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nem tão

amarelo
assim
rubens akira kuana
shiva press

2020
CAPITULO I
DA INTRODUCÇÃO DE IMMIGRANTES

Art. 1º E’ inteiramente livre a entrada, nos portos da Republica,


dos individuos válidos e aptos para o trabalho, que não se acharem
sujeitos á acção criminal do seu paiz, exceptuados os indigenas
da Asia, ou da Africa que sómente mediante autorização do
Congresso Nacional poderão ser admittidos de accordo com as
condições que forem então estipuladas.

Decreto nº 528, de 28 de Junho de 1890, da Republica dos Estados Unidos


do Brazil
para minha avó e meu pai
parte um
mas

Veja bem! Não é nada


Pessoal, eu mesmo
Por exemplo
Tenho até amigos
[...]

6
de uma entrevista da minha cabeça

“nesse poema zen aqui


eu me inspirei no silêncio
evocado na obra 4’33
de john cage para assim
poder silenciar todas as
pessoas asiáticas que
vivem na américa e fazer
a minha crítica ao governo
chinês depois de ler
essa e apenas essa
matéria na cnn”

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MANIFESTO POESIA RESISTÊNCIA

assinado por
137 poetas brancos
do eixo rio-sp

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O poeta branco escreve
Outro haikai eu solto um
Bocejo e digo bye bye

9
No Instragram no Twitter no Facebook
De samurai malandro a monge
Maluco, o poeta branco
Capricha no look

Abram passagem
É top, é top, mas
Não é samba
É K-pop

Lá vem
O branco
Mais amarelo
Do Brasil

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O poeta branco medita
E admira a terra do sol nascente
Florestinha, riachinho, borboletinha

Silêncio!

O poeta branco quer falar


Deixem ele falar

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o poeta branco veste seu kimono
para falar de coisas místicas
e espirituais

o movimento dos astros


o bater de asas de uma borboleta
o racismo não é legal

aplausos! aplausos! aplausos!


o poeta branco é verdadeiramente
um iluminado

estendam os tapetes
de yoga, sentem
em zazen

quando o poeta branco fala


ele não tira a good vibe
de ninguém

mas na próxima vida, eu me pergunto


quem reencarna no corpo
de quem?

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trabalho de campo

o poeta branco costuma


ser um homem branco
cis e heterossexual
classe média ou alta

seu habitat natural é


todo lugar, de recitais
a bibliotecas, antologias
e conselhos editoriais

cuidado, o poeta branco


é um prolífico autor
de palestras não
requisitadas

o poeta branco é um animal


extremamente territorialista
quando se sente ameaçado
possui o hábito de sair por aí

mijando nas coisas e nas pessoas


e depois de um pedido virtual
de desculpas, uma performance
fácil junto de um biscoitinho

quando não é convidado


pelos eventos e revistas
o poeta branco se irrita
e teme pelo seu futuro

receoso, o poeta branco fica em cima


do muro e então compartilha

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seus sentimentos de poeta branco
“oh céus, quem irá cancelar os canceladores?”

o poeta branco sente uma enorme


necessidade de procriar
deixar legados e escolas
que atravessarão a humanidade
como um dedão atravessa
o furo de uma meia
quente e cheia
de sêmen

estamos na época
de acasalamento

e a fim de atrair
parceiras potenciais
ou no pior dos casos
prêmios e publicações
alguns, isto é,
os mais antenados
de sua raça,
costumam utilizar
a técnica de self
deprecation ou
em português
auto-depreciação

o poeta branco mostra


para o mundo todo
como sabe rir
de si mesmo
como ninguém

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como ninguém!

pois o mundo
como se sabe
é um lugar
muito difícil
para um poeta branco

por isso eu
–sim, eu!
eu estudo
o poeta branco
antes que ele
seja extinto

assinem a petição!
colaborem na vaquinha!
salvem o poeta branco!

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tá com dó leva pra casa

infelizmente
queridos e queridas
telespectadoras

o poeta branco
está em risco
de extinção

mas será que


devemos interferir
nos rumos da natureza?

deus, aquele homem


branco acima de nós
é quem sabe

é deus no volante
e um poeta branco
na caçamba

e no carona e no banco
de trás e no porta luvas
e no retrovisor e [...]

oremos
queridos e queridas
telespectadoras

oremos! sangue
de poeta branco
tem poder

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Sete Anos no Tibet

Poeta branco, por que um corpo


asiático aparece
–se aparece
em seu poema
como um corpo místico
e ancestral? Por que
você nos coloca no topo
de montanhas? Por que
você as escala? Você sabe
de alguma coisa que
nós não sabemos?

O que você vê, poeta branco?

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O Último Samurai

Poeta branco, você consegue


escrever um poema

político
sem mover

um corpo
que não seja

o seu?

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Karatê Kid

Poeta branco, não fique


com raiva. Afinal, você
sabe o que é raiva?

Não perca o humor.


Não pire no rumor.
Não paire no rubor.

Contemple seus prêmios,


contratos e seguidores.
A poesia é um jogo

de contatos.
De diz que
me disse.

Me liga aí truta
(41) 9xxxx xxxx
vamo se falando.

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interlúdio
um poeta branco faz uma identidade

eu escrevo sobre
você, mas não
para você

eu escrevo
eu escrevo
eu escrevo

como você

se sente?

21
um poeta branco deseja uma revolução

se um poeta branco se recusa a falar


sobre a sua branquitude por que
ele deveria falar? por que
ele deveria falar
sobre a sua
poesia?

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um poeta branco me segue no instagram
e uma semana depois deixa de me seguir

porque um poeta branco


não pensa

o suficiente
na sua escolha

de palavras
e referências

eu devo sempre
pensar

por dois
por ele

e por mim
e pelo resto

do mundo

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um poeta branco usa alguma dessas palavras em sua bio:
monge, tai chi, tao, budismo, zen, yoga, [...]

eu falo porque
meu avô
nunca teve
a chance

de falar

eu falo porque
meu pai
nunca encontrou
as palavras

para falar

eu falo porque
eu escrevo
eu escrevo porque
eu vivi

sem falar

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parte dois
da lista geral de passageiros do navio itsukushima maru

número de ordem 388


CLASSES Terceira
NOME POR EXTENSO KUWANA MASAKI
Parentesco com o chefe da família chefe
IDADE 20
SEXO Masculino
ESTADO Casado
NACIONALIDADE Japoneza
PROFISSÃO agricultor
RELIGIÃO Buddhism
INSTRUCÇÃO Sabem ler e escrever Sim
SUA ULTIMA RESIDENCIA
Paiz Japao
Localidade Kochi
Seu destino no Estado São Paulo
BAGAGENS
Quantidade dos volumes 3
Peso em Kilos 59
Aceita as vantagens da lei? Sim

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da certidão de óbito do meu avô

foi feito o assento de /“MASSARRARO KUANA”/


falecido a 15 de janeiro de 1989 às 06:00 horas,
em Sítio Santa Barbara, Municipio de Caarapó, neste Estado.
..............................................
do sexo masculino, de cor :::::::::::::, profissão lavrador,
natural de Bauru, Estado de São Paulo
com sessenta (60) anos de idade, estado civil casado
filho de MASSAKI KUANA e dona YISHAO KUANA, ambos
falecidos.-.................................................
..........................................
........................
...............
Foi declarante VALDEIDE DOS SANTOS
sendo atestado de óbito firmado por Dr. Norival Dourado.
Observações: NADA CONSTA.....
......
......
......
O referido é verdade e dou fé.

Dourados, 02 de fevereiro de 1998

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coisas que já respondi pra gente branca

não eu não sou da china


eu não sei falar japonês
sim minha avó sabe falar
meu pai não sabe
meu avô não era um samurai
nem um ninja
eu não sou bom em matemática
eu não sou bom em matemática porque sou japonês
não sei cara eu acho que só estudei pra prova
mais do que você
sim eu sei contar até dez em japonês
iti ni san shi go roku shiti hati kyu jyu
não eu não sei lutar karatê
sim eu gosto de pokémon
eu acho que o tamanho do meu pau é normal
eu estou com os olhos abertos
sim meus olhos são assim mesmo
eu não vejo as coisas em widescreen
eu não sei fazer sushi
não na minha casa nós não comemos sushi
nós comemos feijão e arroz
eu não me acho tão parecido assim com meu pai
nós não somos todos iguais
você não deveria chamar as pessoas desse jeito
minha pele não é amarela
sim eu nasci no brasil
mestiço
meu pai é japonês minha mãe não
meus avós vieram do japão
não eu nunca fui pro japão
não eu nunca morei no japão
sim o japão é muito desenvolvido mesmo
sim de primeiro mundo né

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sim videogames
ultraman sayonara godzilla
playstation playstation playstation
sim eu tenho parentes lá
não sei eu não falo muito com eles
não eu não conheço essa pessoa asiática
sim os “orientais” tem fama de serem muito pacientes
é eu não sou muito de falar
sim eu acho que você poderia dizer que sou “zen”
eu não sei fazer feng shui
minha casa não é minimalista
eu acho que a palavra “oriental” não significa isso
esse não é meu nome
essa piada não tem graça

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o ano em que eu virei branco

eu nasci em uma cidade do interior de Santa Catarina


onde até meados dos anos 2000 eu e meu pai éramos os únicos
japoneses na cidade (minha mãe descende de alemães e italianos)
desde criança eu lembro que ninguém nunca soube escrever
o nome do meu pai corretamente: Siogi, Xiogui, Chiodi
quando eu lia um recibo um bilhete uma anotação
ninguém acertava seu nome: Sioji às vezes eu ouvia
meu pai soletrar no telefone s de serpente
i de ilha o de olho j de jiboia i de ilha de novo
anos mais tarde quando eu assisti um filme de Akira Kurosawa
(Tengoku to jigoku / High and Low / Céu e Inferno)
eu aprendi que ninguém nunca acertou sequer a pronúncia de seu
nome
em japonês o jota se pronuncia quase como um dê: Si-ô-di
anos mais tarde eu descubro que no Japão Sioji seria escrito como
Shoji, Shouji ou Shohji
mas como filhos de imigrantes pobres meus avós fazendeiros não
tinham acesso a um cartório
que compreendesse esses detalhes ou quem sabe
nem mesmo meus pobres avós soubessem como escrever o nome
do meu pai
durante os anos em que cresci na cidade do interior eu também
perdi o meu nome
ninguém me chamava de Rubens (meus pais me chamavam de
‘mano’)
me chamavam de: japonês, japa, japa-japa-girl, japinha, china-in-
box, china (com a pronúncia em inglês mesmo)
e toda vez que ouvia esses nomes eu me sentia
extremamente consciente
do meu corpo dos meus olhos do meu nariz dos meus pelos das
minhas genitais
mas eu me acostumei a esse nome e esse nome passou a me definir

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da mesma maneira com que um prego define um martelo
batendo batendo e batendo
foi só quando eu me mudei para Curitiba uma cidade onde há mais
do que uma
família japonesa (quem diria) é que da noite para o dia as pessoas
que ia conhecendo lá
passaram a me chamar de Rubens e quando eu tentava explicar
para elas
pode me chamar de japa (pois esse era o meu nome até aquele
momento)
elas me olhavam confusas e diziam: mas você nem é japonês
(aparentemente meus olhos não são puxados o suficiente)
foi então que eu soube que podia ser branco isto é meu corpo
continuou o mesmo
mas foi então que passei a ser tratado como um branco e ter direito
a um nome próprio
o ano foi 2010

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corações sujos

eu penso no revólver
que getúlio vargas usou
para se matar e então
eu sou o fogo
que forjou este país.
leia-se país como
os corpos e nomes
que aparecem
em uma terra quando
um governo deseja
que apareçam. leia-se fogo
como aquilo que arde
e todos vêem. eu sou
meu avô paterno cujo pai
veio em um navio e morreu
de câncer. eu sou meu pai
que cresceu longe do pai
em um país que apagou
mais do que uma língua.
meu nome é rubens
pois este foi o homem
que levou meu pai
para um hospital
quando criança.
meu nome é akira
porque uma amiga
dos meus pais sugeriu.
contudo, só minha avó
paterna me chama
assim. minha batchan.
como eu deveria
escrever meu corpo
sem explicar meu nome?

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qual voz chama

meu nome?

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eu não sou daqui

uma parte de mim


quer que eu fale
de bombas e guerras

hiroshima e nagasaki
e então

coreia, china, vietnã,


indonésia, tailândia,
índia, tibet, filipinas
[...]

uma parte de mim


quer que eu fale
daquilo
que eu não vivi
diretamente
mas que é minha
suposta e fabulosa
ancestralidade

as imagens típicas
de um filme americano
na sessão da tarde

e no intervalo
uma mãe arrancando
outro band-aid, trazendo
o merthiolate que não arde

quando eu volto da escola


após levar mais uma surra
eu quero lhe dizer

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eu não sou daqui e não sei
para qual país devo voltar

mas essa dor


é pequena
demais

irrelevante

uma parte de mim


quer que eu fale
de espadas e samurais
de culpa e violência
de vingança e inocência

pois parece que é


só assim
falando
sobre todos
os massacres
perpetuados
por mãos brancas
que eu poderia
transformar
as mesmas
mãos brancas
em ouvidos

buracos

por onde eu possa


rastejar e plantar
uma única semente

39
uma armadilha

vocês me vêem agora


porque eu não falo mais
de mim, mas
de vocês

um espelho

agora que eu os vejo


para onde vocês
se voltam?

40
me nota senpai

eu falo de bombas
e guerras porque
é isso o que vocês
vêem e escutam

eu falo de corpos
e vozes porque
é isso o que na
verdade explode

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harakiri

entre a homenagem
e o fetiche entre o respeito
e a conivência entre o
haxixe e o ópio entre o
aplauso e o pornô
entre o shoyu
e o tempurá
entre a bomba
e o museu entre
o turismo e o anime
entre o meme e a
mesma merda
entre a liberdade
e o pó entre são
paulo e o brasil
entre o convite
e o token entre
o kimono e o véu
entre o o evento
e o rolê entre o
inferno e o céu
entre a pele
e a página
entre o corpo
e o som entre
a espada e a voz
entre o silêncio
e a flor, alguém
digita um comentário
que começa assim:
esses identitários q

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o segredo da longevidade japonesa

fazer um detox virtual


e então falar e falar
tudo de novo

como um sísifo
que carrega
um gigantesco

sushi de goiabada
até uma privada
que limpa

automaticamente
seu cu
com um delicado

jato d’água
quente, arigato
gozaimasu

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a minoria modelo

eu não sei o que significa ser um homem cis ásio-brasileiro


eu não sei o que significa ser um homem cis
eu não sei o que significa ser um homem
eu não sei o que significa ser um
eu não sei o que significa ser
eu não sei o que significa
eu não sei o que
eu não sei o
eu não sei
eu não
eu
eu
eu
eu
eu
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shiva press, 2020

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