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Resumo: Este artigo faz parte de uma pesquisa em andamento, sobre bandas cristãs de
metal extremo – uma vertente do heavy metal que reúne os subgêneros black, trash e
death metal, caracterizados pela sonoridade mais pesada e poética visual mais agressiva,
em comparação aos demais. Neste trabalho, propõe-se compreender o heavy metal como
um ambiente cultural permeado de múltiplos sentidos e maleável a diferentes usos
apropriações simbólicas de diversas naturezas, porém, não desprovido de situações
confrontos e controvérsias. A partir de Stuart Hall e as expressões das identidades
culturais marcadas a partir da identificação do diferente, juntamente às noções de cenas
de dissenso, de Ângela Cristina Marques, observa-se os manifestos ocorridos em Belo
Horizonte, em 2013, durante o show da Antestor, banda norueguesa, cristã, de unblack
metal. Evidencia-se que as cenas de dissenso que parecem essenciais para a dinâmica
identitária dos participantes que compõem o movimento.
Apresentação
Este artigo faz parte de uma pesquisa em andamento sobre bandas cristãs de heavy
metal. Tratamos de grupos ligados ao “metal extremo”, uma vertente que inclui os
subgêneros black, trash e death metal, caracterizados pela sonoridade mais pesada e
poética visual mais agressiva, em comparação aos demais. Neste artigo, propomos
observar as dinâmicas deste movimento cultural que, ao ter seus bens circulando de forma
midiatizada, se propaga e se constrói historicamente sujeito a diferentes usos a
apropriações. Tal maleabilidade, porém, não é desprovida de disputas, confrontos e
controvérsias. Especialmente no que se refere aos músicos que se apresentam como
cristãos, estes são, de modo frequente, alvo de rejeição e violência por parte dos contrários
a esta perspectiva religiosa. No entanto, este dissenso é o que parece fortalecer e
potencializar dinâmicas identitárias dos envolvidos.
O recorte empírico se direciona a um episódio ocorrido na cidade de Belo
Horizonte, Minas Gerais, em janeiro de 2013, durante um show da Antestor, banda
1
Doutoranda em Comunicação na UNESP/Bauru. Professora da Universidade Federal do Acre – UFAC.
E-mail: giselle.lucena@unesp.br.
norueguesa, de unblack metal, que recebeu protestos por parte dos que não compactuam
com a vinculação deste estilo musical à mensagem cristã. O trabalho está dividindo em
quatro partes. Iniciamos abordando o heavy metal e seus subgêneros, entendendo-os
como componentes de uma linguagem portadora de múltiplos sentidos e sujeita a
diferentes apropriações simbólicas. Na sequência, detalhamos o ocorrido envolvendo a
banda Antestor, evidenciando relatos dos sujeitos envolvidos. Na terceira e quarta parte,
tratamos das dinâmicas da identidade cultural e a importância das cenas de dissenso que
se revelam como a efetivação das afirmações identitárias a partir do reconhecimento e
negação do diferente.
Por fim, encerramos o trabalho articulando outros questionamentos e hipóteses
que surgiram ao longo desta reflexão.
2
“Lords Of Chaos”, um filme alemão, lançado em 2019, inspirado em um livro com mesmo nome, retrata
alguns destes episódios.
3
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yHekU5x2hx8, acesso em fev. 2022.
São diversas as vertentes e levantes político-ideológicos dentro do heavy metal:
articulações que se preocupam com a representatividade do negro ou da comunidade
LGBTQI+; grupos que estabelecem diálogos com aspectos, poéticas e/ou temas os
indígenas (a rede “Levante do Metal Nativo”) ou de religiões afro-brasileiras (o grupo
carioca Gangrena Gasosa, com o Saravá Metal), entre outros. Estes movimentos parecem
diluir e/ou reajustar as fronteiras entre questões sonoras, ideológicas e identitárias.
É importante destacar que uma das características do heavy metal é sua “obsessão
religiosa”. As bandas, no início do movimento, viviam uma constante batalha para
aparentarem mais diabólicas que as precedentes, como explica a antropóloga Deena
Weinstein4. Uma das formas para composição de suas temáticas e cenografias é
justamente recorrer à história do cristianismo ou ao texto bíblico como fonte de
inspiração. Como exemplo, podemos citar o álbum “Conquerors of Armageddon”, da
Krisiun, reconhecida como uma das maiores bandas brasileiras de death metal5. O título
e a capa do álbum – ilustrada com a imagem de quatro cavaleiros encapuzados, sob um
fundo de chamas de fogo - fazem referência direta ao livro do Apocalipse.
Para alguns pesquisadores, as diferenças internas entre os subgêneros são tão
importantes que “não é mais possível empreender uma abordagem unívoca do heavy
metal. É preciso se manter restrito a manifestação de uma dessas diferenças” (CAMPOY,
2010, p. 131). Nesse sentido, interessa-nos as vertentes do “metal extremo”: death, black
e trash metal. Aqui, a lírica musical e as visualidades abordam conteúdos macabros, como
carnificina, canibalismo, zumbis, decapitação; ou símbolos entendidos como satânicos –
como pentagramas ou cruzes invertidas. “No metal extremo, o horror não é algo a ser
vencido; ele se perpetua canção após canção” (KHALIL, 2018, p. 162).
Neste meio, identificam-se grupos que geram uma inversão de sentidos ao
realizarem metal extremo e serem, assumidamente, cristãos, gerando controvérsias tanto
no meio heavy metal, quanto no religioso. No próximo tópico, relataremos um episódio
envolvendo a banda Antestor, na busca de evidenciar peculiaridades a respeito destes
sujeitos no meio heavy metal.
4
Em entrevista ao já citado documentário “Metal: A jornada de um headbanger”. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=yHekU5x2hx8.
5
Ao lado de Metallica, Slipknot e Motorhead, a Krisiun possui um álbum na lista dos 10 álbuns favoritos
de heavy metal, escolhidos pelo baterista e co-fundador do Black Sabbath, Bill Ward, segundo a Rolling
Stone: https://rollingstone.uol.com.br/noticia/ex-baterista-do-black-sabbath-bill-ward-inclui-banda-
brasileira-em-lista-dos-discos-de-metal-favoritos-dele/
2. Go Away, Antestor!
6
Primeiro site de rock e heavy metal do Brasil, surgido em 1996, a partir de um zine, fundado em 1994.
7
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=K8bOx41x9dI>, acesso em julho de 2021.
a coragem de vir, embora soubessem que poderia ser perigoso. Antestor
saúda vocês e sejam abençoados8.
Um dos manifestantes também publicou, no dia seguinte, em sua rede social, uma
nota. A reproduzimos aqui (respeitando a integralidade do texto):
Estes protestos parecem ser comuns em eventos que envolvem bandas cristãs de
heavy metal. Grupos contrários organizam boicotes e manifestos marcados ou não por
violência física10. O documentário “O mal que nos faz! (Cristianismo, covers e redes
sociais)”, produzido por Clinger Carlos, disponibilizado no canal Heavy Metal Online,
no youtube11, entrevista músicos e artistas a respeito de temas polêmicos para a cultura
headbanger. Uma parte da obra se dedica a responder à pergunta: “o heavy metal pode
ser utilizado para difundir o cristianismo?”, para a qual um dos entrevistados responde:
O metal não tem nada a ver com qualquer coisa que esteja relacionado
a cristianismo, a judaísmo, e qualquer coisa oriunda ou derivada dessa
8
Disponível em: <http://www.metalcristao.com/noticia/Antestor3a-show-em-BH-acontece-mesmo-
debaixo-de-guerra_05-02-2013_111>, acesso em julho de 2021.
9
Idem.
10
As formas de violência vividas nesse contexto já foram analisadas no artigo: SOM, FURIA E FÉ:
Expressões da violência em torno da banda Antidemon. Intercom. 43º Congresso Brasileiro de Ciências
da Comunicação – VIRTUAL – 1º a 10/12/2020.
11
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=yz6azD7loJY>. Acesso em abril de 2020.
porcaria (...) Metal nasceu na oposição contra essas crenças medíocres
e hipócritas, que são religiões e estado, que só oprime o espírito do
homem livre, metal é o espírito do homem livre, metal é a honra, é a
força, é a força interior do homem, é a coragem, o cristão oferece a outra
face, é um idiota que acredita num suicida, num imbecil12 .
12
Cristiano Fucker, Studio Attack – Sanatorio. Em entrevista para o documentário “O mal que nos faz!
(Cristianismo, covers e redes sociais)”.
13
Vital Santos, Malkuth. Em entrevista para o documentário citado acima.
14
Expressão genérica, utilizada para referir-se ao heavy metal com vinculação cristã, mas que, ao longo
do tempo, revelou-se insuficiente para abarcar a variedade musical.
15
Vitor H. Franceschini, apresentador, blogger. Em entrevista para o documentário “O mal que nos faz!
(Cristianismo, covers e redes sociais)”.
16
Ze Misanthrope, Omfalos. Em entrevista para o documentário citado acima.
diversos subgêneros do heavy metal, o que demonstra a insuficiência do termo cunhado
inicialmente, o “White metal”. Entre elas, podemos citar: Stryper (glam metal, 1980);
Guardian (metal melódico, 1982); Narnia (power metal, 1993); Living Sacrifice (black e
death metal, 1989); e P.O.D (nu metal, 1992).
No Brasil, a banda de maior de destaque é a Antidemon, de death metal. O grupo,
formado em 1994, em São Paulo, é liderado por Antônio Carlos Batista do Nascimento
que, além de músico, é artista plástico e pastor na Crash Church Underground Ministry.
A Antidemon possui histórico de participações em festivais de música com viés cristão
ou não. “É difícil um evento que não tenha que fazer um boletim de ocorrência”
(NASCIMENTO, 2020, informação verbal).
3. Identidade e diferença
4. As cenas de dissensos
Este cenário conjugado por múltiplos sentidos e processos de afirmação e
negação, revela tensões que articulam comunicação, estética e política. Afinal, deparam-
se o “próximo e o distante, o familiar e o estranho, o próprio e o impróprio, o logos e o
páthos” (MARQUES, 2011, p. 28). É a partir daqui que estabeleceremos um diálogo com
Ângela Cristina Marques, ao chamar atenção para as cenas de dissenso, ambientes que
propiciam expressões de resistência e a composição de “formas de comunidade política
que não têm como objetivo fazer coincidir semelhantes e dessemelhantes, colocando
entre parêntesis ou mesmo apagando os intervalos que caracterizam seus lugares de fala
e de existência” (MARQUES, 2011, p. 28). Ou seja, passamos a considerar que “a partilha
de um mundo comum é feita, ao mesmo tempo, de tentativa de estabelecer ligações entre
universos fraturados e da constante resistência à permanência desses vínculos”
(MARQUES, 2011, p. 28).
De acordo com a pesquisadora, o dissenso, para além de um “atrito entre
diferentes argumentos ou gêneros de discurso”, deve ser entendido como um “um conflito
entre uma dada distribuição do sensível e o que permanece fora dela, confrontando o
quadro de percepção estabelecido”. (MARQUES, 2011, p. 26). Dessa forma, os dissensos
são fundamentais ao expor e romper as fragilidades da ideia de um “grande corpo social
protegido por certezas partilhadas e amplamente unido por princípios igualitários
previamente acordados e quase nunca colocados à prova”. (MARQUES, 2011, p. 26). A
existência das cenas de dissenso promove emancipação e revela espaços de resistências,
sinalizando para a transformação daquilo anteriormente entendido como fixo e imutável.
Ao consideramos a existência de um estilo musical que se populariza
historicamente tendo como pano de fundo evidências de violência atrelada a uma
ideologia anticristã, percebemos que sua identidade é marcada pela negação de um Outro
específico: o cristão. Dessa forma, evidenciamos uma disputa em relação à representação
e manutenção de uma identidade construída firmada em uma memória histórica, em que
os confrontos são não apenas essenciais, mas o próprio fundamento da composição dos
seus significados e a experiência dos participantes. Isso parece se materializar em falas
como “está por chegar à inquisição aos cristãos” (ne expressão de um dos manifestantes
contrários ao show da banda Antestor), ou, ainda, no relato também citado anteriormente:
“o Metal nasceu na oposição contra essas crenças medíocres e hipócritas, que são
religiões e estado, que só oprime o espírito do homem livre”.
Logo, quando se propõe um metal extremo cristão, deparamo-nos com uma
espécie de tentativa de eliminar um dissenso, o que pode ser ameaçador para a
manutenção das identidades envolvidas, afinal, “nenhum consenso pode ser estabelecido
como resultado de um puro exercício da razão”, pois certos “modos de vida e valores são,
por definição, incompatíveis com outros. E é justamente essa mútua exclusão que os
constitui” (MOUFFE, 1994 apud MARQUES, 2011, p. 27). Ou seja: se houver consenso
(se o inimigo for combatido), as motivações destas expressões serão esvaziadas e
perderão o sentido. É justamente a batalha, o confronto, a resistência que alimentam estas
expressões e dão significado à sua existência.
Esta dinâmica também pode ser identificada se voltarmos nosso olhar ao músico
cristão que, ao apontar a violência e rejeição sofrida, expõe que “nós não odiamos a
multidão enfurecida que veio para nos machucar. Na verdade, a nossa mensagem em
nossos shows é amar seu inimigo”. Tais afirmações permitem um acionamento do
“chamado cristão” de amar o seu inimigo, ou ainda, ao anúncio bíblico de que o cristão
sofrerá perseguição por conta da sua crença. Portanto, a rejeição, a violência e
perseguição vivida pelos cristãos neste contexto, parecem validar, confirmar ou fortalecer
a sua identidade religiosa.
Logo, a existência de um Outro, neste contexto, não apenas como um diferente,
mas, sim, como um inimigo, revela-se como essencial. Se ele desaparece, é preciso
reinventá-lo.
Considerações finais
REFERÊNCIAS:
CLINGER, Carlos. O mal que nos faz! (Cristianismo, covers e redes sociais). Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=yz6azD7loJY. Acesso em abril de 2020.
HALL, Stuart. Cultura e representação. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, Apicuri, 2016.
KHALIL, Lucas Martins Gama. A voz “Demoníaca” encenada – Uma análise do discurso
do death metal. 1º ed. Jundiaí, SP: Paco, 2018.
LINS, Rafael. Antestor: Resenha especial da tour no Brasil. In: METAL CRISTÃO,
2013. Disponível em: <http://metalcristao.com.br/noticia/Antestor3a-Resenha-especial-
da-tour-no-Brasil_09-03-2013_184>. Acesso em jul. de 2021.