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DISSENSOS E DISSONÂNCIAS: CONFRONTOS IDENTITÁRIOS

EM TORNO DO METAL EXTREMO CRISTÃO

Giselle Xavier D’Ávila Lucena1

Resumo: Este artigo faz parte de uma pesquisa em andamento, sobre bandas cristãs de
metal extremo – uma vertente do heavy metal que reúne os subgêneros black, trash e
death metal, caracterizados pela sonoridade mais pesada e poética visual mais agressiva,
em comparação aos demais. Neste trabalho, propõe-se compreender o heavy metal como
um ambiente cultural permeado de múltiplos sentidos e maleável a diferentes usos
apropriações simbólicas de diversas naturezas, porém, não desprovido de situações
confrontos e controvérsias. A partir de Stuart Hall e as expressões das identidades
culturais marcadas a partir da identificação do diferente, juntamente às noções de cenas
de dissenso, de Ângela Cristina Marques, observa-se os manifestos ocorridos em Belo
Horizonte, em 2013, durante o show da Antestor, banda norueguesa, cristã, de unblack
metal. Evidencia-se que as cenas de dissenso que parecem essenciais para a dinâmica
identitária dos participantes que compõem o movimento.

Palavras-chave: Identidades culturais. Cenas de dissenso. Heavy metal extremo.


Cristianismo.

Apresentação

Este artigo faz parte de uma pesquisa em andamento sobre bandas cristãs de heavy
metal. Tratamos de grupos ligados ao “metal extremo”, uma vertente que inclui os
subgêneros black, trash e death metal, caracterizados pela sonoridade mais pesada e
poética visual mais agressiva, em comparação aos demais. Neste artigo, propomos
observar as dinâmicas deste movimento cultural que, ao ter seus bens circulando de forma
midiatizada, se propaga e se constrói historicamente sujeito a diferentes usos a
apropriações. Tal maleabilidade, porém, não é desprovida de disputas, confrontos e
controvérsias. Especialmente no que se refere aos músicos que se apresentam como
cristãos, estes são, de modo frequente, alvo de rejeição e violência por parte dos contrários
a esta perspectiva religiosa. No entanto, este dissenso é o que parece fortalecer e
potencializar dinâmicas identitárias dos envolvidos.
O recorte empírico se direciona a um episódio ocorrido na cidade de Belo
Horizonte, Minas Gerais, em janeiro de 2013, durante um show da Antestor, banda

1
Doutoranda em Comunicação na UNESP/Bauru. Professora da Universidade Federal do Acre – UFAC.
E-mail: giselle.lucena@unesp.br.
norueguesa, de unblack metal, que recebeu protestos por parte dos que não compactuam
com a vinculação deste estilo musical à mensagem cristã. O trabalho está dividindo em
quatro partes. Iniciamos abordando o heavy metal e seus subgêneros, entendendo-os
como componentes de uma linguagem portadora de múltiplos sentidos e sujeita a
diferentes apropriações simbólicas. Na sequência, detalhamos o ocorrido envolvendo a
banda Antestor, evidenciando relatos dos sujeitos envolvidos. Na terceira e quarta parte,
tratamos das dinâmicas da identidade cultural e a importância das cenas de dissenso que
se revelam como a efetivação das afirmações identitárias a partir do reconhecimento e
negação do diferente.
Por fim, encerramos o trabalho articulando outros questionamentos e hipóteses
que surgiram ao longo desta reflexão.

1. Localidades e temporalidades da linguagem e seus sentidos

A história do heavy metal é geralmente narrada a partir de bandas surgidas no


início dos anos 1970, nos Estados Unidos e Reino Unido. Ao longo da história, com
ampliação e circulação do estilo em outros países, o gênero foi se transformando, dando
origem a vertentes específicas para cada época, região, preferência poética ou tendência
ideológica. Organizam-se, assim, os subgêneros. Eles podem ser caracterizados por
ritmos mais ou menos melódicos, velozes ou agressivos, com letras motivadas por causas
políticas, sentimentais, do universo místico entre outros. Com isso, para além dos estilos
clássicos e tradicionais, temos, por exemplo, o new metal, que une o heavy metal a
aspectos do hip hop, como a sonoridade do rap, artistas com drealocks e calças largas,
como a banda Korn e System of a down; ou o glam metal, que trouxe elementos sonoros
do hard rock, e artistas que exploram um visual andrógeno, como a Twisted Sister.
O black metal costuma ser vinculado a um posicionamento anticristão e/ou
satanista, e possui como seus maiores representantes bandas surgidas na Noruega. É lá
onde se registraram eventos históricos de violência entre os músicos do gênero, além de
ataques e incêndio a igrejas. Um dos destaques, é Varg Vikernes, da banda Burzum. Em
1993, ele foi condenado a 21 anos de prisão, pelo assassinato de Euronymous, guitarrista
da banda Mayhem (CAMPOY, 2010). Ainda naquele ano, Vikernes utilizou uma foto dos
destroços de uma igreja como capa de um álbum do seu projeto musical2.
No documentário “Metal: A jornada de um headbanger”3, o pesquisador Sam
Dunn comenta que “estas ações têm menos a ver com o metal e mais com as
sensibilidades culturais norueguesas. O ressentimento contra o cristianismo na Noruega
se remonta há uns mil anos, a seus ancestrais vikings”. Com isso, consideramos que esta
roupagem do heavy metal ganha tais dimensões ao articular um contexto histórico
específico, e, mesmo se espalhando para outros locais, carrega estes referenciais.
Assim, vemos o heavy metal como um ambiente cultural propício para articulação
de convenções globais e aspectos de um contexto local. Nesta perspectiva, podemos
apresentar o álbum “Destroy and Revolution”, da Survive, uma banda de death metal,
com integrantes cristãos, de Rio Branco, Acre. Já na capa, a banda faz referência direta a
Luiz Galvez e à narrativa da Revolução Acreana, destacando aspectos de uma identidade
territorial construída a partir de uma narrativa histórica e política do Estado. Evidenciar
uma questão regional de forma clara é incomum em bandas deste gênero, porém, é algo
característico deste lugar que registra episódios conflituosos em relação à sua
configuração geográfica. Além das temáticas religiosas presentes nas letras, há canções
que tratam de problemas ambientais e episódios da criminalidade local. Assim, a banda
vincula o estilo musical a um aspecto da história e identidade acreana.
Ainda com este viés, outro grupo que podemos citar é o Myrath, formado na
Tunísia, um expoente do metal oriental ao mesclar aspectos do heavy metal progressivo
e a cultura tradicional árabe. Isso aparece na visualidade, através do uso de maquiagens,
acessórios e vestimentas específicas (como túnicas); nos cenários dos clipes e das
fotografias (desertos e palácios com a arquitetura tradicional); além dos instrumentos e
melodias características da musicalidade árabe. Dançarinas do ventre e mulheres de burca
tocando violino já compuseram as performances do grupo. Nas letras, também são
inseridos enredos de uma realidade específica: a canção “Dance” fala sobre um menino
sírio, ameaçado de morte pelo Estado Islâmico, por ser dançarino (SEELING, 2019).

2
“Lords Of Chaos”, um filme alemão, lançado em 2019, inspirado em um livro com mesmo nome, retrata
alguns destes episódios.
3
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yHekU5x2hx8, acesso em fev. 2022.
São diversas as vertentes e levantes político-ideológicos dentro do heavy metal:
articulações que se preocupam com a representatividade do negro ou da comunidade
LGBTQI+; grupos que estabelecem diálogos com aspectos, poéticas e/ou temas os
indígenas (a rede “Levante do Metal Nativo”) ou de religiões afro-brasileiras (o grupo
carioca Gangrena Gasosa, com o Saravá Metal), entre outros. Estes movimentos parecem
diluir e/ou reajustar as fronteiras entre questões sonoras, ideológicas e identitárias.
É importante destacar que uma das características do heavy metal é sua “obsessão
religiosa”. As bandas, no início do movimento, viviam uma constante batalha para
aparentarem mais diabólicas que as precedentes, como explica a antropóloga Deena
Weinstein4. Uma das formas para composição de suas temáticas e cenografias é
justamente recorrer à história do cristianismo ou ao texto bíblico como fonte de
inspiração. Como exemplo, podemos citar o álbum “Conquerors of Armageddon”, da
Krisiun, reconhecida como uma das maiores bandas brasileiras de death metal5. O título
e a capa do álbum – ilustrada com a imagem de quatro cavaleiros encapuzados, sob um
fundo de chamas de fogo - fazem referência direta ao livro do Apocalipse.
Para alguns pesquisadores, as diferenças internas entre os subgêneros são tão
importantes que “não é mais possível empreender uma abordagem unívoca do heavy
metal. É preciso se manter restrito a manifestação de uma dessas diferenças” (CAMPOY,
2010, p. 131). Nesse sentido, interessa-nos as vertentes do “metal extremo”: death, black
e trash metal. Aqui, a lírica musical e as visualidades abordam conteúdos macabros, como
carnificina, canibalismo, zumbis, decapitação; ou símbolos entendidos como satânicos –
como pentagramas ou cruzes invertidas. “No metal extremo, o horror não é algo a ser
vencido; ele se perpetua canção após canção” (KHALIL, 2018, p. 162).
Neste meio, identificam-se grupos que geram uma inversão de sentidos ao
realizarem metal extremo e serem, assumidamente, cristãos, gerando controvérsias tanto
no meio heavy metal, quanto no religioso. No próximo tópico, relataremos um episódio
envolvendo a banda Antestor, na busca de evidenciar peculiaridades a respeito destes
sujeitos no meio heavy metal.

4
Em entrevista ao já citado documentário “Metal: A jornada de um headbanger”. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=yHekU5x2hx8.
5
Ao lado de Metallica, Slipknot e Motorhead, a Krisiun possui um álbum na lista dos 10 álbuns favoritos
de heavy metal, escolhidos pelo baterista e co-fundador do Black Sabbath, Bill Ward, segundo a Rolling
Stone: https://rollingstone.uol.com.br/noticia/ex-baterista-do-black-sabbath-bill-ward-inclui-banda-
brasileira-em-lista-dos-discos-de-metal-favoritos-dele/
2. Go Away, Antestor!

A banda norueguesa Antestor é considerada uma das maiores bandas cristãs de


metal extremo da Europa. Surgida no final dos anos 1980, a banda possui quatro álbuns,
além de trabalhos demos e EP. Em 2013, a banda realizou turnê no Brasil, passando pelos
estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, entre outros. Na cidade de Belo
Horizonte, o grupo foi alvo de protestos que se iniciaram na internet, desde a divulgação
do evento. Por isso, cerca de um mês antes, a organização anunciou apoio da Polícia
Militar do Estado, uma vez que “ameaças estavam sendo postadas em redes sociais por
fãs mais radicais de outras vertentes de metal extremo que não concordavam com o estilo
e mensagem cristã da banda” (WHIPLASH.NET, 2013).
Conforme o site especializado em rock e heavy metal, Whiplash6, a noite do show
foi marcada por tumultos e protestos ocasionados por aqueles que não concordavam com
o posicionamento da banda. O site Metal Cristão descreve que durante a apresentação da
Antestor, cerca de “trinta ‘extremistas’ foram ‘protestar’ na porta do evento. Segundo eles,
a banda não era bem-vinda a Minas por cantar músicas que expressavam a crença dos
membros em Deus. E curiosamente gritavam: ‘vocês são covardes, não podem tocar em
nosso país’” (LINS, 2013). No youtube, um vídeo7 de quase oito minutos registra um dos
momentos dos protestos. Nele, é possível assistir aos participantes gritando “fuck you,
Antestor”, “cambada de ladrão” e “lixo! Lixo!”. Após o show, a banda Antestor se
manifestou com uma mensagem em suas redes sociais na internet, reproduzida por sites
especializados no gênero:

BELO HORIZONTE! Não podemos dizer nada além de: CARAMBA!


Essa foi uma noite que nunca vamos esquecer. Policiais, tiros, tumultos,
o melhor público do mundo. Essa noite teve de tudo. Agradecimentos
especiais para as pessoas que se arriscaram para organizar o show.
Temos orgulho de chamá-los de nossos irmãos e irmãs em Cristo. (...)
Nós não odiamos a multidão enfurecida que veio para nos machucar.
Na verdade, a nossa mensagem em nossos shows é amar seu inimigo.
Então, Deus abençoe todos que estavam do lado de fora gritando:
‘F*da-se o Antestor!’. Espero que possamos conversar como pessoas
racionais um dia. Agradecimentos especiais aos nossos fãs, que tiveram

6
Primeiro site de rock e heavy metal do Brasil, surgido em 1996, a partir de um zine, fundado em 1994.
7
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=K8bOx41x9dI>, acesso em julho de 2021.
a coragem de vir, embora soubessem que poderia ser perigoso. Antestor
saúda vocês e sejam abençoados8.

Um dos manifestantes também publicou, no dia seguinte, em sua rede social, uma
nota. A reproduzimos aqui (respeitando a integralidade do texto):

GO AWAY Antestor!!! Nesse sábado 19 de janeiro de 2013 estará


presente na memória e na história de todos aqueles aproximados 50
Guerreiros que foram na porta do show gospel dos suecos antestor,
tentamos de forma organizada criar e elabora planos para conflitar com
as “ovelhas de cristo” que ali estavam de certa forma não como
esperávamos, pois não pudemos sentar literalmente a bota nos porcos
imundos, mas sem duvida jogamos através de urros e gestos o que há
muito tempo estava entalado em nossas gargantas. Seria muito mais
gratificante se todos que falaram que iriam realmente tivessem
comparecido e com apenas 50 guerreiros foi o suficiente para uma tropa
de 10 carros da P.M.M.G aparecer para escoltar os porcos suecos ate os
taxi deles pois de alguma forma misteriosa os pneus de seus transportes
estavam rasgados por garrafas, e foi assim com gritos, cusparadas,
dedos na cara, pontapés e empurrões que pudemos protestar e deixar a
marca que “GO AWAY” VÃO EMBORA não os queremos aqui e não
volte. Apesar das costas e barrigas inchados, machucados e
extremamente doloridos de uma cacetada e uma coronhada de uma
calibre 12 nas costas fico honrado e agradecido aos que foram e urraram
palavras de desprezo aos porcos submissos da febre europeia. Vi ali
uma verdadeira HORDA em ação. Infelizmente não tivemos como por
os planos mais extremos em ação, mas esta por chegar à inquisição aos
cristãos.9

Estes protestos parecem ser comuns em eventos que envolvem bandas cristãs de
heavy metal. Grupos contrários organizam boicotes e manifestos marcados ou não por
violência física10. O documentário “O mal que nos faz! (Cristianismo, covers e redes
sociais)”, produzido por Clinger Carlos, disponibilizado no canal Heavy Metal Online,
no youtube11, entrevista músicos e artistas a respeito de temas polêmicos para a cultura
headbanger. Uma parte da obra se dedica a responder à pergunta: “o heavy metal pode
ser utilizado para difundir o cristianismo?”, para a qual um dos entrevistados responde:

O metal não tem nada a ver com qualquer coisa que esteja relacionado
a cristianismo, a judaísmo, e qualquer coisa oriunda ou derivada dessa

8
Disponível em: <http://www.metalcristao.com/noticia/Antestor3a-show-em-BH-acontece-mesmo-
debaixo-de-guerra_05-02-2013_111>, acesso em julho de 2021.
9
Idem.
10
As formas de violência vividas nesse contexto já foram analisadas no artigo: SOM, FURIA E FÉ:
Expressões da violência em torno da banda Antidemon. Intercom. 43º Congresso Brasileiro de Ciências
da Comunicação – VIRTUAL – 1º a 10/12/2020.
11
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=yz6azD7loJY>. Acesso em abril de 2020.
porcaria (...) Metal nasceu na oposição contra essas crenças medíocres
e hipócritas, que são religiões e estado, que só oprime o espírito do
homem livre, metal é o espírito do homem livre, metal é a honra, é a
força, é a força interior do homem, é a coragem, o cristão oferece a outra
face, é um idiota que acredita num suicida, num imbecil12 .

A presença de bandas cristãs em festivais pode representar uma ameaça à


reputação das demais que concordarem em participar do evento. “É totalmente
contraditório à ideologia anticristã você dividir o palco com pessoas que estão pregando
a palavra divina de Deus, isso torna a banda que está compactuando o mesmo palco,
também uma banda farsante”13. A crítica ao cristianismo dentro do movimento, porém,
abre uma brecha a outras denúncias em relação às reinvindicações políticas:

(...) muitos headbangers aí que condenam o cristianismo, que


condenam o whitemetal14, apoiando um político, e esse político, que é
o Jair Bolsonaro, que todo mundo aí conhece, ele prega a tradição da
família cristã, então é estranho o cara condenar o whitemetal, e apoiar
(...) essa ideologia desse que é militar, que é outra, eles também, assim,
vamos supor, eles recriminaram muito o rock e o heavy metal.15

(...) o meio do heavy metal na verdade é muito reacionário, é muito


conservador, especialmente dentro de um espectro político. É
assustador o tanto de gente com pensamentos de direita, com
pensamentos racistas, homofóbicos, classistas, elitistas, eu acho que
isso sim é uma coisa muito mais contraditória do que qualquer coisa
que você possa falar a respeito de religião.16

Traçar a trajetória do heavy metal com vínculo cristão é um desafio. Passados


mais de 500 anos desde a Reforma Protestante, as diferentes denominações religiosas que
daí surgiram não são homogêneas em suas formas de lidar com as expressões culturais,
artísticas e, principalmente, musicais. São diversas as divergências a respeito do que
classificar ou não como uma música cristã. Embora sem estarem atreladas ao universo da
música gospel, as bandas cristãs que flertam com o rock “mais pesado” existem desde os
anos 70, como a Resurrection Band (EUA). Hoje, é possível identificar bandas cristãs em

12
Cristiano Fucker, Studio Attack – Sanatorio. Em entrevista para o documentário “O mal que nos faz!
(Cristianismo, covers e redes sociais)”.
13
Vital Santos, Malkuth. Em entrevista para o documentário citado acima.
14
Expressão genérica, utilizada para referir-se ao heavy metal com vinculação cristã, mas que, ao longo
do tempo, revelou-se insuficiente para abarcar a variedade musical.
15
Vitor H. Franceschini, apresentador, blogger. Em entrevista para o documentário “O mal que nos faz!
(Cristianismo, covers e redes sociais)”.
16
Ze Misanthrope, Omfalos. Em entrevista para o documentário citado acima.
diversos subgêneros do heavy metal, o que demonstra a insuficiência do termo cunhado
inicialmente, o “White metal”. Entre elas, podemos citar: Stryper (glam metal, 1980);
Guardian (metal melódico, 1982); Narnia (power metal, 1993); Living Sacrifice (black e
death metal, 1989); e P.O.D (nu metal, 1992).
No Brasil, a banda de maior de destaque é a Antidemon, de death metal. O grupo,
formado em 1994, em São Paulo, é liderado por Antônio Carlos Batista do Nascimento
que, além de músico, é artista plástico e pastor na Crash Church Underground Ministry.
A Antidemon possui histórico de participações em festivais de música com viés cristão
ou não. “É difícil um evento que não tenha que fazer um boletim de ocorrência”
(NASCIMENTO, 2020, informação verbal).

3. Identidade e diferença

Vivemos e nos comunicamos imersos em um circuito cultural permeado por


processos interconectados de representação, regulação, consumo, produção e, ainda, por
dinâmicas identitárias (HALL, 2016). A linguagem, composta por signos e símbolos
vinculados a conceitos, ideias e sentimentos específicos de uma cultura, é um destes
sistemas representacionais. Por meio deles, os sentidos circulam, funcionando através de
um sistema de convenções. Ou seja, mesmo que os interlocutores sejam, por exemplo, de
países distintos, eles podem compactuar de um mesmo mapa conceitual e estabelecer
interações sociais a partir de suas identidades culturais.
Ao consideramos a cultura heavy metal, os elementos que compõem esta
linguagem musical circulam no interior deste contexto: para além da sonoridade, há
gestos, imagens, expressões verbais etc., que trazem, em si, ideias, posicionamentos,
valores e perspectivas de vida. Assim, um grupo headbanger compartilha de um mesmo
mapa conceitual e, por meio dele, estabelece relações comunicativas que demarcam um
universo simbólico de pertencimento. “O sentido é o que nos permite cultivar a noção de
nossa própria identidade, de quem somos e a quem ‘pertencemos’” (HALL, 2016, p. 21).
Mas, além do compartilhamento de sentidos em comum e trocas simbólicas, o
pertencimento a um grupo e a identidade cultural também se estabelecem conforme a sua
diferenciação em relação aos demais. "Uma identidade cultural particular não pode ser
definida apenas por sua presença positiva e conteúdo. Todos os termos da identidade
dependem do estabelecimento de limites - definindo o que são em relação ao que não
são". (HALL, 2003, p. 81). Portanto, se um conceito só pode ser definido em relação aos
outros em torno dele, a variação de sentidos a respeito de um mesmo objeto cultural se
torna essencial (e, portanto, frequentes e comuns).
Aqui, apontamos para o conceito de “différance”, trabalhado por Hall (2003), a
partir de Derrida (1972), onde o significado de um conceito está sempre relacionado a
outros conceitos, configurando uma cadeia ou um sistema em que o significado “não
possui origem nem destino final, não pode ser fixado, está sempre em processo e
“posicionado” ao longo de um espectro. Seu valor político não pode ser essencializado,
apenas determinado em termos relacionais” (HALL, 2003, p. 58).
Já identificamos o heavy metal como uma linguagem que permite sentidos
simultaneamente estáveis e instáveis, constituído por um mapa conceitual cujos
componentes “são veículos ou meios que carregam sentido, pois funcionam como
símbolos que representam ou conferem sentido (isto é, simbolizam) às ideias que
desejamos transmitir” (HALL, 2016, p. 24). Daí que surgem, como já visto, os
subgêneros, agregando outros valores e sentidos num processo que, aparentemente, segue
se realimentando e sem conclusão final. Ao mesmo tempo em que surgem, eles também
se renovam ou desaparecem; e, ao mesmo tempo, os mais novos acionam a memória dos
mais antigos, justamente para que se possa demarcar as suas diferenças e, assim, expressar
suas identidades.
Assim, não podemos buscar uma definição, uma essência ou um sentido único,
imutável e universal a respeito do heavy metal, menos ainda, buscar se um sentido é
coerente com a linguagem ou não. Propomos, portanto, compreender, de modo mais
crítico, os afetos presentes nos ambientes fronteiriços, entre subgênero e outro, entre as
dinâmicas que autorizam, deslegitimam e/ou ameaçam determinadas apropriações. Como
no propósito de Hall, importa-nos compreender como um novo enfoque “desprende o
sentido, quebrando qualquer vínculo natural e inevitável entre significante e significado.
Isso abre a representação para o constante “jogo” de deslizamentos do sentido, para a
constante produção de novos sentidos, novas interpretações” (HALL, 2016, p. 60). Nos
deparamos, assim, com as cenas de dissenso.

4. As cenas de dissensos
Este cenário conjugado por múltiplos sentidos e processos de afirmação e
negação, revela tensões que articulam comunicação, estética e política. Afinal, deparam-
se o “próximo e o distante, o familiar e o estranho, o próprio e o impróprio, o logos e o
páthos” (MARQUES, 2011, p. 28). É a partir daqui que estabeleceremos um diálogo com
Ângela Cristina Marques, ao chamar atenção para as cenas de dissenso, ambientes que
propiciam expressões de resistência e a composição de “formas de comunidade política
que não têm como objetivo fazer coincidir semelhantes e dessemelhantes, colocando
entre parêntesis ou mesmo apagando os intervalos que caracterizam seus lugares de fala
e de existência” (MARQUES, 2011, p. 28). Ou seja, passamos a considerar que “a partilha
de um mundo comum é feita, ao mesmo tempo, de tentativa de estabelecer ligações entre
universos fraturados e da constante resistência à permanência desses vínculos”
(MARQUES, 2011, p. 28).
De acordo com a pesquisadora, o dissenso, para além de um “atrito entre
diferentes argumentos ou gêneros de discurso”, deve ser entendido como um “um conflito
entre uma dada distribuição do sensível e o que permanece fora dela, confrontando o
quadro de percepção estabelecido”. (MARQUES, 2011, p. 26). Dessa forma, os dissensos
são fundamentais ao expor e romper as fragilidades da ideia de um “grande corpo social
protegido por certezas partilhadas e amplamente unido por princípios igualitários
previamente acordados e quase nunca colocados à prova”. (MARQUES, 2011, p. 26). A
existência das cenas de dissenso promove emancipação e revela espaços de resistências,
sinalizando para a transformação daquilo anteriormente entendido como fixo e imutável.
Ao consideramos a existência de um estilo musical que se populariza
historicamente tendo como pano de fundo evidências de violência atrelada a uma
ideologia anticristã, percebemos que sua identidade é marcada pela negação de um Outro
específico: o cristão. Dessa forma, evidenciamos uma disputa em relação à representação
e manutenção de uma identidade construída firmada em uma memória histórica, em que
os confrontos são não apenas essenciais, mas o próprio fundamento da composição dos
seus significados e a experiência dos participantes. Isso parece se materializar em falas
como “está por chegar à inquisição aos cristãos” (ne expressão de um dos manifestantes
contrários ao show da banda Antestor), ou, ainda, no relato também citado anteriormente:
“o Metal nasceu na oposição contra essas crenças medíocres e hipócritas, que são
religiões e estado, que só oprime o espírito do homem livre”.
Logo, quando se propõe um metal extremo cristão, deparamo-nos com uma
espécie de tentativa de eliminar um dissenso, o que pode ser ameaçador para a
manutenção das identidades envolvidas, afinal, “nenhum consenso pode ser estabelecido
como resultado de um puro exercício da razão”, pois certos “modos de vida e valores são,
por definição, incompatíveis com outros. E é justamente essa mútua exclusão que os
constitui” (MOUFFE, 1994 apud MARQUES, 2011, p. 27). Ou seja: se houver consenso
(se o inimigo for combatido), as motivações destas expressões serão esvaziadas e
perderão o sentido. É justamente a batalha, o confronto, a resistência que alimentam estas
expressões e dão significado à sua existência.
Esta dinâmica também pode ser identificada se voltarmos nosso olhar ao músico
cristão que, ao apontar a violência e rejeição sofrida, expõe que “nós não odiamos a
multidão enfurecida que veio para nos machucar. Na verdade, a nossa mensagem em
nossos shows é amar seu inimigo”. Tais afirmações permitem um acionamento do
“chamado cristão” de amar o seu inimigo, ou ainda, ao anúncio bíblico de que o cristão
sofrerá perseguição por conta da sua crença. Portanto, a rejeição, a violência e
perseguição vivida pelos cristãos neste contexto, parecem validar, confirmar ou fortalecer
a sua identidade religiosa.
Logo, a existência de um Outro, neste contexto, não apenas como um diferente,
mas, sim, como um inimigo, revela-se como essencial. Se ele desaparece, é preciso
reinventá-lo.

Considerações finais

Os bens culturais, ao circularem, ganham diferentes formas de usos e apropriações


em contextos distintos. Assim são as linguagens e os gêneros musicais. Neste trabalho,
observamos um ambiente musical específico – o heavy metal que, quando vinculado de
forma a afirmar o cristianismo, rompe com determinados padrões e descola sentidos
tradicionais ou originalmente postos. Dessa forma, as bandas cristãs de metal extremo
mostram que fixações de sentidos não são permanentes. Mesmo que se mantenha a
sonoridade rítmica, inserir uma temática religiosa, parece deslocar a base de sentidos para
outro mapa conceitual.
Os embates em torno destas apropriações e variações acionam diferentes afetos,
entre eles, relacionados ao ódio, à negação e até à eliminação do Outro, ilustrando a
dinâmica identitária de afirmação de si a partir do reconhecimento e negação do diferente.
No encontro com o diferente, habitam os dissensos. Caso fossem “resolvidos”, estaria
ameaçado o que tanto torna o heavy metal peculiar: as resistências e os confrontos. O
dissenso, portanto, é aspecto fundamental para a identidade headbanger. A violência
praticada neste ambiente se apoia numa narrativa histórica, e busca gerar uma sensação e
uma visibilidade específica (demoníaca). Como elemento que compõe e/ou motiva esta
imagem, tem-se o ódio direcionado a uma instituição: a igreja. Ou melhor: a
representação de uma igreja. Nesta lógica, vê-se, na banda cristã, o reconhecimento desta
instituição inimiga que, por sua vez, deve ser combatida. Afinal, para a narrativa da
identidade headbanger, importa a configuração deste Outro: a instituição religiosa. No
entanto, o próprio meio headbanger parece identificar as incoerências imersas neste
ambiente, ao denunciar, também, posicionamento políticos e expressões de valores para
além do expresso nas canções, quando apontam para aspectos machistas, homofóbicos
entre outros.
Por fim, registramos algumas perguntas: ao cristão, afinal, deveria haver um tipo
de música mais apropriada, que não o heavy metal? Haveria um sujeito ideal autorizado
a se expressar e falar por meio deste gênero? Reconhecemo-nos diante de um fenômeno
complexo de se analisar, afinal, a dinâmica identitária, o heavy metal e a religião cristã
são, simultaneamente, espaços e ferramentas de disputas. Envolvem grupos e subgrupos
não-homogêneos, cada vez mais dinâmicos e controversos.

REFERÊNCIAS:

CAMPOY, Leonardo Carbonieri. Trevas sobre a luz – o underground do heavy metal


extremo no Brasil. São Paulo: Alameda, 2010.

CLINGER, Carlos. O mal que nos faz! (Cristianismo, covers e redes sociais). Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=yz6azD7loJY. Acesso em abril de 2020.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG,


2003.

HALL, Stuart. Cultura e representação. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, Apicuri, 2016.

KHALIL, Lucas Martins Gama. A voz “Demoníaca” encenada – Uma análise do discurso
do death metal. 1º ed. Jundiaí, SP: Paco, 2018.
LINS, Rafael. Antestor: Resenha especial da tour no Brasil. In: METAL CRISTÃO,
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