.
Deve-se fazer também uma distinção entre zazen e a meditação que leva a estados
extáticos, visões, vozes, e assim por diante. Um dos mais famosos dizeres do Zen é de
Rinzai, que disse: "Se encontrar o Buda, mate o Buda!" Em outras palavras, qualquer
experiência, mesmo a mais inefável, seja de Deus, Jesus ou Buda, não é a sua verdadeira
natureza, portanto não fique preso a ela.
Muitos sentem que a magia e o milagre são necessários à vida espiritual. De fato, a
Igreja Católica só beatifica uma pessoa se puder ser encontrada evidência de que ela foi
responsável por algum evento mágico ou miraculoso. No Zen, tais poderes miraculosos não
são buscados; na verdade, eles são vistos com desprezo. O mestre Zen Dogen, por exemplo,
disse que estes tipos de poderes advinham do mau carma. Quando o mestre Zen Hyakujo
fazia uma peregrinação, ele encontrou outro viajante, e juntos caminharam uma certa
distância. Chegaram a um rio e Hyakujo olhou ao redor à procura de uma balsa. O seu
companheiro continuou caminhando e o convidou a segui-lo. Hyakujo, vendo o homem
caminhar sobre as águas gritou:
"Seu inútil. Se eu soubesse que você ia aplicar um truque desses teria deixado você
para trás há muitas horas!" O leigo P'ang, um dos muitos famosos leigos Zen escreveu:
"Meu poder miraculoso e minha atividade mágica,
Puxar água e carregar lenha".
20 Para mais informações sobre dualismo no Samadhi, vide Low, Albert (1993) The Butterfly's Dream.
Charles E. Tuttle, Vermont. pp.134-142.
Nem mesmo o despertar é homogêneo, e é capaz de muitos graus e profundidades
diferentes. Isso é surpreendente para muitos ocidentais que acreditam que o despertar e
necessariamente o mesmo para todos e eleva a pessoa que desperta a algum tipo de status
superior de espiritualidade. Quando ouvem falar de uma pessoa que teve mais de um
despertar ficam céticos e se perguntam se o despertar original foi genuíno.
Hakuin lutava contra os mesmos tipos de preocupações quando disse aos seus
contemporâneos que havia tido muitos despertares. Rindo-se das pessoas que
expressavam esta preocupação, ele as parodiava dizendo: "Se você é iluminado, você é
iluminado. Se você não o é você não o é. Para um ser humano, separar a vida da raiz que o
liberta das garras do nascimento e da morte é a única grande questão. Como você pode
contar o número de vezes que acontece - como se fosse um caso de diarreia?"
Em outras palavras: para essas pessoas, o despertar era tudo ou nada, e não, como era
para Hakuin, e como deve ser para qualquer peregrino verdadeiro, um passo importante,
realmente essencial, na vida de peregrinação.
A vida é um milagre. Com isso quero dizer que ela esta além da nossa compreensão,
além de todas as leis da natureza que somos capazes de perceber. Ela é espontânea,
criativa, sem começo nem fim. Mas consideramos a vida como um fato consumado.
12
Chegamos até mesmo ao ponto de relegá-la ao status de acidente, e dizer que é o resultado
de algum acontecimento ao acaso, ou dizemos que um ser vivo é apenas uma máquina
elaborada, dependente de simples leis causais.
A verdade haverá de surgir. Um velho adágio diz que, se expulsa pela porta da frente,
a natureza retorna pela janela dos fundos. Embora consideremos o milagre da existência
como fato consumado, a maioria das pessoas sente uma fome pela magia, pelo que é
miraculoso e divino. Isso Significa que se eu não posso ser miraculoso talvez eu consiga
conhecer o miraculoso. Os mitos, rituais, superstições e religiões surgiram para preencher o
vazio de nossa ignorância, do fato de ignorarmos nossa verdadeira natureza. Despertar
significa despertar para o milagre da existência, mas aqueles que estão no caminho, e que
ainda estão envolvidos na névoa de suas próprias mentes, buscam o milagre fora. Alguns
têm esperança de que a pessoa desperta lhes manifeste o milagre. Mas, como diz o
Dammapadda:

Por si próprio, o mal é feito;


Por si próprio, sofre-se.
Por si só, o mal é desfeito,
Não se pode purificar o outro.

Os escritos de Hakuin
Livros, cartas, escritos de todo tipo fluíam de Hakuin como lava de um vulcão. Tudo
que ele escreveu salientava a importância vital da prática do koan e, acima de tudo, do
despertar. Encontram-se, a seguir, comentários sobre dois dos que me parecem estar entre
os mais importantes dos seus textos: Zazen Wasan, que foi traduzido como O Cântico de
Hakuin Zenji em Louvor ao Zazen e As Quatro Maneiras de Saber da Pessoa Desperta. Eles
seguem naturalmente um ao outro. O Cântico de Hakuin Zenji em Louvor ao Zazen começa
com a condição humana de confusão e desespero; termina com o despertar. As Quatro
Maneiras de Saber da Pessoa Desperta começa com o primeiro despertar e progride até o
despertar completo. Portanto, eles juntos fornecem uma excelente Introdução à prática
Zen, e também têm ensinamentos essenciais para aqueles que já praticam há muito tempo.
O Cântico de Hakuin Zenji em Louvor ao Zazen é bastante conhecido no Ocidente,
particularmente dentre aqueles que praticam na tradição trazida do Japão por Yasutani
Roshi. É entoado em muitos templos e mosteiros Rinzai na cerimônia de encerramento
após o sentar-se formal.
As Quatro Maneiras de Saber da Pessoa Desperta é um texto pouco conhecido no
Ocidente. É, no entanto, de grande importância. Espero que ajude a desfazer algumas das
ideias errôneas a respeito do despertar. Devemos nós mesmos fazer o trabalho. Não
podemos empregar um instrutor que faça o trabalho por nós. Cada um de nós deve trilhar o
caminho com os próprios pés. Espero que o que vem a seguir ilumine o caminho, a prática e
a maneira como essa prática pode mudar o modo como vemos o mundo. Espero que ajude
a desfazer algumas das concepções errôneas sobre o despertar.

13
PARTE I
O Cântico do Mestre Hakuin em Louvor ao Zazen

Hakuin Zenji (1686-1768) foi um dos mais célebres mestres Zen Japoneses. Diz-se que
ele sozinho reviveu o Zen Rinzai no Japão. Ele foi artista, calígrafo e escritor prolífico, assim
como mestre Zen e filantropo. Ele dizia que a sua escrita era prajna verbal. Seus escritos
eram vigorosos, corajosos, e sempre objetivos. O Canto em Louvor ao Zazen, Zazen Wasan,
é justificadamente uma das suas obras mais conhecidas. É entoado repetidamente nos
mosteiros Zen do Japão. Na tradição Harada Roshi/Yasutani Roshi, seguida pelo Centro Zen
de Montreal, Canadá, ele é entoado no fechamento da meditação noturna e também antes
de o instrutor dar a sua teisho, ou palestra, sobre o Dharma, durante os retiros.
O Cântico possui três partes: a primeira fala de como caímos nas trevas e na confusão;
a segunda, que começa com "a passagem para a liberdade", enaltece a virtude do Samadhi
Zazen; e a terceira, que começa com "mas, se nos voltarmos para o interior", fala das
maravilhas do despertar. Também se deve notar que o Cântico inicia com "desde o
princípio todos os seres são Budas" e termina com "este mesmo corpo, o corpo de Buda".
Em outras palavras, o Cântico é como um círculo que começa e termina no mesmo ponto,
que é Buda.

Texto Zazen Wasan de Hakuin Zenji


Desde o princípio todos os seres são Budas.
Como a água e o gelo, sem água não há gelo,
Fora de nós não há Budas.
Quão próximos da verdade, todavia quão longe a buscamos.
Como alguém dentro d'água gritando "Tenho sede".
Como uma criança de rica linhagem
vagueando nesta terra como se fosse pobre,
nós vagueamos eternamente e damos voltas aos seis mundos.
A causa de nossa dor é a ilusão do ego.
De um caminho sombrio a outro vagueamos nas trevas,
Como podemos nos livrar da roda de samsara?
A passagem para a liberdade é o Samadhi Zazen,
além da exaltação, além de nossos louvores,
o puro Mahayana.
A observação dos preceitos, o arrependimento e o doar-se,
as incontáveis boas ações e o caminho do reto viver surgem todos de Zazen.
Assim, um verdadeiro Samadhi extingue os males;
purifica o carma, dissolvendo as obstruções.
Então, onde estão os caminhos sombrios que nos fazem extraviar?

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A Terra do Lótus Puro não é distante.
Ouvir esta verdade, coração humilde e agradecido,
louvá-la e abraçá-la, praticar sua sabedoria,
traz bênçãos intermináveis, montanhas de mérito.

Mas se nos voltarmos para o interior e provarmos de nossa verdadeira-natureza,


que o Verdadeiro-eu é não-eu,
que o nosso próprio Eu é não-eu,
vamos além do ego e das palavras astutas.
Então o portal que leva à unidade de causa e efeito é aberto.
Nem dois e nem três, em frente segue o Caminho.
Sendo a nossa forma agora a não-forma,
para virmos e irmos jamais saímos de casa.
Sendo o nosso pensamento apara não-pensamento,
as nossas danças e as nossas canções são a voz do Dharma.
Como é vasto o céu de ilimitado Samadhi!
Como é claro e transparente o luar da sabedoria!
O que existe fora de nós, o que nos falta?
O Nirvana está totalmente aberto aos nossos olhos.
Este terra onde estamos é a Terra do Lótus Puro
E este mesmo corpo, o corpo de Buda.

Texto e comentários
Desde o princípio todos os seres são Budas.

O que quer dizer a frase "desde o inicio"? Essa questão, que parece tão inócua, nos
lança no próprio coração da situação humana.
Significará "desde o início" que em algum passado distante, há muitas e muitas eras, a
existência teve um início? Se assim foi, o próprio tempo começou aí? Como ocidentais, a
maioria de nós acredita que é assim. Acreditamos que no passado, Deus fez o Universo e,
com esta criação, começou o tempo. Acreditamos também que, algum dia, este universo, e
também o tempo, terminarão - alguns dizem que com a Segunda Vinda do Cristo.
Acreditamos, portanto, que a existência é como um drama que começa, desenvolve-se, e
termina.
Mais recentemente, físicos teóricos substituíram o Big Bang por Deus, e alguns acham
que o mundo irá terminar com o "Big Crunch” (a Grande Trituração), em vez de com o Dia do
Juízo. Quer seja por meio de uma grande explosão ou pela palavra de Deus, temos
firmemente estabelecido em nossa cultura que o tempo tem início e fim. Tão profunda é
esta crença que ficamos confusos se nos dizem que talvez os inícios e os fins são no tempo,
e não do tempo. A crença em um "início" e em um "fim" é apenas isto: uma crença. Origina-
se da maneira como pensamos, não da maneira como as coisas são.

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As pessoas que praticam o Zen estão acostumadas à ideia de que elevemos ir além dos
pensamentos. É quase um clichê. Os pensamentos além dos quais devemos ir não são
aqueles fugidios, superficiais, tais como "Eu gosto da Maria" ou "Eu não gosto do João", que
surgem das observações e dos julgamentos que fazemos. Para ultrapassar o pensamento,
devemos ultrapassar a ideia fundamental de algo, uma ideia que implica outras ideias de
existência, tempo e espaço, de início e fim.
A "ideia de algo" não é filosófica nem esotérica. A maioria de nós acredita que o
mundo “é" e que no mundo existem árvores, casas, colinas, estradas, e automóveis.
Acreditamos também que somos algo - uma pessoa, uma alma, um corpo, um espírito, um
homem, ou uma mulher. Acreditamos, além disso, que todas essas árvores, colinas,
estradas, automóveis, pessoas, almas, e espíritos são "coisas" - algo. Que essas coisas
existem, que são independentes, sólidas e reais, jamais se deve duvidar. Que são "coisas" é
ponto pacífico. Quando digo que devemos ultrapassar a ideia de "algo", estou falando a
respeito deste "fato de ser algo", que consideramos como totalmente certo.
Porque eu vivo com a convicção da existência, isto é, com a convicção de que as
"coisas" existem, vivo com a convicção complementar de que a estrutura de espaço e
tempo também existe. Desta maneira, somos mantidos em uma prisão de pensamento. Se
então pego um koan - isto é, uma questão tal como "Quem sou eu?" ou "O que é a
realidade?" - tenho como certo que devo buscar uma resposta dentro dessa prisão. Mesmo
que eu tente escapar, sair do tempo e do espaço, ainda estou preso na rede de
pensamentos e ideias tais como superespaço ou supertempo ou superconsciência. Eu
procuro um tempo que não é tempo, a que chamo de Eternidade; um espaço que não é
espaço, a que chamo de Céu; uma consciência que não é consciência, e sim Consciência
Cósmica, ou o Inconsciente. E assim eu me amarro mais firmemente a um emaranhado. Ir
além do pensamento é ir além deste emaranhado conceitual.
Devemos questionar este "fato de ser algo". Se eu questionar a noção de "algo", eu
também irei questionar a crença no tempo. Como disse o mestre Zen Hui Neng. "Desde o
início nem uma única coisa é". Este é um chamado ao despertar, para se questionar o
"algo". Ele estava simples e sucintamente expondo o ensinamento do Prajnaparamita, um
texto fundamental do Budismo Mahayana, e os ensinamentos do Buda sobre anicca, (in-
existência). O Prajnaparamita afirma a in-existência, dizendo que a forma é vazia. O
princípio de anicca é um dos três princípios que formam a própria fundação do Budismo:
anicca anatman, e duhkha. Anatman quer dizer ego, ou eu, Duhkha significa sofrimento.
"Desde o início todos os seres são Budas" como eu disse é um chamado ao despertar.
Onde é este início, quando é este início? Se não pudermos colocar o início no passado, se
não pudermos colocá-lo no futuro, vamos dizer que é o "Agora"? Muitos filósofos
populares nos dizem que devemos viver no "Agora". Quando falam em viver no "Agora",
não fazem menção do preço que temos que pagar por isso. O chamado para viver o
"Agora", convida-nos a ver que nada é, a "não nos agarrarmos a absolutamente nada", e a
ver que não existe coisa alguma que se mova, que mude, ou que venha a ser. Tudo está
"aqui e agora", tudo é tempo.
O "Agora" está no gume da existência, na fonte daquilo que pensamos ser a existência.
O passado, a memória, o eu, a sala - todos são "Agora". Porém, para compreender isso,
devemos abrir mão da sala como sendo "algo" - "algo" que está "aqui e agora". "Desde o
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início todos os seres são Budas". "De Agora em diante a fonte de todos os seres é o Buda".
"Desde o início" poderia ter sido expressado como "na origem" ou "na fonte". Os
artistas de segunda linha querem ser originais e sentem que isso significa que devam ser
diferentes. Muitas vezes expressam essa diferença de maneira chocante. Chocar desta
maneira é fazer o inesperado, o diferente, o novo, colidir com o esperado o usual, o
comum. Alguns artistas acreditam que têm de ser revolucionários. Porém, o que é original
vem da origem. Não é simplesmente ser diferente, mas único, insubstituível. A grande arte
tem o sentimento de ser inevitável tanto quanto inesperada. Ela é a extensão
verdadeiramente a realização, do velho. Ela não choca nem perturba tanto quanto produz
maravilha e antecipação. Certamente, essa maravilha e essa antecipação são possíveis
apenas àqueles que, por sua vez, conseguem ouvir a origem, que conseguem livrar-se de
crenças preconcebidas a respeito de como deva ser a arte.
Para ouvir a origem, a pessoa deve estar presente, e por 'estar presente' eu quero
dizer "Agora". A pessoa não pode estar perdida numa terra do nunca do sonho e do
pensamento, da expectativa, da esperança, etc. Na terra do nunca, a pessoa ouve falando
desnecessariamente sobre as memórias disto, daquilo, ou daquilo outro.
A palavra 'presente' procede originalmente de duas palavras: pre e esse. Literalmente
significa "antes de ser". "Agora" é antes de ser. Antes que qualquer coisa exista como tal,
todos os seres são Budas. Isso me leva diretamente ao coração da prática, para dentro
desta luz autoluminosa que sou eu mesmo.

Como a água e o gelo, sem água não há gelo.


Vivemos como se estivéssemos congelados. A nossa personalidade, a que chamamos
de "eu mesmo", é conhecimento, memória, atitudes, crenças, e julgamentos, que se
tornaram sólidos, e assim sendo tornaram-se como as barras de uma prisão.
No Japão os monges são chamados de Unsui, que significa nuvem e água. Além disso,
Unsui significa a própria flexibilidade, a própria liquidez, o próprio movimento da mente, de
ser. Dogen diz que a natureza do Buda é a impermanência. Unsui é uma maneira concreta
de se falar a respeito da impermanência. A maioria das pessoas, considera a
impermanência uma maldição, particularmente quando e vista como a passagem do
tempo. Quando chegamos à idade dos 40 ou 50 anos, começamos a sentir, de maneira
aguda, esta passagem do tempo, esta impermanência. Começamos a temê-la. Queremos
encontrar algo que seja fixo, algo que seja seguro, que seja permanente, em que possamos
confiar. "Uma fortaleza poderosa é o nosso Deus", canta o coral nas cantatas de Bach. Um
outro hino canta a "Rocha das Idades”.
As nossas mentes, nós mesmos, assumimos esta propriedade semelhante à rocha.
Sentimos que, quanto mais parecidos formos a uma rocha, mais seguros seremos. Os
jovens que crescem numa comunidade problemática geralmente adquirem qualidades de
rocha. Eles constroem uma cobertura em torno de si mesmos, uma cobertura de solidez, de
segurança e de certeza. Eles se tornam "durões". Este gelo deve ser derretido se quisermos
encontrar a liberdade à qual aspiramos. Ele só pode ser derretido através da Incerteza,
através da insegurança - isto é, através do sofrimento. Segurança e certeza são geralmente
17
as manifestações de uma mente congelada.
Sentando-se em meio ao que é, sem julgamento - permitindo que o que é seja - o gelo
da mente congelada derrete-se. Dissolve-se naturalmente. No Zen trabalhamos com koans.
"Qual é o som de uma só mão batendo palmas?" é um dos mais famosos koans. Um koan
mantém a mente aberta para permitir que o gelo derreta e a água flua.
A .água é geralmente usada como metáfora para o "espírito". Na alquimia, usava-se a
fonte. O batismo e o borrifo com água sagrada são rituais usados como forma de iniciação
ao caminho espiritual. São João Crisóstomo disse a respeito do batismo: "Representa morte
e internamento, vida e ressurreição... Quando mergulhamos nossa cabeça na água, como
em um sepulcro, o velho torna-se totalmente imerso e enterrado. Quando deixamos a
água, o novo homem surge de repente".

Fora de nós não há Budas.


Fora de nós não existe céu, nada superior. Diz-se no Zen: "Não ponha uma cabeça em
cima da sua". Não precisamos adorar a nenhum outro ser, quer seja este um instrutor, um
sacerdote, um patriarca, um Buda, um Cristo, a Virgem Maria ou um Deus. Todas estas
coisas são conhecimento congelado, Budas congelados. Libertemo-lhes. Deixemos que se
vão. Rinzai disse: "Não considere o Buda como a Causa Última. Quando olho para ele, ele é
como um buraco na latrina. Quanto aos Bodhisattvas e Arhats, são todos grilhões e
correntes para lhe manter em escravidão". Numa outra ocasião ele disse:.. seguidores do
Caminho, se vocês quiserem um insight do Dharma como ele é, simplesmente não se
deixem levar pelas visões enganosas dos outros. O que quer que você encontre, no interior
ou no exterior, mate-o imediatamente: ao encontrar um Buda, mate o Buda; ao encontrar
um patriarca, mate o patriarca; ao encontrar um Arhat, mate o Arhat; ao encontrar seus
pais, mate seus pais; ao encontrar seus parentes, mate seus parentes, e então você
alcançará a emancipação. Não se apegando às coisas, você alcança a emancipação". Rinzai
está nos dizendo, de maneira enfática, para não permitirmos que essas imagens congeladas
se tornem uma armadilha para nós, para as derretermos, para as liberarmos. Não se
agarrando nem se a pegando ao Buda, você verá a verdade interior de que: "Fora de nós
não há Budas"

Quão próximos da verdade, todavia quão longe a buscamos.

Não é apenas o fato de que estamos próximos da verdade; nós somos a verdade. A
verdade não pode ser encontrada. Nenhuma fórmula secreta, nenhum conjunto de
símbolos ou rituais, nenhuma sequencia de palavras, nenhuma maneira de saber aquilo que
alcançamos, nenhuma experiência especial é necessária para se descobrir a verdade. Jesus
disse: "Eu sou o Caminho, a Verdade, e a Vida". Em uma outra ocasião ele disse: "Eu sou a
Luz do Mundo". A Luz é o Caminho, a Verdade, e a Vida. Cada um de nós é a Luz. Nossa luz
é uma luz que brilha por si mesma. Não tem antecedentes, nenhuma causa ou razão de ser.
Não é a luz que brilha nas trevas, que as próprias trevas não compreendem e de que São
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João fala no seu Evangelho. A luz é também as trevas. Um adágio alquímico diz: "O nosso
sol é um sol escuro".
Existe um koan de Mumonkan que se refere à visita do mestre Zen Tokusan ao mestre
Zen Ryutan, Tokusan era um monge errante e passou a noite discutindo o Zen com Ryutan.
Chegou a hora de Tokusan partir. Quando estava saindo, ele se virou para Ryutan e disse:
"Está escuro aqui fora". Ryutan lhe ofereceu uma vela acesa. Quando Tokusan ia pegar a
vela, Ryutan soprou a vela, apagando-a. Naquele momento, Tokusan obteve um profundo
despertar. Se a pessoa estiver buscando compreender este koan, ela deve ver através dos
olhos de Tokusan e compreender o que ele compreendeu. Então, ela verá o que os
alquimistas querem dizer quando dizem que "o nosso sol é um sol escuro", e também o que
eu quero dizer quando digo que a luz é as trevas.

Como alguém dentro d'água gritando "Tenho sede".


William James disse que o primeiro passo no caminho da religião é um grito de
Socorro. "Tenho sede, me ajudem!" tem que ser o primeiro passo, porque até que
compreendamos que estamos perdidos, jamais poderemos encontrar a nós mesmos. O
Salmo Vinte e Dois anuncia, e o Cristo na cruz também gritou as mesmas palavras:
"Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?". Até que compreendamos que
estamos doentes, não iremos buscar remédio. Devemos saber que estamos adormecidos
ou jamais iremos despertar. Nós gritamos: "Tenho sede". Devemos gritar: "Tenho sede".
Todavia, gritamos de dentro d'água. Em meio ao puro conhecimento gritamos: "Ajudem-
me, eu não sei; não sei quem sou nem o que sou. Por favor, me ajudem". Porém, é de
dentro da própria sabedoria que sabemos que estamos perdidos, que estamos sedentos,
que gritamos

Como uma criança de rica linhagem vagueando nesta terra


como se fosse pobre...
Uma parábola do Lótus Sutra conta a história do filho de um homem rico que foge de
casa. Vagueando como um vadio, ele finalmente empobrece. Por acaso, nas suas andanças,
ele encontra o caminho de volta ao lar e é bem recebido por seu pai. Esta parábola é
semelhante à do Novo Testamento sobre o Filho Pródigo.
Em ambas as histórias, é fornecido um quadro de um jovem que é herdeiro de
riquezas infinitas, mas que cai no estado de pobreza. Ambas as histórias falam de
compaixão e misericórdia. Na parábola cristã, esta é a essência da história. Alguém que se
perdera, e que voltara as costas ao seu pai, e que foi, no entanto, perdoado pela compaixão
e misericórdia do pai.
A história budista também possui estes elementos. A compaixão do pai brilha através
de sua dor profunda. A história: no entanto, tem também uma significação mais profunda,
mais sutil.
Na parábola do Lótus Sutra, quando o pai primeiramente vê o filho, em vez de correr
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até ele para lhe dar as boas vindas por voltar para casa, ele envia um criado para encontrar
seu filho. Ele diz ao criado para dar ao jovem o emprego mais humilde que houver na
propriedade. Gradualmente, à medida que o tempo passa, o pai da ao filho cada vez mais
responsabilidades. Finalmente, quando o filho é promovido à posição mais elevada, o pai
pode finalmente lhe dar as boas-vindas como herdeiro da terra e da riqueza as quais irá
dirigir a partir de então.
O pai agiu assim por compaixão. Ele tinha medo que: se dissesse cedo demais ao filho
que ele era herdeiro de uma fortuna tão imensa, a notícia pudesse assustá-lo, oprimi-lo, e
que ele fugisse novamente.
Cada um de nós é como o filho. Somos todos herdeiros de uma imensa riqueza, mas
viramos nossas costas e vagueamos nas trevas. Podemos tropeçar na prática, mas a
verdade de nossa origem é maravilhosa demais, assustadora demais para que sejamos
capazes de assumi-la e aceitá-la. Também nós devemos começar do nível mais baixo e
avançar até o ponto onde não mais teremos medo da verdade.
A vida é impossível; ela é um milagre e desafia toda compreensão. E fracassamos com
as palavras. Uma noite podemos dizer, com Jesus, que cada um de nós é a Luz original do
Mundo. Mas até mesmo isso seria demais. Mesmo o mais leve lampejo dessa verdade é
maravilhoso demais para aceitarmos, e vedamos qualquer possibilidade de ter um lampejo
com imaginação e pensamentos, muitas vezes também por medo e apreensão. Para nós,
pobres errantes sobre esta terra, esta luz viva se parece com a noite mais tenebrosa.
Qualquer pessoa que seja imparcial e que não tenha interesses inconfessos, que não
tenha status a preservar, ou dogma científico para sustentar, sabe que a vida evoluiu por
meio de um espírito criativo, inteligente: Buda. Não parto do pressuposto, como o faz o
Gênese, de que algum Deus, ou Buda, ou algum Ser criou o céu e a terra. A verdade é até
mesmo mais maravilhosa do que isso, porque Deus ou Buda é criatividade, e a criatividade
é ininterrupta. O universo é uma empreitada criativa, o mundo está vivo. Eu sou essa Vida.
Como podemos abarcar tal maravilha, como podemos integrar essa verdade nas vidas
sombrias que vivemos? Para proteger a nós mesmos e à nossa sanidade dessa verdade,
dizemos que é "um acidente". Viramos nossas costas à imensidade de riquezas que nos
pertencem. Podemos aceitar que a vida seja "um acidente". Mesmo assim, não seria
maravilhoso que "um acidente" tenha produzido milhões de espécies diferentes, que tenha
produzido música e arte, arquitetura e ciência, e que miríades de culturas, sociedades e
Civilizações tenham todas vindo à existência e desaparecido por acidente? Quer chamemos a
isso de criatividade, ou, deixando de lado a criatividade, chamemos de acidente, ambas as
palavras - acidente e criatividade - ocultam um mistério profundo.
Enquanto vaguearmos nesta região perdida de palavras e pensamentos, seremos
pobres errantes sobre esta Terra, muito embora sejamos filhos da realeza. Devemos
começar com a humilde tarefa de seguir a respiração, enquanto o tempo todo a nossa
herança nos aguarda.

... nós eternamente damos voltas aos seis mundos.


Os seis mundos são: os dois reinos dos devas ou deuses, o reino dos seres humanos, o
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reino dos animais, o reino dos fantasmas famintos, e o reino dos demônios lutadores.
Algumas pessoas vivem num estado de permanente bem-aventurança: Ramana
Maharshi, Nisargadatta Maharaj, Ramakrishna, Santa Teresa de Lisieux - viveram no mais
elevado reino dos devas. Outras nascem em lares onde há riqueza e abundância; elas
passam mais facilmente pelas posições de poder e de reconhecimento. Habitam o reino
inferior dos devas. A seguir, existem as pessoas como você e eu; vivemos uma vida familiar
com nossas dores e alegrias, angústias e esperanças. Habitamos o reino humano. Algumas
pessoas querem constantemente satisfazer seus apetites. Elas passam as noites em bares e
boates, comem e bebem constantemente, estão sempre querendo mais. Elas vivem no
reino animal. Depois há os viciados, as pessoas que não conseguem deixar as drogas nem o
álcool; são os sátiros ou ninfomaníacos, sempre em busca de uma outra experiência sexual.
Elas estão no reino dos fantasmas famintos. Finalmente, há os Violentos. Os guardas da SS,
os líderes mundiais que buscam apenas o poder e a dominação, aquelas pessoas que estão
sempre lutando. Elas vivem no reino dos demônios lutadores.
Uma outra maneira de se experienciar estes seis reinos é a seguinte.
Você está pronto para ir para o trabalho. Seus filhos estão em casa, você brinca com
eles e lhes dá um beijo de despedida. Você está no céu. Então, quando você está se
despedindo de sua esposa, ela diz: "Não esqueça do vazamento no teto. Parece que está
piorando". Você estava alegre; agora mergulhou na irritação. Mas então ela diz: "O meu
irmão está vindo este fim de semana, e você sabe que ele é bom nessas coisas, talvez ele
possa ajudar". O sentimento de alegria ressurge. Você entra no carro. O carro não dá
partida. Lá vai você de novo para o fundo. Um vizinho passa e diz: "Vamos, eu lhe dou uma
carona". Novamente você está de bem com a vida.
Quando você chega ao escritório um de seus colegas diz: "Parabéns". "O quê?" você
pergunta: "Por que os parabéns?". "Você não viu? Você está na lista de promoção. É um
memorando interno". Você vai ao sétimo céu. A nova gerente passa. Ela é linda. Ela se
veste tão bem, e será que ela não lhe deu um olhar especial por sobre os ombros? Imagens
eróticas lampejam e você mergulha no reino animal.
Você entra no escritório, e descobre que um arquivo no qual você estava trabalhando
foi levado. Dizem que o seu arqui-inimigo recebeu a incumbência de cuidar do caso, depois
de todo trabalho que você teve. Ele telefona: "Preciso de umas poucas coisas suas a
respeito deste arquivo. Pode vir até o meu escritório?" "Não, vá pro inferno! Se você quiser
essa droga, que venha até aqui!" Você mergulha de ponta-cabeça no reino dos demônios
lutadores.
Chega o memorando do escritório. Lá está. A sua promoção e um novo escritório!
Você flutua até o céu novamente.
E assim vai, dando voltas aos seis reinos indefinidamente.

A causa de nossa dor é a ilusão do ego.


A palavra ego significa "eu". Quando dizemos: "Eu tenho um grande ego" ou, "Eu
tenho um ego pequeno", o que é o "eu?" A mesma pergunta pode ser feita a respeito da
alma: se o "eu" tem uma alma que vai para o céu, aonde vou "eu"?
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Às vezes podemos ter o sentimento, mesmo em plena luz do dia, de um súbito
despertar, de olhar ao redor e dizer: "Meu Deus, eu sou eu mesmo". Crianças com cerca de
11 ou 12 anos às vezes têm essa súbita conscientização. A experiência é um tipo de
despertar, de entrar na totalidade desse "eu". "Eu sou eu!". O sentimento é acompanhado
de um senso de esplendor, de se ter adentrado um mundo mágico.
A palavra "eu" para nós é um fato consumado; ela escorrega de nossas bocas sem
qualquer hesitação. Um bom exercício é passar algum tempo, digamos um dia, ou usando a
palavra "eu" o mínimo possível, ou não a usando de modo algum. Não quero dizer que
devamos desistir de usar a palavra pelo resto de nossas vidas. Isso é apenas uma
experiência a ser feita durante um tempo limitado para estudar o seu efeito. Se tentarmos
fazer este exercício seriamente, descobriremos que temos experiências semelhantes às que
têm as pessoas que abandonam uma droga tal como a nicotina. O mundo parece chato e
desinteressante. Nada temos em perspectiva. Consequentemente, simplesmente
começamos a usar uma outra palavra para substituir o "eu". A palavra "eu", no entanto,
não é o problema. O problema é a crença de que o "eu" é alguma coisa - uma entidade de
algum tipo, a crença de que "eu" sou único, separado, superior.
O que é este "eu"? Quando as pessoas se suicidam, elas às vezes assim o fazem para
defendê-lo. Em vez de subjugarem este "eu", ou destruí-lo, elas matam a si mesmas. Por
exemplo, durante o grande crash da Bolsa de Nova Iorque em 1929, as pessoas saltavam de
suas janelas para a morte em vez de enfrentar a perda do "eu", que elas consideravam
importante. Os generais costumavam suicidar-se se perdessem uma batalha, em vez de
enfrentar a perda do "eu".
Hakum está dizendo: "Veja, você tem um problema. Você se considera pobre, mas
você é rico". A ilusão do ego é a ilusão da pobreza - a ilusão de que o "eu" é "algo", algo
muito importante, único. Mas ele não é algo importante e nem único. Ele não é "algo". "Eu
sou algo" é uma ilusão. Devemos fazer uma distinção clara entre "eu sou" e "eu sou algo".
"Eu sou" é a verdade, e eu sou incomparável Eu sou tudo que existe ou que possa existir.
Hakuin está dizendo: "Por que se acomodar com o que é bom, e, assim procedendo, perder
o que é ainda melhor? Por que se acomodar por um milhão de dólares e renunciar à sua
herança humana?" Um mestre disse: "Mesmo uma coisa boa não é tão boa quanto coisa
nenhuma".
Uma freira disse: "Não consigo arrancar a erva daninha; se o fizer, arranco a flor". Eu
sou, e eu sou algo: a flor e a erva daninha, realidade e confusão, inextricavelmente
entrelaçadas. Por um lado, a causa de nossa dor é a ilusão do ego. Todavia, como o Buda
certa vez proclamou: "Por todo céu e terra somente eu sou o honrado!" Onde está a erva
daninha? Onde está a flor?

De um cantinho sombrio a outro vagueamos nas trevas...


As famosas dez gravuras do Pastoreio do Boi contam a história do despertar espiritual.
Elas começam com uma gravura de um jovem boiadeiro completamente perdido,
vagueando de um caminho sombrio a outro. O poema que acompanha essa gravura diz:

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"Através de uma selva sem veredas, sozinho, o boiadeiro avança penosamente,
Através de espinheiros e erva daninhas, gritando por seu boi.
O rio flui majestosamente e as montanhas erguem-se à distância,
Mas ele mergulha cada vez mais profundamente nas trevas.
Exausto, chateado, e desesperado, ele busca em vão por algum sinal, alguma direção."

Qualquer pessoa que tenha iniciado o caminho espiritual sabe das vezes em que
mergulha cada vez mais profundamente nas trevas, "exausta, chateada e desesperada", e
"em vão busca algum sinal, alguma direção".
Alguém disse que estamos sós e apavorados em um mundo que não foi feito por nós.
"Embora as montanhas e os córregos estejam próximos, eu estou perdido". Um caçador
Inuit e um americano saíram para caçar no Ártico, quando uma grande tempestade de
neve começou. Eles buscaram abrigo numa caverna. Quando a tempestade passou e eles
saíram da caverna, descobriram que a paisagem tinha se transformado completamente
Todos os marcos tinham desaparecido. O americano olhou ao redor desalentado e disse:
"Estamos perdidos". O Inuit disse: "não estamos perdidos. O iglu está perdido".

Como podemos nos livrar da roda de samsara?


O Zen Budismo é para os desapontados, para aqueles que chegaram à conscientização
de que não importa a experiência que tenham, esta é incapaz de levar um bálsamo à ferida
profunda em seus corações. Eles ainda possuem esse sentimento profundo de insatisfação,
de algum desejo obscuro, mas não mais acreditam que alguma coisa possa satisfazê-los.
A roda de samsara é a roda da experiência de vida. Nós desejamos, e satisfazemos o
desejo apenas para substituí-lo por outro, a escola, tudo o que desejamos é o diploma.
Porém, mesmo quando pegamos o diploma em nossas mãos, pensamos: "Isto é bom. Agora
posso conseguir aquele emprego". O emprego traz dinheiro e independência, então, por
que não comprar um apartamento próprio? Assim, nos mudamos para um apartamento.
Porém, um apartamento não seria muito bom sem mobília. E assim, queremos mobília.
Viver só em um apartamento é solitário. Conseguimos um(a) esposo(a). Esposo(a), filhos,
cachorro, tudo vem em sucessão. Agora a pessoa não deseja simplesmente saciar seus
próprios desejos insaciáveis. Ela tem os desejos das crianças para sustentar - futebol, aulas
de dança, trabalho de casa... a roda de samsara. A resposta não é conseguir um divórcio.
Não é mudar-se para um outro pais ou conseguir um novo emprego. Isso é apenas girar a
roda de samsara muito mais rapidamente. Como podemos no livrar da roda de samsara,
dos desejos que em sua própria satisfação nutrem novos desejos?

A passagem para a liberdade é o samadhi Zazen...

Trevor Leggett traduz "samadhi Zazen" como "a meditação,Zen do Mahayana". D.T.
Suzuki a traduz como "meditação na pratica Mahayana". Eu menciono isso porque no
original, provavelmente e usado o equivalente japonês de dhyana (meditação). A
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"passagem para a liberdade" é dhyana. Muitas vezes dhyana é traduzido como samadhi -
em oposição aos pares de opostos. Mas pode também significar apenas Zazen, meditação
sentado. O "za" de Zazen significa "sentar-se". A "passagem para a liberdade", Zazen, é
meditação sentado, em oposição aos opostos de eu e o mundo, eu e você.

... além da exaltação, além de nossos louvores, o puro Mahayana.

Nutridos como temos sido no Ocidente pelos milagres de Moisés, de Jesus, dos santos,
uma religião que esteja "além da exaltação" é estranha para nós. O nosso encontro, como
ocidentais, com o Oriente, através do Hinduísmo, também tende a ver o caminho religioso
como algo exaltado. Ouvimos histórias de gurus que, com um simples olhar, podem fazer
uma pessoa despertar. Lemos a Autobiografia de um Yogue, que nos fala de um milagre
apos outro. Não é de surpreender que, em 1914, P.D. Ouspensky, um dos principais
discípulos de Gurdjieff, tenha saído "em busca do miraculoso".
As pessoas geralmente buscam o que é extático na religião. Êxtase significa sair de si.
No Zen, pelo contrário, a questão é como nos tornarmos cada vez mais enraizados, mais em
casa, em nós mesmos. O Zen vê o nosso ser já fora de nós mesmos, pelo menos em
imaginação, como o nosso problema. O caminho de volta ao lar é através da humildade,
mantendo nossos pés firmes no chão. Alguém perguntou a Dogen o que ele tinha obtido
depois de anos que passara praticando o Zen Budismo na China. Dogen respondeu: "Agora
noto que caminho com meus próprios pés, vejo com meus próprios olhos".
A observação dos preceitos, o arrependimento e a doação, as incontáveis boas ações e
o caminho do reto viver, todos derivam de Zazen.
Esta é uma das maneiras como o Zen entra em apuros: por sua própria natureza e
nome ele coloca Zazen, meditação sentado, acima de todos os outros tipos de prática.
Hakuin está dizendo que qualquer coisa que você faça, todas as boas ações e a ajuda às
pessoas, todos os preceitos, o viver de maneira correta, tudo isso vem de Zazen. Porém, e
isto é importante, ele não diz que tudo isso é substituído por Zazen.
Algumas pessoas me dizem: "O mundo está numa condição terrível, e todos os tipos
de situações reclamam por melhorias. Não estará você sendo egoísta simplesmente
sentando-se e trabalhando a si próprio?"
Nós que praticamos Zazen, não podemos simplesmente ignorar estas dúvidas e
preocupações. Não podemos simplesmente dizer que essas pessoas não sabem o que estão
dizendo. Estamos nós, ao praticar o Zen, nos afastando dos problemas do mundo ou dos
nossos próprios problemas? Estamos encontrando sentido dentro de um sistema fechado?
Temos uma condição que possua suas próprias regras, prescreva suas próprias recompensas
e punições, seu próprio status e hierarquia? É este um caminho que nos permite dizer:
"Estou praticando Zen", querendo dizer: "Eu agora estou vivendo numa cidade cercada que
é segura e protegida contra os saqueadores que estão do lado de fora, os saqueadores do
sofrimento, da fome, da doença, do maltrato aos outros."?
Nós cantamos: "A observação dos preceitos, do arrependimento e da doação, as
incontáveis boas-ações e o caminho do reto Viver, todos derivam de Zazen". Temos que ser
cuidadosos aqui, porque podemos nos tornar arrogantes. Nós participamos de muitos
24
retiros a cada ano. Nos sentamos pela manhã e à noite, e após isso sentimos que fizemos a
nossa parte. Afinal, não é isso que Hakuin diz: a coisa essencial é Zazen? Mas se ouvirmos
com cuidado, ele esta dizendo que devemos manter os preceitos, devemos praticar as boas
ações e nos certificarmos de que estamos vivendo corretamente. A única maneira como
podemos fazer isso com autenticidade é estando firmemente fundamentados em Zazen.
Os discípulos do grande monge tibetano Milarepa perguntaram-lhe se poderiam
praticar os deveres mundanos para benefício do próximo. Ele respondeu: "Se não houver o
mínimo interesse preso a tais deveres, é permissível. No entanto, tal desapego é assaz raro;
as obras efetuadas para o bem dos outros raramente são bem-sucedidas se não estiverem
totalmente livres de auto-interesse. Ate que surja uma oportunidade, eu exorto cada um de
vocês a cumprir apenas uma resolução - atingir o Budado para o bem de todos os seres
vivos".
E assim, muitas vezes, quando examinamos o bem que tentamos fazer, descobrimos
que estamos simplesmente procurando alguma maneira pela qual possamos nos sentir
confortáveis no mundo. Queremos pagar o nosso seguro, e pagá-lo com a moeda das boas
ações, desse modo fazendo um seguro de nós mesmos contra as vicissitudes do mundo.
Com frequência encontramos pessoas que, ao atravessar um período de dificuldades,
querem sacar o seguro. Elas reclamam: "Eu não compreendo. Por que estou sofrendo tudo
isso? Tenho sido uma boa pessoa; tenho vivido bem".
E assim, também nós devemos seguir os preceitos, que, tradicionalmente, são dez:
Não matar; acalentar toda a vida.
Não pegar o que não lhe é dado; respeitar todas as coisas.
Não praticar sexualidade imprópria; viver uma vida de pureza e de auto-restrição,
Não mentir; falar a verdade.
Não fazer com que outras pessoas bebam álcool ou usem drogas que confundam a
mente, nem fazer isso você mesmo; manter a mente clara todo o tempo.
Não falar dos defeitos dos outros; buscar ser compreensivo e compassivo.
Não louvar a si mesmo e degradar o outros; vencer os próprios defeitos
Não reter ajuda espiritual ou material; oferecê-las livremente onde necessário.
Não se zangar; exercitar o controle.
Não depreciar os três tesouros - o Buda, o Dharma e a Sangha; acalentá-lo e defendê-
los.

Assim, um verdadeiro samadhi extingue todos os


males;·purifica o carma, dissolvendo as obstruções.
Outra traduções, em vez de dizer "assim um verdadeiro samadhi, dizem "pelo mérito
do simples sentar-se", ou "mesmo aqueles que praticaram Zazen durante um simples
sentar-se". Todavia, a ideia de que um "simples sentar-se" possa purificar o carma e
dissolver a obstruções parece muito improvável, até mesmo mais do que "um verdadeiro
samadhi”. Ao entrar em um alto nível de samadhi, um estado no qual somos unos com
tudo, a pessoa poderia, de maneira concebível, dissolver as obstruções e purificar o carma.
Mas um simples sentar-se dificilmente poderia produzir efeito tão extraordinário
25
Então, o que Hakuin quer dizer por "apenas um Simples sentar-se"? Ele está afirmando
que um poder miraculoso pode elevar-se a partir do comprometimento com o caminho
espiritual - não apenas o caminho do Buda, mas o caminho cristão, judaico, muçulmano ou
hindu, ou qualquer comprometimento genuíno para transcender o caminho limitado,
subjetivo, autocentrado.
A palavra samadhi, na tradução que estamos usando, deveria ser vista como uma
palavra qualificativa - uma palavra que qualifica Zazen Ela esclarece o que significa a
meditação Zazen. O samadhi Zazen é Zazen autêntico. Qualquer pessoa pode imitar a
postura de sentar de uma outra pessoa, ou seguir instruções sobre como adotar a postura
correta, mas isso claramente não pode ser chamado de Zazen verdadeiro - o Zazen que irá
purificar as obstruções. O verdadeiro Zazen, o samadhi Zazen, ocorre naquele momento em
que a pessoa se compromete completamente, quando das profundezas do próprio ser ela
afirma: "eu quero", "eu devo", "eu juro!".
Conta-se a história de que Devadata, um primo e discípulo do Buda, de quem tinha
muita inveja, queria tomar posse da Sangha. Devadata tentou matar o Buda vária vezes, e
foi, por isso, condenado pelo seu carma ao inferno mais sombrio. Enquanto ele sofria a sua
agonia no inferno, o Buda sentiu grande compaixão e enviou dois discípulos com a seguinte
instrução: "Você irá permanecer no inferno mais sombrio durante toda uma era, e, após
sofrer todo esse tempo, você então será capaz de se tornar um Buda". A alegria de
Devadata foi profunda! Ele disse: "Se for assim, se eu serei capaz de me tornar um Buda
após toda uma era, embora o tempo seja de sofrimento insuportável, colocar-me-ei no
centro deste inferno de sofrimento incessante, o tempo todo repousando apenas sobre um
lado sem jamais me virar, e, com disposição tão completamente relaxada, irei suportar
todo o sofrimento".
Não importa que tipo de dificuldade ou sofrimento encontremos, se pudermos nos
abrir e nos comprometer com a crença de que intrinsecamente já somos seres totais e
completos - que fundamentalmente de nada precisamos - e, se pudermos entrar
profundamente nesta crença, desse momento em diante toda nossa vida será
transformada. Uma vez que possamos dizer, com fé, que samsara é Nirvana, que o
sofrimento e a dor por que passamos cada dia no mundo é o céu mais perfeito, o nosso
caminho é clareado. Como diz Hakuin posteriormente neste verso: "Esta terra onde
estamos é a Terra do Lótus Puro". É o próprio céu. O nosso sofrimento é, em alguma
medida, uma porta para esta verdade; purificamos nosso carma, dissolvemos nossas
obstruções.
Isso não quer dizer que não tenhamos de cumprir nosso carma, que não tenhamos
que trabalhar com as obstruções. Mas quer dizer que a nossa relação com as obstruções é
bastante diferente. Num dos seus poemas, o poeta Zen Ryokan diz: "Se você aponta sua
carroça para o norte quando quer ir para o sul, como você irá chegar?". Hakuin está
dizendo que, sentando-nos uma vez, podemos apontar a carroça para o sul.

Então, onde estão os caminhos sombrios que nos fazem


extraviar? A Terra do Lótus Puro não é distante. Ouvir esta
26
verdade, o coração humilde e agradecido...
Ponderemos sobre esta verdade: "A Terra do Lótus Puro não é distante". Nós somos
totais e completos; nada nos falta. A Terra do Lótus Puro é o céu. É a nossa verdadeira
natureza. Vamos nos abrir humildemente e em agradecimento à verdade de que essa terra
não esta distante. Vejamos o senso do que isso significa, sintamos sua maravilha,
absorvamo-la como nossa. Fiquemos nela. Somos totais e completos exatamente como
somos. Não temos que mudar coisa alguma. A Mente do dia-a-dia é o Caminho,
exatamente como é. Fundamentalmente, tudo está bem.

...louvá-la e abraçá-la, praticar sua sabedoria, traz bênçãos


intermináveis, montanhas de mérito.
Esse é o caminho de dhyana, o caminho pelo qual podemos conseguir completa
consolação pela nossa condição, o caminho pelo qual aplicamos o bálsamo sobre as feridas
da existência. Sentamo-nos, em agradecimento, contra a corrente da dualidade.
Hakuin, no entanto, não para aí. O Cântico agora muda de direção do caminho de
dhyana para o caminho de prajna. Este caminho e eternamente novo e radicalmente
diferente. O caminho do Samadhi traz bênçãos e mérito, é verdade, mas não se deve parar
por aqui.
Como vimos antes, depois que o Buda saiu de casa para fazer sua peregrinação em
busca da verdade, ele encontrou três instrutores diferentes, cada um dos quais lhe ensinou
o caminho do Samadhi.
Prajna significa mente desperta. A palavra pode ser dividida em duas outras: pra e
jna. Pra significa desperto num piscar de olhos. jna significa percepção primordial. A
palavra jnana, que pode ser rudemente" traduzida como "sabedoria", também procede da
raiz jna. Com referência a prajna, uma passagem famosa no Diamond Sutra um texto
Prajnaparamita, diz:
"Portanto Subhuti, o Bodhdisattva, o grande ser, deve produzir um pensamento da
mais elevada, correta e perfeita iluminação. Tal pensamento deve ser produzido sem a
ajuda de sons, odores, sabores, daquilo que pode ser tocado, e sem conceitos, imagens ou
ideias. Deve também ser produzido sem a ajuda de coisas, quaisquer que sejam. Um
Bodhisattva deve despertar a mente sem descansá-la sobre coisa alguma".

Mas, se nos voltarmos para o interior e provarmos de nossa


Verdadeira-natureza...
Não devemos deixar de observar o "Mas". Hakuin está dizendo que é verdade: A Terra
do Lótus Puro não é distante; todas as bênçãos dos céus estão ao nosso alcance. Mas, se
pudermos dar uma guinada radical, se pudermos dar um salto, o salto de nos voltarmos
para o interior, então atravessamos a passagem que leva à liberdade. Todas estas bênçãos
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parecerão agora como a grande quantidade de areia no deserto. Este salto é o salto do
kensho (satori ou despertar), a joia da coroa do samadhi Zazen.
A expressão "nos voltarmos para o interior" talvez seja infeliz porque as pessoas então
poderão perguntar: "onde é o interior? Se eu ouço um pássaro cantar, eu me voltei para
interior ou para o exterior? Quando o mestre diz: 'Tome uma xícara de chá', está nos
dizendo para nos voltarmos para o interior ou para o exterior?". Voltar-se para o interior é
tornar-se uno com o que quer que seja. Quando eu me torno totalmente uno com os meus
sentimentos de ansiedade, eu me voltei para o interior. O Buda perguntou a Ananda, seu
discípulo: "O ouvido chega ao som ou o som chega ao ouvido?".

... que o Verdadeiro-eu é não-eu, nosso próprio Eu é não-eu...


Quando a mente está em ação, então a não-mente age. Debater e discutir sobre isso é
inútil, mas uma abordagem direta facilmente chega até lá. A não-mente é o que age. A não-
mente de que falo não está separada da mente. Se eu pergunto a alguém que está
caminhando: "Quem caminha?", provavelmente a pessoa irá responder: "Sou eu quem
caminha. Eu caminho". Se eu pergunto: "Que músculos você está usando? Que nervos você
está colocando em ação?", ela não saberá responder. Ela está certa ao dizer: "Eu caminho".
Mas este eu que caminha não é o eu que ela pensa que é. Quando falamos, usamos as
palavras corretas na ordem correta. Todavia, muito frequentemente não sabemos que
palavras vamos usar até que as tenhamos dito. É o não-eu quem caminha, o não-eu quem
fala. Não-eu não significa ausência de eu, mas o verdadeiro eu.
Basho, o grande poeta haiku japonês, escreveu:
"Ninguém caminha por esta trilha, nesta noite de outono".
Um monge perguntou ao mestre Zen Baso. "O que é Buda?".
Baso respondeu: "Esta própria mente é Buda". Um outro monge perguntou a Baso. "O
que é Buda?". Baso respondeu: "Não-mente, não-Buda".
Cuidado! Infelizmente o Zen existe há muito tempo, e nós nos acostumamos a usar
essas frases: a não-mente, o não-eu. O que é o verdadeiro eu que é não-eu? Arthur Koestler
criticava o Zen-budismo porque ele achava que o Zen-budismo usava um tipo de linguagem
enganosa e ambígua, e simplesmente evitava as questões sérias. O Zen-budismo conseguia
fazê-lo, dizia ele, simplesmente dizendo que algo é o seu oposto - que o bem é o mal, que o
eu é o não-eu - ele disse que isso foi o que aconteceu no livro 1984 de George Orwell e na
Rússia estalinista.
Portanto, devemos estar atentos. Não temos meios para fazer uso desta "espada" de
linguagem e simplesmente martelá-la contra uma pedra. "Este verdadeiro eu é não-eu,
nosso próprio eu é não-eu". Devemos dizer isso com grande humildade. Não devemos
deixar que isso escape facilmente de nossa boca. Devemos pronunciá-lo com respeito para
com todos aqueles que trabalharam no passado para torná-la uma linguagem possível e
clara.
O Budismo é considerado por algumas pessoas como niilista. Afirmações como "O
verdadeiro eu é não-eu" encorajam este ponto de vista. O Nirvana, dizem alguns críticos,
significa extinção - extinção total. Se for verdade que o não-eu é básico, qual é o valor de
28
todos os nossos esforços? Não nos esforçamos, de uma maneira ou de outra, em favor do
eu para mantê-lo, promovê-lo, satisfazê-lo? Muitas pessoas acreditam que mesmo a nossa
ética é simplesmente um meio para assegurarmos uma pós-vida confortável, e, desse
modo, elas ainda estão preocupadas com o eu. Diante do Nirvana, do "verdadeiro eu é não-
eu", não serão fúteis estes esforços?
Aqueles que perguntam se nossos esforços são fúteis, se estamos apenas
desperdiçando o nosso tempo, pressupõem que nossos esforços são voluntários: "eu" me
esforço para ser bom porque "eu" quero ser bom. Esta é a base da abordagem Theravada à
espiritualidade. O Mahayana, juntamente com o Zen, rebelou-se contra esta visão estreita
sobre a espiritualidade. O Zen questiona este mesmo "eu" que supostamente se esforça em
fazer o bem, em encontrar sentido, em ser espiritual. O esforço vem da ilusão da
separação, da crença de que eu sou algo e que o mundo é algo diferente, com a
consequente necessidade de restaurar a totalidade. A ilusão da separação é reforçada pela
ilusão do "eu" que se opõe ao mundo. A luta para salvar o "eu", para encontrar um lugar
para ele no céu, uma luta que envolve disciplina, ética e treinamento espiritual, é
simplesmente uma luta para perpetuar a ilusão. Dizer: "O verdadeiro eu é não-eu" é
desafiar esta visão comum das coisas.

...vamos além do ego e das palavras astutas.


Ir além do ego é ir à fonte. Palavras astutas são palavras que reforçam o senso do
"eu".
As religiões são de dois tipos: as religiões que nos trazem a paz, a segurança, e a
promessa de um céu quando morrermos; e as religiões que nos levam à paz, à segurança, e
que negam um céu no futuro. O Cristo disse: "Eu não trago a paz, mas a espada" e "Quem
quer que esteja perto de mim está perto do fogo". Ele também disse: "Peguem suas cruzes
e sigam-me". Segurança, paz, o próprio céu, são a minha verdadeira natureza. Por que iria
eu buscá-los através de crenças e rituais religiosos?
Um ditado Zen declara que qualquer coisa que venha através da porta não é o meu
tesouro. Qualquer coisa que me seja dada pode ser tirada. Onde pode a paz última ser
encontrada na dependência do mundo externo? A palavra "céu" e todas as palavras que o
louvam, prometem e promovem, são palavras astutas.

Então o portal que leva à unidade de causa e efeito é aberto.

Se causa e efeito são a mesma coisa, a causa não pode ser a causa do efeito. Todavia,
se são diferentes, se são dois, como pode o abismo que se estende entre ambos ser
atravessado e a causa produzir o efeito? Bertrand Russel foi atormentado por este dilema.
Ele disse: "A lei de causalidade, como muita coisa que é aprovada entre os filósofos, é uma
relíquia de uma era passada, que sobrevive, como a monarquia, apenas porque
erroneamente se supõe que não cause malefícios". Também ele chegou à conclusão de que
causa e efeito são uma só coisa, naquilo que é chamado "evento de ponta". Mas também
29
isso apresenta suas dificuldades, já que ele se desfez tanto da causa quanto do efeito. Abrir
o portão que leva à unidade de causa e efeito é ver o mundo como algo vivo, dinâmico e
criativo; vê-lo como uma sucessão de causa e efeito é vê-lo como uma imensa máquina.

Nem dois e nem três, em frente segue o Caminho.


Nem dualidade, nem trindade, em frente segue o caminho. A trindade sempre foi um
caminho através do qual os filósofos tentaram escapar da dualidade. Pensa-se na solução
hegeliana de tese e antítese, que provê a dualidade. A terceira, a síntese, resolve o conflito.
Hakuin elimina todo este sofisma: "em frente segue o Caminho".

Sendo a nossa forma agora a não-forma...


Nossa forma é não-forma. Isso é muito difícil de se perceber. Quando pensamos em
nós mesmos como uma pessoa, uma alma ou mesmo um espírito, temos alguma ideia vaga
de uma forma - uma silhueta - de "algo". Nenhuma forma não é ausência de forma. Um
monge perguntou a Joshu: "O que é a minha essência?". Isto é a mesma coisa que perguntar
"O que é a minha forma?". Joshu disse: "O vento sopra, as árvores balançam, os peixes
saltam, o rio fica enlameado". Não resta dúvida de que Joshu estava descrevendo algo que
estava acontecendo enquanto falava. Se Joshu tivesse uma forma, ele jamais poderia dizer
o que acabara de dizer. Ele é como Bassui, o mestre Zen que disse:
"O universo e você pertencem à mesma raiz; você e qualquer outra simples coisa são
uma unidade. O murmúrio do córrego e o suspiro do vento são as vozes do mestre. O verde
do pinheiro, a brancura da neve - estas são as cores do mestre, aquele mesmo que levanta
as mãos, move as pernas, vê, ouve. Aquele que assimilar isso diretamente, sem recurso da
razão ou do intelecto, pode-se dizer possuir algum grau de realização interior".
Nenhuma forma reflete todas as formas. Alguém disse que "aquilo" é como um cristal
que, não tendo cor, reflete todas as cores. Mas, como vemos a partir do que diz joshu, a
não-forma não é apenas uma vacância estática. A realidade não tem forma. Como isso é
maravilhoso!

...para virmos e irmos jamais saímos de casa.


Alguém perguntou a Ramana Maharshi quando ele estava no leito de morte: "Aonde você
está indo Maharshi?". Maharshi disse: "Não estou indo a lugar algum, não existe lugar
aonde ir". Um outro mestre disse: "O meu corpo é tão grande que não há lugar onde
colocá-lo". É como um espelho e seus reflexos. Os reflexos se movem, vão e vêm, mas o
espelho não vai nem vem

30
Sendo o nosso pensamento agora não-pensamento...
Dogen disse que devemos pensar o impensável. Quando alguém perguntou como
pensar o impensável, Dogen respondeu: "Sem pensar". O que é pensar? Não me refiro
àquilo que são fantasias ao acaso que agitam a mente. Refiro-me ao que Dogen quer dizer
quando diz: "Pense o impensável". A pergunta "Quem sou eu?" é, no final das contas,
impensável. Alguém disse que é como um homem sem mãos cerrando os punhos. Pensar
sem pensar significa pensar sem as associações, memórias, julgamentos, metáforas, gostos,
e coisas assim, que empregamos no nosso pensamento normal. Significa pensar sem lógica
ou conceito, intuição ou ideia. No entanto, a pessoa deve pensar. Devemos lembrar que o
Diamond Sutra diz: "Desperte a mente sem repousá-la sobre coisa alguma". O que é esta
mente que é não-mente, esta realidade que é não-forma? O que é despertado? Perceber
que "o verdadeiro eu é não-eu" ou que "a realidade não tem forma" já é despertar a
mente. Já é pensar o impensável.

...as nossas danças e as nossas canções são a voz do Dharma.

O que têm a dança e o canto a ver com o não-pensamento? A dança e o canto são as
primeiras expressões da unidade dinâmica. Espontânea, vigorosa, viva - assim é a fonte de
vida, assim é a nossa verdadeira natureza. A voz do Dharma é a voz de tudo. Os céus riem e
o mundo todo fica flamejante de luz. Diz-se no Zen que as rochas e os seixos pregam o
Dharma. A voz do Dharma jamais é silenciosa; ela cama tal qual o silêncio.

Como é vasto o céu de ilimitado samadhi!


O "céu de ilimitado samadhi” é um universo sem obstrução, um universo sem
barreiras ou bloqueios. O imperador Wu perguntou a Bodhidharma: "Qual é o seu
ensinamento?". Bodhidharma respondeu: "Um grande vazio e nem uma coisa sequer que
possa ser chamada de sagrada". É possível experienciar um samadhi como este. Um vasto
céu que é sombrio, mas acima, fora da vista, brilha uma radiante lua prateada. As trevas
são algo vivo brilhante mas ilimitado. Porém, após o despertar, a mesma vastidão é
aparente. É como se o teto do céu tivesse sido levado embora.

Como é claro e transparente o luar da sabedoria!


Certa noite um mestre estava sentado, olhando para a lua. Ele disse: "Todos a
possuem. Poucos sabem como usá-la". A lua é muitas vezes usada como metáfora para o
verdadeiro eu. O Zen nos adverte para não confundirmos a lua com o dedo que para ela
aponta. A ideia de ser é bastante diferente de ser, da mesma maneira que a ideia de uma
refeição é diferente da refeição.

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O que existe fora de nos, o que nos falta?
O Surangama Sutra diz: "Você então verá que tanto seu corpo quanto sua mente,
juntamente com as montanhas, rios, espaço e terra do mundo exterior, estão todos no
interior da Mente, maravilhosa, iluminada e verdadeira". Você é total e completo; nada lhe
falta. Este é o ensinamento do Budismo.

O Nirvana está totalmente aberto aos nossos olhos.


A satisfação não surge da satisfação dos desejos, mas no libertar-se dos desejos. O
Nirvana é essa liberação. Quando vemos que o verdadeiro eu é não-eu, estamos então,
pela primeira vez, abertos, como tudo mais. O mundo inteiro é uma passagem.

Esta terra onde estamos é a Terra do Lótus Puro...


Como é radical o Budismo! A Terra do Lótus Puro é uma expressão que mais ou menos
significa céu. É usada por uma seita budista chamada Escola da Terra Pura. A sua prática é a
prática de mantras, e este tipo de prática penetrou o Zen-budismo. Hakuin sentiu que esta
prática estava começando a solapar completamente as práticas Zen. Para a Escola da Terra
Pura, assim como para o Cristianismo, o céu jaz no futuro, após a morte, como recompensa
por uma vida bem vivida. Mas Hakuin diz que não, que o céu é este mesmo local onde estou
agora! A Mente do dia-a-dia é o céu.

E este mesmo corpo, o corpo de Buda.


Um monge chamado Etcho perguntou a um mestre: "O que é o Buda?"
O mestre disparou de volta:
"Tu és Etchol"

A luz é possível, mesmo neste mundo de trevas. Talvez, quando começarmos a


praticar, esteja apenas muito obscuro, mas é luz. "Eu sei". "Eu sou". O despertar é a
compreensão disso. Não é esse "eu sei que eu sou". O conhecimento já é "eu sou". Não
podemos despertar sem perceber a sabedoria, e "perceber" já é sabedoria. Dito de maneira
diferente, não há sabedoria a ser percebida. Ninguém precisa - ou consegue - nos dizer que
estamos despertos. De que adiantaria nos dizerem que estamos despertos se
permanecermos no estado de ignorância? Mesmo assim, como disse o Buda, não podemos
contar com a nossa própria inteligência. No final é sabedoria, sabedoria, sabedoria. "Eu
sei". "Eu sei que eu sei". "Eu sou" e "sabedoria" não são duas coisas. Como isso é
maravilhoso. A luz brilha. Mas a jornada acaba de começar.

32
PARTE ll
As Quatro Maneiras de Saber da Pessoa Desperta

Hakuin sobre o Kensho

Introdução ao Texto
Saber, Conhecimento e Sabedoria
No texto a seguir, Hakuin descreve as quatro maneiras de saber da mente desperta. Ele
21
cita o Mestre Zen Shoju Rojin: "Para prover um meio através do qual os estudantes
pudessem experienciar diretamente as Quatro Sabedorias, os patriarcas, em sua compaixão
e habilidade de inventar expedientes, primeiramente instituíram as Cinco Graduações. O
que são as chamadas 'Quatro Sabedorias?' Elas são a Sabedoria do Grande Espelho
Perfeito, a Sabedoria da Natureza Universal, a Sabedoria da Observação Maravilhosa, e a
Sabedoria do Aperfeiçoamento da Ação".
21 Miura Isshu, Sasakl. Ruth Fuller (1966) Zen Dust. A Helen and Kurt Wolff Book: Harcourt, Brace and
Woprld, Inc: New York. p.66.
Thomas Cleary²² usou a palavra 'conhecimento': Os Quatro Conhecimentos. A palavra
'conhecimento', e isso pode ser preconceito meu, parece sugerir algo que é adquirido.
Conhecimento também parece estar baseado no pensar, e em pensamentos dispostos em
uma estrutura. Como ficará óbvio, não é isso que Hakuin tinha em mente. Em algumas
traduções, por exemplo, no Zen Dust23, é usada a palavra 'sabedoria' em vez de saber. A
palavra sabedoria é freqüentemente usada quando se traduz a palavra prajna, que é uma
palavra-chave em alguns dos surras preferidos dos zen-budistas. Entretanto, a palavra
'sabedoria' possui uma variedade de significados.
22 Cleary, Thomas - Tradutor and Editor (1978) The Original Face: An Anthology of Rinzai Zen. Grove
Press: New York. pp.130-149.
23 Miura lsshu, Sasaki, Ruth Fuller (1966) p.311.
A palavra sânscrita que foi usada, e que está sendo traduzida como conhecimento,
sabedoria ou saber, foi jnanam. É uma palavra essencialmente vital. Vemos essa vitalidade
com maior clareza na palavra cognata prajna. A melhor imagem de prajna é Manjusri,
quando aparece na iconografia budista. É algumas vezes representado sentado sobre um
leão, e na maioria das vezes é mostrado empunhando uma espada. Manjusri é a
encarnação, a personificação, de prajna. A espada que Manjusri empunha está em
movimento; não se deve vê-lo como simplesmente segurando a espada. Antes, Manjusri
está no processo de brandir a espada, girando-a, movendo-a; a espada move-se muito
rapidamente. Prajna é análogo a se estar à beira mar vendo o sol fulgir sobre as ondas, uma
série contínua de lampejos: estes são como um lampejo de prajna, a velocidade de prajna.
É por isso que eu digo que jnanam e prajna são essencialmente vitais. Quando pensamos
em sabedoria, tendemos a pensar em algo que é adquirido e que é estático, um repositório
de dizeres sábios; muito frequentemente pensamos em uma velha senhora, ou em um
33
velho senhor com barba, uma história comprida e uma experiência rica a ser explorada.
Não é assim com prajna; prajna é a habilidade para responder espontaneamente.
O que é comum tanto a jnanam quanto a prajna é que jna, que tem traduções várias
como inteligência, saber, estar perceptivo, ser responsivo e espontâneo. Mas esta resposta
não é uma resposta cega, uma resposta abrupta, ou apenas uma réplica rápida. Ademais,
ela é básica para toda a vida. Há muito tempo, a nossa sociedade adquiriu o hábito de
considerar a origem do mundo e da vida como um acidente, como uma série de encontros
fortuitos, como toras de madeira dando encontrões umas às outras durante a noite. Mais
recentemente, surgiu a tendência de se ver que uma inteligência ou sabedoria admirável
permeia toda existência. Esta sabedoria não permeia apenas a concepção e o crescimento
do feto e do embrião, como também a cura do corpo. Quando alguém se corta, um
processo espontâneo ocorre enquanto o corpo cura o corte. Muito frequentemente, não
resta nem cicatriz.
Jna, portanto, é fundamental; uma sabedoria ou saber fundamental permeia todo o
universo. Este saber fundamental dedica-se à meditação. Trabalha os koans, na verdade
quer trabalhar os koans, e continua a assim fazer mesmo quando todo o alarido de nossas
vidas parece tentar impedi-lo. Uma inteligência persiste, uma inteligência ou saber que
deve agir a seu modo. Esta inteligência subjaz às quatro maneiras de saber e nos guia para a
sua plena realização.
Estas quatro maneiras de saber são simplesmente quatro facetas ou faces de jna. Em
um certo sentido não importa se temos que viver incontáveis bilhões de vidas para atingir a
realização porque o fim já está completo, a meta já foi atingida aqui e agora. O simples
levantar da mão, este é o fim, esta é a finalidade, a completude. Certamente que esta
finalidade, este fim, esta completude, não é um fim no tempo, não é uma realização última;
é a realização do saber, de jna. A compreensão disso nos fornece a base para uma fé segura
na prática. Essa fé não é a fé em algo que está além das nuvens ou dos céus; essa fé é um
desenvolvimento da nossa vida diária através do saber inerente.

O Saber e a Prática do Zen


A sabedoria, o saber ou percepção de que fala Hakuin em Quatro Maneiras de Saber é
a própria essência da prática Zen. Quando pesquisamos um koan tal como "Quem sou eu?"
por exemplo, não estamos buscando em nossa experiência encontrar um fenômeno que
seja 'eu', não estamos buscando 'aquela coisa' que é eu. Não estamos buscando o que
sabemos, ou o que não sabemos; em vez disso, estamos examinando o próprio saber. O
que eu sou é visto como algo sem importância; o fato de que eu sou é tudo. Esta é a
mudança, o salto que devemos dar. Uma reviravolta é necessária. Normalmente, vivemos
dentro da experiência. Aprendemos, adaptamos, moldamos nossas vidas de acordo com
experiências diferentes. Nomeamos aquilo que experienciamos, e desta maneira
construímos toda uma estrutura, toda uma arquitetura - na verdade toda uma cidade
mental - em torno da qual nos movemos. Esta cidade de palavras, conceitos,
relacionamentos, é o que normalmente chamamos de nossas vidas, e consideramos a nós
mesmos como existindo 'nesta' vida. Algumas vezes, olhamos ao redor e chamamos esta
34
cidade de conceitos, estruturas, experiências, hábitos, de 'mundo'. E acreditamos que este
é o único mundo. Ficamos surpresos quando, por um momento, encontramos o mundo de
uma outra pessoa e descobrimos como é diferente do nosso. Muitas vezes, sentimos que o
outro está equivocado, não soube interpretar suas experiências, não compreende ou é
'primitivo', 'herege' ou 'forasteiro'. A insistência de que a minha estrutura, a minha
arquitetura, os meus planos, as minhas palavras, as minhas maneiras, a minha cidade é a
única cidade é a causa da maioria dos nossos problemas.
Mudemos a metáfora por um momento. Cada um de nós está representando um
papel em uma peça - somos também o diretor, o protagonista, o gerente de palco e a
plateia desta peça. Nós queremos, ou antes, exigimos, que outras pessoas se juntem à
nossa peça como figurantes; todo mundo quer que as outras pessoas sejam figurantes em
suas peças. Todos dizem: "venha participar da minha peça". Certamente começa uma luta,
evidente ou dissimulada, porque a maioria das pessoas não está preparada para
representar um papel na minha peça, ou, se vão representar um papel, querem ser o
protagonista - ao passo que somente eu é que posso ser o protagonista.
Quando estamos examinando "Quem sou eu?" não estamos examinando um dos
personagens, nem uma das falas, nem a forma ou estrutura do palco, nem do teatro, nem
da rua na qual o teatro por acaso esteja, nem o país, nem o planeta, nem mesmo a galáxia.
Estamos examinando aquilo que sabe, e aquilo que sabe não é algo, não pode ser
encontrado entre as coisas.

O jarro e a argila
Uma analogia geralmente utilizada pelos mestres é a de um jarro e da argila de que ele
é feito. Estamos envolvidos e fascinados com a forma. A pintura sobre o jarro, a maneira
como o jarro combina com todo o conjunto de jarros, a maneira como difere dos outros
jarros, atrai toda a nossa atenção. Preocupamo-nos em saber se ele é mais caro ou melhor
do que o de uma outra pessoa. Eu afirmo que o jarro é meu, e não seu. Estamos tão presos
a estes aspectos do jarro que não vemos a argila.
Esta argila não é apenas a argila de um jarro, mas é também a argila de uma xícara, de
um bule, de um incensório. Esta argila manifesta-se de todas as maneiras, mas geralmente
é ignorada. Ninguém sai por aí dizendo: "esta argila é minha".
Argila é uma metáfora para saber. Devemos ter cuidado porque, tendo dito isso,
demos ao saber uma forma, um molde, um nome. Nós o chamamos de saber, mente,
percepção, espírito. Depois, tentamos desfazer o que fizemos dizendo que 'não' é mente, é
'não'-mente, 'não' é espírito, 'não' é percepção. E assim nos agitamos como uma serpente
num bule. Apesar disso, de algum modo temos que apontar para este 'o que quer que seja'.
Mas, não devemos confundir o dedo que aponta para a lua com a lua que está sendo
apontada. Nenhum conhecimento nosso jamais poderá nos levar ao saber.
Alguns versos do koan de número 28 do Mumonkan, ditos por Tousan após o seu
despertar, sintetizam o que acabo de dizer:24 Muito embora você tenha exaurido as
doutrinas abstrusas, é como colocar um fio de cabelo no vasto espaço. Muito embora você
tenha aprendido todos os segredos do mundo, é como uma gota d'água que caiu no grande
35
oceano".
24 Low, (1995) p.183.
Quando pensamos ou falamos sobre o saber ou a sabedoria, devemos ter em mente as
suas proporções cósmicas. A sabedoria não é simplesmente um saco cheio de anedotas,
nem uma impulsividade cega. É o dinamismo da vida, o dinamismo do cosmos, que significa
totalidade, a unidade trabalhando em harmonia. Devemos nos referir ao 'saber', mas o
saber não pode ser encontrado em lugar algum. O saber não é um substrato, e não persiste
no tempo. Não precisamos ser algo para saber, nem saber algo para ser. Talvez o melhor
quadro fosse o de uma fonte, uma fonte de vida, luz e amor.

A origem da ideia das Quatro Maneiras de Saber


Asanga, fundador da Escola de Budismo Yogacharia ou Só Consciência foi o primeiro a
introduzir a ideia de que uma pessoa desperta tem quatro maneiras de saber. Ele chamou a
primeira de saber do espelho, a segunda de saber universal, ou saber a igualdade; a terceira
ele disse que era saber observar (Hakuin dará a esta o nome de saber diferenciar), e a
quarta era perfeição da ação.
Por volta do século IX, a comunidade Zen tinha aceito plenamente o que era chamado
Doutrina Yuishiki da relação entre os Três Corpos (que eram: o dharmakaya, o nirmanakaya
o sambhogakaya), as Quatro Maneiras de Saber, e as Oito Consciências.25 O mestre Zen Ekai
explicou a conexão entre estes três da seguinte maneira:
Alguém perguntou ao mestre Zen Ekai:26 "Dizem que 'quando as Quatro Sabedorias
estão juntas, o Três Corpos são completados:' quais das sabedorias combinam para fazer
um corpo, e qual delas sozinha faz um corpo?'
Ekai respondeu: "A maneira de saber chamada Sabedoria do Grande Espelho Perfeito
sozinha faz o Dharmakaya; a maneira chamada Sabedoria da Natureza Universal sozinha
faz o Sambhogakaya; as sabedorias chamadas Observação Maravilhosa e Perfeição da
Ação juntas fazem o Nirmanakaya. Tenta-se dar nomes a estes três corpos, e a
diferenciação dos mesmos na fala permite às pessoas não-iluminadas compreendê-los. Mas,
uma vez que você tenha plenamente compreendido este princípio, não mais haverá três
corpos respondendo às necessidades.”
25 As oito consciências são: alaya, vijnana, manas, manovijnana e os cinco sentidos. Para mais
informações, vide Low, Albert Zen and the Sutras, (2000) Tuttle Publishing: Vermont. pp.113-134.
26 Miura Isshu, Sasaki. Ruth Fuller (1966) p.314.
Os três corpos do Buda são: o dharmakaya, o sambhogakaya, e o nirmanakaya. Eles
são muito esotéricos e não temos que estar muito preocupados com eles aqui. Rinzai traz
os três à realidade dizendo:27 "A luz pura no teu pensamento simples - este é o
Dharmakaya Buda dentro de tua própria casa. A luz não-discriminativa no teu pensamento
simples - este é o Sambhogakaya Buda dentro de tua própria casa. A luz não-
diferenciadora do teu pensamento simples - este é o Nirmanakaya Buda dentro de tua
própria casa. Este Corpo Triplo és tu, ouvindo meu discurso neste exato momento diante dos
meus olhos'.
27 Sasaki, Ruth Fuller (tradutor) (1975) The Recorded Sayings of Mestre Ch'an Lin-chi Hui-chao of Chen
Prefecture. The Institute for Zen Studies: Kyoto. p.S.
36
De acordo com os mestres dos sutras e shastras, o Corpo Triplo é considerado a última
norma [como sendo absoluto] Mas eu não vejo assim. Este Corpo Triplo é apenas um nome;
ademais, é uma tripla dependência. Um ancião disse: 'Os corpos do [Buda] são postulados
dependentes de significado, as terras do [Buda] são postulados de acordo com a
substância'. Portanto, devemos saber com clareza que os corpos que tenham a natureza do
dharma e as terras que tenham a natureza do dharma não são mais do que reflexos".

As quatro maneiras de saber como quatro maneiras de


perguntar “Quem sou eu?”
Embora Hakuin escreva a respeito das quatro maneiras de saber de uma pessoa
desperta, mesmo que você não seja desperto, você pode ainda se beneficiar do que ele tem
a dizer. As quatro maneiras de saber podem ser consideradas quatro maneiras de se
trabalhar a pergunta "Quem sou eu?" A primeira destas maneiras é usar a pergunta como
um Hua t'ou. Hua t'ou é uma palavra chinesa que literalmente significa o fim de uma
locução. Por exemplo, em vez de perguntar "Quem sou eu?" a pessoa pergunta
simplesmente "Quem?". O resto da pergunta "sou eu?" fica subentendido. Inspirando e
expirando "Quem?", a pergunta é firmemente retida e a pessoa pode continuar a praticar
por longos períodos. Uma variante desta mesma pergunta é "Como eu sei que sou?". A
única resposta conveniente para ambas as perguntas é o despertar. Este despertar, como
veremos, é a primeira maneira de saber. Uma outra maneira de trabalhar sobre "Quem sou
eu?", é perguntar "Quando um pássaro canta, onde eu estou?”, "Quando neva, onde eu
estou?". A solução para esta pergunta será o despertar na segunda maneira de saber. A
terceira maneira de trabalhar a pergunta será pegar, não importa que experiência, boa ou
má, agradável ou desagradável e perguntar "Quem esta experienciando isso?", o que irá
levar à terceira maneira de saber. A quarta maneira de trabalhar a pergunta é "Quem
caminha?" "Quem conversa?" "Quem come?" "Quem se senta para praticar zazen?

A prática para o leigo


Hakuin encorajava as pessoas leigas, assim como monges e freiras a praticar. Muitas
das suas cartas traduzidas para o inglês foram escritas para pessoas leigas engajadas nos
afazeres comuns da vida. Assim, o que ele escreveu sobre as quatro maneiras de saber e
tão relevante para o leigo quanto para o monge ou para a freira.
Uma das objeções mais frequentes das pessoas leigas é que não têm tempo para
praticar. Em resposta a isso Hakuin disse:28 "Não diga que os afazeres e as pressões dos
negócios do mundo não lhe deixam tempo para estudar o Zen sob a supervisão de um
Mestre, e que as confusões da vida cotidiana tomam difícil continuar a prática da
meditação... Suponha que um homem, acidentalmente, deixe cair duas ou três moedas de
ouro numa rua apinhada de gente. Ele esquece o dinheiro porque todos os olhos estão
voltados para ele? Ele para de procurar porque irá criar um distúrbio? A maioria das pessoas
empurraria os outros para abrir caminho, não descansando enquanto não tivesse o dinheiro

37
de volta às suas mãos. Não estarão as pessoas que negligenciam o estudo do Zen, porque as
pressões das circunstâncias mundanas são muito severas, ou que deixam de meditar porque
estão muito perturbadas pelos afazeres mundanos, colocando mais valor em duas ou três
peças de ouro do que no misterioso caminho sem igual dos Budas? A pessoa que se
concentra unicamente na meditação em meio às pressões e preocupações da Vida cotidiana
será como o homem que deixou cair as moedas de ouro e que se devota a procurá-las.
Quem não irá alegrar-se com uma pessoa assim?"
28 Yampolsky. (1971) p,49.
Hakuin escreveu uma carta para encorajar o Governador de uma das províncias
japonesas.29 O Governador era, obviamente, um homem imerso nas atividades do dia-a-dia.
Hakuin exortou-o a continuar a praticar, dizendo que os hinayanistas de antigamente,
budistas que confiavam nos sutras originais do Budismo, eram frequentemente olhados
com desprezo. Disse ainda que, apesar disso, as pessoas do seu tempo não poderiam ser
comparadas aos hinayanistas no que diz respeito ao poder meditativo que haviam
desenvolvido.
29 ibid. p.35.
Nem poderiam ser comparadas quanto ao brilho do insight, sabedoria e virtude que
adquiriram. "Só porque o direcionamento de sua prática foi ruim, porque só gostavam de
lugares solitários e quietos, nada sabendo da dignidade do Bodhisattva”,30 é que
posteriormente foram tão injuriados e escarnecidos por Vimalakirti que os considerava
"homens que seriam capazes de torrar os botões de flores e deixar as sementes estragar.
30 grifo meu (Albert Low).
Hakuin também citou o Terceiro Patriarca,³¹ que disse que se você deseja despertar,
não deve evitar o que os sentidos têm a oferecer. Como disse Hakuin, o Patriarca não quer
dizer que você deva entregar-se aos objetos dos sentidos. Ele disse: "Da mesma maneira
como as asas de uma ave aquática não se molham quando ela entra na água, a pessoa deve
estabelecer uma mente que irá dar continuidade à verdadeira meditação do koan sem
interrupção, nem agarrando-se aos objetos dos sentidos nem rejeitando-os". Alguém que
fanaticamente evita os objetos sentidos e teme "os oito ventos que estimulam as paixões,
inconscientemente cai na armadilha do Hinayana e jamais poderá alcançar o caminho do
Buda . Os oito ventos que agitam as paixões são: vitória, derrota, calúnia, lisonja, elogio,
humilhação, dor e prazer.
31 ibid. p.35.
Em uma outra resposta a pessoas leigas que reclamam das distrações em suas vidas,
Hakuin cita o mestre Zen Yung-chia,³² que disse que a força da mente obtida pela prática da
meditação no mundo cotidiano do desejo e da ação "é como o lótus que se eleva do fogo;
jamais pode ser destruído... Quando Yung-chia fala a respeito do lótus em meio às chamas,
ele não está simplesmente se referindo a rara pessoa neste mundo que pratica o Budismo.
O que ele está dizendo é que qualquer lugar, não importa qual, é o Zendo”.
32 ibid. p.35.
Hakuin disse ainda que, mesmo os reclusos que vivem nas florestas ou no deserto, que
se alimentam uma única vez por dia, e que praticam o Caminho noite e dia, ainda acham
difícil entregar-se inteiramente à prática.³³ "Quão mais difícil deve ser então para alguém
que vive com sua esposa e parentes em meio à poeira e ao tumulto desta vida atarefada!
Mas se você não tem o olho para perscrutar sua própria natureza, você não terá a mínima
38
chance de ser responsivo ao ensinamento. Por isso, Bodhidharma disse: 'Se você deseja
atingir o Caminho do Buda, deve primeiramente perscrutar sua própria natureza' ". Após
atingir o despertar, os próprios objetos dos sentidos formarão, então, a base da prática. Os
cinco desejos serão eles mesmos o Veículo Uno34. Os cinco desejos são: as possessões, o
sexo, o alimento, a fama e o sono. Deste modo, a fala e o silêncio, a atividade e o descanso,
estarão todos presentes em meio à meditação Zen.
33 ibid. p.36.
34 Budismo Mahayana.
Hakuin continua a metáfora do lótus, novamente para encorajar a pessoa leiga a
praticar:35 "Porque o lótus que floresce na água murcha quando se aproxima do fogo, o
fogo é o inimigo temido pelo lótus. Todavia, o lótus que floresce em meio às chamas torna-
se tanto mais belo e fragrante quanto mais próximo estiver do fogo que arde." Para explicar
esta metáfora, ele diz que, se você pratica evitando desde o início os cinco sentidos, não
importa quão profundamente você penetra o vazio do eu e das coisas, e não importa o
insight que você obtém do Caminho, você será como um macaco sem uma árvore onde se
pendurar. Quando você deixa para trás a paz da solidão e retorna ao mundo, você perde
todo o seu poder. Você será como o lótus que murcha imediatamente quando se defronta
com o fogo.
35 ibid. p.37.
Mas, se continuar corajosamente em meio à sua vida comum, você experienciará uma
grande alegria, como se você subitamente clareasse a base de sua própria mente e
esmagasse a raiz do nascimento e da morte. "Será como se o céu vazio desaparecesse e a
montanha de ferro se fizesse em pedaços. Você será como o lótus florescendo em meio às
chamas, cuja cor e fragrância tornam-se mais intensas, quanto mais próximo do fogo se
encontrar". Por que é assim? "Porque o próprio fogo é o lótus e o lótus é o fogo".

Observação
A seguir, primeiramente será apresentado todo o texto de Hakuin, sem comentários.
Depois, o texto será repetido em sessões comentadas. O leitor pode optar por ler o texto e
depois os comentários, ou ler os comentários e depois o texto. Estes textos foram utilizados
em muitos teishos (palestras) para estudantes durante os sesshins (retiros Zen) ao longo dos
meus anos de ensino. A minha preocupação tem sempre sido a de um instrutor, e assim, no
texto, procuro retratar o vigor e o espírito com que o original estava indubitavelmente
imbuído. O texto é baseado em várias fontes, inclusive a excelente tradução de Thomas
Cleary36.
36 Cleary (1978).

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O Texto de Hakuin
As quatro maneiras de saber da pessoa desperta
Alguém perguntou a Hakuin: "São inerentes os três corpos e as quatro maneiras de
saber, ou eles vêm à existência com o nosso despertar? Ademais, são eles compreendidos
subitamente, imediatamente, ou surgem gradualmente, com a prática?"
Hakuin respondeu dizendo que, embora os três corpos37 e as quatro maneiras de
saber sejam originalmente inerentes e completos em todas as pessoas, a não ser que eles
sejam trazidos à luz, não podem ser compreendidos. Depois de ter-se fortalecido através do
estudo e da prática, e a natureza desperta de súbito ter se manifestado, imediatamente
compreende-se a essência da realidade interna. Quando uma maneira de saber é
compreendida, todas são compreendidas. Porém, mesmo que alguém repentinamente
chegue ao nível do Budado sem ter que dar passos e galgar degraus, se não praticar
gradualmente, será impossível alcançar o saber puro, desobstruído (sarvajna),38 e o último
grande despertar.
Alguém então perguntou: "O que significa a realização imediata?"
37 Os três corpos são: o dharmakaya, o sambhogakaya e o nirmanakaya.
38 Sarva: totalmente, completo, tudo; jna: saber primordial.

A maneira de saber do Grande Espelho Perfeito


Quando a mente discriminativa é subitamente estilhaçada e a essência desperta imediatamente
aparece, o universo é inundado com sua luz infinita - isto é chamado 'a maneira de saber do Grande Espelho
Perfeito': o puro corpo da realidade (dharmakaya). Esta é a súbita realização. Neste momento, Alaya, o oitavo
nível de consciência, é transmutado.

A maneira de saber a igualdade


O fato de todas as coisas nos seis campos dos sentidos - visão, audição, discernimento e conhecimento -
serem a sua própria natureza desperta, é chamado 'saber a igualdade', o corpo de recompensa é realizado.
(Sambhogakaya)

A maneira de saber por diferenciação


Discernir os princípios à luz da verdadeira percepção é a maneira de 'saber por diferenciação'.

A maneira da perfeição da ação


Tossir, cuspir, mover os braços, atividade, repouso, tudo que é feito em harmonia com a natureza da
realidade, é chamado 'saber através do fazer as coisas'. A isso se dá o nome de esfera de liberdade do corpo
40
de transformação (Nirmanakaya).
Ainda assim, não se vê o caminho com completa clareza e o poder de um insight brilhante não está
ainda plenamente amadurecido. Portanto, se não se continuar com a prática, será como um mercador que
acumula capital e não se engaja no comércio: ele não apenas não enriquece, como vem a falir pelo fato de
gastar apenas para manter a aparência de ser rico.
O que eu quero dizer com continuar com a prática? É como um mercador engajado no comércio que
gasta cem moedas para conseguir um lucro de mil. Ele acumula uma vasta fortuna e um vasto tesouro
tornando-se livre para fazer o que bem entender com as suas bênçãos:
Quer seja rico ou pobre, dinheiro ainda é dinheiro, mas sem engajar-se no comércio é impossível
enriquecer. Mesmo que a ruptura com a realidade seja genuína, se o poder de brilho do insight for fraco, não
se consegue quebrar as barreiras das ações habituais. A menos que o saber por diferenciação seja claro, não
se consegue trazer benefícios aos seres sencientes de acordo com as suas habilidades. Portanto, deve-se
conhecer a estrada essencial da prática gradual.
Hakuin então pergunta, retoricamente: "O que é o saber do Grande Espelho Perfeito?"
Ele responde: "Significa que, se deseja-se examinar este grande tema, deve-se primeiramente gerar
grande vontade, grande fé e grande determinação para perceber o verdadeiro significado da natureza
desperta originalmente inerente."
Após despertar grande vontade, fé e determinação, deve-se então constantemente perguntar: 'Quem é
aquele que vê e ouve?: Caminhar, ficar de pé, sentar, deitar, estar em atividade ou em silêncio, quer em
circunstâncias favoráveis ou não, faça a mente indagar o que é que vê tudo aqui e agora. O que é que ouve?
Indagação como esta, ponderação como esta - afinal, o que é? Se continuar duvidando com o espírito
arrojado e o sentimento de vergonha a impulsionar, o esforço irá naturalmente se unificar e solidificar-se,
tornando-se uma simples massa de dúvida por todo céu e terra. O espírito irá sentir-se sufocado, a mente
aflita, como um pássaro numa gaiola, como um rato que entrou num tubo de bambu e que não consegue
escapar.
Neste momento, se seguir em frente sem recuar, você ira sentir que esta entrando num mundo de
cristal; o mundo inteiro, interno e externo, tapetes e teto, casas e carros, campos e montanhas, gramado e
árvores, pessoas se animais, utensílios e bens, tudo é como é, mas como ilusões, sonho e sombras, fumaça.
Quando se abrem os olhos com clareza, presença de espírito, e enxerga-se com certeza, um reino inconcebível
surge, que parece existir, e todavia parece também não existir de uma certa maneira. Esta é chamada a hora
em que a essência do saber torna-se manifesta.

O Portal da Inspiração
Se acredita-se que isso é maravilhoso e extraordinário, e alegremente apaixona-se e apega-se a isso,
cair-se-á, por fim, na caverna dos demônios e jamais ver-se-á a natureza real, desperta.
A esta altura, se não se agarrar ternamente à sua, condição e incitar o seu espírito ao esforço sincero, de
tempos em tempos irá experienciar coisas tais como esquecer que está sentado quando está sentado,
esquecer que está de pé quando está de pé, esquecer seu próprio corpo, esquecer o mundo à sua volta.
Mas, se continuar sem recuar, o espírito cônscio irá subitamente estilhaçar-se e a natureza desperta
aparecerá imediatamente. Isso é chamado o Grande Saber do Espelho Perfeito.
Esse é o primeiro estágio da inspiração; consegue-se de imediato discernir a fonte das oitocentas
doutrinas39, com seus significados sutis e ilimitados. Quando a pessoa se transforma, tudo se transforma;
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quando a pessoa deteriora, tudo deteriora - nada falta, nenhum princípio é incompleto. Como um filho
recém-nascido do Buda, o novo Bodhisattva irá revelar o sol da sabedoria da natureza desperta. Mas mesmo
assim as nuvens de suas ações prévias ainda não ter-se-ão dissipado.
Porque o poder de alguém no caminho é fraco e sua percepção da realidade não é perfeitamente clara,
a Sabedoria do Grande Espelho é associada à direção leste e é chamada "o Portal de Inspiração". É como o sol
surgindo no leste - embora as montanhas, os rios, e a terra recebam os raios do sol, eles não estão ainda
aquecidos pela sua luz. Muito embora possa-se ter visto o caminho com clareza, se o poder de brilhar não for
forte o bastante, pode-se ser bloqueado pelas aflições inerentes e crônicas, e ainda não ser livre e
independente em situações agradáveis ou adversas. É como alguém que tem estado a procurar o boi e que
pode um dia desses perceber o verdadeiro significado do boi, mas se não segurar firmemente o cabresto
para refreá-lo, mais cedo ou mais tarde o boi irá fugir.
Uma vez que você tenha visto o boi, faça do pastoreio a sua única preocupação. Sem esta prática, após
o despertar, muitas pessoas, que viram a realidade, perdem o barco. Portanto, para alcançar o saber a
igualdade, não se demore no saber do Grande Espelho Perfeito. Siga em frente, concentre-se na prática após
o despertar.

O Portal da Prática
Primeiramente, com a percepção íntima, que você teve do próprio saber, ilumine todos os mundos
com a visão radiante.
Quando vir algo, brilhe através dessa coisa; quando ouvir, brilhe através do que está ouvindo; brilhe
através dos cinco skandhas, brilhe através dos seis campos da percepção sensorial - à frente, atrás, à direita,
e à esquerda, através das sete calamidades e dos oito desastres, torne-se uno com a visão radiante de todo o
corpo. Compreenda o verdadeiro significado de todas as coisas, internas e externas, brilhe através delas.
Quando este trabalho se tiver solidificado, então a percepção da realidade será perfeitamente clara, tal como
olhar para a palma da mão.
39 Isso significa todos os ensinamento budistas.
A esta altura, enquanto aumenta o uso desta visão e deste saber claros, se penetrar o estado desperto,
então brilhe através do despertar; se se envolver em circunstâncias agradáveis, brilhe através das
circunstâncias agradáveis; se cair em situações adversas, brilhe através das situações adversas; quando a
ganância ou o desejo surgir, brilhe através da ganância ou do desejo; quando o ódio ou a ira surgir, brilhe
através do ódio ou da ira; quando agir por ignorância, brilhe através da ignorância. Quando os três venenos
do ódio, da ganância e da ignorância deixarem de existir, e a mente for pura, brilhe através dessa mente
pura.
"Todas as vezes, em todos os lugares, sejam desejos, sentidos, ganho, perda, certo, errado, visões do
Buda ou do Dharma, em todas as coisas, brilhe através delas com todo o seu corpo".
Se não recuar, o carma criado por suas ações anteriores irá dissolver-se naturalmente. Você será
liberado de uma maneira impossível de ser imaginada.
A maneira como você age estará em conformidade com a maneira como você compreende. Anfitrião e
hóspede irão fundir-se completamente. Corpo e mente não mais serão dois, e aquilo que você é e aquilo que
você parece ser não obstruirão um ao outro. Atingir o estado da verdadeira equanimidade é chamado saber
a igualdade como a natureza da realidade.
Esta maneira de saber está associada à direção sul e é chamada "portal da prática". É como quando o
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sol está no sul, sua luz é plena e traz claridade a todos os lugares ocultos nos vales profundos, derretendo até
mesmo o gelo mais sólido, secando o chão, mesmo que ainda esteja molhado. Embora o Bodhisattva tenha o
olho para ver a realidade (kensho), a não ser que atravesse este portal da prática, você não consegue afastar
as obstruções resultantes das aflições e ações, e, portanto, não consegue atingir o estado de liberação e
liberdade - que pena seria, que perda.

O Portal do Despertar
Após ter atingido o reino não-dual da igualdade da realidade, é essencial então que você compreenda
com clareza o profundo princípio da diferenciação dos seres despertos, após o qual você deve dominar os
métodos para auxiliar os seres sencientes. De outro modo, muito embora tenha desenvolvido e atingido o
saber espontâneo, você irá, apesar de tudo, permanecer no ninho do Hinayana e será incapaz de realizar o
saber total, desobstruído. Você não terá liberdade para mudar em nenhuma das maneiras exigidas para
auxiliar os seres sencientes, para despertar a si mesmo e aos outros, e para alcançar o último Grande
Despertar, onde percepção e ação são totalmente perfeitas.
É por isso que você deve desenvolver uma atitude de profunda compaixão e comprometimento para
auxiliar todos os seres sencientes em toda parte.
Para começar, você deve estudar dia e noite os ensinamentos verbais do Buda e dos patriarcas para
que possa penetrar os princípios das coisas em sua infinita variedade. Certifique-se e analise uma a uma, as
profundezas das cinco casas e das sete escolas do Zen além das extraordinárias doutrinas dos oito
ensinamentos dados nos cinco períodos em que o Buda ensinou.
Se tiver alguma energia de sobra, você deve elucidar os profundos princípios das várias filosofias
diferentes. Porém, se for trabalho demais, será apenas desperdício inútil de energia. Se você investigar a
fundo os dizeres dos Budas e dos patriarcas, que são difíceis de transmitir, e com clareza alcançar seu
significado essencial, o perfeito entendimento continuará brilhando e os princípios de todas as coisas devem
naturalmente se tornar totalmente claros. Isto é chamado "o olho para ler os sutras".
Ora, os ensinamentos verbais dos Budas e dos patriarcas são extremamente profundos e ninguém deve
achar que os dominou completamente após ter sido submetido a eles uma ou duas vezes. Quando você sobe
a montanha, quanto mais alto você for, mais alta ela fica; quando você adentra o oceano, quanto mais
distante você for, mais profundo ele fica - é a mesma coisa neste caso. É também como forjar o ferro para
fazer uma espada; diz-se que o melhor é colocar o ferro na forja muitas e muitas vezes, refinando-o cada vez
mais. Embora seja sempre a mesma forja, a não ser que você coloque a espada na forja repetidas vezes e a
refine uma centena de vezes, ela dificilmente poderá tornar-se uma boa espada.
O estudo penetrante também é assim; a não ser que você penetre a grande forja do Buda e dos
patriarcas, tão difícil de ser atravessada, e faça repetidos esforços para se refinar, através do sofrimento e da
dor, o saber total e independente não pode surgir. Penetrar através das barreiras do Buda e dos patriarcas
várias vezes, respondendo ao potencial dos seres em toda parte com domínio e liberdade de técnica, é
chamado o saber sutil observador discernente.
Não se investiga por meios de considerações intelectuais. Esta maneira de saber salvar a si próprio e de
libertar os outros, quando completamente atingida e dominada, é chamada saber sutil observador
discernente. Este é o estado do corpo de recompensa perfeitamente realizado; está associado à direção oeste
e é chamado o Portal do Despertar. É como o sol que, tendo ultrapassado o apogeu, gradualmente mergulha
na direção oeste. Enquanto a grande maneira de saber a igualdade estiver no zênite, as faculdades dos seres
43
sencientes não podem ser vistas, nem os ensinamentos de diferenciação entre as coisas pode ser
esclarecido. Se você não permanecer no reino do autodespertar como realização interior, mas, em vez disso,
cultivar este saber sutil, observador, discernente, você fez o que podia ser feito; tendo cumprido sua tarefa,
você pode alcançar a terra do repouso. Este repouso não é o que significa o sol poente; significa que você
realizou todas as maneiras de saber, tendo atingido o despertar, porque o despertar do eu e dos outros, a
realização da percepção e da ação é considerado o verdadeiro despertar último.

O Portal do Nirvana
Esta é a passagem secreta que leva ao controle da mente e que é o reino da liberação última. Este é o
saber sem qualquer tipo de profanação, uma virtude que não é criada. Se não compreende esta maneira de
saber, você não será capaz de fazer livremente o que deve ser feito para beneficiar a si próprio e aos outros.
É o caminho sem esforço.
Devido ao fato de a maneira anterior de saber por diferenciação ser alcançada através da prática
correta, ela está no reino do cultivo: a realização é atingida pela prática. É, portanto, uma maneira de saber
que é alcançada através do esforço. A maneira de saber a ação perfeita transcende as fronteiras da prática,
da compreensão, e da realização através do estudo. Está além de qualquer tipo de demonstração ou
explicação. Alguém poderia dizer que saber por meio da diferenciação é como a flor do completo despertar;
a prática é esta flor desabrochando. Por outro lado, com o saber e 'fazendo o que precisa ser feito' a flor do
pleno despertar e da prática cai, e o fruto amadurece. Você não poderá ver isso nem mesmo em um sonho, a
não ser que tenha ultrapassado os estágios finais de transcendência de nossa escola. É por isso que é dito
que com a última palavra você finalmente chega à barreira impenetrável.
A maneira de assinalar a direção não é através de explicações verbais; se você deseja alcançar este
reino, simplesmente refine o seu sutil saber discernente por meio de koans diferenciadores e difíceis de
vencer, fundindo e forjando centenas de vezes repetidamente. Mesmo que você tenha vencido alguns, repita-
os muitas e muitas vezes, examinando meticulosamente - o que é esta pequena verdade além de toda
convenção no grande tema da transcendência? Se você não recuar no seu exame dos dizeres dos antigos,
algum dia você poderá vir a conhecer este pedacinho de maravilha.
Mesmo assim, se não buscar um mestre desperto e pessoalmente penetrar sua forja, você não consegue
avaliar as sutilezas profundas. A única preocupação é que os verdadeiros instrutores Zen são pouquíssimos e
difíceis de encontrar. Mas se alguém exerce o máximo de sua energia com este propósito, e penetra
claramente, atinge a liberdade de todas as maneiras, transcende o reino dos Budas e dos demônios, resolve
pontos obscuros, desfaz vínculos, arranca pregos e parafusos, e guia as pessoas para o reino da pureza e da
paz. Isto é chamado "o saber necessário para realizar obras" e está associado à direção norte, sendo chamado
Portal do Nirvana. É como quando o sol alcança o quadrante norte, quando é meia-noite e o mundo inteiro
está na escuridão; alcançar a esfera deste saber está fora do entendimento ou da compreensão - nem mesmo
a compreensão do Buda consegue ver, muito menos a de estranhos e demônios.
Este é o estado totalmente pacífico da pura realidade dos Budas e dos patriarcas, a floresta de espinhos
na qual monges com vestes feitas de retalhos sentam-se, deitam-se, caminham vinte e quatro horas por dia.
Este é chamado 'grande Nirvana' repleto de quatro atributos (ego, pureza, bem-aventurança, eternidade), e é
também chamado 'saber a natureza essencial do cosmos' na qual as quatro maneiras de saber são plenamente
completas. O centro significa harmonizar as quatro maneiras de saber em um todo, e a natureza essencial do
cosmos significa o rei do despertar, mestre dos ensinamentos, sendo o rei do Dharma, totalmente livre.
44
Espero que vocês budistas de grande fé despertem grande confiança e comprometimento e
desenvolvam a grande prática para a compreensão destas quatro maneiras de saber e do verdadeiro
despertar. Não renunciem ao grande tema de eras incontáveis apenas por causa do orgulho no seu ponto de
vista atual.

Comentários sobre As Quatro Maneiras de Saber


Retornemos agora a Hakuin, às quatro maneiras de saber e aos três corpos de Buda.
Ele ensinava incansavelmente a verdade de que a prática é essencial se a pessoa quiser
compreender todas as quatro maneiras de saber. Ele diz em outra parte.40 "Seguidores do
Caminho, muito embora vocês possam ter continuamente perseverado nos estudos do
Ensinamento Triplo através de muitos kalpas, se não experienciarem diretamente as
Quatro Sabedorias, não lhes será permitido chamar a si mesmos de verdadeiros filhos de
Buda".
40 Miura e Sasaki (1966) p.66.

São os três corpos inerentes?


Alguém perguntou: "São inerentes os três corpos e as quatro maneiras de saber, ou eles vêm à
existência com o nosso despertar? Ademais, são eles compreendidos subitamente, imediatamente, ou, com a
prática, eles surgem gradualmente?"
A resposta é que embora os três corpos e as quatro maneiras de saber sejam originalmente inerentes e
completas em todas as pessoas, a não ser que eles sejam trazidos à luz não podem ser compreendidos. Após o
fortalecimento através do estudo e da prática, e da manifestação súbita da natureza desperta, a pessoa
imediatamente compreenderá a essência da realidade interna. Quando uma maneira de saber é
compreendida, todas são compreendidas. Mas, mesmo que alguém repentinamente chegue ao nível do
Budado sem ter que dar passos e galgar degraus, se não praticar gradualmente, será impossível alcançar o
saber puro, desobstruído (sarvajna), e o último grande despertar.
As quatro maneiras de saber são originalmente totais e completas em todas as pessoas.
Todos nós, de maneira inerente, temos ou mais precisamente, somos, estas quatro
maneiras de saber. Ademais, elas não são maneiras de saber separadas e distintas, são,
porém, maneiras diferentes de como se manifesta a nossa natureza fundamental,
verdadeira. Elas são perspectivas diferentes. Uma analogia seria o plano, a elevação lateral,
a elevação frontal, e a elevação em 3/4 de um edifício que os arquitetos colocam no papel.
Cada um destes refere-se ao mesmo edifício, porém contemplados de diferentes pontos de
vista. De modo semelhante, essas maneiras de saber e os Três Corpos estão todos olhando
para o mesmo diamante brilhante: a autonatureza cintilante.

A não ser que sejam trazidas à luz não podem ser compreendidas.

O pecado básico do Budismo é a ignorância. Os budistas usam a palavra klesha em vez


de pecado, e klesha é na maioria das vezes traduzido como 'profanação' ou 'aberração'. A
45
palavra ignorância para os budistas não se refere à falta de conhecimento ou educação. A
palavra ignorância significa que ignoramos, ou viramos as costas à nossa verdadeira
natureza, que é total e completa. O nosso estado natural é Samadhi, uma unidade que é
um todo contínuo. Embora voltemos nossas costas a ele, isso não significa que a verdadeira
natureza deixe de existir. Portanto, devemos dar 'meia volta' para compreender que isso é
assim. Esta meia volta é chamada 'paravriti', satori, ou kensho. Normalmente usamos a
palavra kensho como referência ao nosso primeiro despertar para a verdade de que somos
totais e completos. Inerentemente, temos tudo que é necessário para uma vida de amor,
sabedoria e felicidade. A nossa visão dualista oculta esta verdade de nós. O kensho é a
primeira intimação de que o dualismo, que nos faz sentir separados dos outros, do mundo
e de nós mesmos, e portanto nos faz sofrer, é, na verdade, uma ilusão. Afinal, completar
essa meia-volta é o que Hakuin chama de "trazer à luz as quatro maneiras de saber".

Após o fortalecimento através do estudo e da prática, e da manifestação súbita da natureza desperta, a


pessoa imediatamente compreenderá a essência da realidade interna.

O despertar surge de imediato; é por isso que é súbito. Não devemos confundir
despertar súbito com despertar instantâneo. Café instantâneo é o café que fazemos sem
precisar moer ou coar. Porém, mesmo com o despertar súbito, moer e coar são
necessários. A subitaneidade é a marca do despertar autêntico; o despertar possui uma
qualidade explosiva. Suponhamos que você esteja tentando resolver um quebra-cabeças ou
um problema e então, subitamente, você vê a solução. "Ah, sim!" Vem de repente.
Conta-se uma famosa história do matemático Poincaré. Ele se esforçara durante muito
tempo para resolver um problema de matemática particularmente difícil. Um dia fez uma
excursão e esqueceu o problema. Então, quando entrava no ônibus, toda a solução de
súbito se lhe apareceu. Esta qualidade de 'súbito' dá o choque, a perturbadora qualidade
do kensho.
O despertar é súbito não apenas porque aparece sem aviso, mas também porque não
dura tanto quanto uma experiência. Por não ser uma experiência, não possui componente
temporal. O despertar não é uma experiência; é uma mudança na maneira como
experienciamos. Muitas pessoas confundem uma experiência de unidade e plenitude com
despertar. É por isso que devemos ter o despertar autenticado por um instrutor. Qualquer
experiência, mesmo a mais intensa, significativa e transformadora, não é o despertar. Não
deprecio este tipo de experiência, mas é importante fazer a distinção.
Pelo fato de o despertar ser súbito e sem aviso não conseguimos, via de regra,
prejulgá-lo ou prevê-lo. Não podemos dizer: "eu estou me aproximando", ou "eu não estou
próximo", ou "quando vou me aproximar"? É por isso que o mestre nos dirá que não
podemos julgar nossa própria prática. Um aspecto de nossa prática chamado de
'inconsciente' tanto quanto o senso consciente de praticar são ambos vitais para a
compreensão. Isso fica óbvio no exemplo que acabamos de dar de Poincaré. Embora a
solução do problema tenha sido súbita, instantânea e completa, a luta consciente que ele
havia empreendido durante os meses precedentes foi essencial. Mas também foi essencial
o trabalho 'inconsciente' que precedeu a chegada da solução.
Quantas vezes você já se esforçou para lembrar o nome de alguém, desistiu, e então
46
descobriu, vários dias depois, após ter até mesmo esquecido de tentar lembrar o nome,
que ele subitamente apareceu? Isso deve significar que, em algum nível, o trabalho de
lembrar o nome tinha continuado. O esforço consciente foi necessário, mas apenas para
deixar que este nível mais profundo pudesse assumir e terminar o trabalho. É assim que
acontece com a prática do Zen. Quando compreendemos que tanto o trabalho consciente
quanto o inconsciente são necessários, podemos ter uma fé profunda na nossa prática,
mesmo quando sentimos que, de algum modo, nada parece estar acontecendo. Podemos
ter uma fé profunda de que este trabalho latente será realmente realizado.
Devemos também compreender, quando consideramos o despertar súbito que, como
disse Hakuin em outra parte: "Quando uma coisa é compreendida, tudo é compreendido".
É como disse um mestre: "Se você compreende o verdadeiro significado de um cisco, você
compreende o verdadeiro significado de todo o mundo!". Às vezes as pessoas me desafiam
dizendo: "Você sabe que os problemas do mundo são grandes, e que os meus problemas
particulares também são muitos, então eu não entendo como podemos perder tanto
tempo fazendo perguntas simples do tipo 'Quem sou eu?'. Certamente que muito mais
deve estar envolvido no verdadeiro trabalho espiritual do que apenas fazer uma pergunta
dessa maneira incessante". Esta dúvida parece tornar-se mais urgente à medida que a
pergunta específica torna-se tão estéril, morta e sem interesse. O que dizer a respeito
destes outros problemas? Por que não fazemos algo a respeito deles? Examinar essa
questão particular é examinar todas elas. Como disse o mestre Zen Ta Hui: "Procure a raiz,
não se incomode com os galhos, as folhas, as flores e os frutos! Corte a raiz!"

Se a pessoa não cultiva a prática gradualmente

Isso significa que, embora o despertar súbito possa ocorrer, apesar disso, naquele
momento, tem início uma prática nova, gradual, que firmemente desvela aquilo para que a
pessoa despertou. É como uma pessoa cega de nascimento que é operada dos olhos e
obtém a visão. Inicialmente, quando começa a ver, ela vê apenas luzes brilhantes. Além
disso, a experiência é frequentemente muito dolorosa. Durante longo tempo após a
operação, ela tem dolorosamente que reconstruir seu mundo, enquanto desfaz o mundo
que criara enquanto era cega. Porque o trabalho é tão árduo, algumas pessoas teriam
preferido permanecer cegas a passar por este tipo de operação.
Após tentar resolver o primeiro koan rompedor, tentamos resolver muitos outros
koans. Cada um desses koans subsequentes, é, à sua própria maneira, um koan rompedor;
cada um traz um novo kensho, e tem o seu próprio "aha!" a ele ligado. Embora qualquer
koan com o qual trabalhamos possa ser um koan rompedor, acontece que alguns são mais
fáceis de trabalhar dessa maneira41. Apesar disso, se o nosso trabalho com um koan não faz
surgir este 'aha!', muito embora possa não ser um 'aha!' explosivo, podemos ter a certeza
de que não percebemos o seu verdadeiro significado. Isso quer dizer que, embora a prática
seja gradual, ela não é contínua, ou linear, mas progride através de saltos discretos.
41 Tradicionalmente: os koans rompedores são os seguintes: "Mu!", "Qual é o seu rosto antes de os seus
pais nascerem?", "Qual o som de uma só mão batendo palmas?"
O 'aha! do 'insight surge quando criamos. Não podemos usar a mente lógica para criar,
mas devemos confiar numa mente mais profunda. Confiamos nessa mente mais profunda
47
para trabalhar os koans, porque a resposta a um koan não é lógica, como entendemos o
termo. Se dermos uma resposta lógica significa que, para descobrir, fizemos uso da mente
discriminativa, a mente do ou/ou e do sim/não. Em outras palavras, possuir uma sacola de
respostas para os koans é totalmente inútil se essas respostas não vêm de uma resposta
criativa, e portanto não ajudam a ampliar e aprofundar a abertura que foi criada com o
nosso despertar inicial.
Aqueles que ainda trabalham no escuro geralmente entendem maio despertar. Ouvem
dizer que alguém é desperto e imediatamente saem à procura de um santo, um tipo
superior de ser com luzes jorrando dos ouvidos, com olhos brilhantes, e com a sabedoria
das idades nos bolsos. ão é assim de modo algum, felizmente.
No sutra do Diamante, o Buda tem a seguinte conversa com Subhuti.42 Ele pergunta:
"Pode o Tathagata ser reconhecido por alguma característica material?" Subhuti responde:
"Não, Honorável Senhor; o Tathagata não pode ser reconhecido por nenhuma característica
material." "Por quê?" "Porque o Tathagata disse que características materiais não são de
fato características materiais. Onde quer que haja características materiais há ilusão;
porém, percebe o Tathagata aquele que percebe que todas as características são de fato
não-características". Uma pessoa desperta não pode ser reconhecida por nenhuma
manifestação ou sinal exterior, mesmo após essa pessoa ter passado por anos de prática
paciente, gradual, após o despertar. Como disse Hakuin:43 "Você ainda será o mesmo velho
monge que sempre foi. Você não estará fazendo nada fora do comum. Os seus olhos
estarão olhando do seu rosto do mesmo local de sempre. O seu nariz ainda estará onde
sempre esteve".
42 Low, (2000) p.62.
43 Waddell (994) p.30.
Por um lado, como disse Hakuin, o despertar é algo maravilhoso.44 "Todavia, agora
você será o artigo genuíno, um autêntico descendente dos Budas e patriarcas, a quem terá
reembolsado plenamente aquele débito incalculável de gratidão que lhes deve". O
despertar é verdadeiramente muito maravilhoso. Nada pode comparar-se àquele momento
quando a pessoa de fato percebe sua verdadeira natureza, e o mundo fica de cabeça para
baixo. Nada! É incomparável. Por outro lado, como ele diz: "Não é muita coisa".
44 ibid. p.30.
Despertar significa, fundamentalmente, que podemos agora trabalhar de uma maneira
que anteriormente era muito difícil. Apesar disso, o trabalho tem que ser feito. Muito
embora possamos ainda estar trabalhando no escuro, devemos compreender que, apesar
de o despertar ser vital, não devemos esperar o despertar antes de fazer o nosso trabalho
espiritual. O Zen diz que algumas pessoas trabalham e despertam; outras despertam e
depois trabalham. Mas o trabalho tem que ser feito.
Muito frequentemente, as pessoas que despertam espontaneamente fora de uma
tradição e que não empreendem esse trabalho após o despertar, tornam-se, na melhor das
hipóteses, corrompidas e esquisitas. Tornam-se profetas e gurus e disseminam suas ideias
subjetivas próprias. Podem ser pessoas muito perigosas, porque um certo carisma aparece
com o estado desperto que surge da fé completa, e ainda assim esse carisma pode ser mal
dirigido e misturado a todo tipo de ideias e práticas estranhas. Para citar Hakuin mais uma
vez.45 "Se você segue a tendência dos tempos, quando entra na caverna escura do não-
48
saber na oitava consciência, você irá começar a se gabar a respeito daquilo que alcançou.
Vai sair por aí dizendo a todo mundo o quão iluminado você é. Irá aceitar, sob falsos
pretextos, a veneração e a caridade dos outros, e terminará tornando-se uma daquelas
criaturas arrogantes que declaram que atingiram a realização quando não atingiram".
45 ibid. p.30.
Quer você seja desperto ou não, trabalhar o koan "Quem sou eu?" e dolorosa e
penosamente continuar a questionar, sondar, buscar, perguntar, jamais é trabalho
desperdiçado. Após o despertar, o nosso caráter deve ser refinado. Mas este refinamento
do caráter vem por si mesmo a qualquer um, desperto ou não, que seja verdadeiramente
sincero e que esteja trabalhando não por qualquer glória ou lucro pessoal, mas
simplesmente por causa daquele senso de vida religiosa, vida verdadeira, ou vida
compensadora. Aceitando a coisa como é, podemos trabalhar com a fé de que esta prática
é intrinsecamente compensadora. A prática então surge do sentimento do sagrado, do
senso do todo, do senso da retidão do que estamos fazendo; praticamos porque é correto,
e não pelo que podemos obter com a prática.
Esta atitude com relação à prática é em si mesma de importância incomensurável. É
um chamado para se ter fé verdadeira em si mesmo e na prática. A própria intuição que
temos da retidão do que estamos fazendo é, em si mesma, muito valiosa. Antigamente as
pessoas falavam em termos de consciência. Não ouvimos mais a palavra consciência,
ouvimos? Mas o que estou dizendo é que estamos trabalhando de acordo com a nossa
consciência.

O Conhecer do Grande Espelho


Alguém então perguntou: "O que significa a realização imediata?"
Quando a mente discriminativa é subitamente estilhaçada e a essência desperta imediatamente
aparece, o universo é inundado com sua luz infinita - isto é chamado 'a maneira de conhecer do Grande
Espelho Perfeito': o puro corpo de realidade (Dharmakaya). Esta é a súbita realização. Alaya , o oitavo nível de
consciência, é transmutado.
Vejamos este parágrafo passo a passo. Verifiquemos primeiramente:

quando a mente discriminativa é subitamente estilhaçada.

"Quando a mente discriminativa é subitamente estilhaçada" soa muito violento e


alguém poderia até se alarmar. Alguém arremessa um tijolo contra uma vitrine, e a vitrine é
estilhaçada em mil pedaços. A pessoa não pode deixar de se perguntar se ela quer a mente
estilhaçada daquela maneira. A maioria de nós não quer estilhaçar a mente discriminativa
porque sentimos que se assim fizéssemos terminaríamos balbuciando ideias ininteligíveis
na esquina. Precisamos da mente discriminativa para trabalhar, para executar nossas
tarefas e afazeres diários, para entender o que se passa à nossa volta, e para julgar o que é
melhor fazer. Portanto, devemos entender claramente o que se quer dizer por "quando a
mente discriminativa é subitamente estilhaçada".
Quando alguém lhe conta uma piada, se a piada é boa, você ouve, sério, e então,
49
subitamente, você explode em riso. Por um momento, a sua mente é estilhaçada. Dessa
maneira, quando você explode em riso, tudo se foi; nada há em que se agarrar.
Um jovem que estava de férias liga para casa e fala com o irmão:
"Como está Oscar, o gato?"
"O gato está morto, morreu esta manhã".
"Isso é terrível. Você sabe como eu era apegado a ele. Você não poderia ter dado essa
notícia de maneira menos abrupta?"
"Como?"
"Você poderia ter dito que ele estava no telhado. a próxima vez que eu ligasse, você
poderia dizer que não conseguiu tirá-lo de lá, e gradualmente dessa maneira você daria a
notícia".
"Certo, entendo. Desculpe."
"A propósito, como está mamãe?"
"Ela está no telhado".
Se você refletir sobre isso, ou sobre uma outra piada de que gostou, identificará a
súbita ruptura do campo de consciência no momento em que percebe o verdadeiro
significado da piada. Usamos as expressões "fiquei desconcertado" ou "eu dei risada",
significando que foi muito engraçado. Hakuin está referindo-se a este tipo de
estilhaçamento.
Além disso, riso e despertar são parentes próximos.
Quando o Venerável Shui-lao de Hung-chou veio visitar o Ancestral pela primeira vez,
ele perguntou: "Qual o significado da vinda de Bodhidharma do Ocidente?"
O Ancestral disse: "Curve-se!"
Assim que Shui-lao curvou-se, o Ancestral deu-lhe um chute.
Shui-lao teve um grande despertar. Ele se levantou batendo palmas, e rindo
efusivamente disse: "Maravilhoso! Maravilhoso! A fonte de miríades de Samadhis e de
ilimitados significados sutis pode ser compreendida na ponta de um simples fio de cabelo".
Ele então apresentou seus cumprimentos ao Ancestral e retirou-se.
Mais tarde ele disse à assembleia: "Desde o dia em que Mestre Ma me chutou, não
parei de rir".
Quando a mente discriminativa é estilhaçada, paradoxalmente, ela não se faz em
pedaços, porém torna-se subitamente um todo sem emendas. O estilhaçamento, que às
vezes é chamado de explosão, ocorre através de uma súbita liberação da tensão com a
chegada da unidade. Uma abertura explosiva irrompe, mas, ao mesmo tempo, a realização
é atingida. Tudo que antes estava retido é realizado, em ansioso equilíbrio. A mente
subitamente se abre, irrompe, por assim dizer. Mas não é uma irrupção destrutiva. É a
irrupção de uma flor desabrochando. Se você já assistiu a filmes de flores desabrochando
nos quais a sequencia foi acelerada, você saberá o que eu quero dizer sobre uma flor que
desabrocha. Hakuin está referindo-se a este tipo de irrupção ou abertura, o riso de uma flor
na explosão do desabrochar.
Quando a mente discriminativa é subitamente estilhaçada, ela é estilhaçada numa
risada cósmica, e "a essência desperta subitamente aparece". O estilhaçamento da mente
discriminativa e o aparecimento da essência desperta não são duas coisas distintas. O
aparecimento da essência desperta é o aspecto de realização; a flor desabrocha.
50
o universo é inundado com sua luz infinita.

O universo não está cheio de luz infinita; o universo já é luz infinita, mas nós
subitamente alcançamos esta verdade, de que o universo é percepção infinita, luz infinita. E
sentimos: "Oh, está cheio de luz infinita". Mas, enquanto neste momento você está aí
sentado, o universo é, ou está, cheio de luz infinita. O mestre Zen Chosha disse: "O mundo
inteiro é a tua luz Divina". Isso não é um estado novo. O mestre Zen Mumon dá a isso o
nome de transição Mumonkan, o Portal Sem Portais. É chamado de portal sem portais
porque, sem dúvida, com o kensho você atravessa um portal, mas não há portal lá para ser
atravessado. Quando esta luz infinita subitamente torna-se conhecida, uma transição
ocorre, mas a transição não é um passo no tempo, é um despertar.
A luz infinita não é uma luz que possamos ver, mas uma luz por meio da qual vemos.
No estado não-desperto nós ignoramos esta luz. É o que o Budismo quer dizer com o klesha
da ignorância (avidya). Jesus disse que somos a luz do mundo. No Bhagavad-Gita está
dito:46 "Ele é a Luz das luzes, de quem se diz estar além das trevas. O saber, o objeto do
saber e a meta do saber - ele está sentado no coração dos corações". Como a luz das luzes,
é de mim que o sol, a lua e as estrelas obtêm sua luz; mas eu procuro a mim mesmo nas
sombras.
46 Radhakrishnan The Bhagavad-Gita. George Allen e Unwin: London. p.307.
Rinzai, a respeito desta luz, disse:47
Seguidores do Caminho, a mente é sem forma e permeia as dez direções:

No olho é chamada ver,


No ouvido é chamada ouvir.
No nariz sente os odores,
Na boca mantém a conversa.
Nas mãos agarra e pega,
Nos pés corre e carrega.

47 Miura e Sasaki (1966) p.9.


Fundamentalmente é um puro esplendor; dividida torna-se as seis esferas dos sentidos
harmoniosamente unidos. Uma vez que a mente é não-existente, onde quer que esteja, você
será emancipado.
No koan de número 86 do Hekiganroku, Ummon dirigiu-se à assembleia e disse,
"Todos têm sua própria luz a brilhar continuamente agora e sempre, ela não pode ser vista
nem conhecida. Se se tentar vê-la, tudo são trevas. O que é a sua luz?" Então, respondendo
para a comunidade, ele disse: "a despensa da cozinha e o portal".

O puro corpo do dharma.

A palavra sânscrita Kaya significa 'corpo'. Dharmakaya significa o corpo do dharma.


Nisargadatta, o sábio hindu contemporâneo que morreu recentemente, disse: "O meu
corpo é paz e silêncio". O meu corpo: paz-e-silêncio-kaya Quando o imperador Wu, no
primeiro koan da coleção chamada Blue Cliff Records, perguntou a Bodhidharma qual era o
51
seu ensinamento, Bodhidharma respondeu: "Grande vazio, nem uma única coisa a que se
possa chamar de sagrada". Ele poderia ter dito: "O Dharmakaya".
É vazia porque não tem conteúdo; é vasta porque não tem fronteiras, limites. Porque é
vazia é treva. Como Ummon acabou de dizer: "Se se tentar vê-la, tudo são trevas". Hakuin
diz:48 "Seguidores do Caminho, se a sua investigação foi correta e completa, no momento
em que arrebentarem a entrada da caverna escura da oitava consciência ou Alays, a
preciosa luz da Sabedoria do Grande Espelho Perfeito brilhará instantaneamente. Mas,
embora pareça estranho dizer, a luz da Sabedoria do Grande Espelho Perfeito é negra como
laca".
48 ibid. p.66.
O Prajnaparamita Hridaya, um sutra Zen básico49, tem sua origem no Samadhi da
sabedoria do Grande Espelho, ou Dharmakaya. Para apreciar verdadeiramente o
Prajnaparamita Hridaya, a pessoa deve vê-lo a partir do Samadhi, o que equivale a dizer
que a pessoa deve estar em Samadhi para cantá-lo. O Prajnaparamita exalta o mundo do
Dharmakaya, o corpo (kaya) do ensinamento (dharma). E o corpo do ensinamento, este
Dharmakaya é o Samadhi original ou a verdadeira natureza.
49 Ver Low. (2000) pp.35-36.
Uma analogia que eu às vezes uso para auxiliar na compreensão de que já estamos em
Samadhi é a seguinte. Suponha que você tenha um copo cheio de água pura e deixa cair
uma gota de tinta azul na água; a tinta fica então suspensa na água pura. A tinta,
obviamente, não é a água; a água não é a tinta. Mas elas estão inseparáveis. Tudo: vida,
morte, você, eu, o mundo, o bem, e o mal - é como a tinta: tudo está suspenso na água
pura do Samadhi da verdadeira natureza, ou Dharmakaya.
Tradicionalmente no Zen, uma maneira de falar a respeito do despertar e o que ele
envolve, é uma série de dez gravuras chamadas Ox-herding pictures (gravuras do Pastoreio
do Boi). A primeira gravura mostra um garotinho, o boiadeiro, correndo daqui para ali
procurando o boi. Cada gravura sucessiva mostra um aprofundamento gradual da mente
desperta. As três últimas tratam respectivamente do Dharmakaya, do Nirmanakaya e do
Sambhogakaya. Além disso, um verso acompanha cada uma das gravuras.
O verso para a gravura de número 8, aquela que se refere ao Dharmakaya, diz:

Chicote e rédea, boiadeiro e boi, todos se foram sem deixar rastro.


O vasto céu azul, como podem as palavras, descrevê-lo?
Como pode a neve perdurar na chama carmesim do fogo que arde?
Se você tivesse que ficar de pé fitando os mestres antigos olho no olho
Aqui é onde você deveria estar!

Que vergonha! Eu desejava salvar o mundo todo.


Que choque. Não existe mundo para eu salvar.
As palavras não podem ser usadas para se falar sobre
O boiadeiro neste reino.
Instrutor, aluno, ambos não mais existem
Mistério dos mistérios! Quem está aí para receber esta verdade?
Quem está lá para dá-la?
52
De um golpe o vasto céu é subitamente estilhaçado.
Sagrado, profano, ambos sumiram sem deixar rastro.
No não-caminho, todas os caminhos chegam ao fim.
Gloriosamente brilha a lua; suavemente o vento farfalha
No pátio do templo.
A água de todos rios flui para o grande mar.

o puro corpo da realidade

O puro corpo da realidade é o Dhamakaya. Ele irrompe quando a oitava consciência


depósito, ou Alaya, é transmutada.
A 'vacuidade' do Dharmakaya não é um enorme buraco cósmico. Na realidade,
estamos vendo o mundo em Samadhi neste exato momento. O mestre Zen Han Shan,
descrevendo o Samadhi50, diz: "Um dia, após tomar o meu mingau, sai para caminhar.
Subitamente parei, pleno da compreensão de que não tinha corpo nem mente. Tudo que eu
podia ver era um grande Todo iluminador - onipresente, perfeito, lúcido, e sereno. Era como
um espelho oniabarcante do qual as montanhas e os rios da terra eram projetados como
reflexos'.
50 Chan Chen-chi The Practice of Zen. Rider and Company: London. pp.116-129.
Nós negligenciamos o fato de que conhecemos este mundo. Ignoramos a verdade de
que o mundo é como é porque sabemos que ele é assim. Quando dizemos: "o sol está
brilhando", ou "o gato quer sair", ou "o café está pronto", deveríamos dizer: "eu sei que..."
antes de cada afirmação. Mas dizer: "eu sei que..." seria redundante. Não é necessário
dizer. Mas embora digamos que "eu sei que..." seja redundante, não devemos inferir que o
próprio saber seja redundante. Quando despertamos descobrimos que o saber é, e que
sempre foi, como um espelho oniabarcante do qual as montanhas e rios, o zendo e as
almofadas, são projetados como reflexos.
Porque negligenciamos o saber, que é a essência do 'eu sei', resta-nos ficar com o "eu"
e nos sentir separados de nós mesmos, alienados, perdidos. O sol, o gato, o café da manhã,
as montanhas e os rios, portanto, parecem separados de nós, criando sua própria existência
independente. Então buscamos a nós mesmos nas montanhas e nos rios, nas almofadas e
no zendo, em suma, buscamos a nós mesmos na experiência.
Quando o mundo é visto na Maneira do Grande Espelho Perfeito, tudo é
temporariamente interrompido no saber. Nenhum 'sabedor' é necessário ou possível; não
existe qualquer ponto de vista a partir do qual tudo seja visto. Ver a coisa é ser a coisa.
Quando alguém perguntou a Joshu: "O que é o Buda?" (a pergunta poderia muito bem ter
sido: "O que é o Dharmakaya?"), Joshu disse: "O carvalho no jardim". Ver o carvalho é ser o
carvalho. Mas isso não significa que o carvalho seja simplesmente a projeção de alguma
imaginação.
Não estou dizendo a mesma coisa que o filósofo e idealista Bispo Berkeley. De acordo
com Berkeley, a árvore é ideia de Deus. Para Joshu, nem Deus nem uma ideia surgiram.
Quando digo que ver é ser, não estou dizendo que ver e ser são a mesma coisa; ver e ser
não são a mesma coisa, mas simplesmente não podem ser separados, e por isso não são
53
diferentes. Ser é ser; ver é ver, mas ser é ver. No Prajnaparamita está dito: 'forma é
vacuidade'. Forma é forma; vacuidade é vacuidade. Não são a mesma coisa, idênticas, mas
não são duas. O Zen não é nem monismo nem dualismo. Perceber o verdadeiro significado
disso é examinar a Sabedoria do Grande Espelho.
Tampouco existe qualquer vidente; ninguém vê. Inserimos o vidente após o fato. O
pintor é parte da pintura. Nossa experiência imediata é o carvalho no jardim; este espelho
suspenso e seus reflexos. Um mestre Zen perguntou a um monge: "O tempo está frio ou é o
homem que o sente frio?". O monge respondeu: "Estamos todos aqui!". Dentro, fora,
vindo, indo, tudo está contido em Samadhi: "Estamos todos aqui", ou, como disse Hakuin
no seu Cântico em Louvor a Zazen: "indo e vindo jamais saímos de casa". Com o kensho,
estilhaçamos a projeção de que o vidente e o que é visto, o homem que sente frio e o
tempo que está frio, são como são, e não a maneira como se pensa que sejam. Nós
estilhaçamos a ilusão de um mundo real, de existência independente assim como um tema
de continuidade permanente.
No Haiko de Basho está escrito:

Ninguém
Caminha por esta trilha
Nesta noite de outono.

O despertar é uma reviravolta ou uma meia-volta, que, como dissemos, é chamado de


paravritti no Lankavatara Sutra: uma reviravolta na oitava consciência depósito51, e o
surgimento da maneira de saber chamada o Grande Espelho. O despertar não é uma ideia,
um pensamento, nem uma maneira diferente de pensar. Não é uma experiência. Nem é
algo novo que penetrou a mente. A própria mente foi revirada de uma maneira
fundamental. Poder-se-ia até mesmo dizer que foi virada pelo avesso; algo como uma luva
que pode ser virada pelo avesso. A luva é ainda a mesma, mas é bastante diferente. Esta
meia volta, essa reviravolta, requer grande esforço, grande energia. Este é o trabalho que
tem de ser feito.
51 Para mais informações sobre o oitavo nível de consciência, vide Low, (2000) pp.116-129.
Quando digo que o trabalho requer grande energia, não quero dizer que é o trabalho
de pistões, de batidas repetidas. Podemos ficar batendo por aí como uma máquina
debulhadora e ainda assim não estar trabalhando. O trabalho é penetrante, sutil, sincero;
mas, apesar disso, é trabalho. Um certo tipo de esforço é necessário e no fundo de nossos
corações cada um de nós sabe o que é este esforço, e cada um de nós preferiria correr uma
légua a fazê-lo. Dogen escreve a esse respeito. Ele diz que o esforço não é nem auto-
imposto nem imposto pelos outros; é livre, não-forçado. Depois, no mesmo artigo, ele diz
que tudo é esforço. Mesmo o tentar evitar o esforço não pode ser feito, porque a tentativa
em si mesma é esforço. "Este esforço sustentado não é algo que as pessoas do mundo
naturalmente amam ou desejam; todavia, é o último de todos refúgios".
Sem esforço, nenhuma reviravolta é possível. A extensão da reviravolta depende do
trabalho que fazemos. Se trabalhamos pouco, ocorre uma pequena reviravolta, se
trabalhamos intensamente ocorre uma grande reviravolta, se não trabalhamos, não ocorre
reviravolta alguma. O que temos que fazer é retornarmos constantemente ao centro deste
54
trabalho.

Saber a Igualdade
O fato de todas as coisas nos seis campos dos sentidos - visão, audição, discernimento e
conhecimento - serem a sua própria natureza desperta, é chamado 'conhecer a igualdade', o corpo de
recompensa é realizado. (Sambhogakaya)

O corpo de recompensa é chamado Sambhogakaya, às vezes conhecido como 'corpo


da bem-aventurança'. Diz-se que o Buda revela-se mesmo aos Bodhisattvas através do
Sambhogakaya (i.e., quando o Bodhisattva atinge o despertar).
O que significa tudo isso em termos da nossa prática? Este despertar surge como uma
outra reviravolta, desta vez no sétimo nível de consciência, manas. Esta maneira de saber
transcende a dualidade. Na experiência, a primeira reviravolta na oitava consciência abre-
se para o saber como vacuidade, saber como o vasto espaço. Muito koans apontam para
isso; um exemplo é o de Bodhidharma: "Grande vazio, nada para ser chamado de sagrado".
Um outro é a segunda metade do Everyday Mind is the Way, de Nansen52: "é como o vasto
espaço". Isto é saber como vacuidade; é ver que a forma é vacuidade. Muitos, como
assinala Hakuin, estão contentes em permanecer com este despertar. Ele chegou a este
nível com seu primeiro kensho, mas teve a felicidade de encontrar um instrutor que insistiu
para que ele continuasse. O seu instrutor costumava chamá-lo de 'demônio no buraco'. O
buraco era o despertar de Hakuin para o Dharmakaya. O demônio era a vontade de Hakuin
em permanecer lá.
52 Low, (1995) Koan nr. 19 p.136.
Joshu perguntou a Nansen: "O que é o Caminho?"
Nansen respondeu: "A mente do dia-a-dia é o Caminho." (A sua mente comum é o Caminho)
"Como se chega até ela?"
"Quanto mais você a persegue mais ela foge."
"Como a pessoa sabe que está no Caminho?"
"O Caminho não pertence ao saber nem ao não-saber. Saber é ilusão. Não saber é falta de discriminação. É
como a vasto espaço. Onde há espaço para isto e para aquilo, o bem e o mal?"
A necessidade de ir além da maneira de saber do Grande Espelho é também
enfatizada em muitos koans. Por exemplo, no koan de número 46 do Mumonkan, o mestre
Zen Sekiso perguntou: "Como você vai sair andando de cima de um poste de trinta
metros?" Um outro eminente mestre de antigamente disse: "Você, que está sentado no
alto de um poste de trinta metros, embora tenha atingido a realização, você não é real. Siga
em frente de cima do poste e você irá manifestar todo seu corpo nas dez direções".
Manifestar todo o seu corpo nas dez direções é o segundo despertar. É ver que todas as
coisas nos seis campos dos sentidos - visão, audição, discernimento e conhecimento - são a
sua própria natureza desperta.
Este segundo despertar é mais profundo e mais penetrante, e a pessoa vê que 'tudo é
um'. Como exemplos, o "Oak Tree in the Gardert', de Joshu, e o koan de número 53 do
Hekiganroku, Hyakujo e os gansos selvagens, apontam nesta direção. No koan de número

55
53 consta: "Certa vez, quando Baso e Hyakujo caminhavam, eles viram alguns gansos
selvagens passar voando. O grande mestre perguntou: 'O que é isso?'. Hyakujo respondeu:
'Gansos selvagens!'. 'Onde estão?' Hyakujo disse: 'Foram embora!'. Baso torceu o nariz de
Hyakujo. Hyakujo gritou de dor. O grande Mestre disse: 'Quando alguma vez na vida eles
foram embora?' ".
O mestre Zen Bassui disse em uma de suas cartas:53 "O universo e você são da mesma
raiz, ... você e cada coisa são uma unidade. O gorgolejo da correnteza e o suspiro do vento
são as vozes do mestre. O verde do pinho, a brancura da neve, estas são as cores do
mestre". Ele estava escrevendo a respeito do Sambhogakaya.
53 Kapleau, Philip (1966) The Three Pillars of Zen. Weatherhill: New York. p.181.
Ver é saber; ouvir é saber. Em essência, portanto, ver e ouvir não são diferentes. Nem
o são ver e pensar, ver e tocar, ver e sentir. Em essência, todos são um. Em essência todos
são saber.
Tudo, como dissemos, é reflexo do saber. Quando despertamos para isso, o saber
torna-se óbvio. Os Mestres Zen chamam isso de Mente, em vez de saber. Quando não
vemos, então somente as árvores e os pássaros são óbvios. Uma reviravolta pela metade;
deve ocorrer uma mudança do fundo para frente e da frente para o fundo. Gurdjieff diz:
"Lembre-se de si mesmo", ou como diz Dogen, que paradoxalmente é a mesma coisa:
"Quando esquece de si mesmo, você se torna um com as dez mil coisas". Você não pode
separar as árvores e os pássaros, o corpo, as paredes, do fato de sabê-los, ainda que as dez
mil coisas sejam as dez mil coisas, e o saber seja o saber. Todas as coisas nos seis campos
do sentidos, visão, audição, discernimento e conhecimento são a sua própria natureza
desperta. Quando em Samadhi, tudo que você vê, ouve e toca é a sua própria face.
Dizem que todas as coisas pregam o dharma. Um monge perguntou a um mestre:
"Qual é a entrada para o Caminho?". O mestre perguntou, "Estais ouvindo o som da
correnteza?". O monge disse: "Sim". "Essa é a entrada para o Caminho. Não o será, todavia,
se tudo que você ouvir for o som da correnteza".
A gravura de número nove do pastoreio do boi diz respeito ao Sambhogakaya.
O verso correspondente a esta gravura diz:

Devolvido à origem, tudo está realizado


É melhor ser cego e surdo,54
Ele se senta em sua cabana e nada vê do lado de fora 55.
O rio corre e corre, corre como sempre.
Vermelha, a flor desabrocha, como costuma desabrochar.

Milagres não pertencem ao reino da recompensa e da punição.


O não-ouvir já é ouvir; o não-ver já é ver
Ontem, em plena majestade e brilho, o sol se pôs.
Hoje a aurora aponta.

Tendo passado pela fornalha mil vezes,


O mais claro despertar é obscuro comparado ao não-ver, ao não-ouvir.
Sob sua sandália de palha termina o caminho no qual ele certa vez surgiu.
56
54 No Budismo, a cegueira é de vários tipos. Há aqueles que não conseguem ver, aqueles que não querem
ver, aqueles cegados pela luz, e há aqueles que não veem coisa alguma porque nada se destaca; tudo é
igual. Esta é a cegueira do Buda.
55 É como Hakuin disse no seu Cântico em Louvor ao Zazen: "O que existe fora de nós, o que nos falta?"

Nenhum pássaro canta. Flores vermelhas desabrocham em gloriosa profusão.

Saber por diferenciação


Discernir os princípios à luz da verdadeira percepção é a maneira de saber por diferenciação.
Deve-se fazer uma distinção clara entre diferenciação e discriminação, a terceira
maneira de saber. Yasutani disse certa vez: "Mesmo uma xícara rachada é perfeita". Tudo é
como é, e, como é, é perfeito. Alguém perguntou a Ummon: "O que é o Buda?". Ummon
respondeu: "Fezes secas". Diferenciação não implica e nem traz consigo qualquer tipo de
julgamento. No koan de número 26 do Mumonkan, o mestre Zen Hogen pede a dois
monges para enrolarem as venezianas do hall. Eles assim o fazem, de maneira exatamente
igual. Hogen diz: "Um possui, o outro não". Este é um exemplo perfeito de diferenciação,
mas Hogen não estava discriminando um monge do outro. O mestre Zen Murnon,
comentando sobre este koan disse: "Diga-me quem possuía e quem não. Se você tem um
só olho, você verá onde Hogen falhou. o entanto, eu advirto firmemente para não
discriminar entre possuir e não possuir". Possuir um único olho é ver sem discriminação. Se
Hogen não discriminou, então onde ele falhou? Alguém disse: "Tudo é único; não há
diferença". Hogen falhou em ver a diferença.
Discriminação implica julgamento. Vemos isso de maneira exagerada na discriminação
racial, na qual uma raça alega superioridade sobre outra. A discriminação depende de
conceitos e palavras, o que colore tudo de um matiz cinza. Nas ciências físicas, este matiz é
exagerado, porque o cientista deve ser capaz de medir tudo. A riqueza e vivacidade de
todos os fenômenos são reduzidas a um matiz, a uma medida. A utilidade é uma virtude
primária da mente discriminativa. Julgar tudo de acordo com o uso tem também a mesma
origem que a tendência de reduzir a riqueza do valor a uma única cor. Alguém perguntou a
Joshu: "Qual é a coisa mais preciosa?". Joshu respondeu: "Um gato morto". "Por que um
gato morto é a coisa mais preciosa?" "Porque é inútil". Esta mesma tendência para um
matiz cinza é exagerada quando até mesmo a utilidade é suplantada pelo valor monetário,
o denominador comum mais inferior daquilo que é útil. Quando, com o despertar, esta
mente discriminativa é 'estilhaçada' então a riqueza e a plenitude da vida irrompem através
do molde de pensamento pálido, cinza.

A maneira da perfeição da ação


Tossir, cuspir, mover os braços, atividade, repouso, tudo que é feito em harmonia com a natureza da
realidade, é chamado 'saber através do fazer as coisas'. A isso se dá o nome de esfera de liberdade do corpo
de transformação (Nirmanakaya).

57
O corpo de transformação é o Nirmanakaya, e este é o corpo que o Buda tem no
mundo: o corpo físico. Em termos de prática, significa ainda um outro despertar: despertar
para a quarta maneira de saber. Yasutani Roshi, nos Three Pillars of Zen assinala:56 “ 'ku'
[shunyata] não é uma mera vacuidade. É aquilo que é vivo, dinâmico, destituído de massa,
não fixado, além da individualidade e da personalidade - a matriz de todos os fenômenos".
O universo não é estático; é dinâmico, vivo. A ação é o modo de ser da vida: mesmo as
flores voltam-se para o sol e as árvores esticam os braços.
56 Kapleau (1966) p.74.
Um mestre poderá perguntar: Quem caminha? Quem fala? Às vezes um estudante
desventurado poderá dizer: "eu". Mas que músculos ele usará, que nervos? Podemos
exercitar a vontade própria quanto quisermos, mas ainda assim o corpo não se levanta.
Como é fascinante conversarmos sem no entanto sabermos as palavras que vamos usar até
que as tenhamos dito. Quando converso, o universo conversa, e a minha dança e as minhas
canções são, como nos diz Hakuin, a voz do dharma.
O saber em ação é às vezes chamado 'função'. Um mondo (pergunta e resposta) ajuda
a esclarecer uma questão. Um mestre e seu discípulo estavam capinando um campo. O
monge perguntou:
"O que é isso?". O mestre levantou-se e plantou sua enxada no chão. O monge disse:
"Você tem a essência, você não tem a função". O mestre disse: "Então o que é isso?". O
monge continuou capinando. O mestre disse: "Você tem a função, você não tem a
essência".

Um mestre Zen, Yuishun, ao despertar, escreveu57:


"Ora, é apenas o movimento dos olhos e da sobrancelha!
E eu tenho estado aqui procurando em toda parte.
Finalmente desperto, encontro a lua
Acima dos pinheiros, o rio lançando-se em altas ondas".
57 Stryk e Ikemoto (1963) p.13.

Tudo o que fazemos é o dharma em ação; tudo que fazemos é o Samadhi da ação.
Quando perguntamos: "Quem caminha?", inquirimos a respeito do Samadhi da ação. O
Samadhi do caminhar caminha; o Samadhi do ver vê; o Samadhi do conversar conversa. O
Samadhi é tudo. Deixe-me repetir, este é o Samadhi que não pode ser atingido, o Samadhi
que é a sua verdadeira natureza. É o seu estado exatamente agora. O seu estado é um
estado de Samadhi. É apenas... mente.
A décima gravura do pastoreio do boi fala do Nirmanakaya.

De peito aberto e pés descalços ele entra no mercado.


O seu rosto está coberto de poeira, sua cabeça coberta de cinzas.
Um enorme sorriso surge em seu rosto
Sem se curvar para realizar milagres
Ou prodígios, ele subitamente faz com que as árvores murchas floresçam.
De um modo amistoso este indivíduo provém de uma raça estrangeira.58
Ora ele é Pedro, ora é Paulo.
58
Quando, como um raio, ele empunha o bastão de ferro.
Escancaram-se as portas e os portões

Como um dardo que surgiu do nada, o bastão de ferro salta.


Às vezes ele fala huno, às vezes chinês, em meio a gargalhadas.
Entenda como encontrar a si mesmo, mas permaneça desconhecido do eu.
O portão do palácio abrirá de par em par.
58 Palavras vivas.

A interpenetração perfeita habita neste nível. Nem o despertar nem a ilusão se


demoram; unidade e dualidade não mais existem.

A importância de continuar a prática após o despertar


Hakuin diz que o despertar tem aspectos diferentes, cada um dos quais pode ser
gradualmente aprofundado. São aspectos diferentes de nossa inteligência fundamental ou
da nossa sabedoria fundamental. O despertar é a concepção, pode-se dizer, da semente-
do-Buda. Essa semente-do-Buda pode também ser chamada de Bodhichitta, a mente que
busca o caminho. É o verdadeiro início da possibilidade que cada um de nós tem de ser
humano no sentido mais pleno.

Ainda assim, você não vê o caminho com completa clareza e o seu poder de um insight brilhante não
está ainda plenamente amadurecido. Portanto, se você não continuar com a prática, será como um mercador
que acumula capital e não se engaja no comércio. Ele não apenas não enriquece, como vem a falir pelo fato de
gastar apenas para manter a aparência de ser rico.

O quarto patriarca disse ao monge Fa-Yung, que tivera um despertar profundo: "Você
não deve nem contemplar nem purificar sua mente... Seja ilimitado e absolutamente livre
de todas as condições" - em outras palavras, o patriarca estava dizendo que não era
necessário empreender qualquer disciplina definida, posterior. No entanto, devemos
lembrar que o quarto patriarca foi instrutor na China durante a dinastia T'ang, e que,
portanto, estava falando em uma época em que o Dharma estava florescendo. Ademais, o
despertar de Fa-Yung foi muito profundo e consumado.
Na época de Hakuin, o Dharma tinha-se deteriorado consideravelmente, exatamente
como se tem deteriorado ainda mais na nossa época. Muitos se perguntam: "Quando eu
tiver compreendido plenamente o significado do meu koan, quando tiver examinado minha
verdadeira natureza, o que mais haverá para ser feito?". Hakuin assinala que o kensho,
muito embora possa parecer profundo, é ainda apenas um início.
O que eu quero dizer com continuar com a prática? É como um mercador engajado no comércio que
gasta cem moedas para conseguir um lucro de mil. Ele acumula uma vasta fortuna e um vasto tesouro,
tomando-se livre para fazer o que bem entender com as suas bênçãos. Quer seja rico ou pobre, dinheiro ainda
é dinheiro, mas sem engajar-se no comércio é impossível enriquecer. Mesmo que a ruptura com a realidade
seja genuína, se o poder de brilho do insight for fraco, não se consegue quebrar as barreiras das ações
59
habituais. A menos que o saber por diferenciação seja claro, não se consegue trazer benefícios aos seres
sencientes de acordo com as habilidades. Portanto, deve-se conhecer a estrada essencial da prática gradual.
A maioria das pessoas não entende isso. Elas dizem: "Eu pensei que este indivíduo
fosse desperto, e olhe para ele, olhe a maneira como está agindo, olhe a maneira como
está falando, a maneira como está reagindo. O que adianta despertar se isso é tudo a que
se resume? Pensei que ele fosse ser perfeito". Observa-se este tipo de reação
frequentemente de pessoas que estão brincando de praticar, ou que, de fato, não estão
praticando. As pessoas que estão realmente praticando, que conhecem o amargor da luta,
sentem unicamente compaixão por aqueles que fracassam e caem no caminho. Elas sentem
o ímpeto de adiantar-se e ajudá-las a levantar-se novamente. O caminho é árduo e difícil e
um kensho, mesmo que seja um kensho profundo, ainda assim não torna as coisas mais
fáceis. Cada passo no caminho tem de ser dado - às vezes é como caminhar descalço sobre
cascalho afiado. Apesar disso a pessoa deve continuar; ela já se adiantou muito para recuar.
Quais são as reações habituais de que fala Hakuin? Somos lançados no mundo e
ficamos bastante confusos com isso. Os nossos primeiros anos são como se estivéssemos
tentando nos levantar, sem apoio, diante de um forte vento. Somos constantemente
soprados daqui para ali. Portanto, fazemos o que podemos para sobreviver no momento,
não importa o quanto isso possa nos custar a longo prazo. Durante a Segunda Guerra
Mundial, um avião de combate chamado Spitfire foi usado em ação. A sua válvula de pressão
podia ser acionada através de uma abertura e dar ao motor um impulso adicional. O piloto
podia usá-la em caso de emergência para fugir de um avião inimigo. Certamente havia um
custo agregado ao uso deste impulsionador. A estrutura do avião poderia chacoalhar até se
estraçalhar.
Quando somos jovens, passamos boa parte do nosso tempo com o pé no acelerador.
Tendo isso em mente, a pessoa começa a entender qual a grande força que usamos para
estabelecer as reações habituais de que estamos falando. Começa-se a apreciar a energia
que gastamos para mantê-las. Às vezes, quando somos jovens, temos pesadelos, e o mundo
inteiro se abre como um vórtice pronto para nos engolir, para nos tragar completamente -
não estamos falando de brincadeira de criança -, e depois temos que fazer uso de cada
partícula do nosso ser para continuar a existir. Tivemos que nos levantar para enfrentar os
nossos pais - gigantes de um metro e oitenta de altura enquanto nós tínhamos pouco mais
de oitenta centímetros - e, de algum modo, temos que vencer esta competição ou nada,
aparentemente, restará de nós; seremos engolidos completamente. Nossas barreiras são
como ferro fundido, aço temperado. Portanto, quando posteriormente tentamos derretê-
las, a tarefa não é fácil, absolutamente. Não devemos surpreender-nos, como disse Dogen,
pois é necessário suor, lágrimas e às vezes sangue para torná-las maleáveis novamente.
O mestre Zen Issan disse59 que, muito embora, através da prática, a mente original
tenha sido despertada de modo que a pessoa esteja instantaneamente desperta para o
saber, apesar disso a inércia do hábito ainda perdura. Este hábito tem sido formado desde
o início dos tempos, e não pode ser completamente banido de uma hora para outra.
Portanto, a pessoa deve aprender a pôr fim ao fluxo de suas ideias habituais e a pontos de
vista que são mantidos pelo carma não resolvido. Este processo de purificação é a prática.
Yasutani Roshi costumava dizer o seguinte: "Suponhamos que você esteja numa
caverna totalmente escura. Se você acender um fósforo a 'qualidade' da caverna mudará
60
completamente. Ela está agora cheia de luz, e não mais completamente escura. Se você
então acender uma vela com o fósforo, a intensidade da luz aumentará, mas isso é uma
mudança quantitativa, e não uma mudança qualitativa. Se, com a ajuda da vela você
encontrar uma lanterna e acendê-la, a intensidade aumentará ainda mais. A pessoa poderia
continuar aumentando a intensidade até finalmente arrebentar o topo da caverna e deixar
a luz do sol entrar. Embora a intensidade da luz seja diferente em cada caso,
qualitativamente a luz do sol não é diferente da luz do fósforo".
59 John C H. Wu (1967) The Golden Age of Zen. The Natural War College. p.163.
Hakuin diz que esta prática subsequente é essencial se a pessoa deseja alcançar o
potencial oferecido pelo primeiro despertar. Realmente, poder-se-ia dizer que o primeiro
despertar, mesmo profundo, raramente tem o poder de transformar uma pessoa. O valor
do primeiro despertar é que ele nos permite desenvolver uma grande fé, tanto assim que
os esforços prévios que foram difíceis de sustentar tornam-se agora desnecessários.
Podemos comparar isso à limpeza de um porão. Se o porão estiver completamente escuro,
então será difícil limpá-lo. Na verdade, pode-se fazer uma bagunça muitíssimo maior. Se
houver apenas um pouquinho de luz, o trabalho torna-se consideravelmente mais fácil.
Mesmo assim, o porão ainda precisa ser limpo.

O que é o saber do Grande Espelho Perfeito?

Com bastante frequência, os mestres Zen usam a metáfora do espelho.60 Aqui


lembramos o uso que foi feito no intercâmbio entre o monge chefe e Hui Neng. O quinto o
patriarca Zen queria passar adiante o patriarcado. Para determinar quem melhor poderia
ser escolhido, ele pediu aos seus monges que escrevessem um pequeno poema para indicar
o seu nível de realização. O monge chefe escreveu:

O corpo é a árvore Bodhi,


A mente um espelho claro.
Limpe-o cuidadosamente dia após dia
E não deixe nenhuma poeira pousar.
60 Ver The Mirror of the Mind de Paul Demiéville em Sudden and Gradual Approaches to enlightenment in
Chinese Thought. University of Hawaii Press: Honolulu. de Peter N. Gregory pp.13-40.

Hui Neng entendeu que o monge não tinha examinado a sua verdadeira natureza e
escreveu por sua vez:

Em Bodhi não há árvore,


Nem um espelho claro,
Desde o início dos tempos nada é,
Onde pode a poeira pousar?

Nesse intercâmbio, Hui Neng insiste em que não há espelho. Essa disputa entre o
monge chefe e Hui Neng provavelmente teve suas origens na disputa que estava
acontecendo naquela época entre o Taoismo e o Budismo. Suspeita-se que o verso do
61
monge chefe pareça-se com uma citação de Chu'ang-tzu.61 "Quando o espelho é claro, é
porque não tem nenhuma poeira sobre ele. Se houver qualquer poeira, o espelho não é
claro". A meta do taoista é ter uma mente perfeitamente serena: "Não é na água corrente
que os homens se refletem, mas na água parada". Essa serenidade é um substrato
subjacente de algum tipo. O quarto patriarca Zen escreve:62 "Eu digo que Chu'ang-tzu
ainda tinha a mente obstruída pela noção do Um. Lao Tzé diz que no mistério profundo jaz
um espírito sutil. Isso porque ele mantém a ideia de uma mente interior, muito embora a
sua mente tenha deixado escapar um lado exterior... Lao-Tzé fica estagnado na mente e na
consciência".
61 ibid. p.22.
62 Masumi Sgibata (tradutor e editor) (1973) Passe Sans Porte. Villain et Belhomme: Paris. p.31 (Tradução
minha do francês).
"Foi mantendo a tranquilidade que os confucionistas da dinastia Sung tornaram-se
apegados ao estado de mente que não permitia surgir nenhum sentimento de alegria, ira,
tristeza ou prazer. É pela manutenção da tranquilidade que Lao Tzé insiste em que a pessoa
finalmente chega a lugar nenhum atingindo, assim, a tranquilidade e a serenidade".
No Zen, a metáfora do espelho é usada para assinalar que, assim como os reflexos não
têm qualquer existência em si mesmos, e dependem de um espelho para sua existência,
também as nossas experiências não têm existência em si mesmas, sendo dependentes do
saber para sua existência. É como dizer que a forma é vacuidade. O Zen insiste em que não
há substrato nem Existência Suprema subjacente. A doutrina de prajna, uma mente
desperta que habita em lugar nenhum, afirma isso, como também o faz a doutrina de anicca
do Buda, a doutrina da inexistência. Para o Zen, o espelho é saber, que, embora não seja
constante, cada instante recria a si mesmo. Saber é a sua própria existência; a existência,
em si mesma, é saber. Para o taoista, o espelho ou, o que é importante, o espelho como
substrato, torna possíveis os reflexos, daí a necessidade de um espelho limpo e tranquilo.
Hui Neng atravessa esse substrato.
Significa que se deseja-se examinar este grande tema, deve-se primeiramente gerar grande vontade,
grande fé e grande determinação para perceber o verdadeiro significado da natureza desperta originalmente
inerente.
Ele está dizendo que um questionamento profundo, muito profundo, deve permear
nossas vidas. "O que é isso?" Tudo deve apontar para esta pergunta: "O que é isso?"
Usamos palavras e expressões tais como 'saber', 'inteligência', 'sabedoria suprema',
'sabedoria do espelho', 'Bodhisattvas', 'natureza do Buda'. Nos perguntamos o que as
palavras querem dizer e assim usamos outras palavras como definições, e, depois nos
perguntamos o que essas palavras, por sua vez, querem dizer. Qual a utilidade de todas
essas palavras que soam mal? Todavia, "O que é que pergunta?" Aquele que faz a pergunta
e aquele sobre quem se pergunta, são diferentes? Não conseguimos sair deste enigma por
um instante sequer. O que é isso? Isso nos mantém, nos apoia, estava conosco na
concepção, estará conosco na morte, estará conosco em qualquer reino Bardo que possa
existir, - jamais está ausente; quando dormimos, quando rimos, quando caminhamos,
quando conversamos - ele está conversando, ele está caminhando, ele está rindo, ele está
dormindo, ele está morrendo. Nós somos isso. O que é isso?
No Centro Zen de Montreal, antes de um membro ser aceito como estudante, ele ou
62
ela deve responder a três perguntas: Eu realmente quero perceber o significado da minha
verdadeira natureza, ou estou simplesmente 'praticando o Zen', ou querendo encontrar paz
e conforto ou o que quer que seja? Estou preparado para fazer o trabalho que é necessário,
e a continuar a fazê-lo até que tenha penetrado até a raiz? Finalmente, tenho fé no
instrutor, e estarei preparado para lhe dar o benefício da dúvida quando necessário? Se o
estudante puder responder 'sim' a todas as três perguntas, então ele ou ela é aceito como
estudante. Dessa maneira, um comprometimento é feito, um comprometimento não para
com o Centro Zen, não para com o Zen nem para com o instrutor, mas para consigo mesmo.
Um verdadeiro comprometimento só pode ser feito se a pessoa puder gerar a grande fé, a
grande dúvida e a grande perseverança necessárias para sustentar a prática do Zen.
Após despertar grande vontade, fé e determinação, deve-se então constantemente perguntar, 'Quem é
aquele que vê e ouve?' Caminhar, ficar de pé, sentar, deitar, estar em atividade ou em silêncio, quer em
circunstâncias favoráveis ou não, faça a mente indagar o que é que vê tudo aqui e agora. O que é que ouve?
O koan Quem sou eu?", que às vezes é perguntado 'O que sou eu?', subjaz a estas
perguntas. É uma pergunta feita pelos Zen budistas japoneses e chineses, pelos budistas
tibetanos, pelos sufis e pelos hindus. Recentemente, o Papa João Paulo II disse que os
cristãos também devem ponderar a respeito dessa pergunta. Dois instrutores hindus,
Ramana Maharshi e Nisargadatta Maharaj, tornaram a pergunta mais popular nos últimos
anos. Ramana Maharshi, por exemplo, diz.63 "A mente irá aquietar-se somente por meio da
indagação 'Quem sou eu?'. O pensamento 'Quem sou eu?' destruindo todos os outros
pensamentos, irá ele próprio, finalmente, ser destruído, como a vareta usada para mexer a
pira funeral. Se outros pensamentos surgirem, a pessoa deve, sem tentar completá-los,
inquirir 'Para quem eles surgiram?' Porém, o que importa se muitos pensamentos surgirem?
No exato momento em que cada pensamento surge, se a pessoa vigilante inquirir 'Para
quem isso surgiu?', saber-se-á que é 'para mim'. Se a pessoa então pergunta 'Quem sou eu?',
a mente irá recuar até sua fonte [o Eu] e o pensamento que tinha surgido irá também se
aquietar. Praticando repetidamente dessa maneira, o poder da mente de permanecer na
sua fonte aumentará".
63 Godman David (editor) Be As You Are, The Teachings of Sri Romana Maharshi. Arkana: London p.59.
Nisargadatta diz: "Abandone todas as perguntas exceto uma: 'Quem sou eu?' Afinal, o
único fato de ·que você tem certeza é de que você é. O 'eu sou' é certo. O 'eu sou isto' não é.
Lute para descobrir o que você é na realidade'.64
64 Frydman, Maurice (tradutor) Revisado e editado por Sudhakar S. Dikshit (1973) I am That - Talks with Sri
Mahaj Nisargadatta Maharaj. Acorn Press: Durham. p.70.
Em japonês, o koan é perguntado da seguinte maneira: "Qual é o seu rosto antes de
seus pais terem nascido?". Eu às vezes pergunto: "O que é você?" antes de surgir a
pergunta "Quem é você?".
Indagação como esta, ponderação como esta - afinal, o que é? Se você continuar duvidando, com o
espírito arrojado e o sentimento de vergonha a lhe impulsionar, o seu esforço irá naturalmente unificar-se e
solidificar-se, tornando-se uma simples massa de dúvida por todo céu e terra. O espírito sentir-se-á sufocado,
a mente aflita, como um pássaro numa gaiola, como um rato que entrou num tubo de bambu e que não
consegue escapar.
É importante notar a palavra 'ponderar', pesar - significa uma maneira profunda de
pensar. Em outras palavras, implica o uso profundo da mente. Esta pergunta não é um
63
empurrão no escuro, não está simplesmente martelando nossas cabeças - está usando
nossa mente, ponderando. A palavra 'ponderar' detém um certo senso de peso, ou
gravidade. Neste nível de pensamento as palavras não mais nos ajudam, mas ainda
conseguimos pensar. É o que Dogen chamou de 'pensar o impensável'. Alguém lhe
perguntou: "Como pode alguém pensar o impensável?". Ele respondeu: "Sem
pensamento". Isto é, sem conceitos, ideias, palavras e pensamentos. Mas a pessoa pensa. E
inteiramente possível fazer isso. Muitos, quando praticam com um koan, alcançam o limite
das palavras, depois o limite do pensamento conceitual, depois alcançam o limite da
intuição, e então desistem. "De que adianta?", perguntam. "É impossível". No Zen, a
jornada só começa quando todas as estradas terminam. Não temos que ser superpessoas.
Aqueles que atravessam o portal sem portais são pessoas como você e eu. Pôr este
trabalho de lado e dizer: "Tudo bem para o Buda ou para Hakuin, ou para quem quer que
seja. Estes indivíduos tinham tempo, eles não tinham família e todo tipo de distrações; é
melhor eu esperar a próxima vez". Não. Este é o nosso trabalho, e este é o nosso trabalho
agora. Exatamente agora enquanto estamos sentados em casa, ou no trabalho, ou na sala
de meditação. O que é que ouve? O que é que resiste a esta pergunta neste momento?
Questionamento como este, ponderação como esta, o que é?

Um sentimento de vergonha a lhe impulsionar

Um sentimento de vergonha! Não é que fiquemos envergonhados porque não


resolvemos a questão. Se nós realmente trabalharmos essa pergunta, surgirá um senso de
vergonha, de remorso, até mesmo de indignidade. Faz lembrar Nicodemos no Novo
Testamento dizendo: "Senhor, eu não sou digno", ou a visita do Buda à terra para prestar
testemunho do seu merecimento. Quando isto surge, trabalhamos com vergonha, com
desmerecimento. "Arrepende-te e serás salvo". O arrependimento surge quando tudo
começa a se ajustar, a se juntar. A reviravolta já começa quando o arrependimento
aparece. Tudo está tornando-se uno. É por isto que a humilhação é um aspecto importante
do trabalho. A humilhação nos ensina a humildade, e a humildade nos ensina o remorso.
Hubert Benoit, no livro The Supreme Doctrine,65 disse o seguinte a respeito da
humilhação:

Todo o problema do sofrimento humano está resumido no problema da humilhação.


Estar livre do sofrimento é estar livre da possibilidade de ser humilhado. De onde vem a
humilhação? De me ver impotente? Não, isto não é suficiente. Surge do fato de eu tentar
em vão não ver a minha real impotência. Não é a impotência em si que causa humilhação,
mas o choque experimentado pelo meu clamor em ser único, quando isto se volta contra a
realidade das coisas. Eu não sou humilhado por que o mundo me negou, mas porque fui
incapaz de superar esta negação. A causa do meu sofrimento jamais jaz no mundo externo;
é o resultado do clamor que eu profiro e que é destruído contra a muralha da realidade. Eu
engano a mim mesmo quando digo que o mundo lançou-se contra mim e me feriu; fui eu
quem feriu a mim mesmo. Quando eu não mais clamo unicidade, nada jamais me poderá
ferir.
Se surge uma experiência de humilhação, oferecendo-me uma oportunidade
64
maravilhosa de examinar a mim mesmo, imediatamente a imaginação vomita algum
suposto perigo. Em suma, eu constantemente me defendo contra aquilo que se oferece para
me salvar; eu luto palmo a palmo para proteger a fonte da minha infelicidade.
Vou parar de lutar contra os benefícios construtivos e harmonizadores da humilhação
até o ponto em que possa entender que o meu verdadeiro bem-estar deve ser encontrado,
paradoxalmente, onde, até agora, eu pensava residir a minha dor.
Descobrirei que todos os meus estados negativos são, no fundo, humilhações. Serei
então capaz de me sentir humilhado, aborrecido, sem nenhuma outra imagem surgindo em
mim que não este estado, e serei capaz de aí permanecer imóvel, minha compreensão tendo
se livrado das tentativas de lutar por reflexo. A partir do momento em que eu conseguir não
mais me mover do meu estado de humilhado, descobrirei para minha surpresa, que existe
um 'asilo de repouso; o único porto seguro, o único lugar no mundo no qual posso encontrar
segurança completa. Sinto-me cada vez mais próximo do chão, mais próximo da verdadeira
humildade, humildade que não é a aceitação da minha inferioridade, mas o abandono do
meu clamor em ser único.
65 Adaptado de Benoit, Hubert (1955) The Supreme Doctrine. Routledge and Kegan Paul: London. p.236.

As pessoas frequentemente me dizem: "Você sempre fala de sofrimento". Não faz


muito tempo um dos membros do Centro Zen de Montreal buscou um outro instrutor, e,
quando retornou, disse-me que esse instrutor lhe dissera: 'Curta o seu zazen'. E ele então
me perguntou: "Por que você não diz coisas assim?" Eu só pude responder que é porque
nós temos que atravessar esta noite escura da alma, e que esta travessia é a nossa
realização, a nossa totalidade, e aí reside a nossa verdadeira 'apreciação'. Não estamos
falando em termos de uma miséria que não podemos suportar, mas do sofrimento que é
necessário para o nascimento, para o renascimento.
Não quero dizer que tenhamos que ativamente buscar a humilhação. O mundo está
pronto para lhe dar uma cacetada assim que você passar pela porta. Por isso, não se
preocupe, seja paciente; ele irá realizar a sua obra em você no tempo devido.
Deve-se fazer uma distinção clara entre vergonha e estar envergonhado. Fica-se
envergonhado na presença dos outros. Vergonha é um sentimento pessoal e particular.
Surge quando dois impulsos separados e incongruentes ocorrem em nossa presença.
Quando dois impulsos conflitantes surgem, uma tensão também surge. Por exemplo, quero
ser um homem honesto e quero ser rico. Então surge a possibilidade de roubar uma grande
quantia em dinheiro. Enquanto eu contemplo essas duas alternativas ser honesto e ser rico,
com dinheiro ao meu alcance, um sentimento de culpa irá surgir. A culpa vem da tensão e
da tentativa de restaurar a unidade, a harmonia. Posso resistir e tentar superar o
sentimento de culpa deixando que triunfe um impulso ou outro, Se eu sucumbir, e roubar o
dinheiro, então terei que desistir do sentimento de querer ser honesto, ou transformar a
situação na minha mente de modo que as minhas ações não sejam mais de roubar, mas de
"obter o que me é devido", ou algo semelhante. Isto simplesmente irá traduzir a culpa em
insegurança profunda, com o conflito original constantemente ameaçando irromper. Se,
por outro lado, permaneço com a dor da vergonha ou da culpa, então gradualmente a
unidade subjacente prevalecerá.
Estamos divididos contra nós mesmos bem no âmago do nosso ser. Essa divisão é a
65
fonte última de vergonha e culpa; ela é, além disso, o que torna possível a humilhação.
Ignorância é ignorar, ou voltar as costas à nossa verdadeira natureza. Mas, como eu disse,
ignorar nossa verdadeira natureza não faz com que ela desapareça. A nossa natureza
verdadeira é Una, total, sagrada, mas quando lhe viramos as costas, somos dois em nossa
manifestação. Somos feridos em nossa existência.
A história de Adão e Eva diz a mesma coisa embora de maneira mais concreta. Eles
viraram as costas a Deus. Eles escolheram a árvore do bem e do mal, a árvore do dualismo.
Este é o pecado original e a fonte última de culpa e de vergonha. Culpa e vergonha tendem
a permear as vidas de muitas pessoas que não foram capazes de criar escudos adequados
para se protegerem destes sentimentos. Hakuin está instando-nos a permitir que os
sentimentos de vergonha e culpa agitem-se em nós mesmos. Ao fazê-lo, permitimos que a
unidade básica, que é a nossa verdadeira natureza, irrompa e torne-se a fundação de
nossas vidas".
No confessionário, a pessoa deve arrepender-se, deve também sentir vergonha e
culpa. No confessionário, recebemos penitências, pagamentos que temos que fazer por
nossos pecados. Mas a vergonha já é o pagamento; já é a absolvição. Mas deve ser
vergonha sincera, remorso sincero.
66 Para mais informações sobre a origem da culpa, vide Low (1993) pp.13-15.

O espírito irá sentir-se sufocado, a mente aflita, como um pássaro numa gaiola, como um rato que
entrou num tubo de bambu e que não consegue escapar.

Neste estágio, você não mais está trabalhando a pergunta "Quem sou eu?". Agora a
pergunta é que está trabalhando você. Você simplesmente não sabe onde está, quem é,
por que é. É como se você surfasse as ondas do oceano e fosse pego do lado errado da
onda. Ela simplesmente lhe derruba; tudo que você pode fazer é seguir com ela. Você
apenas segue; apenas continua. Você pode sentir pânico, medo de estar fora de controle.
Mas, devemos voltar, retornar mais uma vez, e mais outra vez à pergunta.
A imagem de um rato num tubo de bambu é a metáfora favorita de Hakuin. Ele às
vezes acrescenta que o rato não pode seguir adiante, não pode recuar, e não pode
permanecer onde está. É o cúmulo de uma situação duplamente difícil. Yasutani Roshi
costumava dizer algo semelhante: é como engolir bolo de arroz quente - você não consegue
engoli-lo, e não pode cuspi-lo, mas é simplesmente desconfortável demais mantê-lo na
boca. Os koans, em última instância, nos levam a este estado. Um mestre disse: "Se você
chamar isto de vara, eu lhe darei trinta varadas. Se você disser que não é uma vara, eu lhe
darei trinta varadas. O que é isto?". Gregory Bateson, que introduziu a expressão 'situação
duplamente difícil', usava este koan para ilustrar o que queria dizer com a expressão.

Neste momento, se seguir em frente sem recuar, você irá sentir que está entrando num mundo de
cristal; o mundo inteiro, interno e externo, tapetes e teto, casas e carros, campos e montanhas, gramado e
árvores, pessoas e animais, utensílios e bens, tudo é como é, mas como ilusões, sonhos, sombras, fumaça.
Quando você abre os olhos com clareza, presença de espírito, e enxerga com certeza, um reino inconcebível
surge, que parece existir, e todavia parece também não existir de uma certa maneira. Esta é chamada a hora
em que a essência do saber torna-se manifesta.
66
se você apenas seguir em frente sem recuar

À medida que você segue em frente, para que a coisa se torne cada vez mais um
esforço conjunto - você e o universo começam a trabalhar juntos. Todo o sofrimento que
anteriormente lhe retinha, todos os obstáculos e obstruções, tornam-se agora grãos para o
moinho. Chega uma época em que é como se você atravessasse uma colina e pudesse fazer
um esforço tremendo sem fazer esforço algum. Esta é a época do "Buda de três metros".

tudo é como é, mas como ilusões, sonhos, sombras, fumaça.

O universo está totalmente desobstruído nesse momento. Você sente como se


pudesse atravessar paredes. O mundo inteiro está suspenso de uma maneira translúcida.

Quando você abre os olhos com clareza, presença de espírito, e enxerga com certeza, um reino
inconcebível surge, que parece existir, e todavia parece também não existir de uma certa maneira.

É um reino inconcebível - porque não temos mais nenhum pensamento a respeito. É


um mundo de clareza, de pureza. Porém, não pensamos: "como é claro, como é puro". É
um reino onde "eu sei" não é mais simplesmente o pano de fundo. Ele tudo permeia. É
como uma grossa tela de algodão. Quando a luz está na frente da tela ela ilumina o padrão
sobre a tela. O padrão fica óbvio. Mas quando a luz está atrás da tela o padrão fica obscuro
e tudo é luz.
Alguém disse que estava "Só e com medo em um mundo que não havia sido feito por
ele". Mas, pelo contrário, conhecendo o mundo eu o transformo no meu mundo. Este
computador é o 'meu' computador, estes livros são 'interessantes', e aquele formulário de
imposto de renda é uma 'chateação'. Certamente o meu mundo não é apenas um mundo
de fatos, é também um mundo de fatos inextricavelmente misturados com um mundo de
valores e significados, um mundo intrinsecamente colorido por minhas preferências,
esperanças, temores, saudades, cobiça e dúvidas. Quando a luz brilha sobre a tela da vida,
eu conheço estes fatos, valores e significados; eles são óbvios demais. Quando essa mesma
luz está por trás da tela, quando o saber não é mais desprezado, então tudo que era claro e
óbvio torna-se como um sonho.
Os mestres Zen asseguram-nos incansavelmente de que "Está bem defronte do seu
nariz!", "Está debaixo de seus pés.", "É como alguém dentro d'água gritando que está com
sede.".
Gurdjieff dizia: "O homem não lembra de si mesmo". O homem [isto é, os seres
humanos.] esquece de sua própria metade da equação. Dizem que: "Quando os
pensamentos do dharma são fracos, os pensamentos do mundo são fortes; quando os
pensamentos do dharma são fortes, os pensamentos do mundo são fracos".

Esta é chamada a hora em que a essência do saber torna-se manifesta.

A luz está por trás da tela; a essência da experiência é o próprio saber. O saber é a
67
essência de tudo, a essência de tudo o que existe.
Mudando de metáfora: é como ver um filme. Tudo o que vemos no filme são apenas
as modificações da luz branca. Durante todo o filme, ignoramos a luz branca. Mesmo assim,
a luz branca é a essência de tudo o que é visto.

O Portal da Inspiração
Se você acha que isto é maravilhoso e extraordinário, e alegremente se apaixona e se apega a isto,
você irá, por fim, cair na caverna dos demônios e jamais verá a natureza real, desperta.

Muito frequentemente temos um insight profundo, um insight que pode ser


suficientemente profundo para mudar a maneira como entendemos o mundo. Então
sentimos que chegamos, plenamente despertos. A maneira como normalmente
entendemos o mundo está alicerçada em fundações tão tênues que um insight profundo
pode revirá-Ia completamente, e trazer uma compreensão drasticamente nova de tudo.
Não é de admirar que haja tantos gurus de estilo próprio no mundo, tantas respostas novas
para velhas perguntas.

Bassui nas suas cartas nos adverte sobre este estágio. Ele diz:67
"[Algumas pessoas pensam] que na prática do Zen atingiu-se um ponto decisivo
quando a pessoa sente um vazio profundo sem percepção interior nem exterior, tendo todo
o corpo se tomado brilhante, transparente, e claro como o céu azul num dia ensolarado.
Este último aparece quando a Verdadeira-Natureza começa a se manifestar, mas não
pode ser chamado de Auto-realização genuína. Os mestres Zen de antigamente chamariam
isso de o "poço profundo da pseudo-emancipação". Aqueles que atingem este estágio,
acreditando não terem mais problemas [no estudo e na prática] do Budismo, comportam-se
de maneira arrogante por falta de sabedoria, envolvem-se sofregamente em debates sobre
religião, deleitando-se em encurralar seus oponentes, mas aborrecendo-se quando são eles
próprios os encurralados".
67 Kapleau, (1966) p.175.

Uma revolução acontece quando eu desperto para a verdade de que o meu mundo
está edificado sobre o saber, que é dependente do saber. Mas a história não termina aqui. É
por isto que Hakuin diz ainda:

A esta altura, se você não se agarrar ternamente à sua condição e incitar o seu espírito ao esforço
sincero, de tempos em tempos irá experienciar coisas tais como esquecer que está sentado quando está
sentado, esquecer que está de pé quando está de pé, esquecer seu próprio corpo, esquecer o mundo à sua
volta.

Isto é Samadhi. Qualquer pessoa que tenha frequentado um retiro ou sesshin Zen
conhecerá estes momentos quando parece que o tempo para, após o qual a pessoa não
sabe se dormiu ou se estava acordada. Mas estes momentos eternos revelam uma
68
realidade mais intensa do que qualquer outra experienciada pela nossa consciência
comum. O senso de que 'eu estou fazendo isto', desaparece levando consigo o abismo, o
vazio, a ferida que assombram o coração da existência.
Ainda assim devemos continuar.

Mas se você continuar sem recuar, a mente cônscia irá subitamente estilhar-se e a natureza desperta irá
aparecer imediatamente.

Em vão cavei em busca de um céu perfeito,


Empilhando uma barreira ao redor.
Então numa noite escura, ao levantar uma pesada
Telha, esmaguei o vácuo da estrutura básica!68
68 Stryk e Ikemoto (1963) p. 4.

Um dos sinais característicos do genuíno despertar é que ele é súbito. Como dissemos
anteriormente, o estilhaçamento da mente discriminativa não significa que ela se quebra
em pedaços, ela já está em pedaços; estilhaçar significa que se descobre que ela é Um todo.
A nossa verdadeira natureza é Una. Como tudo mais que é fundamental, consideramos esta
unidade como fato consumado. Nós a negligenciamos. Embora se mostre como interesse,
desejo, intenção; atenção, embora sustente o mundo nos níveis micro e macroscópico;
embora cicatrize nossas feridas, cure os doentes; embora criemos através dela,
caminhemos, dancemos, andemos de skate, corramos e pulemos por meio dela; e,
finalmente, embora a civilização e a cultura tenham sido impossíveis sem ela, nós a
consideramos como fato consumado e a negligenciamos.
Nós a negligenciamos porque a mente discriminativa fragmenta o todo da mesma
maneira que um espelho estilhaçado distorce a realidade. Cada faceta do espelho reflete o
seu próprio todo. A partir dessa perspectiva, aquilo que gostamos de chamar de
perspectiva de 'consciência', de multiplicidade, é óbvia demais para que a Unidade tenha
qualquer poder verdadeiro. Porém, quando este estilhaçamento é ele próprio estilhaçado,
a Unidade brilha plenamente, e só pode brilhar plenamente como Um, não pode vir em
partes, gradualmente.

isto é chamado "a maneira de conhecer do Grande Espelho Perfeito". 69


69 O círculo nas gravuras do pastoreio do boi.

O Grande espelho é 'saber'. Você olha em volta do aposento e vê o aposento. Você


não vê o ver, o saber. Após você ter despertado, o saber é tudo. Nas palavras da cantiga
hindu: "O Senhor está no meu olho. É por isso que eu O vejo em toda parte".
É por isto que se diz que o mundo é um sonho. Um sonho é uma experiência na qual o
saber é tão importante quanto aquilo que é sabido. Sonhando, sonhamos que o sonho é
real, e ignoramos o saber.
A maneira de saber do Grande Espelho Perfeito é o kensho. Poderia também ser
chamada de despertar completo e perfeito.
Um mestre, ao atingir o kensho, disse:
69
A lua é ainda a mesma velha lua
E as flores não são diferentes,
Agora vejo que sou a coisi-dade (thingness, no inglês.).
De todas as coisas que vejo.

O Buda disse, "Por todo o céu e terra eu sou o único honrado".

Um outro mestre disse a respeito do seu despertar, "Oh!"

Hakuin diz: "este é o primeiro estágio da inspiração; você consegue de imediato


discernir a fonte das oitocentas doutrinas, com seus significados sutis e ilimitados. Quando
a pessoa se transforma, tudo se transforma; quando a pessoa deteriora, tudo deteriora -
nada falta, nenhum princípio é incompleto."
Toda a Tripitaka, a coleção de escrituras budistas, todos os koans, e mondo (perguntas
e respostas), têm sua origem aqui. Perceber o verdadeiro significado de um cisco é
perceber o verdadeiro significado de todo o universo. O sal presente numa gota de água do
mar não é diferente do sal contido em todo o oceano.
Durante a Segunda Guerra Mundial, quando era jovem e vivia na Inglaterra, eu às
vezes ajudava os fazendeiros a colher, guardar e escarolar o milho. Isto foi antes do
advento das colheitadeiras combinadas. Nessa época a colheita era guardada em sacos no
celeiro. Um agente passava posteriormente para comprar a produção. Ele não precisava
examinar o conteúdo de todos os sacos. Bastava pegar um punhado de um dos sacos e
deixá-lo escorrer por entre os dedos.
Como um filho recém-nascido do Buda, o novo Bodhisattva irá revelar o sol da
sabedoria da natureza desperta; mas mesmo assim as nuvens de suas ações prévias ainda
não ter-se-ão dissipado.
Isso é bastante semelhante ao que Chinul, o grande mestre Zen coreano do século XII
disse:70 "Embora ele tenha despertado para o fato de que sua natureza original não difere
da natureza dos Budas, as energias do hábito, que não tiveram início, são extremamente
difíceis de serem subitamente removidas, e assim ele deve continuar a cultivar enquanto
depender deste despertar. Através desta permeação gradual, os seus esforços atingem a
perfeição. Ele constantemente nutre o embrião sagrado, e depois de longo tempo torna-se
um santo. Por isso é chamado de cultivo gradual. Este processo pode ser comparado ao
amadurecimento de uma criança. Desde o dia do seu nascimento, o bebê é dotado de
todos os sentidos exatamente como qualquer outra pessoa, mas a sua força não está ainda
plenamente desenvolvida. Somente após muitos meses e anos é que ele irá finalmente
tornar-se adulto".
70 Buswell, Robert E. Jr (tradutor) (1983) The Collected Works of Chin. University of Hawaii Press:
Honolulu. pp.144/5.
O nosso problema é que dizemos: "eu sou isto". "Eu' sou" é a verdade; "eu sou isto,
não aquilo" é o problema. Uma freira disse: "Eu não posso arrancar a erva daninha porque
se o fizer arrancarei a flor". A flor é 'eu sou', e a erva daninha é 'isto não aquilo'. Com o
kensho, abrimos mão da erva daninha, a 'coisidade' da coisa. Dizer: “ ‘Eu sou' é a verdade"
70
não é muito correto. Seria melhor dizer que 'eu sou' é o portal para a verdade.
Originalmente somos Buda, Um. Todavia, devido à ignorância, somos separados de nós
mesmos. Porque somos Um, e não dois, sofremos. A palavra sânscrita para sofrimento,
como mencionei na introdução, é duhkha, dualidade. Através do sofrimento, a unidade
afirma-se como 'a jusante' da separação inicial. Embora unidade ainda seja unidade, ela
está agora colorida pela dualidade. A pureza original é coberta por Eu-Isto, isso é, 'eu-o
mundo', 'eu-ele' (ou ela), ou 'eu-as emoções'. 'Eu' é o emissário da pureza original; é a flor.
A erva daninha é o que é identificado com aquilo: o mundo, ele ou ela, as emoções, e toda a
miríade de outras identificações. A maioria de nós está identificada com nossos corpos,
alguns estão identificados com as suas posses, outros com os seus empregos, outros com a
sua imagem, e outros ainda estão identificados com seu sofrimento.
Via de regra, a palavra 'eu' é usada pela primeira vez por uma criança por volta dos
dois anos de idade, a idade que muitos pais conhecem como o terrível dois. Nesta idade, a
criança não apenas usa a palavra 'eu' como também faz uso da palavra 'não'. Eu vi um
exemplo do terrível dois após o meu neto fazer o seu segundo aniversário. De vez em
quando ele gritava: "Não" tão alto que os céus podiam ouvi-lo. Lembro-me que o levamos
para passear certa vez quando visitávamos meu filho, um piloto de caça que vivia com sua
família na Alemanha. O menininho decidiu levar o seu carrinho de mão. Depois de algum
tempo, por alguma razão, ele decidiu que estava cansado do carrinho, e o deixou de lado e
foi embora. Bem, não podíamos deixar o carrinho lá, por isso eu lhe sugeri que o pegasse.
"Não.", ele respondeu. Eu disse: "Você irá perdê-lo se deixá-lo aí. Pegue-o". "Não!" Eu voltei
e peguei eu mesmo o carrinho. Ele olhou para mim, apontando e sacudindo um dedinho
peremptório na minha direção, enquanto gritava"Não!!". Todos os vizinhos apareceram,
cabeças surgiram nas janelas, as portas se abriram - o que era aquilo? O meu neto estava
estabelecendo algo estável em um mundo terrivelmente instável. Ele tinha que obrigar este
mundo a fazer o que ele quisesse. E ele o obrigou com a sua tremenda declaração - o rosto
avermelhado, as veias do pescoço e da testa esticadas, olhos faiscantes, dedo trêmulo,
dizendo "Não" - agora imagine você juntando tudo isto para fazer uma declaração; e
fazendo-a várias vezes ao dia.
Criamos uma barreira à nossa volta com este "Não!" E o fazemos, mais
frequentemente, quando nos sentimos ameaçados, e agimos com medo, raiva, ira e ódio. É
por isso que a barreira é feita de aço - aço que é constantemente temperado pelos nossos
conflitos frequentes e nossas guerras com o mundo, com os outros e conosco mesmos. Nós
deveremos chegar ao despertar, mas o aço à nossa volta permanece forte. Ele só pode ser
derretido e dissolvido após ter repetidamente passado pela fornalha. É por esta razão que
um simples despertar não é o bastante. Ramana Maharshi passou seis longos e árduos anos
derretendo suas próprias barreiras após o seu despertar inicial aos 17 anos, e ele era uma
alma muito tranquila.
Depois da Segunda Guerra Mundial, quando era estudante, consegui um emprego que
consistia em destruir os abrigos anti-aéreos que haviam sido usados para proteção contra
as bombas alemãs. Durante a guerra, esses abrigos foram preciosismos; depois da guerra,
não eram mais necessários. Mas destruí-los deu muito trabalho.

Porque o poder de alguém no caminho é fraco e sua percepção da realidade não é perfeitamente clara,
71
a maneira de saber do Grande Espelho é associada à direção leste e é chamada "o Portal de Inspiração". É
como o sol surgindo no leste - embora as montanhas, os rios, e a terra recebam os raios do sol, eles não
estão ainda aquecidos pela sua luz. Muito embora você possa ter visto o caminho com clareza, se o seu
poder de brilhar não for forte o bastante, você pode ser bloqueado pelas aflições inerentes e crônicas, e
ainda não será livre e independente em situações agradáveis ou adversas. É como alguém que tem estado a
procurar o boi e que pode um dia desses perceber o verdadeiro significado do boi, mas se não segurar
firmemente o cabresto para refreá-lo, mais cedo ou mais tarde o boi irá fugir.

Já utilizamos o boi como uma maneira de falar a respeito da verdadeira natureza. O


boi era tão familiar aos camponeses japoneses do século XVII quanto o automóvel o é para
nós hoje em dia. Era um animal de carga e o camponês dependia dele, assim como
dependemos da máquina de combustão interna.
Na segunda gravura da série do pastoreio do boi mostra o menininho seguindo as
pegadas do boi. É como quando encontramos o caminho e o instrutor. Ouvimos o que ele
ou ela diz, e ouvimos, de vez em quando, a campainha da verdade. Algo real está
chamando. Avistamos as pegadas do Boi. A lassidão e o desespero dão passagem a um
novo tipo de energia, um deleite. O Boi é real, mas não pode ainda ser encontrado. Para
encontrá-lo, tudo o que se precisa fazer é continuar. Como diz o verso seguinte:

Próximo à árvore murcha em frente ao penhasco.


Muitos caminhos errados
Fazem com que ele se perca
Preso, como um pássaro no ninho cheio de
capim, para lá e para cá ele se volta na pequena caverna.
Saberá ele que está perdido? Exatamente no momento
em que os seus pés, buscando, seguem as pegadas
Ele perde o boi e o deixa escapar.

Mas, então, um dia, ele vê o boi.

Subitamente, a voz clara da toutinegra dos arbustos soa do alto das árvores.
Um sol cálido, uma brisa suave, os salgueiros verdes próximo ao rio.
Não mais pode o boi esconder-se
Como é bonita a cabeça com os chifres apontados para cima
Como se pode descrevê-lo?
De ponta-cabeça o boiadeiro ruidosamente impele o boi
Ele não mais precisa seguir o mugido.
O boi não é azul nem branco.
O boiadeiro acena para si mesmo, sorrindo sossegadamente.
Nem pincel nem lápis-de-cor conseguiriam pintar a maravilhosa paisagem.

Este momento tem sido descrito como "uma árvore sem raízes, uma terra onde não há
nem luz nem sombra, um vale de montanhas onde o grito não ecoa".

72
Uma vez que você tenha visto o boi, faça do pastoreio a sua única preocupação. Sem esta prática,
após o despertar, muitas pessoas, que viram a realidade, perdem o barco. Portanto, para alcançar o saber
da igualdade, não se demore no saber do Grande Espelho Perfeito. Siga em frente, concentre-se na prática
após o despertar.

Deixe-me repetir, ver é ver tudo. Perceber o verdadeiro significado de um cisco; é


perceber o verdadeiro significado do universo. Apesar disso, como disse Hakuin, para trazer
à plena percepção o que se viu, este último é trabalho necessário. Você deixou para trás sua
'fixidez mental', as estruturas da mente, e a sua visão de mundo. Você deu o salto do jarro
para a argila.
No entanto, você não deve demorar-se aí ou você não será capaz de se movimentar
neste despertar.
O koan de número 25 do Hekiganroku diz:

O Ermitão do Pico Flor de Lótus levantou o bastão e disse para a assembleia:


"Quando os antigos chegaram aqui, por que eles não concordaram em ficar?"
Não obtendo resposta, ele respondeu por eles,
"Porque não tem utilidade no caminho da vida".
Novamente ele perguntou: "Afinal de contas o que é que vocês farão com isto?"

Ele declamou um verso que dizia:

Com meu bastão atravessado no ombro


Não presto atenção aos outros
Penetro direto os picos inumeráveis.

O Portal da Prática
Primeiramente, com a percepção íntima, que você teve do próprio saber, ilumine todos os mundos
com a visão radiante.

Isso é penetrar as miríades de picos. Escalar o pico da montanha é uma analogia para
alcançar o despertar. A pessoa sobe a montanha sozinha, mas desce a montanha pelos
outros. O Ermitão está dizendo para não se preocupar com um despertar; há inúmeros
picos; não fique sentado no topo de um só. Um outro mestre disse: "Pico sobre pico de
montanhas cobertas de neve". Não importa quão fraco ou superficial possa ser nosso
despertar inicial, trabalhamos com ele, apesar de tudo. No livro To Know Yourself71eu fiz uso
da analogia de alguém tentando acender uma fogueira usando folhas úmidas e possuindo
apenas um palito de fósforo. Você pega o fósforo e acende apenas umas poucas folhas.
Você cuida do fogo e depois junta umas poucas folhas mais, cuida da chama novamente e
então junta uns poucos gravetos. Depois você junta uns gravetos maiores, e depois alguns
gravetos maiores ainda. Dessa maneira, você constrói uma fogueira até que consiga juntar
um pequeno galho, depois uns dois galhos pequenos. Agora você está juntando alguns
73
troncos, e, quando menos se espera, você tocou fogo na floresta inteira. Apesar disso, se
começar tentando queimar a floresta, você simplesmente irá apagar o pequenino palito de
fósforo. Devemos sempre começar de onde estamos; isto é tão verdadeiro após o
despertar quanto antes. Não devemos impor a nós mesmos imagens ou ideias de como
devemos ser.
71 Low, Albert (1997) To Know Yourself. Charles E. Tuttle: Boston. p. 105.
Você começa onde está. Você pega a sua pergunta como ela é. Se for uma pergunta
débil, então trabalhe com ela como uma pergunta débil, cuide dela, alimente-a. É como
acalentar uma pequenina chama que você sopra calmamente. Uma rajada de vento servirá
apenas para apagá-la. Se você permanecer bem próximo a ela, se não se afastar, se tratá-la
com cuidado, ela irá tornar-se uma pergunta mais significativa. Agora você pode começar a
pôr alguma pressão sobre ela, pode começar a confiar nela um pouco. Ela então se torna
uma pergunta intensa, e você pode começar a pressioná-la. E assim vai. O tempo inteiro a
pergunta queima de dentro para fora; não é imposta de fora para dentro.

Quando você vir algo, brilhe através dessa coisa; quando ouvir, brilhe através do que está ouvindo; brilhe
através dos cinco skandhas, brilhe através dos seis campos da percepção sensorial - à frente, atrás, à direita, e à
esquerda, através das sete calamidades e dos oito desastres, torne-se uno com a visão radiante de todo o corpo.
Compreenda o verdadeiro significado de todas as coisas, internas e externas, brilhe através delas. Quando este
trabalho se tiver solidificado, então a percepção da realidade será perfeitamente clara, tal como olhar para a
palma da mão.
A esta altura, enquanto aumenta o uso desta visão e deste saber claros, se você penetrar o estado
desperto, brilhe através do despertar; se se envolver em circunstâncias agradáveis, brilhe através das
circunstâncias agradáveis, se cair em situações adversas, brilhe através das situações adversas; quando a
ganância ou o desejo surgem, brilhe através da ganância ou do desejo; quando o ódio ou ira surgem, brilhe
através do ódio ou da ira; quando agir por ignorância, brilhe através da ignorância. Quando os três venenos do
ódio, da ganância e da ignorância deixam de existir, e a mente for pura, brilhe através dessa mente pura.

Quando vai ao cinema, se o filme é bom, você fica completamente envolvido por ele,
absorvido por ele; você se torna um com ele de uma maneira sonolenta, não-perceptiva.
Você se identifica com as personagens - você ama o herói e a heroína e odeia o vilão.
Quando o herói e a heroína se casam você fica feliz, e quando o herói é ferido você fica
triste. A trama vai para frente para trás e você fica bastante envolvido nela, você está lá,
você é parte dela. Esta é a arte do contador de histórias, atrair você para dentro da história.
Agora suponhamos que alguém pegue uma lanterna e a acenda por trás da tela. Isto
costumava acontecer quando eu era jovem e ia assistir aos filmes de Charlie Chaplin no
salão da igreja. As telas eram frequentemente o lençol de alguém pendurado numa
moldura bem no meio do salão. Eu ficava completamente envolvido com Charlie Chaplin.
Então, subitamente, alguém ia buscar alguma coisa atrás da tela com uma lanterna acesa.
Isso estragava o filme. Eu não conseguia mais me ver envolvido nele. O que antes era real e
opaco, aparecia como algo transparente e ilusório, quando a luz atravessava.
Aqui Hakuin está dizendo que, após o despertar, algo semelhante a isto é necessário. A
pessoa torna a situação inofensiva, reduz seu poder, reduz sua força, brilhando através
dela. A pessoa faz isto ao ver que tudo é um todo sem descontinuidade. Em vez de buscar a
74
continuidade no interior do fenômeno, a pessoa vê os fenômenos como uma unidade. Todo
o vai-e-vem da vida, a ambição por unidade, por ser um, único, notável, é reduzida. Não cai
simplesmente da noite para o dia como uma perna ou um braço mortos. Leva muito tempo
para a pessoa livrar-se, mas, certamente, é desativado aos poucos.
É semelhante a quando se tem febre alta; chega uma hora em que a febre se vai, e,
embora você ainda tenha o corpo todo dolorido e a cabeça ainda doa, bem lá no fundo tem
início um bem-estar sem que você nada tenha feito para que acontecesse. A pessoa sabe
que está melhorando.

Quando você vir algo, brilhe através dessa coisa.

Ao brilhar, a pessoa vê que a qualidade dos fenômenos assemelha-se a um sonho, vê


que a coisa é um 'sonho'; ou, alternativamente, vê que estamos todos sempre em Samadhi.
A luz está por trás da tela.
O koan de número 42 do Mumonkan fala de uma mulher em Samadhi sentada
próxima ao Buda. Lamentavelmente naqueles dias, na maioria dos casos, os budistas
acreditavam que as mulheres eram incapazes de seguir o Caminho do Buda. Não foi este o
caso entre os Zen budistas, e muitas histórias Zen falam de mulheres superando um ou
outro dos mestres. Manjusri protesta com o Buda perguntando por que a mulher (que
representa a mente ignorante) pode sentar-se próxima ao Buda. O Buda pede a Manjusri
para tirar a mulher do Samadhi e perguntar a ela diretamente. Manjusri não conseguiu
fazê-lo. O Buda então chama Momyo, que vivia a milhares de quilômetros de distância, e
pede para ele tirar a mulher do Samadhi.
Estamos todos em Samadhi. O Samadhi sustenta o mundo. Nosso Samadhi é o espelho
no qual o mundo está suspenso. Agora, enquanto estamos sentados neste aposento,
estamos em Samadhi. Não conseguimos 'sair' do Samadhi. Este é o tema deste koan.
Manjusri, a própria essência da sabedoria - no koan está dito que ele foi o instrutor dos
sete lendários Budas - não conseguiu tirar a mulher do Samadhi. Foi preciso que Momyo, o
intelecto, o fizesse. O intelecto, com seus conceitos e lógica, oculta nossa verdadeira
natureza e nos dá a aparência de viver em um mundo que está separado de nós. Parecemos
não mais estar em Samadhi. 'Brilhar' é penetrar a qualidade do Samadhi, é ir além da
'coisidade' das coisas. Quando examinamos o Dharmakaya, vemos que "forma é
vacuidade", e agora vemos que "vacuidade é forma".

ao entrar em aflições, brilhe através das aflições.

Quando você é atirado em um tumulto, quando todos começam a correr em círculos e


você é o centro do círculo, então mesmo nesse momento você deve, de algum modo, lutar
para trazer o seu despertar para o foco, e brilhar através daquele tumulto. Primeiramente
irá parecer como se estivesse tentando brilhar através da lama. A pessoa tenta
repetidamente e tudo que consegue é a amargura, a dor e a frustração da situação. Apesar
disso, a pessoa deve continuar e, finalmente, até mesmo a qualidade vagarosa da vida
rende-se a este 'brilhar'. A qualidade vagarosa, também, é parte do sonho; também não
tem natureza própria.
75
Pregamos uma peça em nós mesmos ao vermos a felicidade como algo passageiro,
sem substância, e ao vermos nossas dores e tristezas como possuidoras de substância e
permanência. De uma maneira muito sutil, começamos a investir cada vez mais na nossa
dor e sofrimento. Chegamos a apreciar nosso sofrimento como uma âncora. Eu me lembro
de aconselhar uma mulher que, um dia, subitamente virou-se para mim e disse: "Sabe,
trabalhar para me livrar da neurose dá sentido à minha vida. Eu não posso desistir da minha
neurose. Se eu o fizer, a minha vida não terá sentido". É por isso que encontramos pessoas
para quem o sofrimento é uma forma de arte - para elas, o último de todos os refúgios é o
seu sofrimento. Brilhar através do sofrimento é muito mais difícil do que brilhar através da
felicidade, não apenas porque a felicidade é brilhante por sua própria natureza, mas porque
nos parece que estamos desistindo do nosso último refúgio.
Este é um dos problemas de se enfatizar a verdade de que o sofrimento é o caminho.
Isso pode reforçar a crença das pessoas de que o sofrimento é, de alguma maneira,
fundamentalmente real em si mesmo, e que é uma rocha sobre a qual se pode edificar.
Muito mais pessoas edificam sobre a miséria do que sobre a felicidade. A Igreja pode estar
edificada sobre Pedro, a rocha, mas Pedro posta-se sobre o sofrimento de Cristo. Somos
encorajados a entrar vicariamente neste sofrimento. Gurdjieff, o grande instrutor russo,
disse que a última coisa para que as pessoas estão preparadas é abrir mão do sofrimento.
Muitas pessoas buscam não o livrar-se do sofrimento, mas a oportunidade de falar a
respeito, de arejá-lo, de exibi-lo. Algumas pessoas fazem até exibições de arte; outras
fazem exibições de sofrimento. Isto dá sentido a suas vidas.

Hakuin diz: "quando a ganância ou o desejo surge, brilhe através da ganância ou do


desejo; quando o ódio ou a ira surge, brilhe através do ódio ou da ira".

As pessoas dizem: "Mas espere um momento, este homem é desperto, esta mulher é
desperta - como eles podem ter ira e ódio?" E porque ainda há trabalho a ser feito. A ira e o
ódio são os reforços de aço no concreto do nosso ego. Eles nos permitem suportar os
choques da morte, do terror, da opressão, da tirania. Agora nós temos que derretê-los. A
coisa funciona assim, mesmo após um profundo despertar. Às vezes a ira e a raiva estão tão
profundamente arraigadas que algumas pessoas nem sabem que possuem - então algo
surge, uma nova situação tem de ser enfrentada, algum débito cármico deve ser
novamente pago, e elas explodem.

Todas as vezes, em todos os lugares, sejam desejos, sentidos, ganho, perda, certo, errado, visões do
Buda ou do Dharma, em todas as coisas brilhe através delas com todo o seu corpo.

Em vez de usar a expressão 'brilhar', poder-se-ia usar a expressão, 'sorrir'.


Após os recém-chegados assistirem a uma oficina para iniciantes no Centro Zen de
Montreal, nós os convidamos a participar de um curso para iniciantes. Eles recebem mais
instruções, têm vários períodos curtos de meditação, e as suas perguntas são respondidas
até onde nos é possível respondê-las. Colocamos ênfase na importância da prática na vida
diária. Ao final de cada noite de curso, damos aos participantes um exercício simples para
encorajá-los a permanecerem alertas e presentes na semana seguinte. O exercício é como
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um despertador para despertá-los de seus sonhos de dualidade durante o dia. Um dos
exercícios é baseado no koan de número 6 do Mumonkan, 'Buda segura uma flor com a
mão levantada'. Parte do koan diz: "Há muito tempo, quando o Buda estava no Pico do
Urubu para dar uma palestra, ele segurou uma flor com a mão levantada diante da
assembleia. Todos permaneceram em silêncio, exceto o Venerável Kashyapa, que sorriu".
Eu converso com o grupo acerca de três diferentes tipos de sorrisos. Vemos o primeiro
tipo no aeroporto quando alguém vê um ente querido atravessando o portão de
desembarque. Um grande sorriso surge no rosto de ambos. Eles então se abraçam: o
sorriso já é um abraço. Vemos o segundo tipo de sorriso no rosto de um estudante. A turma
recebeu um problema para resolver. Cada um dos estudantes senta-se com a testa franzida
tentando resolver o problema. Subitamente um deles o consegue. Um enorme sorriso
aparece no seu rosto. Estes dois sorrisos têm algo em comum. O primeiro sorriso é um
abraço, tornando-se um com o outro. Uma criança que ganha um presente de Natal irá
sorrir dessa maneira enquanto abraça seu presente. O segundo também está se tornando
um, desta vez através da compreensão. Compreensão significa segurar junto (com, junto;
preensão, segurar). Um terceiro tipo de sorriso é ainda possível. Este é o sorriso de
Mahakyashapa. Eu pergunto ao grupo: "O que é este sorriso?".
Existe uma quantidade de expressões nas quais o sorriso e a luz que brilha vêm juntos.
Dizemos, por exemplo, 'o rosto dela iluminou-se com um sorriso', ou 'ela tem um sorriso
claro', ou 'ela tem um sorriso que brilha', 'o rosto dela estava brilhando', 'o rosto dela
estava radiante', significando que ela estava sorrindo. Já mostramos a conexão entre a luz e
a nossa verdadeira natureza. No Antigo Testamento, está dito que, quando Moisés desceu a
montanha após seu encontro com Jeová, o seu rosto estava brilhando.
O sorriso, se for genuíno, é uma abertura para a totalidade, a santidade, a saúde -
estas três palavras têm uma etimologia comum (na língua inglesa). Diversas pesquisas têm
mostrado a conexão entre o riso e a saúde. Possivelmente, a mais famosa dessas pesquisas
é anedótica, mas é interessante. Norman Cousins, que era editor de uma revista nacional,
foi diagnosticado com uma doença incurável. Ele juntou alguns filmes, livros e desenhos
animados e tratou de si mesmo com uns dois meses de riso. A sua doença foi-se, e ele ficou
curado.
Moisés encontrou Jeová. Eu poderia igualmente ter dito que ele encontrou o sagrado,
ou o todo, o Um. Era o Um que brilhava através de sua face da mesma maneira que brilha
através da face radiante de uma criança no Natal. Brilhar 'através', sorrir 'através', é
permitir que a unidade se manifeste.
Três diferentes tipos de sorrisos são possíveis. O sorriso provocado pela unidade com
o que é exterior, o sorriso provocado pela unidade interior, e o sorriso de Mahakyashapa.
Estes sorrisos podem ser vistos em ícones e gravuras de Bodhisativas, particularmente do
Bodhisattva Kannon. Este sorriso brilha.
Infelizmente, tem-se abusado do sorriso, como tudo de o mais em nossa sociedade.
Vendedores de carros usados, comerciais de Pepsodent, na verdade todos os comerciais
lúgubres que nos agridem na televisão, trazem retratos de pessoas 'sorrindo'. Nos
comerciais, somente as pessoas que usam produtos dos concorrentes é que trazem um
olhar carrancudo. O botãozinho amarelo com dois pontinhos e uma linha curva proliferou
nos anos sessenta e trivializou o sorriso.
77
Não é necessário ser desperto para brilhar. É possível manter um meio-sorriso no
rosto. As outras pessoas irão imediatamente reconhecer esse sorriso, mas não é para os
outros que você sorri. Enquanto espera na fila do banco, ou no balcão do supermercado, ou
preso no trânsito, se puder deixar um meio sorriso aparecer nos lábios, um pouco de
tensão e irritação irão desaparecer, facilitando a manutenção da calma.
É possível também criar o sorriso de ansiedade e o sorriso de depressão. Quando
sofremos, sentimos dois tipos de dores: a dor que vem da situação e a dor que vem do
'estou com dor!' Por exemplo, a companhia para a qual você trabalha pode estar
dispensando vários de seus empregados. A isto se dá o nome de redução de quadro. Você
se pergunta: "Será que eu vou nessa?". Esta inquirição é natural. Você pode analisar os prós
e os contras e pensar o problema seriamente. Depois você se preocupa: como irei pagar a
hipoteca? o que os outros irão pensar? serei capaz de conseguir outro emprego?... e assim
por diante. Estes pensamentos circulam sem jamais serem de fato formulados como
perguntas verdadeiras. O primeiro tipo de pensamento a respeito do problema é doloroso.
O segundo também o é. Nada se pode fazer a respeito do primeiro tipo de dor. Ser
demitido é doloroso. Por outro lado, o segundo tipo de dor, que frequentemente também
inclui "Por que eu?" é a dor do tipo "estou com dor", e pode ser reduzida.
A maioria das pessoas tenta suprimir os dois tipos de dor, ou então os confunde,
criando um ciclo vicioso entre ambos. É como segurar o microfone contra o alto-falante.
Permitindo que a dor sorria, o segundo tipo de dor é reduzido, tornando toda a situação
mais fácil de suportar. Isto é brilhar.

Se não recuar, o carma criado por suas ações anteriores irá dissolver-se naturalmente. Você será
liberado de uma maneira impossível de ser imaginada.

Se continuamos brilhando desta maneira, uma mudança sutil ocorre em nossa prática.
Brilhar não é mais intencional, não é mais 'uma prática'. Um mestre respondeu ao koan
"como você dá um passo de cima de um poste de trinta metros de altura?" dizendo: "em
cima do poste de trinta metros uma vaca de ferro dá à luz um bezerro". É assim que é:
natural. O ferro frio, duro, naturalmente dá à luz a vida cálida do sorriso. Isto não é
contraditório. Uma vaca de ferro parindo é a maneira mais simples de descrever o sorrir
'através'. A essência e a aparência fundem-se perfeitamente. O que era um beco sem saída
que bloqueava e entravava, torna-se agora uma pradaria aberta na qual pode-se correr e
saltar. A árvore de ferro floresce e a muralha que certa vez tinha trezentos metros de
espessura é agora apenas uma trilha iluminada pelo sol. Entramos no reino do indescritível.
Vê-se que o mundo inteiro é feito apenas de saber/ser, o mundo inteiro é Bodhi, o mundo
inteiro é luz.
Portal, portal, paraportal, parasamportal, bodhi, svaha,
foi-se, foi-se, foi-se para além, foi-se para muito além, apenas bodhi, apenas saber.
Alegre-se!

A maneira como você age estará em conformidade com a maneira como você compreende. Anfitrião
e hóspede irão fundir-se completamente. Corpo e mente não mais serão dois, e aquilo que você é e aquilo
que você parece ser não obstruirão um ao outro. Atingir o estado da verdadeira equanimidade é chamado
78
conhecer a igualdade como a natureza da realidade.
Isso parece muito semelhante ao Samadhi que pode ser atingido através da prática,
mas que é efervescente. Embora a maneira como as coisas são vistas neste tipo de Samadhi
e a maneira como são vistas através do saber a igualdade sejam as mesmas em princípio,
na realidade elas são muito diferentes. O que é chamado de 'saber a igualdade como a
natureza da realidade' refere-se à liberdade que ressurge constantemente refinando o
status da pessoa. Por outro lado, Hakuin diz que, após o primeiro tipo de Samadhi, o
Samadhi que se atinge através da prática, quando se está preso a situações causadas pelos
padrões de hábitos e conflitos, a pessoa não terá desenvolvido o insight ou a força para ser
capaz de lidar com eles. Portanto, fica-se preso a essas situações e não mais se é livre. Esta
prática refinada após o despertar é que é chamada de: saber a igualdade é da natureza da
realidade.

Esta maneira de saber está associada à direção sul e é chamada "portal da prática". É como quando o sol
está no sul, sua luz é plena e traz claridade a todos os lugares ocultos nos vales profundos, derretendo até
mesmo o gelo mais sólido, secando o chão, mesmo que ainda esteja molhado. Embora o Bodhisattva tenha o
olho para ver a realidade, (kensho) a não ser que atravesse este portal da prática, ele não consegue afastar as
obstruções resultantes das aflições e ações, e, portanto, não consegue atingir o estado de liberação e
liberdade - que pena seria, que perda.

Neste trecho, Hakuin está dizendo que, uma vez que a pessoa seja capaz de trabalhar
com o brilho 'através', o calor do sol é capaz de chegar até locais escuros. O sol começa a
descongelar, desbloquear, e amaciar. Uma outra analogia seria a seguinte. Eu costumava
fazer pinturas a óleo, cuja base era terebintina. Às vezes, inadvertidamente, eu largava o
pincel sem limpá-lo. Então, depois de algum tempo, eu queria pintar um pouco mais e
descobria que o pincel estava duro feito pedra. Eu pegava um jarro de terebintina limpa e
colocava o pincel dentro. Pouco a pouco a terebintina penetrava o pincel através da tinta.
Eu poderia, certamente, ter batido no pincel com um martelo e teria por fim
conseguido uns poucos pelos, um tufo, para ser capaz de usá-lo novamente para pintar.
Mas eu o deixava na terebintina, embora fosse levar um pouco mais de tempo. A
terebintina dissolvia a tinta e, gradualmente, os pelos separavam-se e tornavam-se
maleáveis e macios. Não acontecia de repente, mas acontecia. Isto porque a base da tinta
era terebintina.
O sorriso de Mahakyashapa, ou melhor, a unidade de saber que brilha através, provê a
'terebintina'. Se a base de tudo é o saber, se a substância de tudo é o saber, permitindo-se
que o saber penetre a crosta das reações habituais, dos bloqueios e becos-sem-saída
mentais, eles irão eventualmente dissolver-se em saber.

O Portal do Despertar
Após ter atingido o reino não-dual da igualdade da realidade, é essencial então que compreenda-se com
clareza o profundo princípio da diferenciação dos seres despertos, após o qual devem-se dominar os métodos
para auxiliar os seres sencientes. De outro modo, muito embora já tendo desenvolvido e atingido o saber
espontâneo, você irá, apesar de tudo, permanecer no ninho do Hinayana e será incapaz de realizar o saber
79
total, desobstruído. Você não terá liberdade para mudar em nenhuma das maneiras exigidas para auxiliar os
seres sencientes, para despertar a si mesmo e aos outros, e para alcançar o último Grande Despertar, onde
percepção e ação são totalmente perfeitas.

Nós subimos a montanha por nós mesmos; descemos a montanha pelos outros.
Perceber o verdadeiro significado do Dharmakaya e do Sambhogakaya, pesquisar a
vacuidade e a unidade de tudo, é subir a montanha; isto fazemos por nós mesmos. Se
subimos a montanha para lá permanecer, se trabalhamos simplesmente para fugir da roda
de nascimentos e mortes, então permanecemos no ninho dos hinayanistas. Devemos
descer a montanha. Agora, devemos compreender de maneira tal que possamos fazer os
outros compreenderem. Ademais, devemos ser capazes de agir de maneira espontânea,
criativa, de modo que toda nossa vida seja um serviço para os outros. Assim, não podemos
evitar servir aos outros. Esta espontaneidade, esta liberdade, está em jogo pelos outros. A
esta altura, na exposição de Hakuin, em vista da longa estrada que ele mapeou, começamos
a nos compadecer com a noção de que devemos viver muitas vidas para atingir o
verdadeiro Budado. Não obstante, nos comprometemos a fazer este trabalho, e ele deve
ser feito, não importa quão inadequada ou imperfeitamente pareçamos estar fazendo-o.
Deixe-me dizer algo a respeito da espontaneidade. Alguns costumam pensar que
espontaneidade é ter o tempo mínimo de reação - você diz algo e elas respondem antes
mesmo de as palavras terem deixado sua boca. Explodem como fogos de artifício. Porém, o
que está em questão aqui não é um pavio curto. A espontaneidade ocorre após nos
tornarmos tão completamente integrados que o eu e o outro não mais existem. A vida é
apenas um fluxo contínuo. Isto surge após muito trabalho, muito trabalho consciente e
sofrimento intencional. Se tentarmos forçar a espontaneidade ou fingirmos que a
possuímos, estaremos brincando de Zen, o que irá inibir o desabrochar autêntico.
Um monge perguntou a Joshu: "Eu sou novo no mosteiro, ensine-me, por favor". Joshu
perguntou: "Já tomou o café da manhã?". "Sim", respondeu o monge. "Então vá lavar as
vasilhas".

É por isso que você deve desenvolver uma atitude de profunda compaixão e comprometimento para
auxiliar todos os seres sencientes em toda parte.

Esta é uma outra afirmação estranha e as pessoas perguntam: "O despertar não traz
consigo a compaixão?". A resposta é sim e não. Traz, mas como compreensão, que também
deve ser nutrida. Assim como temos que realmente nos comprometer a 'brilhar', devemos
também nos comprometer com a compaixão. 'Brilhar significa que devemos estar prontos
para permanecer no meio da fornalha enquanto o fogo arde e queima à nossa volta sem
tentarmos fugir, sem tentarmos nos mover. Enquanto queimamos, percebemos o
verdadeiro significado da combustão, e isto é muito doloroso. É necessário um grande
comprometimento. De maneira semelhante, devemos assumir um intenso compromisso
com a compaixão, desejar tornar-nos um com os outros. A não ser que possamos fazer isto,
permanecemos no topo da montanha e jamais seremos inteiramente livres. Somos sempre
ligeiramente superiores, sempre protegendo nosso despertar. Devemos repetidamente
reafirmar esse comprometimento para com a compaixão. Por isso é tão importante cantar
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os quatro votos do Bodhisattva:

Todos os seres inumeráveis, eu juro libertar,


As cegas paixões sem fim, eu juro extirpar,
Os portais do Dharma desmedidamente eu juro penetrar,
O Grande Caminho do Buda, eu juro atingir.

Hakuin nos deixou o que parece ser uma agenda para muitas vidas, e a tarefa é
imensa. Todavia, quando você olha para a magnificência do panorama que ele nos traz - a
liberdade e a compaixão à disposição de cada um de nós - quando você compreende que,
como seres humanos, somos sementes em potencial que podem tornar-se árvores enormes
nas quais todos os tipos de seres podem encontrar abrigo, então você espera que o preço
seja alto. O trabalho que ele decide assumir é de proporções cósmicas. Uma vez que
tenhamos penetrado o Caminho, já transcendemos o que significa ser simplesmente
humano. No segundo koan do Mumonkan, o koan sobre a importância do carma, o monge
diz: "Eu não sou um ser humano". Embora totalmente baseada no humano, a nossa prática
transcende essa condição humana. Não importa se seguimos o caminho sozinhos, com uma
outra pessoa, com algumas pessoas, ou com centenas de outras pessoas. Uma vez que
tenhamos penetrado o Caminho do Buda, tudo é provido - uma vez tenhamos penetrado o
caminho da verdade, da verdadeira compaixão, não importa quão distantes possamos estar
dessa realização e manifestação, tudo é provido. Não mais precisamos perguntar quanto
tempo ou quão pouco tempo; o nosso trabalho não é desta ordem. Quando estamos
buscando, procurando compreender a pergunta "Quem sou eu?", quando estamos lutando
para manter a respiração, seguir a respiração, ser um com a respiração; quando estamos
lutando para compreender os koans, é como o crescimento de uma árvore - a árvore está
crescendo, espalhando-se, desenvolvendo-se. As raízes aprofundam-se no ensinamento. A
seiva da árvore é a própria fé, e a fé está disponível em abundância; não há falta do que é
necessário para nutrir o crescimento desta árvore.

Para começar, devem-se estudar dia e noite os ensinamentos verbais do Buda e dos patriarcas para
penetrar os princípios das coisas em sua infinita variedade. Certifique-se e analise uma a uma, as
profundezas das cinco casas e das sete escolas do Zen além das extraordinárias doutrinas dos oito
ensinamentos dados nos cinco períodos em que o Buda ensinou.

Originalmente, cinco casas Zen vieram a existir. No Zen Dust consta que elas são:
Hinayana, Quase-Hinayana, Mahayana Completa, Ensinamento Súbito, e Veiculo Uno, ou
Hus-yen. Outros, por exemplo Charles Luk, diz que as cinco casas são Ikyo Zen, Rinzsi Zen,
Soto Zen, Ummon Zen, e Hogen Zen. Mas não precisamos nos preocupar muito com essas
classificações. Somente duas delas permanecem como escolas viáveis, Soto e Rinzai. No
Japão, a distinção entre estas duas escolas é levada muito a sério. Yasutani Roshi, o
primeiro mestre com quem estudei, era considerado traidor por ter deixado a seita Soto.
Com efeito, um instrutor japonês que conheci disse que ele era louco!
A principal distinção entre as duas escolas é que Soto diz que não precisamos esforçar-
nos para chegar ao despertar. Já somos totais e completos, e todo esforço irá simplesmente
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afastar-nos da verdade. A principal prática Soto é shikantaza, que quer dizer 'apenas
sentado'. Sentar no zazen já é despertar. Alguns instrutores Soto costumam rejeitar o
ensinamento Rinzai dizendo que este caminho é uma maneira de apoderar-se do despertar,
que surge da ambição espiritual.
Rinzai, o fundador da Escola Rinzai, estava de pleno acordo com os instrutores Soto em
dizer que nada precisa ser feito. Ele disse, por exemplo:72 "Seguidores do Caminho, neste
exato momento o homem resoluto sabe perfeitamente que desde o início nada há a ser
feito. Somente porque a sua fé é insuficiente é que você a persegue incessantemente;
tendo jogado fora sua cabeça, você parte para procurá-la, incapaz de parar". Ele também
disse posteriormente:73 "Seguidores do Caminho, a verdadeira sinceridade é extremamente
difícil de atingir, e o Buda-dharma é profundo e misterioso".
72 Sasaki (1975) p.13.
73 ibid. p.28.
Uma das coisas em que Rinzai Zen insiste é na importância do kensho, o exame da
verdadeira natureza. O kensho é a fonte das quatro maneiras ele saber; elas são, em última
instância, derivadas do kensho. Muitos instrutores Soto rejeitam isto e dizem que o kensho
não apenas é desnecessário, mas é em si mesmo ilusório. Apesar disso, conforme a
introdução, o mestre Zen Keizan, que é considerado o grande patriarca ela Seita Soto Zen,
disse:74 "Mesmo que seja bem versado em teoria e iluminado no Caminho, você permanece
errante até que tenha obtido satoti, que é como o Selo do Imperador sobre as mercadorias,
prova ele que não são contrabandeadas nem venenosas". Ele diz ainda: "Embora nada haja
para dar ou receber, satori deve ser tão conclusivo quanto conhecer o seu rosto pelo toque
no nariz". Finalmente, ele diz: "Lembre-se sempre de que a sua Mente Original, calma e
lúcida, espera ser descoberta".
74 Stryk e Ikemoto, pp,49-50.
Não devemos, de modo algum, ver as escolas Soto e Rinzai como conflitantes. Uma vez
que o instrutor chegou ao despertar, não importa o tipo de ênfase que ele ou ela coloque
sobre diferentes aspectos do ensinamento. Qualquer instrutor que esteja instruindo de
maneira autêntica, está instruindo a partir de sua própria experiência, não de alguma teoria
ou estudo de textos budistas. Se, após despertar, a pessoa lê os ensinamentos de Hakuin,
Dogen, Ta Hui, Keizan, ela o faz por inspiração própria, e pela confirmação que dão à sua
própria luz, não para encontrar a verdade.
Um princípio que vale a pena lembrar é que, se a pessoa vai praticar Rinzai Zen de
modo autêntico, então ela deve ser uma boa praticante de Soto; se ela vai praticar Soto de
maneira autêntica, então ela deve ser uma boa praticante de Rinzai. Tendo este princípio
em mente, a pessoa não cometerá erros.

Se tiver alguma energia de sobra, você deve elucidar os profundos princípios das várias filosofias
diferentes. Porém, se for trabalho demais, será apenas desperdício inútil de energia. Se você investigar a
fundo os dizeres dos Budas e dos patriarcas, que são difíceis de transmitir, e com clareza alcançar seu
significado essencial, o perfeito entendimento continuará brilhando e os princípios de todas as coisas
naturalmente tornam-se claros. Isto é chamado "o olho para ler os sutras".
Muitos pensam que o Zen é 'anti-intelectual'. Por tudo o que Hakuin está dizendo
agora, evidentemente não é assim. Se a pessoa estiver familiarizada com os escritos de
82
Dogen, ela compreenderá quanta importância Dogen deposita no estudo e no pensamento.
O Grande Mestre coreano Chinul também colocava grande ênfase sobre os ensinamentos.
O principal problema com a compreensão intelectual é que a pessoa pode sentir que essa
compreensão é suficiente. Assim, frequentemente, porque a pessoa tem um bom
entendimento, que é uma apreciação integrada do que os mestres estão dizendo, porque
tem os dizeres dos mestres à mão, ela acha que já chegou. O intelectual é como um homem
numa prisão com paredes expandíveis. Parece não haver prisão alguma.
Um outro problema é que o intelecto congela a experiência, e tudo o que se conhece é
uma série de imagens estáticas, e não o movimento vivo da vida. Congelar a experiência
torna-a estática e absoluta de uma maneira ilusória. É por isto que, com tanta frequência, o
intelectual é tão arrogante. A ilusão do absoluto dá a ilusão de uma finalidade. É por isso
que a pessoa deve ler muito espaçadamente até que tenha compreendido sua verdadeira
natureza.
O próprio Hakuin não faz muita pressão sobre a questão da leitura e do estudo porque
ele diz: "Porém, se for muito trabalho, será apenas perda das faculdades sem trazer
vantagem alguma".
Ele põe ênfase sobre a prática do koan. "Os dizeres dos Budas e dos patriarcas que são
difíceis de transmitir" são os koans. No Centro Zen de Rochester, fui submetido a uma série
de koans preliminares, e depois, por duas vezes, ao Mumonkan e ao Hekiganroku. Desde
então, tenho trabalhado e estudado todos os koans muitas e muitas vezes, sozinho e
enquanto auxilio os outros a trabalhar com eles. Um instrutor sugeriu que os koans são
como obstáculos que o praticante deve saltar para ganhar força. Costumo considerar a
prática do koan como apreciação do koan. Você pode aprofundar firmemente a sua
apreciação do significado dos koans. Não é diferente de ouvir música clássica. Você pode
gostar do trecho ele uma música ao ouvi-lo pela primeira vez. Quando, mais tarde, você o
ouve novamente, você pode perceber que perdeu muito da sutileza da música quando a
ouviu pela primeira vez. Uma terceira audição mostrará o quanto a música contém. Após a
décima audição, você compreende que este é realmente um trecho muito sutil, e assim por
diante. Finalmente, a pessoa é capaz de ler os sutras como koans e então consegue
verdadeiramente apreciar a sutileza do Budadharma.

Ora, os ensinamentos verbais dos Budas e dos patriarcas são extremamente profundos, e ninguém
deve achar que os dominou completamente após ter sido submetido a eles uma ou duas vezes. Quando
você sobe a montanha, quanto mais alto você for, mais alta ela fica; quando você adentra o oceano,
quanto mais distante você for, mais profundo ele fica - é a mesma coisa neste caso. É também como forjar
o ferro para fazer uma espada; diz-se que o melhor é colocar o ferro na forja muitas e muitas vezes,
refinando-o cada vez mais. Embora seja sempre a mesma forja, a não ser que você coloque a espada na
forja repetidas vezes e a refine uma centena de vezes, ela dificilmente poderá tornar-se uma boa espada.

A forja, ou fornalha, é a metáfora favorita para o trabalho do espírito. Os alquimistas


também usam esta metáfora. O primeiro passo em alquimia é fazer um vaso
hermeticamente fechado. Deve ser firmemente lacrado, pois, de outro modo, poderá vazar
quando sujeito ao intenso calor da fornalha. A religião católica também fala dos fogos do
purgatório. É nestes fogos que alma é purificada
83
O estudo penetrante também é assim; a não ser que você penetre a grande forja do Buda e dos
patriarcas, tão difícil de ser atravessada, e faça repetidos esforços para se refinar, através do sofrimento e
da dor, o saber total e independente não pode surgir. Penetrar através das barreiras do Buda e dos
patriarcas várias vezes, respondendo ao potencial dos seres em toda parte com domínio e liberdade de
técnica, é chamado o saber sutil observador e discernente. [saber por meio da diferenciação]

Através do sofrimento e da dor.

Por que o trabalho espiritual é doloroso? Por que Gurdjieff diz que o seu caminho é o
caminho do trabalho consciente e do sofrimento intencional? Por que a figura central da
Cristandade é o ícone de um homem em uma cruz? Santa Juliana de Norwich rezava por
alguma doença grave pela qual pudesse trabalhar para Deus. As pessoas caminhavam
quilômetros em peregrinação carregando diferentes tipos de fardos, ou então de joelhos,
ou até mesmo rolando. Hsu Yun, um grande instrutor espiritual contemporâneo, fez uma
peregrinação de mil e quinhentos quilômetros dando um passo e efetuando três
prostrações completas. Durante os retiros que conduzimos aqui de vez em quando, a
maioria dos participantes sofrem intensa dor durante o sesshin. Qual é a razão para isto?
Como dissemos, com o sofrimento há dois sofrimentos. Na forja dos mestres, "eu sinto
dor” é purgado, e com isto o dualismo que estrangula nossa vida começa a afrouxar

Este tipo de investigação não é uma investigação intelectual.

As limitações do intelecto são mais óbvias quando se trabalham os koans. Um monge


perguntou a Tozan: "O que é o Buda?". Tozan respondeu: "Um quilo e meio de linho!". O
que o intelecto pode fazer com isso? A mente Zen é uma mente criativa, ou ainda, ela é a
criatividade. A criatividade é chocante, dinâmica, sem precedente. A atividade intelectual é
linear; a conclusão segue a partir de premissas. É essencialmente estática. Isto porque ela
lida com conceitos, imagens estáticas. Porque a conclusão segue a partir de premissas, o
raciocínio lógico corresponde ao que era esperado. Os koans despertam a mente para sua
natureza intrínseca, criativa. Quando a pessoa lê as respostas que os mestres Zen davam
aos seus estudantes, ela pode admirar não apenas o quão criativas, mas também o quão
apropriadas e vivas eram essas respostas. O intelecto só consegue dar palavras mortas.

Esta maneira de saber, para salvar a si próprio e para libertar os outros, quando completamente
atingida e dominada, é chamada saber sutil observador e discernente, ou diferenciação.

Uso a palavra 'diferenciação' para esta maneira de saber. A expressão 'sutil,


observador, discernente' também é muito boa, embora algo canhestra. Talvez apenas
'discernimento' bastasse. Apreciar a sutileza de um argumento significa ter um
discernimento finamente desenvolvido. Um artista que aprecia a sutileza da cor possui,
igualmente, um discernimento aguçado. Yasutani Roshi disse: "Mesmo uma xícara rachada
é perfeita". Um dos ditados mais famosos e mais mal-compreendidos de todo o Zen é:
"Bambu alto é alto; bambu baixo é baixo". Isso também é saber sutil, observador,
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discernente. O koan que vai diretamente ao assunto é o de número 26: "Quando os
monges se reuniram antes da refeição do meio-dia para ouvir a palestra, Hogen apontou
para as venezianas de bambu. Dois monges simultaneamente foram até elas e as
enrolaram. Hogen disse: 'Um possui, o outro não' ".

Este é o estado do corpo de recompensa perfeitamente realizado: está associado à direção oeste e é
chamado o Portal do Despertar. E como o sol que, tendo ultrapassado o apogeu, gradualmente mergulha na
direção oeste. Enquanto a grande maneira de saber a igualdade estiver no zênite, as faculdades dos seres
sencientes não podem ser vistas, nem os ensinamentos de diferenciação entre as coisas pode ser
esclarecido. Se você não permanecer no reino do autodespertar como realização interior, e cultivar este
saber sutil, observador, discernente, você fez o que podia ser feito; tendo cumprido sua tarefa, você pode
alcançar a terra do repouso.
Um koan do Hekiganroku resume bem isto:

Um monge perguntou ao mestre Zen de Kyoren: "Qual é o significado de Bodhidharma


vir do Ocidente?" "Sentando-se por longo tempo, cansando-se".
A mesma coisa faz este haiku.

"A carapaça da cigarra.


Cantou até desaparecer
completamente" .

Este repouso não é o que significa o sol poente; significa que você realizou todas as maneiras de
saber, tendo atingido o despertar, porque o despertar do eu e dos outros, a realização da percepção e da
ação, é considerado o verdadeiro despertar último.

O Portal do Nirvana
Esta é a passagem secreta que leva ao controle da mente e que é o reino da liberação última. Este é o
saber sem qualquer tipo de profanação, uma virtude que não é criada. Se não compreende esta maneira de
saber, você não será capaz de fazer livremente o que deve ser feito para beneficiar a si próprio e aos outros.
É o caminho sem esforço.
O mestre Shih-Tou perguntou ao Leigo: "Desde a última vez em que nos encontramos,
o que você tem feito durante o dia?"
"Quando você me pergunta sobre o que eu tenho feito, não consigo abrir a boca",
respondeu o Leigo.
"É por isso que estou lhe perguntando", disse Shih-Tou.

Depois do que o Leigo ofereceu este verso:

Nada faço de extraordinário durante o dia,


Apenas fico em harmonia com as coisas.
Não me apossando de nada, não me desfazendo de nada,
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Não há obstrução, não há conflito em lugar algum.
O que há de exaltado nisso?
Para longe das colinas e montanhas,
É afastado o último cisco.
O meu poder miraculoso e a minha atividade mágica,
Puxar água e carregar lenha para o fogo.

Devido ao fato de a maneira anterior de saber por diferenciação ser alcançada através da prática
correta, ela ainda está no reino do cultivo: a realização é atingida pela prática. É, portanto, uma maneira de
saber que é alcançada através do esforço. A maneira de saber a ação perfeita transcende as fronteiras da
prática, da compreensão, e da realização através do estudo. Está além de qualquer tipo de demonstração ou
explicação.

Um mestre disse: "Nada faço durante o dia, mas nada é deixado sem fazer". Uma
pintura Sumei mostra o que Hakuin acabou de dizer de maneira resumida: mostra um
mestre Zen profundamente adormecido recostado em um tigre.

Alguém poderia dizer que saber por meio da diferenciação é como a flor do completo despertar; a
prática é esta flor desabrochando. Por outro lado, com o saber e 'fazendo o que precisa ser feito' a flor do
pleno despertar e da prática cai, e o fruto amadurece. Você não poderá ver isto nem mesmo em um sonho, a
não ser que tenha ultrapassado os estágios finais de transcendência de nossa escola. É por isso que é dito que,
com a última palavra, você finalmente chega à barreira impenetrável.
Não se consegue encontrar o rumo por meio de explicações verbais; se você deseja alcançar este reino,
simplesmente refine a maneira do sutil saber discernente por meio da diferenciação trabalhando os koans, que
são tão difíceis de compreender. Fundindo-se desta maneira você passará pela forja centenas de vezes,
repetidamente. Mesmo que você tenha compreendido alguns, repita-os muitas e muitas vezes. Busque
meticulosamente a pedra preciosa da verdade que jaz além de todas as maneiras convencionais de pensar a
respeito da Grande transcendência. Se não recuar no trabalho sobre os dizeres dos antigos, algum dia poderá
vir a conhecer este pedacinho de maravilha.

Um monge perguntou a Joshu: "Um cachorro tem a natureza do Buda?". Joshu


respondeu: "Mu!"

Mesmo assim, se não buscar um mestre desperto e penetrar pessoalmente sua forja, você não consegue
avaliar as sutilezas profundas.

O caminho está cheio de armadilhas, becos-sem-saída, barreiras e abismos. O ouro dos


tolos está espalhado ao longo do caminho. No caminho, podem ser encontrados muitos
tipos diferentes de experiências, despertares, e Samadhis. Alguns são memoráveis, outros
transformadores. Não é que a pessoa precise de um instrutor para confirmar o próprio
despertar, mas para extirpar os despertares ilusórios, remover o fardo do ouro dos tolos.
O despertar tem uma série de sinais que podem todos ser reconhecidos, mas o mestre
pode examinar o coração num instante, além de todos estes sinais. O despertar é sempre
súbito. Despertar é despertar para a totalidade, a pérola branca Una; não se consegue
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despertar aos poucos. O despertar não tem conteúdo; desperta-se para o saber irrefletido.
É por isso que Dogen nos diz que uma pessoa desperta não sabe que está desperta. Deus
não sabe que é Deus. O despertar traz a paz que ultrapassa o entendimento, a satisfação
última. O despertar é íntimo; a pessoa fala a respeito com muita relutância. O despertar
traz consigo o desejo de uma prática renovada e profunda.

A única preocupação é que os verdadeiros instrutores Zen são pouquíssimos e difíceis de encontrar.

Se isto já era verdadeiro no tempo de Hakuin, é ainda mais no nosso tempo. Falsos
instrutores existem em abundância. Alguns atingiram o despertar; a maioria não. Aqueles
que atingiram o despertar, se não entraram na forja do mestre, não foram capazes de fazer
o despertar trabalhar para si, e, assim, o despertar permanece apenas na memória, infinita
e inexoravelmente regurgitada. Entre esses assim chamados instrutores que não atingiram
o despertar, estão muitos que seriam capazes de negar o valor, até mesmo o fato, do
próprio despertar. Tais instrutores constroem obstáculos na mente de seus seguidores, o
que não lhes permite ver a luz do verdadeiro Eu brilhar.
Quanto mais popular o instrutor, menos provável é que ele ou ela seja autêntico. O
trabalho espiritual requer, como nos lembra Gurdjieff, trabalho consciente e sofrimento
intencional. Dogen disse a mesma coisa: "Tudo é esforço. Tentar evitar o esforço é uma
fuga impossível porque a tentativa em si mesma é esforço". Mas, como ele também disse:
"Esse esforço sustentado não é algo que as pessoas do mundo naturalmente amam ou
desejam; todavia, é o último de todos refúgios".
O instrutor não-autêntico irá negociar com a sentimentalidade em lugar do
sentimento genuíno. Sentimentalidade, como assinala Oscar Wilde, é satisfazer uma
emoção cujo preço a pessoa não pagou. Este tipo de instrutor irá usar o que Harada Roshi
chamou de expressões "pó e ruge", e irá, deliberadamente, borrifar os seus escritos com
palavras tais como "amor", "paz", "compaixão", e "alegria", como pedacinhos de chocolate
na cobertura do sorvete. Eles caminham de maneira lenta e majestosa e têm uma voz
ronronosa como a de um gato.
Hakuin escreveu um verso75 "que despeja escárnio sobre esta raça odiosa de pseudo-
sacerdotes".

"A coisa mais vil da terra? Da qual todos os homens recuam? Carvão esmigalhado?
Lenha molhada? Lamparina aguada? Um carroceiro? Um barqueiro? Uma madrasta?
Gambás? Mosquitos? Piolhos? Moscas azuis? Ratos? Monges ladrões".
75 Waddel (1993) op.cit. p.3.

Mas, se alguém exerce o máximo de sua energia com este propósito, e penetra claramente, atinge a
liberdade de todas as maneiras, transcende o reino dos Budas e dos demônios, resolve pontos obscuros,
desfaz vínculos, arranca pregos e parafusos, e guia as pessoas para o reino da pureza e da paz. Isto é
chamado "o saber necessário para a perfeição na ação". Este saber está associado à direção norte e é
chamado Portal do Nirvana. É como quando o sol alcança o quadrante norte, quando é meia-noite e o
mundo inteiro está na escuridão; alcançar a esfera deste saber está fora do entendimento ou da
compreensão - mesmo o Buda não consegue ver, muito menos estranhos e demônios.
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Quem caminha, quem conversa? As pessoas frequentemente respondem: "Eu, eu
caminho, eu converso". Sim, certamente, mas quem é este 'eu'? Tanta coisa é tomada
como certa. Nos constrangemos com os mosquitos, mas engolimos elefantes inteiros. "Que
músculo você vai usar primeiro para caminhar?" Não é maravilhoso? A pessoa encontra um
amigo e lhe conta tudo que tem acontecido. As palavras certas fluem, na ordem certa, com
a ênfase certa. Algumas vezes aquele que fala é bilíngue, até mesmo trilíngue. Todavia, as
línguas não se misturam. Como a pessoa consegue fazer isso? Quem fala? Certamente os
behavioristas dizem que a pergunta é desnecessária: ninguém fala. Todavia, o Zen budista
diria a mesma coisa.

Ninguém caminha ao longo desta trilha


Nesta noite de outono.

Quem, no entanto, é este 'ninguém'? Os alquimistas dizem: "O nosso sol é um sol
escuro".
Nem mesmo o Buda consegue ver quem caminha, quem conversa. Mas "Quem
caminha? Quem conversa?".
Este é o estado totalmente pacífico da pura realidade do Buda e dos patriarcas.
Nisargadatta Maharaj disse: "O meu corpo é paz".

"Ouvir, ver, tocar, e saber não são um mais um;


As montanhas e os rios não devem ser vistos no espelho
O céu gelado, a lua que se põe - à meia-noite;
Com quem irão as águas serenas do lago refletir as sombras no frio?”76
76 Koan nº 40 do Hekiganroku Two Zen Classics Mumonkan and Hekiganroku traduzido com
comentários por Katsuki Sekida (1977) John Weatherhill; New York. p. 225.

A floresta de espinhos onde os monges com vestes feitas de retalhos sentam-se, deitam-se,
caminham vinte e quatro horas por dia. Isto é chamado 'grande nirvana' repleto de quatro atributos (ego,
pureza, bem-aventurança, eternidade). É também chamado 'saber a natureza essencial do cosmos', na qual
as quatro maneiras de saber são plenamente completas. O centro significa harmonizar as quatro maneiras
de saber em um todo, e a natureza essencial do cosmos significa o rei do despertar, mestre dos
ensinamentos, sendo o rei do Dharma, totalmente livre.
Espero que vocês, budistas de grande fé, despertem grande confiança e comprometimento e
desenvolvam a grande prática para a compreensão destas quatro maneiras de saber e do verdadeiro
despertar. Não renunciem ao grande tema de eras incontáveis apenas por causa do orgulho no seu ponto
de vista atual.

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