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O PoderPsiquiátrico

Paul-Michel Foucault nasceuem Poitiers, França,em 15


de outubro de 1926. Em 1946 ingressana École Normale Su-
périeure,ondeconhecee mantémcontatocom PierreBourdieu,
Jean-PaulSartre,Paul Veyne, entre outros. Em 1949, Foucault
conclui suaLicenciaturaem Psicologiae recebeseuDiploma em
EstudosSuperioresde Filosofia, com uma tesesobreHegel, sob
a orientaçãode JeanHyppolite. Morre em 25 de junho de 1984.
Michel Foucault
O Poder Psiquiátrico
Cursodado no College de France
(1973-1974)

Edição estabelecidapor JacquesLagrange


sob a direção de François Ewald
e Alessandro Fontana

Tradução
EDUARDO BRANDÃO

Revisãqtécnica
SALMA TANNUS MUCHAIL
MÁRCIO ALVES DA FONSECA

Martins Fontes
São Paulo 2006
Esta obrn foi publicada ongina/mente em francês com o /(tu fo
LE POUVOIR PSYCHJATRJQUE por Édilions du Se11i/ , Paris.
Copyright © Seuil/Gnllimnrd, 2003.
Co1n1right © 2006, Uvrarin Marfins Fontes Editora Udn.,
Srio Paulo, pnra a presenteedição.

'' 01mragepublié avec le concours du Mini stere Fmnçaischargé


de la Cu/fu re - Centre National du Livre."
" Obra publicada com a colaboração do Ministério Francês
da Cultura - Centro Nacional do Livro."

1• edição 2006

Dados Internacionais de Catalogaçãona Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Foucault,Michel, 1926-1984.
O poder psiquiátrico : curso dado no College de France
(1973-1974)/ Michel Foucault; ediçãoestabelecidapor Jac-
quesLagrange,soba direçãode FrançoisEwald e Alessandro
Fontana; traduçãoEduardoBrandão; revisãotécnicaSalma
Tannus Muchail, Márcio Alves da Fonseca . - São Paulo :
Martins Fontes,2006. - (Tópicos)

Título original: Le pouvoir psychiatrique: cours au Cole-


ge de France, 1973-1974.
Bibliografia.
ISBN 85-336-2276-7

1. Doençasmentais- História 2. Psiquiatria- Filosofia I.


Lagrange,Jacques.Il . Ewald, François.III . Fontana,Alessan-
dro. N. Título. V. Série.

06-2871 CDD-616.89001
Índices para catálogo sistemático:
1. Ética e loucura: Psiquiatria: Ciênciasmédicas 616.89001
2. Loucura e ética: Psiquiatria:Ciênciasmédicas 616.89001

Todosos direitos destaedição para o Brasil reservadosà


Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
Rua ConselheiroRamalho,330 01325-000 São Paulo SP Brasil
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e-mail: info@martinsfontes .com.br http://www.martinsfontes.com
.br
ÍNDI CE

Nota ········ ··· ···· ···· ·· ··········· ···························· ·· ···· ···· ········ ···· XI

AULAS, ANO 1973-1974

Aula de 7 de novembrode 1973 ....................................... 3


Espaçoasilar e ordemdisciplinar. - Operaçãote-
rapêuticae tratamentomoral" . - Cenasde cura.
II

- Os deslocamentos efetuadospelo cursoem rela-


ção à História da loucura: (1) De urna análisedas
"representações " a urna analíticado poder''; (2)
II

Da "violência" à "microfísica do poder"; (3) Das


"regularidadesinstitucionais" às"disposições"do
poder.

Aula de 14 de novembro de 1973 .......... ........................... 25


Cenade cura: JorgeIII. Da "rnacrofísicada sobe-
rania" à "microfísicado poder" disciplinar.-A no-
va figura do louco.- Pequenaenciclopédiadasce-
nas de cura. - Práticada hipnose e histeria.- A
cena psicanalítica ; cena antipsiquiátrica.- Mary
Barnesem Kingsley Hall. - Manipulaçãoda lou -
cura e estratage1na
de verdade:Mason Cox.

Aula de 21 de novembrode 1973 ..................................... 49


Genealogiado "poderde disciplina". O "poderde
soberania". A função-sujeitonos poderesde dis-
ciplina e de soberania.- Fon11asdo poderde disci-
plina: exército,polícia, aprendizage1n,oficina, es-
cola. - O poder de disciplina c01no "instância
nom1alizadora".- Tecnologiado poderde discipli-
na e constituiçãodo "indivíduo". -A en1ergência
das ciênciasdo homem.

Aula de 28 de novembrode 1973 ..................................... 79


Elementos deuma história dos dispositivosdisci-
plinares:as comunidadesreligiosasna IdadeMé-
dia; a colonizaçãopedagógicada juventude; as
missõesjesuíticasno Paraguai;o exército; as ofi-
-A formalizaçãodes-
cinas; as cidades operárias.
sesdispositivosno modelodo Panopticonde Jeremy
Bentham.- A instituiçãofamiliar e a emergência
da função-psi.

Aula de 5 de dezembrode 1973 . ... .. . .. .... .. . ... .. . . . . .. ...... .. . 117


O asilo e afamília. Da interdiçãoao internamen-
to. A ruptura entre o asilo e a família. - O asilo,
uma máquinade curar. - Tipologia dos "apare-
lhos corporais".- O louco e a criança.- As ca-
sasde saúde.- Dispositivosdisciplinarese po-
der familiar.

Aula de 12 de dezembrode 1973 ...................................... 153


A constituiçãoda criançacomo alvo da interven-
çã? psiquiátrica.- Uma utopia asilar-familiar: o
asilo de Clermont-en-Oise.- Do psiquiatraco-
mo "mestreambíguo"da realidade eda verdade
naspráticasprotopsiquiátricasao psiquiatracomo
11
agentede intensificação"do real. - Poder psi -
quiátrico e discurso deverdade.- O problemada
simulação e da insurreição dos histéricos. - A
questãodo nascimentoda psicanálise.

Aula de 19 de dezembrode 1973 ...................................... 179


O poderpsiquiátrico.- Uma terapiade François
Leuret e seuselementosestratégicos:1? a dese-
quilibraçãodo poder; 2? a reutilizaçãoda lingua-
gem; 3? o arranjo das necessidades; 4? o enun-
ciado da verdade.- O prazerda doença.- O dis-
positivo asilar.

Aula de 9 de janeiro de 1974......................................


...... 217
Poderpsiquiátricoe práticada "direção".- O jo-
go da "realidade"no asilo. - O asilo, espaçome-
dicamentemarcado,e a questãoda sua direção:
médica ou administrativa.- As marcasdo saber
psiquiátrico: (a) a técnicado interrogatório;(b) o
jogo da medicaçãoe da punição; (c) a apresenta-
ção clínica. - "Microfísica do poder" asilar. - A
emergênciada função-psie da neuropatologia.-
O tríplice destinodo pod~r psiquiátrico.

Aula de 16 de janeiro de 1974..........................................255


Os modos de generalizaçãodo poder psiquiá-
trico e a psiquiatrizaçãoda infância.- I. A espe-
cificação teórica da idiotia. O critério do desen-
volvimento. Emergênciade um?- psicopatologia
da idiotia e do retardomental.EdouardSeguin:
o instinto e a anomalia.- II. A anexaçãoinstitu-
cional da idiotia pelo poderpsiquiátrico.O "tra-
tamentomoral" dos idiotas: Seguin.O processo
de internamentoe de estigmatizaçãoda periculo-
sidadedos idiotas. O recursoà noção de degene-
rescencia.
A •
Aula de 23 dejaneiro de 1974.......................................... 299
O poder psiquiátrico e a questãoda verdade:o
intenogatórioe a confissão;o 1nagnetismoe a
hipnose; a droga.- Elen1entosparau1nahistória
da verdade: I. A verdade-acontecimentoe suas
fonnas: práticasjudiciária, alquímicae 1nédica.-
II. A passagen1a un1a tecnologiada verdadede-
monstrativa. Seusele1nentos:(a) os procedilnen-
tos da investigação;(b) a instituiçãode um sujeit o
do conhecilnento;(c) a exclusãoda crise na me-
dicina e na psiquiatria,e seussuportes:o espaço
disciplinar do asilo, o recurso àanatomiapatoló-
gica; as relaçõesentre a loucura e o crime. - Po-
der psiquiátrico,resistênciahistérica.

Aula de 30 dejaneiro de 1974.......................................... 345


O problema do diagnóstico em medicina e em
psiquiatria.- O lugar do corpo na nosologia psi-
quiátrica: o modelo da paralisiageral. - O desti-
no da noçãode crise em medicinae em psiquia-
tria. - A prova de realidadeem psiquiatria e suas
formas: I. O intenogatórioe a confissão. O ritual
da apresentaçãoclínica. Nota sobre a "herança
patológica"e adegenerescência. - II. A droga. Mo-
reau de Tours e o haxixe. A loucura e o sonho.-
III. O magnetismoe a hipnose.A descobertado
"corpo neurológico".

Aula de 6 de fevereiro de 1974 .. . . . . . . .. . .. . .. .. . . .. . .. .. . .. . . .. . ..38


. . .7
A emergênciado corpo neurológico:Broca e Du-
chennede Boulogne. - Doençascom diagnósti-
co diferenciale doençascom diagnósticoabsoluto.
- O modelo da "paralisiageral" e as neuroses.-
A batalhada histeria:I. A organizaçãode um "ce-
nário sintomatológico".- II. A manobrado "ma-
nequimfuncional" e ahipnose.A questãoda simu-
lação.- III . Neurosee traumatismo.A irrupçãodo
corpo sexual.
Resumodo curso............................................................... 439
Situaçãodo curso.............................................................. 455

Índices
Índice das noções.................................................... 481
Índice de nomesde pessoas.... .... ..... ... .... .. .. ... .. ... .. 495
Índice de nomesde lugar....................................... 509
OTA

Michel Foucaultensinouno Collegede Francede janeiro


de 1971 até a suamorte em junho de 1984-com exceçãode
1977,quandogozoude um ano sabático.O título da suaca-
deira era: História dos sistemasde pensamento.
Essacadeirafoi criadaem 30 de novembrode 1969,por
propostade JulesVuillemin, pela assembléiageral dos profes-
soresdo Collegede Franceem substituiçãoà cadeirade Histó-
ria do pensamentofilosófico, queJeanHyppolite ocupouaté a
suamorte.A mesmaassembléiaelegeuMichel Foucault,no dia
12 de abril de 1970,titular da no'vacadeira1. Ele tinha 43 anos.
Michel Foucaultpronuncioua aula inauguralno dia 2 de
dezembrode 19702 .
O ensinono College de Franceobedecea regrasparti-
culares.Os professorestêm a obrigaçãode dar 26 horasde

1. Michel Foucaultencerrouo opúsculoque redigiu parasuacan-


didatura com a seguintefórmula: "Seria necessárioempreendera his-
tória dos sistemasde pensamento " ("Titres et travaux", in Dits et Écrits,
1954-1988,ed. por D. Defert e F. Ewald, colab. J. Lagrange, Paris, Galli-
mard, 1994; d. vol. 4, t. I, p. 846).
2. Publicada pelas Éditions Gallimard em maio de 1971 com o
título: L'Ordre du discours.
O PODER PSIQUIÁTRI O
XII

aula por ano (metadedas quais, no 1náxilno, pode ser dada


na fonna de sem.i.nários3
). Elesdevemexporcadaanoumapes-

qui a 01iginal, o que ?~ o~ii?a a semprereno~ar,~ cm;~eúd_o


do seuensino.A frequenc1aas aulase aossermnanose 1nte1-
ramente livre, não requerinscriçãonem diploma. E o profes-
or tambémnão fornece certificado algun14• No vocabulário
do Collegede France,diz-seque os professoresnão têm alu-
nos, mas ouvintes.
O cursode Michel Foucaulteradadotodasas quartas-fei -
ras, do começode janeiro até o fim de março [ou do início de
novembroao início de fevereiro,como este(N. do T.)]. A assis-
tência,numerosíssin1a, compostade estudantes,professores,
pesquisadores, curiosos,muitos delesestrangeiros,mobilizava
dois anfiteatrosdo Collegede France. Michel Foucaultquei-
xou-serepetidasvezesda distânciaque podiahaverentreele e
seu "público" e do poucointercfunbio que a forma do curso
possibilitava5 • Ele sonhavacom um seminárioque servissede
espaçoparaum verdadeirotrabalhocoletivo. Fez váriastenta-
tivas nesse sentido. Nos últimos anos,no fim da aula,dedicava
um bom momentopararesponderàs perguntasdos ouvintes.
Eis como,em 1975,um jornalistado NouvelObseroateur,
GérardPetitjean,transcreviaa atmosferareinante: "Quan-
do Foucaultentrana arena,rápido, decidido, como alguém
que pula na água,tem de passarpor cima de vários corpos
para chegarà sua cadeira,afastaos gravadoresparapousar
seuspapéis,tira o paletó,acendeum abajure arranca,a cem
por hora.Vozforte, eficaz, transportadapor alto-falantes,úni-

3. Foi o que Michel Foucaultfez até o início dos anos1980.


4. No âmbito do Collegede France.
5. Em 1976,na (vã) esperançade reduzir a assistência,Michel Fou-
ca':1t rnud_o~?horá~od? curso,que passoude 17h45para as 9 da ma-
nha. ~,f.,~ rmao da pnmerraaula (7 de janeiro de 1976) de "ll faut défendre
la societé'. Cours au Collegede France, 1976,ed. sob adir. de F. Ewald e A.
Fontanapor M. Bertanie A. Fontana,Paris,Gallimard/Seuil,1997. [Trad.
bras.de Maria ErrnantinaGalvão,Em defesada sociedade. Curso no College
de France (1975-1976),São Paulo,Martins Fontes,1999.]
NOTA
XIII

ca concessãoao modernismode umasalamal iluminadapela


luz que se elevade umasbaciasde_estuque.Há trezentoslu-
garese quinhentaspessoasaglutinadas,ocupan~otodo e
qualquerespaçolivre[ ...] Nenhumefeito oratório. Elímpido
e terrivelmenteeficaz.Não faz a menorconcessãoao impro-
viso. Foucault tem doze horas por ano para explicar, num
cursopúblico, o sentidoda suapesquisaduranteo ano que
acabade passar.Então,compactao mais que pode e enche
as margenscomo essesmissivistasque ainda têm muito a
dizer quandochegamao fim da folha. 19h15.Foucaultpára.
Os estudantesse precipitamparasuamesa.Não é parafalar
com ele, masparadesligaros gravadores.Não há perguntas.
Na confusão,Foucaultestásó." E Foucaultcomenta:"'Seria
bom poder discutir o que propus.Às vezes,quandoa aula
não foi boa, pouca coisa bastaria,uma pergunta,para pôr
tudo no devidolugar. Mas essaperguntanuncavem. De fato,
na França,o efeito de grupo torna qualquerdiscussãoreal
impossível.E, como não há canalde retomo,o cursose tea-
traliza. Eu tenho com as pessoasque estãoaqui uma rela-
ção de ator ou de acrobata.E, quandoacabode falar, uma
sensaçãode total solidão..." 6
Michel Foucaultabordavaseuensinocomo um pesqui-
sador:exploraçõesparaum livro por vir, desbravamento tam-
bém de campos de problematização,que se formulavam
muito mais como um convite lançadoa eventuaispesquisa-
dores.Assim é que os cursosdo College de Francenão re-
petemos livros publicados.Não são o esboçodesseslivros,
mesmoque certostemaspossamsercomunsa livros e cursos.
E~es têr_n seu estatutopróprio. Originam-sede um regime
discursivoespecíficono conjuntodos "atos filosóficos" efe-
tuadospor Michel Foucault.Ele desenvolveaí, em particular,
0 pr<:_gramade uma genealogiadasrelaçõessaber/poder em
funçaodo qual, a partir do início dos anos1970,refletirá seu

6. GérardPetitjean,"Les GrandsPrêtresde l'universitéfran aise"


Le Nouvel Observateur,7 de abril de 1975. ,
O PODER P IQulATRJCO

trabalh - m oposiçãoao de uma arqueologiadas forma-


7
ç di cur ivas que até ntão dominara•
cur os tambén1tinham uma função na atualidade.
ouvinte que assistiaa elesnão ficava apenascativadopelo
relato que se construíasen1anaapóssemana;não ficava ape-
na seduzido pelo rigor da exposição:tambémencontrava
nelesuma luz para a atualidade.A arte de Michel Foucault
stavaem diagonalizara atualidadepela história. Ele podia
falar de Nietzscheou de Aristóteles,da períciapsiquiátricano
éculo XIX ou da pastoralcristã, maso ouvinte sempretirava
do que ele dizia uma luz sobreo presentee sobreos acon-
tecimentoscontemporâneos seus.A força própria de Michel
Foucaultem seuscursosvinha dessesutil cruzamentode uma
fina erudição,de um engajamentopessoale de um trabalho
sobreo acontecimento.

Os anos1970 conheceramo desenvolvimentoe o aper-


feiçoamento dos gravadoresde fita cassete- a mesade Mi-
chel Foucault logo foi tomadapor eles. Os cursos (e certos
seminários) foram conservadosgraçasa essesaparelhos.
Estaediçãotomacomo referênciaa palavrapronuncia-
da publicamentepor Michel Foucault.Ela fornece a trans-
crição mais literal possívelª. Gostaríamosde poderpublicá-
la tal qual. Mas a passagemdo oral ao escrito impõe uma
intervençãodo editor: é necessário,no mínimo, introduzir
uma ~ontuaçãoe definir parágrafos.O princípio semprefoi
o de ficar o mais próximo possívelda aula efetivamentepro-
nunciada.

, :· Cf. em particular "Nietzsche,la généalogie,l'histoire", in Dits


et Ecnts,11, p. 137.
, 8. Forammaisespecialmente utilizadasas gravaçõesrealizadaspor
GerardBurlet e Jacques Lagrange,depositadasno College de Francee
no 1MEC.
XV
NOTA

Quandopareciaindispensável,as repetiçõesforam su-


primidas; as frasesinterro~pidasforam restabelecidas e as
construçõesincorretas,retificadas.
As reticênciasassinalamque a gravaçãoé inaudível.
Quandoa frase é obscura,figura entre chavesuma integra-
ção conjectura!ou um acréscimo.
Um asteriscono rodapéindica asvariantessignificativas
dasnotasutilizadaspor Michel Foucaultem relaçãoao que
foi dito.
As citaçõesforam verificadase as referênciasaostextos
utilizados, indicadas.O aparatocrítico se limita a elucidar
os pontosobscuros,a explicitar certasalusõese aprecisaros
pontoscríticos.
Parafacilitar a leitura, cada aula foi precedidapor um
9
breve resumoque indica suasprincipais articulações .

O texto do curso é seguido do resumo publicado no


Annuairedu Collegede France. Michel Foucaultos redigia ge-
ralmenteno mês de junho, pouco tempo depois do fim do
curso,portanto.Era, paraele, urna oportunidadeparaextrair,
retrospectivamente, suaintençãoe seusobjetivosdo mesmo.
E constituema melhor apresentação das suasaulas.
Cadavolumeterminacom urna"situação",de responsa -
bilidade do editor do curso.Trata-se dedar ao leitor elemen-
tos de contexto de ordem biográfica, ideológica e política,
situandoo cursona obra pub).icadae dandoindicaçõesrela-
tivas a seulugar no âmbito do corpus utilizado, a fim de faci-
litar suacompreensão e evitar os contra-sensosquepoderiam
se dever ao esquecimentodas circunstânciasem que cada
um dos cursosfoi elaboradoe dado.
O poderpsiquiátrico, cursoministradoem 1973,é edita-
do por JacquesLagrange.

9. No fim do volume (pp. 455 ss.), o leitor encontrará os critérios


e as soluçõesadotadaspelos editoresparaesteano de curso.
AULA DE 7 DE NOVEMBRO DE 1973

Espaço asil ar e ordem disciplinar. - Operaçãoterapêutica


e "tratamento moral". - Cenas decura. - Os deslocamentosefe-
tuados pelo curso em relação à História da loucura: (1) De
uma análise das "representações"a uma "analítica do poder";
(2) Da "violência" à "microfísica do poder"; (3) Das "regularida-
des institucionais" às disposições" do poder.
II

O temaque lhes proponhoeste anoé o poderpsiquiá-


trico, um pouco em descontinuidadecom o que lhes falei
nos doisanosprecedentes, mas só um pouco.
Vou começarprocurandocontar uma espécie de cena
fictícia, cujo cenárioé o seguinte,vocês vãoreconhecê-lo,é fa-
miliar a todos:
"Eu queria que esseshospíciosfossemconstruídosem
florestassagradas,em lugaressolitáriose escarpados, no meio
das grandescomoções , como na Grande-Chartreuse, etc.
Geralmente,seria bom que o recém-chegadofossedescido
por máquinas,que atravessasse , antesde chegarao destino,
lugaressempremais novos e mais surpreendentes , que os
ministrosdesseslugaresusassemtrajesoriginais. O român-
tico convémaqui, e muitasvezeseu me disseque se pode-
riam aproveitaraquelesvelhos castelosjunto de cavernas
quevaramum morro de lado a lado, parachegara um vale sor-
ridente [...] A fantasmagoriae os outrosrecursosda física, a
música,as águas,os relâmpagos , os trovões,etc. seriamusa-
dos sucessivamente e, semdúvida, não semalgum sucesso
sobreos homenscomuns." 1

*
O PODERPSIQUIÂTRICO
4

Essecastelonão é exatru11enteaqueleem que devem


se desenrolaros Centoevinte dias2; é mn casteloem que de-
vem se desenrolardias muito 1nais numerosose quasein -
finitos é a descriçãode un1 asilo ideal por Fodéréem 1817.
o quedeveacontecerno interio~ dessecenário?_Poisbe~n,n_o
1

mterior dessecenário, claro, rem~ ~ o~dem,reiné!_a le1J r~~ -


na o2od~r. No l!1te~o~de~sec~nário, no castelo_prote8"!-®
por essecenárioromanticae alpino, nessecastelo1nacess1_yel
a nao serusanâomaq_umªscomplicadase cujo aspectodeve
"SUrpre-enderosnomenscomuns der o..d.es.s_e_castelo reina,
an es e mais nada,sim lesmenteun1a o ·de.m,_nosentido
sunpes de uma regulaçãope étua, ermane!lte~dos ~ -
pos, as atlvi a es, os gestos;un1a or em gue envolye_2?
Corpos,que os enetra, ue os tré!_balha, ue_se ap].ca à~-
per c1e e es, il]ªS gue também__seimp.rime até esmonos
nervose no ue um outro chamavade "fibras moles do cé-
rêoro. . ma ordem,portanto,- ela ual os-cor Õs não são
mais que superfíciesa atravessare volumesa trabajh ar u~a
ordem que é como uma grande~rvura de prescrições,de
sorte e õs corposse1amassim arasitadose atravessados
rela ordem.
"Nãonápor queseespantarmuito", escrevePinel,"com
a importânciaextremaque dou à manutençãoda calma e
da ordemnum hospíciode alienados,e às qualidadesfísi-
case morais que essavigilância requer,uma vez que essaé
uma dasb~sesfundamentaisdo tratamentoda maniae que
sem ela nao obtemosnem observaçõesexatas,nem uma
curapermanente,nãoimportandoquantose insista,de res-
to, com os medicamentosmais elogiados."4
Ou seja,comovocêsestãovendo certaordem certadis-
ciplina, certa_regularid~deque se aplica no prop;io interior
dos corpossao necessarias a duascoisas.
Por um lado, à própria constitwçaodo sabermédico 1· á
que, semessacli sc1puna,
~ ~- --
sem ~
essa ---
ordem --
sem essees ue-'
:ma rescntivode re ari a es não é possíve ter umaobsêr-
va ao _e~~ta. A concli ao do olhar médico,suaneutralidade,
a poss1bilida e eele ter acessoao objeto,em outrasp avras,
AULA DE 7 DE NOVEMBRODE 1973 5
(ir"' V1A~1;2õ
a própria rela ão de ob·etividade consti!:l,itiy do_sabe.u:u.é-
co e critério da suavalidade, em ~o condiçãoefetiva de
'poss1 1idade certa rel_a ão de ordem ~erta distribui ão ?~
empo, o es a o do Paradizer a verdade- alias,
vo arei a esseponto -, não se ode nem mesmodizer "os
m vi uos ; 1 amos,sim esmentecerta distribui ão dos
corpos, os gestos, os com ortamento~ dos discursos.É nes-
sa spersãoregradaque se encontrao campoa partir do qual
algo como a relaçãodo olhar médico com seu objeto, are-
laçãode objetividade,é possível- relaçãoque é apresentada
como efeito da dispersãoprimeira constituídapela ordem
disciplinar.Em se~dolugar, essaordemdis~linar,sue ª.Pª-
rece nessetexto de Pinel como condiçãoparauma observa-
çao exatae, ao mesmotempo,condíçaoda cura ermanente;
· , · operaçao era2euticaessatrans orma ão a
pmttt da quãtãlguemconsideradodoentedeixa de serdoen-
1e, só pode. ser reâlizadano intenor dessadistribui ão re-
grã o po er. o o, a con ·ção da relaçãocom o ob·etoe
da óÕJehvidadedo con ecimentome ·co, e a condição da
operaçãotera euticasaoasmesmas:a ordem disci linar. Mas
essaespecie e ordemimanente,que pesaindiferentemen-
te sobretodo o espaçodo asilo, na realidadeé percorrid~,in-
teiramenteanimadade ponta a pontapor uma dissimetria
que faz que ela sejaligada, e ligada imperiosamente,a uma
instânciaúnica que é, ao mesmotempo,interior ao asilo e
o ponto a partir do qual se fazem a repartiçãoe adispersão
disciplinaresdos tempos,dos corpos,dos gestos,dos com-
portamentos,etc. Essainstânciainterior ao asilo é ao mes-
mo tempo dotadad.e um poderilimítado.t.i!._ ue nada ode
nem deve res1strr.Essa instância,inacessível,sem simetria,
sem rec1procida e, que funciona assimcomo fonte de po-
der, elementoda àissimetriaessencialda ordem, ue faz com
que essaordem seJauma ·oiêlem semprederivadade uma
re aç ~ ,, oca e o er ois· bem, é evidentemente
a 1nstanciame ·ca que, comovocêsvão ver,
po er mmto antes e ncionarcomo sabe.
O PODER PSJQUIATRICO

Porqu : que ' e se médico?Pois bem, ei-lo que apare-


ªº,
r a ra, quandoo doentefoi levado asilo pela~ espan-
t ~ª máquinasde que eu lhes falava ha pouco. Snn, tudo
i ~ ' uma d scriçãofictícia, no sentido de que eu a cons-
tru a partir de ce1io nÚ111erode texto~ q~e n_ão sãode um só
p iquiatra; po~que,se fos~~m.de m;1 Jº ps1qwatra,a d~11:on~-
traçãonão tenavalor. Utilizei Fodere:o Tratado do delzno; P1-
n l: o Tratado médico-filosóficosobrea mania; Esquirol: os ar-
tigos reunidosem Das doençasmentais5, e Haslam6 •
Então,como se apresentaessainstânciado poderdissi-
méb.icoe não lin1itado que atravessae ai1ima a ordemuniver-
sal do asilo? Eis como ela se a resentano texto de Fodéré,
o Tratado do e zno, que ata e 1817, essegrandee ecun-
"d'o momentoda pro1o-füstónada psiquiatriado secuo ;
í818: é o grandetexto de EsqwroF, é o momentoem que o
saber pstqwéiffico se mscreveno mtenordo cain o méciico e;
ã o mesmotem20, adquire sua autonomiacomo esP.eciali-
dade. m 13e o físico, isto é, um físico nobree másculo,tal-
vez seja,em geral,uma dasprimeirascondiçõesparater su-
cessona nossaprofissão;ele é indispensávelem contatocom
os loucos, para se impor. Cabeloscastanhosou branquea -
dos pela idade,olhos vivos, um porte altivo, membrose um
peito que anunciamforça e saúde,traçossalientes,umavoz
forte e expressiva:são essasas formas que produzemem ge-
ral um grandeefeito sobre indivíduos que se crêem acima
de todos os outros. Sem dúvida, o espírito é o reguladordo
corpo; mas não se o vê logo de início, ele necessitadas for-
mas exteriorespara arrastara multidão."8
. . . Logo, como~ocêsestãovendo,a própriaper_s ~nagemvai
111lc1almenteIünc1onarao pnmeiroolnar. Mas,nesseprimei~
ro olhar, que é aquilo a partir do que se estabelecea relação
p_siquiátrica,o médicoé essencialmente um corpo,mais pre-
cisamente,é um físico, certacaracterização, certamorfologia
bem ~reetsa,em que rtá a amplrtüêleâõsmusc os, a largu-ra
'ão peito, ~ cor dos ca e_QS, etc.E essapresençafísica, c01'!1
essasqualidades,que funcionacomo a cláusulade dissime-
a a so uta na ordemregulardo asilo, é essapresençaq~e
AULA DE 7 DE NOVEMBRODE 1973 7

fa~ com que o_asil_o 1:~º seja, como nos diriam os psicosso-
c10 ogos,uma1nshhnçaoque funciona de acordocom certas
regras;e um ~ampo na realidade olatizadopor uma dissi-
e na essencialdo poder,que adquireportantosua forma
suafigura, suainscriçãofísica no próprio corpo do médicd.
Mas essepoder do médico, claro, não é o único oder
ue se exerce;porque,no asilo como em toda parte, o po-
er nunca éF aquilo que a guém detém, tampoucoé o que
emanade alguém.O podernãopertencenema alguémnem,
á1iás,a um grupo; só há poderporquehá dispersão,inter-
mediações,redes 1 apoiosrecíprocos,diferençasde otencial,
e asagens,etc. nessesistemade diferenças,que será re-
ciso analisar,que o poderpoaesepôr em funcionamento.
r, Vocêstêm portantoem torno do médico toda urna sé-
uie de intermediações;os principaissão os seguintes:
Os vigilantes,primeiro, aos q_uaisFodéréreservaa tare-
fa de informar sobreos cfoentes,de ser o olhar não armado,
nao científico, urna es écie de c a ~ o qual vâi
se exercero olhar científico, isto é, o olhar ob·etivodo ró rio
psiquiatra. Esse olhar intermediário, proporcionado_pelos
vigilantes,é iguâlfhenteum olhar ue devesevoltar paraos
servenes, ísto é, para os 9ue detêmo último elo da autori-
a e. vi anteê,ortanto,ao mesmotemyoo mestredos
u timos mestrese aquelecujo ·scurso,cujo oThar, cujasoô-
serva oese relações devem QOSsibilitara constitui ão do sa-
ber médico.O que sãoos vigilantes?Como devemse ? "Há
que exigir num vigilante de insensatosurna estaturade como
'berrirroporcionada , músculoscheiosde força,e vi or, uma
p ostura altiva e intrépida se for o caso,urna voz cu·o tom
sejafulminante uandoneces~ário;,além disso,ele deveser
e uma probidadesevera ter:..costumespuros uma firmeza
compatívelcom formas docese persuasivas[...] e uma do-
cili ade absolutaàs ordensdo médico."")
.. Enfim - eu passopor cima de certo númerode interme-
diações-, a última etapaé constituída elos serve es e
detêmum po er cunos1ssímo. e fato, o serventeé Q
o inEermeâianodessarede, dessadiferençade t.___
8 O PODER PSIQUIÁTRICO

que perconeo asilo a partir do poderdo médico; é portan-


o o poder de baixo. Mas ele nao estáembaixosimplesmente
porque es a no últüno 1úvel dessahierarquia;ele está em-
'R"J'i:iw';"'l:-;:;amõé1nporquedeveestarabaixodo doente.Deve estar
a enasa serviço os VIgilantes que estãoacima dele,
n1asa serviçodos própriosdoentes;e, nessaposiçãode ser-
viço aos doentes, eles não deve1nser, na verdade,mais que
o simulacrodo serviço aosdoentes.A arentementeobede-
cem as or ens- estes, assistem- es materialmente,masde
al n1odo que, por un1 lado, o cmn_portamentodos doentes
possaser observado_por trás, or baixo no nível dasordens
que pode1ndar, e1nvez de servisto de cimal CQIDO pelosvigi-
an es e pelo medico. Portantoos doent~svão ser de certo
modo 1nanipuladospelosserventes,gue vão olhá-losno ni-
ve âacotidíanidadee na face de certomodo internada von-
taaeque exercem,dos desejosque têm· e o serventevai re-
mar o queihiígnô de ser re ata o ao vigilante,. Q,,Ue relatará
ao médico. ~ ele, ao mesmotem o ~ue~ qua o o oente
dá ordensg_ue não devemser executadas,terá como tarefa
- fingindo estara serviçodo doente,fingindo obedecer-Ih ~,
por conseguintefingindo não ter vontadeautônoma- não
fazer o que o doentepede,referindo-seà granaeautoria.ade
anônimado regulamentoou à vontadesingulardo médíc,ó.
Com isso, o doente,que é mani12uladopela observaçãodo
-servente,vai ser manipuladopela vontadedo médico, com
quemele vai ter no mesmomomentoem que áá ao serve!1-
te certo númerode ordens,e, nessesimulacrode serviço,o
envolvimentodo doentepelavontadedo médicoou pelo re-
gulamentogeral do asilo vai ser assegurado.
Eis a descriçãodessesserventesnessaposiçãode ma-
nipulação:
"§ 398. Os serventesou guardasdevemser grandes,for -
tes, probos, inteligentes,limpos em sua pessoae em sua
roupa.Paranão melindrara extremasensibilidadede alguns
alienados,principalmentequanto ao ponto de honra, con-
viria quasesempreque os serventesparecessemser muito
mais seusdomésticosdo que seusguardas[...] No entanto,
AULA DE 7 DE NOVEMBRODE 1973 9

como tambémnão devemobedeceraosloucose como mui-


tas vezessãoinclusive forçadosa reprimi-los, paraconciliar
a idéia de doméstico com a desobediênciae para afastar
todo e qualquerdesentendimento, serátarefa do vigilante
insinuar habilmenteaos doentesque aquelesque os ser-
vem receberamcertasinstruçõese certasordensdo médi-
co, que não podemdesconsiderarsemrecebera permissão
· di ata deste."10
1me
Vocês têm portantoessesistemade poderque funcio-
na no interior do asilo e que distorceo sistemaregulamentar
geral, sistemade poderque é asseguradopor uma multipli-
cidade,por uma dispersão,por um sistemade diferençase
de hierarquiase, mais precisamente,pelo que poderíamos
chamarde uma disposiçãotática na qual os diferentesindi-
víduosocupamum lugar determinadoe cumpremcerto nú-
mero de funções precisas.Vocês têm aí, portanto,um fun-
cionamentotático do poderou, melhor dizendo,é essadis-
posiçãotática que permite que o poderse exerça.
E, sevocêsretomaremo que o próprio Pinel dizia sobre
a possibilidadede obter uma observaçãonum asilo, verão
que essaobservação,que proporcionaao discursopsiquiá-
trico sua objetividadee suaverdade,só é possívelpor uma
distribuiçãotática que é relativamentecomplexa- digo ure-
lativamentecomplexa" porque o que acabode dizer ainda
é muito esquemático.Mas, na realidade,se há efetivamente
esseaparatotático, se e precisotomartantas recau oes.12ara
c egar,n m as con as, a go tao simplescomo a obser-
vaçao,e verossiinTirn.ente_porque, nessecampore amentar
o asilo, á algo que é um perigo, algo que é uma!orça.Para
q e o poderse ex:iõa assimcom tantaastúcia,ou mellior, a-
ra que o uruversore amentarsejapovoado.12or essases é-
_cie~ de intermediações e oderque o falseiam e o torcem,
·
pois bem, é . rovavelrnente orq_,ue existe,no ró rio cerne
dessees aço, um oderamea adorque se trata de dominar
ou e vencer.
, Em outraspalavras,se sechegaa tal disposiçãotática
e que o problema,antesde ser, ou melhor, parapoderser o
O PODER PSIQUIÁTRICO
10

problemado conhecimento,da verdadeda doençae ~a~s~a


cura deve antesde mais nadaser um problemade vitona.
Log~, é um can1pode batalhaque estáefetivamenteorga-
nizado nesseasilo.
Pois bem, o ue há ue d01ninar é, evidentemente,o
louco. Citei há pouco a curiosadefinição do louco dada o
II
o ere, que izia que o louco e aqueleque se crê acimaãe
toâosos outros"11 . De fato, é assimque o louco apareceno
m enor o discursoe a prática psiquiátricasdo inicio do
séculoXIX, e é aí que se encontraessagrande reviravoltá,
essagrandeclivagem de que já se falou, ue é o desapare-
cimen o do cril:eno do rro para a efiniçao, para a assina-
lação da loucura.
Até o fim do séculoXVIII, grosso modo - inclusive no
casodos relatóriospoliciais, mandadosde prisão, interroga-
tórios, etc., que se referiama indivíduosem hospícios como
Bicêtre, como Charenton-, dizer que alguém era louco, as-
sinalar sua loucura, era sempredizer que ele se en anav_à,
em que,sobre uê on o, e ue maneira até ue limite ele
se enganava. era, no fundo, o sistemade cren~a ue ca-
.racterizavaa1oucura Ora, a gentevê sur · bruscamenteno
início do sécuo XIX um critério de reconhecimentoe de as-
sinalãçãoda ouêüra que é totamente diferentee que é - e'u
ia dizendo a vontade",o que não é corretai 11 v:erdad~
II

que caracterizao lou~o, a~uilo por ue se assinalaa loucura


ao oucoa artir do início o séculoXIX..t....di amosgue é ain-
surreiçãodafors;a, o seja,nolouco,umacertafoJ..ç sedesen-
""t' adeia, força não dominada,força talvez não dominável ue
assumequatro formas grinci ais conforme o domínio em
que se aplica e o cam_poem que faz suasdevastações.
Vocês têm a força pura do indivíduo que é, segundoa
caracterizaçãotradicional, chamadode furioso".
II

Vocês têm a força na medidaem ue ela se a lica aos


instintos e às paixões,a força dessesinstintos desencadea-
âo~, a ~rça dessaspaixõessemlimite; e éisso quevai carac-
tenzarJustamenteuma loucura que não é uma loucura de
·erro, uma loucura que não comportanenhumailusão dos
AULA DE 7 DE NOVEMBRO DE 1973 11

sentidos,nenhumafalsa crença,nenhumaalucinação,o que


Chamamosde mania semdelírio.
Em terceiro lugar, vocês têm uma es écie de loucura
ue se aplica às idéiasmesmas,que as abala,as tornaincoe-
-rentesl g_ue as chocaumas contra as outras, e é isso ue se
chamamama. .
Enfim, vocêstêm a força da loucuraquandoela se apli-
ca, não mais ao domínio geral das idéias assimabaladase
entrechocadas, mas a uma idéia particular que se encontra
1n efinidamentereforçadae que vai se inscreverobstinada-
menteno comportamento,no discurso,no espírito do doen-
te; o ue se chamasejamelancolia sejamonomania.
E a primeira grandedistribuiçãodessapráticaasilar no
início do séculoXIX transcrevemuito exatamenteo queacon-
tece dentro d asilo, isto é, o fato de que se trata, não mais
de reconhecero erro do louco, mas de situar muito exata-
men e opontoem q_ue a orça desencadeada daloucurade-
agra sua insurreição: ual é o ponto, qual é o domínio, a
propositodo gual a for_ça vai se desencadear e aparecerLaba-
an o inteiramenteo comportamentodo· divíduo.
Por conseguinte,a tática do asilo, em geral,e, mais par-
ticularmente,a táticaindividual .9..uevai seraplici:ld.ap.clo mé-
dico a esteou aqueledoenteno âmbito gexal destesistema
de podervai ser e deveserajustadaà caracterizaçffio,à loca-
·lização, ao domínio de aplicaçãodestaexplosãoda força e
o seu esencadeamento. De modo gue, se é mesmoesseo
o jetivo da tática asilar, se é mesmoesseo adversáriodes-
satática- a ê'andeforça desencadeada daloucura- , pois bem,
que pode ser a cura, senãoa submissãodessaforça? É as-
sun que encontramos em Pinel essadefinição muito sim-
p es mas,creio, fundamentalda terapêuticapsi uiátrica, de-
nhiçãoquevocêsnãovão encontrarantesdessaépoca,~;;~sar
do caráterrústico e bárbaroque ela pode a resentar.JA~-
rapêuticada loucura é "a arte de sub·u ar e de ornar or
assimdizer, o ã1íenado,pondo-ona estreitadependênciade
um homem que, or suas ualidadesfísicas morais se·a
O PODER PSIQUIÁTRICO
12

capazde exercersobreele um i~n ,_ér\? i/rresistívele de mu-


dar a correnteviciosa das suas ideias .
Nessadefinição da operaçãoterapêuticapor Pinel, te-
nho a impressãode que torn~mosa c1;1zar:1m.pouco ~m
diagonalcom tudo o qu~ eu dissea voces.Pnmerr_o,o pnn-
cípio de estreitadependenciado doenteem relaçaoa certo
poder; essepoder tem de estarencarnadonum homem,e
somentenum homem,o qual exerceessepodernão tanto em
função e a partir de um saber,quantoe1n função de quali-
dadesfísicas e morais que lhe permitemexercerum impé-
rio que não pode ter limites, um império irresistível. E é a
partir daí que se toma possívela mudançada correntevicio-
sa das idéias, essaortopediamoral, digamosassim,a partir
da qual a cura é possível.E é por isso que, finalmente, en-
contramoscomo ato terapêuticofundamental,nessaproto-
práticapsiquiátrica,algumas cenas e uma batalha.
Na psiquiatriadessaé oca,vocêsvêemdistinguirem-se
nitidamenteao1stipos de intervenção. m, que é regular e
continuamentedesquãlifica o no primeiro terço o séculó
XIX: a práticapropriamentemédicaou medicamentosa. De-1
pois vocêsvêem, ao contrário, desenvolver-seuma prática
que se chama tratamentomora1", que 01 1nici mentede-
11

finida pelosingleses,essencialmente por Haslam,e rapida-


13
menteadotadana rança •
E essetratamentomoral não é, absolutamente,como
se poderiaimaginar,uma espéciede processode longo pra-
zo que teria essencialmente como função primeira e termi-
nal fazer surgir a verdadeda loucura,poderobservá-la,des-
crevê-la, diagnosticá-lae, a partir daí, definir a terapêutica.
A operaçãotera êuticaque se formula desde esses an_os de
1810-1830é umacena,e eumacenade enfrentamento.Essa
>c:na de e!1ftentamentopode adquirir dois aspectos.Um,
â.igamos,mcompleto,que é como que a operaçãode des-
ga~t~, de t~ste, que é exercü:ia,não pelo médico- porqueo
medico,evidentemente,devesersoberano-,masque é exer-
·cida pelo vigilante.
AULA DE 7 DE NOVEMBRODE 1973 13

Eis um exemplodesseprimeiro esboçoda grandecena


dado por Pinel no Tratado médico-filosófico.
Diante de um alienadofurioso1 o vigiJ.ante"avançacom
um arintrépido,mas lenta e gradativamentena dire ão dÔ
ena 0 1 e, 2araevi ar~aspera-o, não evanenhumaarma;
Fala com ele enquantoavança,com o tom mais firme e mais
ameaçadore, com mtímaçôescâlcÜiadas,continua a fixar·
"toda a aten ão dele ara fiirtar-The a visão ao que aconte-
ce em volta. Ordens recisase irn eriosasde obedecere de
se ren er; o aliena o, um tanto desconcertao com essaQOS-
a a tiva o vi _ an e, er e u ~ r outro objeto de vis-
a e, a certo sinal, é de repenteatacadopelos funcionários
e serviço, ue avançavama assaslentos e corno sem ele
sa er; cadaum deles a arra um rnern ro do furioso um o
raça,outro urna coxa ou uma..pema"14•
Ele da em complementoo conselhode utilizar certonú-
mero de instrumentos,por exemplo"um semiórculode ferro"
napontade urnavaracomprida,de maneiraque,no mornen-
to em que o alienado está fascinadopelaaltivez do vigilante,
só presteatenção novigilante e não veja que se aproximam
dele, nessemomento,que avançamem suadireçãoessaes-
péciede lançaterminadapor um semiórculoe irnprensam-n9
contra a paredede tal maneiraque por fim o dominam.E
essa,digamos,a cenaimperfeita,a que é reservadaao vigi-
lante, a que consisteem quebrara força descontrolada do
alienadopor essaespéciede violência astuciosae súbita.
Mas é óbvio quenãoé essaa grandecenada cura.A cena
da cura é urna cenacomplexa.Eis um exemplofamosono
Tratado médico-filosóficode Pinel. Era um rapazque era "do-
minadopor preconceitosreligiosos"e quepensavaquepara
alcançarsuasalvaçãodevia "imitar as abstinênciase as ma-
ceraçõesdos antigos anacoretas",isto é, rejeitar não ape-
nas, é claro, todos os prazeresda carne,mas tambémqual-
quer alimentação.Um belo dia ele recusacom mais dureza
que de costume urnasopaque lhe servem."O cidadãoPussin
se apresentade noite à porta da sua cela com um aparato
[" aparato"no sentidodo teatroclássico,é claro; M.F.] próprio
14 O PODERPSIQUIÁTRICO

para assustar,olhos em fogo, u1n t01n de voz fulminante,


um grupo de se1ventesà suavolta, annadoscom fortes cor-
rentes,que agitain ruidosamente;põe1nun1a sopajunto do
alienadoe dão-lhe a orde1nn1ais clara de tomá-la durante
a noite, se não quiser sofrer os mais cruéis tratamentos;re-
tiran1-see deixain-nono mais penosoestadode flutuação,
entre a idéia da puniçãoque o aineaçae a perspectivaapa-
vorantedos torn1entosda outra vida. Após um combatein-
terior de váriashoras,a primeira idéia prevalece eele se de-
terminaa ingerir suaalimentação.Submetem-nodepoisdis-
so a um regime destinadoa restaurá-lo;o sono e as forças
retoma1ngradativainente,assimcomo o uso da razão,e ele
escapadesse1nodo a uma morte certa. Foi durante a sua
convalescença que ele me confessousuasagitaçõescruéise
suasperplexidadesduranteaquelanoite da suaprovação."15
Temosaí uma cenaimportantíssima,creio eu, em suamor-
fologia geral.
Em primeiro lugar, como vocêsvêem,a operaçãotera-
pêuticanão passoupelo reconhecimento,operadopelo mé-
dico, das causasda doença.Nenhumtrabalho diagnóstico
ou nosográfico,nenhumdiscursode verdadesãorequeridos
pelo médico paraque sua operaçãotenhaêxito.
Em segundolugar, é uma operaçãoque é importante
porque,comovocêsvêem,não se trata de modo algum,num
caso como essee em todos os casossemelhantes,de apli-
car a algo que seriaconsideradocomo processoou compor-
tamentopatológicouma receitatécnicamédica;trata-sedo
choquede duasvontades:a do médico e daq_uele~e o re~
resenta,de um lado, e ado doente.E portantouma batalha,
certarelaçãode força que se estabelece.
m ercetolugar, essare a_Çãode força tem por primei-
ro efeito suscitaruma segundarelaçãode força dentro, de
certo modo, do ró rio doente,já que se tráta de suscit
um c o entre ai eia · a a que o oen e se agarroue o
medoda punição- um com ate que provocaoutro. E todos
os dois, quandoa cena é 'bem-suceili al devem remetera
umavitória, a vitória de uma idéia sobreoutra, que deveser
AULA DE 7 DE NOVEMBRODE 1973 15

ao mesmotem o a vitória da vontadedo médicosobrea do


oente.
Em quarto lugar, o que é importantenessacenaé que
acabase dandoum momentoem que a verdadese manifes-
ta; é o momentoem que o doentereconheceque suacren-
ça na necessidadede jejuar para alcançarsua salvaçãoera
erradae delirante, em que ele reconheceo que aconteceu,
em que confessaque passoupor certo número de flutua-
ções,de hesitações,de tormentos,etc. Em suma,é o próprio
relato do doenteque constitui, nessacenaem que até ago-
ra a verdadenuncainterveio, o momentoem que a verdade
se manifesta.
E, último ponto, é quandoessaverdadeé assimadqui-
rida, a por intermédio da confissãoe por intermédio de
um sa er me co reconstitwãoJé no mõmentoefetivá a con-
1Íssaog~e se efetua,consumae sela o processoda cura.
Voces tem aí portanto toda uma distribuição da força,
fdo poder,do acontecimento,da verdade,que não é de ma-
neira nenhumao que se pode encontrarnum modelo que
se poderiadizer médicoe que estavase constituindona mes-
ma épocana medicinaclínica. Na medicinaclínica da época,
podemosdizer que se constituíacerto modelo epistemológi-
co da verdademédica,da observação,da objetividade,que ia
permitir que a medicinase inscrevesseefetivamenté noin-
terior de um domínio de discurso científicoem que ela ia se
juntar, com suasmodalidadespróprias,à fisiologia, à biolo-
gia, etc. O que acontecenesseperíodode 1800-1830é, creio,
algo bem diferentedo que se tem o costumede crer. Parece-
me que, de ordinário, interpreta-seo que aconteceunesses
trinta anoscomo o momentoem que a psiquiatriavem en-
fim inscrever-seno interior de umapráticae de um sabermé-
dicos a que ela tinha sido até entãorelativan1enteestranha.
Tem-seo hábito de pensarque a psiquiatriaaparecenesse
momento,pela primeiravez, como uma especialidadeden-
tro do domínio médico.
Parece-me- semcolocaraindao problemade saberpor
que uma prática como essapôde efetivamenteser conside-
16 O PODER PSIQUIÁTRICO

radapráticamédica,por que foi necessárioque pessoasque


faziam s a operaçõesfossemm , dicas- , semencararesse
problen1a,dizia eu, parece-me que, entre os que podemos
considerarcomo fundadoresda psiquiatria,a operaçãomé-
ruca que efetuamquandocuram não tem em sua morfolo-
gia, em ua disposiçãogeral, praticamentenadaa ver com
o que estás ton1andoa experiência,a observação,a ativi-
dadediagnóstica,o processoterapêuticoda medicina.Esse
acontecin1ento,essacena,esseprocedimentosão,creio, nes-
se nível, desdeessemon1ento,absolutainenteirredutíveis
ao que acontecena mesmaépocana medicina.
É ortantoessa heterogeneidade q_ue vai marcara his-
tória a psiquiatriano momentomesmoem que ela se fun-
a no intenor de um sistemade 1nstituíçõesque- a vincula,
entretanto,a medícina.Pois tudo isso,essaencenação,a or-
ganizaçãodo espaçoasilar, o desencadeamento e o desen-
rolar dessascenas,só é possível,só é aceitoe só é institucio-
nãlizaaono intenor de estabelecimenfos que recebemnes-
sa épocao estatutomédico, e da parte de pessoasque têm
a qualificaçãomédica.

*
Temosaí, por assimdizer, um primeiro pacotede pro-
blemas.É o ponto de partidado que eu queria estudarum
pouco esteano. Grossomodo,é o ponto de chegadaou, em
todo caso,de interrupçãodo trabalhoque eu havia feito antes
na História da loucura16• É nesseponto de chegadaque eu
gostariade retomaras coisas;só que com certo númerode
diferenças.Parece-meque, nessetrabalho,de que me sirvo
como referênciaporque é, para mim, uma espéciede back-
ground para o trabalhoque faço agora,havia certo núme-
ro de coisasque eram perfeitamentecriticáveis,sobretudo
no último capítuloem que eu chegavaprecisamenteao po-
der asilar.
Em primeiro lugar, creio que eu havia ficado numaaná-
lise dasrepresentações. Parece-meque eu tinha tentadoes-
AULA DE 7 DE NOVEMBRODE 1973 17

tudar sobretudo a im agem que se ti nha da loucura nos


séculos XVII e XVIIl , o medoque ela suscitava,o saber a seu
respeito que se f?r~ava, seja tradicionalmente,sejaa partir
de modelos botarucos,naturalistas, médicos,etc. Era esse
núcleo de representações,de imagenstradicionaisou não,
de fantasmas, de saber, etc., era essaespéciede núcleo de
representações que eu tinha colocado como ponto de par-
tida, comolugar em que se originam as práticasque puderam
ser concretizada s a propósito da loucura nos séculosXVII e
XVIII. Em suma, eu havia concedidoum privilégio ao que
poderíamos chamarde percepção da loucura17.
Ora, agoraeu queria tentar ver,, neste segundovolume,
se épÕssível fazer uma análiseradicalmente diferente1 no
--S-e ntídode que e quenaver se não se ode ccloc no on-
to de pãrti a dâ anâlíse, não mais essa es écie de núcleore-
presentativoque remetenecessaria mentea umahistóriadas
menfalidades, ê:Io pensament o, mas um dis ositívo de o-
er. Ou sefa: em que medidaum ·s.t2P.S.il ·v e oder ode
ser produtor ãe certo número de enunciadosde discu
e, por conse~te ..L.. e todas as formas de re resentaões
que podem osteriormenteL.. *J daí decorrer?
O positivo de podercomoinstânciaprodutorada prá-
tica discursiva.É nissoque a análisediscursivado poderesta-
ria, em relaçãoao que chamode arqueologia,num nível - a
palavra"fundamental"nãome agradamuito-, digamosnum
nível que permitiria apreendera prática discursivaprecisa-
menteno ponto em que ela se forma. A que devemosreferir,
onde devemosprocuraressa formação da práticadiscursiva?
Não se podeevitar, creio, passarpor algo comoa repre-
sentação, osujeito, etc., e portantoapelarparaumapsicolo-
gia e para uma filosofia já constituídas,se se buscar__a ~ela-
çãoentrepráticadiscursivae, digamos, estruturaseconmmcas,
relaçõesde produção,etc. O problemaque estáe~jog~ J:>ara
mim é este:no fundo, não sãoprecisamenteos dispositivos

* Gravação:"se formar a partir daí e..." .


18 O PODERPSIQUIÂTRICO

de poder,com o que essapalavra- "poder" - ainda tem de


enigmáticoe que vai serpreciso explorar,o ponto a partir do
qual deve-sepoder assinalara formação das práticas dis-
cursivas?Como essearranjo do poder,essastáticase estra-
tégias do poder poden1 dar lugar a aB.nnações,negações,
experiencias,l:eonas,em suma,a todo um jogo da verdaae?
Dispositivo de poder e jogo de verdade,dispositivo cfe po-
der e discursode verdade,é um pouco isso que eu gostaria
de examinareste ano, retmnandono ponto ae que falei: o
psiquiatrae a loucura.
Segundacrítica quefaço a esteúltimo capítuloé queape-
lei - mas, afinal de contas,não possodizer que tenhafeito
isso muito conscientemente, porqueeu era muito ignoran-
te acercada antipsiquiatriae, principalmente,da psicosso-
ciologia da época-, apelei,implícita ou explicitamente,para
três noçõesque 1ne parecemfechadurasenferrujadascom
as quais não dá para ir muito longe.
Primeiro, a noçãode violência18. O que de fato me im-
pressionouquandoli, naquelemomento,Pinel, Esquirol,etc.,
é que, ao contrário do que contavamos hagiógrafos,Pinel,
Esquirol e os outros apelavammuito para a força física; e,
por conseguinte,pareceu-meque não sepodia creditarare-
forma de Pinel a um humanismo,porquetoda a suaprática
ainda era atravessada por algo como a violência.
Ora, se é verdadeque de fato não se pode creditara re-
forma de Pinel ao humanismo,não creio que sejaporqueele
recorreà violência.De fato, quandose fala de violência, e éaí
que essanoçãome incomoda,semprese tem presenteao es-
pírito uma espéciede conotaçãoque se refere a um poderfí-
sico, a um poder irregular, passional,a um poderdesenfrea-
do, se ousodizer. Ora, essanoçãome pareceperigosaporque,
de um lado, ela deixa supor,esboçandoassimum poderfísi-
co, irregular,etc., que o bom poderou o poderpurae simples-
mente,aqueleque não é atravessado pelaviolência,nãoé um
poderfísico. Ora, parece-meao contrárioque o ue há de es-
ae
sencialem toaopoaeré que seuponto aplicaçãoé sempre,
AULA DE 7 DE NOVEMBRODE 1973 19

em última instância,o corpo.Todo poderé físico e há entreo


corpo e o poderpolítico umaligaçãodireta.
Depois, essanoção de violência não me parecemuito
satisfatória,porqueela deixa suporque o exercíciofísico de
uma força desequilibradanão faz partede um jogo racional,
calculado,administrado,do exercíciodo poder.Ora, os exem-
plos que eu lhes citei há pouco provam claramenteque o
poder tal como se exerceno asilo é um poder meticuloso,
calculado,cujastáticase estratégiassãoperfeitamentedefi-
nidas; e, no interior mesmodessasestratégias, vê-se muito
exatamentequaissãoa posiçãoe o papelda violência,se se
chamarde violência o exercíciofísico de uma força inteira-
mente desequilibrada.Tomado em suas ramificaçõesúlti-
mas,em seunível capilar,ondeele toca o próprio indivíduo,
o poderé físico e, por isso mesmo,violento, no sentidode que
é perfeitamenteirregular, não no sentido de que é desen-
freado, mas,ao contrário,no sentidode que obedecea todas
as disposiçõesde uma espéciede microfísicados corpos.
Segundanoçãoa que me referi e, creio, de maneiranão
muito satisfatória,é a de instituição19• Tinha me parecidoque
se podia dizer que, a partir do início do séculoXIX , o saber
psiquiátricohavia adquirido as formas e as dimen~õesque
conhecemosem ligação com o que poderiaser chamadode
institucionalizaçãoda psiquiatria;mais precisamenteainda,
com certo númerode instituiçõesde que o asilo era a forma
mais importante.Ora, não creio tampoucoque a noção de
instituiçãosejamuito satisfatória.Parece-meque ela encerra
certo número de perigosporque, a partir do momentoem
que se fala de instituições,fala-se, no fundo, ao mesmotem-
po de indivíduos e de coletividade, o indivíduo, a coletivi-
dadee as regrasque as regemjá estãodados, e, por conse-
guinte, pode-seprecipitaraí todosos discursospsicológicos
ou sociológicos*.

* O manuscrito acrescenta: " A instituição neutraliza as relaçõesde


força ou só as faz atuar no espaçoque ela define."
20 O PODERPSIQUIÁTRICO

O que se deveria1nostrar,na verdade,é que o essen-


cial não é a instituição com sua regularidade, com suasre-
gras, mas sim, precisamente,essesdesequilíbriosde poder,
sobreos quaistenteilhesmostrarcon10falseavame, ao mes-
mo te1npo,fazia1n funcionar a regularidadedo asilo. O im-
portante,portanto,não são as regularidadesinstitucionais,
mas muito n1ais as disposiçõesde poder, as redes,as cor-
rentes,as intermediações,os pontosde apoio, as diferenças
de potencialque caracterizamuma forma de poder e que,
creio, são precisamenteconstitutivosao mesmotempo do
indivíduo e da coletividade.
O indivíduo, parece-me,não é mais que o efeito dopo-
der, na medidaem que o po er e um proce imento e 1n-
âlvi u zaçao. e so15 o- ru:n o ã.essareâe e po er, qúe
funciona em suas iferénçasde potencia, em seusdesvios,
que algo como o indivíduo, o grupo,a coletividade,a institui-
ção aparece.Em outraspalavras,a~ilo com que se tem de
lidar, antesdelidar com asinstituições,sãoas relaçõesde for-
ça nessasffispos1çoesfàticas que er assamas institui'oés.
Enfim, a terceiranoçãoa que me referi paraexplicaresse
funcionamentodo asilo no início do séculoXIX é a família,
e eu havia grossomodo procuradomostrarque a violência de
Pinel [ou] a de Esquirol tinha sido a de introduzir o mode-
lo familiar na instituiçãoasilarº. Ora, creio que "violência" não
é apalavraadequada,que "instituição" tambémnão é o ní-
vel de análiseem que devemosnos colocar,e não creio que
seja tampoucode família que se deva falar. Em todo caso,
relendoPinel, Esquirol, Fodéré,etc., afinal encontreimuito
pouco a utilização dessemodelo familiar. E não é verdade
que é aimagemou o personagemdo pai que o médicopro-
cura reativarno interior do espaçoasilar; isso vai se produzir
muito mais tarde,no fim mesmo,creio, do que poderíamos
chamar de episódio psiquiátrico na história da medicina,
isto é, somenteno séculoXX.
Não é a família, não é tampoucoo aparelhode Estado;
e, creio, seriaigualmenteequivocadodizer, como tantasve-
zesse diz, que a práticaasilar,o poderpsiquiátrico nãofazem
AULA DE 7 DE NOVEMBRODE 1973 21

outra coisasenãoreproduzira família em benefíciode ou a


pedido de certo controle estatal,organizadopor um apare-
lho de Estado21 • Não é nem o aparelhode Estadoque pode
servir de fundamento*,nema familia que podeservir de mo-
delo [... **] nessasrelaçõesde poder que podemosdetectar
no interior da práticapsiquiátrica.
Creio que o problemaque se colocaé - prescindindo-
se dessas noções e dessesmodelos,isto é, prescindindo-se
do modelofamiliar, da norma,se preferirem,do aparelhode
Estado,da noçãode instituição,da noçãode violência- fa-
zer a análise dessasrelaçõesde poder próprias da prática
psiquiátricana medidaem que- e seráesseo objeto do cur-
so - sãoprodutoresde certo númerode enunciadosque se
apresentamcomo enunciadoslegítimos. Logo, em vez de
falar de violência eu referiria falar de microfísicado poder;
em vez de falar de instituição, referiria procurarver quais
·sã aT:icas ue sao postasem açãonessasforças que se
enfrentam;em vez de falar de modelofamiliar ou de "apare-
1ho de 'Estado",o que eu gostariade procurarver é a estra-
tégia dessasre aç__ões e podere dessesenfrentamentos que
se desenrolamna Rrática siquiátrica.
Vocês me dirão que é muito bonito substituirviolência
por microfísica do poder, instituição por tática, mo_delo fa-
miliar por estratégia;avanceialgumacoisa com isso?Evitei
termosque permitiama introdução,em todasessasanálises,
do vocabuláriopsicossociológico,e agorame vejo diantede
um vocabuláriopseudomilitar,que não deve sermuito me-
lhor. Mas vamostentarver o quepodemosfazer com isso***.

* O manuscritoprecisa: "Não se pode utilizar a noçãode apare-


lho de Estado,porqueela é ampla demais, abstratademaisparadesig-
nar essespoderesimediatos,minúsculos,capilares,queseexercemsobre
o corpo, ocomportamento,os gestos,o tempodos indivíduos.O apare-
lho de Estadonão dá conta dessamicrofísica do poder."
** Gravação:"o que acontece ".
*** O manuscrito(ff. 11-23) prosseguiasobrea questãode definir
o que é o problemada psiquiatriaatualmentee propunhauma análise
da antipsiquiatria.
NOTAS

1. FrançoisEmmanuelFodéré(1764-1835),Traité du délire, ap-


pliqué à la médeane,à la morale et à la législation, t. II, seçãoVI, cap. 2,
"Plan et distribution d'un hospicepour la guérisondesaliénés",Pa-
ris, Croullebois, 1817, p. 215.
2. DonatienAlphonseFrançoisde Sade(1740-1814),Les Cent
vingt Jouméesde Sodome , ou l'École du libertinage (1785), in Oeuvres
Completes,t. XXVI, Paris,Jean-Jacques Pauvert,1967.
3. JosephMichelAntoine Servan(1737-1807):"Nas fibras mo-
les do cérebroestáfundadaa inabalávelbasedos mais sólidosimpé-
rios" (Discourssur l'administrationde la justicecriminelle, proferidopor
M . Servan,Genebra,1767, p. 35; reed.in C. Beccaria,Traité des délits
et des peines, trad. fr. P J. Dufey, Paris, Dulibon, 1821).
4. Philippe Pinel (1745-1826),Traité médico-philosophique sur
l'alinénation mentale,ou la Manie, seçãoII, "Traitementmoral desalié-
nés", § XXIII, "Nécessitéd' entretenirun ordre constantdans les
hospicesdes aliénés", Paris,Richard, Caille et Ravier, ano IX/1800,
pp. 95-6.
5. JeanÉtienneDorniniqueEsquirol (1772-1840),Des maladies
mentalesconsidéréessous les rapports médical, hygiéniqueet médico-
légal, Paris,J.-B. Bailliere, 1838, 2 vol.
6. JohnHaslam(1764-1844),[1] Observationson Insanity,with
Practical Remarkson the Disease,and an Accountof the Morbid Ap-
pearancesof Dissection,Londres,Rivington, 1798; obra reeditadae
aumentadacom o título de Observationson Madnessand Melancholy,
AULA DE 7 DE NOVEMBRO DE 1973 23

Londres,J. Callow, 1809; [2] Considerations on the Moral Manage-


mentof InsanePersons, Londres, R. Hunter, 1817.
7. J. E. D. Esquirol, Des établissements consacrés aux aliénésen
France, et des moy~~ d'amélior er le sort de ces infortunés (Memória
apresentadaao rrurustro do Interior em setembro de 1818), Paris,
irnpr. de Mrne Huzard,1819; republicadoin Des maladies mentales...,
op. cit., t. II, pp. 399-431.
8. ~- E. Fodér~, !rait é du délire, ~P· cit., t. II , seçãoVI, cap. 3,
11
Du choIX des admirnstrateurs,desmedecins, des employés et des
servants",pp. 230-1.
9. Ibid., p. 237.
10. Ibid., pp. 241-2.
11. Ibid., p. 230.
12. Ph. Pinel, Traitémédico-philosophique, op. cit., seção II , § VI,
"Avantagesde l' art de diriger les aliénéspour seconderles effets
des médicaments" , p. 58.
13. O "tratamentomoral" que se desenvolve no fim do século
XVIII reúnetodos os meios de intervençãosobreo psiquismodos
doentes,em oposiçãoao "tratamentofísico", que agesobreo cor-
po atravésde remédios, meios de contenção.Foi apósa morte da
mulher de um quaker, ocorrida em 1791, em condiçõessuspeitas ,
no asilo do condadode York, queWilliam Tuke (1732-1822) propôs
a criaçãode um estabelecimento destinadoa acolheros membrosda
"SociedadedosAmigos" acometidosde distúrbiosmentais.No dia
11 de maio de 1796, a Retreatabre as suasportas(cf. infra, p. 149,
nota 18). JohnHaslam,boticário do BethlehemHospital, antesde
se tomar doutor em medicinaem 1816, desenvolveos princípios
do tratamentoem suasobras (cf. supra, nota 6). Na França, Pinel
adotao princípio em "Observationssur le régime moral qui estle
plus propre à rétablir, danscertainscas, la raison égaréedes ma-
niaques",Gazette de santé, 1789, n? 4, pp. 13-5; e em sua Memória
"Rechercheset observationssur le traitementmoral des aliénés'',
Mémoire de la Société médicale d'émulation. Section Médecine,1798,
n? 2, pp. 215-55; republicadocom v~antesno Traité médico-phi-
losophique, op. cit., seçãoII, pp. 46-105.EtienneJeanGeorget_(1795-
1828) sistematizaos princípiosdessetratamentoem De la folze. Con-
sidérationssur cette maladie: son siegeet sessymptômes , la natureet le
moded'action de sescauses; sa marcheet sesterminaisons; les différen-
ces qui la distinguentdu délire aigu; les moyensdu traitementqui lui
conviennent;suiviesde recherchescadavériques , Paris, Crevot, 1820.
24 O PODERPSIQUIATRICO

François Leuret porá a ênfasena relação médico-doente;cf. Du


h'aitementmoral de la folie, Péllis, J.-B. Bailliere, 1840.Veras páginas
que lhe consagraa Histoire de la folie à l'âge classique,péllte ill, cap.4,
"Naissancede !'asile", Paris, Gallimard, ed. de 1972, pp. 484-7,
492-6, 501-11,523-7. a. tambémR. Castel,"Le traitementmoral.
Thérapeutiquementaleet contrôle social au XIX • siecle", Topique,
1970, n~ 2, fevereiro, pp. 109-29.
14. Ph. Pi.nel, Traité médico-philosophique, op. cit., seçãoII,§ XXI,
"Caracteredes aliénésles plus violents et dangereux,et expédiens
à prendrepour les réprimer", pp. 90-1.
15. Ibid., seçãoII, §Vill, "Avantaged'ébranlerfortementl'ima-
gination d'un aliéné danscertainscas", pp. 60-1.
16. M. Foucault, Folie et Déraison. Histoire de la folie à l'âge
classique,Paris, Plon, 1961.
17. Por exemplo,na Histoire de la folie, parteI, cap.V, "Les in-
sensés",ed. de 1972,pp. 169 e 174; parteII, cap. I, "Le fou au jardin
desespeces",p. 223; parteIII, cap.II, "Le nouveaupartage",pp. 407
e 415. O ponto de partida dessacrítica da noção de "percepção"
ou de "experiência"se encontraem I:Archéologie du savoir, Paris,
Gallimard ("Bibliotheque des scienceshumaines"),1969, cap. III,
"La formation des objets" e cap. IV, "La formation des modalités
énonciatives",pp. 55-74.
18. A noçãode violência subjazàs análisesdos modosde tra-
tamentoempreendidosna parte II da Histoire de la folie, cap. IV,
"Médecinset malades",ed. de 1972,pp. 327-8 e 358, e na parteIII,
cap. IV, "Naissance del'asile", pp. 497, 502-3, 508, 520.(Cf. infra,
"Situaçãodo curso", pp. 464 ss.)
19. É o casodasanálisesconsagradas ao nascimentodo asilo,
ibid., pp. 483-530.
20. Sobre o papel do modelo familiar na reorganizaçãodas
relaçõesentreloucurae razãoe aconstituiçãodo asilo, cf. ibid., pp.
509-11.
21.Alusãoàs análisesde LouisAlthusser,que introduzo con-
ceito de "aparell:-ode Estado"em seuartigo "Idéologie et appareils
idéologiquesd'Etat. Notes pour une recherche",La Pensée.Revue
du rationalismemoderne,n~ 151, junho de 1970,pp. 3-38; republicado
em Positions(1964-1975),Paris,Éditions Sociales,1976,pp. 65-125.
AULA DE 14 DE NOVEMBRO DE 1973

Cena de cura: Jorge III . Da "macrofisica da soberania"à


"microfísica do poder" disciplinar. - A novafigura do louco. -
Pequenaenciclopédiadas cenasde cura. - Prática da hipnosee
histeria. - A cena psicanalítica; cena antipsiquiátrica. - Mary
Bamesem KingsleyHall. - Manipulaçãoda loucura eestrata-
gemade verdade:Mason Cox.

Todosvocêscertamenteconhecema cenatida como a


grande fundadorada psiquiatriamoderna- enfim, da psi-
quiatria pura e simplesmente- que se inaugurouno início
do séculoXIX. Essacenaé afamosacenade Pinel que, no
1
que não era exatamenteum hospital, em Bicêtre, tirou as
correntesque prendiamos loucosfuriosos no fundo da sua
masmorra;e essesloucosfuriosos que eramretidosporque
temia-seque,sefossemdeixadossoltos,elesdariamlivre cur-
so ao seu furor, essesfuriosos, mal são soltos das suascor-
rentes,exprimemseureconhecimentoa Pinel e entram,por
essefato mesmo,no caminhoda cura. Eis pois o que acon-
tece na cenainicial, fundadora,da psiquiatria1.
Ora, na verdade,há outra cenaque não teve a sortedes-
sa, se bem que, por motivos que é fácil compreender,teve
granderepercussãona época.Uma cenaque não ocorreuna
França,mas naInglaterra- e que aliás foi relatadacom cer-
to detalhepor Pinel no Tratado médico-filosóficodo ano IX
(1800) -, e que,comovocêsjá vão ver, não deixou de ter uma
espéciede força, de posturaplástica,na medida emque,não
na épocaem que seproduziu- ela se situa em 1788- , mas na
épocaem que foi conhecidana Françae em que finalmente
foi conhecidaem toda a Europa,tinha se tornado,digamos,
26 O PODER PSIQUIATRICO

con10 que w11 hábito dos reis perdera cabeça.É urna cena
que ten1 ünportânciaporquepõe em cenaexatamenteo que
podia ser, desdeessaépoca,a práticapsiquiátricaenquanto
manipulaçãoregradae concertadadas relaçõesde poder.
Eis o texto de Pinel, que é o que circulou na Françae tor-
na conhecidoessecaso:
"Um monarcaUorge III, rei da Inglaterra; M.F.] entra
e1n maniae, paratornar suacura1naisprontae mais sólida,
não se faz nenhumarestriçãoàs medidasde prudênciada-
quele que o dirige [notem a palavra:é o médico; M.F.]; por
conseguinte,todo o aparelhoda realezase desvanece,o alie-
nado, afastado da fami1ia e de tudo o que o rodeia,é relega-
do a um palácio isoladoe encerradosozinhonum quartocujo
chão e cujasparedes são forradasde colchõespara que ele
fique impossibilitadode seferir. Aqueleque dirige o tratamen-
to lhe declaraque ele não é mais soberano,que devedali em
dianteser dócil e submisso.Dois dos seusantigospajens,de
urna estaturade Hércules,são encarregadosde atenderàs
suasnecessidades e prestar-lhetodosos bonsofícios que sua
condiçãoexige, mastambémde convencê-lo de que ele está
sob a inteira dependênciadelese que doravantedeve obe-
decer-lhes.Elesobservamcom ele um tranqüilo silêncio,mas
em todasas ocasiõesfazem que sinta o quantoeles lhe são
superioresem força. Um dia, o alienado,em seufogoso de-
lírio, recebeduramenteseu ex-médicoque o vem visitar, e
o cobre de dejetose imundices.Um dos pajensentra ime-
diatamenteno quarto semdizer nada,agarrapela cintura o
delirante,tambémreduzido a um estadode sujeira repug-
nante,derruba-onuma pilha de colchões,despe-o,limpa-o
com urna esponja,troca suasroupase, olhandoparaele com
altivez, afasta-selogo em seguidae volta para o seu lugar.
Lições assim,repetidasa intervalosdurantealgunsmesese
secundadas por outrosmeiosde tratamento,produziramuma
cura sólida e semrecaída."2
Eu gostariade analisarum pouco os elementosdessa
cena.Há, primeiro, parece-me,algo que salta aos olhos no
texto de Pinel, que tomouemprestadode Willis, que era o mé-
AULA DE 14 DE NOVEMBRO DE 1973 27

~ico de JorgeIIP. A m:u;1e~ o que ap~ecee_m primeiro lugar


e, no fundo, um~ nmorna,uma cenrnoniade destituição,
·uma especiede sagraçãoao revés em que se indica muito
-claramente ue se trata de ôr o rei sob uma d~endência
ota; voces se em ram das palavras:"tÕciÕo aparelho dâ
reãlezase desvanece" , e omédico<que é de certomodoo o;1.2e-
_ra or dessa escoroação,dessadessagr ...e_Ção, lhe declaraex-
11
plicitamenteque ele não é mais soberano".
or conse8"'-!:mte,decretoae aestituição: o rei reduzido
à impotencia.Parece-me ue até os colchões"
11
e cam
e que tem um pape tao ~an e, ao mesmotem o no cená-
no e na cenafinãl, são importantes. O colchãoé ao mesmo
tempo o que isola o rei do mundo exterior o gue o im ede
tanto de ouvir e de ver como de comunicarsuasordensao
extenor;isto e, por meio dos colchões,todas asfunçõeses-
senciaisda monarguíãsão, no sentído estri to, postasentre
p arênteses.E no lugar daquelecetro, daquelacoroa, dagüêla
espadaque deviamtomarvisiveiesensível a tod os os es ec-
tadoreso poaeruniversaldo rei ue reina sobreseu reino,
11
no ugar essessim olos, não há mais que os colchões" ~ue
o, encerrame o reduzem,lá onde ele está ao çiue ele é, isto
1

e, ao seu corpo.
Destituição,queda do rei portanto; mas não tenho a
impressãode que seja do mesmotipo que poderíamosen-
contrar, digamos,num drama shakespeariano:não é nem
Ricardo III ameaçadode cair sob o poder de outro sobera-
no4, nem o rei Lear despojadoda sua soberaniae errando
pelo mundona solidão,na misériae na loucura5 • Na verdade,
a loucura do rei Uorge ill], ao contrário da do rei Lear, que
o fazia errar pelo mundo,fixa-o num ponto precisoe1sobre-
tudo, o faz cair sob um poderque não é um outro poderso-
berano;ela o faz cair sob um poderque é de um tipo total-
mentediferentedo da soberaniae que, creio, se opõe a ela
tern10 a termo. É um poderanônin10, semnome,semrosto,
é um poder que é repartido entre diferentespessoas ; é um
poder, sobretudo,que se manifestapela implacabilidadede
um regulamentoque nem sequerse formula, já que, no fun-
0) O PODER PSIQUIÁTRICO

do, nadaé dito, e estábeme~critono texto que todosos agen-


tes do poderficam calados.E o mutismodo regulamentoque
vem de certomodo ocuparo lugar deixadovazio pela des-
coroaçãodo rei.
Não se trata or conse ·nte, da ueda de um oder
f - _ _._,__ _ _ _ _
- ;_

soberanosoboutro podersoberano,mas a assageinde~


po er so era.no,que 01 ecapita o pe a oucuraque se apo~s-
souda trb ça rei e 01 aescoroado or essaes écie de ce-
rimônia que indica ao rei que e enão é mais soberano,para
outro poder.P01sbem,no Iugar dessepoderdecapitadoe des-
coroadosemstalaum poderanônimomúlti;Qlo áli o, sem
cor, que éno fundo o poderque chamareida disci lina. Um
poderde tí~oberaniaé su6sntuídopor um o er g e go-
deríamos er e ·sciplina,e ~ujo efeito não é em absoluto
consagraro poder de ãiguém,concentraro podernum in -
iliVIduo VIsÍvel e nomeado,mas produzir efeito apenasem
seuãlvo, no COfRO e na pessoado rei descoroado , que deve
ser foma O ócil e submisso"6 eor essenovo poder.
Enquantoo podersoberanose mârufestaessencialmente
pelossímbolosaaforça ful~antedo indiVIâuo que o detém,
o poderdisciplinare um po er discreto, repartiOo;e um po-
êier que funcionaem redee cujavisibilidade encontra-setãó-
somenefiã ociliUade e nasubmissãodãgueíêºs sobreguem,
ã.l essacena:
em silêncio,ele seexerce.E éisso,creio, o essenci
o enfrenfamento,a submissa <1 a articulaçãode um poderso-
beranoa um 2oderdisciplinar.,
... Quemsãoos agentesdessepoderdisciplinar?Vocêses-
tão vendo que, curiosamente,o próprio médico,aqueleque
organizoutudo, aqueleque é, na verdade,até certoponto, o
elementofocal, o núcleodessesistemadisciplinar, não apa-
rece:Willis nuncaestápresente.E, quando,um poucodepois,
encontramosa cena do médico, é um ex-médico,precisa-
mente,e não o próprio Willis. Quais são então os agentes
do P?der?Estádito que são dois antigospajensde estatura
hercúlea.
Aqui, creio que devemosnos deter um pouco, porque
na cenaeles tambémtêm grandeimportância.A título de
AULA DE 14 DE NOVEMBRODE 1973 29

hipótese,maspossoestarequivocado,direi quea relaçãodes-


sespajenshercúleoscom o rei louco e despojadodeve ser
comparadaa temasiconográficos. Pensoque a força plástica
dessahistória se deve, em parte,ao fato de que, justamen-
te, temosnela elementos[... *] da iconografiatradicionalna
qual os soberanossãorepresentados. Ora, o rei e seus s.e ·-
.1dores são tradicionalmentere resentados, arece-me,sob

-cruasformas.
Ou a representação do rei ê!erreiro,de coura a de ar-
mas, o rei que ostentae torna sensívela suaonipotênciao
fêi Hêrcules,se assimpodemosdizer; e, ao lado dele1 abaixo
ãele, su6metiaosa essaespéciede 12oderesmagador,per-
sonagensque saoa nyresentação da submissão,da fr,aque-
za, a errata, a escravidão,eventualmenteda beleza.E essa,
p_o emosdizer, uma dasprimeirasoposiçõesq__ue encontra-
mos na iconografiado pôdêi reãl
Vocês têm outra ossibili dade, com um jogo de o osi-
ções,masque se dá de outra maneir . É o :r:ei nãohe.r:cúleo,
maso rei êle estaturahumana,que é despojadode todos os
signosvisiveis e imediatosda força física, que só é revestido
ãossiml5olos o seupoder; o rei em seumantode arminho,
~om seucetro,seuglobo e, abaixodele ou com a do-o,
a representação visível de urna for a ue lhe é submetida:
ossoaa os, os pajens,os servidores,que são a represent a-
çao de uma orça, mas de uma força que é, de certo modo,
comandaaasilenciosamente por intermédiodesses elen1en-
tos simi:;ólicos do poder: cetro,manto, coroa, etc. Parece-n1e
que e assrm,grossom o o, que se vêem representadas na ico-
nogr a asrelaçoéstlo rei com os servi ores: sempre no modo
da oposição,n1assob a forma dessas duas oposições.
Ora, aqui, nessacenacontada por Pinel a partir de Wtllis,
vocês encontramos mesmoselementos , mas inteiramente
deslocadose transformados.Por um lado, vocês têm a for -
ça selvagemdo rei, quevoltou a sera besta hun1ana, o rei qu

* Gravação:"que fazem parte".


30 O PODER PSIQUIÁTRICO

está exatamentena posiçãodessesescravossubmetidose


agrilhoadosque encontrávai11os na prilneira dasversõesico-
nográficasde que eu lhesfalava; e, diantedisso,a força con-
tida, discipliI1ada,serena,dos servidores.Nessaoposiçãoen-
tre o rei, que volta a ser força selvagem,e os servidores,que
sãoa representação visível de un1aforça, 1nasde mna força
discipliI1ada,creio que vocêstêm o ponto em que se prende
a passagemde mna soberaiuaen1 vias de desaparecer a um
poderdiscipliI1ar que estáse constituindoe que encontranes-
sespajensmudos,musculosos,suntuosos,ao mesmotempo
obedientese onipotentes,parece-me,suafisionomia mesma.
Ora, como essesservidoreshercúleosexercemsuasfun -
ções?Aqui tan1bém,creio que o texto devaservisto com cer-
to detalhe.Estádito que essesservidoreshercúleosestãoali
para servir ao rei; é dito muito exatamente,inclusive, que
eles estãodestinadosa prestaros serviçosrelativos às suas
"necessidades" e à sua"condição".Ora, parece-meque, no
quepoderíamoschamarde poderde soberania,o servidorestá,
de fato, a serviçodasnecessidades do soberano;ele devesa-
tisfazeràs exigênciase às necessidades da sua condição:de
fato, é ele que vestee despeo rei, que prestaos serviçosre-
lativos ao seu corpo, à sua limpeza, etc. Mas, cadavez que
o servidorse incumbeassimdos serviçosrelativosàs neces-
sidadese àcondiçãodo soberano,é essencialmente porque
é essaa vontadedo soberano;ou seja, a vontadedo sobe-
rano vincula o servidor,e ovmcula,individualmente,na me-
dida em que ele é esteou aqueleservidor,a essafunção que
consisteem prestaros serviçosrelativosàs necessidades eà
condição.A vontadedo rei, seu estatutode rei é o que fixa
o servidor às suasnecessidades e à suacondição.
Ora, na relaçãode disciplina q_ue logo vemosaparecer,
o servicfõ'r'não estáde modo algum a serviço da vontadedo
rei, ou na.o e porque tal vontadeé a vontadedo rei que ele
~ estáa ~erviço das necessidades do rei; ele estáa servi_çodas
necessidades e da condiçãodo rei sem que nem a vontade
nemo estatutodo soberanointervenham;sãosomente..as exi-
gênciasde certo modo mecânicasdo cor20 que fixam e de-
AULA DE 14 DE NOVEMBRODE 1973 31

terminamo que deveser o serviçodo servidor.Desconexão,


por conse~te,entre a vontadee anecessidade, o estatuto
e aco:1 1~ão.~ o se~dorsó intervirá como força de repres-
sao,so deixarao serviçoparase tomarum freio à vontadedo
rei, guan o estavier a se exprimir acima das suasnecessi-
aaéfes acima da sua condição.
Eis, grosso modo, digamosassim, o cenário da cena.E
agoragostariade passarao que é o próprio episódio, mpor- i
tante,dessacenaassimsituada,o episódiodo enfrentamen-
to com o médico: "Um dia, o alienado,em seufogoso delírio,
recebeduramenteseuex-médicoque o vem visitar, e o cobre
de dejetose imundices.Um dos pajensentra imediatamente
no quartosemdizer nada,agarrapela cintura o delirante..." 7
Depois,vamosdizer, da cenada decadência,da descoroa-
ção,~a vez da cena -o e·eto,do excremento,da 1mundi-
ão é mais simplesmenteo rei ue estádescoroad ._<?, nao é
lêsmenteo desapossamento dosatributosda soberania, é
a mversãototal da soberania.Esserei não tem mais outra fÕr-
çããlemão seucorpo reduzidoao estadoselvagem,e não tem
outrasarmasâlêmclas dejeçõesdo seuco~o e s~ recisa-
rr'lente essasarmasque ele vai utilizar contraseumédico.Or!1,
creio que,fazen o isso,o rei inverte efetivamentesuasobera-
ia, não apenasporquesubstituiuseucetro e.suaespadapor
suasimundices,mas porque,muito precisamente,/el reto-
ma com issoum gestogue tem suasi~ificaçãohistórica.Esse
gesto,que consisteem atirar Iama·eTmunaicesem alguem,
e o gestosecularda insurreiçãocontraos poderosqs.
:?\:gora,existe toda uma tradiçãoque quer que falemos
do dejeto,da imundice apenascomo símbolosdo dinheiro;
enfim, haveriauma história política do dejeto e da imundi-
ce a fazer, uma história ao mesmo tempopolítica e médica
da maneiracomo o dejetoe aimundicepuderamserum pro-
blemaem si e semnenhumasimbolizaçãode nenhumaor-
dem: podemter sido um problemaeconômico,um proble-
ma médico,claro, mas tambémpodemter sido o móvel de
uma luta política, que é muito nítida no séculoXVII , e prin-
cipalmenteno séculoXVIII. E essegestoprofanadorque con-
32 O PODER PSIQUJÀTRICO

iste em jogarlan1a,ünunclicee dejetosna carruagem,na seda


e no mantodo grandes,pois bem, o rei JorgeIII sabiaper-
feitam nte o que significava,por ter sido vítima dele.
Temo aqui a mversãototal do 9..ue é a função sobera-
na, já"que o rei faz seuo gestoinsurrecional,não apenasdos
'P br , Tf\a do que são os mais pôbresdentre os_pobres.
01 os cainponeses, quandose revoltavam,utilizavain para
com'bateros instrumentosde que dispunhai11:foices,_paus,
t .; o artesãostambém se serviain das suasferramentas
de trabalho,e eran1apenasos mais pobres,os ue não tinham
nada,que ian1 catarna rua as pedrase os eJetosparaatirar
nos poderosos.É essepapel que o rei estáassumindoell).
seu enfrentan1entocom o oder méclico g_ue entrano ~uarto
em ue ele seencontra.A soberaiua,ao mesmotempotr.aus-
tomadae invertid~ cont@_a álida disci li.na.
E é nessemomentoque intervémo pajemmudo, mus-
culoso, invencível, que entra, agarrao rei, joga-o na cama,
despe-o,limpa-o com umaesponjae seretira, comodiz o tex-
to, "olhandoparaele com altivez"8 • Vocês têm aí, mais urna
vez, o deslocamentodos elementosde uma cenade poder,
que não é mais, destavez, da ordem da coroação,da repre-
sentaçãoiconográfica;é, como estãovendo,o cadafalso,é a
cenado suplício.Mas aqui tambémcom inversãoe desloca-
mento: onde aquee que atentacontia a soberania,gue lhe
a a pedrase frnundices tena- s1ao morto, enforcado e ~ -
quãrteJado,s-egundoa lei inglesa,pois em, a 1sc1 - na, ao
contrário,que intervémagorasoo a forma do pajem,vai 9-
m.i:nar, abater,desnudar,limpar, tornar o corpo ao mes~o
tempo limpo e verdadeiro.
Eis o que eu queriadizer a vocêssobreessacenaque me
pareceser, muito mais que a cenade Pinel soltandoos lou-
cos, bastantesmaléticado que é posto em jogo na prática
que chamode protopsiquiátrica,isto é, grossomodo,a que
se desenvolvenos últimos anosdo séculoXVIII e nos vinte
ou trmta primeirosanosdo séculoXIX, antesdo grandeedi-
fício institucional do asilo psiquiátrico,que podemossituar
AlllA DE 14 DE NOVEMBRODE 1973 33

no correr dos anos 1830-1840- digamos1838,na França,com


a lei sobre o internamentoe aorganizaçãodos grandeshos-
pitais psiquiátricos9 •
Essacename pareceimportante.Primeiroporqueela me
permite retificar um erro que cometi na História da loucura.
Vocês estãovendo quenão se trata aqui, de maneiranenhu-
ma, da imposiçãode algo corno o modelofamiliar à prática
psiquiátrica;não é verdadeque são o pai e a mãe,não é ver-
dade que são as relaçõescaracterísticasda estruturafami-
liar que a práticapsiquiátricairia tornar emprestadas viria
e
aplicar à loucura e à direçãodos alienados.A relaçãocom a
farru1ia vai ocorrerna história da psiquiatria,masvai se pro-
duzir mais tardee, até ondepossover atualmente,é no cam-
po da histeriaque devemosapreendero momentoem quese
faz o enxertode um modelofamiliar na práticapsiquiátrica.
Vocêstambémestãovendoque essetratamento,sobre
o qual Pinel diz, com um otimismo que posteriormenteos fa-
tos desmentiram,que teria "produzidourna curasólidae sem
recaída"10, vocêsestãovendoque ele sefaz semnadaquepos-
sa valer corno descrição,análise,diagnóstico,conhecimento
verdadeirodo que é a doençado rei. Assim corno o modelo
da família só intervémmaistarde,tambémo momentodaver-
dadeintervir.i mais tarde na práticapsiquiátrica.
Enfim gostariade salientaro seguinte:é que vocêses-
tão vendoaqui muito claramenteum jogo de elementos,que
são estritamenteos do poder, postosem jogo, deslocados,
invertidos,etc. - e isso fora de toda instituição.Tenho a im-
pressão,aqui também,de que o momentoda instituiçãopffio
ê prévio a essasrelaçõesde poder.Isso significa que não é
a instituição que determinaessasrelaçõesde poder, corno
Tampoucoe um discursode verdadeque as prescreve,co-
mo tampoucoe o mo elo ãmífiar que as sugere.De fato,
vocêsvêemessasrelaçõesde poderfuncionar,eu ia dizendo
quasea nu, numa cenacomo essa.E é nissoque ela me Eª-
recepor em evi enciaa basedasre1açõesde poder ue cons-
hfuem o elementonuc ear a praticapsiquiátrica.,apartir do
34 O PODER PSJQUIÁTRICO

que, de fato, vamosver seremconstruídosem__§efillida_edi-


nciosmsfilüc1onrus,sur~emdiscursosde ver_fladelapartir do
qtie amosver tamõemseremenxertadosou importadosce..r-
to númeroele modelos.
~ Mas,por enquanto,aindaestamosna emergênciade algo
que é o poderdisciplinar, cuja figura específica,a meu ver,
apareceaqui com uma clarezasingular na medidamesmo
en1que essepoderdisciplinarse encontra,no casoem apreço,
deparadocom outra forma de poderpolítico que eu chama-
rei de poderde soberania.Isso querdizer que,se asprimeiras
hipótesesque me conduzemagoraforem exatas,não bas-
taria dizer: na práticapsiquiátricaencontramos,desdea ori-
gem, algo como um poder político; parece-meque é mais
complicado,aliásvai se tomarcadavez maiscomplicado.Por
enquanto,gostariade fazerumaesquematização. Não é qual-
quer poder político, são dois ti os de oder erfeitamente
distintos e corres on entesa dois sistemas,a dois funcio-
namentos erentês:ãmacrofísicada soberania,tal como_po-
'dia funcionar num governo pós-feudal,pré-industrial,e a.f
microfísica do poder disciplinar, cujo funcionamentoé en '
éonfradonosêlíferenfêselemenfosque dou a vocêse que apa-
receaqui apoianao-sede certo modo nos elementosdesco-
nectados,arrµinãdos,desmascarados do podersoberano.
... Transformação,portanto,da relaçãode soberaniaem po-
der de disciplina. E vocêsvêemque no cernedissotudo há,
no fundo, uma espéciede proposiçãogeral que é aseguinte:
"Se você é louco, não adiantaser rei, que não serámais rei";
ou: "Você pode ser louco, mas não é por isso que serárei."
O rei JorgeIII, no caso,só pôde ser curadona cenade Wtl-
lis, na fábula, podemosdizer, de Pinel, na medidaem que
não foi tratadocomo rei e na medidaem que foi submeti-
do a uma força que não era a do poderreal. A proposição:
"Você não é rei" me pareceestarno cernedessaespéciede
protopsiquiatriacuja análiseprocurofazer. E, sevocêsse re-
meterementãoaostextosde Descartesque tratamdos lou-
cosquesetomampor reis, notarãoque os doisexemplosque
Descartesnos dá daloucurasão: "tomar-sepor rei" ou "ter
AULA DE 14 DE NOVEMBRO DE 1973 35

um corpo de vidro" 11 • É que,paradizer a verdade,paraDes-


cartes de modo geral [... *] para todos os que falaram da
loucura até o fim do séculoXVIII, "tomar-sepor rei" ou
acreditarter /fum corpo de vidro" era exatamentea mesma
coisa,ou seja,eramdois tipos de errosabsolutamenteequi-
valentes,que contradiziamimediatamenteos dadosmais
elementaresda sensação."To1nar-sepor rei", "acreditarter
wn corpo de vidro" era sinalético,simplesmente,da loucura
como erro.
Daí em diante,parece-meque"crer-serei" é, nessaprá-
tica protopsiquiátricae, por conseguinte,para todos os dis-
cursosde verdadeque vão se conectara partir daí, "crer-se
rei" é overdadeirosegredoda loucura.E, quandovocêsvêem
a maneiracomo se analisavana épocaum delírio, uma ilu-
são,uma alucinação,etc., o fato de alguémse crer rei, isto ét
de que o conteúdodo seu delírio seja supor-seno exercício
do poderreal ou, ao contrário,sejacrer-searruinado,perse-
guido ou rejeitadopela humanidadeinteira, pouco importa.
Paraos psiquiatrasda época,o fato de impor assimessacren-
ça, de opô-la a todasas provas,até de objetá-laao sabermé-
dico, de quererimpô-la ao médico e, por fim, a todo o asilo,
objetá-la assima qualqueroutra formade certezaou de sa-
ber, issoé que é umamaneirade secrer rei. Quervocêsecreia
rei, quer você se creia miserável,quererimpor essacerteza
como uma espéciede tirania a todos osque o rodeiam,isso
é que é, no fundo, "crer-serei"; e é por isso que toda lou-
cura é uma espéciede crençaarraigadano fato de ser o rei
do mundo.Os psiquiatrasdo início do séculoXIX poderiam
ter dito que ser louco era tomar o poderna cabeça.E, aliás,
Georget,num texto de 1820,o tratadoDa loucura, apresentava
como sendo,no fundo, o grande problemada psiquiatria:
11
como dissuadir"quemse crê rei?12
Se insisti assimnessacenado rei foi por certo núme-
ro de razões.Primeiro, parece-meque isso ajuda a com-

* Gravação: "podemos dizer".


O PODER PSIQUIÀTRICO
36

preenderw11 pouco melhor essaoutra cena fundadorada


psiquiatria,de que eu lhes, falava no início, que é a cenade
Pinel, a cenada libertação.Aparentemente,Pinel em Bicê-
tre, em 1792,entrandonas111as1norras,tirando as correntes
desteou daqueledoenteque estavaencerradoe agrilhoado
havia semanasou meses,é exatamenteo contrário da his-
tória do rei desapossado, é exatamenteo contrárioda histó-
ria do rei encerrado,agarradoe vigiado por pajensmusculo-
sos.Mas de fato, olhandobem as coisas,percebe1nosque as
duas cenasestãoem continuidade.
QuandoPinel liberta os doentesepcerradosnas rnas-
rnorr~ ra a-se de estabelecerentre o libertador e os ue
acabamde ser i erta os certa dívida de reconhecimento
c}Oe va1 e deveser pagade duasmaneiras.Primeiro,o liber-
tado vai saldarsua dívi a contínuae voluntariamentepela
obediência;vai-se portanto substituir a violência selvagem
êie um corpo, q_ue só era contidapelaviolência dos grilhões,
pelasubmissãoconstantede umavontadea outra.Em outràs
palavras,tirar as correntesé realizar or intermédiode uma
· a recon ec1 a a go corno uma su·eição.E a dívida
'sera sãldadade urna segundamaneira, estavez involun-
tariamenteda parte o doente.;: gue1 a partir do momento
em que ele for assims~eitado,em que o saldovoluntário e
contínuoda ruvida de reconhecimentoo leva a submeter-se
à disciplina do podermédico,o próprio jogo dessadisciplina
e nadamais que a suaforça vão fazer o doentecurar-se.Com
"isso,a curatomar-se-ainvo untariamentea segundamoeaa 1
da peçada libertação,a maneirapela qual o doente,ou me -

lhor, a doençado doente pagaráao médico o reconheci-


mento que1he deve.
Vocêsestãovendoque, de fato, essacenada libertação,
claro, todossabemos,não é exatamenteuma cenade huma-
nismo; mas creio que podemosanaiisá-facorno sendouma
relaçãode poder,ou ainda,corno a transformaçãode certare-
~açãode poder,que era de violência - a prisão,a masmorra, ,.
os grilfioes: aqm tam em o isso pertenceà velha forma
AULA DE 14 DE NOVEMBRODE 1973 37

de poderde soberania-, numarelação e sujeiç_ão,que é uma


rela ão dis.ci.~.
Es~aa primeira razãopela qual contei a história de Jor-
ge III. E que ela me pareceinaugurartoda uma práticapsi-
quiátrica cujo mérito costumaser atribuído a Pinel.
A outrarazãopela qual eu a havia citado é quem~p.ar: -
ce que a cenade Jorge III se inscreveem toda urnasé ·e de
mitras cenas.Primeiro, em toda uma sériede cenasque, du-
rante os~e e cinco ou trinta Erimeiro?anosdo séculoXDÇ,
vão constihili essapráticaprotopsiquiátrica.Poder-se-iadi-
zer que,auranteo primeiro quarteldo séculoXIX, houveuma
e-spéciede pequenaenciclopédiadas curas canônicas que
"f01 consbfüíãaa ãrtrr os casospuolicadospor Raslam13,
íne , ' s urro , o ere16, Georget17, Guislain18. E essa e-
quenaenciclopéiliacomportacercade cinqüentacasosque
encontramoscirculandoassimem todos os tratadosde si-
qmatnada e~ ca e que, todos obedecemmais ou menosa
um modelo ánâlogo. Eis um ou dois exemplosque mostram/
creio, e manerra em nítida comotodasessascenasde cura
se aparentama essacenamaior da.curade JorgeIII.
Eis, por exemplo,no Tratado médico-filosóficode Pinel, a
seguintehistória: "Um militar, aindanum estadode aliena-
ção [...] é subitamentedominadopelaidéia exclusivada sua
partida para o exército." Ele se recusaa voltar à noite para
a cela,como lhe ordenam.Quandoestánela,põe-sea rasgar
tudo, a sujartudo. Amarram-nona cama."Oito dias se pas-
sam nesseestadoviolento, e ele pareceenfim entreverque
não pode seguir os próprios caprichos.De manhã,durante
a ronda do chefe, adota o tom mais submissoe, beijando-
lhe a mão: 'Você me prometeu', diz a ele, 'restituir minha li-
berdadedentro do hospício se eu ficassecalmo; pois bem,
eu lhe ordenoque cumpracom a suapalavra!'O outro lhe ex-
prime, sorrindo, o prazer que sentecom essefeliz retomo
dele a si mesmo; falamansamentecom ele e, no mesmoins-
tante, faz cessartoda coerção..." 19
Outro exemplo:um homemestava dominado pelaidéia
exclusivada sua "onipotência",só uma consideraçãoo de-
38 O PODER PSIQUIATRICO

tinha, o"medode fazer perecero exércitode Condé[...] que,


a seuver, estavadestinadoa realizaros desígniosdo Eterno".
Como superaressacrença?O médico espreitava"um des-
vio que o pusesseem erro e autorizassetratá-lo com rigor".
Eis que, defato, por sorte,"um dia em que o vigilante sequei-
xava com ele dassujeirase dos dejetosque ele havia deixado
na cela,o alienadovoltou-secontraele comviolênciae amea-
çou aniquilá-lo.Era uma ocasiãofavorávelparapuni-lo e con-
vencê-lode que sua onipotênciaera quimérica"20•
Mais outro exemplo: "Um alienadodo hospíciode Bi-
cêtre,que tinha o delírio de se crer umavítima da Revolução,
repetedia e noite que estáprontoparaenfrentarseudestino."
Como deveser guilhotinado,achaque não é mais necessá-
rio cuidarda suapessoa;"recusa-sea dormir na cama"e fica
deitadono chão.O vigilante é obrigadoa recorrerà coerção:
"O alienadoé amarradona cama,masprocurase vingar re-
cusandoqualquertipo de alimento com a mais insuperável
obstinação.Exortações,promessas,ameaças,tudo é inútil."
Mas, passadocerto tempo,o doentefica com sede;bebeágua,
mas "rejeita com durezao caldo que lhe oferecemou qual-
quer outro alimento,líquido ou sólido". Por volta do décimo
segundodia, "o vigilante lhe anunciaquevai privá-lo da sua
bebidade águafria, já que ele se mostraindócil, e a substi-
tui por um caldo gordo". Enfim, vencidopelasede,"ele toma
com avidez o caldo". Nos dias seguintes,come alimentos
sólidos e "retoma assim,pouco a pouco, todos os atributos
de uma saúdefirme e robusta"21 *.
Tornareisobretoda a morfologia fina dessascenas,mas
gostariade lhes mostrarque, no início da psiquiatriado sé-
culo XIX, antesmesmoe, creio, independentemente de todas
as formulaçõesteóricas,antesmesmoe independentemente
de todasas organizaçõesinstitucionais,foi definida certatá-

* O manuscrito menciona também um casoexpostono parágrafo IX:


"Exemplo destinado a mostrar com que atenção o caráter do alienado
deve ser estudado para trazê-lo de volta à razão" (ff. 196-7).
Depois, essamesmacena protopsiquiátricatransfor-
madapelo tratameno mor viu-se cons1 eravelmen e ran -
formada por um episódio fundamentalna füsfória da ps1-
quia na, gue ro1 ao mesmotempo a âesco e a e arra
ãanpno~e L e a analisedos fenómenosnistéricos.
Vocês têm, é claro:.ª cenapsic~ alítisa.
Vocês têm, enfim, a cena[ oêlemos3izer, anti siguiá-
trica. E não deixade ser curiosover o quantoessaprimeira
cena a pro ops1qU1a a, à cenaãeJorgeIlr,e prÔXlffia ãa ue
vocesenconram no livro de Mary '"SarneseÍ3er e. ocessa-
bem, a istoria de Ma.çx B nesno Kings1e F{aU,( em ue os
elementossãomais ou menosos mesmosque encontramos
na história de JorgeIII:
"Um dia, Mary procurou pôr à prova meu amor por
ela, fazendoum derradeiroteste.Ela se cobriu de merdae
aguardouminha reação.O relato que ela dá desseinciden-
te me diverte, porqueela estavaabsolutamentecertade que
a sua merdanão poderiame enojar.Afirmo que foi o con-
trário. Quando,sem desconfiarde nada, entrei na sala de
jogose uma Mary Bamesfedida, parecendosair de umahis-
tória de terror, me abordou,fui tomadopelo horror e pelo
nojo. Minha primeira reaçãofoi a fuga. Afastei-mea grandes
passos,o mais depressapossível.Ainda bem que ela não
tentou me seguir.Eu teria sido capazde baternela.
"Lembro-memuito bem da primeira coisaque pensei:
'É demais,meu Deus. Chega! a partir de agora, ela que se
cuide sozinha.Não quero n1ais saberdela."'
'
O PODERPSIQUIÁTRICO
40

DepoisBerke pensoumelhor, dissea si mesmoque, se


ele não cuidardela,tudo estaráterminadocmn ela; e isso ele
não quer. Esteúltimo argumentonão admiteréplica. Ele vai
atrásde Mary Ban1es,não semmuita reticência."Mary con-
tinuavalá na salade jogos,cabeçabaixa, em lágrimas.Balbu-
ciei algumacoisa como: 'Vamos,não é nada.Vamos subir e
tomarum banhobemquente.'Foi preciso1naisde umahora
para lavar Mary. Ela estavanum estadolamentável.Cheia
de merdapor toda parte,nos cabelos,debaixodo braço,en-
tre os dedosdo pé. Eu revia a protagonistade um velho filme
de terror, The Mummy'sGhost." 23
Na realidade,ele nãoreviu a protocenada históriada psi-
quiatria, isto é, a história de JorgeIII: era exatamenteisso.
O que eu gueriafazer esteano éf no fundo uma hist?-
ria dessascenasps1qrnatncas, levandoem contao ue talvez
seja, e mm a p e, um postulado1 em todo casouma hi-
pótese:é que essacena..ps'q.uiátrica.e.o qu.e se trama nessa
cena,o jogo de poderque se desenhanela, devemser ana-
sa s an es e o aqui o que possaser organizaçaoins-
nfücionãl,ou discurso e ver a e ou im arta ão de mode-
los. E gostariade estudaressascenassalientandotambém
uma coisa: é que essacena,de que lhes falei a propósitode
JorgeIII, não apenasé aprimeira de uma longa sériede ce-
rnaspsiquiátricas,masfaz historicamentepartede todauma
1outrasériede cenas.Vocês encontramna cenaprotopsiquiá-
trica tudo o que poderíamoschamarde cerimôniada sobe-
rania - coroação,desapossamento, submissão,fidelidade,
rendição,restauração,etc.-, mas tambémencontrama sé-
rie dos rituais de serviço que são impostospor alguns aos
outros: dar ordens,obedecer,observarregras,punir, recom-
pensar,responder,calar-se.Vocês encontrama sériedos pro-
cedimentosjudiciais: proclamara lei, vigiar as infrações,obter
um~ confissão,constatarum erro, pronunciarum julgamen-
\ to, impor uma punição.Enfim, encontramtoda a série das
1práti~asmédicas,essencialmente a grandeprática médica
~a cnse:esperaro momentoem que a criseintervém,facilitar
AULA DE 14 DE NOVEMBRODE 1973 41

seudesenrolare seu término, fazer que as forças sãspreva-


leçamsobreas outras.
Parece-meque, se sequiserfazer uma verdadeirahistó-
ria da psiquiatna,emfodo caso a cen~i uiátrica tem-se
e situa-a nestaserie e cenas:cenasde cerimôniade sobe-
ania, dos rituais de serviço,dos rocedirnentos·udiciais,das
raticasme cas,e nao an o como onto essenc1 e 12onto
e parti a aanáliseda institui ão*. Sejamosbastanteantüns-
tuc10n stas.O ue me proponhoesteano é mostrara mi-
ro s1ca o o er antesmesmoda an se a institui ão.
Agora, gostariade ver mais de perto essacenaprotopsi-
quiátricade que já lhes dei uma primeira idéia. Parece-me
que a cenade Jorgeill constitui um corte muito importan-
te na medidaem que contrastanitidamentecom certo nú-
mero de cenasque tinham sido a maneiraregradae canô-
nica de tratar a loucura até então.Parece-meque até o fim
do séculoXVIII, e aindaencontramosexemplosbem no iní-
cio do séculoXIX, a manipulaçãoda loucurapelos médicos
tinha sido da ordem do estratagemade verdade.Tratava-se
de constituirem tomo da doença,de certo modo no prolon-
gamentoda doença,deixando-a ir em frente e seguindo-a,
uma espéciede mundo ao mesmo tempofictício e real em
que a loucuraia cair na armadilhade umarealidadeque ha-
via sido insidiosamenteinduzida.Vou lhes dar um exemplo;
é uma observaçãode MasonCox, que foi publicadaem 1804
na Inglaterrae em 1806na França,no livro intitulado Obser-
vaçõessobrea demência.
"Mr ..., 36 anos,de um temperamentomelancólico, mas
extremamenteapegadoao estudoe sujeitoa acessosde tris-
tezasemcausa,àsvezespassavanoitesinteirasem cima dos
seuslivros, e entãoera extremamentesóbrio, só bebia água
e se privava de qualqueralimentaçãoanimal. Seusamigos
lhe apontaramemvão o mal quefaria dessemodo à suasaú-

* O manuscrito precisa a noção de cena: "Por cena, não entender


um episódio teatral, mas um ritual, uma estratégia, uma batalha."
42 O PODERPSIQU!ATRICO

de, e suagovernanta,insistindoveementemente e1n que ele


seguisseum regiine diferente,fez surgir nele, c01n suainsis-
tência, a idéia de que ela queria tirar-lhe a vida. Ele chegou
a se persuadirde que ela haviaidealizadoo plano de matá-lo
con1camisasenvenenadas, a cuja influênciaele já atribuíaseus
pretensossofrimentos.Nada pôde dissuadi-lodessaidéia
sinistra.Tornaramentãoa decisãode fingir acreditarnele.
Submeteramwna camisasuspeitaa wna série de experiên-
ciasqufoücasfeitas e1nsuapresençae rodeadade forrnalida-
des, cujo resultadofoi manipuladode maneiraque provasse
a verdadedassuassuspeitas.Submeterama governantaa um
interrogatórioque, apesardos seusprotestosde inocência,
pôdefazê-laparecerculpada.Conseguiramcontraela um fal-
so mandadode prisão, que foi executadona presençado
doentepor falsos oficiais de justiça,que fingiram levá-lapara
a prisão.Depoisdisso,organizaramurna consultaem devi-
da forma, na qual urna junta 1nédicainsistiu na necessidade
de diversosantídotos,que, administradosalgumassemanas
seguidas,persuadiramenfim o doenteda sua cura. Receita-
ram-lheentãoum regime e um modo de vida que o preser-
varam de recaídas."24
Numahistóriacomo essa,vocêsvêemfinalmentecomo
urna práticapsiquiátricafuncionou.No fundo, tratava-sede
desenvolver,a partir da própriaidéia delirante,uma espécie
de labirinto absolutamenteconformeao próprio delírio, ho-
mogêneoà idéia errada,pelo qual se faria o doentepassear.
~enteacredita, or exem]?.lo,que suacriadalhe dá cami-
sasengomadascom enxofre,que lhe irritam a pele; pois bem,
a-setre a ao e ·o. Submetemascamisasa urnaperíciaquí-
mica que, caro, a resultadopositivo; como e um resultado
positivo, submetemo casoa um tribunâl; o tribunal recebe
as provas· ronunciauma sentença,que e de con3enaçao,e
-fin e-selevar a criada12araayrisão.
Organização,portanto,de um labirinto homogêneoà
idéia delirante;e, no fim desselabirinto, o que se põe,e o que
vai precisamenteefetuara cura,é umaespéciede saídabifur-
e-da, de saídaem dois níveis.De um lado,vai haverum acon-
AULA DE 14 DE NOVEMBRODE 1973 43

tecimentoque se produz no interior mesmodo delírio· ou


seja, no nível do delírio do doente,a.detençãoda culµada.ç~
ii=
Iirma a verdadedo delírio, mas, ao mesmotem o, asseê::!!:a
ao oenteque ele se livrou do ue, dentro do seu delírio é a
causa a sua oença. ogo vocêstêm essaprimeira saída1 no
propno ruveldo delírio, autenticandoo delírio e afastandoo
que no e írío nciona como causa.
· ra, o que aconteceaqui no nível do delírio, num outro
nível - ou seja, no nível dos médicos,no nível do círculo
pessoal-,é algo bem diferente [ ...*].Fingindo prenderem
a criada, põem-nafora de jogo, afastam-nado doente,e o
doentese encontraassimposto ao abrigo do que, na reali-
dade,era a causada sua doença,isto é, a desconfiançaou o
ódio que ele tinha por ela. De sorte que o que é causano -
e o que é causado - delírio vai ser com isso curto-circuitado
numaso e mesmaoperaçao.
~ -
E essaoperaçãotinha de ser a mesma,isto é, ela tinha
de se produzir ao fim do próprio labirinto do delírio, por-
que, paraos médicos,estáclaro que, se a criadativessesido
pura e simplesmenteafastada,semser afastadacomo causa
no interior do delírio, esteteria recomeçado.O doenteteria
imaginadoque ela ainda o perseguia,que ela havia encon-
trado um jeito de tapeá-lo;ou ele teria transferidoparaóutra
pessoaa desconfiançaque tinha da sua criada.A partir do
momentoem que se efetuao delírio, em que se dá realidade
a ele, em que se autenticao delírio e em que, ao mesmotem-
po, se suprime o que é causano delírio, a partir dessemo-
mentotem-seas condiçõesparaque o próprio delírio se li-
quide**. E, se essascondiçõesparaque o delírio seliquide são
ao mesmotempo a supressãodo que causouo próprio de-
lírio, entãoa cura estágarantida.Logo, por assimdizer, su-

* Gravação: "que acontece".


** O manuscrito acrescenta: "Suprime-se realmente, mas numa for-
ma virtualmente aceitável para o delírio, o que no delírio funciona como
causa."
44 O PODER PSIQUIÁTRICO

pressãoda causado delírio, supressãoda causano delírio.


E é essaespéciede forquilha obtida pelo labirinto da verifi -
caçãofictícia que garanteo próprio princípio da cura.
Porque- e éesteo terceiromomento-,a partir do mo-
mento em que o doentede fato acreditaque seu delírio era
verdade,a partir do momentoem que acreditaque foi supri-
mido aquilo que, no seu delírio, era a causada sua doença,
entãoele se encontrana possibilidadede aceitaruma inter-
vençãomédica.A pretextode curar a doença quelhe havia
sido infligida pela criada,nessaespéciede brecha,dá-seurna
medicaçãoque é medicaçãono delírio, medicaçãoque no
delírio deve permitir que ele escapeda doençaque a criada
havia provocadoe que é uma medicaçãodo delírio, já que
lhe dão de fato medicamentosque, acalmandoseushumo-
res, acalmandoseu sangue,livrando-o de todas as obstru-
çõesdo seusistemasanguíneo,etc., garantem-lhea cura. E
vocêsvêemque um elementode realidade- o medicamen-
to - vai funcionartambémaqui em dois níveis: corno medi-
caçãono delírio e como terapiado delírio. E é essaespécie
de jogo organizadoem tomo da ficção de verificaçãodo de-
lírio que garanteefetivamentea cura.
Pois bem, é essejogo da verdadeno delírio e do delí-
rio que vai serinteiramentesuEnrmdona Pl_ática psiguiátri-=-
t:a que se maugurano início do séculoXIX; e arece-meqlie"-
ê a em rgenciado ue poaemosc amarâe12ráticaâisciR 1-
nar, é essanova microfísica do oder ue vai varrer tudà
isso e ms aurar os e ementasnuc earesde todas as cenasj
ps1qwatrícas que vao se desenvolverem seguidae sobreas
quais se construirãotanto a teona como a instituição ps1-
qwatncas.
'
NOTAS

1. "Philippe Pinel libertando dos grilhões os alienadosno


hospíciode Bicêtre" - onde,nomeadoem 6 de agostode 1793, as-
sumesuasfunçõesde "médico das enfermarias"em 11 de setem-
bro de 1793- é aversãoque dá seufilho mais velho, Scipion Pinel
(1795-1859),relatando-aem 1792 num artigo apócrifo atribuído
ao seu pai: "Sur l'abolition des chamesdes aliénés,par Philippe
Pinel, membrede l'Institut. Note extraite de sescahiers,commu-
niquée par M. Pinel fils", Archivesgénéralesde médecine,l? ano,
t. 2, maio de 1823, pp. 15-7; e comunicaçãoà Academiade Medi-
cina: "Bicêtre en 1792. De l' abolition des chaínes",Mémoiresde
l'Académiede médecine,1856, n? 5, pp. 32-40. O pintor Charles
Müller imortaliza a cena em 1849 num quadro intitulado Pinel
mandatirar os grilhões dos alienadosde Bicêtre. M. Foucaultse refe-
re a ele na Histoire de la folie, op. cit., parte III, cap. N, ed. de 1972,
pp. 483-4 e 496-501.
2. Ph. Pinel, Traité médico-philosophique sur l'aliénation mentale,
ou la Manie, op. cit., seçãoV, "Police intérieureet surveillanceà établir
dansles hospicesd'aliénés",§ VII, "Les maniaques , durantleurs ac-
ces,doivent-ils être condarnnésà une réclusionétroite?", pp. 192-3.
JorgeIII (1738-1820),rei da Grã-Bretanhae da Irlanda, apresentou
vários episódiosde distúrbiosmentaisem 1765,1788-1789,de feve-
reiro a junho de 1801, e de outubro de 1810 até a suamorte, em 29
de janeiro de 1820. Cf. I. Macalpinee R. Hunter, Georgemand the
Mad-Business,NovaYork, PantheonBooks, 1969.
46 O PODERPSIQUIÁTRICO

3. Sir FrancisWillis (1718-1807),prop1ietárioem Lincolnsh.ire


de um estabelecimento parapessoasafetadaspor distúrbiosmen-
tais, é chamadoem 5 de dezembrode 1788, em Londres,no âm-
bito de uma comissãocriada pelo Parlamentoa fim de se pronun-
ciar sobreo estadodo rei. Willis trata de JorgeIII até a melhorados
distúrbios,em março de 1789; episódiomencionadopor Ph. Pinel
em "Observations sur le régime moral qui est le plus propre à réta-
blir, danscertainscas,la ra.isonégaréedesmonarques",art. cit. (1789),
pp. 13-5 (reproduzidoem J. Pastel,Genesede la psychiatrie.Les pre-
miers écrits de Philippe Pinel, Le Plessis-Robinson, Institut Synthé-
labo, col. " Les Empêcheursde penseren rond", 1998, pp. 194-7)
e no Traítémédico-philosophique, pp. 192-3e 286-90,em quePinel cita
o Repari from the Com.mittee Appointed to Examine the Physicians
who HaveAttendedHis Majesty During His fllness,Touchingthe Present
Stateof His Majesty's Health, Londres,1789.
4. William Shakespeare, The Tragedyof King Richard the Ihird,
dramahistórico,compostoem fins de 1592-irúciode 1593,quedes-
creve a ascensãoà realeza,por usurpação,de Ricardo, duque de
Gloucester,irmão do rei EduardoN, depoissua morte na batalha
de Bosworth [Richard III, trad. fr. J. Malaplote,in Oeuvrescompletes.
Histoires II, ed. bilingüe, Paris,RobertLaffont, col. "Bouquins",1997,
pp. 579-85].
5. Ihe Tragedyof King Lear (representada na corte no d.ia 26 de
dezembrode 1606,publicadaprimeiro em 1608,depois,numaver-
sãoremanejadaem 1623) [Le Roí Lear, trad. fr. G. Monsarrat,in Oeu-
vrescompletes.TragédiesII, ed. bilingüe, Paris,RobertLaffont, col. "Bou-
quins", 1995,pp. 371-581].M. Foucaultse referea ela em Histoire de
la folie, ed.,de 1972, p. 49, e remeteà obra de A Adnes, Shakespeare
et la folie. Etude médico-psychologique, Paris,Maloine, 1935.Tornará
sobreela no Curso no Collegede France,ano letivo de 1983-1984:
"O governo desi e dos outros.A coragemda verdade",21 de mar-
ço de 1984.
6. Ph. Pinel, Traité médico-philosophique, op. cit., p. 192.
7. Ibid., p. 193.
8. Loc. cit.
9. No d.ia 6 de janeiro de 1838, o ministro do Interior, Adrien
de Gasparin,apresentaà Câmarados Deputadosum projeto de lei
sobreos alienados,que é votado pela Câmarados Paresem 22 de
março, e no d.ia 14 de junho pela Câmarados Deputados.A lei é
promulgadaem 30 de junho de 1838. Cf. R. Castel,I.:Ordre psychia-
AULA DE 14 DE NOVEMBRODE 1973 47

trique. L'âge d'or de l'aliénisme, Paris,Éd. de Minuit, col. "Le senscom-


mun", 1976, pp. 316-24.
10. Ph. Pinel, Traité médico-philosophique, op. cit., p. 193.
11. Alusão a Descartesevocando"essesinsensatoscujo cére-
bro é tão perturbado [ ...] que eles afirmam constantementeque
são reis, quandosão muito pobres[...] ou imaginam ter um corpo
de vidro", Méditations touchantla premierephilosophie,1641, trad.
fr. do duque de Luynes, 1647,· "Premiereméditation: Des choses
que I' on peut révoqueren doute", in Oeuvreset Lettres,ed. por A
Bridoux, Paris,Gallirnard, "Bibliothequede la Pléiade",1952,p. 268.
Ver M. Foucault, "Mon corps, ce papier, ce feu", Paideia, setembro
de 1971,in Dits et Écrits, 1954-1988,ed. por D. Defert e F. Ewald, co-
lab. J. Lagrange,Paris, Gallirnard, 1994, 4 vol. [daqui em diante DE,
no que se refere a essaedição]: cf. t. II, n? 102, pp. 245-68; e Histoi-
re de la folie, op. cit., ed. de 1972, AppendiceII, pp. 583-603.
12. E. J. Georget: "Nada no mundo pode dissuadi-los.Diga
[...] a um pretensorei que ele não é rei, e ele responderácom invec-
tivas", De la foli e. Considérationssur cettema/adie..., op. cit., p. 282.
13. Cf. supra, p. 23, nota 7.
14. Cf. ibid., nota 4. - O manuscritomencionacasosque figu-
ram na seçãoII,§ VII, "Effets d'unerépressionénergique pp. 58- 1
',

9; § XXIII (citado), pp. 96-7; e a seçãoV, '1 Police intérieureet sur-


veillance à établir dansles hospicesd' aliénés",cap. 3, pp. 181-3 e
§ 9, pp. 196-7.
15. Cf. ibid., nota 5. _
16. F. E. Fodéré,[1] Traité du délire, op. cit.; [2] Essaimédico-lé-
gal sur les diversesespecesde folie vraie, simuléeet raisonnée,sur leurs
causeset les moyensde les distinguer, sur leurs effetsexcusantou atté-
nuant devantles tribunaux, et sur leur associationavec les penchants
au crime et plusieursmaladiesphysiqueset morales,Estrasburgo,Le
Roux, 1832.
17. E. J. Georget,[1] De la folie, op. cit.; [2] De la physiologiedu
systemenerveuxet spécialementdu cerveau.Recherches sur les maladies
nerveusesen général,et en particulier sur le siege,la nature et le traite-
mentde l'hystérie, de l'hypocondrie,de l'é-pilepsieet de l'asthmeconvul-
sif, Paris,J.-B. Bailliere, 1821, 2 vol.
18. JosephGuislain (1797-1860),[1] Traité sur l'aliénation men-
tale et sur les hospicesdes aliénés,Amsterdarn,Van der Hey et Gartman,
1826, 2vol.; [2] Traité sur /es phrénopathiesou Doctrine naturellenou-
velle des maladiesmentales,baséesurdesobservationspratiqueset statis-
48 O PODERPSIQUJÂTRICO

tiques, et l'étudedes causes,de la nature des symptômes,d!' pronosti.c, du


diagnosticet du traitementde ces affecti.ons,Bruxelas,Etablissement
Encyclographique,1833.
19. Ph. Pinel, Traité médico-philosophique,op. cit., seção II,§VII ,
pp. 58-9.
20. Ibid., § XXIII, pp. 96-7, n . 1.
21. Ibid., seçãoV, § III, pp. 181-3.
22. FrançoisLeuret desenvolvesuasconcepções em: [1] "Mé-
moire sur le traitementmoral de la folie", Mémoiresde l'Académie
royale de médecine, t. 7, Paris, 1838, pp. 552-76; [2] Du traitement
moral de la foli e, op. cit.; [3] "Mémoire sur la révulsionmorale dans
le traitementde la folie", Mémoiresde l'Académieroyale de médeci-
n.e, t. 9, 1841, pp. 655-71; [4] Des indication.s à suivre dan.s le traíte-
mentmoral de la folie, Paris,Le Normant, 1846.
23. Mary Barnes,enfermeira,entra,aos42 anos,no centrode
recepçãodo Kingsley Hall aberto em 1965 para pessoasque so-
friam de distúrbios mentais,fechadoem 31 de maio de 1970. Ela
passaaí cinco anos,e suahistória é conhecidapela obra que escre-
veu com seu terapeuta.Cf. M. Barnese J. Berke, Mary Barnes.Two
Accountsof a Journeythrough Madness,Londres,McGillon and Lee,
1971 [Mary Barnes. Un. voyageautour de la folie, trad. fr. M. Davido-
vici, Paris, Le Seuil, 1973; texto citado: pp. 287-8].
24. JosephMason Cox (1763-1818),Practical Observationson
Insan.ity, Londres,Baldwin and Murray, 1804 [Observationssur la
démence, trad. fr. L. Odier, Genebra,BibliothequeBritannique,1806;
texto citado: ObservationIV, pp. 80-1].
AULA DE 21 DE NOVEMBRO DE 1973

Genealogiado "poder de disciplina". O "poder de sobera-


nia". A função-sujeitonos poderesde disciplina e de soberania.
- Formasdo poderde disciplina: exército,polícia, aprendizagem,
oficina, escola. - O podade disciplina como"instância norma-
lizadora". - Tecnologia do poder de disciplina e constituiçãodo
"indivíduo". -A emergênciadas ciênciasdo homem.

Pode-se dizer que a psiquiatria clássicareinou e fun-


cionou sem, afinal de contas,muitos problemasexternosen-
tre os anos 1850 e 1930, a partir de um discurso que ela
considerava e fazia funcionar como um discursoverdadei-
ro; em todo caso,a partir dessediscursoela deduziaa ne-
cessidadeda instituiçãoasilare, igualmente,a necessidade de
que certo poder médico se desenvolvesse no interior dessa
instituiçãocomo lei internae eficaz.Em resumo,de um dis-
cursoverdadeiroela deduziaa necessidade de umainstitui-
ção e de um poder.
Parece-meque poderíamosdizer o seguinte:a crítica
institucional- hesito dizer "antipsiquiátrica"- , enfim, cer-
ta forma de crítica que se desenvolveua partir dos anos
1930-19401 partiu, ao contrário,não de um discursopsiquiá-
trico que se supõeverdadeiropara dele deduzir a neces-
sidadede uma instituiçãoe de um podermédicos,massim
do fato da instituição,do funcionamentoda instituição,da
crítica da instituição,paraevidenciar,por um lado, a violên-
cia do podermédico que nela se exerciae, por outro lado,
os efeitos de desconhecimentoque perturbavamlogo de
saídaa supostaverdadedessediscursomédico. Portanto,
podemosdizer que nessaforma de análisepartia-seda ins-
50 O PODER PSIQUIÁTRICO

tituição paradenunciaro podere analisaros efeitosde desco-


nheciI11ento.
Eu gostariade tentar, em vez disso- foi por isso que co-
mecei o curso assim-, pôr em destaqueesseproblemado
poder. Remetopara um pouco1nais tarde as relaçõesentre
essaanálisedo poder e o problen1ado que é a verdadede
um discursosobrea loucura2 •
Parti portantodessacenade JorgeIII enfrentandoseus
serviçais,que eramao mesn10tempoagentesdo podermé-
dico, porqueesteme pareciaum belo exemplodo enfrenta-
mento entre um poder que, na própria pessoado rei, é um
podersoberanoque esserei louco encarnavae outro tipo
de poder,um poderao contrárioanônimo,mudo e que, pa-
radoxalinente,se apoiavana força, ao mesmotempo mus-
culosa, dócil e não articuladaem discurso,dos serventes.
Logo, de um lado, o desenfreamento do rei e, diante deste,
a força regradados serventes.E a operaçãoterapêutica,que
Willis e, depoisdele, Pinel supõem,consistiuem fazer alou-
cura migrar de uma soberaniaque ela desenfreavae no in-
terior da qual ela se desenfreava,para uma disciplina que
devia subjugá-la. O que aparecianessacaptaçãoda loucu-
ra, antesde toda instituição e inclusive fora de todo discurso
de verdade,eraportantocertopoderque chamode "poderde
disciplina".
O que é essepoder?A hipóteseque eu queria propor
é que existeem nossasociedadealgo como um poderdisci-
plinar. Com isso entendonadamais que uma forma de certo
modo terminal, capilar, do poder, uma última intermedia-
ção, certamodalidadepela qual o poderpolítico, os poderes
em geral vêm, no último nível, tocar os corpos, agir sobre
eles,levar em contaos gestos,os comportamentos,os hábi-
tos, aspalavras,a maneiracomo todosessespoderes,concen-
trando-separa baixo até tocar os próprios corpos indivi-
duais,trabalham,modificam, dirigem o que Servanchama-
va de "fibras moles do cérebro"3 • Em outraspalavras,creio
que o poder disciplinar é certa modalidade,bem específica
AULA DE 21 DE NOVEMBRODE 1973 51

da nossa sociedade,do que poderíamos chamarde contato


sináptico corpo-poder*.
A segundahipótese é que esse po der disciplinar, no que
tem de específico,tem umahistória, que essepodernão nas-
ceu de repente,que tambémnão existiu sempre,que se for-
mou e seguiuurna trajetória de certo modo diagonal,atra-
vés da sociedadeocidental.E, para tornar apenas,digamos,
a história que vai da IdadeMédia aosnossosdias, creio que
podemosdizer que esse poder, no que ele tem de especí-
fic o, não se formou propriamente à margem da socieda-
de feudal, nem, certamente , tampouco em seu centro.For-
mou-seno interior das comunidades religiosas;dessasco-
munidadesreligiosas,ele se transportou, transformando-se,
para comunidadeslaicas que se desenvolveram e se multi-
plicaram nesseperíodo da pré-Reforma, digamos,nos sé-
culosXIV-XV. E podemosapreenderperfeitamente essatrans-
laçãoem certos tipos de comunidadeslaicasnão exatamen-
te conventuais, corno os célebres"Irmãos daVida Comum"
que, a partir de certo númerode técnicasque tornavamem-
prestadasda vida conventual,a partir igualmentede certo
número de exercíciosascéticosque tornavam empresta-
dos de toda urna tradição do exercício religioso, definiram
métodosdisciplinaresrelativos à vida cotidiana, à pedago-
gia4. Mas esseé apenasum exemplode toda essaramifica-
ção,anteriorà Reforma,de disciplinasconventuais ou ascé-
ticas. E, pouco a pouco,são essastécnicasque vemos então
difundir-se em larga escala,penetrara sociedadedo século
XVI e, sobretudo,dos séculosXVII e XVIII , e tomar-se no sé-
culo XIX a grandeforma geral dessecontatosinápti co: po-
der político/corpoindividual.
E creio que o ponto de chegadade toda essaevolução,
quevai, para tornarmosuma referência simbólica, dos Irmãos

* O manuscrito acrescenta: " O que metodologicamenteimplica


deixarmos de lado o problema do Estado, dos aparelhos de Estado, e
nos desembaraçarmosda noção psicossociológicade autoridade."
52 O PODERPSIQUIÁTRICO

daVida Comum, isto é, do séculoXIV, ao ponto de eclosão


- isto é, o momentoem que essepoder disciplinar se torna
mna fonna social absolutainentegeneralizada-, é o Panop-
ticon de Benthan1, em 179l5, que dá exata1nentea fórmula
política e técnicamais geral do poderdisciplinar. Creio que
o enfrentan1entoentreJorgeIII e seusserviçais,que é mais
ou menoscontemporâneo do Panopticon,esseenfrentamento
entre a loucura dorei e adisciplina médicaé um dos pontos
históricose simbólicosda emergênciae da instalaçãodefi-
nitiva do poderdisciplinar na sociedade.E não creio que se
possaanalisaro funcionamentoda psiquiatrialimitando-se
justamenteao funcionamentoda instituição asilar. É claro
que não se trata de analisarnem mesmoo funcionamento
da psiquiatriaa partir do discursosupostamente verdadei-
ro da psiquiatria; mas creio que não se pode fazê-lo nem
mesmoa partir da análiseda instituição: é a partir do fun-
cionamentodessepoderdisciplinarquese devecompreender
o mecanismoda psiquiatria.

*
Entãoo que é essepoderdisciplinar?É dissoque eu que-
ria lhes falar estanoite.
Estudá-lonão é muito fácil. Primeiro porquetomo uma
escalade tempo, no fim das contas,bem ampla: tomarei
exemplosnas formas disciplinaresque vão aparecerno sé-
culo XVI e que se desenvolvematé o fim do séculoXVIII. Não
é fácil tambémporque, para fazer direito as coisas,seria
precisoanalisaressepoderdisciplinar, essajunção corpo-
poder,em oposiçãoa outro tipo de poder,que o teria pre-
cedido,que teria se justapostoa ele. É o que vou começar
a fazer, sem ter aliás muita certezado que digo a vocês.
Parece-meque poderíamosopor o poder disciplinar a
um poderque o precedeuhistoricamente,com o qual, aliás,
ele semisturoupor muito tempo,antesde triunfar. Essepoder
que o precedeueu chamarei,em oposiçãoportantoao po-
AULA DE 21 DE NOVEMBRODE 1973 53

der de disciplina, de poderde soberania- semme encantar


muito com o termo - , vocêsjá vão ver por quê.

Bom, o que é o poder de soberania?Parece-me que é


uma relação de poder que vinculâ soberanoe súdito se-
gundoum par de relaçõesassimétricas:de um lado, a coleta,
do outro a despesa.Na relaçãode soberania,o soberanore-
colhe produtos,colheitas,objetosfabricados,armas,força de
trabalho, coragem;tambémrecolhe tempo, serviços,e vai,
não devolver o que recolheu,porquenão tem de devolver,
mas, numa operaçãode retorno simétrico,vai haver a des-
pesado soberano,que podeassumirsejaa forma da dádiva,
quepodeserefetuadadurantecerimôniasrituais - dádivasde
eventosalegres,dádivaspor ocasiãode um nascimento-,
sejaa de um serviço,masde tipo diferentedo que recolheu,
como, por exemplo,o serviço de proteçãoou o serviçoreli-
gioso, que é levado a cabo pela Igreja; pode ser tambéma
despesafeita quando,para os festejos,para a organização
de uma guerra,o senhorfaz os que o rodeiamtrabalhar,me-
diante retribuições.Vocêstêm aí, portanto, essesistemaco-
leta-despesa que me parececaracterizaro poderde tipo so-
berano.Claro, a coleta sempreprevalece,e muito, sobre a
despesa,e adissimetriaé tão grandeque vemosse delinear,
por trás dessarelaçãode soberaniae dessepar dissimétrico
coleta-despesa, a depredação,os saques,a guerra.
Em segundolugar, a relaçãode soberaniasempretraz,
creio, a marcade umaanterioridadefundadora.Paraque haja
relaçãode soberania,é preciso que haja outra coisa, como
um direito divino ou como uma conquista,uma vitória, um
ato de submissão,um juramentode fidelidade, um ato fir-
madoentreo soberanoque concedeprivilégios, uma ajuda,
uma proteção,etc., e alguémque, em compensação, se em-
penha;ou tem de haveralgo como um nascimento,direitos
de sangue.Em suma,podemosdizer, a relaçãode sobera-
nia olhasempreparatrás,na direçãode algo que a fundou de
54 O PODER PSIQUIÁTRICO

uma vez por todas.Mas isso não impedeque essarelação


de soberaniadeva ser reatualizadade n1aneiraregular ou
irregular; e a relaçãode soberaniase1npreé - esta é mais
uma das suascaracterísticas- reatualizadapor algo c01no
a ce1imônia, o ritual; tambémé reatualizadapelo relato e é
atualizadapor gestos,sinais,hábitos,obrigaçõesde cmnpri-
mento, sinais de respeito,insígnias,brasões,etc. Que toda
relaçãode soberaniasejaassim fundadanumaanteriorida-
de e reatualizadapor certo nÚ111erode gestosmais ou menos
rituais, isso se deve ao fato de que essarelaçãoé, em certo
sentido, intangível,que ela é dadade urnavez por todas,mas,
ao mesmotempo, é frágil, estásempre exposta à caducida-
de, à ruptura. Logo, para que essarelaçãode soberaniase
mantenhaverdadeiramente, há sempre,fora do rito do re-
começo, da reatualização,fora do jogo dos sinais rituais,
semprehá a necessidadede certo suplementode violência
ou de certaameaçade violência, que estápresente,por trás
da relaçãode soberania,que a anima e que a apóia. O re-
verso da soberaniaé a violência, é a guerra.
Terceiracaracterísticadasrelaçõesde soberania:não são
isotópicas.Quero dizer com isso que elas se entrecruzam,
se entrelaçamumasnas outrasde maneiratal que não dá
paraestabelecerentre elasum sistemaem que a hierarquia
sejaexaustivae planejada.Em outraspalavras,as relações
de soberaniasão perpétuasrelaçõesde diferenciação,mas
não são relaçõesde classificação;elas não constituemum
quadro hierárquicounitário com elementossubordinados,
elementossuperordenados. O fato de seremnão-isotópicas
quer dizer, em primeiro lugar, que não têm medidacomum,
sãoheterogêneas umasem relaçãoàs outras.Vocêstêm, por
exemplo,a relaçãode soberaniaque encontramosentre o
servoe o senhor; vocêstêm outra relaçãode soberania,que
é absolutamenteinsuperponívelàquelae que é a relação
entre detentordo feudo e suserano;vocêstêm a relaçãode
soberaniaexercidapelo padre em relaçãoao leigo. Todas
essasrelaçõesnão podem ser integradasno interior de um
sistemaverdadeiramenteúnico. Além disso - é tambémo
AULA DE 21 DE NOVEMBRODE 1973 55

que marcaa não-isotopiada relaçãode soberania-,os ele-


mentosque ela implica, que ela põe em jogo, não são equi-
valentes:uma relaçãode soberaniapodeperfeitamentedizer
respeitoà relaçãoentreum soberanoou um suserano- não
faço diferençaem uma análisetão esquemáticacomo esta-
e uma família, uma coletividade,os habitantesde uma pa-
róquia, de uma região; mas a soberaniapode ter por objeto
outra coisa que não as multiplicidadeshumanas,pode ter
por objeto uma terra, uma estrada,um instrumentode pro-
dução (um moinho, por exemplo),os usuários- as pessoas
que passampor um pedágio, uma estrada,caemsob a rela-
ção de soberania.
De sorteque, como vocêsestãovendo,a relaçãode so-
beraniaé umarelaçãona qual o elemento-sujeitonão é tan-
to - pode-seaté dizer que não é quasenunca- um indivíduo,
um corpo individual.A relaçãode soberanianão se aplica a
uma singularidadesomática,mas a multiplicidadesque es-
tão, de certo modo, acimada individualidadecorporal:a fa-
mílias, usuáriosou, ao contrário,a fragmentos,aspectosda in-
dividualidade,da singularidadesomática.É na medida em
que alguémé filho de X, burguêsde tal cidade,etc., que vai
ser pego numa relaçãode soberania,seja ele soberanoou,
ao contrário, sujeito, e pode ser ao mesmotempo sujeito e
soberanosob diversosaspectose de tal maneiraque nunca
o planejamentototal de todasessasrelaçõespossase apre-
sentarnum quadroúnico.
Em outraspalavras,numa relaçãode soberania,o que
chamareide função-sujeitose deslocae circula acimae abai-
xo dassingularidadessomáticas;e, inversamente,os corpos
vão circular, se deslocar,se apoiaraqui ou ali, fugir. Vai-se ter
portantonessasrelaçõesde soberaniaum perpétuojogo de
deslocamentos,de litígios, que vão fazer as funções-sujei-
tos circular umasem relaçãoàs outrase, depois,as singula-
ridadessomáticas,digamos- com uma palavraque não me
agradamuito, vocês já verão por quê -, os indivíduos. E a
vinculaçãoda função-sujeitoa u1n corpo determinadoé coi-
sa que só se pode fazer de maneiradescontínua,incidente,
56 O PODERPSIQUIÀTRICO

momentânea , por exen1ploen1 cerii11ônias.Nessemon1ento,


o corpo do indivíduo é 1narcadopor un1ainsígnia,pelo ges-
to que faz: é, por exemplo, a homenagen1, é 1n01nento
o e1n
que uma singularidadesmnáticavem efetivainentese fazer
marcarpelo selo da soberaniaque o aceita,ou, tarnbém,é na
violência que a soberaniafaz valer seusdireitos e vai ilnpô-
los à força a algué1nque ela subjuga.Logo, no nível mesn10
em que a relaçãode soberaniase aplica, se assiln podemos
dizer, na extrenudadeinferior da relaçãode soberania,vo-
cês nunca encontramuma adequaçãoentre esta relaçãoe
as singularidadescorporais.
Em compensação , se vocês olharempara cima, perce-
berãonessemomentoaquelaindividualizaçãoque não en-
contramembaixo;começarãoa vê-la seesboçandoparacima.
Tem-se uma espéciede individualizaçãotendencialda rela-
ção de soberaniaparacima, isto é, na direçãodo soberano.
E haveriacomo umaespéciede espiralmonárquicaque acar-
reta necessariamente essepoderde soberania . Isso quer di-
zer que, na medidamesmaem que essepoderde soberania
não é isotópico,masacarretaperpetuamente litígios, deslo-
camentos,na medidaem que por trás dessasrelaçõessobe-
ranasaindaecoama depredação,os saques,a guerra,etc., e
em que o indivíduo como tal nuncaé pego na relação,tem
de haver, num momentodado e do lado de cima, algo que
faça a arbitragem;tem de haverum ponto único, individual,
que sejao topo de todo esseconjuntode relaçõesheterotópi-
casumasem relaçãoàs outrase absolutamentenão planejá-
veis num só e mesmoquadro.
A individualidade do soberanoé implicada pela não-
individualizaçãodos elementosa que se aplica a relaçãode
soberania.Necessidade, por conseguinte,de algo comoum so-
berano queseja,em seu corpo mesmo,o ponto parao qual
convergemtodas essasrelaçõestão múltiplas, tão diferen-
tes, tão inconciliáveis. E é assimque vocêstêm necessaria -
menteno topo mesmodessetipo de poderalgo como o rei
em sua individualidade,com seu corpo de rei. Mas vocêslo-
go vêem um fenômenomuito curioso,que foi estudadopor
AULA DE 21 DE NOVEMBRODE 1973 57

Kantorowicz em seu livro Os dois corpos do reí6 : o rei, para


assegurarsua soberania,deve ser um indivíduo com um
corpo, masessecorpo não podeperecercom a singularida-
de somáticado rei; quandoo monarcadesaparece, a monar-
quia tem de subsistir;estecorpo do rei, que mantémjuntas
todas essasrelaçõesde soberania,não,pode desaparecer
com o indivíduo X ou Y que acabade morrer. É necessária
portantocertapermanênciado corpo do rei; é necessárioque
o corpo do rei não sejasimplesmentesuasingularidadeso-
mática,tem de ser,além disso,a solidezdo seureino, da sua
coroa. De sorte que a individualizaçãoque vemosse esbo-
çar no topo da relaçãode soberaniaimplica a multiplicação
do corpo do rei. O corpo do rei é pelo menosduplo, segundo
Kantorowicz; estudadode perto, ele sem dúvida é, a partir
de certaépoca,um corpo absolutamentemúltiplo.
Logo, creio que se pode dizer o seguinte:a relaçãode
soberaniapõe em ligação,aplica algo como um poderpolí-
tico no corpo, mas nuncafaz a individualidadeaparecer*.
É um poderque não tem função individualizanteou que só
esboçaa individualidadedo lado do soberano,e aindaassim
à custadessacuriosa,paradoxale mitológica multiplicação
dos corpos.De um lado, corpos,mas nãoindividualidade;de
outro lado, uma individualidade,mas uma multiplicidade
de corpos.

Pois bem, agora, o poder disciplinar, pois é principal-


mentedisso que eu gostariade falar.
Creio que podemosopô-lo quasetermo a termo ao po-
der de soberania.Em primeiro lugar, o poder disciplinar não
põe em açãoessemecanismo,esseacoplamentoassimétrico
coleta-despesa.Num dispositivodisciplinar,não há dualismo,

* O manuscrito precisa: "O pólo sujeito nunca coincide continua-


mente com a singularidade somática, salvo no ritual da marca."
58 O PODERPSJQUIÂTRJ
CO

assimetria;não há essaespéciede apropriaçãoparcial. Pare-


ce-me que o poder disciplinar pode se caracterizaren1 pri -
meiro lugar pelo fato de i.lnplicar, não mna coletacom base
no produtoou numapartedo ten1po,ou em detenninadaca-
tegoria de serviço, 1nas por ser mna apropriaçãototal, ou
tender, em todo caso, a ser un1a apropriaçãoexaustivado
corpo, dos gestos,do tempo, do comportamentodo indiví-
duo. É urna apropriaçãodo corpo, e não do produto; é urna
apropriaçãodo tempo em sua totalidade,e não do serviço.
Ternosum exemplonítido disso na aparição,em fins do
séculoXVII e em todo o correr do séculoXVIII, da discipli-
na militar. Até o início do séculoXVII, até a GuerradosTrin-
ta Anos, grossomodo, a disciplina militar não existia; o que
existiaeraurnaperpétuapassagemdavagabundagem ao exér-
cito, isto é, o exército era sempreconstituídopor um grupo
de pessoasque eram recrutadas,conformeas necessidades
da causa,por um tempofinito e às quaisse davacomidapor
meio do saquee teto por meio da ocupaçãodos locais que
se conseguiaencontrar.Em outras palavras,nessesistema
que aindaera da ordemda soberania,tornava-secerto tempo
da vida das pessoas,tomavam-sealguns dos seusrecursos
exigindo delasque viessemcom suasarmas,e prometia-sea
elas algo como a granderetribuição do saque.
A partir de meadosdo século XVII, vocêsvêem surgir
algo como o sistemadisciplinar no exército,isto é, um exér-
cito que era aquarteladoe no qual os soldadosficam ocupa-
dos. Quer dizer, eles ficam ocupadoso dia inteiro, o tempo
todo da campanha,elesficam, à partecerto númerode des-
mobilizações,ocupadosigualmenteduranteo períodode paz
e, no limite, até o fim dos seusdias, já que, a partir de 1750
ou 1760, quandoacabasua vida de soldado,o soldadovai
receberuma pensão,será soldadoreformado.A disciplina
militar começaa ser o confiscogeral do corpo, do tempo,da
vida; não é mais urna coleta com basena atividadedo indi-
víduo, é uma ocupaçãodo seu corpo, da sua vida e do seu
tempo.Todo sistemadisciplinar, creio, tendea serurna ocupa-
ção do tempo, da vida e do corpo do indivídua7.
AULA DE 21 DE NOVEMBRODE 1973 59

Em segundolugar, o sistemadisciplinar não precisa,


parafuncionar,dessejogo descontínuo,ritual, mais ou me-
nos cíclico, das cerimôniase dos estigmas.O poderdiscipli-
nar não é descontínuo,ao contrário, ele implica um proce-
dimentode controle contínuo;no sistemadisciplinar,não se
estáà eventualdisposiçãode alguém,está-seperpetuamen-
te sob o olhar de alguémou, em todo caso,na situaçãode ser
olhado.Logo, não se é marcadopor um gestoque teria sido
feito de uma vez por todas,não se é marcadopor uma si-
tuaçãoque foi dadalogo de saída;é-sevisível, está-seper-
petuamentena situaçãode ser olhado. De maneiramais
precisa,podemosdizer que,na relaçãode poderdisciplinar,
não há referênciaa um ato, a um acontecimentoou a um
direito originários; ao contrário,o poderdisciplinar se refe-
re antesa um estadoterminal ou ótimo. O poder discipli-
nar olha parao futuro, parao momentoem que a coisafun-
cionarásozinhae em que a vigilância poderánão ser mais
quevirtual, em que a disciplina, por conseguinte,tomar- se-á
um hábito.Há uma polarizaçãogenética,um gradientetem-
poral na disciplina que são o exatoinverso dessareferência
à anterioridadeque se encontravanecessariamente na rela-
ção de soberania.Toda disciplina implica essaespéciede li-
t1ha genéticaque faz que, de um ponto que não é dado co-
mo a situaçãoincontornável,que é, ao contrário,dadocomo
=> ponto zero do começoda disciplina, deva se desenvolver
3.lgo que é tal que a disciplina funcionarásozinha.Por outro
lado, o que vai asseguraressefuncionamentopermanente
::la disciplina, essaespéciede continuidadegenéticaque ca-
racterizao poderdisciplinar?Não vai ser, evidentemente,a
:erimônia ritual ou cíclica; vai ser, ao contrário,o exercício,
=> exercícioprogressivo,gradual,o exercícioque vai detalhar
:W longo de uma escalatemporalo crescimentoe o aperfei-
;oamentoda disciplina. /
Aqui tambémpodemostomar como exemploo exer-
:ito. No exército, tal como existia sob essaforma que cha-
marei de poder de soberania,existia algo que poderíamos
:hamarde exercícios,masque,na verdade,não tinha de ma-
60 O PODERPSIQUlATRICO

neira nenhwnaa função do exercíciode disciplina: eramcoi-


sascomo as justas, os jogos. Isto é, regularn1ente,os guer-
reiros, pelo menosos que eramguerreirospor estatuto,isto
é, os nobres, os cavaleiros, praticavama justa, etc. Em certo
sentido,pode-seinterpretarisso como uma espéciede exer-
cício, como um condicionan1entodo corpo; mas eraessen-
cialmente,creio, uma espéciede repetiçãode bravura,un1a
prova pela qual o indivíduo mostravaque continuavaem
condiçõesde garantirseuestatutode cavaleiro,de, por con-
seguinte,honraressasituaçãoque era a dele e pela qual ele
exerciacerto número dedireitos e obtinhacerto númerode
privilégios.A justaeratalvez,em parte,um exercício;eraprin-
cipalmente,creio, a repetiçãocíclica da grandeprova pela
qual um cavaleirose tornavacavaleiro.
Já a partir do séculoXVIII, sobretudoa partir de Frede-
rico II e do exércitoprussiano,vocêsvêm surgir no exército
umacoisaque praticamentenão existiaantese que é o exer-
cício corporal.Exercíciocorporalque não consiste,no exérci-
to de FredericoII e nos exércitosocidentaisdo fim do século
XVIII, em algo como a justa, isto é, repetir, reproduziro ato
da guerra.O exercíciocorporal é um adestramentodo cor-
po, adestramentoda habilidade,da marcha,da resistência,
dosmovimentoselementares, e issosegundoumaescalagra-
dual, totalmentediferenteda repetiçãocíclica dasjustase dos
jogos.Logo, não se trata de cerimônia,masde exercício.Eis
o meio pelo qual é assegurada essa[espécie]de continuida-
de genéticaque, creio, caracterizaa disciplinaª.
Paraque a disciplina sejasempreessecontrole,essaas-
sunçãopermanentee global do corpo do indivíduo, creio que
é necessariamente levada a utilizar um instrumentoque é a
escrita.Ou seja, enquantoa relaçãode soberaniaimplica a
atualizaçãodo estigma,creio que se pode dizer que a disci-
plina, com suaexigênciade inteira visibilidade, sua consti-
tuição daslinhas genéticas,com essaespéciede continuum
hier~qui~oq~e a caracteriza,apela necessariamente paraa
escnta.Pnmerro,paragarantira notaçãoe o registrode tudo
o que acontece,de tudo o que o indivíduo faz, de tudo o que
AULA DE 21 DE NOVEMBRODE 1973 61

ele diz; depois,para transmitir a informaçãode baixo para


cima, ao longo da escalahierárquica e, por fim, parapoder
tornar sempreacessívelessainformaçãoe assegurarassim
0 princípio da onivisibilidade,que é, creio, a segundagran-
de característicada disciplina.
Paraque o poderdisciplinarsejaglobal e contínuo,o uso
da escritame pareceabsolutamente necessário,e parece-me
que se poderiaestudá-loda maneiracomo, a partir dos sé-
culos XVII-XVIII, se vê, tanto no exército como nas escolas,
nos centrosde aprendizagem,igualmenteno sistemapoli-
cial ou judiciário, etc., como oscorpos,os comportamentos,
os discursosdas pessoassão pouco a pouco investidospor
um tecido de escrita,por uma espéciede plasmagráfico que
os registra,os codifica, os transmiteao longo da escalahie-
rárquicae acabacentralizando-os*.Vocês têm aqui uma re-
laçãonova,creio, umarelaçãodiretae contínuada escritacom
o corpo.A visibilidadedo corpoe apermanênciada escritaan-
damjuntase têm evidentementepor efeito o quepoderíamos
chamarde individualizaçãoesquemáticae centralizada.
Tomarei simplesmentedois exemplos dessejogo da
escritana disciplina.Um é o quevocêsvêemseformar nases-
colas de aprendizagemda França,na segundametadedo
séculoXVII, e se multiplicar no correr do séculoXVIII. Veja-
mos o que era a aprendizagemcorporativana IdadeMédia,
no séculoXVI e aindano séculoXVII: um aprendizentrava,
mediantecontribuiçãofinanceira,paraa oficina de um mes-
tre, e estetinha por única obrigação,em função dessasoma
de dinheiro que era dada,transmitir-lhe em troca a totali-
dadedo seusaber;medianteo que o aprendizdevia prestar
para o mestretodos os serviçosque estelhe pedisse.Troca,
pois, do serviçocotidianocontraessegrandeserviçoque era
a transmissãodo saber.E, ao fim da aprendizagem,havia

* O manuscritodiz: "Os corpos,os gestos,os comportamentos,os


discursossãopoucoa poucoinvestidospor um tecidode escrita, um plas-
ma gráfico, que os registra,os codifica, os esquematiza."
62 O PODERPSIQUIÁTRICO

apenasurna fmma de controle,era a obra que era sub1neti-


da à juranda,isto é, aosque tinham a responsabilidade pela
corporaçãoou pelo ofício na cidade.
Ora, na segundametadedo século XVII, vocês vêem
surgir instituiçõesde wn tipo totalmentenovo.Tmnareicmno
exe1nploa escolaprofissionalde desenhoe tapeçariados Go-
belins, que foi organizadaen1 1667 e aperfeiçoadapouco
a pouco até um regulainentoimportante,que deve ser de
17379.Vocêsestãovendoque a aprendizage1n se faz de ma-
neira bem diferente;ou seja,todosos alunossãoinicialmen-
te divididos por faixa etária,e a cadauma dessasfaixas etá-
rias é impostocerto tipo de trabalho.Essetrabalhodeve ser
realizadoem presençaou de professores,ou de pessoasque
o vigiam; e deveser anotado,como tambémsãoanotadoso
comportamento,a assiduidade,o zelo do alunoduranteseu
trabalho.Essasanotaçõessãoinscritasem registrosque são
conservadose transmitidoshierarquicamenteaté o próprio
diretor da manufaturados Gobelins, de ondese envia ao mi-
nistério da CasaReal um relatório sucinto sobrea qualidade
do trabalho,as capacidadesdo aluno e sobreo fato de saber
se se podeefetivamenteconsiderá-lodoravantecomo mes-
tre.Vocêsvêemconstituir-seem tomo do comportamentodo
aprendiztoda essarede de escritaque vai, por um lado, co-
dificar todo o seucomportamento,em funçãode certonúme-
ro de anotaçõesdeterminadasde antemão,depoisesquema-
tizá-lo e, por fim, transmiti-lo a um ponto de centralização
que vai definir suaaptidãoou suainaptidão.Vocêstêm aí um
investimentopelaescrita,a codificação,a transferência, acen-
tralização,em suma,a constituiçãode uma individualidade
esquemáticae centralizada.
A mesmacoisa poderia ser dita da disciplina policial
que se estabeleceu na maioria dos paísesda Europa,princi-
palmentena França,na segundametadedo séculoXVIII. A
prática policial, na segundametadedo século XVII, ainda
~ra ba!tantesóbriano que concerneà escrita: quandouma
mfraçaoeracometidae não era da competênciado tribunal,
quemse encarregavadela e tomavaa seurespeitouma de-
AULA DE 21 DE NOVEMBRODE 1973 63

cisão,que era simplesmenten?tificada,era o tenent:de_po-


lícia (ou seusadjuntos).Depois,poucoa pouco,vocesveem
no correrdo séculoXVIII desenvolver-setodo o investimento
do indivíduo pela escrita.Ou seja,vocêsvêemaparecervisi-
tas de controle que são feitas nas diferentescasasde inter-
naçãoparasaberdo indivíduo: por quefoi detido,em quedata,
qual é seucomportamentodesdeentão,se evoluiu, etc. De-
pois o próprio sistemase aperfeiçoae, na segundametade
do séculoXVIII, vocêsvêemaparecera constituiçãode pron-
tuários até para aquelesque tiveram um simples contato
com a polícia ou de quemestatem algumasuspeita;e os fun-
cionáriosda polícia recebem,creio que por volta da década
de 1760, a missãode redigir, sobreos indivíduos suspeitos,
relatóriosem duasvias, um que fica in loco e que, por con-
seguinte,possibilitaum controledo indivíduo ondeele está
- relatórios essesque, é claro, devem ser constantemente
atualizados-, e manda-seuma via do relatório a Paris,que
vai sercentralizadano ministério e difundida em outrasgran-
desregiõesda alçada dosdiversostenentesde polícia, para
que,seo indivíduo sedeslocar,sejapossívelencontrá-loime-
diatamente.É assimque se constituembiografiasou, na ver-
dade,individualidadespoliciais daspessoas,a partir dastéc-
nicas daquilo que chamareide investimentoperpétuopela
escrita.E, em 1826,momentoem que se encontrouum meio
de aplicar a técnicadas fichas, já conhecidanas bibliotecas
e jardins botânicos,nessemomentovocês têm a constitui-
ção dessaindividualidadeadministrativae centralizada 10

. Enfim, a visibilidade contínuae perpétuaassegurada


~ss!mpelaescritatem um efeito importante:a extremapron-
~daod~ reaçãodo poderdisciplinarque essavisibilidade, que
e ferpetuano sistemadisciplinar, possibilita.O poderdisci-
p~mar, ao contrário do poderde soberania,que só intervém
vwlentamente,de tempo en1 tempo,e sob a forma da guer-
ra, da puniçãoexemplar,da cerimônia,o poderdisciplinarvai
poder intervir incessanten1ente, desdeo primeiro instante,
desd~o primeiro gesto,desdeo primeiro esboço.Ten1-se urna
tendenc1a,inerenteao poder disciplinar, a intervir no nível
O PODER PSJQUJÂTRJCO
64

do qu acontece , no momentoem que a virtualidadeestá_se


tomandorealidade;o poder disciplinar sempretendea m-
t rvir previai11ente, ant s até do próprio ato, se possível,e
i o por m io de um jogo devigilância, de recompensas, de
puniç- e , de pre sões,que ão infra.judiciárias. _
E, e podemosdizer que o reversoda relaça.ode sobe-
rania ra a guerra, podemosdizer, creio, que o reverso da
relaçãodi ciplinar é, agora, a punição, a pressãopunitiva ao
me mo t mpo minú cula e contÚ1ua.
Aqui tambémpoderíamos buscar u?' exemplona ~s-
ciplina operária, na disciplina da oficina. E bem característico
que, nos contratosde operáriosque eramassinados,e alguns
o foram bem cedo, nos séculos)(V e XVI, o operário devia
concluir seutrabalhoantesde determinadaépocaou dar tan-
tos dias de trabalho ao seu patrão.Se o trabalho não fosse
terminadoou se a quantidadede dias não tivessesido dada,
ele tinha de dar, sejao equivalentedo que faltava, sejaacres-
centara título de multa certaquantidadede trabalhoou mes-
mo de dinheiro. Logo, podemosdizer que era um sistema
punitivo que se prendia, que funcionavacom baseem e a
partir do que tinha sido efetivamenteacertado,seja como
prejuízo,sejacomo falta.
Em compensação, vocêsvêem surgir, a partir do século
XVIII , toda uma disciplina de oficina, que é uma disciplina
continuadae que, de certo modo, tem por objeto até as vir-
tualidadesdo comportamento.Vocês vêem,nos regulamentos
de oficina que sãodistribuídosnessaépoca,vigiado o com-
portamentodos operáriosuns em relaçãoaos outros, seus
atrasos, suas ausênciascomputadas;vocês tambémvêem
tudo o que pode ser distraçãoser punido. Num regulamento
dos Gobelins,por exemplo,datadode 1680,chegaa ser es-
pecificadoque quem cantarenquantotrabalhatem de can-
tar em voz baixa o bastantepara não incomodarquemestá
ao seulado11. Vocês encontramregulamentosem que é dito
que,ao voltar do almoçoou do jantar,não se devecontarpia-
d~s picantes,porqueelasdistraemos operáriose, assim, eles
naopodemter a tranqüilidadede espíritonecessáriaparatra-
AULA DE 21 DE NOVEMBRODE 1973 65

balhar. Pressãocontínua,portanto,dessepoder disciplinar


que não tem por objeto a falta, o prejuízo,masa virtualidade
do comportamento.Antes mesmode o gesto ser feito, al-
guma coisa deve poderser detectada,e o poder disciplinar
deve intervir; intervir de certo modo antesda manifestação
mesmado comportamento,antesdo corpo, do gestoou do
discurso,no nível do que é avirtualidade,a disposição,a von-
tade,no nível do que é a alma. E vocêsvêemprojetar-seas-
sim, por trás do poder disciplinar, algo que é a alma, uma
alma bem diferenteda que tinha sido definida pela prática
e a teoria cristãs.
Pararesumir todo essesegundoaspectodo poderdis-
ciplinar, que poderíamoschamarde caráterpanópticodo po-
der disciplinar, a visibilidade absolutae constanteque ro-
deia o corpo dos indivíduos, creio que poderíamosdizer o
seguinte:que esseprincípio panóptico- ver tudo, o tempo
todo, todo o mundo, etc. - organizauma polaridadegené-
tica do tempo; ele procede auma individualizaçãocentrali-
zadaque tem por suportee por instrumentoa escrita;enfim,
ele implica uma açãopunitiva e contínuasobre as virtuali-
dadesde comportamento,que projetaatrásdo próprio corpo
algo como uma psiquê.
Enfim, t~rceira característicado dispositivo disciplinar,
que o opõe a ) dispositivo de soberania:os dispositivosdis-
ciplinaressãoisotópicosou, pelo menos,tendemà isotopia.
O que quer dizer várias coisas.
Primeiro,num dispositivodisciplinar, cadaelementotem
seulugar bem determinado;ele tem seuselementossubor-
dinados,tem seuselementossuperordenados. As patentes
no exércitoou, na escola,a nítida distinçãoentreas diferentes
classesde idadee, nasdiferentesclassesde idade,a posição
de cadaum, tudo isso, que foi adquirido no séculoXVIII, é
um magnífico exemplodessaisotopia. Não se deve esque-
cer, paramostraraté ondea coisaia, que nas classesdiscipli-
narizadascom baseno modelodos jesuítas12, principalmente
com baseno modeloda escolados IrmãosdaVida Comum,
o lugar na classeeradeterminadopela posiçãodo indivíduo
O PODER PSJQUJÁTRICO
66

em seu resultado e colares13. Assim, o que era chamadode


locu do indivíduo era, ao mesmotempo, seulugar na elas-
e e sua po ição na hierarquiados valores e do êxito. Belo
e emplo de a i otopia do sistemadisciplinar. _
E, por con eguinte, nessesistema,o deslocan1.entonao
pode er feito por descontinuidade, litígio, guerra,favor, etc.;
não pode er feito na ruptura,como era o casodo poderd~
oberania,mas é feito por um movünentoreguladoque vai
er o do exaine, do concurso,da antiguidade,etc.
Mas i otópico quer dizer tambémque não há, entrees-
ses diferentessistemas , conflito, incompatibilidade.Os di-
ferentesdispositivosdisciplinaresdevempoder se articular
entre si. Por causajustamentedessacodificação,dessaes-
quematização , por causadas propriedadesformais do dis-
positivo disciplinar, deve-sepoder passarsemprede um a
outro.É assimque as classificaçõesescolaresse projetam,sem
muita dificuldade e mediantecerto número de correções,
nashierarquiassociais-técnicasque encontramosnos adul-
tos. A hierarquizaçãoencontradano sistemadisciplinar e
militar retoma,transformando-as, as hierarquiasdisciplinares
encontradas nosistemacivil. Em suma, a isotopia desses
diferentessistemasé quaseabsoluta.
Enfim, isotópicoquer dizer principalmenteoutra coisa,
que no sistemadisciplinar o princípio de distribuição e de
classificaçãode todosos elementosimplica necessariamen-
te algo como um resíduo; ou seja, semprehá algo como o
"inclassificável". Nasrelaçõesde soberania,ao contrário,o li-
mitador que encontrávamosera aqueleentre os diferentes
sistemasde soberania,eramos litígios, os conflitos, era a es-
péciede guerrapermanenteentreos diferentessistemas,era
aí que estavao ponto em que o sistemade soberaniaesbar-
rava. O ponto em que os sistemasdisciplinaresque classifi-
cam,hierarquizam,vigiam, etc.,vão esbarrarconsistiránaque-
les que não podemser classificados,naquelesque escapam
da vigilância, os que não podementrarno sistemade distri-
buição; em suma,vai ser o resíduo,o irredutível, o inclassi-
ficável, o inassimilável.Eis o que vai ser,nessafísica do poder
AULA DE 21 DE NOVEMBRODE 1973 67

disciplinar,o ponto-limite.Ou seja,todo poderdisciplinar terá


suas margens. O desertor,por exemplo, não existia antes
dos exércitosdisciplinados,porque o desertorera simples-
menteo futuro soldado,aqueleque saíado exércitoparapo-
der voltar a ele, e que voltava se fossepreciso,quandoque-
ria ou quandoo engajavamà força. Ao contrário, apartir do
momentoem que se tem um exército disciplinado, isto é,
genteque entrano exército,que faz carreiranele, que segue
certa linha, é vigiada de ponta a ponta, o desertoré aquele
que escapadessesistemae que é irredutível a ele.
Do mesmomodo,é apartir do momentoem que há dis-
ciplina escolarque vocêsvêem apareceralgo como o débiJ
mental14• O irredutível à disciplina escolar só pode existir
em relaçãoa essadisciplina; aqueleque não aprendea ler e
a escreversó pode aparecercomo problema,como limite, a
partir do momentoem que a escolasegueo esquemadis-
ciplinar. Do mesmomodo, quandoé que apareceuessaca-
tegoria que chamamosde delinqüentes?Os delinqüente~
não são os infratores - é verdadeque toda lei tem como
correlatoa existênciade infratoresque violam a lei-, mas o
delinqüentecomo grupo inassimilável,como grupo irredu-
tível, só pode aparecera partir do momentoem que existe
uma disciplina policial em relaçãoà qual ele emerge.Quanto
ao doentemental, ele é sem dúvida nenhumao resíduode
todosos resíduos,o resíduode todasas disciplinas,aqueleque
é inassimilávela todasas disciplinasescolares,militares, po-
liciais, etc., que podemser encontradasnuma sociedade.
Creio que temos aí uma característicaprópria dessa
isotopia dos sistemasdisciplinares:é a existêncianecessária
dos resíduosquevai acarretarevidentementeo aparecimen-
to de sistemasdisciplinaressuplementares parapoderrecu-
peraressesindivíduos,e isto ao infinito. Como existemdébeis
mentais,isto é, genteque é irredutívelà disciplinaescolar,vão
sercriadasescolasparadébeismentais,depoisescolasparaos
que sãoirredutíveisàs escolasdestinadasaos débeismen-
tais. A mesmacoisano que concerneaosdelinqüentes:a or-
ganizaçãoda "marginália" foi feita, de certo modo, em co-
O PODER PSIQUlATRICO
68

mum pelapolícia e por aquelesque eramirredutíveis.A mar-


ginália é uma maneirade fazer o ~e_linqüentecola?orarefe-
tivamentecmn o trabalho da polícia. Podemosdizer que a
margináliaé a disciplina dos que são irredutíveisà discipli-
na policial. .
Em suma,o poderdisciplinar tem a dupla propnedade
de ser anomizante,isto é, de se1nprepôr de lado certo nú-
mero de indivíduos,de ressaltara anomia,o irredutível,e de
ser semprenormalizador,de sempreinventar novos siste-
masrecuperadores, de se1nprerestabelecera regra.Um per-
pétuotrabalhoda normana anomiacaracterizaos sistemas
disciplinares.
Creio quepodemosresumirissotudo dizendoque o efei-
to maior do poder disciplinar é o que poderíamoschamar
de remanejamentoem profundidadedas relaçõesentre a
singularidadesomática,o sujeito e o indivíduo. No poder
de soberania,nessaforma de exercíciodo poder,tentei lhes
mostrarque os procedimentosde individualizaçãose esbo-
çavamno topo, que havia uma individualizaçãotendencial
no nível do soberano,com aquelejogo dos corposmúltiplos
que faz com que aindividualidadese percano momentomes-
mo em que aparece.Parece-meque,ao contrário,nos sistemas
disciplinares,no topo, no nível dos que exercemou que fazem
funcionar essessistemas,a função individual desaparece.
Um sistemadisciplinar é feito para funcionar sozinho,
e quemé encarregadodele ou é seudiretor não é tanto um
indivíduo quantouma função que é exercidapor este,mas
que poderiaperfeitamenteserexercidapor outro, o que nun-
ca ocorre na individualizaçãoda soberania.E, aliás, mesmo
aqueleque é responsávelpor um sistemadisciplinarencon-
tra-sepresodentrode um sistemamais amplo,que o vigia por
suavez e no seio do qual ele é disciplinarizado.Logo, creio,
supressãoda individualizaçãono topo. Em compensação, o
sistemadisciplinar implica, e creio ser isso o essencial,uma
individualizaçãotendencialmuito forte na base.
No poderde soberania,procureilhes mostrarque a fun-
ção-sujeito nuncase prendiaa uma singularidadesomática,
AULA DE 21 DE NOVEMBRODE 1973 69

salvo em casosincidentais,como a cerimônia,o estigma,a


violência, etc., masque na maior partedo tempoe fora des-
sesrituais, a função-sujeitosemprecirculavaacimaou abaixo
dassingularidadessomáticas.No poderdisciplinar, ao con-
trário, a função-sujeitovem se ajustarexatamenteà singu-
laridadesomática:o corpo, seusgestos,seulugar, suasmu-
danças,sua força, seu tempo de vida, seusdiscursos,é em
tudo isso que vem se aplicar e se exercera função-sujeito do
poder disciplinar. A disciplina é essatécnicade poder pela
qual a função-sujeitovem se superpore se ajustar exata-
menteà singularidadesomática.
Pode-sedizer, numapalavra,que o poderdisciplinar, e é
essasem dúvida suapropriedadefundamental,fabrica cor-
pos sujeitados,vincula exatamentea função-sujeitoao corpo.
Ele fabrica, distribui corpossujeitados;ele é individualizan-
te [unicamenteno sentido de que] o indivíduo [não é] se-
não o corpo sujeitado.E podemosresumir toda essamecâ-
nica da disciplina dizendoo seguinte:o poder disciplinar é
individualizanteporqueajustaa função-sujeitoà singulari-
dadesomáticapor intermédiode um sistemade vigilância-
escrita ou por um sistemade panoptismopangráfico que
projeta atrás da singularidadesomática,como seu prolon-
gamentoou como seucomeço,um núcleode virtualidades,
umapsiquê,e que estabelecealém dissoa normacomoprin-
cípio de divisão e a normalizaçãocomo prescriçãouniversal
paratodos essesindivíduos assimconstituídos.
Portantovocêstêm no poderdisciplinarurnasériecons-
tituída pela função-sujeito,a singularidadesomática, o olhar
constante,a escrita,o mecanismoda puniçãoinfinitesimal,
a projeçãoda psiquêe, finalmente,a divisão normal-anor-
mal. É tudo isso que constitui o indivíduo disciplinar; é tudo
isso que ajustaenfim um ao outro a singularidad~somática
e um poderpolítico. E o que podemoschamarde indivíduo
não é aquilo a que se prendeo poderpolítico; o que se deve
chamarde indivíduo é o efeito produzido, o resultadodessa
vinculação,pelastécnicasque lhes indiquei, do poderpolí-
tico à singularidadesomática.Não querode forma algumadi-
70 O PODER PSJQUIÀTRJ.
CO

zer que o poderdisciplinar sejao único procedimentode in -


dividualizaçãoque já existiu na nossacivilização - tentarei
voltar a isso da próxima vez -, n1as gostariade dizer que a
disciplina é essaforn1a terminal, capilar, do poderque cons-
titui o indivíduo como alvo, como parceiro,como par na re-
lação de poder.
E, nessamedida,se o que eu lhes disseé verdade,vocês
estãovendo que não se pode dizer que o indivíduo preexiste
à função-sujeito,à projeçãode uma psiquê,à instâncianor-
malizadora.Ao contrário, é na medidae1n que a singulari-
dadesomáticase tomou,pelosmecanismosdisciplinares,por-
tadorada função-sujeitoquf o indivíduo apareceuno inte-
rior de um sistemapolítico. E na medidaem que a vigilância
ininterrupta,a escritacontínua,a puniçãovirtual enquadraram
essecorpoassimsujeitadoe dele extraíramumapsiquê,é nes-
samedidaque o indivíduo se constituiu;é na medidaem que
a instâncianormalizadoradistribui, exclui, retomasemces-
sar essecorpo-psiquêque o indivíduo se caracteriza.
Logo nãohá que quererdesfazeras hierarquias,as coer-
ções,as proibições,paravalorizar o indivíduo, como se o in-
divíduo fossealgo que existeem todasas relaçõesde poder,
que preexisteàs relaçõesde podere sobreo qual pesaminde-
vidamenteas relaçõesde poder.Na verdade,o indivíduo é o
resultadode algo que lhe é anteriore que é essemecanismo,
todose~sesprocedimentosque vinculam o poderpolítico ao
corpo. E porqueo corpo foi "subjetivizado",isto é, porquea
função-sujeitofixou-se nele, é porqueele foi psicologizado,
porquefoi normalizado,é por causadisso que apareceualgo
como o indivíduo, a propósitodo qual se podefalar, se pode
elaborardiscursos,se pode tentarfundar ciências.
As ciênciasdo homem,consideradas em todo casocomo
ciênciasdo indivíduo, sãotão-somenteo efeito de toda essa
série de procedimentos.E, por outro lado, vocêsvêem que,
parece-me,seria absolutamentefalso historicamente,logo
politicamente,reivindicar os direitos originais do indivíduo
contraalgo como o sujeito,a normaou a psicologia.Na ver-
dade,o indivíduo é, desdelogo e pelo fato dessesmecanis-
AULA DE 21 DE NOVEMBRODE 1973 71

mos,sujeito normal,sujeito psicologicamentenormal; e, por


conseguinte,a dessubjetivização, a desnormalização, a des-
psicologizaçãoimplicam necessariamente a destruiçãodo in-
divíduo como tal. A desindividualizaçãoseguejunta com
essastrês outrasoperaçõesde que lhes falo.
Queria simplesmenteacrescentaruma última palavra.
Tem-seo costumede fazer da emergênciado indivíduo no
pensamentoe na realidadepolítica da Europao efeito de um
processoque é ao mesmotempo o desenvolvimentoda eco-
nomiacapitalistae areivindicaçãodo poderpolítico pelabur-
guesia;disto teria nascidoa teoria filosófico-jurídica da in-
dividualidadeque vocêsvêemse desenvolver,grossomodo,
desde Hobbes até a RevoluçãoFrancesa 15
. Mas creio que,se é

verdadeque podemosefetivamentever certopensamentodo


indivíduo no nível de que lhes falo, tambémdevemosver a
constituiçãoefetiva do indivíduo a partir de certa tecnolo-
gia do poder;e adiscipliname pareceseressatecnologia,pró-
pria do poderque nascee se desenvolvea partir da idadeclás-
sica,queisola e demarca,a partir do jogo doscorpos,esseele-
mentohistoricamentenovo, creio, que chamamosindivíduo.
Haveria,digamosassim,uma espéciede apreensãoju-
rídico-disciplinardo individualismo.Vocês têm o indivíduo
jurídico tal como aparecenasteoriasfilosóficas ou jurídicas:
o indivíduo como sujeito abstrato,definido por direitos in-
dividuais,que nenhumpoderpodelimitar, a nãoserque [ele]
consintapor contrato.E, depois,abaixo disso,ao lado disso,
houve o desenvolvimentode toda uma tecnologiadiscipli-
nar que fez aparecero indivíduo como realidadehistórica,
como elementodasforças produtivas,como elementotam-
bém dasforças políticas; e esseindivíduo é um corpo sujei-
tado, pegonum sistemade vigilância e submetidoa proce-
dimentosde normalização.

*
O discursodasciênciashumanastem precisamentepor
função conjuminar,acoplaresseindivíduo jurídico com esse
72 O PODERPSIQUIÁTRICO

indivíduo disciplinar, fazer crer que o indivíduo jurídico tem


por conteúdoconcreto,real, natural,o que foi demarcado e
constituídopela tecnologiapolítica como indivíduo discipli-
nar. Desbastemo indivíduo jmidico, dizem as ciênciashu-
manas(psicológicas,sociológicas,etc.), e encontrarãocerto
homem; e, de fato, o que elas apresentamcomo homem é
o indivíduo disciplinar. Conjuntamente,na direçãoinversa
aliásdessesdiscursosdasciênciashumanas,vocêstêm o dis-
cursohumanista,que é arecíprocado primeiroe que consis-
te em dizer: o indivíduo disciplinar é um indivíduo alienado,
sujeitado,é wn indivíduo quenãoé autêntico;desbastem-no,
ou melhor,restituam-lhea plenitudedos seusdireitos, e en-
contrarão,como suaforma origináriaviva e vivaz, um indi-
víduo que é o indivíduo filosófico-jurídico. Essejogo entre
o indivíduo jurídico e o indivíduo disciplinarsustenta,creio,
tanto o discursodasciênciashumanascomo o discursohu-
manista.
E o que se chamaHomem,nos séculosXIX e XX, nada
mais é que a espéciede imagemremanescente dessaosci-
lação entre o indivíduo jurídico, que foi o instrumentopelo
qual em seudiscursoa burguesiareivindicouo poder,e oin -
divíduo disciplinar, que é o resultadoda tecnologiaempre-
gadapor essamesmaburguesiaparaconstituir o indivíduo
no campodasforçasprodutivase políticas.É dessaoscilação
entreo indivíduo jurídico, instrumentoideológicoda reivin-
dicaçãodo poder,e oindivíduo disciplinar,instrumentoreal
do seuexercíciofísico, é dessaoscilaçãoentre o poderque é
reivindicadoe o poderque é exercidoque nasceramessailu-
são e essarealidadeque chamamoso Homem16•
NOTAS

1. Na realidade, conviriadistinguir duasformas de críticasda


instituição asilar:
(a) Na décadade 1930, surgeuma correntecrítica que vaino
sentido de um distanciamentoprogressivoem relaçãoao espaço
asilar instituído pela lei de 1838 como lugar quaseexclusivoda in-
tervençãopsiquiátrica,cujo papelsereduzia,como afirmavaÉdouard
Toulouse(1865-1947),ao de uma "assistência-abrigo"("L'Évolution
de la psychiatrie", Comemoraçãoda fundaçãodo hospital Henri
Roussel, 30 de julho de 1937, p. 4). Pretendendodissociara noção
de "doençamental" da de um confinamentonum asilo submetido
a condiçõeslegais e administrativasparticulares,essacorrentese
atribui a tarefade "estudarpor meio de que mudançasna organi-
zaçãodos asilosseriapossívelabrir maior espaçopara otratamento
moral e individual" G. Raynier e H. Beaudouin, L'Aliéné et les Asi-
les d' aliénésau point de vueadministratifet juridique, 1922; 2~ed. rev.
e aum., Paris,Le Français,1930,p. 654). Nessaperspectiva , o hospi-
talo-centrismotradicional é minado por novos enfoques: diversifi-
caçãodasmodalidadesde assistência,projetosde vigilância em pós-
curase, principalmente,o aparecimentode serviçoslivres, ilustrados
pela instalação,no seio dessafortalezada psiquiatriaasilar que é o
hospitalSainte-Anne,de um "serviço aberto" cuja direçãoé confia-
da no dia 1?de junho de 1922a ÉdouardToul~use- e que, em 1926,
se transformano hospital Henri Roussel(cf. E. Toulouse, "l:hôpital
Henri Roussel", La Prophylaxie mentale, n? 43, janeiro-julho 1937,
O PODER PSIQUIÁTRICO
74

pp. 1-69). Essemovimentoalcança~u_a oficializa~ão,e1;1 ~3 de ou-


tubro de 1937, com a circular do rrnrustro da SaudePublica,Marc
Rucart, relativa à organizaçãoda assistênciaaosdoentes,mentaisno
âmbito do departamento . Sobre esseponto, cf.: [a] E. Toulouse,
Réorganisationde l'hospitalisationdes aliénésdans les asilesde la Seine,
Paris, lmptimerie Nouvelle,1920; [b] J. Rayniere J. Lauzier, La Cons-
truction et l'Aménagementde l'hôpital psychiatrique et des asiles
d'a/iénés, Paris,Peyronnet,1935; [c] G. Dawnezon,La Situation du
personnel infinnier dans les asilesd'a/iénés,Paris,Doin, 1935 (depoi-
mento sobrea pobrezados meios de que dispõemas instituições
psiquiátricasna décadade 1930).
(b) a décadade 1940, a crítica assumeoutro tom, iniciado pela
conmnicaçãode Paul Balvet, na épocadiretor do hospitalde Saint-
Alban (Lozere), que se tomaráum centrode referênciaparatodos
os que erammovidospelo desejode uma mudançaradical das es-
truturasasilares("Asile et hôpital psychiatrique.l.;expérienced'un
établissementrural", in XLIII' Congres des Médecinsaliénisteset
neurologistesde France et des pays de Zanguefrançaise (Montpellier,
28-30octobre1942), Paris,Masson,1942).É entãoque uma peque-
na fração militante do corpo profissionaltoma consciênciade que
o hospitalpsiquiátriconão é apenasum hospitalde alienados,mas
é ele próprio "alienado",já que constituído"numa ordemconfor-
me aos princípios e usosde uma ordem social excludentedo que
a incomoda"(L. Bonnafé,"Sourcesdu désaliénisme",in Désaliéner?
Foli e(s) et société(s),Toulouse,Pressesuniversitairesdu Mirail/Pri-
vat, 1991, p. 221). Propondo-sereconsideraro funcionamentodo
hospital psiquiátricopara fazer dele uma organizaçãoverdadeira-
mente terapêutica,essacorrentedesenvolveum questionamento
sobrea naturezadasrelaçõesdo psiquiatracom os doentes.Cf. G.
Daumezone L. Bonnafé,"Perspectivesde réforme psychiatrique
en Francedepuisla Libération", in XLW" congresdes Médecinsalié-
nistes et neurologistesde France et des paysde Zanguefrançaise(Geneve,
22-27juillet 1946), Paris,Masson,1946,pp. 584-90; e infra, "Situa-
ção do curso", pp. 466 ss.).
2. Cf. infra, aulasde 12 e 19 de dezembrode 1973; aula de 23
de janeiro de 1974.
3. J. M. A Servan,Discourssur l'administrationde la justice cri-
minelle, op. cit., p. 35.
4. Fundadana Holanda em 1383, em Deventer,por Gerard
Groote (1340-1384),a comunidadedos "Irmãos daVida Comum",
AULA DE 21 DE NOVEMBRODE 1973 75

inspiradanos princípios do teólogo flamengoJan Gohannes)Van


Ruysbroek e da mística renanado séculoXIV (cf. infra, p. 112, no-
ta 9), pretendelançaras basesde uma reformado ensinotranspon-
do paraa educaçãouma partedas técnicasespirituais.Numerosas
casasse abrematé o fim do séculoX:V em Zwolle, Delft, Amersfoot,
Liege, Utrecht, etc. Cf.: [a] M. Foucault,Surveilleret Punir. Naissance
de la prison, Paris,Gallimard ("Bibliothequedes histoires"),1975,
pp. 163-4; [b] A. Hyma, The Brethren of the CommonLife, Grand
Rapids,Mich., W. B. Erdmans,1950; [c] G. Groote,textosescolhidos
in M. Michelet, org., Le Rhin mystíque.De Maftre Eckhartà Thomasa
Kempis,Paris,Fayard, 1957; [d] L. Cognet,lntroduction auxmystiques
rhéno-flamands,Paris,Descléede Brouwer, 1968; [e] W. Lourdaux,
art. "Freresde la Vie commune", in Díctionnaíred'histoíreet de géo-
graphíeecclésiastiques, org. card.A Baudrillart, t. 18, Paris, Letouzey
e Ané, reed.,1977 (1~ ed. s.d.).
5. Escrito em 1787na forma de cartasendereçadas a um cor-
respondenteanônimo,a obraé editadaem 1791 com o título de Pa-
nopticon,or the lnspection-House,Containing the ídea ofa new principie
ofconstructionapplicableto any sort ofestablishmentín whích personsof
any descriptionare to be kept underínspection, and in particular to pe-
nítentiary-houses , prisons, housesofindustry [. ..] andschools,with a Plan
ofManagementadaptedto the principie, em Works,ed. Bowring, Edim-
burgo,Tait, 1791.Asvinte e umacartasque compõema primeira par-
te sãotraduzidasparao francês(por Maud Sissung)ín Le Panoptique,
precedidode 'Toeil du pouvoir. EntretienavecMichel Foucault",_Pa-
"), 1977. (r trad. fr. Panoptique. Mé-
ris, P Belfond (col. "L'Échappée
moíre sur un nouveaupríncipe pour construiredes maísonsd'inspection,
et nommémentdes maisonsde force, Paris,Imprimerie nationale , 1791;
republicadoem Oeuvresde JérémyBentham.Le Panoptique, ed. por
Dumont, Bruxelas,Louis Haumanet Ge, t. 1, 1829,pp. 245-62.)
6. E. Kantorowicz, The Kíng's Two Bodíes:A Studyín Medieval
Política[ Theology,Princeton, NJ, PrincetonUníversity Press,1?57
[Les DeuxCorps du Roí. Essaísur la théologiepoli tique du Moyen-Age,
trad. fr. J.-Ph. Genet e N . Genet, Paris, Gallimard ("Bibliotheque
des histoires"),1989].
7. Esteponto serádesenvolvidoem Surveilleret Punir, op. cit.,
parte III , "Discipline", cap. I, "Les corps dociles", pp. 137-71.
8. Sobreos regulamentosda infantariaprussiana,cf. ibid., pp.
159-61.
76 O PODER PSIQWÁTRICO

9. O ectito de novembrode 1667 para o estabelecimentode


uma manufaturade móveis da Coroa aos Gobelins determinao
recrutamentoe acondiçãodos aprendizes,organizauma aprendi-
zagemcorporativae funda uma escolade desenho.Um novo re-
gulamentoé instituído em 1737. Cf. também E. Gerspach,org., La
Manufacturenationaledes Gobelins,Paris, Delagrave, 1892, " Regle-
ment de 1680imposantde chanterà voix bassedescantiquesdans
!'atelier", pp. 156-60.Ver Surveiller et punir, pp. 158-9.
10. Surueiller et punir, pp. 215-9. Sobre os registrospoliciais
no séculoXVTII , cf. M . Chassaigne , La Lieutenancegénéralede police
de Paris, Paris, A Rousseau , 1906.
11. E. Gerspach,ed., La Manufacture..., op. cit.
12. Imposto às casasda Companhiade Jesuspor uma carta
circular de 8 de janeiro de 1599, o Ratio Studiorum- redigido em
1586- organizaa repartiçãodosestudospor classes,divictidasem dois
campos,e estesem decúrias,à frente dasquaisé postoum "decurião"
encarregadoda vigilância. Cf. C. de Rochemonteix,Un collegedejé-
suites aux XVII' et XVIII' siecles: le college Henri N de La Fleche, Le
Mans, Leguicheux, 1889, t. I, pp. 6-7 e 51-2.Ver Surveílleret punir,
op. cit., pp. 147-8.
13. Alusão à inovaçãointroduzidapor JeanCele (1375-1417),
diretor da escolade Zwolle, distribuindo os alunosem classesque
tinham cadaqual seuprogramaespecial,seuresponsávele seulu-
gar dentro da escola,sendoos alunoscolocadosem determinada
classeem função dos seusresultados.Cf.: [a] G. Mir, Aux sources
de la pédagogiedesjésuites.Le "Modus Parisiensis",Roma,Bibliothe-
ca Instituti Historiei, vol. XXVIII, 1968, pp. 172-3; [b] M. J. Gaufres,
"Histoire du plan d'étudesprotestant",Bulletin de l'histoire du pro-
testantismefrançais, vol. XXV, 1889, pp. 481-98.Ver Surveiller et pu-
nir, pp. 162-3.
14. Assim, é em 1904 que o ministro da InstruçãoPúblicacria
umacomissãopara"estudaros meiosa seremempregadosparaas-
segurara instrução primária [...] a todas as 'criançasanormaise
atrasadas"'.É nesseâmbito que, em 1905,AlfredBinet (1857-1911)
é encarregadode determinaros meiosde identificar as criançasre-
tardadas.EmpreendendocomThéodoreSimon (1873-1961),dire-
tor da colônia infantil de Perray-Vaucluse,pesquisaspor questio-
nários nas escolasdo 2? e do 20? distritos de Paris, cria com este
uma "escalamétricada inteligênciadestinadaa avaliar os retardas
de desenvolvimento"(A Binet e Th. Simon,"Applications desmé-
AULA DE 21 DE NOVEMBRODE 1973 77

thodesnouvelles au diagnosticdu niveauintellectuelchezles en-


fants normaux et anorrnauxd'hospiceet d' école", L:Annéepsycho-
logique, t. XI , 1905, pp. 245-336).Os débeismentaissão definidos
então por urna"característicanegativa":é que,"por suaorganização
física e intelectual,essesseresestãoincapacitadosparabeneficiar-se
dos métodos de instrução e de educaçãoem uso nas escolaspú-
blicas" (A Binet e Th. Simon, Les Enfants anormaux. Cuide pour
l'admission des enfants anormauxdans les classesde perfectionnement,
pref. de LéonBourgeois,Paris,A Colin, 1907,p. 7). Cf.: [a] G. Net-
chine, " Idiots, débiles et savantsau XIX• siecle", in R. Zazzo, Les
Débilités mentales, Paris,A Colin (col. "U"), 1969,pp. 70-107; [b] F.
Muel, 'Técole obligatoire et l'invention de l' enfanceanormale", Ac-
tes de la rechercheen sciencessociales,n? 1, janeiro de 1975,pp. 60-74.
15.Ver a obra de C. B. MacPherson,The Política[ Theoryof Pos-
sessiveeIndividualism, Oxford, Oxford University Press,1961 [La Théo-
rie politique de l'individualismepossessif,de Hobbesa Locke, trad. fr.
M. Fuchs, Paris, Gallirnard ("Bi blio thequedes idées"),1971].
16. Cf. "Mon corps,ce papier, ce feu" (setembrode 1971),art.
cit., supra, p. 47, nota 11.
AULA DE 28 DE NOVEMBRO DE 1973

Elementosde uma história dos dispositivosdisciplinares:


as comunidadesreligiosas na Idade Média; a colonizaçãope-
dagógicada juventude;as missõesjesuíticasno Paraguai; o exér-
cito; as oficinas; as cidadesoperárias.- A formalizaçãodesses
dispositivosno modelodo Panopticonde JeremyBentham.-
A instituiçãofamiliar e aemergênciada função-psi.

Vou começarpor algumasobservaçõessobrea história


dessesdispositivosdisciplinares.
Semanapassadaeu havia tentado descrevê-losum pou-
co abstratamentee fora de toda diacronia,fora tambémde
todos os sistemasde determinaçãoque puderaminduzir o
estabelecimento e a generalizaçãodessesdispositivosdisci-
plinares.O que lhes descrevié uma espéciede aparelho, de
maquinariacujasformasmaioresaparecemclaramentea par-
tir do séculoXVII, digamos, sobretudoa partir do séculoXVIII.
Na verdade,os dispositivos disciplinaresnão se formaram,
longe disso, nos séculosXVII e XVIII; muito menosainda
substituíramde repenteaquelesdispositivosde soberaniaaos
quaisprocureiopô-los.Os dispositivosdisciplinaresvêm de
longe; eles se ancoraram,funcionaram,e por muito tempo,
no meio dos dispositivos de soberania;elesformaran1como
queilhas no interior dasquaisse exerciaum tipo de poderque
era bem diferentedo que se poderiachamar,paraessaépo-
ca, de morfologia geral da soberania.
Onde essesdispositivosdisciplinaresexistiram?Não é
difícil encontrá-los, segt.ú-los.Sãoencontrados essencialn1en-
te nascomunidadesreligiosas,sejamelascomunidadesregt.1-
lares- entendoregularesno sentidode estatutárias,reconhe-
80 O PODER PSIQUIÁTRICO

cidas pela Igreja -, sejam comunidadesespontâneas. Ora, o


que me pareceünportanteé que essesdispositivosdiscipli-
narestais como os vemosnas comunidadesreligiosastive-
ram, no fundo, durantea IdadeMédia e até o séculoXVI in-
clusive, un1 duplo papel.
Claro, elesse integrarai.11ao esque1nageralda soberania,
ao mesmotempo feudal e monárquica;é verdadeque fun -
cionaramde maneirapositiva no interior dessedispositi-
vo n1ais geral que os enquadrava,que os suportava,em to-
do casoque os toleravaperfeitamente.Mas tambémtiveram
um papelcrítico, um papelde oposiçãoe de inovação.Creio
que se pode dizer muito esquematicamente o seguinte:de
um lado, é atravésdaselaboraçõesou, ainda,dasreativações
dos dispositivosdisciplinaresque se transformaram,na Igre-
ja, não apenasas própriasordensreligiosas,masas práticas
religiosas,as hierarquiase aideologiareligiosastambém.To-
marei sünplesmenteum exemplo.
Uma reforma como a que ocorreu nos séculosXI-XII,
ou melhor, a série de reformasque ocorreramnessaépoca
no interior da ordembeneditinarepresenta,no fundo, certa
tentativade arrancara práticareligiosa,ou de arrancara or-
dem mteira, do sistemade soberaniafeudal no interior do
qual ela estavapresae mcrustada 1
• Em linhas gerais,pode-se

dizer que a grandeforma clunisianaera uma forma monás-


tica que havia sido investidaou parasitadaa tal ponto pelo
sistemafeudal que toda a ordemclunisianaera,em suaexis-
tência, em sua economia,em suashierarquiasinternas,um
2
dispositivo de soberania • Em que consistiua reformade Cis-

ter?3A reformacistercienseconsistiuem restituir à ordemcer-


ta disciplina, em reconstituirum dispositivo disciplinar que
era referido a uma regramais originária e como que esque-
cida; um sistemadisciplinar no qual se encontrariaprimeiro
a regrade pobreza,a obrigaçãodo trabalhomanuale da ple-
na ocupaçãodo tempo,o desaparecünento daspossespes-
soais,dos gastossuntuosos,a regulaçãodo regimealimentar,
da vestimenta,a regrada obediênciamterna,o fortalecünen-
to da hierarquia. Em suma,vocêsvêemapareceraqui todas
AULA DE 28 DE NOVEMBRODE 1973 81

as caracterís ticas do sistemadisciplinar como um esforçode


desprendimentoda ordemmonásticaem relaçãoao disposi-
tivo de soberaniaque a tinha penetradoe como que corroído.
E é graçasa isso,aliás, que a ordem de Cister pôde realizar
certo número de inovaçõeseconômicas;graças, precisamen -
te, ao mesmo tempo, a essaregra de pobreza,a esses siste-
mashierárquicos,a essasregrasde obediência,de trabalhoe,
também,a todo o sistemade registro,de contabilidade , etc.,
que estavamligados à prática disciplinar.
Poder-se-iadizer tambémque não foi simplesmentena
ordemda inovaçãoeconômicaque os sistemasdisciplinares
tiveram um papel ao mesmo tempo crítico e inovador na
IdadeMédia; foi tambémna ordempolítica. Pode-sedizer, por
exemplo, que os novos poderes políticos que tentam abrir
caminhoatravésdo feudalismoe a partir dos dispositivosde
soberania,essesnovospoderescentralizados, que são, de um
lado, a monarquiae, de outro, o papado, tentamcriar novos
instrumentosem relaçãoaosmecanismosde soberania , ins-
trumentosque são de tipo disciplinar. Assim, por exemplo,
a ordem dos dominicanos, com toda a nova disciplina que
ela representavaem relaçãoàs outrasregularidadesmonás-
ticas4, e a ordemdos beneditinosforam nasmãosdo papado,
e igualmentenas mãosda monarquiafrancesa,um instru-
mentograçasao qual foi possívelrompercertoselementosdo
sistemafeudal, certos dispositivos de soberaniaque e;<is-
tiam, por exemplo,no sul da França,na Occitânia, etc.5 • E da
mesmamaneiraque os jesuítasforam, mais tarde, no século
XVI, um instrumentograçasao qual puderamserrompidos
certos restos da sociedadefeudal6 • Logo: inovaçãoeconô-
mica, inovaçãopolítica.
Pode-sedizer aindaque as diligênciasdisciplinares, es-
sasespéciesde ilhas disciplinaresquevemosemergirna so-
ciedademedieval, tambémpossibilitaminovaçõessociais,
possibilitamem todo casoque se articulemcertasformasde
oposiçãosocialcontraas hierarquias,contrao sistemade di-
ferenciaçãodos dispositivos de soberania.Vemos surgir, e
2 O PODER PSIQUIÁTRICO

is o de d aIdadeMédia, muito mais aindana vésperada Re-


forma, vemosconstituíre1n-se certostipos de gruposcomu-
nitáiios relati ai11enteigualitários,que não sãon1aisregidos
pelosdispositivosde soberai1ia , 1naspor dispositivosde dis-
ciplina: uma mesmaregra que se impõe a todos da 1nesma
maneira, semque haja entreaquelesa que ela se aplica ou-
tras diferençasde estatutoalém das que são indicadaspela
hierai·quia inten1ado dispositivo.É assil11quevocêsvêeinsur-
gir bem cedoalgo como os mongesmendicantes,que já re-
presentamumaespéciede oposiçãosocialatravésde um novo
esquemadisciplinar7• Vocêstambén1vêemcomunidadesre-
ligiosas,masconstituídasessencialn1ente de leigos, como os
InnãosdaVida Comw11, que surgirai11na Holandano século
XI\18; e, por fim, todasessascomunidades populares ou bur-
guesasque precederamimediatamentea Reformae que vo-
cês vêem prosseguir , sob novas formas, até o século XVII,
por exemplo, na Inglaterra,com o papelpolítico e social que
vocêssabem; no séculoXVIlI igualmente.Pode-sedizer tam-
bém, no limite, que a maçonariapôdefuncionarna socieda-
de francesae européiado séculoXVIII como uma espéciede
inovaçãodisciplinar destinadaa trabalharde dentro,a curto-
circuitar e, até certo ponto, a romper as redesdos sistemas
de soberania .
Tudo isso, muito esquematicamente, para dizer que os
dispositivosdisciplinaresexistiramdesdemuito tempono in -
terior, e como ilhas, no plasmageral das relaçõesde sobera-
nia. Essessistemasdisciplinares,ao longo de toda a Idade
Média, no séculoXVI, aindano séculoXVIII, permaneceram
laterais, quaisquerque tenhamsido as utilizaçõesque deles
tenhampodido fazere os efeitosgeraisque acarretarain.Eles
permanecerain laterais;apesardisso,vemosesboçar-seatra-
vés delestoda uma série de inovaçõesque, pouco a pouco,
vão envolvero conjuntoda sociedade . E é precisamenteno~
séculosXVII e XVIII que vemos,por uma espéciede exten-
são progressiva, deparasitagemgeral da sociedade,é nessE
momentoque vemosconstituir-seo que poderíamosdeno-
minar com a expressão- mas evidentemente de forma mui·
AULA DE 28 DE NOVEMBRO DE 1973 83

to rudimentare esquemática - "sociedadedisciplinar", subs-


tituindo a sociedadede soberania.
Como se deu essaextensãodos dispositivosdisciplina-
res?Por quaisetapas?E, finalmente,qual foi o mecanismoque
lhes serviude suporte?Creio que sepoderiadizer, tambémde
forma muito esquemática,que, do séculoXVI ao séculoXVIII,
a extensãohistórica,a parasitagemglobal efetuadapelosdis-
positivos disciplinarestêm um certo número de pontos de
apoio.
Em primeiro lugar, parasitagemda juventude escolar
que, até o fim do séculoXV-início do séculoXVI, havia pre-
servadosua autonomia,suasregrasde deslocamentoe de
vagabundagem, suaturbulênciaprópria,seuslaços,também,
com as agitaçõespopulares.E, seja sob a forma do sistema
italiano ou do sistemafrancês,sejasob a forma de uma co-
munidadeestudantes-professores ou sob a forma de uma
comunidadeautônomados estudantesem relaçãoà dos pro-
fessores,poucoimporta,como querque sejatinha-se,no sis-
tema geral do funcionamentosocial, uma espéciede grupo
em perambulação,de grupo no estadode emulsão,no estado
de agitação.E, no fundo, a disciplinarizaçãodessajuventude
estudantil,essacolonizaçãoda juventude,foi um dos primei-
ros pontosde aplicaçãoe de extensãodo sistemadisciplinar.
O curioso é que a colonizaçãodessajuventudeturbu-
lenta e em movimentopelo sistemadisciplinar teve como
ponto de partidaa comunidadedos IrmãosdaVida Comum,
isto é, uma comunidadereligiosa cujos objetivos, cujo ideal
ascéticoeramclaros,pois seufundadorera alguémchamado
Groote,muito ligado a Ruysbroek,o Admirável, logo alguém
q~e estavaa par de toda aquelamística alemãe renanado
seculoXIV9. E a( nessapráticade um exercíciodo indivíduo
sobreele próprio, nessatentativade transformaro indiví-
d1:o, nessabuscade uma evoluçãoprogressivado indivíduo
a~e o ponto da salvação,é a( nessetrabalhoascéticodo indi -
viduo ~obreele mesmoparaa suasalvação,que encontramos
~ matnz,o IJ10deloprimeiro da colonizaçãopedagógicada
Juventude.E a partir da( e sob a forma coletiva desseasce-
O PODER PSIQUIÁTRICO
84

tismo que encontramosnos InnãosdaVida Comwn,que ve-


mos esboçarem -se os grandesesquemasda pedagogia,isto
é, a idéia de quesó se poden~apr~1:deras coisa.:'passandopor
certo nún1erode etapasobngatonase necessanas, que essas
etapasse seguemno ten1poe, no 1nesmon1ovin1entoque as
conduzatravésdo ten1po,marcamtantosprogressosquantas
são as etapas.A conjuminânciaten1po-progresso é caracte-
rística do exercícioascéticoe tambémvai sercaracterísticada
práticapedagógica. _ .
Assim, nas escolasfundadaspelosIrmaos daVida Co-
mum, primeiro em Deventer,depois em Liege, em Estras-
burgo,vamoster pela primeiravez divisõesem idadese di-
visõesem níveis, com programasde exercíciosprogressivos.
Em segundolugar, nessanova pedagogia,vocêsvão ver sur-
gir uma coisaque é bem nova em relaçãoao que era a regra
de vida da juventudeda IdadeMédia, isto é, a regrada clau-
sura.É no interior de um espaçofechado,num meio fechado
sobresi mesmoe com o mínimo de relaçõescom o mundoex-
terior, que deveserealizaro exercíciopedagógico,assimcomo
o exercícioascético.O exercícioascéticorequeriaum lugar
privilegiado; do mesmomodo, agora,o exercíciopedagógi-
co vai requererseulugar. E isso tambémé novo, é essencial;
toda a mistura,toda a intricaçãodo meio universitáriocom
o meio ambiente,em particularo vínculo tão fundamentaldu-
rante toda a IdadeMédia entreessajuventudeuniversitária
e as classespopulares,vai ser atravessadopor esseprincípio
da vida em clausura,que é um princípio ascéticotransportado
para a pedagogia.
Em terceirolugar, um dos princípios do exercícioascéti-
co é que, se ele é bem exercidopelo indivíduo sobresi mes-
mo, é sempresob a direçãoconstantede alguémque é o guia,
o protetor,em todo caso aqueleque assumea responsabili-
dadepelo procederde quemestáiniciando seupróprio cami-
nho ascético.O caminhoascéticorequerum guia constante,
que estejaperpetuamente atento aoprogressoou, ao contrá-
no, aosretrocessosou aos erros de quemcomeçao exercício;
do mesmomodo - aqui tambéminovaçãototal em relaçãoà
AULA DE 28 DE NOVEMBRODE 1973 85

dagogiauniversitáriada IdadeMédia-, vocês vêema idéia


~: que O professordeveacompanharo indi~duoao longo de
toda a suacarreiraou, pelo menos,conduzi-lo de uma etapa
à outra antesde passaro bastãoa outro guia que, mais pre-
parado,mais avançado,poderáguiar o aluno mais longe.~
guia ascéticotorna-seo prof~ssorde classeao ~ual o aluno e
vinculado,sejaduranteum Ciclo de estudos,sepduranteum
ano, sejaeventualmentedurantetodo o seucurso escolar.
E, enfim, nestecasonão estoumuito segurode que e
modeloseja ascético, mas,em todo caso,o que encontramm
nasescolasdos Irmãos daVida Comumé uma curiosíssima
organizaçãode tipo paramilitar.É bem possívelque se tratE
de um esquemade origem monástica;de fato, encontramo~
nos conventos,principalmentenos conventosda épocacristã
arcaica,divisões que são ao mesmotempo agrupamento~
de trabalho,agrupamentos de meditação,agrupamentos tam-
bémde formaçãointelectuale espiritual,que compreenderr
dez indivíduos,sob a direçãode alguémque os toma a car-
go e assume9- responsabilidadepor eles, e que formam a~
"decúrias"10 • E possívelque esseesquema,manifestamentE
inspiradono exércitoromano, tenhasido transpostoparaé
vida monásticados primeirosséculoscristãos;em todo caso.
é isso que encontramosnas escolasdos IrmãosdaVida Co-
mum, e elasse pautampor esseesquemamilitar da decúria.
talvez,aliás,a organizaçãodasmilícias burguesasem Flandre~
ten~a,~e certaforma, tomadoo lugardessemodelo.Enfim.
vocestem um curiosoesquema,monástico e militar ao mes-
mo_tempo,que vem servir de instrumentoparaessacoloni-
zaçaoda juventudeno interior das formas pedagógicas.
Temosaí, se assimpodemosdizer, um dos primeirosmo-
ment;>s_dessacolonizaçãode uma sociedadeinteira por in -
termed10dos dispositivosdisciplinares.

*
Encontramosoutra aplicaçãodessedispositivo discipli-
nar num outro tipo de colonizacão:não mais a da iuventude.
O PODER PSIQUIÁTRICO
6

ma simplesmentea colonizaçãodos_povos_colonizados.E
aí temosun1a histólia bem curiosa.SenapreCisover c01n cer-
to detalhecomo os esquemasdisciplinaresfora1n ao inesmo
tempo aplicadose aperfeiçoadosnas PºP1:1l~ç_õescolonia_is.
Pareceque essadisciplinarizaçãose fez, de lillCIO, de manerra
bastantediscreta,marginale, cwiosamente,em contraponto
à escravidão.
De fato, foram os jesuítas,adversáriosda escravidão-
por razõesteológicase religiosas,m~s. també1npor razõ~s
econômicas-,que opuseram,na Amencado Sul, a essauti-
lização,ao que pareceimediata,brutal e altamenteconsu-
midora de vidas humanas,a essaprática da escravidãotão
onerosae tãopouco organizada,outro tipo de distribuição,
de controle e de exploração[ ... *] por um sistemadiscipli-
nar. E as célebresrepúblicasditas "comunistas"dos guara-
nis, no Paraguai,na realidadeerammicrocosmosdisciplinares
nos quaisse tem um sistemahierárquicocujas chavesesta-
varn nasmãosdos própriosjesuítas;os indivíduos,as comu-
nidadesguaranisrecebiamum esquemade comportamento
absolutamenteestatutárioque lhes indicava a organização
do tempo a que deviam obedecer,indicava as horasdas re-
feições,de descanso,despertava-os à noite paraque pudes-
sem fazer amor e filhos na hora marcada11 • Plenaocupação
do tempo,por conseguinte.
Vi~ância pe~anente:nas aldeias dessasrepúblicas
guaranisca?aum hnha seu alojamento;mas, ao longo de
to??sos alo1amentos,haviaumaespéciede caJçadaque per-
mitia olhar pelasjanelas,as quais,é·c1aro,não fínham folhas
a__ fe~há-las,de modo que de noite pudessehavér umavigi -
l~nCia sobreo que cadaum fazia. Tinha-setambéme prin-
cipalmente_uma,espéciede individualização,pelo menosno
ruvel _da rrucrocelula~arniliar, já que cadauma - que, aliás,
rompiaa velh~ comurudadeguarani- recebiaum alojamento,
e er~ e_s:e~OJamento,precisamente,que era objeto do olho
da VIgilancia.

* Gravação: "humanos".
AULA DE 23 DE NOVEMBRODE 1973 87

Enfim, uma espéciede sistemapenalpermanent:,num


tido muito indulgentese comparadoao que era o sistema
senal europeuna epoca ., • nao
- ou seJa, - tm· h a penade mor-
pen , . - . h .t
t~ não tinha suphc10, nao tin a tortura-, mas um s1s ema
. 1
de puniçãoabso~ut~men~e~e~anente,que co_ma ao on-
go de todaa existenciado mdiVIduo e que,a cadainstante,em
cadaum dos seusgestosou das suasatitudes,era capazde
identificar algumacoisaqueindicasseumamá tendência,uma
má propensão,etc.,e queacarretava, por conseguinte,umapu-
njção que podia ser mais leve, por ser, de um lado, constante
e, de outro lado, por se aplicar sempreem virtualidadesou
inícios de ação.
Terceirotipo de colonizaçãoque vocêsvêem se formar
depoisda colonizaçãoda juventudeescolar,da colonização
dos povoscoloniais,foi - e não retomoao temaporquejá foi
estudadomil vezes- a colonizaçãointernados vagabundos,
dos mendigos,dos nômades,dos delinqüentes,dasprostitu-
tas, etc., e todo o confinamentoda épocaclássica.Em todos
essescasos,os dispositivosdisciplinares, digamosassim,são
instalados,e vemoscom muita nitidez que derivam direta-
mentedas instituiçõesreligiosas.Foram, de certo modo, as
instituições
. ,
religiosas- os "Irmãosda Doutrina Cristã"' subs-
ti~1do~mais tardepelasgrandesordenspedagógicas,como
os Jesuitas- que prolongaram,de certo modo por pseudó-
podes,suaprópria disciplina na juventudeescolarizável12•
. Fo_ram tambémas ordensreligiosas,no caso tambén1
os Jesuitas,que transpuserame transformaramsua discipli-
na nos paísescoloniais.Quantoao sistemade confinamen-
to, ª e"ssesprocedimentosde colonizaçãodos vagabundos
dos nomadeset · da se dava em formas bem prox1mas , . '
. ._
da rehgiao , c., ain
po· .
li . ' is eram,na ma10r parte dos casos ordensr -
giosasque tinham - . .. . '
sabil'd d ' senao a m1c1ativa,pelo menosa respon-
vers~1 a eda . gestao
~ dessesestabelec1mentos.• Portantoe, a
ao extenordas d. . 1· li . "
apli . iscip 1nasre giosasque vocesvêem
car progress1van t
cadavez . 1e~ e asetorescadavez menosmargin, L'
mais centrais,do sistemasocial.
88 O PODER PSIQUIÁ.TRICO

Depois, no fu11 do séculoXVII, no séculoXVIII, apare-


cem e instauram-sedispositivosdisciplinaresque não têm
mais pontode apoioreligioso e que sãoa transfon11ação des-
tes, 1nasde certo modo ao ar livre, sem suporteregular da
religião.Vocêsvêemsurgir siste1nasdisciplinares.Claro, o exér-
cito, primeiro com o aquartelainento,que data da segunda
metadedo séculoXVIII, a luta contraos desertores,isto é, a
constituiçãode prontuáriose todas as técnicasde identifi-
caçãoindividual que ilnpedemque as pessoassaiaindo exér-
cito tal como entravain;e, enfün, na segundametadedo sé-
culo XVIII , os exercícioscorporais,a ocupaçãocompletado
tempo, etc.13 •
Depoisdo exército,é silnplesmentea classeoper~aque
tainbémcomeçaa receberdispositivosdisciplinares.E o apa-
recimentodas grandesoficinas no séculoXVIII; é o apare-
cimento, nascidadesmineirasou em certosgrandescentros
de metalurgia,paraonde se tem de transportaruma popu-
lação rural que é utilizada pela primeira vez e em técnicas
totalmentenovas,é nessescentros- toda a metalurgiada
bacia do Loire, todasas minas de carvãodo Maciço Central
e do Norte da França- que vocêsvêem apareceras formas
disciplinaresimpostasaosoperários,com as primeirascidades
operárias, como a do Creusot.Depois,nessamesmaépoca,
o que foi afinal o grandeinstrumentoda disciplina operária,
a caderneta,que é imposto a todo operário.Cadaoperário
só pode, só tem o direito de deslocar-secom uma caderneta
que indica qual foi seuempregadoranterior,em que condi-
ções,por quais motivos o deixou; e, quandoquer conseguir
um novo empregoou se instalar em outra cidade,ele tem
de apresentarao seunovo patrão,à municipalidade,às au-
toridadeslocais,suacaderneta,que é, de certo modo, a pró-
pria marca de todos os sistemasdisciplinares que pesam
sobreele14 .
Logo, mais umavez muito esquematicamente, essessis-
temas disciplinaresisolados,locais, laterais,que se forma-
ram na IdadeMédia, começamentãoa cobrir toda a socie-
dadepor meio de uma espéciede processoque poderíamos
AULA DE 28 DE NOVEMBRODE 1973 89

chamarde colonizaçãoexterna einterna,no qual vocêsvão


encontraros elementosdos sistemasdisciplinaresde que eu
lhesfalava. Isto é: a fixação espacial,a extraçãoótima do tem-
po, a aplicaçãoe a exploração das forças do corpo por uma
regulamentação dos gestos,dasatitudese da atenção,a cons-
tituição de umavigil ânciaconstante ede um poderpunitivo
imediato,enfim a organizaçãode um poderregulamentarque,
em si, em seu funcionamento,é anônimo, não individual,
que resulta semprenuma identificação das individualida-
des sujeitadas.Em linhas gerais: apropriaçãodo corpo sin-
gular por um poderque o enquadrae que o constitui corno
indivíduo, isto é, como corpo sujeitado.É isso que podeser
reconstituídocomo a história muito esquemáticados dispo-
sitivos disciplinares.Ora, a que corresponde essahistória?
O que há por trás dessaespéciede extensãoque podemos
identificar facilmente na superfíciedos acontecimentosou
das instituições?
Pois bem, tenho a impressãode que o que estavaem
questãopor trás dessainstituição geral de dispositivos dis-
ciplinares é o que poderíamoschamarde acumulaçãodos
homens.Isto é, paralelamenteà acumulaçãodo capital,e ne-
cessáriade resto a este,foi precisoprocedera certaacumu-
lação dos homensou, se preferirem, a certa distribuiçãoda
força de trabalhoque estavapresenteem todas essassingu-
laridadessomáticas.Em que consistemessaacumulaçãodos
homense a distribuiçãoracional dessassingularidadesso-
máticascom as forças de que são portadoras?
Elas consistem,primeiramente , em maximizara utiliza-
ção possíveldos indivíduos: tomartodoselesutilizáveis, não
para poderutilizar todos eles, mas justamenteparanão ter
de utilizar todos, não an1pliarao máximo o mercadode tra-
balho de modo que garantauma margemde desemprego
que permita um ajuste para baixo dos salários.Tornar, por
conseguinte,todo o mundo utilizável.
Em segundolugar, tornar os indivíduos utilizáveis em
suaprópria multiplicidade; fazer com que a força produzida
pela multiplicidadedessasforçasindividuais de trabalhoseja
90 O PODER PSIQUIÁTRICO

no mínin10 igual e, na medidado possível,superiorà adição


dasforçassingulares.Como distribuir os indivíduosparaque,
em conjw1to,faça1111naisque a adiçãopura e silnplesdesses
indivíduos postosuns ao lado dos outros?
Enfim, pennitir a acun1ulaçãonão apenasdessasforças,
mas tan1bémdo tempo: do tempode trabalho,do tempode
aprendizagem, de aperfejçoa111ento,
do te1npode aquisiçãodos
saberese dasaptidões.E o terceiroaspectodo problemapos-
to pela acumulaçãodos homens.
Essatríplice funçãodastécnicasde acumulaçãodos ho-
mense das forças de trabalho,essetríplice aspectoé, creio,
a razãopelaqual forain instituídos,testados,elaborados,aper-
feiçoadosos diversosdispositivosdisciplinares.A extensão
dasdisciplinas,seudeslocainento,suanúgração,da suafun-
ção lateral para a função centrale geral que exercema par-
tir do séculoXVIII, estãoligadasa essaacumulaçãodos ho-
mense ao papel da acumulaçãodos homensna sociedade
capitalista.
Poder-se-iadizer, retomandoas coisasde outro ângulo
e olhando-asdo lado da história das ciências,que a ciência
clássicarespondeu,nos séculosXVII e XVIII, ao problemadas
multiplicidadesempíricasdas plantas,dos animais,dos ob-
jetos, dos valores,das línguas,etc., com certaoperaçãoque
era urna operaçãode classificação,uma atividadetaxonômi-
ca que foi, creio, a forma geral dessesconhecimentosempí-
ricos durantetoda a épocaclássica15 . Em compensação, ea
partir do momentoem que se desenvolviaa economiaca-
pitalista,no momentoem que, por conseguinte,se colocava,
paralelainentee em ligação com a acumulaçãodo capital, o
problemada acumulaçãodos homens,a partir dessemo-
mento fica claro que uma atividadepuramentetaxonômica
e de simplesclassificaçãonão eraválida. Foi precisodistribuir
os homenspararespondera essasnecessidades econômicas
de acordocom técnicastotalmentediferentesdas da classi-
ficação.Foi precisoutilizar, não esquemastaxonômicosque
permitissemencaixaros indivíduosem espécies,gêneros,etc.;
AULA DE 28 DE NOVEMBRODE 1973 91

foi precisoutilizar algo que não é uma taxonomia,muito em-


bora tambémse trate de umadistribuição,e que chamareide
tática.A disciplina é uma tática,isto é, certamaneirade dis-
tribuir as singularidades,mas de acordocom um esquema
que não é classificatório,distribuí-lasespacialmente, possi-
bilitar acumulaçõestemporaisque possamter efetivamente,
no nível da atividadeprodutora,eficáciamáxima.
Pois bem, creio que se poderiadizer, aqui tambémde
maneiramuito esquemática,que o que deu nascimentoàs
ciênciasdo homemfoi precisamentea irrupção,a presen-
ça ou a insistênciadessesproblemastáticos colocadospe-
la necessidade de distribuir forças de trabalhoem função das
necessidades da economiaque se desenvolviaentão.Distri-
buir os homenssegundoessasnecessidades implicava não
maisuma taxonomia,masumatática; essatática tem por no-
me "disciplina". As disciplinas são técnicasde distribuição
dos corpos,dos indivíduos,dos tempos, dasforças de traba-
lho. E são essasdisciplinas,precisamentecom essastáticas,
com o vetor temporalque elasimplicam, que irromperamno
saberocidentalno correr do séculoXVIIl e que remeteram
as velhastaxonomias,modelosde todasas ciênciasempíri-
cas,para o campode um saberem desusoe, em todo caso,
talvez até inteira ou parcialmentedesconsiderado. A tática
substituiua taxonomiae, com ela, o homem,o problemado
corpo, o problemado tempo, etc.
Chegamosaqui ao ponto em que eu gostariade retor-
nar ao problemaque estava emquestão,o problemada dis-
ciplina asilar, tal como ela constitui, a meu ver, a forma ge-
ral do poderpsiquiátrico. Procureimostrar[que - e mostrar]
como - o que apareciade certo modo ao vivo, a nu, na prá-
tica psiquiátricado início do séculoXIX era um poder que
tinha por forma geral o que chameide disciplina.

*
De fato, existiu uma formalizaçãomuito nítida, muito
evidentedessamicrofísicado poderdisciplinar; essaformali-
O PODER PSIQUIÁTRICO
92

zaçãovocêsencontramsimplesmenteno Panopticonde Ben-


than1. O que é o Panopticon16?
Costuma-sedizer que é um modelo de prisão que Ben-
than1inventouem 1787e que foi reproduzido,com certo nú-
mero de modificações,em certonúmerode casasde detenção
européias:em Pentonville,na Inglatena17, cmn modificações
na PetiteRoquette,na França18, etc. Na verdadeo Panopticon
de Benthamnão é um modelo de prisão, ou não é apenas
wn modelode prisão;é um modelo,e Benthai11diz isso mui-
to claramente , paraurna prisão,1nastai11bémparaum hos-
pital, para uma escola,uma oficina, uma instituição de ór-
fãos, etc. É urna fonna, eu já ia dizer, para toda instituição;
digamos,mais simplesmente,para toda uma série de insti-
tuições.E mesmo,quandodigo que é um esquemaparatoda
urna série de instituiçõespossíveis,creio que ainda não es-
tou sendoexato.
De fato, Benthamnemsequerdiz que é w11 esquemapa-
ra instituições,ele diz que é wn mecéllÚsmo,um esquema
que dá força a toda instituição,uma espéciede mecanismo
pelo qual o poder que atua ou deve atuar numa instituição
vai poder adquirir o máximo de força. O Panopticoné um
multiplicador; é um intensificadorde poder dentro de toda
uma série de instituições.Trata-sede ton1.ar a força do po-
der mais intensa,suadistribuiçãomelhor, seualvo de aplica-
ção mais certo. No fundo, sãoos três objetivosdo Panopticon,
e Benthamdiz isso: "sua excelênciaconsistena grandefor -
ça que ele é capaz dedar a toda instituiçãoa que é aplicado" 19 .
E, numaoutra passagem , diz que o que há de maravilhosono
Panopticon é que ele " dá aos que dirigem a instituiçãouma
força hercúlea" 2º. Ele " dá uma força hercúlea" ao poderque
circula na instituição, e ao indivíduo que detémou que diri -
ge essepoder. E, diz igualmenteBentham,o que há de ma-
ravilhoso nessePanopticon é que ele constitui " uma nova
maneirade dar ao espírito um poder sobre o espírito" 21 . Pa-
rece-meque essasduas proposições - constituir uma força
hercúleae dar ao espírito poder sobre o espírito-, parece-me
que é exatamenteisso o que há de característico no meca-
AWA DE 28 DE NOV[MBRO DE 1973 93

nismo do Panopticone, se assim.podemosdizer, na forma dis-


ciplinar geral. "Força hercúlea", isto é, uma força física que,
em certo sentido, tome por obj to o corpo, mas que eja tal
que essaforça que encerra,quepe a sobre o corpo, no fun-
do nuncaseja empregadae seja dotadade uma e pécie de
imaterialidade que faça que o proce o pa e de espírito a
espírito, quandona verdadeé o c rpo que e tá em que tão
no sistemado Panopticon.E e jogo entre a "força hercúlea"
e a pura idealidad do espírito, é i so, creio, que Bentham
buscavano Panopticon. E como chegalá?
Vocês têm uma construçãoanclifom1e que con titui a
periferia do Panopticon;ncs a construçãosão di tribuídas
celasque abremao mesmotempo parn dentro,por uma por-
ta envidraçada , e para fora, por uma janela. No perímetroin-
terno d sseanel, vocêstêm uma galeria que pem1itecircular
e ir de uma c la a outra. Depois,um espaçovazio e, no cen
tro do e paç vazio, uma torre, uma e pécic de constn1ção
cilíndrica com vários andare, no topo da qual vocês têm
uma p , cie d cúpula, isto é, um grande alão vazio, con
tntído d tal forma que d ssc ponto central pode-se ver, bas
tando girar no calcanhare , tudo o que acontececm cada
uma das c la . É e se o esqu ma.
qu quer dizer ss esquema? E por que, por tanto
tempo, ele falou aosespíritos e ton1ou- e, a meu v .,r errada
mente, como que o próprio exemplo da utopias do século
XVIII ? Em primeiro lu gar, nessascelas vai cr colorndo um
indivíduo, um só; isto é, nes istema,que vale pam um hos~
pital, uma prisão, uma oficina, uma es ola, 'l ., cm cada um
dessesalojamentosvai ser postauma só pessoa ; ou s 'Ja, cada
corpo terá seulugar.Vinculação spacial,por on..,eguinte r
para qualquerdireçãoque o olhar lo vigilérntL' pudc1 ..,e vol
tar, no fim de cada uma dessasdireções, o olh.1r vc11 cncnn
trar um corpo.Portantoas coordcm1da-, espaciaisllm .u um.1
função individualizante b m nílida.
Isto faz com qu um si ternacomo essenuncatenhade
lidar com uma massa,com um grupo ou, até, parri diZL'l' ll
verdade,com uma multrpli idade; só tenhade l1d,11 nH11 in
O PODER PSIQUIÁTRICO
94

divíduos. Pode-se perfeitan1entedar uma ordem coletiva


por um megafone,quevai se ditigir a todo o mundoao mes-
mo tempoe que seráobedecidapor todo o m_undoao me~m_o
tempo,masmesmoassimessaordemcolehv:asempree di-
rigida apenasa indivíduose aordemsempree recebidaape-
naspor indivíduos,instaladosuns ao ~ado dos outros.!º~~s
os fenômenoscoletivos,todos os fenomenosde mulhphci-
dadeencontram-seassiminteiramenteabolidos.E, como diz
Benthamcom satisfação,nasescolasnão haverámais "cola",
que é oinício da imoralidade22; nasoficinas não haverámais
distraçãocoletiva, canções,greves23; nas prisõesnão haverá
mais cumplicidade24; e nos asilos de doentesmentaisnão
haverámais aquelesfenômenosde irritação coletiva,de imi-
-
taçao, etc.-?S.
Vocêsvêem entãocomo toda essarede das comunica-
çõesde grupo,todosessesfenômenoscoletivosque sãoper-
cebidos,numa espéciede esquemasolidário, como sendo
tanto o contágiomédicocomo a difusãomoral do mal, todos
essesfenômenosvão se encontrar,pelo sistemado panóp-
tico, inteiramenterompidos. E vai-se lidar com um poder
que seráum poderde conjuntosobretodo o mundo,masque
semprevisaráapenassériesde indivíduosseparadosuns dos
outros.O poderé coletivo no seucentro,mas na chegadaé
sempree apenasindividual. Comovocêsvêem,temosaí aque-
le fenômenode individualizaçãopela disciplina de que eu
lhes falava da última vez. A disciplina individualiza por bai-
xo; ela individualiza aquelessobreos quais incide.
Quantoà cela central,essaespéciede cúpula,eu lhes di-
zia que ela era inteiramenteenvidraçada.Na verdade,Ben-
tham salientabem que não sedeve envidraçá-laou que, se
for envidraçada,é precisoestabelecerum sistemade persia-
nasque se possalevantare abaixar,e, dentrodesselocal, de-
~em ser instaladasdivisórias que se cruzeme sejammóveis.
E que, de fato, a vigilância tem de poder ser exercidade tal
sorteque_os~ue ~ãovigia_dosnão possamsaberse sãovigia-
dos ou nao; isto e, eles nao devemver se há alguémna cela
central26• Portantoos vidros da cela centraltêm de servelados
AULA DE 28 DE NOVEMBRODE 1973 95

ou tapados, e não pode haver nenhumefeito de contraluz


que permita que o olhar dos prisioneirosatravesseessaco-
luna e veja atravésda cúpula central se há alguémou não;
daí, as divisóriasinternas que são deslocadascomo se quiser
e o sistemade persianas.
É deste modo que o poder, como vocês estãovendo,
poderáser, como eu lhes dizia da última vez, um poder in-
teiramenteanônimo. O diretor não tem corpo,porqueo ver-
dadeiroefeito do Panopticoné o de sertal que,mesmoquan-
do não há ninguém,o indivíduo na sua cela não apenasse
creia, mas se saibaobservado , que tenhaa sensaçãocons-
tantede estarnum estadode visibilidade paraum olhar- que
estáou não estápresente,pouco importa. Por conseguinte ,
o poder é inteiramentedesindividualizado. No limite, essa
cúpulacentralpoderiaestarabsolutamentevazia, e mesmo
assimo poderse exerceria.
Desindividualização,desincorporação do poder,que não
tem mais corpo,individualidade, quepodeserqualquerum.
Aliás, um dos pontosessenciaisdo Panopticoné que não só
qualquerum pode estardentro dessatorre central- a vigi-
lância pode ser exercidapelo diretor, mas tambémpor sua
mulher,por seusfilhos, por seuscriados,etc.-, mastambém
um subterrâneo,que vai do centro até o exterior, possibilita
a qualquerum entrarnessatorre centrale exercer,se quiser,a
vigilância; ou seja,qualquercidadãodevepodervigiar o que
aconteceno hospital, na escola,na oficina, na prisão.Vigiar
o que aconteceaí, vigiar se tudo estáem ordem e vigiar se o
diretor dirige direito, vigiar o vigilante que vigia.
De sorte que vocêstêm uma espéciede faixa de poder,
faixa contínua,móvel, anônima,que se desenrolaperpetua-
menteno interior dessatorre central.Tenhaela ou não uma
figura, tenha ou não tenha um nome, seja individualizada
ou não, de todo modoé afaixa anônimado poderque per-
petuamentese desenrolae se exercepelo jogo dessainvisi -
bilidade. É isso aliás que Benthamchamade "democracia",
já que,por um lado, qualquerum podeocuparo lugar do po-
der e queestenãoé propriedadede ninguém,pois todo o mun-
O PODER PSJQUlÁTRICO
9

do pode entrarna t01Te e vigiar~ maneiracomo o poder ~e


e erce, de arte que o poder estaperpe;U~me~1~esubmeti-
do a um controle. Finalmente, o poder e tao vis1vel em seu
centroinvisível quantoas pessoasnas suascelas;e, por isso
mesmo,o podervigiado por qualquerum é a própria demo-
cratizaçãodo exercíciodo poder.
Outra característicado Panopticon:nascelas,vocêstên1,
do lado de dentro, é claro, wna porta envidraçadaparaper-
mitir a visibilidade, masdo lado defora vocêstêm igualmen-
te w11a janela, indispensável para que haja um efeito detrans-
parênciae paraque o olhar dequem estáno centro da torre
possaatravessarassimtodasas celas,ir de um lado ao outro
e ver, por conseguinte , à contraluz,tudo o que faz a pessoa
- aluno, doente, operário, prisioneiro,etc. - que estána cela.
De sorteque o estadode visibilidade permanenteé absolu-
tamenteconstitutivoda situaçãodo indivíduo que é coloca-
do assimno Panopticon.E vocêsestãovendocomo a relação
de poder tem essaimaterialidadede que eu lhes falava há
pouco,porqueo poderse exercesimplesmentepor essejogo
de luz; ele se exercepor esseolhar que vai do centro à pe-
riferia, que, a cadainstante,podeobservar,julgar, anotar,pu-
nir desdeo primeiro gesto,desdea primeira atitude,desdea
primeira distração.Essepodernão necessitade instrumen-
to; seu único suporteé o olhar e é a luz.
Panopticonquer dizer duascoisas.Quer dizer que tudo é
visto o tempotodo, masquer dizer tambémque todo o poder
queseexercenuncaé maisqueum efeito de ótica.O podernão
tem materialidade;ele já não necessitade toda essaarma-
dura ao mesmotempo simbólica e real do poder soberano;
ele 1:-ão precisaempunharo cetro ou brandir a espadapara
purur; ele não precisaintervir como um raio, à maneirado
s~berano.Essepoderé, ao contrário,da ordemdo sol, da per-
petualuz; ele é a ilwninação não material que atinge indi-
ferentementetodasas pessoassobreas quais se exerce.
Er:Jim, ~tirna característicadessePanopticoné que esse
po~e~rmatenalque se exerceperpetuamente na iluminação
esta ligado a umaperpétuacoletade saber;ou seja,o centro
AULA DE 28 DE NOVEMBRODE 1973 97

do poder é ao mesmo tempo um centro de anotaçãoini n-


terrupta, de transcrição do comportamentoindivi dual. Co-
dificação e anotaçãode tudo o que os indivíduos estiverem
fazendo em suacela; acumulaçãodessesaber, constituição de
seqüências e sériesque vão caracterizaros indivíduos; cer-
ta individualidade escrita, centralizada,constituída segundo
umalinha genética, vem formar o duplo documentário, o ec-
toplasmaescrito,do corpo que é posto assim na sua cela.
O primeiro efeito dessarelaçãode poderé, portanto, a
constituiçãodesse saberpermanentedo indivíduo, do in-
divíduo vinculado a determinadoespaço e acompanhado
por um olharvirtualmente contínuo,que define a curvatem-
poral da sua evolução, da sua cura,da aquisiçãodo seu saber,
da suaresipiscência,etc. Logo, o Panopticoné, como vocês
estãovendo,um aparelhode individualizaçãoe de conheci-
mentoao mesmotempo; é um aparelho de sabere de poder
ao mesmotempo,que individualiza, por um lado, e que, in-
dividualizando,conhece.Donde aliás a idéia que Bentham
tinha de fazer dele um instrumento do que ele chamava de
"experimentaçãometafísica"; e ele achava que era possível
utilizar o dispositivo do panóptico para fazer experiências
com crianças. Dizia ele: imagine pegarmoscriançasencon-
tradasno instante do nascimentoe as colocarmos , antesque
comecema fo lar ou a tomar consciênciado que querque seja,
dentro do pa11óptico. Pois bem, diz Bentham, seria possível
acompanhar assim "a genealogiade cadaidéia observável" 27
e, por conseguinte, refazerexperimentalment e o que Con-
dillac havia deduzido semmaterial de experimentaçãome-
tafísica28. Seria possíveltambémverificar não apenasa con-
cepção genéti ca de Condillac, como o ideal tecnológico de
Helvétius, quandoHelvétius dizia que " pode-se tudo ensi-
nar a qualquer um" 29• Essaproposição , que é fundamental
para a eventualtransformaçãoda espéciehumana, é verda-
deira ou falsa?Bastariafazer a experiênciacom um panóp-
tico; ou seja,nasdiferentescelasseriamensinadas diferentes
coisaspara diferentescrianças;ensinar-se-ia qualquer coi-
sa a qualquer criançae ver-se-ia qual seria o resultado. Se-
9 O PODER PSIQUIÁTRICO

ria pos í el, assin1, educar as crian_ças em s~st~mas inteira-


mente diferente w1s dos oub~os ou incompatíveis w1s com os
utros; assim , a alguns se ensinaria o sistema de N ewton, a
outros se faria crer que a Lua é w11 queijo. E, quandotivess~m
18 ou 20 anos, todos eles seri am remlidos e postos para dis-
cutir. Seria possível também ensinar dois tipos de matemáti -
ca às c1ianças, uma matemática na qual dois e dois são qua-
tro, e w11a matemáti ca em que dois e dois não são quatro; e
e esperariatambém que fizessem 20 anos para reuni-los,
e haveriadiscussões;e, diz Bentham, que evidentementegra-
ceja W11 pouco, seria melhor do que pagar gente para fazer
ennões , dar conferências ou levantar controvérsias.Teríamos
W11a e>.'J)erimentaçãodireta. Enfi m, claro, ele diz que seriane-
cessáriofazer wna experiência na qual se juntariam meninos
e menin as, quando chegasse m à adolescência,paraver o que
acontece.Como estão vendo, é a própria história de Marivaux
e de A disputa: uma espécie de dramapanópticoque, no fun-
do, encontramosna peçade Marivaux3°.
Em todo caso, o panóptico, como vocêsestãovendo,é
um esquema formal para a constituiçãode um poder indi-
vidualizantee de um saber sobre os indivíduos. Creio que o
esquema panóptico, os principais mecanismosque vemos
aplicados no Panopticon de Bentham, vocês vão encontrar
novamente na maioria dessasinstituições que, com o nome
de escolas,de quartéis, de hospitais, de prisões, de casasde
e9~caçãovigiada, etc., sãoao mesmo tempoo lugar do exer-
c1c10 de um poder e o lugar de formaçãode certo saberso-
bre o homem. A trama comum ao que poderíamoschamar
de o poderexercidosobre o homemenquantoforça de tra-
balho e o sabersobre o homemenquantoindivíduo, pare-
ce-me que é o mecanismo panópticoque a proporciona.De
rr:1odo que_o p~nopti smo poderia, creio eu, aparecere fun -
c10nar_no mt:nor da nossasociedadecomo uma forma ge-
ral; senaposs1ve~falar tanto de umasociedadedisciplinar co-
mo de ~ma soCied~de panóptica. Vivemos no panoptismo
~eneraliz~d~pelo Slill ples fato de que vivemos dentrode um
sistemad1sC1plinar.
AULA DE 28 DE NOVEMBRODE 1973 99

Vocêsdirão: tudo issoestá muito bem,maspode-semes-


mo dizer que os dispositivosdisciplinaresenvolveramefe-
tivamentea sociedade inteira, que os mecanismos,os dis-
positivose os poderesde soberaniaforam suprimidospelos
mecanismosdisciplinares?
Creio que, assimcomo existiam poderesde tipo disci-
plinar nas sociedade s medievais,em que no entantoos es-
quemasde soberaniaprevaleciam,do mesmomodo é pos-
sível encontrarna sociedadecontemporâneaainda muitas
formas de poderde soberania.Ondese pode encontrá-los?
Poisbem,eu os encontrariana únicainstituiçãoque não men-
cionei até agora,da dinastiatradicional dasescolas,quartéis,
prisões,etc., e cuja ausênciatalvez tenhasurpreendidovo-
cês: estoufalando da família. Parece-me que a familia é pre-
cisamente,eu ia dizendo um resto, mas não é exatament e
isso, é em todo casouma espéciede cela dentro da qual o
poderque se exercenão é, como se costumadizer, discipli-
nar, mas, ao contrário,é um poder do tipo da soberania .
Creio que podemosdizer o seguinte:não é verdadeque
a família tenha servido de modelo para o asilo, a escola, o
quartel,a oficina, etc.; na realidade, parece-meque nadano
funcionamentoda família permita ver uma continuidade
entre a família e as instituições, os dispositivosdisciplinares
de que lhes falo. Ao contrário,o que vemosna familia, senão
uma função de individualização máximaque age no nível
daqueleque exerceo poder, isto é, no nível do pai? Esseano-
nimato do poder, essafaixa de poderindiferenciado que se
desenrolaindefinidamentenum sistemapanóptico, não há
nadamais estranhodo que isso à constituiçãoda fanu1ia, em
que, ao contrário, o pai, enquantoportador do nome e na
medidaem que exerceo podersob seunome, é o pólo mais
intenso da individualização,muito mais intenso do que a
mulher e os filhos. Logo, temosaí uma individualizaçãopelo
topo, que lembra e que é o tipo mesmodo poder de sobe-
rania, absolutamenteinverso do poderdisciplinar.
Em segundolugar, na familia, vocêstêm uma referência
constantea um tipo de vínculos,de compromissos,de depen-
100 O PODER PSJQUIATRT O

dência que foi stabelecido de uma vez por todas sob a for -
ma do casamento ou ob a fom1a do nascim ento. E é essa
ref rência ao ato anterior, ao estatuto conferido de mna vez
por todas, que dá solid ez à família; os mecanismos de vigi-
lânciaapenas e enxertamaí e, mesmoque não atuem., o per-
tencimento à família continua a se manter. A vigilância é
upletiva em relaçãoà fa1n ília; ela não é constitutiva, ao pas-
o que no sistemasdi ciplinaresa vigilância pern1anente é
absolutamenteconstitutivado sistema.
Enfim, na família vocês têm todo esseentrelaçamento
de relaçõesque poderíamosdizer heterotópicas: entrelaça-
mentosdos vínculoslocais,contratuais, dos vínculosde pro-
priedade,dos compromissospessoaise coletivos, que lem-
bra o poderde soberania,e de modo algum a monotonia,a
isotopia dos sistemasdisciplinares. De sorte que eu coloca-
rei radicalmenteo funcionamentoe a microfísica da farru1ia
no nível do poderde soberania, e não no nível do poderdis-
ciplinar. Isso não quer dizer, a meu ver, que a farru1ia seja o
resíd uo, o resíduo anacrônicoou, em todo caso, o resíduohis-
tórico de wn sistemaem que asociedade estava inteiramen-
te penetradapelos dispositivosde soberania. A família não
é um resíduo,um vestígio de soberania, ela é, ao contrário,
parece-me,wna peça essencial,e cada vez mais essencial
ao sistemadisciplinar.
Creio que poderíamosdizer o seguinte: a família, na
medidaem que obedecea wn esquema não disciplinar, a um
dispositivo de soberania,é a articulação, o ponto de engate
absolutamente indispensáve l ao próprio funcionamento de
todos os sistemasdisciplinares.Quero dizer que a família é
a instânciade coerçãoque vai fixar permanentemente os
indivíduosaosaparelhosdisciplinares, que vai de certomodo
injetá-losnos aparelhosdisciplinares. É porque a família exis-
te, é porquevocêstêm essesistema de soberania que age na
sociedadesob a forma da família, que a obrigação escolar
age e que as crianças,enfim os indivíduos, essas singulari -
dadessomáticassão fixadas e por fim indivi dualizadas no
AULA DE 28 DE NOVEMBRODE 1973 101

interior do sistema escolar.Paraser obrigatório ir à escola,


tem de agir tambémestaoutra soberaniaque é a soberania
da família. Vejam como historicamentea obrigaçãodo ser-
viço militar foi obtida de pessoasque, é claro, não tinham
nenhumarazãode quererfazer o serviço militar; foi unica-
mente porque o Estado fez pressãosobre a família como
pequenacoletividade constituídapelo pai, a mãe,os irmãos,
as irmãs, etc., que a obrigaçãodo serviço militar foi efetiva-
mentecoercitiva e que os indivíduos puderamser ligados a
essesistemadisciplinar e confiscadospor ele. O que signi-
ficaria a obrigaçãoao trabalho, se os indivíduos não fossem
pegasprimeiro no interior dessesistemade soberaniaque
é a família, dessesistemade compromissos,de obrigações,
etc., que faz com que a assistênciaaos outros membrosda
familia, a obrigaçãode lhes fornecercomida, etc., fossemda-
das?A fixação no sistemadisciplinar do trabalho só é obti-
da na medidaem que a soberaniada familia ageplenamente .
O primeiro papel da familia em relaçãoaos aparelhosdis-
ciplinares é, portanto, essaespéciede vinculaçãodos indi-
víduos ao aparelhodisciplinar.
Ela tambémtem, creio eu, outra função. É que ela é o
ponto zero, de certo modo, em que os diferentessistemas
disciplinaresvão prender-se uns aosoutros.Ela é o ponto de
intercâmbio,de junção que garantea passagemde um sis-
temadisciplinar ao outro, de um dispositivo a outro. A me-
lhor provaé que, quandoum indivíduo é lançadofora de um
sistemadisciplinar como sendoanormal,paraonde é man-
dado?Paraa suafamilia. Quandoé rejeitadosucessivamente
de certo númerode sistemas disciplinarescomoinassimilável,
indisciplinável,ineducável,é para a familia que é rejeitado;
e é afamília que, nessemomento, tem o papelde rejeitá-lo,
por suavez, como incapazde se fixar em qualquersistema
disciplinar e eliminá-lo, quer sob a forma da rejeiçãona pa-
tologia, quer sob a forma da rejeição na delinqüência,etc.
Ela é o elementode sensibilidadeque possibilita determi-
nar quais são os indivíduos que, ínassim.iláveisa qualquer
102 O PODER PSIQUTÂTRJ O

sistemade disciplina,não podempassarde w11 a outroe têm


finaln1entede ser rejeitadosda sociedadeparaentraren1 no-
vos sistemasdisciplinaresque são destinadosa isso.
A fanúlia tem portantoesseduplo papelde vinculação
dos indivíduosaossistemasdisciplinares,de junçãoe de cir-
culaçãodos indivíduos de um sistemadisciplinar aoutro. E,
nessamedida,creio que se possadizer que a fa1nília, por ser
uma célula de soberania,é indispensávelao funcionan1ento
dos sistemasdisciplinares,assil11como o corpo do rei, a 1nul-
tiplicidade dos corposdo rei, erain necessáriosao ajustedas
soberai1iasheterotópicasno jogo dassociedadesde sobera-
nia31. O que era o corpo do rei nassociedadesc01n mecanis-
mos de soberai1ia,a família é nas sociedadescom sisten1as
disciplinares.
A que isto historicamentecorresponde?Creio ser pos-
sível dizer o seguinte:nossistemasem que o podereraessen-
cialn1entedo tipo da soberania,em que o poder se exercia
atravésdos dispositivosde sobera11ia,a família era um des-
ses dispositivosde soberania;ela era muito forte portanto.
A familia medieval,a familia do séculoXVII ou do séculoXVIII
eram de fato famílias fortes, que deviam sua força à sua
própria homogeneidadeem relaçãoaos outros sistemasde
soberai1ia.Mas, na medidaem que a família era assimho-
mogêneaa todos os outrosdispositivosde soberania,vocês
compreenderãoque no fundo ela não tinha especificidade;
ela não tinha delimitaçãoprecisa.É por isso que a família se
arraigavalonge, masse atolavadepressa,e seuslimites nun-
ca erambemdeterminados.Ela vinha fwidir-se em todauma
série de outras relaçõesde que era muito próxima, porque
eram do mesmotipo: eram as relaçõesdo suseranocom o
vassalo,as relaçõesde pertencirnentoa corporações,etc.;
de tal sorteque a família era forte porquese pareciacom os
outros tipos de poder, mas, ao mesmotempo, ela era im-
precisa,vaga,pela mesmarazão.
Ao contrário,numasociedadecomoa nossa,isto é, numa
sociedadeem que a microfísica do poder é de tipo discipli-
11ULA DE 28 DE NOVEMBRODE 1973 103

nar, a família não foi dissolvid a pela disciplina; ela se con-


centrou,se limitou, se intensificou.Vejam qual foi o papeldo
códigocivil em relação à familia. Há historiadores que dizem:
o código civil atribuiu o máximo à família; outros dizem: o
códigocivil reduziuo poderda familia. De fato, o papeldo có-
digo civil foi às vezeso de limitar a familia, mas,limitando-a,
delimitá-la, concentrá-lae intensificá-la. Graçasao código
civil, a família conservouos esquemasde soberania : domi-
nação,pertencimento , vínculos de suserania,etc., mas ela
os limitou às relaçõeshomem-mulher e às relaçõespais-fi-
lhos. O código civil redefiniu a família em torno dessami-
crocélulados esposose dos pais-filhos, e lhes deu, então,sua
intensidademáxima. Ele constituiu um alvéolo de sobera-
nia pela açãodo qual as singularidade s individuais sãofixa -
das aos dispositivos disciplinares.
Era necessário esse alvéolointenso,essacélulaforte, para
que os grandessistemas disciplinares que haviaminvalida-
do, que haviam feito os sistemasde soberaniadesaparecer
pudessemagir. Isso explica, creio, dois fenômenos.
O primeiro é a forte refamiliarizaçãoa que assistimos
no séculoXIX, em particularem todasas classesda sociedade
em que a família estavase decompondoe em que a discipli-
na era indispensável,essencialmente na classeoperária.No
momentoda formaçãodo proletariadoeuropeu,no séculoXIX ,
as condiçõesde trabalho, de habitação,os deslocamentos da
mão-de-obra,a utilizaçãodo trabalhoinfantil, tudo isso tor-
navacadavez mais frágeis as relaçõesde família e invalidava
a estruturafamiliar. Efetivamente, desdeo início do século
XIX, vocêsvêem bandosinteiros de crianças,de jovens, de
operáriostransumandode uma região a outra, vivendo em
dormitórios,formandocomunidadesque logo se desfaziam.
Multiplicação dos filhos naturais,criançasencontradas , in-
fanticídios,etc. Diante disso,que era a conseqüência imedia-
ta da constituiçãodo proletariado,vocês vêem, bem cedo,
desdeos anos1820-1825,aparecerum esforçoconsiderá-
vel parareconstituira família. Os patrões,os filantropos, os
poderespúblicosutili zam todosos meios possíveisparare-
O PODER PSIQUIÁTRICO
104

con ti tuir a família, para forçar os operáJiosa vive~em em


ca al, a casarem , a ter fil hos e a reconhecerseus filh os. O
patronato, aliás,chegaa fazer sac1ifíciosfi nanceirospara con-
eguir e a refamiliarizaçãoda vida operária.,Em Mulh_ous~,
por olta dos anos 1830-1835, são constnndas aspnrne1-
ra cidade operá1ias 12
• Dá-se às pessoas uma casa paraque
reconstituan1u1Tla fa1nfüa; organizam-se cruzadas contraas
pe soa que vivem n1a1italn1.ente sem ser realmente casa-
das.Em uma, vocêstêm toda wna sériede disposições que,
aliás, são disciplinare .
Igualmentenas oficinas, em certascidades, recusa-se
gente que vive como casalsem estar regularmentecasada.
Toda w11.a série de dispositivosdisciplinaresque fwl.cionam
como dispositivosdisciplinaresno interior da própria oficina,
da fábrica ou, em todo caso,nas margens;mas essesdispo-
sitivos disciplinarestêm por fwl.ção reconstituira célula fa-
miliar, ou antes,constituir certacélula familiar que obedeça
justamentea um mecanismoque não é disciplinar, masque
é da ordemda soberania , como se, e é essasemdúvida a ra-
zão,os mecanismos disciplin aresnão pudessemefetivamen-
te agir, aferrar com o máximo de intensidade e eficácia, se
não houvesseao lado deles, para fixar os indivíduos, essa
célula de soberaniaque é a família.Vocês têm portanto,en-
tre o panoptismodisciplinar- que é, creio, em suaforma, in-
teiramentediferenteda célula familiar - e asoberaniafami-
liar, um jogo de vaivém permanente. A famfüa, célula de so-
berania, é perpetuamente,no curso do século XIX, nessa
e~pre_ita?ª.de refamiliarização,secretada de novo pelo te-
cido disc1plmarporqueela de fato é - por mais exterior que
seja ao sistemadisciplinar, por mais heterogênea que sejae
por ser heterogêneaao sistemadisciplinar - , é um elemento
de solidezdo sistemadisciplinar.
_ E a outra conseqüênciaé que, quandoa farnfüa se dete-
:1ora, quan?oela não desempenha mais sua fwl.ção, logo é
mstaurada,isso aparececom muita clareza no século XIX tam-
bém,_toda1:1111ª sériede dispositivos disciplinares que têm por
funçao paliar o enfraquecime n to da famíli a: surgimento das
AULA DE 28 DE NOVEMBRODE 1973 105

casasparacriançasencontradas, orfanatos,abertura,nos anos


1840-1845,de toda uma sériede casasparaos jovens delin-
qüentes,para o que se chamaráde infância em perigo, etc.33.
Em suma,tudo o que podemos chamarde assistênciasocial,
todo essetrabalhosocial que aparecedesdeo início do sé-
culo XlX 34 e que vai adquirir a importânciaque agoravocês
sabem,tem por função constituir uma espéciede tecido dis-
ciplinar que vai podersubstituira família, ao mesmotempo
reconstituira farru1ia e possibilitar que se prescindadela.
Assim, para tomar o exemplode Mettray, são interna-
dos em Mettray jovens delinqüente s que, em sua maioria,
são jovens sem família; eles são reunidos de modo abso-
lutamentemilitar, isto é, disciplinar, não familiar; e, ao mes-
mo tempo,no interior dessesubstitutoda família, dessesis-
temadisciplinarque seprecipitaondejá nãohá família, faz-se
uma referênciaperpétuaà família, pois os vigilantes,os che-
fes, etc., sãochamadosde pai, de irmão maisvelho: os grupos
de crianças,apesarde inteiramentemilitarizados,apesarde
funcionar no modo da decúria, constituemsupostamente
uma família35 •
Vocês têm aí portantotoda uma espéciede trama dis-
ciplinar, que se precipita onde a farru1ia está enfraquecida ,
que constitui,por conseguinte , a própriaprojeçãode um po-
der estatalmentecontrolado, ondenão há mais família; mas
essaprojeçãodos sistemasdisciplinaresnunca se faz sem
referênciaà família, sem funcionamentoquaseou pseudo-
familiar. Creio que temos aí um fenômenoque é muito ca-
racterísticoda funçãonecessáriada soberaniafamiliar em re-
lação aos mecanismosdisciplinares.
É aí, nessaorganizaçãodos substitutosdisciplinaresda
família, com referênciafamiliar, que vocêsvêemsurgir o que
chamareide função-psi, isto é, a função psiquiátrica, psico-
patológica,psicossociológica , psicocriminológica, psicanalí-
tica, etc. E, quandodigo "função", entendonão apenaso dis-
curso mas a instituição,mas o próprio indivíduo psicológico.
E creio que é essaa função dessespsicólogos,psicoterapeu -
tas, criminologistas,psicanalistas,etc.; qual é ela, senãoser
O PODER PSIQUIÂTRICO
106

0
agentesda organizaçãode um dispositivod~sciplinarque
ai se ligar, se precipitaronde se produz un1 hiato na sobe-
rania familiar?
Vejam o que acontec~ul:ist01icar1:1e1:te._A ~nç~o-psi
nasceuevidentementeno amb1toda ps1qwatna;isto e, nas-
ceu no início do séculoXIX, do outro lado da família, como
uma espéciede par em relaçãoa ela. Quandoum in~vídu_o
escapaà soberaniada família, é internadono hospital psi-
quiátrico, onde tratamde adestrá-loparaa aprendizagemde
uma disciplina pura e simples,de que lhes dei algunsexem-
plos noscursosprecedentes e em que, poucoa pouco,ao [lon-
go] do séculoXIX, vocêsvão ver nascerreferênciasfamilia-
res; e, pouco a pouco, a psiquiatriavai se apresentarcomo
empreitadainstitucional de disciplina que vai possibilitar a
refamiliarizaçãodo indivíduo.
A função-psinasceu,portanto,dessaespéciede par em
relaçãoà família. A familia requeriao internamento;o indi-
víduo erapostosob disciplinapsiquiátricae devia-serefami-
liarizá-lo. Depois, pouco a pouco,a função-psise estendeu
a todosos sistemasdisciplinares:escola,exército,oficina, etc.
Vale dizer que essafunção-psidesempenhou o papelde dis-
ciplina para todos os indisciplináveis.Cadavez que um in-
divíduo era incapazde seguir a disciplina escolarou a dis-
ciplina da oficina, ou a do exército,no limite a disciplina da
prisão, a fw1ção-psi intervinha. E intervinha com um dis-
curso no qual ela atribuía à lacuna,ao enfraquecimentoda
família, o caráterindisciplinável do indivíduo. Assim vocês
vêem aparecer,na segundametadedo séculoXIX, a impu-
taçãoà carênciafamiliar de todasas insuficiênciasdiscipli-
naresdo indivíduo. Depois,enfim, no início do séculoXX, a
função-psitornou-seao mesmotempo o discursoe o con-
trol~ de todos os sistemasdisciplinares.Essafunção-psifoi
o discursoe a instituição de todos os esquemasde indivi-
dualização,de normalização,de sujeiçãodos indivíduos no
interior dos sistemasdisciplinares.
. Ass~m'.v~cêsvêem aparecera psicopedagogiano inte-
nor da d1sc1plinaescolar,a psicologiado trabalhono interior
AULA DE 28 DE NOVEMBRO DE 1973 107

da disciplina de ofi cina, a criminologia no interior da disci-


plina de prisão, a psicopatologia no interior da disciplina
psiquiátricae asilar. Ela é, essafunção-psi, a instância de
controle de todas as instituições e de todos osdispositivos
disciplinarese faz ao mesmo tempo, semque isso seja con-
traditório, o discursoda família. A cada instante, como psi-
copedagogia,como psicologia do trabalho, como crimino-
logia, como psicopatologia, etc., aquilo a que ela remete, a
verdadeque ela constitui e que ela forma, e que desenha
para ela seureferencial,é sempre a família. Ela tem por re-
ferencial constantea família, a soberania familiar, e isso na
medidamesmaem que é a instância teóricade todo dispo-
sitivo disciplinar.
A função-psié precisamenteo que trai o pertencimen-
to profundo da soberaniafamiliar aos dispositivos discipli-
nares. Essa espéciede heterogeneidade que me pareceexis-
tir entre a soberaniafamiliar e os dispositivosdisciplinares
é funcional. E a essafunção se ligam o discurso, a instituição
e o homempsicológico.A psicologiacomoinstituição,como
corpo do indivíduo,como discursoé o que, perpetuament e,
vai, de um lado, controlaros dispositiv os disciplinarese re-
meter,de outro, à soberaniafamiliar como instância de ver-
dade a partir da qual serápossíveldescrever, definir todos
os processos,positivos ou negativos, que se dão nos dispo-
sitivos disciplinares.
Não é de estranharque o discurso da família, o mais
"discursode família" de todos os discursospsicológicos, ou
seja, a psicanálise,possa,a partir de meados do séculoXX,
funcionarcomo o discursode verdade a partir do qual é pos-
sível fazer a análisede todasas instituições disciplinares. E
é por isso que, se o que lhes digo é verdade, vocês hão de
compreenderque não se podeopor como críti ca da institui-
ção ou da disciplina escolar, psiquiátrica, etc., uma verdade
que seriaformada apartir do discurso da família. Refamilia-
rizar a instituição psiquiátrica, refamiliarizar a in tervenção
psiquiátrica,criticar a prática, a instituição, a disciplina psiquiá-
trica, escolar, etc., em nome de um discurso de verdade que
108 O PODERPSIQUIÁTRICO

teria por referênciaa fai11ília não é, e1n absoluto,fazer a c1í -


tica da disciplina, é, ao contrá1io, remeterperpetuament eà
disciplina*.
Não é escaparao mecanismoda disciplina referir-se à
soberaiuada relaçãofai11iliar; é, ao contrário, reforçar esse
jogo entresoberaniafanuliar e funcionainentodisciplinar, que
me parecemuito característicoda sociedadecontemporâ-
neae dessaaparênciaresidualde soberaniana famfüa, que
pode estranharquai1do a con1parainosao sistemadiscipli-
nar, mas que me parecede fato funcionar em ligação direta
com ele.

* O manuscrito faz referência às obras: [a] G. Deleuzee F. Guat-


tari, Capitalismeet Schizophrénie,t. 1: L' Anti-Oedipe,Paris, éd. de Minuit (cal.
" Critique"), 1972; [b] R. Castel, Le Psychanalysme,Paris, Maspero (cal. "Tex-
tes à l'appui " ), 1973.
NOTAS

1. Alusão às diversasreformasque, julgando as comunidades


beneditinasdemasiadoabertasparaa sociedadee acusando-as de
terem perdido o espírito do monasticismopenitencial, pretendem
satisfazeràs obrigaçõesda regra de São Bento. Cf.: [a] U. Berliere,
[1] I.:Ordre monastiquedes origines au XII' siecle, Paris, Descléede
Brouwer, 1921; [2] L'Ascesebénédictinedes origines à la fin du XII' sie-
cle, Paris,Descléede Brouwer, 1927; [3] "L' étudedesréforrnesmo-
nastiques des X• et XI • siecles",Bulletin de la classedes Lettreset des
Sciences morales et politiques, Bruxelas, Académieroyale de Belgi-
que, t. 18, 1932. [b] E. Werner, Die Gesellschaftlichengrundlagender
Klosterreform im XI. Jahrhundert, Berlim, Akademie-Verlag,1953. [c]
J. Lecler, SI "La crise du monachismeaux XJ•-XJI• siecles", in Aux
sourcesde la spiritualité chrétienne,Paris,Éd. du Cerf, 1964. - Sobre
as ordensmonásticas em geral, cf.: [a] R. P Helyot et al., Dictionnai-
re des ordres religieux, ou Histoire des ordres monastiques , religieux et
militaires ..., Paris,Éd. du Petit-Montrouge,1847(1~ ed.,1714-1719),4
vol. [b] P Cousin,Précis d'histoire monastique,Paris, Bloud et Gay,
1956. [c] D. Knowles, "Les sieclesmonastiques" , in D. Knowles e
D. Obolensky,NouvelleHistoire de l'Église, t. II: Le MoyenÂge (600-
1500), trad. fr. L. JézéquetParis,Le Seuit 1968, pp. ~23-40. [d] M.
PacautLes Ordres monastiques et religieux au MoyenAge, Paris, a-
than, 1970.
2. Fundadaem 910 na regiãode Mâcon,a ordemde Ouny, vi-
vendosob a regrade SãoBento, se desenvolvenos séculosXI e XII
110 O PODER PSJQUJÁTRICO

em simbiosecom a classesenho1ial, que lhe dá a maioria dos aba-


des e priores. Cf.: [a] R. P. Helyot et al., Dictionnaire des ordres reli -
gieux, t. I, col. 1002-1036.[b] U. Berliere, I.:Ordre monastique, cap. IV,
" Clun et la réforme m.onastique", pp. 168-97. [c] G. de Valous,
[1] Le Monachismeclunisien des origines au xvr siecle. V,:e intérieure
des monasteres et organisation de /'ordre, Paris ("Archives de la Fran-
ce monasbque" , t. 39-40), 2 vol.; 2? ed. rev. e aum., Paris, A. Picard,
1935, t. II : L'Ordre de Cluny, 1970; [2] verbete" Cluny", in Diction-
naire d'histoire et de géographieecclésiastiques, t. 13, org. C" 1 A. Bau-
drillart, Paris, Letouzeyet Ané, 1956, col. 35-174. [d] P. Cousin,Pré-
eis d'histoire monastique,p. 5. [e] AH. Bredero, "Cluny et Cí:teaux
au XII • siecle.Les originesde la controverse",StudiMedievali, 1971,
pp. 135-76.
3. Cister [Cí:teaux], fw1dadaem 21 de março de 1098 por Ro-
bert de Molesmes(1028-1111), se separada ordem de Cluny para
voltar à estrita observância da regra de São Bento, enfatizandoa
pobreza, o silêncio, o trabalho e a renúnciaao mundo. Cf.: [a] R.
P. Helyot et al., Dictionnaire des ordres religieux, t. I, col. 920-959.
[b] U. Berliere, "Les origines de l' ordre de Cí:teauxet l' ordre béné-
dictin au XII • siecle", Revued'histoire ecclésiastique,1900,pp. 448-71,
e 1901, pp. 253-90. [c] J. Besse, verbete"Cisterciens",in Dictionnaire
de théologie catlwlique, t. II, org. A Vacant, Paris, Letouzeyet Ané,
1905, col. 2532-2550.[d] R. Trilhe, verbete"Cí:teaux", in Dictionnaire
d'archéologiechrétienne et de liturgi e, t. IIl, org. F. Cabrol, Paris, Le-
touzey et Ané, 1913, col. 1779-1811. [e] U. Berliere, L'Ordre monas-
tique, pp. 168-97. [f] J.-B. Mahn, L'Ordre cistercienet son gouveme-
ment, des origines au milieu du XIII ' siecle (1098-1265),Paris, E. de
Boccard, 1945. [g] J.-M. Canivez,verbete"Cí:teaux(Ordre de)", in Dic-
Honnaire d'histoireet de géographieecclésiastiques, t. 12, org. cai A. Bau-
drillart, Paris, Letouzeye Ané, 1953, col. 874-997.[h] L. J. Lekai, Les
Moines blancs. Histoire de l'ordre cistercien,Paris, Le Seuil, 1957.
4. É em 1215 que se estabeleceem torno do cônegocastelha-
no Domingos de Gusmãouma comunidadede pregadoresevan-
gélicos que viviam sob a regra de SantoAgostinho e que recebe
em janeiro de 1217 do papaHonório III o nome de "Irmãos Pre-
gadores".Cf. : [a] R. P. Helyot et al., Dictionnaire des ordres religieux,,
t. I, col. 86-113. [b] G. R. Galbraith, The Constitutionof the Domini-
can Order (1216-1360),Manchester,University Press,1925. [c] M.-H .
Vicaire, [1] Histoire de saint Dominique, Paris, Éd. du Cerf, 1957, 2
vol.; [2] Saint Dominiqueet sesJreres, Paris, Éd. du Cerf, 1967. - Ver
AULA DE 28 DE NOVEMBRODE 1973 111

também: [a] P. Mandonnet,verbete"FreresPrêcheurs",in Diction-


naire de théologiecatholique, t. VI, org. A VacanteE. Mangenot,Pa-
ris, LetouzeyetAné,1905, reed., 1910, col. 863-924.[b] R. L. Oechs-
lin, verbete"Freres Prêcheurs",in Dicti onnairede spiritualit é ascéti-
que et mystique. Doctrine et histoire, t. V, org. A Rayez, Paris, Beau-
chesne,1964, col. 1422-1524. [c] A Duval e M.-H. Vicaire, verbete
"FreresPrêcheurs (Ordre des)", in Dictionnaire d'histoireet de géogra-
phie ecclésiastiques,t. 18 (citado), col. 1369-1426.
5. Ordem fundada em 529 no monte Cassinopor Bento de
Núrsia (480-547),que redige suaregraa partir de 534. Cf.: [a] R. P.
Helyot, verbete"Bénédictins (Ordre des)", in Dictionnaire des ar-
dres religieux, t. I, col. 416-430.[b] C. Butler, BenedictineMonachism:
Studiesin BenedictineLife ..., Londres, LongmansGreen & Co., 2~
ed., 1924 [Le Monachismebénédictin,trad. fr. C. Grolleau,Paris,J. de
Gigord, 1924]. [c] Cl. Jean-Nesmy,Saint Benoft et la vie monastique,
Paris, Le Seuil (col. "Maitres spirituels" 19), 1959. [d] R. Tschudy,
Les Bénédictins,Paris,Éd. Saint-Paul,1963.
6. Fundadaem 1534 por Inácio de Loyola (1491-1556) a fim
de lutar contra as heresias , a ordem dos jesuítas recebedo papa
Paulo III o nome de "Companhiade Jesus" por sua bula Regimini
Militantes Ecclesiae.Cf.: [a] R. P. Helyot et al., Dictionnaire des ordres
religieux, t. II, col. 628-671. [b] A Demersay, Histoire physique,éco-
nomiqueet poli tique du Paraguayet des établissements desjésuites, Pa-
ris, L. Hachette, 1860. [c] J. Brucker, La Compagniede ]ésus. Esquis-
serie son institut et de son histoire, 1521-1773,Paris,G. Beauchesne ,
1919. [d] H. Becher, Die Jesuiten. Gestaltund Geschichtedes Ordens,
Munique, Kõsel-Verlag, 1951. [e] A Guillermou, Les]ésuites , Paris,
PUF (col. " Que sais-je?"936), 1963.
7. As "ordens mendicantes " são organizadasno séculoXIII
com o objetivo de regenerara vida religiosa; fazendoprofissãode
viver apenasda caridadepública epraticandoa pobreza,dedicam-
se ao apostoladoe ao ensino.As quatro primeirasordensmendi-
cantessão: (a) a ordem dos dominicanos ; (b) a ordem dos francis-
canos; (c) a ordem doscarmelitas; (d) a ordem dos agostinianos.
(a) Os dominicanos, cf. supra, nota 4.
(b) Constituídaem 1209 por Franciscode Assis [Di Bemardo-
ne], a "Fraternidade dos Penitentes " de Assis, voltada para a pre-
gaçãoda penitência,se transformaem 1210 numa ordemreligiosa
que adotao nome de " IrmãosMenores" (minores: humildes) para
levar uma vida errante epobre. O.: [a] R. P. Helyot et al., Dictionnaire
O PODER PSIQUIÁTRICO
112

1cs ordrcs religieux, t. II, col. 326-354. [b] H . C. Lea, A Hi story of the
fnquisition of the Middle Ages,t. I, NovaYork, Harpers~nd Brothers,
1 7 pp. 243-304 [Hi stoire de l'Jnquisition au Moyen Age, trad. fr. S.
Rein~ch, t. I, cap.VI, " Les ordresmenctiants",Paris,Sociéténouvel-
le de librairie et d'édition, 1900,pp. 275-346]. [c] E. d'Alençon,ver-
b te " FreresMineur ", in Dictionnairede théologie catholique, t.VI (ci-
tado), col. 809-863. [d] P Gratien,Histoire de la fondation et de l'évolu -
tion de /'ordre des Freres Mineurs au ){VIII' siecle,Gembloux,J. Duculot,
1928. [e] F. de Ses evalle, Histoire généralede l'ordre de Saint-François,
Le Puy-en-Velay, Éd. de la Revue d'histoire fr~ciscaine, 2 vo~.,
1935-1937. [f] J. Moorman, A history of the FranciscanOrder from zts
Origins to the Year 1517, Oxford, ClarendonPress,1968.
(c) É em 1247 que o papaInocêncioIV faz entrar na família
dos " mencticantes " a ordem da Bem-Aventurada Virgem Maria do
Monte Carmelo.Sobreos carmelitas,ordemfundadaem 1185 por
Bertoldo de Calábria,cf.: [a] R. P. Helyot et ai., Dictionnaire des ar-
dres religieux, t. I, col. 667-705. [b] B. Zimrnerman,verbete"Carrnes
(Ordre des)" , in Dictionnaire de théologie catholique, t. II (cit.), col.
1776-1792.
(d) O papaInocêncioIV é quemdecidereunir numasó comu-
nidadeos eremitasdaToscanano âmbito da ordemdos agostinianos.
O. J.Besse,verbete"Augustin", in Dictionnairede théologiecatholique,
t. I, org. A.Vacant, Paris,Letouzeyet Ané, 1903, col. 2472-2483.So-
bre as "ordensmendicantes"em geral,cf. (além do capítuloque lhes
consagraH. C. Lea, A History of theInquisition..., pp. 275-346[Histoi-
rede l'Inquisition ..., trad. cit., t. I, pp. 458-9]): [a] F.Vernet,Les Ordres
mendiants, Paris, Bloud et Gay (" Bibliotheque des sciencesreli-
gieuses"54), 1933. [b] J. Le Goff, "Ordres mendiantset urbanisa-
tion dansla Francemédiévale",AnnalesESC,1970, n? 5: Histoire et
Urbanisation, pp. 924-65. M. Foucault retorna às ordens mendi-
cantesna Idade Média no âmbito de uma análisedo "cinismo"; cf.
Curso (cit.) do ano 1983-1984:"O governo de si e dos outros. A
coragemda verdade",aula de 29 de fevereiro de 1984.
8. Cf. supra, pp. 74-5, nota 4.
9. JanVan Ruysbroek(1294-1381)funda em 1343 uma comu-
nidadeem Groenendaal,perto de Bruxelas,que ele transformaem
~arço de 1350 nu~a ordem religiosa vivendo sob a regra agosti-
mana, consagradaa luta contra as heresiase o relaxamentodos
costumesda Igreja. Cf.: [a] F. Hermans, Ruysbroek l'Admírable et
son école,Paris,Fayard,1958. [b] J. Orcibal,Jean de la Croix et les mystí-
AULA DE 28 DE NOVEMBRODE 1973 113

quesrhéno-flamands,Paris,Descléede Brouwer,1966. [c] L. Cognet,


Introduction au.x mystiquesrhéno-flamands, op. cít. (supra, pp. 74-5
nota 4). [d] A. Koyré, Mystiques, spirituels, alchimistes du XVI' siecle
allemand,Paris,Gallimard, 1971 (1~ ed., 1955).
10. Um dos traçoscaracterísticosdas escolasdos "Irmãos da
Vida Comum" é a distribuição dos alunos em decúrias, tendo à
suafrente um decuriãoencarregadode vigiar a condutadestes.Cf.
M. J. Gaufres,"Histoire du plan d'étudesprotestant", verb. cit. (su-
pra, p. 76, nota 13).
11. "Em parte algumaa impressãode ordem e a ênfasereli-
giosaaparecemmelhor do que no empregodo tempo.De manhã
cedo,os habitantes vão à missa, depoisas criançasvão à escola,os
adultos para as oficinas ou a lavoura... Terminado o trabalho,co-
meçam os exercíciosreligiosos: catecismo,rosário, preces.O fim
do dia é livre, deixado para o passeioe os esportes.Um toque de
recolherassinalao início da noite... Esseregime tema ver ao mes-
mo tempo com o quartel e o mosteiro" (L. Baudin, Une théocratie
socialiste: l'État jésuitedu Paraguay,Paris, M. -T. Génin, 1962, p. 23).
Cf.: [a] L. A. Muratori, Il Crístianesimofeiice nelle missionide' padrí
della compagniadi Gesunel Paraguai,Veneza,G. Pasquali,1743 [Re-
lation des missionsdu Paraguay,trad. fr. P. Lambert, Paris, Bordellet,
1826, pp. 156-7]. [b] A Demersay,Histoire [. ..] du Paraguay et des
établissements desjésuites,op. cít. [c] J. Brucker, Le Gouvernem ent des
jésuitesau Paraguay,Paris,1880. [d] M. Fassbinder , Der ']esuitenstaat"
in Paraguay,Halle, M. Niemeyer,1926. [e] C. Lugon, La République
communistechrétiennedes Guaranis, Paris, Éditions Ouvrieres (col.
"Économieet Humanisme"), 1949.M. Foucaultjá serefereao tema
em 14 de março de 1967, em sua conferênciano Cercle d'études
architecturales:"Des espacesautres", DE, IV, n~360, p. 761.
12. Congregação de padrese clérigosfundadano séculoXVI por
Césarde Bus (1544-1607), que se estabeleceem 1593 em Avignon.
Inscrevendo-sena correntede uma renovaçãodo ensinodo cate-
cismo, ela se desenvolvenos séculosXVII e XVIII , voltando-separa
o ensinonos colégios.Cf. R. P. Helyot et al., Dictionnaire des ordres
religi.eu.x, op. cit., t. II, col. 46-74.
13. Surveiller et punir, op. cit., parte III , cap. I, pp. 137-8, 143,
151-7.
14. A partir de 1781, o operáriodeve possuiruma " caderneta
"
ou "caderno" que deve recebero visto das autoridadesadminis-
trativas quandoele se deslocae que deve apresentarao ser con-
114 O PODER PSIQUIÂTRICO

tratado.Reinstituídapelo consulado,a cadernetasó é abolida em


1890. Cf.: [a] M . Sauzet, Le Livret obligatoire des ouvriers, Paris, F.
Pichon, 1890. [b] G. Bourgin, "Contribution à l'histoire du placen1ent
et du livret en France", Revuepolitique et parlementaire,t. LXXI, ja-
neiro-marçode 1912, pp. 117-8. [c] S. Kaplan, " Réflexions sur la po-
lice du monde du travail (1700-1815)",Revuehistorique, ano 103,
n? 529, janeiro-marçode 1979, pp. 17-77. [d] E. Dolleanse G. De-
hove, Histoire du travai/ en France. Mouvementouvrier et législati on
sacia/e, Paris, Domat-Montchrestien,2 vol., 1953-1955.Em seu
curso do College de France,ano 1972-1973,"A sociedadepuniti-
va", M. Foucaultapresenta,no dia 14 de março de 1973, a cader-
neta operáriacomo "um mecanismode penalizaçãoda existência
infrajudiciária".
15. M. Foucault,Les Mots et les Choses.Une archéologie des scien-
ces humaines,cap.V, " Classer", Paris, Gallimard ("Bibliotheque des
sciences humaines"), 1966, pp. 137-76. [Trad. bras.As palavrase as
coisas,São Paulo, Martins Fontes,8~ ed., 1997.]
16. Cf. supra, p. 75, nota 5.
17. Num terreno adquirido em 1795 em Pentonville por Je-
remy Benthamé construída, de 1816 a 1821, por Harvey, Busby e
Williams, uma penitenciáriado Estadosegundouma arquitetura
concêntricade seispentágonostendoao centroum hexágonoque
abrigavao capelão,os inspetorese os empregados.A prisão foi
demolidaem 1903.
18. Em decorrênciade um concursoparaa construçãode uma
prisão-modelo,cuja disposição,de acordocom os termosda circu-
lar de 24 de fevereiro de 1825, fosse " tal que, a partir de um pon-
to central ou de uma galeriainterna, a vigilância de todas as par-
tes da prisão pudesseser exercidapor uma só pessoaou duas,no
máximo" (Ch. Lucas,Du systemepénitentiaireen Europeet aux États-
Unis, t. I, Paris, Bossange,1828, p. CXIII), a "Petite Roquette" ou
"Casacentralde educaçãocorrecional"é construídaem 1827 com
basenum projeto propostopor Lebas. Inauguradaem 1836, é re-
servadaaosjovensdetentosaté 1865. Cf.: [a] N. Barbaroux,J. Brous-
sard, M. Hamoniaux,'Tévolution historique de la Petite Roquet-
te", Revue"Rééducation", n~ 191, maio de 1967. [b] H. Gaillac, Les
Maisons de correction (1830-1945), Paris, Éd. Cujas, 1971, pp. 61-6.
[c] J. Gillet, Recherchessur la Petite Roquette, Paris, [s.n.], 1975.
19. J. Bentham,Le Panoptique,trad. cit., p. 166 (grifado no ori-
ginal).
AULA DE 28 DE NOVEMBRO DE 1973 115

20.Trata-sede"dar à açãodo poder uma força iguaJmente her-


cúlea e inelutável" (ibid ., p. 160).
21. Ibid., prefácio, p. 95.
22. Ibid ., Carta XXI , Escolas: "Essa espécie de fraude que se
chamaem Westminsterde cola, vício considerado até então ine-
rente à escola,não se introduzirá aqui" (p. 158, grifos no original).
23. Ibid., CartaXVIII, Manufaturas, p. 150.
24. Ibid., CartaVII, Casaspenitenciárias de segurança.Deten-
ção de segurança,p. 115.
25. Ibid., CartaXIX, Casas de loucos, p. 152.
26. Ibid., prefácio,pp. 7-8.
27. Ibid., CartaXXI, Escolas,p. 164.
28. Alusão ao projeto de Condillac de procedera uma dedu-
ção da ordem do sabera partir da sensaçã o, matéria primeira de
todas as elaboraçõesdo espírito humano.Cf. Éti enne Bonnot de
Condillac (1715-1780), [1] Essai sur l'origi.ne des connaissanceshu-
maines,ouvrageou l' on réduit à un seu! príncipe tout ce qui concerne
l'entendementhumain, Paris, P. Mortier, 1746; [2] Traité des sensa-
tions, Paris,De Bure, 1754, 2 vol. (reed., Paris, Fayard,col. " Corpus
des oeuvresde philosophieen languefrançaise", 1984).M. Foucault
refere-sea ele numa entrevista com C. Bonnefoy em junho de
1966: "L'homme est-il mort?" (DE, I, n~39, p. 542), e em Les Mots
et les Choses,op. cit., pp. 74-7.
29. Essaspalavrasatribuídaspor Benthama Helvétius na
verdade correspondemao título de um capítulo, "L' éducation
peut tout", da obra póstumade Claudre-AdrienH elvétius (1715-
1771): De l'homme, de sesfacultés intell ectuell es et de son éducation,
publicado pelo príncipe Gelitzin, t. III, Amsterdam, [s.n.], 1774,
p. 153.
30. Pierre Carlet de Chamblainde Marivaux (1688-1763), La
Dispute,comédie en un acte et en prose, ou pour savoir qui de l'homme
ou de la femme donne naissance à l'inconstance, le Prince et Hermiane
vont épier la rencontre de deux garçons et de deuxfi ll es élevésdqmis
leur enfance dans, l'isolement d'uneforêt, P~is, J. Clo\1si~r, 1747. .
31. Alusão a obra de Ernst Kantorowicz, The Kmgs Two Bod1es,
op. cit.
32. A Penot,Les Cités ouvrieres de Mulhouse et des départements
du Haut-Rhin,Mulhouse, L. Bader, 1867. M . Foucaultvolta ao tema
em sua conversacom J.-P. Barou e M. Perrot, "L'oeil du pouvoir",
in J. Bentham, Le Panoptique, trad. cit., p. 12.
O PODER PSIQWÁTRI O
116

33. O.: [a] J.-B. Monfalcon e J.-F. Tem1e,Histoíre desenfantstrou-


ué, Paris, J.-B. Bailliere, 1836. [b] E. Parentd Curzon, Études sur les
?njants trouvés au point de vue de la législation, de la morale et de
1'économiepolitique, Poitiers , H . Oudin, 1847. [c] H . J. B. Davenne,
De l'organisation et du régimedes secourspublics en France, t. I, Pa1is,
P. Dupont, 1865. [d] L. Lallemand, Histoire des enfants abandonnés
?t délaissés.Étudessur la protectionde l'enfance,Paiis, Picardet Guil -
laumin, 1885. [e] J. Bouzon, Cent Ans de lutte sociale. La législation
,Je /'enfancede 1789 à 1894, Paris, Guillaumin, 1894. [f] CL Rollet,
Enfanceabandonnée:vicieux, insoumis, vagabonds.Coloniesagrícoles,
t§colesde réformeet de préservation,Clermont-Ferrand,G. Mont-Louis,
1899. [g] H. Gaillac, Les Maisonsde correctíon, op. cit. Michel Foucault
se refere ao tema em Surveílleret punir, op. cit., pp. 304-5.
34. A lei de 10 de janeiro de 1849 organizaa AssistênciaPú-
blica de Paris sob a direção do prefeito departamentaldo Senae
do ministro do Interior. Ela faz do diretor dessaadministraçãoo
tutor dascriançasencontradas,abandonadas e órfãs. Cf.: [a] Ad. de
Watterwille, Législatíoncharítable, ou Recueíl des [ois arrêtés, décrets
qui régissentles établissementsde bienfaisance(1790-1874),Paris,A.
Hévis, 3 vol., 1863-1874.[b] C. J.Viala,Assístance de l'enfance pauvre
et abandonnée, ímes,impr. de Chastanier,1892. [c] F. Dreyfus, L:As-
sistancesousla SecondeRépublique(1848-1851),Paris,E. Cornély,1907.
[d] J. Dehaussy , L'Assistancepublique à l'enfance. Les enfantsaban-
donnés,Paris,Librarie du Recueil Sirey, 1951.
35. Fundadaem 22 de janeiro de 1840 pelo magistradoFré-
déric AugusteDemetz(1796-1873),a colônia de Mettray, nas pro-
ximidadesde Tours, é consagradaàs criançasabsolvidaspor irres-
ponsabilidadee às criançasdetidas devido à correçãopaterna. Cf.:
[a] F. A. Demetz, Fondation d'une colonie agricole dejeunesdétenus à
Mettray, Paris,Duprat,1839. [b] A. Cochin, Notice sur Mettray, Paris,
Claye etTaillefer,1847. [c] E. Ducpetiaux, [1] Coloniesagricoles, éco-
les rurales et écoles de réforme pour les índígents,les mendiantset les
vagabonds,et spécialementpour les enfants des deux sexes,en Suisse,
en Allemagne,en France, en Angleterre,dans les Pays-Bas et en Belgique
(relatório ao ministro da Justiça), Bruxelas,impr. T. Lesigne,1851,
pp. 50-65; [2] La Coloniede Mettray, Batignolles, De Hennuyer,1856;
(3] Notice sur la colonie agricole de Mettray,Tours, Ladeveze,1861. [d]
H. Gaillac, Les Maisons de correctíon, op. cit., pp. 80-5. M. Foucault
retorna ao tema emSurveílleret punir, op. cit., pp. 300-3.
AULA DE 5 DE DEZEMBRO DE 1973

O asilo ea famz1ía. Da interdição ao internamento.A rup-


tura entre o asilo e a famz1ía. - O asilo, uma máquinade curar.
-Tipologia dos "aparelhoscorporais". - O louco ea criança. -As
casasde saúde.- Dispositivosdisciplinares e poderfamiliar.

Procureidestacar o embasamento disciplinar do asilo,


mostrara vocêscomo uma espéciede trama disciplinar co-
meçaa envolvera sociedadea partir do séculoXVIII, quan-
do vemos figurar certo número de esquemasdisciplinares
específicos,como o exército, a escola,a oficina, etc., esque-
masde que o Panopticonde Benthamme parecesera forma-
lização,em todo caso,se assimpodemosdizer, o desenhoao
mesmotempo sistemáticoe depurado.
Agora, eu gostaria deabordaro funcionamentodo asi-
lo, funcionamentomais específicoporqueme pareceque o
asilo tem seus traços particulares.Por um lado, [o] de ter
uma relação,e uma relaçãoprivilegiada,difícil aliás, proble-
mática, com a família. Por outro, o asilo como sistemadis-
ciplinar é igualmenteum lugar de formaçãode certo tipo de
discursode verdade.Não querodizer de modo algum que os
outros sistemas disciplinaresnão dão lugar a discursosde
verdadee não têm relaçãocom a familia, mas creio que, no
caso da instituição e da disciplina asilares,a relaçãocom a
família é muito específica,muito sobrecarregada; aliás, ela
demoroumuito a se elaborare não paroude se transformar
ao longo do séculoXIX; por outro lado,o discursode verdade
tambémé um discursoespecífico.
118 O PODER PSIQUIÁTRICO

Enfin1, terceiro traço característico,é que, ao que pare-


ce - é ahipótesee o jogo que eu gostariade jogar- , essedis-
curso de verdadeque se forma no asilo e essarelaçãocom
a fa1nilia se an1parammutua1nente,se apóian1um no outro
e vão, finalmente, dar lugar a certodiscursopsiquiátrico,que
se darácomo discursode verdadee que terá essencialinente
por objeto, por alvo, por can1pode referência,a fainília, os per-
sonagensfamiliares, os processosfamiliares, etc. O pro-
blemaestáem sabercomo o discursopsiquiátrico,o discur-
so que nasceportantodo exercíciodo poderpsiquiátricovai
poderse ton1aro discursoda fan1ilia, o discursoverdadeiroda
familia, o discursoverdadeirosobrea fanúlia.
Então, hoje, o problemado asilo e a família.
Creio que se deve partir do asilo sem fam11ia, do asilo
em ruptur§l, e em ruptura às vezesviolenta e explícita com
a fan1ilia. E a situaçãoinicial, é a situaçãoque encontramos
naquelaprotopsiquiatriade que Pinel e, melhor ainda que
ele, Fodérée sobretudoEsquirol foram os representantes,
os fundadores.
Do asilo em ruptura com a farru1ia tomarei três teste-
munhos.O primeiro é a própria forma jurídica do interna-
mentopsiquiátrico,e isso essencialmente em torno dessalei
de 1838,de que aindanão saímosporqueé ela que,em linhas
gerais, continuaregendo,com certo númerode modificações,
o internamentoasilar. Parece-meque essalei deve ser in-
terpretada,dadaa épocaem que ela se situa, como ruptura
e como destituiçãodos direitos da fan1ilia em relaçãoao lou -
co. De fato, antesda lei de 1838, o procedimentoessencial,
o elementojurídico fundamentalque possibilitavaa inves-
tidura sobreo louco, a caracterizaçãoe a designaçãodo seu
estatutode louco, era essencialmente a interdição.
E o que era a interdição?Um procedimentojurídico que,
em primeiro lugar, era e devia ser pedido pela família; em
segundolugar, uma medidade ordem judiciária, isto é, era
um juiz que a decidiaa pedido da família, mastambémde-
pois da consultaobrigatóriaaosmembrosda família; enfim,
em terceirolugar, esseprocedimentode interdiçãotinha por
AULA DE 5 DE DEZEMBRO DE 1973 119

efeito jurídico transferir os direitos civis do indivíduo assim


interditadoa um conselhode familia e fazia o alienadocair
sob o regime da curatela.Era portanto, se assim podemos
dizer, um episódiodo direito familiar validado por procedi-
mentosjudiciários1. Isso era o procedimentode interdição,
o procedimentofundamental:o louco era essencialmente
aqueleque erainterditado,e reconhecia-sealguémcomo dis-
sipador,pródigo,louco, etc., pela designaçãodo seuestatuto,
que era o de ser um interditado.
Quantoao internamento,ocorreudurantetoda a épo-
ca clássica,de maneiraque eu ia dizendoregular, mas,jus-
tamente,não era de maneiraregular,ao contrário,era de ma-
neira irregular.Vale dizer que o internamentopodia intervir
seja após o procedimentode interdição, seja independen-
tementedele,maserasempre,naquelemomento,um interna-
mento de fato, obtido pela familia que solicitava a interven-
ção seja do tenentede polícia, seja do intendente,etc., ou
ainda um internamentoque era decidido pelo poder real
ou pelo parlamento,quandoalguémhavia cometidoumair-
regularidade,uma infração ou um crime qualquere que se
consideravaque, em vez de levá-lo à justiça,eramelhor con-
finá-lo. O internamentoera, portanto,um procedimentode
origem bastanteirregular e que circundavaa interdição, que
podia eventualmentesubstituira interdição,masque não ti-
nha estatutojudiciário homogêneoe fundamentalnessaes-
pécie de investidurasobreo louco.
A investidurasobreo louco era portantoa interdição, e
a interdiçãoera um episódiodo direito familiar validadopelo
procedimentojudiciário. Passopor cima de certo númerode
episódiosque já anunciama lei de 1838: a lei de agostode
1790, por exemplo,que dá à autoridademunicipal certo nú-
mero de direitos2 .
A lei de 1838, a meu ver, consisteem duascoisasfun-
damentais.A primeira é fazer o internamentopassaracima
da interdição.Ou seja,agoraa peçaessencialna investidu-
ra sobreo louco toma-se o inten1amento,a interdiçãosó vem
se acrescentarposteriormentecorno suplementojudiciário
O PODER PSIQUIÁTRICO
120

ev: ntual, ca o eja necessária,quandoa situaçãojur~dica, os


direitos civis do indivíduo possamser con1prometidosou
quando,ao contrário, ele possacompromete:a si~a5ão~a
ua fan1ília pelos direitos que posslll. Mas a mterd1çaona_o
é mais que uma peçade acompanhamento de um pr~ced1-
mento fundamental,que é agorao procedimentode mter-
namento.
Apreende-se pelo internél!flento; isto é,_ apreende - se
pela capturado próprio corpo. E umaverdaderraca1:_tura~e
corpo que é agoraa peçajurídica fundam~nt~,e na~_mais
aqueladestituiçãodos direitos civis ou dos direitos familiares.
Capturade corpo que é assegurada por queme como?Cla-
ro, na maior parte do tempo, a pedido da familia, mas não
necessariamente. O internamento,na lei de 1838, pode per-
feitainenteserdecidido pelaautoridadeprefeitoral,semque
ela tenhasido acionadapela familia. Em todo caso,tenhaou
não sido acionadapela familia, é semprea autoridadepre-
feitoral, coadjuvadapela autoridade médica, que em última
instânciadevedecidir sobreo internamentode alguém.Uma
pessoachegaa um hospitalpúblico, a umaclínica particular,
com o diagnósticoou a presunçãode loucura; ela só seráefe-
tivamente,estatutariamente designadae caracterizadacomo
louca quando [for] feita uma perícia por alguém que terá
recebido,paratanto, qualificaçãoda autoridadecivil e quan-
do essaautoridadecivil, isto é, a própria autoridadeprefeito-
ral, assimdecidir.Vale dizer que o louco agorajá não aparece,
já não se diferencia,já não adquire estatutoem relaçãoao
c~pofamiliar, mas no interior de um campoque podemos
dizer técnico-administrativo,ou, se preferirem,médico-esta-
tal, qu~ é_ ~01:stituídopelo ~~oplamentodo sabere do po-
9-er ps1qwatr1cos,e do mquentoe do poderadministrativos.
E esseacoplamentoque designaráo louco como louco e a
f~ia passaa ter em relaçãoao louco apenasum pode~re-
lativamentelimitado.
. O louco emergeagora como adversáriosocial, como
pengopara a ~ociedad~,~ não rna_-is corno o indivíduo que
pode por em nsco os d1re1tos,as nquezas,os privilégios de
AULA DE 5 DE DEZEMBRODE 1973 121

umafamília. É o inimigo social que é designadopelo meca-


nismo dessalei de 1838; e, com isso,pode-sedizer que a famí-
lia sevê destituída.Direi que, quandolemosas justificativas
que foram apresentadas paraessalei de 1838 no momento
em que foi votada,ou os comentáriosque foram feitos de-
pois, semprese diz que foi necessáriodar essapreeminên-
eia ao internamentosobrea interdição,ao podercientífico-
estatalsobreo poderfamiliar, paraprotegerao mesmotem-
po avida e os direitos do círculo pessoal.De fato, durantetodo
o tempoem que o longo, pesado,difícil procedimentoda in-
terdição era a peça essencial,assenhorear -se de um loucc
era, no fim das contas,algo relativamentedifícil; e, durante
todo esseperíodo,o louco podia efetivamenterealizarseu~
estragosem seu círculo pessoalpróprio. Ele era um perigc
paraseucírculo pessoale, contraesseperigo,seucírculo pes-
soal direto era expostoàs suasfúrias. Era precisoportanto
protegeressecírculo pessoal,dondea necessidade de prio-
rizar o procedimentorápido do internamentoem relaçãoao
procedimentolongo da interdição.
E, por outro lado, argumenta-se que dar demasiadaim-
portânciaà interdição,fazer da interdiçãoa peçamestra, era
abrir caminhoparatodasas intrigas,todosos conflitos de in-
teressesfamiliares.Aqui tambémera precisoprotegeros di-
reitos da família restrita e próxima - ascendentes e descen-
dent~s- contra as cobiçasda família ampla.
E verdadee, em certosentido,foi assimmesmoquefun-
cionou a lei de 1838: destituir a família em sentido amplo
em benefício e no interesseda fanúlia próxima. Mas isto,
justamente,caracterizatoda uma sériede processosque va-
mos encontrarao longo do séculoXIX e que não valem ape-
nas para os loucos, mas tambémpara a pedagogia , para a
delinqüência,etc*.

* O manuscrito acrescenta: "Na verdade, assistimos aqui a um


processoque vamos encontrar ao longo de toda a história do poder psi-
quiátrico."
122 O PODER PSIQUI.ATRJ O

É que o poderde Estadoou, digamos, certo podertéc-


nico-estatalentra de certo n1odo como uma cunha no sis-
temaa111ploda familia, apodera-seem seupróprio nomede
certo número de poderesque eran1os da família ampliada
e apóia-se,paraexerceressepoderde que acabade se apro-
priar, numa entidade,não vou dizer absolutamentenova,
mas uma entidaderecentementedemarcada,reforçada,in-
tensificada,que vai ser a pequenacélula familiar.
A pequenacélula fainiliar constituídapelos ascenden -
tes e descendentes é uma espéciede zonade intensificação
dentro dessagrandefamília que, por sua vez, é destituída,
curto-circuitada. E é opoderde Estadoou, no caso,o poder
técnico-estatalque vai isolar e se apoiarnessafam.l1ia curta,
celular,intensa,que é o efeito da incidênciade um podertéc-
nico-estatalsobrea grandefamilia assimdestituída.Eis, creio,
o que se podedizer sobreo mecéll1Ísmoda lei de 1838.Vocês
estãovendo que, na medidaem que todos os grandesasi-
los funcionaramjá faz cento e cinqüentaanosa partir dessa
forma jurídica, é importantenotarque estanãofavoreceos po-
deresfamiliares; ao contrário,ela destitui a família dos seus
poderestradicionais.Juridicamente,portanto,rupturaentre
o asilo e a família.
Sevocêstomarema tática médica,isto é, a maneirames-
ma como as coisasse desenrolamno asilo, o que vão ver?
Primeiro princípio, que é fundamentalmenteestabele-
cido e que vocêsvão encontrardurantepraticamentetoda
a vida, eu ia dizendoserena,da disciplina psiquiátrica, istoé,
até o séculoXX: o princípio, ou antes,um preceito,uma regra
de savoir-faire, que é o de que nuncase pode curar um alie-
nado na família. O meio familiar é absolutamenteincom-
patível com a gestãode qualqueraçãoterapêutica.
Encontramoscentenas deformulaçõesdesseprincípio
atravésde todo o séculoXIX. Eu lhes darei uma apenas,a tí-
tulo de referência~de exemplo,porqueé antiga e, de certo
modo, fundadora.E um texto de Fodéré,datadode 1817,em
que ele diz que quemé admitido num asilo "entranum novo
mundono qual deveestarinteiramenteseparado dos paren-
AULA DE 5 DE DEZEMBRODE 1973 123

tes,amigose conhecidos"3 • E um texto, mais tardio, de 1857,


que cito porquevai nos servir de referencial(temosaí uma
clivagem importante): "Aos primeiros albores da loucura,
separemo doenteda suafamilia, dos seusamigose do seu
lar. Ponham-no imediatamentesob a tutela da arte."4 Logo,
nuncase pode curar um alienadona suafarru1ia.
Por outro lado, em todo o tempo da terapia,isto é, da
operaçãomédicaque develevar à cura, todo contatocom a
família é perturbador ; é perigoso;é preciso,em toda a me-
dida do possível,evitá-lo. É o princípio, se assimpodemos
dizer, do isolamentoou - porque essapalavra,isolamento,é
em si mesmaperigosa,parece indicar que o doentedeve fi -
car sozinho,quandonão é assimque ele é tratadono asilo-,
melhor dizendo,o princípio do mundo estrangeiro.Em rela-
ção ao espaçofamiliar, o que é desenhado pelo poderdisci-
plinar do asilo deveser absolutamenteestrangeiro 5
• Por quê?

Indico as razõesaqui simplesmentea título de referencial.


Algumassãoextremamentebanais,outrasbastanteinteres-
santese terão, por transformaçõessucessivas,certo destino
na história do poderpsiquiátrico.
Primeirarazão:é o princípio da distração, princípioim-
portante sob sua aparentebanalidade.Um louco, para se
curar, nuncadeve pensarna sua loucura6 • É precisoagir de
sorte que sualoucura nuncalhe estejapresenteao espírito,
que ela esteja,tanto quantopossível,apagadado seudiscur-
so, que não possaser vista por testemunhas.Escondersua
loucura, não dizê-la, afastá-lado seuespírito,pensarem ou -
tra coisa: princípio da não-associação , se assimpodemosdi-
zer, princípio da dissociação.
É um dos grandesesquemasda práticapsiquiátricanes-
sa época,até o momentoem que, ao contrário, o princípio
da associaçãoé que triunfará. E quandodigo princípio da
associaçãonão é em Freud que penso,mas já em Charcot,
isto é, na irrupção da histeria,pois é a histeria que vai ser o
grandeponto de clivagemem toda essahistória. Logo, se a
familia deveestar ausente,se o indivíduo louco devesercolo-
124 O PODER PSIQUIÂTRJ O

cadanum mundoabsolutan1ente estrangeiro,é por causado


princípio de distração.
Segundoprincípio - este,então,tambén1muito banal,
mas interessantepela história que terá-, é que a fan1ília é
logo identificada,indicada,con10 sendo,se não exata1nente
a causa,pelo menosa ocasiãoda alienação.Ou seja, o que
vai precipitar o episódio da loucura são as contrariedades,
as preocupações financeiras,o ciúme ai11oroso,as tristezas,
as separações, a núna,a miséria,etc.; tudo isso é o deflagra-
dor da loucurae o que não vai pararde alirnentá-la7 • Logo,
é em relaçãoa essesuportepermanenteda loucura,que é a
familia, é paracurto-circuitá-loque é precisosepararo doen-
te da sua família.
Terceirarazão que é dada e que é, por sua vez, muito
interessante.A noçãointroduzidapor Esqu.irol e que vai se
esfarelar,desaparecer , se bem que aindaa encontremospor
muito tempo, sem que o termo [ ... *] seja retomado,é essa
estranhanoção de "suspeita sintomática"ª [ ... **]. Esqui.rol
diz que o doentemental,e essencialmente maníaco,é aco-
metido de urna "suspeita sintomática".Isso quer dizer que
a alienaçãomentalé um processono cursodo qual o indiví-
duo vai mudar de humor: suassensações são alteradas,ele
experimentanovas impressões,já não vê as coisas exata-
mente,já não percebeas fisionomias,já não ouve as palavras
exatamenteda mesmamaneira;àsvezes atéouvevozesque
não têm suportereal, ou vê imagensque não sãoexatamen-
te imagensperceptivas:alucinações.O alienadonão com-
preendea causade todas essasmudançasem seu corpo, e
isso por duasrazões:por um lado, ele não sabeque estálou-
co e, por outro, não conheceos mecanismosda loucura.
Não compreendendoa causade todas essastransfor-
mações,ele vai buscara origem delasfora de si mesmo,fora
do seucorpo e fora da sualoucura; ou seja,vai buscara ori-

* Gravação: 11de Esquirol".


** Gravação: "que Esquirol introduz".
AULA DE 5 DE DEZEMBRODE 1973 125

gem delas no seu círculo pessoal.Assim, ele vai atrelar,não


exatamentea estranheza das suasimpressões,mas a causa
dessaestranhezaa tudo o que o circundae, com isso,vai con-
siderarque aorigem de todo essemal-estarnadamais é que
a malevolência dos que o circundam,e se tomaráperseguido.
A perseguição, o que Esquirol chamavade "suspeitasinto-
mática", é a espéciede fundo sobreo qual vão se desemolar
as relaçõesdo doente com seucírculo pessoal.Estáclaro que,
se se quiser romper essasuspeitasintomática,isto é, se se
quiser fazer o doente tomar consciênciade que estádoen-
te e de que a estranhezadassuassensações vem unicamen-
te do seumal, vai ser precis o desconectarsua existênciade
todos os personagensque o circundarame que são marca-
dos agora,a partir da origem da sua loucura, por essasus-
peita sintomática.
Enfim, quarta razão que é alegada pelospsiquiatraspara
explicaressanecessidade da ruptura com a família, é que exis-
tem no interior de toda família relações de poder-que cha-
marei de soberania, mas poucoimporta-, que sãoem si in-
compatív eis com a cura da loucura, por duasrazões. A pri-
meira é que essasrelaçõesde poder, em si, alimentam a
loucura.Que um pai possaexercersuavontadetirânica so-
bre os filho s e sobre seu círculo pessoalé algo que pertence
à trama de poder própria da família, é evidentementeo que
vai reforçar o delírio de grandezado pai. Que uma mulher,
em função das relaçõesde poder própriasdo espaçofami-
liar, possalegitimamente fazervaler seuscaprichose impô-los
ao seu marido, é algo que pertenceao tipo de poderpróprio
da família, mas que evidentementesó podealimentara lou-
cura da mulher. Por conseguinte,é precisoprivar os indiví-
duos da situaçãode poder,dos pontosde apoio de poderque
sãoseus na suafamília. Outrarazão,claro, é que o podermé-
dico em si é de um tipo diferente do poder familiar e que,
se se quiser que o poderdo médico se exerçaefetivamente ,
atue bem sobre o doente,é evidentementenecessáriosus-
pender tudo o que são configurações,pontos de apoio, in-
termediaçõespróprios do poderfan1iliar.
126 O PODER PSIQUIÀTRICO

Eis, em linhas gerais, as quatro razõesque encontra-


mos na psiquiahiada épocaparaexplicara ruptura terapêu-
tica necessáriaentre o asilo e a familia. E vocêsencontranl
o tempotodo históriasmuito edifican_tes,em quese"co1:taque,
no próprio decursode um procedimentoterapeuhcoque
estavadandoresultado,o menorcontatocom a família logo
perturbavatudo. ..
Assim, Berthier,em seutratadode Medrem.amental(Ber-
thier tinha sido aluno de Girard de Cailleux e trabalhadono
hospital de Auxerre9), conta uma série de históriaspavoro-
sasde pessoasque estavamno caminhoda cura e nasquais
o contatocom a familia provocoua catástrofe."M.B., ecle-
siásticodos mais respeitáveise quesemprehaviavivido numa
prática austera,é tomado,sem causaapreciável,de mono-
mania. Por medida de precauçãoe de conveniência,proi-
biu-sea entradano asilo de todosos seusconhecidos.Ape-
sardesseconselhoesclarecido,seu pai penetraaté onde ele
está.O doente,que melhorava,fica imediatamentepior: seu
delírio reveste-sede diversasformas. Ele tem alucinações,
larga do breviário, insulta, blasfemae é presade um delírio
erótico-orgulhoso." 10

Outra história, melhor ainda: "Madame S. cheganum


estadodeplorávelde uma casade saúdedo departamento
do Ródano,acometidade melancolia; com excitaçõesma-
níacascausadaspor mágoase revesesda fortuna. Depoisde
dois anos de cuidados assíduos,obtém-seuma melhora
real: a convalescença se aproxima.Seufilho, encantadocom
a mudança,manifestao desejode vê-la. O médico-chefecon-
corda, recomendandoporém que sua estadaseja de curta
duração. Orapaz,não se dandocontada importânciada re-
comendação,infringe as ordens.Passadosdois dias, a agi-
taçãorenasce..." 11
Ah, não era essaa história que eu queria contar para
v?cês... Era a históriade um pai de familia que estavano hos-
pital de Auxerre e acaminhoda cura; eis que ele avistao fi-
lh? atravésde um vidro; então,tomadopor um frenético de-
seio de ver o filho, quebraa vidraça.Após a quebrado vidro
AULA DE 5 DE DEZEMBRO DE 1973 127

que separavao asilo do mundoexterior,que o separavado fi-


lho, veio a catástrofe:recaiu em seudelírio. O contatocom a
família havia precipitadoimediatamenteo processo 12

Logo, a entradano asilo, a vida no asilo implicam ne-


cessariamente a ruptura com a família.
Se olharmosagorao que acontecedepois de efetuada
a entrada,depoisde executadoesserito de purificaçãoe rup-
tura, se olharmoscomo o asilo deveria curar, como a cura
deveriase dar no asilo, percebemosque, aí também,se está
extraordinariamentelonge de tudo o que poderiaser a fa-
milia como operadorde cura.A família nuncadeveestaren-
volvida; mais ainda,nuncase deve apoiar-seem elementos,
disposições,estruturasque poderiam, de urna maneiraou de
outra, evocara família, para operara cura.
Esquirol e a maioria dos seussucessores,até os anos
1860, é que vão nos servir de ponto de articulação. Duran-
te esseprimeiro episódio da história do poder psiquiátri-
co, o que é que cura no hospital?São duascoisas... Al iás,
não, é essencialmente urna coisa: o que cura no hospital é
o hospital. Ou seja, é a própria disposiçãoarquitetônica, a
organizaçãodo espaço,a maneiracomo os indivíduos são
distribuídosnesseespaço,a maneiracomo se circula por ele,
a maneiracomo se olha ou como se é olhadonele, tudo isso
é que tem em si valor terapêutico.A máquinade cura, na psi-
quiatria daquelaépoca,é o hospital. Quandoeu lhes dizia
que havia duas coisas,eu ia dizer: há a verdade. Mas vou
procurarmostrarcomo o discursoda verdadeou a emergên-
cia da verdadecomo operaçãopsiquiátricano fim das con-
tas não passamde efeitos dessadisposiçãoespacial.
O hospitalé portantoa máquinade curar; e como éque
o hospital cura? Não é, em absoluto,reproduzindoa famí-
lia; o hospitalnão é de modo algum a família ideal. Se o hos-
pital cura, é porquelançamão daqueleselementoscuja for-
malizaçãoem Benthamprocurei mostrara vocês; é porque
o hospital é uma máquinapanóptica,é como aparelhopa-
nóptico que o hospitalcura. É, com efeito, uma máquinade
exercero poder,de induzir, de distribuir, de aplicar o poder
O PODER PSIQUIÁTRICO
128

de acordocom o esquemabenthamiano , mesmoque,é claro,


as disposiçõesarquitetônicasadequadas à propostade Ben-
tham sejammodificadas.Digamos,grossomo_do,que~od~mos
encontrarquatroou cinco elementosque saoda propnaor-
dem do panópticobenthamianoe que devemter funçaoope-
ratória na cura.
13
EIT\ prilT\eiro lugar, a visibilidadepermanente . O louco

deve ser não só alguémque é vigiado; mas o fato de saber


quese é vigiado, melhor dizendo,o fato de saberque se pode
ser semprevigiado, que se estásempresob o podervirtual
de um olhar pennanente,é isso que tem em si valor terapêu-
tico, pois é precisamentequandose sabeolhado, e olhado
como louco, que não se mostraráa própria loucurae que o
princfpio da distração,da dissociaçãovai agir plenamente.
E necessárioportantoque o louco fique semprena po-
siçãode estarsob um olhar possível,e vocêstêm aí o princí-
pio da organizaçãoarquitetônicados asilos. Em vez do pa-
nóptico circular, preferiu-seoutro sistema,que devia pro-
porcionarno entantouma visibilidade igualmentegrande:
é o princípio da arquiteturapavilhonar,isto é, dos pequenos
pavilhõessobre os quais Esquirol explica que devem estar
dispostosem três lados,sendoo quartoabertoparao campo.
Essespavilhõesassimdispostosdevem,na medidado pos-
sível, ser térreos,para que o médico possachegarpé ante
pé, semser ouvido por ninguém,nem pelosenfermos,nem
pelos guardas,nem pelos vigilantes, e com um olhar capte
14
tudo o que estáacontecendo • Aliás, nessaarquiteturapa-

vilhonar que foi transformada,o modelo utilizadoaté o fim


do séculoXIX, a cela - porque,paraEsquirol, aindaentão,a
celaera,se não preferívelao dormitório, pelo menosumaal-
ternativa ao dormitório - devia ter aberturasde dois lados,
de modo que, quandoo louco olhavade um lado, podia-se
olhar pela outra janelao modo pelo qual ele olhavado outro
lado. Quandovemoso que Esquirol diz sobrea maneirade
co~st~ros asilos,temosentãouma transposiçãoestritado
pnncip10do panoptismo.
AULA DE 5 DE DEZEMBRODE 1973 129

Em segundolugar, o princípio da vigilância central, essa


espéciede torre de ondeum poderanônimo se exercia per-
petuamente,tambémé modificado.Mas vocêso encontrarão
primeiro, até certo ponto, na forma do prédio da direção,que
deve estar no centro e que deve vigiar todos os pavilhões
dispostosem volta; mas,principalmente,a vigil ânciacentral
é proporcionadapor um modo diferentedaquele do Panop-
ticon de Bentham,mas parater sempreo mesmo efeito, por
meio do que poderíamoschamarde vigilância piramidal dos
olhares.
Ou seja,tem-seuma hierarquiaconstituídapor guardas,
enfermeiros,vigilantes, médicos, que fazem relatóri os uns
para os outros segundoa via hierárquica, que culmina no
médico-chefe,único responsávelpelo asilo, pois o poder ad-
ministrativo e o podermédico não devemser dissociados-
todos os psiquiatrasda épocainsistemnisso. E é para essa
espéciede saber-poderunitário e absolutoconstituído pelo
médico-chefeque todasessasintermediaçõesde vigil ância
devemfinalmente convergir.
Em terceirolugar, princípio do isolamento, que também
deve ter valor terapêutico.Isolamento,individualizaçãoque
sãoproporcionadospela cela de Esquirol, que reproduz qua -
se exatamentea cela do Panopticonde Bentham, com sua
dupla aberturae seu contraluz.Encontramostambém este
curiosíssimoprincípio do isolamento, isto é, da dissociação
de todos os efeitos de grupo e da assinalaçãodo indivíduo
a si mesmoenquantotal, na práticamédicacorrente da épo-
ca, e que é o sistemado que poderíamoschamar de percep-
ção triangularda loucura.
Ou seja, o asilo se chocavacom uma objeção que foi
feita com freqüênciae que era a seguinte:é válido, do ponto
de vista médico,colocarno mesmoespaçopessoasque são
todaselasloucas?Seráque, em primeiro lugar, a loucuranão
vai sercontagiosa?Seráque, em segundolugar, ver os outros
que são loucos não vai induzir naqueleque se encontra no
meio dos loucos uma melancolia, uma tristeza, etc.?
O PODER PSIQUlÂTRJ. O
130

A que os médicosrespondiam:de maneiranenhuma.


Ao contrário, é ótimo ver a loucurados outros,contantoque
:adadoentepossater dos outrosloucosque estãojunto dele
a percepçãoque o 111édicotem dessesoutros doentes.Em
utras palavras, não se podepedir ilnediata.111entea um lou-
::o que tenhade si um ponto de vista que seráo do médico,
pois ele está preso demaisà sua própria loucura; em com-
pensação,não está preso à loucura dos outros. Por conse-
guil1te, se o médico mostraa cadadoenteem que todos os
que o rodeiam são efetivamentedoentese loucos, então o
doenteem questão,percebendotriangularmentea loucura
dos outros,vai acabarcompreendendo o que é serlouco, de-
lirar, ser maiúacoou melancólico,sermonomaníaco.Quan-
do vir diante dele, que acreditaser Luís XVI, que há um ou-
tro que ta.n1bémacreditaser Luís XVI, e vir de que maneira
o médico julga esseoutro que acreditaser Luís XVI, nesse
momento ele poderátomar indiretamentede si mesmo e
da sua própria loucura uma consciênciaque seráanálogaà
consciênciamédica15 .
Temosaí um isolamentodo louco em sua própria lou-
cura pelo jogo dessatriangulaçãoque tem, em si, um efeito
de cura1b, que é em todo casoa garantiade que não ocorre-
rão no asilo aquelesfenômenoscorrosivosde contágio,aque-
les fenômenosde grupo que, justamente,o Panopticontinha
por função evitar, sejano hospital,sejana escola,etc. O não-
contágio, a não-existênciado grupo deve ser assegurada por
essaespéciede consciênciamédicados outrosque cadadoen-
te deve ter a propósitode todos os que o rodeiam.
Enfim - e aqui tambémvocêsencontramos temasdo Pa-
nopticon-, o asilo age pelo jogo da incessantepunição,que
é assegurada sejapelo pessoal,claro, que deve estarpresen-
!e o tempo todo e junto de cadaum, seja por uma série de
17
mstrumentos . Por volta da décadade 1840, na Inglaterra,

que a_presentava certo atrasoem relaçãoà práticapsiquiátri-


ca ocid~ntal, certo númerode médicosinglesese principal-
mente~l~desespostularamo princípio do no restraint, isto é,
da abohçaodos instrumentosfísicos de coerção18. Na época,
AUlA DE 5 DE DEZEMBRO DE 1973 131

essareivindicaçãoobteve grande repercussão e, em certo


sentido,houve em todos os hospitais da Europa uma espé-
cie de campanhapelo no restraint e, de fato, ocorreu uma
modificaçãobastanteimportantena maneira de tratar os lou-
cos. Mas não creio que essaalternativa, coerçãofísica ou no
restraint, tenhasido afinal de contas muito séria.
Tomareicomo prova apenasuma carta que a reverenda
madresuperioradas irmãs encarregada s da cidade de Lille
mandavaà sua colegade Rouen,que era a superiora,e que
dizia: a senhorasabe,não é nenhumproblema, a senhora
pode perfeitamente,como acabamosde fazer em Lille, re-
tirar todosessesinstrumentos,contantoque ponhaao lado
de todosos alienadosque tiver liberado " uma religiosaque
se imponha"19•
A alternativaolhar, intervençãodo pessoalou instrumen-
to é, portanto,no fim das contas, uma alternativa de super-
fície em relaçãoao mecanismoprofundoque é o da punição
incessante.E creio, apesarde tudo, que o sistemado res-
traint, da coerçãofísica é, em certo sentido, mais eloqüente
que o outro e mais evidente.Vocês têm nos hospitais dessa
época- portantodepoisdo célebredesacorrentamento dos
alienadosde Bicêtre por Pinel -, durantetodos os anos de
1820-1845,data do no restraint, toda uma série maravilhosa
de instrumentos:a cadeirafixa, isto é, presaà parede ena qual
o doenteera amarrado; a cadeiramóvel que se agitava tan-
to mais quantomais agitado estava o doente2º; as algemas21;
as mangas22; a camisa-de-força 23
; a roupaem forma de dedo

de luva, que envolvia o indivíduo desdeo pescoço e o aper-


tava de tal modo que ele ficava com as mãos entre as coxas;
os esquifesde vime24 nos quais eram encerrados osindiví-
duos; as coleirasde cachorrocom pontasdebaixo do queixo.
Toda un1ainteressantíssima tecnologiado corpo, cuja história
talvezdevesseserfeita reinscrevendo-aem toda ahistóriage-
ral dessesaparelhoscorporais.
Parece-me que se poderia dizer o seguinte: antes do
séculoXIX tivemosUITI número consider ável dessesaparelhos
corporais.Creio que se podemencontrartrês tipos. Os apa-
O PODERPSIQUIÁTRICO
132

relhos de garantiae de prova, isto é: aparelhos_p~los quais


certo tipo de açãoé impedida,certo hpo de deseJOe barrado;
0 problemaconsisteem sabe_raté que_p~nto se podesupor-
tá-lo e se o impedimentoass1111matenalizadopelo aparelho
vai ser violado ou não. O modelo típico dessasmáquinasé
o cinto de castidade.
Há outro tipo de aparelhocorporal: os aparelhosde ex-
trair a verdade, que obedecema urna lei da intensificação
gradual, do crescimentoquantitativo;por exemplo,o sup~-
cio da água, a estrapada 25
, etc., que eramcorrentemente uti-
lizados na prova de verdadena práticajudiciária.
Enfim, em terceirolugar, há os aparelhos corporaisque
tinham por função essencialmanifestare assinalarao mes-
mo tempo a força do poder: marcarcom urna letra de fogo
no ombro, na testa; atenazar,queimar um regicida, era ao
mesmotempoum aparelhode suplícioe um aparelhode mar-
cação;eraa manifestação,no próprio corpo, torturadoe su-
26
jeitado, do poderque se desenfreia .

Ternosaí os três grandestipos de aparelhoscorporais;


e o que vemosaparecerno séculoXIX é um quarto tipo de
instrumentosque, tenho a impressão- mas é apenasurna
hipótese,pois, repito, a história de tudo isso precisariaser
feita-, apareceno séculoXIX precisamente,e nos asilos.É o
que podemoschamarde instrumentosortopédicos.Entendo
por isso instrumentosque têm por função, não a marcação
do poder,a extraçãoda verdade,a garantia,masa correçãoe
o adestramentodo corpo.
Parece-me que essesaparelhosse caracterizamda ma-
neiraque se segue.Em primeiro lugar, sãoaparelhosde ação
contínua.Em segundolugar, são aparelhoscujo efeito pro-
gressivodeveser tomá-losinúteis, quer dizer que, no limite,
deve-sepoder tirar o aparelho,que o efeito obtido por ele
ficará definitivamenteinscrito no corpo.Portanto,aparelhos
com efeito de auto-anulação.E, por fim, devem ser apare-
lh?s o mais homeostáticospossível; isto é, são aparelhos
tais que, quantomenosse resistea eles,menosse os sente,
masque,quantomais se tentaescapardeles,mais sevai so-
AULA DE 5 DE DEZEMBRODE 1973 133

frer. É o sistemada coleira com pontas de ferro: se não se


abaixara cabeça~não se a sente, mas quanto mais abaixá-la,
mais se a sente.E o sistemada camisa: de-força: quanto mais
se debater,mais se é estrangulado.E o sistema da cadeira
que dá vertigem: contantoque não se mexa, fica-se conve-
nientementesentado , mas, ao contrário, se se agita, então a
trepidaçãoda cadeiradá enjôo.
Vocês têm aí o princípio do instrumento ortopédico que
é, a meuver, o equivalenteno mecanismoasil ar do que Ben-
tham havia sonhadosob a forma da absoluta visibilidade.
Tudo isso nos remetea um sistemapsiquiátri co no qual
a família não desempenhaabsolutamentenenhum papel.
Não só a família foi asseptizada,excluída desde logo, mas
nadano que se supõesera operaçãoterapêutica do aparelho
asilarlembrano que quer que sejaa farm1ia. E o modelo em
que se pensa,o modeloque funcionaé evidentementemui-
to mais o modelo da oficina, o modelo das grandes explo-
raçõesagrícolasde tipo colonial, é avida de quartelcom suas
paradas,suas inspeções.
E de fato era assim,com esseesquematismo , que fun-
cionavam os hospitais daquelaépoca. O panóptico como
sistemageral,comosistemade inspeçãopermanente , de olhar
ininterrupto, encontravaevidentementesua realizaçãona
organizaçãoespacialdos indivíduospostosuns ao lado dos
outros,sob o olhar pennanentede quemeraencarregadode
vigiá-los.Assim, um diretor de asilo de Lille 27 explic a: quan-
do assumiua responsabilidadepelo asilo, pouco antesda
campanhapelo no restraint, ficou surpreso ao entrar por ou-
vir gritos pavorososvindos de todos os lados; sentiu-seao
mesmotempotranqüilizadoe inquieto, é preciso dizer, quan-
do percebeuque os doentesna realidade estavam calmos,
porque tinha todos eles sob o seu olhar, presosna parede,
pois cada um estavaamarradonuma cadeira que, por sua
vez, estavafixada na parede- um sistema, como vocêses-
tão vendo, que reproduzia o mecanismo do panóptico.
Temosportantoum tipo de coerção que é in teiramente
extrafamiliar. Nadano asilo, creio, faz pensarna organização
134 O PODER PSIQUIÁTRICO

do sistemafamiliar; ao contráiio,é a oficina, a escola,o quar-


tel. E, aliás [no] trabalhode oficina, no trabalho agiicola
, no
trabalho escolar, a instalaçãomilitar dos indivíduosé de fato
D que vemossurgir explicitamente.
Por exemplo,Leuret, em seulivro de 1840 sobreo Trata-
1nentomoral, dizia que "todasas vezesque o tempo permite,
DS doentesque estão emcondiçãode andare que não podem
ou não queremtrabalharsão reunidosnos pátiosdo hospício
e exercitam-sena marcha,como os soldados.A imitação é
uma alavancatão poderosa,inclusive sobreos homensma.is
preguiçosose 1Ttais obstinados,que vi vários destesque de
início se recusavama tudo, masacabavamaceitandomar-
char.É um começode açãometódica, regular,sensata,e essa
açãoleva a outras"28 • E, a propósitode um doente,ele diz:
"Se consigofazer que aceiteuma patente,ser posto no co-
mandoe ele se sai bem, a partir dessemomentoconsidero
suacura praticamentecerta.Paracomandaras marchase as
evoluções,nunca emprego nenhum vigilante, apenasos
doentes.Graças a essaorganizaçãoum poucomilitar [e en-
tão se passado exercício ortopédicoà própria constituição
do sabermédico; M .F.], a visita médicados doentes,seja ela
feita nassalasou nos pátios,torna-sefácil e posso,todos os
dias, dar pelo menosuma olhadanos alienadosincuráveis,
reservandoa maior partedo meu tempo aos alienadossub-
metidosa um tratamentoativo."29 Assim, pois, revista, ins-
peção, enfileiramento no pátio, olhar do médico: está-se
efetivamenteno mundo militar. É dessaforma que funcio-
navao asilo até os anos1850, quandome pareceque se as-
siste a algo que indica certo deslocamento*.

* O manuscrito prosseguea análise precisando: "Ao todo, um dis-


positivo disciplinar que deveria ter d e pleno direito eficácia terapêuti-
ca. Compreende-senessascondições que o correlativo dessa terapêutica,
o objeto do seu intento, seja a vontade. A definição da loucura não mais
como cegueira, mas como dano à vontade e a in serção do louco num
campo terapêutico disciplinar são dois fenômenoscorrelativos que se
apoiaram e se fortaleceram mutuamente."
AULA DE 5 DE DEZEMBRODE 1973 135

Por volta dos anos1850-1860, começaa se ver formu-


lada a idéia de que, primeiro, o louco é corno uma criança;
depois,que o louco deve ser postonum meio análogoà fa-
mília, emboranão seja a família; e, enfim, que esseselemen-
tos quasefamiliares possuemem si um valor terapêutico.
Essaformulação,de que o louco é uma criança,vocês
encontram,por exemplo, num texto de Fournetao qual re-
tornarei, porque ele é importante: "[O] tratamentomoral
da alienação",que foi publicado nosAnnalesmédíco-psycholo-
gíquesem 1854.O louco deve sertratado como urna criança,
e a familia, "a verdadeirafamília em que reina o espírito de
paz, de inteligênciae de amor", é a que, "desdeos primór-
dios e os primeirosdesvioshumanos",deveproporcionar"o
tratamentomoral, o tratamentomodelode todos osdesvios
do coraçãoe do espírito"30 •
Essetexto de 1854 é ainda mais curioso porque ele se
desenvolvenuma direção que é, creio, na época, bastante
nova. De fato, Foumetdiz o seguinte:que a familia tenha
um valor terapêutico, que a farm1ia sejaefetivamenteo mo-
delo no qual e apartir do qual se possaconstruircertaortope-
dia psicológicae moral, há exemplos,diz ele, fora do hospital
psiquiátrico."Os missionáriosde civilização [e ele entende
por isso, creio eu, tanto os soldadosque estavamcolonizan-
do a Argélia como os missionáriosem sentidoestrito; M.F.]
que tomam emprestadoda familia seu espírito de paz, de
benevolência,de devoção, e até o nome de pai, e vão pro-
curar sanaros preconceitos , as falsastradições, enfim os erros
dos povos selvagens,são como Pinel e Daquin, em relação
aos exércitosconquistadoresque pretendem levar à civiliza-
ção pela força bruta das armas eque têm, sobreos povos, o
papeldascorrentese dasprisõessobreos infelizesalienados."3 1
Em termosclaros,isso quer dizer que houve duasidades
da psiquiatria.Uma em que se utilizavam as correntese ou-
tra, ao contrário, em que se utilizaram, digamos,os senti-
mentosde humanidade . Pois bem, da mesmamaneira,na
colonizaçãohá dois métodose, talvez, duasidades.Uma é
a idadeda conquistaarmadapura e simples,a outra o perío-
136 O PODER PSIQUIÀTRI.CO

do da instalaçãoe da colonizaçãoem profundidade. Eessa


colonizaçãoem profundidadese faz pela organizaçãodo
modelofanuliar. E introduzindoa fainília nessastradiçõese
nesseserrosdos povosselvagensque se inicia a obra de co-
lonização. Foun1etcontinuadizendo:aliás, encontrainosexa-
tamentea mesmacoisa no casodos delinqüentes.Cita Met-
tray, fundadaem 1840, ondese utilizava, num esquemaque
era no fundo puramentemilitar, a denominaçãode pai, de
i.nTlão maisvelho, etc., em que havia wna orgaruzaçãopseu-
dofan1iliar. Fournet se refere a isso para dizer: vocês estão
vendoque lá tambémo modelofainiliar é utilizado paraten-
tar " reconstituir [...] os elementose o regime da familia em
ton10 dessesinfelizes, órfãos pelo fato ou pelos vícios dos
seuspais" . E conclui: "Não é, senhores,que eu queiradesde
já pretenderassimilara alienaçãomentalà alienaçãomoral
dos povosou dos indivíduosque respondemperantea his-
tória ou perantea lei ..." 32 Esseé outro trabalhoque ele pro-
mete para o futuro e que nuncalevou a cabo.
Mas vocêssabemque, se ele não o fez, muitos outros
fizeram depois.Vocêsestãovendoa assimilaçãoentreos de-
linqüentescomo resíduosda sociedade,os povos coloniza-
dos como resíduosda história, os loucos como resíduosda
humanidadeem geral- todosindivíduos: delinqüentes,po-
vos a colonizarou loucos-, que não se pode converter,civili-
zar, os quais não se podemsubmetera um tratamentoorto-
pédico, a não serque se proponhaa elesum modelofan1il.iar.
Temosaí, creio, um ponto de flexãoimportante.Impor-
tante porquea data é afinal precoce:estamosem 1854, isto
é, antesdo darwinismo,antesda Origemdas espécies 33
• Por cer-

to, já se conheciao princípio ontogênese-filogênese, pelo


menosem suaforma geral,masvocêsestãovendosuacurio-
sa utilização aqui e, principalmente,mais até que a assimi-
lação louco-primitivo-delinqüente,o que é interessanteé
que a farru1ia apareçacomo o remédio comum ao fato de
ser selvagem,delinqüenteou louco. É portanto,em linhas
gerais - não pretendoque essetexto seja o primeiro, mas
ele me pareceum dos mais significativos,não encontreine-
AULA DE 5 DE DEZEMBRODE 1973 137

nhum outro tão claro antesdele-, digamosque é por volta


dos anos1850 que se passao fenômenode que eu queria
lhes falar.
Pois bem, por que nessaépoca?O que aconteceunes-
sa época?Qual o suporte disso tudo? Procurei por muito
tempo e foi simplesmenteme fazendo a perguntanietz-
schiana- "Quem fala?"-, que me pareceupossívelencon-
trar a pista. De fato, quem formula essaidéia? Onde é que
a encontramos?
Vocêsa encontramem gentecomoFoumet:34,em Casimir
Pinel, um descendente de Pinel35, Brierre de Boismont36,tam-
bém começama encontrá-laem Blanche37, isto é, em toda
uma série de indivíduos que tinham simplesmenteporca-
racterísticacomum ter de administraràs vezesum serviço
público, masprincipalmentecasasde saúdeparticulares,pa-
ralelasaoshospitaise instituiçõespúblicas,e muito diferentes
deles.Aliás, todosos exemplosde familiarizaçãoem meio te-
rapêuticoelesdão a partir do exemplodascasasde saúde.Vo-
cês dirão: grandedescoberta!Todo o mundosabeque houve,
desdeo séculoXIX, os hospitais-quartéis paraos explorados
e as casasde saúdeconfortáveisparaos ricos. Na verdadeo
que eu queriaevidenciara esserespeitoé um fenômenoque
vai um poucoalém dessaoposiçãoou, se preferirem,que se
aloja nela, mas que é muito mais preciso.
Eu me perguntose, no séculoXIX, não ocorreuum fe-
nômenobastanteimportante,de que esteseriaum dos nu-
merososefeitos.Essefenômenoimportante, cujo efeito sur-
ge aí, seriaa integração,a organização,a exploraçãodo que
chamareide lucros de anomalias,de lucros de ilegalismos
ou lucrosde irregularidades.Direi o seguinte:os sistemasdis-
ciplinarestiveram uma primeira função, urnafunção maciça,
uma função global, que vemossurgir claramenteno século
XVIII: ajustar a multiplicidadedos indivíduosaos aparelhos
de produçãoou aos aparelhosde Estadoque os controlam,
ou ainda,ajustaro princípio do acúmulode homensà acumu-
lação do capital. Essessistemasdisciplinares,na medidaem
que eram norrnalizadores,faziam surgir necessariamente
138 O PODER PSIQUIÁTRICO

em suasmargens,por exclusãoe a título residual,anomalias,


ileo-alismos,irregularidades.Quanto1nais est1ito o sistema
dis~iplinar, mais as anomalias,as irregularidadessãonume-
rosas.Ora, essasirregularidades,ilegalismos, anomalias,que
o sistemadisciplinar ao mesmotempo era feito para absor-
ver mas que não cessavade suscitarna medidamesmaque
funcionava,é dessescamposde anomalias,de irregularidades,
que o sistemaeconômico epolítico da burguesiado séculoXIX
[tirou]* uma fonte de lucro de um lado e o fortalecünento
do poder, de outro.
Vou tomar um exemplo que é bem próximo daquele
dos hospitaispsiquiátricos,de que falarei em seguida:o da
prostituição.Não foi preciso esperaro século XIX, é claro,
paraque existisseessetriângulo famosodasprostitutas,dos
clientes e dos proxenetas , para que existissemcasas,redes
estabelecidas , etc.; não foi precisoesperaro séculoXIX para
utilizar as prostitutase os proxenetascomo informantesda
policia e paraque grandesmassasde dinheiro circulassem,
graçasao prazersexualem geral.Mas, no séculoXIX, creio que
assistimos,em todos os paísesda Europa,à organizaçãode
umarede,densaesta,queseapóiaem todo um conjuntoimo-
biliário, primeiro, de hotéis,lupanares,etc., sistemaque usa
como intermediaçõese como agentesos proxenetas,que
sãoao mesmotempoinformantese que sãotodosrecrutados
num gruposobrecuja constituiçãoprocureidizer um certo nú-
mero de coisasno ano passadoe que sãoos delinqüentes 38
.

Se houve tanta necessidadedos delinqüentese se, no


fim dascontas,tomou-setanto cuidadoparaconstituí-losem
marginália,é precisamenteporqueera o exército de reserva
dessesagentestão importantes,de que os proxenetas - infor-
mantessão apenasum exemplo.Essesproxenetas, enqua-
dradospela polícia, mancomunados com ela, constituemos
inter~ediáriosessenciaisdessesistemada prostituição. Ora,
essesistema,com seusapoiose seusintermediários,que fi -

* Gravação: "encontro u" .


AULA DE 5 DE DEZEMBRO DE 1973 139

nalidadetem em suaorganizaçãorigorosa?Ele tem por fun-


çãoreconduzirao próprio capital,ao lucro capitalistaem seus
circuitos normais,todos os lucros que se podemauferir do
prazer sexual, com a trípli ce condição,é claro, de que, em
primeiro lugar, esseprazersexualseja marginalizado, des-
valorizado, proibido e que, nesse momento, tome-se caro
pelo simplesfato de ser proibido. Em segundolugar, se se
quiser auferir lucros desseprazersexual, ele tem não sóde
ser proibido, mas na realidadetolerado.E, por fim, tem de
ser vigiado por um poderespecífico, que é proporcionado
precisamente pela mancomunaçãodelinqüentes-polícia, na
forma do proxeneta-informante . Ora, reconduzidoassimde
volta aos circuitos normaisdo capitalismo,o lucro do pra-
zer sexualvai trazercomo efeito secundárioo fortalecimento
de todos os procedimentosde vigilância e, por conseguinte,
a constituiçãodo que poderíamoschamarde um infrapo-
der, que acabapor incidir sobreo comportamentomais co-
tidiano, mais individual, mais corporaldos homens: o siste-
ma disciplinar da prostituição.Porqueé disso que se trata.
Juntocom o exército,a escola,o hospitalpsiquiátrico, a pros-
tituição, tal como se organizouno séculoXIX, ainda é um
sistemadisciplinar cujasincidênciaseconômico-políticasvo-
cês logo vêem.
Em primeiro lugar, tornar o prazersexuallucrativo, isto
é, fonte de lucro, a partir da sua proibição e da suatolerân-
cia. Em segundolugar, reconduziros lucros proporcionados
pelo prazersexualparaos circuitos geraisdo capitalismo. Em
terceirolugar, apoiar-se nissoparaancoraraindamais os efei-
tos últimos, as intermediaçõessinápticasdo poderde Esta-
do, que acabaalcançandoo prazercotidiano dos homens.
Mas a prostituiçãonão é, evidentemente,mais que um
exemplodessaespéciede mecânicageral que podemosen-
contrarnos sistemasdisciplinaresinstauradosno séculoXVIII
parauma certafunção global e que se aperfeiçoamno século
XIX, a partir dessadisciplina que era essencialmente co-
mandadapela formaçãode um novo aparelhode produção.
A essasdisciplinasvêm se ajustardisciplinasmais apuradas;
140 O PODER PSIQUlÁTRICO

ou, se preferirem, as antigasdisciplinasse apurame vão en-


contrar assimnovaspossibilidadesde constituiçãode lucro
e de fortalecimentode poder.

*
Voltemosagoraàscasasde saúdede Brierre de Boismont,
Blanche, etc. o fundo, de que se trata?Trata-sede tirar pro-
veito, e o máximo proveito,dessamarginalizaçãoem que con-
siste a disciplina psiquiátrica.Ora, se é evidenteque a dis-
ciplina psiquiátrica,em suaforma global, tem por finalidade
essencialpôr fora de circuito certo númerode indivíduosinu-
tilizáveis no aparelhode produção,vocêspodem,em outro
nível e numaescalamais restritae com uma localizaçãoso-
cial diferente,criar uma nova fonte de lucro*.
De fato, a partir do momentoem que certo númerode
indivíduospertencentes às classesabastadastambémvão, em
nome do mesmo saberque interna, ser marginalizados,a
partir dessemomentovai ser possíveldelestirar certaquan-
tidade de lucros.Vale dizer que vai se poderpedir às famílias
que dispõemde meios "pagarparaser curado".Vocês estão
vendo que, por conseguinte,vamoster um primeiro movi-
mentodo processoque vai consistirno seguinte:pedir, à fa-
mfüa do indivíduo declaradodoente,um benefício,massob
certo númerode condições.
É necessárioevidentementeque o doentenão possaser
curadoem casa.Vai-se continuarportantoa fazer valer, para
essedoente,fonte de lucro, o princípio do isolamento:"Você
não vai ser curadona suafamilia. Mas, se pedimosà suafa-
milia que paguepara você ser internadofora dela, temos é
claro de garantirà suafamilia que lhe devolveremosalguém
à imagemdela." Ou seja,é precisodar à família certo bene-

* No manuscrito, Michel Foucault acrescenta: "O lucro de irregu-


laridade foi que serviu de vetor para a importação do modelo familiar
na prática psiquiátrica ."
AULA DE 5 DE DEZEMBRODE 1973 141

fício que seja proporcionalao lucro que lhe é cobrado;pe-


de-sea ela certo lucro em favor do corpo médico,fazendo-
ª assiminternarum indivíduo, pagaruma pensão,etc., mas
a família tambémtem de obter um benefíciocom isso.Esse
benefício será a reconduçãodo sistemade poder interno
da família. Os psiquiatrasdizem à família: "Vamos devol-
ver alguémque seráefetivamente conforme,adaptado,ajus-
tado ao sistemade poder que é o seu"; por conseguinte,
vão ser fabricadosindivíduos refamiliarizados,na medida
mesmaem que é a farm1ia que, designandoo louco, pro-
porcionoua possibilidadede um lucro aos que constituem
o lucro a partir da marginalização.Donde anecessidade de
fazer casasde saúdeque sejam diretamente ajustadasao
modelo familiar.
Assim, na clínica de Brierre de Boismont, no Faubourg
Saint-Antoine,vocêstinham uma organização- que, aliás,
não é nova: Blanchetinha dado um primeiro exemplodela
já na épocada Restauração 39
- inteiramentemodeladacom

basena farm1ia, isto é, com um pai e uma mãe de farm1ia. O


pai de família é o próprio Brierre de Boismont; a mãe de fa-
mília é sua mulher.Vivem todos na mesmacasa; todos são
irmãos; fazem todos juntos as refeiçõese devemsentir uns
pelos outros os sentimentosque são os sentimentosde fa-
mília. E a reativaçãodo sentimentofamiliar, o investimento
de todas as funçõesfamiliares dentro dessaclínica vão ser,
nessemomento, o próprio operadorda cura.
E temosum certo númerode testemunhosbem claros
em Brierre de Boismont, quando ele cita a correspondência
que seusdoentes, depois da cura, mantiveramcom ele ou
com sua mulher. Ele cita a carta de um ex-doente,que es-
creveuo seguinteà sra. Brierre de Boismont: "Longe da se-
nhora, interrogarei freqüentementea lembrançatão pro-
fundan1entegravadano meu coração, para desfrutarmais
umavez daquelacalmacheiade afeto que a senhoracomu-
nica aos que têm a felicidade de ser recebidosna suainti-
midade. Muitas vezeseu me referirei, em pensamento , ao
ambienteda suafamília tão w1ida em seuconjunto,tão afe-
142 O PODER PSJQUlATRICO

tuosaem cadaum dos seusmembrose cuja filha mais velha


é tão graciosaquantointeligente.Se e~ voltar, como tenh_o
a esperança , para junto dos meus,serapara a senhorami-
nha primeiravisita, porque éuma dívida de coração"4º (20 de
maio de 1847).
Acho essacartainteressante .Vocêsviram que o critério,
a forma mesmada cura é a ativaçãode sentimentosde tipo
canonicamentefamiliar: o reconhecimentopara com o pai
e a mãe; viram tambématuar, aflorar pelo menos,o tema
de um amor ao mesmotempovalidado e quaseincestuo-
so, pois o doenteé como se fosse filho de Brierre de Bois-
mont, logo é irmão da filha maisvelha pelaqual ele tem sen-
timentos.Depois,essaativaçãodos sentimentosfamiliares
tem por efeito que,quandoele voltar a Paris,o quevai fazer?
Primeiro vai ver sua família, a verdadeira- ou seja, é essa
família que vai recebero benefícioda operaçãomédica-,e,
somenteem segundolugar,vai visitar a família de Brierre de
Boismont,essaquas_efamília que desempenha um papelde
sobree subfamília.E uma sobrefamíliana medidaem que é
a família ideal, que funciona em estadopuro, a farm1ia tal
como sempredeveriaser; e éna medidaem que ela é aver-
dadeirafarm1ia que tem a função ortopédicaque lhe é atri-
buída. Em segundolugar, é uma subfamíliana medidaem
que seu papel é de se apagardiante da verdadeirafamília,
de só ativar, por seumecanismointerno, os sentimentosfa-
miliares paraque a verdadeirafamília sejaa beneficiáriades-
tes.E, nesse momento, ela nãoé maisqueumaespéciede su-
porte esquemáticoque, em surdina,anima perpetuamente
o funcionamentoda verdadeirafamília. Sobree subfamília:
é isso que se constitui nessascasasde saúdecuja localiza-
ção sociale econômicaé, comovocêsestãovendo,muito di-
ferente da que encontrávamosno asilo.
Mas se a casade saúdeburguesa,paga,é assimfami-
liarizada
, .
- funciona com baseno modelo familiar - ' é ne-
cessariaque,em contrapartida,a família, no exteriorda casa
de saúde,desempenhe seupapel.Não bastadizer à família:
sevocêsme pagam,eu tomareiseulouco capazde funcionar
AULA DE 5 DE DEZEMBRODE 1973 143

no interior da família; é preciso que a familia desempenhe


seupapel,isto é, designeefetivamenteos que sãoloucos,de-
sempenhepor si mesmaum papel decerto modo discipli-
nar, isto é, que ela diga: aqui estádentre nós aqueleque é
louco, anormal,que dependeda medicina.Quer dizer, vo-
cêstêm, de um lado, familiarizaçãodo meio terapêuticonas
casasde saúdee, de outro lado, disciplinarizaçãoda farru1ia,
que vai se tornara partir dessemomentoa instânciade ano-
malizaçãodos indivíduos.
Enquantoa família soberananão levantavaa questão
do indivíduo anormal,mas da ordem hierárquicados nas-
cimentos,da ordemdasheranças,dasrelaçõesde fidelidade,
de obediência,de preeminênciaque havia entre uns e ou-
tros - ela se ocupavado nome e de todasas subfunçõesdo
nome-, a familia assimdisciplinarizadavai começara subs-
tituir essafunção soberanado nome pela função psicológi-
ca da designaçãodo indivíduo anormal,da anomalizaçãodos
indivíduos.
O que digo para as casasde saúdevaleria também,
aliás, paraa escola,valeria até certo ponto paraa saúdeem
geral, parao serviço militar, etc. O que eu queria lhes mos-
trar é que por mais que no séculoXIX a familia possater con-
tinuadoa obedecerum modelode soberania,podemosper-
guntar se, a partir de meadosdo séculoXIX talvez, não há
uma espéciede disciplinarizaçãointerna da família, isto é,
certatransferência,no interior mesmodo jogo de soberania
familiar, das formas, dos esquemasdisciplinares,dessastéc-
nicas de poderque as disciplinasproporcionavam.
Assim como o modelo f arniliar se transferepara o in -
terior dos sistemasdisciplinares,há técnicas disciplinares
que vêm enxertar-seno interior da familia. E, a partir desse
momento,a familia começaa funcionarcorno uma pequena
escola,preservandoao mesmotempoa heterogeneidade pró-
pria do poder soberano.É entãoque aparecea curiosaca-
tegoria de pais de alunos,é entãoque começama aparecer
os deveresde casa,o controle da disciplina escolarpela fa-
milia; ela se toma uma microcasade saúdeque controla a
O PODER PSIQUIÁTRICO
144

normalidadeou a anomaliado corpo, da alma; ela se toma o


quartelem pequenoformato e, talvez,se tome - voltaremos
a esteponto - o lugar em que cir~ula a se~alid~~e. .
Creio que se podedizer qu~ a _so?eramafamil~ar vai s~r
atribuída, a partir dos sistemasdis_c1plinares,a ~e~teob~-
gação: "Vocês têm que nos arrai1J~loucos,debe1s/mentais,
malcomportados , depravados,e tem de en~ontr~-l~spor
contapróplia, pelo exercíciode controlesde tipo d1sc1plinar
no interior da soberaniafamiliar. E, a partir do momento
em que vocês encontraremem casa,pelo jogo dessasobe-
rania agoradisciplinarizada,seusloucos,seusanormais,seus
débeismentais, seusmalcomportados,etc., nós os faremos
passar , dizem as disciplinas,pelo filtro dos dispositivosnor-
malizadores , e os devolveremosa vocês,parao maior bene-
fício funcional de vocês,familias. Nós os devolveremoscon-
formesao quevocêsnecessitam,contanto,é claro, quetenha-
mos recolhido com isso nossolucro."
É assimque o poderdisciplinarparasitaa soberaniafa-
miliar, requerque a família desempenhe o papelde instân-
cia de decisãodo normal e do anormal,do regular e do ir-
regular, pedeà família que lhe mandeessesanormais,esses
irregulares,etc.; recolhe em cima disso um lucro que entra
no sistemageral do lucro e que podemoschamar,digamos,
d~ /benefício_econômicoda irregularidade.À custado que,
alias, a familia deve encontrarao fim da operaçãoum indi-
víd~o quevai estardi~ciplinadode tal modo,que poderáser
efehv~entesubme~doao esquemade soberaniapróprio
da família. Serbom filho, bom marido,etc. é o que propõem
todoses~e~estabelecimentos disciplinaresque sãoas escolas,
os hospitais,as casa~d~ educação~giada,etc. Isso signifi-
c~ que_s~ trata_d~ rr:iaquma~graçasas quaisse pensaque os
d1spos1~vosdisc1plin~esvao constituir personagenscapa-
zesde fi~rar no mtenorda morfologia própria ao poderde
soberaniada farru1ia.
NOTAS

1. "Os furiosos devem ser postos num local de segurança,


mas não podemser detidos, salvo em virtude de um julgamento
que a família deveprovocar[...] É somenteaostribunaisque ele [o
Código Civil; J.L.] confia o cuidadode constatarseu estado" (Cir-
cular de Portalis de 30 frutidor do ano XII/17 de setembrode 1804,
cit. em G. Bollotte, "Les maladesmentauxde 1789 à 1838 dans
l'oeuvrede P. Sérieux", Information psychiatrique,vol. 44, n? 10, 1968,
p. 916). O Código Civil de 1804 reformulaa antigajurisdiçãono ar-
tigo 489 (Título XI, cap. 2): "O maior que estánum estadohabitual
de imbecilidade,de demênciaou de furor deveserinterditado, mes-
mo que esseestadoapresenteintervalos lúcidos." Cf.: [a] verbete
"Interdit", in Dictionnaire de droit et de pratique, ed. por C. J. de Fer-
riere, t. II, Paris,Brunet, 1769, pp. 48-50. [b] H. Legranddu Saulle,
Étudemédico-légalesur l'interdiction des aliénéset sur le cansei!judi-
ciaire, Paris,Delahayeet Lecrosnier,1881. [c] P. Sérieuxet L. Libert,
Le Régimedes aliénésen France au XVIII' siecle,Paris, Masson,1914.
[d] P. Sérieuxet M. Trénel, 'Tintemementdes aliénéspar vaie judi-
ciaire (sentence d'interdiction) sousl' Ancien Régime", Revuehistori-
que de droit français et étranger, 4~ série, 10? ano, julho-setembrode
1931, pp. 450-86. [e] A Laingui, La responsabilitépénaledans l'ancien
droit (XVI•-XVIJI• siecles),vol. II, Paris,Librarie généralede droit et de
jurisprudence, 1970, pp. 173-204;Michel Foucaultse refere ao tema
em Histoire de la folie, op. cit., ed. de 1972,pp. 141-3.Retomaa ele na
aula de 12 de janeirode 1975 do seucursono Collegede France,ano
O PODER PSJQUJÁ TRICO
146

1974-1975: LesAnormaux,ed. sob dir. F. Ewald eA. Fontanap9rV.


Marchetti e A. Salomoni,Paris,Gallin1ard/Seuil(col. "HautesEtu-
des"), 1999, pp. 131-6 [trad. bras. Os anormais,São Paulo,Martins
Fontes,2001].
2. A lei de 16-24 de agostode 1790 faz do internamentouma
medidade polícia, confiando"à vigilância e àautoridadedos órgãos
municipais[...] o cuidadode impedir ou remediaros acontecimen -
tos importunosque poderiamser ocasionadospelos insensatosou
pelos furiosos deixadosem liberdade" (Título XI, art. 3), in Légi.sla-
tion sur les alíénéset les enfantsassistés.Recueíldes lois, décretset cir-
culaires (1790-1879), t. I, Paris,Ministere de l'Intérieur et des Cultes,
1880,p. 3.Ver M. Foucault,Histoire de la folie, ed. de 1972, p. 443.
3. F. E. Fodéré, Traité du délire, op. cit., t. II, p. 252.
4. P. Berthier, Médecinementale,t. I: De l'isolement,Paris,J.-B.
Bailliere, 1857, p. 10.
5. Princípio enunciadopor Esquirol em seu "Mémoire sur
l'isolement des aliénés" (lido no Instituto em 1? de outubro de
1852): "O isolamentodos alienados(seqüestração, confinamento)
consisteem subtrair o alienadoa todos os seushábitos,separan-
do-o da família, dosamigos,dosserviçais;rodeando-ode estranhos;
mudandotoda a sua maneirade viver" (in Des maladiesmentales
considéréessousles rapports médica[, hygi.éniqueet médico-légal,op. cit.,
t. II, p. 745). Cf.: [a] J.-P.Falret,"Du traitementgénéraldesaliénés"
(aula dadano hospíciode Salpêtriere,1854), in Des maladiesmen-
tales et des asiles d'aliénés,Paris,J.-B. Bailliere, 1864, pp. 677-99; cf.
pp. 685 ss. [b] J. Guislain, Traité sur les phrénopaties,op. cit., 2~ ed.,
1835,p. 409. [c] J.-M. Dupuy, Quelquesconsidératíonssur la folie. Vi-
site au Castel d'Andorte,établissementdestinéaux aliénésde la classe
riche, Périgueux,irnpr. Dupont, 1848, pp. 7-8.
6. FrançoisLeuret enunciaque "sempreque possível,deve-
se impor silêncio ao doenteacercado seu delírio e ocupá-locom
outra coisa" (Ou traitementmoral de la folie, op. cit., p. 120).Vertam-
bém seu"Mémoire sur la révulsionmorale dansle traitementde la
folie", in op. cit. [Mémoires de l'Académíeroyale de médecíne,1841],
p. 658. Mas é J.-P. Falret que, numa síntesefiel das concepçõesde
Esquirol ("De la folie", 1816,op. cít. [ín Des maladíesmentales..., t. I],
p. 119), enuncia essaidéia mais explicitamentenum manuscrito
inédito: "O isolamentoocupaevidentementeo primeirolugar... Mas,
depois que o doenteé subtraídoàs influências externas,deve-se
deixá-lo a si mesmo,semprocurardestruira fixidez dassuaspreo-
AULA DE 5 DE DEZEMBRODE 1973 147

cupaçõesdoentias?Claro que não. Não contentecom tê-lo afas-


tado das causasque podemfomentaro delírio, deve-se combater
ele próprio, e paraestefim a experiêncianão reconhecemeio mais
eficaz que o de fixar a atençãode uns nos objetos mais capazes de
cativá-los e desviaros outros das idéias fixas, distraí-los das suas
preocupações colocandoo tempo todo diante dos seusolhos ob-
jetos estranhosao seu delírio e dirigindo totalmentesua atenção
paratoda espéciede ocupações,paraque fiquem impossibilitados
de pensara respeitode suadoença"(citado por G. Dameuzone Ph.
Koechlin, "La psychothérapieinstitutionnelle française contem-
poraine",Anais portuguesesde psiquiatria, t. N, 1952, n~ 4, p. 274).
Ver tambémJ.-P Falret,"Du traitementgénéraldes aliénés" , 1854,
op. cit. [in Des maladiesmentaleset des asiles d'aliénés], p. 687.
7. "Mui tasvezesa causamoral da alienaçãoexisteno seio da
família e tem origem nas mágoas,nas dissensõesdomésticas , nos
revesesde fortuna, etc. [...], muitasvezeso primeiro abalo nas fa-
culdadesintelectuaise moraisocorrena própria casado alienado,
no meio dos seusconhecidos,dos seusparentes,dos seusamigos"
G. E. D. Esquirol, Des passions,considéréescommecauses, symptômes
et moyenscuratifs de l'aliénation mentale,Th. Méd. Paris, n~574, Pa-
ris, Didot Jeune,1805, p. 43). Cf.: [a] J. Foumet,"Le traitementmoral
de l'aliénationsoit mentale,soit morale,a son príncipeet son mo-
dele dansla familie" (Memórialida na Sociétémédicaled'émulation,
em 4 de março de 1854): "Bom númerode alienadosencontrano
interior do que chamamosfamília não apenasas condiçõesque ir-
ritam, exasperame precipitamessestipos de afecções , como tam-
bém, e por isso mesmo,as condiçõesque as fazem surgir" (Anna-
les médico-psychologiques,2~ série,t.VI, outubrode 1854,pp. 523-4). [b]
A. Brierre de Boismont, "De l'utilité de la vie de familie dans le
traitementde l'aliénationmentale,et plus spécialementde sesfor-
mes tristes" (Memória lida na Academiade Ciências,21 de agosto
de 1865), Annalesmédico-psychologiques, 4~ série, t. VII , janeiro de
1866, pp. 40-68, Paris,Martinet, 1866.
8. "O alienadotoma-setímido, sombrio; tem medo de tudo
o que se aproximadele,suassuspeitasse estendemàspessoasque
lhe eram mais caras.A convicçãode que todos fazem tudo para
atormentá-lo,difamá-lo [...], arruiná-lo,leva ao cúmulo essaper-
versão moral. Daí essadesconfiançasintomáticaque crescefre-
qüentementesemmotivo" CT. E. D. Esquirol,"De la folie", 1816,op. cit.
[in Des maladiesmentales..., t. I], p. 120).
O PODER PSIQUIÁTRICO
148
9. PierreBerthier (1830-1877)ingressaem 1849 como interno
no serviçodo tio, Henri Girard de Caille~, médico-chefee dire-
tor do asilo de alienadosde Auxerre. Depmsde defendersua tese,
"Da naturezada alienaçãomental segw1dosuascausase seutra-
tamento",em Montpellier, em 1857,P Berthiervolta a Auxerre por
dois anos,até suanomeaçãocomo médico-chefeem Bourg (depar-
tamentode Ain), antesde se tomar médico-residenteem Bicêtre.
10. P Berthier,Médecinementale,op. cit., t. I, ObservationC, p. 25.
11. Ibid., ObservationD, p. 25.
12. Ibid., ObservationB: "M.G., sofrendode melancoliaagu-
da [ ...] chegano mais lamentávelestado... Após alguns mesesde
tratamento,e à custa de muitos esforços,sobrevéma melhora...
Apesarda proibiçãoexpressado médico-diretor,o doenteavistaseu
filho; quebrauma vidraça e se precipita pela aberturaassim feita
com a intençãode ir ter com ele. A partir dessemomento[ ...], as
alucinaçõesreaparecemmais intensas,o sono se vai, o delírio au-
menta, e asituaçãodo doentenão párade se agravar" (pp. 24-5).
13. Na História da loucura, esseprincípio era abordadosob o
título "O reconhecimentopelo espelho",Histoire de la folie, ed. de
1972, pp. 517-9.
14. "No térreo de um prédio, ele pode se aproximara qual-
quer instantee semfazer barulhodos doentese dos funcionários"
a. E. D. Esquirol,Desétablissements consacrésaux aliénésen France...,
op. cit., ed. de 1819, p. 36; republicadoem Des maladiesmentales...,
op. cit., t. II, p. 426).
15. Ph. Pinel, Traité médico-philosophique sur l' aliénation men-
tale, ou Ia Manie, op. cit., seçãoII,§ XXII, "Habilité dansl'art de di-
riger les aliénés,en paraissantse prêterà leurs idéesirnaginaires".
Na verdade,Pinel diz: "Três alienados,que se acreditavamsobe-
ranos e que adotavamtodos eles o título de Luís XVI, disputam
um dia seusdireitos à realezae os fazemvaler com formas dema-
siado enérgicas.A vigilante se aproximade um delese, puxando-o
de lado: 'Por que o senhordiscutecom essesdois, que sãovisivel-
mente loucos?',indaga seriamente.'Não se sabeque somenteo
senhordeveser reconhecidocomo Luís XVI?' O homem,lisonjea-
do com a homenagem,retira-seimediatamenteolhando para os
outros com uma altivez cheiade desdém.O mesmoartifício fun-
cio1:a com o se~do.E foi assim que, num instante,não restou
méll.S nenhumsinal de briga" (pp. 93-4). Essetexto é citado com
um comentárioum pouco diferenteem Histoire de la folie, op. cit.,
ed. de 1972, pp. 517-8.
AULA DE 5 DE DEZEMBRODE 1973 149

16. Assim, Esquirol, evocando"a objeçãomais forte contra o


isolamentonuma casadispostapara essegênerode tratamento",
sustentaque "os efeitosnefastosque podemresultar paraum alie-
nadode viver com companheirosde infortúnio" sãocompensados
por uma "coabitação[que] não é um obstáculoà cura, que é um
meio de tratamento,porque obriga os alienadosa refletir sobre
seuestado..., a interessar-se pelo que aconteceem volta deles,a de
certomodo se esquecerde si, o que é um passorumo à saúde"("De
la folie", 1816, op. cit. [in Des ma/adiesmentales..., t. I], p. 124). J.-P.
Falret tambémafirma que o asilo permite "provocara reflexão so-
bre si mesmo,pelo contrasteentretudo o que rodeiao doentee seu
antigo círculo pessoal"("Du traiternentgénéraldesaliénés",1854,
op. cít. [in Des maladiesmentaleset des asiles des aliénés], p. 687).
17. História da loucura evoca"a evidênciaquasearitméticada
punição" (Histoire de la folie, ed. de 1972, p. 521).
18. O princípio de no restraint tem suasraízesnas reformas
empreendidaspelosinglesesW. Tuke, J. Haslam,E. Charlesworth,
e pelo irlandêsJ. Conolly. William Tuke, após a morte no_asilo de
York de urna mulher pertencenteaosquakers,funda em 11 de maio
de 1796 um estabelecimento parareceberos alienados da"Socie-
dade dos Amigos",chamadoO Retiro. SamuelTuke (1784-1857),
seu neto, publica urna Description of the Retreat,an Institution near
York for InsanePersonsof the Societyof Friends,York, W. Alexander,
1813.- Cf.: [a] R. Sernelaigne,Aliénisteset Phílanthropes:les Pinel et
les Tuke,Paris,Steinheil,1912. [b] M. Foucault,Histoire de la folie, ed.
de 1972, pp. 484-7, 492-6, 501-11.[c] John Haslarn, boticário do
hospitalBethléernde Londres,lhe consagrauma obra: Considera-
tions on the Moral ofInsanePersons,op. cit. (cf. tambémsupra, pp. 22
e 23-4, notas6 e 13). [d] EdwardCharlesworth(1783-1853),médico
que atendea consultasno Lyncoln Asylum, empreendeem 1820
um ataqueaosmétodoscoercitivosentãoem voga: Remarkson the
Treatmentofthe Insaneand the Managementof LunaticsAsylums,Lon-
dres,Rivington, 1825. [e] John Conolly (1794-1866),promotordo
no restraint, aplica-o em 1~ de junho de 1839, assimque chegaao
asilo de Middlesex,em Hanwell, perto de Londres.Ele expõesuas
concepçõesem: [1] The Construction and Govemmentof Lunatics
Asylumsand Hospitaisfor the Insane,Londres,J. Churchill, 1847; [2]
The Treatmentof the Insane without Mechanical Restraint, Londres,
Smith and Elder, 1856. Cf. tambémH. Labatt,An Essayon Use and
AbuseofRestraintin the Managementof the Insane..., Londres,Hod-
ges and Smith, 1847.
O PODER PSIQUIÁTRICO
150

19. Cartada madresuperiorado asilo de mulheresde Lille à


madresuperioradas irmãs de Saint-Josephde Cluny que servem
no asilode Saint-Yon (Seine-Inférieure)-de que BénédictAugus-
tin Morei (1809-1873)é médico-chefedesde23 de maio de 1856- ,
à qual expõe a maneiracomo conseguiucontrolar a agitaçãodas
doentes: "Pusemosmãosà obra..., pegandouma mulher agitada
e pondo-asob a vigilância de uma religiosa que sabiase impor"
(citado por B. A Morei em sua Memória: Le Non-Restraint, ou De
l'abolition des moyens coercitifs dans le traitement de la folie, Paris,
Masson, 1860, p. 77). 11
20. Cadeiraque se apoiavanum fole, de tal modo que, ao
menormovimento, o alienadoé sacudido,em todosos sentidos, e
a sensaçãodesagradável que resultadessemovimentoforça-o a fi-
car quieto" G.Guislain, Traitésur les phrénopathies,op. cit., ed. de 1835,
p. 414).
21. Algemasde ferro, forradasde couro,sãopreconizadaspor
Esqui.rol como um dos "numerososmeios mais amenosque as
correntes"("Des maisonsd'aliénés",1818,in Des maladiesmentales...,
op. cit., t. II, p. 533). Cf. tambémJ. Guislain, Traité sur l'aliénation
mentale et sur les hospicesdes aliénés,op. cit., t. II, livro 12: Instituts
11

pour les aliénés.Moyens de répression",pp. 271-2.


22. As II mangasde força" sãoconstituídaspor um cilindro de
pano que mantémas mãospresasdiante do corpo.
23. A camisa-de-força,inventadaem 1790 por um tapeceiro
de Bicêtre, Guilleret, consistenuma camisade pano forte, aberta
atrás,com mangascompridasque se cruzamna frente e se pren-
dem nas costas,imobilizando os braços.Cf.: [a] J. Guislain, Traité
sur l'aliénation mentale..., op. cit., t. II, pp. 269-71. [b] E. Rouhier,
De la camisole ou gilet de force, Paris,Pillet, 1871. [c] A Voisin, "De
l'utilité de la camisolede force et des moyensde contentiondans
le traitementde la folie" (comunicaçãoà Sociedademédico-psi-
cológica, em 26 de julho de 1860), Annalesmédico-psychologiques,
3~série,t. VI, novembrode 1860, pp. 427-31. [d] V. Magnan,ver-
bete "Camisole",in Dictionnaire encyclopédiquedes sciencesmédica-
les, 1~série,t. XI, Paris,Masson/Asselin,1880,pp. 780-4.M. Foucault
analisa osentidodo seuempregoem Histoire de la folie, op. cit., ed.
de 1972,p. 460.
24. Instrumentode contenção,o caixãode vime é uma gaio-
la, do comprimentode um homem,no qual o doentefica deitado
num colchão.Dotado de uma tampa,é abertonuma extremidade
AULA DE 5 DE DEZEMBRODE 1973 151

paradeixarpassara cabeça.Cf. J. Guislain, Traité sur l'aliénatíonmen-


ta/e..., t. II, p. 263.
25. A estrapadaconsisteem içar o culpadocom urna corda,
pése mãosamarrados,até o alto de urna viga e soltá-lovárias ve-
zes no chão. Sobrea prova de verdadeno processojudiciário, ver
o Curso no College de France,ano 1971-1972: "Théorieset Insti-
tutions pénales",6~aula; e Surveílleret punir, op. cít., pp. 43-6.
26. Sobreo suplício de Darnien,cf. Surveílleret punir, pp. 9-11
e 36-72.
27. Trata-sedo dr. Gosseret,relatandoter descoberto" doen-
tes de ambosos sexos,presosna paredepor correntesde ferro"
(citado por B. A Morel, Le Non-Restraint,op. cít., p. 14). Guillaurne
Ferrusdiz tambémque "em algumaslocalidades,prendem-sees-
sesinfelizes na muralha,a que sãoamarradosde pé com uma cor-
reia" (citado por R. Sernelaigne,Les Pionniersde la psychiatríefra n-
çaiseavantet apresPínel, t. I, Paris,Bailliere, 1930, pp. 153-4).
28. F. Leuret, Du traitementmoral de la folie, op. cít., p. 178.
29. Ibid., p. 179.
30. J. Foumet,"Le traiternentmoral...", op. cít. [supra, p. 147,
nota 7], p. 524. Cf. tambémJ. Parigot, Thérapeutíquenaturelle de la
folie. J;air libre et la vie de famille dans la communede Ghéel,Bruxelas,
J. B. Tircher, 1852,p. 13: "Acreditamosque o homemdoenteneces-
sita dessasimpatiaque a vida de família faz nascerantesde tudo."
31. J. Foumet,"Le traiternentmoral...", pp. 526-7.JosephDa-
quin (1732-1815),nascidoem Charnbéry,ondeé nomeadoem 1788
parao hospitaldos Incuráveis;ai, defronta-secom as condiçõespro-
porcionadasaosalienados:cf. La Philosophiede la folie, ou Essai philo-
sophiquesur le traitementdes personnesataquéesde foli e, Chambéry,
Gorin, 1791.Em 1804,apareceuma ediçãorevistae ampliada, dedi-
cadaa Philippe Pinel: La Philosophiede la folie, ou l'on prouve que cet-
te maladie doit plutôt être traitée par les secoursmorau:x que les secours
physiques,Chambéry,Oéaz,an XII. Cf. tambémJ. R. Nyffeler, Joseph
Daquin und seine"Philosophiede la folie", Zurique, Juris, 1961.
32. J. Fournet,"Le traitementmoral... ", p. 527. SobreMettray,
cf. supra, p. 116, nota 35.
33. Charles RobertDarwin (1809-1882), On the Origins of the
Speciesby Meansof Natural Selectíon,ar the Preservationof Favoured
Racesin the Strugglefor Life, Londres,J. Murray, 1859[De !'originedes
especesau moyende la sélectionnaturelle, ou la Luttepour l' existencedans
la nature, trad. fr. E. Barbier(baseadana 6~ ed.),Paris,Reinwald,1876].
152 O PODERPSIQUIÁTRICO

34. JulesFoumet(1811-1885),chefede clínica no hospitalHô-


tel-Dieu (Paris), autor de: [1] Doctrine organo-psychiquede la foli e,
Paris, Masson, 1867; [2] De l'hérédité physiqueou morale (Discurso
pronunciadono Congressomédico-psicológicode 1878),Paris,Im -
primerie nationale,1880. . ..
35. JeanPierreCasirnirPinel (1800-1866),sobnnhode Philip-
pe Pinel, abreem 1829,no número76 da Rue de Chaillot, em Par~s,
uma casade saúdededicadaao tratamentodas doençasmentais,
depois transferidapara Neuilly em 1844, na antiga Folie Saint-Ja-
mes: cf. Du traitementde l'aliénation mentaleen général, et principa-
lement parles bains tiedesprolongéset les an-osementscontinusd'eau
froide sur la tête, Paris,J.-B. Bailliere, 1853.
36. AlexandreBrierre de Boismont(1798-1881),depoisde exer-
cer em 1825 um cargode médicona casade saúdeSainte-Colombe,
na Rue de Picpus, em Paris,assumeem 1838 a direçãode uma casa
na Rue Neuve Sainte-Genevieve, n? 21, que é transferidaem 1859
para Saint-Mandé,onde elefalece em 25 de dezembrode 1881; cf.
[1] "Maison de Santédu Docteur Brierre de Boismont, rue Neuve
Sainte-Genevieve,n? 21, presdu Panthéon,Prospectus";[2] Obser-
vations médico-légalessur la monomaniehomicide,Paris, Mme Auger
Méquignon,1826 (extraídoda Revuemédicale,outubro-novembrode
1826); [3] Des hallucinations,ou Histoire raisonnéedes apparitions,des
visions,des songes,Paris,J.-B. Bailliere, 1845.
37. Esprit SylvestreBlanche (1796-1852)assumeem 1821 a
direçãode uma casade saúdefundadaem 1806 por P. A. Prostem
Montmartre,antesde alugarem 1846 o antigo palaceteda prince-
sade Lamballeem Passy . Faz-senotarpor suascríticasà aplicaçãodo
tratamentomoral por FrançoisLeuret (cf. infra, p. 212, nota 8). Cf.:
[a] J. Le Breton, La Maison de santédu docteurBlanche,sesmédecins,
ses m_alades, Paris,Vigné,1937. [b) R.Vallery-Radot,"La maisonde
santedu docteurBlanche", La Pressemédicale,n? 10, 13 de março
de 1943, pp. 131-2.
38. O curso (cit~do) sobre"A sociedadepunitiva" consagraa
aul~ d~ :1 ?e fevererro de 1973 a essaorganizaçãodo mundo da
delinquenc1a.Ver tambémSuroeiller et punir1 op. cit. 1 pp. 254-60 e
261-99.
39. Em sua casade saúdedo FaubourgSaint-Antoine,que o
dr. Pressatlhe cedeem 1847.
. 40. A. Brierre de Boismont,De l'utílité de la vie de familie..., op.
czt., ed. Martinet, pp. 8-9.
AULA DE 12 DE DEZEMBRO DE 1973

A constituiçãoda criança como alvo da intervençãopsi-


quiátrica. - Uma utopia asilar-familiar: o asilo de Clermont-en-
Oise. - Do psiquiatra como "mestre ambíguo"da realidade e
da verdadenas práticas protopsiquiátricasao psiquiatra como
"agente de intensificação"do real. - Poder psiquiátrico e dis-
curso de verdade.- O problemada simulação e da insurreição
dos histéricos. - A questãodo nascimentoda psicanálise.

Vou prolongarum poucoa última aula porque,no correr


da semana,encontreiuma instituição maravilhosacuja exis-
tênciaeu conheciavagamente,mas não sabiaque me convi-
nha tão bem; de sorte que gostariade lhes falar um pouco
dela,porqueme pareceque ela manifestamuito bem essa ar -
ticulaçãoda disciplina asilarcom, digamos,o modelofamiliar.
Eu havia procuradomostrar a vocês que - contraria-
mente a uma hipótesefácil demaise que eu mesmohavia
sustentado:o asilo tinha se constituídono prolongamento
do modelo familiar - o asilo do séculoXIX funcionou com
basenum modelode micropoderpróximo do que podemos
chamarde poderdisciplinar, que é, em si, em seufunciona-
mento, totalmenteheterogêneoà família. E que, por outro
lado, a inserção,a junção do modelo familiar no sistema
disciplinar é relativamentetardia no séculoXIX - creio que
podemossituá-lapor volta dos anos1860-1880- , e ésim-
plesmentea partir daí que a família não só pôde se tornar
modelo no funcionamentoda disciplina psiquiátrica, mas
sobretudopôde se tornar horizontee objeto da práticapsi-
quiátrica.
Chegouum momento,um momentotardio, em que era
da família que se tratava na prática psiquiátrica.Procurei
154 O PODER PSIQUIATRICO

lhes mostrarque essefenômenoocorria no ponto de cruza-


mentode dois processosque se apoiaramum no outro: um
é a constituiçãodo que poderíamoschainarlucros de ano-
malias,de irregularidades;e, de outro lado, a disciplinariza-
ção interna da familia. Dessesdois processos,tem-secerto
númerode testemunhos.
Por um lado,claro, a extensãocrescenteao longo de todo
o séculoXIX dessasinstituiçõesde lucro que têm essencial-
mentepor fim tornar onerosasao mesmotempo a anoma-
lia e aretificaçãoda anomalia;digamos,em linhas gerais,as
casasde saúdeparacrianças,adultos,etc. Por outro lado, a
instituição no interior da própria família, a aplicaçãono in-
terior da própria pedagogiafamiliar, de técnicaspsiquiátri-
cas.Parece-meque, progressivamente, [...]* pelo menosnas
famílias que podiam proporcionarum lucro de anomalia,
isto é, as familias burguesas,[acompanhando]a evoluçãoda
pedagogiainterna dessasfainílias, veríamoscomo o olho
familiar ou, se assimpodemosdizer, a soberaniafamiliar ad-
quiriu pouco a pouco a fisionomia da forma disciplinar. O
olho familiar tornou-seolhar psiquiátricoou, em todo caso,
olharpsicopatológico,olhar psicológico.A vigilância da crian-
ça tomou-seuma vigilância em forma de decisãosobre o
normal e o anormal;começou-sea vigiar seucomportamen-
to, seucaráter,suasexualidade;e é entãoque vemosemergir
justamentetoda essapsicologizaçãoda criançano interior
da própria família.
Parece-meque,ao mesmotempo,as noções,os próprios
aparelhosdo controlepsiquiátricoforam pouco a pouco im-
portadospara a família. E essesfamososinstrumentosda
coerçãofísica que eram encontrados nos asilos a partir dos
anos1820-1830(ainarraras mãos,sustentara cabeça,man-
ter ereto, etc.), tenho a impressãode que, estabelecidosde
início no interior da disciplina asilar como instrumentos
dessadisciplina, nós os vemos deslocar-sepouco a pouco,

,. Gravação: "se olharmoscomo aconteceu".


AULA DE 12 DE DEZEMBRO DE 1973 155

tomarlugar no interior da própriafamília. O controleda pos-


tura, dosgestos,da maneirade se comportar,o controleda se-
xualidade,os instrumentosqueimpedema masturbação, etc.,
tudo isso penetrana farm1ia por uma disciplinarizaçãoque
se desenrolano decorrerdo séculoXIX e que terá por efeito
que a sexualidadeda criançatornar-se-áfinalmente objeto
de saber,no interior da própria família, por essadisciplinari-
zação.E, com isso, a criançavai se tomar o alvo central da
intervençãopsiquiátrica.Alvo centralem dois sentidos.
Por um lado, num sentidodireto, já que a instituiçãode
lucro que se liga à psiquiatriavai efetivamentepedir à família
que lhe forneçao materialde que ela necessitaparaconsti-
tuir seulucro. Em linhas gerais,a psiquiatriadiz: deixemvir
a mim as criancinhas loucas. Ou: não seé jamais demasia-
do jovem paraserlouco. Ou ainda: não esperemficar maio-
res ou adultospara serem loucos.E isso tudo se traduzpor
essasinstituiçõesao mesmotempo de vigilância, de detec-
ção, de enquadramento, de terapêuticasinfantis, que vocês
vêemdesenvolver-seno fim do séculoXIX.
Em segundolugar, a infância vai se tomar o centro, o
alvo da intervençãopsiquiátricade uma maneiraindireta, na
medidaem que aquilo sobreo queseinterrogano adulto lou-
co é precisamentea suainfância: deixe vir a você suas lem-
brançasde infância, e é assimque você serápsiquiatrizado.
Eis, digamos,em linhas gerais,o que eu haviaprocurado es-
tabelecerda última vez.
Isso tudo me leva a essainstituição que manifestatão
bem,na alturados anos1860,a junçãoasilo-família,nãopos-
so dizer a primeira junção,mas certamente sua forma mais
perfeita, mais ajustada,quaseutópica. Não encontrei,pelo
menosna França,outrosexemplosdesseestabelecimento que
fossemtão perfeitose que constituíssem,naquelaépoca,bem
cedoportanto,uma espéciede utopia familia-asilo, que é o
pontode junçãoda soberaniafamiliar com a disciplinaasilar.
Essainstituição é o acoplamentodo asilo de Clermont-en-
Oise com a casade saúdede Fitz-James.
156 O PODER PSJQlllATRICO

No fim do séculoXVIII, é wna pequenacasade inter-


nação, no sentidoclássicodo termo, situadanos arredores
de Beauvais.É mantidapor fradesfranciscanosque,median-
te pensão, recebema pedido das familias ou por ordem do
poderreal cercade vinte pensionistas.Em 1790,a casaé des-
cerrada;toda aquelagentevê-se livre, mas,evidentemente,
paracerto númerode familias é um estorvoessagentedis-
sipadora,desordenada, louca,etc., de modo que os mandam
então para Clennont-en-Oise,onde alguém abre uma es-
pécie de pensão.Nessemomento,do mesmomodo que os
restaurantes parisiensesse abrirain sobreos escombrosdas
grandescasasaristocráticasque se desfaziamsob o impacto
da Emigração, dessemesmomodo, muitas dessaspensões
nasceramsobreas ruínasdas casasde internaçãoque aca-
bavamde serdescerradas. Há portantoumapensãoem Cler-
mont-en-Oise, onde havia sob a Revolução,duranteo Im-
pério, ainda no início da Restauração,umasvinte pessoas.
E, a partir do momentoem que se faz a grandeinstitucio-
nalizaçãoda práticapsiquiátrica,essapensãoadquireuma
importânciacadavez maior e faz-se,entre a administração
prefeitoraldo departamentode Oise e o fundadorda pen-
são,um arranjo segundoo qual os alienadosindigentesdo
departamentoserãoenviadosparaa casade Clermont,me-
diante wna retribuição do departamento.O acordo esten-
de-se, aliás, para os departamentosde Seine-et-Oise,Sei-
ne-et-Marne,Somme,Aisne; ao todo, cinco departamentos
mandammais de um milhar de pessoasparaessacasa,que
adquireentãoo caráterde um asilo pluridepartamental,por
volta de 18501.
É nessaépocaque vemoso asilo se desdobrar,ou antes,
lançaruma espéciede pseudópode, na forma do que se cha-
ma "colônia • Essacolônia é constituídade certo número
2
11

de pensionistasdesseasilo, quetenhamcapacidadede [traba-


lho]*; e, a pretextode que podemao mesmotemposer úteis

.. Gravação: "poder trabalhar".


AUlA DE 12 DE DEZEMBRO DE 1973 157

e de que,como quer que seja,o trabalhoé útil parasuacura,


são submetidosa um regime rigoroso de trabalhoagrícola.
Segundopseudópode,que vai se ligar à fazenda,é es-
tabelecidoparaos pensionistasricos que nãovêm do asilo de
Clermont,mas que sãoenviadosdiretamentepela família e
.pagamuma pensãoelevadíssima,uma pensãoque é de ou-
tro tipo, obedecea outro modelo, que é o modelofarniliar3.
E assimque vamoster umainstituiçãode três estágios:
o asilo de Oermontcom seumilhar de doentes,a fazendacom
100-150 homense mulheresencarregadosde trabalhar4e
uma pensãopararesidentespagantes,que aliás sãosepara-
dos: os homensmoramno prédio da direçãocom o próprio
diretor da instituição;as mulheresricas moramem outro edi-
fíci o que leva o nome característicode "pequenocastelo",
onde levam uma existênciaque tem por forma geral o mo-
delo farniliar5. Isso é estabelecidodurantea décadade 1850-
1860. Em 1861, o diretor da casapublica um balançoque é,
ao mesmotempo,uma espéciede prospecto,muito elogioso
e ligeiramenteutópico,masque mostracom exatidãoo fun-
cionamento muito meticuloso,muito sutil do conjunto.
Vocêstêm num estabelecimento como esse- o asilo de
Oermont,a fazendae o pequenocastelode Fitz-James-cer-
to númerode níveis. De um lado, vocêstêm um circuito eco-
nômico, fácil de identificar: subvençãodo departamentoatri-
buída pelo conselhogeral para os doentespobrese em fun-
ção do seunúmero;depois,recrutamentoentreessesdoentes
pobresdo númeronecessárioe suficientede pessoas para fa-
zer uma fazendafuncionar; com o lucro da fazenda,cria-see
mantém-seum pequeno castelo ao qual se traz certo núme-
ro de pensionistaspagantes,pagamentoesseque constitui o
benefíciodos responsáveispelo sistemageral. Portantovocês
têm o sistema:subvençãocoletiva-trabalho-produção-lucro.
Em segundolugar, vocêsestãovendo que têm aí uma
espéciede microcosmosocial perfeito, uma espéciede pe-
quenautopia do funcionamentosocialgeral.O asilo é oexér-
cito de reservado proletariadoda fazenda;sãotodosos que
eventualmentepoderiamtrabalhar,que, se não podem,es-
158 O PODERPSIQUIÁTRICO

peramo IT\.Omento de trabalhare, se não sãocapazesde tra-


balhar, ficam ali, vegetando.Depois, vocês têm o lugar do
trabalhoprodutivo,que é representado pelafazenda;depois,
vocêstêm a instituição em que estãoos que se beneficiam
do trabalhoe do lucro. E a cadawn desses1úveiscorrespon-
de uma arquiteturabem particular: a do asilo; a da fazenda,
que é na realidadeum modelopraticamenteno limite da es-
cravidãoe da colonização;e há o pequenocastelocom o pré-
dio da direção.
Vocês têm tambémdois tipos de poder,o primeiro dos
quais se desdobra.Vocêstêm o podertradicional disciplinar
do asilo, negativode certo modo, pois se trata de manter as
pessoassossegadas semnadaobter de positivo delas.Vocês
têm um segundotipo de poder,este tambémdiscip linar mas
ligeiramentemodificado, que é, grossomodo, o poder da co-
lonização:pôr as pessoasparatrabalhar. E os alienadossão
divididos em esquadrões, brigadas,etc., sob a responsabili-
dadee avigilância de certo númerode pessoasque os man-
dam regularmenteparao trabalho.E há o poderde modelo
familiar, cujos beneficiáriossãoos pensionistasdo pequeno
castelo.
Vocêstêm, enfim, três tipos de intervençãoou manipu-
laçãopsiquiátrica,que tambémcorrespondema essestrês ní-
veis. Um que é, por assimdizer, o grau zero da intervenção
psiquiátrica,ou seja,o depósitopuro e simplesno asilo. Em
segundolugar, uma práticapsiquiátricaque é pôr os doen-
tes paratrabalhara pretextode curá-los:ergoterapia.Por fim,
em terceirolugar, vocêstêm a práticapsiquiátricaindividual,
individualizante,de modelofamiliar, cujos beneficiáriossão
os pensionistas.
E, no meio disso tudo, o elementomais importantee
mais característicoé sem dúvida a maneiracomo o sabere
o tratamentopsiquiátricosvêm se articular com a atribuição
de trabalho aos pensionistasque são capazesde trabalhar.
De fato, muito curiosamente,essascategoriaspsiquiátricas
que a psiquiatriada época,desdeEsquirol, elaborou- e que
procurareimostrara vocêsque não influenciou de modo al-
AULA DE 12 DE DEZEMBRODE 1973 159

gum a terapêuticapropriamentedita -, essascategoriassãona


verdadeutilizadas aqui muito claramentecomo classifica-
ção não da curabilidadedaspessoas,da forma de tratamen-
to que develhes seraplicada;a classificaçãonosológicanão
estáligada anenhumaprescriçãoterapêutica,ao contrário,
ela serveunicamenteparadefinir a utilizaçãopossíveldosin-
divíduos paraos trabalhosque lhes são oferecidos.
Assim, os diretoresdo asilo de Oermonte da fazendade
Fitz-Jamesperceberamque maníacos,monomaníacosou de-
menteserambonsparaos trabalhosdoscampose dasoficinas,
paraos cuidadose a conduçãodos animaise dos instrumen-
tos de aratórios6 • Em compensação,"os imbecis e os idiotas
são encarregados da limpeza dospátios e dos estábulos,e de
todos os transportesnecessáriosao serviço"7 • Quantoàs mu-
lheres,a utilizaçãodaspessoasde acordocom a suasintoma-
tologia é muito mais fina. Assim, "as que estãono lavadouroe
na lavanderiasãoquasesempreacometidasde um delírio rui-
dosoe não podiamsesubmeterà calmada vida de uma ofici-
na"ª. No lavadouroe na lavanderia,portanto,pode-sedelirar
emvoz alta, pode-sefalar alto, pode-segritar. Em segundolu-
gar, "as que estendema roupasãomelancólicasparaas quais
essegênerode trabalhopode trazer devolta a atividadevital
que tantasvezeslhes falta. As imbecis e as idiotas sãoencar-
regadasde transportara roupado lavadouroao secadouro . Os
locais da triagem e dobragemda roupa sãoda atribuiçãodas
doentestranqüilas,monomaníacas e cujasidéiasfixas ou alu-
9
cinaçõespossibilitamuma atençãosustentada" •

Eu citei esseestabelecimento porqueme parecerepre-


sentar,nessadécadade 1860,ao mesmotempoa forma pri-
meira e o ponto de consumaçãomais perfeito desseajuste
farru1ia-disciplina,ao mesmotempo que a manifestaçãodo
saberpsiquiátricocomo disciplina.

*
Esseexemplonosleva aliásao problemaque gostariade
abordaragorae que é: a esseespaçodisciplinar, ainda não
160 O PODER PSIQWÁTRICO

familiarizado,que v mos se constituirno decorrer~os ~~s


1820-1830 e que vai constituiro grandesuporteda msh~-
ção a ilar, a e si tema disciplinar,como e em que medida
lhe atribui um efeito terapêutico?Pois,afinal de contas,não
e devee quecerque,mesmoque essesistemadisciplinarseja
m muitos pontos isomorfo em relaçãoaos outros sistemas
disciplinaresque sãoa escola,o quartel,a oficina, etc., ele se
dá e ejustifica por suafunção terapêutica.Em que sentido
essee paço disciplinar deve curar?Qual é a prática médica
que habita e se espaço?Eis o problemaque eu gostariade
começara colocarhoje.
Eu gostariade partir, para tanto, de um tipo de exem-
plo de que já falamos,que é o que se pode chamarde cura
clássica- entendopor clássicaa que se davaainda durante
o séculosXVII-XVIII e inclusive no início do século XIX.
Dei paravocêscerto númerode exemplos.É o casodaquele
doentede Pinel, que se imaginavaperseguidopelosrevolu-
cionários,prestesa serlevadoaostribunaise, por conseguin-
te, ameaçadoda penade morte. Pinel curou-o organizando
em torno deleum pseudoprocesso, com pseudojuízes, no qual
foi absolvido.Graçasa isso, ele se curou º.1

Do mesmomodo, uma pessoacomo Mason Cox, no


início do séculoXIX, dá o seguinteexemplode cura.Trata-se
de um homemde quarentaanos,que "havia alteradosuasaú-
de por uma atençãodemasiadoconcentradaem objetosde
comércio"11 • Essapaixãopelo comérciolhe meterana cabe-
ça a idéia de que "sofria de todo tipo de doenças"12• A prin-
cipal entreessas,aquelapela qual se sentiamais ameaçado,
era o que se chamava,na época,a "sarnadisseminada",isto
é, urnairrupçãode sarnaque não havia chegadoao seuter-
mo, q~e tinha se ~ndido por todo o organismoe que se
traduziapor certonumerode sintomas.A técnicaclássicapara
curá-laera fazer a referidasarnaeclodir e tratá-lacomo tal.
~enta-sepor algum tempofazer o doenteentenderque
ele_na?_temAnen~uma~as doençasem questão:"Nenhum
rac1ocm10podedissuadi-lo,nem distraí-lo.Resolveu-seen-
tão realizaruma consultasolenecom vários médicosreuni-
AULA DE 12 DE DEZEMBRO DE 1973 161

dos, os quais,depoisde examiná-lobem e de concordarem


com a necessidade de entrarnasidéiasdo doente,decidiram
unanimementeque sua conjecturaera bem fundadae que
era absolutamentenecessáriofazer a sarnamanifestar-se
novamente.Em conseqüência disso,prescreveram- lhe apli-
caçõesrubefacientes,por meio das quais surgiramsucessi-
vamenteem diferentespartesdo corpo um grandenúmero
de botões,paracuja cura só foram necessárias lavagensbem
simples;mas em suaadministração,fingiram tomar muitas
precauçõespara não causaruma nova disseminação.Esse
tratamentoprolongadopor algumassemanasteve muito
bom resultado.O doenteficou completamentecuradoe re-
cuperou,com suarazãoe suasaúde,todasas faculdadesdo
seuespírito."13 De certomodo,tinha-sesatisfeitoseudelírio.
O que essesprocedimentos,de Pinel e de Mason Cox,
supõeme põem em prática?Eles supõem- é bem sabido,
nãovou insistir - que o núcleoda loucuraé uma falsa cren-
ça, umailusão ou um erro.Tambémsupõem- o quejá é um
pouco diferente- que bastaráreduzir esseerro para que a
doençadesapareça.O procedimentode cura é, portanto,a
reduçãodo erro; só que o erro de um louco não é o erro de
um qualquer.
A diferençaentreo erro de um louco e o de um não-lou-
co não estátanto na extravagânciada idéia, porque,afinal
de contas,nãoé extravagâncianenhumaacreditarque se está
com uma sarnadisseminada.E, aliás, como dirá um pouco
mais tardeLeuret,em seusFragmentospsicológi.cossobrealou-
cura, afinal de contas,entre Descartes,que acreditavanos
turbilhões,e urna doenteda Salpêtriere , que imaginavaque
o concílio se realizavaem seu baixo-ventre14, a extravagân-
cia da doentenão é tão maior assim.O que faz com que o
erro de um louco sejaprecisamenteo erro de um louco?Não
é tanto a extravagância,portanto,o efeito terminal do erro,
quantoa maneiracorno se podesuperaresseerro, reduzi-lo.
O louco é aquelecujo erro não pode ser reduzidopor uma
demonstração;é alguém para o qual a demonstraçãonão
produza verdade.Por conseguinte , vai serprecisoencontrar
162 O PODERPSIQUIÁTRICO

outro meio de reduzir o erro - já que a loucura é, de fato, o


erro -, sem passarpela demonstração.
Querdizer que, em vez de atacaro juízo errôneoe mos-
trar que ele não tem correlativo na realidade- o que é, grosso
modo, o processoda de1nonstração-, deixa-sevaler como
verdadeiroessejuízo que é falso e, em contrapartida,trans-
forma-sea realidadede maneiraque ela venhase ajustarao
juízo louco, ao juízo errôneo.Ora, a partir do mmnentoem
que um. juízo que era errôneopassaa ter assimna realida-
de um correlativo que o verifica, a partir dessemomentoo
que estáno espíritocoincidindo como que estána realidade,
não há mais erro e portantonão há mais loucura.
De modo que não é manipulandoo juízo falso, tentando
retificá-lo, expulsá-lode si pelademonstração, é, ao contrário,
travestindo-o,manipulandoa realidade,que se vai, de certo
modo, fazer a realidadechegarà altura do delírio; e, no mo-
mento em que o juízo falso do delírio tiver um conteúdoreal
na realidade,ele se tornarácom isso um juízo verdadeiroe a
loucura deixaráde ser loucura,já que o erro terá deixadode
ser um erro. Portantofaz-se a realidadedelirar de maneira
que o delírio não sejamais delírio; desengana-se o delírio de
maneiraque ele não seenganemais.Em suma,trata-sede fa-
zer arealidadeentrarno delírio sob a máscarade figuras de-
lirantes,de tal modo que o delírio fique repleto de realidade.
Sob todasas proposiçõesfalsas do delírio ou sob a principal
dessasproposiçõesfalsas do delírio, insinua-sesub-repticia-
mente,por um jogo de transformações, de máscaras,algo que
é uma realidade;e se teráverificado assimo delírio*.
Vocês estãovendo que essapráticada cura é, em certo
sentido,absolutamente homogêneaa toda a concepçãoclás-
sica do juízo, do erro. Estamosna linha reta,digamos,da con-

* O manuscrito precisa: "Já que é como uma realidade cômica,


teatral, como pseudo-realidade,que ela se introduz sub-repticiamente
no delírio, e concedendouma segundaeficácia à realidade, já que basta
que o juízo falso se torne verdadeiro pelo mascaramentoda realidade
para que o delírio caia."
AULA DE 12 DE DEZEMBRODE 1973 163

cepçãode Port-Royalda proposiçãoe do juízo15. Mas vocês


estãovendoque,entreo professorou o demonstrador,aque-
le que é o detentorda verdade,e o psiquiatra,há uma dife-
rença.Enquantoaqueleque é apenas osenhorda verdade,
o professor,o cientista,manipulao juízo, a proposição,o pen-
samento,o médico é aqueleque vai manipulara realidade
de maneiraque o erro se torne verdade.O médico, nesse
gênerode operação,é o intermediário,a pessoaambivalen-
te que [por um lado] olha para a realidadee a manipulae,
por outro, olha paraa verdadee o erro e dá um jeito paraque
a forma da realidadebaixe ao nível do erro para transfor-
má-lo assimem verdade.
Ele manipulaa realidadefazendo-ausaruma máscara;
torna essarealidadeum pouco menosreal. Em todo caso,
depositanela uma espéciede película de irrealidade,colo-
ca-aassimno parêntesedo teatro,do" comose", do pseudo,
e éassim,irrealizandoa realidade,que ele operaessatrans-
formaçãodo erro em verdade.Agente,por conseguinte,da
realidade,e nisto ele não é comoo cientistanem como o pro-
fessor,ele é no entantoaqueleque irrealiza a realidadepara
agir sobreo juízo errôneoque é sustentadopelo doente16.
Creio que podemosdizer o seguinte:o psiquiatra,talco-
mo vai funcionar no espaçoda disciplina asilar, já não vai
ser de forma algumao indivíduo quevai olhar para a ver-
dadedo que o louco diz; ele vai resolutamente,de uma vez
por todas,passarpara o lado da realidade*.Ele vai ser, não
mais o senhorambíguoda realidadee da verdade,comoocor-
ria aindacom Pinel e MasonCox, vai ser o senhorda reali-
dade.Já não se trata, em absoluto,paraele, de introduzir, de
certo modo, fraudulentamente,a realidadeno delírio; não
se trata mais de ser o contrabandistado real, como Pinel e
Mason Cox ainda eram.O psiquiatraé aqueleque deve dar

* O manuscrito acrescenta: "Na psiquiatria asilar, é de um modo


bem diferente que o psiquiatra desempenhao papel de senhor da rea-
lidade."
164 O PODERPSIQUIÁTRICO

ao real essaforça coativapela qual o real vai poderse apo-


derar da loucura, atravessá-lapor inteiro e fazê-la desapa-
recercomo loucura.O psiquiatraé aqueleque - e é aí que
suatarefase define- deveproporcionarao real o suplemen-
to de poder necessáriopara se impor à loucura e, inversa-
mente,o psiquiatravai ser aqueleque deve tirar da loucura
o poderde subtrair-seao real.
Portanto,a partir do séculoXIX o psiquiatraé um fator
de intensificaçãodo real e é o agentede um sobrepoderdo
real, ao passoque, na épocaclássica,de certo modo, ele era
o agentede um poder de irrealizaçãoda realidade.Vocês
vão me dizer que, se é verdadeque o psiquiatrado século
XIX passainteiramentepara o lado da realidadee se vai se
tornar paraa loucura,justamenteatravés dopoderdiscipli-
nar que assume,o agenteda intensificaçãodo poderda rea-
lidade, não é verdadeporémque a questãoda verdadenão
estejapostaparaele. Direi que, claro, o problemada verda-
de se coloca na psiquiatriado séculoXIX, apesarda negli-
gênciabastantegrandeafinal que ela manifestaparacom a
elaboraçãoteórica da sua prática.A psiquiatrianão elide a
questãoda verdade,mas,em vez de pôr a questãoda ver-
dade da loucura no próprio cerne da cura, o que ainda se
davano casode Pinel e MasonCox, no meio dassuasrela-
çõescom o louco, em vez de fazer o problemada verdade
irromper no choqueentre médico e doente,o poder psi-
quiátrico coloca a questãoda verdadesomenteno interior
dele próprio. Ele a faz suade saídae de umavez por todas,
constituindo-secomo ciênciamédicae clínica. Ou seja,em
vez de estarem jogo na cura,o problemada verdadefoi re-
s?lvidode umavez por todaspelapráticapsiquiátrica,a par-
tir do momentoem que ela se deu como estatutoser uma
prátic~Am~dica_e :?~º fundamentoser uma aplicaçãode
uma c1enc1aps1qmatnca.
De 1:1º~?que, sefosseprecisodar uma definiçãodesse
poder ps1qm~tnc_ode que eu queria lhes falar esteano, eu
proponaprovisonamenteesta:o poderpsiquiátricoé essesu-
plementode poderpelo qual o real é imposto à loucuraem
AULA DE 12 DE DEZEMBRODE 1973 165

nomede umaverdadedetidade umavez por todaspor esse


poder sob o nome de ciência médica,de psiquiatria. Creio
que,a partir dessadefiniçãoque eu lhesproponhoassim,pro-
visoriamente,pode-secompreendercerto número de tra-
ços geraisda história da psiquiatriano séculoXIX .
Em primeiro lugar, a curiosíssimarelação- euia dizendo:
a ausênciade relação- entre a práticapsiquiátricae, diga-
mos assim,os discursosde verdade.Por um lado, é verdade
que bem cedo,com os psiquiatrasdo início do séculoXIX,
a psiquiatriamanifestaum grandecuidadoem se constituir
como discursocientífico. Mas a que discursoscientíficos a
práticapsiquiátricadá lugar?A dois tipos de discursos.
Um, que podemoschamarde discursoclínico ou classi-
ficatório, nosológico.Em linhas gerais,trata-sede descrever
a loucura como uma doença,ou antes,como uma série de
doençasmentais,cadauma das quais com a sua sintoma-
tologia, suaevoluçãoprópria, seuselementos diagnósticos ,
seuselementosprognósticos,etc. Nisso, o discursopsiquiá-
trico que se forma propõecomo seumodeloo discursomé-
dico clínico habitual; trata-sede constituir uma espéciede
analogonda verdademédica.
Depois,bem cedotambém,antesmesmoda descober-
ta por Bayle da paralisiageral,em todo casoa partir de 1822
(descobertade Bayle)17, vocêsvêemse desenvolvertodo um
saberanatomopatológicoque coloca a questãodo substra-
to ou dos correlativosorgânicosda loucura, o problemada
etiologiada loucura, darelaçãoentrea loucurae aslesõesneu-
rológicas,etc., e que tampoucoconstituium discursoanálogo
ao discursomédico, mas um discursoefetivamenteanáto-
mo- ou fisiopatológico,que deveservir de garantiamateria-
lista paraa práticapsiquiátrica18•
Ora, sevocêsolharemcomoa práticapsiquiátricasede-
senvolveuno séculoXIX, como semanipulavamefetivamen-
te a loucura e os loucos no asilo, vão perceberque, de um
lado, essapráticaera postasob signo e, de certomodo, sob
a garantiadessesdois discursos,um nosológico, das espé-
cies de doenças,e o outro anatomopatológico , dos correla-
1 O PODER PSJQUIÁTRJ
CO

ti rgaruc . É ao abrig d dois discurso que a práti-


ca p iquiátrica d nvoJvla, mas ela nuncase servia dele ,
u ' rvia por r fer"ndai por um istemade remissõese,
d rto m do, p r vinculação. unca a práticapsiquiátrica,
ta] e m d u no 'culo XIX, empregouefetivamente o sa-
b r u quas -sab r queestavaseacumulando,sejana gran-
d n 1 gia p iquiátrica, seja tambémnas pesquisasanato-
m patol ' gic . As di tribuiçõesasilares,a maneiracomo os
d nt ram da ificados, como eram repartidosno asilo,
e m lh ra dadoum regime,como lhes eramimpostasta-
refas,com e declaravaque elesestavamcuradosou doen-
t , que ram curáveisou ,incuráveis,no fundo, não levavam
m conta s dois discursos.
s doi discursoseram simplesmen t e espéciesde
garantia de verdadede uma prática psiquiátricaque queria
quea verdad lhe fo sedadade umavez por todase nãofos-
s mai que tionada.Atrás dela, as duasgrandessombras,
a da no ol gia e a da etiologia, a da nosografiamédicae a
da anatomiapatológicalá estavamparaconstituir, antesde
toda prática p iquiátrica, a garantiadefini.tiva de uma ver-
dad qu nuncaseriaquestionadana práticada terapia.Em
linhas gerais,o poderpsíquiátricodiz o seguinte:a questão
da erdadenunca erá posta entre mim e a loucura, pela
ímpl s razãod qu eu, a psiquiatria,já sou uma ciência..
E e tenhoo direíto, como ciência,de me interrogarsobre
o que digo, é verdadeque possocometererros, como
quer que ja, cabea mim, e somentea mim, como ciência,
d cidir e o que digo é verdadeou corrigir o erro cometi-
do. ou d tentora,senãoda verdadeem seuconteúdo,pelo
m nosd todo os critériosda verdade.E é nissoaliás,é por-
que, como sabercientífico, detenhoassimos critérios deve-
rificação e de verdade,que possome associarà realidadee
a seupod r impor a todosessescorposdementese agita-
dos o obrepoderque vou dar à realidade.Sou o sobrepo-
der da realidadena medidaem que detenhopor mim mes-
ma e de maneiradefinitiva algo que é a verdadeem relação
à loucura.
ULA DE 12 DE DEZEMBRO DE 1 73 167

É o que um psiquiatrada épocachamavade "os direi-


tos impre cri tíveis da razãosobrea loucura",que eram para
ele os fundamentosda intervenção psiquiátrica 1
C/ .

Creio que a razãodessanão-articulaçãodos ctiscursos


de verdadee da prática psiquiátrica,dessadefasagem,se
devea essafunção de incrementodo poderdo real, que é a
função essencialda práticapsiquiátricae que deve,de certo
modo, desestabilizaruma verdadeconsideradajá adquiri-
da. E isso permitecompreenderentãoque o grandeproble-
ma da história da psiquiatriano séculoXIX não é um pro-
blemade conceitos,não é em absolutoo problemadestaou
daqueladoença: não é nem a monomanianem mesmoa
histeria que constituíramo verdadeiroproblema,a cruz da
psiquiatriado séculoXIX. Admitindo-seque,na práticapsi-
quiátrica,a questãoda verdadenuncaé colocada,vocêshão
de compreenderque a cruz da psiquiatria do séculoXIX é
muito simplesmenteo problemada simulação20.
Por simulação,não entendoa maneiracomo um não-
louco poderiase fazer passarpor louco, porqueisso nunca
põe realmenteem questãoo poderpsiquiátrico. ão é ver-
dadeque fazer se passarpor louco quandonão se é louco
seja,paraa práticapsiquiátrica,parao poderpsiquiátrico, algo
cornoum limite, umafronteira ou o fracassoessencial,pois,
afinal de contas,isso aconteceem todasas ordensdo saber
e, em particular, na mecticina. Sempreé possívelenganar
um médico, fazendo-oacreditarque se tem estaou aquela
doença,esteou aquelesintoma- toda pessoa que fez o ser-
viço militar sabedisso-, e a práticamédicanem por isso é
posta em questão.Em compensação,e é des a simulação
que querolhes falar, a simulaçãoque foi o problemahistó-
rico da psiquiatriano séculoXIX é asimulaçãointernaa lou-
cura, isto é, essasimulaçãoque a loucuraexerceem relação
a si mesma,a maneiracomo a loucura simula a loucura, a
maneiracomo a histeria simula a histeria, a maneiracomo
um sintomaverdadeiro éuma certamaneirade mentir, a ma-
neira como um falso sintomaé uma maneirade estarver-
dadeiramentedoente.Foi tudo issoqueconstituiuparaa psi-
168 O PODER PSIQUIÁTRICO

quiatria do séculoXIX o problemainsolúvel,o limite e, final -


mente,o fracassoa partir do qual ia se produzir certo nú-
mero de ressurgências.
Em linhas gerais,a psiquiatriadizia: com você que élou-
co, não vou levantaro problemada verdade,porqueeu pró-
pria detenhoa verdadepelo meu saber,a partir das minhas
categorias;e se detenhoum poderem relaçãoa você, louco, é
porquedetenhoessaverdade.Nessemomento, a loucura res-
pondia:sevocê pretendedeterde uma vez por todas averda-
de em função de um saberque já está todo constituído, pois
bem, vou instalar em mim mesma a mentira. E, por conse-
guinte, quandovocê manipular meus sintomas, quandovocê
lidar com o que chamade doença,vai cair numacilada, por-
que haverábem no meio dos meus sintomas essepequeno
núcleode noite, de mentira,pelo qual eu te colocareia ques-
tão da verdade.Por conseguinte,não é no momentoem que
o seusaberfor limitado que te enganarei- o que seriasimu-
laçãopurae simples-;ao contrário,sevocê quiserum dia efe-
tivamenteagir sobremim, seráaceitando o jogo daverdadee
da mentiraque eu te proponho.
A simulação.Desdeo ano de 1821,quando avemos sur-
gir na Salpêtrierediantedaqueleque foi um dos maiores psi-
quiatrasda época,Georget,com as duas simuladoras da Sal-
pêtriere,até o grandeepisódiode Charcot por volta dos anos
1880, podemosdizer que toda a história da psiquiatria foi
atravessada por esseproblemada simulação.E, quandodigo
esseproblema,não é do problemateórico da simulaçãoque
estoufalando, mas desseprocessopelo qual os loucos efeti-
vamenteresponderam,a essepoderpsiquiátricoque se recu-
savaa colocara questãoda verdade,com a questãoda men-
tira. A mentira da simulação,a loucura simulandoa loucura,
foi esteo antipoderdos loucosem face do poderpsiquiátrico.
Daí, creio eu, a importânciahistóricadesseproblemada
simulaçãoe da histeria.Daí, vocêspodemcompreendertam-
bémo carátercoletivo dessefenômenoda simulação.Vemo-lo
aparecerportantopor volta de 1821 no comportamentode
duashistéricasquetinhamo nomede Petronillee de Braguet-
AULA DE 12 DE DEZEMBRO DE 1973 169

te21 • Essasduaspessoas,acreditoeu, fundaramum imenso


processohistórico na psiquiatria;essasduasdoentesforam
imitadasem todosos asilosda Françaporqueerafinalmenteo
seuinstrumentode luta diantedo poderpsiquiátrico.E agran-
de crise da psiquiatriaasilar, a que eclodiu no fim do século
XIX, mais ou menosem 1880,que aparecequandose percebe
que,dianteda grandetaumaturgiade Charcot,todosos sinto-
mas estudadospor ele eram por ele suscitadosa partir da si-
mulação deseusdoentes,de modo que o problemada verda-
de tenhasido assimimpostoà psiquiatriapelosloucos.
Se insisto nessahistória é por certo númerode razões.
A primeira é que não se trata de um assuntode sintoma.
Costuma-sedizer que a histeriadesapareceur ou que ela foi
a grandedoençado séculoXIX. Mas nãofoi a grandedoen-
ça do séculoXIX; foi, se empregarmoso vocabuláriomédico,
uma síndrometipicamenteasilar ou uma síndromecorrela-
tiva do poderasilar ou do podermédico; mas tambémnão
querousara palavrasíndrome.Foi efetivamenteo processo
pelo qual os enfermostentavamescapardo poderpsiquiátrico;
foi um fenômenode luta, e nãoum fenômenopatológico.Em
todo casoé dessemodo, creio, que devemosencará-lo.
Em segundolugar, não se deve esquecerque, se desde
Braguettee Pétronille, houve tanta simulaçãodentro dos
asilos,é que isso na verdadetomou-sepossívelnão apenas
pela coexistênciados doentesno próprio interior dos asilos,
mas tambémporqueos doentestinham a cumplicidade,o
apoio, ora espontâneo,ora involuntário, ora explícito, ora
implícito, do pessoal,dos internos,dos guardas,dos subal-
ternosda medicina.Não se deveesquecerque Charcotpra-
ticamentenuncaexaminouuma só dessashistéricase que
todasas suasobservações, falseadaspelasimulação,na ver-
dadelhe eramtrazidasdo exterior pelo pessoalque enqua-
drava as doentese que, com elas,em grausde cumplicidade
mais ou menoselevados,construíaessemundo da simu-
lação pelo qual se resistiaao poderpsiquiátricoque estava
precisamentena Salpêtriere,encarnado,em 1880, por al-
guémque nem erapsiquiatra,masneurologista,aqueleque,
170 O PODERPSIQUlÁTRICO

por conseguinte,melhor podia se apoiar num discursode


verdademuito bem constituído.
Portantoarmou-se, paraaqueleque chegavamunido do
mais alto sabermédico, o ardil da mentira.E portantocomo
processo,não apenasde luta dos doentescontrao poderpsi-
quiátrico, mas de luta no interior do próprio sistemapsiquiá-
trico, do sistemaasilar, que éprecisocompreendero fenôme-
no geralda simulaçãono séculoXIX. E creio que chegamosao
episódioque deve ser o alvo do meu curso, o momentoem
que,justamente,por força e pelo conjuntodessesprocessos,a
questãoda verdade,postaentre parêntesesdepois de Pinel e
MasonCox pelo sistemadisciplinardo asilo e pelo tipo de fun-
cionamentodo poderpsiquiátrico,é reintroduzida*.
Podemosdizer que a psicanálisepode ser interpretada
como o primeiro granderecuo da psiquiatria, o momento
em que a questãoda verdadedo que se dizia nos sintomas
ou, em todo caso,o jogo da verdadee da mentira no sinto-
ma foi imposto à força ao poder psiquiátrico; o problema
era saberse, nessaprimeira derrota,a psicanálisenão res-
pondeuestabelecendouma primeira linha de defesa.Em
todo caso,não é tanto a Freudque se devecreditara primei-
ra despsiquiatrização. A primeira despsiquiatrização, o pri-
meiro momentoque fez titubearo poderpsiquiátricoacer-
ca da questãoda verdade,é a essegrupo de simuladorese
de simuladorasque o devemos.Eles é que, com suasmen-
tiras, ludibriaramum poderpsiquiátricoque, parapoderser
agenteda realidade,pretendia-sedetentorda verdadee se
re_cusavaa col~car,no inte~orda práticae da terapiapsiquiá-
tncas,a questaodo que ha de verdadeirona loucura.
J:"f ~uv~ o que poderíamoschamarde uma grandein-
surre1çaosimuladoraque percorreutodo o mundoasilar no

* Na gravação, retomada de: "à força".


. O man~crito acrescenta:"Podemosentão chamar de antipsiquia-
tna tod~ movrmento pelo qual a questãoda verdade será posta em jogo
na relaçao entre o louco e o psiquiatra."
AULA DE 12 DE DEZEMBRO DE 1973 171

séculoXIX e cujo foco constante,perpetuamenteaceso,foi


a Salpêtriere,asilo de mulheres.E é por isso que não creio
que se possafazer da histeria,da questãoda histeria,da ma-
neira como os psiquiatrasse enredaramna histeriano sé-
culo XIX, uma espéciede erro cientifico menor,uma espécie
de barreiraepistemológica.Se assim sefaz, e isto é eviden-
temente reconfortante, é porquepermite ao mesmotempo
escrevera história da psiquiatriae o nascimentoda psica-
náliseno mesmoestilo em que se explica Copérnico,Kepler
ou Einstein.Ou seja:barreiracientífica,incapacidadede sair
dasesferasdemasiadonumerosasdo mundo "ptolemaico"
ou dasequaçõesde Maxwell, etc. Atadosa essesabercientí-
fico, e a partir dessaespéciede barreira,tem-se,então,corte
epistemológicoe surgimentode Copérnicoou de Einstein.
Colocandoo problemanessestermose fazendoda história
da histeriao análogondessegênerode peripécias,podemos
recolocara história da psicanálisena calmatradiçãoda his-
tória das ciências.Mas se fizermos da simulação,como eu
gostariade fazer,e não da histeria,por conseguinte, em vez
de um problemaepistemológicoou a barreirade um saber,
mas o verso militante do poderpsiquiátrico,se admitirmos
quea simulaçãofoi a maneirainsidiosaparaos loucosde co-
locar à força a questãoda verdadea um poderpsiquiátrico
que não querialhes impor mais que a realidade,entãocreio
que serápossívelfazer uma história da psiquiatriaque não
gravitarámais em tomo do psiquiatrae de seu saber,mas
que gravitaráenfim em tomo dos loucos.
E vocês compreendemque, nessamedida - se reto-
marmosassima históriada psiquiatria, então vocêsestãoven-
do que a perspectiva,digamos,institucionalista,que coloca
o problemade saberse a instituiçãoé efetivamenteou não o
lugar de uma violência,poderecalcaralgumacoisa-, pare-
ce-me que se demarcade maneiraextraordinariamente es-
treita o problemahistórico da psiquiatria,isto é, o problema
dessepoderde realidadeque os psiquiatrastinham por en-
cargo tomar a impor e que se viu ludibriado pela mentira
questionantedos simuladores.
172 O PODERPSIQUIÁTRICO

Eis, vamosdizer, a espéciede pano de fundo geral que


eugostariade proporcionarao cursoquedareidaquiem dian-
te. Então, da próxima vez procurareiretomar essahistória
que lhes sugeri de maneiraum tanto ligeira, retomandoo
próprio problemado modo pelo qual o poder psiquiátrico
funcionavacomo sobrepoderda realidade.
NOTAS

1. Em 1861, o asilo recebe1.227alienados,dos quais561 ho-


mense 666 mulheres,repartidosem 215 pensionistase 1.212 indi-
gentes.Ver a obra de GustaveLabitte (diretor do asilo), De la colonie
de Fitz-James,succursalede I' asile privé de Clermont(Oise), considérée
au point de vue de son organisationadministrativeet médica/e,Paris,
J.-B. Bailliere, 1861,p. 15. Sobrea história do asilo de Clem1ont,d.
E.-J. Woillez, Essai historique, descriptifet statistiquesur la maison
d'aliénésde Clermont (Oise), Clermont,impr. V"' Danicourt,1839.
2. A colônia de Fitz-Jamesfoi criadaem 1847.
3. "Criando a colônia de Fitz-Jarnes,quisemosem prim iro
lugar que os doentesestivessemnum meio totalmentediferented
de Clermont" (G. Labitte, op. cit., p. 13).
4. Em 1861,a fazendacompreende"170 doentes" (ibid., p. 15).
5. De acordo com a descriçãode G. Labitte: "1? , ão d
direção,destinadaà moradiado diretor e dos homen p n ioni ·
tas. 2? A seçãoda Fazenda,onde ficam os colonos.3? > ã do
PequenoCastelo,habitadapelas damaspensionistas . 4? ç~v
de Bévrel, ocupadapelasmulheresempregadasna la g m da rou~
pa" (íbid., p. 6).
6. "Na fazenda[ ...], os trabalhosdos campose as ficina ,
cuidadose a guia dos animaise dos instrum nto arut · rios - d
atribuiçãodos maníacos,monomaníacos e dem nt s" (ibid., p. L ).
7. Loc. cit.
174 O PODERPSIQlllATRICO

8. Ibid., p. 14.
9. Ibid.
10. Ph. Pinel, Traité médico-philosophiquesur l'aliénation men-
tale, ou la Maníe,op. cit., seçãoVI, § N, "Essaitentépour guérir une
mélancolieprofondeproduite par une causemorale", pp. 233-7.
11. J. Mason Cox, Observationssur la démence,trad. cit., Ob-
servationII, p. 77.
12. Ibid., p. 78.
13. Ibid., pp. 78-9.
14. F. Leuret,Fragmentspsychologiques sur la folie, cap.II, " Dé-
lire de l'intelligence",Paris,Crochard,1834: "A locadora de cadei-
ras de uma dasparóquiasde Paris,tratadapelo sr. Esquirol, [...] di-
zia ter em seuventrebisposque realizavamum concílio [...] . Des-
cartesdava como certo que a glândula pineal é um espelho em
que vem se refletir a imagemdos corposexteriores [...]. Porventu-
ra umadessas asserções é mais bemprovadaque a outra?" (p. 43).
Leuret faz alusãoà análiseque Descartesapresentasobre o papel
da glândulapineal na formaçãodas "idéias dos objetos que im-
pressionamos sentidos"em seu Traité de l'Homme (Paris, Clerse-
lier, 1664), in Descartes,Oeuvreset Lettres, ed. A. Bridoux, op. cit.,
pp. 850-3.
15. Concepçãosegundoa qual "julgar é afirmar que uma coi-
sa que concebemosé assimou não é assim,como quando,tendo
concebidoo que é a terra e o que é aredondez,afirmo sobrea ter-
ra que ela é redonda"(A. Arnauld e P. Nicole, La,Logique, ou l'Art
de penser,contenant,outre les regles communes,plusieursobservations
nouvellespropres à former le jugement(1662), Paris,Desprez,5~ ed.,
1683,p. 36). Cf. L. Marin, La Critique du discours.Sur la "Logique de
Port-Royal" et les "Penséesde Pascal", Paris,Éd. de Minuit (col. "Le
Senscommun"), 1975, pp. 275-99; e as observaçõesde M. Fou-
cault em [1] Les Mots et les choses,op. cit., 1~ parte, "Représenter",
pp. 72-81; [2] "Introduction" a A. Arnauld e Cl. Lancelot, Gram-
maire généraleet raisonnéecontenantles fondementsde l' art de parler
expliquésd'unemaniereclaíre et naturelle (Paris,Le Petit, 1660), Ré-
publicationsPaulet,Paris, 1969, pp. III-XXVII (in DE, I, n? 60, pp.
732-52).
16. Sobreessarealizaçãoteatral, cf. M. Foucault,Histoire de
la folie, op. cit., ed. de 1972,pp. 350-4.A segundaaula do Cursono
AULA DE 12 DE DEZEMBRO DE 1973 175

Collegede France,ano 1970-1971,"A vontadede saber", falades-


sa"teatralização"da loucuracomouma "prova ordálica",em quese
trata de "ver qual dos dois, o doenteou o médico,suportariapor
maistempoo jogo daverdade,todo esseteatroda loucurapelo qual,
de certo modo,o médicorealizavaobjetivamenteo delírio do doen-
te e abordava,a partir dessaverdadesimulada,a verdadedo doente"
(Notas pessoais;J.L.).
17. Enquantoos distúrbios paralíticos eram considerados
uma afecçãointercorrentede uma evoluçãodemencialou, como
dizia Esquirol,uma"complicação"da doença(verbete"Démence",
ín Díctíonnairedesscíencesmédícales,par unesocíétéde médecinset de
chírurgi,ens,Paris,C. L. F. Panckoucke,t. vm, 1814,p. 283; verbete
"Folie", íbid., t. XVI, 1816),Antoine LaurentJesséBayle (1799-1858),
a partir de seisobservações seguidasde controlesanatômicos,fei-
tas no serviço de Royer-Collardna Salpêtriere,individualiza em
1822uma entidademórbidaque, de acordocom a causaanatômi-
ca à qual ele a atribui, ele chamade "aracnitecrônica", basean-
do-seno fato de que em todasas épocasda doença,existe uma
II

relaçãoconstanteentre a paralisiae o delírio [...], logo não pode-


ríamosnos recusara admitir que essasduasordensde fenômenos
sãoos sintomasde umamesmadoença,isto é, de uma aracnitecrô-
nica", à qual ele consagraa primeira parte da suatese,defendida
em 21 de novembrode 1822 [Recherchessur les maladiesmentales,
Th. Méd. Paris, n? 147; Paris, impr. Didot Jeune,1822]: Recherches
sur l' arachnítischronique,la gastrite, la gastro-entéríte,et la goutte,con-
sídéréescommecausesde l' alíénationmentale,Paris,Gabon,1822; ree-
dição do Centenário,Paris, Masson,t. I, 1922, p. 32. Mais tarde,
Bayle amplia sua concepçãoà maioria das doençasmentais: "A
maioria das alienaçõesmentaisé o sintoma de uma flegmasia
crônicaprimitiva das'membranasdo cérebro'"(Traité desmaladies
du cerueauet de sesmembranes,Paris,Gabon,1826,p. XXIV); cf. tam-
bém seutexto: "De la causeorganiquede l' aliénationmentaleac-
compagnéede paralysiegénérale"Oido na AcademiaImperial de
Medicina),Annalesmédíco-psychologi,ques, 3~ série,t. I, julho de 1855,
pp. 409-25.
18. Na décadade 1820, um grupo de jovensmédicosse vol-
ta paraa anatomiapatológicana qual tentaenxertara clínica psi-
quiátrica. [a] FélixVoisin enunciaseu programa:"Dadosos sinto-
176 O PODERPSIQUIÁTRICO

mas,determinara localizaçãoda doença.É esseo problemaque a


medicinaesclarecidapela fisiologia pode se propor hojeem dia"
(Des causesmoraleset physiquesdes maladíesmentales,et de quelques
autres affectionstelles que l'hystérie,la nymphomaníeet le satyríasís,
Paris,J.-B. Bailliere, 1826,p. 329). [b] Dois alunosde Léon Rostan
(1791-1866),Achille [de] Foville (1799-1878) e Jean-Baptiste De-
laye (1789-1879),apresentamem 1821 uma dissertaçã o parao Prê-
mio Esquirol: "Considérationssur les causesde la folie et de leur
mode d'action, suivies de recherchessur la natureet le siege spé-
cial de cette maladie"(Paris,1821). [c] Jean-Pierre Falret (1794-1870)
defendeem 31 de dezembro de 1819 suatese Obseroatíons et pro-
positions médico-chirurgicales('To. Méd. Paris, n? 296; Paris, impr.
Didot, 1919), antesde publicar De l'hypocondríe et du suicide. Con-
sidérationssur les causes,sur le siegeet le traítement de ces maladíes,
sur les moyensd'en arrêter les progres et d'en prévoir les développe-
ments(Paris, Croullebois,1822). No dia 6 de dezembrode 1823,
Falret pronunciano Ateneu de Medicina uma conferência,"In-
ductionstirées de l' ouverturedes corps des aliénéspour servir au
diagnosticet au traitementdes maladiesmentales", Paris, Biblio-
thequeMédicale,1824.
Em 1830, abre-seum debatesobre as causas orgânicasda
loucura,por ocasiãoda tes_e de um aluno de Esquirol, Étienne Geor-
get [que ingressouna Salpêtriereem 1816 e que obteve em 1819
o Prêmio Esquirol por sua dissertação,"Des ouvertures du corps
desaliénés"], defendida em 8 de fevereirode 1820: Dissertatíonsur
les causesde la folie ('To. Méd. Paris,n? 31; Paris,Didot Jeune,1820),
em que critica Pinel e Esquirol porse contentaremem observaros
fenômenosda loucurasemprocurarligá-los a uma causaproduto-
ra. Em suaobra,De la folie. Considératíonssur cettemaladie..., Georget
declara: "Não devotemerencontrar-meem oposiçãoa meusmes-
tres[...] ao demonstrarque a loucuraé uma afecçãocerebralidio-
pática" (op. cít., p. 72).
19. 'frata-sede Jean-PierreFalret, que afirma que, graçasao
isolamento,"a família, no silêncio de uma lei positiva, triunfa so-
bre o medo de cometerum ato arbitrário e, valendo-sedo direito
imprescritívelda razãosobreo delírio, subscreveos ensinamentos
da ciênciaparaobtero benefícioda cura dos alienados"(Obseroa-
tíons sur le projet de loi relatif aux aliénés,présentéle 6 janvier 1837à
AULA DE 12 DE DEZEMBRO DE 1973 177

la Chambredes députéspar Ie ministre de l'Intérieur, Paris, Éverat,


1837, p. 6).
20. Problemalevantadodesde1800por Ph. Pinel,que lhe con-
sagraum capítulodo seuTraité médico-philosophique, ap. cit., sec.VI,
§ XXII, "Manie simulée; moyensde la reconnairre",pp. 297-302.
Cf. também: [a] A. Laurent,Étudemédico-légalesur la simulatíande
lafolie. Considérationscliniqueset pratiquesà l'usagedes médecinsex-
perts,des magistratset desjurisconsultes,Paris,Masson,1866. [b] H.
Bayard,"Mémoire sur les maladiessimulées",Annalesd'hygienepu-
blique et de médecinelégale, 1? série, t. xxxvm, 1867, p. 277. [c] E.
Boisseau,verbete"Maladiessimulées",in Dictionnaireencyclopédique
des sciencesmédicales,s. dir. A. Dechambreet al., 2? série,t. II, Paris,
Masson/Asselin,1876, pp. 266-81. [d] G. Tourdes,verbete"Simu-
lation", ibid., pp. 681-715.- Charcotabordaa questãováriasvezes:
[1] Policlínica da terça-feira20 de março de 1888: "Ataxie locomo-
trice, forme anormale",in Leçonsdu mardi à la Salpêtriere.Paliclini-
que 1887-1888, notasde cursode MM. Blin, Charcote H. Colin, t. I,
Paris, Lecrosnier & Babé ('"'Publications du Progres médical"),
1889, pp. 281-4; [2] Leçonssur les maladiesdu systemenerveux,t. I,
recolhidas e publicadas por D. M. Boumeville, Leçon IX, "De
l'ischurie hystérique",§ "Simulation" (1873),Paris,5~ ed., Delahaye
et Lecrosnier,1884, pp. 281-3; [3] "Leçon d'ouverturede la chaire
de clinique desmaladiesdu systemenerveux" (23 de abril de 1882),
§ VII, "Simulation", in Leçonssur les maladiesdu systemenerveux,t.
III, recolhidase publicadaspor Babinski, Bernard,Féré, Guinon,
Marie~] et Gilles de La Tourette (1887), Paris,Lecrosnier& Babé,
1890, pp. 17-22. [4] Ibid., Leçon XXVI, "Cas du mutisme hystéri-
que chezl'homme", § "Les simulations",pp. 432-3.
21. Em 1821, na Salpêtriere,ÉtienneGeorget,seduzidopelas
experiênciasfeitas no Hôtel-Dieu no serviço de Husson,pelo ba-
rão JulesDupotetde Sennevoyem outubrode 1820,converte,com
a colaboraçãode Léon Rostan,duaspacientesem temasde expe-
riênciasonambúlica:Pétronillee Manowy, viúva Brouillard, vulgo
"Braguette"* (cf. A. Dechambre,"Nouvelles expériencessur le
magnétismeanimal", Gazettemédicalede Paris, 12 de setembrode
1835, p. 585). Georgetrelata essasexperiências,sem desvendara

* Braguilha. (N. do T.)


178 O PODERPSIQUIÁTRICO

identidadedas pacientes,in De la physiologi,edu systemenerveux,et


spécialementdu cerveau,op. cit., t. I, cap. 3, "Somnambulismemag-
nétique",Paris,J.-B. Bailliere, 1821,p. 404. Cf. também:[a] A . Gau-
thier, Histoire du somnambulisme: cheztous les peuples,sousles noms
diversd'extases,songes,oracles,visions,etc., t. II, Paris,F. Malteste, 1842,
p. 324. [b] A Dechambre,[1] "Deuxiemelettre sur le magnétisme
animal", Gazettemédicalede Paris, 1840, pp. 13-4; [2] verbete "M es-
mérisme",in Dictionnaire encyclopédiquedes sciencesmédicales, 2~
série,t.VII, Paris,Masson/Asselin,1877,pp. 164-5.
AULA DE 19 DE DEZEMBRO DE 1973*

O poderpsiquiátrico. - Uma terapia de François Leuret


e seus elementosestratégícos: r a desequili bração do poder;
2? a reutilizaçãoda linguagem; 3?o arranjo das necessidades;
4?o enunciadoda verdade. - O prazerda doença. - O dispo-
sitivo asilar.

O poderpsiquiátricotem essencialmente por funçãoser


um operadorde realidade,umaespéciede intensificadorde
realidadejunto à loucura.Em que essepoderpode ser de-
finido como sobrepoderda realidade?
Entãoeu queria,paratentardestrincharum poucoessa
questão,tomaro exemplode umaterapiapsiquiátricapor vol-
ta dos anos 1838-1840.Como uma terapia psiquiátricase
desemolavanessaépoca?
À primeira vista, no momentodo estabelecimento , da
organizaçãodo mundoasilar,a terapiasimplesmentenãose
desenrola,porquea cura é esperadacomo uma espéciede
processo,se não espontâneo,pelo menosautomaticamen-
te reativo a partir da combinação de quatro elementosque
eram,primeiro, o isolamentono asilo; segundo,certonúme-
ro de medicaçõesde ordemfísica ou fisiológica: opiáceos1,
láudana2,etc.; umasériede restriçõesprópriasda vida asilar:
a disciplina, a obediênciaa um regulamento 3, uma alimen-
5
tação definida4, horas de sono, de trabalho; instrumentos
físicos de coerção;e, também,umaespéciede medicaçãopsi-
cofísica,ao mesmotempopunitiva e terapêutica,comoa du-

* Aula intitulada no manuscrito: " A terapia psiquiátrica".


180 O PODERPSIQUIÁTRICO

cha6, a cadeirarotatória7, etc. Eram esseselementoscombi-


nadosque definiam o âmbito da terapia,da qual se esperava,
sem nuncadar uma explicaçãonem uma teoria, a cura*.
Ora creio que,apesardessaprimeiraaparência,a terapia
?~
psiquiátricase desenvolvia acordocom certo núm:r~ de
planos,de procedimentostahcos,de elementosestrategicos
que se podeconseguirdefinir e que são,creio, importantís-
simosem relaçãoà própriaconstituiçãodo saber psiquiátrico,
talvez até os dias de hoje.
Vou tomarumaterapiacomoexemplo. Para dizer a ver-
dade,é o exemplomais desenvolvido,pelo que sei, já dado
na literaturapsiquiátricafrancesa.Quemdeu esseexemplofoi
um psiquiatraque infelizmente tem uma reputação incô-
moda: Leuret, o homemdo tratamentomoral, que foi criti -
cadopor muito tempopelo abusoque fazia da punição, da
ducha,etc.ª. Ele é certamenteaqueleque não apenasdefiniu
a terapiaclássicada maneiramais precisa,maismeticulosa,
e que deixousobreassuasterapiasos documentos maisnu-
merosos, mas é também,assimpenso,o que elaborou essas
práticas,essasestratégiasde terapia,que aslevou a um pon-
to de perfeiçãoque permiteao mesmotempocompreender
os mecanismosgeraisque eramaplicadospor todosos psi-
quiatrascontemporâneos seuse vê-los de certo modo em
câmeralenta, em detalhe,segundoseusmecanismosfinos.
A terapiaé adeum certosr. Dupré,relatadano último ca-
pítulo do Tratamentomoral da loucura, em 18409 • Eis os sin-
tomasqueo sr. Dupréapresentava: "O sr. Dupréé um homem
gordo e baixo, corpulento;passeiasozinho,nuncadirige a
palavraa ninguém.Seu olhar é incerto, sua figura, abesta-
lhada.Solta o tempo todo gasespor cima e por baixo, e faz
ouvir com muita freqüênciaum leve rosnadodesagradabi-
líssimo,com o fim de selivrar dasemanações que lhe sãoin-

* O manuscrito acrescenta: "Em suma, um código, mas não um có-


~go lingüístico de convençõessignificantes,um código tático que permi-
tia estabelecercerta relação de força, e inscrevê-lade uma vez por todas."
AULA DE 19 DE DEZEMBRO DE 1973 181

traduzidasno corpo, com ajuda da necromancia.Ele é in-


sensívelàsamabilidadesquelhe fazeme atéprocuraevitá-las.
Se insistemnelas,fica de mau humor, massemnuncaficar
violento, e diz ao vigilante,seesteestápor perto:'Mandeem-
bora estasloucas,que vêm me atormentar.'Nunca olha as
pessoasde frente e se por um instantetiram-no da incerteza,
do devaneioque lhe são costumeiros,logo volta a cair ne-
les... Há na terra três famílias que prevalecemsobreas ou-
tras por sua nobreza,sãoas famílias dos príncipestártaros,
da Nigrícia e do Congo.Uma estirpeparticular,a mais ilus-
tre da família dos príncipestártaros,é a dos Alóones, cujo
chefe é ele, conhecidopor Dupré, na realidadenascidona
Córsega,descendente de Cosroés.Ele é ao mesmotempoNa-
poleão, Delavigne,Picard,Audrieux, Destouchese Bernar-
din de Saint-Pierre.O sinal distintivo da sua qualidadede
Alcíone é o de poderconstantemente gozaros prazeresdo
amor.Abruxo deleestãoseresdegenerados da suaestirpe,me-
nos favorecidosdo que ele e chamados,de acordo com as
disposiçõesamorosasde cadaum, 3/4, 1/4 ou 1/5 de Alcío-
nes.Após os excessosquecometeu,caiu num estadode enfer-
midade crônica, para cujo tratamentoseu conselheiroen-
viou-o a seucastelode Saint-Maur(é assimque ele chama
Charenton),depoisa Saint-Yon,depoisa Bicêtre.ABicêtreem
que ele se encontranão é a que estásituadaperto de Paris,
e acidadequelhe é mostrada,a poucadistânciado hospício,
outra não é senãoa cidadede Langres,na qual, paraenga-
ná-lo, moldarammonumentosque se parecemum pouco
com o da Parisverdadeira.No hospício,somenteele é ho-
mem; todos os outros sãomulheres,ou melhor, compostos
de váriasmulheres,que usamno rosto máscarasbemarran-
jadas,guarnecidasde barbae suíças.O médico que o trata,
ele reconhecepositivamentecomosendoumacozinheiraque
teve a seuserviço;a casana qual ele dormiu,vindo de Saint-
Yon paraentrarem Bicêtre,alçouvôo, assimque ele saiu de
lá. Ele nuncalê, e por nadanestemundotocarianum jornal.
Os jornais que lhe oferecemsãofalsos, não falam dele, Na-
poleão,e os que os lêemsãocúmplicesqueseentendemcom
182 O PODER PSIQUIÁTRICO

os que fazemessesjornais.O dinheironão tem nenhumva-


lor; só existeagoramoedafalsa.Ele ouviu váriasvezesos ur-
sose os macacosdo Jardín desPlantesfalarem.Ele se lembra
da temporadaque passouem seu castelode Saint-Maure
até de algumaspessoasque conheceulá... A multiplicidade
das suasidéias falsas não é menosnotável do que a segu-
rançacom que ele as cornunica."1º
Creio queno longo tratamentoque é analisadoem e-
guida, podemosdistinguir certo númerode dispositi os ou
de manobras,que Leuret nunca teoriza e a propô ito d
quais não dá nenhumaexplicaçãoque e fundam nta
sejanumaetiologia da doençamental,sejanumafisi l gia
do sistemanervoso,sejainclusive,de m do geralnumap i-
cologiada loucura.Ele simplesment de monta difi ren ··
operaçõesque tentou,e podemo, cr io eu,dividir
nobrasem quatroou cinco grande tip .
Primeiro,a manobraquee n · t m d
der, isto é, fazê-lo passarlogo de aída u, m t e
mais rápido possível,para um ó lad , o lad d m di .
isso Leuret se apressaem fazer. u primeir nt t e m
Dupré consisteem desequilibraro p der: " Da prim ira v z
que abordoo senhorDupré paratratá-lo, ncontr - numa
vastasala repletade alienadosconsiderado in urá is; el
estásentado,esperandosua refeição,com um ar túpido,
indiferentea tudo o que aconteceà ua · olta, em nadain-
comodadocom a sujeirados seusvizinho nem com a dei ,
não parecendoter mais instinto senãopara e m r. Como
conseguirtirá-lo do seutorpor, dar-lhe sensaçõejustas,tor-
ná-lo um poucoatento?As palavrasbene olentesnãoadian-
tam; seria mais apropriadaa sev tidade?Finjo star abor-
recido com seusdiscursose com a suaconduta;acuso-ode
preguiça,de vaidadee de m ntira, e exijo que el se mante-
nha, diante de mim, de pé e com a cab ça descob rta."11
Esseprimeiro contatoé, creio, totalment significativo
do que poderíamoschamarde ritual g ral do asilo. Pratica-
mente,e nissoLeuretnão dif~ ncia em nadado seuse n-
temporâneos,em todosos asilo desa. . poca,o prim iro epi-
AULA DE·19 DE DEZElV!BRO DE 1 73 183

sódiodo contatoentreo médico e eu enfermoé esseceri-


monial,essademonstração inicíal de força, isto é, a demons-
traçãode que o campode forças no qual o doenteé posto
no asilo é desequilibrado,que não há compartilhamento,
reciprocidade,troca, que a linguage1nnão vai circular livre
e indiferentementede um a outro; que haveriaentrea di-
ferentespers nag ns que habitamo asilo seja reciprocida-
de, sejatransparencia.
Tudo isso tem de ser banido.É preci-
soque,logo de aída,seestejanum mundodiferencial,num
mundode ruptura,de desequilfbrioentreo médic o do n-
te,-nummundoemqueexisteumaladeirae essalad ira nun-
ca pode ser subida de volt, : no topo da lad ira, o médico;
no pé da ladeira,o do nte.
~ a partir d .ssadifer nça d alturn, de pot ncial, abso-
lutament estatutária:e que nunca e apagaránavida asilar,
quevai pod r sed enrolar opr e s oda terapia.E é um lu-
gar--comumem todosos cons lhos que "" o dadosp l ali -
nistasa propósitodasdif rentestetapia : d v - e começ r
sempr por a espéciede marcação -do pod r. E p der
estáde um só lad , é o que Pinel dizia quand ~ om nda-
va que o doentefo se abordadocom 11 uma p "cl de upa~
relho de temor, um apar lho impositiv quepud e agir
fortementesobr a imaginação[d ,maníaco;J.L. l e nven-
eê-lo de qu qualquerres:i t"ncia s ria vã"l1. É o qu qui:r l
tambémdizia: "Numa ca • d lien do , d haverum eh -
fe e ~damaisqu um eh fi d LicJ qu m tud de p1'1 rvlt." iJ
E m í umavez o 11prindpio davontad lh ia'', J ..
mente,o princípio qu p d mo eh mard principio de Fn.1,.
ret, qu consiste ·m ubstituit por uma 11v ntad~ · lh ia" a
vontadedo do nte14• d nt d,ev s 1ntir- 'im >diattUtJ n...
te postodiantede algo em qu v i · e n entmr1 '.) r umlr
toda a realidadecom que 1 t rá d Ud r n ilo: tod·
realidade stáconcentrada.nl.lm :vont d > Ih i que
tadeor:úpotentedo médi o. Nã. qu r dlzer om is qtl!'
qualqueroutrarealidad .. uprimidaem ben ·fiei :'d e . lu--
4

sivavonta •. d médieo,masquo·el mentoportd :d ttoda'


a r alidadequevai r lmpo ·t , d nt qu t.et• p ta
O PODERPSIQUIÁTRICO
184

refa agir sobre adoença,o suportedess~r:alidadedeveser


avontadedo médicocomovontadealheiaa do doentee co-
mo vontadeestatutariamente superior,inacessívelpor con-
seguintea qualquerrelaçãode troca, de reciprocidade, de
igualdade. . . . . .
Esseprincípio tem essencialmente dms obJetivos. Pn-
meiro, estabeleceruma espéciede estadode docilidadeque
é necessárioao tratamento.De fato, é precisoque o doente
aceiteas prescriçõesque o médicovai fazer.Mas não se tra-
ta simplesmentede submetera vontadede curar do doen -
te ao sabere ao poderdo médico; trata-sesobretudo, nesse
estabelecimento de umadiferençaabsolutade poder,de mi-
nar a afirmaçãode onipotênciaque,no fundo, existena lou-
cura.Em todaloucura,qualquerquesejaseuconteúdo,sem-
pre existecertaafirmaçãode onipotência,e éisso que é visa-
do por esseritual inicial da afirmaçãode uma vontadealheia
e absolutamentesuperior.
A onipotênciada loucura,na psiquiatriada época,pode
se manifestarde duasmaneiras.Em certo númerode casos,
elavai seexprimir no interior do delírio soba forma, por exem-
plo, de idéiasde grandeza:a pessoaacreditaserrei. No caso
do sr. Dupré,acreditaque é Napoleãa15,que é sexualmente
superiora todo o gênerohumano16, que é o único homem
e todos os outros são mulheres17, tudo isso afirmações,no
interior do delírio, de uma espéciede soberaniaou onipo-
tência.Mas isso só vale evidentementeno casodos delírios
de grandeza.Foradisso,quandonão há delírio de grandeza,
há aindaassimcertaafirmaçãode onipotência, nãona ma-
neira como o delírio se exprime,mas na maneiracomo ele
se exerce.
Qualquerque sejao conteúdodo delírio, mesmoquan-
do a pessoase crê perseguida,o fato de exercerseudelírio,
isto é, de recusartudo o que sejadiscussão,raciocínio,pro-
va, é em si mesmocertaafirmaçãode onipotência,e é algo
absolutamente coextensivoa todaloucura,ao passoque ex-
primir a onipotênciano delírio é um fato apenasdo delírio
de grandeza.
AULA DE 19 DE DEZEMBRO DE 1973 185

Exercersua onipotênciano delírio pelo fato de delirar


é urna característicade toda loucura.
Por conseguinte,vocêsestãovendocorno e por que se
justifica esseprimeiro dispositivo,essaprimeiramanobrada
operaçãopsiquiátrica:trata-sede minar, de reduzir a oni-
potênciada loucurapor meio da manifestaçãode urnavon-
tadeoutra,maisvigorosa,e que é dotadade umpodersupe-
rior. Georgetdavacomo conselhoaosmédicos:"Em vez de
[...]recusaraum alienadoa qualidadede rei queele preten-
de ter, prove-lhequeele nãotempoder;quevocê,queé nada
menosque isso, pode tudo sobreele; ele talvez vá pensar,
de fato, que é bem possívelque estejaerrado."18
Portanto,contraa onipotênciado delírio, a realidadedo
médico,com a onipotênciaquelhe é dadaprecisamente pelo
desequihbrioestatutáriodo asilo: eis, assim,de quemodoessa
espécie decontatoque eu lhescitavaa propósitodo casodo
sr. Dupré se inscrevenum contextogeral que é o da prática
asilar da época,com, evidentemente,muitasvariantes.Vale
dizer que certosmédicos- e éem tomo dissoquevocêsvão
encontrartodasas discussõesinternasao discursopsiquiá-
trico - vão considerarque essamarcaçãodo poderdo mé-
dico deveserfeita de tempoem temposoba forma da violên-
cia, masàsvezestambémsob a forma do pedidode estima,
de confiança,sob a forma de uma espéciede pactoimposto
ao doente,sob o modo de um acomodamento.
E, ao contrário,vocêsterãotambémos psiquiatrasque
recomendarão em todosos casoso temor,a violência,a amea-
ça. Uns vão considerarque o desequilibriofundamentaldo
poderé no fundo suficientementeasseguradopelo próprio
sistemado asilo, com o conjuntoda vigilância, a hierarquia
que existeno interior dele, a disposiçãodosprédios,os pró-
prios murosdo asilo queportame definema tramae aladeira
do poder. Depois, outros psiquiatrasconsiderarãoao con-
trário que a própria pessoado médico, seu prestígio, sua
postura,sua agressividade,seuvigor polêmico, é tudo isso
que vai dar essamarca.Todasessasvariantesnão me pare-
cem importantesem relaçãoa esseritual fundamental,qu
O PODER PSIQUIÁTRICO
186

vou mostrarcomo Leuret o desenvolveem seguidaao lon-


go da terapia,tomandonitidamentepartidopelasolução_da
individualizaçãomédica desseexcessode poder confendo
pelo asilo e lhe dandoa forma bastantedireta da agressão
e da violência.
Um dos temasdelirantesque se encontravaem Dupré
era ode acreditarna suaonipotênciasexuale que todos os
que o rodeavamno asilo erammulheres.Leuret vai se diri-
gir a Dupré e lhe perguntarse efetivamente todasas pes-
soasque o rodeiamsão mulheres."Sim, dirá Dupré. - Eu
também?,perguntaLeuret.-Claro,o senhor também." Nes-
semomento,LeuretagarraDupré e, "sacudindo-o vivamen-
te, pergunta-lhese aqueleé um braço de mulher" 19• Dupré
não fica muito convencido,de modo que, para convencê-lo
mais ainda,Leuret mandapôr em seusalimentosda noite
alguns"grãosde calomelano",de modo que o pobreDupré
tenhaviolentascólicasdurantea noite. O que permite que
Leuret diga na manhãseguintea Dupré: "Ele, o único ho-
mem que há no hospício,é tão medroso,que a cenade on-
tem lhe soltouastripas."2º Foi assimque ele marcousuasu-
premaciaviril e física, por essesinal artificial de medo que
causouem Dupré.
Poderíamoscitar ao longo de toda a terapiauma série
de elementosdo mesmogênero.Leuret mandadaremuma
duchaem Dupré; Dupré se debate,faz ressurgirseustemas
delirantes,diz: "Pronto,mais uma que me insulta! - Uma?",
exclamaLeuret e, nessemomento,dirige-lhe violentamente
a duchaparao fundo da goela,atéqueDupré,debatendo-se,
reconheçaque aquelaé uma condutade homem,e "acaba
admitindo queé um homem"21• Logo, desequilfürioritual do
poder.
Segundamanobra,que poderíamostalvez chamarde
reutilizaçãoda linguagem.De fato, Duprénão reconheciaas
pessoascomo estaseram,acreditavaque seumédicoerasua
cozinheirae seprestava,a si mesmo, todaumasériede iden-
tidadessucessivase simultâneas,pois ele era "ao mesmo
tempo Destouches,Napoleão,Delavigne,Picard,Audrieux
AULA DE 19 DE DEZEMBRO DE 1973 187

e Bemardinde Saint-Pierre"22• Portantovai ser necessário-


e é isso que caracterizaa segundamanobra que, aliás,
acompanhaquasecronologicamentea primeira, com certo
númerode sobreposições - primeiro que Dupré reaprenda
os nomese saibaatribuir a cadaum o nome que convém:
"À força de ser pressionado,ele se toma atento e obede-
ce."23 E lhe fazem repetir os nomesaté ele sabê-los:"Ele tem
de aprendermeunome,o dosalunos,dosvigilantes,dos en-
fermeiros.Tem de chamartodos pelo nome."
Leuret manda-oler livros, recitarversos,força-o a falar
latim, queDuprétinha aprendidona escola;força-oa falar ita-
liano, que ele tinha aprendidono exército; manda-o"con-
tar uma história"24•
Enfim, em outro momento,ele o põe na banheira,apli-
ca-lheuma duchacorno sempree, feito isso,ao contráriodo
que era o costume,manda-oesvaziara banheira.Ora, Du-
pré não tinha costumede obedecera nenhumaordem.For-
çam-noa obedecera essaordem e, enquantoDupré esva-
zia a banheiracom baldes,mal ele vira as costas,tomama
enchera banheira,de modoqueLeuretpodereiterara ordem
certonúmerode vezes,e assimaté que o mecanismoda or-
dem e da obediênciaseja absolutamenteengrenado 25

Como vocêsvêem,parece-meque nessasériede ope-


raçõesque incidem essencialmente sobrea linguagem,tra-
ta-seantesde maisnadade corrigir o delírio dasnomeações
polimorfas ede obrigaro doentea restituir a cadaum o nome
pelo qual cadaum tem sua individualidadeno interior da
pirâmidedisciplinardo asilo. De maneirabem característica,
não sepedeque Dupré aprendao nomedos doentes,pede-
se que aprendao nome do médico, dos alunosdeste,dos
vigilantese dos enfermeiros:a aprendizagemda nomeação
seráao mesmotempoa aprendizagemda hierarquia.A no-
meaçãoe amanifestaçãodo respeito,a distribuiçãodosnomes
e da maneiracomo os indivíduossehierarquizamno espaço
disciplinar, tudo isso é uma só e mesmacoisa.
Vocêsvêemtambémque lhe pedemparaler, recitarver-
sos,etc.Trata-se,comisso,é claro, de ocuparo espírito,de des-
O PODERPSIQUIÁTRICO
188

vi.ar a linguagemdo uso delirantemastambémde reensinar


ao sujeitoa utilizar essasforma~ de linguage~q~e ~ão asfor-
mas de linguagemda aprendizageme da disciplina, o que
ele aprendeuna escola, essa espécie de linguagemartificial
que não é realmentea que ele utiliza, masque é ~quela pela
qual a disciplina escolar,o sistemade ordemse nnpuseram
a ele. E, por fim, na história da banheiraque enchem e que
o mandamesvaziarpor uma ordemindefinidamentereite-
rada, trata-se da linguagemde ordens,masdesta vez de or-
denspontuais,que se trata de ensinarao doente.
De maneirageral, trata-se,creio eu, para Leuret, de
tornar o doente acessívela todos os usos imperativ os da
linguagem:os nomesprópriospelosquaisse cumprimenta,
semostrao respeito,a atençãoquesetem pelos outros;tra-
ta-se da recitaçãoescolardas línguas aprendidas; trata-se
do comando.Vocês estãovendo que não se trata em abso-
luto de uma espécie dereaprendizagem - que se poderiadi-
zer dialética- da verdade.Não se trata de mostrara Dupré,
a partir da linguagem,que os juízosque ele fazia eramfalsos.
Não se discutepara saberse é justo ou não considerarque
todasas pessoassão "Alcíones", como Dupré acreditaem
seudelírio26• Não setratade transformaro falso emverdadei-
ro no interior de umadialéticaprópriada linguagemou da
discussão;trata-sesimplesmentede recolocaro sujeito,por
um jogo de ordens,de comandos dados, em contatocom a
linguagemcomoportadorade imperativos;é autilizaçãoim-
perativada linguage~que se referee que se ordenaa todo
um sistemade poder. E alinguagemprópriado asilo, ela põe
os nomesque definema hierarquiaasilar,é alinguagemdo
senhor. E é toda essatramade poderque deve transpare-
cer como realidadepor trás dessalinguagemensinada.A
linguagemque sereensinaao doentenão é aquelapelaqual
elevai poderreencontrara verdade;a linguagemquelhe for-
çam areaprenderé umalinguagemque devedeixartranspa-
receratravésdelaa realidadede uma ordem,de umadiscipli-
na, de um poderque se impõe a ele. Aliás, é o que diz Leuret
quando,no fim dessesexercíciosde linguagem, afirma:"Eis
AULA DE 19 DE DEZEMBRO DE 1973 189

que o sr. Dupré tomou-seatento [sendoa atenção,é claro,


a faculdadeda realidade;M.F.], ele entrouem relaçãocorrú-
go; exerçoumaaçãosobreele, ele me obedeceu." Zl "Atenção",
ou seja,relaçãocom o médico- isto é, aquelequedá a ordem
e que detémo poder-,relaçãoque consisteprecisamenteem
que o médico,que detémo poder,exerceumaaçãosoba for-
made umaordem.Linguagem,pois, queé transparentea essa
realidadedo poder.
Aqui tambémvê-sequeLeureté, em certosentido,mui-
to mais sutil, perfeccionista,do que os psiquiatrasda suaépo-
ca. Mas, afinal de contas,o que se chamavade "tratamento
moral", naquelaépoca,era de fato algo assim,menosdire-
tamentecentrado,é claro, nasutilizaçõesda linguagem,nes-
sa espéciede diálogo falseado,de diálogo que erana realida-
de o jogo da ordem e da obediência,porquea maioria dos
psiquiatras,ao contrário de Leuret, confiavaprincipalmente
nos mecanismosinternos da instituição asilar, muito mais
do que nessaaçãodiretado psiquiatracomo detentordo po-
der28. Mas, afinal, se vocêsolharemem que consistia,justa-
mente para os psiquiatrasda época, o funcionamentoda
instituiçãoasilar e ondeelesbuscavamo caráterterapêutico
dessaaçãodo asilo,verãoque se consideravaque o asilo era
terapêuticoporqueobrigava aspessoasa se submeterema
um regulamento,a um empregodo tempo,porqueas obri-
gava a obedecerordens,a pôr-seem fila, a sujeitar- se à re-
gularidadede certo númerode gestose de costumes , a sub-
meter-sea um trabalho.E é todo esseconjunto da ordem,
ao mesmotempo corno ordensdadase, igualmente, como
regularidadeinstitucionale coerções,é essaordemque/ afi-
nal, paraos psiquiatrasda época,é um dos grandes fatores
da terapêuticaasilar. Como dizia Falret em 1854, num texto
um pouco tardio, uum regulamentopositivo, estri tamente
observado,que estabeleçao empregode todasas horasdo
dia, força cadadoentea reagircontraa irregularidadedassuas
tendências,submetendo - se à lei geral. Em vez de ser aban-
donadoa si mesmo,de seguiro impulso do seucapricho ou
da suavontadedesordenada , o alienadoé obrigadoa sedo-
190 O PODERPSIQUIÁTRICO

brar diantede umaregra, que tem tantomaior poderpor ser


estabelecidaparatodos.Ele é obrigadoa cedernasmãosde
umavontadealheiae fazer constantemente um esforçoso-
bre si mesmopara não incorrer nas puniçõesvinculadasà
infração [ao] regulamento"29•
E essesistemada ordem,ordemdadae ordem cumpri-
da, ordemcomo comandoe ordemcomo regularidade,Es-
quirol tambémconsideravaque era esseo grande operador
da curaasilar: "Há numacasaassimum movimento, umaati-
vidade, um turbilhão em que cadacomensalentra pouco a
pouco; o lipemaníacomaiscabeçudo, mais desconfiado, vê-se,
sem dar por isso, forçado a viver fora de si, arrastadopelo
movimentogeral,pelo exemplo[...]; o próprio maníaco, re-
tido pela harmonia,a ordem e a regra da casa, se defende
melhor contra seusimpulsos e se entregamenos às suas
atividadesexcêntricas."30
Em outraspalavras,a ordemé area-
lidade sob a forma da disciplina.
A terceiramanobrano dispositivoda terapêuticaasilar
é oquepoderíamoschamarde arranjoou organizaçãodasne-
cessidades . O poderpsiquiátricoassegurao avançoda rea-
lidade,a ascendência da realidadesobrea loucurapelo arran-
jo das necessidades e até pela emergênciade novasneces-
sidades,pela criação,a manutenção,a reconduçãode certo
númerode necessidades.
Aqui, também,creio que podemostomar como ponto
de partidaa versãomuito sutil, muito curiosa,que Leuret dá
desseprincípio.
Seupaciente,o sr. Dupré,não queriatrabalhar,porque
não acreditavano valor do dinheiro: "O dinheiro não tem
nenhumvalor; só existe agoramoedafalsa", dizia Dupré31,
pois só quemtem o direito de cunharmoedasou eu, Napo-
leão.Por conseguinte,a moedaquevão lhe dar é moedafal -
sa: não adiantatrabalhar! Ora, o problemaé precisamente
conseguirfazer com que Dupré compreendaa necessidade
dessedinheiro.Um dia, obrigam-no a trabalhar;ele pratica-
mentenão trabalha. No fim do dia, propõem-lhe receberum
saláriocorrespondente à suajornadade trabalho;ele nãoacei-
AUIA DE 19 DE DEZEMBRO DE 1973 191

ta, alegandoque "o dinheiro nãotem nenhumvalor"32.Agar-


ram-no, enfiam-lheà força o dinheiro no bolso; mas, para
puni-lo por ter resistido,trancafiam-noa noite toda e todo
o dia seguinteusem beber nem comer". Mandam-lheno
entantoum enfermeiro,quefoi devidamenteinstruídoe que
lhe diz: "Ah, sr. Dupré, que penatenhodo senhorpor não
comer! Se eu não tivessemedo da autoridadedo sr. Leuret
e das suaspunições,eu traria comida parao senhor;estou
dispostoa assumiresserisco, desdeque o senhorme dê uma
pequenaretribuição." De modo que, paracomer,Dupré foi
obrigado a tirar do bolso três dos oito soldos que lhe ti-
nhamdado.
Sem dúvida já começaa surgir para ele o significado
ou, em todo caso,a utilidade do dinheiro,a partir dessane-
cessidadeartificialmente criada. Alimentam-no bem e, de
novo, misturam"dozegrãosde calomelanonoslegumesco-
midos pelo sr. Dupré, que, não tardandoa sentir a necessi-
dadede ir ao gabinete,chamao criado, pedindo-lheque lhe
deixeasmãoslivres. Novo acertopecuniário"n.No dia se~-
te, Dupré vai trabalhare / ' buscar o preçoda suajornada".E,
diz Leuret, "o primeiro ato racional,feito voluntariamentee
com reflexão,que obtive dele"34•
Creio que se possa,evidentemente, meditarsobreessa
surpreendente relaçãoque Leuret estabeleceu dessemodo
- masvocêsestãovendosob a forma de que inteivençãoim-
perativa- entreo dinheiro e adefecação.Relaçãoque, como
vêem, não é uma relaçãosimbólicade dois termos,dinhei-
ro-excremento,mas que é umarelaçãotática de quatroter-
mos: a comida,a defecação, trabalho o e o dinheiro,e em que
o quinto termo, que vem percorrer.,os quatro pontosdo re-
tângulo tático, é o poder médico. E pelo jogo dessepoder
médicocirculandoentreessesquatrotermosque seestabe-
lece essarelaçãoque era destinada,como vocêssabem,ao
destinobemconhecido- é aí, creio, quea vemosemergirpela
primeira vez35 •
De maneirageral, parece-meque aqui também.Leuret
deusobumaforma particularmentesutil, hábil, a fórmula de
192 O PODERPSIQUIÁTRICO

uma coisaque é importantíssimano sistemado tratamento


psiquiátricoda época.Trata-se,no fundo, de instituir um es-
tado de carênciacuidadosamente mantidoparao doente:é
precisomantero doenteabaixo de certalinha média da sua
existência. Daícertonúmerode táticas,menossutisque a de
Leuret, masque tambémtiveram um longo destinona ins-
tituição asilar e na história da l~ucura.
A tática da indUinentária.E Ferrus,no tratadoSobreos
alienados,datadode 1834,queoferecedessacélebreindumen-
tária asilartodaumateoriaem que ele diz: "A indumentária
dos alienadosreclamauma atençãoparticular.Quasetodos
os loucossãovaidosose orgulhosos;em suamaioria, elesti-
veram, antesda invasãoda doença,umavida cheiade vicis-
situdes;muitas vezeseles possuíramalgumafortuna que a
desordemdo seuespíritolevou-osa dissipar."36 Portantoeles
tiverambelasroupas,adereços,e reconstituemno asilo esses
trajes que designamseuantigo esplendor.Suamisériaatual
e o funcionamentodo seudelírio: é disso que é precisopri-
var os loucos.Mas, diz Ferrus,é precisotambémnão ir lon-
ge demais,porque,freqüentementenos asilos,só deixamaos
loucosroupasrasgadase infamantesqueos humilhamdemais
e podemprovocaro delírio 9u o nojo deles,e entãotodosos
loucospassama andarnus.E necessárioencontraralgo entre
os ornamentosdo delírio e a nudezobscena:serão"roupas
de tecido grosseiroe resistente,mascortadasconformeum
mesmomodeloe conservadas limpas,quemoderariamasvai-
dadespuerisda loucura"37 •
Temostambéma tática da comida,que devesersóbria,
uniforme,fornecidanão à vontademasem raçõesna medida
do possívelligeiramenteabaixo da média.Aliás, a esseracio-
namentogeral da comidano asilo acrescentou-se, principal-
mentedepoisda política de no restraint, isto é, da supressãode
uma partedos aparelhosde contenção 38
, uma política de su-

pressãopunitiva da comida:privaçãode pratos,jejum, etc.Foi


a grandepuniçãoasilar.
Uma tática de fazer trabalhar.Aliás, o trabalhoé muito
sobredeterminado no sistemaasilar,já que, de um lado, ele
AULA DE 19 DE DEZEMBRODE 1973 193

asseguraessaordem,essadisciplina,essaregularidade,essa
perpétuaocupação,que são necessárias. Assim, bem cedo,
por volta da décadade 1830, o trabalhoinscreveu-secorno
obrigaçãonos asilos- no começo,a fazendaSainte-Annefoi
um prolongamentodo hospitalde Bicêtre, antesde substi-
tuí-ld9. Como dizia Girard de Cailleux na épocaem que era
diretor do hospitaldeAuxerre,"descascarlegumes,fazê-los
passarpor certaspreparações toma-sefreqüentementeurna
ocupaçãomuito proveitosaparao tratamento"40• E essetra-
balho - isso é que é interessante- não é simplesmenteim-
postopor serum fator de ordem,de disciplina, de regulari-
dade,masporquevai possibilitara introduçãode um sistema
de retribuição.O trabalhoasilar não é um trabalhogratuito,
é um trabalhopago,e essepagamentonão é urna graçasu-
plementar,ele é o cernedessefuncionamentodo trabalho,
porquea retribuiçãodeve ser suficienteparasatisfazercer-
to número de necessidades que são criadaspela carência
asilarfundamental:a insuficiênciade comida,a ausênciade
toda gratificação (comprar fumo, urna sobremesa,etc.). É
precisoque setenhavontade,é precisoque setenhaneces-
sidade,é precisoestarnesseestadode carênciaparaque o
sistemade retribuiçãoimpostocom o trabalhopossafuncio-
nar. Logo, necessidade dessasretribuições,suficientespara
satisfazeressasnecessidades criadaspela carênciafunda-
mentale suficientementepequenas,ao mesmotempo,para
permanecerabaixo, é claro, de todas as retribuiçõesnor-
mais e gerais.
Enfim e sobretudo,a grandecarênciaque talvez tenha
sido organizadapela disciplina asilar é simplesmentea ca-
rência de liberdade. Vocês vêem como, nos psiquiatrasda
primeirametadedo séculoXIX, a teoriado isolamentomuda
pouco a pouco ou, vamosdizer, se aprofundae se comple-
ta. A teoria do isolamentode que eu lhes falava da última
vez era essencialmente comandada pela obrigaçãode esta-
belecerrupturaentre o ambienteterapêuticoe a família do
doente,o meio no qual a doençasehaviadesenvolvido ; e de-
pois vocêsvêemnasceressaidéia de que o isolament
194 O PODERPSIQUIÁTRICO

uma vantagemsuplementar:não apenasele pr~tegea fa-


mília, mas provocano doente,.uma nov~ necess1~ade, que
ele não conheciaantese que e a necessidadede liberdade.
E é sobreo fundo dessanecessidade criadaassimartificial-
menteque a terapiavai poderse desen~olve!.
O poderpsiquiátrico,nessaforma asilar,e por;an_tones-
sa épocacriador de necessidades, gestordas carenc1as que
ele estabelece.Por que·essaadministraçãodasnecessidades,
por que essainstitucionalizaçãodas carências?Por um cer-
to númerode razõesque é fácil identificar.
Primeiro porque,pelo jogo dasnecessidades, vai se im-
por a realidadedaquilo de que se necessita:o dinheiro, que
não eranada, vai se tomaralgumacoisaa partir do momen-
to em que haverácarênciae em que,parasupri-la, seráne-
cessáriodinheiro.Logo, vai se percebera,.realid adedaquilo
de que se necessitapelo jogo da carência.E o primeiro efeito
dessesistema.
Segundoefeito: atravésda penúriaasilarvai se desenhar
a realidadede um mundoexteriorque a onipotência da lou-
cura tendiaaté entãoa negar,realidadeque, paraalém dos
muros do asilo, vai se impor cadavez mais como realidade
inacessível,certamente,mas inacessívelapenasdurante o
tempoda loucura.E essemundo exteriorvai, no fundo, ser
real de dois modos:vai sero mundoda não-penúriaem opo-
siçãoao mundoasilar, e adquiriránessemomentoo aspecto
de uma realidadedesejável;e essemundoexteriorvai apa-
~e~~r ao mesmotempocornoum mundoparao qualvocê se
1TI1c1a aprendendoa reagir à sua própria penúria, às suas
próprias~ecessidades: "Quandovocê houvercompreendido
quepr~c1Satrabalharparase alimentar,paraganh-a r dinhei-
ro e ate para defecar,nessemomentovocê poderáchegar
ao mundoexterior." Portantoo mundoexterioré real corno
º.mundo?ªnão-penúriaem oposiçãoao mundode carên-
cias_do asilo e c<:rno o mundo a que a penúriado asilo vai
servir de propedeutica.
Terceiroefeito dessapolítica da carência:nesseestatu-
to materialmentediminuído em relaçãoaomundoreal, à vida
AUIA DE 19 DE DEZEMBRO DE 1973 195

fora do asilo, o doentevai reconhecerque ele tambémestá


em estadode insatisfação,que seuestatutoé um estatutodi-
minuído, que ele não tem direito a tudo e que, se lhe falta
um certo númerode coisas,é simplesmenteporqueele está
doente.Ele vai perceberagora,nãomaisa realidadedo mun-
do exterior,masa realidadeda suapróprialoucuraatravésdo
sistemade carênciasque estabelecem em torno dele.Em ou-
traspalavras,ele tem de aprenderque a loucuratem um pre-
ço, porque a loucura existe realmentecomo uma coisa que
o afeta; e a loucuravai serpagaa preçode uma penúriage-
ral da existência,dessacarênciasistemática.
Enfim, o quarto efeito da organizaçãoda carênciaasilar
é que, experimentandoa suacarência,aprendendoque,para
paliá-la, é obrigado a trabalhar,a concedercerto númerode
coisas,a sujeitar-seà disciplina, etc., o doentevai aprender
que os cuidadosque lhe dispensam,a cura que tentamlhe
proporcionar,no fundo, não lhe sãodevidos;ele é obrigado
a obtê-los mediantecerto número de esforçosque vão da
obediênciaao trabalho,da disciplinaa umaproduçãoremu-
nerada;ele vai pagarcom seutrabalhoo bem que a socie-
dadelhe faz. Como dizia Belloc: "[ ...] se a sociedadedá aos
alienadosos socorrosde que eles necessitam,estesdevem
por suavez aliviá-la do seu fardo na medidadas suasfor-
ças"41. Em outraspalavras,o louco aprendeessequartoaspec-
to da realidade: que ele deve,como doente,suprir suaspró-
prias necessidades por meio do seutrabalhoparaque a so-
ciedadenãotenhade pagarpor elas.De tal sortequesechega
à conclusãode que, por um lado, a loucura se pagae que,
por outro lado, a cura se compra.O asilo é precisamente o
que faz pagara loucura com um certo númerode necessi-
dadesartificialmentecriadase é, ao mesmotempo, o quevai
fazer pagara curapor meio de umacertadisciplina,um cer-
to rendimento.O asilo, ao estabeleceruma carência,permite
criar umamoedacom quesepagaráa cura.Criar, a partir das
necessidades assimsistematicamente criadas,a retribuição
moral da loucura,os meios de pagamentoda terapêutica:é
isso,no fundo, que constituio asilo. E vocêsestãovendoque
196 O PODERPSIQUIÀTRICO

o problemado dinheiro ligado às necessidades da loucura


que se pagae da cura que se compraestáprofundamente
inscrito na manobrapsiquiátricae no dispositivo asilar.
[Quinto] dispositivo,enfim: é o dispositivodo enunciado
da verdade.Fasefinal que é, na terapêuticapropostapor Leu-
ret, o penúltimo episódio: é preciso conseguirque o doente
diga a verdade.Vocês dirão: se é verdadee se esseepisódio
é importanteno desenrolarda terapêutica,como você dis-
se que o problemada verdadenão se colocavana práticada
42
terapiaclássica? Vocêsvão ver como esseproblemadaver-
dadese coloca.
Eis o que Leuretfaz com Dupré.Dupré afirmavaquePa-
ris não era Paris, que o rei não era o rei, que ele é que era
Napoleãoe que Paris era, na verdade,a cidade de Langres
43
disfarçadade Parispor certo númerode pessoas • Só há um

jeito, segundoLeuret,é simplesmentelevar seupacientepara


visitar Paris. De fato, ele organiza,sob a direçãode um in-
terno,um passeiopor toda a Paris,Mostra-lheos diferentes
monumentosde Paris e lhe diz: "O senhornão estáreco-
nhecendoParis?- Não, nãoestou,respondeo senhorDupré,
estamosna cidade de Langres.Imitaram várias coisasque
há em Paris."44 O interno finge não sabero caminho,pedea
Dupré para guiá-lo até a PlaceVendôme.Dupré se orienta
muito bem, e o interno entãolhe diz: "Estamosde fato em
Paris, tanto que o senhorsabe muito bem chegarà Place
Vendôme!4!i- Não, estoureconhecendo Langres,disfarçadade
Paris." LevamDupré de volta ao hospitalde Bicêtree o doen-
te serecusaa reconhecerque visitou Paris; e, "como ele per-
sistisseem suarecusa,é postono banhoe derrama-seágua
fria em suacabeça.Então,ele admitetudo o quese quer'',que
Paris é de fato Paris. Mas é só ele sair do banhoque "volta
às suasidéiasloucas.Despem-node novo, repete-sea a.fu-
são: ele toma a ceder",reconheceque Paris é Paris.No en-
tanto,mal estávestido,"sustentaque é Napoleão.Uma ter-
ceira a.fusãoo corrige; ele cedee vai se deitar"46•
Mas Leuret não é tolo e percebemuito bem que esses
exercíciosnão bastam.Ele passaentãoa um exercícioque é,
AULA DE 19 DE DEZEMBRODE 1973 197

de certo modo, de um nível mais elevado:"No dia seguinte,


eu o mandochamare, apósalgumaspalavrassobreo pas-
seio da véspera,interrogo-o.'Seunome?- Usei outro; meu
nomeverdadeiroé Napoléon-LouisBonaparte. -Suapro-
fissão?-Tenentereformadodo 19?regimentode infantaria
de linha; masvou lhe dar uma explicação.Tenentequerdizer
chefe do exército.- Onde o senhornasceu?- Em Ajaccio,
ou, se preferir, em Paris.- Vejo por estecertificadoque o se-
nhor foi alienado,em Charenton.- Não fui alienadoem Cha-
renton. Estive nove anos no meu castelode Saint-Maur.'
Insatisfeito com as respostasdele, mando levarem-noao
banho;debaixoda ducha,apresento-lheum jornal e mando
que ele o leia em voz alta; obedece;interrogo-oe certifi-
co-me de que compreendeua leitura. Então,depoisde ter
perguntadobemalto se o reservatórioda duchaestavabem
cheio, mando trazeremao sr. Dupré um cadernono qual
peço-lheque dê, por escrito,respostaàs perguntasquevou
lhe fazer. 'Seunome?- Dupré.- Suaprofissão?-Tenente.-
Seu local de nascimento?- Paris! - Quantotempo esteve
em Charenton?- Nove anos.- E em Saint-Yon?- Dois anos
e dois meses.- Quantotempoo senhorficou na seçãode
alienados,em tratamento,em Bicêtre?- Três meses;faz três
anosque sou alienadoincurável.- Onde o senhorfoi on-
tem?-À cidadede Paris.- Urso fala?- Não'."47 Progresso,co-
rno vocêsvêem,em relaçãoao episódioprecedente.E che-
gamosagoraà terceiraetapanesseexercíciodo enunciado
da verdade,episódiocapital,vocêsvãover. O sr. Dupréestá,
lf

comosevê pelassuasrespostas,numaespéciede incertezaen-


tre a loucura e arazão."48 É que ele era alienadohavia quinze
anos! E, pensaLeuret, "é hora de exigir dele uma resolução
decisiva,a de escrevera históriada suavida"49_ Ele só seresig-
na a fazê-lo depoisde váriasduchasfrias e "consagrao resto
do dia e o dia seguintea escreversuahistória, com grandes
detalhes.Tudo o queum homempodese lembrarda suain-
fância ele sabee escreve.O nomedas pensõese dos liceus
em que estudou,o dos seusprofessorese colegas,cita-osem
198 O PODERPSIQUIÁTRICO

grandenúmero.Em todosos seusrelatos,nãohá um só pen-


50
samentofalso, uma só palavrainadequada" •
Coloca-seaqui o problema,que sou incapazde resol-
ver atualmente,de saberde que maneirao relato autobio-
gráfico se introduziu efetivamentena prática psiquiátrica,
na prática criminológica, por volta dos anos1825-1840, e
como, efetivamente,o relato da própriavida pôde ter sido
uma peçaessencial , de usosmúltiplos, em todosessespro-
cedimentosde apropriaçãoe de disciplinarizaçãodos indi-
víduos. Por quecontara vida tornou-seum episódioda em-
preitadadisciplinar? Como contar o passado,como alem-
brançada infância podeter tomadolugar nisso?Nadasei a
respeito.Em todo caso,gostariade dizer, a propósitodessa
manobrado enunciadoda verdade,que me pareceque po-
demosreter certo númerode coisas.
Primeiramente,a verdade,comovocêsestãovendo,não
é o que se percebe.No fundo,, quandolevaramo sr. Dupré
paraver Paris,não era tanto paraque ele tivesse,pelo jogo
da suapercepção,a revelaçãode que Parisestavade fato ali
e de que ele estavaem Paris. Não é isso que queremdele.
Sabe-seperfeitamenteque, enquantoele perceber,ele per-
ceberáPariscomo a imitaçãode Paris.O que queremdele- e
é nisso que o enuncia_doda verdadese torna operatório-
é que ele o confesse.E preciso,não que a coisasejaperce-
bida, mas que seja dita, mesmoque seja dita sob a coerção
da ducha.O simplesfato de dizer algo quesejaa verdadetem
em si umafunção;umaconfissão, mesmo sobcoerção,é mais
operatóriana terapêuticado que uma idéia justa ou uma
percepçãoexata, sepermanecersilenciosa.Logo,, caráterper-
formativo desseenunciadoda verdadeno jogo da cura.
Em segundolugar, é precisonotar, creio eu, que o pon-
to essencialda verdade,aquilo em que Leuret se empenha
principalmente,em partetambémé, claro, que ParissejaPa-
ris, maso que ele quer principalmente doseudoenteé que
ele sevincule à suaprópriahistória. O que é precisoé que o
doentese reconheçanumaespéciede identidadeconstituí-
da por um certo númerode episódiosda suaexistência.Em
AULA DE 19 DE DEZEMBRODE 1973 199

outraspalavras,é nessereconhecimentode um certonúmero


de episódiosbiográficosqueo doentedeveenunciarprimei-
ramentea verdade;o enunciadomais operatóriodaverdade
não dirá respeitoàs coisas,dirá respeitoao próprio doente.
Enfim, em terceirolugar, creio que é precisonotar que
essaverdadebiográficaquelhe pedeme cuja confissãoé tão
operatóriana terapêuticanão é tanto a verdadeque ele po-
deria dizer sobresi mesmo,no nível da suavivência, é certa
verdadeque lhe impõem sob uma forma canônica:inter-
rogatóriode identidade,recordaçãode certonúmerode epi-
sódiosaliás conhecidospelo médico- reconhecerque este-
ve em Charentonnum momentodado, que estevedoente
de tal dataa tal data,etc.51• Constitui-secertocorpusbiográ-
fico estabelecidodo exterior por todo o sistemada família,
do emprego,do registrocivil, da observaçãomédica.É todo
essecorpusda identidadeque o doentedevefinalmentecon-
fessar,e é quandoele confessaque deve operar-seum dos
momentosmaisfecundosda terapêutica;e équandoessemo-
mentonão se operaque se deveperdera esperançaem re-
laçãoà doença.
Vou lhes citar, simplesmentepela belezado diálogo,
outra observaçãode Leuret. É a história de uma mulher de
quem,justamente,ele dizia que nuncapoderiacurar. E por
que ele via que nuncapoderiacurar essamulher?Precisa-
mentepelaimpossibilidadeque ela tinha de confessaresse
esquemabiográfico que é portadorda suaidentidade. Eis o
diálogo revelador,segundoLeuret, da incurabilidade:
"Como a senhoraestá se sentindo?- Minha pessoa
nãoé umasenhora,chame-mede senhorita,por favor. - Não
sei seu nome, diga-o por favor. - Minha pessoanão tem
nome:ela desejaque o senhornão escreva.- Mas eu gosta-
ria de sabercomo é chamada,ou melhor, como era chama-
da antigamente . - Compreendoo que o senhorquer dizer.
Era CatarinaX, mas não se deve mais falar do que aconte-
cia. Minha pessoaperdeuseunome,ela o deu ao entrarna
Salpêtriere.-Qual a suaidade?-Minhapessoanãoten:i ida-
de. - E essaCatarinaX, de que acabade me falar, que idade
200 O PODERPSIQUIATRICO

ela tem?- Não sei... - Se a senhoritanão é apessoade que


fala, não seráduaspessoasnumasó?- Não, minha pessoa
não conhecea que nasceuem 1779.Talvez seja aquelase-
nhoraque o senhorestávendoali ... - O que a senhorita fez
e o que lhe aconteceudesdeque é a suapessoa?- Minha
pessoaresidiu na casade saúdede... Fizeram com ela e
continuamfazendo experiênciasfísicas e metafísicas... Eis
ali um dessesinvisíveis que desce,ela quer misturar a voz
dela com a minha. Minha pessoanão quer, ela a manda
emboradelicadamente.- Como são os invisíveis de que a
senhoritafala? - Sãopequenos,impalpáveis, poucoforma-
dos.- Como se vestem?- De avental. - Que língua falam?
- Falamfrancês;sefalassemoutralíngua, minhapessoanão
os entenderia.- Tem certezade que os vê? - Toda certeza,
minhapessoaos vê, masmetafisicam.ente, nainvisibilidade;
nuncamaterialmente,porquenessecasonãoseriammaisin-
visíveis... - A senhoritaàs vezessente os invisíveis em seu
corpo? - Minha pessoaos sente e fica muito aborrecida ;
eles lhe fizeram toda sorte de indecências ... - Como a se-
nhoritaestána Salpêtriere?-Minha pessoaestámuito bem;
é tratada com muita bondadepelo sr. Pariset. Ela nunca
pedenadaàs serviçais... - O que acha dassenhorasque es-
tão com a senhorita,nestasala?- Minha pessoapensaque
elasperderama razão."52
Em certosentido,é amaisformidável descriçãoda exis-
tênciaasilarque se possaencontrar.Depoisque o nomefoi
dadoao entrarna Salpêtriere,depoisde constituídaessain -
dividualidadeadministrativa,médica,não restamais que a
"minha pessoa",que agorasó fala na terceirapessoa.Justa-
menteisto: que a confissãonão sejapossível,o enunciado
perpétuona terceirapessoade alguém que só se enuncia
sob a forma da pessoaque não é ninguém,tudo isso... Leu-
ret vê perfeitamenteque nenhumadas operaçõesterapêu-
ticas que ele organizavaem tomo do enunciadoda verda-
de é maispossívelnum casocomo esse,que a partir do mo-
mentoem que se deixou o nome entrandona Salpêtrieree
em queseé no asilo apenas"a suapessoa",em quepor con-
AULA DE 19 DE DEZEMBRO DE 1973 201

seguintenão se é mais capazde contarsuaslembrançasde


infância e de se reconhecernessaidentidadeestatutária,en-
tão está-sedefinitivamentedestinadoao asilo.
Poderíamosdizer, se quiserem,que,no fundo, a máqui-
na asilardevesuaeficáciaa certonúmerode coisas.Em pri-
meiro lugar o enquadramentodisciplinar ininterrupto; a
dissimetriade poderque lhe é inerente;o jogo da necessi-
dade,do dinheiroe do trabalho;a vinculaçãoestatutárianuma
identidade administrativaem que se deve reconhecer-se
por umalinguagemde verdade.Mas vocêsestãovendoque
essaverdadenão é a verdadeda loucura falando em seu
próprio nome,é o enunciadodeverdadede umaloucuraque
aceitareconhecer-seem primeira pessoanuma certareali-
dadeadministrativae médica,constituídapelo poderasilar;
e é no momentoem que o doentese tiver reconhecidones-
sa identidadeque a operaçãode verdadeseráconsumada.
Por conseguinte,é como ordenamentodo discursoa essa
instituiçãodarealidadeindividual quesedá a operaçãodever-
dade.A verdadenuncaestáemjogo entreo médicoe odoen-
te. O que é dadoprimeiro é a realidadebiográficado doente,
instauradade umavez por todase à qualele tem de seiden-
tificar sequiserse curar.
Restaum derradeiroepisódio,de certomodosuplemen-
tar, nessecasoDupré.É que,no momentoemqueobteveesse
relato verdadeiro,mas verdadeiro precisamentesegundo
certo cânonebiográfico constituídode antemão,Leuret fez
umacoisasurpreendente: liberou Dupré,dizendoporémque
ele continuavadoente,mas que não precisavamais do asi-
lo naquelemomento.De que se tratavaparaLeuretao libe-
rar assimseupaciente?Em certosentido,certamente,de con-
tinuar essaespéciede intensificaçãoda realidadede que o
asilo haviasido encarregado. Vale dizer queaqui tambémva-
mos ver Leuret arranjarem tomo do seudoenteno estado
livre certo número de dispositivosque são exatamentedo
mesmotipo dos que eu lheshaviafalado.Armam-lheciladas
com históriasde verdade;num momentodado,ele pretende
que sabefalar árabe;colocam-nonumasituaçãoem que ele
O PODER PSIQUIÁTRICO
202

tem de confessar que não sabe53• Ap~am-no nasmesmas


coerçõesda linguagemem que o haviamapanhadoquando
estava no asilo. O ofício queLeuretconsegumparaseudoen-
te, e paralevá-lo à cura, isto é, no fim das con!aspara que
o domínio da realidadefossetotal sobreele, f01 o de corre-
tor numa tipografia54, de maneiraque ele se inserisseefe~-
vamentenessaordem da linguagemcoatoraem que, mais
umavez, não se tratada linguagemcomo portadorade ver-
dade, em sua utilizaçãodialética,masem suautilizaçãoim-
perativa. O que ele lê tem de ser efetivamenteconformeà
ortografia estatutáriae escolar.
Do mesmomodo, Leuret explica que ele lhe cria ne-
cessidades,levando-oà óperade tal modo que comecea ter
vontadede ir ao teatro.Dondea necessidade de ganhardi-
nheiro. É sempreessa[empreitada]de reconduçãoou de iden-
tificação à realidadepor um jogo disciplinar, aqui um jogo
disseminado,nãoconcentradoe intensocomono asilo: "Au-
menteiseusprazeresparaampliar suasnecessidades e ad-
55
quirir assimnumerososmeios de dirigi-lo."
Há no entantoum motivo muito mais forte, mais sutil
e interessante.É que, na verdade,Leuret notou em seu
doenteuma coisasob três formas, que é o prazerdo asila56,
o prazerde estardoente,o prazerde ter sintomas.É um trí-
plice prazerque, no fundo, é o portadorda onipotênciada
loucura.
Quandose retomatodo o desenrolarda terapia,vê-se
que Leuret, desdeo início, tentaatacaresseprazerda doença,
do sintoma, que ele havia sentidoem seu doente.Desdeo
início, ele utiliza a tal ducha,a camisa-de-força, a privação
de alimento; e essasrepressõestêm uma dupla justi.6.cação,
fisiológica e moral. A justificaçãomoral correspondepor sua
vez a dois objetivos: trata-se,por um lado, é claro, de fazer
sentir a realidadedo poderdo médicocontraa onipotência
da loucura,mastrata-se tambémde desedonizara loucura,
isto é, aniquilar o prazerdo sintomapor meio do desprazer
da terapia.Ora, aconteceque aqui tambémLeuret, creio eu,
reproduzcerto número de técnicasque, sem ser pensadas
AULA DE 19 DE DEZEMBRO DE 1973 203

ou teorizadas,eramencontradasentreos psiquiatrasda sua


época.
Mas o que Leuret tem de singular- e aí ele leva as coi-
sasmais longe - é que, com Dupré, ele se encontravanum
casoespecial.É que ele tinha um doenteque,quandoestava
debaixoda ducha,quandoinclusive lhe cauterizavama pele
do crânio57, praticamentenãoprotestavae achavatudo aqui-
lo perfeitamentesuportável,contantoque fizesseparte do
seutratamento58• Ora, é aí que Leuretvai sem dúvida mais
longe do que a maioria dos psiquiatrasda sua época,que
pediam,essencialmente- como sinal, aliás,da suaonipotên-
cia diante do doente-, que o doenteaceitasseo tratamento
semprotestar . ComDupré,ele tem um doentequeaceitao tra-
tamento,e essaaceitaçãofaz parte,de certomodo,da doença.
Leuret nota que é aí que essaaceitaçãoé um mau sinal
para a suaterapêutica:o tratamentoé·retomadono interior
do delírio. Quandolhe dão uma ducha,Dupré diz: '1Pronto,
mais uma que me insulta!"59 Portantoé precisoarranjar-se
paraque o tratamentosejadesarticuladoem relaçãoao de-
lírio, confiscadoao delírio que está perpetuamenteinves-
tindo-o. Dondea necessidade de dar ao tratamentouma in-
cisividadeparticularmentedolorosa,de maneiraquesejaatra-
vés dela que passea realidadeque vai exercerseudomínio
sobrea doença.
Há nessatécnicacertonúmerode idéiasquesãofunda-
mentais:a loucuraé ligada a um prazer;o tratamentopode,
por intermédiodo prazer,serintegradoà própria loucura; a
incidênciada realidadepode ser neutralizadapor um me-
canismode prazerintrínsecoao tratamento;e, por conseguin-
te, a terapiadevetrabalharnão apenasno nível da realidade,
mastambémno nível do prazer,e não apenasdo prazerque
o doentetem com sua loucura, mas no nível do prazerdo
doentecom seu tratamentomesmo*.

* O manuscritoacrescenta:"Em todo sintoma., há ao mesmotem-


po podere prazer." ....
O PODERPSIQUIÁTRICO
204
Donde, quandoLeuretcompreendeu que ~upréencon-
trava no asilo todaumasériede prazeres- erala que ele po-
dia delirar à vontade,que ele podia integrarseu tratamento
ao seudelírio, quetodasaspuniçõesquelhe impunhameram
reinvestidasno interior da suadoença-, entao,nessemo-
mento, Leuret concluiu que era precisofazer seudoentesair
do asilo e privá-lo desseprazer,que erao da doenç~,do h~s-
pital e da terapia.Com isso,ele opõe de_volta em crrcula~ao,
desedonizando por conseguintea terapiae fazendo entao a
terapiaagir segundoum modo absoluta me~te ~ão-médico.
Foi assimque ele, Leuret,desapareceumterramente-co-
mo personagemmédico.Ele parou de desempenhar aquele
seu papel agressivoe imperioso e fez atuar em seu lugar
certo número de cúmplicespara construir cenários do se-
guinte tipo: o sr. Dupré continuava,apesardo seuofício de
corretor numa tipografia, a cometererros de ortografia sis-
temáticos,já que em seudelírio ele queriasimplifi car a orto-
grafia. Fezquelhe enviassemumafalsa cartade contratação
paraum trabalhoque devialhe rendermuito dinheiro. O sr.
Dupréredigeumacartapararesponder que aceit a essenovo
cargo tão bem remunerado,mas deixa escapar um ou dois
errosde ortografia,de modo que o cúmplicede Leuret pode
se permitir mandar-lheuma cartana qual lhe diz: "Eu teria
contratadoo senhor,se o senhornão houvessecometido
errosde ortografiapavorosos."60 ·

De modo que,comovocêsestãovendo,todosos meca-


nismosque são do mesmotipo dos que foram instaurados
no asilo, sãoagoradesmedicalizados. O personagem médico,
o pr~~rio Leure~diz, vai se tomarcomo que um personagem
benefi~oquev~ ,t~ntararranjaras coisas,que vai.,secolocar
como mtermedíanoentre essadura realidadee o próprio
61
doente • Mas, com isso,o doentenãopoderámais sentirpra-
zer pela suadoenç~,q~~ provo5atantasconseqüências ne-
fastas,nem pelo asilo, Jª que nao estámais lá, nem mesmo
com se1;1médico,poi~ o ~édicoterá desaparecidocomo tal.
A ~erap1ado ~r. Duprefm plenamentebem-sucedida;ela ter-
mmou na pnmaverade 1839 com uma cura completa.Mas
AUIA DE 19 DE DEZEMBRO DE 1973 205

Leuretnotavaquena Páscoade 1840uns sinaispreocupan


-
tes provavamque uma nova doençaestavatomandoconta
do 17 doente"62•

Resumindoum poucoisso tudo, podemosdizer que o


asilo tal como o vemosfuncionarnumaterapiacomo estaé
um dispositivo de cura no qual a açãodo médico se incor-
poraabsolutamenteà da instituição,dos regulamentos,dos
edifícios.Trata-se,no fundo, de umaespéciede grandecorpo
único em que asparedes,as salas,os instrumentos , os enfer-
meiros, os vigilantes e o médico são elementosque têm, é
claro, diferentesfunçõesa desempenhar, mas têm essencial-
mentecomofunçãoexercerum efeito de conjunto. E, de acor-
do com os diversospsiquiatras,a tônica principal, o excesso
de poder/'vai serpostoora no sistemageralde vigilância, ora
no médico,ora no próprio isolamentoespacial.
Em segundolugar, uma coisa que eu gostariade res-
saltaré que o asilo foi de fato o lugar de formaçãode várias
sériesde discursos.Foi a partir dessasobservações quesepôde
constituir uma nosografia,uma classificaçãodas doença .
Foi igualmentea partir da livre disposiçãodos cadávere sd
loucosquesepôdeesboçarumaanatomiapatológicadadoen-
ça mental. Mas, como vocês estãovendo, nenhum des es
discursos,nemo nosográficonemo anatomopat ológico, er-
viu de guia paraa formaçãoda práticapsiquiátrica me ma.
Na verdade,podemosdizer que essaprática pennanecu
muda- emborase disponhade um certo número de proto-
colos-, mudana medidaem que não deulugar duranteanos
e anosao que quer que se parecessecom um discursoautô-
nomo que fossediferentedo protocolodo quefoi dito e feito.
Não houveverdadeirasteoriasda cura,nemsequer tentativa
de explicaçãodesta.O quese tevefoi um corpusde manobras ,
de táticas, de gestosa fazer, de açõese reações a deflagrar,
cuja tradição se perpetuou , atravésda vida asilar, no ensin
médico,tendo simplesmentecomo superfíciesde emergen-
O PODERPSIQUIÁTRICO
206

eia algumasdessasobservações,a m~s.lon9a das quais ci-


tei. Corpus de táticas,conjunto estrategico,e tudo o que se
podedizer da maneiracomo os loucos foram tratados.
Em terceiro lugar, creio que se deva falar de uma tau-
tologia asilar, no sentidode que o m~dico faz 9ue o próprio
dispositivo asilar lhe dê um certo _:1~ero de ms~men~os
que têm essencialmente por funçao impor a realidade,m -
tensificá-la, acrescentarà realidadeessesuplementode po-
der que vai lhe permitir atuar sobre a loucura e reduzi- la,
logo dirigi-la e governá-la.Essessuplementosde poderacres-
centadospelo asilo à realidadesãoa dissimetriadisciplinar,
o uso imperativoda linguagem, a organizaçãoda penúriae
dasnecessidades, a imposiçãode uma identidadeestatutá-
ria em que o doentedeve reconhecer-se,a desedonização
da loucura.Trata-sede suplementosde poderpelos quais a
realidade,graçasao asilo e pelo próprio jogo do funciona-
mento asilar, vai poderimpor seu domínio à loucura.Mas,
comovocêsestãovendo- e é nessesentidoque há umatau-
tologia-, tudo isso, a dissimetriado poder, ouso imperati-
vo da linguagem,etc., não é um simplessuplementode po-
der acrescentado à realidade,é a forma real da própria rea-
lidade. Ser adaptadoao real, [ ... *] querersair do estadode
loucuraé precisamenteaceitarum poderque se reconhece
comoinsuperávele renunciarà onipotênciada loucura.Dei-
xar de ser louco é aceitar ser obediente,é poder ganhara
vida, reconhecer-se na identidadebiográficaque formaram
de vocês,é pararde sentir prazercom a loucura. De modo
que, como vocês estãovendo, o instrumentopelo qual se
reduz a loucura, essesuplementode poder acrescentadoà
realidadepara que ela domine a loucura esseinstrumento
, '
e ao mesmotempoo critério da cura, ou entãoo critério da
cura é,º instrumentopelo qual se cura. Logo pode-se.dizer
q~e ~a uma grandetauto_logiaasilar na medida em que o
asilo e o quedeveproporcionarumaintensidadesuplemen-

,. Gravação: "renunciar à onipotência da loucura," .


AULA DE 19 DE DEZEMBRO DE 1973 207

tar à realidadee, ao mesmotempo,o asilo é arealidadeem


seu podernu, é arealidademedicamenteintensificada,é a
açãomédica,o poder-sabermédicoque não tem outrafun-
ção além de ser o agenteda própria realidade.
Essejogo do suplementode poderconcedidoà realida-
de, que não consisteem nadamais que na reprodução,no
interior do asilo, dessarealidademesma,é issoque faz a tau-
tologia asilar.E vocêsentendempor que os médicosda época
puderamdizer ao mesmotempo que o asilo devia ser algo
absolutamenteseparadodo mundo exterior, que o mundo
asilar da loucuradevia ser um mundoabsolutamenteespe-
cializadoe inteiramentenasmãosde um podermédicoque
se define pela pura competênciado saber- confisco,pois,
do espaçoasilar em benefíciodo sabermédico-; e por que,
por outro lado, os mesmosmédicosdisseramque asformas
geraisdo asilo deviamlembrarna medidado possívela vida
cotidiana, queos asilosdeviamsersemelhantes às colônias,
às oficinas, aos colégios,às prisões,isto é, que a especifici-
dadedo asilo estáem serexatamentehomogêneoàquilo de
que ele sediferencia,pelalinha queseparaloucurae não-lou-
cura.A disciplina asilar é ao mesmotempoa forma e a força
da realidade.
Enfim, o último ponto em que me detereie de quevol-
taremosa falar em seguidaé que, como vocêsestãoven-
do, quandose acompanhaem algum detalheuma terapia
comoa de Leuret- acrescentando-se, é claro, comocorretivo,
que é amais aperfeiçoadade todasas terapiasde que temos
testemunho-,citandosimplesmenteos diferentesepisódios,
semnadaacrescentar ao que diz Leuret,creio, e levandoem
contao próprio fato de que Leuret não teorizouem absoluto
o que ele queriadizer, vocêsvêemaparecerum certonúme-
ro destasnoções,que são:o poderdo médico,a linguagem,
o dinheiro, a necessjdade, a identidade,o prazer,a realida-
de, a lembrançada infância.Tudo isso estáabsolutamente
inscrito no interior da estratégiaasilar; por enquantonãose
trata de nadamais quepontosde apoio dessaestratégiaasi-
lar. Posteriormente,terãoo destinoque vocêssabem.Vocês
208 O PODERPSIQU!ATRJCO

vão tomar a encontrá-los num discursoabsolutamente ex-


tra-asilarou, m todo caso,que se apresentará como extra-
p iquiátrico*. Mas, antesde adqtúriremesseestatutode ob-
j to ou de conceito,nós os vemos,nessaespéciede câmera
1 nta quea terapiado sr. Duprénospropõe,atuarcomopon-
t s de apoiotáticos,elementosestratégicos,manobras,inten-
çõ , nós nasrelaçõesentreo pacientee a própria estrutura
asilar.
Veremosemseguidacomoeles·sedesprenderam daípara
entrarem outro tipo de discurso.
NOTAS

1. Opiáceos:preparaçõesà basede ópio, tidas como capazes


de suspenderos acessosde furor e restabelecer a ordemdasidéias,
sãopreconizadas, preferencialmente, paraaspurgaçõese assangrias,
por Jean-Baptiste Van Helmont (1577-1644)e ThomasSydenham
(1624-1689).Seu empregono tratamentoda loucuraem suafor-
ma 11maníaca"ou "furiosa" se desenvolveno séculoXVIII. Cf.: [a}
Philippe Hecquet(1661-1737),Réflexionssur l'usagede l' opium,des
calmantset desnarcotiquespour la guérisondesmaladies,Paris,G. Ca-
velier, 1726,p. 11. [b] J. Guislain, Traité sur l'aliénaticm mentaleet sur
les hospicesdes alíénés,op. cit., t. I, livro IV: /JMoyensdirigés sur le
systemenerveuxcentral.Opiumu, pp. 345-53.Vertambém aspá-
ginasque M. Foucaultconsagraa essasubstânciaem Hístoire de la
folie, op. cit., ed. de 1972, pp. 316-9.
No séculoXIX, JosephJacquesMoreaudeTours (1804-1884)
11
preconizao recursoaosopiáceosno tratamentoda mania: Pode-
mos encontrartambémnos opiáceos(o ópio, a datura,a beladona,
o meimendro,o acônito, etc.) um excelentemeio para acalmara
agitaçãohabitualdos maníacose os ímpetospassageiros dosmo-
nomaníacos"(11Lettresmédicalessurla colonied'aliénésde Ghéel'',
Annalesmédico-psychologiques, t. V, março de 1845, p. 271). Cf.: [a}
O. Michéa, [1] De l'emploi desopiacésdansle traitementde l'aliénation
mentale(extraídode L:Union médica/e,15 de marçode 1849),Pcui.s,
Malteste,1849; [2] Recherchesexpérimentales sur l'emploi desprincipaux
agentsde la médicationstupéfiantedans le traitementde r alíénation
O PODERPSIQllJÀTRICO
210

mentale,Paris,Labé, 1857. [b] H. Legranddu Saulle, "Recherches


cliniquessur le moded'administrationde l'opium dansla manie",
Annalesmédico-psychologiques, 3? série, t. V, janeiro de 1859, pp. 1-
27. [c] H. Brochin, verbete"Maladiesnerveuses",§ "Narcotiques",
in Dictionnaire encyclopédiquedes sciencesmédicales,2? série, t. XII,
Paris, Masson/Asselin, 1877,pp. 375-6. [d] J.-B. Fonssagrives , verbete
"Opium", ibid., 2? série,t. XVI, 1881, pp. 146-240.
2. Láudano:preparaçãoem que o ópio é associadoa outros
ingredientes,sendoa mais utilizada o láudanode Sydenham ou
"vinho de ópio composto",preconizadoparaos distúrbios diges-
tivos, no tratamentodas doençasnervosase da histeria. Cf. " Ob-
servationesMedicae" (1680), in Opera Omnia, t. I, Londres, W.
Greenhill, 1844, p. 113. Cf. Dictionnaire encyclopé dique des sciences
médicales,2~ série, t. II, Paris,Masson/Asselin, 1876, pp. 17-25.
3. DesdePinel, que afirmava//a necessida d e extremade uma
ordem invariável de serviço" (Traité médico-philosophique sur l' alié-
nation mentale,ou la Manie, op. cit., seçãoV: "Police généraleet ordre
joumalie r du servicedansles hospicesd'aliénés", p. 212), os alie-
nistasnão pararamde insistir na importânciade um regulamento.
É o casode J.-P. Falret: " Que vemos nos asilos dos dias de hoje?
Vemosum regulamentopositivo, estritamenteobservado,que es-
tabeleceo empregode todasas horasdo dia e força cadadoente
a reagircontraa irregularidadedassuastendências,submetendo-se
à lei geral.Ele é obrigadoa cedernasmãosde umavontade alheia
e fazer constantemente um esforçosobre si mesmopara não in-
correr nas puniçõesvinculadasà infração ao regulamento"("Du
traitementgénéraldesaliénés" (1854),op. cit. [in Des maladiesmen-
tales et des asilesd'aliénés],p. 690.)
4. O problemado regime alimentarocupauma posiçãoprivi-
legiada,ao mesmotempo a título de componenteda organização
cotidianado tempo asilar e de contribuiçãoao tratamento.Assim,
FrançoisFodérédeclaraque "os alimentossãoos primeirosremé-
dios" (Traité du délire, op. cit., t. II, p. 292). Cf.: [a] J. Daquin, La Philo-
sophiede la folie, reeditadocom umaapresentação de CL Quétel,Pa-
ris, Éditions Frénésie(col. "Insania"),1987,pp. 95-7. [b] J. Guislain,
Traitésur l'aliénationmentale..., op. cit., t. II, livro 16: "Régime alimen-
taire à observerdansl'aliénationmentale",pp. 139-52.
5. O trabalho,peçaessencialdo tratamentomoral, é concebi-
do na dupla perspectiva,terapêutica,do isolamentoe, disciplinar,
da ordem.Cf.: [a] Ph. Pinel, Traité médico-philosophique, op. cit., se-
AULA DE 19 DE DEZEMBRO DE 1973 211

çãoV, § XXI: "Loi fondamentalede tout hospice d'aliénés,celle


d'un travail mécanique":"Um trabalho constantemuda a cadeia
viciosa das idéias,fixa as faculdadesdo entendimento,fornecen-
do-lheso exercício,mantémsozinhoa ordem num agrupamento
qualquerde alienadose dispensauma multidão de regrasminu-
ciosas,muitasvezesinúteis paramantera políciainterior'' (p. 225).
[b] C. Bouchet,"Du travail appliquéaux aliénés",Annalesmédíco-
psychologiques,t. XII, novembrode 1848, pp. 301-2. Na Hístoíre de
la folie (op. cit., ed. de 1972,pp. 505-6),Michel Foucaultfaz referên-
cia a um estudode JeanCalvet, datadode 1952, sobreas origem
históricasdo trabalhodos doentesnos asilos de alienados.
6. Ph. Pinel dá foro de nobrezaà ducha,delafazendoum ins-
trumento ao mesmotempode tratamentoe de condicionamento
Cf. Traité médico-philosophique sur r aliénation mentale,2~ ed. rev. E
aum., Paris, Caille et Ravier, 1809, pp. 205-6. Cf. também: [a] H
Girard de Cailleux, ''Considérationssur le traitementdesmaladie~
mentales",Annalesmédico-psychologi.ques, t. IY, novembrode 1844,
pp. 330-1. [b] H. Rech (de Montpellier), "De la doucheet desaffu-
sions d'eau froide sur la tête dans le traitement des aliénatiorn
mentales",ibid., t. IX, janeiro de 1847,pp. 124-45. Mas é sobretudc
[c] FrançoisLeuret que a aplica no Traitementmoral de la f olíe, op.
cit., cap.3, § "Doucheset affusionsfroides", pp. 158-62.Ver (supra,
pp. 179 ss. e infra, pp. 221 ss.) aterapiado sr. Dupré. M. Foucaul1
consagraa ela várias páginas: [1] Maladie mentaleet Psychologie.
Paris,PUF (col. "Initiation philosophique"),1962,pp. 85-6; [2] His-
toire de la folie, ed. de 1972,pp. 338 e 520-1; [3] '~eauet la folie" ,
DE, I, n? 16, pp. 268-72.Volta ao assuntoem "Sexuality and Soli-
tude" (LondonReviewof Books,21 de maio-5 de junho de 1981,pp
3 e 5-6), DE, IY, n? 295, pp. 168-9.
7. A "cadeirarotatória",estabelecidapelo médicoinglês Eras-
musDarwin (1731-1802),é aplicadano tratamentoda loucurapo1
MasonCox, que elogia suaeficácia: "Estimo que possaserutiliza-
da no moral como no físico e empregadacom sucesso,tanto como
meio de alívio quantocomo meio de disciplina,paratornaro doen-
te maleávele dócil" (Observationssur la démence , trad. cit., p. 58).
Cf.: [a] L. Amard, Traité analytíquede la folie et desmoyensde la gué-
rir, Lyon, irnpr. de Ballanche,1807, pp. 80-93. [b] J. Guislain, _[1_]
Traité sur l'aliénatíon mentale..., op. cit., t. I, livre N; [2] Moyensdzn-
gés sur le systemenerveuxcérébral. De la rotation, Amsterdam, an
der Hey, 1826,pp. 374 e 404. [e] C. Buvat-Pocho~Les Tra:itementsdi
212 O PODERPSIQUIATRICO

chocd'autrefoisen psychiatrie.Leurs liens avecles thérapeutiques mo-


demes,111. Méd. Paris,n? 1262, Paris,Le François,1939.Ver Histoire
de la folie, ed. de 1972, pp. 341-2.
8. Em vida, Leuret teve de se defenderdas críticasque conde-
navam,de acordocom suasprópriaspalavras,suapráticacomo "re-
trógradae perigosa11 (Du traitementmoral de la folie, op. cit., p. 68). Seu
principal oponentefoi E. S. Blanche,em suaMemória apresentada à
AcademiaRealde Medicina: Du dangerdes rigueurs corporelles dansle
traitement de la folie (Paris, Gardembas,1839), assim como num
opúsculo:De l'état actueldu traitementde la folie en France, Paris,Gar-
dembas,1840. Os necrológiossobreLeuretfarão ecoa essaspolêmi-
cas: [a] U. Trélat, "Notice sur Leuret",Annalesd'hygienepubliqueet de
médecinelégale,vol. 45, 1851, pp. 241-62. [b] A Brierre de Boismont,
"Notice biographiquesur M F. Leuret", Annalesmédico-psychologi-
ques,2? série,t m, julho de 1851,pp. 512-27.
9. Trata-seda ObservaçãoXXII: "Porteurs de titres et de dig-
nités immaginaires"(Du traitementmoral de la folie, pp. 418-62).
10. lbid., pp. 421-4.
11. lbid., p. 429.
12. Ph. Pinel, Traité médico-philosophique, op. cit., ed. de 1800,
seçãoII, § IX: "Intimidar o alienado,masnão se permitir nenhum
ato de violência", p. 61.
13. J. E. D. Esquirol, "De la folie" (1816), op. cit. [in Des mala-
dies mentales..., t. I], p. 126.
14. Cf. supra, nota 3. Já era paraJ. Guislain uma das vanta-
gensdo "isolamentono tratamentoda alienação":"Baseadonum
sentimentode dependênciaque ele faz o alienadoexperimentar
[...] forçado a se conformar a uma vontade alheia" (Traité sur
l'aliénation mentale..., op. cit., t. t p. 409).
15. F. Leuret, Du traitementmoral de la folie, op. cit., p. 422:
"Dupré é um nome de convenção,um nome de incógnito; seu
nomeverdadeiro,como nós sabemos,é Napoleão." '
16. "O sinal distintivo da suaqualidadede Alcíone é o de poder
deleitar-seconstantemente com os prazeresdo amor'' (ibid., p. 423).
17. "Só ele, no hospício,é homem;todos os outros são mu-
lheres" (ibíd., p. 423).
18. E. J. Georget,De la folie. Considérationssur cettemaladie...,
op. cit., p. 284.
19. F. Leuret, Du traitementmoral de la folie, op. cit., p. 429.
20. Ibid., p. 430.
AULA DE 19 DE DEZEMBRO DE 1973 213

21. Ibid., p. 430.


22. Ibíd., p. 422.
23. lbid., p. 431.
24. Ibid., p. 431.
25. Ibid. 1 p. 432.
26. Ibid., p. 422.
27. Ibíd., p. 432.
28. Leuret define seu tratamentoda seguintemaneira:''En-
tendopor tratamentomoral da loucurao empregoracionalde to-
dos os meiosque agemdiretamentesobrea inteligênciae sobreas
périxõesdos alienados"(ibid., p. 156).
29. J.-P. Falret, Zoe. cit. supra, p. 210, nota 3.
30. J. E. D. Esquirol, "De la folie 11 (1816), op. cit. [in Des mala-
díes mentales..., t. I], p. 126.
31. F. Leuret, Du traitementmoral de la folie, op. cit., p. 424.
32. Ibid., p. 434.
33. Ibíd., p. 435.
34. Loc. cit.
35. Michel Foucault faz alusão à relação "dinheiro-excre-
mento" que conheceraum belo futuro na literatura psicanalítica
Mencionadapor Freudnumacartaa Fliess,de 22 de dezembrode
1897(in La Naissancede la psychanalyse.Lettresà Wilhelm Flíess(1887-
1902), trad. fr. A. Berman,Paris,PUF, "Bibliothequede psychanaly-
se", 1956, p. 212), essarelaçãosimbólica encontraseusdesenvol-
vimentosna teoria do erotismoanal. Cf. S. Freud, [1] "Charakter
undAnalerotik" (1908),in Gesammelte Werke[doravante:GvV], t.VII,
Frankfurt, S. FischerVerlag,1941, pp. 201-9 ["Caractereet érotis-
me anal", trad. fr. D. Berger,P. Bruno, D. Guérineau,F. Oppenot,in
Névrose,Psychoseet Perversion,Ruis, PUF, 1973,pp. 143-8]; [2] "Über
Triebumsetzunginsbesondere derAnalerotik" (1917),GW, t. X, 1946,
pp. 401-10 ["Sur les transpositionsdespulsions,plus particuliere-
mentdansl'érotismeanal",trad. fr. D. Berger, in La Vie sexuelle, Ruis,
PUF, 1969,pp.106-12].Cf. tambémE. Bomeman,Psychoanalys edes
Geldes.Eine kritische UntersuchungpsychoanalytischerGeldtheorien,
Frankfurt, SuhrkampVerlag, 1973 [Psychoanalysede l'argent. Une re-
cherchecritique sur les théoriespsychanalytiques
de l'argent, trad. fr. D.
Guérineau,Paris,PUF, 1978].
36. G. Ferros,Des aliénés.Considérationssur l'état des maisons
qui leur sont destinées,tant en France qu'enAngleterre; sur le régim
hygiéniqueet moral auquelcesmaladesdoiventêtre sou.mis; sur quelques
214 O PODERPSIQllIATRICO

questíonsde médecinelégale et de législation relatives à leur état civil,


Paris, impr. de Mme Huzard,1834,p. 234.
37. Loc. cit.
38. Cf. supra, p. 149, nota 18.
39. A "fazendaSainte-Anne"remontaà doaçãoque Ana da
Áustria tinha feito em 1651 para construir um estabelecimento
destinadoa acolher doentesem caso de epidemia.Parcialmen te
construídos,os terrenoscontinuaramexplorados para o cultivo.
Em 1833, Guillaume Ferrus (1784-1861),médico-chefe do hos-
pital de Bicêtre, resolve utilizá-los a fim de pôr para trabalhar
os convalescentes e os incuráveisválidos provenientes das três
seçõesdo asilo. Uma decisãoda comissãoinstituída em 27 de
dezembrode 1860 pelo prefeito Haussman n a fim de " estudaras
melhoriase as reformasa efetuarno serviço dos alienadosdo de-
partamentodo Sena"assinalao fim da fazenda. A construçãode
um asilo, iniciadaem fins de 1863,de acordo com o projeto elabo-
rado sob a direçãode Girard de Cailleux, é inauguradaem 1? de
maio de 1867.Cf. Ch. Guestel,Asiled'aliénésde Sainte-Anne à Paris,
Versalhes,Aubert, 1880.
40. Henri Girard de Cailleux (1814-1884)ocupa as funções
de médico-chefee diretor do asilo de alienadosde Auxerre de 20
de junho de 1840até a suanomeaçãoparao cargode inspetorge-
ral do Serviçode Alienadosdo departamentodo Sena,em 1860.A
citaçãoprovémdo seuartigo "De la constructionet de la direction
desasilesd'aliénés",Annalesd'hygienepubliqueet de médecineléga-
le, t. 40, 1~ parte,julho de 1848,p. 30.
41. H. Belloc, LesAsilesd'aliénéstransformésen centresd'exploi-
tation rurale, moyend'exonéreren tout ou en partie les départements
des dépensesqu'íls font pour leurs alíénés,en augmentantle bien-êtrede
cesmalades,et en les rapprochantdes conditionsd'existencede l'homme
en société,Paris,BéchetJeune,1862,p. 15.
42. Alusão a váriasproposiçõesanteriores:(a) a aula de 7 de
novembrode 1973 sustentaque "nenhumdiscursode verdade"é
requeridopelaoperaçãoterapêuticado médico (supra, p. 14); (b) a
aula de 14 de novembroevoca asupressão,,;na práticapsiquiátri-
ca que se inaugurano início do séculoXIX", do "jogo da verdade"
que caracterizavaa "protopsiquiatria"(supra, pp. 32 ss.); (c) a aula
de 12 de dezembrode 1973 concluíraque, no poder psiquiátrico,
a questãoda verdadenuncaé colocada(supra, p. 165).
AULA DE 19 DE DEZEMBRO DE 1973 215

. 43. F. Leuret, Du traítementmoral de la folie, op. cít., pp. 423 e


435-6.
44. Ibíd., p. 438.
45. Ibíd., p. 439.
46. Ibid., p. 440.
47. Ibíd., pp. 440-2.
48. Ibíd., p. 444.
49. Loc. cít.
50. Ibid., pp. 444-5.
51. Ibid., pp. 441-2.
52. F. Leuret, Fragmentspsychologíquessur la folie, op. cít., pp.
121-4.
53. F. Leuret, Du traítementmoral de la folie, op. dt., pp. 449-50.
54. Ibíd., p. 449.
55. Ibíd., p. 451.
56. Ibíd., p. 425: "Ele nem pensaem sair do hospício e não
teme tampoucoos tratamentoscom que é ameaçadoou que o fa-
zem sofrer."
57. Ibíd., p. 426: "Aplicaram-lheuma vez no alto da cabeçae
duasvezesna nucaum ferro em brasa."
58. Ibíd., p. 429: "Ele me perguntaentãose faz parte do seu
tratamento;nessecaso,ele se resignaráa tudo o que eu quiser."
59. Ibid., p. 430.
60. Ibid., p. 453: "Ele haviadeixadopassar,numacartabrevís-
sima, doze erros de ortografia,e o que de melhor ele tinha a fazer
era não ambicionarum empregodessegênero..."
61. Ibíd., p. 454: "Eu deixavao jogo se iniciar; o sr. Dupré se
defendiao melhor que podia, depois,quandoera muito vivamen-
te pressionado,eu o acudia,assumindoo papel de conciliador."
62. Ibid., p. 461.
AULA DE 9 DE JANEIRO DE 1974

Poderpsiquiátricoeprática da direção". - O jogo da "rea-


II

lidade" no asilo. - O asilo, espaçomedicamentemarcado,e a


questãoda sua direção: médicaou administrativa.- As marcas
do saberpsiquiátrico: (a) a técnicado interrogatório; (b) ojogo
da medicaçãoe da punição; (c) a apresentaçãoclínica. - "Mi~
crofísica do poder" asilar. - A emergênciada função-psi e da
neuropatologia.- O tríplice destinodo poderpsiquiátrico.

Eu havia mostradoque o poder psiquiátrico,conside-


rado em suaforma ao mesmotempoarcaicae elementar,tal
como funcionavanessaprotopsiquiatriados trinta ou qua-
renta primeiros anos do séculoXIX, funcionavaessencial-
mentecomo um suplementode poderdadoà realidade.
Isso significa, primeiramente,que o poderpsiquiátrico
é antesde mais nadacertamaneirade gerir, de administrar,
antesde sercomo que uma terapiaou urna intervençãote-
rapêutica:é um regime,ou melhor, é porqueé e na medida
em queé um regimequeseesperadelecertonúmerode efei-
tos terapêuticos- regime de isolamento,de regularidade,
empregodo tempo, sistemade carênciasmedidas,obriga-
ção de trabalho,etc.
É um regimemasé, ao mesmotempo- e é esseum as-
pectosobreo qual insisti -, uma luta contraurna coisaque
é aloucura,concebida,parece-me,no séculoXIX - qualquer
que sejaa análisenosográficaou a descriçãofeita dosfenô-
menosda loucura-, concebidaessencialmente como von-
tadeeminsurreição,vontadeilimitada. Mesmonumcasode
delírio, é avontadede crer nessedelírio, a vontadede afir-
maçãodessedelírio, a vontadeno cernedessaafirmaçãodo
218 O PODER PSJQWÁTRICO

delírio, é issoqueé o alvo da luta quepercorre,anima,ao lon-


go de todo o seudesenrolar,o regime psiquiátrico.
O poderpsiquiátricoé portantodomínio, tentativade
subjugar,e tenhoa impressãode que a palavraque melhor
correspondea essefuncionamentodo poderpsiquiátrico,e
quealiásencontramosao longo dostextos,de Pínela Leuret1,
o termo que aparececom maior freqüência e que me pare-
ce perfeitamentecaracterísticodessaempreitadaao mesmo
tempode regimee de domínio, de regularidadee de luta, é
a noçãode "direção".Noçãode que serianecessáriofazer a
história,porqueseulocal de origemnão é apsiquiatria- lon-
ge disso. É uma noção que traz consigo,já no séculoXIX,
toda uma série de conotaçõesdo domínio da prática reli-
giosa. A"direçãode consciência"definiu, ao longo dos três
ou quatroséculosque precederamo séculoXIX, um campo
geral ao mesmotempo de técnicase de objetos2 • Até certo
ponto,algumasdessastécnicase algunsdessesobjetossão
importados,com essapráticada direção,parao campopsi-
quiátrico. Seriatoda uma história a ser feita. Em todo caso,
temosaqui uma pista: o psiquiatraé alguém que dirige o
funcionamentodo hospitale os indivíduos.
Eu lhes citarei, simplesmentepara bem assinalarnão
apenasa existênciadessaprática, mas a nítida consciência
dessapráticaentreos própriospsiquiatras,um texto quedata
de 1861e queemanado diretor do asilo de Saint-Yon: "Cada
dia, no asilo que dirijo, eu elogio, recompenso,repreendo,
imponho,restrinjo, ameaço,puno; e por quê?Sereieu pró-
prio um insensato?E tudo o que faço, todos os meuscole-
gastambémfazem,todos,semexceção,porqueisso decorre
da natureza dascoisas."3
Essa"direção" tem emvista o quê?Foi aqui que eu ha-
via chegadoda última vez. Creio que, essencialmente, dar à
realidadeum podercoativo. Isso quer dizer duas coisas.
Quer dizer, primeiro, tomar de certo modo essareali-
dadeinevitável,impositiva,fazerfuncionara realidadecomo
poder,dar à realidadeessesuplementode vigor que lhe per-
AULA DE 9 DE JANEIRO DE 1974 219

mite alcançara loucura, ou essesuplementode distância


quevai lhe permitir atingir até mesmoessesindivíduosque
fogem dela ou dela se desviam,e que sãoos loucos.É por-
tanto um suplementodado à realidade.
Mas é ao mesmotempo - e é esseo outro aspectodo
poderpsiquiátrico- validar o poderque se exerceno inte-
rior do asilo como sendosimplesmenteo poderda própria
realidade.O que o poderintra-asilar,tal comofunciona no
interior desseespaçoordenado,pretendetrazer,e em nome
de que ele sejustifica cornopoder?Em nomeda própriarea-
lidade. Assim, vocês têm ao mesmotempo o princípio de
que o asilo devefuncionarcomo um meio fechado,absolu-
tamenteindependentede todasas pressões,como podem
seras da família, etc. Logo, um poderabsoluto.Mas esseasilo,
que é inteiramenteseparado,deveserem si mesmoa repro-
duçãoda própriarealidade.As edificaçõestêm de parecero
mais possívelcom asmoradiascomuns;asrelaçõesentreas
pessoasno interior do asilo têm de separecercom as rela-
çõesdos cidadãosentre si; no interior do asilo, a obrigação
geral do trabalhotem de estarrepresentada, o sistemadas
necessidades e da economiatem de serreativado.Logo, du-
plicaçãono interior do asilo do sistemada realidade.
Logo, dar poderà realidadee fundar o poderna reali-
dadeé a tautologiaasilar.
Mas, de fato, o que é mais precisamente,sob o nome
de realidade,aquilo que é efetivamenteintroduzidono in-
terior do asilo?A quesedá o poder?O queé exatamenteaqui-
lo que se faz funcionarcomo realidade?A que se dá um su-
plementode podere em quetipo de realidadesefunda o po-
der asilar? Eis o problema,e era para tentar destrinchá-lo
um poucoqueeuhaviacitadodemoradamente da última vez
a história de uma terapia que me parecia absolutamente
exemplardo funcionamentodo tratamentopsiquiátrico.
Creio que pode-mosidentificar com precisãoa maneira
como seintroduze comofuncionao jogo da realidadeno in-
terior do asilo. Gostariade resumiresquematicamente o que
daí sedestacanaturalmente.No fundo, o que é que,no "tra-
220 O PODERPSIQUIÁTRICO

tamentomoral" em geral,e naqueleem particular,podemos


identificar como realidade?
Creioqueé, emprimeirolugar,a vontadedo outro.Area-
lidadeà qual o doentedeveserconfrontado,a realidadeà qual
suaatenção,distraídada suavontadeem insurreição, deve
sedobrare pelaqual ele devesersubjugadoé antes de mais
nadao outro, comocentrode vontade,como foco de poder,
o outro na medidaem que detéme sempre deterá um po-
der superiorao do louco. O excessode poder estádo outro
lado: o outro é sempredetentorde certapartedo poder, ma-
joradaem relaçãoà parte do louco. Eis o primeiro jugo da
realidadea que cumpresubmeter o louco.
Em segundolugar,havíamosidentificadooug-o tipo ou
outro jugo de realidadea que submeter o louco. E o que se
manifestoupelacélebreaprendizagem do nome,do passado ,
a obrigaçãoda anamnese- vocêsse lembram [da maneira
como] Leurethavia,soba ameaçade oito baldesd'água, obri-
gadoe conseguidoqueseudoentecontasse asuavida4. Logo:
o nome,a identidade,o passado,a biografiarecitada na pri-
meirapessoa, reconhecida por c~nseguinteno ritual de algo
que se aproximada confissão.E essarealidadeque é im-
postaao louco.
A terceirarealidadeé a própriarealidadeda doença,ou
antes,a realidadeambígua,contraditória,vertiginosada lou-
cura,já que,de um lado,trata-senumaterapiamoral de sem-
pre mostrarao louco que a sualoucuraé loucura e que ele
estáde fato doente;por conseguinte,forçá-lo a abandonar
tudo o quepoderiasernegaçãoda suapróprialoucura,sub-
metê-loà inflexibilidade da suadoençareal. Depois,ao mes-
mo tempo,mostrara ele que no cerneda sualoucurao que
existe não é doença,mas defeito, maldade,falta de aten-
ção,presunção . A cadainstante- lembrem-seda terapiado
sr. Dupré -, Leuret impõe ao seu doenteo reconhecimento
de que, no passado,ele esteveem Charentone não em seu
castelode Saint-Maur5,que ele estáde fato doente,que tem
um estatutode doente. O pacientetem de ser submetidoa
essaverdade.
AULA DE 9 DE JANEIRO DE 1974 221

Mas, ao mesmotempo,quandoo submetea umaducha,


Leuretdiz ao sr. Dupré: eu nãofaço isso paracurá-lo,porque
você estádoente;faço issoporquevocê é malvado,porquehá
em você certo desejoinadmissível6 • E vocêssabematé on-
de Leuretlevou a tática,pois chegoua fazer seupacientesair
do asilo para que ele não se satisfizessecom a sua doença
dentrodo asilo e paraque não abrigasseos sintomasda sua
doençano elementodo asilo. E, por conseguinte,paranegar
à doençaseuestatutode doença,com todosos benefíciosque
isso acarreta,é necessáriotrazerà tona do interior da doença
o desejomau que a anima.Portantoé necessário,ao mesmo
tempo,impor a realidadeda doençae impor à consciênciada
doençaa realidadede um desejonão doenteque a anima e
que estána própriaraiz da doença.Realidadee irrealidadeda
doença,realidadeda não-realidadeda loucura,é grossomodo
em tomo disso que gira essatática de Leuret, e isso constitui
o terceirojugo de realidadeao qual, de maneirageral, os en-
fermos sãosubmetidosno tratamentomoral.
Enfim, a quartaforma de realidadeé tudo o que corres-
ponde às técnicasrelativasao dinheiro, às necessidades, à
necessidade do trabalho,todo o sistemadastrocase dasuti-
lidades,a obrigaçãode prover às suasnecessidades.
Creio que essesquatro elementos- vontadedo outro,
sobrepoderdefinitivamentepostodo lado do outro; jugo da
identidade,do nomee da biografia; realidadenãoreal da lou-
cura e realidadedo desejoque constituia realidadeda loucura
e que a anulacomoloucura;realidadeda necessidade, da tro-
ca e do trabalho-, são essesquatro elementos, espéciesde
nervurasde realidade,que penetramno asilo e que são, no
interior do asilo, os pontossobreos quaisse articulao regi-
me asilar, a partir dos quais se estabelecea tática na luta
asilar. E o poderasilar é de fato o poderque se exercepara
fazer valer essasrealidadescomo [a] realidade.
Parece-meque a existênciadessesquatroelementosda
realidade,ou a filtragem que o poderasilaroperana realidade
paradeixarpenetraressesquatroelementos,é importantepor
várias razões.
O PODERPSIQUIÁTRICO
222

A primeiraé que essesquatr?elementos vã_? inscrever


na práticap iquiátricaum certonumerode questoe~q ~~ va-
mosencontrarobstinadamente ao longo de toda ahistonada
psiquiatria.Em primeiro lugar, a questão da dependên_cia, da
submissãoao médicocomo detentorde certo poder incon-
tornávelparao doente.Em segundolugar, inscreve também
a questão,ou antes,a práticada confissão, da_anamne~e,do
relato, do reconhecimentode si mesmo. Isso inscreveigual-
mentena práticaasilar o procedimento pelo qual vai se co-
locar, a toda loucura, a questão d o desejoao mesmotempo
secretoe inadmissívelque a faz existir realmentecomo lou-
cura. E, por fim, em quarto lugar, inscreveevidentementeo
problemado dinheiro, da compensaçãofinanceira, o pro-
blemade comoprover às suaspróprias necessidades quan-
do vocêé louco, de como, no interior da loucura, instaurar
o sistemade trocaa partir do qual você poderáfinanciar sua
existênciade louco. É tudo isso que vocês vêemse esboçar,
de maneirajá relativamenteprecisa,em todasessastécnicas
da protopsiquiatria.
Creio que esseselementossão igualmenteimportantes,
não apenaspor essastécnicas,essesproblemasque sãode-
positadosna história da psiquiatria,no corpus dassuaspráti-
cas, [mas também]* porquevemosdefinir -se atravésdeles
o que vai definir o indivíduo curado - o que éum indivíduo
curado, senão, precisamente, aquele que aceit ou esses qua-
tro jugos,da dependência, da confissão,da inadmissibilid ade
d_o des~jo:e d~ ~eiro?A ~ura é oprocessode sujeiçãofí-
sica co_tidi_fil;ª, 1mediata,realizadano asilo, que vai constituir
como mdiVIdu': curado oportadorde uma quádrupla reali-
dade. E essaquadruplarealidadede que o indivíduo deveser
~ortador,q_uerdizer, deveserreceptor,é alei do outro, a iden-
tidade.ªsi, a não-admissibilidadedo desejo,a inserçãoda
necessidade num sistemaeconômico.Sãoessesquatroele-
mentosque,quandoterãosido efetivamenteadmitidos pelo

*G ravaçao:
- " também é ímportante" .
AUIA DE 9 DE JANEIRODE 1974 223

indivíduo tratado,vão qualificá-lo como indivíduo curado.


Quádruplo sistemade ajustamento*,que, em si, por sua
efetivação,cura, restitui o indivíduo.
Agora, eu gostariade abordaroutrasériede conseqüên -
cias que gostariade desenvolvermais e que serãoo objeto
daspropostasquevou sustentar.Essaquádruplasujeiçãose
dá, portanto, no interior de um espaçodisciplinar e graças
a esseespaçodisciplinar. Nessesentidoe até agora,o que
pude lhes dizer sobreo asilo não difere tanto do que teria
podido dizer sobreos quartéis,as escolas,os orfanatos,as
prisões,etc. Ora, há no entantoumadiferençaessencialen-
tre os estabelecimentos ou as instituiçõesde que venho de
lhes falar e o asilo. A diferençaé, evidentemente,que o asilo
é um espaçomedicamentemarcado.
Até agora,tanto quandofalei do regimegeral do asilo,
corno quandofalei da técnicade luta, do excessode poder
dado à realidadenessa lutaintra-asilar,afinal de contas, o
que a medicinatinha a ver com isso tudo e por que era ne-
cessárioum médico?O que significa dizer que o hospital foi
medicamentemarcado?O que significa dizer que foi nece -
sário,a partir de certo momentorprecisamenteno início do
séculoXIX, que o lugar emque os loucossãopostosnãosej
simplesmenteum lugar disciplinar,massejaalém disso um
lugar médico?Em outraspalavras,por que é precisoum m, -
clico parafazerpassaressesuplementode poderda realidad ?
Concretamente,ainda, vocês sabemque até o fim
séculoXVIII os lugaresem que os loucoseramposto , lu -
garesque serviam paradisciplinaras existências1 uca nã
eramlugaresmédicos:nemBicêtre7, nema Salpêtriere8, n m
, nem mesmo,no limite, Charent n º, qu , no
1
Saint-Lazare 9

entanto,era tão especificamentedestinadoa curar o lou o


- o quenãoerao casodosoutrosestabelecimento. enhum
dessesera,a bem da verdade,um lugar médico.Claro, ha-
via médicoslá, mas essesmédicoseram encarregado de

* Manuscrito: "sujeição" em vez de " ajusJamento".


224 O PODERPSIQlllATRICO

desempenhar um papelde médicos comuns, isto é, de asse-


gurar certo número de cuidadosque o estadodos indiví-
duosinternadose aprópriaterapiaimplicavam.Não era do
médico como médico que se esperavaa cura do louco; e o
enquadramento efetuadopor um pessoalreligioso, a disci-
plina que se impunhaentãoaos indivíduos, não necessita-
vam de umacauçãomédicaparaquese esperassedelesalgo
que devia ser a cura.
Isso, que é muito claro até o fim do século XVIII , vai
se abalarnos últimos anos[desse] século e, no séculoXIX ,
vamosencontrar,agora demaneiraabsolutamentegeral, a
afirmação,de um lado, de que aquilo de que os loucos ne-
cessitamé de umadireção,é de um regime e, de outro lado,
a afirmaçãoparadoxale, até certo ponto, não implicadana
primeira,de que essadireçãodeveestarnasmãosde um pes-
soal médico. O que é essaexigênciada medicalização , no
momentoem que seredefineessadisciplina de que lhesfa-
lei até aqui? Quer isso dizer que o hospital deve ser agora
o lugar em quevai serealizara aplicaçãode um saber médi-
co? Quer dizer que a direçãodos loucosdeve ser ordenada
a um sabersobrea doençamental,uma análiseda doença
mental,uma nosografia,uma etiologia da doençamental?
Não creio. Creio que é absolutamentenecessárioinsistir
no fato de que houve,no séculoXIX, por um lado, todo um
desenvolvimentodas nosografias,das etiologiasdas doen-
çasmentais,daspesquisasanatomopatológicas sobre ascor-
relaçõesorgânicaspossíveisda doençamental e, por outro
lado,o conjuntodessesfenômenostáticosda direção.Essade-
fasagem,essadistorçãoentreo que poderíamoschamarde
umateoriamédicae apráticaefetivada direçãose manifes-
ta de váriasformas.
Primeiramente,a relaçãoque podia haverentre os in-
divíduosinternadosnum hospitale o médicocomoindivíduo
que possuicerto sabere que pode aplicar essesabernesse
doente,essarelaçãoeraumarelaçãoinfinitamentetênueou,
v_amosdizer, totalmentealeatória.Leuret,que fazia terapêu-
ticaslongase difíceis, de que lhesdei um exemplo,dizia que
AULA DE 9 DE JANEIRO DE 1974 225

nãose deviaesquecerquenum hospitalcomumum médico-


chefe podia consagrar,grosso modo, trinta e sete minutos
por ano a cadaum dos seuspacientes,e citavaum hospital,
provavelmenteBicêtre, no qual o médico-chefepodia con-
sagrarno máximo dezoitominutospor ano a cadadoente11•
Vocês estãovendo que a relaçãoentre a populaçãoasilar e
a técnicamédicapropriamentedita eratotalmentealeatória.
Encontramosa prova dessadistorção,de maneiramais
séria,semdúvida,no fato de que,seolharmoscomoos doen-
tes eramefetivamentedistribuídosnos asilos,naquelaépo-
ca, essadistribuiçãonãotinha rigorosamentenadaa ver com
a repartiçãonosográficadas doençasmentaistal como vo-
cês encontramnos textos teóricos.A distinçãoentremania
e lipemania12, entremaniae monomania 13
, todaa série das
1
maniase dasdemências4, de tudo issovocêsnãovêemves-
tígio, não vêem o efeito na organizaçãoefetiva dos asilos.
Em compensação, as divisões que vocêsvêem estabelecer-se
concretamentenos hospitaissão divisões totalmentedife-
rentes:é a diferençaentrecuráveise incuráveis,doentescal-
mos e doentesagitados,doentesobedientese doentesin-
submissos,doentescapazesde trabalhare doentesincapazes
de trabalhar,doentespunidose doentesnão punidos,doen-
tes a vigiar continuamentee a vigiar de vez em quandoou
nunca.Foi essarepartiçãoque marcouefetivamenteo espa-
ço intra-asilar,e de modoalgumos quadrosnosográficosque
estavamsendoconstruídosnos tratadosteóricos.
Mais outra prova dessadistorçãoentrea teoria médica
e a prática asilar era, vamosdizer, o fato de que sem cessar
tudo o que havia sido definido pelateoria médica,pelaaná-
lise, sejasintomatológica,sejaanatomopatológica, da doen-
ça mentalcomo medicaçãopossível,era muito rapidamente
reutilizado,não mais com um fim terapêutico,masno inte-
rior de urna técnicade direção.Querodizer o seguinte: algo
1
, as moxas6, etc., todases-
15
como a duchaou a cauterização
sasmedicaçõesforam inicialmenteprescritasem função de
certaconcepçãoda etiologia da doençamentalou dassuas
correlaçõesorgânicas:necessidade, por exemplo,de facilitar
226 O PODERPSIQUIÁTRICO

a circulação sanguínea,de descongestionardeterminada


partedo corpo,etc.,mas,muito raRidamente~métodos_ corno
esses,na medidaem que erammetodosde mtervençaode-
sagradáveisparao doente,foram reutilizadosnum sistema
propriamentediretivo, isto é, a título de punição.Vocêssa-
bem que isso continuae que a maneiracomo se utilizou o
eletrochoqueé exatamentedessetipo17•
De maneiramais precisaaté, a utilização dos próprios
medicamentosfoi, em geral, o prolongamento da discipli-
na asilarna superfíciedo ou no corpo.O que era, no fundo,
dar um banhonum doente?Em certo nível, o da teoria, era
de fato proporcionarumamelhor circulaçãodo sangue.O
que era utilizar o láudano,o éter1ª, corno se fez com tan-
ta freqüência nosasilos nos anos1840-1860?Em aparên-
cia, era acalmaro sistemanervosodo doente, masna reali-
dadeerasimplesmenteprolongaraté o interior do corpo do
doenteo sistemado regimeasilar,o regime da disciplina; era
garantir a calma que era prescritano interior do asilo, era
prolongá-laaté o interior do corpo do doente.O uso atual
dos tranqüilizantestambémé do mesmotipo. Logo, houve
bem cedona práticaasilar essaespéciede reversãodo que
era definido pela teoria médicacorno medicamentopossí-
vel em elementodo regimedisciplinar. Logo, não creio que
se possadizer que o médicofuncionavano asilo a partir do
seusaberpsiquiátrico.A cadainstante,o que eradadocorno
saberpsiquiátrico,o que era formulado nos textos teóricos
da psiquiatria,tudo isso era convertido de outro modo na
práticareal, e não se pode dizer que essesaberteórico te-
nha efetivamenteatuadona vida asilar propriamentedita.
Isso, mais urna vez, é válido para os primeiros anos dessa
protopsiquiatria,é verdadeiro,sem dúvida, em grandeme-
dida, para toda a história da psiquiatriaaté os nossosdias.
Por conseguinte,corno funciona o médico e por que é ne-
cessárioum médico, se os quadrosque ele estabeleceu,as
~escriçõesque e~e d:u, as medicaçõesque ele definiu a par-
tir dessesabernao saoaplicados,não sãonemmesmoapli-
cadospor ele?
AULA DE 9 DE JANEIRODE 1974 227

O que significa a marcaçãomédicadessepoderasilar?


Por quetem de serexercidopor um médico?Parece-meque
a marcaçãomédicano interior do asilo é essencialmente a
presençafísica do médico; é sua onipresença,é, em linhas
gerais,a assimilaçãodo espaçoasilarao corpo do psiquiatra.
O asilo é o corpo do psiquiatra,alongado,distendido,leva-
do àsdimensõesde um estabelecimento, estendidoa tal pon-
to que seupodervai se exercercomo se cadapartedo asilo
fosseuma partedo seupróprio corpo,comandadapor seus
própriosnervos.De forma mais precisa,direi que essaassi-
milação corpo do psiquiatra/lugarasilarse manifestade di-
ferentesmaneiras.
Antes de mais nada,a primeira realidadeque o doente
deveencontrare que é, de certo modo, aquilo atravésdo que
os outroselementosvão ser obrigadosa passar,é o corpo do
próprio psiquiatra.Lembrem-se das cenasde que lhes falei
no início: toda terapêuticacomeçapelo surgimentodo psi-
quiatraem pessoa,em carnee osso,que de repentese apre-
sentadiante do seu paciente,seja no dia da chegadadeste,
sejano dia em que o tratamentocomeça,e pelo prestígiodes-
se corpo, sobreo qual é dito que não pode ter defeitos,que
deve se impor por suaprópria plástica,por seupróprio peso.
Essecorpo deveseimpor ao doentecomorealidadeou como
aquilo atrav~sde quevai passara realidadede todasasoutras
realidades.E a essecorpo que o doentedeveser submetido.
Em segundolugar, o corpo do psiquiatradeveestarpre-
senteem toda parte.A arquiteturado asilo - tal como foi
definida no correr dos anos 1830-1840por EsquiroP9, Par-
chappe2º,Girard de Cailleux21, etc. - é semprecalculadade
tal modo que o psiquiatrapossaestarvirtualmenteem toda
parte.Ele devepoder,com um só olhar,ver tudo,num só pas-
seiovigiar a situaçãode cadaum dos seusdoentes;devepo-
der fazer em pessoa,a cadainstante,uma revista completa
do estabelecimento, dos doentes,do pessoal;devever tudo,
e devemrelatar-lhetudo: o que ele próprio não vê, os vigi-
lantes,inteiramenteàs suasordens,devemlhe contar, de
modo que, perpetuamente, a cadainstante,ele estejaoni-
228 O PODERPSIQlllATRICO

pit1 nte no int rior do asilo.Ele abrangecom s~uolhar, com


u ouvido, com seusgestostodo o espaçoasilar.
O corpodo psiquiatradeve,alémdisso,estarem comu-
nicaçãodireta com todasas partesda administraçãodo asi-
lo: o vigilantessão,no fundo, as engrenagens, asmãos,em
todo casoo instrumentosque estãodiretamentenasmãos
do psiquiatra. Girard de CaiUeux- que foi o grandeorgani-
zadorde todosos asilos construídosna periferia parisiense
a partir de 186022 - é quemdizia: "É por umahierarquiabem
entendidaque o impulsodadopelo médico-chefese comu-
nica a todasaspartesdo serviço;ele é seuregulador,masos
23
subordinadossãoas engrenagens essenciais."
Creio que, resumindo,podemosdizer que o corpo do
psiquiatraé o próprio asilo; a maquinariado asilo e o orga-
nismo do médico,no limite, devemformar umasó e mesma
coisa. É o quedizia Esquirolem seutratadoDes maladiesmen-
tales: "O médicodeveser,de certomodo,o prinápio de vida
de um hospitalde alienados.É por ele quetudo deveserpos-
to em movimento;ele dirige todasas ações, chamado que é
a ser o reguladorde todos os pensamentos. É a ele, como
centro de ação,que deve se remetertudo o que interessa
24
aoshabitantesdo estabelecimento."
Logo, creio que a necessidade de marcarmedicamente
o asilo, a afirmaçãode que o asilo deveser um lugar médi-
co, significa antesde mais nada- é a primeira camadade
significaçãoque se podepôr em relevo- que o doentedeve
se encontrardiantedo corpo de certomodo onipresentedo
médico,que ele deveserno fim dascontasenvolvido no in-
terior do corpodo médico.Mas,vocêsperguntarão,por que
tem de ser precisamenteum médico?E por que um diretor
qualquernão pode desempenhar essepapel?Por que esse
corpo individual que se toma o poder,essecorpo pelo qual
passatoda a realidade,tem de ser o corpo de um médico?
Curiosamente,o problemafoi ao mesmotemposempre
abordadoe nuncaverdadeiramente debatidode frente. Ao
mesmotempo,vocêsencontramnos textosdo séculoXIX a
afirmaçãorepetidacomoum prinápio,comoum axioma,que
AULA DE 9 DE JANEIRO DE 1974 229

é precisoque o asilo sejaefetivamentedirigido por um mé-


dico, que,se o médiconão o dmgeinteiramente,entãoesse
asilo nãoteráfunçãoterapêutica.E vocêsvêemrenascersem
cessara dificuldade para explicaresseprincípio, renascera
inquietaçãocom que,afinal de contas,já que se trata de um
estabelecimento disciplinar,bastariater um bom administra-
dor. De fato, houve por muito tempoum conflito perpétuo
entre o diretor médico do hospital,que tem a responsabi-
lidade terapêutica,e o que tem a responsabilidade da inten-
dência,da administraçãodo pessoal,da gestão,etc. O próprio
Pinel, desdeo início, tinha urnaespéciede inquietação,tan-
to que dizia: no fundo, estouaqui paracuidar dos doentes,
mas,afinal, aqueleque foi por tantosanoso porteiro,o ze-
lador, o vigia de Bicêtre,Pussin,sabetantoquantoeu e, a bem
da verdade,foi me apoiandona experiênciadele que pude
aprendertudo o que aprendi25•
E vocêsencontramisso, transpostoa outra escala,du-
rantetodo o séculoXIX, junto com o problemade saberquem
afinal deve prevalecer,se o gestorou o médico,no funcio-
namentodo hospital.Os médicosrespondem,e, afinal, é a
soluçãoquevai seradotadarya França:é o médico,que,seja
comofor, deveprevalecer2 6
• E o médicoque terá a principal

responsabilidade e que seráfinalmenteo diretor, tendo,ao


lado dele,alguémque seráencarregado, massobo seucon-
trole e, até certo ponto,sob a suaresponsabilidade, dastare-
fas de gestãoe intendência.Então,por queo médico?Respos-
ta: porqueele sabe.Mas porqueele sabeo quê, se,precisa-
mente, seu saberpsiquiátrico não é o que é efetivamente
aplicadono regime asilar,pois não é essesaberque é efeti-
vamenteutilizado pelo médico quandoele dirige o regime
dos alienados?Então como é que se podedizer que é pre-
ciso um médico para dirigir um asilo - é porqueo médico
sabe?E em que essesaberé necessário?Creio que o que
é consideradocomo necessárioao bom funcionamentodo
asilo, o que faz com que o asilo deva ser necessariament:
marcadomedicamenteé o efeito de podersuplementarquee
dado,nãopelo conteúdode um saber,mas,estatutariamente ,
230 O PODERPSIQUIATRICO

pelamarcado saber.Em outraspalavras,é pelasmarcasque


designamnele a existênciade um sa?er,e é so!11ente I_>Or
essejogo das marcas,qualquerque se3ao conteudoefetivo
dessesaber,que o poder médico vai funcionar no interior
do asilo, como podernecessariamente médico.
Quaissãoessasmarcasde saber?Como elasatuamnes-
seproto-asilodosprimeirosanosdo séculoXIX e como atu~-
rão, aliás, muitos anos depois?Pode-seacompanharfacil-
mentea série de receitaspelasquais essasmarcasde saber
atuavamna organizaçãoe no funcionamentodo hospital.
Em primeiro lugar, Pinel dizia: " Quandovocê interro-
ga um doente,precisaantesde mais nadaestarinformado
sobreele1 precisasaberpor que ele veio, que queixasse tem
dele, qual foi sua biografia; você precisater interrogadoa
família ou seucírculo pessoal,de tal modo que, no momen-
to em quevocê o interroga,sempresaibasobreele mais do
que ele mesmoou, pelo menos,saibamais do que ele ima-
gina. De modo que,no momentoem que ele vier a dizer al-
gumacoisaque você considerenão verdadeira,você pode-
rá, nessemomento,intervir e mostrarque sabemais do que
ele e que o nota em mentira,em delírio [...]" 27
Em segundolugar, a técnicado interrogatório psiquiá-
trico tal como esteé definido de fato, se não teoricamente,
menospor Pinel, sem dúvida, do que por Esquirol e seus
28
sucessores , não é em absolutocerta maneirade obter do

doenteum certo númerode informaçõesque não temos;ou


antes,se é verdadeque, de certo modo, é preciso obter do
d~entepelo interrogatóri?certo númerode informaçõesque
nao setem, o doenteporemnão devese dar contade que se
depende .dele paraessasinformações.O interrogatóriotem
de ser feito de tal modo que o doentenão diga o que qui-
ser, mas respondaàs perguntas 29
*. Donde, conselhoabso-

* O manuscrito também faz referência a uma forma de interrogató-


rio pelo "silêncio do médico" e oilustra com essaobservaçãode F. Leuret:
"Demência parcial com a característica da depressão.Alucinaçõesdo ou-
vido" (Fragments psychologiquessur la folie, Paris, Crochard, 1834,p. 153).
AULA DE 9 DE JANEIRODE 1974 231

luto: nuncadeixar o doentedesfiarum relato, interrompê-lo


com um certonúmerode perguntasquesão,ao mesmotem-
po, canônicas,sempreas mesmas,e que sesucedemem certa
ordem, pois essasperguntasdevemfuncionar de tal modo
que o doentese dê contade que suasrespostasnão infor-
mam verdadeiramenteo médico, que apenasmuniciam o
seusaber,lhe dão ocasiãoparase explicar; ele tem de se dar
contade que cadauma dassuasrespostasé significanteno
interior de um campode saberjá inteiramenteconstituído
no espírito do médico. O interrogatórioé uma maneirade
substituir discretamenteas informaçõestiradasdo doente,
de substituí-laspela aparênciade um jogo de significações
que proporcioneao médicouma ascendência sobreo doente.
Em terceirolugar, sempreparaconstituir essasmarcas
de saberquevão fazer com que o médicofuncionecornomé-
dico, é necessáriovigiar perpetuamente o doente,constituir
sobre ele um dossiê permanente,e é preciso que, a cada
instante,se possamostrar,ao abordaro doente,que se sabe
o que ele fez, o que ele dissena véspera,o erro que ele co-
meteu,a punição que recebeu.Logo, organizaçãoe dispo-
nibilização ao médico de um sistemacompletode levanta-
mentos,de anotaçõessobreo doenteno asilo30 •
Em quartolugar, é sempreprecisopôr em açãoo duplo
registroda medicaçãoe da direção.Quandoum doentecome-
teu algo que se querreprimir, é precisopuni-lo, maspuni-lo
fazendo-ocrer que, se é punido, é por ser terapeuticarnen-
te útil. Portantoé precisofazer com que a puniçãofuncione
cornoremédioe, inversamente,quandolhe impõemum re-
médio,é precisopoderimpô-lo sabendoqueele lhe fará bem,
masfazendo-oacreditarque é unicamenteparaincomodá-lo
ou parapuni-lo. Esseduplo jogo do remédioe da punição,
essencialpara o funcionamentodo asilo, só pode ser esta-
belecidose houveralguémque se apresentecomo detentor
da verdadesobreo que pode ser remédioou punição.
Enfim, o último elementopelo qual o médicovai seatri-
buir as marcasdo saberno interior do asilo é o grandejog
232 O PODERPSIQUIÁTRICO

da clínica, que foi tão importantena história da psiquiatria.


A clínica, isto é, a apresentação do doenteno interior de uma
encenaçãoem que o interrogatóriodo doenteservepara a
instruçãodos estudantese em que o médicovai atuarno du-
plo registrodaquelequeexaminao doente edaqueleque en-
sinaos estudantes, de modoqueseráao mesmotempoaque-
le que cuida e aqueleque detéma palavrado mestre*,será
médico e mestreao mesmotempo.E [ ...] vocêsestão ven-
do que essapráticada clínica se instaurou de uma maneira,
afinal, bemprecoceno interior da prática asilar.
Já em 1817, Esquirol iniciou as primeiras clínicas na
Salpêtriete31 e, a partir de 1830,vocêstêm regularmenteen-
sinamentosclínicos dadosem Bicêtre32 e na Salpêtriere33• E,
por fim, todo grandechefe de serviço,mesmoque não seja
professor,vai utilizar, desdeos anos1830-1835, essesiste-
ma de apresentação clínica dos doentes, isto é, do jogo entre
o examemédico e a atuaçãodo professor.Por que a clínica
é importante?
Vocêstêm, [de partede] um dos que efetivamentepra-
ticarama clínica,Jean-PierreFalret,umabelíssimateoria da
clínica. Por que se deve utilizar o métododa clínica?
Em primeirolugar, 6médicodevemostrarao doenteque
tem à suavolta certonúmerode pessoas,[o maior númerode
pessoaspossível,]** que estãodispostasa escutá-lo e, por
conseguinte,essapalavrado médicoque,eventualmente, pode
serrecusadapelo doente,à qual o doentepodenão prestar
atenção,essapalavrao doentenão podeno entantodeixar
de constatarque é efetivamenteouvida, e ouvida com res-
peito por certonúmerode pessoas.O efeito de poderda sua
palavra seráportantomultiplicado pelapresençados ouvin-
tes: "A presençade um público numerosoe anuentedá mais
autoridadeà suapalavra."34

* Em francês,maftre tanto é aqueleque ensina(o mestre,o profes-


sor),comoaquelequedomina(senhor,amo) ou possui(dono). (N. do T.)
*"" Gravação:"o mais numeroso,se possível".
AULA DE 9 DE JANEIRO DE 1974 233

Em segundolugar, a clínica é importanteporqueper-


mite que o médico, não apenasinterrogueo doente,mas,
interrogandoo doenteou comentandosuasrespostas,mos-
tre aopróprio doentequeele conhecesuadoença,queele sabe
coisassobre a sua doença,que pode falar sobre ela e dela
fazer uma exposiçãoteórica diante dos seusalunos35• O es-
tatuto do diálogo que o doenteterácom o médicovai mudar
de naturezaa seusolhos; ele compreenderá que algo como
uma verdadeaceitapor todos estáse formandono interior
da palavrado médico.
Em terceirolugar, a clínicaé importanteporqueconsis-
te não apenasem interrogarde certo modo pontualmenteo
doente, mas. em fazer diante dos estudantesa anamnese
geral do caso.Portantovai se retomardiante [deles]* todo
o conjuntodavida do doente,vai-sefazercom queele a con-
te, ou se ele não quisercontá-la, vai-secontá-laem seulugar;
vai-se procederaos interrogatóriose, finalmente,o doente
verá se desenrolardiante dele - seja com sua ajuda, se ele
quiser falar, seja sem ela, se ele se encerrarno mutismo-,
de todo modo,ele verá se desenrolardiantedele suaprópria
vida, quevai ter realidadede doença,pois é efetivamenteapre-
sentadacomo doençadiante dos estudantes,que sãoestu-
dantesde medicina36•
E, enfim, representando essepapel,aceitandovir à fren-
te da cena,contracenando com o médico,exporsuaprópria
doença,responderàs perguntas,o doente,diz Falret,se dará
contade que agradaao médicoe que esteo retribui, até cer-
to ponto, pelo esforçoque faz37•
E aquelesquatroelementosde realidadede que eu lhes
falava há pouco- poderdo outro, lei da identidade,confissão
do que é a loucura em suanatureza,em seudesejosecreto
e, enfim, retribuição, jogo das trocas, sistemaeconômico
controladopelo dinheiro -, vocêsestãovendoque na clínica
encontram-seessesdiferenteselementos.Na clínica, a pa-

* Gravação: "dos estudantes".


234 O PODERPSIQUIÁTRICO

lavra do médico aparececomo tendo um poder maior do


que a palavrade qualquerum. Na clínica, a lei da identidade
pesasobreo doente,que é obrigadoa reconhecê-laem tudo
o que se diz sobreele e em toda a anamneseque se faz da
suavida. Respondendo publicamenteàsinterrogaçõesdo mé-
dico, fazendo-searrancara confissãofinal da sua loucura, o
doentereconhece,aceitaa realidadedessedesejo louco que
estána raiz da sualoucura.Enfim, ele entra de certo modo
no sistemadas satisfações,das compensações,etc.
E, com isso,vocêsvêemque o grande portador dopo-
der psiquiátrico,ou antes,o grande amplificador do poderpsi-
quiátrico que se tramavana vida cotidiana do asilo vai ser
essecélebrerito da apresentação clínica do doente.A enor-
me importânciainstitucional da clínica na vida cotidiana
doshospitaispsiquiátricos,dos anos1830até agora,se deve
ao fato de que, atravésda clínica, o médico se constitui co-
mo mestrede verdade.A técnicada confissão edo relato se
toma obrigaçãoinstitucional, a realizaçãoda loucura como
doençase tomaum episódionecessário, o doenteentrapor
suavez no sistemadoslucros e dassatisfaçõesdadas a quem
o trata.
Assim, vocêstêm essasmarcasde saberampliadasna
clínica, e compreendemcomo afinal elas funcionam. São
essasmarcasde saber,e não o conteúdode uma ciência,
que vão permitir que o alienistafuncione como médico no
interior do asilo. Sãoessasmarcasde saberquevão lhe per-
mitir exercerno interior do asilo um sobrepoderabsolutoe
identificar-se finalmentecom o corpo asilar. Sãoessasmar-
cas de saberque vão lhe permitir constituir o asilo como
uma espéciede corpo médicoque cura por seusolhos, seus
ouvidos, suaspalavras,seusgestos,por suasengrenagens.
E, finalmente,sãoessasmarcasde saberquevão permitir que
o poder psiquiátrico desempenheseu papel efetivo de in-
tensificaçãoda realidade.E, na cenaclínica, vocêsvêemco-
mo sãopostosem ação,não tanto conteúdosde saberquan-
to marcasde saber;e, atravésdessasmarcasde sabervocês
vêem delinear-se e atuar os quatro tentáculosda reétlidade
AULA DE 9 DE JANEIRO DE 1974 235

de que eu lhesfalava: o sobrepoderdo médico,a lei da iden-


tidade,o desejoinadmissívelda loucura,a lei do dinheiro.
Creio que poderíamosdizer o seguinte:atravésdessa
identificaçãodo corpo do psiquiatrae do lugar asilar, desse
jogo dasmarcasde sabere dastrês formasde realidadeque
passamatravésdelas, podemosnotar a formação de um
personagemmédicoque estáno pólo inversode outro per-
sonagemmédico,que nessemomentoestáadquirindouma
figura totalmentenova e que é o cirurgião. No mundomé-
dico do séculoXIX, vocêstinham um pólo cirúrgico que co-
meçouse esboçandocom o desenvolvimentoda anatomia
patológica,digamos,grossomodo,a partir de Bichat38.A par-
tir de um conteúdoefetivo de saber, trata-se aqui de identi-
ficar no corpo do doentecertarealidadeda doençae servir-se
das suasprópriasmãos,do seupróprio corpo, paraanular
o mal.
Na outra extremidadedessecampo,vocêstêm o pólo
psiquiátricoque atuade maneiratotalmentediferente;tra-
ta-seentãode fazer, a partir das marcasde saber- mas não
do conteúdodo saber- que qualificam o personagemmé-
dico, o espaçofuncionar como um corpo que cura por sua
própriapresença,seusprópriosgestosrsuaprópriavontade
e, atravésdessecorpo, dar um suplementode poderà quá-
drupla forma da realidade.
Em conclusão,gostariade dizer o seguinte:é que, como
vocêsestãovendo,chegamosao paradoxoda constituiçãoto-
talmenteespecíficade um espaçode disciplina,de um dispo-
sitivo de disciplina, que se diferenciade todos os outrospelo
fato de sermedicamentemarcado.Mas essamarcaçãomédi-
ca que caracterizao espaçoasilar,em relaçãoa todosos outros
espaçosdisciplinares,não atua de maneiranenhumacomo
aplicação,no interior do asilo, de um saberpsiquiátricoquese
formularia numateoria. Essamarcaçãomédicaé,, na realida-
de, a instauraçãode um jogo entreo corposujeitadodo louco
e o corpoinstitucionalizadodo psiquiatra,ampliadoà dimen-
são de uma instituição.O asilo deve ser concebidocomo o
corpodo psiquiatra;a instituiçãoasilarnadamaisé queo con-
236 O PODERPSIQUIATRICO

junto dasregulaçõesqueessecorpoefetuaem relaçãoao pró-


prio corpo do louco sujeitadono interior do asilo.

Ê nisso que podemos,creio, identificar um dos traços


fundamentaisdo que eu chamariade microfísica do poder
asilar: essejogo entreo corpo do louco e o corpodo psiquia-
tra que estáacimadele,que o domina,que o sobrepuja e, ao
mesmotempo, o absorve.Ê isso,com todos os efeitos que são
própriosde um jogo assim,que me parece caracterizara mi-
crofísicado poderpsiquiátrico.
A partir daí, podemosidentificar três fenômenosque
procurarei,naspróximasaulas,analis arum poucomais pre-
cisamente.O primeiro é o seguinte:essepoderprotopsiquiá-
trico, que procureidefinir assim,vai, é claro, se transformar
consideravelmente após certo número de fenômenos , que
procurareiindicar a vocês,a partir dos anos1850-1860; ape-
sar de manter-sesobrecarregado, modificado, no interior
dos asilos,mantém-seigualmentefora deles.Valedizer que
vocêstiveram, porvolta·dos anos1840-1860,umaespéciede
difusão,de migraçãodessepoderpsiquiátrico,que se difun-
diu em certo númerode instituições,de outrosregimesdis-
ciplinaresa que ele veio, de certo modo,se adicionar.Em ou-
tras palavras,creio que o poderpsiquiátricocomo tática de
sujeiçãodos corposnumacertafísica do poder,como poder
de intensificaçãoda realidade,como constituiçãodos indiví-
duosao mesmotemporeceptores e portadoresde realidade,
se disseminou.
E creio que é ele que podemosencontrarsob o que cha-
marei de funções-psi: patológica,criminológica, etc.Vocês
vão encontraressepoderpsiquiátrico,isto é, essafunção de
intensificaçãodo real, ondequer que sejanecessáriofazer a
r~alidadefuncionarcomopoder. Sevocêsvêemaparecerpsi-
cologosna escola,na usina, nas prisões,no exército, etc., é
que elesintervieramexatamenteno momentoem que cada
umadessasinstituiçõesse encontravana obrigaçãode fazer
AULA DE 9 DE JANEIRO DE 1974 237

a realidadefuncionarcomo poderou, ainda,de fazer a rea-


lidade valer como o poderque se exerciano interior delas.
A escola,por exemplo,necessitado psicólogoquandoé pre-
ciso fazervaler comorealidadeum saberqueé dado,distribuí-
do na escolae que párade se apresentarcomo real efetiva-
menteàquelesa que é proposto. O psicólogotem de inter-
vir na escolaquandoo poderque se exercena escoladeixa
de serum poderreal, torna-seum poderao mesmotempo
mítico e frágil e quando,.,porconseguinte,é necessárioin-
tensificar sua realidade.E nessadupla condiçãoque a psi-
cologiaescolaré necessária,a psicologiaescolarquefaz apa-
receras aptidõesdiferenciaisdosindivíduos,a partir dasquais
o indivíduo se encontrasituadono campodo saberem certo
nível, comosefosseum camporeal, comosefosseum cam-
po que tivesseem si seupoderde coerção,já que,-lá onde
se está,nessecampodo saberdefinido pela instituiçãoes-
colar, lá se devecontinuar.Assim, o saberfuncionacomopo-
der e essepoderdo saberse apresentacomo realidadeno
interior da qual o indivíduo se encontrasituado. E, ao fim
da manipulaçãoda psicologiaescolar,o indivíduo se encon-
tra efetivamenteportadorde umarealidadequevai entãoapa-
recer dupla: realidadedas suasaptidões,de um lado, reali-
dadedos conteúdosde saberque ele é capazde adquirir, de
17
outro. E é no ponto de articulaçãodessasduasurealidades
definidaspelapsicologiaescolarque o indivíduovai aparece r
como indivíduo. Poderíamosfazer o mesmotipo de análise
a propósitodasprisões,da usina,etc.
A função psicológicaque, de um ponto de vista histó-
rico, derivouinteiramentedo poderpsiquiátrico, quefoi dis-
seminadaem outraspartes,essafunçãopsicológica tem por
papelessencialintensificara realidadecomopoçier e inte~-
sificar o poderfazendo-ovaler comorealidade. E esseo pn-
meiro ponto sobreo qual, creio eu, convéminsistir.
Ora, como se fez essa espécie de disseminação?Co-
mo pôdeacontecerque essepoderpsiquiátrico, que parecia
estarligado de maneiratão sólida ao espaçoasilar propria-
mentedito, tenhasepropagado?Quaisforam, em todo ca ,
238 O PODERPSIQWÁTRICO

os intermediários?Creio que o intermediárioque podemos


facilmenteencontraré essencialmente a psiquiatrizaçãodas
criançasanormais,maisexatamentea dos idiotas.Foi a par-
tir do momentoem que se separou,no interior do asilo, os
loucosdos idiotas,que começoua se definir uma espécie~e
instituiçãoem que o poderpsiquiátrico,nessaforma arcai-
ca que acabode lhes descrever , foi posto_e m ação39 • Essa ~o: -
ma arcaicacontinuoua ser por anosa fio o que erano Im-
cio, podemosdizer que por quaseum século. E é apartir de~-
sa forma mista, entre a psiquiatria e apedagogia , a partir
dessapsiquiatrizaçãodo anormal, do débil, do deficiente, etc.,
que se fez, creio, todo o sistemade disseminaçãoque per-
mitiu que a psicologiase tomasseessa espécie de duplica-
çãoperpétuade todo funcionamento institucional. Assim,
é um pouco disso, da organização,da instauraçãoda psi-
quiatrizaçãodos idiotas,queeu gostariade lhesfalar da pró-
XIma vez.
Depois, há outros fenômenosa partir dessaprotopsi-
quiatria que eu tambémgostariade assinalar. A outra série
de fenômenosé a seguinte: enquanto na psiquiatrização
dosidiotaso poderpsiquiátrico,tal como o descrevi paravo-
cês,continuaa valer quasesemmodificações,em contrapar-
tida, no interior do asilo, aconteceum certonúmero de coisas
fundamentaise essenciais,um duplo processo no qual é mui-
to difícil, aliás (como em toda batalha),saberquem come-
çou, quemtem a iniciativa e até, afinal, quemsai vencedor.
Quaisforam essesdois processosgeminados?
Foi, em primeiro lugar, algo de essencialna história da
medicina,que é o aparecimentoda neurologia,mais exata-
mente da neuropatologia,isto é, a partir do momentoem
que se começoua dissociarda loucuracertonúmerode dis-
~bios c_uja sed~neurológica ecuja etiologia neuropatoló-
gica podiamefetivamenteser determinadas,o que permitia
distinguir os que eramrealmentedoentesno plano do seu
corpodaquelesparaos quaisnãosepodiaencontrarnenhu-
ma determinaçãoetiológicano plano daslesõesorgânicas 4 0•

O que colocavao problemada seriedade,da autenticidade


AULA DE 9 DE JANEIRO DE 1974 239

da doençamental; o que começavaa fazer correr a suspeita


de que, afinal de contas,uma doençamentalque não tivesse
correlaçãoanatômicadevia mesmoserconsideradaséria?
E, diantedisso- correlativamentea essaespéciede sus-
peita que a neurologiacomeçavaa fazer incidir sobretodo
o mundoda doençamental-, vocêstinhamtodo o jogo das
doençasque não cessaramde responderem termosde ver-
dadee de mentiraao que erao poderpsiquiátrico.Ao poder
11
psiquiátricoque dizia não sou mais que um podere vocês
devemaceitarmeu sabersomenteno plano dassuasmar-
case semnuncaver os efeitosdo seuconteúdo",os doentes
respondiampelo jogo que era o jogo da simulação.Quando
os médicospor fim trouxeramum conteúdode sabernovo,
que era o saberneuropatológico,elesresponderampor ou-
tro tipo de simulaçãoque foi, em linhas gerais,a grandesi-
mulaçãodasdoençasnervosas- epilepsia,paralisia,etc.- pe-
los histéricos.E o jogo, a espéciede perpétuaperseguição
entre os doentes,que não paravamde armarciladasparao
sabermédicoem nomede certaverdadee num certojogo de
mentiras,e os médicos,quetentavamperpetuamente pegar
os doentesna armadilhade um saberneurológicodossinais
patológicos,de um sabermédicosério-tudoissofinalmen-
te perpassou,como uma luta real entremédicose doentes ,
por toda a história da psiquiatriado séculoXIX.
Enfim, o último ponto é saberde que maneiraforam
retomados,fora da instituiçãoasilar,essesprincipaiselemen-
tos quevimos seformaremno próprio interior do poder p j -
quiátrico e que eramseuspontosde apoio, isto é, e ses ele-
mentosde realidade,essalei do poderdo outro, essepre~-
tígio dado à palavrado médico,essalei da identidade, e sa
obrigaçãoda anarnnese,essatentativa de trazer à t na o
desejolouco que faz a realidadeda loucura,o problemado
dinheiro, etc.; de que modo esseselementosforam posto
em jogo no interior de umapráticaquesedizia nãopsiquiá-
trica - que eraa psicanálise-, masquevemos, quandoreto-
mamosessesdiversoselementos,o quantoelesestavamin -
critos no próprio interior do poderpsiquiátrico[e que} foi
240 O PODERPSIQWÂTRICO

próprio jogo do poderpsiquiátricono interior da disciplina


asilar que começoua isolá-lose a fazê-lossurgir41•
De modoqueteríamos,por assimdizer,um tríplice des-
tino do poderpsiquiátrico.Vocêso encontrariam persistin-
do por muito temposob a suaforma arcaicaapósos anos
1840-1860na pedagogiada debilidade mental. Vocêso en-
contrariamelaborando-se, atuandodentro dele mesmono
asilo, pelo jogo da neurologia e da simulação.E tambémum
terceirodestino:seriasuaretomada no interior de umaprá-
tica queseapresentaentretanto comoumapráticanão exata-
mentepsiquiátrica.
NOTAS

1. Assim, além dasnumerosasocorrênciasdo termo " dirigir'


em seuTraité médico-philosophique sur l' aliénatianmenta/e,ou la Manie
(op. cit., ed. de 1800, pp. XLV, 46, 50, 52,194, 195, 200), Pinel con-
11
sagraduaspassagens à direçãodos alienados:seçãoII, §VI, Avan-
tagesde l'art de diriger les aliénéspour seconderl' effet desmécli-
caments",pp. 57-8; § XXII, "Habileté dansl'art de diriger les aliénés
en paroissantse prêterà leursidéesimagina.ires", pp. 92-5. Esqui-
rol, de seulado, define o tratamentomoral como "a arte de dirigir
a inteligênciae as paixõesdos alienados"(" De la folie" (1816, op.
cit. [in Des maladíesmentales... , t. I], p. 134). Leuret declaraque "é
necessáriodirigir a inteligência dos alienadose estimular, nele ,
paixõescapazesde distraí-losdo seudelírio" (Du traitement moral
de la folie, op. cit., p. 185).
2. É a partir dapastoralde CarlosBorromeu(1538-1584)-Pas-
, confessionisque et eucharish"ae
torum instructíonesad concionandum
sacramentaministrandumutílissimae,Antverpiae, C. Plantini, 15
- que se instaura,em ligaçãocom a reformacatólica e ode n ol-
vimento dos " retiros", a práticada "direção'' ou " condução". Entr
os que fixaram as regrasdestes , podemosmencionar: [a} Inácio
de Loyola, Exercitia spiritualia, Roma, A Bladum, 1548 [Exerci es
spirituels, trad. fr. e notaspor F. Lourel, Paris, Descléede Brouwer
(col. 1'Christus''), 1963]. Cf. [ex] P. Dudon, Saint Ignacede Loyala, Pa-
ris, Beauchesne,1934; [~] P. Doncoeur, "Saint Ignace et la direc-
tion desâmes" , La Vie spirituell e, Paris, t. 48, 1936, pp. 48-54; ['Y]
242 O PODER PSJQllIATRTCO

Olphe-Galliard,verbete" Direction spirituelle", III , "Période m_o -


deme", in Dictionnaire de spíritualité ascétíqueet mystique.Doctnne
et histoíre, t. Ili, s.n., Paris, Beauchesne
, 1957, col. 1115-1117. - [b]
Françoisde Sales (1567-1622),Introduction à la vie dévote (1608),
cujo capítulo4 toma-seo brevi_ário dos,diretores:,"D~ Ia,~~cessité
d'un directeurpour entreret farre progresen la devotion , m O~-
vres,vol. III, Annecy,impr. Niérat, 1893,pp. 22-5. Cf. F.Vincent, Saint
François de Sales, diredeur d'âmes. I:éducatíon de la volonté, Paris,
Beauchesne,1923. - [e] Jean-Jacques Olier (1608-1657), fundador
do semináriode Saint-Sulpice,"~esprit d'un directeur des âmes",
in Oeuvrescompletes,Paris,ed. J.-P Migne, 1856, col. 1183-1240.
Sobrea "direção", podemosremeter às seguintes obras: [a] E.
M. Caro, "La direction des âmesau XVII • siecle", ín Nouvell es Études
nwralessur le tempsprésent,Paris,Hachette,1869,pp. 145-203.[b] H .
Huvelin, Quelquesdiredeursd'âmesau XVII• síecle:saint François deSa-
les, M. Olier, saintVincentde Paul, l'abbéde Rancé,Paris, Gabalda,1911.
M. Foucaultvolta à noçãode "direção" em seuscursos no Collegede
France:[1] LesAnormaux,op. cit., 19 de fevereiro de 1975, pp. 170-1,
e 26 de fevereiro de 1975, pp. 187-9; [2] ano 1977-1978: "Sécurité,
territoire et population",28 de fevereiro de 1978; [3] ano 1981-1982,
I:Herméneutíquedu sujet(ed. s/dir. F. 9wald & A Fontana,por F. Gros,
Paris,Gallimard/Seuil,col. "HautesEtudes", 2001) [trad. bras.A her-
menêuticado sujeito, SãoPaulo,Martins Fontes,2004], 3 e 10 de mar-
ço de 1982,pp. 315-93;e na suaaulana Universidade de Stanford de
10 de outubrode 1979,DE, IV n? 291, pp. 146-7.
3. H. Belloc, ''De la responsabilitémoralechez les aliénés",An-
nales médico-psychologiques, 3~ série, t. III, julho de 1861, p. 422.
4. F. Leuret, Du traitementmoral de la folie, op. cit., pp. 444-6.
Cf. supra, p. 186.
5. F. Leuret, Du traítementmoral de la folie ..., pp. 441,443,445.
6. Ibid., p. 431: "Mando aplicaremum jato d'águano rosto e
no corpo dele e, quandoele parecedispostoa suportartudo para
o seutratamento,tomo o cuidadode lhe dizer que aquilo não é para
tratá-lo, mas parahumilhá-lo e para puni-lo" (grifado no texto).
7. Construídoem 1634 com a finalidade de ser um asilo para
a nobrezapobree paraos soldadosferidos, o castelode Bicêtre é in-
c~rporadoao HospitalGeralcriadopelo edito de 27 de abril de 1656,
dispondoque "os pobresmendigosválidos e inválidos, de ambos
os sexos,sejaminternadosnum hospitalparaser empregadosem
ob~as,1!1anufa~e o~tro~ trabalhosde acordocom suacapacida-
de . F01 na ala Sarnt- Pnx, cnadaem 1660parareceberalienados,que
AULA DE 9 DE JANEIRO DE 1974 243

Pinel assumiu,no dia 11 de setembrode 1793,suafunção de "mé-


dico dasenfermarias",queocuparáaté19 de abril de 1795. Cf.: [a] P
Bru, Histoire de Bicêtre(hospice,prísan,asile), d'apresdesdocumentshis-
toriques,Paris,Éd. du Progresmédical,1890. [b] F. Funck-Brentanoe
G. Marindaz,I:Hôpital généralde Bicêtre,Lyon, LaboratoiresCiba (col.
"Les Vieux Hôpitaux français"), 1938. [c] J. M. Surzur, 'THôpital-
hospice deBicêtre.Historique,fonctions socialesjusqu'àla Révolu-
tion française",Th. Méd. Paris,1969,n~ 943, Paris,s.n.,1969.
8. A Salpêtriere* deve seu nome à fábrica de pólvora que
existira sob Luís XIII, no lugar em que se ergueu.O edito de 27 de
abril de 1656 a incorporaao Hospital Geralparao uintemamento
daspobresmendicantes"da cidadee dos subúrbiosde Paris,"mu-
lheresincorrigíveis" e algumas"loucas". Quandoda supressãoda
suafunção carcerária, o hospícioé rebatizado,em 1793,"Casana-
cional dasmulheres",nomeque guardaaté 1823.O ConselhoGe-
ral dos Hospitaise Hospíciosdo Sena,fundadopor Jean-Antoine
Chaptal(1756-1832)em 1801,ordenapor um decretode 27 de mar-
ço de 1802 a transferênciaparaa Salpêtrieredas mulheresloucas
hospitalizadasno Hôtel-Dieu.a.: [a] L. Boucher,La Salpêtriere.Son
histoire de 1656 à 1790. Sesorigines et sanJonctionnementau xvm•
siecle,Paris,Éd. du Progresmédical,1883. [b] G. Guillain e P Ma-
thieu, La Salpêtriere,Paris,Masson,1925. [c] L. Larguier,La Salpêtrie-
re, Lyon, LaboratoiresCiba,1939.[d] J. Couteaux,''l:histoire de la Sal-
pêtriere",Revuehospítalierede France, t. 9, 1944I pp. 106-27e 215-
42. - Desdeentão,dispomosde um estudobem documentado:~.
Simon e J. Franchi, La Pitié-Salpêtriere,Saint-Bénoit-la-Forêt, Ed.
de l'Arbre à irnages,1986.
9. Saint-Lazare,fundadono séculoIX, pelosirmãoshospita-
lários de sãoLázaro,paracuidarde leprosos,é transformadoem 7
de janeiro de 1632por sãoVicente de Paulo,parareceber" aspe -
soasdetidaspor ordemde SuaMajestade"e os ,;pobresinsensatos".
Em 1794, torna-seuma prisão para mulherespúblicas.a .: [a] E.
Pottet,Histoire de Saint-Lazare(1122-1912),Paris,Sociétéfrançai
d'irnprirnerie et de librairie, 1912. [b] J.Vié, LesAliénéset les correc-
tionnaires à Saint-Lazareau XVII• siecleet au XVIIJ• siecle, Paris, E
Alcan, 1930.M. Foucaultfaz referênciaa ele em Histoire de la folie,
op. cít., ed. de 1972,pp. 62 e 136.

* Salitraria. (N. do T.)


244 O PODERPSIQUIÁTRICO

10. A casade Charentonresultade uma fundaçãodo conse-


lheiro do rei, SébastienLeblanc, em setembrode 1641. Ela é en-
tregue em fevereiro de 1644 à Ordem dos. . Hos_pital_ários de São
Joãode Deus,criadaem 1537 pelo portuguesJoaoCi~adeDu~e
paraacudir pobrese doentes.Cf.: [a] J. Monval, Les Freres hospzta-
liers de Saínt-Jean-de-Dieu
en France, Paris,BernardGrasset (col. "Les
GrandsOrdresmonastiqueset Instituts religiew(' 22), 1936. [b] A.
Chagny, L:Ordre hospítalíerde Saint-Jean-de- Dieu en France, Lyon,
Lescuyeret fils, 1953,2 vol. - Ver também: P. Sevestre, " La maison
de Charenton,de la fondationà la reconstruction:1641-1838", His-
toíre dessciencesmédicales,t. 25, 1991, pp. 61-71.
Fechadaem julho de 1795, a casaé reaberta e nacionalizada
sob o Diretório, no dia 15 de junho de 1797, a fim de substituir as
alasde alienadosdo Hôtel-Dieu. Suadireçãoé confiadaa um ex-
religiosoda ordemregulardospremonstratenses, Françoisde Coul-
miers,e JosephGastaldyé nomeadomédico-chefe. Cf.: [a] C. F. S.
Giraudy,Mémoiresur la Maison nationalede Charenton, exclusivement
destinéeau traitementdes aliénés,Paris,Imprimerie de la Société de
Médecine,1804. [b] J. E. D. Esquirol, "Mémoire historique et statis-
tique sur la Maison Royale de Charenton"(1835), in Des maladies
mentalesconsidéréessous les rapports médical, hygíéniqueet médico-
légal, op. cit., t. II, 1838,pp. 539-736.[c] Ch. Strauss,La Maison na-
tionale de Charenton,Paris,Imprimerie nationale,1900.
11. F. Leuret,Du traítementmoral de la folie, op. cit., p. 185: "Num
estabelecimento de alienadosque eu poderiadesignar,o número
de doentesé tal que, no cursode todo um ano, o médico-chefesó
pode dedicara cadaenfermotrinta e seteminutos e, num outro,
em que o númerode doentesé aindamais considerável[ ...], cada
doentesó tem direito, num ano, a dezoito minutos do tempo do
médico-chefe.//
12. M. Foucaultse refere às distinçõesque Esquirol estabele-
ce no campoda loucura,definida como "uma afecçãocerebralge-
ralmentecrônica,sem febre, caracterizadapor desordensda sen-
s~bilidade,da ~teligência,da vontade" ("dela folie" (1816),op. cit.,
[!n ~esmaladzesmentales..., t. I], p. 5). No interior dessecampode-
~t~do por essa divisão tripartite das faculdadespsicológicas
vem mscrever-sevariedadesclínicasque diferem entresi por (a) a
naturezada desordemque afeta as faculdades;(b) a extensãoda
desordem;(c) a qualidadedo humor que a afeta.Assim, enquan-
AUIA DE 9 DE JANEIRO DE 1974 245

to a mania se caracterizapela "perturbaçãoe a exaltaçãoda sen-


sibilidade,dainteligênciae da vontade"(''De la manie" (1818),íbid.,
t. II, p. 132),nalipemania- neologismocriado por Esquirolem 1815
a partir do radical grego Â.Ú1tf\, tristeza,aflição - "a sensibilidadeé
dolorosamenteexcitadaou lesada;as paixões tristes, opressivas ,
modificam a inteligênciae avontade"("De la monomanie"(1819),
íbíd., pp. 398-481).
13. A distinçãoentre maniae monomaniatem por critério a
extensãoda desordem:geral ou parcial, isto é, centradanuma fa-
culdade (monomaniasintelectuais,instintivas, etc.), num objeto
(erotomania)ou num tema (monomaniareligiosa,homicida). As-
sim, a maniase caracterizapelo fato de que "o delírio é geral, to-
das as faculdadesdo entendimentosão exaltadase perturbadas",
enquantona monomania"o delírio triste ou alegre, concentrado
ou expansivo,é parcial e circunscrito a um pequenonúmero de
idéias e de afecções"("De la manie" (1818), íbid., t. II, p. 133).
14. Por oposiçãoà mania,caracterizadapela "exaltaçãodasfa-
culdades",o grupo dasdemências- com suasvariedades"aguda",
"crônica" e "senil" - se distinguepor seusaspectosnegativos:"A
demênciaé uma afecçãocerebral,geralmentesemfebre e crônica,
caracterizada pelo enfraquecimentoda sensibilidade,da inteligên-
cia e da vontade" ("De la démence " (1814),íbid., p. 219).
15. A cauterizaçãoou "cautério atual" consistena aplicação
de um ferro em brasaou aquecidona águafervendono alto da ca-
beçaou na nuca.Cf. L. Valentin, "Mémoire et observationsconcer-
nantles bonseffetsdu cautereactuel,appliquésur la têtedansplu-
sieursmaladies", Nancy, 1815. Esquirol preconizao uso do "fero
em brasaaplicadoà nuca na mania complicadade furor" (ºDe la
folie" (1816), ín op. cit., t. I, p. 154, e "De la manie" (1818), ibid.,. t.
II, pp. 191 e 217). a .J. Guislain, Traíté sur l'aliénation menta/eet -ur
les hospícesdesaliénés, op. cit., t. II, cap.VI, "M oxa et cautereactuel",
pp. 52-5.
· 16. As IJmoxas"sãocilindros compostosde uma matériacuja
combustãoprogressiva,pela dor que provoca,estimularia o i te-
ma nervosoe teria umafunçãode ativaçãosensitiva.a.: [a] . E. M.
Bemardin,Díssertatíonsur les avantagesqu'on peut retenir de l'appli-
catíon du moxa..., Paris,impr. Lefebvre,1803. [b] E. J. Georget,De
la folie. Considératíonssur cettema/adie..., op. cit., p. 247. Ele preco-
niza seuempregonasformas de alienaçãoque comportame tup r
246 O PODERPSIQUIÁTRICO

e insensibilidade,[c] J. Guislain, Traíté sur les phrénopathies,op. cit.,


eçãoN : ''O mais poderosoirritante age s~brea sensibilidade fí-
sica pela dor e pela destruiçãodas partesvivas; mas age tambem
obre o moral pelo medo que ínspira" (ed. de 1835,p. 458).
17. Foi Ugo Cerletti(1877-1963)que, ínsatisfeitocom o cho-
que de cardiazolempregadopelo psiquiatrade Mil ão Laszlo von
Medunadesde1935, criou com Lucio Bini o eletrochoque. Em 15
de abril de 1938,pela primeira vez, um esquizofrênico é submetido
a esseprocedimentoterapêutico.a. U. Cerletti, [1] ''T.;elettroshock",
Rivistasperimentaledi freniatria, ReggioEmili a, vol. XVIII , 1940, pp.
209-310; [2] "Electroshock therapy'', in A M. Sackler et al., The
GreatPhysíodinamicTherapiesin Psychíatry:An Historical Appraisal,
NovaYork, Harper,1956,pp. 92-4.
18. A partir da segundametadedo século XIX, o empregodo
éter se desenvolveem psiquiatria,com finali dadestanto terapêu-
ticas - notadamentepara acalmar"os estados de agitaçãoansio-
sa" ('N. Griesínger,Die Pathologi,eundTherapieder psychischenKran-
kheiten, Stuttgart,A Krabbe, 1845, p. 544) - como diagnósticas.
Cf.: [a] H. Bayard,"L'utilisation de l'éther et le diagnostic des ma-
ladiesmentales",Annalesd'hygi,enepubliqueet médicale, t . 42, n? 83,
julho de 1849,pp. 201-14. [b] B. A Morel, /,'De l' éthérisation dans
la folie du poínt de vue du diagnosticet de la médecíne légale",
Archivesgénéralesde médecíne,5~ série,t. 3, vol. 1, fevereiro de 1854:
"A eterizaçãoé, em circunstânciasbemdetermínadas, um meio pre-
cioso para modificar o estadodoentio e para esclarecero médico
sobreo verdadeirocaráterneuropáticoda afecção" (p. 135). [c] H.
Brochín,verbete"Maladiesnerveuses",§ "Anesthésiques: étheret
chloroforme",in op. cit. [Dictionnaire encyclopédique dessciencesmé-
dicales,2~ série,t. XII, 1877], pp. 376-7.
19. Foi ao voltar dassuasviagenspela França,Itália e Bélgica
que Esquirol ínauguroua discussãosobrea construçãodos asilos
de alienados.Primeiro em suaMemória, Des établissements consa-
crés auxalíénésen France..., op. cit., ed. de 1819 (republicadaem Des
maladiesmentales..., op. cit., t. II, pp. 339-431); e em seu verbete
"Maisons d'aliénés",ín Dictionnaire des scíencesmédicales,t. XXX,
Paris,C. L. F. Panckoucke,1818,pp. 47-95 (republicadoin op. cit., t. II,
pp. 432-538).
20. Jean-BaptisteParchappedeVinay (1800-1866),nomeado
em 1848inspetor-geraldo ServiçodeAlienados,elaborao plano de
AULA DE 9 DE JANEIRO DE 1974 247

um asilo capazde possibilitara separaçãodascategoriasde doen-


tes e a realizaçãode um projeto terapêutico:cf. Des príncipesà sui-
vre dansla fondation et la constructíondesasilesd'alíénés,Paris,Mas-
son, 1853.Ver J. G. H. Martel, Parchappe.Significatíonde son oeuvre,
sa place dans l'évolution de l'assistancepsychiatrique,Th. Méd. Paris,
1965, n? 108, Paris,R. Foulon & Cie, 1965.
21. Henri Girard de Cailleux (1814-1884),nomeadoem 20 de
junho de 1840médico-chefee diretor do asilo de alienadosdeAu-
xerre,propõea construçãode asilosonde,de acordocom os prin-
cípios do tratamentomoral, sejamaplicadoso isolamento,a clas-
sificaçãoe o trabalhodosalienados.Ele desenvolve suas concepções
notada.menteem: [1] "De l'organisationet de l'administrationdes
établisseméntsd'aliénés",Annalesmédico-psychologi.ques , t. II, se-
tembro de 1843,pp. 230-60; [2] "De la construction,de l'organi-
sation,et de la directiondesasilesd'aliénés",Anna.lesd'hy-gienepu-
bliqueet de médednelégale,t. 40, 2~ parte,julho de 1848,pp. 5 e 241.
22. Nomeadoem 1860 por Haussmannparao cargo de ins-
petor-geraldo Serviço de Alienadosdo Sena,Girard de Cailleux
propõeem 1861,no âmbito da reorganizaçãodo Serviçode Assís-
tênciaaosAlienados,um programade construçãode urna dezena
de asilos na região suburbanade Paris,tendo como modelo o de
Auxerre,que ele transformoudepoisda suanomeaçãoao cargode
diretor (cf. nota precedente).Em maio de 1867, Sainte-Anneabre
suasportas,seguidoem 1868por Ville-Évrard, Perray-Vaucluseem
1869 e, mais tarde,em 1884,Villejuif. Cf.: [a] G. Daurnezon,"Essai
d'historiquecritique de l'appareild'assistanceaux maladesmen-
tauxdansle départernentde la Seinedepuisle débutdu XIX esiecle",
Informatíon psychiatrique,t. I, 1960,n? 5, pp. 6-9. [b] G. Bleandonu
e G. Le Gaufey, "Naissancedes asiles d'aliénés(Auxerre-Pari )",
AnnalesESC,1975,n? 1, pp. 93-126.
23. H. Girard de Cailleux, ''De la construction,del'organisation
et de la direction des asilesd'aliénés",art. cit., p. 272.
24. J. E. D. Esquirol, "Des maisonsd'aliénés"(1 18), op. cít.,
[in Des maladiesmentales..., t. II], pp. 227-528.Metáforaque teriaum
futuro promissor.Assim, em 1946, Paul Balvet, e -diretor do h -
pital Saint-Albane iniciador do movimentode psiquiatriainstitu-
cional, declara: "O asilo é homogêneoao psiquiatra,que seu
chefe.Ser chefenão é um grau administrativo,é certarela à or-
gânicacom o corpo que ele comanda... Ele comandaassimcom
248 O PODERPSIQUIÁTRICO

se diz do cérebroque comandaos nervos.O asilo podeserconce-


bido portantocomoo corpo do psiquiatra"("De l' autonomiede la
professionpsychiatrique",in Documentsde l'Information psychíatri-
que, t. II: Au-delàde ['asile d'aliénéset de l'hôpítal psychíatrique,Pa-
ris, Descléede Brouwer, 1946,pp. 14-5).
25. Nascido em 28 de setembrode 1745 em Lons-le-Saul-
nier, Jean-BaptistePussin,depoisde ter ocupadoem 1780a função
de chefe da divisão dos "rapazesinternados"em Bicêtre, foi pro-
movido a governadorda sétimaala, ou ala Saint- Prix, que corres-
pondiaaos"alojamentosdos alienados agitados".Foi aí que Pinel,
nomeadoem 6 de agostode 1793 médico do hospíciode Bicêtre,
o encontrouao assumirsua função, em 11 de setembrode 1793.
Nomeadoem 13 de maio de 1795 médico-chefedo hospital da
Salpêtriere,Pinel obtéma transferênciade Pussinem 19 de maio
de 1802e trabalhacom ele na seçãodasloucasaté seufalecimen-
to, em 7 de abril de 1811. É em "Rechercheset observationssur le
traitementmoral des aliénés" (Memória citada supra, pp. 23-4,
nota 13), que Pinel faz o elogio do saberde Pussine atribui a ele
a paternidadedos"primeirosdesenvolvimentos do tratamentomo-
ral" (p. 220). Na edição de 1809 (citada) do Traité médico-philoso-
phique,ele declaraque, "cheio de confiançana retidão e na habi-
lidade do chefe da polícia interna, deixei-lhe o livre exercício do
poderque ele tinha a exercer''(p. 226). SobrePussin,cf.: [a] R. Se-
melaigne,"Pussin",in Aliénisteset philanthropes:les Pinel et les Tuke,
op. cit., apêndice,pp. 501-4. [b] E. Bixler, "A forerunnerof psychia-
tric nursing:Jean-BaptistePussin",AnnalsofMedical History, 1936,
n? 8, pp. 518-9.-Ver também:M. Caire, "Pussinavant Pinel", In-
formation psychiatrique,1993,n? 6, pp. 529-38;J. Juchet,"Jean-Bap-
tiste Pussinet Philippe Pinel à Bicêtre en 1793: une rencontre,une
complicité,une dette",in J. Garrabé,org., PhilippePinel, Paris,Les Em-
pêcheursde penseren rond, 1994, pp. 55-70; J. Juchete J. Postel,
"Le surveillantJean-BaptistePussin",Histoire dessciencesmédicales,
t. 30, n? 2, 1996, pp. 189-98.
26. A partir da lei de 30 de junho de 1838,inicia-seum deba-
te sobrea naturezados poderesque presidemos asilos.Assim, o
prefeito do Sena,barãoHaussmann,instaura,em 27 de dezembro
de 1860,urnacomissãopara"a melhoriae asreformasa seremrea-
lizadas_nos serviçosde alienados!/,a qual, de fevereiro a junho de
1861,discutea questãode saberse sedeverianomear,ao lado do
AULA DE 9 DE JANEIRO DE 1974 249

médicode asilo, um diretor administrativo, ou reunir nasmãosde


um médicodiretor ospoderesmédicoe administrativo,conforme
previstono artigo 13 do decretode aplicaçãoda lei de 18 de dezem-
bro de 1839.Em 25 de novembrode 1861,o relatório conclui que
"o que seriaacimade tudo desejávelé que a autoridadefosseúni-
ca, que todosos elementosadministrativosou médicosconcorres-
sem,sobum mesmoimpulso,parao bemquesetem por fim" (Rap-
port de la Commissionínstituéepour la réforme et l' aménagement du
serviced'alíénésdu départementde la Seíne, Paris,1861).
27. Ph. Pinel, La Médecíneclinique rendueplus précíseet plus
exadepar l'applícation de l'analyse, ou Recuei[ et résultatsd'obseroatíons
sur les maladíesaígues,faites à la Salpêtríere(1802), 2~ ecL, Paris,
Brossonet Gabon,1804,pp. 5-6.
28. Por exemplo,foi J.-P. Falret que pôs o interrogatóriono
primeiro plano do exameclínico, estabelecendo em prinápio que
"se quiseremconheceras tendências,as direçõesde espírito e as
disposiçõesde sentimentosque são a fonte de todasas manifes-
tações,não reduzamseudeverde observadorao papelpassivode
secretáriodos doentes,de estenógrafodas suas palavrasou de
narradoresdassuasações[...]. O primeiro prinápio a seguir[...] é
portanto mudar seu papel passivode observadordas palavrase
dos atosdos doentesparaum papelativo e procurarcom freqüên-
cia provocare fazer brotarmanifestaçõesque nuncasurgiriames-
pontaneamente"(''Discoursd'ouverture:De la direction à impri-
mer à l'observationdes aliénés", in Leçons cliniques de médecine
mentalefaítes à l'hospícede la S_alpêtríere,Paris,J.-B. Bailliere, 1854,
pp. 19-20). ,
29. J.-P.Falret, [1] íbid., aulaVIII, pp. 221-2: "As vezesé pre-
ciso conduzircom habilidadea conversasobrecertostemasque e
supõetenhamrelaçãocom as idéias ou os sentimento s doenti ;
essasconversascalculadasagemcomo pedrasde toque, pondoa
nu as preocupaçõesmórbidas.Uma grandeexperiência e muita
arte costumamser necessáriaspara observare interrogarcon e-
nientementecertos alienados."; [2] De l'enseígn.ementclinique des
maladíesmentales,Paris,impr. de Martinet, 1850, pp. 68-71.
30. Assim, numerosasdeclaraçõesinsistemna necessidade de
recolheras observaçõesdos doentesem "registros" que recapitu-
lem a história da sua doença. [a] Ph. Pinel recomenda"manter
diários exatosdo andamentoe das diversasformas qu,e a aliena-
ção pode adquirir durantetodo o seu curso, desdea suain ~o
250 O PODERPSIQUIÁTRICO

atéO seutérmino" (Traité médico-phílosophique, op. cit., ed. de 1800,


seçãoVI , § XII , p. 256). [b] C. F. S. Giraudy insiste nessepo1:to
em seu Mémoire sur la Maison nationale de Charenton..., op. cit.,
pp. 17-22. [c] J. J. Moreaude Tour~: "As informaçõesobtidas~o-
bre o doentesão anotadasno registro que deve conter tambem
os detalhesnecessáriossobreo andamentoda doença... Essere-
gistro é um verdadeirocadernode observaçõesde que se faz, no
fim de cadaano, um esmiuçamentoestatístico, que éuma fonte de
documentospreciosos"("Lettresmédicalessur la colonie d'aliénés
de Ghéel" , art. cit. [supra, pp. 209-10, nota 1], p. 267). Sobre essa
forma de escritadisciplinar, ver M . Foucault, Surveill er et punir,
op. cit., pp. 191-3.
31. Em 1817,Esquirolinauguraum curso de clínica das doen-
ças mentaisna Salpêtriere,a que dá seguimento até suanomea-
ção, em 1826,parao cargode médico-chefede Charenton.Cf.: [a]
R Semelaigne,Les Grands Aliénistesfrançais, Paris, G. Steinheil,
1894,p. 128. [b] C. Bouchet,Quelquesmotssur Esquirol, Nantes, C.
Mellinet, 1841,p. 1.
32. Em Bicêtre,GuillaumeFerrus,nomeado médico-chefeno
início de 1826, dá de 1833 a 1839 "Leçons cliniques sur lesma-
ladies mentales/f,reproduzidasna Gazettemédicalede Paris, t. I,
n? 65, 1833; t. II, n? 39, 1834,p. 48; t. IY, n? 25, 1836,pp. 28, 44, 45;
e na Gazettedes hôpitaux,1838,pp. 307,314,326,345,352,369,384,
399, 471,536,552,576,599,612; 1839,pp. 5, 17, 33, 58, 69, 82,434,
441. Depois da saídade Ferrus,Leuret organizaem 1840 aulasclí-
nicasque prosseguematé 1847,publicadasparcialmentena Gazet-
te des hôpitaux, t. II, 1840,pp. 233, 254, 269, 295.
33. Na Salpêtriere,JulesBaillarger (1809-1890)retomao en-
sino clínico em 1841.J.-P. Falret, nomeadomédico de uma seção
de alienados,começapor suavez em 1843 o ensino clínico, uma
partedo qual é publicadonos Annalesmédico-psychologi.ques, t. IX,
setembrode 1847, pp. 232-64; t. XII, outubro de 1849, pp. 524-79.
Essas~~assãopublic_ adas(com o mesmotítulo) em De l'enseigne-
Ym?1-.t clmzquedesm~l~dzesmentales,op. cit. Cf. M. Wrriot, J;Enseignement
clznzquedans les hopttauxde Paris entre 1794et 1848,Th. Méd. Paris,
1970, n? 334,Vincennes,impr. Chaumé,1970.
34. J.-_P. Falret, De l'enseignement
clinique..., p. 126.
. 35. Ib~d., p. 127: "A narraçãopública da suadoençafeita pelos
ali~1:adose, parao médico,um auxiliar aindamais precioso[...]; o
medicodevesermuito mais poderosonasnovascondiçõesda clí-
AULA DE 9 DE JANEIRO DE 1974 251

nica, isto é, quandoo professorvem tomar sensíveisaos olhos do


doentetodosos fenômenosda suadoença,em presençade ouvin-
tes mais ou menosnumerosos."
36. Ibid., p. 119: "Se os doentesaceitam..., ele faz o histórico
da sua doençacom o firme princípio de só contaro que é perfei-
tamentedeclaradopor eles, e se interrompeváriasvezesparalhes
perguntarse estáexprimindo com verdadeos fatos que elesmes-
mos lhe contaramantes."
37. Ibíd., p. 125: "Muitas vezes,o relato da doença,feito em
todos os seusdesenvolvimentos,impressionavivamenteos alie-
nados,que testemunhameles próprios a suaverdadecom visível
satisfaçãoe se comprazemem entrar em maioresdetalhespara
completaro relato, surpresose gloriosos,de certo modo, por te-
rem cuidado deles com interessebastantepara conhecertoda a
suahistória.''
38. Marie FrançoisXavier Bichat (1771-1802),depoisde ter se
iniciado na cirurgia em Lyon, no serviço de Marc-Antoine Petit
(1762-1840)e de ter se tomado,em junho de 1794,aluno de Pier-
re JosephDelsaut (1744-1795),cirurgião do Hôtel-Dieu, consa-
gra-se,depois da sua nomeaçãoem 1800, à anatomiapatológica,
empreendendoestabelecerrelaçõesdefinidasentre as alterações
dos tecidos e os sintomasclínicos; cf. [1] Traité des membranesen
généralet desdiversesmembranesen particulier, Paris,Gabon,1800. Ex-
põe suasconcepçõesem [2] Anatomiegénéraleappliquéeà la physio-
logie et à la médecine,Paris,Brossonet Gabon,1801, 4 voL
Mas principalmenteGaspardLaurentBayle (1774-1816)e René
Théophile Laennec (1781-1826) é que se esforçarãopara fundir
numasó disciplina a medicinaclínica e a patologiaanatômic . [a)
G. L. Bayle é um dosprimeirosa formular a metodologiada jo em
escolaanatomoclínicaem suatese,defendidaem 4 de ventosod
anoX/24 de fevereiro de 1802: [1] Considératianssur la nosologie, la
médecined'obseruationet la médecinepratique, suiviesd'obseroation
pour servir à l'histoiredespustulesgangreneuses,Th. Méd. Paris,n? 70,
Paris,Boiste (Gabon),1802.Expõenessetrabalhoasidéiasque d -
senvolveráe precisaráem [2] Recherchessur la phtisie pulmonafre,
Paris,Gabon,1810, e em [3] "Considérationsgénéralessur les -
coursque l' anatomiepathologiquepeutfournir à la médecine", in
Dictionnairedessciencesmédicales,t. II, Paris, C. L. F. Pa.nckoucke
, 1812,
pp. 61-78.- [b] R. T. Laennecrenovaa patologiapulmonarem [1]
252 O PODERPSIQUIÁTRICO

De l'auscultationmédiate,ou Traité du diagn.ostícdesmaladesdes pou-


11W11Set du coeur,fond.épri.ncipalementsurce nouveaumayend'exploratíon
(1819,2 vol.), dando-secomo princípio procurar"pôr do ponto de
vista do diagnósticoas lesõesorgânicasinternasna mesma linha
das doençascirúrgicas" (2? ed. rev. e aum., t. I, Paris, Brossonet
Chaudé,1826,p. XXY), e em suaobrapóstuma,[2] Traité inédít sur
l'anatomiepathologique,ou Expositiondesaltérationsvisibles qu'éprouve
le corps humaindans l'état de maladie,Paris,Al can, 1884.
SobreBichat, ver as páginasde M. Foucault no capítulo VIII ,
"Ouvrezquelquescadavres"de Naissancede la clinique. Unearchéo-
logie du regard médica[, Paris,PUF, col. " Galien,,, 1963, pp. 125-48.
De um ponto de vista maisgeral,cf.: [a] J. E. Rochard, Histoire de la
chirurgiefrançaiseau XIX' siecle,Paris,J.-B. Bailliere, 1875. [b] O. Tem-
kin, "The role of surgeryin the rise of modem medical thought,,,
Bulletin of the History ofMedicine,Baltimore,Md., vol. 25, n? 3, 1951,
pp. 248-59. [c] E. H, Ackemecht,[1] "Pariser chirurgie von 1794-
1850'', Gesnerus,t. 17, 1960, pp. 137-44; [2] Medicine at the Paris
Hospitais (1794-1848),Baltimore, Md., Toe JohnsHopkins Press,
1967 [La Médecinehospitaliereà Paris (1794-1848), trad. fr. F. Blateau,
Paris,Payot,1986,pp. 181-9]. [d] P Huard e M. Grmeck, orgs., Scien-
ces,médecine,pharmacie,de la Révolutionà l'Empire (1789-1815),Pa-
ris, Éd. Dacosta,1970, pp. 140-5. [e] M.-J. Imbault-Huart, J;École
pratiquede dissectionde Paris de 1750à 1822,ou l'Influencedu concept
de médecinepratiqueet de médecined'observationdans l'enseignement
médíco-chirurgicalau XVIII' siecle,tesede doutoramen t o, Universi-
dadede Paris-1,1973;repr.Universidadede Lille- ill , 1975.[f] P Huard,
"Conceptset réalités de l'éducationet de la professionmédico-
chirurgicalespendantla Révolution", Journal des savants,abril-
junho de 1973,pp. 126-50.
SobreG. L. Bayle: M.-J. Imbault-Huart,"Bayle, Laennecet la
méthodeanatomo-clinique",Revuedu Palais de la Découverte,n?
especial,22 de agostode 1981,pp. 79-89.-Posteriormente:J. Duf-
fin, "GaspardLaurent Bayle et son legs scientifique: au-delàde
l'anat?mie pathologique", Canadian Bulletin of Medical History,
Wmrupeg,t. 31, 1986,pp. 167-84.
. SobreLaennec:P Huard, "Les chirurgienset l' esprit chirur-
gical en Franceau XVIII• siecle", Clio Medica, vol. 15, n? 3-4, 1981.
-~?steriormente:J. Duffin, [1] "The medical philosophyof R. Th.
Laennec(1781-1826)",History and Philosophyof the Life Sciences,
AULA DE 9 DE JANEIRO DE 1974 253

vol. 8, 1986,pp. 195-219i[2] "La médecineanatomo-clinique : nais-


sanceet constitutiond'une médecinemodeme", Revuemédícalede
la SuisseRomande,n? 109, 1989,pp. 1005-12.
39. É nos anos 1830 que a separaçãodos alienadose das
criançasidiotas começaa ocorrerna forma, ao mesmotempo, de
declaraçõesde princípio e de um começode realizaçõesinstitucio-
nais. Nomeadoem 1826 paraBicêtre, Guillaume Ferruspleiteava
em 1834 a criaçãode "estabelecimentos especiaisnos quais fos-
semreunidastodasas técnicascurativas" (Des alíénés, ap. cít. [su-
pra, pp. 213-4, nota 36], p. 190). Em 1839, num relatório feito em
nome da Comissãomédica dos Hospitais de Paris,Ferrusinsiste
novamentena "utilidade da criaçãode uma seçãode crianças na
ala do hospíciode Bicêtre" (citado in D. M . Bourneville, Assistan-
ce1Traitementet Éducationdes enfants idiots et dégénérés. Rapport f ait
au congresnatíonald'Assistancepublique, Lyon, juín 1894, Paris, Pu-
blications du Progresmédical, "Bibliotheque de l' éducationspé-
ciale", N, 1895, p. 142). Uma das primeirasrealizaçõesinstitucio-
nais é a de Jean-PierreFalret que, depoisda suanomeaçãoem 30
de marçode 1831paraa Salpêtriere,decidereunir numaseçãoco-
mum oitenta idiotas e imbecis.Mas sualentidão é tamanhaque,
em 1853,J.-B. Parchappeaindapodeescreverquea presençade jo-
vens idiotas nos "asilos de alienados,na falta de alas especiais,
ofereceinconvenientesde todo tipo... Consideroumanecess i dade
indispensávela criaçãode uma ala de criançasnos asilos de alie-
nados"(Des príncipesà suivredans la fondationet la construction des
asilesd'aliénés,Paris,Masson,1853,p. 89). Sobreesseponto, ver o
histórico de D. M. Bourneville,op. cit., cap. I, "Aperçu historique de
l' assistanceet du traitementdesenfantsidiots et dégénérés", pp. 1-7.
Cf. infra, aula de 16 de janeiro de 1974.
40. É nos anos1880,quandoa nosologiadasdistúrbios neu-
rológicoschegaà suaconclusão, queo campodasneuroses e ali-
via da massados sintomasorgânicos(paralisia, anestesias, distúr-
bios sensoriais,algias, etc.) que seráassumidapela nova clíni a
neuropatológicaassociadaao estudodaslesõeslocalizáveisdos ner-
vos da medulae dasestruturasespecializadas do encéfalo. O que
resta desse campotende, por volta de 1885-1890, a se organizar
em tomo de quatro grandesgruposclínicos: (a) neuroses coréicas
(coréiashistéricas,dança-de-são -guido); (b) neuraste nia; (e) his-
teria; (d) obsessões e fobias.
254 O PODERPSIQWÁTRICO

41. A análisede M . Foucaultse inspira aqui em R Castel,Le


Psychanalysme,
Paris, Maspero,col. "Te:xtes à l'appuf', 1973, sobre
o qual escreve,no manuscritoda aula de 7 de novembrode 1973:
lfÉ um livro radical porque, pelaprimeiravez, especificaa psicaná-
lise somenteno interior da práticae do poderpsiquiátricos."
AULA DE 16 DE JANEIRO DE 1974

. (!s ":_Odas ~e fen_


eralizaçãodo poderpsiquiátrico e apsi-
quzatrizaçao da mfancza.- LA especificaçãoteórica da idiotia.
~ críté'!o.d~ desenvolvimento . Emer~ênciade umapsicopatolo-
gia da zdzo~a e do retardo mental.Edouard Seguin: o instinto
e a anomalia.- II. A anexaçãoinstitucionalda idiotia pelo poder
psiquiátrico. O "tratamentomoral" dos idiotas: Seguin.O pro-
cessode internamento e de estigmatizaçãoda perículosidade
dos idiotas. O recursoà noçãode degenerescência.

Gostariade procuraridentificar os pontose as formas


de generalizaçãodo poderpsiquiátrico, generalizaçãoque
tenho a impressãoproduziu-se de forma bastanteprecoce.
Não creio, devo dizer, que a generalizaçãodo poderpsiquiá-
trico seja um fato contemporâneo,seja um dos efeitos da
práticapsicanalítica.Parece-meque tivemos bem cedo cer-
ta difusãodo poderpsiquiátrico, transmissãoqueé arcaicapor
suadatae que,claro, tem por efeito transmitirurnaforma do
poderpsiquiátricoque, ela própria, é arcaica.
Parece-me que essadifusão do poderpsiquiátricorea-
lizou-sea partir da infância,isto é, a partir da psiquiatrização
da infância. Claro, vocêspodemencontraresboços , formas,
dessageneralizaçãoa partir de certonúmerode personagen
quenãosãoo personagem da criança- podemosencontrá-los,
por exemplo,a propósitodo criminoso,e isso já bem cedo,
desdea elaboraçãotantodasperíciaspsiquiátrico-legaiscomo
da noçãode monomania- , mas, enfim, parece-me que em
todo o séculoXIX foi principalmentea criançao suporteda
difusão do poderpsiquiátrico;foi muito mais a criançaque
o adulto.
Em outraspalavras,creio que- em todo casoé a hipó-
teseque gostariade testardiante de vocês- é do lado dos
256 O PODERPSIQWÁTRICO

pares hospital-escola,instituição sanitária (instituição pe-


dagógica, modelo de saúde)-sistema de aprendizagemque
se deve buscaro princípio de difusão dessepoderpsiquiá-
trico. E gostariade pôr em epígrafe[...] umadessasfrasesbre-
ves e fulgurantesde que Canguilhemtanto gosta.Ele escre-
veu: "Normal é o termo pelo qual o séculoXIX vai designar
o protótipoescolare o estadode saúdeorgânica."1 Parece-me
que é aí, afinal, do lado dessaelaboraçãodo conceitode "nor-
mal", que se fez a difusão do poderpsiquiátrico.
Poderíamosnaturalmenteesperarque essapsiquiatriza-
çãoda infânciatenhasefeito por dois caminhosque parecem
como que ditadosde antemão:de um lado, o caminhoque
seriao da descobertada criançalouca; o outro caminhoseria
o de fazer a infânciaemergircomo lugar de fundação,lugar
de origem da doençamental*.
Ora, nãotenhoa impressãode quefoi exatamenteassim
que as coisasaconteceram.De fato, parece-meque a desco-
bertada criançaloucafoi afinal umacoisatardiae muito mais
o efeito secundárioda psiquiatrizaçãoda criançado que seu
lugar de origem.A criançalouca aparece,creio, bem tardeno
séculoXIX2; vemo-laemergirem tomo de Charcot,isto é, em
tomo da histeria,por volta dos anos1880,e ela não entrana
psiquiatriapelavia régia do asilo, maspelo viés da consul-
ta particular. As primeiras criançasque vocês vêem surgir
no dossiêda história da psiquiatriasãoas criançasde clien-
tela particular,sãoem geral, no que concernea Charcot,jo-
vensfilhos abestalhadosde grão-duquesrussosou meninas
da América Latina um pouco histéricas3 • São essascrianças,
acompanhadas aliás pelosdois genitores,é essatrindadeque
aparecenasconsultasde Charcotna décadade 1880.Não foi,
em absoluto,o endurecimentodasdisciplinasfamiliares,nem
a instauraçãodas disciplinasescolaresque possibilitaramdi-
rigir o foco paraas criançasloucasno correrdo séculoXIX .

* O manuscrito precisa: "pelo jogo das anamnese.s, do interroga -


tório dos doentes e da sua família, dos seusrelatos de vida".
AULA DE 16 DE JANEIRO DE 1974 257

Por outro lado, essas anamneses,essesrelatosautobio-


gráficosa que o poder psiquiátrico forçavaos doentesduran-
te todo o séculoXIX, curiosamente, essasanamneses também
nãopuseramem marcha a emergênciade certarelaçãofun-
damental,privilegiada, fundadora, entre a criançae a lou-
cura. Quandose pediaque o doentecontassesuavida, não
era em absolutoparatentar dar contade sualoucura apar-
tir do que havia acontecido durante suainfância, maspara
captarnessainfância uma loucura de certo modo já consti-
tuída, em todo casoindícios precursores,sinais de predis-
posiçãoda loucuraquejá estigmatizavama infância,em que
se procuravamtambémsinais de predisposiçãohereditária.
Não era tampoucoo conteúdolouco da experiênciainfantil
que erainterrogadoatravés das anamneses. Logo, a criança
louca, a criançacomo objeto de psiquiatria, aparecetardia-
mente,,e ainfância, em sua relação fundamentalcom alou-
cura, não é interrogadaprecocemente .
Eu diria então- é essahipóteseque quero considerar
- que a psiquiatrizaçãoda criança, por mais paradoxalque
seja, não passoupela criançalouca ou pela loucura da in-
fância, pelarelaçãoconstitutiva entrea loucurae ainfância.
Parece-me que a psiquiatrizaçãoda criançapassoupor ou-
tro personagem : a criançaimbecil, a criançaidiota, a quelogo
será chamada de criançaretardada,isto é, uma criançaque
se tomouo cuidado [...*],desdeo início, desdeos trinta pri-
meiros anos do século XIX, de especificarbem que não era
louca4• Foi por intermédioda criançanão-loucaque se fez a
psiquiatrizaçãoda criançae, a partir daí, queseproduziuessa
generalizaçãodo poderpsiquiátrico.
O que é essapsiquiatrizaçãoda criançapor intermédio
de uma criançaque é qualificadade não-louca?
Creio que podemosidentificar dois processosque são,
pelo menosem aparência,totalmentedivergentes.Um é de
ordempuramenteteórica.Vocêspodemanalisá-lo a partir dos

,. Gravação: "de dizer'' .


258 O PODER PSIQUIÂTRICO

textosmédicos,dasobservações, dos tratadosde nosografia.


Esseprocessoé a elaboraçãoteórica da noçãode imbecili-
dadeou de idiotia como fenômenoabsolutamentedistinto
da loucura.
Podemosdizer, pararesumiras coisasmuito esquema-
ticamente,que até o fim do séculoXVIII o que se chamava
imbecilidade,estupideze já idiotia não tinha nenhumaca-
racterísticadistintiva em relaçãoà loucuraem geral.Não era
nadamais que uma espéciede loucuraque, é claro, se dis-
tinguia de uma série de outrasespécies,mas que, de qual-
quermodo,pertenciaà categoriageral da loucura.Por exem-
plo, ora vocêstinham uma espéciede grandeoposiçãoentre
a loucuraque tinha a forma do "furor"5, isto é, da violência,
da agitaçãotemporária,se assimpodemosdizer, uma lou-
cura em forma de "mais", e uma loucuraem forma de /fme-
nos", que era,ao contrário,do tipo do abatimento,da inércia,
da não-agitaçãa6, e queerao quesechamavade "demência"7,
"estupidez"8, "imbecilidade",etc. Ou então,definia-sea im-
becilidade,a estupidez,comoumaforma particularem toda
uma série em que se podia encontrara mania, a melanco-
lia, a demência9• No máximo pode-se[identificar]* certo nú-
mero de indicaçõessegundoas quaisa idiotia teria sido uma
doençamaisfacilmenteencontradanascrianças;já a demên-
cia seriauma doençaabsolutamentesemelhanteno conteú-
do, masque só se produziriaa partir de certaidade1º.
Podemosnos espantar,qualquerque sejao lugar que a
imbecilidadeou a idiotia ocupenos quadrosnosográficos-
seja,pois, umanoçãoamplaopostaem geral à agitaçãoe ao
furor, sejauma noçãoprecisa-,de todo modo, ficamos um
poucosurpresos,apesarde tudo, ao ver a imbecilidadefigu-
rar no interior da loucura,numaépocaem que,precisamente,
a loucuraera essencialmente caracterizadapelo delírio, isto
é, o erro, a crençafalsa,a imaginaçãodesavergonhada, a afir-
maçãosemcorrelativona realidade11 • Mas, se é verdadeque

,. Gravação: "encontrar'' .
AULA DE 16 DE JANEIRODE 1974 259

a loucuraé essencialmente definidapor essenúcleodeliran-


te, podemosconsiderara idiotia, a imbecilidade,como fa-
zendopartedessagrandefamília dos delírios?É que,de fato,
a imbecilidadeé assimiladaem suanatureza- bem como a
demência,aliás- a uma espéciede delírio que teria chega-
do, quertardiamente,no casoda demência,a seupontomais
agudo,isto é, ao momentoem que desaparece, em que,leva-
do ao seuponto extremode exasperação, de violência,vem
abaixo,desabae se anulacomodelírio, quermuito maispre-
cocemente,no casoda idiotia. A imbecilidade,nessaespécie
de nosografiado séculoXVIII, é o erro do delírio, mastão ge-
neralizado,tão total, quenãoé maiscapazde concebera me-
nor verdade,formar a menoridéia; é, de certomodo, o erro
tomadoobnubilação,é o delírio caindoem suapróprianoite.
E é, grossomodo,o que dizia aindaem 1816,logo bem tar-
diamente,um psiquiatracontemporâneode Pinel, Jacquelin
Dubuisson,a propósitodo idiotismo: "O idiotismo é um es-
tado deestuporou de abolição das funçõesintelectuaise
afetivas,de que resultasuaobtusãomaisou menoscomple-
ta; com freqüência,tambémse adicionama ele alterações
nas funçõesvitais. Essasespéciesde alienados,despojados
dassublimesfaculdadesque distinguemo homempensan-
te e social, são reduzidosa uma existênciapuramentema-
quinal quetomasuacondiçãoabjetae miserável.Causas.Es-
sascausassãomais ou menosas mesmasda demência,de
que o idiotismo só se diferenciapor uma alteraçãomais in-
tensae mais profundanas funçõeslesadas."12
O idiotismo não é portanto,em absoluto,e a esp,, cie
de fundo primeiro, elementar,a partir do qual p d riam e
desenvolveroutros estadospatológicos,mai viol nt ou
maisintensos;é ao contrárioa forma absoluta,total, d lou-
cura.É a vertigemda loucura,girando tão d pressa ·br i
mesmaque mais nada,dos elementos, dascrençasdo delí-
rio, podeser percebido;a não-cor, p lo turbilhonam nt da
coressobreelasmesmas.É sseefeito de "obnubilação"d
todo pensamento,e até mesmo de toda p rc p ão, qu ,,
apreendidono idiotismo que faz com queo idiotismo, ap -
260 O PODERPSIQWÁTRICO

sar da sua ausênciade sintomas,se assimpodemosdizer,


sejaconcebidonessaépocacomosendomesmoassimuma
categoriado delírio13• Eis a situaçãoteórica,apressadamen-
te reconstituída,no fim do séculoXVIII.
Comovai sefazer a elaboraçãoda novanoçãode idiotia,
de retardomental,de imbecilidadenos quarentaprimeiros
anosdo séculoXIX, isto é, de Esquirol a Seguin,em 1843?
Tambémnestecasome refiro simplesmentea textos,a elabo-
raçõesteóricas;nadaem relaçãoa instituições,nem a prá-
ticas reais.
Nos textospsiquiátricosteóricosdo início do séculoXIX,
creio que podemosestabelecerdois grandesmomentosna
elaboraçãodessanoção de idiotia*. O momentoque é ca-
racterizadopor Esquirol e seustextos dos anos 1817, 1818,
182014, e o livro de Belhomme,que data de 182415• Nesse
momento,vocês vêem surgir uma noção da idiotia que é
completamentenova e que vocêsnão poderiamencontrar
no séculoXVIII. Esquiroldefine-adestemodo: "A idiotia não
é uma doença,é um estadono qual as faculdadesintelec-
tuais nuncase manifestaramou não puderamse desenvol-
ver suficientemente ..." 16 E Belhomme,em 1824,retomaqua-
se textualmentea mesma·definição; ele diz que "a idiotia é
[...] um estadoconstitucionalno qual as funçõesintelectuais
nuncase desenvolveram ...'J17•
Essadefinição é importanteporque introduz a noção
de desenvolvimento;ela faz do desenvolvimento,ou antes,
da ausênciade desenvolvimentoo critério [distintivo] entre
o quevai ser,de um lado, a loucurae, de outro, a idiotia. Não
é portantoem relaçãoà verdadeou ao erro, não é tampou-
co em relaçãoà capacidadeou à incapacidadede dominar-se,
não é em relaçãoà intensidadedo delírio que a idiotia vai
serdefinida,masem relaçãoao desenvolvimento.Ora,nes-

* O manuscrito diz nesteponto: ,.,A especificaçãoda idiotia em re-


lação à demência- isto é, essaforma ou esseestágiodas doençasmen-
tais de que ela mais se aproxima - foi realizada em dois tempos."
AULA DE 16 DE JANEIRO DE 1974 261

sas definições enas descriçõesque seseguem,Esquirole Be-


lhomme fazem do desenvolvimento um uso decerto modo
binário. O desenvolvimento, paraEsquirol e paraBelhom-
me, é uma coisa que se tem ou não,de que se foi dotadoou
não; desenvolve-se do mesmo modo como se tem vontade
ou inteligência, não se desenvolve do mesmomodo como
se carecede inteligência ou de vontade.Temosuma espécie
de simplismoaindamuito grande nautilizaçãodessanoçãode
desenvolvimento .
Mas, apesardessesimplismo, a utilizaçãodessecritério
do desenvolvimento , que setem ou não,de que se foi dotado
ou não, permite certo número de elaboraçõesque são im-
portantesparao quadriculamento dessedomínio teórico.
Em primeiro lugar, isso possibilita uma distinção cro-
nológicanítida. Se a idiotia é uma ausênciade desenvolvi-
mento, entãoé necessári o, normal, que a loucurasejauma
coisaque apareçalogo de saída, e isso por oposiçãoa outras
formas de debilitação do pensamento, do intelecto, ou da
percepção,como a demência que, do mesmomodo que as
outrasdoençasmentais- a mania, a monomania,a lipema-
nia, etc. -, surgiráno mais tardara partir de certo momento,
essencialmente a partir da puberdade1ª. Logo, uma distin-
ção cronológicaé postanessemomento.
Em segundolugar, uma diferençano tipo de evolução.
Se a idiotia é um não-desenvolvimento,ela é estável,defi-
nitivamente adquirida: o idiota não evolui; a demência , ao
contrário, que tambémé debilitaçãodo pensamento , vai ser,
diferentementeda idiotia, umadoençamentalquevai evoluir,
vai seagravarde ano em ano,vai talvezseestabilizarpor cer-
19
to tempo, [da qual] eventualmenteé até possívelcurar-se •
Terceiradiferença:a idiotia estásempreligada a vícios
orgânicosde constituição20• Ela é portantoda ordemda en-
fermidade21, ou aindainscreve-seno quadrogeraldasmons-
truosidades 22. Já a demência,tal comoas outrasdoenças , po-
deráser acompanhada por certo númerode lesõesque são
23
lesõesacidentais,que ocorrema partir de certo momento •
262 O PODERPSIQUIÁTRICO

Enfim, umadiferençanossintomas.A demência,por ser


uma doençatardia, que intervém a partir de um certo nú-
mero de processose, eventualmente,de lesõesorgânicas,
terá sempreum passado,ou seja,na demênciasempreen-
contraremosrestos:ou restosde inteligência,ou restosdo
delírio, mas algo do passadodesseestado,positivo ou ne-
gativo, como querque seja,algo do passadorestará.O idio-
ta, ao contrário,é alguémque não tem passado,é alguéma
quemnãorestanada,cuja existêncianão de~oue não dei-
xaránuncaemsuamemóriao menorvestígio.E assimquevo-
cêschegama estasformulaçõescanônicasde Esquirol, que
foram retomadaspor maisde um século:"O homemem de-
mênciaé privadodosbensde que gozavaoutrora:é um rico
que se tomou pobre;o idiota sempreesteveno infortúnio e
na m.iséria." 24
Vocês estãovendo que essanoçãode desenvolvimen -
to, apesardo uso grosseiro,propriamentebinário que dele
se faz, possibilitaem todo casoum certo númerode distin-
çõese possibilita o estabelecimentode uma certa linha de
clivagem entre duasespéciesde características:as caracte-
rísticasde algo que define uma doençae as características
de algo queé da ordemda enfermidade,da monstruosidade,
da não-doença.
Segundoestágio,algunsanosdepois,por volta dosanos
1840,Seguin-que vamosencontrarentãoem toda a insti-
tucionalizaçãoe a psiquiatrizaçãoefetivas da infância - é
quemem seuTratamentomnral dos idiotas vai forneceros con-
ceitosmaioresa partir dos quaisa psicologia,a psicopatolo-
gia do retardomentalvão se desenvolverao longo de todo
o séculoXIX25.
Seguinfaz uma distinçãoentreos idiotas propriamen-
te ditos e ascriançasretardadas:"Fui o primeiro a assinalar
as extremasdiferençasque os separam ... O idiota, mesmoo
superficial,apresentauma interrupçãode desenvolvimento
fisiológico e psicológico."26 Não ausênciaportanto,masin-
terrupçãode desenvolvimento.Quantoà criançaretardada,
AULA DE 16 DE JANEIRO DE 1974 263

paraSeguin- e énissoque ela se distinguedo idiota -, não


é alguémcujo desenvolvimentoteria se interrompido.É al-
guém que não pára em seu desenvolvimento,mas que se 11

desenvolvemais lentamenteque as criançasda sua idade;


ela fica paratrás em toda a linha do progressodelas,e esse
retardo,cadadia mais considerável,acabaestabelecendo en-
tre ela e as outrasuma diferençaenorme,uma distânciain-
transponível"27.E isso ao cabode uma evoluçãocontínua.

*
As duasdefiniçõesconjuntasdo idiota comoalguémque
sofre de uma interrupçãode desenvolvimentoe do retarda-
do como alguémcujo desenvolvime nto, emboracontínuo,
é simplesmentemais lento são,creio, teoricamenteimpor-
tantes.Elas trazemvárias noçõesque vão ter pesona pró-
pria prática dessapsiquiatrizaçãoda criança.
Em primeiro lugar, o desenvolvimento,tal como é con-
cebidopor Seguinem seuTratamentomoral dos idiotas, não
é mais portanto,como em Esquirol,algo de quesomosdota-
dosou privadosdo mesmomodo queda inteligência, davon-
tade;o desenvolvimentoé um processoque afetaa vida or-
gânicae avida psicológica,é umadimensãoao longo da qual
sãorepartidasas organizaçõesneurológicasO\l psicológicas,
as funções,os comportamentos , as aquisições.E uma dimen-
sãotemporal,e não é mais uma espéciede faculdadeou de
qualidadede que seríamos dotados.
Em segundolugar, essadimensãotemporalé, em certo
sentido,comuma todos.Ninguémescapaa ela, masé uma
dimensãoao longo da qual podemosparar.Nessamedida,
o desenvolvimentoé comuma todo o mundo,masé comum
muito mais como uma espéciede ótimo, como uma regra
de sucessãocronológicacom um pontoideal de chegada.O
desenvolvimentoé portantouma espéciede normaem re-
laçãoà qual nos situamos,muito uiais do que uma virtuali-
dadeque possuiríamosem nós.
264 O PODERPSIQUIÁTRICO

Em terceirolugar, essanormade desenvolvimento,como


vocêsestãovendo,possuiduasvariáveis,no sentidode que,
ou pode-separarnesteou naqueleestágiodessaescalade
desenvolvimento,ao longo dessadimensão- e o idiota é
precisamentealguémque paroumuito cedoem certo está-
gio-, {ou então],a outra variável é, não mais a do estágio
em quesepára,masda velocidadecom que se percorreessa
dimensão- e o retardadoé precisamentealguémque, sem
serbloqueadoem certoestágio,é freadono nível da suave-
locidade.Donde duas patologias,que aliás se completam,
sendoumao efeito final da outra; umapatologiado bloqueio
[num] estágio[que, no caso,será] terminale umapatologia
da lentidão.
Daí - e estaé a quartacoisaimportante-, vemosesbo-
çar-seuma dupla normatividade.De um lado, na medidaem
que o idiota é alguémque parouem certo estágio,a ampli-
tude da idiotia vai ser medidaem relaçãoa uma certanor-
matividade,queseráa do adulto.O adultovai aparecercomo
o pontoao mesmotemporeal e ideal do término do desen-
volvimento; o adulto vai funcionar portantocomo norma.
E, de outro lado - o texto de Seguindiz isso com muita cla-
reza-, a vaáávellentidão é definida pelasoutrascrianças:
um retardadoé alguémque se desenvolvemais lentamente
que os outros.Assim, certamédiada infância, ou a maioria
das crianças,vai constituir a outra normatividadeem rela-
çãoà qual o retardadoserásituado.De sorteque todosesses
fenômenosda debilidademental - a idiotia propriamente
dita ou o retardo- vão se encontrarsituadosem relaçãoa
duasinstânciasnormativas:o adulto como estágiotenni-
nal, as criançascomo definidorasda média de velocidade
de desenvolvimento.
Enfim - e é esseo último ponto importantenessaela-
boração-, a idiotia e, com maior razão,o retardomentalnão
podemmais serdefinidoscomodoenças.Em Esquirol, ain-
da haviaum equívocorelativamenteao estatutode doença
ou não-doençaque se deviaatribuir à idiotia. Afinal, em Es-
AULA DE 16 DE JANEIRO DE 1974 265

quirol a idiotia era a ausênciade algumacoisae, nessame-


dida,podiasercaracterizada comodoença.Em Seguin,o idio-
ta, o retardadomentalnãosãodoentes,nãosepodedizer que
lhe faltem estágios;elesnãochegarama certoestágio,ou che-
garamdevagardemais.O idiota ou o retardadode Seguiné
alguémque, afinal de contas,não saiu da normalidade,ou
antes,ele se situa num grau menordentro de algo que é a
própria norma,isto é, o desenvolvimentoda criança.O idiota
é um tipo de criança,nãoé um doente;é alguémqueestámais
ou menosimerso no ipterior de uma infância que é a pró-
pria infância normal.E um certo grau de infância ou, se as-
sim podemosdizer, a infância é uma certamaneirade atra-
vessarmais ou menosrapidamenteos grausda idiotia, da
debilidadeou do retardomental.Assim, vocêsestãovendo
que a idiotia ou o retardomentalnãopodemserconsiderados
exatamentecomodesviosdoentios,mesmoque,afinal de con-
tas,fossede fato uma doença,ou algo comoumaenfermida-
de, uma lesãoorgânica,que os provocou.Sãovariedades
temporais,variedadesde estágiono interior do desenvol-
vimento normativoda criança.O idiota pertenceà infância,
assimcomo outrorapertenciaà doença.
Daí certo númerode conseqüências, sendoa principal
evidentementeesta: se é verdadeque o idiota ou o r tar-
dado é alguémque estáimerso até certo grau, não no in-
terior do campoda doença,mas no interior da tempora-
lidade da infância, entãoos cuidadosa lhe dísp nsarn-o
vão se diferenciar em naturezados cuidadosqu d Ví m
ser dadosa qualquercriança,ou seja, a única man ira d
curar um idiota, um retardado,é simpl sment Ih impor
a própriaeducação,claro que e entualmentecom certo nú-
mero de variações,de espedficaçõs d m ' todo, m nãoh '
nadaa fazer além de lh s impor o próprio esquma du -
cional.A terapêuticada idiotia s rá a própriap dagogi , uma
pedagogiamais radical, que irá buscar mai long , qu Ií ~
montarámaisarcaicamentenis o tudo, masafinal umap
dagogia.
266 O PODERPSIQUIÁTRICO

Enfim, sextoe último ponto sobreo qual eu queriain-


sistir aqui, é que,paraSeguin,essasparadas,esseretardoou
essalentidão no processode desenvolvimentonão são da
ordemda doença28• Mas é evidenteque sancionampor cer-
to númerode fenômenosque não aparecem,por certo nú-
mero de organizaçõesque não se vê emergir,aquisiçõesde
que a criançanão é capaz.É essaa vertentenegativado re-
tardo mental.Mas há tambémfenômenos positivos que não
sãonadamais que o evidenciamento,a emergência,a não-
integraçãode certo númerode elementosque o desenvol-
vimentonormaldeveriacoroar,ou repelir, ou integrar,e esse
algo que se manifestaassimpelo fato da paradaou da ex-
trema lentidão dodesenvolvimentoé o que Seguinchama
de /jinstinto". O instinto é aquilo da infânciaque, dadodesde
o início, vai aparecercomo não integrado,em estadoselva-
gem, no interior da idiotia ou do retardomental."A idiotia,
diz Seguin,é uma enfermidadedo sistemanervosoquetem
por efeitoradicalsubtrairo todo ou partedosórgãose dasfa-
culdadesda criançaà açãoregularda suavontade,que a en-
tregaaosseusinstintose a retira do mundo moral."29
De modoque,no cômputogeral,vocêspodemver, atra-
vés dessaanáliseda debilidademental, apareceralgo que
vai ser a especificação,no interior da infância, de certo nú-
merode organizações, de estadosou de comportamentos que
não sãopropriamentedoentios,masque sãodesviantesem
relaçãoa duasnormatividades:a das outrascriançase a do
adulto.Vemossurgir aí algo que é exatamentea anomalia:a
criançaidiota ou a criançaretardadanãoé uma criançadoen-
te, é uma criançaanormal.
E, emsegundolugar, fora da defasagem,dosdesviosem
relaçãoà norma, quais são os fenômenosposiJivos dessa
anomalia,ou o que é que essaanomalialibera?E o instinto.
Ou seja,não sãosintomas,sãoessasespéciesde elementos
ao mesmotemponaturaise anárquicos.Em suma,o que os
sintomassão em relaçãoà doença,os instintos são em re-
lação à anomalia. A anomalia,na verdade,tem menossin-
AUIA DE 16 DE JANEIRO DE 1974 267

tomas que instin~os, que são de certo modo seu elemento


natural*. O instinto como conteúdoefetivo da anomaliaé,
creio, o que vemosesboçar-senessaanáliseque Seguinfaz
do retardoe da idiotia. Eis o que,no simplesnível dos discur-
sose da teoria, podemosdizer sobreo estabelecimento des-
sa categoriaprofundamentenova da anomaliacomo distinta
da doença.E creio que é precisamenteo confiscodessanova
categoriada anomaliapelamedicina,é apsiquiatrizaçãodes-
ta que é o princípio de difusão do poderpsiquiátrico.
De fato, na mesmaépocaem que estavase constituin-
do o domínio teórico que percorri rapidamente , na mesma
épocaem que isso acontecia,não em segundoplano, não
como conseqüência,mas ao mesmotempo, e, para dizer a
verdade,como condiçãode possibilidadeefetiva dessaela-
boração,vocêstinham um outro processoque é aparente-
mentecontraditório.Pois que,sevocêsforem de Pinel ou de
Dubuissona Seguin,passandopor Esquirol,verão a série
de procedimentospelos quais se especificoua idiotia em
relaçãoà loucura, se desconectouidiotia e doençamental:
teoricamente,no nível do seu estatutomédico, a idiotia já
não é uma doença.Ora, ao mesmotempo,vocêstinham um
processoinverso que não é de ordemteórica,masque é da
ordemda institucionalização,e que era a colocaçãoda idio-
tia no interior do espaçopsiquiátrico, uma colonizaçãoda
idiotia por este.Tal fenômenoé muíto curioso.
De fato, se vocêsretomama situaçãono fim do éculo
XVIII, à épocacontemporânea de Pinel,nessemom nto ain-
da encontramno refugo dascasasde internaçãope s a qu
sãoclassificadasna categoria"imbecis".Essasp oas ~o, em
suamaioria,adultos,dos quaispodemossuporque p lo m
nos umaparteseriachamadamaistardede "demente"; vo-
cêstambémencontramaí criançasde uns 10 anos30• Ora,

"' O manuscrito diz: "EnqQanto a doençase caracteriza por into-


mas, semanifesta por disfunçõesou d ficits, a anomalia tem o instinto
menospor sintoma do que por natureza."
268 O PODERPSIQUIÁTRICO

quando se começouefetivamentea colocar a questãoda


imbecilidade, e a colocá-la em termos médicos,o primeiro
cuidadofoi precisamentepôr ascriançasà parte,deportá-las
em relaçãoa essaespéciede espaçode internaçãoconfuso
e anexá-las, essencialmente, às instituiçõesde surdos-mu-
dos, isto é, instituiçõespropriamentepedagógicasem que
se devia paliar certo númerode defeitos,insuficiências,en-
fermidades,de modo que o primeiro manejoprático do tra-
tamentodosidiotasvocêsvãover nascasasde surdos-mudos
do fim do séculoXVIll, precisamentena de Itard, onde aliás
Seguinteve suaformaçãoinicial31•
Depois,poucoa pouco,a partir daí,vocêsvão vê-lasse-
rem trazidasde volta ao interior do espaçoasilar. Em 1834,
Voisin, quefoi um dos psiquiatrasimportantesda época,abre
um instituto de "ortofrenia" em Issy.'Iratava-seprecisamente
de ser um lugar de tratamentoparaas criançaspobresque
sofriam de deficiênciamental; mas ainda era um instituto
de certo modointermediárioentrea pedagogiaespecializada
gossurdos-mudose o lugar psiquiátricopropriamentedito32•
E nos anosque vão se.seguirimediatamente,isto é, no pe-
ríodo de 1835-1845,na mesmaépocaem que Seguin defi-
ne a idiotia como não sendoumadoençamental,quevocês
vêemse abrir, no interior dos grandesasilosque acabamde
serorganizadosou reorganizados, as alasparaos débeis,para
os idiotas, àsvezestambémparaos histéricose os epilépti-
cos,todoselescrianças.Assim, J.-P.Falret organizaessa ala
na Salpêtrierenosanos1831-184133; Ferrusinauguraem 1833
umaala paraascriançasidiotasem Bicêtre34, e éem1842que
Seguinse toma responsávelpor essa ala 35

Durantetodaa segundametadedo séculoXIX, vocêsvão


encontraras criançasidiotas efetivamentecolonizadasno
interior do espaçopsiquiátrico.E, seé verdadeque em 1873
abre-separaelasem Perray-Vaucluseum estabelecimento 36,

nãoé menosverdadeque em Bicêtre,no fim do séculoXIX3 7,


na Salpêtriere38, emVillejuif 39, vocêsvão ter alaspsiquiátricas
paraessascriançasdébeis.Aliás, não somenteessacoloni-
zaçãose efetua,de fato, pela aberturadessasalas no inte-
AlllA DE 16 DE JANEIRO DE 1974 269

rior do espaçopsiquiátrico,masuma decisãodo ministro do


Interior de 1840 diz explicitamenteque a lei de 1838 sobreo
internamento dos alienadosé igualmenteválida para os
idiotas.Trata-sede uma simplesdecisãoministerial que se
baseiano princípio de que os idiotas sãooutra categoriade
alienados40•
De modo que, no momentoem que teoricamentevo-
cês têm essadivisão tão nítida entre alienaçãoe idiotia, têm
toda uma sériede instituiçõese demedidasadministrativas
que assimilamo que estavase distinguindo.A que, efetiva-
mente, respondeessaanexaçãoinstitucional, contemporâ-
neada distinçãoteórica?
Poder-se-iacrer que essadistinçãoteóricaé simplesmen-
te o efeito da organização , nessaépoca,do ensinoprimário:
a lei de Guizot é de 183341 • Poder-se-iapensarque o retar-
do mental,a debilidademental,filtrados assimpor essaedu-
caçãoprimáriaque estáse elaborandoem todaparte,osidio-
tas assimidentificados,tomando-se um problemano interior
dessesestabelecimentos escolares,vão ser progressivamente
repelidosparaos asilos.Isso de fato é verdade,masnãopara
a épocaem que me situo. Com efeito, é no fim do séculoXIX
que o ensinoprimário generalizadovai servir de filtro, e as
grandespesquisasque ocorrerãono fim do séculoXIX sobre
a debilidadementalse desenrolarãono meio escolar,isto é,
é efetivamenteàsescolas que sepedirãoos elementosda pes-
quisa41. É com os professoresque essaspesquisasserãofei -
tas; é sobre a naturezae as possibilidadesda escolarização
que as questõesvão sereferir. QuandoRey, por exemplo,fizer
no departamentode Bouches-du- Rhône,nos anosde 1892-
1893,umapesquisasobrea debilidademental,ele se dirigi-
rá aos professorese perguntará,para identificar os idiotas,
os imbecis, os débeis,quais são as criançasque não acom-
panhamdevidamentea escola,quaissãoasquese fazemno-
tar por suaturbulênciae, enfim, quaisasquenãopodemmais
nem sequerfreqüentara escola43• É a partir daí que se esta-
beleceráa grandecolchade retalhos. O ensinoprimário serve,
270 O PODER PSJQWÁTRICO

portanto, na realidade,de filtro e de referênciaa essesfenô-


menosde retardomental.
Mas, na épocaem que me situo, isto é, nos anos1830-
1840, não é isso que conta.Em outraspalavras,não é para
escolarizaras criançàsou porquenão se consegueescolari-
zá-lasque se coloca o problemade saberonde pô-las. Co-
loca-seo problemade saberondepô-las,não em função da
sua escolarização,da sua capacidadede se deixar escolari-
zar; coloca-sea questãode saberondepô-lasem.funçãodo
trabalhodos pais,isto é, como fazerparaque a criançaidio-
ta, com os cuidadosque requer,não sejaum obstáculourna
vez que os pais trabalham?Isso, aliás, correspondeexata-
menteà preocupaçãodo governono momentodo estabe-
lecimentoda lei sobreo ensinoprimário.Vocêssabemque,
se foram criadasas "salasde asilo", isto é, as crechese jar-
dins-de-infância,por volta dos anos1830, e se se promo-
veu a escolarizaçãodas criançasnessaépoca.,não foi tanto
paratorná-lasaptasa um trabalhofuturo, quantoparator-
naros paislivres paratrabalhar,não precisandomais cuidar
dosfilhos44• Era paratirar~lheso encargode cuidardascrian-
çase colocá-losno mercadode trabalho,[era a isso] que cor-
respondiaa organizaçãodessesestabelecimentos de ensino
nessaépoca.
Foi exatamentea mesmapreocupaçãoque animou as
pessoasque criaramos estabelecimentos especializadospara
idiotasnesseperíodo.Lembro-lhesqueVoisin nãohaviaaber-
to seuinstituto de II ortofrenia''na Rue de Sevresparaos ricos,
os quepodiampagar,masparaos pobres.Aqui vou citar para
vocêsum texto de Fernald,que é um pouco posterior.,mas
que reflete exatamenteessapreocupaçãoe que diz: "En~
quantoem casao cuidado de uma criançaidiota consome
o tempoe aenergiade urnapessoa,a proporçãodaspessoas
empregadas nos asilosé de umaparacinco criançasidiotas.
Cuidar em casade um idiota, aindamais quandoinválido,
consomeos saláriose a capacidadedaspessoasda casa,de
modo que uma família inteira cai na miséria.A humanida-
AULA DE 16 DE JANEIRO DE 1974 271

de e urna boa política requeremque as famílias sejamali-


viadasdo encargodessesinfelizes."45
Foi assim,e a partir dessapreocupação,que se decidiu
aplicarigualmentea lei do internamentoe da assistênciaaos
internadosàs criançasidiotas e pobres. A assimilaçãoins-
titucional "idiota e louco" se faz precisamentea partir dessa
preocupaçãoem liberar os pais paraum trabalhopossível.
Chega-sepor fim a estaconclusão,que é ade Parchappeem
seusPrincípios a seremseguidosna fundaçãoe na construção
dos asilos de alienados,em 1853: "A alienaçãomental com-
preendenão apenastodasasformase todosos grausda lou-
cura propriamentedita [...], mas tambéma idiotia, que de-
corre de um vício congênito,e aimbecilidadequefoi produ-
zida por uma doençaposteriorao nascimento.Os asilosde
alienadosdevemser fundadosportantopararecebertodos
os alienados,isto é, os loucos,os idiotas e os imbecis.'-'46
E agora,algunsanosdepoisda distinçãonítida entrelou-
curae idiotia, vocêsvêema noçãode alienaçãomentalrecuar
de certo modo um grau e tornar-sea categoriageralquevai
abrangertodasas formas de loucurae tambéma idiotia e a
imbecilidade.A "alienaçãomental" vai se tomar o conceito
prático a partir do qual serápossívelrecobrir a necessidade
de internar,com os mesmosmecanismose nos mesmoslu-
garesde assistência,os doentesmentaise os débeis.A anu-
laçãopráticada distinçãoentreidiotia e doençamentaltem
por sançãoa muito curiosae muito abstratanoçãode " alie-
naçãomental" como coberturageral do conjunto.
Ora, urnavez queforam assimpostosno interior do es-
paço asilar, o poder que se exercesobreas criançasidiotas
é exatamenteo poderpsiquiátricoem estadopuro e queassim
vai ficar praticamentesemnenhumaelaboração . Enquanto
no asilo paraloucosvai se dar toda uma sériede processos
quevão elaborarde forma considerávelessepoderpsiquiá-
trico, esteao contráriovai se pôr a funcionar,se ligar ao in-
ternamentodos idiotas,e vai se manteranosa fio. Em todo
caso,sevocêsobservarema maneiracomo Seguin- que,em
272 O PODERPSIQUIATRICO

seuTratamentomoral dos idiotas, definiu tão claramenteuma


diferençaentre a doençamental e a idiotia - [tratava, de
fato, em Bicêtre, os idiotas]*, os débeismentais,verão que
ele aplicavaexatamente,masde certo modo com um efei-
to de aumento,de depuração,os mesmosesquemasdo po-
der psiquiátrico.E encontramosexatamente,no interior des-
sa prática que foi absolutamentecanônicapara definir os
métodosde educaçãodosidiotas,os mecanismosdo poder
psiquiátrico.A educaçãodosidiotas e dos anormaisé o po-
der psiquiátricoem estadopuro.
De fato, que fazia Seguinem 1842-1843,quandoesta-
va em Bicêtre? Primeiro, concebiaa educaçãodos idiotas,
que ele chamavapor sinal de "tratamentomoral", utilizan-
do o mesmotermo de Leuret.ao qual ele se refere,primei-
ro como o afrontamentode duasvontades:"A luta dasduas
vontadespodeserlongaou curta,terminarem benefíciodo
mestreou em benefíciodo aluno."47 Lembrem-seda ma-
neira como, no "tratamentomoral" psiquiátrico, o afronta-
mentoentreo doentee o médicoera,de fato, o afrontamento
de duasvontadesque lutavampelo poder.Vocêsencontram
exatamentea mesmaformulaçãoe amesmapráticaem Se-
guin; simplesmente,podemos nosperguntarcomo Seguin
podefalar de afrontamentode duasvontadesquandosetra-
ta de ~ adulto e de uma criançaque é retardadamental,
idiota. E, sim, de duasvontades,de um afrontamentoentre
o mestree oidiota quese devefalar, diz Seguin,pois o idio-
ta parecenãoter vontade,masa verdadeé queele tem a von-
tadede não ter vontade,e éprecisamenteisso que caracte-
riza~instinto. O que é o "instinto"?
E certa forma anárquicade vontade que consisteem
nuncaquererse dobrarà vontadedos outros;é umavontade
que se recusaa se organizarcom baseno modo da vonta-
de monárquicado indivíduo,querecusapor conseguintequal-

* Gravação: "e se vocêsobservarem como ele, de fato, em Bicêtre,


tratava".
AULA DE 16 DE JANEIRO DE 1974 273

quer ordem e qualquerintegraçãoao interior de um siste-


ma. O instinto é umavontadeque "quer não querer"48 e que
se obstinaa não se constituir como vontadeadulta- carac-
terizando-sea vontadeadulta,paraSeguin,comoumavon-
tadecapazde obedecer.O instinto é uma sérieindefinida de
pequenasrecusasque se opõema todavontadealheia.
Voltamo$ a encontraraqui maisumaoposiçãoà loucura.
O idiota é alguémque diz obstinadamente "não"; o louco
é aqueleque diz um "sim", um "sim" presunçosoa todasas
suasidéiasloucas,e aexasperação da vontadedo louco con-
siste precisamenteem dizer "sim" mesmoàs coisasfalsas.
O idiota, paraSeguin,é aqueleque diz 1'não" a tudo, de ma-
neira anárquicae obstinada; por conseguinte,o papel do
mestre é em tudo semelhanteao do psiquiatraem face
do louco: o psiquiatradevedominaresse"sim" e transformá-
lo em " não", o papel do mestrediante do idiota consisteem
11
dominar esse"não" e fazer dele um sim" de aceitação*.
Ao "enérgiconão, não, não, repetidosem parar, de braços
cruzadosou pendentes,ou mordendoo punho" do idiota49,
há que opor um "poder que o cansee lhe diga incessante -
mente:ande! ande!Cabe ao mestredizer-lhebem alto, bem
firme, desdeo começo e durantebastantetempo,para que
ele possaandar-e subir até o degrauem que se é hornem" 50•
Afrontamento, portanto, que é do mesmotipo que en-
contramos no poder psiquiátricoe que se dá naforma de cer-
to sobrepoder, constituído de urna vez por todas1 corno no
poder psiquiátrico, do lado do mestre.E é em relaçãoao cor-
po do mestre, corno ao corpo do psiquiatra, que deve ser
feita a educaçãoespecial.Essaonipotênciado mestreem seu
corpo visível é ressaltadae praticadapor Seguin.
Em primeiro lugar, interceptaçãode todo poderda fa-
mília; o mestretoma-semestreabsolutoda criança: "Enquan-
to a criança estiver confiadaao Mestre", diz Seguin numa

• O manuscritoacrescenta:ªA educaçãoespecialé o afrontamento


desse'não' ."
274 O PODERPSIQUIÁTRICO

11
fórmula que não deixa de ter a suasolenidade, os pais têm
o direito à dor, o Mestre tem o direito à autoridade.Mestre
da aplicaçãodo seu 1nétodo,Mestre da criança,Mestre da
família em suasrelações coma criança,Magi.ster, ele é Mes-
tre trêsvezesou não é nada",diz Seguin,que não devesa-
ber latim muito bem51 • Ele é mestreno nível do seu corpo;
deve ter, corno o psiquiatra,um físico impecável."O porte
e os gestospesados,comuns,os olhos distantesum do ou-
tro, mal torneados,embaçados, o olhar semvivacidade,sem
expressão;ou ainda, a boca massuda,os lábios espessose
moles, a pronúnciaviciada, arrastada,a voz gutural, nasal
ou mal acentuada",tudo isso estáabsolutamenteproscrito
paraalguémque querserMestredo idiota52• Ele deve apre-
sentar-sefisicamenteimpecáveldiante do idiota, como um
11
personagemao mesmotempopoderosoe desconhecido: O
Mestredeveráter um portefranco, uma palavrae um gesto
nítidos, uma maneira resolutaque o faça ser notado,ouvi-
do, olhado,reconhecido"imediatamentepelo idiota53•
E é ligado a essecorpo ao mesmotempo impecávele
onipotenteque o idiota devefazer suaeducação.Essaliga~
ção é uma ligaçãofísica, e o corpo do mestreé precisamen-
te aquilo por que deve passara própria realidadedo con-
teúdopedagógico.Seguinfaz a teoria e apráticadessecor-
po-a-corpoentrea criançaidiota e a onipotênciado mestre.
Ele conta,por exemplo,como conseguiudomaruma criança
turbulenta:,,.AH. erade umapetulânciaindomável;trepan-
do comoum gato,escapulindocomoum camundongo,nem
se podia cogitar de mantê-loimóvel por três segundos.Eu
o botei numacadeira,sentei-meem frente dele, segurando
seuspése seusjoelhosentreos meus;umadasminhasmãos
prendiaas duasdele sobreos seusjoelhos,enquantoa ou-
tra trazia incessantemente dentro de mim seurosto móvel.
Ficamosassimcinco semanas,fora dashorasde comere de
dormir." 54 Captaçãofísica total, por conseguinte,quevale para
essasujeiçãoe essedomínio do corpó.
Mesmacoisano casodo olhar. Como ensinarum idio-
ta a olhar?Primeiro,em todo caso,ensina-sea ele a olhar as
AULA DE 16 DE JANEIRO DE 1974 275

coisas; ensina-sea olhar o mestre.Seu acessoà realidade


do mundo,a atençãoquevai poderdirigir às diferentescoisas
começarãopela percepçãodo mestre.Quandoo olhar da
criançaidiota foge ou se perde,"você se aproxima,a crian-
ça se debate; seu olhar procurao dela, ela evita seu olhar;
você continua,ela tornaa escapar;você achaque conseguiu
pegá-la,ela fechaos olhos;você estáali, atento,prontopara
surpreendê-la,esperandoque ela abra novamente aspálpe-
brasparapenetrá-lascom seu olhar; e se,comopreçode tan-
to esforço,no dia eJffi que a criançao vê pela primeira vez,
ela o repele, ou se,parafazer que esqueçamo estadoprimi-
tivo dela,a família desnaturaaosolhos do mundoos cuida-
dos incessan tes que você lhe dedicou,entãovocê recomeça
a despenderdessaforma ansiosasua existência,não mais
por amor a este ou aquele, maspelo triunfo da doutrinade
que somentevocêpossuio segredoe acoragem.Foi assimque
perseguino vazio por quatro meseso olhar inapreensível
de uma criança.Da primeira vez que seuolhar encontrouo
meu, escapousoltandoum grito..." 55• Encontramosnovamen-
te aí estacaracterísticatão marcantedo poderpsiquiátrico,
que é a organizaçãode todo o poderem torno e apartir do
corpo do psiquiatra.
Em terceirolugar, vocêsencontramoutravez nessetra-
tamento moral das crianças idiotasa organizaçãode um espa-
ço disciplinar comoo do asilo. Por exemplo,aprendizagemda
distribuição lin ear dos corpos, dos lugaresindividuais, dos
exercíciosde ginástica - o empregocompleto do tempo.
Como dirá mais tardeBourneville, "ás criançasdevemper-
manecerocupadasdesdeque selevantamatéirem sedeitar.
Suasocupaçõesdevemser variadaso tempo todo [...] As-
sim que acordam,lavar-se,vestir-se,escovaras roupas, en-
graxar os sapatos,fazer a camae, daí em diante,mantera
atençãoo tempotodo desperta(escola,oficina, ginástica,can-
to, recreações, passeios,jogos,etc.) [...] atésedeitarem, quan-
do sedeveensinarascriançasa arrumarcomordem,nacadei-
ra, suasroupas"56 • Empregocompletodo tempo, trabalho.
27 O PODERPSIQUIÁTRICO

Em Bicêtre,em 1893,havia aproximadamente duzentas


criança, partedasquaistrabalhavadasoito às onzeda ma-
nhã, as outrasdas treze às dezessetehoras,como vassou-
reir , apateiros,cesteiros , etc.57• As coisasaté funcionavam
muito bem,já que,apesarde sevendero produtodo traba-
lho delesa um preço bastantebaixo, o do depósitocentral
e não o do mercado,conseguia-seobter "um lucro de sete
1
mil francos 58• Uma vez pagoso tratamentodós mestres,as
'

despesas de custeio,umavez reembolsados os empréstimos


feitos paraa construçãodasinstalações,restamsetemil fran-
cos, que Boumeville pensadarão aos idiotas a consciência
59
de que sãoúteis à sociedade •

Enfim, último ponto, com o qual tambémvoltamos a


encontrartodos os mecanismosasilares,é que o poderso-
bre os idiotas, do mesmomodo que o poderpsiquiátrico,é
tautológico,no sentidoque eu tentavalhes explicar.Ou seja:
o que deve trazer,veicular para o interior do asilo de idio-
tas essepoder psiquiátrico que é inteiramentecanalizado
pelo corpo do mestre?Não devetrazernadamais que o ex-
terior, isto é, afinal de contas,a própriaescola, essaescolaa
que as crianças nãopuderamse adaptare em relaçãoà qual,
precisamente,elas puderamser designadascomo idiotas.
Ou seja,o poderpsiquiátricoque funcionaaqui faz o poder
escolarfuncionar como uma espéciede realidadeabsoluta
em relaçãoà qual vai se definir o idiota como idiota e, de-
pois de ter feito funcionarassimo poderescolarcomo rea-
lidade,vai dar a ele essesuplementode poderque vai per-
mitir que a realidadeescolarfuncione como regrade trata-
mento geral dos idiotas no interior do asilo. E o que faz o
tratamentopsiquiátricodos idiotas,senãoprecisamentere-
petir sobumaforma multiplicadae disciplinaro próprio con-
teúdo da educação?
Vejam o que era, por exemplo,o programade Perray-
Vaucluseno fim do séculoXIX. Em 1895, havia quatro se-
çõesna divisão dos idiotas. Quartaseção,que era a última
e mais baixa: ensinava-sesimplesmentepelos olhos, com
objetosde madeira;era,diz Boumeville,exatamenteo nível
AULA DE 16 DE JANEIROD'E 1974
277

dascl_assesinfa~~s. Terceiraseção,um poucoacima: Hlições


de coISas,exerc1c1osde leitura, de recitação,de cálculo e de
escrita"; é o nível das classespreparatórias.Segundaseção:
ensina_-segr~áti~a,história e um cálculo um pouco mais
con:phcado;e o ruvel do curso médico. Quantoà primeira
seçao,nela se preparavaparao certificadode estudos60•
Vocês estãovendo a tautologia do poder psiquiátrico
em relaçãoà escolaridade.Por um lado, o poderescolarfun-
ciona como realidadeem relaçãoao poderpsiquiátrico,que
a coloca como sendoaquilo em relaçãoao que ele poderá
identificar, especificaros que são retardadosmentais;e, por
outro lado, ele a faz funcionar no interior do asilo, dotada
de um suplementode poder.

*
Temosportantodois processos:especificaçãoteóricada
idiotia e anexaçãopráticapelo poderpsiquiátrico.Comoes-
sesdois processos , que vão em sentidosopostos,puderam
dar lugar a uma medicalização*?
Houve,creio, parao acoplamentodessesprocessosque
ia~ em sentidosopostos,uma razão econômicasimples,
que está, em sua humildade mesma,e certamentemuito
mais que a própriapsiquiatrizaçãoda debilidademental,na
origem da generalizaçãodo poder psiquiátrico. De fato, a
célebrelei de 1838 que definia as modalidadesdo interna-
mentoe ascondiçõesde assistênciaaosinternospobres,essa
lei eraparaseraplicadaaosidiotas.Ora,nostermosdes~alei,
alguémque fosseinternadotinha o preçoda suapensaono
asilo pagopelo departamentoou pela coletividade_local ~e
que era originário; ou seja,a coletividadelocal erafinance1-
ramenteresponsávelpelos que eram intemados6t . O que
fez que durantetantosanossehesitasse,e o quefez que1;1e~-
mo apósa decisãode 1840sehesitassea internaros debe1s

* O manuscritoprecisa:"psiquiátrica".
O PODERPSIQUIÁTRICO

n\ ntai n s asilos foi precisan1enteo fato de que as obri-


financeirasdas coletividadeslocais se viam agra-
ada om issob2• Temos textos perfeitamenteclaros a esse
resp~ito. Paraqu um eonselhogeral, um departamento, uma
p fi itura aceitassem. e sustentassem o internamentode um
idi ta, o médico tinha de assegurarà respectivaautoridade
que não s ' o idiota era idiota, que não só ele não era capaz
p er às suas própriasnecessidades - não bastavanem
m mo dizer que sua família não podia prover às suasne-
e sidades-, era preciso, e eraexclusivamentecom essacon-
di ão que as coletividadesou as autoridadeslocais aceitavam
a isti-lo, era precisodizer além disso que ele era perigoso,
isto é, que era capazde cometerincêndios,homicídios,estu-
pros, etc. E isso os médicosdos anos1840-1860diziam cla-
ramente.Eles diziam: somosobrigadosa elaborarrelatórios
falsos, a carregarnas tintas, a apresentaro idiota ou o débil
corno perigosoparaconseguir[que ele sejaassistido]*.
Em outraspalavras,a noçãode perigo se tomaa noção
necessáriaparaconverterum fato de assistêncianum fenô-
meno de proteçãoe parapermitir que, nessemomento,os
que sãoencarregados da assistênciao aceitem.O perigo é o
elementoterceiro que vai permitir que se deslancheo pro-
cedimentode internaçãoe de assistência,e os médicosdão
de fato certificadosnessesentido.Ora, o curiosoé que,a par-
tir dessaespéciede pequenasituaçãoque levantasimples-
mente o problemado custo da anomalia,que aliás sempre
encontramos na história da psiquiatria, esseproblemado
custo da anomaliavai ter umaincidênciaformidável, porque,
a partir dessasqueixasdos médicosque, em 1840-1850,re-
clamamde que são obrigadosa acusaros idiotas de serem
perigosos,vocêsvêem se desenvolverpouco a pouco toda
umaliteraturamédicaque vai se levar cadavez mais a sério,
que vai, digamosassim,estigmatizaro débil mental e fazer
dele efetivamentealguémperigoso63 • O que faz com que cin-

* Gravação: "sua assistência".


AULA DE 16 DE JANEIRO DE 1974 279

qüentaanosdepois,em 1894, quandoBourneville escreverá


~e~ relatório Assistência,_tratamentoe educaçãodas crianças
zdwtase degeneradas,as cnançasidiotas tenhamefetivamen-
te se tomadoperigosas 64
• E cita-seregularmente certo nú-
mero de casos queprovamque os idiotassãoperigosos:são
perigososporquese masturbamem público, porquecome-
tem delitossexuais,sãoincendiários.E umapessoasériacorno
Boumeville contaem 1895* estahistóriaparaprovarque os
idiotas são perigosos:trata-se de alguémque, no departa-
mento do Eure, violentou urna jovem que era idiota e se
prostituía; de tal modo que a idiota dá prova do perigo re-
presenta d o pelosidiotas II no momentomesmoem que ela
foi vítima"65. Poderíamosencontrartoda urna série de for-
mulaçõesdessegênero,eu as resumo.Em 1895* Bournevil-
le diz: "A antropologiacriminal demonstrouque umagran-
de proporçãodos criminosos, dos bêbadosinveteradose das
prostitutas é, naverdade,de imbecisde nascimentoquenun-
ca ninguémprocuroumelhorarou disciplinar." 66
E, assim,vocêsvêem se reconstituir a amplacategoria
de todosos que podemrepresentarum perigoparaa socie-
dade,aliás aquelesqueVoisin, em1830,já começavaa que-
rer confinarquandodizia quetambémeraprecisocuidardas
criançasque "se fazem[...] notarpor um caráterdifícil, urna
dissimulaçãoprofunda,um amor- próprio desordenado , um
orgulhoincomensurável , paixõesardentese inclinaçõester-
ríveis"67. Sãotodos essesque se começaa internarpor essa
estigmatizaçãodo idiota, estigmatizaçãonecessáriaparaque
a assistênciapossaagir. Assim se demarcaessa~andere~-
lidade da criançaao mesmotempo anormale pengosaCUJO
pandemônioBourneville, em seu!exto de 1_8~5,reconstitui-
rá, dizendoque, afinal de contas,e com os 1d10tasque esta-
vam sehavendoe, atravésdeles,ao lado delese absolutarnen
te ligadaà idiotia, com todaumasériede perversõesquesao
- -

perversõesdos instintos.E aí vocêsestãovendocorno essa

* 1894; 1895é a data de publicação.


O PODERPSIQUIÁTRICO

noçãode instinto servede vínculo da teoria de Seguincom


a práticapsiquiátrica.As criançasque é precisoconfinarsão
"criançasmais ou menosdébeisdo ponto de vista intelec-
tual, mas que sofrem de perversõesdos instintos: ladrões,
mentirosos,onanistas,pederastasJ incendiários,destruido-
res" homicidas, envenenadores, etc."68•
É todaessafamília assimreconstituídaem tomo do idio-
ta que constituiexatamentea infância anormal.A categoria
de anomaliaé uma categoriaque, na ordem da psiquiatria
- deixo inteiramentede lado por enquantoos problemasde
fisiologia, de anatomopatologia -, não afetou de forma al-
gumano séculoXIX o adulto,afetoua criança.Em outraspa-
lavras, creio que seria possívelresumir as coisasdizendoo
seguinte:no séculoXIX, o homemé que eralouco, e não se
concebeuantesdos últimos anosdo séculoXIX a possibili-
dadereal de uma criançalouca; aliás,é unicamentepor pro-
jeçãoretrospectivado adultolouco sobrea criançaquefinal-
menteacreditou-sedescobriralgo, que eraa criançalouca: as
primeirascriançasloucasde Charcot,e poucodepoisas crian-
çasloucasdeFreud.Mas, fundamentalmente, no séculoXIX,
o adulto é que é louco. Em compensação, o que é anormal
é a criança.A criançafoi portadorade anomalias,e em tomo
do idiota, dos problemaspráticossuscitadospelaexclusãodo
idiota, constituiu-setoda essafamília que, do mentirosoao
envenenador,do pederastaao homicida,do onanistaao in-
cendiário- todo essecampogeral que é o da anomalia,no
cernedo qual figuram a criançaretardada,a criançadébil, a
criançaidiota. Como vocêsestãovendo,é atravésdos pro-
blemaspráticossuscitadospelacriançaidiota que a psiquia-
tria estáse tomandoalgo que já não é o poderque contro-
la, que corrige a loucura,ela estáse tomandoalgo infinita-
mente mais geral e mais perigoso,que é o poder sobreo
anormal,poderde definir o que é anormal,de controlá:.lo,
de corrigi-lo.
E essadupla função da psiquiatriacomo podersobrea
loucurae podersobrea anomaliacorrespondeà defasagem
AULA DE 16 DE JANEIRO DE 1974 281

que existe entre as práticasreferentesà criançalouca e as


práticasreferentesà criançaanormal.A disjunçãoentrecrian-
ça louca e criançaanormalme pareceserum dos traçosab-
solutamentefundamentaisdo exercíciodo poderpsiquiátrico
no séculoXIX. E creio que podemosderivar facilmente daí
as principaisconseqüências.
Primeira conseqüência,portanto: a psiquiatriavai po-
der agorase ligar a todaa sériede regimesdisciplinaresque
existemem tomo dela, em função do princípio de que so-
menteela é ao mesmotempo a ciênciae o poderdo anor-
mal.Tudo o que é anormalem relaçãoà disciplinaescolar,mi-
litar, familiar, etc.,todosessesdesvios,todasessasanomalias,
a psiquiatriavai poderreivindicar parasi. Foi pelo caminho
dessademarcaçãoda criançaanormalquesefizeram a gene-
ralização,a difusão, a disseminaçãodo poder psiquiátrico
na nossasociedade.
Segundaconseqüência:a psiquiatria como poder so-
bre a loucurae podersobrea anomaliavai se encontrarna
espéciede obrigaçãointerna- já não se trata, destavez, das
conseqüênciasexternasda difusão, mas das conseqüên-
cias internas- de definir as relações que podemexistir en-
tre a criançaanormale o adulto louco. E é paraisso que se
elabora m essencialmente, na segunda metadedo séculoXIX,
os dois conceitosque vão possibilitar precisamentea jun-
ção: a noçãode instinto, de um lado, e a noçãode degene-
rescência,do outro.
De fato, o instinto é precisamenteo elementoao mesmo
temponaturalem suaexistência, masanormalem seufun-
cionamentoanárquico,anormalcadavez que não é domina-
do, que não é reprimido.Portantoé desseinstinto, ao mesmo
tempo naturale anormal,como elemento, como unidadeda
natureza eda anomalia,é desseinstinto que a psiquiatriavai
tentarreconstituirpoucoa poucoo destino,desdea infância
até a idadeadulta,desdea naturezaaté a anomalia, e desdea
anomaliaaté a doença69• O destinodo instinto, da criançaao
adulto- é dissoque a psiquiatriaesperaráa junçãoda crian-
ça anormalcom o homemlouco.
282 O PODERPSIQUIÁTRICO

Por outro lado, o outro grandeconceitoem face do con-


ceito de #instinto" é o de "degenerescência" - conceitoin-
feliz este,de degenerescência, ao passoque o de instinto, no
fundo, prosseguiusua carreirade validadepor muito mais
tempo. Mas a noçãode degenerescência tambémé umano-
çãomuito interessante, porqueessanoçãonão é, comotemos
o costumede dizer, a projeçãodo evolucionismobiológico
sobrea psiquiatria.O evolucionismobiológico intervirá na
psiquiatria,retomaráessanoçãoe a sobrecarregará com cer-
to númerode conotações,mas posteri.onnente• 70

A degenerescência, tal como Morel a define, intervém


antesde Darwin, antesdo evolucionismo71 • E o que é adege-
nerescência na épocade Morel, e o que continuaráa serfun-
damentalmente até seuabandono,isto é, no início do século
XX:? Seráchamadade "degenerada''a criançasobrea qual
72

pesam,a título de estigmasou de marcas,os restosda loucura


dos pais ou dos ascendentes. A degenerescência é, portan-
to, de certo modo,o efeito de anomaliaproduzidona criança
pelospais.E, ao mesmotempo,a criançadegenerada é uma
criançaanormal,cuja anomaliaé tal que podeproduzir, em
certo númerode circunstânciasdeterminadase após certo
númerode acidentes,a loucura.A degenerescência é portan-
to a predisposiçãoparaa anomaliaque,na criança,vai tor-
nar possívela loucurado adulto, e é na criançaa marcaem
forma de anomaliada loucurados seusascendentes.
Assim, vocêsestãovendo que essanoção de degene-
rescênciavai demarcara família, os ascendentes, por enquan-
to tomadosem bloco e semdefiniçãobem estrita,e acriança,
e vai fazerda família a espéciede suportecoletivo dessedu-
plo fenômenoque sãoa anomaliae aloucura.Se a anomalia
conduzà loucurae se a loucuraproduza anomalia,é porque
já estamosno interior dessesuportecoletivo que é afarru1ia.
E chegoà terceirae última conseqüência. É que nós nos
encontramosagora,estudandoo ponto de partidae o fun-
cionamentoda generalizaçãoda psiquiatria, em presença
dessasduasnoções:a degenerescência e oinstinto. Ou seja,
estamosvendoemergiralgo quevai se tomaro quepodemos
AULA DE 16 DE JANEIRODE 1974 283

chamar,de maneiramuito grosseira,admito,o campoda psi-


canálise,isto é, o destinofamiliar do instinto. O que o ins-
tinto se tomanumafamília? Qual é o sistemade trocasque
se produz entre ascendentes e descendentes, filhos e pais, e
que põe em questãoo instinto? Retomemessasduas no-
ções,façam-nasfuncionarjuntas,e ébemlá dentro,em todo
caso,que a psicanálisevai se pôr a funcionar, a falar.
De modo que o princípio de generalizaçãoda psiquia-
tria, vocêso encontramdo lado da criançae não do lado do
adulto; vocêsnão o encontramno uso generalizadoda noção
de doençamental,mas,ao contrário,na demarcaçãoprática
do campo de anomalias.E é precisamentenessagenerali-
zaçãoa partir da criançae da anomalia,e não do adulto e da
doença,que vocêsvêemse formar o que vai se tomar o ob-
jeto da psicanálise.
NOTAS

1. G. Canguilhem,Le Normal et le Pathologi.que(1943), 2~ ed.


revista,Paris,PUF (col. "Galien"), 1972, p. 175. _
2. É em 1856que C. S. Le Paulmierapresentaum estudocon-
sagradoespecificamente à criançalouca: Desaffectionsmentaleschez
les enfants,et en particulier de la manie,Th. Méd. Paris,n? 162, Paris,
impr. Rignoux, 1856. Paul Moreau de Tours (1844-1908)publica o
que podeser consideradoo primeiro tratadode psiquiatriainfan-
til: La Folie chezles enfants,Paris,J.-B. Bailliere, 1888.
3. Desdea suaviagemà Rússiaem 1881,paracuidar da filha
de um antigo prefeito de Moscoue da de um grão-duquede São
Petersburgo,Charcotrecebeuparaconsultasprivadasem suaman-
sãodo BoulevardSaint-Germainvárias crianças pertencentes aos
meios russos endinheirados,que sofriam de afecçõesnervosas.
Como relata um correspondenteparisiense:"Sua clientela russa
em Parisé considerável"(Le Temps,18 de marçode 1881,p. 3). Es-
sescasos,bem como os dascriançasdaAméricaLatina, nãoforam
objeto de publicações.Com exceçãodo casode umajovem ,;israe-
lita russa"de 13 anosmencíonadonumaaula: "De l'hystériechez
les jeunesgarçons",Progresmédícal,t. X, n? 50, 16-23 de dezembro
de 1882,pp. 985-7, e n? 51, 24-31 de dezembrode 1882,pp. 1003-4;
e os da srta.A, de 15 anos,e de S., 17 anos,origináriosde Moscou,
mencionadosnas Leçonssur les maladiesdu systemenerveux,op. cít.,
t. ill, aulaVI, pp. 92-6.Ver A Lubimov, Le ProfesseurCharcot, trad. fr.
L. A Rostopchine,SãoPetersburgo,Souvorina,1894.
AULA DE 16 DE JANEIRO DE 1974 285

4. Assim Esquirol,ao mesmotempoque tratavada idiotia re-


la~v~ente _à_s doença~mentais,tomadistânciade qualquerassi-
milaçaodo idiota ao alienado,sustentandoque "a idiotia nãopode
ser confundidacom a demênciae com as outrasalienaçõesmen-
tais, às quais por sinal pertencepela lesãodasfaculdadesintelec-
1
tuaise morais' (verbete''Idiotisme", in Didionnaire dessciencesmé-
dicales,t. XXIII, faris, C. L. F. Panckouçke,1818,p. 509). Do mesmo
modo, JacquesEtienneBelhomme(1800-1880),agregadoda seção
dos idiotasno serviçode Esquirolna Salpêtriere , sustentaque essa
IJ

afecçãopertenceexclusivamenteà infânciae quetodadoençamen-


tal que apresente,depoisda puberdade , fenômenossemelhantes
a esta,deladevesercuidadosamente distinguida" (Dissertatíoninau-
gurale présentéeet soutenueà la facultéde Médecinede Paris, le 1" juil-
let 1824, Paris,Germer-Bailliere, 1843, p. 52).
5. "O furor é uma exaltaçãodas forças nervosase muscula-
res,estimuladapor umafalsa percepção , umareminiscênciaou uma
idéia falsa, caracterizadapor uma exasperação, urna cóleraviolen-
ta contra objetosou indivíduos presentesou ausentes,causasou
testemunhas do acontecimento . Os acessosde furor sãoverdadei-
ros paroxismosdo delírio, que variam por suaduraçãoe pela fre-
qüênciado seuretorno" (E. J. Georget,De la folie. Considérationssur
cettemaladie..., op. cit., pp. 106-7).
6. AssimJosephDaquinestabelece umaoposiçãoentreo "lou-
co extravagante"e o "louco estúpido" : "O louco extravagantevai,
vem e estánumaagitaçãode corpo contínua, nãoteme nemperi-
go nem ameaças ... No louco imbecil, os órgãosintelectuaispare-
cem faltar totalmente; ele se conduzpelos impulsosalheios,sem
nenhumaespéciede discernimento"(La Philosophiede la folie, ap.
cit., ed. de 1791, p. 22; ed. de 1987, p. 50).
7. Assim, William Cullen (1710-1790)fala de "demênciaina-
ta", que ele define como uma "imbecilidadedo espíritoparajulgar,
pela qual os homensnão percebemou nãose.lembramd~ relação
das coisas entre elas" (Apparatus ad nosologtammethodzcam , seu
Synopsisnosologiaemethodicaein usumstudiosorum,p~e N : ('V_e-
sânias",Edimburgo,W. Creech,1769); Se_g undo DesrreMagl?rre
Bourneville (1840-1909)(Recueil de memozres,noteset observatwns
sur l'idiotie, t. I: De l'idiotie, Paris,Lecrosnier& Babé,1891,p. 4), Jean-
Michel Sagar(1702-1778) consagraumapá~ae meiaa umafor-
ma de imbecilidadeque ele chamade amentiae~ suaobra: Systema
morborum symptomaticumsecundumclasses,ordmes, genera. et spe~
2 O PODERPSIQUIÁTRICO

ci , 1ena,Kraus, 1776. FrançoisFodéréjá declaravaque "a de-


mênciainata parece-mesera mesmacoisaque o idiotismo", defi-
nindo-a como uma " obliteraçãointeira ou parcial das faculdades
afetivas, e nenhumaaparênciade faculdadesintelectuais,inatas
ou adquiridas"(Traité du délire, op. cit., t. I, pp. 419-20).
. Assim: {a] ThomasWtllis isola sob o nomede stupiditassive
morosis uma classede doençasmentaisno capítuloXIII do seuDe
Aníma.Brutorum, quaehominisvítalis ac sensitivaest..., Londres,R.
Davi , 1672 [Two DiscoursesConcerningthe Soul of Brutes,Which Is
111at oftheVital and Sensitiveof Man, org. por S. Pordage,Londres,
Harper & Leigh, 1683]. EssecapítuloXIII, "Of Stupidity or Foolish-
ness" está reproduzido em P Cranefield, ''A Seventeenth-century
View of Mental Deficiency and Schizophrenia:Thomas Wtllis on
'Stupidity or Foolishness"',Bulletin of the History ofMedicine,vol. 35,
n? 4, 1961, pp. 291-316; cf. p. 293: "Estupidezou Morosis, se bem
que estejaprincipalmentena dependênciada alma racionale sig-
nifique um defeito do intelectoe do juízo, não é entretantoimpro-
priamentecontadaentreas doençasda cabeçae do cérebro,dado
que 'esseeclipseda alma superiorprovémde um danoinfligido à
imaginaçãoe à memória"' (trad. fr. J.L.). M. Foucaultfaz referên-
cia a isso em suaHistoire de la folie, op. cit., ed. de 1972,pp. 270-1 e
278-80. Cf. J.Vinchon e J.Vié, "Un maitre de la neuropsychiatrieau
:xvrresiecle:ThomasWtllis (1662-1675)",Annalesmédico-psycholo-
giques,12~ série,t. II, julho de 1928,pp. 109-44.- [b] FrançoisBois-
sier de Sauvages(1706-1767),Nosologia methodicasistensmorbo-
rum classes,generaet species,juxta Sydenhamímentemet botanicorum
ordinem,t. II, Amsterdam,DeToumes,1763 [Nosologieméthodique,ou
Distríbutíondesmaladíesen classes,engenreset en especessuívantl 'esprit
de Sydenhamet l' ordre des botanistes,t. II, trad. fr. Gouvion, Lyon,
Buyset,1771]_ O capítulo consagrado à amentiadistingueuma oi-
tavaespécie,amentiamorosisou estupidez:"Imbecilidade,morosi-
dade,tolice, estupidez:é uma debilidade,uma lentidão ou aboli-
ção da faculdadede imaginarou de julgar, sem ser acompanhada
de delírio" (p. 340), CL L. S. King, "Boissierde Sauvagesand eigh-
teenth-centurynosology'',Bulletin of the History of M.edicine, vol.
40, n? 1, 1966, pp. 43-51. - [c] Jean-BaptisteThéophile Jacquelin
Dubuisson(1770-1836)define o "idiotismo" como ''um estadode
estuporou de aboli.çãodas funçõesintelectuaise afetivas,de que
resultauma obtusãomais ou menoscompleta" (Des vésaniesou
maladiesmentales,Paris, Méquignon,1816, p. 281). - [d] Georget
AUI.A DE 16 DE JANEIRODE 1974 287

acre;centaaosgêne:osde ali~naçãodefinidospor Pinel um "quar-


to generoque podenamosdesignarpelo nomede estupidez",carac-
terizadopela"ausênciaacidentalda manifestaçãodo pensamento,
sejaporqueo doentenão tem idéias,sejaporquenão possaexpri-
mi-las" (De la folie, op. cit., p. 115). Cf. A Ritti, verbete"Stupeur-Stu-
pidité", in Dictionnaire encyclopédiquedes sciencesmédícales,3? sé-
rie, t. XII, Paris,Masson/Asselin, 1883, pp. 454-69.
9. Assim, Boissier de Sauvagesinscrevea íngenií ímbecillitas
na XVIII classeda suanosografiaconsagradaà amentía(Nosologíe...,
t . II, pp. 334-42). ParaJosephDaquin, "as palavrasdemênciae
imbecilidadesãomais ou menossinônimas,com essadiferençacon-
tudo entrea demênciae a imbecilidade:a primeira é umaprivação
absolutade razão,enquantoa outra não passade um enfraqueci-
mento desta" (La Philosop/hiede la folie, op. cit., ed. de 1791,p. 51).
10. J. E. Belhomme:"E fácil distinguir a idiotia da demência[...]
Uma começacom a vida, ou numaidade que precedeo pleno de-
senvolvimentoda inteligência;a outra se manifestadepoisda pu-
berdade;estapertenceexclusivamenteà criança,aquelaé principal-
menteuma doençada velhice" (Essaí sur l'idíotíe. Propositíonssur
l'éducationdes ídíots míseen rapport avecleur degréd'intelligence,Pa-
ris, Didot Jeune,1824, pp. 32-3). Sobreo histórico das concepções
da idiotia, cf.: [a] E. Seguin, Traitementmoral, hygíeneet éducation
des idíots et des autres enfants arriérés ou retardésdans leur dévélop-
pement,Paris,J.-B. Bailli ere, 1846, pp. 23-32. [b] D. M. Bourneville,
Assistance,Traitementet Éducationdes enfantsidiots et dégénérés , op.
cit., cap. I, "Aperçu historiquede l'assistanceet du traitementdes
enfantsidiots et dégénérés ", pp. 1-7. [c] L. Kanner,A History of the
Care and Studyof the Mentally Retarded, Springfield,li ., C. C. Tho-
mas,1964. [d] G. Netchine,"ldiots, débileset savantsau XIX• sie-
cle", in op. cit. [supra, p. 77, nota 14), pp. 70-107. [e] R Myrvold,
L'Arriération mentale,de Pinel à Binet-Simon,Th. Méd. Paris,1973,
n? 67, [s.Ln.d.] .
11. Cf.: [a) J. E. D. Esquirol, verbete"Délire", in Dictionnaire
dessciencesmédicales,t.VIII, Paris,C. L. F. Panckoucke,1814, p. 255:
"O delírio apirético [isto é, semfebre; J.L.] é o sinal patognomôni-
co dasvesânias."[b] E. J. Georget,De Ia folie, op. cit., p. 75: "O sinto~
ma essencialdessadoença[...] consisteem desordensintelectuais
a que sedeu o nomede delírio; não há loucurasemdelírio." Michel
Foucaultsalientaque, para a medicinado séculoXVIII, um ''delí-
28 O PODERPSIQUIATRICO

rio implícito existeem todasas alteraçõesdo espírito" (Histoire de


la folie, op. cit., ed. de 1972,p. 254).
12. J.-B. JacquelinDubuisson,Des vésaníes,op. cit., p. 281.
13. Ph. Pinel classificao "idiotismo" entre as "espécies"da
alienaçãomental: Traíté médico-phílosophique sur l'aliénation men-
tale, ou Ia Manie, op. cit., ed. de 1800,seçãoIY, pp. 166-76:"Division
de l' aliénation mentaleen especesdistinctes. Cinquierneespece
d aliénation: Idiotisme ou oblitération des facultés intellectuelles
1

et affectives."
14. J. E. D. Esquirol, [1] verbete"Hallucinations",in Diction-
naire dessciencesmédicales,t. XX, Paris,C. L. F. Panckoucke,1817, pp.
64-71; [2] verbete"Idiotisme", ibid., t. XXIII, 1818, pp. 507-24; [3]
" De I1idiotie" (1820), in Des maladiesmentalesconsidéréessous les
rapports médica[, hygi,éniqueet médico-légal,op. cit., t. II, pp. 286-397.
15. '!rata-se da tesede JacquesÉtienneBelhornrne,defendi-
daem1?dejulho de 1824, Essaisur l'idiotie. Propositionssur l'éducation
des idiots miseen rapport avecleur degréd'intelligence,Th. Méd. Pa-
ris, n? 125,Paris,Didot Jeune, 1824; republicadocom algumascor-
reções,Paris,Germer-Bailliere,1843.
16. J. E. D. Esquirol, "De l'idiotie" (1820), in op. cit., p. 284.
17. J. E. Belhornme,Essaisur l'idiotie, op. cit., ed. de 1843, p. 51.
18. J. E. D. Esquirol, Zoe. cit. (supra, nota 16): "A idiotia come-
ça com a vida ou na idade que precedeo pleno desenvolvimento
dasfaculdadesintelectuaise afetivas... A demência,corno a mania
e a monornania , só começana puberdade." Cf. também J. E. Be-
lhornme, loc. cit. (supra, nota 10).
19. J. E. D. Esquirol, " De l'idiotie", pp. 184-5: "Os idiotas são
o que devem ser durantetodo o curso da suavida... Não se con-
cebea possibilidadede mudaresseestado",enquanto " a demên-
cia [...] tem um períodode crescimentomais ou menos rápido. A
demênciacrônica,a demênciasenil se agravama cadaano... Pode-se
curar a demência,concebe-sea possibilidadede suspenderseus
acidentes". É precisamentepor tambémconsideraremos idiotas
corno incuráveis que alienistascorno Louis Florentin Calrneil,
Achille [de] Foville, ÉtienneGeorget,Louis FrançoisLélut (1804-
1877), FrançoisLeuret (1797-1851) preconizamseu isolamento
nos asilos.
20. [a] J.E. D. Esquirol, ibíd., p. 284: "Tudo nelesdenuncia urna
organização imperfeitaou detidaem seudesenvolvimen t o. A aber-
tura do crânio,quasesemprese encontramvícios de conformação."
AULA DE 16 DE JANEIRO DE 1974 289

[b] J. E. Belhomme,op. cit., ed. de 1824,p. 33: "O idiota apresenta


os traçosde uma organizaçãoincompleta... À autópsia,os idiotas
apresentam vícios de conformação,de organização."[c] E.J. Geor-
get, De la folie, op. cit., p. 105: "Os idiotase os imbecispossuemnão
apenaso órgãointelectualmal conformado(vide as aberturasdos
corpos);mastoda a suaeconomiade ordinário participadessees-
tado doentio. Em geral,elessãopoucodesenvolvidos[ ...], muitos ou
sãoraquíticos,ou escrofulosos,ou paralíticos,ou epilépticos,e reú-
nemàsvezesváriasdessasdoenças... A organizaçãodo cérebronão
deve ser melhor nessescasosque a de todos os outros órgãos."
21. Assim, Henri JeanBaptisteDavenne, dir~tor-geralda As-
sistênciaPública, encaminhandoem 1? de novembrode 1852 ao
prefeito do Senaum relatório cujo capítulo N diz respeitoà edu-
caçãodas criançasidiotas e imbecis,declara:"O idiota outra coisa
não é que um pobre enfermoa quemo médico nuncadaráo que
a naturezalhe recusou"(Rapportdu Directeur de I'administrationde
l'AssistancePubliqueà M . le Préfetde la Seinesur le servicedes aliénés
du départementde la Seine,Paris,Imprimerie de l'administrationde
l'AssistancePublique,1852).
22. Assim é paraÉtienne Georget:por seremcaracterizados
por "um defeito originário de desenvolvimento,os idiotas devem
serclassificados entreos monstros;e sãoverdadeirosmonstros,do
ponto de vista intelectual" (De la folie, op. cit., p. 102, n. 1). Sobreas
conotaçõesdessetermo na época,cf. C. Davaine,verbete"Mons-
tres", in Dictionnaire encyclopédique des sciencesmédicales,t. LXI, Pa-
ris, Asselin, 1874, pp. 201-64.
23. J. E. D. Esquirol," De l'idiotie" (1820),in op. cit., t. II, p. 285:
"À aberturado corpo, às vezes encontram-selesõesorgânicas,
mas essaslesõessãoacidentais , porqueo espessamento dos ossos
do crânio, o afastamentodas suassuperfícies,coincidindoapenas
com a demência,não caracterizamvícios de conformação ."
24. Ibid.
25. ÉdouardSeguin (1812-1880),mestre-escolaauxiliar que
trabalhavacom JeanItard, médico do Instituto Nacional de Sur-
dos-Mudos,é encarregado,em 1831,por esteúltimo e Esquirol da
educaçãode uma criançaidiota. Ele relataessaexperiênciaem [1]
Essaisur l'éducationd'un enfant,Paris,Porthman,1839.Em 1840, põe
em prática seu método no Hospício dos Incuráveisdo Faubourg
Saint-Martin,e publica [2] Théoriepratiquede l'éducationdesenfants
arriérés et idiots. Leçonsaux jeunesidiots de l'Hospice des Incurables,
2O O PODERPSIQUIÁTRICO

Pari.s, Germ.er-Bailliere, 1842.Em outubrode 1842,o ConselhoGe-


ral dos Hospíciosdecide transferir as criançasdo hospício de Bi-
cêtreparao serviçodo dr. FélixVoisin, de que Seguinse desligaem
1843, por causade divergências.Antes de emigrarparaos Estados
Unidos em 1850, ele faz um balançodas suasexperiênciasem [3]
Traitement111.oral, hygi.eneet éducationdes idiots..., op. cit., ondedefi-
ne seusprincípiosda "educaçãofisiológica". Nenhumapublicação
na Françatratou de Seguinentre a tese de I. Saint-Yves,Aperçus
historiques sur les travauxconcernantl'éducationmédico-pédagogi.que:
l tard, Boumeville(fh. Méd. Lyon, n? 103,1913-1914;Paris,P. Lethiel-
leux, 1914) e o artigode H. Beauchesne, "Seguin,instituteurd'idiots
à Bicêtre, ou la premiereéquipemédico-pédagogique", Perspectives
psychiatriques, vol. 30, 1970,pp. 11-4. -Ver também,depoisdisso:
Y. Pelicier e G. Thuillier, [1] "Pour une histoire de l'éducationdes
enfantsidiots en France(1830-1914)",Revuehistorique,vol. 261, n? 1,
janeiro de 1979,pp. 99-130; [2] ÉdouardSeguin(1812-1880). I:insti-
tuteur des idiots, Paris,Éd. Economica,1980; assimcomo: A. Brau-
ner, org., Actesdu colloqueinternational: Cent ans apres ÉdouardSe-
guin, Saint-Mandé,Groupementde recherchespratiques pour
l'enfance, 1981;J. G. G. Martin, "Une biographiefrançaised'Onési-
me-ÉdouardSeguin(20 janvier 1812-28octobre1880),premierthé-
rapeutedes enfants arriérés,d'apresses écrits et les documents
historiques",Th. Méd. Paris- Saint-Antoine,1981, n? 134.
26. E. Seguin,Traitementmoral, hygi.eneet éducationdes idíots...
27. Ibid., p. 72: "Gostavamde dizer que eu confundiaas crian-
çasidiotas com as criançassimplesmenteatrasadasou retardadas;
e disseramisso precisamenteporqueeu fui o primeiro a assinalar
as diferençasextremasque as separam ."
28. Loc. cit.: "A criançaretardadanão pára na sua, apenasse
desenvolvemais lentamentedo que as criançasda suaidade..."
29. Ibíd., p. 26: "Não, a idiotia não é uma doença."
30. lbid., p. 107. No início do séculoXIX, os asilosacolhem,às
vezesmisturados,adultose uma populaçãoinfantil que engloba-
va "idiotas", "imbecis", "epilépticos", mal distintos do ponto de
vista médico até 1840, e mesmodepois.Assim, em Bicêtre, a ter-
ceira seçãoda ala dos alienadoscompreendeem 1852 epilépticos
adultose crianças,e idiotas. Ci D. M. Bourneville,Assistance , Trai-
tementet Éducationdes enfantsidíots et dégénérés,op. cit., p. 4. Para
um balanço,d . H. J. B. Davenne,Rapport[...] sur le servicedes alié-
nés du départementde la Seine,op. cit.
AULA DE 16 DE JANEIRO DE 1974 291

31. JeanMarc GaspardItard (1774-1838),cirurgião de forma-


ção, é nomeadoem 31 de dezembrode 1800 parao cargo de mé-
dico-residenteda Instituição
, Nacional dos Surdos-Mudos / dirioi-
ºA
da pelo abadeSicard.E lá que, ajudadopor uma governanta,a sra.
Guérin, ele empreende,por mais de quatro anos, o "tratamento
moral'' de um menino de uns 10 anos,capturadoem fins de 1799
nasflorestasde Lacaume(Aveyron): cf. [1] De l'éducationd'un hom-
me sauvage,ou des premiersdéveloppements physiqueset morauxdu
jeunesauvagede l'Aveyron,Paris,Goujon,1801; [2] RapportJait à S.
E. le Ministre de l'Intérieur sur les nombreuxdéveloppementset l'état
actuel du sauvagede l'Aveyron (1806t Paris, Imprimerie impériale,
1807.Reeditadospor D. M. Bourneville com o título de Rapportset
mémoiressur le sauvagede l'Aveyron,l'idiotíe et la surdi-mutité,t. II,
Paris,Alcan ("Bibliothequede l' éducationspéciale"),1814; republi-
cado por L. Malson, Les Enfantssauvages,mytheet réalité, seguido
de J. [M. G.] Itard, Mémoire et rapport sur Victor de l'Aveyron,Paris,
Union généraled'édition (col. "10/18", 157), 1964.
32. FélixVoisin (1794-1872),aluno de Esquirol, atraídopelos
problemasdo tratamentodas_criançasidiotas, funda em julho de
1822 uma casade saúdeemVanves(cf. Établíssement pour le traite-
mentdes aliénés des deux sexes,fondé en juillet 1822 à Vànves,Paris,
A Belin, 1828), com Jean-PierreFalret.Em 1833,o ConselhoGeral
dosHospíciosconfia-lhea organizaçãode um serviçode idiotase de
epilépticosno Hospíciodos Incuráveisda Rue de Sevres.Em 1834,
cria um "estabelecimentoortofrênico'-',no número14 da Avenue
de Vaugirard, em Issy-les-Moulineaux,para criançasidiotas. Os
pensionistasdesseestabelecimento,assim como os do Hospício,
são transferidosem 1836 paraBicêtre, ondeVoisin chegaem 1840.
Sobre esseestabelecimento,o único documentoé fornecido por
CharlesChrétienHenri Marc (1771-1840),11 Rapportà M. le Con-
seiller d'État, Préfet de police, sur l' établissementorthophrénique
de M. FélixVoisin", Le Moniteur, 24 de outubrode 1834; republica-
do em anexo a De l'idiotie chezles enfants[citado abaixo], pp. 87-
91. Cf. F.Voisin, [1] Applicationsde la physiologiedu cerueauà l'étude
des enfantsqui nécessitentune éducationspéciale,Paris,Éverat,1830;
[2] De l'idiotie chezles enfants,et les autresparticularités d'intelligence
ou de caracterequi nécessitentpoµr eux une instruction et une éduca-
tion spécialesde leur responsabilitémorale,Paris,J.-B. Bailliere, 1843.
Igualmente:A.Voisin,Aperçusur les reglesde l'éducatíonet d.e l'instruc-
tion desidiots et des arriérés, Paris,Doin, 1882.
292 O PODERPSIQUIÁTRICO

33. J.-P.Falret, nomeadoem 30 de março de 1831 médico da


eçãodos idiotas na Salpêtriere,reúne numa u escolacomum oi-
tenta idiotas e imbecis" que dirige até sua nomeação,em 1841,
paraa direçãode uma seçãode alienadosadultos.
34. Na verdade,é em 1828, dois anosdepoisda suanomea-
ção (em 1826) paramédico-chefede Bicêtre,que GuillaumeFerrus
organiza"uma espéciede escola" para as criançasidiotas. Cf. F.
Voisin, "De l'idiotie" (Memórialida na Academiade Medicina em
24 de janeirode 1843; reed;por D. M. Bourneville,ín Recueilde mé-
moires..., op. cit., t. I, p. 268). E em 1833 que ele inicia um ensinoclíni-
co: ,,,De l'idiotie ou idiotisme (Cours sur les maladiesmentales)",
Gazettedes hôpitauxcivils ou militaires, t. XII, 1838, pp. 327-97.
35. Por sugestãode Ferrus,entãoinspetor-geraldos Hospí-
cios, ÉdouardSeguiné chamadoem novembrode 1842paradirigir
o centrodascriançasidiotas e epilépticastransferidasdo Hospício
dos Incuráveisparao serviçode FélixVoisin. Cf. supra, nota 25.
36. Em 27 de novembrode 1873, o ConselhoGeral do Sena
resolveadequara fazendado asilo deVaucluseparao uso de uma
colônia de jovens idiotas, que é inauguradaem 5 de agosto de
1876. Cf. D. M. Boumeville, Recuei!de mémoíres ..., op. cít., cap. N,
"L' assistancedes enfantsidiots et épileptiquesà Paris et dans la
Seine:1. Colonie deVaucluse",pp. 62-5. ,
37. Iniciadaem fins de 1882,a ala especialparacriançasidio-
tas e epilépticasde Bicêtresó é inauguradaem 1892.Cf. D. M. Bour-
neville, [1] Recueíl...,cap. N, "Sectiondes enfantsidiots et épilep-
tiquesde Bicêtre", pp. 69-78; [2] Histoire de la sectiondes enfantsde
Bícêtre (1879-1899),Paris, Lecrosnier& Babé,1889.
38. A populaçãodascriançashospitalizadasna Salpêtriereé,
em 1894, de 135, das quais 38 idiotas e 71 idiotas epilépticos.Cf.
D. M. Boumeville,Recueíl..., pp. 67-9.
39. Em 1888,uma ala da divisão de mulheresdo asilo deVil-
lejuif é destinadaà hospitalizaçãoe ao tratamentodas mulheres
retardadas,idiotas ou epilépticas,provenientesda Salpêtrieree de
Sainte-Anne,sob a direção do dr. Briand. Em 1894, 75 idiotas e
epilépticossão ali hospitalizados.
40. A circular de 14 de agostode 1840 declaraque "tendo o
ministro do Interior decidido que a lei de 1838 era aplicável aos
idiotase imbecis,ascriançasnão podiammais residir em outro es-
tabelecimentosenãonum asilo de alienados.Em conseqüência,o
ConselhoGeral dos Hospíciosmandoutransferir as que estavam
AULA DE 16 DE JANEIRODE 1974 293

em outrosestabelecimento s parao asilo de Bicêtre" (H. J. B. Daven-


ne, Rapport [.. .J sur le seroicedes alíénésdu départementde la Seine
op. cit., p. 62). '
41. Lei de 28 de junho de 1833 sobreo ensino elementar. Cf.
M. Gontard,L:Enseignementprimaíre en France de la Révolutionà la
loi Guizot. Des petitesécolesde la monarchied'AncienRégímeaux éco-
les primaires de la monarchiebourgeoíse,tese de doutorado, Lyon,
1955; Lyon, [Audin], 1959.
42. Na perspectivada criaçãode classesespeciaisparacrian-
ças retardadas,Bourneville requerem 1891 à delegaçãocantonal
doV distrito de Parisquesejaestabelecida umaestatísticadascrian-
çasretardadas.O primeiro levantamentoé realizadoem 1894,nas
escolaspúblicasdos distritosV e VI. Cf.: [1] "Note à la Commis-
sion de surveillancedesasilesd'aliénésde la Seine",2 de maio de
1896; [2] Création de classesspécialespour les enfantsarriérés, Paris,
Alcan, 1898.
43. Em 1892, Philippe Rey, médico-chefedo asilo de Saint-
Pierre de Marselhae conselheiro-geralde Vaucluse,empreende,
tendoem vista a criaçãode um II asilo interdepartamental destina-
do a recolhere a tratar as criançasretardadasou anormais",ore-
censeamentodestas , valendo-sede um questionáriodirigido aos
professorese professorasdos departamentosde Bouches-du-
Rhônee deVaucluse. Cf. D. M. Bourneville,Assistance,Traitementet
Éducatíon..., op. cit., pp. 45 e 197-8.
44. Como diz JeanDenysMarie Cochin (1789-1841), funda-
dor em 1824,com a marquesade Pastoret,dasII salasde asilo": u elas
têm por efeito proporcipnargratuitamenteou a baixo custofacili-
dadesconsideráveispara o bem-estarda população,na medida
em que reduzemos encargosde cadacasale aumentamos recur-
sos dos chefesde família, seja do ponto de vista da liberdadedo
trabalho,sejapossibilitando diminuir o númerode pessoasencar-
regadasda vigilância dascrianças" (Manuel desfcmdateurs et des di-
recteursdes premieresécolesde l'enfanceconnuessousle nom de "saltes
d'asíle" (1833), 4~ ed. com uma nota de Augustin Cochin, Paris,
Hachette,1853,p. 32). Reconhecidas por um decretode 28 de mar-
ço de 1831.Em conseqüência da lei de 28 de junho de 1833 sobre
a instruçãoprimária, um decretode 22 de dezembrode 1837 de-
fine seuestatutoem seu artigo I: "As salasde asilo, ou escolasda
primeiraidade,sãoestabelecimentos de caridadeem que ascrian~
çasde ambosos sexospodemser admitidas,até a idadede 6 anos
2 4 O PODERPSIQllIÁTRICO

completos,para receberos cuidadosde vigilância maternae de


primeira educaçãoque sua idade reclama" (ibid., p. 231). a.: [a]
Laurent Cerise (1807-1869),Le Médecin de salle d'asíle, ou Manuel
d'hygieneet d'éducati.onphysiquede l'enfance,Paris,Hachette,1836.
[b] A Cochin, Notice sur la vie de]. D. M. Cochin, et sur ['origine et
les progresdessallesd'asile, Ruis, Duverger,1852. [c] H . J. B. Davenne,
De l'organisation et du régimedes secourspublics en France, op. cit. [su-
pra, p. 116, nota 33], t. I, pp. 76-82.
45. W. Femald,TheHistory oftheTreatmentofFeebleMind, Bos-
ton, Mass.,1893, citado por D. M. Boumeville emAssistance,Trai-
tementet Éducation..., op. cit., p. 143.
46. J.-B. ParchappedeVmay, Príncipesà suivre dans la fonda-
tion et la constructiondes asilesd'aliénés,Paris,Masson,1853,p. 6.
47. E. Seguin,Traitementmoral, hygieneet éducationdes idiots...,
op. cit., p. 665. Cf. I. Kraft, "Edward Seguinand the 19th Century
Moral Treatmentof Idiots", Bulletin of the History of Medicine,vol.
35, n? 5, 1961, pp. 393-418.
48. E. Seguin,Zoe. cit.
49. Ibid., p. 664.
50. Ibid., p. 666.
51. Ibid., p. 662.
52. Ibid., p. 656.
53. Ibid., p. 659.
54. Ibid., p. 366.
55. Ibid., cap.XXXIX, "Gyrnnastiqueet éducationdu systeme
nerveuxet des appareilssensoriaux",§ V; "La vue", pp. 418-9.
56. D. M. Bourneville, "Considérationssommairessur le trai-
tementmédico-pédagogique de l'idiotie", in Assistance,Traitement
et Éducation..., op. cít., p. 242.
57. Ibíd., p. 237: "No fim de 1893, duzentascriançasestavam
ocupadasnasoficinas e repartidasdo seguintemodo: 14 vassourei-
ros, 52 sapateiros,13 impressores,19 marceneiros,14 serralheiros,
57 alfaiates,23 cesteiros,8 empalhadores e trançadoresde junco."
58. Ibíd., p. 238.
59. "As própriascriançassão felizes ao ver que seu trabalho
é produtivo,que se traduzpor resultadospráticose que tudo o que
fazem contribui para o seu bem-estar,o seu ensino e para a ma-
nutençãoda suaseção"(Compterendu du Servicedes enfantsidiots,
épileptiqueset arriérés de Bicêtre, Paris,Publicationsdu Progresmé-
dica!, t. XX, 1900,p. XXXV).
AULA DE 16 DE JANEIRO DE 1974 295

60. Foi no dia 27 de novembrode 1873 que o ConselhoGe-


ral do Senaresolveuadequaros edifícios da fazendado asilo de
alienadosdeVaucluse(departamentode Seine-et-Oise)a umaco-
lônia de criançasidiotas. Inauguradaem 5 de agostode 1876 a
colônia de Perray-Vauclusecompreendequatrodivisões:"4~ di~-
são.Ensinopelosolhos,lições de coisas...; exercíciosde memória;
alfabetoe algarismosimpressose letras de madeira(modelo de
Bicêtre). 3~ divisão. Criançasque já adquiriramos conhecimentos
mais elementares.Lições de coisas,exercíciosde leitura, de recita-
ção, de cálculo e de escrita... 2~divisão. Criançasque já sabemler,
escrevere contar..., noçõesde gramática,de cálculo, de história e
de geografiada França... 1~ divisão. Preparaçãoparao Certificado
de estudos.Paraeles,o ensinonão se diferenciasensivelmentedo
ensinoda escolaprimária" (D. M . Bourneville, Assistance, Traitement
et Éducation..., op. cit., pp. 63-4).
61. Disposições especificadasna seçãoIII da lei de 30 de ju-
nho de 1838: Despesasdo serviçodos alienados.O artigo 28 esta-
beleceque, na falta dos recursosenunciadosno artigo 27, "será
provido pelos cêntimosdestinadospela lei de finançasàs despe-
sasordináriasdo departamentoao qual o alienadopertence,sem
prejuízodo concursoda comunade domicílio do alienado,de acor-
do com as bases propostaspelo ConselhoGeral,segundoparecerdo
prefeito e com aprovaçãodo governo" (citadopor R. Castel,I;Ordre
psychiatrique,op. cit. [supra, pp. 46-7, nota 9], p. 321).
62. Em seurelatório de junho de 1894, D. M. Boumevilleres-
saltaas razõesfinanceirasdasresistênciasdas administraçõesde-
partamentaise comunaisque, paragerir seuorçamento,retardam
a admissãodascriançasidiotasno asilo, até elassetomaremum pe-
rigo: cf. Assistance,Traitementet Éducation..., op. cit., p. 84.
63. Assim, para G. Ferrus, se as criançasidiotas e imbecis se
enquadramna lei de 1838, é que, como os alienados,elaspodem
ser consideradas perigosas:"Bastaumacircunstânciaparasuperex-
citar seusinstintosviolentose levá-lasa praticaros atosmais com-
prometedoresparaa segurançae aordempública" (citado in H. J.
B. Davenne,Rapport[.. .] sur le seroicedes aliénésdu département _de
la Seine,op. cit., Anexo, p, 130). JulesFalre~ ~1824-190~)tan:bem
salienta"os perigosde toda ordemque os idiotase os ~b_ecrs, do
mesmomodo que os alienados,poderiamfazer elespropnosou a
sociedadecorrer" ("Des aliénésdangereux",§ 10: "Idiots ~t imbé-
ciles", Relatórioà Sociedademédico-psicológicade 27 deJulhode
296 O PODERPSIQUIÁTRICO

1 68, in LesAliénéset les Asilesd'aliénés. Assistance,législation et mé-


decinelégale, Paris,J.-B. Bailliere, 1890,p. 241).
64. Bourneville: "Não há semanaque os jornais não nos re-
latem exemplosde crimesou de delitos cometidospor idiotas,im-
becis ou retardados'-'(Assistance,Traitementet Éducation..., op. cit.,
p. 147).
65. º Um certo Many..., diz La Vallée de l'Eure (1891), comete
um atentadoao pudor com violência contra urna jovem idiota,
que, aliás, se entregavaà prostituição" (Zoe. cit.).
66. Ibid., p. 148.
67. F. Voisin, De l'idiotie chezles enfants,op. cit., p. 83.
68. D. M . Boumeville, Assistance,Traitementet Éducation...,
op. cit., p. 145.
69. Na segundametadedo séculoXIX, as pesquisasdos psi-
quiatrasrelativasao instinto se desenvolvemnumadupla frente: a
frentenaturaldafisiologia cerebrale afrente cultural dasrelaçõesen-
tre sociabilidadee moral.VerG. Bouchardeau,"La notion d'instinct,
dansla clinique psychiatriqueau XIX • siecle", Évolution psychiatri-
que, t. XLN, n? 3, julho-setembrode 1979, pp. 617-32.
Assim: [a] Valentin Magnan (1835-1916)estabeleceum vín-
culo entre as perversõesinstintivas dos degeneradose os distúr-
bios anatomofisiológicosdo sistemacérebro-espinhal, numaclas-
sificaçãoque liga as diferentesperversõesa processosde excitação
ou de inibição das estruturascérebro-espinhais correspondentes;
ver seu"Étude clinique sur les impulsionset les actesdesaliénés"
(1861),in Recherches sur les centresnerveux,t. II, Paris,Masson,1893,
pp. 353-69. Ver também: [b] Paul Sérieux (1864-1947),Recherches
cliniques sur les anomaliesde l'instinct sexuel,Th. Méd. Paris, n? 50_,
1888,Paris,Lecrosnier& Babé,1888-1889.[c] CharlesFéré (1852-
1907),Glnstinctsexuel.Évolutionet dissolution,Paris,Alcan, 1889.M.
Foucaultretomaa essepontoem seucursoLesAnormaux,op. cit., em
5 de fevereiro, 12 de fevereiro e 21 de março de 1975, pp. 120-5,
127-35,260-71.
70.Assim: [a] JosephJulesDéjerine (1849-1917)recenseiade
maneira bastantepositiva, em 1886, os trabalhosde Darwin em
T..:Héréditédansles maladiesdu systemenerveux,Paris,Asselin et Hou-
zeau,1886.Mas é [b]V. Magnanque adaptaa teoria de Morei, in-
troduzindonela a referênciaà noçãode evoluçãoe a localizações
neurológicasdo processodegenerativo:cf. [1] Leçonscliniques sur
AULA DE 16 DE JANEIRO DE 1974 297

les ma~~ie~";-en:ales,Paris,Bataille,1893; [~]y. Magnane P. Legrain,


Les Degeneres(etat mental et syndromesepzsodiques),Paris, Rueff,
1895. [c] A. Zaloszyc,Élémentsd'une hístoírede la théoríe des dégé-
nérescencesdans la psychiatríefrançaíse,Th. Méd. Strasbourg,,julho
de 1975, [s.l.s.n.].
71. Foi dois anosantesda publicaçãoda obra de C. R. Dar-
win, On the Orígín of Specíesby Means of Natural Selectíon, ar the
Preseroationof Favoured Racesín the Strugglefor Life (Londres,J.
Murray, 1859),queB. A. Morel publicouseuTraité desdégénérescen-
ces physíques,íntellectuelleset moralesde l'especehumaine,et descau-
ses qui produísentces varíétésmaladives,Paris,J.-B. Bailliere, 1857.
Ele define assima degenerescência : "A idéia mais clara que pode-
mos formar da degenerescência da espéciehumanaé representá-la
comoum desviodoentiode um tipo primitivo. Essedesvio, por mais
simples que o suponhamosna sua origem, encerraporém ele-
mentos de transmissibilidadede tal natureza,que quemporta seu
germese toma cadavez mais incapazde preenchersuafunção na
humanidade e que o progressointelectual,já bloqueadoem suá
pessoa , também se encontraameaçadona dos seusdescenden-
tes" (p. 5). A psiquiatriaoriundade Morel só seconverteráno evo-
lucionismo a preço de pararde ver a "perfeição" como a confor-
midademais exata possívela um tipo "primitivo" e passar a con-
siderá-lacorno a defasagemmaior possívelem relaçãoàquele.
72. Assinale mosa obra de I. R. Dowbiggin,InherítingMadness:
Professionalizatíon and Psychíatríc Knowledgein Nineteenth-Century
France, Berkeley, University of Califomia Press,1991 [trad fr. G. Le
Gaufrey,La Folie héréditaire,ou Commentla psychiatríefrançaíses'est
constituéeen un corps de savoiret de pouvoírdans~a secondemoitiédu
XIX' siecle,prefácio de G. Lanteri- Laura, Paris,Ed. Epel, 1993].
Depois de conhecerseu apogeunos anos1890, a teoria da
degenerescência começaa declinar. Freud critica-! desde 18?4
em seu artigo sobre"Die Abwehr-Neuropsychosen , Neurologzs-
chesZentralblatt,vol. 13, 1894, n? 10, pp. 362-4, n? 11, PP· 402-9;
republicadoem GW, t. I, 1952,pp. 57-74 ["Les psychonévrosesde
défense",trad. fr. J. Laplanche,in S. Freud, Névrose, Psychose et
Peroersion,Paris,PUF (liBibliotheque de psychanalyse "), ~97~, PP·
1-14]. Igualmente: Dreí Abhandlungenzur Sexualtheone, Vi ena,
Deuticke, 1905; GW, t. V, 1942, pp. 27-145 [Trai s ~ssais ~ur la
théoriede la sexualité,trad. fr. B. Reverchon-Jouve, Paris, Gallimard
2 O PODERPSIQWÁTRICO

( ol. "l dées"),1923]. Em 1903, Gilbert Ballet (1853-1916)escre-


v num Traité de pathologiementale,publicado sob sua organi-
zação{Pari , Doin, 1903), que não vê a menorvantagemem in-
c1uir o termo " degenerescência" no vocabuláriopsicanalítico do
século '(pp. 273-5).Cf. G. Gén.il-Perrin, Histoire desorigi.neset de
l'é'iJolution de l'idée de dégénérescence
en médecinementale,Paris,A.
Leclerc, 1913.
AULA DE 23 DE JANEIRO DE 1974

. O poderP_Siquiátrico~ a questã~da verdade:o interroga-


tóno e aconfissao;o magnetismoe ahzf"lose;a droga. - Elemen-
tos para uma história da verdade:I. A verdade-acontecimento
e suasfonnas: práticasjudiciária, alqufmicae médica.- ll . A
passagema uma tecnologiada verdadedemonstrativa.Seusele-
mentos: (~).os procedíme:-ztosda investigação;(b) a instituição
de um su;eito do conhecimento;(c) a exclusãoda crise na me-
di~ina ena psiquiatria, eseussuportes:o espaçodisciplinar do
asilo, o recursoà anatomiapatológica; as relaçõesentrea lou-
cura e o crime. - Poderpsiquiátrico, resistênciahistérica.

Eu havia analis adoo nível em que o poderpsiquiátri-


co se apresentacomo um poderno qual e pelo qual a ver-
dadenão é postaem jogo. Parece-me que, pelo menosem
certo nível, digamoso do seufuncionamentodisciplinar, o
saberpsiquiátriconão tem em absoluto porfunçãofundar
em verdadeuma práticaterapêutica,masem vez dissoa de
marcar, acrescentaruma marca suplementarao poder do
psiquiatra;em outraspalavras,o saberdo psiquiatraé um
dos elementospelos quais o dispositivo disciplinar organi-
za em torno da loucurao sobrepoderda realidade.
Mas isso deixade lado certo númerode elementosqu ,
no entanto,estãopresentesdesdeesseperíodo hist,rico
que chamode protopsiquiatria , aqueleque,grossomodo,se
estendedos anos1820 aos anos1860-1870, até o que po-
demoschamarde crise da histeria. Os elemento que d ixei
de lado sãoafinal elementosbastantediscreto , di p
com poucaaparênciaem certosentido,que certam nt nã.o
cobriramumagrandesuperfíciena organizaçãodo poderp 1•
quiátrico,no funcionamentodo regimedisciplinar, n n-
tantocreio queforam elesque constituíramos pontosde us..
tentaçãono processoda transformaçãointemae :xtern do
poderpsiquiátrico. sespontosdisperso, pouconum r
300 O PODERPSIQUIATRICO

discretos,sãoaquelesem que,apesardo funcionamentoglo-


bal do dispositivodisciplinar,a questãoda verdadefoi pos-
ta à loucura. Não digo que possamos enumerarexaustiva-
menteessespontosdizendoque são três; pareceu-me,até
nova ordem,que houve três nos quais vemosintroduzir-se
a questãoda verdadepostaà loucura.
E essespontossão,primeiramente,a práticaou o ritual
do interrogatórioe da extorsãoda confissão,sendoeste o
procedimentomaisimportante,mais constantee que,final-
mente,nuncamudou muito no interior da práticapsiquiá-
trica. Em segundolugar, outro procedimentocuja fortuna
foi cíclica, que desapareceu a certa altura, mas cuja impor-
tânciahistóricafoi enormepelosestragosque provocouno
mundo disciplinar do asilo: o procedimentodo magnetis-
mo e da hipnose.E, enfim, em terceiro lugar, um elemento
bem conhecido,sobre o qual a história da psiquiatria faz
um silêncio significativo, é o uso, não digo absolutamente
constante,mas bastantegeneralizadoa partir dos anos
1840-1845,dasdrogas,essencialmente do éter1,do dorofór-
mio2, do ópio3, do láudana4e do haxixe5, toda uma parafer-
nália que duranteuma décadafoi utilizada cotidianamente
no mundoasilardo séculoXIX e _sobrea qual os historiado-
res da psiquiatriasempreguardaramum silêncio bastante
prudente,quando,certamente,a hipnosee a técnicado in-
terrogatóriosãoo ponto a partir do qual a história da prá-
tica e do poderpsiquiátricosse deslocouou, em todo caso,
se transformou.
Oaro,essastrêstécnicassãoambíguas,quer dizer, fun-
cionamem dois níveis.Por um lado, elasfuncionamefetiva-
menteno nível disciplinar; nessesentido,o interrogatórioé
certamaneirade fixar o indivíduo à norma da suaprópria
identidade-quem é você?como se chama?quemsãoseus
país?comoforam os diferentesepisódiosda sualoucura?-,
de vincular o indivíduo ao mesmotempoà suaidentidade
sociale assinalaçãode loucuraque lhe foi conferidapor seu
meio. O interrogatório éum métododisciplinar e, nessení-
vel, podem-seefetivamenteidentificar seusefeitos.
AULA DE 23 DE JANEIRODE 1974 301

O magnetismo,que foi introduzidobem cedono asi-


lo do séculoXIX, isto é, nos anos1820-1825,numaépoca
em que estavanum tal nível de empirismoque os outros
médicoso rejeitavamem geral,foi claramenteutilizado como
adjuvantedo poderfísico, corporal,do médico6• Nessees-
paçode extensãodo corpo do médicoque o asilo organiza,
nessaespéciede processoque faz com que asprópriasen-
grenagensdo asilo devamser como o sistema nervoso do
próprio psiquiatra,de tal sorte que o corpo do psiquiatra
coincidaplenamentecom o próprio espaçoasilar,pois bem
nessejogo estáclaro que o magnetismo,com todosos se'
efeitosfísicos, era uma peçano mecanismoda disciplinan
dade.Enfim, quantoàs drogas -essencialmente o ópio, o
clorofórmio, o éter-,elaseram,evidentemente , comoasdro-
gasatuaiscontinuamsendo,um instrumentodisciplinarevi-
dente,reino da ordem,da calma,da colocaçãoem silêncio.
Ao mesmotempo, essestrês elementos,perfeitamen-
te decifráveise cuja inserçãono asilo por seusefeitosdisci-
plinaresé fácil compreender , tiveram um efeito na medida
em que foram utilizados, em que,talvezafinal de contas,le-
varamconsigo,canalizaram , a despeitoaté do que se espe-
rava deles,certa questãoda verdade.O louco interrogado,
magnetizado,hipnotizado,drogado,talvez tenhaele mes-
mo postoa questãodaverdade.E, nessamedida, parece-me
que essestrês elementosforam os elementosde fratura do
sistemadisciplinar,o momentoem que o sabermédico, que
portantoaindanão passavade uma marcade poder, viu-se
convocadoa falar, não mais simplesmenteem termos de
podermas em termosde verdade.

*
Eu gostariade abrir um parênteseaqui e inserirurnape-
quenahistória da verdadeem geral. Parece-me que pode-
ríamosdizer o seguinte.Um sabercorno o que ch_amamos
científico é um saberque supõe,no fundo, que hajaverda-
de em toda parte,em todo lugar e em todo tempo. Ou seja,
2 O PODERPSIQUIÁTRICO

maisp11 ci amente: para o sabercientífico, há momentosem


que - apr nde mais facilmentea verdade, pontosde vis-
ta que p rmitem perceber1naisfacilmenteou 1naissegura-
ment a verdade; há instruinentospara descobri- la onde
ela s· oculta,onde ela estárecuadaou escondida.Mas, como
quer que seja, para a práticacientífica em geral, semprehá
v rdade; a verdade estásemprepresenteem toda coisa ou
ob toda coisa,a propósitode tudo e de qualquercoisapo-
d - e colocara questãoda verdade.A verdadepode estar
scondida,ser difícil de alcançar , tudo isso remeteapenas
ao nos os próprios limites, às circunstânciasem que nos
encontramos. A verdadenelamesmapercorreo mundoin-
teiro, nuncaé interrompida.Não há buraco negronaverda-
de. Issoquerdizerque,parao sabercientífico,nuncahá nada
quesejasuficientementetênue,fútil, passageiroou ocasional
paranão concernirà questãoda verdade,nadasuficiente-
mentedistante,masnadatampoucosuficientementepróxi-
mo paraque nãose possalhe fazer a pergunta:o que é você
em verdade?A verdade habitatudo e qualquercoisa,inclu-
sive aquelescélebresrestosgrotescosde que falava Platão7•
Isso quer dizer não apenasque a verdadehabita toda parte
e que a todo [instante]pode-se colocara questãoda verda-
de, mas quer dizer tambémque não há ninguém que seja
exclusivamentequalificadoparadizer a verdade; não há nín-
guémtampoucoque, de saída,sejadesqualificadoparadizer
a verdade,a partir do momentoem que, é claro, se dispo-
nha dos instrumentosnecessários paradescobri-la, as cate-
gorias necessáriaspara pensá-la e a linguagemadequada
paraformulá-la em proposições.Digamos, para falar ainda
mais esquematicamente, que temosaí certaposiçãofilosó-
fico-científica da verdadeque é ligada a certatecnologiada
construçãoou da constataçãoem direito universalda ver-
dade, umatecnologiada demonstração . Digamosque temos
uma tecnologiada verdadedemonstrativaque, em suma,
coincide com a práticacientífica,
Ora, creio que houveem nossacivilizaçãoum posicio-
namentobem diferenteda verdade. Esseposicionamento
AULA DE 23 DE JANEIRODE 1974
303

bem diferente da verdade,mais arcaicosemdúvidaque este


de que lhes falo, foi pouco a pouco afastadoou recoberto
p_ela tecnologia demonstrativ3:,da verdade. Esseoutro posi-
c1on~m:1:toda verda~e:_que_e, creio eu, totalmentecapital
na h1stona da nos~ac1villzaçaopelo próprio fato de que foi
recoberto e colonizado pelo outro, é o posicionamentode
uma verdade que, justamente, não estariaem toda parte e
em todo tempo nos esperando,a nós,queseríamosencarre-
ga~os de esp:eitá~la e apreendê-laondequer que ela esteja.
Sena o pos1c10namento de uma verdadedispersa,descon-
tínua, interrompida, que só falaria ou que só se produziria
de tempo em tempo, onde bem entender,em certos lugares;
umaverdadequenãoseproduz em todaparteo tempotodo,
nem paratodo o mundo; uma verdadequenão nos espera,
porque é uma verdade que tem seusinstantes favoráveis,
seuslugare~propícios, seus agentese seusportadorespri-
vilegiados.E umaverdadeque tem suageografia:o oráculo
que diz a verdadeem Delfosªnão a formula em nenhumou-
tro lugar e não diz a mesma coisaqueo oráculoqueestáem
outro lugar; o deus que cura em Epidauro9 e que diz aos
que vêm consultá-lo qual é suadoençae qual é o remédio
que elesdevemaplicar, essedeussó curae só formula a ver-
dadeda doençaem Epidauro,e em mais nenhumoutro lu-
gar.Verdadeque tefn sua geografi a, verdadequ~ ta~bé_m
tem seucalendárioou, pelo menos, suacronologiapropna.
Eis outro exemplo. Na velha medicinadascrises, sobre
a qual eu tomarei,na medicina grega,latina,medieval,sem-
pre há um momentoparaque a verdadeda doençaapareça;
é precisament e o momentoda crise,e não há nenhumoutro
momentoem que averdadepossaserassimapreendida . a
prática alquí:mica, a verdadenão estáalt esperandoo mo-
mento em que viremosapreendê-la, a verdadepassa ; elapas:
sa como o relâmpago,rapidamente;em t?do caso,ela esta
ligada à ocasião,kairós, é precisoapreen_de-laº.
1

É também uma verdadeque tem nao apenassuageo-


grafia e seucalendário,é umaverdadeque tem se':1smen-
sageirosou seusoperadoresprivilegiadose exclusivos. O
04 O PODERPSIQUIATRICO

p rador s dessaverdadedescontínuasãoos que possuem


o ,gredo dos lugares edos tempos, sãoos que se submete-
ram à provas de qualificação, sãoos que pronunciaram as
palavrasrequeridas ou consumaramos gestosrituais, são
também aqueles que a verdadeescolheuparase abaterso-
bre eles: os profetas, os adivinhos, os inocentes,os cegos,os
loucos,os sábios, etc. Essaverdade,com suageografia,seus
calendários, seusmensageirosou seusoperadoresprivile-
giados, essaverdadenão é universal.O que não quer dizer
queé un1averdaderara, massim umaverdadedispersa,uma
verdade que se produzcomoum acontecimento.
Vocês têm por conseguintea verdadeque se constata,
a verdadeda demonstração , e vocêstêm a verdade-aconte-
cin1ento. Essaverdadedescontínuapoderiaserchamadade
verdade-raio,.por oposição à verdade-céu, que estáuniver-
salmentepresentesob a aparênciadas nuvens.Temospois
duassériesna história ocidentalda verdade.A sérieda ver-
dadedescoberta , constante,constituída,demonstrada,e ou-
tra série, que é a série da verdadeque não é da ordem do
que é, mas que é da ordem do que acontece,uma verdade
portanto não dada na forma da descoberta,mas na forma
do acontecimento , uma verdadeque não é constatadamas
que é suscitada , perseguida,muito mais produçãodo que
apofântica,uma verdadeque não se dá pela mediaçãode
instrumentos , mas que se provocapor rituais, que se capta
por artimanhas , que se apreendede acordocom asocasiões.
Paraessaverdade,nãosetrataráportantode método,.masde
estratégia.Entre essaverdade-acontecimento e o que dela
é apreendido , que a apreendeou que é atingidopor ela, are-
laçãonão é da ordemdo objeto aosujeito. Não é, por conse-
guinte, uma relaçãode conhecimento;é antesuma relação
de choque; é uma relaçãoda ordemdo raio ou do relâmpa-
go; é tambémuma relaçãoda ordem da caça,uma relação
em todo casoarriscada,reversível,belicosa;é umarelaçãode
dominaçãoe de vitória, nãoportantoumarelaçãode conhe-
cimento,mas de poder.
AULA DE 23 DE JANEIRODE 1974 305

Há os que têm o costumede fazer a história da verda-


de em termosde esquecimentodo Ser11, isto é, aquelesque,
na medidaem que fazemvaler o esquecimentocomo ca-
tegoriafundamentalda história da verdade,se colocamde
saídanos privilégios do conhecimento,pois é tão-somente
sobreo fundo da relaçãode conhecimentoadmitidae posta
de umavez por todasque algo como o esquecimentopode
se produzir.Por conseguinte,pensoqueJno fundo, elesfa-
zem apenasa história de uma dasduassériesque procurei
identificar: a sérieda verdadeapofântica,da verdadedesco-
berta,da verdadeconstatação, demonstração ; e éno interior
dessasérie que se colocam.
O que eu gostariade fazer, o que procurei fazer nos
anos precedentes foi umahistóriadaverdadea partir da ou-
tra série12 - isto é: procurarprivilegiar essatecnologia,efetiva-
menterejeitada agora,recoberta,afastada,essatecnologiada
verdade-acon tecimento, da verdade-ritual,da verdade-re-
lação de poder, em face da e contraa verdade-descoberta ,
a verdade-método, a verdade-relação de conhecimento,a
verdadeque, por conseguinte,supõee se situa no interior
da relaçãosujeito-objeto.
Eu gostariade fazer valer a verdade-raiocontraa ver-
dade-céu,isto é, mostrarpor um lado como essaverdade-
demonstração- cujà extensão , cuja força, cujo poder que
ela exerceatualmenteé absolutamenteinútil negar-,como
essa verdade-demonstração, identificada,grossomodo,em
suatecnologia,com a práticacientífica, como essaverdade-
demonstraçãoderivana realidadeda verdade-ritual,da ver-
dade-acontecimento, da verdade-estratégia , como a verda-
de-conhecimentono fundo não passade uma regiãoe de
um aspecto,um aspectoque setornoupletórico,queadqui-
riu dimensõesgigantescas,masum aspectoou uma moda-
lidade, mais umavez, da verdadecomo acontecimentoe da
tecnologiadessaverdade-acontecimento.
Mostrar que a demonstraçãocientíficano fundo nada
mais é que um ritual, mostrarque o sujeito supostamente
universaldo conhecimentona realidadenadamaisé queum
306 O PODERPSIQUIÁTRICO

indivíduo historicamentequalificado de acordo com certo


númerode modalidades,mostrarque a descobertada ver-
dadeé na realidadecertamodalidadede produçãoda verda-
de, trazerassimo quesedá comoverdadede constataçãoou
como verdadede demonstraçãopara o embasamento dos
rituais, o embasamento dasqualificaçõesdo indivíduo cog-
noscente,parao sistemadaverdade-ácontecimento - é isso
que chamareide arqueologiado saber13•
Há outro movimentoa fazer, que seria mostrarcomo,
precisamente,no curso da nossahistória, no curso da nos-
sa civilização,e de maneiracadavez mais aceleradadesde
a Renascença, a verdade-conhecimento adquiriu as dimen-
sõesque conhecemose que podemosconstataragora.Mos-
trar como ela colonizou,parasitoua verdade-acontecimento,
como acabouexercendosobre estauma relação de poder
que talvez sejairreversível,em todo casoque é por ora um
poderdominantee tirânico; como essatecnologiada ver-
dadedemonstrativaefetivamentecolonizoue agoraexerce
umarelaçãode podersobreessaverdadecuja t~cnologiaestá
ligada ao acontecimento,à estratégia,à caça.E isso que po-
deríamoschamarde genealogiado conhecimento,reverso
histórico indispensávelda arqueologiado saber,a respeito
da qual procureimostrara vocês,partindo de certo número
de dossiês,muito esquematicamente, não em que ela pode-
ria consistir,mas como poderíamosesboçá-la.Abrir o dos-
siê da práticajudiciária era procurarmostrarcomo, através
da práticajudiciária, tinham se formado poucoa poucore-
gras político-jurídicasde estabelecimentoda verdadenas
quaissevia refluir, desaparecer,com o adventode certotipo
de poderpolítico, a tecnologiada verdade-provae instalar-se
a tecnologiade umaverdadede constatação,de umaverda-
de autenticadapelostestemunhos,etc.
. /O queeu gostariade fazer agoraa propósitoda psiquia-
~ e mostrarcomo essaverdadedo tipo do acontecimento
e, poucoa pouco,no decorrerdo séculoXIX, recobertapor
outratecnologiada verdadeou, pelo menos,como se pro-
curourecobriressatecnologiadaverdade-acontecimento,no
AULI\ DE 23 DE JANEIRO DE 1974 307

que concerneà loucura,com certatecnologiada verdadede-


monstrativa,de constatação.Poderíamosfazê-lo também,e
vou procurarfazê-lo nos próximosanos,no que concerneà
pedagogiae ao dossiêda infância14.
Em todo caso, historicamente,poder-se-iadizer que
tudo isso é muito bonito, mas que, afinal, a sérieverdade-
prova-acontecimento já não tem tanta importânciano in-
terior da nossasociedade,que essatecnologiada verda-
de-acontecimento talvez possaser encontradanasvelhas
práticas- digamos oraculares,proféticas,etc. -, masque há
muito tempo as contasjá foram dadase que é inútil voltar
atrás. De fato, penso que há aí outra coisae que,no interior
da nossacivilização, essaverdade-acontecimento, essatec-
nologia da verdade-raio parece-meter subsistidopor mui-
to tempo e tido uma importânciahistóricaenorme.
Consideremos primeiramente as formas judiciárias de
que lhes falava há poucoe nos anos precedentes:no fundo,
tratava-se, afinal, de uma transformação muito profundae
fundamental.Lembrem-se do que eu lhes dizia acercada
justiçamedievalarcaica, aquelaanterior ao séculoXII apro-
ximadamente:o procedimentomedieval para a descoberta
do culpado, ou antes, paraa assinalaçãoda culpaa um in-
divíduo, essesprocedimentosque são grosso modo coloca-
dos sob a sigla do "julgamentode Deus" não eram,em ab-
soluto, métodosparadescobrirrealmenteo que tinha acon-
tecido.Não se tratava em absoluto de reproduzirno interior
do " julgamento de Deus" algo que seriacomo o análogon,a
imagem do que havia efetivamenteacontecidono nível do
gestocriminoso. O "julgamentode Deus" ou as provasdes-
se tipo eramprocedimentosdestinadosa decidir de que ma-
neira se devedeterminaro vencedorno enfrentamentoque
opõe dois personagens em litígia15 • A própria confissão,nas
técnicasjudiciáriasmedievais,não era, nessemomento,um
sinal ou um método paradescobrirum sinal de culpa16• Quan-
do os inquisidoresda IdadeMédia torturavamalguém,não
se tratavade fazer o raciocínioque os atuaiscarrascosfazem
e que é o seguinte: se o próprio interessadovem a reconhe-
308 O PODERP IQUIÁ.TRICO

cer que é culpado,entãoessaé a melhorprova, é é umapro-


va rnaíspróxima ainda do que otestemunhoocular;nãoera
de maneiranenhuma isso, essaprovaafortiori que o carras-
co da IdadeMédiá tentava obter. De fato, torturar alguém
na Idade Média era encetar,entre o juiz e aqueleque era
acusadoou suspeito, urnaverdadeiraluta física cujasregras,
evidentemente, eram., não propriamenteviciadas,masper-
feitamentedesiguais e semnenhumareciprocidade,claro,
urnaluta física parasaberse o suspeitoia ou não suportar;
e, quandoele cedia,não era tanto urna·provademonstrativa
de que fosseculpado,era simplesmente arealidadedo fa-
to de que ele tinha perdidoo jogo, que tinha perdidono en-
frentamentoe que, por conseguinte , podia sercondenado .
Tudo isso podia, depois, e de certo tnodo secundariamente,
inscrever-senum sistemade significações: foi porqueDeus
o abandonou,etc. Mas não era em absolutoo sinal, de cer-
to modo prosaico,da suaculpa, era a última fase, o último
episódio,a conclusãode um enfrentamentc1 7
. E foi neces s á-
ria todaumaestatizaçãoda justiçapenalparaque, finalmen-
te, se passasse dessatécnica do estabelecimento da verdade
na provaao estabelecim ento da verdadenaconstatação , pelo
testemunho , pela dernonstração18•
A mesmacoisa poderíamosdizer a propósitoda alqui-
mia. No fundo, o que fez com que a alquimia nuncatenha
sido efetivamenterefutada pela química,o que faz com que
na história da ciência, a alquimia não possafigurar como
um erro ou um impassecientífico é que ela não correspon-
de, e nunca correspondeu à tecnologiadaverdadedemons-
trativa; ela correspondeu de ponta a ponta à tecnologiada
verdade-acontecimento ou da verdade-prova.
De fato, para retomar grosseiramente suascaracterísti-
cas principais,o que é apesquisaalquírnica?Ela implica an-
tes de mais nadaa iníciação de um indivíduo, isto é, sua
qualificação moral ou sua qualificaçãoascética.Ele deve se
prepararpara a prova da verdade,não tanto por meio da
acumulaçãode certonúmerode conhecimentos , quantop lo
fato de que passoupelo ritual requerido • Além do mais, na
19
AULA DE 23 DE JANEIRO DE 1974 309

própriaoperaçãoalquímica,o opusalquímiconão é, afinal de


contas,a aquisiçãode certo resultado;o opusé aencenação
ritual de certo número de acontecimentos,dentreos quais
haverátalvez, ou eventualmente- segundocerta margem
de acaso,de sorteou de bênção-, a verdadeque eclodiráou
passarácomo uma ocasiãoa apreender,num momentori-
tualmentedeterminado,massempreenigmáticoparaquem
opera e que o indivíduo que operadeverá,precisamente,
apreendere compreender 2
º. O que faz, aliás, com que o sa-
ber alquímico sejaum saberque se perdesempre,que não
pode ter as mesmasregrasde acumulaçãode um saberde
tipo científico. O saberalquímico deve recomeçarsempre,
deve semprerecomeçarde zero, isto é, cadaum devereco-
meçartodo o ciclo das iniciações.No saberalquímico,nin-
guémse apóianos seuspredecessores.
A única coisaé que, efetivamente,às vezesalgo como
um segredo,um segredoaliás sempreenigmático,um livro
de magia que se poderiacrer que não é nada,mas que na
verdadecontémo essencial,caianasmãosde alguém. Eesse
segredo,tão secretoque nem mesmose sabeque é um se-
gredo- a não ser, precisamente,que se tenhapassadope-
las iniciaçõesrituais, ou que se estejapreparado,ou que a
ocasiãosejapropícia-,é essesegredoque conduzà pistade
algo que se produziráou não se produzirá;e o segredo,de
qualquermaneira,seráperdido de novo ou, em todo caso,
escondidoem algum texto ou livro de magiaque mais uma
vez um acasoporá novamentecomo uma ocasião,como o
kairós grego, nas mãos de alguém que poderánovamente
reconhecê-loou não reconhecê-la2 1

Pois bem, tudo isso pertencea uma tecnologiada ver-


dadeque nadatem a ver com a tecnologiada verdadecien-
tífica, e é nessesentidoque a alquimia não se inscreveem
absolutona história da ciência,[nem] mesmoa título de es-
boço, [nem] mesmoa título de possibilidade.Mas, no interior
do saberque talvez não se chamede científico, masque afi-
nal de contasbeirou, habitou os confins da ciência e que
acompanhouseunascimentono séculoXVIII, querdizer na
310 O PODERPSIQU1ÀTRICO

medicina,essatecnologiada verdade-provaóu da verdade~


acorttecim nto permaneceupor muito tempono âmagoda
práticam ~ dica.
Ela permaneceunó âmagoda práticamédicadurante
séculos,isto é, grossomodo,desde Hipócrates22 até Syden-
ham23, ou mesmoaté a medicina do século XVIII ; isto é,
durantevinte e dois séculos2\ Na medicina- não digo na
teoriamédica,nãodigo no que,na medicina,,começavaa es-
boçar algo como uma anatomiaou' uma fisiologia -, mas
na práticamédica,na relaçãoque o médicoestabeleciacom
a doença,havia algo que decorria e que decorreudurante
vinte e dois séculosdessatecnologiadaverdade-prova,e de
forma algumada verdadedemonstrativa,e essealgo é a no-
ção de "crise", ou, melhordizendo,é o conjuntodaspráticas
médicasque se organizaramem tomo dessanoçãode crise.
O queé, com efeito, a criseno pensamentomédicodes-
de Hipócrates?O que vou lhes dizer é evidentemente mui-
to esquemático,pois vou percorrerpretensiosamente estes
vinte e dois séculossemlevar em contatodasas modifica-
ções (sobressaltos,leves desaparecimentos da noção, rea-
parecimentos,etc.).
O que é acrise na práticamédicaque precedeu a ana-
tomia patológica?A crise,como sabemos,é omomento em
que pode se decidir a evoluçãoda doença,isto é, em que
podese decidir a vida ou a morte, ou aindaa passagemao
estadocrônico25 • É exatamenteo momentode uma evolu-
ção?Não é exatamenteisso. A crise é muito exatamenteo
momentodo combate,é o momentoda batalhaou é tam-
bém, na batalha,o momentoem que precisamenteela se
decide. Batalhada Naturezae do Mal, combatedo corpo
contra a substânciamorbífica26, ou batalha, como dirão os
médicosdo séculoXVIIl ,, dossólidoscontraos humores,etc.27•
E essecombatetem seusdias determinados , tem seusmo-
mentosque sãoprescritospelo calendário;masessaprescri-
ção dos dias da crise é uma prescriçãoambígua,no sentido
em queos diasde crisede umadoençamarcamde fato uma
espéciede ritmo natural, que é precisamentecaracterístico
AULA DE 23 DE JANEIRO DE 1974 311

dessadoença,e só dela.Vale dizer que cadadoençatem seu


próprio ritmo de crisespossíveis,cadadoentetem dias em
que a crise podese desencadear. Assim é que já Hipócrates
distinguia,entreas febres,as que têm crisesnos dias pares,
as que têm crisesnos dias ímpares.Quantoàs que têm cri-
sesnos dias pares,podesero 4?, o 6?, o 8?, o 10?, o 14?,o 28?,
o 34?, o 38?, o 50?, o 80? dia28• Isso proporcionaa Hipócrates
e à medicinade tipo hipocráticouma espéciede descrição-
não podemosdizer sintomatológica - da doença,que a ca-
racterizaa partir da dataobrigatória,possível,da crise.É por-
tanto uma característicaintrínsecada doença.
Mas é tambémumaocasiãoa apreender,é mais ou me-
nos o que na mânticagregase podiaconsiderarcomoa data
propícia29• Do mesmomodo que havia dias em que não se
podia travar a batalha,havia dias em que não devia haver
uma crise; e, assimcomo havia mausgeneraisque não tra-
vavama batalhano dia propício,assimtambémhavia doen-
tesou doençasque tinham suacrisenum dia quenão eraum
dia propício,de modo que,nessemomento,tinhammáscri-
ses,isto é, crisesque levavamnecessariamente a umaevolu-
ção desfavorável, oque não quer dizer que, quandoa crise
chegavanum momentopropício,a decisãofossesemprefa-
vorável, mastinha-senaquelecasouma espéciede compli-
caçãosuplementar. Vocêsvêemo jogo dessacrise que é ao
mesmotempoa característicaintrínsecae, também,a oca-
sião obrigatória,o ritmo ritual em que os acontecimentos
deveriamse desenrolar.
Ora, no momentoem que a crise se manifesta,a doen-
ça eclodeem suaverdade.Vale dizer que não só é um mo-
mento descontínuo,é, além disso, o momento em que a
doença, nãodigo II revela" umaverdadeque ela teria escon-
dido em si, masse produzno que é suaverdadeprópria,sua
verdadeintrínseca.Antes da crise,a doençaé isto ou aquilo,
ela é, para dizer a verdade,nada.A crise é a realidadeda
doençatornando-se de certomodoverdade.E é precisamen-
te aí que o médico deve intervir.
312 O PODERPSJQUIATRJCO

Com efeito, qual o papeldo médicona técnicada crise?


Ele deveconsiderara crise como o viés, praticamenteo úni-
co viés; pelo qual ele podeagir sobre a, doença.A crise, com
suasvariáveisde tempo,de intensidade, de tipos deresolu-
ção,etc., define a maneiracomoo médicodeveintetvit'°. O
médico deve,em primeiro lugar, por um lado, prevera cri-
se, identificar em que momentoela ocorrerá31, esperarpre-
cisamenteo dia em que ela ocorre,e é nessemomentoque
ele travará a batalhapara vencer32, enfim, para fazer com
que a naturezatriunfe sobrea doença;ou seja,o papeldo
médicoserá,em certosentido,reforçara energiada nature-
za. Reforçara energiada natureza,masé precisoter cuida-
do, pois o que vai acontecerse se reforçardemaisa ener-
gia da naturezalutandocontraa doença?Vaiacontecerque
a doença,esgotadade certomodo,semforça suficiente,não
travaráo combatee a crise não ocorrerá,e, se a crise não
ocorrer,o estadofunestovai continuardurando.Portantoo
equilibrio tem de ser suficientementemantido.Do mesmo
modo,se sereforçardemaisa natureza,sea naturezasetor-
nar vigorosa demaise forte demais, os movimentospelos
quais ela tentaráexpulsara doençase tomarãodemasiado
violentos e, nessaviolência mesma,o doentepode vir a
morrerpelo próprio esforçoquea naturezafaz contraa doen-
ça. De modo que não se deve nem enfraquecerdemaisa
doença,[o] que poderia,de certaforma, evitar a crise, nem
reforçardemaisa natureza,pois, nessecaso,a crise poderia
serviolenta demais.De modo que, como vocêsestãoven-
do, o médico,nessatecnologiada crise,aparecemuito mais
como o gerentee o árbitro da crise do que como o agente
de uma intervençãoterapêutica"'.O médico tem de prevê-
la, de saberquaissãoasforçasem presença,de imaginarque
saídaela pode ter, e arranjaras coisasde tal modo que a
crise ocorrano dia certo; ele devever como ela se anuncia,

* O manuscritoacrescenta:ºmuito mais papelde observânciade


regrasdo que de observaçãodos fenômenos''.
AULA DE 23 DE JANEIRO DE 1974 313

com que força, e deve introduzir somenteas modificações


necessárias em cadaprato da balança,as quais farão que a
crise, no fundo, se desenrolecomo deve se desenrolar.
E vocêsestãovendo que em sua forma geral a técnica
da crise na medicinagreganãoé diferenteda técnicado juiz,
do árbitro, quandose tratade um litígio judiciário.Vocêstêm
aqui, nestatécnicada prova,umaespéciede modelo,de ma-
triz jurídico-política que se aplica tanto ao combatelitigio-
so num casode direito penal como à práticamédica.Aliás,
na prática médicavocêstêm uma espéciede complexida-
de suplementarque encontrariamda mesmamaneira na
práticajudiciária. É o seguinte:como vocêsestãovendo, o
médico não cura, e não se pode nem mesmodizer que é
o médico que enfrentadiretamentea doença,pois é a na-
turezaque enfrentaa doença;ele prevêa crise, ele avalia as
forças em presença,procuramodificar ligeiramenteo jogo,
em todo casoa relaçãode forças,e tem sucessose fizer a na-
turezater sucesso.É nessaespéciede papel de árbitro que
o médicoé, por suavez - paravoltarmosprecisamentea essa
palavra"crise" que, afinal de contas,significa "julgar" 33, as-
sim comoa doençaé julgadano dia da crise -, julgado pela
maneiracomopresidiuo combate,e o médicopodesairven-
cedorou vencido em relaçãoà doença.
É um combatedo médicoem relaçãoao combateentre
a naturezae adoença,combateno segundograu,de que ele
vai sairvencedorou vencidoem relaçãoa essasleis internas,
mastambémem relaçãoaosoutrosmédicos.Aqui também
voltamosao modelojurídico.Vocês sabemmuito bem que
os juízespodiamser desqualificados,nessaépoca,quando
julgavammal, e serpor suavez alvo de um processode que
iam sairvencedoresou vencidos;depois,vocêstêm umaes-
pécie de caráterpúblico dessaespéciede justa entre os ad-
versáriose entre as leis do combatee, de outro lado, o juiz.
Essecombateduplo sempretinha característicasde publici-
dade.Ora, a consultamédicacomo vocêsa vêemfuncionar
desdeHipócratesaté aquelesfamososmédicosde Moliere
- sobrecujo sentidoe estatutoé precisoapesarde tudo re-
314 O PODERPSIQUIÁTRICO

fletir -, a consultamédicasempre era feita comvários médi-


cosJ.t.Vale dizer que se tratavade umajusta ao mesmotempo
da natur za contra a doença,do médico em relaçãoa esse
combateda naturezacontraa doençae do médico contraos
outros médicos.
Eles estavamali, uns diantedos outros,predizendoca'da
um à sua maneiraquando devia ocorrera crise, de que na-
turezaseriaa crise,qual seriaseudesenlace.A famosacena
que Galenocontouparaexplicarcomo ele tinha feito fortu-
na em Roma, essacena, qualquer que seja sua natureza
auto-apologética,parece-me ser uma cena mui!o caracte-
rística dessaespéciede entrol}ÍZaçãodo médico. E a história
do jovem Galeno,médicoda Asia Menor, chegandoa Roma,
desconhecido,e participandode uma espécie de justa mé-
dica em torno de um paciente.Enquantotodos os médicos
prediziamisto ou aquilo, Galenodiz, olhandoo rapazque
estavadoente:ele vai ter nos momentosseguintesuma cri-
se; essacrise será um sangramentodo nariz, e ele sangrará
da narinadireita. Foi de fato o que aconteceu.E, diz Galena,
todos os médicosque estavamali em torno de mim eclip-
saram-sediscretamente, um depoisdo outro35• A justaeraao
mesmotempouma justados médicosuns contraos outros.
A apropriaçãode um doentepor um médico,a consta-
taçãodo médicoda farm1ia, o solilóquio médico-doentesão
o efeitode todaumasériede transformações ao mesmotem-
po econômicas,sociológicas,epistemológicas,da medici-
na; mas1 nessamedicina de prova que tinha a crise como
elementoprincipat a justa entremédicosera tãoessencial
quantoa justa entrea naturezae a doença.Logo, vocêses-
tão vendocomo, na medicina- que, repito, diferenteda al-
quimia, não foi inteiramenteestranhaaosdesenvolvimentos
do sabercientífico que a ela se justapôs,com ela se entre-
cruzou,com ela se entrelaçou-,vocêsestãovendoque na
prática médica encontramosainda por muito tempo essa
tecnologiada verdade-prova,da verdade-acontecimento.
Mais urna palavraa esserespeito.A extensãoda outra
série, a extensãoda tecnologiademonstrativada verdade,
AULA DE 23 DE JANEIRO DE 1974 315

como vocêsvêem com o exemplo da medicina,não se fez


de uma só vez, como uma espéciede transformaçãoglobal;
certamentetambémnão sefez da mesmamaneiraem se tra-
tandoda astronomiaou da medicina,em setratandoda prá-
tica judiciáriaou da botânica.Mas, em linhasgerais,creio que
podemosdizer o seguinte:essesdois processosserviram de
suporteparaessatransformaçãona tecnologia daverdade,
pelo menosno que concerneao saberempírico.
A passagemde uma tecnologiada verdade-aconteci-
mento à verdade-demonstração creio está ligada, por um
lado, à extensãodosprocedimentospolíticosdo inquérito. O
inquérito, o relatório,o testemunhode muitos, o cruzamen-
to dasinformações,a circulaçãodo saberdesdeo centrodo
poderaté seuponto de chegadae seuretomo,todasas ins-
tânciasparalelasde verificaçãotambém,tudo isso constituiu
progressivamente, poucoa pouco,ao longo de todaumahis-
tória, o instrumentode um poderpolítico e econômico que
é o da sociedadeindustrial; dondeo afinamento, o quadri-
culamentocadavez mais concentradodessastécnicasde in-
quérito no interior mesmodos elementosem que elascos-
tumavamseraplicadas.Em linhas gerais,se assimpodemos
dizer, o afinamentoque fez com que se passasse de um in-
quérito essencialmente de tipo fiscal, na IdadeMédia - saber
quemcolhe o quê, quempossuio quê-, de modo que levan-
tasseo necessário;a passagemdo inquérito de tipo fiscal ao
inquérito de tipo policial sobreo comportamentodaspes-
soas,a maneiracomo elasvivem, a maneiracomo pensam,
a maneiracomo fazem amor, etc., essapassagemdo inqué-
rito fiscal ao inquérito policial, a constituiçãoda individua-
lidade policial a partir da individualidadefiscal, que era a
única que o poderconheciana IdadeMédia, tudo isso é sig-
nificativo dessaconcentraçãoda técnicado inquérito numa
sociedadecomo a nossa36•
E houve não apenasconcentraçãolocal, mas também,
estendidaa toda a superfíciedo globo, extensãoplanetária.
Duplo movimentode colonização:colonizaçãoem profun-
didadeque parasitouaté os gestos,o corpo, o pensamen -
316 O PODERPSIQUIÁTRICO

to dos indivíduos,e colonizaçãona escalados territórios e


dassuperfícies.Podemosdizer que assistimosdesdeo fim
da IdadeMédia à colocaçãosob inquérito generalizadode
todaa superfíciedaTerra,até à filigrana dascoisas,dos cor-
pose dos gestos: umaespéciede grandeparasitageminqui-
sitorial. Vale dizer que em todos os momentose em todos
os lugaresdo mundo,e apropósito de toda coisa,pode-se
e deve-secolocara questão daverdade.Há verdadeem toda,
partee averdadenos aguarda em toda parte,em todosos
lugarese em todos os tempos. Eis, muito esquematicamen-
te, o grande processo que levou a essa reversãode umatec-
nologia daverdade-acontecimento a uma tecnologiadaver-
dade-constatação .
O outro processofoi uma espéciede processoinver-
so, [...*] a organizaçãoda raridadedessaverdadequeé de
toda partee de todos os tempos;mas uma rarefaçãoque,
justamente,já nãoincide sobreo aparecimen to, a produção
da verdade,e sim sobreos que sãocapazes de descobri-la.
Com efeito, em certo sentido,essaverdadeuniversal.,essa
verdade de toda partee de todos os tempos, essaverdade
que qualquerinquéritopodee devecercare descobrira pro-
pósito de qualquercoisa, essaverdade está ao alcancede
qualquer um. Qualquer um pode ter acessoa ela, pois ela
estáem toda parte eem todos ostempos,masé precisoain-
da ter as circunstânciasnecessárias, adquirir as formas de
pensamento as e técnicasque permitemprecisamenteter
acessoa essaverdade de toda parte,massempreprofunda,
sempreescondida, semprede difícil acesso.
Haveráportanto,é claro,um sujeitouniversaldessaver-
dadeuniversal,masseráum sujeito abstratopois, concreta-
mente,o sujeito universalcapazde apreenderessaverdade
se:áraro, porqueterá de serum sujeito qualificadopor certo
nu1:1erode procedimentosque serãoprecisamenteos pro-
cedimentosda pedagogiae da seleção.As universidades,as

* Gravação: "poderíamoschamá-lode" .
AULA DE 23 DE JANEIRO DE 1974 317

sociedadescientíficas,o ensinocanônico,as escolas,os labo-


ratórios,o jogo das especializações,o jogo dasqualificações
profissionais,tudo isso é umamaneira de organizar,a pro-
pósito de uma verdade, posta pela ciência como universal,
a raridadedosque podem ter acessoa ela. Sersujeitouniver-
sal será,se assim podemos dizer, o direito abstratode todo
indivíduo; mas ser sujeito universal no concretoimplicará
necessar iamente a qualificação de algunsrarosindivíduos
que deverão funcionarassim.O aparecimentodosfilósofos,
dos homens de ciência, dos intelectuais, dosprofessores,dos
laboratórios, etc., na história do Ocidente, a partir do século
XVI II, correspondeprecisamente , em correlaçãodireta com
essaextensãoda posiçãoda verdade científica, à rarefação
daquele que podesaberumaverdadeque agoraestá presen-
te em toda partee atodo instante. Pois bem, essaera a pe-
quena história que eu querianarrar.Que relaçãotem com a
loucura? Chegaremoslá.

*
Na medicina em geral, de que eu lhesfalava agorames-
mo, a noçãode crise desapareceno fim do séculoXVIlI. Ela
desaparecenão apenas como noção- podemosdizer: de-
pois de Hoffmann37 - , mas tambémcomo ponto organiza-
dor da técnicamédica.Por que desaparece? Bem, creio que
pelos motivos que acabo de lhes apresentarno esquema
geral,ou seja,organiza-sea propósitoda doença,como hoje
a propósitode qualquercoisa,uma espéciede espaço,de
quadriculamentoinquisitorial38• E é essencialmente a edifica-
ção do que podemoschamargrossomodo de equipamen-
to hospitalare médicono séculoXVIII na Europa queasse-
gura a vigilância geralde populações,possibilitaestenderem
princípio o inquéritode saúdea todosos indivíduos39; o hos-
pital tambémpossibilitaintegrarà doençao corpo do indi-
víduo vivo e, principalmente,seu corpo morto40 • Em outras
palavras,vai-seter no fim do séculoXVIII umavigilância ge-
ral daspopulaçõese, ao mesmotempo,a possibilidadecon-
318 O PODER PSIQUIÁTRICO

eretade pôr em relaçãouma doençae um corpo autopsiado.


É o nascimentoda anatomiapatológica,,ao mesmotempo
queo aparecimento~e umamedicinae/statística,de ~a
dicina dos grandesnumeros41 - a um so tempo,a assmalaçao
rn:-
da causalidadeprecisapela projeção da doençanum corpo
morto e a possibilidadede vigiar um conjunto de popula-
ções- , é isso que proporcionaos dois grandesinstrumentos
epistemológicos da medicinado séculoXlX . E é evidenteque,
a partir dessemomento, vamoster uma tecnologiada cons-
tatação e da demonstraçãoque vai tornarprogress i vamente
inúteis as técnicasda crise.
Na psiquiatria,então,o que acontece?Bem, creio que
aconteceuma coisacuriosíssima.Por um lado, é certo que o
hospital psiquiátrico,tanto quanto o hospital de medicina
geral, não podedeixar de tendera fazer desaparecer a crise.
O hospitalpsiquiátrico,como qualquerhospital,é um espa-
ço de inquérito e de inspeção,urna espécie defocal inquisi-
torial, e não é absolutamentenecessáriatoda essa prova
de verdade. Procureiinclusive lhes mostrarque não apenas
não se precisada prova de verdade,mas não se precisade
nenhumaverdade,seja ela obtida pela técnicada prova ou
pelatécnicada demonstração. Tem mais.Não só não se pre-
cisa,como,paradizer a verdade,a crise como acontecimen-
to no interior daloucurae do comportamentodo louco é ex-
cluída.Ela é excluídapor quê?Essencialmente, creio eu, por
três razões.
Primeiro, ela é excluídaprecisamentepelo fato de que
o hospital funciona como sistemadisciplinar, isto é, como
sistemaque obedecea um regulamento,prevendocertaor-
dem,impondo certo regime, no qual algo como o desenca -
deamentoda crise da loucura apartir dela própria estáex-
cluído. Aliás, a principal orientação,a principal técnicadessa
disciplinaasilaré: nãopensarno assunto... Não pense,pen-
se em outra coisa,leia, trabalhe,vá ao campo, mas, sejalá
c~mo for, não p~nsena sualoucura42• Cultive, não o seujar-
drm, maso do diretor. Façamarcenaria , ganhesuavida, mas
AULA DE 23 DE JANEIRO DE 1974 319

não pensena suadoença.O espaçodisciplinar do asilo não


pode cederlugar à crise da loucura.
Em segundolugar, o recursoconstanteà anatomiapa-
tológica, que se dá mais ou menos apartir de 1825 na prá-
tica asilar, desempenhou um papel de rejeiçãoteórica da
crise43 • De fato, nada, salvo o que aconteciano casoda pa-
ralisia geral,permitia supor ou, em todo caso,assinalaruma
causafísica da doença mental. Ora, a prática da autópsia
foi, pelo menos em muitos hospitais, uma espéciede práti-
ca regular que tinha, no fundo, creio eu, essencialmente o
sentido de dizer o seguinte:se há uma verdadeda loucura,
ela certamentenãoestáno quedizemos loucos,massó pode
estar nos nervose no cérebrodeles. Nessa medida,a crise
como momentoda verdade,como momento em que a ver-
dade da loucuraeclodiria,se encontra epistemologicamente
excluída pelo recursoà anatomia patológica, ou antes,creio
que a anatomiapatológicafoi a cobertura epistemológica
atrásda qual sepôderejeitara existência da crise,negá-laou
jugulá-la: podemosamarrarvocê na cadeira, podemos per-
feitamentenão ouvir o que você diz, porque é à anatomia
patológica que perguntaremos qual a verdadeda sualoucu-
ra, quando você morrer.
Por fim, em terceirolugar, a terceirarazãopararejeitar
a crise foi um processoque deixei de lado até agorae que é
o problemada relação entre a loucura e o crime. É que, de
fato, a partir dos anos1820-1825,encontramosnos tribu-
nais um processocuriosíssimopelo qual os médicos- e
não a pedidodo ministério público ou do presidentedo tri-
bunal,muitasvezesnem mesmoa pedidodos advogados-
davamsuaopinião sobreum crime e procuravam,de certo
modo, reivindicar para adoençamental o próprio crime44•
Diante de qualquercrime, os psiquiatrasfaziam a pergunta:
seráque não é um sinal de doença?E foi assimque se cons-
truiu essacuriosíssimanoçãode monomaniaque,esquema-
ticamente,querdizer o seguinte:quandoalguémcometeum
crime que não tem nenhumarazãode ser, nenhumajustifi-
320 O PôDERPSIQUIÁTRICO

caçãono nível do seuinteresse, osimplesfato de cometer


essecrime não (seria] o sintomade uma doençaque teria
fundamentalmente por essênciaser o próprio crime?Uma
espéciede doençamonossintomática,que teria um só sin-
toma,e uma únicavez navida do indivíduo,·e que seriapre-
cisamenteo crime?45
Perguntou-sepor que esseinteressedos psiquiatraspelo
crime, por que reivindicar tão fortemente assim,e de certo
modo tão violentamente, o fato de o crime eventualmente
pertencerà doençamental. Existe com certeza um certonú-
mero de razões,mascrei o que uma das razões é esta:é que
se trata não tanto de demonstrarque todo criminosoé um
possívellouco, mas de demonstrar- o que era muito mais
grave,porém muito mais importanteparao poderpsiquiá-
trico - que todo louco é um possívelcriminoso. E a determi-
nação,a vinculaçãode uma loucura a um crime e, no li-
mite, da loucuraa todo crimeera omeio de fundar o poder
psiquiátrico, não em termosde verdade, pois precisamente
nãoé de verdadeque se trata,masem termosde perigo: es-
tamosaqui para protegera sociedade , já que no âmagode
toda loucuraestáinscrita a possibilidadede um crime.Vin-
cular a um crime algo como a loucuraé, a meuver, claro que
por razõessociais,uma maneirade safar o indivíduo, mas,
de maneirageral, no nível do funcionamentogeral dessa
assinalaçãode loucurano crime, há a vontadedos psiquia-
tras de fundar suapráticaem algo como uma defesasocial,
pois elesnão podemfundá-la em verdade.Logo, podemos
dizer que o sistemadisciplinarda psiquiatriatem essencial-
mente por efeito fazer a crise desaparecer. Não só não se
precisa,mas não se quer a crise, pois a crise poderiaser
perigosa,pois a crise do louco talvez seja a morte do ou-
tro. Não seprecisada crise,a anatomiapatológicaa dispen-
sa, e o regime da ordeme da disciplina faz com que a crise
não sejadesejável.
,. ~o entanto,ao mesmotempoque isso se produz,vo-
cestem uma tendênciainversa,que se explica e se justifica
por duasrazões.Por um lado, precisa-seda criseporque, no
AULA DE 23 DEJANEIRO DE 1974 321

fim dascontas,nemo regimedisciplinar,nema calmaobri-


gatóriaimpostaaosloucos,nem a anatomiapatológicapos-
sibilitaram ao saberpsiquiátricofundar-se em verdade.De
modo que essesaber,que procureilhes mostrarque funcio-
navacomo suplemento de poder,funcionoupor muito tem-
po no vazio e não podia,evidentemente,deixarde tentarse
dar um certo conteúdode verdade de acordocom as normas
mesmasda tecnologiamédicada época,isto é, a tecnologia
da constatação.Mas isso não era possível,de modo que se
apelo,uparaa crise por outra razão,uma razãopositiva.
E que o verdadeiroponto em que se exerceo saberpsi-
quiátrico não é inicialmente,não é essencialmente o ponto
que permiteespecificar,caracterizar,explicara doença.Em
outras palavras,enquantoum médico tem essencialmente
como tarefaou se encontra,situadono ponto em que está,
na obrigaçãode responderaossintomas,àsqueixasdo doen-
te com uma atividade de especificação , de caracterização-
dondeo fato de que o diagnósticodiferencial foi de fato, a
partir do séculoXIX, a grandeatividademédica-,o psiquia-
tra não é requisitado,não é convocadonesseponto, isto é,
no interior do pedido do doente,para dar estatuto,caráter
e especificaçãoaos seussintomas.O psiquiatraé requisi-
tado um grau antes,uma camadaabaixo, é requisitadono
ponto em que se trata de decidir se há ou não doença.Tra-
ta-se,parao psiquiatra,de responderà pergunta:esteindi-
víduo é louco ou não?Perguntaque lhe é feita sejapela fa-
mília, no caso de internaçãovoluntária, seja pela adminis-
tração,no casode internaçãode ofício - se bem que, aliás,
a administraçãosó faça a perguntaem surdina,pois ela se
reservao direito de nem mesmoescutaro que diz o psi-
quiatra-, mas, como quer que seja, o psiquiatrase encon-
tra situado nestenível.
Enquantoo ponto em que funciona o sabermédico
[geral] é o ponto da especificaçãoda doença,é o ponto do
diagnósticodiferencial,na psiquiatria,o ponto em que fun-
ciona o sabermédico é o ponto da decisãoentreloucurae
não-loucura, é o ponto, se preferirem,da realidadeou da
322 O PODERPSIQUIÁTRICO

não-realidade,é o ponto da ficção - sejaa ficção de parte


do doente,que gostariapor uma razãoqualquerfingir estar
louco, sejaa ficção do seucírculo pessoal, que imagina,de-
seja, almeja,impõe a imagem da loucura.É aí que funciona
o saberdo psiquiatra, é aí tambémque funcionaseupoder46.
Ora, para decidir em termos de realidadeda loucura,
parafunciol'}ar nessenível, de quais instrumentoso psiquia-
tra dispõe?E precisame n te aqui que encontramoso parado-
xo do saberpsiquiátricono séculoXIX. Por um lado, ele bem
que procurouconstruir- se com baseno modelo da medici-
na-constatação,de inquérito, da demonstração;ele bemque
procurouconstituirum saberdo tipo da sintomatologia ; ele
bem que constituiu uma descriçãodas diferentesdoenças ,
etc., mas,paradizer a verdade,isso não passavada cobertu-
ra e de justificaçãode umaatividadeque se situavaem outro
ponto, e essaatividadeera precisamentea decisão: realida-
de ou mentira,realidadeou simulação.É no ponto de simu-
lação,no ponto de ficção, e não no ponto de caracterização
que se situa realmentesuaatividade.
Daí, creio, decorrecerto númerode conseqüê ncias.A
primeira é que, para conseguirresolver esseproblema, o
hospital psiquiátrico literalmenteinventou uma nova crise
médica.Não mais essacrise de verdadeque era jogadaen-
tre as forças da doençae as forças da natureza , e que carac-
teriza a crise médicatal como era postaem ato no século
XVIII, masumacriseque chamareide crise de realidade,que
sejoga entreo louco e o poderque o interna,o poder-saber
do médico. O médico deve estarnumaposiçãode árbitro
em relaçãoa essaquestãoda realidadeou da não-realidade
da loucura.
De modo que, como vocêsvêem,o hospitalpsiquiátri-
co, ao contráriodo hospitalde medicinageral, não tem em
absolutopor funçãosero lugar em que a ''doença"vai mos-
trar o que é em suascaracterísticas específicase diferenciais
em relaçãoàs outrasdoenças;o hospital psiquiátricotem
uma~nçãomuito maissimples,muito mais elementar,mui-
to maisfundamental.Ele tem por função,precisamente , dar
AULA DE 23 DE JANEIRO DE 1974 323

reaUdadeà loucura,abrir à loucuraum espaçode realização.


O hospital psiquiátricoexiste para que a loucura se torne
real, enquantoo hospitalcomumtem por função ao mesmo
tempo sabero que é a doençae suprimi-la. O hospitalpsi-
quiátrico tem por função, a partir da decisãopsiquiátrica
quan~oà realidadeda loucura,fazê-laexistir como realidade.
E aqui que encontramosuma crítica de tipo institucio-
nal ao hospitalpsiquiátrico,que o censurajustamentepor fa-
bricar loucoscom pessoas que se pretendecurar. Essacrítica
de tipo institucional coloca, com isso, a questão:qual seria
entãoa instituição cujo funcionamento seriatal, que se po-
deria ao mesmotempo curar os loucos e não os imergir na
doença?De que maneira a instituição [asilar] poderiafun-
cionar como qualquerhospital?47 Mas creio que essacrítica
é, afinal, muito insuficiente,porqueescapa - lhe o essencial.
Querdizer, umaanáliseda distribuiçãodo poderpsiquiátri-
co permite mostrar que não é por um acidenteou um des-
vio da instituição que o hospitalpsiquiátrico é um lugar de
realizaçãoda loucura; é a própria função do poderpsiquiá-
trico ter diante de si e parao doente- e, no limite, tanto no
hospital como não - um espaçode realizaçãoparaa doen-
ça. De modo que podemosdizer que o poder psiquiátrico
tem por função realizar a loucuranumainstituiçãocuja dis-
ciplina tem precisame n te por função apagartodasasviolên-
cias da loucura,todasas suas crisese, no limi te, todosos seus
sintomas.A instituição asil ar em si - e é nisso que a análise
que faço não coincide com as análisesinstitucionais-, essa
instituição de disciplina tem efetivamentepor função e por
efeito suprimir, não digo a loucura,masos sintomasda lou-
cura,ao mesmotempoque o poderpsiquiátricoque se exer-
ce no interior e que fixa os indivíduosno asilo tem por fun-
ção realizara loucura.
Em suma,há um ideal paraesseduplo funcionamento,
do poderpsiquiátricoque realiza a loucura e da instituição
disciplinar que se recusaa ouvi-lo, que nivela seussinto-
mas,que aplainatodasas s~asmanifestações:o da demên-
cia. O que é um demente?E aqueleque não é nadamais do
324 O PODERPSIQUIÁTRICO

que a realidad da sualoucura; é aq~~lee.rn q~ema multi:


plicidade dos sintomasou,_ao contran~,_seu_ruv~l~e~t<;> e
tal que já não se pode assinalarespecificaçaos1ntomatica
que lhe seria característica . O deme~teé portant~ aq~e~e
que correspondeexatatnenteao func1onamentoda institui-
ção asilar,já que,por via de disciplina, todos os.sintomasem
suaespecificidadeforam aplainados: não há mais manifes-
tações, nem exteriorização,nem crise, E, ao mesmotempo,
o dementecorrespondeao que quero poder psiquiátrico,já
que realizaefetivamentea loucuracomo realidade individual
no interior do asilo.
A famosa evolução demencialque os psiquiatras do
séculoXIX acreditaramobservarcomo um fenômenode na-
turezana loucuranão é nadamais que a sériedosefeitos en-
trecruzadosde umadisciplina asilar que aplainamanifesta-
ções e si ntomas, e aassinalaçãodo podermédicoparaseser
louco, pararealizar a loucura.O dementeé naverdade o que
foi fabricado pelo duplo jogo dessepodere dessadisciplina.
Quantoaos histéricos, a essescélebrese caros histéri-
cos, direi que eles foram precisamentea frente de resistência
a essegradiente demencial que o duplo jogo do poder psi-
quiátrico e da discipli na asilar implicava. Eles foram a frente
de resistênciapelo seguinte: o que é um histérico?Um histé-
rico é aqueleque estáa tal ponto seduzidopela existênciados
sintomasmais bemespecificados, mais bemprecisados- pre-
cisamenteos sintomasque as doençasorgânicaslhe apre-
sentam-, que ele os faz seus.O histérico se constitui como
brasãode verdadeirasdoenças,se constitui plasticamente
como o lugar e o corpo portadorde sintomasverdadeiros .
À assinalação,à propensão,à compressãodemencialdos
sintomas,ele respondecom a exasperação dos sintomasmais
pre~isose mais bem determinados;e, ao mesmotempoque
faz _isso, ele o faz por um jogo que é tal que, quandose quer
assinalarsua doençacomo realidade,nuncase consegue ,
porque,no momentoem qu~ seusintomaremeteriaa um
substrato_?rgânico,ele mostraque não há substrato,de modo
que ele nao podeserassinaladoao nível da realidadeda sua
AULA DE 23 DE JANEIRO DE 1974 325

doença nomomentomesmoem que manifestaos sintomas


mais espetaculares. A histeriafoi a maneiraefetivapelaqual
as pessoasse defendiamda demência;a única maneirade
não ser demente,num hospitaldo séculoXIX, era serhisté-
rico, isto é, era opor ao impulso que aniquilava, apagavaos
sintomas,a constituição,a ereçãovisível, plástica,de toda
uma panópliade sintomase resistir à assinalaçãoda loucu-
ra como realidadepelasimulação.O histéricotem sintomas
magníficos,mas, ao mesmotempo,esquivaa realidadeda
suadoença;ele se colocacontraa correntedo jogo asilare,
nessamedida,saudemosos histéricoscomo os verdadeiros
militantes da antipsiquiatria48 •
1. Descobertono séculoXVI, o étertem seuuso dífundido no
séculoXVIII no tratamentodas neurosese no reconhecimentoda
simulaçãodas doenças,por suapropriedade"estupefaciente" . Cf.
supra, p. 246, nota 18.
2. Descobertosimultaneamente naAlemanhapor JustusLie-
big e na Françapor Soubeiran,em 1831, o empregoan€stésicodo
clorofórmio começaem 1847.Cf. [a] E. Soubeiran , "Recherchesst11
quelquescombinaisonsde chlore",Annalesde chimieet de physique,
t. XLIII, outubro de 1831, pp. 113-57. [b} H. Bayard, "1:utilisation
de l' éther et le diagnosticdes maladiesmentales", verbetecita-
do (supra, p. 246, nota 18). [c] H. Brochin, //Maladies nerveuses",
§ "Anesthésiques:éther et chlorophorme",in op. cit. [supra_, p.
210, nota 1], pp. 276-7. [d] Lailler (farmacêuticodo asilo de Qua-
tre-Mares),"Les nouveauxhypnotiqueset leur emploi en méde-
cine mentale",Annalesmédico-psychologiques, 7~ série,t. rv, julho de
1886, pp. 64-90.
3. Cf. supra, pp. 209-10, nota 1.
4. Cf. supra, p. 210, nota 2.
5. J. J. Moreau de Tours descobreos efeitosdo haxixe quando
da suaviagemao Oriente,de 1837a 1840.Entrevendoas possibi-
lidadesde uma experimentaçãodestinadaa esclareceras relações
entreos efeitosdo haxixe,os sonhose os delírios, consagraa este
suas pesquisas:cf. Du haschichet de l' aJiénation mentale. ttudes
psychologiques,Paris,Fortin, 1845.
AULA DE 23 DE JANEIRO DE 1974 327

6. Soba Restauração, o "magnetismoanimal" é objeto de ex-


periênciasnos serviçoshospitalares.Assim: [a] no Hôtel-Dieu, o
médico-chefeHenri Marie Husson(1772-1853)convida,no dia 20
de outubro de 1820, o barãoDupotet de Sennevoya fazer umas
demonstrações no seu serviço. Sob a suavigilância, a de Joseph
Récamiere de AlexandreBertrand,uma moça de 18 anos,Cathe-
rine Samson,é submetidaao tratamentomagnético.Cf. J. Dupo-
tet de Sennevoy(1790-1866),Exposédes expériencessur le magnétis-
me animal faites à l'Hôtel-Dieu de Paris pendantle cours des mais
d'octobre,novembreet décembre1820, Paris,BéchetJeune,1821.- [b]
Na Salpêtriere,ÉtienneGeorgete Léon Rostantransformamalgu-
mas das suaspacientesem sujeito de experiência.[a] Sem preci-
sar o nomedos doentes,E. J. Georgetrelataessasexperiências:De
la physiologi,edu systemenerveux, et spécialementdu cerveau,op. cit.,
t. I, p. 404; [~] cf. L. Rostan,Du magnétismeanimal, Paris,impr. Rig-
noux, 1825.Ver A. Gauthier,Histoire du somnambulisme ..., op. cit.,
[supra, p. 178, nota 21], t. II, p. 324. Cf. infra, p. 384, nota 48.
7. Alusão ao debateentreSócratese Parmênidessobreo pro-
blema: "de que existemformas?" (Platão,Parménide,130c-d, in
Oeuvrescompletes,trad. fr. A. Dies, t. VIII, parteI, Paris, Les Belles
Lettres,"Collection des universitésde France",1950,p. 60).
8. Delfos, cidadeda Fócida,ao pé do Parnasso,toma-sea par-
tir de meadosdo séculoVIII a.C. um lugar de eleição,ondeApolo
pronuncia oráculospela bocada Pítia, e continuaa sê-lo até o fim
do séculoIV d.C. Cf.: [a] M. Delcourt, [1] Les GrandsSanctuaires
de la Grece,Paris,PUF (cal. "Mythes et Religions"), 1947,pp. 76-92;
[2] L'Oracle de Delphes, Paris,Payot,1955. [b] R. Flaceliere,Devinset
Oraclesgrecs,Paris,PUF (cal. "Que sais-je?"939), 1972,pp. 49-83. [c]
G. Roux, Delphes,son aradeet sesdieux, Paris,Les BellesLettres,1976.
9. Epidauro,cidadeda Argólida, na costaoriental do Pelopo-
neso, onde se encontraum santuáriodedicadoa Esculápio,filho
de Apolo, e onde se pratica a adivinhaçãodos sonhos.Cf.: [a] M.
Delcourt,Les GrandsSanctuaires..., pp. 93-113.[b] R. Flaceliere,De-
vins..., pp. 36-7. [c] G. Vlastos,"Religion and Medicine in the Cult
of Asclepius: a Review Article", Reviewof Religi,on, vol. 13, 1948-
1949,pp. 269-90. -
10. A noção de 1eatpóçdefine a ocasiãoa apreender,a opor-
tunidadee, por conseguinte,o tempoda açãopossível.Hipócrates
(460-377a.C.) consagraa essanoção o capítuloV, "Da oportuni-
28 O PODER PSIQUIATRICO

dadee da inoportunidade"do seu tratadoDas doenças,I, ín Oeu-


vrescompletes,. d. Littré, t. VI, Paris,J.--B. Bailliere, 1849, pp. 148~51.
Cf.: [a] P. Joos,"Zufall, Kun t undNatur bei demHippokratikern",
Janus,n? 46, 1957,pp. 238-52.[b] P. Kucharski,"Sur la notion pytha-
goriciennedekairós", Revuephilosophiquede la Franceet de l 'étranger,
t. CLII, 1963, n? 2, pp. 141-69. [c] P. Chanttaine,verbete''K aipóç" ,
in Dictionnaire étymologiquede la Zanguegrecque. Histoire des mots,t.
Il, Paris,Klincksieck, 1970,p. 480.
11. Alusão à problemáticaheideggerianaque, num debate
com G. Preti, M. Foucaultassociaentãoà de Husserlna mesmacrí-
tica de pôr "em questãotodos os nossosconhecimentose seus
fundamentos[ ...] a partir do que é originário [ ...] à custade todo
conteúdohistórico articulado" (DE, II, n? 109, p. 372); cf. também
DE, I, n? 58, p. 675. É a concepçãoheideggerianada história que é
visada então.Ver notadamente:M. Heidegger, [1] Sein uncf. Zeit,
Halle, Nemeyer,1927 [L'être et le Temps,trad. fr. R. Boehm e A. de
Waelhens,parte I, seção1, Paris, Gallimard, 1964]; [2] Vom Wesen
des Grundes,Halle, Nemeyer,1929 ["Ce qui fait l'essentield'un
fondement",trad. fr. H. Corbin, in Qu'est-ceque la métaphysique? ,
Paris, Gallimard (col. "Les Essais"),1938, pp. 47-111; republicado
em Questions1, Paris,Gallimard,1968]; [3] Vom Wesender Wahreit,
Frankfurt sobreo Meno, Klostermann,1943 [De l' essencede la vé-
rité, trad. fr. W. Biemel e A. de Waelhens,in Questions1]; [4] Holz-
wege,Frankfurtsobreo Meno, Kloestermann , 1950 [Chemins quine
menentnulle part, trad. fr. W. Brokmeier,Paris,Gallimard (col. "Les
Essais"),1962]; [5] Vortriige und Aufsiitze,Pfullingen, Neske, 1954
[Essais et Conférences,trad. fr. A. Préau, Paris,Gallimard (col. "Les
Essais"),1958]; [6] Nietzsche,t. II, Pfullingen, [Neske], 1961 [Nietz-
sche,trad. fr. P. Klossowski, t. II, Paris, Gallimard, 1972]. - Sobreas
relaçõesentreM. Foucaulte Heideggerver: [1] LesMots et les Cho-
11
ses,op. cit., cap.IX, L'Homme et sesdoubles",§§ IV eVI, pp. 329-33
e 339-46; [2] "L'Homme est-il mort?" (entrevistaa C. Bonnefoy,
junho de 1966),DE, I, n? 39, p. 542; [3] '-'Ariane s'estpendue"(abril
de 1969),DE, I, n?64, pp. 768 e 770; [4] ''Les problemesde la cultu-
re. Un débatFoucault-Preti"(setembrode 1972), DE, II, n? 109,
p. 372; [5] "Foucault,le philosophe,est ên train de parler. Pensez"
(29 de maio de 1973), DE, II, n? 124, p. 424; [6] "Prisonset asiles
dansle mécanismedu pouvoir" (entrevistaa M . D'Eramo, mar-
ço de 1974),DE, II, n?136, p. 521; [7] "Structuralismeet poststruc-
turalisme" (entrevistaa G. Raulet,primaverade 1983),DE, IV n?330,
AULA DE 23 DE JANEIRO DE 1974 329

p. 455; [8] "Politique et éthique: une interview" (entrevistaa M.


Jay, L. Lõwenthal,P Rabinow,R. Rorty e C. Taylor, abril de 1983),
DE, N, n? 341, p. 585; [9] "Le retour de la morale" (entrevista aG.
Barbedette eA. Scala,29 de maio de 1984),DE, IV, n? 354, p. 703;
[10] "Vérité, pouvoir et soi" (entrevistaa R. Martin, 25 de outubro
de 1982),DE, N, n? 362, p. 780.
12. Na terceiraaula do curso (citado) de 1970-1971,11A von-
tadede saber",Michel Foucaultpretendepropor"a contrapartida"
de uma história da "vontadede conhecer",em que a verdadetem
"a forma imediata,universale despojadada constatação,exterior
ao procedimentodo juízo", sustentandoa necessidade de "escre-
ver toda umahistória dasrelaçõesentrea verdadee o suplício", nas
quais "a verdadenão é constatada , mas julgada na forma do jura-
mentoe da invocação,ela se afina com o ritual do ordálio". Regime,
por conseguin te, no qual II a verdadenão estáligada à luz e ao olhar
que um sujeitopoderiadirigir às coisas,masà obscuridadedo acon-
tecimentofuturo e inquietante".Outrosfragmentosdessahistória
sãopropostosna nonaaula do curso (citado) de 1971-1972,"Teo-
rias e instituiçõespenais",que trata do sistemada prova nos pro-
cedimentosdo juramento,dos ordálios e do duelo judiciário qos
séculosX ao XIII. M. Foucaultse inspira em M. Detienne,LesMaf-
tres de vérítédans la Grecearchaique,Paris,Maspero,1967.
13.A décimaterceiraaulado curso11Teoriase instituiçõespe-
nais", consagradaà 11 confissão,à prova", explicita o sentidodo des-
vio pelo que M. Foucaultchamade "as matrizesjurídico-políticas",
como a prova, a investigação,etc., e distingueentãotrês níveis de
análise:(a) uma 11descriçãohistóricadasciências",em que consis-
te a "história das ciências"; (b) uma "arqueologiado saber",que
leva em contaas relaçõesdo sabere do poder; (c) uma "dinástica
do saber",que, graçasà identificaçãodas matrizesjurídico-políti-
casque a arqueologiapossibilita,se situa no "nível em que ocorre
o máximo de lucro, o máximo de sabere o máximo de poder''
(manuscritodo curso,consultadograçasà gentilezade Daniel De-
fert). M. Foucaultretomaessadistinçãoentre"arqueologia"e "di-
nástica" numa entrevistaa S. Hasumi em setembrode 1972 (DE,
II, n? 119, p. 406). No que concerneà "arqueologia",ver as múlti-
plas definiçõesque M.F. propõe: [1] DE, I, n? 34, pp. 498-9; n? 48,
p. 595; n? 58, p. 681; n? 66, pp. 771-2; [2] DE, II, n? 101, p. 242; n?
119, p. 406; n? 139, pp. 643-4; [3] DE, m, n? 193, p. 167; n? 221, pp.
468-9; [4] DE, IV, n? 281, p. 57; n? 330, p. 443.
330 O PODERPSIQUlÁTRICO

14. D fato, M. F ucault não eguirá sseprograma,salvo as


ob rvaçõ obr o pap 1da infânciana generalizaçãodo sabere
do pod r psiquiátricosno curso d 1974-1975, Les Anormaux,op.
cit., dias 5, 12 19 de março de 1975,pp. 217-301. .
15. Derivadodo inglês arcaico,ordal, julgamento,"julgamen-
to d Deus" ou "ordálio" pretenderesolveras questõeslitigiosas
com a idéia de que Deusintervémna causaa serjulgadapor oca-
sião de prova como as do "fogo'', do "ferro em brasa",da"água
geladaou fervendo",da "cruz", etc. Cf. L. Tanon,Histoire des tribu-
nauxde l'Inquisition en France, Paris,L. Laroseet Forcel,1893: sobre
a penado "fogo", pp. 464-79; sobrea da "cruz", pp. 490-8. Como
salientaJ.-Ph. Lévy, nesseprocedimento,"o processonão é uma
instruçãoque tem por fim buscara verdade... Ele é, primitivamen-
te, uma luta, mais tarde, um apelo a Deus. Remete-sea Deus o
cuidadode fazereclodir a verdade,maso juiz não a buscapessoal-
mente" (La Híérarchie des preuvesdansle droit savantdu MoyenÂge,
depuísla renaissancedu droit romaínjusqu'àla fin du xrve siecle,Pa-
ris, Sirey, 1939, p. 163).
M. Foucaultevocavaa questãodo ordálio na terceiraaula do
curso (citado) de 1970-1971,"A vontadede saber",em que ele sa-
lientava que, nos "tratamentosa que se submeteua loucura, en-
contramosalgo como essaprovaordálicada verdade".A nonaaula
do curso de 1971-1972,consagradaao procedimentoacusatórioe
ao sistemada prova, faz referênciaa isso (cf. supra, nota 12). Ver
também"La vérité et les formes juridiques" (1974), DE, II, n~ 139,
pp. 572-7. - Cf.: [a] A. Esmein,Histoire de la procédurecríminelle en
France, et spécialementde la procédureinquisitoire depuisle XIIIesiecle
jusqu'ànosjo~urs, Paris,Laroseet Forcel, 1882,pp. 260-83. [b] E. Va-
candard,"~Eglise et les ordalies", in Étudesde critique et d'histoire
religieuse,t. I, Paris,V. Lecoffre, 1905,pp. 189-214.[c] G. Glotz, Études
socíaleset juridiques sur l' antiquitégrecque,cap. 2, "~ ordalie", Paris,
Hachette,1906,pp. 69-97. [d] A. Michel, verbete"Ordalies",in Dic-
tíonnaírede théologíecatholique,t. XI, org. A. Vacant,Paris,Letouzey
et Ané, 1930, reed. 1931, col. 1139-1152.[e] Y. Bongert,Recherches
sur les cours laiques du xeau XIIIesíecles,Paris,A. e J. Picard, 1949,
pp. 215-28. [f] H. Nottarp, Gottelsurteilstudien,Munique, Kosel-
~er~ag,:1956. [g] J. Gaudemet,"Les ordalie~au MoyenÂge: doctrine,
legislationet pratiquecanonique",in Recueilde la SociétéJeanBodin,
vol. XVII, t. 2, La Preuve,Bruxelas,1965.
AULA DE 23 DE JANEIRO DE 1974 331

16. Nos procedimentosessencialmenteacusatóriosem que


se trata de invocar Deus como testemunhaparaque ele determi-
ne a justezaou rejeite a acusação,a confissãonão bastaparapro-
nunciar a sentença.Cf.: [a] H. C. Lea, A Hístory of the Inquisitíon
of the Middle Ages,op. cit., t. I, pp. 407-8 [Histoire de l'Inquisition au
Moyen Âge, trad. cit., t. I, pp. 458-9]. [b] A. Esmein,Hístoire de ta
procédurecríminelle..., p. 273. [c] J.-Ph.Lévy, La Hiérarchíe despreu-
ves..., pp. 19-83.- Sobrea confissão,ver Surveilleret punir, op. cit.,
pp. 42-5.
17. A tortura, ao contrário do meio de prova soberanoque é
o ordálio - expressãodo testemunhode Deus-, é umamaneirade
provocara confissãojudiciária. É quandoo papaGregório IX en-
carregaem 1232os dominicanosde estabelecer um tribunal de In-
quisição,especializadona buscae na puniçãodos heréticos,que o
procedimentoinquisitorial se integraao direito canônico.O recur-
so à tortura judiciária é aprovadopela bula de InocêncioIV de 15
maio de 1252,Ad Extirpanda, depois,em 1256, pela de Alexandre
IV, Ut NegotíumFidei. Evocandoa questãoda Inquisiçãona tercei-
ra aula do curso (citado) de 1970-1971,"A vontadede saber",M.
Foucault diz dela que "se trata de algo totalmentediferente da
obtençãode umaverdade,de uma confissão... É um desafioque,
no interior do pensamentoe da prática cristãos,retomaas for-
mas ordálicas".Ver Surveilleret punir, pp. 43-7; DE, II, n? 163, pp.
810-1.- Cf.: [a] H. C. Lea, Histoire de l'Inquísítion..., t. I, cap. 9, uLa
procédureinquisitoriale", pp. 450-83; sobre a tortura, pp. 470-8.
[b] L. Tanon, Hístoire des tribunaux de l'Inquisition..., op. cit., seção
III, "Procéduredes tribunaux de l'Inquisition", pp. 326-440.[c] E.
Vacandard,L'Inquisition. Étude historique et critique sur le pouvoir
coercitifde l'Église, ParisrBloud et Gay, 3~ ed., 1907,p. 175. [d] H. Le-
clercq, verbete"Torture", in Dictionnoire d'archéologiechrétienneet
de liturgie, t. XV, org. F. Cabrol,H. Leclercq,H. -I. Marrou, Paris,Le-
touzeyet Ané, 1953, col. 2447-2459.[e] P. Fiorelli, La Tortura giudi-
ziaria nel diritto comune,Milão, Giuffre, 1953.- Sobrea Inquisição
em geral, pode-seconsultar:[a] J. Guiraud,Histoíre de l'Inquisition
au MoyenAge,Paris.A. Picard,2 vol., 1935-1938.[b] H. Maisonneu-
ve, Étudessur les origines de L'Inquisition, 2~ ed. rev. e aum., Paris,J.
Vrin, 1960.
18. Essaquestãofoi objeto da décimaterceiraaula do curso
(citado) de 1971-1972,"'Teoriase instituições penais",consagrada
3 2

à confi ão, ao inqu; rito à prova.Ver o re umo do curso, DE, II,


n? 115, pp. 390-1. . .
19. · f. M. Eliade,Forgeronset Alchimistes(1956), nova ed. rev.
e aum., Paris, Fla..nunarion(col. "Idé et Recherches"),1977,p. 136:
/f enhumavirtude e nenhumaerudiçãopodiam dispensara ex-
peri"ncia iniciática, que era a única capazde efetuara ruptura de
nível implicadana 'transmutação''';e p. 127: "Toda iniciaçãocom-
porta uma sériede provasrituais que simbolizama morte e a res-
surreiçãodo neófito.''
20. Como Lucien Braun lembraránuma comunicaçãosobre
/' Paracelso e a alquimia", "o procedimentodo alquimistadeve ser
o tempo todo o de um pesquisadorà espreita... Paracelsovê no
processo alquímico um parto constante,em que o momentosub-
seqüenteé sempresurpresaem relaçãoao que o precede",in Al-
chimie et Philosophie à la Renaissance (Actesdu colloqueinternational
de Tours, 4-7 décembre1991), org. por J.-C. Margolin e S. Matton,
Paris,Vrin, 1993, p. 210. Cf. tambémM. Eliade, op. cit., pp. 126-9,
sobreas fasesdo "opus alchymicum".
21. [a] W. Ganzenmüller,[1] DieAlchemieim Mittelalter; Pader-
bom, Bonifacius,1938 [L'Alchimie au MoyenAge, trad. fr. G. Petit-
Dutaillis, Paris,Aubier, 1940]; [2] estudosreunidosem Beitriige zur
Geschichteder Technologieund der Alchimie,Weinheim, Verlag Che-
mie, 1956. [b] F. SherwoodTaylor, The Alchemists,Founders of Mo-
demChemistry,NovaYork, H. Schuman,1949. [e] R Alleau, Aspects
de l'alchimie traditionnelle, Paris, Éditions de Minuit, 1953. [d] T.
Burckhardt,Alchemie,Sinn und Weltbild, Olten,Walter-Verlag, 1960.
[e] M. Caron e S. Hutin, Les Alchemistes , Paris, Le Seuil (col. "Le
tempsqui court"), 2~ ed., 1964. [f] H. Buntz, E. Ploss,H. Roosen-
Runge,H. Schipperges, Alchimia: IdeologieundTechnologie,Munique,
Heinz Moos Verlag, 1970. [g] B. Husson,Anthologiede l'alchimie,
Paris,Belfond, 1971. [h] F. A. Yates,Giordano Bruno and the Hennetic
Tradition, Londres,Routledge& Kegan Paul, 1964 [Giordano Bru-
no et la tradition hermétique,trad. fr. M. Rolland,Paris,Dervy-livres,
1988]. M. Foucaultabordaa questãoda alquimia em suaterceira
conferênciasobre"La vérité et les formesjuridiques''{23 de maio
de 1973),DE, II, n? 139, pp. 586-7,e em''La maisondesfous" (1975),
DE, II, n? 146, pp. 693-4.
na
22. Hipócrates,nascidoem 460 ilha dórica de Cós, naÁsia
Menor, falecído em 375 a.C. em Larissa, naTessália.Suasobras,
AULA DE 23 DE JANEIRO DE 1974 333

escritasno dialetojônio dos homensde saber,constituemo núcleo


do que virá a ser o Corpus hipocrático. Cf.: [a] Gossen,verbete
"Hippocrates",in Realencyclopadie der classischenAltertumswíssens-
chaft, org. A. F. Paulye G. Wissowa,t. VIII, Stuttgart,Metzler, 1901,
cal. 1801-1852. [b] M. Pohlenz,Híppokrates und die Begründungder
wíssenschaftlíchen Medizin, Berlim, De Gruyter, 1938. [c] C. Lich-
tenthaeler,La Médecinehippocratique(série de estudosem francês
e em alemão),Genebra,Droz, 9 vol., 1948-1963.[d] L. Edelstein,
"Nachtrage:Hippokrates", in Realencyclopéidie ..., suplementoVI,
1953, cal. 1290-1345.[e] R. Joly, Le Niveau de la sciencehippocrati-
que. Contribution à la psychologiede l'hístoire des sciences,Paris,Les
Belles Lettres,1966. [f] J. Jouanna,Hippocrate. Pour une archéologie
de l'école de Cnide, Paris,Les Belles Lettres,1974.A ediçãode base
das obrasde Hipócratescontinuasendoa ediçãobilingüe de Lit-
tré (op. cit. supra, nota 10).
23.ThomasSydenham(1624-1689),médicopráticoinglêsco-
nhecido pelasmudançasque introduziuno sabermédico.- Como
notaM. Foucaultem Histoire de la folie (op. cit., ed. de 1972,pp. 205-
7), ele organizouo saberda patologiade acordocom novasnor-
mas,ao erigir em métodoa observação,levandoem contaos sin-
tomasdescritospelo doente,contraos sistemasmédicosque,como
o galenismoou a iatroquímica,recorrema um enfoqueespeculati-
vo - o que lhe valeu o nomede "Hipócratesinglês" -, e elaborando
uma descrição"naturalista" das doençasque oferecea possibili-
dadede reduziros casosclínicos a "espécies"mórbidas,definidasà
maneirados botânicos.Ele publica o resultadodassuasobserva-
çõesem suasObservationesmedicaecirca morborumacutorumhisto-
riam et curationem.Methoduscurandifebres,propiis observationibus
superstructa,Londini, Kettilby, 1676. - Cf.: [a] K. Faber, Thomas
Sydenham,der englischeHippocrates, und die Krankheitsbegrífeder
Renaissance,Munique,MedizinischeWochenschrift,1932,pp. 29-33.
[b] E. Berghoff, Entwicklungsgeschichtedes Krankheítsbegríffes,
Vie-
na, W. Maudrich,1947,pp. 68-73. [c] L. S. King, "Empiricism and
Rationalismin the Works ofThomasSydenham",Bulletin of the His-
tory of Medicine,vol. 44, n? 1, 1970,pp. 1-11.
Sydenhamé um dos que, como recordaM. Foucaultem His-
toire de la folie (ed. de 1972, pp. 305-8), contribuírampara privi-
legiar uma explicaçãoda histeria em termosde distúrbiosfisioló-
gicos dos nervos,referidosàs desordensdos "espíritosanimais",
334 O PODERPSIQU!ATRICO

contra a explicaçãotradicional que fazia referênciaao útero e ao


modelohumoraldos "vapor sv: ''A afecçãohistérica[...] vem uni-
camenteda desordemdos espíritosanimais,nãoé produzida,como
dizem algunsautores,por uma corrupçãodo sêmenOú do sangue
m nstrualque levariavaporesmalignosaoslocais afetados"(Dis-
sertatioepistolarisad G. Cole de observationisnuperiscirca curationem
variolarum, conjluentium,necnonde affectionehysteríca,Londini, Ket-
tilby, 1682 [Dissertatíonen fonnede lettre à GuillaumeCole, in Oeuvres
de médecinepratique,trad. fr.A. F. Jaulte J.-B. Baumes,t. II, Montpel-
lier, J. Tourel, 1816,pp. 65-127; texto citado, p. 85]). Cf.: I. Veith, [lJ
"On Hystericaland HypochondriacalAffections", Bulletin of the
History of Medicine,vol. 30, n? 3, 1956, pp. 233-40; [2] Hysteria:
the History of a Disease,Chicago, Ill., Chicago University Press,
1965 [Histoire de l'hystéríe,trad. fr. S. Dreyfus, Paris,Seghers(col.
''Psychologiecontemporaine"),1973, pp. 138-46]. - Mais geral-
mente: [a] Ch. Daremberg,Histoíre des sciencesmédicales,compre-
nant l' anatomie,la physiologi.e,la médecine,la chirurgi.e et les doctrines
de pathologi.egénérale,t. II, cap.23, "Sydenharn,savie, sesdoctrines,
sa pratique,son influence", Paris,J.-B. Bailliere, 1870, pp. 706-34.
[b] K. Dewhurst, Dr ThomasSydenham(1624-1689): His Life and
Origi.nal Writings, Londres,Wellcome Historical Medical Library,
1966. - Ver as ediçõesinglesae francesadassuasobras: [1] The
Works ofThomasSydenham,Translatedfrom the Latin Edition of Dr
Greenhill, with a Life oftheAuthor, por R. G. Latham,Londres,Syden-
ham Society, 2 vol., 1848-1850;[2] Oeuvresde médecinepratique
(citado nestanota).
24. Michel Foucaultse apóia na obra de John Barker (men-
cionadano manuscrito),Essai sur la conformitéde la médednedes
ancienset des modernes,en comparaisonentre la pratiqued'Hippocrate,.
Galien, Sydenhamet Boerhaavedans les maladíesaigues,trad. fr. R.
Schomberg,Paris, Cavalier, 1749, pp. 75-6: "É de necessidadein-
dispensávelpara ele [o médico; J.L.] instruir-se a fundo sobre a
doutrina das crisese dos dias críticos [...], capacitar-sea descobrir
se a cocçãodos humoresse fazcomo deveser ou nãb, paraquan-
do se deve esperara crise, de que gêneroela deve ser e se ela ai
levar inteiramenteemborao mal ou não." Ver tambémJ.-B. Ay-
men, Dissertation[sur) les jours critiques..., Paris,Rault, 1752.Ates-
ta a importânciada noçãoo fato de que o verbete"Crise" na Ency-
clopédieou Dictionnaire raisonnédes sciencesdes arts et des métiers
1
/ I
AULA DE 23 DE JANEIRO DE 1974 335

de D'Alemberte Diderot, é assinadopor um grandenomeda me-


dicina,ThéophileBordeu (1722-1776)e ocupa18 páginasin-fólio
(t. N , Lausanne,Sociététypographique,1754).
25. A 1epicnçdesignao momentoem que se produz,na evo-
lução de uma doença,uma mudançadecisiva:"Há crise nasdoen-
ças quandoelas aumentam,se debilitam, se transformamnuma
outra doençaou terminam" (Hipócrates,Affectíons,§ 8, in Oeuvres
completes,ed. Littré, op. cit., t.VI, 1847, p. 216). Cf.: [a] G. Hamelin,
verbete"Crise", in Dictionnaire encyclopédiquedes sciencesmédica-
les, 1~ série, t. XXIII, Paris,Masson/Asselin , 1879, pp. 258-319. [b]
P. Chantraine,verbete Kpicnç" in Dictionnaire étymologi,quede la
11

Zanguegrecque,op. cit., t. II, p. 584. [c] L. Bourgey,Obseroationet ex-


périence chezles médecinsde la Collection Hippocratique,Paris,Vrin,
1953,pp. 236-47.- Sobreos termosmédicosgregos,N. van Brock,
Recherchessur le vocabulairemédica[du grec ancien.Soinset guérison,
Paris,Klincksieck, 1961.Ver M. Foucault,DE, II, n? 146, pp. 693-4.
26. O que é, com poucadiferença,a definição propostapor
Syndenhamem suasObseroationesmedicae,seçãoI, cap. 1, § 1: "A
doençaoutra coisa não é que um esforçoda naturezaque, para
conservaro doente,trabalhacom todasas suasforçasparaevacuar
a matériamorbífica" (citado por Ch. Daremberg,Histoire des scien-
ces médicales,op. cit., t. II, p. 717).
27. Na Histoire de la folie, Michel Foucaultjá apontavaodes-
locamento quese efetuana medicinado séculoXVIII, quando,em
lugar de aos espíritosanimais" é aos elementoslíquidos e sóli-
II II

dos do corpoque se pedeo segredodasdoenças"(ed. de 1972,pp.


245 e 285).-HermannBoerhaave(1668-1738),integrandoas con-
tribuiçõesda física, da químicae dasciênciasnaturais,faz da doen-
ça o resultadode uma alteraçãodo equihbrio dos sólidose dos lí-
quidos: Instítutionesmedicae,in ususannaeexercitatíonisdomesticas
digestae,Leiden,Van der Linden, 1708,p. 10 [Institutíons de médeci-
ne, trad. fr. J. O. de la Mettrie, t. I, Paris,Huart,1740].Cf.: [a] Ch. Da-
remberg,Histoire des sciencesmédicales,t. II, cap.XXVI, pp. 897-903.
[b] L. S. King, The Backgroundof Hermann Boerhaave's Doctrines
(BoerhaaveLecture, Held on September17th, 1964), Publicaçõesda
Universidadede Leiden, 1965.
Friedrich Hoffmann (1660-1742),médicoem Halle, conside-
ra as doençascomo o resultadode alteraçõesdas partessólidase
líquidasdo corpo e de suasfunçõese, em coerênciacom suapers-
O PODERPSIQUIATRICO
336

p ctiva m canici ta, atribui ~ ~andepapel às m~dificaçõ s da


tonicidad das fibra e da m carucad fluxo sangw.neo:[1} Fun-
damentamedicinae ex princípíis mechanicis et practicis in usumPhilia-
trorum succinteproposita [...] jam auctaet emendata,etc., HalaerMag-
d burgicae, 1703 [trad. ing. L. S. King, Londr~s~Mac~onal?/Nova
York, Am rican Elsevier, 1971, p. 10]; [2] Medicina rationalts syste-
mica, Halle, Renyeriana,2 vol., 1718-1720 [La Médecineraisonnée
deM . Fr. Hoffmann, trad. fr, J.-J. Bruhier, Paris,Briasson,1738]. Cf.:
[a] Ch. Daremberg,Histoire..., t. II, pp. 905-52. [b] K. E. Rothschuh,
" Studien zu FriedrichHoffmann (1660-1742)", StudhoffsArchivfür
Geschichte der Medizin, vol. 60, 1976, pp. 163-93 e 235-70. - Sobre
essa medicinado séculoXVIII, ver as contribuiçõesde L. S. King.
[1] TheMedical World of the EighteenthCentury,Chicago,Univer-
sity of ChicagoPress,1958; [2] "MedicalTheoryandPracticeat the
Beginningof the EighteenthCentury'',Bulletin ofthe History ofMe-
dicine, vol. 46, n? 1, 1972, pp. 1-15.
28. Hipócrates,Épidémies,I, 3~ seção,§ 12, in Oeuvrescomple-
tes, ed. Littré, op. cit., t. II, 1840, pp. 679-81: "As doençasque têm
recaídasnos dias paressãojulgadasnos dias pares;as que têm re-
caídasnos dias ímparessãojulgadasnos dias ímpares.Nas afec-
çõesjulgadasnos dias pares,o primeiro períodose dá no 4? dia,
depois,sucessivamente, no 6?, 8?, 10?, 14?, 20?, 40?, 60?, 80?, 100?...
É importanteatentarparaisso e lembrar-sede que, nessestempos
da doença,as crisesserãodecisivasparaa salvaçãoou paraa mor-
te, ou pelo menosque o mal se inclinará notadamenteparao me-
lhor ou o pior."
29. Sobre a determinaçãodos dias fastos ou nefastospara
consultarum oráculo, cf. P. Amandry, La Mantique apollinien.neà
Delphes.Essai sur le fonctionnementde l' oracle, cap.VII "Fréquence
des consultations-",Paris, E. de Boccard,1950, pp. 81-5. Sobre a
''mântica"grega,derivadado verboµaV'tE'Óeo8at,quesignifica "pro-
nunciar o oráculo", conjeturara partir dos oráculos,fazer-seadi-
~º (µá.vnç),em geral,o livro básico,apesarde envelhecido,con-
tinua sendoo de A. Bouché-Leclercq,Histoire de la divination dans
l'Antiquité, Paris,Leroux, 4 vol., 1879-1882.Igualmente:[a] W. R.
Halliday, Greek_Divination: A Study,of its Methodsand Principies,
Londres,Macmillan, 1913. [b] J. Defradas,"La divination en Gre-
ce", in A. Caquote M. Leibovici, o;rg., La bivination, t. I, Paris,PUF,
1968,pp. 157-95.[c~ ~- Fl~celiereJDevinset Oraclesgrecs,.op. cit. [d]
J.-P.Vemanted., Divznatwnet Rationalité,Paris,Le Seuil, 1974.
AULA DE 23 DE JANEIRO DE 1974 337

30. Hipócrates,Epidemias,III, 3~ seção,§ 16, em que consi-


11

derauma parteimportanteda arte da medícina"a capacidadede


"observara ordemdos dias críticos e daí extrair os elementosdo
prognóstico.Quandose sabeestascoisas,sabe-setambéma que
doente,quandoe de que maneirase deve dar a alimentação"(in
Oeuvrescompletes,ed. Littré, op. cit., t. III, p. 103).
31. Hipócrates,Prognóstico,§1: "O melhormédicoparece-me
seraqueleque sabeconhecerde antemão... Ele trataráas doenças
tanto melhor se souber,com ajuda do estadopresente,prever o
estadopor vir" (in op. cit., t. II, p. 111).
32. Segundoos próprios termos de Hipócrates,a tarefa do
médico é "combater(av-cayovtcraa0aí)com sua arte cadaum dos
acidentes"(Zoe. cit.). Ou ainda, conhecendo-se
11
a causada doença,
estar-se-áem condiçãode administrarao corpo o que lhe é útil,
partindo dos contráriospara se opor [ÉK -coü EVav-cíoué1ttcr-cáµEVoç]
à doença"(DesVents,I, in op. cit., t. VI, p. 93; retrad.fr. J.L.).
33. Tornado de empréstimoao vocabuláriojurídico, o termo
krísis significa julgamento", decisão",antesde designarem me-
11 11

dicina o momentocrucial em que "a doençaé julgada [KptvE-caí]


para a morte ou para a vida" (Des Affectionsinternes,21-220, 9, in
op. cit., t.VII, p. 217). Ou tambémnestaexpressãodasEpidemias,I,
2~ seção,§4: "Em alguns [...], a doençafoi julgadapor uma crise"
(in op. cit., t. II, p. 627). Quantoao médico,ele é julgado pelo sen-
so deoportunidadedassuasintervenções;cf. Des maladies,I, 5 (ci-
tado), pp. 147-51.
34. Ver as cenasmédicasnas peçasde Moliere (1622-1673):
[1] O amor médico(representadoem 14 de setembrode 1665), ato
II, cena2, em que quatro médicosintervêm, e cena(3-4) da con-
sulta, in Oeuvrescompletes,ed. por M. Rat, t. II, Paris, Gallimard
("Bibliotheque de la Pléiade"), 1947, pp. 14-25; [2] Monsieur de
Pourceaugnac(6 de outubrode 1669),cujo ato I, cena7-8, faz inter-
vir dois médicose um boticário, in op. cit., pp. 114-20; [3] O doente
imagi.nário (10 de fevereiro de 1673t obra póstuma(1682t ato II,
cena5-6, e ato IIt cena5, in op. cit., pp. 845-57e 871-3.- Cf. F. Mil-
lepierres,La Vie quotidiennedes médecinsau tempsde Moliere, Paris,
Hachette,1964.
35. Referênciaa um episódioocorridoquandoda primeiraes-
tada de Galena(nascidoem Pérgamo,em 129) em Roma,do ou-
tono de 162 ao verão de 166, antesde voltar e aí se estabelecerde
338 O PODER PSIQUlÂTRI O

169 à ua m rt , por volta d 200. Cf. De Praecognitione[178], § 13,


in Opera Omnia1 ed. trad. latina . G. ~ü~n, t. xrv, Lipsi~:' in of-
ficina C. Cnoblochil,1827,pp. 666-8.HoJedispo~osda ediçao da e:
traduçãoingle.a de Vivian Nutton, On prognosts.Corpus Medico-
rum Graecorum,V,8, 1., Berlim,Akademie-Verlag, 1979,pp.135-7.
Sobr as relaçõesde Galeno com o meio médico romano, cf. J.
Walsh,"GalenClasheswith the Medical Sectsat Rome (163AD)",
Medical Life, vol. 35, 1928,pp. 408-44.Sobrea suaprática: [a] J. Il-
berg, "Aus GalensPraxis. Ein Kulturbild aus der rõmischenKai-
serzeit",NeueJahrbücherfür das klassische Altertum,Leipzig, Teub-
ner, vol. 15, 1905, pp. 276-312. [b] V. Nutton, "The Chronologyof
Galen'sEarly Career", The Classical Quarterly, vol. 23, 1973, pp.
158-71.
36. Essapassagemfaz eco aos numerososdesenvolvimentos
que M. Foucaultconsagrouao "inquérito": [1] Curso (citado) de
1971-1972,"Teoriase instituiçõespenais",cuja primeirapartetra-
ta doinquérito e do seudesenvolvimentona IdadeMédia, DE, II,
n? 115,pp. 390-1; [2] Curso (citado) de 1972-1973,"A sociedadepu-
nitiva", em que M. Foucaultretoma,na aula de 28 de março de
1973,à constituiçãode um "saberde inquérito"; [3] Terceiraconfe-
rência sobre "A verdade e as formas jurídicas" (23 de maio de
1973),que abordaa questão,DE, II, n? 139, pp. 581-8. M. Foucault
retomaráao processoda colonizaçãode uma ''verdade-prova"na
forma do acontecimento,por uma "verdade-constatação" na for-
ma do conhecimento,em 1975, DE, II, n? 146, pp. 696-7.
37. Ou seja,na segundametadedo séculoXVIII, pois Friedrich
Hoffmann, que ainda acreditavana teoria das crises,emborafi-
zessereservasà noção de dias críticos, morreu em 1742. Cf. Ch.
Daremberg,Histoire des sciencesmédicales,op. cit., t. II, p. 929.
38. Essequadriculamento,que data da organizaçãoda cor-
respondênciasanitáriaadministrativapelos intendentes,a fim de
colher informaçõessobre as epidemiase as doençasendêmicas ,
encontrasua expressãoinstitucionalna criação,por iniciativa de
Turgot, em 29 de abril de 1776,da "Real Sociedadede Correspon-
dênciaMédica'', que se torna, em 28 de agostode 1778, a "Real
Sociedadede Medicina", encarregada de estudarepidemiase epi-
zootias,desaparecendo em 1794. Cf. C. Hannaway,"The Société
~oyale de Médecineand Epidemiesin the Ancient Regime",Bulle-
tm of the History of Medicine,vol. 46, n? 3, pp. 257- 73. Sobreessas
AULA DE 23 DE JANEIRO DE 1974 339

investigações : [a] J. Meyer, "Une enquêtede l' Académiede méde-


cine sur les épidémies(1774-1794)", AnnalesESC, 21? ano, n? 4,
agostode 1966,pp. 729-49. [b] H. Dupin e L. Massé,"Une enquê-
te épidémiologiqueà péripéties multiples : l'étude de la pellagre",
Revued'épidémiologi,e , médecinesocialeet santépublique,vol. XIX, n?
8, 1971, pp. 743-60. [e] J.-P. Peter, [1] ''Une enquêtede la Société
Royale de Médecine.Maladeset maladiesà la fin du XVIII esie-
cle", AnnalesESC,22? ano, n? 4, julho-agosto de1967,pp. 711-51;
[2] "Les mots et les objets. de la maladie.Remarquessur les épi-
démieset la médecinedansla sociétéfrançaisede la fin du xvrne
siecle", Revuehistori.que,n? 499, 1971, pp. 13-38. [d] J.-P. Desaive,
P. Goubert,E. Le Roy Ladurie,Médecins,climats et épidémiesà la fin
du XVIIJe siecle, Paris, Mouton, 1972.Ver as páginasque M . Fou-
cault consagraao tema em Naissancede la clinique, op. cít., cap. 2,
"Une consciencepolitique", pp. 21-36.
39. Sobreo desenvolvimentodo equipamentohospitalare o
adventode uma polícia médica,reportar-seaos artigos de: [a] G.
Rosen,[1] "Hospitals,Medical Careand SocialPolicy in the French
Revolution", Bulletin of the History of Medicine,vol. 30, n? 1, 1956,
pp. 124-49; republicadoem From Medical Police to Social Medici-
ne: Essayson the History ofHealth Care, NovaYork, ScienceHistory
Publications,1974,pp. 220-45; [2] A History ofPublic Health, Nova
York, MD Publications,1958; [3] "Mercantilism and Health Policy
in Eighteenth-centuryFrenchThought", Medical History, vol. III ,
outubro de 1959, pp. 259-77; republicadoem From Medical Poli-
ce..., pp. 201-19. [b] M. Joeger,[1] ''Les enquêteshospitalieresau
xvrrresiecle", Bulletin de la Socíétéfrançaise d'histoire des hôpitaux,
n? 31, 1975, pp. 51-60; [2] "La structurehospitalierede la France
sousl'Ancien Régime",AnnalesESC,32? ano, n? 5, setembro-outu-
bro de 1977, pp. 1025-51. [c] M.-J. Imbault-Huart "L'hôpital,
centre d'une nouvelle médecine(1780-1820)",in Zusammentrang
Festschri.ftfür Mari.lene Putscher,t. II, Colônia, Wienand,1984, pp.
581-603.- M. Foucaultconsagravários desenvolvimentosa essa
questão:[1] Naíssancede la clinique, cap.V, "La leçon des hôpi-
taux', pp. 63-86; [2] "La politique de la santéau xvrrresiecle", in
Les Machinesà guérir. Aux origines de l'hôpital moderne.Dossierset
documents,Paris, Institut de l'Environnement,1976, pp. 11-21
(republicadoem DE, III, n? 168, pp. 13-27); [3] toma sobreela em
sua primeira conferênciasobrea história da medicinano Rio de
340 O PODERPSIQUIATRICô

Jan iro, m outubro d 1974, /.l'Cri de la médecineou crise de


I'antim' d cm '' (DE, m, n? 170, pp. 50-4) e na terceira, "I.;incor-
porationde Yhôpital dansla technologiemoderne",DE, m, n? 229,
pp. 508-21. . . . 11
40. Cf. M . Foucault,Nazssancede la clinique, cap.VIII . Ouvrez
quelquescadavres " , pp. 125-49. E. H_. Ackerknecht,La Médecine
hospitaliere à Paris (1794-1848), trad. c1t., pp. 209-14.
41. M . Foucaultdesenvolveesseponto em suasegundacon-
ferênciano Rio de Janeiro,"La naissancede la médecinesociale" ,
DE, I I ' n? 196, pp. 212-5. Cf.: [a] G. Rosen,"Problemsin the Ap -
plication of StatisticalKnowledgeAnalysis to Questionsof Health
(1711-1880t,Bulletin of the History ofMedicine,vol. 29, n? 1, 1955,
pp. 27-45. [b] M. Greenwood,Medical Statisticsfrom Graunt to Farr,
Cambridge,CambridgeUniversity Press,1948.
42. Assim, Georgetenunciacomo "1? princípio: nuncaexer-
citar o espírito dos alienadosno sentidodo seudelírio", no capítu-
lo V, "Traitement de la folie", da suaobra De la folie. Considérations
sur cette maladie..., op. cit., p. 280. E Leuret declaraque "deve-se
impor silêncio aodoenteacercado seudelírio e ocupá-lo com ou-
tra coisa" (Du traitementmoral de la folie, op. cit., p. 120). Sobreesse
"princípio de distração",cf. supra, pp. 146-7, nota 6.
43. Recursoàs pesquisasanatomopatológicas que um Jean-
Pierre Falret preconizana introdução (setembrode 1853) de Des
maladiesmentales,considéréessousles rapports médica!,hygi.éniqueei
médico-légal,op. cit., p. V: "Ao contrário das doutrinasdos nosso~
mestres,nós cedemos,como os demais,a essadireçãoanatômica
da ciência, que na épocaera consideradacomo a verdadeirabase
da medicina... Não demoramosa nos convencerde que somente
a anatomiapatológicapodia fornecer a razão primeira dos fenô-
menosobservadosnos alienados." - Assim, em Charentonse de-
senvolvempesquisasanatomopatológicas que resultamem publi-
cações:[a] Jean-BaptisteDelaye (1789-1879),médico do serviçc
de Esquirol, defendeem 20 de novembrode 1824 suateseintitu-
lada.Considérarionsur uneespecede paralysiequi affecteparticuliere-
mentles aliénés,Th. Méd. Paris,n? 224, Paris,Didot, 1824. [b] Louis
Florentin Calmei! (1798-1895),interno do serviço de Royer- Col-
lard, médico-chefeem Charentonde 1805 à sua morte em 18251
publica De la paralysie considéréechez les aliénés. Recherchesfaite!
da~s.!eservicede feu M. Royer-Collard et de M. Esquirol, Paris,J.-B,
Bailliere, 1826. [c) Antoine LaurentJesséBayle, que entraem outu~
AULA DE 23 DE JANEIRO DE 1974 341

bro de 1817paraessemesmoserviço,aí faz suaspesquisasanatô-


micasque conduzemà suatesede 1822,Recherches sur les maladíes
mentales.Recherchessur l' arachnitis chronique,la gastrite, la gastro-
entérite et la goutte considéréescommecausesde l'alíénatíonmentale
(Th. Méd. Paris, n? 147,Paris,Didot, 1822),bemcomo à suaobrade
1826, Traité des maladiesdu cerveauet de sesmembranes (cf. supra,
p. 175, nota 17).Ver J. E. D. Esquirol, "Mémoire historiqueet statis-
tique sur la Maison Royalede Charenton " (1835),op. dt. [in Des ma-
ladies mentales..., t. II],§ "Ouverturede corps", pp. 698- 700. - Na
Salpêtriere: [a] Jean-PierreFalret expõe em 6 de dezembrode
1823 no Ateneu de Medicina os resultadosde suaspesquisas:In-
ductions tirées de l'ouverturedu corps des aliénés pour servir au diag-
nosticet au traitementdesmaladiesmentales,Paris,BibliothequeMé-
dicale, 1824. [b] Étienne Georgetapresenta,no capítuloVI, "Re-
cherchescadavériques.Étudesde l'anatomiepathologique", do seu
livro De la folie (op. cit., pp. 423-31), os resultadosde cercade tre-
zentasaberturasde corpos de alienadasmortas no hospício da
Salpêtriere.[c] A. [de] Foville faz pesquisasanatômicasque resul-
tam na sua tese Observationscliniques propres à éclairer certaines
questionsrelatives à l' aliénation mentale,Th. Méd. Paris,n? 138, Pa-
ris, Didot Jeune,1824. [d] Félix Voisin faz trabalhosanatômicos
paraa suaobra Des causesmoraleset physiquesdes maladiesmentales
et de quelquesautresaffectionstelles que l'hystérie,la nymphoman
ie et
le satyriasis,op. cit.
44. Por exemplo,é C. C. H. Marc que retomao casoda mulher
de um jornalistade Sélestat- a qual, em julho de 1817, mata sua
criançade quinzemeses,corta-lhe a coxa direita, cozinha-a e come
um pedaço- e analisao relatório médico-legaldo dr. F. D. Reissei-
sen,"Examend'un casextraordinaired'infanticide" (publicadoori-
ginalmenteem alemãono ]ahrbuch der Staatsartheilkund , org. por J.
H. Kopp, vol. XI, 1817), em sua obra De la folie considéréedans ses
rapports avecles questionsmédico-judiciaires,t. II, Paris,J.-B. Bailliere,
1840, pp. 130-46. Étienne Georgetdebruça-sesobrevários casos
criminais: [1] Examenmédica[des procescriminels de Léger,Feldmann,
Lecouffe,Jean-Pierre, Papavoine,dans lesquelsl'aliénation mentalea
été alléguéecommemoyende défense , suivi de quelquesconsidérations
médico-légalessur la liberté morale,Paris,Migneret,1825; [2] Nouvel-
les discussionsmédico-légalessur la folie ou l'aliénation mentale,suivies
de l'examende plusieursprocescriminels dans lesquelscettemaladiea
342 O PODE.RPSIQllIATRICO

étéallégué comm moyende défense,Pari , Mign r .t, 1826.- Sobre


trat "gia m,,dica , pode- e r met r a~ [a] R. Castel, "Les
m 'd cins t 1 s jug s", in Moi, Pierre Rivíere1 ayantégorgéma mere,
ma so ur et monfrere. Un cas de parricide au XIXesiecle,apresenta-
do por M. Foucault,Paris,Gallimard (col. '½rchives"49), 1973,pp.
315~31. [b] P. Devernoix, Les Aliénéset l'expertisemédico·légale
. Du
pouvoir discrétionnairedesjugesen matietecriminelle, et desinconvé-
nient qui en résultent,Toulouse,D. Dirion, 1905. Michel Foucault
tornarásobreessescasosem seu curso Les Anonnaux,op. cit., em
29 de janeiro e 5 de fevereiro de 1975, pp. 94-100 e 101-26.
45. É numanota do capítulo4, "De l'impulsion insolite à une
action déterminée",seçãoIIT, do tratadode J. C. Hoffbauer,Méde-
cine légalerelative auxaliénéset aux sourd-muets,ou les lois appliquées
aux désordresde l'intelligence (trad. fr. A. M. Chambeyron,com notas
de ltard e Esquirol, Paris,J.-B. Bailliere, 1827, pp. 309-59),que Es-
quirol dá a definiçãodela: "Existe uma espéciede monomaniaho-
micida na qual não se pode observarnenhumadesordemintelec-
tual ou moral; o assassinoé arrebatadopor uma força irresistível,
por um arrebatamento que ele não conseguedominar,por um im-
pulso cego,por uma deterrninaçãóimpensada,seminteresse,sem
motivo, sem desvario,a um ato tão atroz" (republicadoem Des
maladiesmentales..., op. cit., t. II, p. 804). Michel Foucaulttoma so-
bre essaquestãoem LesAnonnaux,nos dias5 e 12 de fevereiro de
1975,pp. 110-3 e 132-7. - Sobrea história do conceito,cf.: [a] R.
Fontanille, Aliénation mentale et Criminalité (Historique, experti.se
médico-légale,internement),Grenoble,Allier Freres,1902. [b] P. Du-
buissone A. Vigouroux, Responsabilitépénaleet Folie. Étudemédico-
légale, Paris,Alcan, 1911. [e] A. Pentana,"Les intermittencesde la
raison", ín Moí, Pierre Riviere..., pp. 333-50.
46. Assim, C. C. H. Marc declaraque uumadasfunçõesmais
gravese mais delicadasque podemser confiadasao médicolegista
é a de determinarse a alienaçãomentalé real ou fingida" ("Maté-
riaux pour l'histoire médico-légalede l'aliénationmental.e",Annales
d'hygienepubliqueet de médecinelégale, t. TI, 2~ parte,Paris,Gabon,
1829, p. 353).
47. Michel Foucaultfaz alusãoaosmovimentosde crítica ins-
titucional quesedesenvolveramno pós-guerrae quedenunciavam
~ asilo~ herdeiro medicalizadodos hospitais gerais da "grande
mtemaçao",o qual se havia tomado uma instituição patogênica
AULA DE 23 DE JANEIRO DE 1974 343

pelascondiçõesde vida que reservavaaos doentes(cf. o relatório


de assistênciaapresentadopor Lucien Bonnafé,Louis Le Guillant
e Henri Mignont, {/Problemesposéspar la chronicité sur le plan
des institutions psychiatriques",ín XIP congresde Psychíatrieet de
Neurologi,ede Zanguefrançaise(Marseille, 7-12 septembre1964), Paris,
Masson,1964).A questãoeraentãosaberse "o objetivo perseguido
pelainstituição[...] é verdadeiramente conformea esseobjetivo,tal
como podemosconcordarem formulá-lo: a terapêuticapsiquiá-
trica" (L. Bonnafé,"Le milieu hospitaliervu du point de vue thé-
rapeutique,ou théorie et pratiquede l'hôpital psychiatrique",La
raison, 1958, n? 17, p. 26), e tratava-sede promover"a utilização
do próprio meio hospitalarcomo tratamentoe readaptaçãoso-
cial" (ibid., p. 8). Pode-seremetera artigos que trazembibliogra-
fias detalhadassobreo problema,como os de: [a] G. Daumezon,
P. Paumelle,F. Tosquelles,"Organisationthérapeutiquede l'hôpital
psychiatrique.I: Le fonctionnementthérapeutique",in Encyclopé-
die médico-chirurgi,cale.Psychiatrie,t. I, fevereiro de 1955,37-930,
A-10, pp. 1-8. [b] G. Daumezone L. Bonnafé, "Perspectives de ré-
forme psychiatriqueen Francedepuisla Libération", in op. cit. (su-
pra, pp. 73-4, nota 1). Cf. infra, "Situaçãodo curso", pp. 466 ss.
48. Essaqualificaçãode "militantesda antipsiquiatria" decor-
re da definiçãoque Michel Foucaultpropunhaem suaintervenção
"História da loucurae antipsiquiatria",no colóquio organizadoem
maio de 1973 em Montreal por H. F. Ellenberger , "Faut-il intemer
les psychiatres?":"Chamode antipsiquiatriatudo o que colocaem
causa,em questãoo papelde um psiquiatra,encarregadooutrora
de produzir a verdadeda doençano espaçohospitalar."As histé-
ricas sãodela "militantes" porquanto,fornecendosuascrisessob
medida,fazem surgir "a suspeita deque o grandemestreda lou-
cura,aquele quea fazia aparecere desaparecer , Charcot,eraalguém
que não produziaa verdadeda doença,mas fabricava seu artifí-
cio" (Cópia datilografada,pp. 12-3). Cf. tambéminfra, "Resumo
do curso", pp. 439 ss. Nesseponto, M. Foucaultse inspira nasaná-
lises que T. Szaszconsagraa Charcotno primeiro capítulo de The
Myth of Mental Illness: Foundationsof a Theory of Personal Conduct,
Nova York, Harper & Row, 1974 [L e Mythe de la maladie mentale,
trad. fr. D. Berger,cap. I, "Charcotet le problemede l'hystérie",Pa-
ris, Payot,1975,pp. 41-52]. Uma entrevistasobreessetexto confir-
ma: "há um capítulo que me pareceexemplar.Nele, a histeria é
o PODERPSIQUIATRico

d ontadae mo um produto do poder p iquiátrico, mas tam-


b 'm mo a réplica qu 1h ,. opo ta a cilada em qu le cai"
(DE, m, n? 175, p. 91). M. Foucaultvf nas "explosõesde histeria
qu manife taram no hospitaispsiquiátricosna segundame-
tad do éculo XIX [ ... ] um contragolpedo próprio exercício do
poderp iquiátrico'' (DE, III, n? 197, p. 231).
O problemado diagnósticoem medicinaeempsiquiatria.
- ~ ~ugar do corpo n~ nosologiapsiquiátrica: o modeloda pa-
ral~siaJeral. - O destinoda_ noçãode crise emmedidnaeempsi-
qui,atria. - A?~ooade realt~ade~ psiquiatria esuasformas: I,
O interrogatonoe aconfissao.O ntual da apresentaçãoclínica.
Nota sobrea líherançapatológica"e adegenerescência . -II. A
droga..Mareau deTours e ohaxixe.A loucura e osonho.- m. O
magnetismoe ahipnose.A descobertado "corpo neurológico".

Eu havia procuradomostrar a vocês como e por que


essacrise médica,que era ao mesmotempournanoçãoteó-
rica, masprincipalmenteum instrumentoprático na medi-
cina, havia desaparecidono fim do séculoXVIII e no início
do século XIX essencialmentepor causado aparecimento
da anatomiapatológicaque,de fato, davaa possibilidadede
lançarluz, numalesãolocalizadano interior do organismo
e identificável no corpo, sobrea própriarealidadeda doen-
ça. E, por outro lado, essamesmaanatomiapatológicadava
a possibilidadede constituir,a partir dessasdiferentesle ões
queindividualizavamas doenças,feixes de signosa partir do
quaiserapossívelestabelecero diagnósticodiferencialdas
doenças.Assinalaçãoorgânicada lesão,possibilidadedeum
diagnósticodiferencial.Vocêscompreendemque,nessascon-
dições,a crise,na medidaem que eraa provana qual a doen-
ça produziasuaprópriaverdade,tornou-seinútil. A ituação
na ordemda psiquiatriaé bem diferente,por dois motivo .
O primeiro é que, na ordemda psiquiatria,o problema
não é, no fundo, aliásnão é de maneiranenhuma,o proble-
ma do diagnósticodiferencial. Claro, a prática,o diagnó;ti-
co psiquiátricose desenvolveaparentemente em certo~vel
como diagnósticodiferencial de certadoençaem relaçaoa
Ma , pa a ruzer a v ruau~, luuu u;:;u, c1t:1u t:u, nau pc2._:s:;c1u~
atividade superficial e secundáriaem relação à verdadeira
questãoque é colocadaem todo diagnóstico da loucura;e a
verdadeiraquestãonãoé saber se é estaou aquelaforma de
loucura,mas de saber se é loucura ou não. E nisso eu creio
que a posiçãoda psiquiatria é, no fim das contas,bemdife-
renteda posiçãoda medicina.Vocêsdirão que em medicina
tambémé precisocolocarpreviamente a questãode saberse
há doençaou não; mas,na verdade, é uma questãoao mes-
mo tempo relativamentesimplese, no fundo, marginal;é só
nos casos de dissimulaçãoou de delírio hipocondríacoque
o problema"doençaou não" pode efetivamentese colocar
seriamente.Em contrapartida,no domínio da doença men-
tal, a única questãoverdadeiraquese colocaé aquestão em
forma de sim/não; istoé, o campodiferencial no interior do
qual se exerceo diagnósticoda loucura não é constituído
pelo leque dasespéciesnosográficas,é simplesmentecons-
tituído pela escansãoentre o que é loucura eo que é não-
loucura: é nessedomínio binário, é no campopropriamente
dual que se exerceo diagnósticoda loucura. Direi por con-
seguinteque a atividadepsiquiátricanão requer,salvo justi-
ficação de segundaordem e, de certo modo, superfetatória,
o diagnósticodiferencial. Não é do diagnósticodiferencial
que se trata no diagnóstico psiquiátrico,massim, digamos,
da decisãoou, então,do diagnósticoabsoluto.A psiquiatria
funciona,portanto,com baseno modelodo diagnósticoab-
soluto.A psiquiatriafunciona, portanto,segundoo modelo
do diagnósticoabsolutoe não do diagnósticodiferencial.
Em segundolugar - e nisso tambéma psiquiatria,tal
como estáse constituindono séculoXIX, se opõeà medici-
na -, é evidentementeuma medicinana qual o corpo e tá
ausente.Mas tambémaqui é precisose entender,porqueé
absolutamente certo que, por um lado, desdeo início do d -
senvolvimentoda psiquiatriado séculoXIX, procuraram- .
correlativosorgânicos,o domínio de lesão,o tipo de órgã
que poderiaestarenvolvidonumadoençado tipo da loucu-
ra. Procurou-se e, em certo númerode casos,encontrou-se;
em 1822-1826,foram a definiçãode Bayle da Pél}'alisia geral
e as lesõesmeníngeascomo seqüelasda sífilis1• E verdade,e
podemosdizer que nissoo corponão estavamuito mais au-
sentena ordemda psiquiatriado que na ordemda medici-
na comum.E no entantohavia uma diferençaessencial:é
que o problemaque estavaparaser resolvido na atividade
psiquiátricanão eratanto,não eraprimeiramenteo de saber
se determinadocomportamento,determinadamaneirade
falar, determinadotipo de alusão,determinadacategoriade
alucinaçãose referiam a estaou aquelaforma de lesão;o
problemaerasabersedizer determinadacoisa,comportar-se
de determinadamaneira,ouvir determinadavoz, etc., seisso
era ou não era loucura.E a melhor prova de que era essaa
questãofundamentalé que,nessamesmaparalisiageralque
foi uma das grandesformas nas quais se acreditoupoder
assinalar as relaçõesentrea doençamentale o organismo,
Bayle reconheciaem 1826quehaviatrêsgrandestipos de sín-
drome:a síndromemotorada paralisiaprogressiva,a síndro-
me psiquiátricada loucurae a que era o estadoterminal da
demência2 • Ora, quarentaanosdepois,Baillargerdizia: em
Bayle tudo ou quasetudo é verdade,mas há entretantoo
erro fundamentalde que não há de modo algumloucurana
paralisiageral, há tão-somenteuma intrincaçãoentrea pa-
ralisia e ademência3•
Logo, creio que podemosdizer: diagnósticoabsolutoe
ausênciade corpo, tudo isso faz com que a liquidaçãodessa
crise médica,que a medicinapodiase permitir graçasà ana-
tomia patológica,nãofossepossívelno domínio da psiquia-
tria*. E o problemada psiquiatriavai serprecisamentecons-
tituir, instauraruma prova ou uma série de provastal que
possacorrespondera essaexigênciado diagnósticoabsolu-

* O manuscritoprecisa: "Isso implica portantoum procedimento


de estabelecimento
da doençatotalmenteespeáfico."
inser va no campoda r a11e1aaeou aesquannque como u-
real o que se supõ sejaa loucura. . . _
Em outraspalavras,pode-sed12ero segumte:a noçao
clássicade crise na medicina,a práticaclássicada crise mé-
dica tal como foi aplicadapor mais de dois mil anos,essa
crise clássica,no fundo, rendeuao séculoXIX duas posteri-
dades.De um lado, pela anatomia patológica, substituiu-se
a crisemédicaclássicae sua prova por procedimentosdeve-
rificaçãona forma da constatação e da demonstração. Estafoi
a posteridademédica.Depois, a posteridade psiquiátricada
crise clássicafoi outra: tratou-se, para a psiquiatria - já que
não se tinha campono interior do qual essaconstataçãoda
verdadefossepossível -, de instaurare substituir a velhacri-
se médicaclássicapor algumacoisaque fosse, como a velha
crise clássica,uma prova, mas não uma prova de verdade,
uma provade realidade.Em outraspalavras,a prova de ver-
dadese dissocia. Por um lado, nas técnicasda constatação
da verdade:é a medicinacomum; [por outro}, numa prova
de realidade: é o que se produz na psiquiatria.
Em resumo, e paracomeçara estudar essesistema, esse
jogo, essapanóplia das provas de realidade,creio que se
podedizer o seguinte:é que, na psiquiatria, o momento es-
sencialque vem pontuar,organizare ao mesmotempo dis-
tribuir essecampo do poder disciplinar de que lhes falei até
aqui, é estaprova de realidade, que, no fundo, tem um du-
plo sentido.
Por um lado, trata-sede fazer existir como doençaou
eventualmen t e como não-doençaos motivos dadosparaum
internamentoou uma intervençãopsiquiátricapossível.A
prova psiquiátricaé portantoa prova que chamareide du-
plicaçãoadministrativo-médica:é possíveltranscreverem
termosde sintomase em termosde doençao que motivou
a demanda? Transcrevera demandacomodoença,fazerexis-
tir os motivos da demandacomo sintomasda doençaé a
primeirafunção da prova psiquiátrica.
Quanto à segundaiela lhe é correlativa. É, de certo
modo,muito maisimportante.É quese tratanessaprovade
fazer existir como sabermédico o poderde intervençãoe o
poder disciplinar do psiquiatra.Tentei lhes mostrarcomo
essepoderfuncionavano interior de um campodisciplinar
que era,por certo, medicamentemarcadomassemconteú-
do médico real; pois bem, essepoderdisciplinar tem de ser
posto parafuncionar agoracomo podermédico, e a prova
psiquiátrica vaiser a que, por um lado, constituirá como
doençaa demandade internamentoe, por outro lado, fará
funcionarcomo médico aquelea quemse dá um dos pode-
res de decisãono internamento.
Na medicinaorgânica,o médicoformula obscuramente
essademanda:mostreseussintomase eu direi que doen-
te você é. Na prova psiquiátrica,a demandado psiquiatra
é muito mais pesada,é muito mais sobrecarregada, é a se-
guinte: com o quevocê é, com a suavida, como que se quei-
xa a seurespeito,[ ...*],com o quevocê faz e o que você diz,
forneça-mesintomas,nãoparaque eu saibaque doentevocê
é, mas paraque eu possaser um médico diante de você.
Ou seja,a provapsiquiátricaé uma duplaprova de en-
tronização.Ela entronizaa vida de um indivíduo como te-
cido de sintomaspatológicos,mas entronizasem cessaro
psiquiatracomo médico ou a instânciadisciplinar suprema
como instânciamédica.Podemosdizer, por conseguinte,que
a prova psiquiátricaé uma perpétuaprova de entradano
hospital.Por que não se podesair do asilo?Não se podesair
do asilo, não porquea saídaestejalonge,masporquea en-
trada está demasiadopróxima. Não se cessade entrar no
asilo, e cadaum dessesencontros.,cadaum dessesafronta-
mentosentreo médicoe o doenterecomeçam,repetemin-
definidamenteesseato fundador,esseato inicial que é aque-
le pelo qual a loucuravai existir como realidadee o psiquiatra
vai existir como médico.

* Na gravação, repetição de: "com o que você é".


jogo muito cu.no o e con~p1t!xu,u~a;:, uv '1-u(U y.1.,A,..7":. . ~ .u
vão seprecipitartodososJogosreaisdo asilo e da histonada
psiquiatriae da loucurano s 'culo XIX. Todo um jogo que faz
o · guinte: sevocêsconsiderarema~ coisa~no nível do ~n-
cionamentodisciplinar (que eu havia analisadon~s sessoes
precedentes), no nível do sistemadisciplinar,vocêsterãoum
obrepodermédicoque é formidável, já que o médicofi nal-
menteseincorporaao sistemadisciplinar; o próprio hospital
é o corpodo médico.Mas, de outro lado, vocêstêm um pro-
digioso sobrepoderdo doente,já que é o doente que, con-
forme a maneiracomo vai passarpela prova psiquiátrica, a
maneiracomo sairádela, é ele que vai ou não entronizar o
psiquiatracomomédico,quevai remetê-lo a seupuro e sim-
ples papeldisciplinar ou que vai, ao contrário, fazê-lo de-
sempenharseu papel de médico- vocêscompreendem por
meio de qual abertura.
Vocês vêemque caberãobemaí os fenômenosque pro-
curareilhes explicar da próxima vez, da histeria e do jogo
entreCharcote ashistéricas.A histéricaé precisamenteaque-
la que diz: é graçasa mim, mas somentegraçasa mim que
o que você faz comigo - me internar,me receitardrogas, etc.
- sejaefetivamenteum ato médico,e eu te entronizo como
médicona medidaem que te forneçosintomas. Sobrepoder
do doenteabaixo do sobrepoderdo médico.

~, f?r _assimdizer, [uma] apresentaçãogeraldessapro-


va ps1qu1atncaque, eu lhes dizia da última vez, adquiriu,
creio, três formas principaisnos sessentaprimeirosanosdo
séc':-10XIX. Três técnicasportantopara' essaprova da reali-
zaçaod~ doençaque entronizao psiquiatracomo médicoe
faz fu~~1onara demandacomo sintoma:primeiro, o inte-r-
rogatono;segundo,a droga; terceiro, a hipnose.
P~imeiro, a técnicado interrogatório,no sentidoam-
plo. Digamos:interrogatório,anamnese,confissão,etc.A que
respondeesseinterrogatório?Como exatamenteé pratica-
do? Eu já lhes assinaleio aspectodisciplinar desseinterro-
gatório,na medidaem que se trata de vincular, pelo inter-
rogatório, o indivíduo à suaidentidade,de obrigá-lo a se
reconhecerno seupassado,num certo númerode aconte-
cimentosda suavida4. Mas isso é apenasuma função mi-
núscula,superficial,do interrogatório.Há, creio, outrasque
são como operaçõesde realizaçãoda loucura.Creio que o
interrogatório realiza a loucurade quatro maneirasou por
quatroprocedimentos.
Em primeiro lugar, um interrogatóriopsiquiátricoclás-
sico,isto é, tal comovocêso vêemfuncionara partir dosanos
1820-1830, semprecomportaa chamadapesquisade ante-
cedentes.O que é pesquisarantecedentes? É perguntarao
doentequais foram as diferentesdoençasque seusascen-
dentesou seuscolateraispuderamter. Pesquisaque é mui-
to paradoxal,por um lado, porqueé - pelo menosaté o fim
do séculoXIX - umapesquisacompletamenteanárquicaque
coteja,à medidaque vai se apresentando, tudo o que pode
ter sido doençanos ascendentes ou nos colaterais;e é uma
pesquisa curiosana épocaem que me situo, isto é, por vol-
ta dos anos1830-1840,no momentoem que a vemosapa-
recer,porqueé uma épocana qual não existe nem a noção
de hereditariedadepatológica5, nem tampoucoa noçãode
degenerescência, que serámais tardia,pois só seformula nos
anos1855-1860• 6

Quer dizer, é de espantara amplitudeda pesquisaque


é feita nessequestionamentodos antecedentes de todosos
ascendentes, de todosos colaterais,de todo tipo de doenças
que os puderamafetar, e ao mesmotempo é de espantar
tambémseucaráterprecocee suaobstinaçãoaindahoje. De
que se trata, no fundo, quandose perguntaa um doente
mentalquaisforam as doençasda suafamília e quandose
anotacom todo cuidadose seupai morreude apoplexia,se
suamãetinha reumatismo,seseutio nãoteveum filho idio-
ta, etc.?De que se trata?Trata-seé claro de ampliar a uma
escalapoliindividual a pesquisade certo númerode sinais,
r 10, ue upru. t1. a:HCllVUl.lCl 1-'ª\.Vf.Vfj..l u., ., t' ...... _..,...,..................,
,. u ~

d rpo ou ssedi tanciam nto do corpo de que eu lhes


falava.Já qu nãos pod e nãos sabeencontrarno doe:1-
te um sub trato orgânicoparaa suadoença,trata-seentao
d ncontrarno nível da suafamília certo númerode acon-
t cim ntospatológicosque serãotais que,qualqu r que seja
aliássuanatureza,elesse referirãoa comunicaçãoe, por con-
seguinte,à existênciade certo substratomateri~patológico.
A hereditariedadeé certamaneirade dar corpoa doençano
momentomesmoem que não se pode situar essadoença
no nível do corpo individual; entãoinventa-se,demarca-se
uma espéciede grandecorpo fantasmáticoque é o de uma
família afetadapor um grandenúmerode doenças:doenças
orgânicas,doençasnão-orgânicas,doençasconstitucionais,
doençasacidentais,poucoimporta; se elasse transmitemé
porquepossuemum suportemateriale, se se alcançaassim
o suporte material,entãose tem o substratoorgânicoda lou-
cura,um substratoorgân~coque não é o substratoindividual
da anatomiapatológica.E umaespéciede substratometaor-
gânico,masque constitui o verdadeirocorpo da doença.O
corpo doenteno interrogatórioda loucura,essecorpo doen-
te que se apalpa,que se toca, que se percute,que se ausculta
e em que se pretendeencontrarsinaispatológicos,essecor-
po é, na realidade,o corpo da família inteira; melhor dizen-
do, é o corpo constituídopela família e a hereditariedade
familiar. Pesquisara hereditariedadeé portantosubstituiro
corpo da anatomiapatológicapor outro corpo e certo corre-
lativo material,é constituirum análogonmetaindividualpara
o º:ganismode que os médicosse ocupam.Eis, creio, o pri-
merro aspectodo interrogatóriomédico: a pesquisados an-
tecedentes.
Em segundolugar,vocêstêm a pesquisadospródromos,
d~s marc~s?e.disposição,dos élJ.1tecedentes individuais: quais
sa?~s ep1Sodiospelosquaisa loucurase anunciouantesd
eXIshr realmentecomo loucura?E esteé um outro aspe -
to constantedo interrogatóriopsiquiátrico:conte-nos ua
lembrançasde infância; diga-me o quesepassou; dê-me in-
formaçõessobre a sua vida; quandovocê esteve doente, o
que lhe aconteceu?etc. Isso supõede fato que a lo ucura
como doençasempre foi precedida, mesmo nos casos em
quesetratade doenças que sãomarcadas por sua subitanei-
dade- mesmonessescasos, é preciso encontrarelementos
antecedentes.
Enquantona medicinageralencontraressas antecedên-
ciasindividuais,essasocorrênciasque anunciam a doença é
permitir distinguir entreesteou aqueletipo de doença,des-
cobrir se setrata de uma doençaevolutiva ou não, de uma
doençacrônica ou não, etc., a pesquisados antecedentes no
domínio da psiquiatriaé bem diferente. Buscaressesante-
cedentes individuaisé, no fundo, procurarmostrar, por um
lado, que a loucura existia antesde ser constituídacomo
doençae, ao mesmotempo,mostrarque essessinais ain-
da não eram a loucurapropriamente,mas as condiçõesde
possibilid adeda loucura.Logo é necessárioencontrarsinais
que sejam tais que, por um lado, não sejampropriamente
patológicos- pois, nessecaso,seriadizer que sãosinaisda
doença,elementosefetivos da doençae não simplesmente
pródromos-, é necessárioportantoque sejaoutracoisaque
não os sinais internosda doença,mas que tenhamcom a
doençaumarelaçãotal, que sejapossívelapresentá-los como
pródromos, como sinaisanunciadores,comomarcasde dis-
posiçãode uma doença-ao mesmotempointeriorese ex-
terioresà doença7 • Isto é, no fundo, situar a loucurano con-
texto individual do que podemoschamarde anomalia8 •
A anomalia é acondiçãode possibilidadeindividual da
loucura; é o que é precisoestabelecer paraconseguirmostrar
que aquilo que estásendotratado,aquilo com o que se está
lidando e que se quer mostrarprecisamenteque sãosinto-
masde loucura, é efetivamentede ordempatológica.A con-
diçãoparatransformarem sintomaspatológicosos diferentes
elementos que sãoo objeto,o motivo do pedidode interna-
mento,é situá-los nessetecido geral da anomalia.
p ito, aodos i .. 1..,1 rr KtVIere'. \,.luanuuu · ut wL~~- Lc1u.UJ.a~u
d t rminar e Rivier ra um doentementalou nao,sesofria
ou nã d algumacoisaque não seousavadenominar"mo-
nomania" - a monomaniajá era nessaépocauma doença
qu Esquirolhavia definido comoumadoençaque explodia
bru camentee que se caracterizavapelo fato de que, preci-
am nte, erasúbitae tinha por sintoma principal a aparição
súbita,pois, de umacondutade tipo criminosa1º - como pro-
var que essacondutacriminosa era louca? Era necessário
situá-la num campode anomalias;e essecampode anoma-
lias foi constituídopor certo númerode elementos. O fato,
por exemplo,de alguémter cortado a cabeçados repolhos
quandoera criança,imaginandoque era o comandant e de
um exércitoe que estava liquidandoos inimigos, de crucifi-
car umarã, etc.11, tudo isso constituíaum horizontede ano-
malias no interior do qual era possívelrealizarem seguida
comoloucura aquilo que era o elementoem questão.Logo,
segundaoperaçãodo interrogatório: constituiçãode um ho-
rizonte de anomalias.
O terceiro papeldo interrogatórioé organizaro que se
poderiachamarde cruzamen t o ou quiasmaentrea respon-
sabilidadee a subjetividade.No fundo de todo interrogató-
rio psiquiátrico,tenho a impressão de que há sempre uma
espéciede trato que teria a seguinteforma. O psiquiatradi-
ria àqueleque estádiantedele: pois bem,você estáaqui, seja
por vontadeprópria,sejatrazido por outrapessoa,masvocê
vem aqui porquehá em torno de você e aseurespeitoquei-
xas, um mal-estar;você disseisto, você fez aquilo, você se
comportaassimou assado.Eu não o interrogode modo al-
gum sobrea verdadedessesfatos, não quero saberem ter-
mos de asserçãose aquilo de que o acusam,ou se os mal-es-
taresquevocê sentesãoverdadeirosou não..... não sou um
juiz.~e instruç~o_-, masestoudispostoa isentá-lo da respon-
sabilidade,jund1caou moral, pelo que você fez ou pelo que
acontecec_o~você,ou pelossentimentosquevocê tem, com
uma condiçaono entanto:que você assumasubjetivament·
a realidadedissotudo, quevocê me restituatodosessesfa-
tos comosintomassubjetivosda suaexistência,da suacõns-
ciência. Quero encontrartodos esseselementos,mais ou
menostransformados,pouco importa, no seurelato e nas
suasconfissões,como elementosdo seusofrimento,como
força de um desejomonstruoso,comomarcasde um movi-
mentoirresistível,em suma,como sintomas.Aceito que os
motivos pelos quais você estáaqui já não imprimam em
você umamarcajurídica ou moral de responsabilidade, mas
só realizareiessasubtração,só removereiessasmarcasda
suacabeçasevocê,precisamente, os fornecer amim, sobuma
forma ou outra,como sintomas.Me dê seusintoma,e eu re-
moverei suaculpa.
E é isso,creio, essaespéciede trato, que estáem jogo no
fundo do interrogatóriopsiquiátrico,que faz com que, de
fato, o interrogatóriopsiquiátricosempreincida, essencial-
mente,sobreos motivos pelosquaiso indivíduo se encontra
ali, diante do psiquiatra.O questionamento das razõespe-
las quais o indivíduo se encontradiante do psiquiatra- ra-
zõesque podemestarligadasa uma condutavoluntáriaou
que, ao contrário,podemseras razõesdos outros,poucoim-
porta -, transformaressasrazõesde estarali em sintomas,
é isso que o interrogatóriopsiquiátricodeve realizar.
A quartafunção do interrogatóriopsiquiátricoé o que
chamareide organizaçãoda confissãocentral.Vale dizer que
no fundo o interrogatóriopsiquiátricosempretem certafi-
nalidade,e aliás ele semprese interromperealmenteem cer-
to ponto.Essafinalidade,esseponto de horizonteparao in-
terrogatóriopsiquiátricoé o que seria o âmagoda loucura,
seu núcleo, essaespéciede foco que corre~ponderiana or-
dem da loucura ao que é o foco de uma lesãopatológica*.
Essefoco da loucura que o interrogatórioprocurarealizar,
efetuar,é a forma extrema,irrecusável,da loucura.Trata-se

* O manuscritoacrescenta:'Mais ou menoscomo a família faz as


vezesde substratosomáticoparaa loucura."
a A.u:J ~~ ,

t no interior do int rrogatório.


E podemo obt r essaatualiza~ã<:_de duasn:an~ira_s:ou,
precisam nte, sob_afoi:ma da co~sao,da ~~~;s~o ntual~
m nte obtida no mtenor dessemterrogatono. Snn, ouço
vo~es! Sim tenho alucinações!"12, "Sim, acreditoser Napo-
leão!''13, "Sim, eu deliro!". Eis a que o interrogatóriopsiquiá-
trico devetender.Ou, senãofor essaatualizaçãona confissão,
pela vinc~laçãoem,,P~imeirap~sso~ado sín!º°:ª' é_ preciso
obterno 1nterrogatonoa atuahzaçaoda propnacrise, sus-
citar a alucinação,provocara crise histérica.Em suma,seja
portantosob a forma da confissão,sejasob a forma da pró-
pria atualizaçãodo sintoma central, é necessárjosituar o
sujeito numaespéciede ponto de estrangulamento, de es-
treitamentoextremo,que é o ponto em que o sujeito se vê
obrigadoa dizer II sou louco" e desempenhar efetivamente
sualoucura.Nessemomento,imprensadonesseponto ex-
tremo do interrogatório,ele já não pode escapardos seus
rrópriossintomas;ele já nãopodeesgueirar-se por entreeles"
E obrigado adizer: efetivamente,sou aqueleparaquemfoi
constituídoo hospitalpsiquiátrico,sou aqueleparaquemé
necessáriohaverum médico;soudoentee, já que soudoen-
te, você, que tem por função me internar, émédico.Chega-
se assima essemomentoessencialda dupla entronização
do indivíduo internadocomo doentee do indivíduo inter-
nantecomo médico e psiquiatra.
Confissãoextremaque, no fundo, é extraídacom base
no temae a partir da afirmaçãode que, se você diz a loucu-
ra, você se livra dela. E é aí que atua,na técnicado interro-
gatóriopsiquiátrico,a duplaanalogia,ao mesmotempo,com
a.confissãor:ligiosa e a crise médica:a confissãoreligiosa
a1udao perdao;a expectoração,a excreçãona crise médica
faz a substânciamorbíficasair. No pontode convergênciaou,
se preferirem,numaespéciede oscilaçãoentrea confis ão
que ~az_perdoare a expectoraçãoque expulsaa doença,
confissaoextremada loucura é - garantemos psiquiatr
daquelaépocae sem dúvida muitos outros aindahoje-, é
afinal de contasaquilo a partir do que o indivíduo poderá
libertar-se da sua loucura."Eu libertarei você da sualou-
cura, contantoque você me confessea sualoucura",isto é:
"Dê-me os motivos pelos quais eu te confino; dê-meefe-
tivamenteos motivos pelos quais privovocê da sualiber:-
dadee, nessemomento,liberarei você da sua loucura. O
movimentopelo qualvocêvai securarda sualoucuraé aque-
le pelo qual eu me,,assegurareide que o que faço é de fato
um ato médico." E essaa superposiçãoentre o poder do
médicoe aextorsãoda confissãodo doente,que constitui,
acredito,o ponto absolutamentecentral da técnicado in-
terrogatóriopsiquiátrico.
Creio que esseinterrogatóriocujos principaismomen-
tos procureilhes indicar podeser decifradoem três níveis.
Deixemosde ladoo primeiro,o nível disciplinarde quejá lhes
falei14; restamdois níveis que são,creio, essenciais
. No inter-
rogatóriopsiquiátrico,trata-se,de um lado,de constituiruma
mímesismédica,o análogonde um esquemamédicodado
pelaanatomiapatológica:o interrogatóriopsiquiátricocons-
titui, em primeiro lugar, um corpo pelo sistemadas assina-
laçõesde hereditariedade, dá corpoa umadoençaquenãoti-
nhacorpo; em segundolugar, em tomo dessadoençae para
poderidentificá-lacomo doença,ele constituium campo de
anomalias;em terceirolugar, ele fabrica sintomasa partir de
uma demanda;e, enfim, em quartolugar, ele isola, circuns-
creve,define um foco patológicoque mostrae atualizana
confissãoou na realizaçãodessesintomamaior e nuclear.
O interrogatórioé, portanto,na psiquiatriado século
XIX, certamaneirade reconstituirexatamenteos elementos
que caracterizama atividade do diagnósticodiferencial na
medicinaorgânica.É uma maneirade reconstituirao lado,
paralelamenteà medicinaorgânica,algo que funcione da
mesmamaneira,mas na ordem da mímesise do análogon.
A outra camadano interrogatórioé o nível em que efetiva-
mente,por um jogo de ilusionismo,trocas,promessas, doa-
çõese contradoações entreo psiquiatrae odoente,vai-seter
ra, realizaçãoda loucuracomocto ·nçae, ennm,reanzaçaoao
guardiãodo louco como médico. . _
Vocês hão de entenderque, nessascond1çoes,essaes-
péciede interrogatóri~c?nstituinteé o ritu~ abs?l~tamen-
te renovadodo diagnosticoabsoluto.,Qual e a atividadedo
psiquiatranum hospital-modelodo ~é~oXD(?Você_s_sabem
quehá duas,e somenteduas.Em pnmerrolugar, a visita; em
segundolugar,o interrogatório.A visita é omovimentopelo
qual o médicopercorreos diferentesserviçosdo seuhospi-
tal para efetuartodasasmanhãsa mutaçãoda ~sciplinaem
terapêutica:eu irei, percorrereitodasas engrenagens do asi-
lo, verei todosos mecanismosdo sistemadisciplinar para,
com a minha simplespresença,transformá-losem apare-
lho terapêutico15•
Segundaatividade,o interrogatório,queé precisamen-
te o-seguinte:dê-mesintomas,faça-meda suavida sintomas
e você fará de mim um médico.
Os dois ritos, da visita e do interrogatório,sãoneces-
sariamenteos elementospelosquais,comovocêsvêem,fun-
cionao campodisciplinarde quelhesfalei.Vocêscompreen-
dem igualmentepor que essegranderito do interrogatório
precisaserrevigoradode temposem tempos.Mais ou me-
nos,vamosdizer, como há as missascomunse asmissasso-
lenes,a apresentação clínica diantedos estudantesé, no in-
terrogatórioprivado do doentepelo médico,o que a missa
cantadaé em relaçãoà missacomum.E por que essaMis-
sa sollemnisda psiquiatria,que é a apresentação clínica do
doentediantedos estudantes, por que a psiquiatriaprecipi-
tou-se tão cedo, tão depressanesserito da apresentação
quasepública, em todo casoda apresentação dos doent
aosestudantes? Eu já lhesdisseduaspalavrasa essere p ·i-
to161masvocêstêm agora,creio, a possibilidadede apreendr
outro nível do funcionamentodessaapresentação clínica.
Com efeito/ na dupla ausênciado corpo e da cura
caracterizaa práticapsiquiátrica,como · pod faz :p
que o médicosejaefetivamenteentroniz do ,..._........ ·m ;' dic. "
paraque as operaçõesde que lhes falei - transmutaçãoda
demandaem sintomas,dos acontecimentos davida em ano-
malias,da hereditariedade em corpo,etc.-, comoessasope-
raçõespodemser realmenteefetuadasse não houver,além
do funcionamentocotidianodo asilo, essaespéciede rito que
marcasolenementeo que aconteceno interrogatório?Pois
bem,organiza-seum espaçono qual o alienistavai sermar-
cadocomomédicopelo simplesfato de quehá emvolta dele,
comoouvintese espectadores, os estudantes.
O carátermé-
dico do seu papelvai portantoencontrar-se atualizado,de
modo algum pelo êxito da suaterapia,não pelo fato de ter
encontradoa verdadeiraetiologia - já que, precisamente,
não se trata disso-, o carátermédico doseupapele as ope-
raçõesde transmutaçãode que lhes falei são possíveisna
medidaem que houverem torno do médicoo coro e o cor-
po dos estudantes.Como falta o corpo do doente, vaiser
necessáriaa existênciadessaespéciede corporeidadeins-
titucional que vai ser o círculo de estudantesouvindo, em
torno do mestre,o que o doentevai responder.A partir do
momentoem que essaaudiçãoé assimcodificadae insti-
tucionalizadacomo audiçãodos estudantesouvindo o que
diz o psiquiatraenquantomestree enquantomestredo sa-
ber médico,a partir dessemomentotodasas operaçõesde
que lhes falei vão atuar, com uma intensidadee um vigor
renovados,no sentidodessatransmutaçãomédicada loucu-
ra em doença,da demandaem sintoma,etc.
Em outraspalavras,creio que a dimensãomagistralda
palavraque é, no casodo médico,por assimdizer, simples-
menteaditiva, certo modo de aumentarseuprestígioe de
tornar um poucomaisverdadeiroo queele diz, no casodo
psiquiatraessadimensãomagistralé muito mais essencial,
muito maisinerente:a dimensãomagistralda palavrado psi-
quiatra éconstitutivado seupodermédico.Paraque essapa-
lavra realizeefetivamenteas transmutações médicasde que
lhesfalei é necessário,pelo menosde tempoem tempo,que
ritualmente,institucionalmente,ela sejamarcadacomo tal
pelo rito da apresentação clínica do doenteaos estudantes.
1,uv, ,1. yL .. .., -- ----- , J. ~

form d int rrogatóriovariaram.Par~algu~mc~mo Leu...


r t, 0 int rrogatóriopossuiforma m?1~0mais ~u--tis;.Leur:t
inventou,por xemplo, o interrogatonopelo .s1~enc1~:nao
diz r nadaao doente,esperarque estefale, de1Xa-lodizer o
ª.
que ele quer- pois, s~gundoLeuret, é única ou, ,em ~o~o
caso, a melhor manerrade chegar,precisamente,a confis-
ão focal da loucura17.Vocêstêm também,semprede acordo
com Leuret, a espéciede jogo que faz com que por trás de
um sintomasereconheçana realidadeoutrademanda,e que
é estaque se deveanalisarpelo interrogatório.Enfim, tudo
isso sãocomplementosem relaçãoa um rito centralque é o
do interrogatório.
Ao lado do interrogatórioe, na verdade,aqui também
de forma anexamascom umafortuna históricamuito maior
do que astécnicasde Leuretde que eu falava há pouco,vo-
cêstêm os dois outrosgrandesoperadoresde medicalização ,
da realizaçãoda loucuracomo doença:a drogae ahipnose.
Primeiro, a droga.Tambéma esserespeitoeu lhes as-
sinaleio usodisciplinarde certonúmerode drogas,queexis-
tia desdeo séculoXVIlI: láudano18, opiáceos,etc.19• Vocêsvêem
surgir, no fim do séculoXVIII, um novo fenômenoque é a
utilizaçãomédico-legalda droga.Foi no fim do séculoXVIlI
que ummédicoitaliano tevea idéia de utilizar o ópio em do-
sesmaciçasparaconseguirdeterminarse um sujeitoé efeti-
vamenteum doentementalou se não é, como instânciade
determinaçãoentrea loucurae asimulaçãoda loucura20•
Essefoi o pontode partida,e encontramosentão,pode-
mos dizer duranteos oitentaprimeirosanosdo séculoXIX,
u~~ ~normepráticada drogano interior dos hospitaispsi-
qwatrtcos,sendoessasdrogas essencialmente o ópio, o nitri-
21
to de amila , o clorofórmio e oéter23• Em 1864- remetovo-
A
22

cesª. essetexto -, vocêstêm um importantetexto de Morel,


p~blicadonosArchivesgénéralesde médecinesobrea eteriza-
ça~ ~o~ doen~esem hospitalpsiquiátrico24• Mas creio que o
ep1sod10[maior] de tudo isso foi evidentementeo livro - e
a prática- de MoreaudeTours: Du haschischet de l'aliénaíion
mentale,em 184525• No livro de MoreaudeTourssobreo ha-
xixe, que, creio, teve uma grandeimportânciahistórica, ele
contaque "ele mesmo"- e já veremosa importânciadesse
"ele mesmo"- experimentao haxixee que,depoisde ter to-
madoem geléiaumaquantidadeconsiderável,pôdeperce-
ber na intoxicaçãopor haxixe certo númerode fasesquesão
as seguintes:primeira, "sentimentode felicidade"; segun-
11
da, excitação,dissociaçãodas idéias"; terceira,"erro sobre
o tempo e o espaço";quarta,"desenvolvimentoda sensi-
bilidade, tanto do ponto de vista visual como do ponto de
vista auditivo [sic]: exagerodas sensaçõesquandose ouve
música, etc."; quinta, "idéias fixas, convicçõesdelirantes";
sexta,alteraçãoou, como ele diz, "lesõesdasafecções",exa-
gero dos medos,da excitabilidade,da paixãoamorosa,etc.;
sétima,"impulsosirresistíveis";oitavae última etapa,"ilu-
sões,alucinações" 26
• Creio que a experiênciade Moreaude
Tourse o uso que ele fez delasãoimportantespor todauma
série de razões.
Em primeiro lugar - e não sereicapazde lhes dar uma
explicação,nem mesmouma análise-, estáo fato de que,
imediatamente,logo de saída,nessaexperiência,os efeitos
da droga, como vocêsestãovendo,foram relacionadospor
Moreau de Tours aos processosda doençamental*·. Quan-
do ele descreveas diferentesetapasde que acabode lhes
falar, vocêspodemver que bem depressa,desdeo segundo
item, passadoo momentodo sentimentode felicidade- e
veremosque ele conseguerecuperá-lo-, estamosna ordem
da doençamental: dissociaçãodasidéias,erro sobreo tem-
po e o espaço,etc. Creio que esseconfiscopsiquiátricodos
efeitos da droga no interior do sistemada doençamental
levantaum problemaimportante,masparadizer a verdade
creio que seriaprecisoanalisá-lomuito mais no interior de

* Desenvolvimentointitulado no manuscrito: '1déia de que os fe-


nômenosderivados da absorçãodo haxixe sãoidênticos aosda loucura."
a n m ll dl. C.lU l-UUU \.Q v, lV '1"""' u..u., " y..., .. ........, ...,
da do nçamental, s autilização·da drogae essaassimila-
ão entreos feitos da drogae os sintomasda doençamen-
tal dã ao médico,s gundoMoreaude·Tours,a possibilidade
de umareproduçãoda loucura,.reproduçãoao mesmotem-
po artificial, já que foi necessáriaessaintoxicaçãoparaque
os fenômenosocorressem,e natural,porque nenhumdos
sintomasque são enumeradospor Moreau de Tours são
alheios,não apenasem seuconteúdo,masinclusive em seu
encadeamentosucessi vo, ao desenrolarda loucura como
doençaespontâneae natural; temospois uma reprodução
provocadae autênticada doença.Estamosem 1845;est8Il}0S
em plenasérie de trabalhosde fisiologia experimental.E o
ClaudeBernardda loucura;é a funçãoglicogênicado fígado
que encontramosassimtranspostapor Moreaude Tours27 •
Outracoisaimportanteé que nãoapenastem-sea idéia,
portantoao queparece.o instrumento,de umaexperimenta~
çãovoluntária,consentidosobrea loucura,masalémdisso
tem-sea idéia de que os diferentesfenômenos , que carac-
terizama intoxicaçãopor haxixe constituemumaseqüência
natural,necessária,um encadeamento espontâneo, umasé-
rie homogênea. Vale dizer que,como essesfenômenossão
homogêneosaosda loucura,chega-seà idéia de queos di-
ferentessintomasda loucuraque poderiamserdistribuídos
pelosnosógrafosnesteou naqueleregistro,atribuídosa esta
ou aquelaforma de doença,todos os sintomasda loucura
pertencemno fundo à mesmasérie.Enquantoa psiquiatria
de tipo Pinel e, sobretudo,Esquirol, procuravaver qual eraa
faculdadelesadanestaou naqueladoençamental28, vai-seter
a idéia de que, no fundo, só há uma loucura que evolui ao
longo da existênciadosindivíduos,que pode,é claro, deter-
se,bloquear-se,fixar-se numaetapa,do mesmomodo que
a intoxicação[por} haxixe,masque, comoquerque sejaJé a
mesmaloucura que vamos encontrarem toda parte e ao
lo:1~º de tod~ a evolução.De tal sorteque o haxixe ai p r-
nutir descobnro que os psiquiatrashaviam procur d . p r
tanto tempo,isto é, pr~cisamentea espéciede F, fundo" úni-
co, a partir do qual todos os sintomasda loucurapodemse
manifestar.Essefoco, essecélebrefoco que os anatomopa -
tologistastinham a sorte de poder apreendere fixar num
ponto do corpo, essefoco vai ser captadopela experimen -
taçãodo haxixe, pois vai-se ter o próprio núcleoa partir do
qual toda a loucuravai se manifestar.E essenúcleofunda-
mentalqueMoreaudeTourspensavater encontradoé o que
II
ele chamavaem 1845de modificaçãointelectualprimitiva" 29
e que chamarámais tarde,num texto de 1869,de modifi-
II

caçãoprimordial"30 • Eis como ele descreveessamodificação


primitiva: "Toda forma, todo acidentedo delírio ou da lou-
cura propriamentedita - idéias fixas, alucinações,irresis-
tibilidade dos impulsos [vocês estãovendoque se trata de
todosos sintomasque encontramosna intoxicaçãopor ha-
xixe; M.F.] - têm sua origem numamodificaçãointelectual
primitiva, sempreidênticaa si mesma,qu~ é evidentemen-
te a condiçãoessencialda suaexistência.E a excitaçãoma-
níaca."31Essaexpressãonão é muito justa,pois setratade um
"estadosimplese complexo,tudo ao mesmotempo,deva-
gueza,de incerteza,de oscilaçãoe de mobilidadedasidéias,
que,,se traduz com freqüênciapor uma incoerênciaprofun-
da. E umadesagregação, umaverdadeiradissoluçãodo com-
postointelectuala que chamamos faculdadesmorais"32.
Estáidentificadoportanto,graçasao haxixe, o sintoma
maior, ou antes,o próprio foco a partir do,,qualvão se ma-
nifestaros diferentessintomasda loucura.E portantopossí-
vel, por meio do haxixe, reproduzir,identificar, reconstituir,
atualizarna verdade,esse fundo" essencialde todaloucura.
II

Mas, comovocêsestãovendo,e éissoque é importante,esse


11
fundo" essencialda loucura é reproduzidopelo haxixe, e
reproduzidoem quem?Em qualquerum e, no caso,no mé-
dico.Vale dizer que a experiênciasobreo haxixe vai dar ao
médicoa possibilidadede se comunicardiretamentecom a
loucurapor outra coisa que não a observaçãoexterior dos
sintomasvisíveis; vai serpossívelcomunicar-secom a loucu-
ra por meio da experiência,subjetivamentefeita pelo médi-
UI!:,él.lllLU 'iu u cu ta.1.v1 1vya.1.v1<võ-".:1 Lu.:, Lu u w..1c.1 r u ..u.u. " ""''"' .:,

qu falta ao alienista, s -e corpo,essesolo de evidência,essa


instânciade verificaçãoexperimentalque falta ao psiquiatra,
o psiquiatravai podersubstituirpor suaprópria experiência.
Dondea possibilidadede vincular a experiênciado psiquia-
tra a experiênciado louco; possibilidade,por conseguinte;de
ter acessoa algo que serácomo que o ponto zero entrea psi-
cologiamoral e a psicologia patológica. E, sobretudo,parao
psiquiatra,possibilidade, em nome da suanormalidadee das
experiênciasquepode fazer comopsiquiatranormal,masin-
toxicado, de ver, de dizer, de ditar a lei à loucura.
Até a experiência de Moreaude Tours, claro, era o psi-
quiatra como indivíduo normal que ditava a lei à loucura,
mas fazia isso sob a forma da exclusão: você é louco uma
vez que não pensacomo eu; reconheçoquevocê é louco na
medidaem que o que você faz não é penetrá vel -às razões
que sãoválidasparamim. Era sob a forma dessa exclusão,
dessaalternativa,que o psiquiatracomo indivíduo normal
ditava a lei ao louco. Mas eis que agora,a partir da expe-
riência com o haxixe, o psiquiatravai poderdizer: sei qual
é a lei da sualoucura,eu a reconheçoprecisamenteporque
posso reconstituí-laem mim mesmo;posso acompanhar
em mim mesmo,desdeque faça algumasalterações,como
a intoxicaçãopor haxixe, possorecon stituir todo o fio dos
acontecimentose dos processosquecaracterizamsualou-
cura. Posso compreender o que acontece;possoapreender
e reconstituir o movimento autênticoe autônomoda sua
loucura; posso,por conseguinte,apreendê-lado interior~
É assimque se achafundadaessacélebree absoluta-
mentenova apreensãoda psiquiatriasobrea loucura, que
tem a forma da compreensão. A relaçãode interioridadeque
?ps~quiatraestabelecepelo haxixe vai lhe possibilitardizer;
isto e loucura,pois eu mesmopossoefetivamentecompre n-
d:r, comoindivíduo normal,o movimentopelo qual e sefi -
nomenose produziu.A compreensão como lei do psiquiatra
normalsobreo próprio movimentoda loucuraencontraaqui
seuprincípio originário.Er enquanto,até então,a loucura era
precisamenteo quenãopodiaserreconstituídopor um pen-
samentonormal, ela vai ser agora,ao contrário,o que deve
poderser reconstituídopor e a partir da compreensãodo
psiquiatra; suplementode poder, por conseguinte,que é
dado por essaapreensão interior.
Mas esse"fundo1' primordial que o psiquiatrapodere-
constituir por intermédiodo haxixe, e que não é aloucura,
portanto - já que o haxixe não é aloucura-, masque é ape-
sar dissoloucura- já que o encontramosno estadopuro e
espontâneona loucura-, o que é essefundo primordial as-
sim identificado?Pois bem, o que é essefundo primordial,
homogêneoà loucura* e que no entantonão é a loucura,
quevamosencontrarno psiquiatrae no louco?Esseelemen-
to, MoreaudeTours o nomeia,é claro, e vocêsjá conhecem:
é o sonho. O sonho enquantomecanismoque podemos
encontrarno indivíduo normale quevai servir precisamen-
te de princípio de inteligibilidadeparaa loucura, é issoquese
abrecom a experiênciado haxixe.'1 Pareceportantoque dois
modosde existênciamoral, duasvidas foram concedidasao
homem.A primeiradessasduasexistênciasresultadasnos-
sasrelaçõescom o mundoexterior,com essegrandetodo a
que chamamosuniverso;ela é comuma nós e aosseresque
se nos assemelham. A segundanadamais é do que o reflexo
da primeira,só se alimenta,de certomodo,com os materiais
que estalhe fornece,masé no entantoperfeitamentedistin-
ta dela. O sonoé como que umabarreiraerguidaentream-
bas, o ponto fisiológico em que acabaa vida exterior e em
que a vida interior começa."33
E o que é precisamente a loucura?Poisbem,a loucura,
como a intoxicaçãopor haxixe, é esseestadoparticular do
nossosistemanervosoque é tal que as barreirasdo sonoou
as barreirasda vigi1ia, ou a dupla barreira constituída pelo

* O manuscrito acrescenta: "por s,er ao mesmo tempo o suporte e


o modelo" .
m rto núm rode lugar . a llTllpçao uo · nt LéUt:r ...

m d nho na vigília ' o qu vai provocara loucura, · o


m ani m for d c rto modo endóg no, ' o quevai provo-
car a xp ri "ncia alucinatóriados intoxicados,se a ruptura
f r pro ocadap la ab orçãode um corpoestranho.O sonho
., fixado portant comos ndo a !ei comuma vida norm~e.à
vida patológica;é o pontoa p ~do qu~a compreensao do
p iquiatra ai poderimpor sualei aosfenome120sda loucura.
Claro, a formulaçãode que II os loucossao sonhadores
acordado"'34, não ' umaformulaçãonova,vocêsjá a encon-
tram claramenteformuladaem Esquirol35; vocêsa encontram
m toda uma tradição psiquiátrica,no fim dascontas36• Mas
o que há de absolutamente novo e, creio, capital em Moreau
deTours e no seulivro sobreo haxixe é quenão se tratasim-
pl mentede uma comparaçãoentrea loucurae o sonho,é
um princípio de análise37 • Mais ainda: em Esquirol e todos
o psiquiatrasque nessaépoca.,ou mesmoantes,diziam que
"os loucos são uns sonhadores",fazia-se a analogiaentre
o fenômenosdaloucurae os fenômenosdo sonho,enquan-
to MoreaudeTours faz a relaçãoentreos fenômenosdo so-
nho e, ao mesmotempo, os. . fenômenosda vigt1ia normal e
os fenômenosda loucura38• E a posiçãodo sonhoentrea vi-
gília e a loucura,é isso que foi apontadoe estabelecidopor
MoreaudeTours, e é nissoque ele é, na história da psiquia-
tria e na história da psicanálise,o ponto absolutamente fun-
d~dor. Em outraspalavrasainda, não foi Descartesquem
disseque o sonhoexcedea loucura e a inclui39, foi Moreau
deToursque pôso sonhonumaposiçãotal em relaçãoà lou-
cll!a, que o sonhoenvolve a loucura, inclui a loucura, per-
m~te ~ompr~endê-la.E é apartir de Moreaude Tours que o
ps1qu1atradiz, e que, no fundo, o psicanalistanão cessará
~e repetir: já que ~ossosonhar,possocompreendero que
e aloucura.A partir do meu sonhoe a partir do que posso
apreenderdo meusonho,vou acabarcompreendendo como
se passamas coisasem alguémque é louco. Isso estáem
Moreaude Tours e no livro sobreo haxixe.
Logo, a dr?ga~ o sonhoinjetado,,na vigi1ia, é a vigi1ia
de certo modo intoxicadapelo sonho.E aprópriaefetivação
da loucura. Donde a idéia de que, fazendo-se um doente
tomar haxixe, alguémque já estádoente, vai-se simples-
mente aumentarsua loucura. Ou seja,fazer um indivíduo
normal tomar haxixe é torná-lo louco1 masfazer um doen-
te tomarhaxixeserátomarsualoucuramaisvisível, serápre-
cipitar seucurso.Foi assimque Moreaude Tours instaurou
uma terapêuticapelo haxixe em seusserviços.E começou-
ele próprio disse- cometendoum erro: fazia melancólicos
II
tomarem haxixe, acreditandoque a excitaçãomaníaca",
essa espéciede agitaçãoque é ao mesmotempo o fato pri-
mordial da loucurae o caráterdo sonho,fossecompensaro
que havia de triste, de petrificado,de imóvel nos melancó-
licos; compensarportantoa fixidez melancólicapelaagitação
maníaca do haxixe era o que ele tinha em mente40• Perce-
bendo logo que isto não funcionava,entãoteve a idéia de,
justamente,reatualizara velha técnicada crise médica.
Ele teria dito: como a maniaconsistenumaespéciede
excitação e como, na tradição médicaclássica,aquelaque
aliás aindaencontramosem Pinel41, a crise é precisamente o
momentoem que os fenômenosde uma doençase tomam
mais rápidose maisintensos,vamostornarum poucomais
maníacosos maníacos,vamoslhes dar haxixe e, com isso,
curá-los42• E noslivros-protocolosdessaépocaencontramos
um grande númerode casosde cura sem,é claro, a análise
dos casoseventuaisde recidiva, pois estavaentendidoque
uma cura, uma vez adquirida,mesmoque fossequestiona-
da alguns dias depois,ainda assimconstituíauma cura.
Temosportanto,comovocêsestãovendo,uma espécie
de reconstituição,paralelaao interrogatório,alheiaao inter-
rogatório, dos mecanismosque sãoprecisamenteos quevi-
mos seraplicadosno interrogatório.O haxixe é uma espécie
de interrogatório automático e, se o médicoperdepoderna
medidaem que deixa a drogaagir, o doente,por suavez, se
acha tomadono automatismoda droga,não podeopor seu
poderao do médica,e o que o médicopodeperderem po-
prio int n r cta ~ou ur . I' • • I' _.

t rc ·ir · 1 t ma de provasna praticapsiqwatrtcados


doi prim iro terço do século~; o ?'ª~etismoe ahip-
o . Originalmente,o magnet3s~o foi utilizado, no fund~,
. ncialment comouma espec1ede deslocamentoda cn-
.. O magnetizador,na práticamagnéticado fim do século
XVIII, era e encialrnenteaqueleque impunhasuavonta-
d ao magnetizadoe, por conseguinte,seos psiquiatrastive-
ram,já no anos1820-1825,a idéia de utilizar o magnetismo
no ho pitais psiquiátricos- na Salpêtriere-, era precisa-
m nte parareforçaraindamais o poderque o médicoque;
ria atribuir a si próprio43• Havia algo mais, no entanto.E
que,no magnetismo 1 tal como o vemosfuncionarno fim do
séculoXVIII e no início do séculoXIX, o efeito do magnetis-
mo é, de um lado, proporcionarao ~édico um domínio, e
um domínio total, absoluto,sobreo doente,masé também
proporcionarao doenteuma lucidez suplementar- o que
os rnesmerianoschamavamde "a intuitiva" -, proporcionar
uma"intuitiva" suplementargraçasà qual o sujeitoia poder
conhecerseu próprio corpo, sua própria doençae, even-
tualmente,a doençados outros44• O magnetismono fim do
séculoXVIII era, no fundo, uma maneirade confiar ao pró-
prio doenteo que era a tarefa do médico.na crise clássica.
Na crise clássica,o médico era aquele que devia prever o
que era a doença,adivinharem que ela consistia,organizá-
la no decorrerda crise45• Agora, no interior do magnetismo,
tal como é praticadopelos mesmerianosortodoxos,.[trata-
se de] pôr o doentenum estadoque seja tal, que ele possa
efetivamenteconhecera natureza,o processoe a ~ata de
vencimentoda suadoença46 •
Vocêsencontram,assim,nasexperiênciasque foram fei-
tas d~anteos anos 1820-1825na Salpêtriere,uma primeira
tentativade magnetismodessetipo. Adormecia-seum doen-
te ou uma doentee perguntava-seque doençaelestinham,
desdequando,por quemotivose comodeviamvencê-la.Te-
mos toda uma sériede testemunhasdisso.
Eis uma mesmerizaçãoque se fez por volta dos anos
1825-1826. Uma doenteé apresentada ao magnetizadorque
11
lhe pergunta: Quema adormeceu? - O senhor.- Por quevo-
cê vomitou ontem?- Po,rque me deramcaldo frio . - A que
horasvocê vomitou? - As quatro horas.- Você comeude-
pois? - Sim, senhor,e não vomitei o que comi. - Que aci-
dente a tomou doente,pela primeiravez?- É que eu fiquei
com frio. - Faz muito tempo?- Mais de um ano.- Você não
levou um tombo?- Levei sim, senhor.- Nessetombo,você
caiu de barriga?- Não, caí de costas,etc."47 O diagnóstico
médico se fazia portanto,de certo modo, na aberturareali-
zadapela práticamagnética.
E é assimque um dos alienistasmais sériosdessaépo-
ca, Georget,magnetizouduas doentes,uma das quais se
chamava"Pétronille", a outraerachamadade "Braguette"48 •
Pétronille,interrogadapor Georget,dissesob magnetismo:
11
O que me adoeceufoi que caí dentrod'águae, se o senhor
quiserme curar,tambémvai ter de me jogardentrod'água."49
O que Goergetfez, masnão houve curaporque,na verda-
de, a doentehavia deixadobemclaro que ela tinha caídona
água no Canalde l' Ourcq, e Georgeta tinha feito cair num
laguinho50• Era a repetiçãodo traumao que efetivamentepe-
dia Pétronille, que depoisfoi consideradauma simulado-
ra, e Georget,a vítima inocentee ingênuadasmanobrasde
Pétronille. Poucoimporta, eu queriainsistir nisso paralhes
mostrarcomo o magnetismo,nessaépoca,ou seja,aindapor
volta de 1825, funcionavacomo um suplemento,um pro-
longamentoda crise clássica:conhecer,testara doençaem
sua verdade.
Na realidade,a verdadeirainserçãodo magnetismoe da
hipnosena práticapsiquiátricase fará bem mais tarde,de-
pois de Braid, isto é, depoisdo tratadoNeurhypnology , ar the
51
Rationale of NervousSleep,que data de 1843 , e principal-
mente depoisda introduçãona Françadaspráticasde Braid
em torno de Broca, em 1858-185952•
Por que o braidismofoi aceito,enquantoo velho mes-
merismofoi abandonadopor volta dos anos1830?53 Se foi
n a ifí qu r H:Ull ·uuucu V u lI.C: a
.lU\...1\:.4 LJ -'-'"'

d nt o pod r m ' di o o · ab r m ' dico que, no próprio


fun ionam nto da in tituição, s ' podia cab r ao médico;
dond a barrag m que foi erguidapelaAcademiade Medi-
cina p los m ' dicos diante das primeiraspráticasda hip-
no . Em compensação , o braidismofoi aceito e penetrou
muito facilmente a partir dos anos1860 na prática asilar e
p iquiátri ca. Por quê?De um lado, claro, porqueo braiclis-
mo, digamossimplesmentea hipnose,abandonaa velha
54
t orla do suportematerialdo magnetismo • Em outraspala-

vras, a hipnosetal como Braid a define põe todos os efei-


tos da hipnoseunicamentena vontadedo médico.Ou seja,
somentea afirmaçãodo médico,somenteseuprestígio,so-
mente o poderque ele exercerásobreo doentesemnenhum
intermediário,semnenhumsuportematerial,sema passa-
gemde nenhumfluido, essepodersozinhoconseguirápro-
duzir os efeitospróprios da hipnose.
A segundarazão é que o braidismo despojao doente
da faculdadede produzir essaverdademédicaque lhe pe-
diam aindaem 1825 ou 1830.No braidismo,a hipnoseé o
elementono interior do qual o sabermédico vai poderse
manifestar.O que seduziuos médicose o que os levou a
aceitaro que elesrecusavamem 1830 é que, graçasà técni-
ca de Braid, era possívelde certo modo neutralizarinteira-
mentea vontadedo doentee deixar o campoabsolutamen-
te abertoà puravontadedo médico.O que voltou a entro-
nizar a hipnose na Françafoi a operaçãofeita por Broca
(Brocafez urnaoperaçãocirúrgicaem alguémque estavaem
estadohipnótico)55• De fato, nessemomentoa hipnoseapa-
recia como a aberturaatravésda qual o poder-sabermédi-
co ia poderse precipitare se assenhorear do doente.
Essaneutralizaçãodo doentepela hipnose,o fato de
que não sepedemais ao doentehipnotizadoparasabersua
doença,mas,ao contrário,lhe dão por tarefaser como que
uma superfícieneutraem que vai se imprimir a vontadedo
médico, terá uma enormeimportânciaporque, a partir daí,
vai ser possível definir a açãohipnótica. É o que Braid fez e
é sobretudo, após Braid, o que fez na França alguém cujos
livros sãoassinados Philips, masquenaverdadese chamava
Durandde Gros, um emigrado de 1852,que voltou à Fran-
ça poucos anos depois e que vivia e publicavacom o nome
de Philips. EssePhilips definiu, em 1860-1864, os proces-
sose os diferentes episódios da açãohipnótica56. Ele mostra
como a hipnoseé importante; primeiroporqueela tem um
efeito disciplinar - ela é sedativa,exatamente , assim como
o interrogatório, a droga,nãovou voltar a isso. Mas, princi-
palmente, o estadohipnótico no qual se encontrao sujeito
a partir do momentoem que começaa ser hipnotizado57 -
o que ele chamavade "estadohipotáxico" - vai dar ao mé-
dico a possibilidadede disporcomo bem entenderdo doen-
te. De dispor, em primeiro lugar, do comportamento:ele
poderá impedi-lo de se comportardestaou daquelamanei-
ra dando-lhe uma ordem,ou poderá,ao contrário,forçá-lo.
Logo, possibilidadedo que Durandde Gros chamade "or-
topedia": "O braidismonosproporcionaa basede umaorto-
pediaintelectuale moral que, certamente,seráinaugurada
um dia nas casasde educaçãoe nos estabelecimentos pe-
nitenciários"58, diz ele. Logo, modelagem,adestramentodo
comportamento, éisso que a hipnosepossibilita.
Ela tambémpossibilitaumaanulaçãodos sintomas.De-
ve-sepoder impedir, pela hipnose,o aparecimentode um
sintoma;Durandde Gros pretendeque o tremor da coréia
pode perfeitamenteser anuladose seder essaordem ao
doente59.
Enfim, em terceirolugar, no próprio nível da análisee da
modificaçãodasfunções,o hipnotizadorpodeexercerum do-
mínio sobre o corpo do doente.Ele podedeterminara con-
tratura oua paralisiade um músculo,podeexcitar ou anular
a sensibilidade na superfíciedo corpo, debilitar ou avivar as
faculd adesintelectuaisou morais; podemodificar inclusive
60
funçõesautomáticascomo a circulação,a respiração •
hipn e, tal como 1a, ag~raacena,essec~i~ore c~r~~ ~u
do nt qu tava at ntao ausenteda praticaps1qu1atn-
ca. A hipno e " o quevai efetivamentepossíbilitarintervir no
corpo, não simplesmenteno nível disciplinar dos compor-
tamentosmanifestos,masno nível dos músculos,dos ner-
vos, dasfunçõeselementares.Por conseguinte,a hipnoseé
umanovamaneira,muito maisaperfeiçoada,muito maisex-
tremadaque o interrogatório,de o psiquiatradominarefeti-
vamenteo corpo do doente; ou antes, é a primeira vez que o
corpo do doente,em seudetalhe de certo modo funcional,
vai enfim se encontrarao alcance do psiquiatra. O poder
psiquiátricovai enfim atuarsobreesse corpo que lhe esca-
pavadesde que se soube que a anatomiapatológica nunca
seriacapazde explicar o funcionamentoe os mecanismos
da loucura*.
Pois bem,creio que temos,com essesdiferentesinstru-
mentos, essasdiferentestécnicasde realizaçãoda doença, os
elementosa partir dos quaisvai sedesenrolaro queé o gran-
de episódiocentralna história da psiquiatriae da loucurano
séculoXIX . Temosportantotrês instrumentos:o interroga-
tório, a hipnosee a droga. O interrogatório,a hipnose e a
droga são três maneirasde realizarefetivamentea doença,
mas,no interrogatório,essarealizaçãoda doença,,é claro, só
se dá na li nguageme, sobretudo,tem o duplo defeito de, em
primeiro lugar, não pôr o psiquiatraem comunicação inter-

* O manuscrito acrescenta: "Temospois com a hipnoseum tipo de


prova da doença,que se aproximada droga pelo efeito de disciplina e
pelo efeito de reprodução da realidadepatológica
- masdistingue-sedel a e, em certo sentido,é privilegiadaem re--
laçãoà droga,
- porqueé inteiramenteadequadaà vontadedo médico: fazer o
quese quer do doente,
- porqueela permite, ou pelo menosespera-e dela, a nulação
dos sintomas,um a um, porqueela possibilita uma atuaçãodiret o-
bre o ·corpo."
na com os mecanismosda loucura,a não serpelo jogo das
perguntase respostas;e, em segundolugar, o interrogatório
não possibilitaagir sobreo detalhedo corpo do doente.
Ao contrário,com a drogavai-seter a possibilidadedes-
saapreensãointerna,dessaespéciede suplementode poder
que é dadoao psiquiatrapelo fato de que ele pensa,de que
ele imaginapodercompreenderos fenômenosda loucura.
Apreensãointerna,por conseguinte.Quantoà hipnose,vai
sero instrumentopelo qual o psiquiatravai apreendero pró-
prio funcionamentodo corpo do doente.
Vocês estãovendo que temosaí os elementosa partir
dos quaisvão poderse constituir... ou melhor, os elemen-
tos que estãoinstauradose que, bruscamente,nos anos
1860-1880,vão adquirir umaimportânciae umaintensida-
de extremas,quando,justamente,do próprio interior da me-
dicina orgânicaclássica,vai surgir uma nova definição, ou
antes,uma nova realidadedo corpo, isto é, quandose vai
descobrirum corpo que não é simplesmenteum corpo com
órgãose tecidos,masum corpo com funções,desempenhos,
comportamentos - em suma,quandose descobriro corpo
neurológico,e isso em torno de Duchennede Boulogne,por
volta de 1850-186061•
Nessemomento,vai-se tera possibilidadede, conec-
tando essenovo corpo que vai ser descobertopela medici-
na, pelastécnicasda hipnosee da droga, tentarinscrever
os mecanismosda loucuranum sistema deconhecimento
diferencial,numamedicinafundadaessencialmente sobrea
anatomiapatológicaou sobrea fisiologia patológica- essa
inscrição,essatentativade inscriçãoda loucurano interior
de uma sintomatologiamédicageral, que, até então,havia
sido mantidasempreà margempor essaausênciade corpo,
por essaausênciade diagnósticodiferencial,é isso quevai ser
o grandefenômeno.O fracassodessatentativade Charcot,
o fato de que o corpo neurológicovai escaparao psiquia-
tra, como o corpoda anatomiapatológica,vai deixarao po-
der psiquiátricoos três instrumentosde poder que foram
instauradosna primeira parte do séculoXIX. Ou seja,de-
pois do desaparecimento da grandeesperançaneurológica,,
só encontraremosos três elementos:o interrogatório- a
linguagem-, a hipnosee a droga; isto é, os três elementos
com os quais,sejanos espaçosasilares, sejanos espaçosex-
tra-asilares,o poderpsiquiátricofunciona aindahoje.
NOTAS

1. De fato, foi precisoesperar1879 paraque os trabalhosde


Alfred Fournier (1832-1914)mostrassemque a paralisiageral era
umacomplicaçãofreqüenteda sífilis terciária:cf. Syphilisdu ceroeau,
Paris, Masson,1879.Antes de ser admitida, essarelaçãosuscitou
muitos debatesna SociedadeMédico-Psicológica,de abril a junho
de 1879 e de fevereiro a novembrode 1898. No dia 27 de março
de 1893, Le Filliatre, numa comunicaçãointitulada "Des antécé-
dentssyphilitiqueschezquelquesparalytiquesgénéraux",apresen-
ta a sífilis como "uma grandecausapredisponente"e não encon-
tra contraditares;cf. Annalesmédico-psychologi,ques, 7~ série,t. XVII,
julho de 1893,p. 436. Como recordao secretário-geralda Socieda-
de Médico-Psicológica,"em 1893,os partidáriosexclusivosda ori-
gem específicada paralisiageral ainda eram raros entre nós" (A.
Ritti, "Histoire des travaux de la Sociétémédico-psychologique
(1852-1902)",Annalesmédico-psychologi,ques, 8~ série,t. XVI, julho
de 1902,p. 58). Suaetiologia específicasó se imporácom adesco-
berta, em 1913, por Noguchi e Moore do Treponemapallidum no
cérebrode paralíticosgerais.
2. A. L. J. Bayle, Traité des m.aladies du cerveauet de sesmem-
branes, op. cit., pp. 536-7: "Dentre os numerosossintomasque
acompanhamessaafecção,pode-sereduzir a dois os que servem
essencialmentea caracterizá-la ...: 1? o desarranjodas faculdades
intelectuaisou delírio; 2? a paralisiaincompleta.1? Delírio: a alie-
naçãomental..., de início parcial,consistindonumaespéciede mo-
, ,_ ~ • .~ - -- ... , - - - -e, - V

d m . . ncia...; 2? Parali ia: a parali ia qu , reunidaao delírio, estabe-


le o diagnó tico da meningitecrônicaé uma diminuição uma
debilitaçãoque,a princípio 1 ve limitada a um só órg,ão, aumen-
ta progri ssiva e gradativamente,estende-sea um número maior
de partese acabainvadindotodo o sistemalocomotor,de modoque
o nome que melhor nos parecelhe convir... é o de paralisia geral e
incompleta."Cf. supra,p.175,nota17; e J. ChristianeA Ritti, verbete
"Paralysiegénérale",in Dictionnaire encyclopédíque des sciencesmé-
dicales,2~ série,t. XX, Paris,Masson/Asselin, 1884.
3. JulesBaillarger (1809-1890) afumaque "é impossívelcon-
siderarcom Bayle a loucuracomo um sintoma constantee essen-
cial da paralisiageral. Portantosó se podeadmitir duasordensde
sintomasessenciaisparacaracterizara paralisia geral: os sintomas
de demênciae de paralisia" (apêndiceà traduçãopor Doumic da
2~ edição(1861),rev. e aum.,da obradeWtlhelm Griesinger[Die Pa-
thologie undTherapieder psychischenKrankhe-iten, op. cit. J, Traité des
maladies mentales.Pathologieet thérapeutique,precedid o de uma
classificaçãodas doençasmentais,acompanhadode notas e se-
guido de um trabalhosobrea paralisiageralpelo dr. Baillarger: Des
symptômesde la paralysiegénéraleet des rapports de cette maladie
avec la folie, Paris,A. Delahaye,1865, pp. 389-876; texto citado,
p. 612). Baillargervolta váriasvezesa esseproblema; [1] "Desrap-
ports de la paralysiegénéraleet de la folie" (aula dada no hospí-
cio da Salpêtriere),Annalesmédico-psychologiques , 2~série,t. V, ja-
neiro de 1853, pp. 158-66; [2] "De la folie avec prédominancedu
délire desgrandeursdanssesrapportsavecla paralysie générale",
ibid., 4~ série,t. VIII, julho de 1866,pp. 1-20. Em seuartigo sobrea
teoria da paralisia geral: [3] "De la folie paralytiqueet de la dé-
menceparalytiqueconsidéréescommedeux maladiesclistinctes",
ele reafirma que "a 'paralisiageral' deve ser completamente sepa-
rada da loucura e vista como uma doençaespecialindependente"
(ibid., 6? série,t. IX, janeiro de 1883, p. 28; grifado no texto).
4. Cf. supra, pp. 198-203.
5. Na verdade,a hereditariedadejá era evocadacomo uma
das causasda loucura. [a] Ph. Pinel, na 2? ediçãodo seu Tratado,
afirma que seria difícil "não admitir uma transmissãohereditária
da m~a,ao se observarem todosos lugarese emyáriasgeraç~
sucessivasalgunsdos membrosde certasfamílias acometidospor
essadoença" (Traité médico-philosophíque sur l' aliénatíon mentale,
op. cit., ed. de 1809). [b] Esquirol declaraque ''a hereditariedadeé
a causapredisponentemais comum da loucura" ("De la folie 1'
(1816), op. cit. [in Des maladiesmentales..., t. I], p. 64). Mas, para a
questãoser abordadacomo temade pleno direito, vai ser preciso
aguardara obra de [c] CI. Michéa, De l'influence de l'héréditédans
la productiondes maladiesnerveuses(obrapremiadapelaAcademia
de Medicina em 20 de dezembrode 1843) e o artigo de [d] J. Bail-
larger,"Recherchesstatistiquessur l'héréditéde la folie" (notalida
naAcademiade Medicinaem 2 de abril de 1844),no qual ele pode
declarar(ab initio) que: "Todo o mundoestáde acordoquantoà in-
fluência da hereditariedadena produçãoda loucura" (Annalesmé-
dico-psychologi,ques, t. III, maio de 1844,pp. 328-39;texto citado:
p. 328).-A noçãode "hereditariedadepatológica"é precisadaen-
tre 1850 e 1860 pelos trabalhosde JacquesMoreau de Tours, que
introduzem a idéia de uma transmissãodo patológico sob for-
mas diferentes,ou "hereditariedadedissimilar", abrindo assim a
possibilidade de introduzir no quadro hereditário a maior parte
dasformas de alienação:[1] "De la prédispositionhéréditaireaux
affections cérébrales"(comunicaçãoà Academiade Ciências,15
de dezembrode 1851),Annalesmédico-psychologi.ques, 2~ série,t.
N, janeiro de 1852, pp. 119-29; CR: julho de 1852, pp. 447-55;
[2] La Psychologi.emorbide dans ses rapports avec la philosophiede
l'histoire, ou De l'influencedes névropathiessur le dynamismeintellec-
tuel, Paris, Masson,1859. - A questãodo hereditarismotem seu
auge com os últimos debatesda SociedadeMédico-Psicológica
sobre os sinais da loucura hereditáriaem 1885 e 1886 (cf. infra,
nota 7). Cf.: [a] J. Déjerine, L'Héréditédans les maladiesdu systeme
neroeux,op. cít. [b] A.Voisin, verbete"Hérédité",in NouveauDictíon-
naire de médecíneet de chírurgi.e pratiques,t. XVII, Paris,J.-B. Bailliere,
1873,pp. 446-88. M. Foucaultvolta a essaquestãoem 19 de março
de 1975,em seucursosobreLes Anonnaux,op. cit., pp. 296-300.
6. Cf. supra, p. 297, nota 71, e Les Anonnaux,5 de fevereiro e
19 de março de 1975,pp. 110 e 297-300.
7. Ver a comunicaçãode Moreau de Tours (cit. supra, nota 5)
sobrea questãodos sinaisprognósticosda loucura,"De la prédis-
positionhéréditaireaux affectionscérébrales.Existe-t-il dessignes
particuliersauxquelson puissereconnaitrecetteprédisposition?",
e sua "Mémoire sur les prodromesde la folie'' (lida na Academia
de Medicinaem 22 de abril de 1851).Em 1868,um interno de Mo-
nai'"" da ordemmoral, física e intelectual que p rmitem diagnosti-
car imediatament a influ~ncia mórbida hereditária nos indiví-
duos predi posto ou acometido de alienaçãomental'' (Annales
médico-psychologi.que, 5~ série,t. Il, setembrode 1869,pp. 197-237í
texto citado: p. 197). A SociedadeMédico-Psicológica consagraa
questãodos II sinaisfísicos, intelectuaise moraisdas loucurashe-
reditárias" dez sessões,repartidas em mais de um ano, de 30 de
marçode 1885 a 26 de julho de 1886.
8. Sobrea formação da noção de anomalia, cf. LesAnonnaux,
22 de janeiro de 1975 e 19 de marçode 1975, pp. 53-6 e 293-8.
9. Moi, Pierre Riviere..., op. cit.
10. Sobre a noção de "monomania h omicida", cf. supra, p.
342, nota 45.
11. " Détail et explication de l'événemen t arrivé le 3 juin à
Aunay, village de la Fauctrie, écrite par Yauteur de cette action"
(Moí, Pierre Riviere..., op. cit., pp. 124 e 127).
12. Alusão ao interrogatório de A., 42 anos, que deu entrada
no dia 18 de junho de 1839 em Bicêtre por alucinaçõesauditivas e
visuais, idéias eróticase ambiciosas.Cf. F. Leuret, Du traitemenJ
moral de la foliei op. cit., I, "Hallucinés",Obseivação 1, pp. 199-200,
13. Alusão à terapiade M. Dupré; cf. Du traitementmoral de la
folie, op. cit., pp. 441-2; e supra, aula de 9 de janeiro de 1974.
14. Cf. supra, pp. 201-3.
15. Sobrea visita, cf. J.-P. Falret, De l'enseignementclinique des
maladiesmental~s,op. cit., pp. 105-9.
16. Cf. supra, pp. 232-5.
17. Parailustrar o interrogatório pelo silêncio, o manuscritose
refereà obseIVação XLIV do Traité de W. Griesinger,trad. cit., p. 392:
"Dir-se-ia que ela ouvia... dei uns cempassossemfalarnada1
sem parecerfixar minha atençãonela... parei de novo... e fitei-a
atentamente , tomandoo cuidadode manterminha figura imóvel
e semdeixar transparecernem sequeralgumacuriosidade...
"Estávamosassim havia mais de meia hora, entreolhando -
nos, quando ela murmurou algumaspalavrasque não entendi;
oferecí-lhemeu caderno,no qual ela escreveu[...}"
Cf. tambémJ.-P. Falret, Leçonscliniques de médecinementa-
le, op. cit. [supra, p. 249, nota 28]', p. 222: "Em vez de estimul r
astúciade um alienadopara evitar uma autorldad qut o impor-
tuna, mostre... abandono;afastedo espírito dele qualqueridéia...
de desejode penetraros pensamentos dele e, então,estejacerto,
não o vendo preocupadoem controlar tudo nele, ele não ficará
desconfiado,mostrar-se-á como é e você poderáestudá-lomais
facilmentee com maior sucesso."
18. Cf. supra, p. 210, nota 2.
19. Cf. supra, pp. 209-10,nota 1.
20. Trata-sedo cirurgiãodasprisõesde Milão, Monteggia,que,
suspeitandoque um criminosoestivessesimulandoa loucura,ad-
ministra-lhe repetidamenteópio em forte dose,de tal modo que o
detentoficou tão cansado"do efeito do ópio que,temendomorrer,
considerouinútil prosseguira simulação"("Folie soupçonnéed'être
feinte, observéepar le professeurMonteggia",trad. fr. por C. C. H.
Marc em "Matériaux pour l'histoire médico-légalede l' aliénation
mentale",Annalesd'hygi.enepubliqueet de médecinelégale, t. II, par-
te 2, 1829,pp. 367-76;texto citado: p. 375). Cf. também:[a] C. C. H.
Marc, De la folie consídéréedans sesrapports avecles questionsmédi-
co-judiciaires,op. cit., t. I, p. 498. [b] A. Laurent,Étudemédico-légale
sur la simulationde la folie, op. cit. [supra, p. 177, nota 20], p. 239.
21. Descobertoem 1844 por Antoine JérômeBalard (1802-
1876) para tratar as dores da anginado peito, o nitrito de amila
encontrana epilepsiae na histeria campopara sua experimenta-
ção terapêuticana psiquiatria.Cf. A. Dechambre,verbete"Nitrite
d'amyle", in Dictionnaire encyclopédiquedessciencesmédicales,2~ sé-
rie, t. XIII, Paris,Masson/Asselin,1879, pp. 262-9.
22. Cf. supra, p. 326, nota 2.
23. Cf. supra, p. 246, nota 18.
24. B. A. Morel preconizao recursoà eterizaçãocomo "o mais
inocentee o mais pronto meio para chegarao conhecimentoda
verdade"("De l' éthérisationdansla folie du point de vue du diag-
nostic et de la médecinelégale", art. cit., p. 135).
25. J. J. Moreau de Tours, Du haschischet de l'alinénation men-
tale, op. cit.
26. Os itensmencionadoscorrespondem respectivamente aos
títulos dasseçõesII aVIII do capítuloI, "Phénomenes psychologi-
ques",ibíd., pp. 51-181.
27. Alusão aostrabalhosde ClaudeBernard(1813-1878)que,
iniciadosem 1843,levariamà descobertada funçãoglicogênicado
fígado, objeto da suatesede doutoradoem ciênciasnaturais,de-
fendida em 17 de março de 1853: Recherchessur une nouvellefone-
t nomrne ei ~ u,,,.,,iuU,.11.,,i Q.LJ. , J· v • .V"4.LLL-L .,._, .....,....,...., ........... . ~ ................. - - ~ - ..

p da ua de cob· rta ?guraem.s~~Irttroduction à l'étudede la mé-


decineexpérimentale,Pcaris,J.-B. Bailliere; 1865,pp. 286-9 e 318-20.
28. Cf. supra, p. 148, nota 12.
29. J. r MoreaudeTours, Du haschisch..., op. cit., p. 36;
30. J. J. MoreaudeTours1 Traité pratiquede la folie néuropathique
(vulgo hystérique),Paris,J.-B. Bailliere, 18~9,pp. IX,~ XVII , XIX.
31. J. J. Moreaude Tours, Du hasch1sch ..., op. czt., pp. 35-6.
32. Ibid., p. 36.
33. Ibid., pp. 41-2; e id., De l'identité de l'état de rêve et de
11

la folie", Annalesmédico-psychologi,que~, 3~série,t. I, julho de 1855,


pp. 361-408.
34. ComolembraM Foucault na Histoire de la folie, a idéia de
umaanalogiados mecanism osprodutoresdos sonhose da loucura
se desenvolvea partir do séculoXVII ; cf. parteIl, cap.2, "La trans-
cendancedu délire", ed,de 1972, pp. 256-61.Alémdos textosa que
ele se refere então,, podemosacrescentar uma carta de Espinosaa
Pierre Bailling, na qual ele evoca um tipo de sonho que, depen-
dendo do corpo e do movimentodos seushumores,é análogoao
que encontramosnos delírios (carta a Pierre Balling, 20 de julho
de 1664, in Oeuvres,t. IV, trad. fr. e notas de Ch. Appuhn, Paris,
Gamier-Flammarion,1966,n? 17, p.172), assimcomoa célebrefór-
mula de Kant: "O transtorna do também é um sonhadoracordado
[DerVerrückteist also ein Traumerim Wachen]" (Essaí sur les ma-
ladies de la tête, trad. fr. J.-P.Lefevre, in Évolution psychiatrique, Tou-
louse, Privat, ed. de 1971, p. 222). Cf. também Anthropologie in
pragmatischerHinsícht aflgefasstvon Immanuel Kant, Kõnigsberg,
Friedrich Nicolovius, 1798 [Anthropologiedu point de vue pragmati-
que,trad. fr. M. Foucault(Paris,Vrin, 1964)]: "Aqueleque [...] é en-
treguea um jogo de idéiasem quevê, se comportae julga nãonum
mundocompartilhadocom outros,mas (como num sonho) [está]
num universoque só pertencea ele" ("Dídactique",I.53, p. 173).
35. J. E. D. Esquirol: [1] verbete"Délire", cit. [in Dictionnaire
dessciencesmédicales,t. VIII, 1814], p, 252: ''O delírio, como o so-.
~s,só sefaz sobreobjetosque se apresentaram aosnossossen-
tidos no estadode saúdee despertos.[...] Então podíamosnos
afastar ou no aproximardeles; no sono e no delírio, não desfru-
~s dessafaculdade";republicadoem Des maladu;smentales~..,
op. eit, t. l; {2) verbete''Hallucinations"1 in Dictionnaire des sciences
médicales,t. XX, Paris,C. L. F. Panckoucke,1817,p. 67: "Quem de-
lira, quemsonha... estáentregueàs suasalucinações,aosseusso-
nhos...; sonhaacordado";republicadoem Des maladiesmentales...,
t. I, p. 292; [c] Em sua Dissertação"Des illusions chez les aliénés
(Erreurs des sens)" (republ. in op. cit.), Esquirol escreveque os
"alucinadossão sonhadoresacordados".
36. Sobreessatradiçãopsiquiátrica,podemosnos reportaràs
bibliografias: [a] A. Maw:y, [1] "Nouvellesobsetvationssur les ana-
logies des phénomenesdu rêve et de l' aliénationmentale" (Dis-
sertaçãolida na SociedadeMédico-Psicológicaem 25 de outubro
de 1952),Annalesmédico-psychologi,ques, 2~ série,t.V, julho de 1853,
pp. 404-21; [2] "De certainsfaits observésdansles rêves et dans
l' état intermédiaireentre le sommeilet la veille", em que, inscre-
vendo-senessatradição/ Maury sustentaque "o homemque cai
sob o império de um sonhorepresentaverdadeiramente o homem
acometidode alienação·m ental'' (Annalesmédico-psychologi,ques, 3~
série, t. ill, abril de 1857, pp. 157-76; texto citado: p. 168); [3] Le
Sommeilet les Rêves.Étudespsychologi,quessur ces phénomenes et les
divers états qui s'y attachent, Paris, Didier, 1861 (principalmente
cap.V, "Des analogiesde l'hallucination et du rêve", pp. 80-100,e
cap.VI, "Des analogiesdu rêve et de l' aliénation mentale", pp.
101-48). [b] S. Freud, Die Traumdeutung(1901), cap. I, "Die wis-
senschaftlicheLiteratur der Traumprobleme",e cap.VIII, "Litera-
tur. Verzeichnis", in GW, t. II-III, Frankfurt sobre o Meno, S. Fis-
cherVerlag, 1942,pp. 1-99 e 627-42 [L'interprétation des rêves,trad.
D. Berger,cap. I, La littérature scientifiqueconcernantles proble-
11

11
mes du rêve", e cap.VIII, Bibliographie", Paris, PUF, 1967, pp. 11-
1
89 e 529-51.[c] H. Ey, [1] ' Brevesremarqueshistoriquessur les rap-
ports des états psychopatiquesavec le rêve et les états intermé-
diaires áu sommeil et à la veille", Annalesmédico-psychologi,ques,
14~ .série,t. II, junho de 1934; [2] Étudespsychiatriques,vol. I, His-
torique, Méthodologi,e1 Psychopathologi,egénérale,parte II, "Le 'rêve,
fait primordial' de la psychopathologie.Historique et position du
probleme//e '~Bibliographie",Paris,Descléede Brouwer, 2~ ed. rev.
e aum.,1862,pp. 218-28e 282; [3] "La dissolutionde la conscien-
ce dansle sommeilet le rêve et sesrapportsavecla psychopatho -
logie'/, Évolution psychiatrique,t. XXXV, n? 1, 1970, pp. 1-37.Ver as
páginasque M. Foucaultconsagraà questãona Histoire de la folie,
op. cit., ed. de 1972, pp. 256-61.
r 1t n ua uu1d u J· J· J..V v ...., ..., .., r -- - · - - · .1

d lir au point de vue pathologique t anatomo-pathologíque"


(Oi erta ão lida naAcad mia Imp rial de Medicina,em 8 de maio
d 1855),Annalesmédico-psychologiques, 3~ série,t. l, julho de 1855,
pp. 448-55. R spondendoa críticas de Bousquet,ele precisaque
" 0 que importa fazer admitir não é a identidadedo estadoorgânico
nos dois casos,mas apenasa analogiaextremaque apresentam,
do ponto de vista psicológico,o estadodesonoe o estadode lou-
cura,e os preciososensinamentos que podemsertiradosdessees-
tudo comparado"(ibid., p. 465). MoreaudeTours; de seulado, evo-
candoas '-' condiçõesorgânicas"do sono e os "fenômenosfunda-
mentaisdo delírio", sustentaque "para bem apreender,estudare
compreenderum conjunto de fenômenostão complexoquantoo
das desordensintelectuais,é pr~ciso [ ...] agruparentre eles esses
fenômenos,acompanhandoas análogias,as afinidadesmais ou
menosnumerosasque apresentam"(Du haschisch..., op. cit., p. 44).
38. J. J. MoreaudeTours,ibid., parteII,§ 1: "Généralitésphysio-
logiques",pp. 32-47.
39. Alusão ao privilégio que, segundoJ. Derrida, Descartes
atribui ao sonhosobrea loucuraem suaPrimeiraMeditação,"Des
chosesque l' on peutrévoqueren doute", in Méditationstouchant
la premierephilosophie(1641), in op. cit. (supra, p. 47, nota 11), pp.
268-9. Cf. os comentáriosde M. Foucaultna Histoire de la folie, op.
cit., ed. de 1972,parteI, cap.II, pp. 56-9, e apêndiceII, "Mon corps,
ce papier,ce feu", citado (supra, ibid.).
40. J. J.Moreaude Tours, Du haschisch..., op. cit., parteIll, "Thé-
rapeutique",p. 402: "Um dos efeitosdo haxixe que mais me impres-
sionou[...] é essaespéciede excitaçãomaníacasempreacompanha-
da de um sentimentode alegriae de felicidade...Vi nissoum meio de
combatereficientementeas idéias fixas dos melancólicos...Estaria
me enganandonasminhasconjecturas?Inclino-me a crer que sim."
41. Ibid., p. 405: "Pinel e, com ele, todosos médicosde alie-
nadosviram a alienaçãomentalserjulgadapor acessosde agita-
ção." Alusão aosrelatosãe curasobtidasapósum "acessocríticor'
que Pinel relata no seu Traité médico•philosophique,seçãoI, § XIII ,
''Motifs qui portentà regarderla plupartdesaccesde maniecom-
n:ie l' effet d'une réactionsalutaireet favorableà la guérison" {op.
cit., ed. de 1800,pp. 37-41).Vertambémo verbete 1 Crise'',redigido
por Landré-Beauvais(quefoi adjuntode Pinel na Salpêtrier ) p .
o Díction.naire des sciencesmédicales, t.VII, Paris,C. L. F. Panckoucke,
1813, pp. 370-92.
42. J. J. MoreaudeTours,Zoe. cít.: "Sobressaíaparanósumain-
dicaçãoprecisaquepoderíamosformular assim:conse:rvara acuida-
de primeirado delírio quetendeao estadocrônico ou trazer devolta
essaacuidade,reavivá-laquandoela ameaçaextinguir-se. O extra-
to de cânhamoindiano era,de todosos medicamentosconhecidos,
o maiseminentemen te apropriadoparasatisfazera essaindicação."
43. Supra, pp. 177-8,nota 21.
44. P. Foissac,Mém.oiresur le magnétismeanimal, adresséà mes-
sieurs les membresde l'Académiedes scienceset de l'Académ.ieroyale de
médecine,Paris,Didot Jeune, 1825, p. 6: "Tendocaídonum sonopro-
fundo, o magnetizadomostra o fenômenode umanovavida... A es-
fera da consciência se amplia e já se manifestaessafaculdadetão
preciosa,que os primeiros magnetizadoreschamaramde 'intuitiva'
ou 'lucidez'... Por ela, os sonâmbulos[...] reconhecemas doençasde
que sofrem, as causaspróximas ou distantesdessasdoenças,sua
sede,seuprognósticoe o tratamentoque lhes convém... Pondosu-
cessivamentea mão na cabeça , no peito e no abdome de um des-
conhecido, os sonâmbulosdescobremtambémas doenças,as dores
e as diversas alteraçõesque elasocasionam ; elesindicam, além dis-
so, se a terapiaé possível,fácil ou difícil, próxima ou distante, e que
meios devemser empregadosparaalcançaro resultado."
45. Supra, p. 336, nota 28, e p. 337, nota 33.
46. É o casoda terapiamagnéticapraticadaem 4 de maio de
1784 por Armand Marc Jacquesde Chastenet, marquêsde Puysé-
gur (1751-1825), emVictor Race,um camponês de 23 anos,servi-
çal da sua propriedadede Buzancy(na região de Soissons):ador-
mecido, ele responde às perguntas, dá uma opinião sobre o seu
estado,indica uma linha de condutaterapêuticae prognosticaa
data da suavolta à saúde, que se confirmará.E em CharlesFran-
çoisAmé, de 14 anos,que postoem sonomagnéticoanunciaa du.:.
raçãoe aintensidadedassuascrisesfuturas. Cf. A. M. J. Chastenet
de Puységur,[1] Mémoirespour servir à l'histoire et à l'établíssement
du magnétismeanimal, Paris, [s.n.], vol. I, 1784,respectivamente pp.
199-211e 96-7; [2] Détail descuresopéréesà Buzancy , pres de Sois-
sons,par le magnétismeanimal, opúsculo,anônimo,publicadopor
Puységur,Soissons,1784;ver tambémo relato da terapiado jovem
Hébert,precedidode um arrazoadoem favor do magnetismo: [3]
Appel aux savansobservateursdu dix-neuviemesiecle de la déci ion
., ..... ... , , , .. .., ..... J .... . ., . ,- - , , ,

t rapias magn,,tica , pod ... ,, ~ portara: [a] S. Mialle, F;rposépa~ or-


dre alphabétiquede curesopereesen France par le magnétismeanimal
depuisMesmer jusqu'anosjours (1774-1826), Paris,Dentu, 1826.Cf.
também[b] H . F. Ellenb rger, "Mesmerand Puységur:from mag-
netismto hypnotism",PsychoanalyticReview,voL 52, 1965,n? 2.
47. Trata-se da oitava sessão,praticadaem 2 de novembrode
1820,pelo barãoJulesDupotetde Sennevoy no serviçodo dr. Hus-
son, médico-chefedo Hôtel-Dieu, com CatherineSamson,de 18
anos:cf. F.xposédesexpéri.encespubliquessur le magnétisme animalfai-
tes à l'Hôtel-Dieu de Paris, pendantle cours des mais d'octobre,novem-
bre et décembre1820 [1821], Paris,3~ ed., BéchetJeune,1826, p. 24.
48. ÉtienneJeanGeorget,queingressouem 1816no serviçode
Esquirolna Salpêtriere,defendeem 8 de fevereiro de 1820 suatese
(citada) "Dissertation sur les causesde la folie", antesde publicar
em 1829 a obra a que deve suareputação:De la folie. Considérations
sur cettemaladie..., op. cít. Em 1821,comLéon Rostan,transformaem
sujeitosde experiênciaduaspacientes,Pétronille e Manoury,viú-
va Brouillard, denominadaBraguette(cf. $Upra, nota 43).
49. ''Pétronille [...] pede a Georget que a joguem na água
quandoela estivermenstruada"(CL Burdin e F. Dubois, denomi-
nadoDubois d'Amiens,Histoire académiquedu magnétismeanimal,
Paris,J.-B. Bailliere, 1841,p. 262).
50. Ibid., pp. 262-3: "As prescriçõesde Pétronille não tinham
sido pontualmenteseguidas;Pétronilletinha dito queerano Canal
de l'Ourcq quedeviammergulhá-la,pois foi nessecanalqueela ha-
via caídoe contraídosuadoença:similia similibus; de fato, devia ser
esseo fim da história."
51. JamesBraid (1795-1860),cirurgião escocês,convertidoao
magnetismoapós as demonstrações de "mesmerismo"feitas em
novembrode 1841em Manchesterpor um discípulodo marquêsde
Puységur,CharlesLafontaine,popularizasuapráticacom o vocá-
bulo "hipnotismo". Cf. J. Braid, Neurhypnology , or the Ratianaleoj
NervousSleepConsideredin Relatíonwith AnimalMagnetism.Illustra-
ted by NumerousCasesof its SuccessfulApplication in the Relíefand
Cu~eof Diseases,Londres,JohnChurchill, 1843 [Neurhypnologie,ou
Traité ~u sommeilnerveuxconsidérédanssesrapports avecle magnéti -
meanimal, et relatant de nombreuxsuccesdanssesar,plicationsau trai . .
tementdes maladies,trad. fr . G. Simon, prefácio de E. Brown-Sé-
quard,Paris,A. Delahaye,1883].
52. Cf. infra, nota 55.
53. O crescimento do magnetismoé visto, na épocada Res-
tauração,comoumaameaçapela medicinainstitucional.O e:nfren-
tamentocorrespondeao estabelecim ento de comissõesoficiais. A
primeira, nomeadaem 28 de fevereiro de 1826, inicia seustraba-
lhos em janeiro de 1827e apresenta suasconclusõesem 28 deju-
nho de 1831,as quais,consideradasdemasiadofavoráveis,nãosão
publicadaspelaAcademiade Medicina. Uma segunda,desfavorá-
vel, é votadaem 5 de setembrode 1837. Em 15 de junho de 1842
é firmada a sentença de morte do magnetismo,com a decisãoda
Academia de não mais se ocupar com a questão.Cf. L. Peisse,
"Des sciences occultes au xrxe siêcle.Le magnétismeanimal", Re-
vue des deuxmondes, t. I, março de 1842,pp. 693-723.
54. Enquantoo mesmerismopropõe"demonstrarque os cor-
pos celestes agemsobre nossaterra e que nossoscorposhumanos
sãoigualmentesubmetidosà mesmaaçãodinâmica" (A. Mesmer,
Díssertatio physico-medícade planetarum ínfluxu,Vindobonae,Typis
Ghelenianis , [s.d.];Viena,Chelem, 1766, p. 32) e que a açãodo mag-
netizadorconsisteem canalizaressefluid o em direçãoao doente,
JamesBraid invocaumaaçãosubjetiva,basead a na fisiologia do cé-
rebro: cf. ThePaweroftheMind overthe Body: An ExperimentalEnquiry
ínto the Nature and Causeof the PhenamenaAttributedby Baron Rei-
chenbachand Othersto a New Imponderable,Londres, JohnChurchill,
1846.Pelo que é saudado,entreoutros,pelo dr. EdgarBérillon: " '
a Braid que cabea honrade ter introduzidodefinitivamenteo es
tudo do sonoprovocadono domínio científico" e ter prestado•
grandeserviço à ciência,ao dar ao conjunto das suast>eSCJ\IISIIS
nomegenéricode hipnotismo" (Histoíre del'hypnotismeexpérimenta l,
Paris,Delahaye,1902,p. 5).
55. M . Foucault faz referência à operaçãopraticada numa
mulher de 40 anosem 4 de dezembrode 1859no hospital Necker
por Paul Broca - a quem um cirurgião de Bordeaux, Paul Azam,
havia acabadode dar a conheceros trabalhos de Braid - e por E.
F. Follin. A intervençãofoi objeto de uma comunicaçãoà Acade-
mia de Ciências,apresentada por A. A. L. M .Velpeauem 7 de dezem-
bro de 1859: "Note sur une nouvell e méthode anesthésique", Comp-
tes rendus hebdomadaires des séancesde rAcadémiedes sciences,Paris,
Mallet-Bucheli er, t. 49, 1859, pp. 902-11.
56. Joseph Pierre Durand,denominado Durand de Gros (1826-
1900), exilado na Inglaterra,onde descobre o braidismo,depoisnos
Estados Unidos, retoma à França,onde publica, sob o pseudônimo
"1"' - · -- r · ·--- . , .
m nt nouvelles(Paris,J.-B. Baillier , 1855), depoisum Cours théo-
riqu t pratique de braidísm_e,ou Hy~noti~meneroeuxco~sidéré_dans
sesrapportsavecla psychologze , la phystologteet la pathologze,et dansses
ª.
applications la ~édecine ,à!~ !ª
chi~rgie, à physiolo~:expérimenta-
le, à la médecznelegale et à l educatzon,Paris,J.-B. Bailliere, 1860.
57. Durandde Gros define "o estado hipotáxico" como"uma
modificaçãopreparatóriada vitalidade,modificaçãoque na maio-
ria dasvezespermanecelatentee cujo total efeito estáem dispor
a organizaçãoa sofrer a açãodeterminantee específicaque cons-
titui o segundotempo" (Cours théoriqueet pratique..., p. 29).
58. Ibid., p. 112.
59. lbid. A coréia é uma afecçãonervosacaracterizadapor
movimentosinvoluntários, amplos e desordenados, de aspecto
gesticulatório. .
60. Ibid., p. 87: "O bradismoé uma operaçãopela qual pro-
cura-se determinarno homem certas modificaçõesfisiológicas
destinadasa preenchercertasindicações ~de tratamentomédicoou
cinírgico, ou a facilitar estudosexperimentaisde biologia."
61. Entre 1850 e 1860, sob o impulso d~ GuillaumeBenjamin
AmandDuchenne,denominadode Boulogne(1806-1875),anoso-
logia dos distúrbiosfuncionaisda motricidadeé redefinidae enri-
quecidacom dois novos gruposde afecções.Por um lado, a "atro-
fia muscularprogressiva",estudadadesde1849,e as "'atrofiasmus-
cularesde origem miopática",em 1853: [1] La Paralysieatrophique
de l'enfance,Paris, [s.n.t 1855.Por outro, a "atrofia locomotora pro-
gressiva",conhecidaaté entãopelo nome de tabesdorsalis: [2] "De
l'ataxie locomotrice progressive.Recherche s sur une maladie ca-
ractériséespécialementpar des troublesgénérauxde coordination
desmouvements",Archivesgénéralesde médecine,sérieV, t. 12, de-
zembrode 1858,pp. 641-52; t. 13, janeiro de 1859,pp. 5-23; feve-
reiro de 1859, pp. 158-64; abril de 1859, pp. 417-32.Em 1860, ele
descreve[3] a "paralisia glossolabiolaríngea",ibíd., sérieV, t. 16,
186_0, pp. 283-96 e 431-45. - SobreDuchennede Boulogne,cf. P.
Guilly, Duchennede Boulogne,Paris,Bailliere, 1936.- Sobrea cons-
tituição do camponeurológico,d.: [a] W. Riese,A History ofNeuro-
logy, NovaYork, MD. Publications,1959; [b] F. H. Garris n, History
ofNeurology,ed. rev. e aum.org. por LaurenceMcHenry, Springfield,
Ili ., C. C. Thomas,1969.
AULA DE 6 DE FEVEREIRO DE 1974

A emergência do corpo neurológico: Broca e Duchennede


Boulogne. - Doenças com diagnósticodiferencial edoenças com
diagnósticoabsoluto. - O modeloda //paralisia geral" e as neu-
roses. - A batalhada histeria: I. A organização de um "cenário
sintomatológico". - II. A manobrado "manequimfuncionar e
a hipnose.A questão da simulação.- III. Neurose etraumatis-
mo. A irrupção do corpo sexual.

Eu havia lhes indicado da última vez que, a meu ver,


um dos acontecimentosque tinham sido importantesna
históriado remembrarnento do poderpsiquiátricofoi o apa-
recimentodo que chameide corponeurológico"*.O quepo-
II

demos entenderpor corpo neurológico"?É por aí que


II

gostariade começarhoje.
Claro, o corpo neurológicoainda é, é sempreo corpo
da localizaçãoanatomopatológica.Não há por que opor o
corpo neurológicoao corpo anatomopatológico.O segun-
do faz partedo primeiro, é, se assimpodemosdizer, um de-
rivado ou uma expansãodele. Aliás, a melhor prova disso
é que Charcot,num dos seuscursos,em 1879, dizia que a
constituição,os progressose, a seuver, inclusive o perfazi-
mento da neurologia,era o triunfo do espírito de localiza-
II

ção111. Mas creio que o que é importanteé que os procedi-


mentosparaajustara localizaçãoanatômicae aobservação
clínica não são em absolutoos mesmosquandose trata da
neurologiae quandose trata da medicinageral comum. E
parece-me que a neurologia, a clínica neurológica,implica

* O manuscritoacrescenta
: 11 De 1850 a 1870, emergênciade um
novo corpo."
ca rnemca.1ennua 111t_p1t:::s:,auuc:: yut:: u 1.a.\.:t:: a 1.aL.t: uu t.u1-
po-doentee do corpo-médicose faz de acordo com uma
disposiçãototalmentediferentena neurologiae na medici-
na geral. E é a instauraçãodessenovo dispositivo que me
parecesero episódioimportante,e é por isso que eu gosta-
ria de procuraridentificar o novo dispositivo que é instituí-
do assimpelaconstituiçãoe atravésda constituiçãode uma
neuropatologiaou de uma medicinaclínica neurológica.
De fato, o que é essedispositivo,em que ele consiste?
Como a captaçãodo corpo doente* se fazna clínica neu-
rológica?Ela se faz, creio eu, de maneirabem diferenteda-
quelacaptaçãodo corpo doentea que pudemosassistirno
momentoda formaçãoda anatomiapatológica;vamosdi-
zer, entreBichat2 e Laennec3 • Vou lhes dar já um exemplo,
pegandoum texto que nemé de Charcot;é um texto que se
encontranos arquivos Charcotda Salpêtrieree que certa-
mentefoi recolhido
,. por um dos seusalunos- não sabemos
qual, é claro. E uma observaçãode uma doente.Eis como
essadoenteé descrita:o sintomada doenteera muito sim-
ples, era o abaixamentoda pálpebraesquerda,que tem o
nomede ptose.Então,o aluno de Charcottoma parao pró-
prio Charcot, paraque ele dê uma aula sobreo tema,as se-
guintesnotas- não vou ler a descriçãode todo o rosto da
doente,só um pedaço:
"Se lhe mandamosabrir as pálpebras,ela levantanor-
malmentea do lado direito, masa do lado esquerdonão se
mexe de forma perceptível,como tampoucoa sobrancelha,
de modo que a assimetriasuperciliarse acentuaaindamais.
Nessemovimento[ ...] a pele da testase enrugatransversal-
mentedo lado direito, enquantofica quaselisa do lado es-
querdo.No estadode repouso,a pele da testanão fica en-
rugadanem à direita nem à esquerda[ ...J

* O manuscritoprecisa:''corpo cuja superfícieé portadoradeva--


lores plásticos".
"Cabemassinalarmais dois pontos:uma covinhabem
visível sob certaincidênciada luz, acimada sobrancelhaes-
querdaa oito milímetrose mais ou menosdois centímetros
fora e à esquerdada linha medianada testa;e umapequena
saliênciadentroda covinha,queparecedever-se à contração
do músculosuperciliar.Essesdois pontossãobem apreciá-
veis em comparaçãocom o estadonormaldo lado direito."4
Temosaí um tipo de descriçãoque é, creio, bem dife-
renteafinal de contasdo que encontramosno procedimen-
to anatomopatológico,no olhar anatomopatológico 5
• Em

certo sentido,volta-se com uma descriçãoassima uma es-


pécie de olhar de superfície,de olhar quaseimpressionis-
ta, como já se podia encontrarna medicinado séculoXVIII,
numaépocaem que a tez do doente,suacoloração,o ver-
melho das bochechas,a injeção dos olhos, etc., eram ele-
mentosimportantesparao diagnósticoclínico6 • A anatomia
patológica- Bichat, Laennec,se assimpodemosdizer - ha-
via reduzidoinfinitamenteessadescriçãoimpressionistada
superfíciee haviacodificadocertonúmerode sinais,na ver-
dadebastantelimitados, um certo númerode sinais de su-
perfícieque eramdestinadosa identificar, conformeum códi-
go bem estabelecido,que era o da clínica, a coisaessencial
que era precisamenteuma lesão que, depois,graçasou a
uma operaçãocirúrgica, ou principalmenteà autópsia,era
descritapelo anatomopatologista com quasetantariqueza
de detalhes,senãomais,do que o que acabode ler paravo-
cês. Em outras palavras,a anatomopatologiafazia a des-
crição, em seusínfimos detalhes,centrar-seessencialmente
no órgãoprofundoe lesionado,a superfíciesó erainterro-
gadaatravésde um quadriculamentode sinais,no fim das
contassimplese limitados.
Aqui, ao contrário,vocêstêm, no interior do discursoe
do sabermédicos,uma reemergêncianotável,como estão
vendo, dos valores de superfície.É essasuperfícieque te-
mos de percorrerem todos os seusrebaixase em todosos
seusressaltos,e praticamenteapenasolhando... Apenas
olhandoaté esteponto. Na verdade,e mais ainda,semdú-
illl.PL 1V1 ~1.a. ua. u.y ,1.u. A'-'/ 'V '1. u .u. yv · \.U.U , .'--.&. 1

isivo, n a nova capturaclínica do do nte neurológicoe na


constituiçãocorri lativa d · um corponeurológicodiantede -
s olhar dess dispositivode captura,é que o quese busca
no exameneurológicosãoessencialmente "respostas".
Querodizer o seguinte:na anatomiapatológicade Bi-
chat-Laennec,os sinaispodem, é claro, ser imediatamente
percebidos,ao primeiro olhar; também é possívelobtê-los
em conseqüênciade um estímulo:percute-se,ouve-se,etc.
Ou seja,no fundo é o sistemaestímulo-efeito que é buscado
na anatomiapatológicaclássica: percute-seo peito, ouve-se
o barulho7; pede-se para tossir e ouve-sea estridênciada
tosse;apalpa-se e vê-se se há calor. Logo: estímulo-efeito.
No casodo exameneurológico comoestáse constituin-
do no meadodo séculoXIX , o essenc i al dos sinais,enfim o
que faz um sinal serum sinal, não é tanto o fato de queele é
[decifr ado comoum] efeito mais ou menos mecânico,como
o barulho que seguea percussãona anatomia patológica
clássic a, masde que um sinal é [decifrado] como resposta.A
substituição do esquemaestímulo-efei to pelo esquemaes-
tímulo-resposta,a instituição de toda uma bateriade estí-
mulos-respostasé que é, a meu ver, capital.
Dessaaplicaçãode uma bateriade estímulos-respos-
tas temos uma porçãode exemplos.No nível propriamente
elementar,foi a descoberta fundadorada neuropatologia,a
descobertade Duchenne de Boulogne, quando,em suas
pesquisasdo que ele chamavade "faradizaçãolocalizada'',
conseguiuobter uma resposta muscular única, ou antes,a
respostade um músculo.único a uma eletrizaçãoda super-
fície da pele umectandoos dois eletrodos;umedecendoa
superfícieda pele,ele conseguiulimitar o efeito da eletriza-
ção e obter umarespostasingularde um só músculo- foi a
descobertafundadoradisso tudo. Depoisvocêstêm a par-
tir daí os estudosde reflexos e, sobretudo,o estudo do
comportamentoscomplexosque implicam sejauma engr -
nagem de automatismosdiversos, seja urna apredizagem
anterior,e é aí que encontramosos dois grandesdomínios
nos quais a captura,os dispositivosde capturaneurológica
foram perfeitamenteinstaurados . Foi o estudoda afasiapor
Broca9, e foi o estudodo andar,notadamentedo andardos
tabéticospor Duchennede Boulogne10 •
Vejamosessesegundoexemplo,o andardos tabéticos.
Duchennede Boulognedá urna descriçãoque é feita preci-
samenteem termosde estímulo-resposta, ou antes,em ter-
mos de comportamentoe de encadeamento do comporta-
mentoaosdiferentesepisódiosque o ato de andarconstitui.
O problemade Duchenneera distinguir o que podia ser o
distúrbio de equihbrioque encontramosnos tabéticos,isto é,
em certafasee sobcertaforma de paralisiageral,assimcomo
a vertigem que podemosencontrarseja na intoxicaçãoetí-
lica, sejatambémem certosdistúrbiosdo cerebelo.Em 1864,
num artigo fundamental,Duchenneconseguiudar a descri-
ção diferencialdo andartabéticoe da oscilaçãodavertigem11 •
No casoda vertigem,as oscilaçõesdo sujeito sãooscilações
amplas,a queo sujeito se entrega,ao passoque,quandoele
sofre de tabes,as oscilaçõessão"curtas", // sãobruscas"- o
sujeito tem, diz Duchennede Boulogne, a atitude de um
equilibristade cordasema vara, que avançacheio de pre-
cauções,pondoum pé diante do outro e procurarecuperar
o equilíbrio12• No casoda vertigem,não há contraçãomus-
cular, mas,ao contrário,debilitaçãogeral da musculaturae
do tônus,enquanto[... *] o tabéticoestásemprese conten-
do e, se se observao que acontecena panturrilhae nasper-
nas, vê-se,antesmesmode ele perdero equilíbrio, antes
mesmode ele ter consciênciade perdero equihbrio,certonú-
mero de pequenascontraturasbrevesque percorrem,que
fulguram pelamusculaturadassuaspernase, poucoa pou-
co, essascontraturasse tornammaisimportantes,até o mo-
mento em que elas se tornamvoluntáriasquandoo sujeito
toma consciênciade que estáperdendoo equihbrio13 • Bem

* Na gravação,repete:"ao contrário"
1 · mgen1, u ·uJ nu k15u. L1a5 · · u.1 v JI.A.' - ... ----r- --
'-''-A

mant rumalinha retaparair d um pontoa outro, enq~-


t o tab,, tico andap rfeitament m frent , seucorpoe que
1
simpl m nt vacila 1:,1 t?mo d s a~ areta• . E, enfim,
na mbriagu z: sensaçaointerna de v rt1gem, enquantoo
tab,, tico tem a impr ssãode que o equihbrionãofalta a todo
o u corpo, queele não é pegonumaespéciede grandede-
-quihbrio geral, masque simplesmentefalta àssuaspernas,
d certo modo localmente,o equihbrio15• Eis, se assimpode-
mos dizer, os principaistemasda análisedo andartabético
por Duchennede Boulogne.
Ora, comovocêsestãovendo,numaanálisecomo essa
- poderíamosfazer a mesmacoisacom as análisesda afa-
sia por Broca, mais ou menosna mesmaépoca,entre1859e
1865-, quebuscaum sistemade sinaisa seremobtidos,não
efeitosquerevelariama presençade lesõesnum pontodado,
mas respostasque mostramdisfunções,o que se obtém?
Obtém-se,é claro, a possibilidadede distinguir, de analisaro
que os neurologistaschamavame c~ontinuamchamandode
sinergias,isto é, as diferentescorrelaçõesque existementre
estee aquelemúsculo:quaissãoos diferentesmúsculosque
devemserpostosem açãoparaobterestaou aquelarespos-
ta? Quandoum deles,precisamente,é postofora de circui-
to, o que acontece?Estudo,por conseguinte,das-sinergias.
Em segundolugar, possibilidadede escalonaros fenô-
menosanalisadosde acordocom um eixo, e éessa,achoeu,
a coisaimportante,de acordocom um eixo que é o do vo-
luntário e do automático.Vale dizer que é possível,a partir
dessaanálisedos comportamentos,das respostas aos dife-
rentesestímulos,ver qual a diferençafuncional, a diferença
de acionamentoneurológicoe muscularentreum compor-
tamento que é simplesmenteum comportamentoreflexo
[e] um comportamentoautomático[e], enfim, um compor-
tamentovoluntário que podeser espontâneo,ou entãoum
comport_amentovoluntário que pode se realizar por uma
ordemvinda de fora. Toda essahierarquiano acionamento
corporal do voluntário e do involuntário, do automáticoe
do espontâneo,do que é requeridoa partir de uma ordem
ou do que se encadeiaespontaneamente no interior de um
comportamento,tudo isso vai possibilitar- é esseo ponto
essencial- a análiseem termosclínicos, em termosde as-
sinalaçãocorporal,da atitudeintencionaldo indivíduo.
Possibilidade,por conseguinte,de certacapturada ati-
tudedo sujeito,da consciência,davontadedo sujeitono pró-
prio interior do seucorpo.A vontadeinvestidano corpo,os
efeitos da vontadeou os grausda vontadelegíveis na pró-
pria organizaçãodasrespostasaosestímulos,foi isso que a
neuropatologiamostrou.Vocês conhecemtodasas análises
que Brocainiciou sobreos diferentesníveis de desempenho
dos afásicos,conformese trate de simplesborborigmos,de
palavrõespronunciadosautomaticamente , de frasesque se
desencadeiam espontaneamente em certasituação,de frases
que precisamserrepetidasnumacertaordeme sobcertain-
junção16.Tudo isso,toda essadiferençaclínica de desempe-
nhos entre diferentesníveis de comportamento,permite a
análiseclínica do indivíduo no próprio nível da suainten-
ção,no próprio nível dessacélebrevontade,que eu procurei
lhes mostrarque havia sido, no poderpsiquiátrico,o grande
correlativoda disciplina.No poderdisciplinar, a vontadeera
aquilo sobreo que,aquilo a que deviase aplicar opoderdis-
ciplinar; eraaquilo que era o face a face do poderdisciplinar,
mas,afinal de contas,só eraacessívelpelo sistemada recom-
pensae da punição.E eis que agoraa neuropatologiapro-
porcionao instrumentoclínico que, acreditamos,vai poder
permitir captaro indivíduo no próprio nível dessavontade.
Tomemosas coisasde maneiraum pouco diferentee
um pouco mais precisa.Poderíamosdizer o seguinte:com
o exameneurológico,de um lado o médicovai perderparte
do seupoderem relaçãoà anatomopatologia clássica.Quer
dizer, na anatomopatologiatal como havia sido constituí-
da por Laennec,Bichat, etc., solicitavam-seno fim dascon-
tas poucascoisas ao indivíduo: pedia-seque se deitasse,
dobrassea perna,tossisse,respirassefundo, etc. Por canse-
dp nd ncia do ffi , di para COll\ vontaa ao ao n1~. Ja
m a n urol gia, o m,,dic vai r o~rigadoa passa:pela
ntad , m t do ca o p la coop raçao,a compreensao do
u d ente. 1 nãovai implesmentelhe dizer: "Deite-se!
Tu a!", ma vais r obrigadoa lh dizer: "Ande! Estiquea
p ma! t nda a mão! Fale! Leia esta~a~e! Tente escrever
ta!", te. Ou ja, temosagorauma tecmcado exameque
r pousana in truçãoe na injunção.Comoa instruçãoe a in-
junçãopa samnecess~an:ente pela~ontadedo doent~,esta
ai encontrarno propno cernedisso e, nessamedida,a
autoridadedo médicovai estarde certo modo no cernedes-
sedi positivo neurológico.O médicovai dar ordens,vai pro-
curarimpor suavontadee, no fim dascontas,o doentesem-
pr pode,fingindo não poder,não querer.Vale dizer que vai
se dependerda vontadedo doente.Mas o que eu lhes dizia
agorahá pouco,a possibilidadeclínica de identificar os com-
portamentosvoluntáriose involuntários,automáticose es-
pontâneos,etc., a possibilidadeda decifraçãoclínica dos ní-
veis de vontadedo comportamentovai permitir ver - e é
aqui que o médicovai recuperaro poder que perdedando
instruções- seo doenterespondecomolhe dizemparares-
ponder,qual é a qualidade,a naturezadas suasrespostas,
até que ponto suasrespostassãoviciadasou não pela von-
tadequeinteivém.Por exemplo,os neurologistas,desdeBro-
ca, sabemperfeitamentedistinguir um mutismovoluntário
de umaafasiado tipo anartria:no casoda anartria,a impos-
sibilidadede falar é sempreacompanhada por todaumasé-
rie de ruídosde fundo, de automatismos ·que acompanham
a.te~ta?vade falar; é sempreacompanhadatambémpor
distúrbiosmotoresque sãocorrelativos,é igualmenteacom-
panhadade déficits de expressãona mímica, na expressão
escrita,
,. etc.17• Alguém que se recusaa falar, e, aliás, um his-
te~coque não fala, é alguémque não fala mas que tem mí-
micas.,pode escrever,que compreende,que não tem todo
esseacompanhamento de distúrbiosanexoscaracterísticos
da anartria.
É possívelportanto,comovocêsestãovendo,captarno
nível do comportamentoreal do indivíduo, ou melhor,no ní-
vel da observaçãoclínica do seucomportamento,o que é sua
vontade;e, por conseguinte,se é verdadeque pelo jogo da
instrução,característicado exameneurológico,se é verdade
que a instruçãofaz a possibilidadede examedependeraté
certo ponto da vontadedo doente,em compensação a ob-
servaçãoclínica de que se dispõeagora,a decifraçãoclínica,
permitecontornare curto-circuitarassimo doente.
Digamosagora,pararesumirissoem duaspalavras,que
seinstauraum novo dispositivomédicoclínico, diferenteem
suanatureza,em suaaparelhageme seusefeitos,do dispo-
sitivo clínico que podemoschamarde Bichat-Laennece di-
ferentetambémdo dispositivopsiquiátrico.Na medicinaor-
gânica,tinha-seum mínimo de injunçõesdadasao doen-
te: "Deite-se!Tussa!",etc., e o resto era dado,inteiramente
comunicado no examedo médico,operadopelo jogo dos es-
tímulos e dos efeitos.Na psiquiatria,procureimostraravo-
cêsque a peçaessencialda capturaerao interrogatório,que
é o substitutodas técnicasde exameque encontramosna
medicinaorgânica.Interrogatórioque depende,é claro, da
vontadedo sujeito e no qual as respostasconstituemparao
psiquiatra,não um testede verdadeou a possibilidadede
fazer uma decifraçãodiferencial da doença,mas simples-
menteuma prova de realidade;o interrogatórioresponde
simplesmenteà pergunta:"Ele é louco?"
Pois bem, a neurologianão é nem um exameno senti-
do anatomopatológiconem um interrogatório;é um novo
dispositivoque substituio interrogatóriopor injunçõese que
procura obter, por meio dessasinjunções,respostas,mas
respostasque nãosão,como no interrogatório, asrespostas
verbaisdo sujeito, e sim as respostasdo corpo do sujeito;
respostasque·são decifráveisclinicamenteno nível do cor-
po e, por conseguinte,que se podesubmeter,semmedode
ser enganadopelo sujeito que responde,a um examedife-
rencial. Sabe-seagoradiferenciarentrealguémque não quer
1 il V U Ui.J....L .&.l- - 1.,1.,1,. .&-t .._, '-'.. '11,4,. ...,..., ,.., ""'...._. r.,_,. •..,. •• ..,...,..,_____.....
quenão. sabialidar até ntãoe que eraminterrogadosem
termosde diagnósticoabsoluto.A provade realidadejá não
é necessária:a clínica neurológicavai dar, pelo menosnum
certodomínio,a possibilidadede aplicarum diagnósticodi-
ferencial,do mesmomodo que a medicinaorgânica,só que
a partir de um dispositivo totalmente diferente. Em linhas
gerais,o neurologistadiz: obedeça às minhas ordens1 mas
cale-se,e seucorporesponderáporvocê, dandorespostas que
só eu, por sermédico,poderei decifrar e analisar em termos
de verdade.
"Obedeçaàs minhas ordens,cale-se e seu corpo res-
ponderá":vocêspercebemque é precisam~nteaí que, natu-
ralmente,vai se precipitara crisehistérica.E nessedispositi-
vo que a histeriavai entrar.Não digo que ela vá aparecer:
esse é um problemaque, a meuver, é inútil colocarem ter-
mos de existênciahistórica da histeria.Querodizer que sua
emergência nó campo médico, a possibilidadede fazer da
histeria uma doença, suamanipulação médica só sãopossí-
veis a partir do momentoem que essenovo dispositivoclí-
nico, que não é de origem psiquiátrica,masneurológica, foi
instaurado,em que essanova cilada foi armada.
''Obedeça,cale-se, seu corpo falará." Pois bem, vocês
queremque meu corpo fale! meu corpo falará e eu lhes ga-
ranto que nas respostas que ele dará haverá muito mais
verdadedo quevocêspodem imaginar. N ão, claro, que meu
corpo saibamais do que vocês, mas porquenasinjunções
de vocêshá algo quevocêsnão formulam, masque eu ouço,
certainjunção silenciosaà qual meu corpo responderá*.E
é isso,o efeito dassuasinjunçõessilenciosasquevocêscha-
marãode "a histeriaem suanatureza".Eis, em linhasgerais,

* O manuscrito acrescenta: "Ouvirei o que você não diz, ob .d


cerei, dando os sintomas cuja verdade você será obrigado a reconhec ~,
pois elesresponderão,semque você aiba, às uas injunçõe não dit ."
o discursodo histéricoprecipitando-sena cilada que acabo
de lhes descrever.
Bom. Pois bem,comovai se dar a cilada,essenovo dis-
positivo de captura?
Em linhasgerais,creio quepodíamosdizer até aquique,
na medicina,até a existênciada neurologiae do dispositivo
clínico próprio da neurologia,havia dois grandesdomínios
de doença:as doençasmentaise as outras,as verdadeiras
doenças.Não creio que bastedizer que as doençasmentais
e todasas outrasse opunhamumasàs outrascomo doenças
do espírito,de um lado, e doençasdo corpo, do outro. Não
seriaexato,primeiro porque,paramuitos psiquiatrasda dé-
cadade 1820 aos anos 1870-1880,as doençasdo espírito
sãodoençasdo corpo que têm simplesmentecomo caracte-
rística comportarsintomasou síndromespsíquicas.Em se-
guida, tambémse admitia perfeitamente nessaépocaque
as doençasditas convulsivas -não havia uma diferençaefi-
caz, do ponto de vista médico,clínico, entrea epilepsiae as
outras18 - eramdoençasdo espírito.De modo que não creio
que a oposiçãocorpo/espírito,doençasorgânicas/doenças
psíquicassejaa verdadeiradistinçãoque dividiu a medici-
na entreos anos1820e 1880,quaisquerque tenhamsido as
discussõesteóricas,e inclusivepor causadasdiscussõesteó-
19
ricas sobreo fundo orgânicodasdoenças • De fato, creio que

a única,a verdadeiradiferençaeraaquelade que eu falava da


última vez. Ou seja,tinha-secerto númerode doençasque
podiamserjulgadasem termosde diagnósticodiferencial-
eram as doençasválidas, consistentes,de que tratavamos
médicosverdadeirose sérios- e havia as doençassobreas
quaiso diagnósticonãopodiase exercere que só podiamser
reconhecidaspor umaprova de realidade- eramas doenças
ditas mentais,aquelasa que só se podia responderem ter-
mos binários: 11ele é louco mesmo"ou II ele não é louco".
Creio queestáaí a verdadeiralinha divisória entrea prá-
tica médicae o sabermédico nos doisprimeirosterçosdo
séculoXIX: entredoençasque se integramnum diagnóstico
soluto. .t..ntr e~~é;l!S UUé;l Ldl õuua.;:, y uv .l u,;::,,
l lU. .1.U • "4 .1.

t m nte certo núm ro d int nnediário , e creio que havia


essencialmente dois que eramimportantes.Havia o inter-
mediárioválido, a doençaválida; era ela, é claro, a paralisia
geral. Era uma doençaválida epistemologicamente e, por
conseguinte,válida moralmente,na medidaem que,por um
lado, ela comportavasíndromespsicológicas- delírio, se-
gundoBayle2º, demência,segundoBaillarger21 - e síndromes
motoras:tremoresda língua,paralisiaprogressivados mús-
culos1etc.Vocês têm as duassíndromes,e ambasremetem,
em termos de anatomopatologia,a uma lesão encefálica.
Doençaválida, portanto,que serviaexatamentede interme---
diária entreessasdoençasde prova de realidadeque eram,
seassimpodemosdizer, as doençasditasmentais,e as doen-
ças com assinalaçãodiferencial e referênciaanatomopato-
lógica2i. Doenç~perfeitamenteválida, e tantomais "válida",
tanto mais plena,proporcionandotanto maior fundamento
a tudo quantoainda não se sabiaque a paralisiageral erade
origem sifilitica 23• Por conseguinte,tinha-setodosos benefí-
cios epistemológicose nenhumdos inconvenientesmorais.
Em compensação,semprecomo intermediáriodessas
doençascom diagnósticodiferenciale as doençascom diag-
nósticoabsoluto,vocêstinham todauma outraregião,"in-
válida" e pantanosa,que nessaépocaera chamadade '1 as
neuroses"24• O que era a palavra"neurose"por volta da dé-
cadade 1840?Essapalavraabrangiadoençasque tinham
componentes motoresou sensitivos,11 distúrbiosdasfunç-õ es
de relação",como se dizia, mas semlesãoanatomopatoló-
gica que permitisseestabelecera etiologi~. Então,evidente-
mente,essasdoençascom II distúrbiosdas funçõesde rela-
ção", sem correlaçõesanatômicasassinaláveis,abrangiam
as convulsões,a epilepsia,a histeria,.a hipocondria,etc.
Ora, essasdoençaseram inválidas por dois motivos.
Er~ ~pistemologicamente inválidasporquehavia nelasuma
espec1ede confusão,de irregularidadesintomática.Não se
conseguia,por exemplo,no domínio dasconvulsões,distin-
guir entreos diversostipos, porque,precisamente,o dispo-
sitivo neuropatológiconão possibilitavauma análisepreci-
sa dos comportamentos.Diante de uma convulsão,dizia-
se: "é uma convulsão".Era-seincapazde realizar aquelas
decifraçõescorporaistênuesde que lhes falava há pouco e,
por conseguinte,estava-senuma"região" de confusãoe de
irregularidade.No primeiro número dos Annales médico-
psychologi,ques,de 1843, os redatoresdiziam: é necessário
ocupar-seda loucura,seriaprecisotambémocupar-se das
neuroses,masé muito difícil: "porqueessesdistúrbiossãofu-
gidios, variados,proteiformes,excepcionais,difíceis de anali-
sare de compreender,são banidosda observação,sãoafasta-
dos como se afastamda memórialembrançasincômodas"25•
Inválidos epistemologicamente,
essesdistúrbiostambém
eraminválidos moralmentepela extremafacilidade queha-
via em simular,pelo fato de haver,alémdessapossibilidade,
um perpétuocomponentesexualdo comportamento. Assim,
JulesFalret num artigo, que era republicadoaindaem 1890
em seusÉtudes cliniques, dizia: "A vida das histéricasnão
passade uma perpétuamentira; elas afetamaresde pieda-
de e devoção,e àsvezesconseguemfazer-sepassarpor san-
tas, mas se abandonamem segredoàs mais vergonhosas
ações,masfazemem seular, com o marido e os filhos, as ce-
nasmaisviolentas,nasquaisdizemcoisasgrosseirase àsve-
zes obscenas." 26

A emergênciado corpo neurológico,ou melhor, desse


sistemaconstituído.pelo aparelhode capturaclínica da neu-
rologia e pelo corponeurológicoque é seucorrelato~vai pos-
sibilitar precisamenteapagara desqualificação,essadupla
desqualificaçãoepistemológicae moral de que as neuroses
eramobjeto até por volta da décadade 1870.Essadesquali-
ficaçãovai poderser apagadana medidaem que vai se po-
der colocarfinalmenteessasdoençasditas "neuroses",isto
é, essasdoençasdotadasde componentessensitivose mo-
tores,não exatamenteno domínio dasdoençasneurológi-
causascomo· ssenc1rumente aeviao assuas rormas.uu seJa,
agora, graçasao dispositivo clínico da neurologia, vai ser
possívelinserir entre as doençasneurológicas,como, por
exemplo,os distúrbios devidos a um tumor cerebelar, e as
convulsões,os tremoreshistéricos, a lâmina do diagnóstico
diferencial. Essecélebrediagnóstico diferencial, que nunca
se puderaaplicar à loucura, que não conseguia ajustar-se
realmente àsdoençasmentais, esse diagnóstico diferencial
que não se podia incluir entre uma doençacomum e alou-
cura,porquea loucuradependiaacimade tudo e essencial-
mentede um diagnósticoabsoluto,pois bem, esse diagnós-
tico diferencial, graçasao aparelhoque procurei descrever,
vai poder agoraser inserido entre os distúrbiosneurológi-
cos com lesõesanatômicasassinaláveis,e essesdistúrbios
ditos II neuroses".De tal modo que a que era moralmente,
epistemologicamentea última categoria no domínio da
doença mental - as neuroses- vai ser bruscamentepromo-
vida, graçasa essenovo instrumentoda análiseneurológi-
ca, da clínica neurológica,ao nível das doençasverdadeiras
e sérias.Vale dizer que, graçasà utilização do diagnóstico
diferencial, vai-se ter uma consagraçãopatológica dessa
zona,antesdesqualificada,que é a da neurose.
Num livr o - nada bom, aliás - que um neurologista
da época,chamado Guill ain, consagrou a seupredecessor
Charcot,ele diz, com umaespéciede alegriaradiante:11Char-
cot sonseguiuafinal de contas tirar. a histeria dos psiquia-
tras11,isto é, ele a fez entrarefetivamentenessedomínio da
medicinaque é a única medicina:a medicinado diagnóstico
diferencial27• E, no fundo, creio que Freudpensavaa mesma
coisaquandoaproximavaCharcotde Pinel e dizia: Pinel li-
bertouos loucosdascorrentes,isto é, ele fez que fossemre-
conhecidoscomo doentes.Pois bem, Charcottambémfez
que os histéricospudessemserreconhecidoscomo doentes.
Ele os patologizou28•

*
Creio que, se situarmosassima operaçãoCharcot,po-
demos ver como se desenrolaram ..., quer dizer, como se
II
constituíram o que chamareide as grandesmanobrasda
histeria" na Salpêtriere.Procurareianalisarisso,masnãoem
termosde históriados histéricos,nem tampoucoem termos
de conhecimentospsiquiátricosadquiridossobreos histéri-
cos, e sim em termosde batalha,de enfrentamento,de en-
volvimento recíproco,de disposiçãode ciladasem espelho,
de ataquee contra-ataque,de tentativade tomadade con-
trole entre os médicose os histéricos*. Não creio que te-
nha havido exatamenteumaepidemiade histeria;creio que
a histeria foi o conjunto dos fenômenos,e dos fenômenos
de luta, que se desenrolaramno asilo e tambémfora do asi-
lo, em torno dessenovo dispositivo médicoque era a clíni-
ca neurológica;e foi o turbilhão dessabatalhaque de fato
reuniuem tomo dos sintomashistéricostodo o conjuntodas
pessoasque efetivamentea elesse entregaram.Mais que
uma epidemia,houveum turbilhão, uma espéciede sorve-
douro histérico no interior do poder psiquiátricoe do seu
sistemadisciplinar. Pois bem, como isso se deu?Creio que
podemosdistinguir certo número de manobrasnessaluta
entre o neurologistae o histérico.
Primeiramanobra:é o que poderíamoschamarde or-
ganizaçãodo cenáriosintomatológico.Creio que podemos
esquematizar as coisasda seguintemaneira:paraque a his-
teria pudesseserpostano mesmoplano de umadoençaor-
gânica,para que sejauma doençaverdadeiraque depende
de um diagnósticodiferencial,isto é, paraque o médicoseja
um verdadeiromédico,o histéricotem de apresentaruma
sintomatologiaestável.Por conseguinte, aconsagraçãodo
médico como neurologista,diferentementedo psiquiatra,
implica necessariamente injunçãodadaem surdinaao doen-
te, o que já dizia o psiquiatra:"Dê-me sintomas,mas sin-

* O manuscritoacrescenta:ºtambémde transaçõese de pactos


tácitos".
u. , ...,..... .., ....... A.&Ã - ---·------- - - - ·--- - - ·- -- --- -

meiro, constânciadossintomasquedeveriamserp nnanen-


t mentelegíveisno doentea qualquermomentoem que o
exameneurológicofosse realizado: chega dessasdoenças
que apareceme desaparecem, que só têm como sintomasa
fulguraçãode um gestoou a recorrênciade crises;queremos
sintomasestáveis,e é assim que os encontraremostoda
vez que os procurarmos.É assimque foram definidoso que
Charcote seussucessores chamaramde "estigmas"da his-
teria. "Estigmas'',ou seja,fenômenosque encontramosem
todo histérico,mesmoquandonão estáem crise29 : redução
do campovisual30, hemianestesia simplesou dupla31, anes-
tesiafaringiana,contraturaprovocadapor umaligaduracir-
cular em torno de uma articulação32• Aliás, Charcotdizia:
todos essesestigmascaracterizama histeria; elessãocons-
tantesna histeria, mas, apesardessaconstância,tenho de
reconhecerque muitas vezesnão encontramostodos eles
ou, no limite, não encontramosnenhum33 • Mas a exigência
epistemológicaestavaali, a injunção estavaali. Notem que
todos essesfamososestigmaseramevidentemente · respos-
tas a instruções:instruçõesparasemexer,parasentirum ro-
çar ou um contatono corpo.
Em segundolugar, as crisestinham de ser ordenadase
regulares,tinham de se desenrolarpor conseguintede acor-
do com um cenáriobem típico que fosse suficientemente
próximo de umadoençaexistente,de uma doençaneuro}ó...
gica existente,paraque fosseefetivamentepossívelfazerpas-
sar a linha do diagnósticodiferencial,e no entantodiferente
paraque essediagnósticopudes's e sedar. Donde,codificação
da crise de histeria com baseno modelo da epilepsia34 • E
essaespéciede grandedomínio do que sechamava,ante~de
Charcot,a "histeroepilepsia",as·" convulsões'',viu-se assim
dividido em dois35• Vocês tinham duas doenças,uma que
comportavaos célebreselementosda crise epiléptica,i to
é~ fasetônica,faseclônicae períodode toipor; outraque de-
via ter uma fase tônica, uma fase clônica como na pil p i ,
com certonúmerode sinaismenores,de dif rençasde fases,
e certo número de elementosabsolutamentepróprios da
histeria,queeram:a fasedosmovimentosilógicos, isto é, os
movimentosdesordenados;a fase das atitudespassionais,
isto é, movimentosexpressivos,movimentosque queremdi-
zer algumacoisa- fase que tambémerachamadade "plás-
tica", na medidaem queissoreproduziae exprimiacertonú-
mero de emoçõescomo a lubricidade,o terror, etc.; e, enfim,
a fasede delírio, que tambémeraencontradafora da epilep-
sia.Temosaí os doisgrandesquadrosclássicosda oposição
histeria/epilepsia36•
Temosnessamanobra,comovocêsestãovendo,um du-
plo jogo. De um lado, o médico,solicitandoessesestigmas
supostamente constantesda histeria;e, ao solicitar crisesre-
gulares,apagacom isso seupróprio estigma,isto é, o fato de
que é apenasum psiquiatrae ofato de que é obrigadoa per-
guntare cobrara cadainstante,em cadauma dassuasope-
raçõesde interrogatório:"Você é louco?Mostre sualoucura!
Atualize sualoucura." O médico,solicitandoseusestigmas
e aregularidadedassuascrises,pedeque o histéricolhe dê
a possibilidadede praticarum ato estritamentemédico,isto
é, um diagnósticodiferencial.Mas, ao mesmotempo - e é
esseo benefícioparao histérico,e épor isso que ele vai res-
ponderpositivamentea essademandado psiquiatra-, o his-
térico vai escaparassimda extraterritorialidademédicaou,
mais simplesmente,vai escaparda territorialidadeasilar.Em
outraspalavras,a partir do momentoem que poderáefeti-
vamentefornecerseussintomasque,pela constânciadeles,
por suaregularidade,permitemque oneurologistafaça um
diagnósticodiferencial, o histérico não serácom isso mais
um louco dentrodo asilo; ele vaiadquirir um direito de ci-
dadaniano interior de um hospitaldigno dessenome,isto
é, de um hospital que não terá mais o direito de não ser
nadaalém de um asilo. O direito de não ser louco mas de
ser doenteé adquiridopelo histéricograçasà constânciae à
regularidadedos seussintomas.
'i ,. ._, "' ..., .... - ---- - - E .,.,, • . . . . - .,,
m ; dico vai encontrar m I1 laçaoa ele. Porque,se o hist -
rico ser.cusas a lh fornecerseussintomas,o médicojá
não poderiaser um neurolog_ist~diant~ del~; se~amanda-
do de volta ao estatutode ps1qu1atrae a obngaçaode fazer
um diagnósticoabsolutoe de responderà ~contomáve!per-
gunta: "Ele é louco ou não?" Por consegwnte,o funciona-
mentoneurológicodo médicodependedo histérico,que de
fato lhe forneceseussintomasregulares;e, nessamedida,o
que é oferecido ao psiquiatraé não apenasaquilo que vai
garantirseupróprio estatutode neurologista,masaquilo que
vai garantirao doenteo domínio que ele tem sobreo médi-
co, pois é lhe fornecendoseussintomasque podeter uma
ascendência sobreele, já que o consagraassimcomo médi-
co, e não mais como psiquiatra.
Vocêspercebemque é nessesuplementode poder,que
é dado ao histérico quandolhe pedemsintomasregulares,
quevai seprecipitartodo o prazerdoshistéricos.Compreen-
de-sepor que elesnuncaserecusarama fornecertantossin-
tomas quantosos médicosqueriam, a fornecer até muito
mais do que os médicosqueriam,porque,quantomais for-
neciam,mais seusobrepoderem relaçãoao médicoeraafu-
mado.Não nos faltam provasde que os tenhamfornecido
em grandequantidade,pois uma das doentesde Charcot-
é um exemplodentremuitos-, que ficou trinta e quatroanos
na Salpêtriere,forneceuregularmentedurantequinzeanoso
~esmoestigma:uma "'hemianestesia esquerdacompleta"37 •
Tinha-s:portantoo que se queria quantoà duração;teve-
se tambemo que se queriano que diz respeitoà quantida-
de, pois uma enfermade Charcotteve em treze dias 4 506
crisese, não contentecom isso,·poucosmesesdepois,teve
17 083 em catorzedias38•
A segundamanobraé a que chamareide manobrado
"manequimfuncional"39• Ela se deflagraa partir da primeira,
na med1~;1em que, nessaproliferaçãosintomáticaque pro-
vocou - Jª que seuestatutoe seupoderdependem dela-, o
médico se vê ao mesmotempoconfirmadoe perdedor.De
fato, essapletora,essas17 083 crisesem catorzedias sãoob-
viamentemuito maisdo queele podecontrolare do que seu
pequ~noaparelhode clínica neurológicoé capazde regis-
trar. E precisoportantoque o médicose dê a possibilidade,
não é claro de controlaressapletorada sintomatologiahis-
térica, masem todo caso- mais ou menoscomo Duchenne
de Boulogne,cujo problemaera "como limitar o estímulo
elétrico de tal modo que aja apenassobreum músculo" -
dar-se um instrumentotal, que sejapossíveldeflagrarfenô-
menostipicamentehistéricos,exclusivamentehistéricos,mas
sem assistira essaenxurradade milharesde crisesem tão
poucotempo.
Provocara tempo,quandoquiser,mostrarquetodoses-
sesfenômenos[são] patológicos,naturalmentepatológicos
- foi paracorrespondera esseobjetivo, paraevitar decerto
modoa manobrado exagero,da generosidade exageradados
histéricos,foi paraconseguircontornaressapletora,quefo-
ram instituídasessasduastécnicas.
Em primeiro lugar, a técnicada hipnosee da sugestão,
isto é: pôr o sujeitoem tal situaçãoquesejapossível,por uma
ordemprecisa,obterdele um sintomahistéricoperfeitamen-
te isolado- a paralisiade um músculo,umaimpossibilidade
de falar, um tremor, etc. -, em suma,pôr o doenteem tal
situaçãoque ele terá exatamenteo sintoma que se quer,
quandose quer, e nadamais.A hipnoseserveprecisamen-
te paraisso.A hipnosenão serviu a Charcotparamultipli-
car os fenômenoshistéricos;ela foi, analogicamente,como
a eletrizaçãolocalizadade Duchenne,uma maneirade li-
mitar os fenômenosda histeriae de poderdeflagrá-los com
exatidãoà vontade40 • Ora, a partir do momentoem que se
deflagravaà vontade,por meio da hipnose,um sintomahis-
térico, e sóum, não iria o médicotropeçarnestadificuldade:
se eu provoquei,se eu dissea um doentehipnotizado"você
não consegueandar",e ele ficou paralisado,"você não con-
seguefalar", e ele ficou afásico,seráqueé mesmoumadoen-
ça? Seráque não é simplesmenteo inverso, no corpo do
v a. r . . . . . - ~--~- -- --- --
?
u111.a .1.u ....,

m ·· j p rigo , porqu_ c rre o ri co não...s r mais que o


~ it d uma in truçao dada- o t 1to, nao a resposta.
B .r con guinte, obrigaçãopara os m; dicos, no mo-
m nto m mo na m <lida m qu elesaplicavama hipno-
s de t r no e terior da técnica hipnótica uma espéciede
c~rrelatoque garantisseo caráternatural do fenômenoas-
sim provocado.É necessárioencontrardoentesque sejam
tai que, fora de toda cultura asilar, de todo podermédico,
fora é claro, nessecaso,de todahipnosee de toda sugestão,
apresentemexatamenteos distúrbios que vai ser possível
observara pedido,sobhipnose,nos doenteshospitalizados.
Em outraspalavras,é necessáriauma histeria natural, sem
hospital,semmédico,semhipnose.Na verdade,aconteceque
Charcottinha essesdoentesà suadisposição,essesdoentes
que tinham de certo modo por papel,em face da hipnose,-
naturalizaros efeitos da inteIVençãohipnótica.
Ele os tinha, e isso pedeuma breve referênciaa uma
história bem diferente,que vem se conectarcuriosamente,
não semefeitos históricosimportantes,à história da histe-
41
ria. Em 1872,Charcotassumeo serviçode histeria-epilepsia
e começaa hipnoseem 187842• Estamosna épocados aci-
dentesdo trabalho,dos acidentesferroviários, dos sistemas
43
de segurode acidentese doenças • Não que os acidentesdo

trabalhodatemdaí, masestamosno momentoem que está


surgindono interior da práticamédicauma categoriaabso-
lutamentenova de doentes- masque, infelizmente,os his-
toriadoresda medicinararamentemencionam-, os doentes
não pagantesnem assistidos.Em outraspalavras,na medi-
cina do séculoXVIII e do início do séculoXIX, havia no fun-
do apenasduas categoriasde doentes:os que pagavame
os que eramassistidosno hospital.Mas agoraapareceuma
nova categoriade doentes,que nem sãopropriamentepa-
gantes,nempropriamenteassistidos:é a categoriadosdoen-
44
tes segurados _ Essadupla aparição,a partir de elemento

totalmentediferentes,do doenteseguradoe do corponeuro-


lógico é, certamente,um dos fenômenosimportantesda
história da histeria.Aconteceuna verdade oseguinte:a so-
ciedade,na mesmamedidaem que queriatirar proveito de
uma saúdemaximizada,viu-se, desdefins do séculoXVIII,
levadapouco a pouco a instituir toda uma série de técnicas
de vigilância, de quadriculamento,de coberturada doença,
de segurotambém,da doençae dos acidentes.
Mas, na mesmamedidaem que a sociedade,parapoder
tirar um proveitomáximo dos corpos,eraobrigadaa quadri-
lhar, a vigiar a saúde ea seguraros acidentese as doenças,
no mesmomomentoem que a sociedade,para podertirar
o máximo dessebenefício,estabeleciaessastécnicas,por isso
mesmoa doençasetornava,parao que estavadoente,uma
coisaproveitosa.No séculoXVIII, o único proveito que um
doenteassistidopodiatirar da suadoençaeraficar um pou-
co mais no hospital, e encontramoscom freqüênciaesse
pequenoproblemana história da instituiçãohospitalarno
séculoXVIII. A partir dessequadriculamentoque datado sé-
culo XIX e dessacoberturageral dos fenômenosde doença
pelamedicinae pelo seguro,a partir dessemomento,a pró-
pria doença,comotal, podesetomarparao sujeitoumafon-
te de lucro e certamaneira,em todo caso,de tirar proveito
dessesistemageral.
A doençase torna proveitosano mesmomomentoem
que colocaum problemano nível geral dos proveitosda so-
ciedade.A doençase entrelaçapor conseguintecom todo o
problemaeconômicodo lucro.
E, com isso, vemosapareceremnovos doentes,isto é,
doentesseguradosque apresentamos distúrbiosdenomina-
dospós-traumáticos:paralisia,anestesia,semsuporteanatô-
mico assinalável,contraturas,dores,convulsões,etc. E o pro-
blema,nessemomento,é, sempreem termosde lucro, o de
saberse elesdevemser consideradosdoentese efetivamen-
te cobertos peloseguroou se, ao contrário,devemosconsi-
derá-lossimuladores 45
• A literaturasobreas seqüelas
dos aci-
dentesferroviários-sobreos acidentesde trabalho também,
masnum nível menore um poucomais tarde,quaseno fim
""- wy . -· - - - --- · ,.
e n urológi a, da t'cnica· d e attl d - que u falava .
O do nte eguradoquevinhaintegrar-seao corpone~-
r lógico, doent s guradopo~dor.~e um c?rponeurolo-
gico que se p d captarp lo d1spos1tivoc~ruc~ da neuro--
patologia- é est quevai ser,em face do h1sténco,o outro
per onagem,precisamenteo personagemque seprocura.E,
com is o, vão fazê-los atuarum contrao outro. Porum lado,
no ca o des es doentes,vai-se ter pessoasque ainda não
estãohospitalizadas,que ainda não estãomedicalizadas,
qu. portantonão estãosob hipnose,sob o podermédico/
e queapresentam certonúmerode fenômenosnaturais,mes-
mo que não sejamestimulados.Por outro lado, vocêstêm os
histéricosqueestãono interior do sistemahospitalar,sobpo-
dermédicoe aosquaisseimpõemdoençasartificiais por meio
da hipnose.Então,o histéricovai permitir, quandoconfron-
tadocom o traumatismo,quesereconheçase o traumatiza-
do é um simuladorou não.Com efeito, de duascoisas,uma:
ou o traumatizadoapresentaos mesmossintomasque o
histérico-estoufalando,é claro,do traumatizadoque não
teria nenhumvestígiode lesão- e, com isso,pode-sedizer:
"ele tem amesmadoençaque o histérico",já que a primei-
ra manobraconsistiuem mostrarque o histéricoera doente
e, por conseguinte,o histérico vai autenticara doençado
traumatizado;ou o traumatizadonãoteráa mesmadoença,
nãoapresentará os mesmossintomasque o histéricoe, com
isso, cairá fora do campoda patologiae poderáser assina-
lado como simulador.
Em compensação, do lado da histeria,o confrontovai
levar ~o seguinteresultado:se é possívelencontrarem al-
guémque não estásob hipnosecerto númerode sintomas
q~e:i;atural~ente,são semelhantesaos que se obtêmno
histencopor intermédioda hipnose,issoindica queos fenô-
menoshipnóticosobtidosnesseshistéricossãofenômenos
n~tu~ais.Natu:aliz~çãodo_histéricopelo traumatizado,de-
nunciada poss1velsnnulaçaodo traumatizadopelo histérico.
Donde a grandeencenaçãode Charcot.Disseramvá-
rias vezesque ela consistiaem chamaruma histéricae di-
zer aos alunos: '-'Vejam de que doençaela estáacometida",
e praticamenteditar os sintomasà doente.É verdade,isso
correspondeà primeira manobrade que eu lhes falava, mas
a grandee, creio, a mais sutil, a mais perversadasmanobras
de Charcotfoi precisamentemostraras duaspersonagens
juntas.E quando,à suaconsulta,logo vindasde fora, com-
pareciampessoasque eramtraumatizadas,acidentadasdi-
versas,que não apresentavam traçoslesionaisvisíveis e que
tinham paralisias,coxalgias,anestesias,ele mandavatra-
zeremuma histérica,hipnotizava-ae dizia: "Você não con-
seguemais andar." E observavase a paralisiada histérica
era semelhanteà do traumatizado.Foi assimque aconteceu
num célebrecasode coxalgiapós-traumática,de um funcio-
nário da ferrovia. Charcottinha quasecertezade que essa
coxalgia não tinha origem lesional; mas tinha a impressão
de que não era pura e simplessimulação.Ele mandoucha-
mar duashistéricas,colocou-assob hipnosee lhes deu certo
númerode instruções.Atravésdessasinstruções,conseguiu
reconstituir,nessaespéciede manequimfuncional em que
o histéricotinha setomado,a coxalgiado funcionário,quefoi
portantoconsideradohistérico47 •
Todo benefícioparatodo o mundo.Todo benefício,em
primeiro lugar, para as companhiasde seguros,claro, para
as pessoasque tinham de pag~e também,até certo ponto,
parao doente,porque,a partir do momentoem que ele não
era simulador,Charcotdizia: mas não se lhe pode recusar
algo, algo evidentementeque nãopodeserda mesmaordem
que se houvesseuma verdadeiralesão.Por conseguinte,o
embaraçoera dividido em dois. Mas evidentementenão é
esseo problemaimportante:o benefíciotambémeraparao
médico,já que, graçasà utilizaçãodo histéricocomo mane-
quim funcional, o médicopodia fazer um diagnósticodife-
rencialque ia incidir agorasobreo simulador.Essapreocupa-
ção pânicacom o simulador,que tanto obcecouos médicos
da primeirametadedo séculoXIX, agoravai poderserdomi-
- - - - - - - .l .l

m ntira dosoutros , com i o, o m ~ dico vai enfim t r ascen-


d ncia obre a simulação .
Enfim, claro, benefícioparaas histéricas,já que, se elas
servemassimde manequinsfuncionais que autenticama
doençanão lesionai,funcional, "dinâmica",como se dizia na
época,se a histéricaserviaparaautenticarassimessadoen-
ça, ela escapavanecessariamente de toda suspeitade simu-
lação,já que era a partir dela que se podia denunciara si-
mulaçãodos outros. Com isso, é mais uma vez e de novo
graçasà histéricaque o médicovai podergarantirseupoder;
ele só escapada cilada do simuladorporquea histéricaestá
ali e porqueela possibilitao duplo diagnóstico diferencial
orgânico/dinâmico/simulação. E, por conseguinte,pela se-
gundavez a histéricatem ascendênciasobre o médico, já
que,obedecendoprecisamenteàs instruçõesque ele lhe dá
na hipnose,ela consegueser de certo modo a instânciade
verificação,de verdade,entrea doençae a mentira.Segun-
do triunfo da histérica.Vocês compreendemque aqui tam-
bémas histéricasnão hesitavamem reconstituira pedidoas
coxalgias,as anestesias,etc., que lhe pediamsob hipnose.
Donde,terceiramanobr€l,queé aredistribuiçãoemtor-
no do traumatismo.O médico,ao cabodessasegundama-
nobra,se encontrapelasegundavezna dependênciado his-
térico, porque,se os distúrbiossãoassimreproduzidospelo
histéricopor ordemdo médicoe com tamanhagenerosida -
de, tamanhapletora,tamanhaobediênciae,, ao mesmotem-
po, tamanhasedede poder,nãoseráisso, afinal de contas,
a prova de que é tudo forjado, como já começavaa dizer
Bernheim?49 Seráque, no fim das contas,toda essagrande
sintomatologiahistéricaque apareciana Salpêtrierenão se
devia ao conjuntodospoderesmédicosque estavamse exer-
cendodentro do hospital?
Paraque o médiconãofique inteiramentedependente
dessecomportamentohistérico,do qual sepoderiaperfeita-
mentedizer que é forjado, paraque afirme novamenteseu
poder sobreo conjunto dos fenômenos,paraque retomeo
controle de tudo isso,vai ser precisoao mesmotempo que
ele inscrevano interior de um esquemapatológicoestrito o
fato de que alguémé hipnotizável,o fato de que,sob hipno-
se, essealguémreproduzfenômenosde tipo patológico,e
que, no interior dessequadropatológico,ele tambémpos-
sa situar os tais distúrbiosfuncionais,que Charcotmostrou
quão próximos estavamdos fenômenosda histeria. É ne-
cessárioum quadropatológicoque englobeao mesmotem-
po a hipnosee os sintomashistéricosque são produzidos
no interior da hipnose,e o acontecimento que causaos dis-
túrbios funcionaisdos doentesnão hipnotizados.Essa bus-
ca de um quadropatológicovai levar Charcota procurara
assinalação, já que o corponão podefalar aqui, pois nãotem
lesão.Vai serprecisoprocuraralgo paravincular no nível da
etiologiatodosessesfenômenose, por conseguinte,assina-
lá-los como patologiaestrita, isto é, vai ser precisoencon-
trar algo que sejaum acontecimento.
E foi assimque Charcotelaboroua concepçãodo trau-
matismo50.
O que é um traumatismopara Charcot?É algo - um
acontecimentoviolento, umapancada,um tombo,um medo,
um espetáculo,etc. - quevai provocarumaespéciede estado
de hipnotismodiscreto,localizado,masàsvezesde longadu-
ração,de modo que,em conseqüência dessetraumatismo,de-
terminadaidéia entrana cabeçado indivíduo,inscreve-seem
seucórtexe agecomo umaespéciede injunçãopermanente.
Exemplo de traumatismo:uma criança é atropelada
por um veículo, desmaia.No instante que precedeo seu
desmaio,tem a impressãode que as rodaspassampor cima
do seucorpo; na verdade,ela só foi derrubada,as rodasnão
passaramsobreo corpo.A criançavolta a si e, passadocer-
to tempo,percebeque estáparalisada;e, se está,é porque
acreditaque asrodaspassarampor cima do seucorpo51• Ora,
essacrençaseinscreveue continuaa funcionarno interior de
--m injunçãohipnótica ' quevai provocara paralisiadasper-
na 52• Ê assimqu voc"s vão encontraraí, ao mesmotempo,
, claro, o estabelecimentodessanoção,importanteparao
futuro, d traumatismo,e o vínculo quehá entreisso e ave-
-

lha concepçãodo delírio. Porque,se ela estáparalisada,é


queacreditaque as rodasdo veículopassarampor cimadela
- ocêsestãovendocomo sevincula issoà velhaconcepção
da loucura,que sempreenvolveum delírio53• Logo, um trau-
matismoé algo que provocaum estadode hipnoselocaliza-
da e permanenteapenassobreesseponto.
Quantoao hipnotismo,o que é? Poisbem,tambémvai
ser um traumatismo,massob a forma de um choquecom-
pleto, breve.,transitório,que serásuspensopelasimplesvon-
tadedo médico,masquevai envolvero comportamentoge-
ral do indivíduo, de _m odo que no interior desseestadode
hipnose,que é uma espéciede traumatismogeneralizadoe
provisório, a vontadedo médico,a palavrado médico pos-
saminjetar no sujeito certo númerode idéias, de imagens,
que têm assimo mesmopapel,a mesmafunção, o mesmo
efeito de injunção [que aquele]de que eu lhes falava a pro-
pósito dos traumatismosnaturais,não hipnóticos.É assim
que, entre o fenômenohistérico produzido no interior da
hipnosee o fenômenohistérico que se seguea um aconte-
cimento, voc~s encontramuma convergênciaque aponta
paraessanoçãofundamentalde traumatismo.O traumatis-
mo é o que provocaa hipnose,e a hipnoseé uma espéciede
reativaçãogeral, pela vont~dedo médico,do traumatismo.
Donde a necessidade, a partir daí, na prática de Char-
cot, de partir em buscado próprio trauma.
Ou seja,parachegara ter certezade que a histéricaé
mesmouma_histérica, de que todos os sintomasque ela
a~resenta,seJaem estadode hipnose,sejafora do estadode
hipn_ose,são patológicos,é parater certezadisso que será
precISoencontrara etiologia,essetraumaque é a espéciede
lesãoinvisível e patológicaque faz dissotudo um conjunto
certamentemórbido*. Dondea necessidade, a propósitodas
histéricassob hipnoseou não, de contara infância, a vida,
de encontraressaespéciede acontecimentofundamentale
essencialque vai se prolongar,que semprese prolongana
síndromehistéricae de que estaé, de certo modo, a atuali-
zaçãopermanente 54
* *.
Mas, nessainjunção - e é aí que vamos encontrarde
novo a histérica e sua contramanobra-,nessainjunção a
encontrar o traumatismoque se prolonga no sintoma, o
que as doentesvão fazer? Elas vão precipitarsuavida, sua
vida real, de todosos dias, isto é, suavida sexual1 na brecha
abertapor essainjunção.E é essavida sexualque elasvão
contar, que vão efetivamenteconectarao hospital, atuali-
zar perpetuamente no hospital.Paralhes dar a prova disso,
dessecontra-investimentoda buscado traumatismopelo re-
lato da vida sexual,não podemosinfelizmentecontar com
o texto de Charcot, porque Charcot não toca no assunto.
Em compensação, quandovemosas observaçõesanotadas
pelos alunosde Charcot,vemosde que se tratavaao lon-
go dessasanamneses, o que estavaem questão,de que se
falava, de que tambémse tratavaefetivamentenessascrises
de forma pseudo-epiléptica. Vou dar um só exemplo, um
casorecolhidopor Bourneville.
Eis cómo a doentecontavasuavida. Ela tinha sido pen-
sionistaentreos 6 e os 13 anosnum conventoreligioso em
" La-Ferté-sous-Jouarre, onde tinha uma liberdaderelati-
va, passeavapelo lugar, deixava-sebeijar para ganharba-
las" . É o protocolo que um aluno de Charcotfaz a partir

* O manuscritoprecisa: "Donde a dupla busca(a) da diátesener-


vosa, que torna suscetíveldo trauma;buscada hereditariedade.(b) E
a buscado próprio trauma."
** O manuscritoacrescenta: "Daí a violência da oposiçãoa Bem-
heim: se todo o mundopodia ser hipnotizado,era o desmoronamento
do edifício."
UU. l yu.u. ,.. ""- .f'......,. -, J --- - -- -

t d mbriagar , então,tinha discussõ s viol ntasem


; batia na mulh r, arrastava-aou prendia-a pelo cabe-
i . L ui [a do nte; M.F.] às vez assistiaa ssascenas.
Um dia, Jul t ria t ntadob ijá-la, violentá-laaté,o que lhe
cau ou norm m do. Duranteas f'rias [ela tinha entre6 e
13 ano ; M.F.], ela vinha a Parise passavaos dias com o ir-
mão Antonio, um ano mais moço, que, muito adiantado,
parec , lhe ensinavamuitascoisasqueelaignorava.Ele zom-
bavada ingenuidadedela,quelhe fazia aceitaras explicações
qu lhe davam,e lhe explicava,entreoutrascoisas,como se
fazemos filhos. Duranteas férias tambémela tinha a opor-
tunidadede ver, na casaem que seuspais trabalhavam,um
enhorC. [que erao dono da casa;M.F.], que eraamanteda
suamãe.EstaobrigavaLouise a beijar essesenhore queria
que o chamassede pai. Vindo definitivamentepara Paris,
Louise foi colocada[logo depoisdo seutempo de conven-
to, querdizer aos13 anos;M.F.] na casade C., a pretextode
aprendera cantar,costurar,etc. Ela dormia num quartinho
isolado.C., que estavaestremecidocom a esposa,aprovei-
tavadasausênciasdela paratentarter relaçõescom Louise,
que tinha 13 anose meio. Da primeiravez, fracassou;que-
ria que ela deitassediante dele. Urna segundatentativare-
sultou numa aproximaçãoincompleta,devido à resistên-
cia que ela lhe opunha.Da terceiravez, depois de lhe ter
enchidoos olhoscom todo tipo de promessas, de lhe ter ofe-
recido lindos vestidos,etc.,vendoque ela não queriaceder,
ameaçou-acom uma navalha;aproveitando-sedo seupa-
vor, obrigou-aa tomarum licor, despiu-a,jogou-ana cama
e teve relaçõescompletas.No dia seguinte,Louise estava
doente,etc."55
Todasasvidas de histéricascontadaspelasdoentesde
Charcotsão, de fato, freqüentementedessaordem e des-
se nível. ~u~toao que acontecianessascélebrescrisesque
Charcotdizia pareceremestranhamente a crisesde epilep-
sia, que era até muito difícil diferenciar,quandonão se era
um bom neurologista,dascrisesde epilepsia- o que acon-
tecia de fato nessascrises,se consultarmosas observações
anotadaspelosalunosde Charcot,para Charcot?
No nível do discurso,eis o que dizia Louise: "Diga-
me!... Querfazero favor de me dizer! Malcriado! Quenojen-
to você é.Você acreditamais nesserapazdo que em mim...
Eu juro que esserapaznuncapôs as mãosem mim... Eu não
correspondiaaos carinhosdele, a gente estavano mato...
garantoque eu não queria... Chameeles (fisionomiaimpe-
rativa)! E então?(Olha bruscamentepara a direita)... Mas
não é o que o senhorcontou para ele!... Antonio, repita o
que ele te disse... que ele tinham~tocado... Mas eu nãoquis.
Antonio, você estámentindo!... E verdade,tinha uma cobra
na cuecadele, ele queriaenfiá-la na minha barriga,mas ele
nem me tirou a roupa... vamosacabar.com isso... A gente
estavanum banco... O senhorme beijou mais de umavez,
eu não beijava o senhor; eu sou lunática... Antonio, você
estárindo..." 56
Discursosassimse situavamno nível do período dito
delirante,o último períododa análisede Charcot.E, se re-
montarmosà fase dita "plástica" das"atitudespassionais",
eis como elasse apresentamnumaoutradoente:11 CelinaM.
estáatenta,avistaalguém,com a cabeçafaz sinal paraque
ele venha,abreos braços,aproxima-oscomo se abraçasseo
ser imaginário.Inicialmente,a fisionomia exprime descon-
tentamento,decepção,depois,com umabruscamudança,a
felicidade.Observa-senessemomentomovimentosdo ven-
tre; as pernassevergam,M. cai na camae executade novo
movimentosclônicos. Com um movimentorápido,ela move
o corpoparao lado direito da cama,a cabeçarepousano tra-
vesseiro;o rosto se congestiona,o corpo rola parcialmente
sobresi mesmo,a bochechadireita se aplicacontrao traves-
seiro, a face se dirige paraa direita da cama,a doenteapre-
sentaas nádegas,que estãoerguidas,estandoos membros
inferioresdobrados.Ao fim de algunsinstantes,semprecon-
servandosua posiçãolúbrica, M. faz uns movimentoscom
t contrariada.S nta-se,olha paraa qu rda, faz um sínal
com a cab ça e com a mão dir ita. Assist a cena variadas,
par ce xp rim ntar suc~ssivamentes _nsaçõ~sagradáveis
ou p no ·as, a julgar p lo Jogoda suafis1ononua.De rep -
te, torna a levar o corpo parao meio da cama,ergue-oum
poucoe, com a mão direita, executaos g~stosdo m_ea culpa,
eguidosde contorções,de caretas.Depoissolta gntosagu-
dos: 'Uh lá lá!', sorri, olha com um ar lúbrico, senta-se,pa-
recever Erneste diz: 'Venha,venhalogo!'" 57
É esseportanto,no nível dasobservações cotidianasdas
doentesfeitas pelosalunosde Charcot,o conteúdoreal des-
.
sascnses.
Ora, creioque é aí que as histéricas,pela terceiravez,
retomamo podersobreo psiquiatra,porqueessesdiscursos,
essascenas,essasposturasque Charcotcodificavacom o ter--
mo de "pseudo-epilepsia"ou de "grandecrise histérica",
análogaa, mas diferenteda epilepsia,tudo isso, na realida-
de, esseconteúdoreal quevemosaparecernasobservações
de todos os dias, Charcotnão podia admitir. Por que não
podia?Não por razõesde moralidadeou de pudor,.d igamos
que simplesmentenão podia admitir. Porque,sevocêsestão
lembrados,quandoeu lhesfalava dà neurosetal comoexistia
e tal como era desqualificadapor volta da décadé;lde 1840,
tal como ainda era desqualificadana épocade Charcotpor
JulesFalret,por que era desqualificada ?58 Ao mesmotempo
porqueera simulação- e Charcotprocuroudescartaressa
objeçãoda simulação- e porqueerasexual,porquecompor-
tavacertonúmerode elementoslúbricos.Se &e quisesseefe-
tivamentedemonstrarque a histeriaerade fato umadoença,
se se quisesseabsolutamentefazê-la funcionar no interior
do sistemado diagnósticodiferencial,senãosequis·e ssequ
ela f?ssecontestadaem seu estatutode doença,pois bem/
ela tinha de ser absolutamentedespojadadesseelemento
de desqualificaçãoque era tão nocivo quantoa simulação
que era a lubricidade ou a sexualidade*.Por conseguinte,
isso não podia se produzir ou não podia serdito.
Ora, ele nãopodiaimpedirqueseproduzisse,porqueera
ele, Charcot,quempediasintomas,crises.E, efetivamente,as
doentesforneciamcrisescuja superfíciesintomática,cujo ce-
nário geral obedeciaàs regrasestipuladaspor Charcot,mas,
de certomodoao abrigodessecenário,elasprecipitavamtoda
a sua vida individual, toda a sua sexualidade,todas as suas
lembranças;elas r-eatualizavamsua sexualidadeno próprio
interior do hospital,com os internosou com os médicos. Por
conseguinte,como Charcotnão podia impedir que isso se
produzisse,só lhe,< restavaumacoisaa fazer: era não dizer, ou
melhor, dizer o- contrário. De fato, vocês lêem em Charcot
isto, que é paradoxal,quandose sabecom baseem que ob-
servaçõesele se fundava; ele dizia: "Por minha conta, estou
longe de acreditarque a lubricidadeestejasempreem jogo na
histeria,estouinclusive convencidodo contrário."59
Vocês devemse lembrardaqueleepisódioque se situa
no inverno de 1885-1886,quandoFreudestagiavano serviço
de Charcote, certanoite, convidadoà casade Charcot,ouviu
para sua estupefaçãoCharcot dizer à parte a uma pessoa:
"Oh! A histeria!Todo o mundosabeque é de sexualidadeque
se trata!" E Freudcomentadizendo:"Quandoouvi isso, fi-
quei surpresoe me perguntei:'Mas, se elesabe,por que não
o diz?'"60 .Se ele não dizia, creio que era por essesmotivos.
Simplesmente,o que podemosnos perguntaré como é que
Freud,que passouseismesesna Salpêtrieree que,portanto,
assistiutodos os dias às cenasde que lhes dei [dois] exem-
plo [s], tambémnão diz nadaquandotrata desseseuestágio
na Salpêtrieree como é que a descobertada sexualidadena
·histeriasó emergiuparaele anosdepois61• A única possibi-
lidade paraCharcotera exatamentenão ver e não dizer.

* O manuscritoacrescenta:"Se ele a deixassese reintroduzir,


todo o edifício da patologização,construídoem colaboraçãocom as
histéricas,iria abaixo."
QQ}Q qu 1lLUlll1 l u..L-'1'"'-
.llv .:, Y .., _._._... ,.,,,..,. - - ...... - ... ~...,

t çã de um aluno qu , aliás,não é privadade ironia: "O sr.


CharcotmandachamarGenevi ve, que sofre de uma con-
traturahistérica.Ela estánumamaca;os internos,os chefes
d clínica haviam-na hipnotizadoantes.Ela tem uma gran-
de cri e histérica.Charcot,conformesuatéci:tica,mostraque
a hipno e pode não apenasprovocar,induzir fenômenos
histéricos, mas igualmente detê-los; ele pega a bengala,
apertacom ela o ventreda doente, exatamentesobreo ová-
rio, e a crise, de acordocom a tradiçãodo cenário,de fato
cessa.Charcotretira a bengala;a crise recomeça;períodotô-
nico, períodoclônico, delírio e, no momentodo delírio, Ge-
nevievegrita: 'Camille! Camille! Beije-me! Dê-meseupau!'
O professormandalevarememboraGenevieve,cujo delírio
continua./J62
Parece-meque essaespéciede grandebacanal,de pan-
tomimasexual,não é o resto,aindanão decifrado,da síndro-
me histérica.Tenho a impressãode que se deve considerar
essabacanalsexualcomoa contramanobra pelaqual ashis-
téricas respondiamà assinalaçãocomo traumatismo:você
quer encontrara causados meussintomas,essacausaque
permitirá que você os patologizee funcione como médico;
você quer essetraumatismo 1 pois bem, terá toda a minha

vida e nãopoderáme impedir de me estendercontandomi-


nhavida e, ao mesmotempo,de me ver gesticularde novo
minha vida e de reatualizá-laincessantemente no interior
das minhascrises!
Por conseguinte,não é um resto indecifrável essase:..
xualidade,é o grito de vitória do histérico,é a última mano-
bra pela qual as histéricasfinalmentelevam a melhor sobre
os neurologistase os fazem calar: se você tambémquer o
sintoma,o funcional; sevocê quer tomar naturala suahip-
nose;se você quer que cadauma dasinjunçõesque me faz
provoquesintomasque sejamtais que você possaconsi-
derá-los naturais;se você quer se servir d mim p ra d -
nunciaros simuladores,pois bem,você seráobrigadoa ver e
a ouvir o que eu tenhovontadede dizer e o que tenhovon-
tadede fazer! E Charcot,quevia tudo, quevia até as meno-
res covinhasrealçadaspela luz do dia no rosto de um para-
lítico63, Charcotera obrigadoa desviarseu admirávelolhar
quandoa doente estava lhe dizendoo que lhe dizia.
Sob essecorpo neurológicoe ao fim dessaespéciede
grandebatalhaentre o neurologistae o histérico,em torno
do dispositivo clínico da neuropatologia,sob o corpo neu-
rológico aparentementecaptado*, do qual o neurologista
esperava,acreditavatê-lo efetivamentecaptadoem suaver-
dade,vocêsvêem aparecerum novo corpo; essecorpo já
não é o corpo neurológico,é o corpo sexual.Foi a histérica
que impôs aos neurologistas,aos médicos,essenovo per-
sonagemque já não é o corpo anatomopatológico de Laen-
nece Bichat, o corpo disciplinarda psiquiatria,o corponeu-
rológico de Duchennede Boulogneou de Charcot,é o cor-
po sexual, diante do qual só se poderáter daí em diante
duasatitudes.
Ou a de Babinski, sucessorde Charcot:a desqualifica-
ção da histeria, que não serámais uma doença,já que tem
essasconotações 64. Ou entãouma nova tentativaparacon-
tornaro envolvimentohistérico,pq.fareinvestirmedicamen-
te essenovo rumo, que surgiu de todasas partesem torno
do corpo neurológicoque os médicoshaviamforjado. Esse
novo investimentoseráa assunçãomédica, psiquiátrica, psi-
canalítica,da sexualidade.
· Forçandoas portasdo asilo, deixandode serloucaspara
se tornaremdoentes,sendotratadasenfim por um verda-
deiro médico,isto é, pelo neurologista,fornecendo-lhever-
dadeirossintomasfuncionais,as histéricas,parao maior pra-
zer delas,mas sem dúvida paranossagrandedesgraça,de-
ram à medicinaa possibilidadede agir sobrea sexualidade.

* Variante do manuscrito: ºe pelo qual se pretendiajulgar alou-


cura, interrogá-la em suaverdade...".
1. "Se eu tiver conseguidoapresentarsob a sualuz verdadei-
ra os trabalhosrelativosà anatomiamórbidados centrosnervosos,
vocêsnãoterãodeixadode reconhecera tendênciaprincipal quese
acusaem todosessestrabalhos.Todosparecem,de certomodo,do-
minadospelo que poderíamoschamarde espírito delocalização,o
qual nadamais é, em suma,queumaemanaçãodo espíritode aná-
lise", J. M. Charcot,' Taculté de Médecinede Paris:anatomo-patho-
logie du systemenerveux'',Progres médical,7? ano, n? 14, 5 de abril
de 1879, p. 161.
2. SobreBichat, cf. supra, p. 251, nota 38.
3. SobreLaennec,cf. ibid. Já em 1803,estedá um cursoparti-
cular de anatomiapatológica,que ele sonhaem transformarem dis-
ciplina à parte.Ele propõeumaclassificaçãoanatomopatológica das
afecçõesorgânicas derivada da classificaçãode Bichat, porémmais
completa;cf. "Anatomie pathologique",in Dictionnaire des sciences
médicales,t. II, Paris,C. L. F. Panckoucke,1812,pp. 46-61.Vero capí-
tulo que M. Foucaultconsagraà anatomiapatológica,"I.:invisible
visible", in Naissancede la clinique, op. cit., pp. 151-76.
4. Trata-seda observaçãode LN., 18 anos,com ptoseda pál-
pebraesquerda,levadaà consultade 18 de fevereiro de 1891; cf.
J.-M. Charcot,Clinique desmaladiesdu systernenerveux(1889-1891),
aulas publicadas sob a direçãode G. Guinon,aulade 24 de feverei-
ro de 1891 (recolhidapor A. Souques),t. l, Paris,Aux bureauxdu
ProgresmédicaINve Babé,1892,p. 332. .
5. Sobreo" olhar anatomodínico",ver Naissancede la clinique,
op. cit., cap.VIII, "Ouvrez quelquescadavres",pp. 136-42,e cap.IX,
"L'invisible visible", pp. 164-72.
6. Ibid., cap.VI, "Des signeset des cas", pp. 90-5.
7. M. Foucaultfaz referênciaao modo de exameclínico pela
"percussão",de que JeanNicolas Corvisart (1755-1821) se fez o
apóstolo,depois de ter traduzido e anotadoa obra do vienense
LeopoldAuenbrugger(1722-1809),Inventumnovumex percussione
thoracis humani ut signo abstrusosinterni pectoris morbosdetegendi,
Vindobonae,Typis JoannisThomasTrattner,1761 [Nouvelle métho-
de pour reconnaítreles maladiesinternesde la poitríne par la percussion
de cettecavité, trad. fr. e comentáriospor J. N. Corvisart,Paris,impr.
Migneret, 1808]. Foi em setembrode 1816 que Laenneccriou o
estetoscópio,no hospital Necker: cf. De l'auscultationmédiate, ou
Traité du diagnostic des maladies des poumonset du coeur, fondé
principalementsur ce nouveaumoyend'exploration, Paris, Brosson
et Chaudé,1819, 2 vol.
8. Após numerosostrabalhos,entre eles os do fisiologista
FrançoisMagendie(1783-1855)em 1826,que recorremà estimula-
ção elétricaparaestudaros mecanismosda excitaçãonervosae da
contraçãomuscular,G. B. A. Duchennede Boulogneutiliza a "fara-
dização"paraexplorara excitabilidadedos músculose dos nervos
e estabelecero diagnósticoe o tratamentodassuasafecções.Ele·ex-
põe os resultadosnumaprimeiradissertaçãoapresentada em 1847
à Academiade Ciências: [1] "De l'art de limiter l'action électrique
dansles organes,nouvelle méthoded'électrisationappelée'élec-
trisationlocalisée'"; republicadoem Archivesgénéralesde médecine,
em julho e agostode 1850,e fevereiro e marçode 1851.Em 1850,
expõenuma segundadissertaçãoum métodode "galvanização"
empregandocorrentescontínuas,destinadoa estudaras funções
muscularese a fornecer os meios para "um diagnósticodiferen-
cial das paralisias": [2] Application de la galvanisation localisée à
l'étudedesfonctionsmusculaires,Paris,J.-B. Bailliere, 1851.Todosos
seustrabalhosforam reunidosnumaobra: [3] De l'électrisation lo-
caliséeet de sonapplicationà la physiologie,à la pathologieet à la thé-
rapeutique,Paris,J.-B. Bailliere, 1855.Cf. tambémsupra,p. 386, nota
61; e R. A. Adams, "A. Duchenne",in W. Haymakere F. Schiller,
orgs.,·The FoundersofNeurology,t. II, Springfield,Ili., C. C. Thomas,
1970, pp. 430-5.
d Pâri uma nota: (1] "R marqu - sur 1e s1 ge a 1 racwt au
Langagearticul ', uivies d'uneobs rvation d'aph/ mi . (p . rte de la
parol ) '', a propó ito de um pacien~ , Lebor~e,ho~p1tahzadoem
BicAtr haviavint e um anos,quetinha perdidofazia poucoo uso
da palavra só conseguiapronunciare~tãoa sílaba " tan" r~peti-
da dua vezes.Transferidoem11 de abril de 1861 para o serviçode
Br · ca, onde falece em 17 de abril, suaautópsia revela um foco de
amolecim nto do pé da terceiracircunvolu ção frontal esqueida, a
que Brocarelacionaa perdada linguagemarticulada; cf. Bulletin de
la So iétéd'Anthropologiede Paris, 1~ série,t. Il, agosto de 1861, pp.
330-57; republicadoem H. Hécaene J. Dubois, La Naissance de la
neurolophysiologiedu langage(1 825-1865), Paris,Flammarion (" Nou-
velle Bibliothequescientifique"), 1969~pp. 61-91. Entre1861e 1865,
outrasobsetvaçõesconfirmama Brocao papelda terceiracircunvo-
lução esquerda: cf. [2] "Localisationdesfonctions cérébrale s. Sie-
ge du langagearticulé", Bulletin de la Sociétéd'Anthropologiede Pa-
ris, 1~série, t. N, 1963, pp. 200-4; [3] "Sur le siegede la faculté du
langagearticulé", ibid., 1~ série, t. VI, 1865, pp. 377-93; republicado
em H . Hécaene J. Dubois, op. cit., pp. 108-23.
10.Devemos a G. B. A. Duchennede Boulognea descrição da
(jataraxialocomotoraprogressiva"ou tabesdorsalis, de origem sifi-
lítica, caracterizadapor umadescoordenação motoraacompanhada
costumeiram ente de uma aboliçãodos reflexose da sensibilidade
profunda: cf. "De l' ataxielocomotriceprogressive ...", art cit. (supra,
p. 386, nota 61); republicado em De l'ataxie locomotriceprogressive,
Paris,impr. Rignoux, 1859.
11. G. B~A . Duchenne,Diagnostic différentieldesaffectionscéré-
belleuseset de l'ataxie locomotrice progressive (extraído de La Gazette
hebdomadairede médecine et de chirurgie, 1864), Paris,impr. Mar-
tinet, 1864.
12. lbid.1 p. 5: "Desde que o homem começaa sentir os efeitos
da embriaguezalcoólica, seu corpo, estandode pé, oscila em to-
dos os-sentidos... Nos pacientesque sofremde ataraxialocomotora 1

as oscilaçõesdo corpo,estandode pé, têm uma característicamui-


to difere~t:; elassãobruscas,enquantoasdaembriaguezparecem
uma_espe~1~de bal~ço; são mais curtase mais rápidas.Já ·com...
parei o ataxico de pe a um equilibrista que quer manter-sesema
vara numacordaesticada." Cf. id., De l' ataraxielocomotriceprogres-
síve,op. cit., p. 78: "O doenteé comparável,até certo ponto, a um
indivíduo que semanteriacom dificuldadeem equihôrionumacor-
da, semvara."
13. Id., Diagnostícdífférentieldes affectíonscérébelleuses
..., op. dt.,
PP· 5-6.
14. Ibid., p. 6: "O homemembriagado[...] caminhadescreven-
do curvasalternativamentepara a direita ou para a esquerda,ou
em ziguezague,e não consegueandarem linha reta... O atáxico
[...] geralmenteandaem linha reta,vacilando,massemdescrever
curvasnem ziguezaguescomo o homemembriagado."
15. Ibíd., p. 7: "Eu lhes perguntavase, de pé ou caminhando,
[...] eles nãosentiama cabeçapesadaou girando,como quandose
bebeuvinho ou álcool em excesso.Eles respondiamque a cabeça
estavaperfeitamentelivre e que o equilfbrío só lhes faltava nas per-
nas" (grifado no texto).
16.Alusão àsanálisespropostaspor P. Brocaem seuartigo de
1861,"Remarquessur le siegede la faculté du langagearticulé", em
que propõeo termo "afemia" (cf. supra,nota 9) paradesignaressa
perdada "faculdadede articularaspalavras"(in H. Hécaene J. Du-
bois, La Naíssancede la neurolophysiologi,edu langage,op. cit., p. 63).
17. A anartriaé uma afasiamotoraligada a um danona área
de Broca,situadana face externado hemisfériocerebraldominan-
te, na parteinterior da terceira circunvolução frontal. Caracterizada
por distúrbiosda articulaçãoda palavra,semlesãodos órgãosfo-
natórios,é descritapor PierreMarie (1853-1940)em "De l' aphasie
(cécitéverbale,surditéverbale,aphasie metrice, agraphie)", Revue
de médecine,vol. III, 1883, pp. 693-702.
18. Atesta-oo empregodo termo "histeroepilepsia"parade-
signaruma forma híbrida (compostade histeriae epilepsia),mar-
cadapor crisesconvulsivas,como enunciaJ.-B. Lodo:is Briffaut: .11É
possívelver a histéricatornando-se·epiléptica,continuandoa ser
umacoisae outra,o que constituia histeroepilepsia,ou entãoa epi-
lepsiadominandocadavez mais e, de certo modo, ?niquilandoa
histerià primitiva" (Rapportsde l'hystéríeet de l'épilepsie,Th. Méd.
Paris,n? 146, Paris, [s.n.], 1851, p. 24). Cf. E. J. Georget- segundo
o qual a histeria é uma desordemnervosaconvulsiva,que forma
um contjnuumcom a epilepsia-,verbete"Hystérie", in Dictionnai-
re de médecine,vol. 11, Paris,BéchetJeune,1824,pp. 526-51.Sobre
, J. • ... , • ... - . . .. .. - - - · ... p -- - - - " "' , , _, ~

ri · to the Begí.nttíngsofModemNeurology[1945], 2~ ed, r ., Bal·


timor: , Md#, Th · John Hopkins Press,1971,pp. 351-9.
19. M. Foucaulttoma duasdatasreferenciai :
(a) 1820,ano em que o debatesobreas causasda loucuraco-
m a por ocasiãoda defesade tesede t;:tienneGeorget,8 de feve-
r. iro d 1 20: "Ois ertation ur les causesde la folie" (cf. supra, p.
176, nota 18). Lançadoem janeiro de 1843 por J. Baillarger, L.
ris F. Longet, os Annalesmédico-psychologiques.Journal de
l 'anatomie, de la physiologieet de la pathologie du systemeneroeux
destinépartículierernentà recueillir tous les documentsrelatifs à la
cienced rapports du physiqueet du moral, à la pathologiementale,
à la médecinelégaledesaliénéset à la clinique desnévroses(Paris,For-
tin et Mas on), sãopalcode um debatequasepermanentesobreas
causasorgânicase moraisda loucura,com um momentoforte nos
anos1840,quandose opõemos partidáriosdo organicismo,como:
[a] L. Rostan,autorde umaExpositiondespríncipesde l'organidsme,
précédéede réflexionssur l'incrédulité en matiêrede médecinerParis,
As elin,, 1846. [b] A (de] Foville, autor com J.-B. Delaye de uma
dissertaçãoparao prêmio Esquirol de 1821: "Sur les causesde la
folie et leur moded'action,suiviesde recherchessur la natureet le
siege spécialde cettemaladie",NouveauJournal de médecine,t. XIl,
outubro de 1821, pp. 110 ss.; assim como G. Ferruse L. Calmei!.
[e] J. J. Moreaude Tours, que defendeem 1830uma teseintitula-
da De l'influencedu physique,relativementau désordredesfacultésin-
telleduelles,et en particulier danscettevariétéde délire désignéepar M.
Esquirol sous le nom de Monomanie(Th. Méd. Paris, n? 127, Paris,
Didot, 1830),que adotamcomobandeiraos termos"organicismo",
"organicista" - e os partidáriosda escolapsicológica1 que prefe-
rem dizer-se'-'dualistas":P.-N. Gerdy, FrédéricDubois d'Amiens
(1799-1873),Q . Michéa,Louis FrançoisÉmile Renaudin(1808-1865).
~sim como: [d] J.-B. ParchappedeVinay, autor de um artigo in-
titulado precisamente"De la prédominancedes causesmorales
dansla générationde la folie" (Annalesmédico-psychologiques, t. II,
nov:mbro de 184~, pp. 358-71).[e] L. F. Lélut, que critica as utili-
zaçoesda anatomiapatológicaem medicinamentalem Inductions
su~la valeur desaltérationsde l'encéphaledansle délire aigu et dans la
folie, Paris,Trinquart,1836.
(b) 1880, momentoem que se desenvolveuma terceiravaga
organicista, com os trabalhosde Magnane de Charcot,que, pen-
sandoteremdominadoa fisiopatologia do cérebro,crêemter che-
gado o tempo das conclusõesdefinitivas.
20. Sobrea concepçãode A. L. J. Bayle, cf. supra, p. 175, nota
17, e pp. 241-2, nota 2.
21. ContraBayle, que admitia "três ordensde sintomasessen-
ciais pertencentesà loucura,à demênciae à paralisia",J. Baillarger
sustentaque "os sintomasessenciaisdessadoença,aquelessemos
quaisela nuncaexiste,sãode duasordens: uns sãoconstituídospe-
los fenômenosde paralisiae os outrospelosfenômenosde demên-
cia", e o delírio, quandoexiste, constituiapenas"um sintomatotal-
menteacessório"("Des symptômesde la paralysiegénéraleet des
rapports de cette maladie avec la folie", apêndiceà traduçãodo
Traité de W. Griesinger,op. cit., respectivamente, pp. 614 e 612).
22. HBoa doença"ou, como dizia Foucaultna Histoire de la
folie (ed. de 1972,p. 542), '"boa forma'. A grandeestruturaque co-
mandatoda a percepçãoda loucura encontra-seexatamentere-
presentadana análisedos sintomaspsiquiátricosda sífilis netvo-
sa". Já em 1955 Henri Eyvia nelaum "protótipo" que exerceu"um
poderde atraçãoirresistívelsobreos psiquiatras"("Histoire de la
psychiatrie",in Encyclopédiemédico-chirurgi,cale.Psychiatrie,t. I, 1955,
p. 7). Isso se deve ao fato de que, no mesmomomentoem que se
constituia anatomoclínica,A. L. J. Bayle isola em psiquiatriaumaen-
tidade que correspondeao modelo médico (cf. supra, p. 175, nota
17): ela tem uma causadefinível do ponto de vista anatomopato -
lógico, apresentauma sintomatologiaespecíficae comportauma
evoluçãodefinida por três períodosque conduzemà impotência
motorae à demência.Sobreo histórico do problema,cf. J. Baillar-
ger, "De la découvertede la paralysie généraleet des doctriries
émisesparlespremiersauteurs",Annalesmédico-psychologi,ques, 3~
série,t. V, outubro de 1859,parteI, pp. 509-26; 3~ série,t. VI, janei-
ro de 1860, parte II, pp. 1-14.
23. Cf. supra, p. 375, nota 1.
24. Na décadade 1840,a definiçãofundamentaldasneuroses
poucohaviamudado,desdeque o médicoescocêsWilliam Cullen
introduziu o termo em Apparatusad nosologi.ammethodicam,seu
Synopsiê nosologi.aemethodicae ... (op. cit.), antesde se impor com
a publicaçãode First Lines of the Practice of Physic(Edimburgo,El-
timento e do movimento, m qu a pitexia [febre; J.L.} não con ti ...
tui uma paro da doençaprimitiva e todasasque nãodependemde
umaafecçãotópicadosórgãos,masde um.aafecçãomaisgeraldo
i teman rvoso e dasforças do sistemade que dependemmais
e p cialment o sentimentoe o movimento" (Êlementsde médecíne
pratique, trad. fr. da 4~ ed., com notas,por M Bosquíllon,t. Il, Paris,
Barois et Méquignon,1785, p. 185).Assim, em 1843,no item "Né-
vrose", a introduçãodosAnnalesmédico-psychologiques (t. I, janeiro
de 1843, pp. XXIII-XXIV) afirma: "NEUROSES.Vê-se predominar
nelas,assimcomo nasdiversasformas da alienaçãomental,o dis-
túrbio dasfunçõesda vida de relação.Essedistúrbio se manifesta
de mil maneiras,na hipocondria,na histeria,na catalepsia,na epi-
lepsia,no sonambulismo,nas nevralgias,no histericismo,etc.[...}
Intermediáriasde certo modo entreos distúrbiosda vida de nutri-
ção e as doençasmentais,,elas parecemestarpresentesnas duas
naturezas.Aqui é um distúrbio funcional da vida orgânicaquepre-
side os acessos;ali é um distúrbiointelectualque dominaos paro-
xismos." Cf.: [a] A. [de] Foville, verbete"Névroses",in Dictionnaire
de médecineet de chirurgi,e pratique_s,vol. XII, Paris,Gabon,1834,pp. 55-
7. [b] E. Monnerete L Fleury, verbete"Névroses",in Com-pendium
de médecinepratique,vol. VI, Paris,Béchet,1845,p. 209. [cJ E. Littré e
C. Robin, Dictionnairede médecine,de chirnrgie, de pharmacie, desscien-
ces accessoireset de l'art vétérinaire, Paris, 1855, s.v.: "NEUROSE:
nome genéricodas doençasque se supõeterem sedeno sistema
nervosoe que consistemnum distúrbio funcional semlesãosen í-
vel na estruturadaspartes,nemagentematerialaptoa produzi-la"
[d] J.-M. Bruttin, DifférentesThéoriessur l'hystérie dans la premfere
moitié du XJXesiecle,Zurique, Juris, 1969.
25. Introduçãodos Annalesmédico. .psycholagi;ques,t. t janeiro
de 1843, p. X.XV.
26. JulesFalret, "La folie raisonnanteou folie morale" (lido na
SociedadeMédico-Psicológicaem 8 de j,a neiro de 1866),Annales
médico-psychologiques, 4~ série,t. VII, maio de 1866,p. 406: "Um ou-
tro fato principal,, essencialmente caracteósticodashistéricas,'. o
espírito de duplicidadee de mentira.E sasdoentes[ ...Jn~o f''m
prazermaior que o de enganare induzir em erro as p soa com
quemencontram-seem relação.As hi téricas,que xageramat'
mesmoseusmovimentosconvulsivos(os quais sãomuitasvezes
parcialmentesimulados), disfarçam também e exageramtodosos
movimentosda suaalma... Numapalavra,a vida dashistéricasnão
passade umaperpétuamentira..." Republicadoem Étudescliniques
sur les maladiesmentaleset nerveuses,estudoXII, Paris,J.-B. Bailliere,
1889, p. 502.
27. É Jules Déjerine que se expressaassim na sua "Leçon
inauguraleà la clinique desmaladiesdu systemenerveux",em 31
de marçode 1911 (La Pressemédicale,1? de abril de 1911,pp. 253-8):
"Por seusestudossobrea histeria,Charcotsoubetomardospsiquia-
tras um domínio que estestentarãoinutilmentereconquistar.Oaro,
suadoutrinasobrea histerianão ficou intacta.No entanto,mesmo
que Charcotsó tivessetido o mérito de fazer os médicoscompreen-
deremque,fora daslesõesmateriais,os problemascausadospor cer-
tos distúrbiospsíquicosproporcionavamà atividadedelesum cam-
po considerável,mesmoassimele mereceriatodo o nossoreconhe-
cimento" (citadoem G. Guillain, J.-M. Charcot(1825-1893):sa vie, son
oeuvre,Paris,Masson,1955,p.143).Umailustraçãodissoseriaa trans-
ferênciapara os neurologistasda paternidadedos verbetessobrea
histeria nasenciclopédiasmédicase nos dicionários.
28. M. Foucaultfaz referênciaao necrológioque Freudredige
em agostode 1893 e publica na WienermedizinischeWochenschrift
(vol. 43, n? 37, 1893,pp. 1513-20):"A salaem que ele davaaulasera
decoradacom um quadrorepresentando o'cidadão'Pinel mandan-
do tirar as correntesdos pobresinsensatosda Salpêtriere"("Char-
cot", in S. Freud, GW, t. I, 1952, p. 28 ["Charcot", trad. fr. J. Altou-
nian, A. e O. Bourguigon, G. Goran, J. Laplanche,A. Rauzy, in S.
Freud,Résultats,Idées,Problemes,t. I, 1890-1920,Paris,PUF ("Biblio-
thequede psychanalyse"),1984,p. 68]).
29. J.-M. Charcot,Leçonssur les maladiesdu systemenerveux,
op. cit., t. I, aula XI. "De l'hyperesthésieovarienne",pp. 320-45: os
"estigmas"designam"a maioria dos acidentesque persistemde
umamaneiramais ou menospermanenteno intervalo dos ataques
convulsivosnas histéricase que quasesemprepossibilitamreco-
nhecer,em razãodas característicasque essesacidentesoferecem,
a grandeneurose,[ ...] mesmona ausênciade convulsões".Assim
é com a "hemianestesia,a paralisia,a contratura,os pontosdolo-
rososfixos sediadosem diversaspartesdo corpo" (p. 320).
30. J.-M. Charcot,[1] "Des troublesde la vision chezles hysté-
riques. Oinique médicaled~ l'hospice de la Salpêtriere",Progres
vision eh z 1 shyst'riques",pp. 427-34.
31. Leçonssur les maladiesdu systemeneroeux,t. I, aulaX, "De
l'h ~ mianesthési hystérique'',pp. 300-19.
32. Ibid., aula XII, "De la contracture hystérique",pp. 347-66;
ibid., t. III, aulaVII, "Deux casde contracture hystériqued'origine
traumatique"e aulaVIII, continuação, Paris, Lecrosnier& Babé,
1890, pp. 97-107e 108-23.
33.Assim, na Policlínica de 21 de fevereiro de 1888, "~Hystérie
chez les jeunes garçons", Charcot reconhece:''É muito curioso
que, nasformas particularmentementais,os estigmas não apare-
çam." (Leçons du mardi à la Salpêtriere. Policlinique 1887-1888, op.
cit., t. I, p. 208: "Todosessesestigmas[...] sãoconstantesna histe-
ria, mas, apesarda suaconstância,devoreconhecerque muitasve-
zes não os encontramostodos, ou mesmo,no limite, nãoencon-
tramos nenhum.")
34. Esboçadadesde1872 nasLeçonssur les maladiesdu systeme
nerveux(op. cit., t. I, aula XIII, "De l'hystéro-épilepsie " , pp. 373-4, e
apêndiceVI, "Description de la grandeattaquehystérique", pp.
435-48), sua codificaçãoé apresentada em 1878, quandoCharcot
a reduz a "uma fórmula muito simples": "Todos essesfenôme-
nos, aparentementetão desordenados, tão variáveis [...] se desen-
volvem de acordo com uma regra.O ataquecompleto se compõe
de quatro períodos: 1? Período epileptóide. Pode se parecer,e na
maioria dasvezesparece, com o ataque epiléptico verdadeiro... Po-
de-sedividir esseperíodo epilético em três fases:a) fase tônica~..;
b) fase clônica. Os membros etodo o corpo sãoanimadospor os-
cilaçõesbrevese rápidas [...] que terminamcom grandesestreme-
cimentosgeneralizados ...; e) fase de resolução... 2? Períododas
contorçõese dos grandes movimentos... 3? Períododas atitudes
passionais.A alucinaçãopresidemanifestamenteesseterceirope-
ríodo.A própriadoençaentraem cenae, pelamímicaexpressivae
animadaa que se entrega[ ...], é fácil acompanhartodasasperi-
péciasdo dramaa que ela crê assistire em que elarepresentacom
freqüênciao papelprincipal... 4? Períodoterminal.A do nte volta
enfim ao mundoreal'' ("Descriptionde la grandeattaqu hystéri-
que.Hospicede la Salpêtriere",resumode P. Richter,Progrêsmédi-
cal, ano 7, n? 2, 11 de janeiro de 1879,,pp. 17-8).
35. Enquantoo termo "histeroepilepsia"[cf. supra, nota 18]
abrangia,como lembraCharcot,"uma combinaçãoem dosesva-
riáveis, conformeos casos,dasduasneuroses",constituindo"uma
forma mista,umaespéciede lubrido compostometadede histeria,
metadede epilepsia"(Leçonssur les maladiesdu systemenerveux,t. I,
[3~ ed.,1877,cit., ou 5~ ed.,1884,V.Adrien Delahaye& Cielt p. 368),
Charcotpretendediferenciarentreepilepsia ehisteroepilepsiaen-
quantoentidadespatológicasdistintas, que não poderiamse com-
binarparaformar umadoença"htbrida". Por isso, ele distingueuma
"histeroepilepsiacom crisesdistintas", em que a epil epsia é adoen-
ça primitiva, na qual a histeriavem se enxertar,e uma '1 histeria com
crisesmistas",em que a convulsãode forma epilépticasó aparece
a título de"elementoacessório": "nessescasos, tratar-se-ia unica-
mentee sempreda histeria que revestea aparênciada epilepsia"
(ibid., aula XIII, " De l'hystéro-épilepsie", 11 de junho de 1872, pp.
368-9). O termo " histeroepilepsia"passaa designar , então, so-
menteo último grau da histeria levadaao seudesenvolvimentoex-
tremo, ou hysteriamajor. Mais tarde,ele repudiaráo próprio termo:·
"Meu respeitopela tradiçãome fez manteroutroraessadenomi-
naçãode histeroepilepsia; mas ela me incomodamuito, confesso,
porque é absurd a. Não há a menor relaçãoentre a epilepsiae a
histeroepilepsia,nem mesmoaquelacom crisesmistas" (Leçons du
mardi à la Salpêtriere,op. cit., aula XVIII, 19 de março de 1889, pp.
424-5). M. Foucault retoma a essaquestãoem 26 de fevereiro de
1975: cf. LesAnonnaux(op. cit.), p. 167.Ver tambémCh. Féré, "Notes
pour servir à l'histoire de l'hystéro-épilepsie", Archives de neurologi,e,
vol. III, 1882,pp. 160-75 e 281-309.
36. Sobreessequadro diferencial, ver a aula resumida no Pro-
gres médica[, ano 2, n? 2, 10 de janeiro de 1874, pp. 18-9, " Caracte-
res différentielsentrel' épilepsieet l'hystéro-épilepsie"; e Leçonssur
les maladiesdu systemenerveux,t. I, aula XIII (cit.), " De l'hystéro-
épilepsie",pp. 374-85.
37.Trata-sede Aurel, 62 anos,que desde 1851 apresenta"uma
hemianestesia esquerdacompleta", que II encontramosnela ainda
hoje, isto é, apósum longo períodode 34 anos!Essadoenteé sub-
metida à nossaobservaçãohá quinze anos,e nuncaa hemianes-
tesiaem questãodeixou de estarpresente"(op. cit., t. III, Paris,Le-
crosnier& Babé,1890, aula XVIII, 11À proposde six cas d'hystérie
chezl'homme", recolhidapor G. Guinon, pp. 260-1).
contad 4.506 ac so , outra, qu durou catorz dias, em que
foram e ntado 17.083 ace sos" (Leçons du mardí à la Salpêtriere,
op. cit., t. II, aula N, policlínica da terça,..feira,13 de novembrode
1 8, "Attaque d ommeil hystérique", p. 68).
39. Alu ão a reproduçãoartificial das manifestaçõeshístéri-
ca ob hipnose,a propó ito das quais Charcot declara:"é verda-
d iramente,em toda a sua simplicidade,o homem-máquinaso-
nhadopor De la Mettrie que temosdiante dos olhos" ("Sur deux
ca de monoplégiebrachlalehystérique, decausetraumatique,chez
l'homme", in Leçonssur les maladiesdu systemenerveux,op. cit., t.
m, p. 337). a. Julien Offray de La Mettrie (1709-1751),L'Homme
machine,Paris, [s.n.], 1747; Leitlen, Luzac, 1748.
40. Charcot,Leçonsdu mardi à la Salpêtriere,op. cit., t. I, po-
liclínica da terça-feira,24 de janeiro de 1888, "Paralysieshysté-
ro-traumatiquesdéveloppéespar suggestion",pp. 135-6: "Essa
paralisia... nós poderíamosreproduzir artificialmente em certas
circunstâncias,o que é o sublime do gêneroe o ideal em matéria
de fisiologia patológica.Poderreproduzirum estadopatológicoé
aperfeição,porqueé como se controlássemos a teoria quandote-
mos em mãoso meio de reproduziros fenômenosmórbidos." Cf.
ibid., policlínica daterça-feira,1? de maio de 1888,"Productionar-
tificielle de paralysiedansl' état hypnotique:procédésde guérison
de cesparalysiesexpérimentales"(numahisteroepilépticahipno-
tizável), pp. 373-85.
41. Em 1870,com a renovaçãodo edifício Sainte-Laure,onde
estavamhospitalizadasas alienadas,epilépticase histéricasdo
serviçode Louis Delasiauve(1804-1893),a administraçãocoloca
as alienadase as epilépticastidas como alienadasno serviço de
Baillarger, e abre um serviço para as outrasepilépticase histéri-
cas: a '' ala dasepilépticassimples,,,,que é confiadaa Charcotem
1872. Cf. a "aula inaugural" da cátedrade clínica dasdoençasdo
s~stemanervoso,in Leçonssur les maladiesdu systemenerueux,op.
Clt., t. III, pp. 2-3.
42. J.-M. Charcot,"Métallothérapieet hypnotism . Électro-
thérapie",in Oeuvrescompletes,t. IX" Pads,Lecrosnier& Babé, 1890,
p. 297: ''As pesquisasempreendidasno hospício da Salpêtriere
pelo sr. Charcote, sob a suadireção,por vários alunosseus,sobre
o hipnotismo,datamde 1878." Charcotexpõeseusprimeirosre-
sultadosem suas" Lições sobre o grandehipnotismo das histé-
ricas". Em 13 de fevereiro de 1882, faz na Academiade Ciências
uma comunicaçãoque propõeuma descriçãoem termosneuro-
lógicos e pretendedar à hipnoseum estatutocientífico: "Physio-
logie pathologique. Sur les divers états nerveuxdéterminéspar
l'hypnotisationchezles hystériques",Comptesrendushebdomadai -
res des séancesde l'Académiedes sciences,vol. 94, n? 1, 13 de feve-
reiro de 1882, Paris, Gauthier-Villars, 1882, pp. 403-5. Ver A. R.
Owen, Hysteria, Hypnosisand Healing: the Work of ].-M . Charcot,
Londres, D. Dobson,1971.
43. Na décadade 1860,desenvolvem-se os problemasligados
às seqüelasde acidentesdo trabalhoou ferroviários: problemasde
perícia,de indenizações,de determinaçãoda incapacidadede tra-
balhar.No que concerneaosacidentesdo trabalho,um decretode
14 de novembrode 1865 cria a SécuritéGénérale,sustentadapelo
Crédit Industrie! et Commercial.A lei de 11 de julho de 1868 pre-
coniza a criaçãode duas caixasnacionaisde seguro,em casode
morte e em casode acidentesresultantesde trabalhosindustriais
e agrícolas;é regulamentada pelo decretode 10 de agostode 1868.
Em maio de 1880, um projeto de lei sobre "a responsabilidade
dos acidentesde que os operáriossãovítimas em seutrabalho" é
apresentadopor Martin Nadaud,mas só em 9 de abril de 1898
serávotadaumalei sobreos acidentesde trabalho.Cf.: [a] G. Ha-
mon, Histoire généralede l'assuranceen France et à l'étranger, Paris,
A. Giard e F. Briere, 1897. [b] V. Senés,Les Origines des compagnies
d'assurances ..., Paris,L. Dulac, 1900. [e] J.-P. Richard,Histoire des
institutionsd'assurancesen France, Paris,Éd. de l'Argus, 1956. [d] H.
Hatzfeld,Du paupérismeà la Sécuritésociale(1850-1940),Paris,1971.
M. Foucaultvolta a essaquestãoem outubro de 1974: cf. DE, III,
n? 170, p. 54.
44. Em janeiro e fevereiro de 1867, Henri Legranddu Saul-
le (1830-1886)consagraà questãouma sériede lições publicadas
em sua obra, Étude médico-légalesur les assurancessur la vie, Pa-
ris, Savy, 1868.
45. Assim, Cl. Guillemaudabordaa questãoda detecçãoda
simulaçãoem suaobra,Des accidentsde chemindefer et de leurs con-
séquencesmédico-judiciaires, Paris, [s.n.], 1851,pp. 40-1; reed.,Lyon,
A. Storck,1891.A. Souquesdedicasuateseà questãoda simulação:
Le~- ~-~-& Bab', 18 1. Cf. 'tamb"m supra, p. 1771 nota 20, e p.
379, nota 20.
46. Cf. supra,pp. 230 . e 418 ss. Na segundametadedo sé-
cul XIX desenvohn- e toda uma literatura referenteàs seqüelas
d- acidentes:{a] Anglo-saxã,que as atribui a uma inflamação
ja da medula ("Railway Spine"),_seja do cérebro.e·_Railway
Brain"). Cf.: {a) J. E. Erichsen,On Railwayand Other In;unes of the
eroousSystem, Filadélfia,Pa.,H. C. Lea,1867;e 0n Concussionofthe
Spine,NervousShock,andOtherObscureInjuries oftheNeroousSystem,
o aYork, Wood, 1875; [ p] H. W. Page,Injuries ofthe Spineand Spi-
nal Cord ,withoutApparentMechanical Lesion and NervousShockin
.their Surgicaland Medico-legalAspects,Londres,J. Churchill, 1883,
suaobra, de que mandaum exemplarcom dedicatóriaa Char-
-eot: RaílwayInjuries wíth SpecialReferenceto thoseof the Back and
roous Systemin their Medico-legaland Clinicai Aspects,Londres,
Griffin & Co., 1891.{b] Alemã, que consideraque essasseqüelas
constituemuma"neurosetraumática"específica.Cf.: [aJ H. Oppen-
heime R Thomsen,i/Über dasVorkommenund die Bedeutung.der
sensorischen Anãsthesiebei Erkrankungen des zentralenNerven-
systems",Archívfür Psychiatrie,Berlim, vol. 15, 1884,, pp. 559-83 e
663-80; (li] H~Oppenheim,Die traumatischenNeurosen..., Berlim,
Hirschwald, 1889.- Charcotconsagraà questãouma aula já em
1877, "De l'influence deslésionstraumatiquessur le développe-
ment des phénomenesd'hystérielocale" (aula dadano hospital
da Salpêtriere,dezembrode 1877),Progres médical,ano 6, n? 18, 4
de maio de 1878, pp. 335-8. Não admitindo a existênciade uma
entidadeclínica específicae questionandoa possibilidadede re-
produzirsob hipnoseparalisiassemelhantes às paralisiastraumá-
ticas, Charcotdefine uma variedadede histeria: "a histeriatrau-
mática". De 1878 a 1893,publica cercade vinte casosde paralisia
devidasa acidentesde trabalhoou ferroviários: [1) Leçcnssur les
maladiesdu ,systêmenerveux,op,, cit., t. m, aula XVIII, cit. (em que
critica a concepçãoalemã),p. 258; aul~ XXII, "Sur deuxcasde mo-
noplégie brachialehystériquechez l'homme", pp. 354-6; aula
XXIII, "Sur deux cas de coxalgi~ hystériquechez l'homme", pp.
370-85; aula XXIV (pp. 386-98,em que faz uma analogiaentreo
"neroousshock" dos ingles s e o estadohipnótico por sug stão) e
apêndiceI, pp. 458-62; [2] Leçonsdu mardi à la Salpêtriere,op. cit.,
t. II, policlínica da terça-feira4 de dezembrode 1888, aulaVII, pp.
131-9, apêndiceI, "Hystérie et névrosetraumatique. Collision de
trains et hystérieconsécutive",pp. 527-35; [3] Clinique des maladies
du systemenerveux(1889-1891),op. cit., t. I, aulaill, 13 de novembro
de 1889, pp. 61-4; [4] J.-M. Charcote P. Marie, "Hysteria,mainly
histero-epilepsy''- opondo-seà concepçãoalemãde uma "neuro-
se traumática"específica-,in D. HackTuke,A Dictionary ofPsycho-
logical Medicine,vol. I, Londres,J. & A. Churchill, 1892,pp. 639-40.
Cf. também:[a] Ch.Vibert, La Névrosetraumatique.Étudemédico-
légale sur les blessuresproduitesparles accidentsde cheminde fer et
les traumatismesanalogues,Paris,J.-B. Bailliere, 1893. [b] E. Fischer-
Homberger,"Railway-Spineund traumatischeNeurose.Seeleund
Rückenmark",Gesnerus,vol. 27, 1970,pp. 96-111;desdeentão,dis-
pomosda suaobra Die TraumatischeNeurose.Vom somatischenzum
sozialenLeiden,Berna,HansHuber, 1975.
47. Leçonssur les maladiesdu systemenerveux,op. cit., t. m, aula
XXIv, "Sur un casde coxalgiehystériquede causetraumatiquechez
l'homme", recolhida pelo dr. P. Marie. Para demonstrarque C.,
operáriode uma serraria,vítima de um acidentede trabalhoem
maio de 1883,sofre de uma coxalgiahistérica,semlesãoorgânica,
Charcotfaz estaserreproduzidapor duaspacientespostasem "es-
tado hipnótico" (ibid., pp. 391-2).
· 48. Sobrea simulação,cf. supra, nota 45. Referênciasa essa
literaturapodemser encontradasem: [a] A. Laurent,Étudemédi-
co-légalesur la simulationde la folie, op. cit. [b] E. Boisseau,verbete
"Maladiessimulées",in Dictionnaire encyclopédiquedes sciencesmé-
dicales, 2~ série,t. IV, Paris,Masson/Asselin,1876, pp. 266-81. [c]
G. Tourdes,verbete"Simulation", cit. [supra, p. 177, nota20]. Char-
cot abordaa questãováriasvezes: [1] Leçonsdu mardi à la Salpê-
triere, op. cit., t. I, policlínica da terça-feira20 de março de 1888,
"Ataraxie locomotrice.Forme anomale",Delahayeet Lecrosnier,
1892,pp. 281-4; [2] Leçonssur les maladiesdu systemenerveux,t. I,
aula IX, "De l'ischurie hystérique",§ "Simulation" (1873), 5~ ed.
Delahayet Lecrosnier,1884,pp. 281-3; t. III, "Leçon d'ouverture
de la chaire de la clinique dês maladiesdu systemenerveux", 23
de abril de 1882, § VII, "Simulation" (1887), Lecrosnier& Babé,
1890,_pp. 17-22, e aula XXVI, "Cas de mutisme hystériquechez
l'homme.Les simulatioI).s",p. 422.
1 o ri n ia d harcot: V La suggestionaans,·etat
hypnotiqu t dan l'état d v ílle, Paris,Doin~ 18~. Crí~ca que ele
p · a m Hypnotísm, Suggi tion, Psychologie,Paris,Dom, 1891,p.
172:" - p d imaginarquantonos xp~m,,o~a faz~r uma su-
t- in on ·ci nt no neuropatase nas histencas;cnamosne-
vralgi , zon hi terog"'nicas,[ ...]; e~teriori.zan:os,,~odoentesu~s
e nc pçõ ; t rjamos uma observaçaocom as 1de1aspreconcebi-
da qu t mo no pírito." Já num artigo publicadoem Le Temps
d 29 d janeiro d 1891, ele declarava:"Creio que o ataquede
grand hi teria que a Salpêtrierenos apresentacomoclássico,de-
nr !ando-seemfasesnítidase precisas[ ...] é umahisteriade cul-
tura." & cu ando-se,além disso,a confinar o hipnotismono regis-
tro patológico,afirma que "o que se chamahipnotismooutra coi-
a não é senãoa ativaçãode uma propriedadenormal do cérebro,
a ug tibilidade, isto é, a aptidãopara ser influenciado por uma
idéia aceitae a procurarsuarealização''.Sobreo debateCharcot-
Bemheim,cf. Hillman, "A Scientific Studyof Hystery'' (1817-1868),
Bulletin of the History of Medicine,vol. 29, n? 2, 1955, pp. 163-82.
50.A noçãode "traumatismo",entendidade início comouma
"ação mecânica"capazde desencadear acidenteshistéricos,,im-
pô -sea partir de 1877; cf. Leçonssur les maladiesdu systemeneroeux,
op. dt., t. I, apêndiceVII, "De l'influence des lésionstraumatiques
sur le développementdesphénomenes d'hystérielocale" (dezem-
bro de 1877),pp. 446-57.A partir de 1885, a noçãose aprofundae
pas a alevarem contaum mecanismode "sugestãotraumática";cf.
ibid., t. m, aulaXX, "Sur deuxcasde monoplégiebrachialehystéri--
que, de causetraumatiquechezl'homme", pp. 299-314;aula XXI,
"Sur deux cas...", continuaçãopp. 315-43; aula XXII, "Sur deux
cas...", fim, pp. 344•69 (com uma passagemconsagradaa "Hypno-
tisme et choc nerveux",pp. 354-6).
51. CasoLe Logeais,mensageirode 29 anos,atropeladoem
21 de outubrode 1885 por umacarroçapuxadaa cavalo.Depoisde
duashospitalizações, em Beaujone no Hôtel-Dieu,é internadono
e~çode Charcotem 21 de marçodé 1886;apresentando umapa-
ralisia e umaanestesiados membros:cf. ibid., t. m, apêndiceI, "Cas
de paraly ie hystéro-traumatique sUtVenueà la suite d'un accident
d voiture" (observaçãorecolhida por M. Berbez),pp. 441-59. O
acidentefez "nascerno espíritode Lelog a convicçãode que as ro-
dasda carroçaque o atropeloulhe 'passarampor cima do corpo',
como ele diz. Essaconvicçãoque o persegueaté nos sonhosé to-
talmenteerrônea,porém" (p. 555).
52. Ibid., pp. 553-4: "É no próprio fato do choquelocal e, em
particular,nos fenômenossensitivose motoresrelacionadosa ele
que cumpreprocuraro ponto de partidada sugestão ... A idéia de
impotênciamotorado membro[...], em razãodo estadomentalso-
nambúlico tão particularmentefavorável à eficácia das sugestões,
poderáadquirir, em conseqüência de umaespéciede incubação,um
desenvolvimentoconsiderávele se realizar enfim objetivamente
sob a forma de uma paralisiacompleta."
53. Concepçãoilustrada pelas palavrasde Esquirol, verbete
"Manie", in Dictionnaire des sciencesmédicales,t. XXX, Paris,C. L. F.
Panckoucke,1818, p. 454: "Os atos a que se entregamos aliena-
dos são sempreo resultadodo delírio." Ou de E. J. Georget,De la
folie. Considérationssur cettemaladie..., op. cit., p. 75: "Não há loucu-
ra semdelírio." Ou ainda de F. F. Fodéré,Traité de médecinelégale
et d'hygienepublique,vol. I, Paris,Mame, 1813,p. 184.
54. Sobreo relato de infância, ver o casoAugustine1 em Ico-
nographiephotographiquede la Salpêtriere,publicadapor D. M. Bour-
neville, Delahayee Regnard,t. II, Paris,Delahaye,1878,p. 167.
55.Trata-sede LouiseAugustine,internadano serviçode Char-
cot com 15 anose meio de idade;cf. Leçonssur les maladiesdu syste-
menerveux,op. cit., segundaparte,"Hystéro-épilepsie",observação
2, pp. 125-6.
56. Trata-seda cenadurantea qual ela interpelaum amigo,
Émile, diante do irmão parase desculpardas censurasdesteúlti-
mo; cf. ibid., p. 149.
57. Caso Celina, internadano serviço de Charcotem 1870:
ibid., t. I, observação5, 9 de fevereiro de 1877, Paris, Delahayeet
Lecrosnier,1877,p. 132.
58. Cf. supra, nota 26. E tambémJulesFalret, "Responsabilité
légale des aliénés",§ "Hystérie" (1876), in Les Aliénéset les Asiles
d'aliénés,op. cit., p. 189: "Essesdoentesapresentammuitas vezes
distúrbiosde carátermais ou menospronunciadosque lhesimpri-
mem um cunho particular e que {oram designadossob o termo
genéricode caráterdas histéricas.Elas sãofantasistas,disposta à
mentirae àinvenção;sãoromanescas, apreciadorasda dominação
e caprichosas."
pronunciou a fra ; cf. Leçonssur les maladiesdu systeme nerveux,
op. cít., t. I, aulaX, "D .Yhémianesth'si hyst'riqu " (recolhidap r
D. M. Boum vill , 1872),p. 301.
O. Trata- e de um jantar durant o qual Freudassistea uma
dis · ussão ntre Charcote Paul Brouardel,professorde medicina
legal. Charcotdeclaraa propósitode uma paciente:"'Mas, em ca-
o assim,é semprea coisa genital, sempre'... Sei que caí por um
in tante numa surpresaquaseparalisante,em que eu me dizia:
'Mas, seele sabe,por quenuncadiz?',., (Zur Geschíchteder psychoa-
nalytischenBewegung(1914), in GW, vol. X, 1946,p. 51).
61. Foi graçasa uma bolsaque Freudfez um estágiono servi-
ço de Charcot,de 30 de outubrode 1885 a 28 de fevereiro de 1886.
Cf. S. Freud,"Bericht über meine mit Universitats-J ubilaumsRei-
sestipendiumuntemomrneneStudienreisenachParisund Berlin"
(1886), in J. e R. Gicl<lhom, SigmundFreuds akademischeLaujbahn,
im Liohteder Dokumentevon []. & R. G.J, Viena, Urban & Schwarzen-
berg, 1960, pp. 82-9 ["Rapport sur mon voyageà Paris e à Berlin
grâceà la boursede voyagedu fonds jubilaire de l'Université (oc-
tobre 1885-mars1886)", traduçãoparcial para o francês de Anne
Bermanna Revuefrançaísede psychanalyse,vol. XX, 1956, n? 3, pp.
299-306].Os primeiros textos em que Freud considerauma etio-
logia sexualdas neurosesconcerniamà neurasteniae à neurose
de angústia:cf. La Naissancede la psychanalyse, op. cit., manuscri-
to A, fim de 1892, pp. 59-60; manuscritoB, 8 de fevereirode 1893,
pp. 61-5. Em 1894, ele estenderáessahipóteseàs psiconeuroses:
cf. Die Abwehr-Neuropsychosen, op. cit. [in GW, t. I] [""Les Psychoné-
vrosesde défense.Essaid'unethéorie psychologiquede l'hystérie
acquise,de nombreusesphobies et obsessionset de certaines
psychoseshallucinatoires",trad. fr. J. Laplanche,in Névrose,Psycho-
seet Peroersion,op. cit., pp. 1-14]. a. tambémo artigo que recapitula
o problema:"Die Sexualitatin de Àtiologie der Neurosen/J(1898),
in GW, t. I, pp. 489-516 ["La sexualitédansl' étiologie des névro-
ses",trad. fr.J.Altounian,A.e O. Bourguignon,G,. Goran,J.Laplan-
che,A. Rauzy,in Résultats,Idées,Problemes,t. l (1890-1920),op. cit.1
pp. 75-97].
62.Trata-sedo "períododo delírio erótico" de Genevieve,nas-
cida em Loudun, em 2 de janeirode 1843,internadacomo"epilép-
AULA DE 6 DE FEVEREIRODE 1974 437

tica simples" no serviço de Charcotem 1872; cf. Iconographie pho-


tographiquede la Salpêtriere,op. cit., "Périodedu délire érotique":
"O observador,aindanão acostumadocom essascenas,fica estu-
pefatoao ver as contorçõespavorosasdo seurosto, aquelaexpres-
sãode lubricidadeextrema[...] dirigindo-se a um dos presentes,ela
se inclina bruscamentepara ele, dizendo: 'Beije-me!. .. Dê-me..."'
(t. I, p. 70). Observaçãocit. por M. Foucaultem La Volontéde savoir,
t. I, Paris,Gallimard ("Bibliothequedeshistoires"), 1976,p. 75, n. 1.
63. Cf. supra, nota 4.
64. JosephFrançoisFélix Babinski (1857-1932),depoisde ter
sido chefede clínica no serviçode Charcot,de 1885 a 1887, distan-
cia-sedepois da morte destedas suasconcepções,propondoem
7 de novembrode 1901,numacomunicaçãoà Sociedadede Neu-
rologia de Paris,substituiro termo "histeria" pelo de "pitiatismo"
(de 1teí8ttv, persuadir),para designaruma classede fenômenos
mórbidosresultantesda sugestãoe capazesde seremcuradospor
esta, dissociandoassim a histeria do hipnotismo: "significando
as palavrasgregaspeithó [ntt0có] e iatós [ia'toç], respectivamente ,
'persuasão'e 'curável',o neologismo'pitiatismo'poderiadesignar
muito bemo estadopsíquicoque se manifestapor distúrbios curá-
veis pela persuasãoe substituiriavantajosamente a palavra'histe-
ria"' ("Définition de l'hystérie", Revueneurologique,1901,n? 9, p.
1090; republicadoem Oeuvresscientifiques,parteIX, "Hystérie-Pi-
thiatisme", Paris, Masson,1934, p. 464). Babinski desenvolvesua
concepçãoentre 1906 e 1909: [1] "Ma conceptionde l'hystérie et
de l'hypnotisme (Pithiatisme)" (Conferênciafeita na Société de
l'Intemat des hôpitaux de Paris, 28 de junho de 1906), ibid., pp.
465-85; [2] "Démembrementde l'hystérie traditionelle.Pithiatis-
me" (La Semainemédicale,6 de janeiro de 1909,pp. 66-7), em que
declara:"Não se vêemmais esses grandes ataquescom os quatro
célebresperíodos,essesgrandesestadoshipnóticos caracteriza-
dos pela letargia, a catalepsiae o sonambulismo.Os alunosou os
jovens médicos que lêem nas obras da épocaa descriçãodesses
distúrbiostêm a impressãode que se trata de paleopatologia"(re-
publicadoem Oeuvresscientifiques,p. 500).
RESUMO DO CURSO*

Por muito tempoe, em boaparte,aindaem nossosdias,


a medicina, apsiquiatria,a justiçapenal,a criminologiaper-
maneceramnos confins de uma manifestaçãoda verdade
nasnormasdo conhecimentoe de umaproduçãoda verda-
de na forma da prova,tendendoestasemprea seocultarsob
aquelae asefazerjustificar por ela.A atualcrisedessas dis- II

ciplinas" não põe em questãoapenasos limites e as incer-


tezasdelasno campodo conhecimento,põe em,questãoo
conhecimento,a forma do conhecimento,a norma sujei- II

to-objeto"; ela interrogaas relaçõesentreas estruturaseco-


nômicase políticas da nossasociedadee o conhecimento
(não em seusconteúdosverdadeirosou falsos,masem suas
funçõesde poder-saber).Crise, por conseguinte,histórico-
política.
Seja, para começar,o exemplo da medicina, com o
espaço,.quelhe é conexo,a saber,o hospital.Até bem tar-

* Publicadono Annuairedu Collegede France,74eannée,Histoires des


systemesde pensée,année1973-1974,1074, pp. 293-300.Republicadoem
Dits et Écrits, 1954-1968,editadopor D. Defert e F. Ewald, com a colabo-
raçãode J. Lagrange,Paris,Gallimard ("Bibliothequedesscienceshumai-
nes"), 1994,4 vol.i cf. t. II, pp. 674-85.
'-'* ........ .. ...... - - - - - - -, - .1

produzida. _ .
Uma açãodireta sobrea doença:nao apenas permi-
tir-lhe revelarsuaverdadeao médico, mas produzi- la. O
hospital, local de eclosãoda verdad~iradoença.De fato,
supunha-se que o doente deixado em estadolivre ---- em
seu" meio", em suafamília, em seucírculo pessoal,com seu
regime, seus hábitos,seuspreconceitos,suasilusões- só
podia ser afetadopor uma doençacomplexa,confusa,in-
trincada, uma espéciede doençacontraa naturezaque era
ao mesmo tempo uma mistura de várias doençase um
impedimentopara que a verdadeiradoençase produzis-
se na autenticidadeda sua natureza.O papel do hospital
era,portanto,afastandoessavegetaçãoparasita,essasfor-
mas aberrantes,não apenasdeixar ver a doençatal como
ela é, masproduzi-laenfim em suaverdadeaté entãoem-
paredadae entravada.Suanaturezaprópria, suascaracte-
rísticasessenciais,seudesenvolvimentoespecíficoiam fi-
nalmentepoder se tornar realidade,por efeito da hospi-
talização.
O hospital do séculoXVIII deveriacriar as condições
paraque a verdadedo mal eclodisse.Era portantoum lugar
de observaçãoe de demonstração, mastambémde purifica-
ção e de prova. Era uma espéciede aparelhagemcomplexa
que deviaao mesmotempofazerdespontare produzirreal-
mente a doença:lugar botânicopara a contemplaçãodas
espécies,lugar aindaalquímicoparaa elaboraçãodassubs-
tânciaspatológicas.
Essadupla função é que foi assumidapor muito tem-
po ainda pelasgrandesestruturashospitalaresinstauradas
no sé~uloXIX. E duranteum século(1760-1860),a práticae
a teortada hospitalizaçãoe, de modo geral, a conçepçãoda
doençaforam dominadaspor esseequívoco:o hospital, es-
trutura_de acolhimentoda doença,deveser um espaçod
conhecunentoou um lugar de prova?
Daí toda uma série de problemasque perpassaram o
pensamentoe a práticados médicos.Eis alguns:
1) A terapêuticaconsisteem suprimir o mal, em redu-
zi-lo à inexistência;mas,paraque essaterapêuticasejara-
cional, para que possase fundar em verdade,não deve ela
deixara doençasedesenvolver?Quandosedeveintervir e em
quesentido?Deve-semesmointervir? Deve-seagir paraque
a doençase desenvolvaou paraque se detenha?Paraate-
nuá-laou paraconduzi-laa termo?
2) Há doençase modificaçõesde doenças.Doençaspu-
ras e impuras,simplese complexas.Não há, afinal, uma só
doença,de que todasas outrasseriamformas mais ou me-
nosproximamentederivadas,ou devem-se admitir catego-
rias irredutíveis?(DiscussãoentreBroussaise seusadversá-
rios a propósitoda noçãode irritação. Problemadas febres
essenciais.)
3) O que é uma doençanormal?O que é uma doença
que segueseucurso?Uma doençaque leva à morte ou uma
doençaque saraespontaneamente, terminadasuaevolução?
Era assimqueBichat seinterrogavasobrea posiçãoda doen-
ça entre a vida e a morte.
É sabidaa prodigiosasimplificaçãoque a biologia pas-
teurianaintroduziuem todosessesproblemas.Determinan-
do o agentedo mal e fixando-o comoum organismosingular,
ela permitiu que o hospitalsetorneum lugar de observação ,
de diagnóstico,de identificaçãoclínica e experimental,mas
tambémde intervençãoimediata,de contra-ataquevoltado
contraa invasãomicrobiana.
Quantoà função de prova,vemosque podedesapare-
cer. O lugar em que se produziráa doençaseráo laboratório,
o tubo·de ensaio;mas,aí, a doençanão se efetuanumacri-
se; reduz-seseu processoa um mecanismo,que se pode
ampliar; reduz-sea doençaa um fenômenoverificável e con-
trolável. O meio hospitalarjá não tem de ser, paraa doença
um lugar favorável a um acontecimentodecisivo; ele pos i-
bilita simplesmenteuma redução,uma transferência,uma
..1

m'dico.
S se qui s fazer uma II tno-epistemologia"do
p rsonag m m 'dico, serianecesário dizer que a revolução
past uriana privou-o do seu papel sem dúvida milenar na
produçãoritual e na prova da doença. E o desaparecimen -
to dessepapelfoi semdúvidadramatizadopelo fato de que
Pasteurnão só mostrou que o médico não tinha de ser o
produtorda doença"em suaverdade",masque, por igno-
rânciadaverdade,ele setomara,milharesdevezes,seupro-
pagadore seureprodutor:o médicode hospital,ao ir de leito
em leito, era um dos agentesmaioresdo contágio.Pasteur
causavanos médicosuma formidável ferida narcísica,que
eles levarammuito tempo para lhe perdoar;aquelasmãos
do médico,que deviampercorrero corpo do doente,apal-
pá-lo, examiná-lo,aquelasmãos que deviam descobrira
doença,trazê-laà luz do dia, mostrá-la,foram designadas
por Pasteurcomo portadorasdo mal. O espaçohospitalare
o saberdo médicohaviamtido até entãoo papelde produ-
zir a venda"crítica" da doença;e eis que o corpodo médico,
o amontoamentohospitalarapareciamcomo produtores da
realidadeda doença.
Asseptizandoo médicoe o hospital,foi-lhes dadauma
novainocência,de ondeambostiraram novospoderese um
novo estatutona imaginaçãodos homens.Mas estaé outra
história.

*
Estaspoucasanotaçõespodem ajudar a compreen-
der a posiçãodo louco e do psiquiatrano interior do es-
paço asilar.
Há semdúvidaumacorrelaçãohistóricaentredoi fatos:
antesdo séculoXVIII, a loucuranão era sistematicamente
internadae •e ra essencialmente
consideradauma forma do
erro ou da ilusão. Ainda no início da idade clássica,a lou-
cura era percebidacomo pertencenteàs quimerasdo mun-
do; ela podia viver no meio delase só tinha de ser separa-
da dela quando adquiria formas extremasou perigosas.
Compreende - se nessascondiçõesque o lugar privilegiado
em que a loucurapodia e devia eclodir em suaverdadenão
podia sero espaçoartificial do hospital.Os locais terapêu-
ticos que eramreconhecidoseram,em primeiro lugar, a na-
tureza,pois ela era a forma visível da verdade;ela tinha em
si o poder de dissiparo erro, de fazer as quimerasse dis-
sipar.As prescriçõesdadaspelos médicoseramportantoa
viagem,o descanso,o passeio,o retiro, o corte com o mun-
do artificial e fútil da cidade.Esquirol aindaselembrarádis-
so quando,ao projetarum hospitalpsiquiátrico,recomen-
dará que cada pátio interno se abra amplamentepara a
vista de um jardim. O outro local terapêuticopostoem uso
era o teatro,naturezainvertida: representava-se, encenava-
se parao doentea comédiada suapróprialoucura,dava-se
a ele por um instanteuma realidadefictícia, fazia-se,com
os cenáriose os figurinos, como se essarealidadefossever-
dadeira,masde tal modoque,pegonessacilada,o erro aca-
bassedespontandoaos olhos daqueleque era suavítima.
Essatécnica tambémn~o havia totalmentedesaparecido
no séculoXIX. Esquirol,por exemplo,recomendavaproces-
sar os melancólicosparaestimularsuaenergiae seu gosto
de lutar.
A práticado internamentono início do séculoXIX coin-
cide com o momentoem que a loucuraé percebidamenos
em relaçãoao erro do que em relaçãoà condutaregular e
normal; em que ela já não aparececomo juízo perturba-
dó, mascomodistúrbio na maneirade agir, de querer,de ex-
perimentarpaixões,de tomar decisõese serlivre; em suma,
quandonão seinscrevemaisno eixo verdade-erro-consciên-
cia, massim no eixo paixão-vontade-liberdade; momentode
Hoffbauer e de Esquirol. ''Há alienadoscujo delírio mal é
vis~vel; não há nenhum-cujaspaixões,cujasafeiçõesmorais
mmwçaoao a nnu ~u w1t ,u · · ;çJ.,v u ,-g;_g. _..., -
'-,Q;.1:11,C

ali nado voltam as sua prim iras afeiçõ s."* Qual é, com
feito, o proceso da cura?O movimentopelo qual o erro se
dissipae averdadeapar, e de novo?Não, e sim ''a volta das
aÍ) içõ moraisa seusjustoslimites, o desejode reveros ami-
gos,os filhos, aslágrimasdasensibilidade,a necessidade de
abrir o coração,de se encontrarno seio da família, de reto-
mar eushábitos''**.
Qual poderáentãosero papeldo asilo nessemovimen-
to de retomo das condutasregulares?Claro, ele terá antes
d mais nadaa função que se atribuía aoshospitaisno fim
do séculoXVIIl: possibilitardescobrira verdadeda doença
mental,afastartudo o que pode,no ambientedo enfermo,
mascará-la,misturá-la,dar-lhe formas aberrantese, tam-
bém,mantê-lae revigorá-la.Porém,mais que um lugar de
desvendamento, o hospital,cujo modeloEsquirol ideou, é
um lugar de enfrentamento;a loucura,vontadeperturbada,
paixão pervertida,deve encontrarnele uma vontadereta
e paixõesortodoxas.O face a face dasduas,seuchoqueine-
vitável e, na verdade,desejávelproduzirãodois efeitos: a
vontade doente,que podia perfeitamentepermanecerina-
preensívelpois nãose exprimiaem nenhumdelírio, traráseu
mal à luz do dia pela resistênciaque oporá à vontadereta
do médico; por outro lado, a luta que se estabelecea partir
daí deverá,se bem travada,levar à vitória da vontadereta,
à submissão,à renúnciada vontadeperturbada.Portanto,
um processode oposição,de luta e de dominação."É neces-
sário aplicar um método perturbador,quebraro espasmo
com o espasmo ... É necessáriosubjugaro caráterinteiro de

• J. E. D. Esquirol,"De la folie" (1816),in Desmaladiesmentalescon-


sidéréessous les rapports médical, hygié~iqueet médico-légal,Paris, J.-B.
Bailliere, 1838,t.1, p. 16 (reed.Paris,Éd. Frénésie,col. "Les introuvabl
de la psychiatrie",1989).
•• lbid.
certosdoentes,vencersuaspretensões,domarseusarrou-
bos, quebrarseu orgulho, ao passoque é necessárioesti-
mular, incentivaros outros."*
Assim se estabelecea curiosafunção do hospital psi-
quiátrico do séculoXIX, lugar de diagnósticoe de classifica-
ção,retângulobotânicoem que as espéciesde doençassão
repartidasem dois pátioscuja disposiçãolembraumavasta
horta; mastambémespaçofechadoparaum enfrentamen-
to, liça de uma justa, campoinstitucional onde o que está
em causaé vitória e submissão.O grandemédicode asilo -
sejaele Leuret, Charcotou Kraepelin- é ao mesmotempo
aqueleque pode dizer a verdadeda doençapelo saberque
tem dela e aqueleque podeproduzir a doençaem suaver-
dadee submetê-lana realidadepelo poderque suavontade
exercesobreo próprio doente.Todasas técnicasou proce-
dimentospostosem prática nos asilos do séculoXIX - o
isolamento,o interrogatórioprivado ou público, os trata-
mentos-puniçõescomo a ducha,as conversasmorais (in-
centivosou repreensões), a disciplina rigorosa, o trabalho
obrigatório,as recompensas, as relaçõespreferenciaisentre
o médicoe algunsdos seusdoentes,as relaçõesde vassala-
gem,de posse,de domesticidade,àsvezesde servidãoentre
o doentee o médico-, tudo isso tinha comofunçãofazer do
personagemmédico o "mestre/senhorda loucura": aquele
que a faz aparecerem suaverdade(quandoela se esconde,
quandoela permanece oculta e silenciosa)e aqueleque a
domina,aplacae afaz desaparecer, depoisde tê-la douta-
mentedeflagrado.
Digamos,pois, de maneiraesquemática:no hospitalpas-
teuriano,a função"produzir a verdade"da doençanão ces-
sou de se diluir; o médicoprodutorde verdadedesaparece
numaestruturade conhecimento.Ao contrário,no hospital
de Esquirol ou de Charcot,a função "produçãode verdade"
se hipertrofia, se exaltaem torno do personagemdo médico.

* J. E. D. Esquirol,op. cit., § V, '~raitementde la folie", pp. 132-3.


- - - --
t o pe nag m mai altam nt imbólico dessetipo defun-
cionam nto.
Ora,essa xaltaçãos produznumaépocaem queo po-
der médicoencontrasuasgarantaise suasjustificaçõesnos
privil "gios do conhecimento:o médicoé C_?mpetente,o ~é-
dico conheceasdoençase os doentes,detemum saberaen-
tífico que é do mesmotipo que o do químico ou do biólogo,
e é is o que o autorizaagoraa intervir e a decidir. O poder
queo asilo dá ao psiquiatradeveráportantose justificar (e se
mascararao mesmo tempo como superpoderprimordial)
produzindofenômenosintegráveisà ciênciamédica.Com-
preende-se por que a técnicada hipnosee da sugestão,o
problemada simulação,o diagnósticodiferencialentredoen-
ça orgânicae doençapsicológicaestiverampor tão longos
anos(de 1860a 1890pelo menos)no centroda práticae da
teoriapsiquiátricas.O ponto de perfeição,de por demaismi-
lagrosaperfeição,foi alcançadoquandoos doentesdo ser-
viço de Charcotpuseram-sea reproduzir,solicitadospelo
poder- sabermédico,uma sintomatologianormalizadacom
basena epilepsia,isto é, capazde ser decifrada,conhecidae
reconhecidanos termosde uma doençaorgânica.
Episódiodecisivoem que se redistribueme vêm se su-
perporexatamenteas duasfunçõesdo asilo (provae produ-
çãodaverdade,de um lado; constataçãoe conhecimentodos
fenômenos,do outro). O poderdo médicolhe permitepro-
duzir a partir de entãoa realidadede uma doençamental
cuja característicaé reproduzirfenômenosinteiramenteaces-
síveisao conhecimento.A histéricaeraa doenteperfeita,pois
davaa conhecer:ela prqpriaretranscreviaos efeitosdo podet
médicoem formas que o médicopodia descreverde acordo
com um discursocientificamenteàceitável.Quantoà relação
de poderque tornavapossíveltoda essaoperação,como te-
ria podidoserdetectadaem seupapeldeterminante,se-vir-
~desupremada histeria,docilidadesempar, verdadeirasan-
tidade epistemológica- as própriasdoentesa assumiam e
aceitavam aresponsabilidade por ela?Essarelaçãoaparecia
na sintomatologiacomo sugestionabilidade mórbida.Tudo
se desenvolviaagorana limpidez do conhecimentopurifica-
do de todo poder,entreo sujeito cognoscentee o objetoco-
nhecido.

Hipótese:a crise foi aberta,e aera,aindaapenasesbo-


çada,da antipsiquiatriacomeçaquandosetem a desconfian-
ça e logo a certezade que Charcotproduziaefetivamentea
crise de histeriaque descrevia.Tem-seaí, de certo modo, o
equivalenteda descobertafeita por Pasteur,de que omédi-
co transmitiaas doençasque devia combater.
Parece-meem todo casoque todasas grandescomo-
çõesque abalarama psiquiatriadesde ofim do séculoXIX
puseramessencialmente em questãoo poderdo médico.Seu
poder e o efeito que ele produziano doente,mais até que
seu sabere averdadedo que ele dizia sobrea doença.Di-
gamosmais exatamenteque,de Bernheima Laing ou a Ba-
saglia,o que esteveem questãofoi a maneiracomo o poder
do médico estava implicado na verdadedo que ele dizia e,
inversamente,a maneiracomo estapodiaserforjada e com-
prometidapor seupoder.DisseCooper:"A violênciaestáno
cerne do nosso problema."* E Basaglia: "A característica
dessasinstituições(escola,fábrica,hospital)é umanítida se-
paraçãoentreos quedetêmo podere os quenãoo detêm."**

* D. Cooper, Psychiatry and Antipsychiatry,Londres, Tavistosk


Publications,1967[Psychiatrieet antipsychiatrie,trad. fr. M. Braudeau,Pa-
ris, Le Seuil (col. "Le Champ freudien"), 1970, cap. I, "Violence et
psychiatrie",p. 33].
** F. Basaglia,org., "L'Istituzione negata.Rapportoda un ospedale
psichiatrico",NuovoPolitecnico,Turim, vol. 19, 1968[F. Basaglia,"Les ins-
titutions de la violence", in id., org., L'Institution en négation.Rapportsur
l'hôpital psychiatriquede Gorizia, trad. fr. L. Bonalumi, Paris,Le Seuil
(col. "Combats"),1970].
t~~o d s ar laçãod p der: sãôtentativasde d locá-lo,
mascará-lo, li.tniná-lo, anulá-lo. O conjunto da psiquia-
tria modernaé atravessado no fundo pelaantipsiquia:tria,se
entendermospor issotudo o quequestionao papeldo psi-
quiatraoutroraencarregadode produzira verdadeda doen-
ça no espaçohospitalar.
Poder-se-iafalar portantode antipsiquiatriasque atra-
vessarama históriada psiquiatriamoderna.Mas talveztam-
bémsejamelhordistinguir com cuidadodois processosque
sãoperfeitamentedistintosdo pontode vista histórico,epis-
temológicoe político.
Houveinicialmenteo movimentode "despsiquiatriza-
ção". É ele que aparecelogo depois de Charcot.E não se
tratatantode anularo poderdo médicoquantode deslocá-lo
em nomede um sabermaisexato,de lhe dar outropontode
aplicaçãoe novasmedidas.Despsiquiatrizara medicinamen-
tal pararestabelecerem suajustaeficáciaum podermédico
que a imprudência(ou a ignorância)de Charcothavialeva-
do a produzir abusivamentedoenças,logo falsasdoenças.
1) Uma primeira forma de despsiquiatrização começa
com Babinski, em quem ela encontraseu herói crítico. Em
vez de procurarproduzir teatralmentea verdadeda doen-
ça, mais vale procurarreduzi-la à sua estrita realidade,que
muitasvezesnadamais é que a aptidãoa se deixar teatra-
lizar: pitiatismo. Doravante,não somentea relaçãode do-
minaçãodo médico sobreo enfermonão perderánadado
seurigor, masseu rigor se centrarána reduçãoda doença
a seumínimo: os sinaisnecessários e suficientesparaque ela
possaser diagnosticadacomo doençamental,e as técnicas
indispensáveisparaque essasmanifestaçõesdesapareçam .
. ,, T7ata-sede certo modo de pasteurizaro hospital psi-
q~uatrtco,de obterparao asilo o mesmoefeito de simplifica-
çaoque Pasteurhaviaimpostoaoshospitais;articulardireta~
menteum no outro diagnósticoe terapêutica,conhecimento
da naturezada doençae supressãodassuasmanifestaçõ_s.
O momentoda prova,aqueleem que a doençase manifes-
ta em suaverdadee chegaà suaconsumação , essemomen-
to nem tem mais de figurar no processomédico. O hospital
podese tomarum lugar silenciosoem que a forma do po-
der médicose mantémno que ele tem de mais estrito, mas
semque tenhade encontrarou de enfrentara própria lou-
cura. Chamemosessaforma 1' asséptica"e "assintomática"
de despsiquiatrização de II psiquiatriade produçãozero"; a
psicocirurgiae apsiquiatriafarmacológicasãoduasdassuas
formas mais notáveis.
2) Outra forma de despsiquiatrização, exatamentein-
versaà precedente. Trata-sede tomar a mais intensapossí-
vel a produçãoda loucuraem suaverdade,masfazendode
modo que as relaçõesde poderentre médico e doentese-
jam exatamenteinvestidasnessaprodução,quepermaneçam
adequadas a ela, que nãose deixemdesbordarpor ela e pos-
samconservarseucontrole.A primeira condiçãoparaessa
manutençãodo podermédico"despsiquiatrizado"é pôr fora
de circuito todos os efeitosprópriosdo espaçoasilar. É ne-
cessário evitarantesde mais nadaa ciladaem que haviacaí-
do a taumaturgiade Charcot;impedir que a obediênciahos-
pitalar desdenhea autoridademédicae que nesselocal das
cumplicidadese dos obscurossaberescoletivos,a ciênciaso-
beranado médicoseveja envolvidaem mecanismosque ela
teria involuntariamenteproduzido.Logo regrado face a face;
logo regrado livre contratoentreo médicoe o doente;logo
regrada limitação de todosos efeitosda relaçãono nível do
discurso("Só lhe peçouma coisa: dizer, mas dizer mesmo,
tudo o que passapela suacabeça");logo da liberdadedis-
cursiva ("Você não poderámais se gabarde que tapeiaseu
médico,porquenão vai mais responderàs perguntasque
faço; vocêvai dizero quelhe vem à mente,semquenemse-
quer tenhade me perguntaro que eu achoe, se quiserme
enganarinfringindo essaregra,não sereimaisrealmenteen-
ganado;você é quevai cair por contaprópriana cilada,pois
teráperturbadoa produçãoda verdadee acrescentado algu-
massessõesao total quevocê me deve"); logo regrado sofá
poder do m "dico - poderque não pode ser pegoem ne--
nhumefeito de contragolpe,já que ele estáinteiramentere-
tirado no silêncio e na invisibilidade.
A psicanálisepode ser historicamentedecifradacomo
a outra grandeforma da despsiquiatrização provocadapelo
traumatismoCharcot:retiradaparafora do espaçoasilar de
modo quesuprimaos efeitosparadoxaisdo sobrepoderpsi-
quiátrico; masreconstituiçãodo podermédico,produtorde
verdade,num espaçoorganizadopara que essaprodução
sejasempreadequadaa essepoder.A noçãode transferên-
cia, como processoessencialà terapia,é uma maneirade
pensarconceitualmenteessaadequaçãona forma do conhe-
cimento;o pagamentoem dinheiro,contrapartidamonetária
da transferência,é umamaneirade garanti-lana realidade:
uma maneirade impedir que a produçãoda verdadesetor-
ne um contrapoderque peguenumacilada, anule,derrube
o poderdo médico. ,
A essasduasgrandesformasde despsiquiatrização, am-
basconservadoras do poder,uma porqueanulaa produção
de verdade,a outra porquetentatomar adequadosprodu-
ção de verdadee podermédico,opõe-sea antipsiquiatriar
Em vez de uma retiradaparafora do espaçoasilar, tra-
ta-se da sua destruiçãosistemáticapor um trabalhointer-
no; e trata-sede transferirparao próprio doenteo poderde
produzir sualoucurae averdadeda sualoucura,em vez de
procurarreduzi-lo a zero.A partir daí, pode-secompreen-
der, creio eu, o que estáem jogo na antipsiquiatriae quenão
é, em absoluto,o valor de verdadeda psiquiatriaem termos
de conhecimento(de exatidãodiagnósticaou de eficáciate-
rapêutica). ..
No âmagoda antipsiquiatria,a luta com, na e contraa
instituição.Quandoforam instauradasno início do século
XIX as grandesestruturasasilares,justificavam-nascom uma
maravfil:osaharmoniaentreas exigênciasda ordemsocial--
que pediaparaserprotegidàcontra a desordemdos lou os
- e as necessidades da terapêutica- que pediam o isola-
mento dos enfermos.Justificandoo isolamentodos loucos,
Esquirol dava cinco razõesprincipais: (1) garantir a segu-
rançapessoaldelese da família; (2) libertá-los dasinfluên-
cias externas;(3) vencer as resistênciaspessoaisdeles; (4)
submetê-losa um regimemédico; (5) impor-lhesnovoshá-
bitos intelectuaise morais.Como sevê, tudo é uma questão
de poder;dominaro poderdo louco, neutralizaros poderes
exterioresque podemse exercersobreele; estabelecersobre
ele um poderde terapêuticae de adestramento - de "orto-
pedia".Ora, é àinstituição,comolugar, forma de distribuição
e mecanismodessasrelaçõesde poder,que a antipsiquia-
triase opõe.Com as justificaçõesde um internamentoque
permitiria, num lugar purificado,constataro que é eintervir
onde, quandoe como for necessário,ela faz surgir as rela-
çõesde dominaçãoprópriasda relaçãoinstitucional:"O puro
poder do médico", diz Basaglia,constatandono séculoXX
os efeitosdas prescrições de Esquirol, "aumentatão verti-
ginosamentequantodiminui o poderdo doente;este, pelo
simplesfato de estarinternado,setomaum cidadãosemdi-
reitos,entregueao arbítrio do médicoe dos enfermeiros,que
podemfazer dele o. que quiseremsempossibilidadede ape-
lação."* Parece-meque seria possívelsituar as diferentes
formas de antipsiquiatriade acordocom suaestratégiaem
relaçãoa estesjogos do poderinstitucional: escapardelas
na forma de um contratodual e livremente consentido por
ambasas partes(Szasz);construçãode um espaçoprivile-
giado em que elasdevemsersuspensas ou expulsas,sevie-
rem a se reconstituir (Kingsley Hall); identificá-las uma a
uma e destruí- las progressivamente no interior de umains-
tituição de tipo clássico(Cooper,no pavilhão21); conectá-las
às outrasrelaçõesde poderque já puderamdeterminar,no
exterior do asilo, a segregaçãode um indivíduo como doente
mental (Gorizia). As relaçõesde poderconstituíamo a priori

* F. Basaglia, op. cit., p . 111. ,


os indivíduos,regiamasformasde intetvençãomédica.A in-
versãoprópria da antipsiq uiatria consisteem colocá-las, ao
contrário,no centrodo campoproblemáticoe a questioná-las
de maneiraprimordial. .
Ora, o que estavaimplicado em primeiro lugar nessas
relaçõesde poderera o direito absolutoda não-loucuraso-
bre a loucura.Direito transcritoem termosde competência
exercendo-se sobreumaignorância,debom senso(de aces-
so a realidade)corrigindoerros(ilusões,alucinações,fantas-
mas),da normalidadeimpondo-seà desordeme ao desvio.
É essetríplice poderqueconstituíaa loucuracomoobjetode
conhecimentopossívelparaumaciênciamédica,quea cons-
tituía como doença,no mesmomomentoem que o ',#sujei-
to", vítima dessadoença,se via desqualificadocomo louco
- isto é, despojadode todo podere de todo saberquantoà
suadoença:"Nós sabemossobreo seusofrimentoe asua
singularidade a quantidadesuficientede coisas(de quevocê
nemdesconfia)parareconhecerqueé umadoença;masco-
nhecemosessadoençao suficienteparasaberquevocênão
podeexercersobreela e em relaçãoa ela nenhumdireito.
Nossaciêncianos permitechamarsualoucurade doençae,
por conseguinte,estamos,nós, médicos,qualificadospara
intervir e diagnosticarem você umaloucuraque te impede
de ser um doentecomo os outros: você seráportantoum
doentemental." Essejogo de uma relaçãode poderque dá
lugar a um conhecimento,o qual funda por suavez os,direi-
tos dessepoder,caracterizaa psiquiatriaII clássicaf'.E esse
círculo que a antipsiquiatriaprocuraromper:dandoao indi-
víduo a tarefae o direito de levara cabosualoucura,levá--la
até o fim, numa experiênciapara a qual os outros podem
contribuir, masnuncaem nomede um poderquelhes se-
ria conferidopor suarazãoou por suanormalidade;desta-
candoas condutas,os sofrimentos,os desejosdo estatuto
médi~oq~e l?eshavia sido conferido,emancipando-os d
um diagnosticoe de uma sintomatologiaqu não tinham
.&.-.- _ _ _ ..... ._T_ .......-.-. .. - - -i, - - - · - . - - - ---- -.-..-. -.r.-.-- .&.-._....~ ...... ..._ t''-'L.L"-..1.A. '-"'-'

séculoXVII e encerradano séculoXX.


A desmedicalização da loucuraé correlativaa esseques-
tionamentoprimordial do poderna práticaantipsiquiátrica.
Por aí se medea oposiçãodestaà II despsiquiatrização", que
parececaracterizartantoa psicanálisecomo a psicofarmaco-
logia: ambasdependemmuito mais de uma sobremedicali-
zaçãoda loucura.E, com isso,acha-seabertoo problemada
eventualemancipaçãoda loucuraem relaçãoa essaforma
singularde poder-saberque é o conhecimento.Serápossível
que a produçãoda verdadeda loucurapossase efetuarem
formasque não sãoas da relaçãode conhecimento?Proble-
ma fictício, dirão, questãoque só tem seulugar na utopia.
De fato, ela se colocaconcretamente todosos dias a propó-
sito do papeldo médico- do sujeito estatutáriode conhe-
cimento- na empresade despsiquiatrização.

O semináriofoi consagradoem alternânciaa dois te-


mas:a históriada instituiçãoe da arquiteturahospitalaresno
séculoXVIII; e o estudoda períciamédico-legal em matéria
psiquiátricaa partir de 1820.
STIUAÇÃO DO CURSO
JacquesLagrange

Dado entre 7 de novembrode 1973 e 6 de fevereiro de


1974, o curso consagradoao "Poderpsiquiátrico" tem uma
relaçãoparadoxalcom trabalhosanteriores.É uma relação
de continuidadena medidaem que,como apontao próprio
Michel Foucault,inscreve-seno "ponto de chegadaou, em
todo caso,de interrupçãodo trabalhoque eu haviafeito an-
tes na História da loucura" (aulade 7 de novembrode 1973).
De fato, essaobradeixavaumaaberturaparapesquisasvin-
douras,queteriamrestituídoII o fundo constitutivo,mashis-
toricamentemóvel, que tornou possívelo desenvolvimento
dos conceitosdesdeEsquirol e BroussaisatéJanete Freud"1•
O que confirmaráuma entrevista(inédita) a Colin Gordon
e PaulPatton,de 3 de abril de 1978: "Quandoescrevia His-
tória da loucura, em meu espírito devia ser o primeiro capí-
tulo ou o início de um estudoque levaria até o presente."
Mas tambémé uma relaçãode descontinuidade, como
atestamdeclaraçõespreocupadas com assinalaros desloca-
mentose, em seusprópriostermos,com "percebero quefoi

1. Histoire de la folie à l'âge classique,2~ ed., Paris, Gallimard ("Bi-


bliotheque des histoires"), 1972, p. 541.
o obj to de interess da primeirasobras3,e o prefácio da
primeiraediçãoda História da loucura apresentava
estacorno
uma#história,nãoda psiquiatria,masda próprialoucura,em
suavivacidade,antesde qualquercapturapelo saber"4 • As-
sim, o cursoretomaa análiseno ponto de chegadada His-
tória da loucura, deslocaseuobjeto, mudao terrenoem que
se desenvolvee as ferramentasconceituaisque utiliza. Don-
de a questão:o quetomoupossíveise necessários essesdes-
locamentos?Isso implica compreendera produçãodesse
curso,não apenasna dinâmicaconceituai'que levou a atri-
buir um lugar significantee estratégicoao poder e a seus
dispositivos,mas tambémno campodos problemasque a
psiquiatriatinha de encararnos anos1970e que trouxeram
parao primeiro plano a questãodo seupoder.

1. Objeto do curso

A primeira aula previa tomar como ponto de partidaa


situaçãopresenteda psiquiatriaà luz dascontribuiçõesque
a antipsiquiatriatinha dadoao recentramentodasquestões
em tomo das"relaçõesde poder[que] condicionavamo fun-
cionamentoda instituição asilar [ ...], regiam as formas de
intervençãomédica"5 e empreender,a partir do presente,

2. Dits et écrits, 1954-1988,ed. por D. Defert e E. Ewald, colab. J.


Lagrange,Paris,Gallimard, 1994,4 vai. [doravanteDE, em referênciaa
essaedição]; cf. t. IV, n? 338, ''Usagedes plaisirs et techniquesde soi"
(novembrode 1983), p. 545.
3. [1] Maladie mentaleet Personnalité,Paris, PUF (col. "Initiation
philosop~que"),1954; [2] Maladie mentaleet Psychologie,versãomodifi--
cada,Pans,.PUF (col. "lnitiation philosophique' 1
) , 1962.

4. Folie et Déraison. Histoire de la folie à l' âge classique,Paris, Plon,


1961,pref., p. VIl; DE, I, n? 4, p. 164.
5. DE, II, n? 143, p. 685; d. supra, p. 451.
análisesretrospectivasda formaçãohistóricadessedisposi-
tivo de poder.O que confereespecificidadea essamaneira
de escrevera históriada psiquiatria6 • Ao contráriodasabor-
dagenspreocupadas em reconstruira evoluçãodos conceitos
e dasdoutrinas,ou a analisaro funcionamentodasinstitui-
çõesem que a psiquiatriatem efeito, essamaneirade fazer
a história do dispositivopsiquiátricopretenderevelarsuas
linhas de força ou de fragilidade,os possíveispontosde re-
sistênciaou de ataque.Assim, não se tratamais,como nos
primeirosescritos,de condenarurnapsiquiatriaacusadade
mascararsobsuasabstrações nosológicase seumodode pen-
sarcausalistaasverdadeirascondiçõesda patologiamentaF.
Não setratatampouco,comonaHistória da loucura, de com-
preenderpor que, na história das nossasrelaçõescom os
loucos,em certo momentoestesforam internadosem certas
instituiçõesespecíficasque deveriamcurá-los.Trata-sedo-
ravantede fazer a história servirao desnudamento dasre-
laçõesde continuidadeque vinculam nossosdispositivos
presentesa antigasbasesligadasa determinadosistemade
poder,com o fim de identificar objetivosde luta: "No domí-
nio da psiquiatria",declaravaMichel Foucaultem maio de
1973, "parece-meinteressantesabercomo se instauraram
o saberpsiquiátrico,a instituiçãopsiquiátrica,no início do
século XIX, [ ...] se quisermoslutar agora contra todas as
instâncias denormalização."ªDondea novidadeda proble-

6. Especificidadeem relação a estudossobre a história da psiquia-


tria anteriores ou posteriores ao curso. Cf. notadamente E. H . Acker-
necht, A Short History of Psychiatry,Nova York, Hafner, 1968.
7. Assim, a introdução a L. Biswanger, Le Rêveet l'Existence (trad. fr.
J. Verdeaux), denuncia a propensãodos psiquiatras a "considerar a doen-
ça como um 'processoobjetivo', e o doentecomo uma coisa inerte e.!11 que
sedesenrolao processo" (Paris, Descléede Brouwer, col. ''Textes et Etudes
anthropo-logiques", 1954, p. 104). Cf. também DE, I, p. 109.
8. DE, II, n? 139, "La vérité et les formes juridiques" (junho de
1974), p. 644. Cf. também a entrevista realizada na Radio-France em 8
de outubro de 1976 sobre "Punir ou curar": "Creio que essaanálise his-
omora Ud!; 1 l.Gl'1-U .:, u~ .LVJ. u '1"4""'
V L-.a. ~ "" ..,V..., ª"'
........ "'4.i.&I

formasda autoridadee da dominação, ele nãochegavaao


ponto de empreenderumaanálisedo p~der,ext_raordinaria -
m nte meticulosoe inteligentementehierarquizado,cons--
titutivo do asilo. No que concerneao poder, M. Foucault
reconhecea posteriori: "Tenho plena consciênciade não
ter praticamenteempregadoa palavra e de nãoter tido esse
campode análisesà minha disposição." 10
O que trouxe ao primeiro plano o problema do poder
psiquiátricodeve-sesem dúvida à conjunção de dois ele-
mentos:um, próprio da dinâmica conceitua! das pesquisas
de Foucault; o outro,pertencenteà conjuntura dos anos1970.
É o deslocamentoefetuadopor Foucault que o leva a
trocaras referênciasà "violência" institucionale aosmodos
de II dominação" pelo que ele chama,no cursodo Collegede
Francede 1971-1972, de / ' Teorias e instituiçõespenais'',de
"formas fundamentais do 'poder-saber' " 11 • Recentramento
ligado semdúvida ao interessepelasperíciasmédico-legais
- objeto do seuseminário-, que o confronta vamà necessi-
dadede pensarcomo e por que um discurso com pretensão
científica,mastambém duvidoso, levavaconsigotais efeitos
de poderem matériade práticapenal. Interessemantidopor
casosque haviamtido granderepercussão:os casosde De-
nise Labbée de JacquesAlgarron, em 1955, ou de Georges

tórica é politicamenteimportantena medida em que é precisosituar


exatamenteaquilo contrao que se combate."
9. "Se a personagemmédicapodedemarcara loucura,não é que
ela a conheça,é queela a domina;e aquilo que,parao positivismo, fará
º. papelde objetividadenadamaisé que a outravertente,a conseqüên-
cia dessadominação"(Histoire de -la folie, op. cit., ed. de 1972,p. 606).
10, DE, IIl, n? 192: entrevistaa A. Fontan e P. Pasquino(junho de
1976), p. 146.
11. DE, II, n? 115, "Théorieset institution pénales"(1972), p. 390.
Rapin, em 1960, mencionad<;sem 8 de janeiro de 1975 no
seu curso "Os anormais"12. E tambéma atençãodada aos
problemasda prisãoque o convencede que é "em termosde
tecnologia,em termosde tática e de estratégia"que se deve
abordaro problemado poder13. Mas foi preciso,ao mesmo
tempo,que a conjunturafizesseque a questãoda psiquiatria
nãose colocassemaisem termosde justificaçãoteórica,como
ocorrianosanos1950, quando,recordaM. Foucault,"um dos
grandesproblemasque se colocavamera odo estatutopo-
lítico da ciênciae dasfunçõesideológicasque ela podiavei-
cular"14, mas faça aparecer,de repente,essebaluarteele-
mentar: o poder. Quem tem o poder? Sobre quem ele se
exerce?A propósitode que ele se exerce?Como funciona?
Paraque serve?Qual seulugar entre os outrospoderes? 15
Claro, a primeira respostaà crise da psiquiatriano pós-
guerrafoi pelo menostão política quantomédica.Assim, do
movimento"desalienista" iniciado pelo psiquiatracomunis-
ta Lucien Bonnafé,que se davacomo objetivo "desencerrar
o olhar sobreesseconjuntoalienado/alienante constituído,
com o socorroda ciênciada 'alienação',[...] numaordemcon-
forme os princípiose usosde uma ordemsocial excludente
do que a incomoda"16.
Mas nessasdenúnciasde um alienismo acusadode
cumplicidadecom procedimentosde discriminaçãoe de con-
dutasde exclusão,não se conseguiaformular a questãodo
"poder" psiquiátricocomo tal. Várias razõesparaisso.

12. Les Anormaux.Cours au College de France, 1974-1975,ed. sob a


dir. de F. Ewald e A. Fontanapor V. Marchettie A . Salomoni,Paris,Gal-
limard/Seuil(col. "HautesÉtudes"),1999,pp. 35, 16-20, 143-4.
13. DE, III, n? 197, "Les rapportsde pouvoir passentà l'intérieur
descorps" (janeiro de 1977), p. 229.
\.__ 14. DE, III, n? 192 (cit.), p. 140.
15. Cf. supra, "Resumodo curso".
16. L. Bonnafé,"Sourcesdu désaliénisme",in Désaliéner?Folie(s) et
Société(s),Toulouse,PressesUniversitairesdu Mirail/Privat. 1991.n. 221.
da p iquiatria"17• Depoís,comofrisa ~· FoucaUlt,porqu! :· os
psiquiatrasqu , na França,por motivos de opçaopohtica1
t riam estado rn condiçõesde questionaro aparelhopsi-
quiátrico [ ...] viam-se imobilizadospor umasituaçãopolíti-
a em que, no fundo, não se deseja~ade maneiranenhu~a
que essaquestãofossecolocada,por causado queacontecia
na União Soviética"18• Enfim, a crítica podemuito bem con-
testaros meiosde que a práticapsiquiátricadispõe,denun-
ciar as contradições,entre o que a instituição psiquiátrica
pretendefazer e o que ela faz efetivamente,maso fato é que
ela só se enunciaem função do projeto institucional e dos
critériosque esteinstaura,propondonovasmodalidadesde
II
intervençãomaismaleáveis,mais distantesdo modelo mé-
dico", reivindicandouma "psiquiatriadiferente",parareto-
mar os termospropostospor Lucien Bonnafée Tony Lainé19•
E seessacontestaçãodaspráticaspsiquiátricasnãodesaguou

17. Esprit, ano 20, dezembrode 1952,"Misere de la Ps.ychiatrie.La


vie asilaire. Attitudes de la sodété(Textes de malades,de· médecins,
d'un infirmier, dénonçantla vie asilairechronicisante,Ia surpopulation,
le reglementmodelede 1838)".Michel Foucaultmencionaesse"notável
númerode Esprit" em Maladie mentaleet Personnalité,op. dt., p. 109, n. 1.
18. Alusão aoscasosde internamentoarbitrário, os mais célebres
dos quais são os do generalGrigorenko,detido em fevereiro de 1964
sob a acusaçãode atividadesanti-soviéticase internadono Instituto
Serbskide Moscou,e de Vladimir Borissov,internadono hospitalpsi-
quiátrico especialde Leningrado- para cuja libertaçãofoi realizada
uma campanhaorganizadapor Victór Fainberge apoiadapor intelec-
tuaiscomo David CoopereMichel Foucault;cf. DE, m, n? 209, (/Enfer..
mement,psychiatrie,prison" (outubrode 1977),pp. 332-60.E também
ao internamentodo dissidenteWladimir Boukovskino outonode 1971;
cf. W. Boukovski,Une nouvellemaladiementaleen URSS:l' opposition,Pa.-
ris, Le Seuil (col. "Combats"),1971.
19. T. Lainé, "Une psychiatriedifférentepour le malaise •vivre",
~ Nouvelle Critique, n? 59, dezembrode 1972; republicadop ,1 s Édi-
tions de la Nouvelle Critique, abril de 1973,pp. 23-36.
na questãodo "poder psiquiátrico"foi semdúvida porque
as lutas travadasnão puderamir além do âmbito do corpo-
rativismopsiquiátricoe da defesado corpomédicodoshos-
pitais psiquiátricos,como salientaMichel Foucault:"Muitos
foram levados,por causado estatutodos psiquiatras,que
sãoem suamaioriafuncionáriospúblicos,a questionara psi-
quiatriaem termosde defesasindical.Assim, essaspessoas,
que,por suascapacidades, seusinteressese suaaberturapara
tantascoisas,teriampodido colocaros problemasda psiquia-
tria, foram levadasa impasses."2
º De sorte queo problemado
podernãopôdeencontrarforma de expressãoa nãosernum
modo derivado: a luta sindical do corpo dos médicosdos
hospitaispsiquiátricos.Comofrisa M. Foucault, ospsiquia-
tras"puderamseopor à medicinae ao governosempoderse
libertar nem de uma nem do outro"21 •
Foi precisoportantoque, de fora, interviessemaconte-
cimentospara colocarà psiquiatriaa questãodo seu "po-
der". Foi um novo ativismo político, que, nos anospós-68,
pôs em questãoo poderque um médicodetinhade decidir
do estadomental de uma pessoae propôs-sedar lugar a
outro modode acolhimentoda loucura,libertadodasestru-
turas e da ideologiapsiquiátricas.Assim, viu-se desenvol-
verem-selutas setoriais, dispersas e locais,nasquaisMichel
Foucaultpôde enxergar"a insurreiçãodos saberessujeita-
dos", isto é, desqualificadoscomo saberesmal elaborados
teoricamentee hierarquicamente inferiores.Foi, por exem-
plo, a luta dos jovens psiquiatras,cujas preocupaçõescor-
porativistaserammais matizadase abriamespaçoparato-
madasde posiçãomais políticas,e que,em 1972,com base
no modelo do GIP (Grupo InformaçãoPrisões),criaramo
GIA (GrupoInformaçãoAsilos), logo substituídospor "psi-
quiatrizados", afim de denunciaros escândalosdasinterna-

20. DE, IV, n? 281, entrevistaa D. Trombadori(fim de 1978)( p. 61.


21. DE, II, n? 163, entrevistaa C. Bojungae R. Lobo (novembrode
1975), p. 813.
-- , ,.-- o -- - , .,
dadaa atoresda saúdementale aosdoentes22• Foi em con•
trapontoao congressode psiquiatriae de neurologia,Fonna-
ção epapeldo enfenneiroempsiquiatria (Auxerre,setembrode
1974), movimento animadopor enfermeirospreocupados
com selibertar de umatutelamédica acusadade ocultarsua
práticae seusabere comintegraremseutrabalhocomponen-
tes sociaise políticos marginalizados pelo establishmentpsi-
quiátrico.Nasceuassima Associaçãoparao Estudoe aReali-
zaçãodo Livro BrancodasInstituiçõesPsiquiátricas(AERLIP)
e veio à luz o relatório do seucontracongresso:Os enfenneiros
psiquiátricostomama palavra • Reconhecendo
23
na referênciaa
uma"competênciaespecializada"o queconfereao poder'' H

do psiquiatrasualegitimidadesocial,correntesditas "antipsi-
quiátricas"pretenderamrompercom todaassistênciaquere-
duziriaa complexidadeda situaçãodo doentea um problema
técnicoque caberiaa especialistascompetentestratar.O que
assinalao título de uma obra de·RogerGentis,A psiquiatria
deveserfeita/desfeitapor todos24•

22. Em abril de 1970já havia surgidoum jornal de extremaesquer-


da quepretendialutar contra"a psiquiatriade classe",Cahierspour la fo-
lie, queteveum númeroespecialconsagrado,em junho de 1973,ao servi-
ço de segurançaparadoentesdifíceis do hospitalpsiquiátricode Vtllejuif:
Clés pour Henri Colin. O jornal Marge consagraseunúmerode abril-maio
de 1970a esse"nojo queé a psiquiatria". Em novembrode 1973,é publica-
da uma brochuraintitulada Psychiatrie:la peur changede camp e, em de-
zembrode 1973, sai o númeroO de Psychiatrieet Lutte de classe,que se
propõeser"um lugar de elaboraçãoteóricaque'deve'resultarna forma-
çãode palavrasde ordemquefavoreçamuma tomadade consciênciare-
volucionáriados trabalhadores'sociais'em ligaçãocom o combateda
classeoperária"(p. 1). Sobreo papelque os "jovenspsiquiatras"repre-
sentaram,cf. DE, N, n? 281 (cit.), p. 60.
23. Des infirmiers psychiatriquesprennentla parole, Paris,C p . dith,
1974.
. 24. M. Burton e R. Gentis,La psychiatriedoit êtrefaite/d4faitepar tou ,
Pans,Maspero, 1973.
Tirandoa lição dessesmovimentos,Michel Foucaultpo-
dia sustentar, em junho de 1973,que "a importânciada an-
tipsiquiatriaresideem que ela questionao poderque o mé-
dico detémde decidir do estadomentalde um indivíduo''25 •

2. Registro do curso

Atribuir-se um objeto "histórico-político" que implique


a análisedas condiçõesde formaçãodos saberes e práticas
psiquiátricasa fim de definir "estratégiasde luta" requerum
deslocamentodos pontosde problematização. Difícil, de fato,
empreenderumaanáliseassimenquantoo jogo histórico se
vê relativizadopelareferênciaa algum "fundo" constituinte
ou, comoemMaladie mentaleet Psychologie,à experiênciaori-
ginária de um //homemverdadeiro"26 • Por isso, enquantoa
História da loucura, pretendendoreinterpretar"a bela reti-
dão que leva o pensamentoracional à análiseda loucura
como doençamental [...] numadimensãovertical"27, o curso
abandonaesseimaginário da profundidadepara ater-seà
realidadedos efeitosde superfície.Por conseguinte,ele em-
preendecaptaras práticasdiscursivasda psiquiatriano pon-
to em queelasseformam: um "dispositivo" de poderem que
se amarramelementostão heterogêneos quantodiscursos,
modosde tratamento,medidasadministrativase leis, dispo-
siçõesregulamentares, projetosarquitetônicos,etc.28 • Proble-
ma, portanto,muito mais de "vizinhança"do quede "funda-
ção". Dondeum estilo de análiseque obedecea um prinápio

25. DE, II, n?126, "Le mondeest un grandasile" (junho de 1973),


p. 433.
26. Maladíe mentaleet Psychologíe,op. cít., p. 2.
27. Hístoíre de la folie, op. cit., ed. de 1972,p. 40.
28. DE, III, n?206, "Le jeu de Michel Foucault" (julho de 1977),p.
299. Em 3 de abril de 1978, numaentrevistainédita (mencionadasupra),
a Paul Pattone Colin Gordon, Michel Foucaultdirá: "O que estudoé
uma arquitetura."
1 cer ·on xô · qu d"em dessemodo "figura" à massado-
cum ntal convocada.

3. Ferramentas conceituais

R~começarassimo trabalhoencetadopela Hístória da


loucura requeruma mudançadas ferramentasconceituais
que estautilizava. Primeiro,substituirpelareferênciaa um
//dispositivode poder! ' a referênciaàsformasde "represen-
tação",além da qual a História da loucura não havia avança-
do, como o próprio Michel Foucaultconfessa.Assim, o curso
substituium estilo de análisesque colocavano seu centro
29
uma"espéciede núcleo representativo" - a imagemque se

tinha da loucura, o pavor que _ e la provocava,uma loucura


que figurava a "já-presençada morte"30, etc.- pelareferên-
cia a um ,, dispositivode poder" que, num momentodado,
possuiuma função estratégicadominante.
Em segundolugar,abandonaro recursoà noçãode "vio-
lência" que subtendiaas análisesdos modosde tratamento
apresentados naspartesII em da obra. De fato, asconota-
çõesque essanoçãoleva consigotomam-naparticularmen-
te inadequadaà análisedas relaçõesde podere dastáticas
que tramama práticapsiquiátrica.Sugerindoa idéia de uma
coerçãoimediata, do exercício de um poderirregular, não
refletido, ela não podetraduzir a idéia de um exercíciocal-
culadoe meticulosodo poderposto em práticano asilo, de
que a "violência" constitui apenasuma figura limite. Além
disso,essanoção,que faz do poderumainstânciacom efei-
tos apenasnegativos- exclusão,repressãotinterdição,.. - 1
fracassaao levar em conta a produtividadedo poder psi-

29. Cf. supra,aula de 7 de novembrode 1973,p. 14.


30. Histoire de la folie, op. cit., ed. de 1972,p. 26.
quiátrico; este,é claro, produzdiscursos,forma saberes,induz
prazer,etc.Enfim, levandoconsigoa idéia de umarelaçãode
força desequilibrada,que colocao outro na impossibilidade
de fazer algo diferentedaquilo a que é obrigado,essanoção
não é nem um pouco apta a traduzir a complexidadedos
jogos de poder,tal como se manifestanessas"grandesma-
nobras"realizadaspelashistéricasna Salpêtriere,anteo po-
der médico31•
Enfim, não mais se dar como referenteessenciala ins- II

tituição" asilar, mas passarao seu "exterior" para situar a


constituiçãoe o funcionamentonovamentenumatecnolo-
gia de podercaracterísticada sociedade.Donde a distância
tomadaem relaçãoà História da loucura que, de acordocom
os própriostermosde Michel Foucault,pretendiaser uma II

história [ ...] da instituiçãopsiquiátrica"e que ligava a for-

31. Cf. supra, aula de 6 de fevereiro de 1974 (p. 400), em que é as-
sinaladaa diferençaentre a problemáticade Michel Foucaulte a dos
movimentosantipsiquiátricosanglo-saxõese italianos,que,propondo-se
comoalvo a "violência" exercidapelasociedadeem gerale pelapsiquia-
tria em particular,alinha-seà figura paradigmáticado "esquizofrênico"
que, recusando-se a constituir-seum "falso ego" alienadoe submetido
àsexigênciassociais,rasgaas máscarasdessaviolência ordinária,e gra-
çasao qual, comodiz R. Laing, "a luz começoua filtrar atravésdasfissu-
ras de nossosespíritosfechados"(The Politics of Experienceand the Bird of
Paradise,Londres,TavistockPublications,1967[La Politique de l' expérience.
Essai sur l'aliénation et l'Oiseau du Paradis, trad. fr. CL Elsen,Paris,Stock,
1969, p. 89]). Cf. as obras de David Cooper, [1] Psychiatryand Antips-
ychiatry,Londres,TavistockPublications,1967[Psychiatrieet Anti-psychia-
trie, trad. fr. M . Braudeau,Paris, Le Seuil (cal. "Le Champfreudien"),
1970]; [2] D.CoopereR. Laing, Reasonand Violence, Londres,Tavistock
Publications,1964 [Raison et Violence. Dix ans de la philosophiede Sartre
(1950-1960), trad. fr. J.-P. Cottereau,preâmbulode J.-P.Sartre,Paris,Payot
("Petite Bibliotheque Payot" 202), 1972]. Cf. tambémF. Basagliaet al.,
"L'Istituzione negata.Rapportoda un ospedalepsichiatrico",Nuovo Po-
litecnico, Turim, vol. 19, 1968 [F. Basaglia,"Les institutionsde la violen-
ce", in id., org., L'Institution en négation.Rapportsur l'hôpital psychiatrique
de Gorizia, trad. fr. L. Bonalumi, Paris,Le Seuil (cal. "Combat "), 1970].
O qu conf-ti a stecur o suaorigirtalida.d · m elação
a todasas t nd"ncia críticasque s desenvolveramdesdea
gu rra qu têm em comumtomarcomoalvo a "instituição"
a ilar, s ja para reformá-la,seja parasublµná-la, sejapara
negar ua legitimidade.

3.1. Reformara instituição asilar. Até entãoindissocia-


v !mente pensadacomo meio de tratamentoe espaçode
segregação, no pós-guerraum movimentoque denunciaum
alienismoacusadode cumplicidadecom procedimentosdis-
criminatóriose condutasde exclusãose propõelivrar a inter'-
vençãopsiquiátricada gangada estruturaasilare dasua"es-
tagnação"parafazer dela uma "atividade.,inteiramentedi-
rigida por umaperspectivaterapêutica"33 • E por issoqueum
Lucien Bonnafébatizasuacrítica com o nomede "pós-es--
quirolismo", manifestandocom isso a preocupaçãoem trans-
formar um meio de segregação herdadonumverdadeiroins-
trumentoterapêutico,em referênciaà / ' mutação consumada
na idéia fundamentalda instituição de tratamento[ ...] for-
muladaem 1822, com a nitidez que se sabe,por Esquirol:
'Uma casade alienadosé um instrumentode curaem mãos
de um médico hábil, é o agenteterapêuticomais poderoso
contraas doençasmentais'" 34•
Mas, ao mesmotempo,ao afirmar "a unidadee aindivi-
sibilidadeda prevenção,da profilaxia, da terapiae da pós-te-

32. DE, III, n? 216, "Pouvoir et savoir" (dezembrode 1977),p. 414.


33. L. Bonnafé,"Le milieu hospitalierau point de vue psychothé--
rapique,ou Théorie et pratiquede l'hôpital psychiatrique",La Raison,
1958,n? 17, p. 7.
34. L. Bonnafé,"De la doctrine post-esquiróllenne,.I. Problemes
généraux",Information psychiatrique,~- I, n? 4, abril de 1960,p. 423. Refe-
rênciaa: Esquirol, ''Mémoires,statistiqueset hygiéniquessur la folie ...
Pr" mbule", in Des maladiesmentales,consid réessousles rapportsmédical,
hygiéniqueet médico-légal, t. II, Paris,J.-B. Bailli re, 1838, p. 398.
rapia"35, essemovimentoefetuaum distanciamentoprogres-
sivo em relaçãoa umainstituiçãoasilar constituídadesdea
lei de 30 de junho de 1838 como lugar quaseexclusivo da
intervençãopsiquiátrica,paranão fazer dela nadamais que
um elementodentreoutrosde um dispositivo diretamente
36
conectadocom a comunidade • Mas o que representa um
aggi,ornamentoda psiquiatrianão rompe com os objetivos
desta:constituirem objeto de uma intervençãomédicacom-
portamentossociaisqualificadosde "patológicos"e montar
dispositivosparadesenvolveruma atividadeterapêutica . De
sorteque,se essemovimentopodemuito bemidentificar as
contradiçõesentreo que a instituiçãopretendefazer e o que
ela realizaefetivamente,a questãodo ''poder" psiquiátrico
não consegue·se formular, visto que a crítica só se enuncia
em função do projeto institucional e dos critérios que ele
mesmocoloca.

3.2. Sublimara instituição. Enquantoos partidáriosda


"psicoterapiainstitucional" primeiraversãose submetiamà
existênciados estabelecimentos a que eramnomeados,ten-
tandoutilizá-los da melhormaneirapossívelno plano tera-
pêutico, os da "psicoterapiainstitucional" segundaversão
empreendem,a partir de uma supostadescontinuidade entre
psiquiatriae psicanálise,umamodificaçãoradical dainstitui-
ção de tratamento.É que, desenrolando-se numa cenato-
talmentediferente,implicandoum tipo de relaçãototalmen-
te diferenteentreo pacientee o terapeuta,organizandoum
outro modo de formaçãoe de distribuiçãodos discursos,a
psicanáliseaparececomo um perpétuorecursoparaos pro-

35. L. Bonnafé,"Conclusionsdesjournéespsychiatriquesde mars


1945", Information psychiatrique,ano 22, n? 2,, outubrode 1945,p. 19.
36. L. Bonnafé, "De la doctrine post-esquirolienne.II . Exemples
appliqués",Information psychiatrique,t. I, n? 5, maio de 1960, p. 580: "O
pivô do serviço não é mais o asilo, mas a cidade,em cujo território se
exercea função do psiquiatra,estendidaà proteçãoda saúdemental."
1-1ublimada''d d ntro, m dianteuma p,cie d col -tiViza-
çãod s cone ito analíticos:a transfer"nci~setomam'1ins-
titucionais''7 e os fanta ma , "coletivos''. E então m nome
da lógica do inconscientequesearticula a crítica ,,,política"
da psiquiatr ia e se vêemdenunciadascomo focos de resis-
tênciaa verdadedo desejoas estruturashierárquicasdasins-
tituiçõese a representações socio culturaisda doençamen-
tal em que sãopegosos que tratame os que sãotratados.E,
assimcomo o hospitalde Saint-Alban(Lozere)haviasido a
referênciada primeira "psicoterapiainstitucional", a clínica
de La Borde,em Cour-Cheverny(Loir-et-Cher), abertaem
abril de 1953por JeanOury e Félix Guattari,é querepresen-
ta a realizaçãodo modelode uma"psicoterapiainstitucional"
analíticae seuprincipal foco de difusão38• -

Ora, numaperspectivacentradano institucional"inter-


no", fica difícil remontarao que,fora da instituição,determi-
na suaorganizaçãoe seupapel..Tanto mais que a dimensão
de indexaçãopública da psiquiatriatal como a lei a organi-
za e que faz o psiquiatraserlevadoa assumircertasfunções
namedidaem que exerceum mandatopúblico,vê-sedissol-
vida no campodos discursose do imaginário.Assim, Tos-

37. [a] H. Torrubia, "Analyse et interprétationdu transferten thé-


rapeutiqueinstitutionnelle",Revuede psychothérapieinstitutionnelle,vol.
I, 1965,pp. 83-90. [b] J. Oury, [1] "Dialectiquedu fantasme,du transfert
et du passagea l' actedansla psychothérapie institutionnelle-" (24 deja-
neiro de 1968), Cercle d'étudespsychiatriques,1968/2,Paris,Laboratoire
Specia;[2] "Psychothérapieinstitutionnelle:transfertet espacedu dire",
Information psychiatrique,t, 59, n? 3, março de 1983, pp. 413-23. [e} J.
Ayme, Ph. Rappard,H. Torrubia, "Thérapeutiqueinstitutionnelle'.., Ency-
clopédiemédico-psychiatrique. Psychiatrie,t. 111, outubrode 1964,col. 37-9 ,
G. 10, pp. 1-12.
38. Sobrea clínica de La Borde,ver o núm ro especialda revist R -
che,-ches,n?21, março-abrilde 1976:Histoiresde La Borde. Dix ansd psych(}-
thérapieinstitutionnelleà la clinique de Cour-Cheverny,complement~,p. 19.
II
quelles pode sustentarque a problemáticado poder, tal
como se joga nos coletivos de tratamento,vem então, no
campoda palavra, articular- se por si mesmaem algumlugar,
no mais dasvezescomo projeçãoimagináriano discursoco-
letivo que se tece no coletivo em questão1139 •
A versãoitalianacorrespondente - se bemque a etique-
II
ta de antipsiquiatria" tenha sido contestadapor Franco
Basaglia(1924-1980)40 - critica o dispositivoasilarde um pon-
to de vista político, na medidaem que ele é o lugar privile-
giado das contradiçõesda sociedadecapitalista.Nascidono
contexto bem particular da lei de 14 de fevereiro de 1904,
que confere,no essencial,a responsabilidade da assistência
aosdoentesmentaisà polícia e àjustiça,e no âmbito da ex-
periênciadas deploráveiscondiçõesde hospitalizaçãodes-
tes, vivida por Basagliaao assumir,em 1961, a direção do
hospitalpsiquiátricode Gorizia, perto de Trieste,a corrente
italianase situa numaperspectivadecididamenterevolucio-
nária41. Dandoas costasà idéia de umapossívelreconversão

39. F. Tosquellês,"La problématiquedu pouvoir dansles collec-


tifs de soins psychiatriques",La Nef, ano 28, n? 42, janeiro-marçode
1971, L' Antipsychiatríe,p. 98.
40. Como ele declaravana sua intervençãona Universidadede
Vincennes,em 5 de fevereiro de 1971: "Pessoalmente, não aceito a eti-
quetade antipsiquiatra"(notaspessoais;J.L.).
41. Sobre o movimento italiano, cf.: [a] F. Basaglia,org., [1] Che
cos'e la psychiatria? Turirp., Einaudi, 1973 [Qu'est-ce que la psychiatrie?,
trad. fr. R. Maggiori, Paris,PUF (col. "Perspectivescritiques"),1977]; [2]
"L'Istituzione negata...", art. cit. [L 'Institution en négation,trad. fr. cit.];
[3] "Le rapportde Trieste", ín Pratiquesde la folie. Pratiqueset folie, Paris,
Ed. Solin, 1981,pp. 5-70. Sobreessacorrente,cf. também: [b] G. Jervis,
"II Mito dell'Antipsychiatria';,QuaderniPíacentini,n? 60-61,outubrode
1976 [Le Mythe de l' antipsychiatrie,trad. fr. B. de Fréminville, Paris,Éd.
Solin, 1977]. [c] R. Castel,"La ville natale de 'Marco Cavallo',embleme
de l'antipsychiatrie",Critique, n? 435-436, agosto-setembrode 1983,
pp. 628-36. Mais geralmente,sobreos movimentosantipsiquiátricosna
Europa,ver [d] Réseau.Alternativeà la psychiatrie.Collectif international,
Paris, Union généraled'Édition (col. "10-18"), 1977.
duzir num modo tol rante o antigo dispositivode controle
s cial42, essacom nt e ngajaem práticas·b aseadas na rup-
tura de todos os mecanismosinstitucionaisque poderiam
continuara reproduzira separaçãoe o seqüestroda vida so-
cial de todosos que tinham a ver com a psiquiatria:"Nossa
ação»,declaraBasaglia,/f tem de prosseguirnecessariamen-
te numadimensãonegativa,que seja~m si urna destruição
e umasuperaçãoque,indo além do sistemacoercitivo-peni-
tenciário das instituiçõespsiquiátricas[...] possatranspor-
tar-separao terrenoda violênciae da exclusãoinerentesao
sistemasociopolítico"43 • Pretendendoengajarum trabalho
de desinstitucionalização da assistênciaaos doentes,o mo-
vimentoitaliano joga a cartadada abertura,voltadaaosnão-
profissionais,e da aliançacom forçaspolíticase sindícaisde
esquerda,que desembocaem 1974 na consµtuiçãode Psi-
chiatrica Democratica.
Mas é a correnteinglesa,oriundadostrabalhosdeDavid
Cooper(1931-1989),Aaron Estersone RonaldLaing {1927-
1989) sobreos esquizofrênicose seucírculo familiar, que en-
contramaior eco na França44• Recebendode Cooperorótulo

42. F. Basaglia,"L' assistancepsychiatriquecommeproblemeanti-


institutionnel: une expérienceitalienne", Information psychiatrique,vol.
47, n? 2, fevereiro de 1971: "A instituiçãotolerante,outra face da insti-
tuiçãoviolenta,continuaa cumprir suafunçãooriginária,semquetenha
sido modificadasua significação estratégica e estruturalnem os jogos
de poderem que ela se funda,"
43. F. Basaglia,"Les institutionsde la violence", in L'Institution en
négation,trad. cit., p. 137.
44. Foi a partir de um colóquioorganizadono outonode1967em
Parispela Federaçãodos Gruposde Estudose PesquisasInstitucionai
(FGERI), a que Coopere Laing foram convidados,que as obrasda an-
tipsiquiatriainglesacomeçarama sertraduzidase difundidasn França.
Cf.: [a] R. Castel, La Gestion des, risques. De l'antipsychiatrie à l'api -
psychanalyse, I, § "Grandeurset servitudescontestataires",Pari , Éd. d _
de antipsiquiatria"45, essemovimentodesenvolvenos anos
II

1960umacrítica radicalda psiquiatriae da suaviolênciains-


titucional e simbólica.Violência, de fato, que não é apenas
aquela,física, das coerçõesdo internamento,masa violên-
cia exercidapelaracionalidadeanalíticaque,atravésdassuas
categorizações nosológicas,faz passarpor doençamental",
II

que estásob a dependênciade uma competênciaespeciali-


zadae requero estabelecimento de uma relaçãode tutela,
a maneiracomo um sujeito tenta responderà opressãode
que é vítima desdeo seunascimentoe que continuaatravés
das instituições delegadaspela sociedade:farru1ia, escola,
trabalho,etc. E é porquea instituiçãopsiquiátrica"violenta"
essa experiência"a que o sujeito deveriadar seguimento
II

até seusderradeiroslimites, a fim de ter algumachancede


sair dela "transformado"-processoparao qual Laing toma
emprestadodo vocabulárioevangélicoo termo de metanóia,
que significa "conversão"-, que é necessáriodesmedicali-
zar o espaçoe pôr fora de jogo asrelaçõesde poderquenele
se desenvolvem."Em vez de hospitaispsiquiátricos,que são
comofábricasde reparo,necessitaríamos de lugaresem que
as pessoasqueviajarammaislonge que os psiquiatrase os
serestidos como sãosde espíritoteriama possibilidadede ir
maislongeaindano espaçoe no tempointeriores,e voltar."46

Minuit (col. "Le Senscommun"),1981,pp. 19-33. [b] J. Postele D. F. Al-


len, ºHistory and Anti-psychiatryin France",in M. Micale e R. Porter,
org., Discovering the History of Psychiatry, Oxford, Oxford University
Press,1994, pp. 384-414.[c] Recherches,n? especial,Enfancealiénée,t. Il ,
dezembrode 1968,em quefiguram notadamente ascontribuiçõesde D.
Cooper, "Aliénation mentale etaliénation sociale", pp. 48-50, e de R.
Laing, "Metanoia. SomeExperiencesat Kingsley Hall", pp. 51-7.
45. "Um questionamentomais radical levou algunsde nós a pro-
por concepçõese procedimentosque parecemse opor absolutamente
às concepçõese procedimentostradicionais- e que, de fato, podem
ser consideradascomo o germede uma antipsiquiatria"(D. Cooper,
Psychiatrieet Anti-psychiatrie,trad. cit., p. 9).
46. R. D. Laing, La Politique de l' expérience
..., trad. cit., p. 88.
c ntfí d ·. o1hím n to paraas ·.
· P ·o·a q :suu u1 uu vn.:=-
ram d n as mentai " "mudar a man ira como o fato ·
7
da' aúd mental' da 'do nça mental'sãoconsid rados" •

*
Ora, enquantoessascorrentescrí~ca~q~e-se d~se1:;º~-
eram desdea guerraestabelecema mstihuçaops1qwatn-
ca como ponto de problematização,o curso deslocao sítio,
II
atribuindo-se como princípio que aquilo com que se tem
d lidar, antesde lidar com asinstituições,sãoas relaçõesde
força nessasdisposiçõestáticasque perpassamas institui-
ções"48. De fato, a noçãode instituiçãoencerracerto número

47. Relatóriodeatividadeda PhiladelphiaAssociation(1965-1967),ci-


tado no artigo de G. Baillon, '1ntroductionà l' antipsychiatrie",La Nef,
ano 28, n? 42, janeiro-maiode 1971, L'Anti-psychiatrie,p. 23. Em razãodo
que Michel Foucaultpoderádizer na suaintervençãono colóquio "Será
precisointernaros psiquiatras?",organizadopor H. Ellenbergerem 9
de maio de 1973, em Montreal-a que ele faz alusãonumaentrevistaa
StephenRiggins (DE, N, n? 336, junho de 1982, pp. 536-7) -, intitulada
'lfüstória da loucurae antipsiquiatria":''Nessaforma de antipsiquiatria..
tal comoé praticadapor Laing e Cooper,trata-seda desmedicalização do
espaçoemquese produza loucura.Uma antipsiquiatria,por conseguin-
te, em que o que é reduzidoa zeroé a relaçãode poder.Essadesmedica-
lizaçãonãoimplica apenasum rearranjoinstitucionaldosestabelecimen-
tos psiquiátricos;trata-seaté,semdúvida,muito maisquedeum simples
corteepistemológico;talvez,maisatéquede umarevoluçãopolítica, eja
em termos de ruptura etnológicaque a questãodeveriaser colocada.
Talvez não·sejasimplesmentenem nossosistemaeconômico,nem t m-
pouco nossaforma atual de racionalismo,massim toda nos , imen-
a racionalidadesocial,tal como ela se tramouhistoricamented deo
gJ1 gos, talvez sejaisso que rejeite atualmentevalidar, no próprio â_ma..
go da nossasociedade,uma experiênciada loucuraque eria pro d
verdadesemcontroledo podermédico" (doe. datilogr f do, p. 19 .
48. Cf. supra, aula de 7 de novembrode 1973,p. 20.
de insuficiências,de "perigos'1 sobreos quais Michel Fou-
cault torna váriasvezes.Primeiro, aproximaros problemas
da psiquiatriaatravésdessanoçãoequivalea dar-seobj:etos
já constituídos:o coletivo e suasregularidadesfuncionais,o
indivíduo que é seumembro,etc., ondeconviria analisaros
procedimentosde constituiçãono nível das disposiçõesde
podere dos processosde individualizaçãoque elascompor-
tam. Depois,centrar-se num microcosmoinstitucionalé cor-
rer o risco de cortá-lo das estratégiasem que toma lugar e
tomaseusefeitose de aí "precipitar'',comodiz o curso,"to-
dos os discursospsicológicosou sociológicos".Compara-se,
por exemplo,a problemáticado cursocom a da obrade Erwin
Goffman, Asi.los, que Foucaultelogia várias vezes49• Claro,
um mérito do livro é possibilitarescapardasracionalizações
médicas'' desespecificando", se assimpodemosdizer, a ins-
tituição psiquiátricaao ressituá-lanum leque de outrases-
truturas- escola,prisão, etc. - por intermédioda noçãode
total institutíon (instituição totalitária") que caracterizaes-
II

tabelecimentosespecializados na guardade indivíduose no


controle do seumodo devida. Mas esseenfoquequaseet-
nográficoda instituiçãoasilarencontraseuslimites. De fato,
ao tomarestacomouma totalidade"autônoma
II
, parareco-
locá-la simplesmentenum lequede outrasinstituições,esse
enfoquedeixa de mostrarque o asilo é uma respostaa uma
problemáticahistóricaem evolução.Com isso,a naturezada
rupturaconstitutivado lugar asilaré pensadanum modoes-

49. E. Goffman,Asylums:Essayson the Social Situationof Mental Pa-


tients and Other Inmates,Nova York, Doubleday,1961 [Asiles. Étudessur
la condition sociale des maladesmentauxet autres reclus,, trad." fr. L. e Cl.
Lainé, prefácio de R. Castel,Paris, Éd. de Minuit (cal. "Le Senscom-
mun"), 1968]. Cf. M. Foucault,[1] DE, II, n? 139, ''La vérité et les formes
juridiques" (junho de 1974),pp. 611-2; [2] DE, III, n?272, entrevistaa M.
Dillon (outubrode 1979),pp. 802-3; [3] DE, IV, n?280, "Foucaultétudie
la raisond'État" (primaverade 1980),p. 38; e n?310, "Espace,savoiret
pouvoir" (entrevistaa P. Rabínow,marçode 1982),p. 2il .
tuiçõ totalitárias" rgu m paraosintercâmbiossociaiscom
o ext rior {...] e que sãofreqüentementeconcretizadaspor
obstáculosmat riais: portastrancadas,muros altos, etc.'' 0
Substitua-seessaimagemde um espaço"fechado''pela idéia
de um espaço'' fechadoparaum enfrentamento,liça de uma
justa,campoinstitucionalondeo que estáem causaé vitó-
, e a rupturaasilar adquiriráumanova di-
51
ria e submissão"
mensão.Essemeio "fechado" aparececomoele realmente
é: um meio ativamentecortado,isto é, conquistadode an-
tigas formas de assistência,atravésde processoshistóricos
que fazem o louco emergircomo aqueleque se diferencia
menosem relaçãoà família do que no interior de um campo
técnico-administrativo.O que a aula de 5 de dezembrode
1973sublinha:'' O louco emerge[ ...] como perigoparaa so-
ciedade,e não mais como o indivíduo que podepôr em ris-
co os direitos, as riquezas,os privilégios de umafamília." Ao
mesmotempo,o lugar centraldo psiquiatra,bemsalientado
por Goffman, adquireoutra dimensão:o psiquiatranão se
distinguedo alienadopelo fato de serlivre; o que o caracte-
riza é que ele intervémcomoum embaixadordo mundoex-
terior, encarregadode impor dentrodo asilo as normasda
sociedade.Ele "é aqueleque devedar ao real essaforça coa-
tiva pela qual o real vai poderse apoderarda loucura,atra-
vessá-lapor inteiro e fazê-la desaparecer'' 52

Enquantoo problemaa que Goffman sededicaé o pro-


blema colocadopela própria instituição e seu estabeleci-
mento,aquelea que o cursose consagraé o de sabercomo
determinadatécnicade poder,,ligada a estruturassociaise
políticas,autorizaII a racionalizaçãoda gestãodo indivíduo''53 •

50. E. Goffman, Asiles,trad. cit., p. 46.


51. DE, II, n. 143, p. 679.
52. Cf. supra, aula de 12 de dezembrode 1973,p. 162.
53. DE, Iv, n? 280, entrevistaa M. Dillon (1980), p. 38.
Donde o estilo particularde uma arqueologiada ins-
tituição psiquiátricaque, de JorgeIII a Charcot,multiplica
"cenas"maravilhosamente panópticas,que fazemsurgir as
operaçõese os procedimentosque compõemessa"micro-
física" do podere dissolvemo que havia de maciçona ins-
tituição asilar. "Cenas''a cujo respeitoo manuscritoda aula
de 14 de novembrode 1973precisaque por essetermo não
sedeve"entenderum períodoteatral,massim um ritual, uma
estratégia,umabatalha";cenasque,inseridasno trabalhoda
análisecomofragmentosde um espelho,reúnem,num olhar,
as implicaçõesteóricasque a argumentaçãodesenvolverá.
Abordarassimo dispositivoda psiquiatriaem referên-
eia a mecanismosde poderfragiliza o ponto de ancoragem
a partir do qual a psiquiatriadesenvolveusuasconquistas
teóricase práticas:uma exigênciade especificidade.De fato,
desdea suaconstituiçãoem medicinaespecial",dotadade
11

11
estabelecimentos especiais",de médicos especializados",
11

os alienistas,e de uma legislação"especial",a lei de 30 de


junho de 1838,às tentativasde transformaçãodessasestru-
turas institucionaisdepoisda guerra,essaidéia de espe- 11

cificidade" da medicinamentalconstituiuma linha de força


em torno da qual pode-sedizer que o essencialda profis-
são se reuniu54 •

4. Pontos de problematização

A análisedo dispositivo psiquiátricose articula então


em torno de três eixos: o do poder,na medidaem que o psi-
quiatrase institui como sujeito agindosobreoutros; o eixo

54. Como atestamo combatede um Henri Ey (1900-1977)para


mantera "especificidade"da psiquiatriaante a psicanálisee contra as
tentaçõesbiológicasou sociopolíticas,e a publicaçãode uma coletânea
intituladaprecisamenteSpécificitéde la psychiatrie,org. por F. Caroli, Pa-
ris, Masson,1980.
d "faz r u s a norma que impõema el .

4.1. O poder.Definido nos anos1970com a problemáti-


ca do aber-poder,esseeixo deslocaquestionamentos an-
teriores.No fundo, os primeirostextos dirigiam, de fato, a
psiquiatriaa questão:"O quevocê diz é verdade?Dê...me os
títulos da suaverdade!"A partir de entãoa interrogação,a
exigênciaé: ''Dê-nosos títulos do seu poder! Com que di-
reito você o exerce?Em nomede quem?Paraquaisbenefí-
cios?" "Poder" portanto,nãomais"violência", comonostra-
balhosprecedentes.Com isso mudaa figura paradigmática
a que sealinhavaa crítica dos "antipsiquiatras"anglo-saxões
que colocavamem seufoco a questãoda "violência" exerci-
da pelasociedadeem gerale pelapsiquiatriaem particular55 :
56
o esquizofrênico •

Mas, quandose abordao dispositivo psiquiátricoem


referênciaaosmecanismosde poderque o organizam,é o
histéricoquevem figurar de maneiraparadigmáticao rever-
so militantedo poderpsiquiátrico,armandoparaum Char-
cot, munido ,, do mais elevadosabermédico, a "cilada" da
57
mentira • E por issoque o histéricomerece,paraMichel Fou-
cault, o título de primeiro "militante da antipsiquiauia",tal
como enunciaa aulade 23 de janeiro de 1974,pois, por suas
"manobras",questionao papeldo médico"encarregado de
58
produzir a verdadeda doençano espaçohospitalar" • Por
isso Michel Foucaultpodedeclararem suaintervençãonum
colóquio organizadoem maio de 1973 por Henri Ellenber-

55. D. Cooper,Psychiatrieet Anti~psychiatrie,trad. cit., p. 33: "Na


medidaem que a psiquiatriarepresentaos interesses,ou os upostos
intere ses,dos homensnormais,podemosconstatarque na verdadea
violênciaem psiquiatriaé, por excelência,violencia da p quiatria."
56. Cf. supra, nota 31. ·
57. Cf. supra, aula de 6 de fevereirode 1974, pp. 395 .
58. DE, II, n? 143, p. 681.
ger: "A erada antipsiquiatriacomeçouquandose desconfiou
e, logo, se teve a certezade que o grão-senhor/mestre da
loucura,aqueleque a fazia aparecere desaparecer, Charcot1
era aqueleque não produziaa verdadeda doença,masque
fabricavaseuartifício."59
Ora, essepodera que se consagrao atual curso apre-
sentaum duplo caráter.Ele tem como ponto de aplicação,
em última instância,os corpos:a repartiçãodelesno espa-
ço asilar,suasmaneirasde se comportar,suasnecessidades,
seusprazeres,em suma,um poderque "obedecea todasas
disposiçõesde uma espéciede microfísicados corpos".Por
outro lado, asrelaçõesde poderqueseinstauramentreo psi-
quiatra e seupaciente sãoessencialmente instáveis,cons-
tituídas de lutas e enfrentamentos,em que a todo instante
estãopresentespontosde resistência.É o casodessas"con-
tramanobras"pelasquais as histéricasminam o poder de
Charcot,escapandodascategorizações a que estequeriaas-
siná-las,obrigandocom isso o dispositivo de poder-saber
médicoa ricochetearnessasresistênciase voltar até o ponto
em que se abre,diz Michel Foucault,"uma crise que devia
levar à antipsiquiatria"6º.

4.2. O sabere a verdade.Como recordaa aula de 5 de


dezembrode 1973,"o asilo comosistemadisciplinaré igual-
menteum lugar de formaçãode certo tipo de discursode
verdade". Dondeessasanálisesdas maneirascomo vêm se
articular dispositivosde podere jogos de verdade.É o caso
da modalidade"protopsiquiátrica"em que todo um jogo se
organizaem tomo da convicçãodelirante, sob o regime de
II
uma prova" na qual o médicose erige em mestre/senhor
ambíguoda realidadee da verdade61; ou, ao contrário, um
jogo em que a questãoda verdadejá não surgeno enfren-

59. "Histoire de la folie et antipsychiatrie"[cit. supra,nota47], p. 12;


republicadocom algumasmodificaçõesem DE, II (ver notaprecedente).
60. Ibid.
61. Ibid.
ciênciamédica.Ne se modo de ãnál1se1conto sevê; a ver. .
dadeé convocadamenosa título de propriedadeintrínseca
de enunciadosdo que no planoda suafuncionalidade,pelo
horizonte de legitimação que ela fornece aos discursose
práticasa propósitodos quaiso poderpsiquiátricoorgani-
za seuexercícioe pelo modo de exclusãoque ela autoriza.

4.3.A sujeição.O terapeutaqueabordado exterioro in-


divíduo a tratar,ao mesmotempoquerecorrea procedimen-
tos que lhe possibilitamtirar destea interioridadeda sua
subjetividade- interrogatório; anamnese,etc. -, coloca o
sujeito em posiçãode ter de interiorizar as orientaçõese as
normasque lhe são impostas.Por isso o problemaé abor-
dado,na aula de 21 de novembrode 1973,sob o ângulodos
modosde sujeiçãoque fazem o sujeito aparecercomo uma
"função" complexae variável dos regimesde verdadee das
práticasdiscursivas.

Mas estecurso,que pretendiadar seguimento,em novas


bases,à História da loucura, não terá futuro. Porque,naque-
les anos,as circunstâncias levarama preferir a participação
em açõesefetivasao "rabisco de livros", como diz Michel
Foucault.Assim, já em 1972 estereconheciaque "escrever
hoje umacontinuaçãoda minhaHistória da loucura, queche-
gasseà épocaatual, não tem interesseparamim. Em com-
pensação,umaaçãopolítica concretaafavor dosprisioneiros
parece-mecheiade sentido"62• Todavia,ao mesmotempo,M.
FoucaultpreparavaVigiar e punir. Nascimentoda prisão.

J.L.

" ( ntre · t . N .
62. DE, U, n?105, "Le grandenfermement
berg,marçode 1972}, p. 301.
ÍNDICES*

* Índicesfeitos com a colaboraçãode Vincent Guillin.


fNDICE DAS NOÇÕES

Adestramento (- das representações): 16-7,


(.:... do corpo): 60, 273-4, 371, 464
451 (- discursivado poder): 17
Afasia: 391-6 Anamnese
(- de tipo anartria):394 Ver (- práticada): 220, 222, 233,
também:Broca 257,478
Alienaçãomental Anatomopatologia:280,-363,
[segundoA. L. J. Bayle]: 175 388-9,393, 398, 420 n. 2, 425
n. 17 n.22
[segundoFoumet]: 124 e (- da doençamental): 205
Anestesia
147 n. 7
Anomalia
[segundoParchappede
(a - como condiçãode
Vinay]: 271 e 2Q4 n. 46
possibilidadeda loucura):
[segundoPinel]: 148 n. 15, 353 e 378 n. 8
288 n. 13 (o problemaeconômicodo
Alucinação(ões):356 custo da-): 277-8
(idéiasfixas ou -) [Labitte]: Anomia
159 (- dos sistemasdisciplinares):
Amentia[Sagar]: 285 n. 7 68
Amentiamorosis [Boissier de Antipsiquiatria,antipsiquiátrico:
Sauvages:286 n. 8 18, 21, 49, 170, 447-53,456,
Análise 462-3,469-70
par lho d , tado: 20-1 (o - , lugar d formaçãode
par 1h ( ) corporal(ai ): 131 um discursode v rdade):
(- d garantia d prova): 117,477
131-2 (o ritual geral do-): 182,
(- paraarrancara verdade): 185-6
132 (papeldo - no movimento
(- paramarcar):132 de volta as condutas
Apresentaçãoclínica regulares):444-5
(a - como rito constitutivo Assimilaçãolouco-primitivo-
do podermédico do delinqüente:138-9
psiquiatra):358-9
(teoria da -)[Falret]: 232-5 Biologia: 15
Arqueologiado saber:17, 306 biológica (evoluçãoda -): 282
e 329 n. 13, 475 (- pasteurianae
Arquitetura: 93-7, 114 n. 17, transformaçãodo
126-9, 158 hospital): 441-2
(- hospitalarno século Braidismo: 369-70
XVIII): 453 Ver também:Braid
Ver também:Panopticon
Asilo(s) Casa(s)de educaçãovigiada:
(administraçãodo-): 229-30 98, 105, 144
(o - como campode Casa(s)de saúde:137, 140-4,
batalha):9-10, 444-5, 155
473-4 Cena(s)
(o - como corpo do (a - como ritual, estratégiae
psiquiatra):227-8, 235-6, batalha):33-4, 475
301,350 (- da antipsiquiatria):39
(o - como espaçomarcado (- de cura): 13-5, 26, 36-9
medicamente):6-7, 223-8 (- de enfrentamehto):32
(o - e a família): 118-27, 154 (- de libertação):25, 32, 36
(o jogo da realidadeno-): (- protopsiquiátricas):36-41
219-23,322, 350 Ver também: Ritual
(o -, lugar de énfrentamento Cenáriosintomatológico
entrea loucuracomo (organizaçãodo -): 01-3,
vontadeperturbadae a 409-10
Cerimônia(s) (- automáticosou reflexos):
(- de destituição): 27 390-4
Ciência(s) (- complexos): 390
(- do homem): 71-2, 91 (- voluntários):392-4
Cirurgião(ões) Comunidade(s)
(o - como antítesedo (- laicas): 51
psiquiatrano campoda (- religiosas):51, 74-5 n. 4,
medicina):235 79-80 e 109 n. 1, 110 n. 4,
Classificação 112-3 nn. 7 e 9
(a - ou taxionomiacomo Confinamentoda época
forma geral dos clássica:87
conhecimentosempíricos Confissão(ões)
na épocaclássica):90 (- e prova ordálicada
(destinaçãopráticada - verdade):175 n . .16, 307 e
nosológicapsiquiátrica): 330 n. 15
158-9, 224-5 (práticada-): 15, 40, 198-
Clínica(s) 200, 222, 257, 300, 355-6
(- anatomopatológica):388- Consulta(s)médica(s)
9, 393, 395-6 (- particulares):256
(- neurológica):389-97 (- públicas):313-4
Clorofórmio: 300 e 326 n. 2, Convulsão(ões):397-400,402
301,360 e 429 n. 35
Coerçãofísica Corpo
(instrumentosde -) : 13-4, (- anatomopatológico) : 373,
131-3,154, 179,192, 198, 387, 419
202 (- da família): 352
Colônia(s)asilar(es):156-9 (- do psiquiatra):6, 19, 227,
Colonização 273-4
(- da idiotia): 266-77 (- neurológico):372-3, 387-
(- dos vagabundos,dos 8, 406-8, 419
mendigos,dos nômades, (- sexual):419
dos delinqüentese das Corpo-poder
prostitutas):87 (contatosináptico-):51
(- no interior do espaço Criança(s)
psiquiátrico):158 (a - e o louco): 135
(- pedagógicada (a - louca): 256
juventude):83-6 (a - selvagem):291 n. 31
Comportamento(s) (psiquiatrizaçãodas-
Crime Degenerescência [Morel]: 2827
(relaçãoentrea loucurae o 351 e 377 n. 6
-): 319-40 Delinqüente(s)
Criminologia: 105,439 (organizaçãodos - numa
Crise(s):310-1, 345-8 "marginália''): 138-9
(a_ como característica Delírio: 159,162, 241 n. 1
intrínsecada doença): (a onipotênciacomo tema
310-1 do--): 184, 217-8
(a - como momentoda (- hipocondríaco):346
intervençãoterapêutica): Demência:225 e 245 n. 14,
40-1, 310-3 258 e 285 n. 7, 267, 323-4,
(a- como prova de 347 e 376 n. 9
realidade):347-50,356
(a - como doençada velhice)
[segundoBelhomme]:258
(a - como prova de
e 287n.10
verdade):302-3, 348
(a - como privaçãoabsoluta
(a técnicada - ·c omo técnica
da razão) [segundo
de prova): 313-4
Daquin]: 287 n. 9
(exclusãoda - em medicina
"Demênciainata'' [Cullen]:
e em psiquiatria):317-21,
286 n. 7
441-2
Dependência
(- histérica):402-3 (pôr em-): 11-2, 27, 222,
Cura(s):5, 10 404-5
(a - como cenade Desenvolvimentomental: 260-~
enfrentamento):12-3 (interrupçãodo-) (segundo
(a - como cerimônia):26-7 Seguin]: 264
(a - como submissãoda Ver também: Idiotia
força): 13-4, 36 (retardodo -) [segundo
(as quatro característicasda Seguin]: 264
-): 222,233 Ver também: Retardomental
(concepçãoclássicada -) : Despsiquiatrização
15-6 (a - como modo de pôr fora
(labirinto da verificação de circuito todo s
fictícia que garanteo efeitostípico do spaç
próprio princípio da --) : asilar): 449--50
42-3, 162-3 (a-comor t
do poder médico em sua (- de verdade): 15, 18, 34-5,
justa eficácia): 447-9 41
(-: " psiquiatriade produção (- do histérico): 396-7
zero"): 448-9 (- psiquiátrico): 9, 49-50
Ver também: Psicanálise Disposição
Diagnóstico(s) (- tática do poder): 9, 20
(- absoluto): 347-8, 358, Dispositivo(s)
396, 404 (- de disciplina): 79-82, 88-
(- diferencial): 321-2, 345-8, 9, 235-6, 232
357, 373, 396,401, 403, (- de poder): 16-8, 456- 7,
410, 416,446 462-4
Dinheiro: 182, 191 (- de soberania): 79-83
Dinheiro-defecação(relação-) (- do enunciadoda
[Leuret]: 191 e 213 n. 35 verdade):197
"Direção": 218 e 241 n. 2 (- neurológico):387-91,
(- de consciência):84-5, 218 399-400,408, 419
Direitos Dissimulação:346
(- do indivíduo jurídico): 70-2 Doença(s)
(- imprescritíveis)[segundo (a - e o problemaeconômico
Falret]: 167 e 176 n. 18 do lucro): 406-10
Disciplina(s): 4, 30, 32, 57-71, (- com diagnóstico
81, 88-9, 90 diferenciale com
(a - asilar como força e diagnósticoabsoluto):
forma da realidade):207, 397-8 400-1
' f

219-20 (- mentaise "verdadeiras"):


(as - como técnicasde 397
distribuiçãodos corpos, (prazerda -) : 202
dos indivíduos,dos Droga(s)
tempos,dasforças de (as - como instrumentosde
trabalho): 91 disciplina): 300-1
(instrumentosde-): 89 (experiênciadas- como
(- militar): 58 "apreensãointe1na" da
Discurso:19, 49-50 loucura): 373
(- anátomoou (experimentaçãocom uso
fisiopatológico): 165 das-): 360-2
(- clínico, classificatórioou (utilização das- como
nosológico): 165-6, 205 reveladordo foco
(utiliZ ç- m ' dic -1 gal da ,b rania : 99-103
- ): 0-1 (a _ como mod lo da prática
Ducha, ½ r: L uri t psiquiátrica): 20-1, 33,
117-8, 140-3, 153-4, 157
l tr choque:226 246n. 17 (a - como ponto de engate
Epil p ia: 239, 268, 397-8, 414-5 de todosos sistemas
Erg t rapia: 158 disciplinares):100-5
Erro (a - como suporteda
( 0 - como critério da
anomaliae da loucura):
loucura): 10-1, 35, 160-2, 282
258, 443 (disciplinarizaçãoda-):
(o - do louco): 161-2 141-4, 154-5
Escrita Familiarizaçãodo (e no)
meio terapêutico:135-7,
(a - como instrume~tode
141-3
disciplina): 61-4
(o corpo da - como
(a-comopráticapolicial): 62
substratomaterial da
Esquizofrenia:346
loucura): 352
Esquizofrênico
"Faradizaçãolocalizada"
(o - como figura
[Duchennede Boulogne1:
paradigmáticada
390,405
antipsiquiatria):476-7
Fisiologia
/'f Estadohipotáxico" [Durand
(- experimental):362 e 379
de Gros]: 371 n.27
Estratégia(s):18-9, 21, 207 (- nervosada loucura): 182
Ver também:Poder; Cena(s) Fisiopatologia:3 73
Estupidez:258 e 286 n. 8 Força
[segundoGeorget]:287 n. 9 (insurreiçãoda-): 10
Ver também:Louco Função-psi:105-8, 236
Éter, eterização:226 e 246 n. Função-sujeito
18, 300 e 326 n. 1, 301, 360 (- na relaçãode coerção
Exercício(s) disciplinar): 69-71
(- ascéticos):51, 84-5 (- na relaçãode soberania):
(- como meio de açãodo 57
poderde disciplina): 59-60 "Furioso": 10, 13, 25,, 145 n. 1
(- corporais):60, 88 Furor: 258 285 n. 5
Genealogia (- natural):408-9
(- do conhecimento):306-7 Ver também:Charcot
Histérico(a)(s)
Haxixe: 300 e 326 n. 5,361 (a - como doenteperfeita):
(a intoxicaçãopor - corno 446
aplicaçãodos mecanismos (o - corno primeiro,
ativadosno interrogatório): verdadeiromilitante da
367 antipsiquiatria): 171, 325 e
(terapêuticapelo-) [Moreau 343-4 n. 48, 476
de Tours]: 366 (resistênciados - ao poder
Hernianestesia[Charcot]: 402, médico): 324-5,476-7
404 (sobrepoderdos-): 239-40,
Hereditárias 350,404-5,409 -11
(predisposições -) : 257, 282 Histeroepilepsia[Charcot]:
Hereditariedade 402 e 429 n. 35
·(- patológica):351 e 376 n. 5 História
Hipnose:368-74 (- da psiquiatria):39, 41
(- e sugestão):446 (- da verdade):301-17
[segundoDurandde Gros]: (- dos dispositivosde
370-1 disciplina): 79-91
(traumatismoe -): 369, 410 Hospital
Hipocondria:398 (o - corno espaçode
Histeria: 123 realizaçãoda loucura):
(a batalhada-): 170-1, 322-3
401-19 (o - c_
orno lugarde
(a - corno ferramentade conhecimentoe de
detecçãoda simulação): realizaçãoda doença):
409-10 439-40,445-6
(a - corno instrumentode (o - corno máquinade
luta contra o poder curar): 127-31,133
psiquiátrico):168-72 Humanismo,humanista:18,
(- asilar): 167-9 36, 71-2
(codificaçãodos sintomas
da - com basenos da Iconografiado poder: 29-30, 32
epilepsia):402-3, 446 Idiota(s): 278-9
(estigmasda -) : 402 Idiotia ou idiotismo
(etiologia traumáticada-): (anexaçãopráticada - pelo
407-8, 410-3 poderpsiquiátrico):265-77
doença): 262 1nsnnuçao
\oesJ
(esp cificaçãoteóricada- ): (análisedas-): 19-20,41,
257-66 466--7, 472-5
[segundoEsquirol e (- asilar,psiquiátrica):127-
Belhomme]:260-6 35, 153-9, 205-8,223-7
[segundoJacquelin Ver também:Panopticon
Dubuisson]:259 e 286 n. Insurreiçãodos saberes
8,288 n. 12 sujeitados:461-2
[segundoPinel]: 288 n. 13 Interdição[do louco}
[segundoSeguin]: 262-3, 265 (procedimentode-): 118-9,
Ver também:Alienaçãomental 121
Imbecilidade:257-66,267 Intemação(ões)
(a - como erro que se toma (lei de 1838 sobrea-): 33 e
obnubilação):259-60e 46 n. 9, 118--22,277-8
288 n. 12 (- no início do séculoXIX):
[segundoDaquin]: 286 n. 9 118-20,443-4
Individualização:20,55-6 Interrogatório
(- esquemática, (o - psiquiátrico):352-7,
administrativae 372,395
centralizada):61, 65, 70, 97
Indivíduo Juízo
(- disciplinar): 68-72 (concepçãoclássicado -):
(- jurídico): 71-2 162-3
(- psicológico):105, 237
Infância Láudano:179 e 210 n. 2, 226,
(a - anormal):280 300,360
(a - como lugar de origem Liberdade
da doençamental): 256-8 (carênciade-): 193-4
(lembrançasde -) : 155, 201 Linguagem
Ingenii Imbecillitas [Boissier de (r~utilizaçãoda -): 187-9
Sauvages]:287 n. 9 Lipemania[Esquiroll: 225,261
Instinto Louco
(o - como vontadede não (o - estúpido)[segundo
querer):272 Daquin]: 285 n. 6
[segundoSeguin]': 272-3-e Loucura
294 n. 48 (a - como afinna,ão d
onipotência): 34-5, 184-5, (o - como mecanismo de
202 disciplina): 301
(a - como distúrbio na "Manequimfuncional"
maneirade agir): 444 (a manobra do - ): 404-10
(a - como doençamental): (a manobrado - e a
397 hipnose): 405, 408-10
(a - como experiência "Mania": 4, 6, 26, 209 n . 1, 225
originária de um "homem e 244-5 nn. 12-14, 258, 261
verdadeiro"):463 e 288 n. 18, 367 e 382 n. 41
(a - como vontadeem (- semdelírio): 11
insurreição):10, 217 Medicação(ões)
(a - e o sonho):366-7 (- físicas ou fisiológicas): 179
(desmedicalização da-): 453 Qogo da- e da punição):
(- e lesõesneurológicas): 130-1, 225-6 e 246 n. 17,
165,347 231-2, 444-5
(etiologia da-): 165-6, 182, (- psicofísicas):179
346-7, 351-2
Medicina
(periculosidadee-): 120-1,
(autonomizaçãoe
320
institucionalizaçãoda -
(realidadeda não-realidade
mental): 6, 15-6, 19-20,
da-): 221
105-7, 474-5
Lucro(s)
(- clínica, como modelo
(- de anomalias,de
epistemológicoda
ilegalismose de
irregularidades):137-40, verdademédica): 15
140-4, 154 , (- estatística): 318
Ver também:Doença(s) Médico(s)
(a questãoda dependência
Macrofísicada soberania:34 do doenteem relaçãoao
Magnetismo -): 11-2, 222, 404-5
(- e crise): 368-9 (o - como produtorda
(o - como adjuvantedo verdadeda doença): 444-5
poderfísico do médico): (o grande- de asilo como
301 e 327 n. 6, 368 senhorda loucura): 444-5
(o - como ferramentade (o questionamentodo
tomadade consciênciada poderdo - desdeo fim
doençapelo doente): do séculoXIX) : 447
368-9 Melancolia: 11, 41-2, 443
crofi ica d poa r: L 1, - ':l,
41, 44, 91, 102-3, 236 475 Objetividad
Microfí ica dos orpo : 19, 477 (a ordemasilar como
M nomania: 11, 126, 159, 225 condiçãoda -
245 n. 13, 261 e 288 n. 18 psiquiátrica): 5
(- homicida): 320 e 342 n. Onivisibili dade: 61, 63, 94-7,
45, 354 e 378 n. 10 128-9, 227--8
Ver também: Panopticon
atur za Operaçãoterapêutica: 4-5,
(a - como lugar terapêutico 441; [segundoPinelJ: 11-4 e
da loucura na idade 23 n.12
clássica):442-3 (- medicamentosa): 12, 23
Necessidade (s) n. 12,44
(organização das-): 26, 30, Ópio: 300 e 326 n. 3, 301, 360
190-6, 200-1, 205-6, 221, Opiáceos: 179 e 209 n. 1,
444-5 360 e 379 n. 19
Neurologia Ordem
(a - como análiseda atitude (- disciplinar: asilos,
intencionaldos fábricas,quartéis,escolas,
indivíduos): 393-4 mosteiros):4-6, 22 n. 4,
(a - como estudo das 62-6,85-6,134-5, 190
sinergias):392 Ordensreligiosas: 51 e 74-5 n.
Neuropatologia:238, 388-90 4, 65, 82-7
eurose(s) Orfanato(s): 92, 105
(as - como distúrbios das Ortofrenia [segundoF. Voisin] :
funçõesde relação):398, 268 e 291 n. 32
425-6 n. 24 " Ortopedia'' [segundoDuranc
(componentesexualdas-): de GrosJ:371 e 386 n. 61
399,416-7 (- mental): 39
(consagração patológicadas (- psicológicae moral): 12,
- graçasao diagnóstico 134,451
diferencial): 400-1
Nitrito de amila [Balard]: 360 Panopticon/panóptico
e 379 n. 21 (o - e mo aparelhod _
No restraint [Conolly] : 131 e individualizaçãoe d
149 n. 18, 133, 192 conh cim nto): '6-
(o - como intensificadorde (- de soberania):27-32, 34,
força): 92-3 60, 53-7, 68-9
(o - como modelo de toda (enxameamento do -
instituição): 52 e 75 n. 5, psiquiátrico): 236-40, 255,
92,98-9 280-1
(o podersemmaterialidade (exercíciodo - disciplinar
do - ): 95-6 sobrea virtualidadedo
Ver também: Arquitetura; comportamento) : 27-32,
Onivisibilidade 33-4,50-3,57-71,91
Ver também:Bentham (o - como processode
Paralisiageral: 165 e 175 n. 17, individualização): 20-1,
319, 347, 391 55-7, 68-9, 477-8
(a - como II doençaválida"): (o - de soberaniacomo
398 e 425 n. 22 sistemade recolhimentoe
Ver também: Sífilis de despesa):53
(o - disciplinar como
Ver também:Baillarger, A. L.
ocupaçãodo tempo,da
f. Bayle, Fournier
vida e do corpo do
Pedagogia:51
indivíduo): 58-9, 64-5, 85-
(a - como "terapia" da
6, 89, 179, 275-6,474-5,477
idiotia e do retardo
(o problemado - analisado
mental): 265
em termos detecnologia,
(- dos surdos-mudos):268
de tática e de estratégia):
Períciamédico-legal:255, 453, 21,459,472-5,477
458-9 (-psiquiátrico):3, 20-1, 91-
Pesquisa(s):269-70,315-8 2, 164, 218, 271, 323-4, 452
Pitiatismo [Babinski]: 448 (- psiquiátricoe práticada
Poder(es) direção):218-9, 224-5
(analíticado-): 49-72 (sobrepoderdos doentes:
(as relaçõesde - como a 350)
priori da prática (- técnico-estatal):122
psiquiátrica): 33-4, 447-8, Poder-saber:439-40, 446, 452,
452, 456-8 458, 477-8
(- de disciplina, disciplinar): Prática(s)
27-32, 34, 50-3, 57-71, 91 (- discursiva):17-8
(desequilibrio do - no (distinçãoentre- asilar e
tratamentopsiquiátrico): teoria médica): 165-7,
182-6 205-6,225-8,235-6
401 t' 1cop aagog:ia: 1uo
(- p iquiátrica): 20-1, 25, p icos ociologia,
33-6,42,44,91,463 psicossociológico:18, 51
(- psiquiátricacomo Psiquiatra(s)
manipulaçãoregradae (dimensãomagistralda
concertadadas relações palavrado-): 232-3, 359-
de poder): 26 60
( 0 - como agentede
Princípio(s)
(- da associação):123 intensificaçãodo real):
(- da distração):123 164,206
(o - como senhorda
(- da "vontade
realidade):163
alheia")[Falret; Guislain]:
(o - como senhorde
183-5
. verdade):230
(- do isolamento):122-3,
V. também:Asilo; Corpo;
129, 140 e 146 n. 5, 179,
Cirurgião; Poder
193,445,451
Psiquiatria
(- ontogênese-filogênese):
(a - como sobrepoder):166,
136
172, 179,202, 206-7, 217,
Prostituição:138-9
235-6,273-4,277,299,
Psicanálise
350, 365, 444-5
(a - como forma de
(a prova de realidadeem -) :
despsiquiatrização): 450, 347-50,477
467 (- farmacológica):449
(cenada-): 39 Ver também:Tautologia asilar
(o nascimentoda - como (crítica institucional
primeiro granderecuo da "externa" da-): 467-8
psiquiatria):170 (crítica institucional
(retomadados elementos "intemau da-): 49 e 73-4
do dispositivo asilar na-): n. 1,323,460-1,466-7
239-40e 254 n. 41 (o poderda - como poder
Psicocirurgia:449 sobrea loucurae sobrea
Psicofarmacologia:453 anomalia):280~1, 363-5
Psicologia Protopsiquiatria,
(- da loucura): 182 protopsiquiátrico·32, 35,
(- do trabalho):106 118,477
Ver também: Cena(s) (- do indivíduo): 230-1
Punição(ões) (marcasdo -) : 230
(o jogo da medicaçãoe da- ): (- médico): 321-2
130-1, 225-6 e 246 n. 17, (o - psiquiátricoe a
231-2, 444-5 instituiçãopsiquiátrica
como instânciade
Refamiliarização : 106-7 normalização):255-6
(- operáriano séculoXIX): (- psiquiátrico):229, 321-2,
103-5 446
Relato autobiográfico Vertambém:Poder-saber
(o - como elementoda Servente(s):7-9
práticapsiquiátricae Serviçomilitar: 101
criminológica): 198, 257, Servidor(es):28-31
412-3 e 435 n. 54 Sexualidade:138-9,419
Resíduo(s) Sífilis
(- do poderdisciplinar: o (a - como causada paralisia
débil mental,o geral): 347 e 375 n. 1, 398
delinqüente,o doente Simulação:167-8, 239, 322,
mental): 67 e 76-7 n. 14, 342 n. 46, 360 e 379 n. 20,
136 409-11,416-7,446
(- histórico, da história): Ver também:Histeria
100, 136 Sistema(s)disciplinar(es):88-
Responsabilidade: 354-5, 447 9, 99, 117-8, 318, 465-6
Ver também:Interrogqtórío Soberania
Restraint: 131 (não-individualizaçãodos
Ver também:Instrumentos; elementosa que se
No restraint aplicamas relaçõesde - ):
Retardomental: 268 56-7
[segundoEsquirol e (transformaçãoda relação
Belhomme]:260-1 de - em poderdisciplinar):
[segundoSeguin]: 262-3 34, 36-7, 99
Ritual Sonho:366-7
(o - geraldo asilo): 182, 185-6 Ver também: Droga; Loucura
Ver também:Cena(s) Stupiditassivemorosis [T. Willis]:
286 n. 8
Saber Sugestão : 446
(- científico): 301-2, 446-7 Ver também: Hipnose
(- da doençamental): 33-4 Sujeição:36, 106, 445, 478
uj ito() Traumati m ( ), traum-tico ):
(- d e nh cim n ): 39, 447 407,409
'' u p ita intomática" (- hipnos ): 412
[ quirol]: 124-5 · 147 n. 8 [ gundoCharc t]: 411-2

Tab I tabético(s)[Duchenne Verdade(s)


d Boulogne]:390-2 (a questãoda - e o poder
Tática(): 91, 122-37 psiquiátrico}: 49-50, 299-
(- da indumentária) 301
[ egundoFerros]: 192 (a questãoda - na loucura):
(- do trabalhoimposto): 165-6,170, 197
192-3,445 (caráterperformativodo
Tautologiaasilar: 206-71 219, enunciadoda - no jogo
277, 452-3,477-8 da cura): 15, 198-9
Teatro (estratagemas de-): 41-2
(o - como lugar terapêutico Qogo da - e da mentirano
da loucurana idade sintoma):168
clássica):443 Gogo da - no delírio e - do
Terapia(s) delírio): 43-4, 162-3
(desedonização da-): 202-5 Verdade-acontecimento: 302-
(- psiquiátrica):179-208 3, 305-17,439-42
Trabalho:192-3,445 (a - como relaçãode poder}:
Ver também:Tática 304
"Transferência":450 Verdade-demonstração : 301-2,
"Tratamentomoral" 305-,6, 315-6, 439-42
(- e cenas protopsiquiátricas): (a - como relaçãode
39 e 48 n. 22 conhecimento):302-3
(- e dispositivo asilar): 189 e (passagema uma
213 n. 28 tecnologiada-): 305-6,
(inadmissibilidadedo desejo 314-7, 441-2
como elementodo -) : 222 Vigilante(s): 7-9, 13
Gagoda realidadeno -) : 221 Violência: 13, 18-20 e 24 n. 18,
(o - como operação 185, 458, 464, 476
terapêutica):12, 23 n. 13, Visita
180 (o rito da-): 358
ÍNDICE DE NOMES DE PESSOAS

Ackerknecht(Erwin Heinz): Auenbrugger(Leopold): 421


252 n. 38, 340 n. 40, 457 n. 6. n. 7.
Adams (R.A.): 421 n. 8. Augustine [paciente]:435 nn.
Adnes (André): 46 n. 5. 54-55.
Agostinho [Aurelius Aurel [paciente]:429 n. 37.
Augustinus,santo]: 110 n. 4, Ayme Gean):468 n. 37.
112 n. 7. Aymen G. B.): 334 n. 24.
Alembert GeanLe Rond d'): Azam (Paul): 385 n. 55.
335 n. 24.
Alençon (Édouardd'): 112 n. 7. Babinski GosephFrançois
AlexandreN [papa]: 331 n. 17. Félix): 419, 437 n. 64.
Algarron Gacques):458. Baillarger Gules Gabriel
Alleau (René):332 n. 21. François):250 n. 33, 347 e
Allen (David F.): 471 n. 44. 376 n. 3, 377 n. 5, 382 n. 37,
Althusser (Louis): 24 n. 21. 398 e 425 n. 21, 424 n. 19,
Amandry (Pierre): 336 n. 29. 425 n. 22, 430 n. 41.
Amard (Louis Victor Frédéric): Baillon (Guy): 472 n. 47.
211 n. 7. Balard (Antoine Jérôme): 379
Amé (CharlesFrançois) n. 21.
[patient]: 383 n. 46. Ballet (Gilbert): 298 n. 73.
Arnauld (Antoine, dit le Balvet (Paul): 74 n. 1, 247 n. 24.
Grand): 174 n. 15. Barbaroux(N.): 114 n. 18.
23. t3ertruerlt'l rr J: 1Lt>• '/ · l4l5
B aglia (Franco):447, 451, nn. 9-12, 146 n. 4.
465 n. 31, 469-70. Berthold de Calabre: 112 n. 7.
Baudin (Louis): 113 n. 11. Bertrand(Alexandre}: 327 n. 6.
Bayard(H nri Louis): 177 n. BesseOeanMartial): 110 n. 3,
20, 246 n. 18, 326 n. 2. 112 n. 7.
Bayle (Antoine LaurentJess"): Bichat (Marie FrançoisXavier):
165 175 n. 17, 340 n. 43, 235 e 251 n. 38,388e 420 n.
347 e 375-6 nn. 2-3, 398, 2, 420 n. 3, 390, 393-4, 441.
424 n. 21, 425 n. 22. Binet (Alfred): 76 n. 14.
Bayle (GaspardLaurent): 251 Bini (Ludo): 246 n. 17.
n. 38. Binswanger(Ludwig): 457 n. 7.
Beauchesne(H.): 290 n. 25. Bixler (ElizabethS.): 248 n. 25.
Beaudouin(Henri): 73 n. 1. Blanche (Esprit Sylvestre):137
Beccaria{ Cesare):22 n. 3. e 152 n. 37, 140-1 e 152 n.
Becher(Hubert): 111 n. 6. 39,212n. 8.
Belhomme(JacquesÉtienne): Bleandonu(Gérard):247 n. 22.
260 e 288 n. 15, 261, 285 n. Boerhaave(Hermann):335 n.
4, 287 n. 10, 289 n. 20. 27.
Belloc (Hippolyte): 195 e 214 Boisseau(Edmond):177 n. 20,
n. 41, 242 n. 3. 433 n. 48.
Bentham(Jeremy):52 e 75 n. Boissierde Sauvages
5, 92-8 e 114 n. 17, 115 n. (François):286-7 nn. 8-9.
29, 117, 127-9, 133. Bollotte (Gustave): 145 n. 1.
Bento de Núrsia [santo]: 109- Bongert (Yvonne): 330 n. 15.
11 nn. 1-3 e 5. Bonnafé(Lucien): 74 1, 343n:
Berghoff (Emanuel):333 n. 23. n. 47, 459-60,466, 467 n. 36.
Bérillon (Edgar): 385 n. 54. Bordeu (Théophile): 334n. 24.
Berke (Joe): 39-40 e 48 n. 23. Borissov (Vladimir): 460 n. 18.
Berliere (Ursmer): 109-10 nn. Bomemann(Ernst): 213 n. 35.
1-3. Borromeu(Carlos,santo): 241
Bernard (Claude): 362 e 379 n. 2.
n. 27. Bouchardeau(G.): 296 n. 69.
Bemardin(AlexandreEdmé Bouché-Leclercq (Auguste):
Maurice): 245 n. 16. 336 ~ 29.
Boucher(Louis): 243 n. 8. Brochin (Hippolyte): 210 n. 4,
Bouchet(Camile): 211 n. 5,250 246 n. 18, 326 n. 2.
n. 31. Brouardel(Paul): 436 n. 60.
Boukovski (Wladimir): 460 n. Broussais(François):441, 455.
18. BroussardO.): 114 n. 18.
Bourgey (Louis): 335 n. 25. Bru (Paul): 243 n. 7.
Bourgin (Georges):114 n. 14. Brucker Ooseph): 111 n. 6, 113
Bourneville (Désiré Magloire): n.11.
177 n. 20 e 253 n. 39, 275-6 Bruno (Giordano):332 n. 21.
e 294-5 nn. 56-60, 279 e Bruttin Oean-Marie):426 n. 24.
296-7 nn. 64-66, 280 e 296 Buntz (Herwig): 332 n. 21.
n. 68, 285 n. 7, 287 n. 10, Burckhardt(fitus): 332 n. 21.
290-1 nn. 30-31, 292 n. 34, Burdin (Claude):384 n .. 49.
292 nn. 36-38, 293 nn. 42- Burton (Mare): 462 n. 24.
43, 294 n. 45, 295 n. 62, 413,
Bus (Césarde): 113 n. 12.
435 n. 54, 436 n. 59.
Butler (Cuthbert):111 n. 5.
BousquetO. B. E.): 382 n. 37.
Buvat-Pochon(Christine): 211
Bouzon Oean):116 n. 33.
n. 7.
Braguettedita (viúva
Brouillard), [paciente]:168-9
Caire (Michel): 248 n. 25.
e 177 n. 21, 369 e 384 n. 48.
Calmei} (Louis Florentin): 288
Braid Games):370-1 e 384 n.
51, 385 nn. 54-55. n. 19, 340 n. 43, 424 n. 19.
Braun (Lucien): 332 n. 20. Canguilhem(Georges):256 e
Brauner(Alfred): 290 n. 25. 284 n. 1.
Bredero (Adriaan Hendrik): Canivez Ooseph-Marie):110
110 n. 2. n.3.
Briand (Marcel): 292 n. 39. Caquot (André): 336 n. 29.
Brierre de Boismont (Alexandre Caro (Elme Marie): 242 n. 2.
JacquesFrançois):137e152 Caron (Michel): 332 n. 21.
n. 36, 141-2 e 152 n. 40, 147 Castel(Robert): 24 n. 13, 46 n.
n. 7, 212 n. 8. 9, 108, 254 n. 41, 295 n. 61,
Briffaut Oean-Baptiste Lodois): 342 n. 44, 469 n. 41, 470 n.
423 n. 18. 44, 473 n. 49.
Briquet (Paul): 436 n. 59. Cele Qean): 76 n. 13.
Broca (Pierre Paul): 369-70 e Cetina [paciente]:415 e 435 n.
385 n. 55, 391 e 422 n. 9, 57.
392-4 e 423 nn. 16-17. Cerise (LaurentAlexis
rl tti (Ugo): 246 n. 17. 'out aux u.J: 'L j n. õ.
h gn (André): 244 n. 10. Cox O ph Mason): 41 e 48
Chantrain (Pi rr ): 328 n. 10, n. 24, 160 e 174 n. 11, 163-4,
35 n. 25. 170, 211 n. 7.
ChaptalO an Antoin , conde Cranefield(Paul): 286 n. 8.
de Chanteloup):243 n. 8. Cullen (Willaim): 285 n. 7, 425
Charcot(T an-Martin): 123, n.24.
168-9, 177 n. 20, 256 e 284
n. 3, 280, 343 n. 48, 350, 373, Daquin Qoseph):135 e 151 n.
387-8 e 420 n. 4, 401-19, 31, 210 n. 4, 285 n. 61 287n. 9~
420 n. 1, 425 n. 19, 427-30 Daremberg(CharlesVictor):
nn. 27-41, 445-50,475-7. 334 n. 23, 335-6 nn. 26-27,
Charlesworth(Edward): 149 338 n. 37.
n. 18. Darwin (CharlesRobert): 151
Chassaigne(Mare): 76 n. 10.
n. 33, 282 e 297 n. 71, 296
Chastenet(Armand Marc
n. 70.
Jacquesde, marquêsde
Darwin (Erasmus):211 n. 7.
Puységur):383 n. 46.
Christian Qules): 376 n. 2. Daumezon(Georges):74 n. 1,
Cochin (Auguste):116 n. 35, 147 n. 6, 247 n. 22, 343 n. 47.
293-4 n. 44. Davaine (CasimirJoseph):289
Cochin QeanDenys Marie): n. 22.
293-4 n. 44. Davenne(Henri Jean
Cognet(Louis): 75 n. 4, 113 Baptiste):116 n. 33, 289 n.
n. 9. 21, 290 n. 30, 293 n. 40,294
Condillac (ÉtienneBonnot n. 44, 295 n. 63.
de): 97 e 115 n. 28. Dechambre(Amédée):178 n.
Conolly Qohn): 149 n. 18. 21, 379 n. 21.
Cooper(David): 447,451,460 Defert (Daniel): 47 n. 11, 329
n. 18,465n.31,470-1,476 n.13.
n.55. DefradasOean):336 n. 29.
Copérnico(Nicolau): 171. DehaussyQacques):116 n. 34.
CorvisartdesMarets (Jean Dehove(Gérard):114 n. 14.
Nicolas): 421 n. 7. Déjerine (JosephJuse) : 296 n.
Coulmiers(Fraçoisde): 244 n. 70, 377 n. 5, 427 n, 27.
10. Delasiauve(Louis): 430 n. 41.
Delaye (Jean-Baptiste): 176 n. Duchenne (Guillaume
18, 340 n. 43, 424 n. 19. BenjaminAmand, dito de
Delcourt (Marie): 327 n. 8, 327 Boulogne): 373 e 386 n. 61,
n. 9. 390-1 e 421 n. 8, 422-3 nn.
Deleuze (Gilles): 108. 10-15, 405, 419.
Delsaut (Pierre Joseph): 251 Dudon (Paul): 241 n . 2.
n. 38. Ducpetiaux(Édouard): 116 n.
Demersay(Alfred): 111 n. 6, 35.
113 n. 11. Duffin (Jacalyn): 252 n. 38.
Demetz(FrédéricAuguste): Dupin (Henri): 339 n. 38.
116 n. 35. Dupotetde Sennevoy(Jules):
Derrida (Jacques):382 n. 39. 177 n. 21, 327 n. 6,384n. 47.
Desaive(Jean-Paul):339 n. 38. Dupré [paciente]: 180-208 e
Descartes(René):34 e 4 7 n. 211 n. 6, 212 n. 15, 215 n.
11, 161 e 174 n. 14, 366 e 61, 221 e 242 n. 6, 378 n. 13.
382 n. 39. Dupuy (J.-Marc): 146 n. 5.
Detienne(Marcel): 329 n. 12. Durand (Jean-Pierre , dito
Devernoix (Pierre): 342 n. 44. Durandde Gros) [a.lias
Dewhurst(Kenneth):334 n. 23. JosephPhilips]: 3.71 e 385-6
Diderot (Denis): 335 n. 24. nn. 56-60.
Dolleans (Édouard):114 n. 14. Duval (André): 111 n. 4.
Doncoeur(R. P.): 241 n. 2.
Doutrebente(Georges):378 Eckhart Qohannes , dito
n. 7. Mestre): 75 n. 4.
Dowbiggin (Ian Robert): 297 Edelstein(Ludwig): 333 n. 22.
n. 72. Einstein (Albert): 171.
Dreyfus (Ferdinand):116 n. 34. Eliade (Mircea): 332 n. 19, 332
Duarte (JoãoCidade):244 n. 10. n. 20.
Dubois (Frédéric,dito Dubois Ellenberger(Henri F.): 343 n.
de Amiens): 384 n. 49, 424 48, 384 n. 46, 472 n. 47,
n.19. 476- 7.
Dubois (Jean):422 n. 9, 423 n. Erichsen(John Eric): 432 n. 46.
16. Esmein (Adhémar): 330 n. 15,
Dubuisson(Jean-Baptiste 331 n. 16.
ThéophileJacquelin),. v.: Espinosa(Baruch): 380 n. 34.
JacquelinDubuisson. Esquirol (JeanÉtienne
Dubuisson(Paul): 342 n. 45. Dominique): 6 e 22 n. 5, 23
14, 149 n. 16, 150 n. 21, 158, F rrus (Guillaume Marte
174 n. 14, 175-6 nn. 17 e 18, André): 151 n. 27, 192 213
183 ,e 212 n. 13, 190 e 213 n. n. 36, 250 n. 32, 253 n. 39,
30, 227 e 246 n. 19, 228 e 268 e 292 nn. 34-35, 295 n.
247 n. 24, 232 e 250 n. 31, 63, 424 n. 19.
241 n. 1, 244 nn. 10 e 12, Fiorelli '(Piero): 331 n. 17.
245 n. 15, 260 e 288 n. 14, Fischer-Homberger(Esther):
288 n. 16, 261 e 288-9 nn. 433 n. 46.
18-20, 263-4, 267, 285 n. 4, Flaceliere(Robert): 327 nn. 8 e
287 n. 11, 289 nn. 23 e 25, 9~ 336 n. 29.
340-1 n. 43, 342 n. 45, 354, Flewy (Louis JosephDésiré):
362, 366 e 380-1 n. 3S, 377 426 n. 24.
n. 5,384 n. 48, 424 n. 19, Fodéré(FrançoisEmmanuel):
435 n. 53, 443-5, 451, 455, 4 e 22 n. 1, 6-10 e 23 n. 8,
466, 467 n. 36. 37 e 47 n. 16, 118, 122 e 146
Esterson(Aaron): 470-1. n. 3, 210 n. 4, 286 n~7, 435
Éwald (François):47 n. 11, 146 n.53.
n. 1, 242 n. 2. Foissac(Pierre): 383 n. 44.
Ey (Henri): 381 n. 36,425n. Follin (EugeneFrançois):38S
22, 475 n. 54. n. 55.
FonssagrivesOean-Baptiste) :
Faber(Knud): 334 n. 23. 210 n. 1.
Fainberg(Victor): 460 n. 18. Fontana(Alessandro):146 n.
Falret Oean-Pierre): 146-7 nn. 1, 242 n. 2, 342 n. 45.
5-6, 149 n. 16, 176 nn. 18- Fontanille (Raphael): 342 n. 45.
19, 183, 189, 210 n. 3, 232-3 FoumetOules): 135 e 151 nn.
e 250-1 nn. 34-37, 249 nn. 30-32, 137 e 152 n. 34, 147
28-29, 253 n. 39, 268 e 292 n .. 7.
n. 33,291n. 32,341 n. 43, Foumier (Alfred) : 375 n. 1.
378 n. 15. Foville (Achille [de}) : 176 n.
Falret OulesPhilippe): 295 n. 18, 288 n. 19, 341 n. 43-, 424
63,399e 426 n. 26,435n. 58. n. 19, 426 n~24.
Fassbinder(Maria): 113 n. 11. Franchi Qean): 243 n. 8.
Féré (Charles):296 n. 69, 429 Franciscode , sis ( anto): 111
n. 35. n. 7.
Franciscode Sales(santo): 242 185 e 212 n. 18, 245 n. 16,
n. 2. 285 n. 5, 286 n. 8, 287 n. 11,
FredericoII (rei): 60. 288 n. 19, 289 nn. 20 e 22,
Freud (Sigmund): 123, 170, 327 n. 6, 340 n . 42, 341 nn.
208, 213 n. 35, 280, 297-8 n. 43-44, 369 e 384 nn. 48-50,
73, 381 n. 36, 400 e 427 n. 423 n. 18, 424 n. 191 435 n.
28, 417 e 436 nn. 60-61, 455. 53.
Funck-Brentano(Frantz): 243 Gerdy (P-N .): 424 n. 19.
n. 7. Gerspach(Édouard): 76 nn. 9
e 11.
Gaillac (Henri): 114 n. 18, 116 Gicklhom (Josef): 436 n. 61.
n. 33. Gicklhorn (Renée): 436 n. 61.
Galbraith (GeorginaR.): 110 Girard de Cailleux (Henri): 126
n.4. e 148 n. 9, 193 e 214 n. 40,
211 n. 6, 214 n. 39, 227 e 247
Galeno [ClaudiusGalenus]:
n. 21, 228 e 247 nn. 22~23.
314 e 337-8 n. 35, 334 n. 24.
Giraudy (CharlesFrançois
Ganzenmüller(Wtlhelm): 332
Simon): 244 n. 10, 250 n. 30.
n. 21.
Glotz (Gustave):330 n. 15.
GarrabéGean): 248 n. 25.
Goffman (Erving): 473-4.
Garrison (Fielding Hudson):
Gontard(Maurice): 293 n. 41.
386 n. 61. Goubert(Pierre): 339 n. 38.
Gasparin(Adrien, condede): Gratien (Badin): 112 n. 7.
46 n. 9. Greenwood(Major): 340 n. 41.
GastaldyGoseph):244 n. 10. Gregório IX [papa]: 331 n. 17.
GaudemetGean):330 n. 15. Griesinger(Wtlhelm): 246 n.
Gaufres(M. J.): 76 n. 13, 113 18, 376 n. 3, 378 n. 17, 425
n. 10. n. 21.
Gauthier(Aubin): 178 n. 21, Grigorenko (Piotr): 460 n. 18.
327 n. 6. Grmeck (Mirko Drazen):252
Genevieve[paciente]: 418 e n. 38.
436 n. 62. Groote (Gérard): 74-5 n. 4, 83.
Génil-Perrin (Georges): 298 Guattari (Félix): 108, 468.
n. 73. Guestel(Charles):214 n. 39.
Gentis (Roger): 462 n. 24. Guillain (Georges): 243 n. 8,
Georget(ÉtienneJean):23 n. 400 e 427 n. 27.
13, 35 e 47 n. 12, 37 e 47 n. Guillemaud(Oaude): 431 n. 45.
17, 168, 176 n. 18, 177 n. 21, Guilleret [tapeceiro]: 150 n. 23.
Uuirauct U anJ: ~-'1 n. 11 . rnpu T • ,U:I it: Ovk 1 • LL 1

ui lain (J eph): 37 47 n. 311 336 n. 28, 313, 327 n.


18, 146 n. 5, 150 nn. 20-21, 10, 335 n. 25, 337 nn. 30--33.
150-1 nn. 23... 24, 209 n. 1, Hobbes(fhom ) : 71 e 77 n.
210 n. 4, 211 n. 7, 212 n. 14, 15.
245 n. 15, 246 n. 16. HofbauerOohannChristoph):
Gui2ot (Françoi Pierre 342 n. 45, 443.
Guillaume): 269 e 293 n. 41. Hoffman (Friedrich): 317 e 338
Guzman(Dominique de): 110 n. 37, 335 n. 27.
n. 4. Honório III [papa]: 110 n. 4.
Huard {Píerre): 252 n. 38.
Habill [paciente]:430 n. 38. Hunter (Richard): 45 n. 2.
HackTu.ke (Daniel): 433 n. 46. Husserl(Edmund):328 n. 11.
Halliday (William Reginald): Husson(Bernard):332 n. 21.
336 n. 29. Husson(Henri Marie): 177 n.
Hamelin (G.): 335 n. 25. 21, 327 n. 6, 384 n. 47.
Hamon (Georges):431 n. 43. Hutin (Serge):332 n. 21.
Hamoniaux(M.) 114 n. 18. Huvelin (Henri): 242 n. 2.
Hannaway(Caroline): 338 n. Hyma (Albert): 75 n. 4.
38.
Haslam(John): 6 e 22 n. 6, 12 Ilberg Oohannes):338 n. 35.
e 23 n. 13, 37 e 47 n. 13, 149 Imbault-Huart(Marie-José):
n.18. 252 n. 38,339 n. 39.
Hatzfeld (Henri): 431 n. 43. Inácio de Loyola [migo López
Haussmann(GeorgesEugene, de Loyola]: 111 n. 6, 241 n. 2.
barão):214 n. 39, 247 n. 22, InocêncioN [papa]: 112 n. 7,
248 n. 26. 331 n. 17.
Haymaker(Webb): 421 n. 8. Itard OeanMarc Gaspard):268
Hébert [paciente]:383 n. 46. e 291 n. 31, 289 n. 25.
Hécaen(Henri): 422 n. 9, 423 '
n.16. JacquelinDubuissonOean-
Hecquet(Philippe): 209 n. 1. BaptisteThéophile): 259
Heidegger(Martin): 328 n. 11. 288 n. 12, 267, 286 n. 8.
Helvétius (QaudeAdrien): 97 Janet(Pierre): 455.
e 115 n. 29. Jean- my (Claud ):111 n. 5.
Jervis (Giovanni): 469 n. 41. Laingui (André): 145 n. 1.
Joeger(Murielle): 339 n. 39. Lallemand(Léon): 116 n. 33.
Joly (Robert): 333 n. 22. La Mettrie Oulien Offray de):
Joos (Paul): 328 n. 10. 430 n. 39.
JorgeIII [rei]: 27 e 45-6 nn. 2 e Lancelot (Claude):174 n. 15.
3, 32, 34,37-40, 50, 52,475. Landré-Beauvais(Augustin
JouannaOacques):333 n. 22. Jacob):382 n. 41.
Juchet0.): 248 n. 25. Larguier (Léo): 243 n. 8.
Laurent (Armand): 177 n. 20,
Kanner (Leo): 287 n. 10. 379 n. 20, 433 n. 48.
Kant (Immanuel):380 n. 34. Lauzier Oean): 74, n. 1.
Kantorowicz (Ernst): 57 e 75 Lea (Henry Charles):112 n. 7,
n. 6, 115 n. 31. 331 nn. 16-17.
Kaplan (Steven):114 n. 14. Lear [O rei, ver: Shakespeare] :
Kepler Oohannes):171. 27 e 46 n. 5.
King (Lester Snow) 286 n. 8, Leblanc (Sébastien):244 n. 10.
334 n. 23, 336 n. 27. Leborgne[paciente]:422 n. 9.
Knowles (David): 109 n. 1. Le Breton Oacques):152 n. 37.
Koechlin (Philippe): 147 n. 6. Lecler Ooseph):109 n. 1.
Koyré (Alexandre):113 n. 9. Leclercq (Henri): 331 n. 17.
Kraepelin (Émile): 445. Le Filliatre (Gustave): 375 n. 1.
Kraft (Ivor): 294 n. 47. Le Gaufey (Guy): 247 n. 22.
Kucharski (Paul): 328 n. 10. Le Goff Oacques): 112 n. 7.
Legrain (Paul Maurice): 297
Labatt (Hamilton): 149 n. 18. n. 70.
Labbé (Denise):458. Legranddu Saulle (Henri):
Labitte (Gustave):173 nn. 1, 3 145 n. 1, 210 n. 1, 431 n. 44.
e 5. Le Guillant (Louis): 343 n. 47.
La~nnec(RenéThéophile Leibovici (Marcel): 336 n. 29.
Hyacinthe): 251 n. 38, 388 e Lekai (Louis Julius): 110 n. 3.
420 n. 3, 390 e 421 n. 7, 393, Le Logeais [paciente]:434 n.
395,419. 51.
Lafontaine (Charles):384 n. Lélut (Louis Francisque):288
51. n. 19, 424 n. 19.
Lailler [farmacêutico]:326 n. 2. Le Paulmier(ClaudeStephen):
Lâiné (Tony): 460. 284 n. 2.
Laing (RonaldD.): 447, 465 n. Le Roy Ladurie (Emmanuel):
31, 470-2. 339 n. 38.
14 n. ó., 1 "- n. ~,, .1o1 "-' l i , u, v# 7 J.l, 4V•

174 n. 14, 180-2 e 212 n. 8, argolin O an-Oaud): 332


186-205 212 n. 19, 207, n. 20.
213 nn. 28 e 31, 215 nn. 43 Marie (Perre):423 n. 17, 432-3
52-62, 218 e 241 n. 1, 220 e nn. 46-47, 423 n. 17.
242 n. 4 - 221 e 242 nn. 5-6, Marin (Louis): 174 n. 15.
224 e 244 n. 11,230,250n. Marindaz (Georges):243 n. 7.
32, 272, 288 n. 19, 340 n. 42, Marivaux (PierreCarlet de
Chamblainde): 98 e 115 n.
360, 378 n. 12, 445.
Lévy Oean-Philippe): 330 n. 30.
Marte! OeanGeorges
15, 331 n. 16.
Hippolyte): 247 n. 20.
Libert (Lucien): 145 n. 1.
Martin (T.G.G.): 290 n. 25.
Lichtenthaeler(Charles):333
Mason Cox, v.: Cox.
n. 22.
Massé(L.): 339 n. 38.
Liebig Qustus):326 n. 2.
Mathieu (Paul): 243 n. 8.
Littré (Émile): 328 n. 1O, 426
Matton (Sylvain): 332 n. 20.
n %Ä 24.
Maury (Alfred): 381 n. 36.
Longet (FrançoisAchille): 424
Maxwell OamesOerk): 171.
n.19.
Meduna(Laszlo von): 246 n.
Lourdaux (Wtllem): 75 n. 4.
17.
Lubimov (Alexei): 284 n. 3. Mesmer(Antonius): 384 n. 46,
Lucas (CharlesJeanMarie): 385 n. 54.
114 n. 18. Meyer Oean):339 n. 38.
Lugon (Oovis): 113 n. 11. Mialle (Simon): 384 n. 46.
Micale (Mark): 471 n. 44.
Macalpine (Ida): 45 n. 2. Michéa (ClaudeFrançois):209
MacPherson(Crawford n. 1, 377 n. 5, 424 n. 19~
Brough): 77 n. 15. Michel (Albert): 330 n. 15.
Magendie(François):421 n. 8. Michelet (Marcel): 75 n. 4.
Magnan(Valentin): 150 n. 23, Mignont {Henri): 343 n. 47.
296-7 nn. 69-70, 425 n. 19. Millepierres (François):337
Mahn Oean-Berthold):110 n. 3. n. 34.
Maisonneuve(Henri): 331 n. 17. Mir (G briel Codina): 76 n. 13
Malson (Lucien): 291 n. 31. Moliere (dito Jean-Baptite
Mandonnet(Pierre): 111 n. 4. Poquelin):313 e 337 n. . .
Monfalcon Oean-Baptiste): Obolensky(Dimitri) : 109 n. 1.
116 n. 33. <Echslin (R. L .): 111 n. 4.
Monneret(Édouard): 426 n. 24. Olier Oean-Jacques): 242 n. 2.
Monteggia (Giovanni Olphe-Galliard (Michel): 242
Battista): 379 n. 20. n. 2.
Monval Oean):244 n. 10. Oppenheim(Hermann): 432
Moore (Stanford):375 n. 1. n. 46.
Moorman Oohn): 112 n. 7. Orcibal Oean): 112 n. 9.
Moreau de Tours Ooseph Oury Oean): 468 n. 37, 468.
Jacques):209 n. 1, 250 n. 30, Owen (Alan Robert George):
326 n. 5, 361- 7, 377 nn. 5 e 431 n. 42.
7, 379 nn. 25-26, 380 nn. 29-
33, 382 nn. 37, 38 e 40, 383 Pacaut(Marcel): 109 n. 1.
Page(HerbertWilliam): 432
n. 42, 424 n. 19.
Moreau de Tours (Paul): 284
n. 46.
ParchappedeVinay Gean-
n. 2.
BaptisteMaxirnien): 227 e
Morei (BénédictAugustin):
246 n. 20, 253 n. 39, 271 e
150 n. 19, 151 n. 27, 246 n.
294 n. 46, 424 n. 19.
18, 282 e 296-7 nn. 70-71,
Parentde Curzon
360 e 379 n. 24, 377-8 n. 7.
(Emmanuel):116 n. 33.
Muel (Francine):77 n. 14.
Parigot G.): 151 n. 30.
Müller (Charles):45 n. 1. Parmênides:327 n. 7.
Muratori (Lodovico Antonio): Pasteur(Louis): 442, 447-8.
113 n. 11. Paulo III [papa]: 111 n. 6.
Myrvold (Renate):287 n. 10. Paumelle(Philippe): 343 n. 47.
Peisse(Louis): 385 n. 53.
Nadaud(Martin): 431 n. 43. Pelicier (Yves): 290 n. 25.
Netchine (Gaby): 77 n. 14, 287 Penot(Achille): 115 n. 32.
n. 10. PeterGean-Pierre):339 n. 38.
Newton (Isaac): 98. Petit (Marc-Antoine): 251 n. 38.
Nicole (Pierre): 174 n. 15. Pétronille [paciente]: 168-9 e
Noguchi (Hideyo): 375 n. 1. 177 n. 20, 369 e 384 n. 48-50.
Nottarp (Hermann):330 n. 15. Philips Goseph),v.: Durand.
Nutton (Vivian): 338 n. 35. Pinel GeanPierre Casimir):
Nyffeler OohannRudolf): 151 137 e 152 n. 35.
n. 31. Pinel (Philippe): 4 e 22 n. 4, 6,
131, 135 151 n. 31, 137 e 1,ey ()....nmpp
J: L.O'J e L.':J~ n. 'i-'·
152 n. 35, 148 n. 15, 161 Richard Oean-Pi e): 431 n. 43.
174 n. 10, 163-4, 170, 176 n. Ricardom [rei, ver
18, 177 n. 20, 183 e 212 n. Shakespeare}:27 e 46 n. 4.
12, 210-1 nn. 3, 5 e 6, 218 e Richer (Marie Louis Pierre):
240 n. 1, 230-1 e 248 n. 25 e 428 n. 34.
249 n. 27, 243 n. 7, 249 n. Riese (Walther): 386 n. 61.
30, 267, 287 nn. 8 e 10, 288 Ritti (Antoine): 287 n. 8, 375-6
n. 13, 362, 367 e 382 n. 41, nn. 1-2.
376 n. 5, 400 e 427 n. 28. Riviere (Pierre): 342 n. 44, 354
Pinel (Scipion): 45 n. 1. e 378 n. 11.
Robertode Molesmes[santo]:
Platão:302 e 327 n. 7.
110 n. 3.
Ploss(Emil Ernst): 332 n. 21.
Robin (CharlesPhilippe): 426
Pohlenz(Max): 333 n. 22.
n. 24.
Portalis OeanÉtienneMarie):
RochardOulesEugene):252
145 n. 1.
n. 38,
Porter (Roy): 471 n. 44.
Rochemonteix(Camille de):
Pottet (Eugene):243 n. 9.
76 n. 12. .
PussinOean-Baptiste):13, 229
Rollet (Claude):116 n. 33.
e 248 n. 25.
Roosen-Runge(Heinz): 332
Puységuir,v.: Chastenet. n. 21.
Rosen(George):339 n. 39,340
Quétel (Claude):210 n. 4. n. 41.
Rostan(louis Léon): 176 n. 18,
Race (Victor) [paciente]:383 177 n. 21, 327 n. 6, 384 n.
n. 46. 48, 424 n. 19. ,
Rancé[abadede]: 242 n. 2. Rothschuh(Karl E.): 336 n. 27.
Rappard(Philippe): 468 n. 37. Rouhier (Eugene):150 n. 23.
Rapin (Georges):458-9. Roux (Georges):327 n. 8.
Raynier Oulien): 73-4 n. 1. Royer-Collard(Antoin
RécamierOoseph):327 n. 6. Athanase):175 n. 17, O
Rechde Montpellier (Armand n. 43.
PhilippeHippolyte): 211 n. 6. Rucart (Marc): 74 n.1.
Reisseisen(François-Daniel):
341 n. 44. Sackler(Arthur M.): 2 n. 7.
Sade(DonatienAlphonse Sydenham(Thomas):208-9
François,marquêsde): 22 nn. 1-2, 286 n. 8, 310 e 333-
n. 2. 4 nn. 23-24, 335 n. 26.
SagarGean-Michel): 285 n. 7. Szasz(Thomas):343 n. 48, 451.
Saint-Yves (Isabelle):290 n. 25.
Samson(Catherine)[paciente]: Tanon (CélestinLouis): 330 n.
327 n. 6, 384 n. 47. 15, 331 n. 17.
Sauzet(Marc): 114 n. 14. Taylor (Frank Sherwood):332
Schiller (Francis):421 n. 8. n. 21.
Schipperges(Heinrich): 332 Terme Gean-François):116 n.
n. 21. 33.
Seguin(OnésimeÉdouard): Temkin (Owsei): 252 n. 38,
260, 262-8 e 289-90 nn. 25- 424 n. 18.
30, 292 n. 35, 271-5 e 294 Thomasa Kempis [dito
nn. 47-55, 280, 287 n. 10. ThomasHemerkan]:75 n. 4.
Semelaigne(René):149 n. 18, Thomsen(R.): 432 n. 46.
151 n. 27, 248 n. 25, 250 n. 31. Thuillier (Guy): 290 n. 25.
Senés(V.): 431 n. 43. Torrubia (Horace): 468 n. 37.
Sérieux (Paul): 145 n. 1, 296 Tosquelles(François):343 n.
n. 69. 47,469.
ServanGosephMichel Toulouse'(Édouard):73-4 n. 1.
Antoine): 22 n. 3, 50 e 74 n. 3. Tourdes(Gabriel): 177 n. 20,
Sessevalle(Françoisde): 112 433 n. 48.
n. 7. Trélat (Ulysses):212 n. 8.
Sevestre(Pierre): 244 n. 10. Trénel (Marc): 145 n. 1.
Shakespeare (William): 46 nn. Trilhe (Robert): 110 n. 3.
4-5. Tschudy(Raymond):111 n. 5.
Sicard (R.-A.): ~91 n. 31. Tuke (Samuel):149 n. 18.
Simon (Nadine): 243 n. 8. Tuke (William): 23 n. 13, 149
Simon (Théodore):75-6 n. 14. n. 18.
Sócrates:327 n. 7. Turgot (Anne RobertJacques,
Soubeiran(Augene): 326 n. 2. barãode L'Aulne): 338 n. 38.
Souques(AlexandreAchile
Cyprien): 431 n. 45. Vacandard(Elphege):330 n.
Strauss(Charles): 244 n. 10. 15, 331 n. 17.
Surzur GeanMarcel Joseph): Valentin (Louis): 245 n. 15.
243 n. 7. Vallery-Radot (René):152 n. 37.
50 O PODER IQUIÂTRICO

Valou (Guy d ): 110 n. 2. Vlastos (Gr gory): 327 n. 9.


Van Brock (Nadia): 335 n. 25. Voisin (Auguste):150 n. 23,
Van Helmont Oean-Bapti te): 291 n. 32, 377 n. 5.
209 n.1. Voisin (Félix): 175 n. 18, 268 e
Van Ruysbroek[Ruusbroec, 291 n. 32, 270, 279 e 296 n.
Rusbrochius]( Jan 67, 290 n. 25, 292 nn. 34-35,
fJohannes]):75 n. 4, 83 e 341 n. 43.
112 n. 9.
Veith (Ilza): 334 n. 23. Walsh Oean):338 n. 35.
Velpeau (Alfred Armand Louis Watterwille (Adolphe [Du
Marie): 385 n. 55. Grabe] de): 116 n. 34.
VemantOean-Pierre):336 n. 29. Wemer (Ernst): 109 n. 1.
Vemet (Félix): 112 n. 7. Wtllis (Francis): 26 e 46 n. 3,
Viala (CasimirJean):116 n. 34. 28-30, 34, 50.
Vibert (Charles):433 n. 46. Willis (Thomas):286 n. 8~
Vicaire (Marie-Humbert):110 Wrriot (Mireille): 250 n. 33.
n.4. Woillez (EugeneJoseph): 173
Vié Oacques):243 n. 9, 286 n. 1.
n. 8.
Vicente de Paulo: 242 n. 2, 243 Yates (FrancesAmelia): 332 ri.
n. 9A 21.
Victor [de YAveyron]: 291 n. 31.
Vigouroux (Auguste):342 n. 45. Zaloszyc(Armand): 297 n ~70.
Vincent (Francis): 242 n. 2. Zazzo (René): 77 n. 14.
Vmchon Oean): 286 n. 8. Zimmerman(B.): 112 n. 7.
íNDICE DE NOMES DE LUGAR

Auxerre [asilo, hospitalde]: Charenton[hospital e


126 e 148 n. 9, 193 e 214 n. pensionatoparaalienados,
40, 247 nn. 21 e 22, 462 depois"hospitalEsquiroJH]:
10,181,197,199,220,223 e
Beaujon[hospício,depois 244 n. 10, 250 n. 31, 340 n. 43
hospital]: 434 n. 51 Cister [abadia,ordemde}: 81 e
Bethléem,Grã-Bretanha 110 n. 3
[hospital]: 23 n. 13, 149 n. 18 Clermont-en-Oise[asilo}:
Bicêtre [asilo, depoisprisão, 155-9, 173 n. 1
Ouny [abadia, ordemde]:
depoishospital]: 10, 25 e 45
109-10 nn. 2 e 3
n. 1, 36, 38, 131, 148 n. 9,
181, 193 e 214 n. 39, 197 e
Fitz-James[casade saúde ,
242 n. 7, 225 e 244 n. 11, colônia]: 155-9 e 173 nn. 1-3
229 e 248 n. 25, 232 e 250 n.
32, 253 n. 39, 268 e 292 n. Ghéel [colônia]: 151 n. 30, 209
34, 272, 276,290 nn. 25 e 30, n. 1, 250 n. 30
292 n. 34, 294 n. 59, 378 n. Gorizia [hospital de]: 447, 465
12, 422 n. 9 n. 31
Bo.urg [asilo de]:·148 n. 9 Grande-Chartreuse[abadia]: 3

Casteld'Andorte [casa de . Hanwell, Grã-Bretanha


saúde]: 146 n. 5 [hospital de]: 149 n. 18
Hôt 1-Di u (d Pari ) Saint-AntoinelFaubourg]:
[h pício, ho pital]: 152 n. 141, 152 n. 39
34, 177 n. 21, 243 n. 8, 244 Saint-James[antiga Folie
n. 10, 251 n. 38, 327 n. 6, Saint-James,depoiscasade
384 n. 47,434n. 51 saúdede C. Pinel]: 152 n. 3S
Saint-Lazare[antigo
Is y-les-Moulineaux leprosário,depoishospital e
[ stabelecimentoortofrênico presídiofeminino]: 223 e
de]: 291 n. 32 243 n. 9
Saint-Mandé[casade saúde
Kingsley Hall, Grã-Bretanha do dr. Brierre de Boismont
[casade saúde]:39, 48 n. 23 em]: 152 n. 36
Saint-Pierre (de Marselha)
La Borde [clínica de]: 468
[asilo]: 293 n. 43
Leningrado[hospital
Saint-Yon [asilo de]: 149 n. 18,
psiquiátricoespecial de]:
181, 197
460 n. 18
Sainte-Anne[antiga
Lyncoln Asylum, Grã-
fazenda,depoisasilo,
Bretanha:149 n. 18
hospital]: 73 n. 1, 193 e
Mettray [colônia de]: 105 e 214 n. 39, 247 n. 22
116 n. 35, 136 e 151 n. 32 Sainte-Colombe[casade
Montmartre[casade saúde do saúdeJ: 152 n. 36
dr. Blancheem]: 152 n. 37 Salpêtriere[antigo hospital
geral paraindigentes,
Necker [hospital]: 421 n. 7 depoisasilo, hospital}:
161, 168-9, 171, 175-6 nn.
Passy[clínica do dr. Blanche 17-9, 199-200,223 e 243
em]: 152 n. 37 n. 8, 232 e 250 nn. 31-2,
Pentonville,Grã-Bretanha 253 n. 39, 268 e 292 nn. 38-
[prisão]: 92 e 114 n. 17 9, 327 n. 6, 341 n. 43, 368,
Perray-Vaucluse[asilo, colônia 382 n. 41, 384 n. 48, 388,
de]: 76 n. 14, 247 n. 22, 268 401, 404,417, 428 n. 34,
e 292 n. 36, 293 n. 43 437 n. 62
PetiteRoquette[prisão de]: 92 Serb ki (I stituto), UR S:
e 114 n. 18 460 n. 18
Por "função ''. entendo
não apenas o discurso mas
a instituição e o indivíduo
psicológico

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