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REVISÃO DE ATLANTIS – ANDRAS ATLASON por BRUNO BORMA – 18/05/2023

Ao nos depararmos com Atlantis pela primeira vez, podemos sentir que a obra ora soa fácil
como uma canção popular, ora bastante difícil de absorver e compreender.

A constante mistura de temas musicais e literários, instrumentos e timbres, bem como a vasta
exploração das modulações harmônicas, alternâncias de ritmos e formas musicais pode fazer o
ouvinte inexperiente se sentir perdido no oceano composicional de Andras Atlason e por vezes
frustrado com a expectativa de continuidades temáticas em suas canções.

No entanto, à medida que se vai ouvindo mais vezes e mais atentamente, o que podia parecer
uma obra dispersa, vai se tornando cada vez mais coesa e agradável, até que de repente se
tem noção da sua magnitude artística. O ouvinte então poderá começar a se dar conta das
raras combinações de seus temperos musicais, que passam a conquistar seu paladar, até que
se queira ouvir o álbum repetidamente.

O álbum evoca constantemente a atmosfera mítica dos antigos aedos, que cantaram canções
sobre um lugar perdido, se para sempre, ou a se buscar, vai depender do coração do ouvinte.
Somos surpreendidos diversas vezes por combinações exóticas entre os contrapontos do
violino e do oboé, cantando elegantes temas da música erudita e as angústias das
personagens das letras, enquanto o baixo e a bateria sustentam o grave vocal de levadas
marítimas.

Diversas vezes temos a impressão de escutar o compasso das ondas do mar, às vezes
mansas e regulares, como numa calmaria de uma noite enluarada, enquanto o aedo canta na
proa da nave, introduzindo a viagem da vida de seus tripulantes. Às vezes percebemos um
oceano tempestuoso, de ondas furiosas, em que guerreiros remam bravamente, cantando em
seus corações as vontades do encontro com sua morada final.

Muitas das músicas nos apresentam modulações repentinas ao entrarmos num refrão ou num
poslúdio, as quais nos conduzem por vezes a retornos inesperados ao verso, resolvendo
tensões musicais raras de forma particularmente elegante e pouco usuais.

Por vezes temos a impressão de ouvir fragmentos de Steven Wilson, como nos aludem a
guitarra e o sintetizador algo fantasmagóricos de “Havið sang”, para sermos subitamente
apresentados a ecos de DorDeDuh evocados pelo riff da guitarra e da melodia folclórica de um
flautista virtuoso. Em “Krummavísur” temos a impressão marcante de estar diante de um
legítimo herdeiro das brilhantes orquestrações progressivas de Anglagard, quando ouvimos o
grave sincopado nervoso do baixo e a euforia ensandecida da flauta, sem falar na aparição
repentina de um coro de tipo gregoriano sintetizado como melotron. Em “Í kulda sól” somos
levados a sonhar no embalo singelo da melodia do piano e do sintetizador à la Debussy.

Toda essa mistura entre temas folclóricos e medievais refinados, a atmosfera marítima das
canções, e a rara orquestração de instrumentos distintos, é costurada sobre um veemente
pano de rock progressivo, de modo que, mesmo diante de atmosferas eruditas ou antigas, não
se perde de vista a modernidade da composição e seu diálogo com o pioneirismo experimental,
o que nos convida a posicionar a obra no patamar Avant Garde.

De quebra, as músicas entoam letras das almas de Fernando Pessoa e do imaginário popular
escandinavo, nos lembrando que de fato escutamos canções sobre o mar e as Ilhas Perdidas,
sejam aquelas que antigos marinheiros buscaram nos mares do mundo, sejam as que todos
buscamos no nosso pequeno universo.

Como um Orfeu lutando para se situar e cantar os confusos mares da modernidade, fazendo
de sua parafernália musical a sua cítara, Andras Atlason resgata para nossos tempos a
elegância perdida da ode lírica, trágica, melancólica e grandiosa. Na busca por sua terra sem
ter lugar, sempre presente, o compositor materializa sua Atlântida nessa valiosa obra-prima.
Um álbum para ser apreciado no silêncio, aos bons tragos do melhor vinho e estalidos da
lareira.

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