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Departamento de Filosofia
RAFAEL PETITO
SÃO PAULO
2022
RAFAEL PETITO VIEIRA
Nº USP: 12514792
SÃO PAULO
2022
Um espelho defronte ao outro. Duas mãos que se tocam. Uma voz que repercute pela
garganta, um ouvido perto demais de uma garganta. Merleau-Ponty, em O Visível e o
Invisível, assim como em O Olho e O Espírito, nos apresenta uma série de exemplos para dar
conta de elucidar um problema que considera central: a recíproca inserção de meu corpo
como coisa visível (compreendido dentro do grande espetáculo) no meu corpo como coisa
vidente, que subtende meu corpo visível e todos os demais visíveis com ele. Isso, ademais,
considerando o mundo como a carne universal – carne elementar de uma relação quiasmática.
Isto é, facticidade que é já abertura anterior à reconversão da própria visibilidade, que permite
um entrelaçamento corpo-mundo, por seu próprio tecido carnal. Tendo isso em vista, busco,
na presente dissertação, elaborar o conceito de entrelaçamento – quiasma, a partir da noção
de reversibilidade na obra mencionada. Para tanto, buscarei traçar o caminho de compreensão
da visibilidade entre as coisas e meu corpo pela carne, no que será tangido a relação corpo-
mundo, tomando o mundo como carne universal. Assim, nos levando a observar uma
recíproca inserção do nosso mundo privado com o outro diante de um Sensível em geral, que
constituirá um Sentiente em geral.
Nesta diretriz, não por falta de exemplos elucidativos na obra, mas por razões
interdisciplinares e factíveis de um entrelaçamento, pretendo analisar o filme Film1, de
Beckett, neste trabalho, a fim de trazer à lume certas perspectivas da problemática a que me
lanço. Filme esse em que o autor busca articular o jogo entre vidente e visível, o problema de
modelagem entre meu corpo e as coisas e a carne a que me lanço e me vejo sendo visto
vendo-me. Articulando através da própria imagem visual o posicionamento do E: EYE, ou I,
diante do O: OBJECT, ou OTHER – no qual entendemos no fim como self, puro afeto que se
mostra: percepção da percepção, percepção de si por si. E aqui minha base teórica se
sustentará pelos textos de Deleuze e Gontarski acerca do Film. Possibilitando articular
conceitualmente na tela, a viabilidade que Merleau-Ponty visibiliza com sua carne e seu
entrelaçamento em O Visível e o Invisível, ao meu ver, sendo um acréscimo de análise à um
filme que conceitualmente buscou evidenciar-se pelo que se evidencia para nós, videntes
visíveis.
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Como fazemos aqui um exercício de leitura que se mantém em grande parte preso à descrição dos movimentos
formais do filme, preferimos não proliferar as menções ao texto escrito do roteiro, limitando-nos a indicar
apenas passagens que julgamos absolutamente necessárias. De qualquer maneira, a evidência do que dizemos
aqui pode ser muito melhor atestada pelo que o próprio Film – a que se pode assistir gratuitamente através do
seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=5yAnYQGqefk&ab_channel=Artes2 – expõe.
Em vista disso, proponho que comecemos por tratar de Film, que já em seu nome
revela um duplo reflexivo, sendo o único filme produzido por Beckett, em sua fase tardia.
Duplo reflexivo porque per si, sendo a própria vidência do filme um reconhecimento de
visibilidade do ver(-se). Isto é: "as coisas (...) eu não as percebo sem que elas me percebam;
toda percepção como tal é percepção de percepção" (DELEUZE, 1997, p.34), a isto que se
propõe evidenciar Beckett, em um jogo em que a câmera, o espectador e o espectado, são
todos espectadores/espectados, ou seja, ambos se relacionam em uma reconversão que faz
com que sejam isso que são: percebedores percebidos, videntes visíveis. Mas isto se explica
melhor com o próprio roteiro do filme.
Serve para nós analisarmos aqui, estrategicamente, então, a última parte. É em "The
room", que Deleuze entende como contendo dois casos, dois problemas: o da percepção e o
da afecção, no qual todo jogo de visibilidade se torna visível. O, ao adentrar o quarto, coloca
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Livre tradução por nossa parte.
em jogo sua visão que, por um efeito de filmagem, se diferencia de E. O observa as coisas, os
animais no quarto e se inquieta. O vê que ao ver as coisas e os animais é por eles visto. Vê
que não pode ver sem ser visto, pois existe aí uma palpação pelo olhar que faz com que ao
tocar com sua visão, seja tocado. Ou seja (e aqui me adianto no assunto), percebe que "uma
vez que vejo, é preciso (...) que a visão seja redobrada por uma visão complementar ou por
outra visão: eu mesmo visto de fora, tal como se outro me visse, instalado no meio do visível,
no ato de considerá-lo de certo lugar"(MERLEAU-PONTY, 2014, p.133). Por conta disso, O
decide cobrir tudo que lhe causa a percepção da percepção, enquanto nós, percebemo-lo
percebendo ser percebido (ainda que não por E, antes do fim). Esse é o caso da percepção que
se instaura e faz com que mais explicitamente seja entendido o jogo percipere e percipi.
Desta forma, após acabar com as evidências de que percebe, O senta-se na cadeira de
balanço (símbolo, para Deleuze, do berço) e cerra os olhos a fim de dar fim no jogo sem fim
da percepção. Entretanto, é nessa hora que a câmera aproveita para ultrapassar
definitivamente o ângulo de imunidade e defrontar-se com O, frente a frente, O and Eye.
Quando ocorre, temos o desfecho que se abre: "percepção de afecção, isto é, percepção de si
por si, puro Afecto" (DELEUZE, 1997, p.35), O percebe que é E, percebe definitivamente
isto: o puro Afecto que é a percepção de si, duplo reflexivo, este que percebe, pois é
percebido. E o espectador entra, assim também definitivamente, em um jogo duplo, porque
ao dar-se conta de que E é uma personagem, outrossim, E é O, que não há uma divisão entre
sujeito e objeto no filme, percebe ali também sua própria percepção, entende o próprio self
desse perceber. É quando se dá conta de que é vidente, porquanto visível, i.e, sente o que se
reconverte a si no visível vendo a reconversão do visível no filme, que explicita de maneira
tangível a tangibilidade do Eye, que é I, e Aye. Com essa perspectiva geral poderemos
entender de modo mais fácil o que Merleau-Ponty primeiramente fala da tangibilidade do
olhar, e da espessura da carne entre o vidente e o visível. (Assistir o média-metragem pode
facilitar ainda mais).
Seria interessante para nós, assim como Merleau-Ponty inicia o capítulo acerca do
entrelaçamento, responder a esse esposar do visível, nos voltando para a palpação táctil, na
qual a visibilidade – essa pré-posse do visível – (e aqui outro lugar interessante), se torna
mais palpável de ser vista. Assim, já de antemão, essa pré-posse do visível aqui referida é
apresentada pelo autor como um envolver, um apalpar do olhar sobre as coisas visíveis. Isto
é, como se houvesse uma relação preestabelecida de harmonia, como se o olhar soubesse das
coisas antes de sabê-las. E este visível, por sua vez, se apresenta muito mais do que como o
correlato de minha visão, "sendo ele que ma impõe como a sequência de sua existência
soberana", como carne oferecida à carne (Ibidem, p.130). O que então poderemos encontrar
na palpação táctil para elucidar o enunciado?
Através do toque de minhas mãos em uma textura lisa ou rugosa, exerço uma certa
velocidade e direção de movimento particulares para que eu sinta esse liso ou rugoso. Nisso,
podemos constatar que existe alguma relação de princípio ou parentesco que, como continua
o autor, não pode ser somente deformação do espaço corporal, mas sim abertura e iniciação à
um mundo tátil. Ou seja, quando exercido o toque de minha mão na textura, minha mão
mesma também se faz acessível por fora, tangível, isto é, toca e é sentida do interior, mas é
também tangível e tocada no exterior. Há um cruzamento do tocante e do tocado, um se
reporta ao outro, para usar o exemplo fornecido, como duas metades de uma laranja, em que
meu corpo é modelo das coisas e as coisas modelo de meu corpo. Assim, ao darmos as mãos,
nossa direita com nossa esquerda, a relação de imbricação e cruzamento se torna evidente
também: tocamos tocando, em uma palpação que volta para si enquanto palpável – nisto
temos a experiência de que, apesar da palpação de uma única mão ter seu tangível, está ligada
à outra palpação, constituindo, em uma reconversão, uma mão com a outra, a noção de um
único corpo.
Nisto reside um ponto: a reversibilidade faz com que haja um entrelaçamento de meu
corpo com meu corpo, mas "essa generalidade que faz a unidade de meu corpo, por que não
se abriria ela a outros corpos? (...) Por que não existiria a sinergia entre diferentes
organismos, já que é possível no interior de cada um?" (Ibidem, p.140). É exatamente nesse
Sentiente em geral que se evidencia que o sentir é um retorno sobre si no visível, uma
aderência carnal que toca também a mão do outro, isto é, esposa e envolve o mundo privado
de cada um no seu movimento de "recobrimento e fissão", "identidade e diferença", ou como
também é colocado: pela carne somos habitados por uma visibilidade anônima, uma visão em
geral que elementarmente se coloca como o modo de ser irradiado por toda a parte, no qual,
sendo indivíduo, somos também dimensão e universal.
Com tudo isso, portanto, seremos capazes de perceber e articular, se até aqui não
percebemos, o que Merleau-Ponty chama de quiasma, esse entrelaçamento que existe por
reconversão. Pois é esta reversibilidade, esse imbricamento e entrecruzamento entre o corpo e
a carne do visível mesmo que se estende à um plano relacional quiasmático: porquanto
quiasma se faz como uma noção de continuidade desse tecido em que me entrelaço com o
mundo, no qual somos a própria carne do mundo. É, como já dissemos, o amadurecimento de
uma visão tecida pelo sentir, no qual o espaço é "um espaço contado a partir de mim como
ponto ou grau zero da espacialidade. Eu não o vejo segundo o seu invólucro exterior, vivo-o
por dentro, estou englobado nele" (Idem, 1975, p.290). Não à toa, o espelho traduz tão bem a
“estrutura metafísica de nossa carne”, mostra a duplicidade contida na lógica de sermos
vidente-visível, da reversibilidade do sensível, na qual temos a carne do mundo, esse tecido
do sentir que nos toma diante de um Sensível em geral, nos faz um Sentiente em geral,
porque nossa visão se faz do meio das coisas, na carne desse mundo que vejo e toco, que sou
visto e tocado, enfim, nesse quiasma.
Diante desses enunciados pode ser concretizada a escolha de Film. Haveria, com toda
a razão, diversas formas de lograr de um bom entendimento do que Merleau-Ponty lança para
nós com seu conceito de entrelaçamento – quiasma, com sua carne, sua abertura e
reconversão. Mas há algo visivelmente palpável no filme de Beckett que, já nisso:
“visivelmente palpável", percorre meio caminho para o filôsofes.
O quiasma é este entrelaçamento carnal no qual corpo e mundo são tecidos em uma
continuidade. Não há aí uma divisão entre senciente e sentido, imbricam-se. Este é o jogo
reflexivo que a Visibilidade se movimenta. Por isso Film. Sem nem se esgotar os diferentes
jogos de visão que se cruzam quando o assistimos, podemos entender como todos eles se
relacionam em reversibilidade, e como todos eles, em seu entrelaçamento, permitem também
entendermos a textura da carne que regressa a si, que convém a si mesma, e que é abertura.
Pois, "É próprio do visível, dizíamos, ser a superfície de uma profundidade inesgotável: é o
que torna possível sua abertura a outras visões além da minha" (Idem, 2014, p.141). E disso
tudo ainda tiramos uma lição. Além de percebermos que, apesar de tratarmos aqui de uma
visão narcisista, não tratamos de um solipsismo (sim de uma generalidade elementar),
podemos ainda aprender com essa abertura que se mostra. E aprender isso:
É preciso tomar ao pé da letra aquilo que a visão nos ensina: que por
ela tocamos o sol, as estrelas, estamos ao mesmo tempo em toda
parte, tão perto das coisas longínquas como das próximas, e que
mesmo nosso poder de nos imaginarmos noutro lugar – "Estou em
Petersburgo na minha cama, estou em Paris, mas meus olhos veem o
sol" –, de visarmos livremente, onde quer que eles estejam, a seres
reais, ainda vai buscar a visão, torna a empregar meios que é dela que
recebemos. Só ela nos ensina que seres diferentes, "exteriores",
estranhos um ao outro, estão todavia, absolutamente juntos – e é isto a
"simultaneidade"– (MERLEAU-PONTY, 1975, p.298)
Referências Bibliográficas
DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica (O maior filme irlandês (Film de Beckett). Tradução
de Peter Pál Pelbart. 1 ed. São Paulo: Ed. 34, 1997.
GONTARSKI, S. E. The Intent of Undoing in Samuel Beckett's Dramatic Texts. 1 ed.
Indiana Univ Pr, 1985.