Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A crença erudita das Sereias não podia deixar de ser adotada em Portugal, por
este povo essencialmente navegante; chamavam-lhe Fadas Marinhas:
Vai logo às Ilhas perdidas
No mar das penas ouvinhas,
Traze três Fadas marinhas
Que sejam mui escolhidas (ib. p. 101.)
Nos romances populares também se repete esta crença; na Infanta de França
(Rom. Ger., pp. 10 e 11) vem, como horóscopo da donzela:
Sete fadas me fadaram
No colo da madre minha,
Fadaram-me há sete anos
Por sete anos e um dia
Hoje se acabam os anos
Amanhã por noite o dia...
É como no Roman de Partinopeux de Blois.
Nas ilhas dos Açores é que as Fadas marinhas ou Sereias ocupam a imaginação;
há ali as duas designações de Marinhas e de Sereias.
Nos Contos Populares do Arquipélago Açoriano (n.º 32, p. 271) começa um
romance assim:
Escutai, se quereis ouvir:
Um rico doce cantar,
Devem de ser as Marinhas
Ou os peixinhos do mar,
Ele não são as Marinhas,
Nem os peixinhos do mar,
Deve de ser Dom Duardos
Que aqui nos vem visitar.
E no romance n.º 28 (p. 259):
Que vozes do céu são estas
Que eu aqui ouço cantar
Ou são os anjos no céu,
Ou as Sereias no mar.
Nas cantigas soltas da mesma coleção encontra-se esta bela quadra (P. 5):
A Sereia quando canta
Canta no pego do mar;
Tanto navio se perde,
Ó que tão doce cantar.
No Auto das Fadas, representado por Gil Vicente diante de el-rei D. João III,
perseguidor incansável das inofensivas superstições da rudeza popular, o poeta
pede tolerância para a inocente credulidade. Ali evoca as Fadas Marinhas ou
Sereias, que vêm fadar o rei, a rainha e os infantes e a aristocracia que estava
assistindo à representação. É Gil Vicente o único escritor português que
introduziu na literatura este riquíssimo elemento nacional; faltou-lhe a
liberdade de um Shakespeare, para poder dar forma a uma criação como o
Sonho de Uma Noite de S. João; o poeta era dotado de um sentimento lírico
profundo para realizar uma ideia assim bela:
Ora sus! má criatura,
I-me logo polas Fadas
Marinhas, bem assombradas
E tomai essa amargura.
Donde vindes?
— D’Almolina.
Que trazedes?
— Farinha.
Tomai lá, que não é minha[13]
E traga as Fadas asinha.
Ó Senhora Ladainha,
Ajudade-me ora vós;
Cabra preta vai por vinha,
Vai por vinha, mana minha,
Te rogamus, audi nos.
Quando fordes à Igreja
Não vos esqueça a soberba,
Tomad’ora meu conselho
Ó açoites do concelho
Que estrearam meus avós:
Te rogamus audi nos.
Ladainha da Pereira
Escrita em pele de rata,
Tinta de pingo de pata
Assada por mão demogueira.
Ó picota da Ribeira
Que estrearam meus avós,
Te rogamus audi nos.
«e vêm as Fadas marinhas cantando a cantiga seguinte:»
FADAS
Qual de nós vem mais cansada
N’esta cansada jornada?
Qual de nós vem mais cansada?
FEITICEIRA
Pitas, pitas, pitas, pitas,
Pateias, patelas, pateias,
Bem venhais, minhas donzelas,
Linguadas, frescas, fritas.
………………… (diz às Fadas)
Como vos vai n’esse mar
Tão profundo e espaçoso?
(Respondem as SEREIAS cantando)
Nosso mar é fortunoso,
Nosso viver lacrimoso,
E o chegar rigoroso
Ao cabo desta jornada:
Qual de vós vem mais cansada
Nesta cansada jornada?
FEITICEIRA
Não podedes vós falar.
Que respondedes cantando?
FADAS
Nós partimos caminhando,
Com lágrimas suspirando,
Sem saber como nem quando,
Fará fim nossa jornada,
Qual de nós vem mais cansada
Nesta cansada jornada.
FEITICEIRA
………………………………….
Minhas flores da ribeira
Descanso d’esta alma minha,
Rainhas da vida marinha,
Honrade ora esta romeira
Fadai de linda maneira
Este estrado de bons fados,
Que Deus lh’os dará dobrados
Praza a ele que assim virá.
«Fadam as Fadas a El-Rei e à Rainha, cada uma por sua vez:»
FADA
Os Fados que deram ser às Estrelas,
Quando a terra estava vazia
Façam caminhos a vossa alegria,
Por onde vos venha tão cara como elas.
E aqueles fados
Que para dar dita são determinados
Vos tragam as vossas das mais escolhidas,
E os instrumentos que alongam as vidas
Vos veja dobrados.
Os Fados que deram orvalhos às rosas.
Visitem as flores do vosso estrado,
E todo o cuidar de triste cuidado
Não hajam lugar nas Altezas vossas.
E aquelas Fadas
Que tem as ribeiras de verde pintadas,
Vos pintem as vidas d’alegre pintura,
E as altas sortes, que parte Ventura
Vos vejam guardadas.
2.ª FADA
As coisas que fazem a terra parir
Lírios alvos e veias divinas,
Cerquem os quadros de vossas cortinas,
E sempre vitória vos faça dormir.
E a Fada primeira
Que fez a Fortuna geral dispenseira,
E fez nossos mares e céus por medida,
Vos faça gozar o gozo da vida
De nova maneira.
3.ª FADA
As novas que temos nas ondas do mar
São, que na terra há pouca verdade;
E pois de verdades há má novidade,
Por novidades as haveis de tomar.
Ora é pera ver:
Tome Vossa Alteza qualquer que quiser,
Que todo é verdade as sortes que são,
Tomai d’esses sete Planetas que i vão
A que vos vier.
«Aqui deram as Sortes primeiramente a El-Rei — à Rainha — ao Príncipe — à Infanta D. Isabel —
à Infanta D. Beatriz, etc. »
Na tragicomédia da Rubena, representada em 1521, introduz Gil Vicente duas
Fadas, que vêm dotar Cismena, do mesmo modo que no romance da Infantina:
FEITICEIRA
Diabos, por meu amor
Filhos meus e meus senhores,
Ide à deusa maior.
Dizei que por seu louvor
Me mande as Fadas maiores:
As mais duas fermosas
Com melodia serena,
Que me fadem a Cismena
Sobre todas as ditosas.
«Vêm as Fadas Ledera e Minea, cantando, e acabando de cantar, diz:»
LEDERA
Esta nasceu em tal hora
Que há de correr grã tormenta
Dolorosa
Depois será grã senhora
De toda fortuna isenta
Mui ditosa.
Mas primeiro mui chorosa
Sem emparo aqui em Creta
Se verá;
E a poder de fermosa
E de casta e de discreta
Tornará.
MINEA
O primeiro perigo
Que a hão de querer ferrar
Para a vender
Por Moira, o ferro no pé
Aqui a havemos de fadar
E benzer.
Que ela o possa entender
E se salve na barcagem
D’Arrochela:
E lhe dará de comer
Uma bestial selvagem
De dó dela. (Obr. t. II, pág. 8, 29.)
«As Fadas que fadaram esta Cismena, vendo chegado o tempo em que lhe havia de acontecer
o que em seu nascimento lhe disseram, a vieram avisar disso, andando como gado naquele
monte; e vem cantando, etc.»
A Fada, que recebeu pela fatalidade da nossa etnologia, um caráter marítimo e
se confundiu com a Sereia, sendo chamada Marinha, também pelas nossas
relações com os Árabes, adquiriu uma nova feição: é a Moira encantada.
A Moira é para o povo português á fada que guardava os tesouros encantados; a
Moira é uma donzela árabe que vive sob encantamento desde que os Árabes
enterraram as suas riquezas, esperançados em que tornariam a dominar a
Península. A ideia da Moira nada tem de comum com a ideia das parcas gregas
que se chamavam Moire, nem com as divindades gaulesas análogas Mairae; a
Moira peninsular, apesar de virgem como a meir céltica, ou a moer escandinava,
[14] tem um carácer maravilhoso, fatídico, e sobretudo caracterizado pela
guarda de tesouros. O sincretismo dá-se sempre nas ideias e não nas
designações das cousas; antes de os Árabes serem repelidos da Península era
conhecida a tradição oriental de umas certas formigas monstruosas que
escavavam no chão e. amontoavam em volta de si areias de ouro; chamadas
pelos Gregos murmex, os Persas, segundo Wahl, as denominaram mur mess,
formiga grande; é de crer que os Árabes, não só pela influência culta que
recebiam da Pérsia, como pela comunicação direta que tinham com as obras de
ciência grega, popularizassem esta tradição da zoologia maravilhosa,[15] das
mur mess. Destas formigas mur escreve Alberto Magno: «custodiunt montes
aureos, et homines accedentes discepunt etc.» (De Animal, XXVI). Foi através
dos Árabes que os livros gregos e os trabalhos científicos se vulgarizaram na
Europa; o povo português desta incompleta lembrança de um fenómeno mal
explicado formou uma tradição confundindo-o como facto de terem os Árabes
enterrado muitos tesouros. Podemos crer que a lenda das Moiras encantadas se
firma sobre uma tradição erudita da Idade Média. Ainda hoje quando o nosso
povo quer fixar uma época histórica, exprime em frase genérica no tempo dos
Moiros. Em Gil Vicente encontramos formulada a crença popular:
Eu tenho muitos tesouros
Que lhe poderão ser dados,
Mas ficaram enterrados
D’eles do tempo dos Mouros
D’eles dos tempos passados.[16]
Nas Cortes de Júpiter, Gil Vicente introduz uma Moira, que vem falar à
infanta D. Beatriz quando partiu para Saboia:
E a Moira há de trazer
Três cousas que vou dizer,
Para do Estreito avante:
Um anel seu encantado
E um dedal de condão
E o precioso terçado
Que foi no campo achado
Depois de morto Roldão.
O Terçado para vencer:
O Dedal é tão fecundo,
Que tudo lhe fará prazer;
O Anel para saber
O que se faz pelo mundo. (II, 415.)
O dote que a fada concedia chamava-se condão; nesta passagem de Gil
Vicente, no verso: «O terçado para vencer» alude à crença das espadas
encantadas dos heróis dos poemas da Idade Média. Esta tradição liga-se pela
nossa história à espada do Condestável feita pelo alfageme de Santarém, como
se lê na sua Crónica anónima. Por estas citações de Gil Vicente, vemos que no
século xvi, antes do estabelecimento da Inquisição em Portugal as tradições
feéricas estavam vigorosas. Antes de Pérrault coligir da tradição oral o conto da
Cendrillon, já ele era conhecido em Portugal, como vemos por um documento
de 1546; na comédia Ulissipo, escreve Jorge Ferreira de Vasconcelos: «Pois eu
também não quero gatas borralheiras.» (Fl. 32 e fl. 14.) Na tradição popular
portuguesa é este o mesmo título dado a Cendrillon. Um dos contos mais belos,
não coligidos por Pérrault, é o que se intitula as Três Cidras do Amor, no século
XVI tão vulgar entre nós, que o licenciado Soropita alude a ele: «senão
quando, falando com reverência, apareceram por proa as Três Cidras do
Amor...» (Poesias e Prosas, p. 103.) Na poesia popular há uma alusão à peripécia
fundamental deste conto:
Ó Cidra, considra ó cidra,
Ó Cidra, considra bem,
Depois da cidra partida,
Cidra, que remédio tem?
Além destas duas preciosas referências, parece-nos que a locução popular
Cantar a Moliana, que significa gritar com aflição em um momento de perigo,
se prende à locução francesa do Cri de Melusine, tradição heráldica da casa de
Lusignan; temos a conexão histórica para esta afirmação na genealogia dos
Monizes, dos quais se lê nas Divisas de João Rodrigues de Sá:
Âmbalas armas reais
de Chipre e Jerusalém
com armas mistura tem
de Moniz; mas estas tais
a um só deles convém:
um só a quem com razão
chama-se do Lusinhão,
seu pai Ih’a fez alcançar
por se ajuntar e casar
com tão alta geração[17].
Além destas preciosas indicações, temos nos Livros de Linhagens excelentes
subsídios para fixarmos o nosso domínio feérico; sabe-se que em volta das
genealogias se agrupavam estas lendas maravilhosas, para darem à nobreza uma
origem quase divina.
Finalmente, na novela de cavalaria de Amadis de Gaula, há o tipo do mágico
Archelau que é uma espécie de Barbe-Bleu de Pérrault; mas pertencente aos
fins do século XIV; a fada Urganda a desconhecida é a boa fada que anda
evitando os desastres na sua passagem. O Amadis de Gaula é português, e esta
feição feérica vista pela aproximação da época em que foi escrito e em que
contos britónicos entraram no Nobiliário, são um forte argumento da sua
redação portuguesa.
Foi no século XVI que o conto recebeu a forma literária, dada por Gonçalo
Fernandes Trancoso[18]. Antes de falarmos da sua coleção, importa definir as
relações com os novelistas italianos e franceses da grande época da Renascença,
que neste tempo foram lidos em Portugal. Pelos Índices Expurgatórios conhece-
se essa corrente da leitura dos livros de novelas.
As Notte piaccevoli de Straparola foram conhecidas em Portugal como se infere
de algumas novelas de Trancoso, que traduziu o conto de Grisélidis do folheto
italiano, sem data, La Novella di Gualtieri, traduzida da redação portuguesa
por Timoneda no seu Patrañuelo. É um tema que recebeu todas as formas
literárias desde a Idade Média até hoje.
A comprovação de um vasto campo de tradições populares no século XVI,
explica-nos o aparecimento de Gonçalo Fernandes Trancoso, autor dos Contos
e Histórias de Proveito e Exemplo, para o qual fomos o primeiro que chamou a
atenção dos críticos europeus. A coleção de Trancoso, também conhecida com
o título de Contos Proveitosos, compõe-se de vinte e nove contos, derivados em
grande parte de fontes tradicionais, alguns de proveniência popular, como o
provamos em notas adiante, outros de obras eruditas. Apesar de se acharem
diluídos em divagações morais, que embaraçam as narrativas, e não obstante o
estilo forçado, são importantes para alargarem a área dos estudos comparativos
da novelística. Diremos algumas palavras da personalidade de Trancoso; era
natural da província da Beira, tomando o apelido da localidade do seu
nascimento; veio exercer para Lisboa a profissão de mestre de Humanidades,
isto é, Latim e Retórica, em um tempo em que estas disciplinas não eram
privilégio exclusivo dos Jesuítas. (1555.) Nos seus contos refere-se: «Ao
glorioso S. Pedro, cujo freguês sou»; donde se deduz que vivia na freguesia de
Alfama. A data em que começou a escrever os seus contos fixamo-la em 1544,
segundo esta referência a uma armadilha de jogo: «e ele levava consigo
duzentos e vinte reales de prata, que era isto o ano de 1544, que havia quase tudo
reales.[19]» No conto XIII, da primeira parte, que versa sobre o anexim do real
bem ganhado, alude outra vez a esta moeda: «o qual com muito contentamento
por ver que soube escolher, lhe deu um real em dois meios, como ora costumam.
[20] E também: «meteu real e meio na mão.[21]» Estas referências fixam
irrevogavelmente a época em que Trancoso escrevia.
Uma das circunstâncias que levaram Trancoso a prosseguir na continuação dos
seus contos, foi o terror que espalhou a chamada Peste Grande de Lisboa, em
1569, circunstância que lembra a peste de Florença que determinou Boccaccio
à composição do Decâmeron. No conto IX da segunda parte, declara Trancoso
este motivo: «Assim o exemplo deste marquês, os que este ano de mil e quinhentos e
sessenta e nove, a esta parte perdemos mulheres, filhos e fazenda, nos
esforçaremos e não nos entristeçamos tanto, que caiamos em caso de
desesperação sem comer e sem paciência, dando ocasião a nossa morte.»[22]
Desta peste, que ainda hoje se conhece entre o povo como uma data histórica, a
Peste Grande, subsiste uma reminiscência na chamada Procissão da Saúde, que se
faz em Lisboa. Inspirado pelo fervor religioso, que sucedeu ao fim da peste,
Trancoso publicou logo em 1570 um opúsculo das Festas Mudáveis, dedicado
ao arcebispo de Lisboa. A redação dos contos ficou suspensa, desde que cessou
a peste: «e assim eu, ainda que tenho desejo de escrever este mês trinta
histórias, as ditas para desenfadamento...» A perda de quase toda a sua família,
mulher, filhos e a falta de lições, obrigaram-no durante tão tremenda crise a
esses exercícios de desenfado, para se não deixar cair em desfalecimento.
Na primeira edição dos Contos Proveitosos, de 1575, de que conhecemos o
exemplar único, agora examinado pelos bibliógrafos, vem uma Carta à Rainha
D. Catarina, regente de Portugal e viúva de D. João ui, onde se descreve o
desastre da Peste Grande de 1569; nessa Carta narra Trancoso, que lhe
morreram em casa sua mulher, uma filha mais velha de vinte e quatro anos, um
filho estudante e também um neto que era menino do coro. Sob o peso da sua
desgraça é que foi escrevendo os Contos Proveitosos; pela Carta à Rainha infere-
se que Trancoso casara pouco antes de 1544; as suas relações com a Rainha,
extremamente severa, dão-nos o sentido da alusão à morte do príncipe D. João,
pai de D. Sebastião, e porventura autorizam a crer que Trancoso fora mestre
de ler no Paço.
A determinação de alguns paradigmas de Trancoso, e o confronto com contos
populares ainda existentes prova-nos que ele se apropriou dos temas
tradicionais mais correntes na literatura do seu tempo.
A coleção de Trancoso compõe-se de vinte e nove contos derivados
imediatamente da tradição popular na maior parte, outros de fontes eruditas,
confundidos em difusos comentários católicos e dificilmente narrados; ainda
assim os Contos Proveitosos são bastante importantes para o estudo comparativo.
Em uma edição dos Contos Proveitosos de 1585 impressa depois da morte de
Trancoso, por seu filho Afonso Fernandes, vem um prólogo na segunda parte,
que dá notícia, de que em 20 de abril de 1570 acabara Gonçalo Fernandes
Trancoso a primeira parte, dedicando-a à rainha D. Catarina, que fez mercê
do papel para a sua impressão, sendo-lhe passado o alvará do privilégio em data
de 20 de abril desse ano, e em 26 de novembro de 1571 ampliado à segunda e
terceira parte «por ser tudo uma história». «Eu El-Rei faço saber aos que este
alvará virem que, havendo respeito ao que na petição atrás escrita diz Gonçalo
Fernandes Trancoso, morador nesta cidade de Lisboa, hei por bem e me praz
que, no tempo de dez anos, imprimidor nem livreiro algum nem outra pessoa
de qualquer qualidade que seja não possa imprimir nem vender em todos meus
Reinos e senhorios nem trazer de fora deles o primeiro livro conhecido na dita
petição, salvo aqueles livreiros e pessoas que pera isso tiverem seu poder e
licença... etc. Lisboa, 20 de abril de 1570.» (Chancel. de D. Sebastião, Privilégios,
Liv. VIII, fl. 255, v.)
«Eu El-Rei faço saber aos que este alvará virem que, havendo respeito ao que
na petição atrás escrita diz Gonçalo Fernandes Trancoso, morador na cidade
de Lisboa, hei por bem e me praz, que ele possa vender os três livros de que na
dita petição faz menção, a preço de cinquenta réis cada um, e que o privilégio
que lhe tenho concedido pera pessoa alguma não poder imprimir nem vender
sem sua licença o primeiro dos ditos livros, se lhe cumpra e guarde no segundo e no
terceiro, por ser em tudo uma estória... Almeirim, 26 de novembro de 1571»
(Chancel. de D. Seb., Priv., Liv. VIII, fl. 98, v.)
«Eu El-Rei faço saber aos que este alvará virem, que havendo respeito ao que
na petição atrás escrita diz Gonçalo Fernandes Trancoso, morador nesta
cidade de Lisboa, hei por bem e me praz, que por tempo de dez anos mais além
doutros dez que já lhe foram dados, imprimidor nem livreiro algum nem outra
pessoa de qualquer qualidade que seja não possa imprimir nem vender em
todos meus Reinos e senhorios nem trazer de fora deles a primeira, segunda e
terceira partes do livro conteúdo na dita petição... Lisboa, 9 de agosto de 1581.»
(Chancel. de D. Seb., Privil. Liv. XIII, fl. 249, S.)
O filho do autor, Afonso Fernandes Trancoso, obteve privilégio de mais cinco
anos sobre os já concedidos, em 10 de janeiro de 1585.
Presumível é, que a primeira parte fosse publicada isoladamente, e com a
segunda se reunissem na edição de 1575. É nesta, extremamente rara, que vem
o Prólogo autobiográfico, dirigido à rainha:
«Ficando eu nesta cidade de Lisboa o ano de 1569, muito alta e muito poderosa
Rainha nossa Senhora, a tempo que por causa da peste (de que Deus nos
guarde) quase todos os seus moradores a despovoavam: vi tantas cousas que
provocam os ânimos à tristeza, que quem quisera escrevê-las, tinha matéria
para fazer grande e mui lastimoso Livro; porque da contagiosa enfermidade
havia cada dia feridos que sacramentar, grande multidão de mortos que
enterrar, e a muitos órfãos chorar. E em todos grandes necessidades que
prover, a que o Senhor socorreu com pessoas virtuosas, que por seu amor o
faziam: a uns por uma parte sacramentavam, outros medicavam e davam pela
cidade grandes e mui copiosas esmolas, outras enterravam, que ainda que havia
muitas a que acudir, não tantas as que nestas obras virtuosas se exercitavam,
que não ficou cousa sem se prover, ainda que nisso morreram muitas (por
mercê de Deus) não faltavam outras e outras. Neste tempo de tanto trabalho
me tocou o Senhor, alcançando-me tanta parte, que perdi no terrestre
naufrágio uma filha de vinte e quatro anos que em amor e em obras me era
mãe, um filho estudante, um neto moço do coro da Sé; e para minha lástima
perdi a mulher, que por suas virtudes era de mim amada, que foi causa de
grande tristeza minha, tanto que ainda que conhecia vir-me por meus pecados
da mão do Senhor, a carne que é tão fraca, com a imaginação se ia cada dia
metendo em tristes pensamentos, e tais, que me desinquietavam e provocavam
a grande melancolia, tanto que temi que o imaginar nos trabalhos presentes me
fosse prejudicial ao corpo e alma, se Deus me não tivesse de sua mão (como por
experiência adiante se viu em outros). E com este temor por fugir daquelas
tristezas, determinei prender a imaginação enferma. E com ajuda de Deus.
Nosso. Senhor, pude tanto, que ao tempo que ela queria fazer chaminé de
lamentações, a tirei delas, e me pus a escrever Contos de Aventuras, Histórias de
Proveito e Exemplo de alguns ditos de pessoas prudentes e graves, da qual esta é
a primeira parte. E tendo-a de todo acabado, por ser já tempo de saúde e eu me
achar desalivado das imaginações que foram a causa de a escrever, quiseram
contentar-me com isso e guardar o livro. Mas vendo assim ficava o proveito da
obra para mi só, e entendendo que nenhum bem é perfeito, se não comunicado,
determinei imprimi-lo, por que todos gozassem destes contos, os quais dando
gosto aos ouvintes, não carecem de lição. Mas porém considerando como
sempre (por nossos pecados) há entre nós murmuradores, que não tendo mãos
para escrever, têm línguas para danar e dentes para roer, receando por minhas
faltas me espedaçassem a obra, pois sem elas espedaçam e aniquilam obras de
doutos varões, perfeitos e bons, buscando-lhe valhacouto firme, em que o livro
estivesse seguro destes combates, achei que não há terra outra senão Vossa
Real Alteza, a quem peço, que usando da sua grandeza e costumada
liberalidade, que há tempo de fazer mercês, ma faça de aceitar este tratado:
porque debaixo do seu favor ande seguro, ainda que indigno de tão grande
mercê. E não julgue a temerária minha ousadia, que nasce do desejo de
comunicar com todos o prémio de meu trabalho, esperando em Deus que sairá
dele fruto virtuoso. E logo acabarei de imprimir a segunda parte: Rogando a
Nosso Senhor, prospere a vida e estado de Vossa Real Alteza por longos anos
com muita felicidade. Ámen.»
Vê-se por este final, que o privilégio de 20 de abril de 1570 compreendendo só
a primeira parte dos Contos, fora depois em 1571 reproduzido com a segunda
parte, por ser tudo uma história.
A dedicatória à rainha reproduzida na edição de 1575 ainda acompanhou a
edição dos Contos de 1596. No ano da peste grande, Trancoso ficara por fiador
por vinte cruzados de um Francisco Lainez tendo de ir servir em Africa um
ano; por ataque da peste morreu o Lainez estando já embarcado, e Trancoso
requereu para que lhe fosse perdoada a fiança; foi atendido por alvará de 17 de
outubro de 1575. Os paradigmas dos Contos Proveitosos é que nos podem dar a
conhecer a extensão das reminiscências de Trancoso e a importância do seu
livro. O conto do segredo revelado à mulher, do qual se serve contra o marido em
um momento de cólera, acha-se na Gesta Romanorum; (cap. 144 do Violier des
hist rom.); nas Novelas de Sacchetti, n.º XXI; nas Cento Novelle antiche, n.º 100;
nas Cem Novelas Novas, n.º nas Notte piacevoli, de Straparola, 1.ª da primeira
noite; e no livro de Chevalier de la Tour, cap. 128.
O conto das três donzelas que desejavam servir o rei acha-se também em
Straparola (nott. IV, fav. III) e já foi submetido a um estudo comparativo por
A. Coelho.
O conto do rapaz que resgata a cativa cristã e compra a relíquia acha-se também
em Straparola (nott. XI, fav. 2).
O conto o que Deus faz é pelo melhor acha-se em uma versão idêntica no Conde
de Lucanor, de Don Juan Manuel, fl. 81, v.
O conto de minha mãe, calçotes! é uma variante do conto da Bilha de Leite, de
Gil Vicente, e tem as suas raízes tradicionais no Hitopadessa.
O conto de D. Simão, que responde a todas as adivinhações que lhe propõe o rei acha-
se ainda hoje na tradição oral portuguesa, com o título de Padre João Sem
Cuidados, e existe uma versão publicada no Almanaque de Lembranças para
1866, p. 323; nas Novelas de Sacchetti, nov. IV, se acha um paradigma literário,
o que torna mais extensas as suas fontes tradicionais.
O conto IV de Trancoso acha-se na Gesta Romanorum (Violier, p. 392); na
Disciplina clericalis de Pedro Alfonso, e no Decâmeron (jorn. VIII, nov. 10).
Trancoso também traz um extenso conto da Grisélidis digno de ser comparado
nos seus principais episódios com a versão de Boccaccio, e com as demais fontes
já acumuladas por Edelestand du Méril. Como a versão de Timoneda no
Patrañuelo seria tomada de um folheto italiano, isto explica a sua analogia com
a lição de Trancoso. Nos anexins portugueses encontra-se um que parece
aludir à história de Grisélidis, e por certo derivado da versão oral portuguesa:
Pelo marido vassoura,
Pelo marido senhora.
Em um jornal literário do Porto, a Harpa, analisou Ad. Coelho segundo o
sistema empregado por Domenico Comparetti, o Canto XV da parte primeira
Histórias Proveitosas, de Trancoso, aproximando-o dos paradigmas já reunidos
por Benfey, na introdução ao Pantchatantra, § 166, seguindo assim a corrente
tradicional nas versões tibetana, russa, alemã, italiana e inglesa.
Desta análise minuciosa conclui: «Vê-se que Trancoso não pode tirar o seu
conto de nenhuma de essas formas conhecidas, nem das imediatamente
anteriores, e como o conto não se acha em nenhuma das coleções antigas de
contos e novelas que maior giro tiveram na Europa, torna-se muitíssimo
provável, podemos dizer, quase indubitável, que ele bebesse na tradição oral
portuguesa, para onde ele viria por algum dos muitos canais, que cá trouxeram
grande número de contos orientais.» Era esta a nossa opinião, que Coelho
começou por combater no seu estudo: «Nada mais difícil a nosso ver, do que
provar que Trancoso bebeu na tradição popular, nenhum testemunho direto
no-lo afirma...»
O segundo conto analisado por Coelho foi o das três irmãs, e indica-lhe fontes
árabes, florentinas, sicilianas, húngaras, alemãs, gregas, catalãs, e três versões
populares do Minho, de Coimbra e de Castelo Branco; e conclui que Trancoso
só poderia ter conhecido unicamente a forma literária de Straparola.
A coleção dos Contos de Trancoso compõe-se de três partes, interrompida pela
morte do autor; a primeira parte deve fixar-se por 1544, e talvez impressa
separadamente, como se poderá inferir de uma edição desconhecida, citada por
Brunet.
A segunda parte, redigida em 1569, foi reimpressa ainda em vida de Trancoso
com a primeira em 1575; a terceira parte, não continuada, apareceu depois da
morte do autor, publicada por seu filho António Fernandes em 1596. Por estas
edições se conhecem as relações literárias de Trancoso com o poeta Luís
Brochado, autor das popularíssimas Trovas do Moleiro. Além das numerosas
edições deste livro, nos séculos XVII e XVIII, acham-se também muitas
referências aos Contos nas comédias de cordel.
O conto da Imperatriz Porcina foi romanceado por Baltasar Dias, poeta cego
do tempo de Dom Sebastião, e o mais popular depois de Gil Vicente. Coube-
lhe a sorte dos Demódocos; a cegueira deu-lhe o profundo caráter do
sentimento popular. As origens históricas deste romance encontram-se nas
Lendas Alemãs, de Jacob Grimm, (t. II, p. 120) sob o título de Hildegarda: «O
imperador Carlos partira para a guerra, deixando em casa a bela Hildegarda
sua mulher. Durante este tempo, Taland, cunhado de Carlos, esperou que ela
acedesse a seus desejos. Mas a virtuosa princesa antes queria morrer, do que ser
infiel ao esposo; dissimulou contudo, e prometeu ao infame de consentir, logo
que construísse de propósito uma linda câmara nupcial. Imediatamente Taland
mandou construir a todo o custo um magnífico quarto de mulher, fechado por
três portas, depois pediu à rainha que o acompanhasse até ali. Hildegarda
fingiu que o seguia, e obrigou-o a entrar primeiro. Quando transpôs os
umbrais da terceira porta, ela a fechou de súbito e correu um pesado ferrolho.
Taland permaneceu fechado na prisão até à volta de Carlos, depois da vitória
sobre os Saxões. Então, comiserando-se dele, e cedendo a hipócritas súplicas, o
pôs em liberdade pensando que fora assaz punido. Mas logo que Carlos o viu,
perguntou porque estava assim tão magro e pálido. «Culpa de vossa esposa
ímpia e impudica, respondeu Taland; quando ela descobriu a solicitude com
que eu a vigiava, e se viu impossibilitada de cometer faltas, mandou construir
uma nova torre e ali me teve preso.» O rei ficou vivamente comovido com
aquela nova, e num momento de cólera ordenou à sua gente de afogarem
Hildegarda. Ela fugiu, e foi ocultar-se em segredo em casa de uma de suas
amigas; mas logo que o rei descobriu o refúgio, deu novamente ordem para a
conduzirem a uma floresta, de lhe vazarem os olhos, e de a banirem em seguida
do território. O que sucedeu? Quando a gente do rei a levava, encontraram no
caminho um cavaleiro da casa de Freudemberg, que a condessa Adelgemd, sua
irmã, enviara encarregado de uma mensagem para Hildegarda. Logo que viu
que perigo corria a rainha, arrancou-a das mãos dos algozes, e lhes deu o cão
que o havia seguido. Tiraram os olhos ao cão e os levaram ao rei como prova de
haverem cumprido as suas ordens. Salva deste modo Hildegarda pelo socorro
de Deus, veio a Roma em companhia de uma nobra dama, chamada Rosina, e
exerceu ali com tanta felicidade e sucesso a medicina, que aprendera e praticara
durante a vida, que em breve alcançou uma grande nomeada. No entretanto
Deus puniu a impiedade de Taland tornando-o leproso e cego. Ninguém o
podia curar; alfim ouviu dizer que em Roma uma mulher célebre pelos seus
conhecimentos médicos, curava muito bem aquela doença. Quando Carlos veio
a Roma, Taland o acompanhou, indagou a morada da mulher, disse-lhe o
nome, e pediu para a sua doença os socorros da arte, sem saber que estava
falando à rainha. Hildegarda ordenou que confessasse os seus pecados a um
padre, fizesse penitência, e que depois experimentaria nele a virtude da sua
arte. Taland seguiu o conselho, confessou-se, veio procurá-la e ela lhe restituiu
a saúde. O papa e o rei ficaram tão maravilhados da cura, que desejaram ver a
mulher que a praticara e a mandaram chamar. Ela obedeceu, mas com a
condição de no dia seguinte entrar para o Convento de São Pedro. Foi ao Paço
e contou ao rei seu senhor como fora traída. Carlos reconheceu-a com alegria,
e a tornou a tomar como mulher; mas condenou à morte seu cunhado.
Contudo a rainha, a poder de rogos, obteve que lhe poupassem a vida, e assim
ficou somente abandonado à miséria.»[23]
De onde viria esta tradição ao conhecimento de Baltasar Dias? Seria talvez dos
exemplos que se usavam então nos sermões? É certo, que como esta chegaram
até nós muitas lendas da Idade Média, como o conto de Grisélidis que traz o
Trancoso, vindas talvez por Espanha. O romance da Imperatriz Porcina ainda
hoje anda no pregão dos cegos e faz as delícias do nosso povo. Dá-se com ele o
facto notável de ser na tradição oral mais breve e por isso mais lindo.
A História da Imperatriz Porcina, tão querida, reimpressa, procurada e
apregoada, tornou-a clássica em Portugal esse infeliz cego, natural da Madeira,
o Gil Vicente do tempo de D. Sebastião, povo no seu estilo e cego como ele no
mundo; foi por isso que o povo o compreendeu como irmão, e se consolava
com as fantasias que ia criando na solidão em que se achava. Ainda hoje os
artífices das vilas e arrabaldes das cidades encontram uma distração predileta
no Auto de Santo Aleixo e no Auto de Santa Catarina de Baltasar Dias.[24]
Pertence-lhe também o Auto da Malícia das Mulheres[25], e essa pérola
perdida e modernamente desencantada pela vara mágica de Garrett, que a
salvou no terceiro tomo do seu Romanceiro, o Marquês de Mântua, apeado do
proverbial barbante em que tantos anos cavalgou, despindo-o do papel pardo
em que o traziam os vendilhões de feira e os cegos andantes; salvou este
venerando romance do ciclo de Carlos Magno, mau grado o desdém
supercilioso de hieráticos académicos.[26] O romance é de origem francesa;
inclinamo-nos a crer que viesse de Espanha, deixando o caráter épico que lá
tinha depois de dramatizado ao gosto popular por Baltasar Dias.
O nosso Marquês de Mântua, que anda na literatura de cordel, tinha sido
transcrito na coleção do Cavaleiro de Oliveira, com uma variante no princípio;
Baltasar Dias o traduziu dos pliegos sueltos espanhóis. Nas notas de Dom
Quixote, Pellecier atribui-o a Geronimo Trevião, mas Ochoa (Tesoro, p. 12,
not. 3) apenas o julga como editor, que lhe deu correção e modificou o original
antigo, fundado no encontro das consoantes forçadas, não usadas pelos poetas
dos séculos XIV e XV. Nos romanceiros espanhóis anda dividido em três
partes; na primeira encontra o marquês seu sobrinho Baldovinos ferido
mortalmente, que lhe conta a traição de Carloto, e a vingança que jura; o
segundo romance conta a embaixada a Carlos Magno para lhe pedir justiça
contra seu filho, e a execução da sentença contra Carloto; o terceiro é o funeral
de Baldovinos. Baltasar Dias transformou os três romances em um só,
reduzindo igualmente as descrições épicas a rubricas dramáticas, servindo-se
das falas para o diálogo. Por aqui se vê quase o processo artístico como o nosso
poeta foi naturalizando e melhorando os romances espanhóis. Quando Garrett
sacou do lixo da Feira da Ladra esta pérola, ainda não sabia quem era o autor.
A Formosa Magalona, que pertence à influência do romance cavalheiresco
francês sobre a Península,[27] depois de havê-la vertido por seu turno a
Espanha, chegou até nós. A Formosa Magalona, que andou entre nós tanto
tempo montada no cordel do cego andante, e agora passou para a canastra do
vendedor de fósforos, foi, segundo Victor Le Clerc, escrita primitivamente em
provençal ou em latim, no século XIV, pelo cónego Bernard de Triviez. É um
dos mais corretos de todos os contos populares, e dizem que aos catorze anos
Petrarca lhe retocara o texto.[28] O tradutor português alterou-lhe o título
antigo — Histoire de Pierre de Provence et de la belle Maguelone. As traduções à
letra não eram conhecidas na Idade Média. Apontamos aqui um excelente
subsídio de estudo:
Historia Dily Niebel e Viglion Cavalier, Pieder de Provenza e della Biala
Magelona, Prinzessa de Neapel (versão sursélvica). Na Zeitschrift für romanische
Philologie, 1881. V Band. 4 hept. (pp. 480 a 497).
IV) Os contos no século XVII: Rodrigues
Lobo e D. Francisco Manuel de Melo.A
tendência moralista ampliando os contos
No século XVII o conto recebia em Portugal duas poderosas influências;
Francisco Rodrigues Lobo, na Corte na Aldeia, procurava submetê-lo às regras
literárias, discriminando os seus géneros e estabelecendo o modo de narrá-lo;
por outro lado Saraiva de Sousa, no Báculo Pastoral, o padre Manuel Bernardes
na Floresta e Estímulo Prático limitam o conto no destino ascético, e Vieira na
intenção moral.
No diálogo X da Corte na Aldeia, traz Rodrigues Lobo a História dos Amores de
Aléramo e Adelasia, da qual diz um dos seus interlocutores: «poderá servir —
no modo como se devem contar outras semelhantes, com boa discrição das
pessoas, relação dos acontecimentos, razão dos tempos e lugares, e uma prática
por parte de alguma das figuras, que mova mais a compaixão e piedade, que
isto faz dobrar depois a alegria do bom sucesso. — Esta diferença me parece
que se deve fazer dos Contos para as Histórias, que elas pedem mais palavras que
eles, e dão maior lugar ao ornamento e concerto de razões, levando-as de
maneira que vão aperfeiçoando o desejo dos ouvintes, e os Contos não querem
tanto de retórica, porque o principal em que consistem é na graça do que fala, e
na que tem de seu a coisa que se conta.» Em aplicação destas regras apresenta a
História dos Amores de Manfredo e Eurice, à imitação dos novelistas italianos,
com divagações de estilo retórico, para confrontá-las com as narrativas
populares «com mais bordões e muletas do que tem uma casa de romaria,
porque me não escapam termos das velhas, nem remendos de descuidados, que
lhe não misture.» Em seguida exemplifica o processo com uma história contada
com o erro do costume dos ignorantes:
«Dizem que era um rei; vem este rei casou por amores com a filha de um seu
vassalo; era ela tão fermosa, que podia por sua beleza ser confiada, pois por essa
alcançara o ser rainha; mas sem lhe valerem esses privilégios, deu em tão ciosa,
que bem à mão, não dava o marido um passo que ela não acompanhasse com as
suas suspeitas; assim que apertavam estas tanto com ela, que jamais vivia em
paz, com seu gosto. Vem ela, e por vencer esta desconfiança, vai e manda
secretamente chamar uma feiticeira, que naquela terra havia, de muita fama,
em cujo engano achavam os namorados uma -botica de remédios para seus
males. Assim que dizia esta feiticeira por lhe vender mais cara sua diligência,
feitas algumas fingidas, meteu em cabeça à boa rainha ciosa, que o marido
amava com grande extremo a uma criada sua, que ela pintou logo a mais
galante, airosa, galharda e bem-assombrada, que havia no Paço. Quando ela
aquilo ouviu, ficou (guarde-nos Deus) como uma mulher transportada e sem
sangue; por maneira que prometeu àquela feiticeira que lhe faria e aconteceria
se a desafeiçoasse ao rei daqueles amores e empregasse nela todos os seus: a
outra, que não queria mais que aquilo, vede vós como ficaria contente, vem e
promete à rainha que lhe daria três águas conficionadas, de tal maneira que
uma, tanto que el-rei a provasse, bebesse logo os ventos por ela, e lhe quisesse
mais que o lume dos olhos com que a via; a outra, que em a rainha a bebendo,
parecesse a seu marido o maior extremo da formosura, que havia no mundo; a
terceira, que tanto que a dama a bebesse, a desfigurasse de maneira que a todos
aborrecesse a sua vista. As palavras não eram ditas, a rainha lhe deu muitos
haveres e fez grandes mercês e promessas, que muito fácil é de enganar a que
deseja aquilo com que lhe mentem. Vai a feiticeira dali a poucos dias, e traz
aquelas águas conficionadas, encarecendo muito a virtude e segredo delas; mas
ou porque lhe errou a têmpera ou porque todas se resolvem nestas boas obras, a
mudança que ela queria houvesse na vontade e nos pareceres, lhe houveram de
fazer na vida, que a peçonha, que é sempre material dos seus unguentos,
penetrou de maneira que os teve a todos três em passamento, e a bem livrar
ficaram daí a poucos dias sem juízo. Inda bem a feiticeira não soube o dano que
fizera, e que por não trazer a mão certa naqueles adubos podia vir a estado de a
porem na da justiça, desapareceu. Eis senão quando, se ajuntam todos os
médicos eminentes que havia no reino, e depois de muitos meses de cura (olhai
vós quantas se fariam a tais pessoas) foram pouco e pouco cobrando os sentidos
e entendimento; e com a força do mal lhes caiu a todos o cabelo da cabeça, sem
lhes ficar um só. E não foi tão ruim o partido, como era ter cabeça sem ele
quem antes o trazia sem ela. Tornando ao meu propósito, tanto que a rainha se
viu desfigurada, conhecendo o desatino que fizera, dando todas as culpas ao
amor, confessou seu erro, a criada sua inocência, e o rei sua desgraça; dali em
diante, conformando-se como exemplo daquele sucesso, fizeram vida sem
ciúmes, que deles e de casamentos por amores não escapam senão com as mãos
nos cabelos, ou com eles pelados.»[29]
Rodrigues Lobo continua definindo os diferentes géneros de contos: «A
noite... se tocou nesta conversação o modo que havia de ter o discreto em contar
uma história, fugindo muitos vícios e bordões que os néscios tem nelas
introduzidos, e como em dependência desta matéria, se falou nos Contos
galantes, que tem delas muito grande diferença: pois eles não consistem mais,
que em dizer com breves e boas palavras uma cousa sucedida graciosamente.
São estes contos de três maneiras. Uns fundados em descuidos e desatentos,
outros em mera ignorância, outros em engano e subtileza. Os primeiros e
segundos têm mais graça e provocam mais o riso, e constam de menos razões,
porque somente se conta o caso, dizendo o cortesão com graça própria os erros
alheios. Os terceiros sofrem mais palavras, porque deve o que conta referir o
como se houve o discreto com o outro que o era menos, ou que na ocasião ficou
mais enganado.» «Além destas três ordens de contos, de que tenho falado, há
outros muito graciosos e galantes, que por serem de descuido de pessoas, em
que havia em todas as cousas de haver o maior cuidado, nem são dignos de
entrar em regra, nem de serem trazidos por exemplos; a geral é que o
desatento, ou ignorância, donde menos se espera tem maior graça. Atrás dos
contos graciosos se seguem outros de subtileza, como são furtos, enganos de
guerra, outros de medos; fantasmas, esforço, liberdade, desprezo, largueza e
outras semelhantes, que obrigam mais a espanto que a alegria; e posto que se
devem todos contar com o mesmo termo e linguagem, se devem neles usar
palavras mais graves que risonhas.» «Os contos e ditos galantes devem ser na
conversação como os passamanes e guarnições nos vestidos, que não pareça que
cortaram a seda para eles, senão que caíram bem e betaram com a cor da seda
ou do pano sobre que os puseram; porque há alguns que querem trazer o seu
conto a remo quando lhe não dão vento os com que pratica, e ainda que com
outras cousas lhe cortem o fio, torna a teia e o faz comer requentado; tirando-
lhe o gosto e graça que podia ter se caíra a caso e propósito, que é quando se
fala na matéria de que ele trata, ou quando se contou outro semelhante. Assim
convém muita advertência e decoro para os dizer, outra maior se requer para os
ouvir, porque há muitos tão sôfregos do conto ou dito que sabem, que em o
ouvindo começar a outrem ou se lhe adiantam, ou o vão ajudando a versos
como se fora salmo o que a mim me parece notável erro...» «também eu não sou
de opinião, que se um homem souber muitos contos ou ditos de uma mesma
matéria que se falou, que os traga todos ao terreiro como jogador que, levou
rifa de um metal, mas que deixe lugar aos outros, e que não queira ganhar o de
todos, nem fazer a conversação só consigo.» Rodrigues Lobo conhecia a
coleção espanhola de Timoneda, El Sobremesa y Alivio de Cambiantes (1576),
que tomava por tipo:
«Antes me parecia a mim, que assim dos contos galantes, ditos engraçados e
apodos risonhos, se ordenasse que em uma destas noites, tomando um
propósito, cada um contasse a ele o seu conto, e dissesse o seu dito: e seria um
modo extremado para se tirar outro novo Alivio de Cambiantes, com melhor
traça que o primeiro.» (Corte na Aldeia, Diálogo XI.) Na tradição popular
portuguesa temos encontrado contos que aparecem no Alivio de Camiñantes,
tais como: A Mulher Afogada que o marido busca indo contra a corrente do rio
(Vol. I, p. 256); Tudo Andaremos (I, p. 263); Não Lhe Dar com o Tom (n.º 37); as
Orelhas do Abade (I, p. 266); Para Quem Canta o Cuco? (p. 262); e o Cego Que
Recobra o Seu Tesouro (p. 239).
Como Rodrigues Lobo, também D. Francisco Manuel de Melo soube
inspirar-se nas tradições populares, que tanto nacionalizaram a época
quinhentista. Nas suas Cartas alude por vezes D. Francisco Manuel de Melo
aos contos ainda hoje correntes na tradição oral: «E ainda que virei a ser aquela
Dona atrevida,
Doce na morte
E agra na vida.»
(Op. cit., p. 67)
Em outro conto (Cent. II, p. 74), alude às trovas de Maria Castanha, tipo já
afamado pela novela picaresca da Lozana Andaluza: «Só vos peço, pois ides
para terra de muitos castanheiros, que não caseis por lá com alguma Maria
Castanha.» Também faz referência ao conto dos Frangãos e do Milhafre. (Ib. p.
215). Nos Apólogos Dialogais traz: «mas andas falando como quem bebe por
púcaro pedrado, ou como a história do Salsinha, que não haver de dizer sim nem
não, é um maldito costume.» (Ib. p. 260). Na Feira de Anexins cita o proverbial
Conto da Carochinha: «— Esperai, contar-vos-ei uma história — A da
Carochinha? — Não! procurai outra mais cara, que essa é muito barata? — Pois
digo-lhe que ainda com a carocha, é essa história o feitiço das crianças.» (Op. cit., p.
8). O escritor seiscentista não escapou ao espírito da época, aproveitando os
equívocos de caro e Carochinha, conto contrastando com a insígnia trágica da
Carocha ou mitra de papel que levavam os condenados aos autos de fé. Na
Égloga I (Sanfonha de Euterpe, p. 60) faz sentir a predileção das mulheres
fantasiosas:
Destas que leem por patranhas,
Suspiram Motes de cor,
Entendem falas estranhas,
Quer de amor’s quer de Façanhas
Livre-nos Nosso Senhor.
Nas Obras Métricas tratou muitas fábulas, e é sempre com intenção artística,
que D. Francisco Manuel usa os anexins vulgares. Nas Cartas (Cent. n/, n.º 81):
«Já ouvi que não havia amigos em tempo de figos; mas não em tempo de figas.
Digo-o, senhor meu, porque estão-no-las metendo nos olhos estes
Brichotes...» O anexim: Cantar mal e porfiar é derivado da fábula do corvo
querendo cantar como a filomela, vulgarizado pelo Dialogus Creaturarum de
Nicolau de Pérgamo. (Ap. Du Méril, Hist de la fable, p. 152, not.).
O pai de D. João IV, D. Teodósio II, duque de Bragança costumava distrair-se
nas suas insónias ouvindo contos do seu guarda-roupa António Mouro, como
se lê nas Provas da História Genealógica: «Contava muitas histórias ao Duque,
sem prejuízo de pessoa com que aliviava muito ao Duque de suas menencorias,
que nunca faltavam, e como o Duque dormia pouco, as mais das noites gastava
nestas cousas.» (Prov., t. VI, n.º 165).
Em carta de Francisco de Sousa Coutinho a D. João IV: «cheguei a tempo em
que quando V. Maj. era servido de o reparar honrando-me com algum título
lho não houvera de aceitar; sou já velho para mudar de nome e sou muito
conhecido pelo meu. Sei bem que diria a Vossa Majestade, quem isto ouvisse, o
que dizia a Raposa, de que eram verdes as uvas, mas pela mesma vida de V. Maj.
juro que o digo do meu coração...»[30]
Nos Sermonários e obras ascéticas do século XVII, tão retórico nos países
católicos, os contos tradicionais e populares receberam uma exclusiva intenção
moral, continuando pelas necessidades da casuística a explorarem os Tesouros
de Exemplos dos pregadores da Idade Média. O livro de Francisco Saraiva de
Sousa, intitulado Báculo Pastoral é um apanhado de uns contos de matéria
predicável[31]; aí se encontra o conto do filho do rei a quem incutiram a ideia
de que as mulheres eram os demónios, (Novellino, n.º XVI); o do príncipe
castigado pelo mestre na pessoa de seus doze amigos (Novellino, n.º XLVIII), a
adaptação portuguesa da lenda do Pajem de Santa Isabel. Também o ascético
padre Manuel Bernardes, no Estímulo Prático, apresenta o conto dos três cegos
que entre si conversam, imitando o seu estilo popular; na Floresta, traz o
apólogo das Cotovias (I, p. 70); o Cavaleiro de Rodes (I, 355); a Mulher Marinha
(I, p. 403); o Anel de Bênção (II, 158); o Animal Agradecido (II, 158); os Três
Beijos (II, 228), e outros muitos nos Sermões e Pão Partido em pequeninos.
Também nas comédias de Simão Machado encontram-se metrificados
pequenos contos da tradição clássica.
O poemeto Gaia, de João Vaz, de Évora, é apreciável como elaboração literária
de uma lenda árabe, que penetrou como relação histórica nos Livros de
Linhagens. A lenda da Donzela da Torre, que segundo Menéndez y Pelayo, se
referiria à fuga de D. Teresa, irmã de D. Afonso V de Leão, para casar com um
rei mouro, foi tratada como episódio por D. Bernardo Ferreira de Lacerda no
poema Espatia Libertada, na parte I, canto IV, em 49 estâncias. A infanta é aí
chamada D. Ximena. Lope de Vega dramatizou esta lenda heráldica dos Teles
de Meneses nas duas comédias famosas Los Telles de Menezes e Valor y fortuna y
lealdade de los Telles de Menezes, 1635. (Parte XXI). Menéndez y Pelayo acha
nesta lenda a síntese da independência do povo trabalhador e honrado ante a
fidalguia orgulhosa; confirma-o a cantiga portuguesa:
Alfaiates não são homens,
Sapateiros também não;
Homens são os Lavradores
Que enchem a casa de pão.
O conto na forma literária desenvolve-se prolixamente em volumosas novelas,
em que o estilo consiste em cada período diluir-se em impertinentes acessórios.
São tipos do género os Infortúnios Trágicos da Constante Florinda de Gaspar
Pires Rebelo, 1665. Compete com este insulso moralista, o padre Mateus
Ribeiro, com o Alívio de Tristes, Consolação de Queixosos (1688) e a Roda da
Fortuna e Vida de Alexandre e Jacinta (1695). Bem mereciam o epíteto de carros
de palha, que Carlyle aplicava a um erudito inglês. Os Jesuístas levaram o
género até à insânia[32]. Eram os pródromos do romance moderno, que se
iniciara na literatura inglesa.
Os livros populares portugueses de folha volante, que se vendiam pelas feiras, na
arqueta do belfurinheiro, ou no barbante do cego, foram também condenados
pelos meticulosos da censura inquisitorial: «Os vendedores de Autos e
Cartilhas, não vendam, nem comprem para vender, outros livros sem primeiro
os mostrarem ao Revedor: porque algumas pessoas escondidamente têm alguns
livros, que eles compram e vendem, sem saber o que há nos tais livros, e se
seguem disso inconvenientes: e há informação, que nas tais tendas, se acham
livros suspectos e prejudiciais. E os solicitadores do Santo Ofício visitarão
algumas vezes os ditos lugares e farão saber ao Revedor, os livros que ali se
vendem. O mesmo se fará dos livros que se vendem nas feiras.» (Índex de 1581.
Mais implacável foi o índex de 1621).
Quando Filinto escrevia esta carta a José Bonifácio de Andrada, que em missão
científica viajava pela Alemanha, os exímios filólogos Jacob e Guilherme
Grimm encetavam o estudo científico da Novelística, criando uma nova
compreensão do passado.
Na sátira Esfuziote, consolando o seu amigo Sebastião Barroco de uma deceção
de amor, exclamava:
— Sempre os valentes,
Bem o sabes, valeram mais co’as fêmeas,
Que os sábios cidadãos, que os virtuosos,
Esta paixão privou com elas sempre;
Esta fez, que as Princesas das Novelas
Prezassem mais que tudo o ser amadas
Dos andantes basbaques Cavaleiros,
Só por que eram brigões, e prometiam
Lançar-lhes, por fineza, aos pés rendidas
Mil testas de Gigantes encantados;
E porque nos torneios e nas justas
Para a sua Senhora ter a palma
De mais formosa, entre as Senhoras todas,
Faziam confessá-lo assim aos outros,
Ou a botes de lança em lide honrada
Lhes faziam morder raivando a terra.
Assim durou té’gora incontestada
Esta razão de avaliar amantes...
(Obra, t. V, p. 240.)
No período do Romantismo, em que as literaturas modernas se aproximaram
das suas fontes tradicionais, também Garrett e Herculano sentiram a
necessidade de imprimir uma feição nacional à literatura portuguesa;
Herculano romantizou o conto da Dama Pé de Cabra nas suas Lendas e
Narrativas, e Garrett metrificou a lenda de Miragaia, a Gaia do Nobiliário.
Seguiu-lhes Castilho o exemplo na lenda de Fuas Roupinho.
Na lenda de Gaia há um episódio que se encontra nas lendas germânicas. Lê-
se no Livro Velho das Linhagens: «fretou (Abencadão) seis naves e meteu-se em
elas, e veio aportar a Sanhoanç da Furada; e pois que a nave entrou pela foz
cobriu-a de panos em tal guisa que cuidassem que eram ramos, ca entonce Douro era
coberto de uma parte e da outra de árvores.» Em uma lenda franca, extraída
por Jacob Grimm de Aimonius, acha-se este mesmo estratagema de guerra.
«Quando Childebert entrou com um poderoso exército nos estados de
Gontran e Fredegond, a rainha exortou os Francos a defenderem-se com
arrojo... Fredegond imaginou um estratagema. À meia-noite, no meio das
trevas, o exército guiado por Landerick, tutor do jovem Clotário, pôs-se em
marcha e foi para uma floresta; Landerick pegou de um machado e cortou para
si um ramo de árvore, depois pendurou umas campainhas no pescoço do cavalo
que montava. Deu ordem a todos os seus cavaleiros para que fizessem o
mesmo; cada um deles tomou um ramo de árvore na mão, prendeu campainhas ao
pescoço do seu cavalo, e todos, logo que o dia começou a alvorecer, puseram-se
a andar para o campo inimigo!... Uma das vedetas do exército contrário os
descobriu através da luz duvidosa do crepúsculo; gritou logo para o
companheiro: Que floresta é esta, que aqui vejo? Em sítio onde ainda ontem à
noite não havia o menor graveto? — Tu ainda estás emborrachado e de nada te
lembras (disse o outro soldado) é gente nossa, que acharam na floresta vizinha
forragens para os seus cavalos. Não ouves o som das campainhas penduradas ao
pescoço dos corcéis que pastam?... Enquanto as vedetas isto diziam, os Francos
deixaram cair os ramos e a floresta ficou despojada de folhas, mas eriçada de
lanças refulgentes que se levantaram como troncos. A confusão entrou no
exército do inimigo; o terror apoderou-se deles; deixaram o sonho para
entrarem numa batalha sangrenta e os que não puderam fugir foram ceifados
pelo ferro; os comandantes só deveram a salvação à celeridade dos seus cavalos.»
(Jacob Grimm, Lendas Alemãs, t. II, 107, trad. L. Héretier (de l’Ain) 1838.)
A lenda de D. Fuas Roupinho salvo pela intercessão da Virgem da Nazaré, do
abismo em que o seu cavalo o precipitava, aparece na tradição alemã atribuída a
Hermann de Treffurt, que os cronistas Becherer, Toppius e Melissante,
pintam como um teutão devasso, brutal, um senhor feudal despótico. No seu
extrato, escreve Jacob Grimm: «Isto não obstava que fosse sempre à missa e de
rezar com devoção, o ofício da Santa Virgem. De uma vez partira a cavalo para
uma aventura de amor, depois de ter convenientemente segundo o seu
costume, rezado mui religiosamente o oficio da Virgem; mas como cavalgava
de noite sozinho nas trevas sobre o Hollestein, enganou-se no caminho e
chegou ao píncaro mais elevado da montanha; ali o cavalo estacou de repente;
mas o cavaleiro julgando que seria medo de alguma alimária, esporou-lhe o
flanco; o cavalo arrojou-se com o cavaleiro do alto do rochedo e morreu da
queda; a sela desfez-se; a espada do cavaleiro fez-se em estilhaços; mas na sua
queda o cavaleiro invocara a Virgem--Mãe, e pareceu-lhe que era segurado
por uma mulher que o colocou em terra levemente e sem mal.» (Lendas Alemãs,
t. II, p. 412.) Castilho tratou esta lenda deliciosamente nas Escavações Poéticas.
No seu tratado Da Educação, escrito em 1830 por Garrett em cartas dirigidas à
marquesa de Ponta Delgada, que instruía a princesa D. Maria da Glória (D.
Maria II) mostra-se contrário a que se contem ou leiam fábulas e contos às
crianças: «Em muitas partes é costume, especialmente em França, o ser um
livro de fábulas ou apólogos o primeiro que se dá às crianças; Maitre Corbeau é
a primeira personagem histórica com quem fazem conhecimento os meninos
franceses. — Mas ainda que o apresentador seja tão elegante e donairoso como
o engraçado João La Fontaine, ainda assim Maitre Corbeau sur un arbre perché
não é sujeito, que se escolha para a primeira amizade de uma criança.» II
n’appartient qu’ aux hommes de s’instruire dans les fables, diz Rousseau com muita
razão. Confirma diariamente a experiência o que ele assevera, que nunca se vê
tirarem as crianças uma ilação moral do seu apólogo; gostam porque é conto e
faz rir, e acham nos versos de Fedro ou La Fontaine repetidos pelo Lobo e
pelo Cordeiro, a mesma graça que no «Tó, Carocho! quem passa? el-rei, que
vai à caça,» do seu papagaio. Nunca pude descobrir o porquê razoável deste
costume, e vejo-lhe mil inconvenientes. Será que aprendam melhor os meninos
a moral pregada com as visagens do macaco desembargador ou nos diálogos da
formiga e da cigarra e semelhantes églogas de alimárias? Não o creio; não acho
que a ficção instrua melhor que a verdade.
«Inventaram-se para as pessoas grandes, para os grandes que não queriam
ouvir, que se ofendiam com a verdade nua e crua, e só toleravam com alguma
indulgência quando assim condimentada e disfarçada em parábolas. — E por
este modo e como os escravos romanos ou bobos senhoriais é que nós havemos
de presentar às portas da vida a receber o nosso pupilo para o guiar no caminho
da experiência com subterfúgios de fábulas e contos da Carochinha? —
Demais, fábula quer dizer fingimento; e fingimento é mentira; e mentira nem
zombando se deve ensinar às crianças; é mau divertimento; não se lhes deve
deixar folgar com ele... No tempo que os bichos falavam: começam os apólogos da
tradição oral, que se contam aos meninos; bem sabemos que ainda que creiam
nisso, não podem crer muito tempo; mas para que é ‘essa ideia falsa, por pouco
que dure? Sempre é mau, — é péssimo; faz-lhes perder o horror à falsidade,
ensina-lhes a contar contos e não a olhar a verdade como uma cousa santa, com a
qual não é lícito, não é possível brincar, que nem se deve nem se pode saber
dissimular ou alterar no mínimo ponto.» (Carta IV.) Neste juízo estava sendo
influenciado pelo negativismo crítico do fim do século XVIII, de que se
queixava Filinto na saudosa evocação das seroadas portuguesas; e os Grimm já
tinham fundado a escola que estudava as ficções poéticas tradicionais como
revelações do estado da consciência humana primitiva isentas de toda a
mentira, e constituindo um dos mais ricos elementos da Demopsicologia. O
que absolve Garrett é o abuso que se fez compondo fábulas e imaginando
contos de mero artifício pedagógico, como os de M.me de Beaumont, e
congéneres; desnaturando o sentimento da tradição, que tanto se manifesta nas
épocas de decadência. A simpatia natural das crianças pelas fábulas corresponde
ao atavismo do estado psicológico de um fetichismo espontâneo primitivo que
orientou a imaginação humana tão lucidamente estudado por Comte[40].
Mais tarde Mendes Leal fez uma espécie de mágica fiabesca das Três Cidras do
Amor, com toda a ininteligência do ultrarromântico. Era preciso fazer a
transição da emoção artística para a crítica consciente; esta fase do
Romantismo europeu só veio a operar-se muito tarde em Portugal, quando a
história literária recebeu um espírito filosófico, e o corpo das tradições poéticas
foi explorado com intuito científico. No último quartel do século XIX o conto
popular continuou a receber forma literária;[41] prevaleceu, porém, a direção
científica, havendo já numerosas coleções em que se vão arquivando as
tradições portuguesas, sintoma auspicioso de uma revivescência da
nacionalidade[42].
Depois de terem iniciado a colecionação dos contos populares da Alemanha em
1812 e 1813, os celebrados filólogos Jacob e Guilherme Grimm, determinando
em 1822 as formas do seu estudo em quanto às origens míticas e universalidade
desses temas novelescos e transmissão entre épocas e nações diversas pelo
influxo das obras literárias, esboçaram o processo crítico da novelística, criando
sobre este elemento tradicional uma nova ciência, a Demopsicologia. A ficção
deixou de ser considerada como um capricho da fantasia, mas a conceção
implícita na expressão subjetiva, que nos pode revelar estados primitivos da
inteligência. Deste automatismo tradicional através dos séculos, e sob os
inevitáveis sincretismos, tal como acontece com a linguagem, nunca a ficção
deixa na sua espontaneidade transparecer uma mentira propositada. Tal foi a
descoberta fundamental de Jacob Grimm, afirmando a verdade da poesia do
povo; pode essa tradição ser deturpada, e mesmo enganar-se, errar, mas
subsiste impertérrita a verdade do que a transmite. Que diferença entre um
mito e uma conceção científica! E contudo o mito é verdadeiro, como
documento revelador de um estado mental de subjetividade e credulidade. Esta
alta compreensão valorizou esses produtos da imaginação, que se abandonavam
às reminiscências da velhice e à fascinação das crianças, com o título de Contos
da Carochinha e Contos de Velhas; formaram-se por todas as nações sociedades
de folclore, para coligirem esses materiais da sabedoria popular, a que
chamaríamos Demótica, para completar a área das investigações. Jacob Grimm
apontou também a necessidade do exame das obras literárias das diversas
nações nas épocas várias da sua cultura. No pequeno quadro que aqui
intitulamos Literatura dos Contos Populares em Portugal, procuramos satisfazer a
indicação sugestiva de Grimm. Quando o diplomata conde de Lavradio foi à
Alemanha induzido pela duquesa do Kent para tratar do casamento de D.
Maria II com o jovem Fernando de Coburgo, filho segundo do duque
reinante, escreveu no seu Diário-Memorial.
«Novembro de 1835. À noite reuniram-se em casa do duque (Saxe-Coburgo)
diversos homens sábios do país, entre outros Mr. Jacob, que goza de grande
reputação na Alemanha; pareceu-me homem de conhecimentos muito variados, bom
saber e muita jovialidade, não obstante a sua avançada idade.» Era o grande
filólogo revelador do génio germânico; contava então cinquenta anos, e é
curiosa esta nova do seu saber aliado à muita jovialidade. (Memor., fl. 209.)
Ao contrário do que pensara Garrett, a generalização dos estudos do folclore
atuou na transformação da pedagogia infantil, entre os educadores ingleses,
alemães, belgas, suíços e escandinavos, servindo-se de todos os meios naturais e
morais para acordar o interesse e a inteligência da criança; formaram os
formosos livros de contos, as coleções de cantares, principalmente de baladas
narrativas, os brinquedos instrutivos, os álbuns de estampas coloridas com
intuito moral e artístico, e músicas alegres de valsas como as de Rudorff, e até
dar às visualidades da lanterna mágica a forma fascinadora do conto de fadas
em ópera, como fez com tanta felicidade o sábio compositor Humperding. E
nesta arena de esforços também Portugal está bem representado por delicados
espíritos femininos como Caiel (D. Alice Pestana) e D. Ana de Castro Osório,
dignas da maior benemerência.
As vias que se podem determinar para a introdução em Portugal dos contos
mais gerais da tradição universal são literárias e orais. As literárias, são
provençais, bretãs e francesas até ao século XV; eruditas e as provenientes da
corrente dos novelistas italianos no século XVI. A via popular ou oral é mais
difícil de determinar, mas uma das principais foi a comunicação com a
sociedade árabe, influência que fez que em Espanha se traduzisse o Calila e
Dimna; as Cruzadas e as relações com as cortes bizantinas; a corrente literária
vulgarizava-se entre o povo, por via dos pregadores. Muitos contos conservam
vestígios míticos inconscientes. A persistência da tradição entre o povo tem
também o seu porquê histórico; os pagi, na organização social da Idade Média,
eram as povoações rurais, com a vida industrial própria, com a sua crença e
igreja local, alheios a todo o movimento intelectual dos grandes centros.
Foi nos pagi, que os restos do politeísmo romano, do culto odínico germânico,
do druidismo céltico, e dos cultos mágicos trazidos pelos Romanos e Árabes
dos Egípcios e Caldeus, se encontraram com o cristianismo ainda em estado
sentimental. Mais tarde a Igreja, ao realizar a sua unidade, condenou essas
tradições populares, chamando-lhes paganismo. Nos contos de fadas o caráter
pagão é tanto mais evidente quanto maior é o sincretismo; toda esta
complexidade de origens recebe interesse histórico, segundo as épocas que
atravessa; nesses contos alude-se às grandes fomes; à antropofagia dos ogres, à
brutalidade feudal na situação de Grisélidis, ou ao símbolo jurídico dos
esponsais pelo sapatinho, como na Cendrillon. O ponto de vista mítico é o mais
importante e o verdadeiramente científico, hoje que Benfey e Max Müller
demonstraram a universalidade das tradições. O conto é um resto dos mitos de
um politeísmo decaído; Gubernatis determinou nesta decadência duas formas,
uma nacional, que produz as formas da epopeia, e outra doméstica ou familiar,
que se perpetua no conto. Pode-se dizer que estão achadas as leis da
imaginação humana, e que a pretendida originalidade subjetiva se dissolveu do
mesmo modo que perante a ciência se dissolveu o dogma de uma criação do
nada. A cadeia tradicional está reconstituída desde a sua fonte indiana até à
Europa, e pode-se dizer, que até onde os mitos védicos penetraram, já na forma
épica e purânica, já nas especulações búdicas propagadas entre as raças
amarelas, já no naturalismo das migrações indo-europeias, em toda a parte se
foram transformando em contos populares.
Sendo o conto uma fase de decadência dos mitos áricos, confundidos com
restos fetíchicos nos Bestiários e Lapidários, existe um outro subsolo da
imaginação humana, mais obliterado, mais inconsciente, é o das superstições,
restos provenientes de religiões ainda mais antigas que o politeísmo árico: tais
são os cultos mágicos turano-cuchitas, conservados pelos Gregos, e trazidos
pelos Romanos e Árabes para a Europa da tradição do Egito e da Caldeia. Não
é menos importante esta forma da vida da tradição, que se vai tornando pela
leitura dos hieroglíficos e dos cuneiformes, objeto de uma ciência. A Superstição
e o Conto são duas decadências de dois grandes e vastos sistemas religiosos.
Antero de Quental teve a intuição daquele estado da Filomitia, descrevendo-o
admiravelmente em uma das suas cartas: «será isto só poesia? A poesia é
também verdadeira: é a evidência da alma. Se o pensamento indaga, o coração
adivinha. —. É lá que a mesma lei da existência vive oculta, e dali solta os seus
oráculos sempre certos. Das ruínas das sociedades antigas quanto resta, quanto
aceita o futuro, como parcela de oiro, depurado de tantas fezes seculares?...
Serão os sistemas, as abstrações, as certezas? Não; as ilusões apenas — a poesia.
A poesia! O sonho da humanidade no berço infantil da sua primeira inocência!
A fada que lhe embalou os sonhos de criança! A sibila reveladora das palavras
misteriosas, cujas glosas foram as primeiras crenças, as primeiras religiões, as
primeiras sociedades! Do regaço dela nos caiu sobre as mães o mundo antigo,
ardente, belo, luminoso, pelo contacto daquele seio divino. Sobre esse candente
alicerce firmámos as frias construções do nosso mundo moderno. O chão sobre
que assenta a certeza de hoje, formou-se pelas aluviões sucessivas da intuição
antiga. O que é ciência foi já poesia; o sábio foi já cantor; o legislador, poeta; e a
evidência uma adivinhação, um admirável palpite, cujas profundas conclusões
são ainda o espanto, e porventura o desespero das mais rigorosas filosofias. E,
se nadamos hoje em plena luz da razão, foi entretanto a poesia, foi essa doce
mão, que nos guiou por entre o pálido crepúsculo dos velhos sonhos. Velhos?
não: sonhos eternos! — Sonharemos sempre! Que o sonho consola, dá fé e
virtude. Luminoso e belo deixará de ser também verdadeiro só por não ser
verdadeiramente lógico? Há muitas lógicas. O sentimento tem a sua; diversa, só,
mas nem por isso menos segura. É assim que a inteligência de hoje tem
confirmado todas as intuições da antiga poesia. A religião, o direito, a
liberdade, o amor, tudo isso nos legou o velho mundo poético; não o
descobrimos nós. Aquilatámos novamente o valor desse oiro, dessas pedras
finas, pelos novos processos; e o valor não se acha minguado; cresceu talvez. A
nobre confiança que a Antiguidade depositara no sentimento, não a iludiu, não
lhe mentiu. O que o coração segredou ao homem no doce crepúsculo das eras
instintivas, pode hoje dizer-se, repetir-se bem alto, a grande luz desse céu de
clareza e de razão, é a verdade.» (Cartas, p. 29.)
Depois desta página tão translúcida em que Antero de Quental nos dá
expressão sintética ao que Aristóteles chamou Filomitia, faz o contraste
deprimente e esterilizante da Filosofia «a monotonia do espírito chamada
lógica — por onde mede o ritmo impassível de suas palavras fatídicas» (p. 28) e
«a Ciência, que está fora da Natureza, é ela que se engana» (p. 31)[43] O
mundo moderno só alcançou o conhecimento desse estado da consciência
primitiva da humanidade, quando foram reunidas as complexas ciências na
Filologia; e a Filosofia reconheceu nesses mitos, lendas e contos os gérmenes
imortais, a que a Arte dá as formas plásticas, somáticas das criações literárias.
PARTE II
HISTÓRIAS E EXEMPLOS DE
TEMA TRADICIONAL E FORMA
LITERÁRIA
O REI LEIR
Quando foi morto o rei Balduc o voador, reinou seu filho que houve nome Leir.
E este rei Leir não houve filho, mas houve três filhas mui fermosas e amava-as
muito. E um dia houve suas razões com elas e disse-lhes — Que lhe dissessem
verdade qual delas o amava mais. Disse a maior — Que não havia cousa no
mundo que tanto amasse como ele. E disse a outra — Que o amava tanto como a
si mesma. E disse a terceira que era a menor — Que o amava tanto como deve
de amar filha a padre.
E ele quis-lhe mal por em, e por isto não lhe quis dar parte no reino. E casou a
filha maior com o duque de Cornualha, e casou a outra com rei de Tóstia, e não
curou da menor. Mas ela por sua ventura casou-se melhor que nenhuma das
outras, ca se pagou dela el-rei de França e filhou-a por mulher. E depois seu
padre dela em sua velhice, filharam-lhe seus genros a terra e foi maladante, e
houve a tornar à mercê de el-rei de França e de sua filha a menor a que não quis
dar parte do reino. E eles receberam-no mui bem e deram-lhe todas as cousas
que lhe foram mester e honraram-no mentre foi vivo; e morreu em seu poder. E
depois se combateu el-rei de França com ambos os cunhados de sua mulher e
tolheu-lhes as terras.
Dom Diogo Lopes era mui bom monteiro, e estando um dia em sua armada e
atendendo quando verria o porco ouviu cantar muita alta voz uma mulher em
cima de uma penha: e ele foi pera lá e viu ser mui fermosa e mui bem vestida, e
namorou-se logo dela mui fortemente e perguntou-lhe quem era: e ela lhe disse
que era uma mulher de muito alta linhagem, e ele disse que pois era mulher de
alta linhagem que casaria com ela se ela quisesse, ca ele era senhor daquela terra
toda: e ela lhe disse que o faria se lhe prometesse que nunca se santificasse, e ele
lho outorgou, e ela foi-se logo com ele. E esta dona era mui fermosa, e mui bem
feita em todo seu corpo salvando que um pé forcado como pé de cabra. E
viveram grão tempo e houveram dous filhos, e um houve nome Enheguês
Guerra e a outra foi mulher e houve nome dona.
E quando comiam dessum, Dom Diogo Lopes e sua mulher, assentava ele a par
de si o filho, e ela assentava a par de si a filha da outra parte. E um dia foi ele a
seu monte e matou um porco mui grande e trouxe-o pera casa, e pô-lo ante si u
sia comendo com sua mulher e com seus filhos: e lançaram um osso da mesa e
vieram a pelejar um alão e uma podenga sobre ele em tal maneira que a podenga
travou ao alão em a garganta e matou-o. E Dom Diogo quando isto viu teve-o
por milagre e sinou-se e disse Santa Maria val, quem viu nunca tal cousa! E sua
mulher quando o viu assim sinar lançou mão na filha e no filho, e Dom Diogo
Lopes travou do filho e não lho quis deixar filhar: e ela recudiu com a filha por
uma fresta do paço e foi-se pera as montanhas em guisa que a não viram mais
nem a filha.
Depois a cabo de tempo foi este Dom Diogo Lopes a fazer mal aos Mouros, e
prenderam-no e levaram-no pera Toledo preso. E a seu filho Enheguês Guerra
pesava muito de sua prisão, e veio a falar com os da terra per que maneira o
poderiam haver fora da prisão. E eles disseram que não sabiam maneira por que
o pudessem haver, salvando se fosse às montanhas e achasse sua madre, e que ela
lhe daria como o tirasse. E ele foi a lá só, em cima de seu cavalo, e achou-a em
cima de uma penha: e ela lhe disse: «Enheguês Guerra, vem a mim ca bem sei eu
ao que vens.» E ele foi pera ela e ela lhe disse: «Vens a perguntar como tirarás
teu padre de prisão.»
Então chamou um cavalo que andava solto pelo monte que havia nome Pardalo
e chamou-o per seu nome: e ela meteu um freio ao cavalo que tinha, e disse-lhe
que não fizesse força polo desselar, nem polo desenfrear nem por lhe dar de
comer nem de beber nem de ferrar: e disse-lhe que este cavalo lhe duraria em
toda sua vida, e que nunca entraria em lide que não vencesse dele. E disse-lhe
que cavalgasse com ele e que o poria em Toledo ante a porta u jazia seu padre
logo em esse dia, e que ante a porta u o cavalo o pusesse que ali descesse e que
acharia seu padre estar em um curral e que o filhasse pela mão e fizesse que
queria falar com ele, que o fosse tirando contra a porta u estava o cavalo e que
desque ali fosse que cavalgasse em o cavalo e que pusesse seu padre ante si e que
ante noite seria em sua terra com seu padre: e assim foi.
(Livros de Linhagens, p. 258.)
Foi um cavaleiro bom que houve nome Dom Froião, e era caçador e monteiro.
A andando um dia em seu cavalo per riba do mar a seu monte achou uma mulher
marinha jazer dormindo na ribeira. E iam com ele três escudeiros seus, e ela
quando os sentiu quis-se acolher ao mar, e eles foram tanto em pós ela até que a
filharam ante que se acolhesse ao mar; e depois que a filhou àqueles que a
tomaram fê-la pôr em uma besta e levou-a pera sua casa. E ela era mui fermosa,
e ele fê-la batizar, que lhe não caía tanto nome nenhum como Marinha porque
saíra do mar, e assim lhe pôs nome e chamaram-lhe Dona Marinha: e houve
dela seus filhos, dos quais houve um que houve nome João Froiás Marinho. E
esta Dona Marinha não falava nemigalha. Dom Froião amava-a muito e nunca
lhe tantas cousas pôde fazer que a pudesse fazer falar. E um dia mandou fazer
mui grã fogueira em seu paço, e ela vinha de fora e trazia aquele seu filho
consigo que amava tanto como seu coração, e Dom Froião foi filhar aquele filho
seu e dela e fez que o queria enviar ao fogo; e ela com raiva do filho esforçou de
bradar e com o brado deitou pela boca uma peça de carne, e dali em diante falou.
E Dom Froião recebeu-a por mulher e casou com ela.
NOTA: Pertence ao ciclo das lendas heráldicas; o tipo da mulher muda ainda
persiste nas tradições populares. Vide a Muda Mudela, vol. 1.
EXEMPLO DO FILÓSOFO
E destes tais (sc. um filósofo) diz um exemplo e põe semelhança de uma árvore
que estava reigada em uma pouca terra em meio de uma grande água, e era bem
basta de rama e bem carregada de pomas. E em cima dela estava um homem
deleitando-se muito em tomar ora de umas ora doutras. E em no pé da árvore
roíam dous vermes, um branco e outro preto e tinham-lhe roída a raiz pera
quando daria com ela em terra. E a uma parte estava um leão bravo com a
garganta aberta, tendo mentes quando ele cairia, pera o arrebatar e comê-lo. E a
outra parte estava um alicórnio, mui espantoso, aguardando quando cairia a
árvore, polo debrotir e lastimar. E o mesquinho do homem tanto se deleitava em
as pomas que não parava mentes que nenhumas destas cousas nem curava delo.
Esta árvore significa este mundo em que se o homem deleita, tanto que lhe
esquece o feito de sua alma e não se lembra da hora da morte. E a terra significa
a vida do homem que é breve e pouca, e que não haverá em que se esconda. A
água significa o medo e o grande espanto que o homem haverá em a hora da
morte. E os vermes, um branco e outro preto, significa o dia e a noite que rói em
na vida do homem e lhe tolhem cada dia uma jornada, e o leão significa o
inferno, e o alicórnio significa o purgatório que está prestes com fogo e com frio
e com graves tormentos pera os homens pera sempre.
(Ms. de Alcobaça, n.º 266; fl. 145, v. (Na Bib. Pública.) Vários extratos na Romania,
XI, foram publicados depois sob o título Anciens textes portugais.)
NOTA: No Voilier des histoires romaines (Gesta Romanorum, cap. 137), tem o
sentido alegórico. Vem como apólogo na História de Barlãao e Josafat a qual
também foi traduzida em português no século XIV e se acha publicada pela
Academia Real das Ciências sobre a transcrição paleográfica de Aires de Sá. A
extensão de este apólogo na Idade Média foi vastíssima; Jubinal publicou uma
redação do século XIII no Nouveau recueil de fabliaux, t. II, p. 113; e em inglês há
uma redação do século XII de Odo de Ceriton; acha-se na Legenda Áurea, de
Voragine, e no Speculum Historiale, de Vicent de Beauvais, e na Vies des Pères.
Mone, publicando um texto latino, «aproxima este apólogo vindo da Ásia com a
tradição escandinava da árvore sagrada, o carvalho Yggdrasil, cujo cimo toca no
céu e cuja raiz é continuamente roída por Nidhogger, a serpente infernal.»
(Violier, p. 389, nota.) Esta mesma tradição acha-se nos preliminares da tradução
pélvi de Calila et Dimna, do começo do século VI, nas traduções árabe, hebraica
e grega, e no Directorium humanae vitae.
EXEMPLO DOS TRÊS AMIGOS
(Ms. da Livraria de Alcobaça, n.º 266, fls. 147 e 148. Do século xiv. Na Bibl. Pública
de Lisboa. Vid. Vieux textes portugais, p. 28.)
NOTA: Acha-se no Conde de Lucanor, de Dom Juan Manuel, cap. XXXVII, fl.
104, porém mais desenvolvido. Nas Gesta Romanorum (tradução francesa,
Violier, p. 297) traz o título De la vraye probation d’amytié. Citam-se nas notas
muitas fontes tradicionais, entre outras o Dialogus creaturaram, cap. 56; a
Disciplina clericalis, de Pedro Alfonso, cap. 2.°; e Summa Predicantium, de
Bromyard, vb.° Amicitia; há uma tradução árabe de Cardone, Mélanges de
littérature orientale, t. I, p. 78; Apólogos de Stainhoewel, fl. 88; Hans Sachs fez
sobre este assunto a comédia Der halb Freund; Granuci a novela L’Eremita;
acha-se também na parábola dos três amigos, da História de Barlãao e Josafat.
(Na versão portuguesa foram suprimidos os contos.)
EXEMPLO ALEGÓRICO DA
REDENÇÃO
(Fls. 16 e 17 do Orto do Esposo. Ms. n.º 273 da Livraria de Al-cobaça, hoje na Bibl.
Nac. de Lisboa.)
NOTA: Parece-nos a forma rudimentar donde se desenvolveu a novela de
cavalaria celeste. É provável que se encontre nas coleções medievais.
A JUSTIÇA DE TRAJANO
Um imperador de Roma que havia nome Trajano, ia uma vez a grande pressa a
uma batalha. E uma viúva saiu a ele chorando e disse-lhe:
— Rogo-te senhor, que façais justiça daquele que matou um meu filho sem
razão.
E disse-lhe o imperador:
— Eu te farei justiça depois que vier.
Respondeu a viúva:
— E se tu morreres em a batalha quem me fará justiça?
E disse-lhe o imperador:
— Aquele que reinar depós mi.
E disse a viúva:
— E que aproveitará a ti se outrem fizer justiça?
E o imperador respondeu:
— Certamente não me aproveitava nenhuma cousa.
E disse a viúva:
— E pois não é melhor que tu me faças justiça e ajas ende o galardão ca o
leixares a outrem.
E então descendeu o imperador do cavalo com piedade, e fez ali justiça da morte
daquele filho da viúva. E outrossim aconteceu uma, que o filho deste imperador
Trajano ia correndo pela vila em um cavalo e per aquecimento sem seu grado,
matou um filho de uma viúva, e ela queixou-se ao imperador chorando. E o
imperador deu então aquele seu filho em logo daquele que matara e deu-lhe
muito haver com ele.
Um rei era gentil e de maus feitos. Havia um bom conselheiro que havia disto
grande tristeza e estava um tempo convinhável para o tirar do erro em que
andava. Um dia disse el-rei àquele seu privado:
— Vem e andemos pela cidade se per ventura veremos alguma cousa proveitosa.
E andando eles pela cidade, viram lume que luzia per um furado. E tiveram
mentes per ele, e viram uma casa soterranha em que estava um homem mui
pobre vestido em uma vestidura mui vil e mui rota. E ante ele estava sua mulher
que lhe escantava o vinho per um vaso de vidro. E tanto que o marido tomou o
vaso de vinho na mão, começou de cantar altas vozes e ela outrossim a balhar
ante ele e louvá-lo muito, e tomavam ambos muito prazer. E aqueles que iam
com el-rei estiveram-nos olhando um grande espaço, e maravilhavam-se porque
aqueles homens tão pobres que não haviam casa em que morassem, nem
vestiduras senão mui rotas, como faziam sua vida tão segura e com tanto prazer.
Então disse el-rei ao seu conselheiro:
— Ó amigo, que maravilha é esta, que nunca a nossa vida foi tão aprazível nem
tão leda a mi nem a ti porque havemos tantos meios e tantos avondamentos,
como é a sua destes sandeus, ca como que ela haja vil e mesquinha e áspera,
parece-lhe a eles leda e blanda.
Quando isto ouviu o privado entendeu que tinha tempo de castigar el-rei e
disse-lhe:
— Senhor, quejanda te parece a vida destes homens?
El-rei disse:
— Parece-me que é a mais mesquinha e a mais mal-aventurada de tôdalas vidas
que eu vi.
E disse-lhe o privado:
— Senhor, sabe por certo que por mais mesquinha e mais mal-aventurada têm a
nossa vida aqueles que contemplam e recontam a glória perdurável e celeste que
sobre poiam todo sido. Ca os vossos paços resplandecentes como ouro e as vossas
vestiduras nobres e fermosas mais fedorentas e mais feias parecem que o esterco
aos olhos daqueles que contemplam as fermosuras das moradas do céu que não
são feitas com mão e as vestiduras feitas per Deus, e as coroas que nunca serão
corrompidas, que aparelhou o senhor Deus àqueles que o amam. E assim como
estes pobres homens parecem a vós sandeus, bem assim e muito mais nós que
andamos neste mundo e pensamos que havemos grande avondança em esta falsa
glória e com estas deleitações sem proveito, parecemos dignos e merecedores de
lágrimas e choros e de tristeza e de mesquindade, ante os olhos daqueles que
gostaram a doçura de bens perduráveis, que enganam os homens em esta vida
fazendo-se crer que hão em si blandeza e doçura grande e verdadeira, o que é o
contrário e per isto são enganados os viçosos.
Um escudeiro havia uma sua mulher, que havia tão grande esperança em Deus
que toda cousa de novo que acontecia a si ou aos seus, sempre dizia:
— Isto é por melhor.
E aconteceu que aquele escudeiro per aquecimento perdeu um olho. E sua
mulher trabalhou-se de o confortar, dizendo que aquilo lhe leixara Deus
acontecer por o melhor. E depois aconteceu a este escudeiro de se ir a uma terra
estranha que chamam dos lutuanos e servia um príncipe daquela terra. E ele
servia aquele príncipe mui graciosamente em tal guisa que o príncipe o amava
muito. E aconteceu ao príncipe enfermidade de morte. E o costume daquela
terra era tal, que quando o príncipe morria escolhiam um dos seus sargentos dos
melhores e mais graciosos, que morresse com ele, pera o servir em o outro
mundo; e queimavam-no com o senhor segundo era seu costume. E isto haviam
per grande honra àquele servente que assim era escolheito.
Então aquele príncipe mandou dizer àquele seu escudeiro que não havia mais
que um olho que ele o escolhia que morresse e fosse queimado com ele, porque
ele o servia mui bem e mui fielmente, e que o amava muito, e porém, o queria
assim honrar mais que todos os seus serventes. Quando o escudeiro isto ouviu
dava a entender que se tinha per mui honrado disto, dando muitas graças ao
príncipe pela mercê e honra que lhe fazia. E disse àqueles que lhe trouxeram o
recado:
— Como quer que isto seja a mi mui grande honra, pero dizede a meu senhor
que ele bem que sempre servi mui fielmente e ainda agora em este caso quero
ser fiel e quero leixar a minha honra a outro que tenha dous olhos. Ca não
cumpre à honra de meu senhor que ele parecesse em o outro segle com servidor
que não tivesse mais de um olho.
Quando o senhor ouviu esta resposta louvou-a e recebeu-a por boa, julgando
que em isto lhe fazia aquele escudeiro estremada e singular fieldade. E assim
escapou aquele escudeiro morte cruel per razão do olho que tinha quebrado.
Um homem rico usava muito em beber em as tavernas, em tal guisa que gastou
o que havia. E depois meteu-se a servir os que bebiam em as tavernas por tal que
bebesse com eles. E de si per tempo aborreceram-no e lançaram-no de si. E ele
estando desesperado, veio a ele o Diabo em semelhança de um homem velho e
disse-lhe:
— Vai tu à taverna e eu te darei dinheiros que te avondem, por tal que dês azo
aos outros que bebam mais.
E ele assim o fez. E fazia muitas peleias em a taverna, e muitas bebedices de que
se seguiam muitas pancadas e muitos maus feitos. E ele fez aí um feito tal per
que o mandaram enforcar. E puseram-no na forca por três vezes e nunca pôde
morrer, porque o Diabo o ajudava e o sustinha. E um santo homem que sabia a
má vida daquele homem, vendo isto maravilhou-se e entendeu que o Diabo o
ajudava. E foi-se u enforcavam aquele homem e começou a esconjurar o Diabo
pela virtude de Jhu xpõ que lhe disse a verdade daquele feito porque não podia
morrer aquele homem mais. E o Diabo respondeu e disse:
— Que como quer que ele desejasse a morte daquele homem porque morria
enforcado; pero que ele fazia ir ao Inferno tantos homens que já os diabos eram
cansados em os levar e receber; que por em o ajudava que não morresse.
A BOA ANDANÇA DESTE MUNDO
Um cavaleiro era mui namorado duma dona mui filha de algo, casada. E a dona
era de boa vida e não curava nada do cavaleiro como que a ele demandava mui
afincadamente. E aconteceu que morreu o marido da dona. E o cavaleiro
começou de a demandar mais afincadamente. E ela mandou-o chamar e disse-
lhe:
— Vós sabedes que não sodes igual a mim; pero quero-vos tomar por marido se
vos iguardes a mim al de menos em riquezas, e per isto me escusarei de meu
linhagem.
E o cavaleiro pediu a el-rei e aos outros senhores e trouve à dona muito ouro e
muita prata e muitas doas. E ela por se escusar do seu casamento disse-lhe que
todo aquilo era pouco, se mais não trouvesse. E então o cavaleiro teve o caminho
a um mercador que levava mui grande haver e matou-o e soterrou-o fora da
carreira e tomou todo o haver que levava e trouve-a à dona. E ela entendeu que
aquela riqueza era de mau ganho, e disse ao cavaleiro que se lhe não dissesse
donde houvera aquele haver que não casaria com ele. E o cavaleiro descobriu-
lhe todo o que fizera. E ela lhe disse que fosse ao lugar u jazia o mercador
soterrado e que estivesse ali des o serão até o galo cantante e que lhe não
encobrisse todo o que lhe acontecesse, e se isto não fizesse que o não tomaria por
marido. E ele fez assim como lhe a dona mandou. E viu sair da cova o mercador
e ficou os geolhos em terra e disse três vezes:
«Senhor Jesus Cristo, que és justo juiz, e que vês tôdalas cousas, posto que sejam
feitas escondidamente; dá a mim vingança deste cavaleiro que me matou e
tomou-me tôdalas cousas que vivíamos eu e minha mulher e meus filhos.»
E ouviu uma voz que lhe disse:
«Eu te digo e prometo em verdade, que se ele não fizer pendença em trinta
anos, que eu te darei dele tal vingança que será a todos exemplo.»
E tanto que isto foi dito tornou-se o morto pera sua cova. E o cavaleiro mui
espantado e tornou-se pera a dona e contou-lhe todo o que vira e ouvira. E ela
recebeu-o por marido e houve dele filhos e filhas. E ela lhe dizia muito a miúdo
cada dia que se lembrasse do espaço que lhe fora dado para fazer pendença. E
este cavaleiro fez em um seu monte umas casas mui nobres e mui fortes. E
estando ele um dia em aquele lugar comendo com sua mulher e com seus filhos,
e com seus netos em grande solaz com a boa andança deste mundo, veio um
jogral e o cavaleiro fê-lo assentar a comer. E entanto ele comia, os sargentos
destemperaram o estormento do jogral e untaram-lhe as cordas com fressura. E
acabado o jantar tomou o jogral o seu estormento pera tanger e nunca o pôde
temperar. E o cavaleiro e os que estavam com ele começaram a escarnecer do
jogral e lançaram-no fora dos paços com vergonça. E logo veio um vento grande
como tempestade e soverteu as casas e o cavaleiro com tôdolos que i eram. E foi
feito todo um grande lago. E parou mentes o jogral trás si e viu em cima do lago
andar umas luvas e um sombreiro nadando, que lhe ficaram em na casa do
cavaleiro quando o lançaram fora.
(Ibid., fls. 89, 90. Ms. 274 da Livr. de Alcobaça, hoje na Bib. Nacional.) Ainda
subsiste na tradição oral. Vid. Contos Populares Portugueses, n.º 74.)
Eram dous irmãos, e um era sabedor e o outro sandeu. E andavam ambos fora de
sua terra. E querendo-se tornar pera ela, chegaram a um lugar u se partiam dous
caminhos. E acharam pastores que guardavam gado, que lhes disseram que uma
carreira daquelas era dura e fragosa e estreita e per aquela iriam diretamente e
seguros a sua terra. E que a outra era ancha e chã mas era perigosa e cheia de
ladrões. Quando isto ouviu o irmão sabedor quisera ir pela carreira fragosa e
segura. E o irmão sandeu rogou muito que se fossem pela carreira ancha e chã.
E o sabedor consentiu. E foram-se ambos pela carreira chã e perigosa. E foram-
se e saíram os ladrões a eles e prenderam-nos e esbulharam-nos e feriram-nos. E
lançaram o sandeu em uma cova em que morresse. E levaram o outro para o
matarem; e dizia o sabedor ao sandeu:
— Maldito sejas tu, ca por a tua sandice mouro eu.
E o sandeu lhe disse:
— Mas tu sejas maldito, que sabias que eu era sandeu e trouveste-me.
E assim pereceram ambos. E bem assim acontece ao homem, ca a carne que é
sandia quer ir pela carreira da boa andança e das deleitações do mundo, mas a
alma que é sesuda queria andar pela carreira da pendença e das tribulações do
mundo, e a razão assim lho conselha, mas a sensualidade tem com a carne, e os
prelados e pregadores que são os pastores demonstram ao homem ambas as
carreiras.
Um barão segral havia grande cobiça de fazer seu pecado com uma mulher. E
ela era casta e boa, e porém não se atrevia ele de a demandar, mas cuidou
falsamente e arteiramente como cumpriria sua má vontade. E tomou um firmal
de prata que era de grande preço e deu-o em guarda àquela mulher. E depois
furtou-o em guisa que o ela não soube, e lançou o firmal em o mar, por tal que
não lho podendo ela dar, ficasse por sua serva, e assim cuidava usar com ela como
lhe prouguesse. E depois que isto fez demandou o firmal à boa mulher. E ela
entendeu o engano que lhe fora feito e acorreu-se a uma santa virgem que havia
nome Brígida, e estando com ela veio um homem que trazia peixes do mar que
ele tirara. E quando abriram um deles acharam em o ventre dele o firmal e deu-
o a boa mulher àquele homem mau. E assim ficou vão o seu pensamento e sua
arteirice.
(Fl. 105.)
NOTA: O tema da joia engolida por um peixe persiste na tradição popular (vid.
n.º 10); ou engolida por uma águia (vid. n.º 21). Nas Cantigas de Santa Maria, de
D. Alfonso el Sabio, séc. XI, n.º CCCLXIX, também se acha esta lenda.
Em Santarém contiu estas / a uma mulher tendeira / que sa cevada vendia, / e dizia amiúde: /
«Aquele é do mal guardada / que guarda Santa Maria.» / ……………………….. / Um alcaide era na
vila / de mal talã e sanhudo, / soberbo e cobiçoso / que por el nium direito / nunca bem era
julgado. / ………………………. / Disse o Alcaide: — Que lhe ora / fizesse per que errasse, / e que
daquela paraula / per mentira l’em ficasse / Mas ei agora osmado / uma cousa per que logo / em
este erro a metades: / filhade esta mia sortelha / e dade-lha per cevada, / que m’a logo aqui
tragades. / E enviou Deus dizendo / a cada um que punhasse / de lhe furtar a sortelha, / per que
pois se lh’achasse. / / E eles assi fizeram, / ca foram ali correndo / e compraram-lhe a cevada / e
deram-lhe a sortelhar, / que em penhor a tivesse / até que fosse pagada. / Mais não guiso um deles
/ que o anel lhe durasse, / antes buscou sutileza / perque logo lh’o furtasse. / …………………….. /
Outro dia o Alcaide / mandou aos dous mancebos / que enviara primeiros / a aquela mulher boa /
e lhe dessem seus dinheiros, / que logo sua sortelha / mantenente lhe tornasse, / e se não, que
quanto havia / a mulher, que lh’o filhasse. /………………………….. / A dona quando oiu esto, / foi por
filhar a sortelha / d’ali onde a pusera; / mas não achou nemigalha, / pera a andar buscando / a foi
em grã coita fora. / ……………………………. / O Alcaide mui sanhudo / que lhe desse a sortelha, / e se
logo lh’as não desse, / que quant’ havia lh’entregasse, / ateu em que a calis / de sortelha lhe
deixasse. / / A mulher quando ouviu isto / com mui grã coita chorando / disse: — Ai, Virgem
gloriosa, / a qual é do mal guardado / mia Senhor, a quem tu guardas. / / Ela dizendo aquanto, / o
Alcaide mui sobervio / cavalgava em seu cavalo / el deceu-se pera Tejo / per dar-lhe a beber em
rio / e o topete lavá-lo. / E em lavando derreio / quis Deus que lh’escorregasse / aquel seu anel do
dedo / e em a água voasse. / / O Alcaide pois viu esto, / des i todo despeito / tornou sobre la
mesquinha, / e mandou a um seu home / que tão muito a coitava / até que de quant’havia / de
todo a derrancasse. / A boa mulher coitada / foi tanto d’aqueste feito / que sol não soube conselho
/ de si nem ar que fizesse. / Ela havendo grã coita / e fazendo mui grã dó. / / veio a ela sa filha, /
Dizendo: — Madre comede, / e havede algum coho to. / / Des que l’aquesto houve dito / foi-se
correndo a Tejo / se o pescado vendiam, / e perguntou aos dos barcos. / ………………………….. / Des
que lh’houve assi comprado / aquele peixe a menina, / foi-se a sua madre correndo. / Então lhe
mandou a madre / que o peixe lh’adubasse / e o lavasse de dentro / e de fora o escamasse. / /
Então filou a menina / e pois lavar aquel peixe, / quando foi que o abrisse / em abrindo catou
dentro / e viu jazer a sortelha; / logo a su madre disse / como aquel anel achara / e ela que lho
mostrasse / mandou, e poi-lo viu logo, / e mandou que se calasse. / / Outro dia o Alcaide / veio
irado e sanhudo / a sua casa por prendê-la / se lh’a sortelha não desse, / pois lhe dera seus
dinheiros, / que morreria por elo. / / E então ela ante todos / tirou o anel do dedo / e deu-lh’o . E
ele logo / que o houve conosçudo / filhou-se-le um mui grão medo. / …………………………. / E deu-se
ende por culpado / e ante toda a gente / rogou que lhe perdoasse. /
OS QUATRO LADRÕES
Contam as histórias antigas que em Roma eram quatro ladrões. E andando uma
noite a furtar sentiram a Justiça e fugiram e esconderam-se em uma cova. E
quando a luz veio, acharam-se em uma casa de abóbada mui fermosa. E acharam
em ela um moimento de mármore mui fermoso. E disseram antre si:
— Este moimento foi de algum homem nobre e rico. Abramo-lo e vejamos se
acharemos algum bem. Ca em outros tempos acostumavam soterrar os grandes
homens com doas e cousas de grande preço.
Então abriram o moimento e acharam o moimento cheio de ouro e de prata e de
pedras preciosas e de vasos e de copas de ouro mui fermosas. E entre eles era
urna copa mui fermosa e maior que tôdalas outras. Quando este acharam,
disseram antre si:
— Ora somos nós ricos e de boa ventura, e seremos ricos pera sempre nós e
nossos filhos, mas será bem que algum de nós fosse à vila per vianda.
E cada um se escusava, dizendo que era conhecido em a cidade e se temia de o
enforcarem. Em cabo disse um deles:
— Se me vós derdes aquela maior e melhor copa, eu irei polo mantimento.
E os outros outorgaram, e ele foi e trouxe de comer. E indo pelo caminho
levando a vianda, cuidou como meteria em ela peçonha em guisa que comendo-a
seus companheiros morreriam e ficaria dele todo o que acharam em o
moimento. E os três ladrões que ficaram enquanto ele foi falaram-se antre si e
disseram:
— Aquele era nosso companheiro não quis ir polo mantimento senão que lhe
déssemos a copa melhor, matemo-lo e ficará a nós todo o haver.
E disse um deles:
— Como o mataremos sem perigo, ca ele é mais esforçado ca nós.
Respondeu o outro e disse:
— Quando ele vier digamos-lhe que entre dentro e tome a copa e quando se
antre dentro tiramos o madeiro que sustém as pedras e cairão as pedras sobre ele
e morrerá.
E quando veio o outro fizeram-no assim e ficou logo morto. E eles disseram:
— Comamos e bebamos e depois partiremos o haver antre nós.
E começaram a comer a vianda que o outro trouxera e morreram com a peçonha
que em ela andava.
(Fl. 105, v.)
O CAVALEIRO E O PACTO COM O
DIABO
Um cavaleiro nobre e poderoso sendo rico despendeu todos seus bens tão sem
discrição, que caiu em mui grã pobreza. Este cavaleiro havia uma sua mulher
muito casta e devota da benta Virgem Maria. E veio uma grande festa em que
este cavaleiro soía dar muitas doas e fazer grande despesa. E porque não tinha já
que desse, com vergonça foi-se esconder em uma mata,
E ali jazia fazendo seu dó até que passasse aquela festa. E estando ele em aquele
lugar chegou a ele uma criatura mui espantosa em cima de um cavalo espantoso
e perguntou-lhe por que era assim triste. E o cavaleiro lhe contou toda sua
fazenda. E a criatura espantosa lhe disse:
— Se quiseres fazer o que te eu mandar, eu te farei haver mais riquezas e mais
honras que antes havias.
E o cavaleiro lhe prometeu que faria todo o que ele quisesse, se ele cumprisse
tudo o que lhe prometera. E o Demo lhe disse:
— Vai a tua casa e cava em lugar e acharás muito ouro. E promete-me que tal
dia tragas aqui a mim tua mulher.
E o cavaleiro lhe prometeu. E foi-se a sua casa e achou mui grande riqueza
segundo lhe dissera o Diabo. E começou de viver honradamente como antes. E
quando veio o dia em que prometera levar sua mulher ao Diabo, disse-lhe que
subisse em um cavalo que se havia de ir longe com ele. E ela como quer que
houvesse grande temor, não ousou contradizer ao marido e foi-se com ele,
comendando-se devotamente a Santa Maria. E indo eles pelo caminho, viu ela
uma igreja de Santa Maria e desceu do cavalo e entrou em a igreja, e o marido
ficou fora atendendo-a. E ela fazendo a sua oração devotamente à benta Virgem
adormeceu. E a benta Virgem tomou semelhança daquela dona em todo e foi-se
fora da igreja e cavalgou em o cavalo da dona. E foi-se com o cavaleiro, pensando
ele que era sua mulher. E quando chegaram a o lugar veio logo o Diabo
tostemente. E quando perto deles não se ousou chegar, mais começou de tremer
e haver grande pavor e assanhar-se. E disse ao cavaleiro:
— Ó falso e mui desleal cavaleiro porque me fizeste tão grande escarnho e me
fizeste tanto mal por muitos bens que te eu fiz, tu me prometeste que me trarias
tua mulher e trouveste Maria. Ca eu me quisera vingar da tua mulher por
muitas injúrias que me faz, e tu trouveste-me esta que me atormenta
gravemente e me lança em o abisso do Inferno.
Quando isto ouviu o cavaleiro ficou mui espantado e maravilhado, e com temor
não pôde falar. E a Benta Virgem disse ao Diabo:
— Qual foi a tua ousança e o teu mau atrevimento que presumias empecer à
minha devota! Mas não escaparás assim sem pena, ca eu te mando que logo
descendas aos abissos do Inferno e que daqui em diante não empeças a nenhuma
pessoa que me chamar com devoção.
Quando isto ouviu o Diabo partiu-se logo dali tostemente uivando e fazendo
grande dó. E o cavaleiro desceu-se do cavalo e lançou-se em terra aos pés da
Benta Virgem. E esta o repreendeu do que fizera e mandou-lhe que se tornasse
pera sua mulher que acharia dormindo em a igreja e que lançasse de si aquelas
riquezas que houveram pelo Diabo. E a Benta Virgem desapareceu. E o
cavaleiro tornou-se à igreja e espertou sua mulher que jazia dormindo e contou-
lhe tudo quanto lhe acontecera. E foram-se pera sua casa e lançaram de todo
aquele haver que houveram polo Diabo. E perseveraram em louvores e em
serviço da Benta Virgem mui devotamente e depois houveram per ela muita
riqueza a serviço do Senhor Deus.
(Fl. 120)
NOTA: Esta tradição é ainda popular na Itália, e acha-se coligida na Sicília por
Pitré: a Idade Média elaborou-a profundamente em cantos, contos e autos.
Acha-se na narrativa do rei de Castela, Dom Sancho o Bravo, intercalada no El
Libro de los Exemplos; e foi assunto de um drama do velho teatro francês Du
chevalier qui donna sa femme au diable. Du Puymaigre cita uma balada alemã
sobre este mesmo tema. (La Poesie populaire en Italie, p. 42.) Nas Cantigas de
Santa Maria, por D. Alfonso el Sabio, n.º CCXVI, vem esta lenda curiosa:
... ora um miragre / fermoso quero dizer / que eu oí duma dona / que filhava grã prazer / de
servir Santa Maria / e em o seu bem fazer. / Ela dum bom cavaleiro / mui rico era mulher, / que
perdera quant’havia / e era-lhe mui mester / de o cobrar, e queria / cobrá-lo já como quer; / e
pelo cobrar vassalo / se foi do Demo tomar; / que lhe disse: Pois meu sodes, / mui grand’algo vos
darei, / e vossa mulher trazede / a um monte, e falarei / com ela e, porém rico / sem mesura vos
farei. / O cavaleiro oiu isto / e fê-lo-lh’o logo outorgar. / / O Diabo, pois menage / do cavaleiro
filhou / que sua mulher lhe aducesse, / mui grand’algo lh’amostrou; / porém, como lh’a levasse, / o
cavaleiro cuidou, / e disse: — Ai, mulher treides / hoje amigo a um lugar. / / Ela indo per carreira
/ viu igreja cabo a si / estar de Santa Maria / e disse : — houver eu ali / folgar ora uma peça, / e
andaremos des i. / E deceu i e deitou-se / a dormir cab’um altar. / / E saiu Santa Maria / de traio
altar então; / e assi a semelhasse, / que diríades que não / era senão essa dona; / e disse: — É já
sazão / de nos irmos, ai! marido. / E disse ah: — Tempo é d’andar. // Então foi Santa Maria / com
el ao lugar u / estava o Demo. Quando / viu a Madre de Jesus / Cristo, o Demo lhe disse: / —
Mentira forte tu / em trazer Santa Maria / e a ta mulher deixar. / / Disse então Santa Maria / —
Vai! Demo cheio de mal; / Cuidando a meter a dano / a mia serva leal. // E disse ao cavaleiro: / —
Fostes assi de mal seu, / que cuidastes pelo Demo / haver riqueza e bem; / mais filhado em
pendença, / e repentide-vos em... / / O cavaleiro da Virgem muit’alegre se espediu / e foi-se u sua
mulher era / e contou-lhe quanto viu / e do Demo e dos seus dões / de todo ali se partiu.
Acha-se esta lenda em Gil de Zamora, Liber Mariae, Tract. VII; mirac. 5.°
Jubinal, Le dit dus povre Chevalier, t. I, pág. 138; Libro de los Exemplos, CXCLX.
Pitré, Fiabe siciliane, n.º CCXX.
O DIABO ESCUDEIRO
Em uma terra havia um cavaleiro que era homem bom e sua mulher outrossim.
Este cavaleiro por amor e da gloriosa sua madre, mandou fazer espritais e casas
pera pobres e despendia em este o que havia. E havia um filho, e quando houve
de morrer chamou-o e recomendou-lhe os espritais que fizera, e o escudeiro
ficou com sua madre depois da morte de seu padre, e já quanto per vergonça de
sua madre curava do que lhe seu padre encomendara; mas depois da morte de
sua madre, começou ele a fazer má vida e não curava de semelhar seu padre, mas
despendia em vaidade o que lhe seu padre e sua madre leixaram.
Um dia este escudeiro estando em sua casa veio a ele um mancebo e disse-lhe
que queria viver com ele e que o serviria mui bem, ca era homem fidalgo, e que
sabia fazer tôdalas cousas que cumpriam a bom servidor. E o escudeiro recebeu-
o em sua companhia e ia com ele mui amiúde à caça e tão bem sabia caçar que o
escudeiro andava caçando com ele todo o dia até noite per lugares perigosos e
fragosos. Em aquela terra havia um bispo de boa vida que fora muito amigo
daquele cavaleiro e de sua mulher. E um dia dizendo ele missa pelas almas deles
foi-lhe demonstrado per Deus que aquele servidor do escudeiro era Diabo.
Então o bispo foi ver o escudeiro e comeu com ele e o mancebo servia ante eles.
E depois que comeram, perguntou-lhe o bispo donde houvera tal servidor. E o
escudeiro gabou-lho muito. Então o bispo mandou chamar o servidor, e ele não
queria vir ante ele. E o bispo mandou chamar outra vez mas ele fingiu-se
doente. Então o bispo lhe mandou que viesse per obediência, e ele veio contra
sua vontade. E o bispo lhe perguntou:
— Diz-me que homem és tu?
E ele respondeu:
— Sou Diabo.
E disse-lhe o bispo:
— A que vieste?
E ele respondeu:
— Vim pera matar este escudeiro, porque é mau homem e desviado da bondade
de seu padre, e não curou dos conselhos bons que ele deu.
E disse-lhe o bispo:
— Pois porque o não mataste?
Respondeu o Diabo:
— Porque havia em costume de dizer cada dia sete vezes ave-maria, e porém
andava eu com ele pelos montes e pelos lugares fragosos para o matar se algum
dia deixara de dizer aquelas sete ave-marias, mas nunca foi dia que as não
dissesse.
E o bispo lhe perguntou donde houvera o corpo que trazia e ele lhe disse que
era o corpo de um enforcado. Então o bispo mandou-lhe que se fosse dali e que
não empecesse a nenhum. E logo partiu dali e ficou ali o corpo que trazia morto
e fedorento. Quando isto viu o escudeiro mudou sua vida em bem segundo lhe
conselhou o bispo.
(Fl. 124.)
NOTA: Acha-se também nas Cantigas de Santa Maria, por D. Alfonso el Sabio,
cap. VII, n.º LXVII.
Ond’aveu que um home / mui poderoso e loução / sisudo e fazedor d’algo / …………………… /um
espital fezo fora / da vila u ele morava... / ele mancebos colhia / que aos pobres servissem; / mais o
Demo com inveja / meteu-se em um corpo morto / de home de mui grã beldade. / E veio para el
logo / manso, em bom contenente / e disse — Senhor, querede / que seja vosso sergente, / e o
serviço dos pobres / vos farei de boa mente... / / Em esta guisa o Demo / cheio de mal e arteiro, /
fez tanto, que o bom home / o filhou por escudeiro / e em todos os serviços / a el’ chamava
primeiro. / Tanto lhe soube o Diabo / fazer com que lhe prouguesse, / que nunca lh’ ela dizia /
cousa que ele não creuresse. / E por ende lhe fazia / amiúde que caçasse / em as montanhas mui
fortes, / e em o mar que passeasse / e muitas artes buscava / em que algur o matasse, / perque ele
houvesse a alma / e outro houvesse a herdade. / …………………… / Desta guisa o bom home, / que de
santidade cheio / era, viveu mui grã tempo / té que um bispo que veio / que foi sacar ao Demo /
logo as linhas do sêo. / …………………… / Onde aveu que um dia / ambos jantando siram, / e que
tôdolos sergentes / foras aquele, serviam; / perguntou-lhes o bom home / u era, eles diziam / que i
servir não viera / com míngua de soidade. // Então aquel’home bom / enviou por ele correndo. /
Quando esto soube o Diabo / andou muito revolvendo / mais pero na cima veio, / ant’ele todo
tremendo. / / E então disse ao Demo: / — Di-me toda ta fazenda, / porque aquesta companha /
todo o teu feito aprenda. / E eu te conjuro e mando, / que o digas sem contenda. // Então começou
o Demo / a contar de como entrara / em corpo dum home morto / com que enganar cuidara / e
aquel’ com quem andava / a que sem dulia metera / Quando el’aquesto dizia / E pois esto houve
contado / leixou caer aquel’ corpo / em que era encerrado...
É generalisadíssima esta lenda; dela aponta o marquês de Valmar os seguintes
paradigmas: Gaultiers de Coincy, Du rich home à cui le Dieble scrvi par vil ans;
Beauvais, Speculum hist., lib. VIII, cep. 101; Gil de Zamora, Liber-Mariae, trat.
VII, mirac. 4; Johann Gobins, Scala Coeli, fls. 159-160. Mussafia ampliou os
factos: Bowensa da Riva, De Elemosinis, 610; Voragine, Legenda Aurea, 11, 3;
Miraculi della Madona, II; Marienlegenden, XLV; Livro de Exemplos, XIV.
AS MÁS ARTES DAS MULHERES
Um mancebo trabalhava muito por saber a arte das mulheres. E pôs-se em sua
vontade de casar, e ante que casasse demandou conselho ao mais sabedor homem
daquela comarca u vivia, como poderia guardar aquela mulher com quem casar
queria. E o sabedor lhe deu conselho que mandasse fazer uma casa de mui altas
paredes, e que pusesse dentro sua mulher e lhe desse bom mantimento não
sobejo. E que aquela casa não tivesse mais de uma porta e uma fresta por que
visse, em tal guisa que pudesse sair nem entrar nenhum. E o mancebo fez tudo
per aquela maneira. E casou e pôs dentro sua mulher, e quando ele entrava ou
saía, fechava ele mui bem a porta. E quando havia de dormir escondia as chaves,
e a mulher havia grande sabor em a fresta pera ver os que iam ou vinham pela
rua. E um dia que o marido era ido fora, subiu-se ela em a fresta, e viu um
mancebo fermoso e pagou-se dele, e mandou falar com ele, e depois que teve
com ele formado sua má preitesia, embebedava amiúde seu marido, e depois que
dormia, furtava-lhe as chaves e abria a porta e saía a fazer sua vontade com
aquele mancebo. E porque o marido era ensinado sobre as artes das mulheres
parou mentes como sua lhe dava muito a beber. E um dia bebeu mais que soía
atente perante a mulher pera ver o que fazia. E ela levantou-se à meia-noite e
furtou-lhe as chaves assim como havia em costume e abriu a porta e saiu a o
mancebo; e o marido que jazia espreitando levantou-se e cerrou a porta mui
bem. E pôs-se em a fresta até que viu sua mulher que se tornava em camisa, pera
casa, e começou a puxar a porta; e o marido mostrando que não sabia que era,
perguntou quem estava à porta? E ela pediu-lhe perdão, dizendo: que nunca
mais sairia fora; mas ele não lhe quis abrir dizendo, que ele diria aquele feito a
seus parentes. E ela começou de gemer, dizendo que se lhe não abrisse, que se
lançaria em um poço que i estava, e que ele daria conta dela a seus parentes. Mas
o marido não a leixou porém entrar. E ela tomou uma grande pedra e lançou-a
em o poço com esta intenção que seu marido ouviria o som da pedra quando
caísse na água e cuidaria que ela se lançara em o poço.
E tanto que ela lançou a pedra em o poço, escondeu-se detrás o poço. E o
marido pensando que a mulher jazia em o poço, saiu fora da casa pera ver o
poço. E ela quando viu a porta aberta meteu-se em a casa, cerrou a porta sobre
si. E subiu-se em a fresta, e ele que a viu estar, disse-lhe:
— Ó mulher cheia de má arte e enganosa, leixa-me entrar e eu te perdoarei
quanto fizeste.
E ela lhe disse que o não faria, mas que diria a seus parentes que ele tôdalas as
noites assim saía a fazer seu pecado com as más mulheres, assim o fez. E eles
doestaram mui mal o marido. E per esta guisa tornou o seu mau feito sobre seu
marido. E não lhe aproveitou nada a guarda que pôs em ela.
(Fl. 137.)
O REI E OS CORTESÃOS
(Fl. 141.)
AS VESTIDURAS HONRADAS
Donde aconteceu que um filósofo chegou ao paço dum príncipe em vestidura vil
e nunca o leixaram entrar dentro, pero o provou muitas vezes. Então ele vestiu-
se em outra vestidura fermosa, e logo o leixaram entrar. E quando chegou ante o
príncipe começou de beijar a sua vestidura mesma que ele trazia e fez-lhe
reverença.
E o príncipe se maravilhou disto. E perguntou porque o fazia. E o filósofo
respondeu:
— Eu honro aquela que me honrou; porque aquilo que a virtude não pode
fazer, ganhou a vestidura. E isto é grande vaidade dar a honra pela vestidura a
qual honra é devida à virtude.
NOTA: Este conto aparece como exemplo citado pelo papa Inocêncio III, no
seu livro De contemptu Mundi seu de Miseria humane conditionis. Reinhold Koeller
apresentou a sua ampla vulgarização no Anuário da Literatura Românica e
Inglesa. Por essa fonte eclesiástica entrou na corrente da tradição popular; na
Itália coligiu-a Pitré nas Fiabe, Novelle e Racconti popolari, t. III, p. 365, n.º
CXC. O estribilho com que termina: Mangiati, rubbiceddi miei, / Cá vuatri
fustivu ‘mmitati. // corresponde a este final da tradição portuguesa: Comei,
mangas, aqui: / A vós honram, não a mim. (Contos Pop. Port., p. XXII.)
ROSIMUNDA
Um rei dos Lombardos que havia nome Alburno, era mui forte e mui poderoso
em armas. Este rei houve batalha com outro rei. E Alburno venceu e matou-o, e
tomou uma filha daquele rei por mulher, que havia nome Rosimunda. E do
testo da cabeça de seu padre, que matara, mandou fazer uma copa e encastou-a
em prata e bebia per ela. E este rei Alburno entrou em Itália e tomou todas as
cidades dela pela maior parte. E estando ele em uma cidade que chamou Verona,
fez um grande convite. E mandou ali trazer a copa que mandara fazer da cabeça
do rei que matara, padre da sua mulher Rosimunda; e bebeu per aquela copa e
fez a sua mulher que bebesse per ela, dizendo-lhe:
— Bebe com teu padre.
E quando ela isto soube, houve grande ódio a el-rei seu marido. E el-rei havia
um duque que dormia com uma donzela da rainha. E um dia não vendo el-rei,
dormiu com a rainha, cuidando que era a donzela. E a rainha fez-lho conhecer,
e disse-lhe:
— Sabe por certo que tu hás feito tal cousa, que ou tu matarás a el-rei Alburno,
ou tu morrerás das suas mãos. E eu quero que me tu vingues dele que matou
meu padre e fez copa da sua cabeça, e fez a mi que bebesse per ela.
E o duque lhe disse o não fazia, mas cataria outro que o fizesse. E então ela
guisou como se fizesse. E tirou as armas fora da câmara de el-rei e ligou a espada
que ele tinha à cabeceira em tal guisa que se não pudesse tirar. E depois que el-
rei jouve em seu leito, entrou aquele que o queria matar. E quando o sentiu el-
rei, saltou fora e quis tirar a espada e não pôde. E então começou el-rei de se
defender mui fortemente com uma cadeira que estava, mas pouco lhe valeu seu
ardimento nem sua fortaleza. Ca o outro andava mui bem armado e pôde mais
que el-rei e matou-o. E tomou tôdolos tesouros que achou em no paço e fugiu
com a rainha Rosimunda, pera uma cidade que há nome Ravena. E ali se pagou
a rainha de um mancebo que era prefeito de Ravena. E por casar com ela deu
peçonha àquele com quem fugira. E ela embebedou-o, sentiu que era peçonha e
fez que a Rosimunda que bebesse o que ficara à força da espada. E assim
morreram ambos. E assim parece que pouco prestou a fortaleza do corpo a el-
rei Alburno, nem ao outro que o matou, ca ambos morreram má morte.
(Fl. 77.)
NOTA: Nas Lendas Alemãs, de Jacob Grimm (Les veillées allemands, trad. de
L’Héretier de l’Ain), t. II, p. 45, vem esta tradição coligida de Paulo Diácono, e
de Gotfrid. Na poesia popular italiana ainda subsiste esta tradição germânica na
forma de romance, com o título Dona Lombarda, segundo a interpretação de
Nigra. Sabatini, falando deste canto, define a sua propagação na Itália do Norte:
«percorrendo dal norte al sud, Ia ritroviamo in Piemonte, nel Monferrato, nel
Veneto e a Ferrara; nella Toscana poi più non vive ma v’è ancora chi ricorda
averia udita. Si ritrova nelle Marche in Orvieto, a Viterbo, in Roma finalmente
non s’ode cantar che da pochi, e cosi proseguendo non si rinviene pid nelle terre
meridional e in Sicilia non se ne ha traccia veruna.» (Rivista di Letteratura
popolare, p. 14.) A obliteração da lenda à medida que se avança para o Sul indica a
sua origem germânica, e portanto a forma literária portuguesa proveio de uma
fonte erudita.
Nos Canti popolari piemontesi, publicados em 1888 pelo conde Nigra, vem um
extenso estudo das origens da tradição e determinação dos elementos históricos
conservados no canto popular Donna Lombarda, de que apresenta vinte e uma
versões. Pelos textos das crónicas de Paulo Diácono (De Gest. Longb., lib. III,
cap. XXIX), de Gregório de Tours (Hist. France, IV, 41) e de Jacob ab Aquis
(Monum. Hist. Patrum, t. III), reconhece-se que foi desta última fonte que
proveio o texto do século xiv do monge de Alcobaça. Na Crónica de Fra
Giacomo d’Acqui, o marido não se chama Elmichi como em Paulo Diácono,
mas Alboino, e o amante não é Longino mas o filho do Perfeito do Ravena. A
Lenda de Rosimunda, que na Itália deu elementos poéticos ao romance popular
da Donna Lombarda, também apareceu sincretizada com o caso de Rosimunda
de Inglaterra, a amante de Henrique II, o Plantageneta, que a tinha escondida
em um jardim em que fizera um Labirinto, e aonde a foi matar a rainha
Eleonora de Aquitânia, também com veneno. Como uma filha de Henrique 11 e
Eleonora de Aquitânia casara com o rei de Castela Afonso VIII, veio o
sincretismo do romance popular castelhano da coleção de D. Agustin Duran.
(Rom. General, n.º 1266)* E. Rolland coligiu um romance popular francês, que
Nigra considera provindo de versão italiana.
* No romance de D. Isabel de Liar, porque El-Rei tenia hijas dela, La Reina la
mando matar, este facto coincide com o que se conta de Alienor de Aquitânia,
mandando matar a amante de seu marido Henrique o, a bela Rosimunda, filha
de lord Chifford, que ele escondera em Wodstoch. No romance castelhano, fala
de D. Isabel de Liar: El Rey me pedio mi amor, / Yo no se lo guise dar, / Teniendo mas
a mi honra / Que no sus reinos mandare. / Cuando vió que no queria, / Mis padres
fuera a mandare. / Elles tan poco quizeran / Por la su honra guardare. / Desque todo
aquesto vira, / Por fuerza me fue a tomar / Troiu-me a esta fortaleza, / Do estoy en este
lugare; / Tres anos he estado en ella / Fuera de mi voluntade / Y si el Rey tiene en mi
hijos / Plugo a Dios y a su bondade / Porque me habeis de dar muerte, / Pues no merezco
mal? [Conc. do Romanc.] — Rom. Geral, III, 262.)
A VIÚVA E O ALCAIDE (A Matrona de
Éfeso)
Uma mulher tinha um seu marido, o qual ela dizia que amava sobre tôdalas
cousas do mundo.
Avinha per caso que lhe morreu este marido e foi soterrado em uma ermida,
pouco fora da vila, quase meia légua. Aquesta sua mulher tomou grã nojo e foi-
se a esta sepultura com grã chanto, e sobre esta sepultura dizia que queria viver
e morrer, e não fazia senão chorar; padre nem madre nem parente não a podiam
dali tirar.
Aconteceu que um ladrão, homem de grandes parentes, foi em aquele dia
enforcado a cerca daquela ermida, e foi dado em guarda ao alcaide por que o não
furtassem de noite seus parentes da forca, por que ele fosse exemplo aos outros
malfeitores; e o senhor disse ao alcaide que se lho furtassem per sua má guarda,
que enforcariam a ele. E estando este a aguardar, houve sede e mandou aos seus
que o guardassem bem, ca ele queria ir beber àquela ermida i cerca, onde parecia
um pouco de fogo. E em mentres que ele veio àquela ermida, os seus se
adormentaram, e foi furtado o enforcado, não sabendo o alcaide parte dele.
Quando o alcaide chegou à ermida deram-lhe água a beber. Depois que bebeu,
perguntou porque chorava aquela mulher. E foi-lhe dito porque lhe morreu ora
aqui um seu marido que ela amava mais que o seu coração. O alcaide lhe disse
que ela não tomasse nojo por aquela causa que ela não podia cobrar por
nenhuma rem do mundo, e ela disse que havia mui grã razão de chorar, ca ela
não podia já nunca achar homem que a tanto amasse como seu marido fazia; o
alcaide lhe disse que era homem que a amaria e serviria tanto e mais que ele e
que era tão rico e tão de prole como ele. E tanto lhe soube dizer com doces
palavras, que já não chorava, e namorou-se do alcaide, e recebeu-o por seu
marido. Depois tornou ele à forca e achou que lhe furtaram o enforcado, e seus
homens eram fugidos, e ele tornou logo àquela mulher e disse-lhe como lhe
furtaram o enforcado e que se temia que o senhor o faria enforcar. A dona, que
já dele era namorada muito, lhe disse:
— Amigo, não tomades nojo nem percadas per ende a terra, mas nós tomemos
este meu marido e ponhamo-lo na forca e eu vo-lo ajudarei a enforcar e a gente
cuidaria que é o que furtaram.
E assim o fizeram e viveram ambos casados em suas vidas.
(Fabulário Português do século XV, ms. da Bibl. de Viena, fl. 24. V. — Revista Lusit.,
vol. VIII, p. 127.)
NOTA: Loiseleur des Longchamps, no Ensaio sobre as Fábulas Indianas e sua
introdução na Europa (Ed. Paris, 1838) encontrou no Livro do Sindabad este
conto desfigurado, e dá-nos um quadro da sua transmissão desde o Oriente até
ao século XVII: acha provável que fosse uma lenda oriental, e segundo todos os
indícios muito viajou, se considerarmos derivado desta fonte o conto chinês que
o padre Du Holde traduziu em francês e publicou na Description historique de la
Chine, (vol. III, p. 40.) O grande sinólogo Abel de Remusat, também traduziu
do chinês outra lição deste conto. A Matrona de Éfeso indica a sua proveniência,
relacionando-o com essa criação dos Contos Milesianos, que o génio grego
tornou interessantes pela sua desenvoltura; Éfeso era como Mileto um centro de
literatura erótica, e também o seu novelista exímio, rivalizando Xenofon de
Éfeso com Aristides de Mileto, conhecido pelas novelas Abracome e Ântia. O
género literário era designado pelo nome dessas duas terras, Contos Efesíacos e
Contos Milesiacos. É admissível que a locução Ad Ephesios (que se considera
tomada da Epístola de São Paulo) pelo seu sentido malicioso nascera da atenção
que se dava a essas novelas voluptuosas. Tendo-se encontrado nas ruínas do
palácio de Nero um baixo-relevo representando a cena da Matrona de Éfeso,
Dacier considera-a como documento de anterioridade ao episódio do Satíricon
de Petrónio, que deu toda a celebridade à lenda. Dacier estudou
minuciosamente a dispersão universalista deste conto nas Memórias de
l’Academie des Inscriptions, t. XLI, considerando-o anterior a Petrónio, pois se
encontra no manuscrito de Perretti atribuído a Fedro. A narrativa de Petrónio
foi reproduzida no Policraticus sive de Nugis Curialóum, composto pelo bispo de
Chastres João de Saisbéri, falecido em 1183. Foi por esta via que se fez a maior
difusão do conto da Matrona de Éfeso na Idade Média, passando para a Historia
Septem Sapientium do monge de Haute Selve. Nas fábulas em hexâmetros
latinos, um anónimo, imitando Esopo incluiu o conto efesíaco, que se tornou
obra literária no século XIV por Eustáquio Deschamps, chegando a adquirir a
perfeição estética em La Fontaine, na forma dramática por Lamothe e na ópera
cómica por Fuselier. Ainda na literatura francesa recebeu toda a sua mordente
desenvoltura em um Fabliau (Coleç. de Méon, t. III, p. 462); Saint Evremont
revestindo-o da graça gaulesa, e Voltaire serviu-se dele como episódio no Zadig.
Na literatura italiana aparece incorporado nas Cento Novelle antiche, ou Libro di
Novelle e del bel parlar gentile, n.º LVI. (Ed. França, 1572) e na edição de 1895,
Milão, n.º LIX.
Na literatura portuguesa em que refletiram as principais obras da Idade Média,
estranhávamos não ter encontrado o conto da Matrona de Éfeso. O Livro de
Esopo — Romulus vulgaris ou ordinário, derivado das Fábulas de Fedro*, em que
se contam a Matrona de Éfeso (fábula XXXIV), trá-la traduzida para português,
aparecendo esse exemplar na Biblioteca de Viena. O Dr. Leite de Vasconcelos
copiando-o deu-lhe publicidade na Revista Lusitana, t. VIII, p. 127. Desse velho
texto português transcrevemos algumas fábulas.
Na Biblioteca de Viena têm aparecido outros monumentos portugueses da
Idade Média, tais como a Demanda do Santo Graal da Biblioteca de Dom João I,
e obras especiais da Época das Navegações, iniciadas pelos Portugueses, como O
Regimento do Astrolábio e do Quadrante, com cálculos desconhecidos de
Regiomontanus, e as Relações colhidas por Valentim Fernandes, de que deu
notícia o Dr. Smeller. Pelas observações de Joaquim Bensaúde, estes livros
foram da Biblioteca do erudito Peutinger, secretário do imperador Maximiliano
I, filho de D. Leonor, irmã de D. Afonso V e esposa do imperador Frederico
III. Por esta via para a Alemanha foram livros portugueses dessa época, depois
possuídos pelos Jesuítas em Augsburg e donde pela sua expulsão uma parte
dessas obras viera em 1808 para a Biblioteca de Viena. Por que caminhos andou
a Matrona do Éfeso, trajada em português! Ainda no século XVIII nos aparecem
duas abreviações deste conto na Hora de Recreio e no Divertimento de Estudiosos, p.
259.
* Vid. Journal des Savantes, 1884 e 1893, e Romania, vol. XV, pp. 229-231.
O JUDEU, O ESCUDEIRO E AS
PERDIZES
Um judeu queria passar pela terra de um rei com muitos haveres que consigo
levava; e rogou a el-rei que lhe desse um de sua casa que o acompanhasse seguro,
até que passasse seu reino. El-rei lhe deu um seu escudeiro, do qual se fiava
muito, e mandou-lhe que acompanhasse este judeu bem fielmente, até que
passasse em salvo fora de sua terra.
E quando este judeu foi em um mato, o escudeiro tirou fora de sua espada para o
matar e roubar-lhe seu haver, e o judeu lhe disse:
— Não me mates, porque se me matas, aquelas perdizes que estão em aquela
árvore te acusarão a teu senhor, e mandar-te-á matar.
O escudeiro escarneceu do que o judeu dizia e matou-o, e tomou-lhe todo o seu
haver que consigo levava.
E dali a pouco tempo presentaram a este rei perdizes, sendo a jantar. Este seu
escudeiro cortava ante ele, e como a Deus prouve começou este escudeiro de rir,
e não se podia ter nem fartar de rir. El-rei sendo à mesa não lhe disse nada, e
depois que jantou chamou-o de parte, e por que rira tão fortemente à mesa, que
lhe dissesse a verdade. O escudeiro não lho queria dizer, que se temia. El-rei
antre afagos e ameaças soube dele a verdade em como matara aquele judeu e lhe
tomara todo seu haver, e como o judeu, antes que o matasse, lhe dissera que as
perdizes que estavam na árvore o acusariam a ele, e que o mandaria matar. El-
rei tomou dele grã nojo porque amava muito o escudeiro.
— Por certo as perdizes te acusaram!
Depois houve conselho com seus conselheiros:
— O que merece este escudeiro?
E acudiram todos que morresse na forca.
E assim foi o escudeiro enforcado pelo mal que fizera.
(Fabulário Português, século XV, ms. da Bibl. de Viena, fl. 33. — Revista Lusit., vol.
8.°, p. 136.)
O LEÃO E O PASTOR
Andando um leão seu caminho, entrou-lhe uma espinha no pé; e este leão
andando mui tribulado com esta espinha pela mata, encontrou-se com um
pastor que guardava gado. O pastor com grão medo quando viu o leão e tomou
um carneiro e pô-lo de avante o leão; o leão não lho quis tomar, e mostrava-lhe
o pé onde tinha a espinha, e rogava ao pastor que lha tirasse. E o pastor tomou
uma sovela, e tirou-lhe a espinha e muito vurmo que já trazia. O leão lambia a
mão a este pastor.
Depois que o leão se sentiu são, sempre o acompanhou; e quando havia talante
de comer, andava a caça das alimárias à silva; e como havia seu mantimento,
tornava-se ao pastor. Em tal guisa lhe guardava seu gado, que lobo nenhum nem
outra animalha não lhe fazia dano; e com todo isto o leão espreveu mui bem no
seu coração o serviço que lhe o pastor fizera.
E de ende a poucos dias foi tomado aquele leão em um laço e foi posto em Roma
com outros leões. Dali a certo tempo o pastor fez um malefício; e mandou a
justiça que o metessem com os leões, que o matassem; e foi posto entre eles. O
leão a que ele tirara a espinha o conheceu e chegou-se a ele e andava o lambendo
e defendia-o dos outros leões, que lhe não fizessem mal. Vendo os senadores esta
maravilha, foram muitos espantados, e por isto perdoaram a morte ao pastor.
(Fabulário Português, século XV, ms. da Bibl. de Viena, fl. 19 V. — Revista Lusit.,
vol. 8.°, p. 121.)
O LOBO E O CORDEIRO
(Fabulário Português, ms. de Viena, fl. 2. — Rev. Lust., vol. 8.°, p. 104)
NOTA: Nos Cartas Familiares (p. 335) escreve D. Francisco Manuel de Melo:
«nunca vi amigo o Cordeiro e o Lobo, que não fosse mal para o cordeiro...»
Embora o tema desta fábula seja universal, pode ser sempre tratada com
novidade, conforme os sentidos que se lhe der moral ou historicamente.
Apresentamos uma versão literária, que visa o sucessor da tremenda guerra
atualmente: Que velha é esta fábula! / Um quadro já sabido / Do Lobo e do Cordeiro; /
Pode-se, (sem ser rábula) / Dar-lhe agora um sentido / Real e verdadeiro. / / Junto ao
regato ameno / Passa um Lobo esfaimado; / Cordeiro alvo, pequeno / Bebia descuidado. /
/ Sente o Lobo um abalo / Com a feliz surpresa: / — Que almoço! Que regalo, / Mesmo
aqui posta a mesa; / / Um manjar excelente, / Esplêndido banquete!... / Lança-lhe logo o
dente, / Crava-o no gasganete. / / Triste o Cordeiro inquire: / «Qual foi o mal que eu
fiz? / Porque me dás a morte?» / O Lobo, sem que se ire, / Tranquilamente diz; — Não
acuses a sorte; / / Estadistas de caco, / Proclamam com firmeza: — Há de ser sempre o
fraco / A legítima presa / Desse que for mais forte. — / Sigo o exemplo do Norte. / / E
enquanto crava os dentes / Nas carnes inocentes / E vai bebendo o sangue: / Diz a
vítima exangue; / / — Abonam esta manha / Do Lobo, quando topa / Desgarrado
Cordeiro, / Chanceleres prudentes / Do Império da Alemanha, / Aplicando-a na
Europa, / Perante o mundo inteiro. / / Há Nações que são lobos, / Do sangue nos
arrobos; / Assim Bismarck afirma: / Force prime le Droit, / Com franqueza, quem
há / Que um tal princípio negue? / Isto mesmo o confirma / Bethemann Holloweg. / /Lá
nas pristinas eras, / A Fábula consigna / Aos homens a lição; / Mas hoje, as próprias
feras / Da insânia maligna / Dá exemplo o Teutão.
EXEMPLO DA CABEÇA E OS
MEMBROS
«E isto podemos ver por exemplo nas cousas naturais, assim como é a cabeça, a
qual, posto que seja a mais alta parte do corpo, e a mais principal, não pode por
ende estar sem o ofício e serviço dos outros membros, e per essa mesma guisa os
outros nossos membros sem a sua cabeça se não podem manter, nem governar;
assim que, nem a cabeça aos membros, nem os membros à cabeça, poderão dizer
— Vai-te, que te não havemos mester, nem Eu poderei viver sem ti — porque será
mentira, mas que uma não pode escusar o outro, como é verdade: e assim de vós
outros, que vos deve nembrar, como vos destes e oferecestes e consagrastes a
Deus per vossos votos e vossa própria vontade; cá a mim não me prometestes
nenhuma cousa, nem eu vos não demando, nem requeiro al senão, o que deveis
de pagar a Deus, que o entregueis e deis a mim que sou seu procurador e
mordomo, etc.»
(Carta II de Frei João Álvares, abade do Paço de Sousa, 1467. — Ap. J. P. Ribeiro,
Diss. Cron., t. I, p. 368, ed. de 1860.)
Paio Vaz:
Pois Deus quer que pague e peite
Tão daninha pegureira,
Em pago desta canseira
Toma este pote de azeite,
E vai-o vender à feira;
E quiçais, medrarás tu,
E que eu contigo não posso.
Mofina Mendes:
Vou-me à feira de Trancoso
Logo, nome de Jesu!
E farei dinheiro grosso;
Do que este azeite render
Comprarei ovos de pata,
Que é a cousa mais barata,
Que eu de lá posso trazer.
E estes ovos chocarão;
Cada ovo dará um pato,
E cada pato um tostão,
Que passará de um milhão
E meio, a vender barato.
Casarei rica e honrada,
Por este ovo de pata,
E o dia que for casada
Sairei ataviada
Com um brial de escarlata;
E diante o desposado
Que me estará namorando,
Virei de dentro bailando,
Assi desta arte bailando,
Esta cantiga cantando.
(Estas cousas diz Mofina Mendes com o pote de azeite à cabeça, e andando enlevada
no bailo, cai-lhe, e diz:)
Paio Vaz:
Agora posso eu dizer
E jurar e apostar
Que és Mofina toda.
Pessival:
E se ela baila na boda
Que está ainda por sonhar,
E os patos por nascer,
E o azeite por vender,
E o noivo por achar,
E a Mofina a bailar;
Que menos podia ser?
NOTA: Na linguagem usual ainda persiste a locução das Águas de Maio, mas
perdida a reminiscência do conto popular metrificado por Sá da Miranda com
tanta beleza de ingenuidade. Aparece-nos em um Noellaire trovadoresco de
Peire Cardinal, que frequentou a corte de Aragão, no século XIII.
Transcrevemos esse conto em sua linguagem provençal:
Yssi comensa la faula dela pluya: Una ciutat, no say quais / Hon cazee una pluia
tais, / Que tuy li home de la ciutat / Que toque furo forcenat. / Tuy desse n’ero
mais, sois os. / Et aquel escapet, ses pus / Que era dins una mayso, / Que dormia
quant aysso fo. / E vet, anant at dormi[ / Del plueya diquit, / E foras entre las
gens / Fero d’ensenamens / Aruquot, l’antre fosseis, / Utre stopit verens / E
trays peras contre estalas, / L’antre esquisset las gouelas, / Us ferie, el outrem
peys, / E l’antre enyet esser Reys / Et tene se riquement flanex. / E l’antre s’asset
per los bancx, / L’un menesee, l’autre mallisx, / L’autre piore et l’autre riz: /
L’autre parlee et no sanp que; / L’autre le mateys de ae. / Aguei que avia so seu, /
Maravilha-se molt formen, / Que vee que he destatz sou, / E garda ad aval el
amon, / E grans maravilha a de ler, / Mas mot l’han ilh do lui mayor; / Qu’el
veeon estar saviansen / Cuio que ai perdut so sen. / Car so qu’ell far no lhe veso
fayre / Que a casca de lores veyaire / Que ill son savi e assenatz. / Mas lui no tene
por dessenat / fer en gansa, que em col; / Nós por mandar que no degol; / L’us
l’empenh, e l’antre le bota, / El cuya isshir de la rota, / L’us l’esquiusa, l’autre li
tray, / E rien eolos, e leva, e chay, / Cascu’l leva a gran gabantz / El fuy a sa
mayzo deffantz, / Fangoz e battestz e mieg mort / E se gaug can lor for estort, /
Sort falle en aquest meu / Semblanz ais homes que i son. / A quest seigles es la
ciutat / Que es tal ples do forsennatz; / Que el marger sen qu’om pot aver / Se es
amar Dieu et sa mer, / E gardar sos mandemens. / Mas assas es perdutz agueis
sens. / La pluyã say es casuda. / Una cobeytat qu’es vengada / Us erguelh et una
maleza / Que toca la gent a perlueza. / E si Dieu n’a alen guardatz / L’autrs ils
tens per Pescessnat / E menon lo lemp en vill, / Car no es doi seu que sen ill /
Qu’el sen de Dieu lor par folis, / E l’ami era de Dieu en que via / Coneys que
dessenat, son tug / Con lo sen de Dieu an perdut, / E els ou lui per dessenat /
Car le son de Dieu en layssat. (Ap. Raynossard, Choix do Poésies des Troubadours,
t. IV, p. 366.)
No século XV encontramos uma referência à Chuva de Maio, em Duarte da
Gama, um dos poetas palacianos, do Cancioneiro Geral de Resende: Pois se eu em
tais desordens / Só quiser ser ordenado, / hei de ser apedrejado / Sem me valerem as
ordens; / Molhar-me-ei, em que me pez. / Pelo tempo e sazão, / Pois é natural razão.
(Canc. Geral. t. I, p. 514).
Com o mesmo sentido moral, D. Francisco Manuel de Melo emprega a
referência aos contos, na Sanfonha de Euterpe, sob a autoridade de Sá de
Miranda: Molhar nas Águas de Maio / O grande Sá deixou deito, / Que era
prudência tão vil / Qual fugir do sol no estio. (Op. cit., p. 147.) Molhar das Águas de
Maio / Revolver entre a Chacota, / Voltar nela como raio, / Não tenho por bom ensaio
/ Para quem mudar a nota. (Ibid., p. 66.)
O ERMITÃO E O LADRÃO
Uma virtuosa dona de boa vida tinha uma filha de tão má inclinação que não
queria tomar os nobres conselhos da mãe, nem aprendia seus louvados costumes;
mas em tudo seguia seu próprio parecer sem obediência de pessoa alguma, nem
correição de vizinha nem parenta, porque era preguiçosa, gulosa, andeja, muito
faladeira e de outras feias manhas. A mãe, como mãe, desejosa de seu bem e de
lhe dar marido, determinou dar a um mancebo tudo o que a pobre velha tinha
por que casasse com a filha. E concertada com ele no dote, quis o mancebo que
não dessem conta à moça até que ele a fosse ver o dia seguinte, seguindo o
conselho do rifão que diz: Antes que cases, olha o que fazes. Foi a velha
contente e disse que assim faria; porém, por que a filha estivesse sobreaviso e
não caísse em alguma fraqueza a tal tempo, crendo que para casar tomaria seu
conselho, lhe descobriu aquela noite tudo o que se passava, dizendo-lhe:
— Filha, toda tua vida seguiste tua opinião, sem querer entender meus
conselhos; agora te rogo que este dia me ouças e aceites o que te disser.
E com discretas palavras lhe amoestou que o dia seguinte não se erguesse de seu
lugar; que sempre estivesse calada fiando, ou ao menos com a roca na cinta,
porque pois o futuro marido a queria ver a achasse quieta e ocupada. E para
mais ajuda fiou a velha aquele serão quase até meia-noite, e pela manhã pôs-se à
filha uma grande roca na cinta, e deixou-lhe as maçarocas que fora no regaço;
fê-la assentar, tal que à vista dos olhos a quem a não conhecera parecia uma
diligente fiandeira. Porém como aquele não era seu costume, tanto que a mãe
teceu à porta, (porque havia de esperar de ali o mancebo) a moça deixou a roca, e
com diligência fez lume, e nele uma honesta tigelada de papas, e porque se
esfriassem prestes as lançou em cinco ou seis escudelas, que logo chegou de
redor de si, e soprando e fervendo estava a pobre moça apressada por acabar sua
obra antes de ser sentida. A este tempo chegou o mancebo à porta, e ainda que o
viu a velha e ele a ela, pelo que tinham concertado não falaram, mas ele subiu de
manso por ver em que se ocupava a que ele queria receber por mulher. E a velha
o deixou ir, tendo pera si acharia a filha ao menos com a roca na cinta como a
deixara; mas ainda que ele subiu dez ou doze degraus da escada, ela de ocupada
não o sentiu, nem, posto que meteu a cabeça em casa o não viu; mas ela foi dele
muito bem vista, e notando o ofício em que estava, disse entre si:
— Nunca nós faremos boa matalotagem; porque quem tanto e com tal pressa
madruga a comer, pouca prol me pode fazer. Não é esta a que me arma.
E sem falar se desceu; e a velha vendo-o vir tão prestes, lhe perguntou:
— Que vos parece, filho? Que cuidado de moça!
E querendo-lha gabar, porque imaginava que estaria fiando, e mais com a roca
cheia, lhe disse:
— Vistes a pressa que tinha, e a habilidade das suas mãos, e o que já tinha
despachado; pois eu vos prometo que daquelas enche e vaza sete no dia.
Querendo a velha dizer as rocadas da roca; mas o mancebo sem descobrir o que
lhe vira fazer, respondeu:
— Senhora, não me arma; que se ela é tal, não na posso sustentar, e assim estesse
em vossa casa, e se as vazar e encher tantas vezes, sejam embora de vossa farinha.
E foi-se.
NOTA: Este conto aparece ainda na tradição popular do Minho; nos Contos
Populares Portugueses, n.º LIII, traz o título Os Simplórios:
«A mãe avisou a filha para falar a um namorado, e disse-lhe:
— Olha que aí vem um rapaz para te ver, e tu põe uma rocada grande na roca e
põe-te a fiar para ele se agradar de ti; e se ele te disser: «Ó que rica fiandeira» tu
dize: «Eu destas despejo sete ao dia.»
A rapariguinha, assim que a mãe saiu, pousou a roca; foi à adega, trouxe uma
infusa de vinho de meia canada para comer umas sopas; fê-las numa tigela
grande, e nisto chegou o rapaz, disse:
— Adeus, menina.
Disse ela: — Olha, que eu destas / Despejo sete ao dia.
Disse ele: — Será da sua cuba / Que não da minha.
E foi-se embora.»
Evidentemente Trancoso deu forma literária a esta anedota popular.
A DONZELA RECATADA
Em uma populosa vila havia uma dona honrada que tinha uma filha muito
virtuosa, sisuda, recolhida, e amiga de seu trabalho, que per ele alcançava com
que honestamente se mantinham ambas das portas adentro, mui limpamente
tratadas. Fazendo-se uma boda de uma sua parenta, assim se passaram mais de
quatro meses em recados até que a noiva lhe veio a casa rogar que fosse um dia à
sua o que a moça aceitou por comprazer com a parente; e chegando a noite, por
ser menos vista, com um irmão mancebo que àquele tempo viera de fora da
terra, saiu de sua casa para ir a casa da parenta. Na rua do próprio caminho por
onde haviam de ir, estava uma escola de dança, a que o mancebo era inclinado, e
a estas horas dançavam, e ao passar pela porta da escola fez uma pequena
detença; mas a donzela, que não tinha sua imaginação senão no caminho que
levava, andava pela rua tão baixo o rosto que o não erguia. Foi vista por um
nobre mancebo, que a seguiu, a pôs-se-lhe diante fingindo ser seu escudeiro,
encaminhou-a pera sua casa; e ela, quando ergueu o rosto, crendo ser seu irmão
lhe disse:
— Tão longe é isto!
Ele ainda que entendeu, não lhe respondeu nada; e dissimulado se meteu em sua
própria casa, dizendo:
— Aqui é.
E como a teve bem dentro, fez cerrar a porta, e mostrou-se-lhe, e descobriu-se a
ela quem era. Grandes promessas, que lhe fazia, e ricas joias que lhe dava, com
palavras amorosas e meigas, nesta casta e honesta donzela não fizeram abalo. Ele
que a viu tão determinada, a levou a um jardim, lugar onde ainda que bradasse
não pudesse ser ouvida; e lhe ia tirando das roupas que levava vestidas; por lhe
ganhar a vontade, largou-a de si um pequeno espaço, ficando-lhe porém o cabo
do trançado na mão. A donzela, tanto que se viu fora de suas mãos, tirou com
diligência o garavim da cabeça, e metendo-o no tronco de uma árvore, se foi até
chegar ao pé do muro do jardim, e subindo na parede, sem temer a queda, se
deixou ir abaixo em camisa e em cabelo. E assim se achou na rua a tempo que já
havia muito que era achada de menos do irmão, e dele e da mãe buscada por
todas as partes. E quando sua mãe a viu, e ela viu sua mãe, parecia que ambas
ressuscitavam, e logo quietamente coberta com a capa e sombreiro do irmão se
foram para casa. O fidalgo, tanto que lhe pareceu que tardava, ainda que tinha o
trançado na mão, porque não lhe respondia chamando-a, foi para ela cuidando
que lançava mão de sua pessoa; achou-se abraçado com o tronco da árvore onde
o garavim estava posto, e sentindo e engano, e como não sabia quem era, nem
cuja filha, se recolheu em sua casa triste, então lhe estava mais afeiçoado que
dantes. E com desejo de a ver e saber quem era, e havê-la por mulher, caiu em
cama doente de imaginação, e tanto esteve assim que se secava e houvera de
morrer, senão dera conta do caso a uma discreta dona que o criara, a qual
entendido tudo o que se passara, tomou o vestido, que foi tirado da moça, e foi-
se pela vila dizendo que o achara, e se alguma pessoa o conhecesse e mostrasse
como era seu lho daria. E isto fazia por saber quem era aquela donzela: o que a
boa dona fez com tanta sagacidade, que por inculcas veio à própria casa donde o
fato era. A dona foi dizer ao fidalgo a casa e a pessoa que era; e ele, visto e ouvido
o que dizia daquela que já tinha feito senhora de si na vontade, folgou muito e
aguardou tempo que soube que estava vestida com o próprio vestido, e então
para melhor se afirmar se era ela, se subiu pela escada acima, e de súbito deu com
a mãe, e com ela e seu irmão, que estavam descuidados de tal vinda. E o fidalgo
tanto que a viu logo conheceu ser aquela por quem passava os trabalhos que
passou desde que ficou sem ela no jardim, e com muita cortesia lhe disse:
— Senhora, desde agora vos fico que nunca haverei outra mulher senão a vós.
A donzela, vergonhosa de ouvir, e a este tempo se desbarretou e queria pedir-
lho em geolhos, se lhe humilhou muito e tomando-o polas mãos o fez erguer.
Depois se correram os banhos, e com muito contentamento de ambos viveram
sempre; e por esta donzela se disse o rifão:
A moça virtuosa
Deus a esposa.
Perto da cidade do Porto, onde chamam Paço de Sousa, havia um pobre homem
que tinha seis crianças, entre filhos e filhas, de que alguns eram de dezassete ou
dezoito anos, e dali para baixo. E tendo-os derredor de si um serão, sobre a ceia
de boroa e castanhas, de redor do lume muito contentes, olhou pera eles, e viu-
os tais, que o melhor arroupado, se tinha camisa não tinha pelote, e se pelote,
sem mangas, e se mangas sem falda, e todos descalços e sem barrete nem coifas;
assim que todos se cobriam com fato, que pera bem não bastava a um, e esse
muito velho e esfarrapado, que quase não prestava. E vendo-os tais, disse à
mulher:
— Ouvis? Lembre-vos amanhã, se Nosso Senhor quiser, que peçais a minha
comadre Briolanja de Paiva uma quarta de linhaça emprestada; semeá-la-emos,
e com ajuda de Deus, haveremos linho, de que façamos no verão calçotes para
estes cachopos.
Os filhos, tanto que o ouviram, saltando no ar com muito prazer, diziam uns aos
outros rindo:
— Ai, calçotes, mana! Ai calçotes!
Tanto riram e folgaram, estando ainda nus, que o pai disse:
— O dou ao Demo a canhalha, que, como se sentem vestidos, não há
quem possa com eles.
Um nobre cavaleiro, virtuoso e muito rico, o qual chegando por velhice à última
hora da vida, chamou ante si um só filho que tinha:
— Rogo-te que pera minha consolação, antes que morra me prometas de fazer
o que te deixar por conselho; que segredo que revelar honra ou vida não no
descubras a ninguém, porque se tu não guardas o que tanto te releva a ti
próprio, como esperas que lo guardará outra pessoa alguma? E nisto de segredo
te guarda principalmente de tua mulher, porque todas em geral são mudáveis, e
por pouca cousa que lhe faças se pode enojar contra ti e descobrir-te o segredo.
Isto tudo o filho ouviu e entendeu, e aceitou de cumprir como o pai lhe pedia,
prometendo-lhe sem falta. Mas para ver que dano lhe podia vir de descobrir o
segredo, logo propôs de descobrir algum que fosse fingido haver feito que não
fizesse, para que se se descobrisse não fosse verdade, e pudesse mostrar o
contrário.
Andando um dia o duque à caça, trasmontou-se-lhe um nebri que ele prezava
muito, e tornando sem ele à cidade, fez apregoar que daria grande achado a
quem lho desse. E porque nem assim apareceu, tornou a mandar pregoar que
quem o encobrisse perdesse a fazenda e morresse morte natural; e a quem lho
descobrisse e fizesse vir à mão do duque, perdoava qualquer delito que tivesse,
ainda que fosse de morte. E nem assim o nebri apareceu, de que toda a terra
estava espantada; e não aparecia, porque caiu dentro da quinta deste mancebo,
que estava perto da cidade, a qual, como era muito grande e ele achasse ali
muitas aves, andou muitos dias sem saber dele, até que o mancebo foi um dia à
quinta; andando passeando dentro, achou o nebri, e como sabia muito daquele
mister, o chamou e fez vir a si, e o levou a uma câmara das casas da quinta, em
que havia todo aparelho para a criação daquelas aves, e que não pudesse fugir,
deixando a bom recado. Guardou consigo a chave da casa, que era muito grande,
e ele e outros pássaros que ali estavam tinham bem de que se manter, porque a
casa era artificialmente para isso, e estava bem provida do necessário. E deixando
o nebri arrecadado, matou o mancebo um grande pavão, de muitos que ali se
criavam, e cortados os pés, rabo, cabeça, o depenou e levou para sua casa; e tanto
que chegou, disse a sua mulher:
— Senhora, o nebri do duque foi ter à nossa quinta, e nos tem mortas muitas de
nossas aves e em satisfação disso eu o matei, e o trago aqui depenado para que o
ceemos, vós e eu.
Ela, tanto que o ouviu se agastou muito, e disse:
— Pesa-me muito disso, que melhor fora trazer-lho vivo ao duque; daqui vos
digo que me fizestes pesar, e eu não cearei dele, nem à mesa em que se comer.
E assim, ainda que o marido a chamou e lhe mostrou o pavão, gabando-o,
dizendo-lhe:
— Senhora, olhai como estava gordo este nebri; vinde comer dele, que é tal
como um gordo pavão.
Ela o não quis ver, nem aquela noite ceou com o marido, nem sem ele, tanto se
entristeceu. Porém, passada esta noite, de ali por diante quando falava com o
marido parecia que era com uma isentidão sobeja, menos recolheita e mais
despejada que dantes, menos cortês e humilde do que soía e por cima do ombro;
no que tudo o marido atentou, tendo para si que já ela cuidava que lhe tinha o pé
no pescoço em lhe saber o segredo do nebri, que na verdade estava vivo, e ele o
visitava cada dia para lhe prover o que fosse necessário; e a mulher cuidava que o
pavão que o marido ceou, como ouvistes, era verdadeiramente o nebri, como ele
disse.
E o mancebo, desejoso de chegar ao cabo com tudo, uma tarde entrando pela
porta sobre:
— Por que não está a mesa posta? Que fazeis à janela? (Cousa que nunca ele
perguntava, nem disso entendia.)
Ela lhe respondeu isenta:
— Que quereis vós agora para isso? (com um menosprezo no marido, e
gravidade nela, que ele não quis sofrer); e ali lhe deu uma grande bofetada; pelo
que ela, posta em cabelo, gritando muito rijo, disse:
— Isso mereço eu, falso traidor? Porque há mais de seis dias que calo e encubro
tua maldade, que matastes o nebri do Senhor Duque, e o comestes por lhe dar
desgostos, e não porque te faltavam a ti aves presadas de comer.
Como isto foi dito a grandes brados na praça, por para pouco se teve o que mais
tardou em dizê-lo ao duque, temendo que se o não descobrisse cairia em sua
desgraça. O duque tanto que o soube o mandou prender, e sem nenhuma
misericórdia, visto o testemunho da mulher e dos servidores e gente de sua casa,
que todos afirmaram ver-lhe trazer o nebri morto e mandá-lo assar, e que o
ceara uma noite, foi por sentença mandado degolar na praça da cidade, e que
perdesse sua direita parte dos seus bens que tinha para a coroa, conforme estava
apregoado. E tirando-o da cadeia para se executar nele a justiça, a este tempo
tinha o mancebo junto consigo um virtuoso padre religioso a quem tinha dado
conta do caso todo como passava assim como a história o tem contado, que
ouvindo-o, logo se ergueu em pé, e disse alto a todos que o ouviram:
— Este homem é julgado por falsa informação, e não é a sentença dada
justamente; esperai, que eu irei falar ao duque, e será de outra maneira.
E assim foi e contou a Sua Senhoria toda a história passada do rogo do velho pai
a seu filho até o estado em que estava, por ver o segredo que sua mulher lhe
tinha, no que fingidamente lhe dissera pera a provar. Que Sua Senhoria
mandasse pelo nebri à quinta, que ele lhe descobrira que era vivo e estava ali; e
para mais certeza, que tomasse aquela chave e o mandasse tirar, e que se
lembrasse que conforme ao pregão que mandou dar, por este feito de lhe
descobrir o nebri e fazer-lho haver era perdoado. Porém que ele o não pedia
senão, que se todavia o quisesse mandar matar, que dissesse o pregão, — que
morria por não ser obediente a seu pai, nem tomar seu conselho.
E o duque, visto isto e entendendo a verdade do caso, mandou que fosse solto e
perdoado da culpa que teve, e que sofresse o desgosto de ter sempre sua mulher
consigo, sem nunca pelo passado lhe dar remoque, nem fazer agravo, porque
visto o que sucedera estava arrependida do que fizera, e que em tudo dali por
diante guardasse os conselhos de seu pai, assim como lhos prometeu guardar.
NOTA: Acha-se este conto nas Cento Novelle antiche, n.º 10; nas Novelle, de
Franco Sachetti, n.º XIV; nas Gesta Romanorum, cap. 124 (Violier, cap. 148); nas
Cent Nouvelles nouvelles, n.º LII; nas Nuits facetieuses, de Straparola, 1, da 1.ª
noite (t. I, p.15). Também se repete no Livre du Chevalier de la Tour, cap. 128. O
episódio do falcão morto (um carneiro, para simular um homem) vem nas Horas
de Recreio, de Guichardin, p. 161; nas Novelle, de Granuci, n.º V: no fabliau do
Prud’homme qui donna des instructions à sons fils (Rec. de Fabliaux, p. 131), na
coleção de Barbazan, e Ms. de Clayette. Vid. Melanges de littérature orientale, t. I,
p. 78. Há imitações deste conto em Hans Sachs, em uma comédia; o Dr.
Schmidt, na sua edição de Straparola determina bastantes paradigmas deste
conto, que ainda aparece nos Mille et un quart d’heure, de Gueullette. No
Dolopathos, d’Hebers (ed. 1856, p. 225), acha-se esta narrativa; nos Hausmärchen,
de Grimm, t. III, p. 176, ed. 1819, apontam-se outros paradigmas.
No Divertimento de Estudiosos, t. II. n.º 500, p. 187: «Um, querendo examinar o
segredo de sua mulher, quando se deitou escondeu um ovo debaixo da cabeceira;
depois pela noite adiante fingiu que a acordara mui ansiado e cheio de dores.
Perguntou-lhe a mulher, o que tinha. Respondeu ele, que lhe sucedia um caso
que de ninguém queria fiar. Com mais curiosidade o quis ela saber, e fazendo
mil juramentos de infalível segredo lhe pediu que lho descobrisse. Disse-lhe o
marido:
— Fiado em tais promessas te declaro, que pari um ovo (e mostrou-lho) porém,
segunda vez te recomendo o segredo, pela afronta que daqui se me seguirá.
A mulher, dizendo que estivesse descansado, sem dormir passou todo o resto da
noite, que lhe pareceu um ano, pelo desejo de ir contar o sucesso; mas assim que
amanheceu procurou logo uma vizinha e disse-lhe, que seu marido naquela
noite pariu dois ovos, porém, que tivesse segredo. A vizinha contou a uma
amiga, que seu vizinho N. havia parido naquela noite quatro; mas que ninguém
o soubesse. Assim se foi contando a história e multiplicando ao mesmo passo os
ovos, que na tarde do mesmo dia com universal espanto se contavam já
publicamente que parira quarenta ovos N., o qual aparecendo, lhe perguntaram
como sucedera o caso, e ele o declarou com bem admiração dos que o ouviram.
A PROVA DAS LARANJAS
Um velho rico tinha dois filhos, e porque o maior que tinha cárrego da
administração da fazenda se casou sem licença, o lançou fora de casa, tirando-lhe
a posse e mando que nela tinha, e além disto lhe cobrou ódio mortal com desejo
de o empecer; e para o poder fazer ao menos na fazenda, imaginava sempre
como per sua morte o deixasse deserdado e desse tudo ao outro filho menor. E
achou que o faria, deixando de acabar umas casas sumptuosas que tinha
começadas no melhor da cidade, as quais estavam já galgadas as paredes para lhe
lançar o primeiro sobrado, e isto porque o que havia de gastar nelas ficasse em
dinheiro na mão do filho menor quando ele lho quisesse dar. E passados anos, o
velho perseverando em sua contumácia, não quis perdoar o filho nem lhe quis
mais ver o rosto. E com este rancor morreu e deixou grande fazenda em
dinheiro, ouro e prata ao segundo filho, dando-lho na mão, porque não desse
dali parte ao outro, ao qual ele deserdara, de todo se perdera. Coube ao maior
tão pouco, que não houve bem para se vestir de dó ele e seus filhos, que, como
havia dias que era casado, tinha quatro crianças, e assim ficou pobre e cercado de
trabalhos e muita necessidade, que, vendo-se o mais velho em tanta miséria foi
ao irmão, e com lágrimas lhe disse:
— Irmão, bem sabes e vês minha necessidade e pobreza; rogo-te que me dês
estes princípios de casas que meu pai deixou de acabar, porque alimpadas com
meu trabalho e de minha mulher e filhos, as possa cobrir de trouxa e agasalhar-
me dentro; que elas a ti não te aproveitam, nem as estimas, e estão em
esterqueira do concelho, feitas pardieiro; elas estão galgadas de maneira que sem
lhe acrescentar parede, ali as cobrirei do que puder, e nisto me farás grande
esmola.
O irmão menor vendo a necessidade de seu irmão, e como dizem, porque o
sangue não se roga, entregou-lhe as casas, e fez-lhe delas sua carta de doação
livre e desembargada.
Passados anos o irmão menor veio a casar, e porque a quem tem muito lhe dão
mais, deram-lhe grande dote com uma mulher tão cobiçosa da fazenda, que o
muito que tinha lhe parecia nada, e o pouco alheio cuidava que era muito e o
queria e cobiçava para si. E desta maneira, indo um dia a visitar a mulher do
cunhado, irmão de seu marido, viu o princípio e entrada da casa e o portal de
pedraria que mostrava demandar mais água, que ser logo em cima coberta de
trouxa como estava, e cobiçosa de haver aquele assento e fazer nele casas para
sua morada custosas e ricas, sem fazer ali muita tardança veio ao marido e disse-
lhe — que comprasse aquele assento a seu irmão dando-lhe por ele com que
pudesse haver casas pera si em outra parte. E ele lhe respondeu: que o não faria,
porque ele lho dera feito, pardieiro, que não era razão pedir-lho agora que o
tinha limpo, ainda que fosse por compra.
Quando ela isto ouviu, ali foi a grita, que em toda a vizinhança se ouviu seu
brado, dizendo: — que folgava muito de saber que ele lho tinha dado, porque já
agora não dizia ela por dinheiro, mas sem ele lho havia de dar, e se não fosse em
paz e por bem, seria por justiça. E dava logo esta razão:
— Se vós lho destes solteiro, sereis menor; e se lho destes em casado, a dada não
vale, que eu não consinto.
E isto dizia tão menencória e pelejando, que o marido não tinha mesa nem cama
sem arruído. E assim fez tanto, que por ter paz o marido citou a seu irmão,
pedindo-lhe as casas que lhe dera; e processado o feito, que correndo os seus
termos ordinários saiu por sentença a doação por boa. E assim foi a propriedade
julgada ao pobre; porém, a mulher do rico mal-contente, fez agravar da sentença
e seguir o feito até mor alçada, e assim foi à Suplicação, que então estava na
cidade de Évora. E partindo de Lisboa, o rico ia a cavalo e com grande
cevadeira, e o pobre a pé com dous pães e quatro cebolas no capelo; e assim
caminharam pera haver final sentença. Indo assim caminhando pera Évora,
foram pousar uma noite na Landeira, em casa de um vendeiro, que havia
dezoito anos que era casado e nunca tivera filho nem filha; e estava rico e
contente, porque a este tempo tinha a mulher prenhe, quase em dias de parir. E
por ser muito conhecido do rico o agasalhou e pôs grande mesa, dando-lhe de
cear o melhor que ele pôde e tinha; assim se puseram a cear com grande festa,
fazendo assentar à mesa a mulher do vendeiro pera que como prenhe tomasse de
cada cousa um bocado. E o pobre homem, sem dizer que era irmão do rico, se
assentou derredor do lume, e pôs no borralho a assar uma cebola para sua ceia,
que assada a ceou com seu pão e água. Esta mulher prenhe ainda que estava à
mesa com o marido e hóspede, onde tinham bem que cear, e recebiam gosto de
lhe dar o que ele pedia por que não perigasse, não lhe pareceu bem nada do que
ali havia, nem lhe prestava coisa que comesse, cheirando-lhe a cebola, que se
assava, que morria por ir comer dela, e com vergonha do hóspede não se erguia
da mesa, tomou-lhe tal desmaio que caiu no chão, e como criança era já grande a
boa mulher com grande trabalho moveu aquela noite antes de muitas horas com
muito pesar e dor do marido, o qual, inquirindo da mulher se desejara alguma
cousa, tanto que ela lhe disse que da cebola assada que aquele homem ceara, se
foi a ele com grande ira, que o queria matar a punhadas, e sem falta o fizera, se o
irmão o não escusara, dizendo:
— Eu vou com ele em demanda à corte; se vos parece que vos tem culpa e é caso
de o matar, como quereis, i comigo e acusai-o, e lá vos farão justiça.
Tanto que veio a manhã, determinou o vendeiro ir acusá-lo à corte. E assim
como o rico se pôs a cavalo, partiram ambos para a cidade de Évora donde o
vendeiro pretendia fazer enforcar aquele pobre homem. E assim caminhavam os
dous a cavalo, e o pobre a pé; chovia, e havia chovido toda a noite passada, de
maneira que o caminho tinha a lugares lamas e atoleiros, porque era tempo de
inverno. A esta conjunção achou no próprio caminho um homem, que com uma
azémola estava metido no olho de um grande lamarão de barro, tão pesado que
não podia sair, nem valer-se a si, nem à azémola, e anda que bradou pelos que
passavam a cavalo, nenhum quis acudir. Até que chegou este pobre homem que
caminhava a pé, e com muito mais trabalho que todos e de feito o ajudou com
vontade a livrar daquela afronta; e fez de maneira com que, tirando o homem da
pressa de sua pessoa, buscaram ambos mato que lançar aderredor da azémola
para poder chegar a ela sem atolar. Trabalhou tanto o pobre homem nisto,
tirando a vezes pelos pés e mãos, e outras pelo cabresto e rabo, com a força que
ele pôs lhe ficaram nas mãos tantas sedas do rabo da azémola, que lhe davam
grande fealdade. O dono, tanto que viu o defeito da azémola veio a grandes
brados com o pobre, dizendo que acinte lhe arrancara o rabo, e que lhe havia de
pagar por justiça o defeito, e que sobre isso iria à corte; e assim indo alcançou os
outros que iam diante na primeira venda donde estavam pousados e lhe fez
queixume do pobre que vinha a pé, muito triste de se ver com tantos desastres
com lhe aconteciam sem ele ter culpa; e porque não acontecessem mais, não quis
pousar naquela venda, mas só se pôs ao caminho e chegou a Évora a tempo, que
já lá estavam. E considerando o pobre como havia de parecer com três demandas
diante do regedor, assentou que era melhor matar-se ele mesmo a si, que ver-se
em poder de seus inimigos;
E logo o pôs por obra desta maneira. Subindo pela escada do muro da cidade, foi
acima até chegar às ameias da torre que está sobre a porta, e deixando-se cair da
torre abaixo para a banda de fora. Ora, aquela manhã, depois de tanta chuva,
tinha amanhecido o dia bom e muito fermoso; um velho que estava entrevado
doente e morava ali perto, por gozar o sol deste dia se fez levar ao soalheiro ao
pé do muro, por ali aquecer e ter refrigério de ver e falar com alguns
conhecentes que passavam; e assim pouco depois dele assentado em uma cadeira,
vedes, vem de cima do muro pelos ares aquele homem, que desesperado por se
ver com tanta demanda se lançou desejoso de receber a morte, o qual veio
direitamente dar sobre o desditoso velho, morreu, e o pobre homem que
desejava morrer não recebeu nenhum dano da queda, que foi toda em cheio
sobre o velho. Ao qual logo acudiram dois filhos que tinha, e achando-o morto
lançaram mão do matador e preso o levaram ante o regedor. Porém,
atravessando com ele pela praça, foi visto do irmão e dos outros dois contrários,
que o estavam aguardando; tomou o irmão a dianteira e o vendeiro também
queria dizer seu queixume e o da azémola o mesmo, de maneira que cada um se
atravessava por falar, não deixando dizer ao outro. Tanta briga tiveram entre si,
que o regedor olhou nisso e logo naquele instante propôs em si, que se achasse
da parte do pobre alguma coisa com que por direito o pudesse favorecer, que o
faria de boa vontade. E disse:
— Que as pessoas que tinham que dizer contra aquele homem dissessem um a
um, começando primeiro quem primeiro teve a diferença; e assim cada um per
sua ordem.
Pelo que o irmão foi o primeiro, que lhe pediu as casas, fundando-se nas razões
já ditas; ao qual respondeu o pobre com a verdade do caso como passava. O
regedor disse:
— Eu mando que este fique com as casas como estão julgadas, e que vós que
sabeis que lhas pedis mal e com malícia insistis nisso, lhe pagueis a ele duzentos
mil réis.
E logo foi por eles preso, e não foi solto até pagar. Concluído este, veio o
vendeiro, dizendo que lhe fizera mover a mulher; ao qual respondeu o pobre
com a verdade, contando como passara. E o regedor, visto o caso, julgou ao
pobre por sem culpa, e que o vendeiro pela afronta em que o pusera e em
emenda do dano que lhe fez em sua casa dando nele, lhe pagasse cinquenta
cruzados. E logo veio o da azémola, pedindo que maliciosamente pegara no rabo
daquela alimária e lho arrancara; o qual era muito defeito e grande fealdade, que
lhe mandasse pagar o que fosse avaliado. Ao que foi respondido pelo pobre,
dizendo que o ajudara a sair do atoleiro: ouvido pelo regedor e vista a ingratidão,
foi julgado por ele que a azémola ficasse em poder do pobre tanto tempo até que
lhe nascesse o rabo, e se servisse dela, e se o dono apelasse disso pagasse
cinquenta cruzados. Isto concluído, os filhos do velho que estava morto,
alcançaram as vozes pedindo justiça.
— Este matou; o matador morra por isso que assim é justo.
O regedor quis saber o caso miudamente, e ouviu ao pobre como e porque se
lançara do muro abaixo. O que tudo visto, mandou que aquele homem acusado
fosse assentado na cadeira em que estava o velho quando morreu, e o acusador se
subisse ao muro e se lançasse dele abaixo como o outro fez e assim caísse sobre
ele e o matasse, que desta maneira o matador pagaria como pecou; e se não
quisessem aceitar isto, que pagassem ao pobre pela afronta em que o puseram
cinquenta cruzados.
Os filhos do velho, visto que podia ser deitando-se do muro errar o golpe e não
lhe fazer dano, e o que se lançasse corria muito risco de perigar, davam brados, e
foram logo reteúdos e houveram por bem de pagar os cinquenta cruzados, antes
que aventurar a vida. E assim o homem acusado ficou livre e com muito
dinheiro com que se tornou para Lisboa na azémola, que lhe julgaram.
(Trancoso, Contos e Histórias, parte I, conto XV.)
NOTA: Há um largo estudo comparativo sobre este conto na Revista de
Etnologia e Glotologia, onde se compara a versão de Timoneda, no Patrañuelo, e as
russas, tibetanas, indianas e alemãs, coligidas por Benfey, as de Sercambi e de
Busoto, comparadas por Reinhold Köhler.
Na Revista de Etnologia, pp. 111 a 137, faz-se a transcrição das versões deste conto
do Patrañuelo de Timoneda e da africana de Mornand O Cadi d’Emessa; e
apontam-se as versões russa, tibetana, indiana, alemã, italiana e inglesa, de que
deu notícia. Benfey na Introdução à tradução do Pantchatantra, em que
aparecem os mesmos episódios com que têm sido bordados os contos primitivos,
sem seguirem a mesma ordem, que ficava ao capricho da fantasia do narrador.
Esses episódios são: «Animal roubado», «Criança morta», «Velha morta»,
«Penhor da carne», «Bolsa achada», «Machado ao rio», «Olho arrancado»,
«Casas», «Perguntas», «Encontros». Destas laboriosas comparações, conclui-se
que o conto não deriva de um fundo mítico, mas pertence ao ciclo dos Juízos
salomónicos e devem a sua vulgarização à propaganda búdica na intenção
casuística teológica, segundo Benfey, imitada pelos pregadores católicos. Muitos
episódios que se acumulam neste conto tornaram-se contos independentes,
reduzindo-se a crítica a determinar-lhe o tema fundamental. (Rev. de Etnologia,
pp. 108 a 134.)
DOM SIMÃO
NOTA: Vid. a versão popular com a nota respetiva, vol. 1. pág. 275 (Frei João
Sem Cuidados). Aparece nas novelas de Franco Sacchetti, nov. IV. No Almanaque
de Lembranças para 1861, p. 322.
OS TRÊS CONSELHOS
Uma nobre dona deu a um mancebo, que ia para as Índias de Castela, uma
beatilha, muito fina, que lha levasse de encomenda, dizendo, que lhe rogava que
a vendesse pelo mais que pudesse, e partiriam ambos o dinheiro. E o mancebo,
não por cobiça do ganho, mas por fazer bem à viúva, que tinha uma filha
virtuosa que manter, a guardou e levou a recado. Perderam os portugueses toda
a mercadoria que levavam, e de nojo morreram quase todos antes de vinte dias;
porém como não perdiam a roupa do seu corpo, houve este mancebo o caixão da
roupa de linho, donde metera a beatilha, e como se viu solto determinou por
misericórdia pedir a fazenda que perdera, e para se lhe fazer nisto favor teve
maneira como mandou aquela beatilha rica de presente à mulher do Justiça
Maior daquela terra. E ela tanto que a viu a aceitou, e desde logo trabalhou o
marido tudo o que pôde para que desse a fazenda àquele homem. E assim lhe
deram cinco vezes mais de que lhe tomaram, e vendeu também o que lhe ficou
na roupa de linho, que fez grande fazenda, e tudo feito em pedaços de ouro, veio
a Portugal riquíssimo.
Estando este mancebo já repousado em sua casa, disse-lhe um dia a sua própria
mãe:
— Filho, se fizeste algum dinheiro da beatilha da vizinha, rogo-vos que o
mandeis a sua filha, que ficou órfã.
E ele vendo isto, e tendo diante dos olhos que tudo o que trouxe lhe veio de
presentar a beatilha como presentou, tomou cinquenta cruzados de ouro e deu-
os à mãe:
— Dizei-lhe que tome isto por então.
Assim lhos mandou, e isto fez por quatro vezes; e a mãe vendo que ele tinha já
dado tanto dinheiro, e que lhe parecia não ter satisfeito, lhe disse:
— Filho, se vós tanto lhe deveis, que com o que lhe tendes dado não vos parece
que pagais, fazei o que eu vos disser, que eu vos rogo que caseis com ela, e que
verdadeiramente por sua pessoa o merece.
O mancebo ouvindo isto de sua mãe, aceitou o casamento, que se logo tratou.
Foram desposados e a seu tempo recebidos, porém como diz o rifão, que a órfã
não goza nem o dia da sua boda, assim aconteceu a esta, que o dia que os
receberam, azevieiros difamadores vinham da igreja detrás deles murmurando
do noivo porque se casara com aquela que sua mãe a vendera primeiro. E isto
diziam tão desavergonhadamente, que deram ocasião a que o noivo o ouvisse.
Porém, des então lhe ficou um rancor no coração, e tão grande menencoria
consigo, que se não podia consolar, tendo-a também contra a mãe. E assim
despedida a gente que os acompanhou até casa, ele disse que ia por certa cousa
que lhe faltava por trazer, e também se saiu de casa sem nunca mais tomar a ela.
Ficou a este tempo a noiva mais triste que a noite, sem ter consolação de
ninguém nem saber a causa daquela mudança, que não sabia que conselho
tomar, e certo se deixara morrer de nojo, se não fora a boa sogra que tinha, que
esta a acompanhou todo o tempo que lhe durou seu trabalho.
Porém como o mancebo tinha para si que era enganado, apartado daquela
vizinhança, em outra rua tomou casa, em que a pôs de mercadorias que ele sabia
tratar, com um sobrado em cima em que viveu mais de dois anos. Neste tempo
indo a mãe a ver o filho, algumas vezes lhe achou mulheres em casa. E tanto que
a mãe sentiu isto, imaginou o que havia de fazer, e foi-se a casa e disse a sua
nora:
— Filha, sempre tomaste meu conselho, e espero também tomareis agora este
que vos der: e é que deixeis estes trajes tão honestos e tristes e vos façais mui
fermosa e leda com outro traje que pareça de mulher que vai em corpo fora.
Fiai-vos de que vos acompanharei até vos mostrar a lógia de vosso marido;
entrai nela, e fingi comprar para um corpinho.
Daqui lhe aconselhou o que havia de fazer e se foi com ela até lhe mostrar a
porta da lógia, e a velha se tornou para casa. A moça viu seu marido,
envergonhada, pelo transe em que estava lhe veio outra cor ao rosto, que a fez
mais fermosa, ainda que ela o era assaz, e esteve um pouco suspensa. O marido
que a viu, não suspeitando nem por imaginação que fosse, lhe perguntou o que
queria, e a fez entrar, e deu ordem como despedir os que ali estavam, e ficando
com ela só começou a falar-lhe de amores, a que ela envergonhada não sabia que
responder. Ele a importunou, e ela aceitou ficar ali aquela noite, em que ele
conheceu claro que ela era muito fermosa. E chegada a manhã, ela lhe pareceu
que já não era razão nem tempo de usar tanta vergonha:
— Muito tempo há que vos tenho por meu senhor, e se até agora tardei e estive
sem vo-lo notificar foi por vos dar mostra de minha pessoa, que foi tão mofina,
que sem me ver nem haver porquê, me enjeitastes. E se todavia agora me
enjeitais mandai chamar vossa mãe que me leve, que ela me trouxe.
Quando ele entendeu isto e viu ser aquela sua mulher, não sabia determinar o
que faria, que por aquela noite que a teve, se ela não fora sua mulher, e ele fora
solteiro, lhe pareceu que lhe merecia casar-se com ela. E estando nestas
considerações, começaram a bater-lhe rijo à porta, e ele chegou a uma fresta, e
conhecendo que quem batia era sua mãe, lhe foi abrir, a qual, em entrando pela
casa disse:
— Filho, que vos parece da donzela que vos acompanhou esta noite? Credes que
é a que eu disse, já que sabeis que é vossa mulher?
Ele vendo a fermosura da mulher e sua grande humildade, e conhecendo que o
que ouvira foi engano, pesou-lhe do tempo em que deixou de estar com sua
nobre e virtuosa mulher, e com bom coração na vontade pedia perdão do agravo
que até então lhe tinha feito, e se começaram a abraçar como se então se viram a
primeira vez, e ficaram marido e mulher muito contentes, e tiveram a velha mãe
dele por mãe de ambos, que por esta se pode bem dizer:
A sogra boa
Da nora é coroa.
NOTA: Acha-se no Conde de Lucanor, de D. João Manuel, n.º XVII (ed. 1642,
fl. 81 v). Indubitavelmente esta redação do século XIV tem uma fonte árabe. Na
pág. 90 deixámos outra redação portuguesa do ms. do século XLV (O Que Deus
Faz É Por Melhor). Orto do Esposo.
A RAINHA VIRTUOSA E AS DUAS
IRMÃS
Um rei mancebo, que não tinha conversação de mulher alguma, requerido dos
seus que se casasse, com desejo de achar na sua própria terra mulher para isso,
refusava o casamento de muitas princesas forasteiras que lhe traziam. E queria
que a mulher fosse de virtuosos costumes, claro sangue e boa vida, sem respeito
a fazenda, pelo que por dote queria que tivesse estas três cousas. E andando com
esta imaginação passeando um dia por uma rua, saíram certas mulheres e moças
todas fermosas a uma janela, e quando el-rei passou ficavam falando umas com
outras, que el-rei as ouviu, e não entendeu o que diziam, e por saber o que era
chamou a si fidalgos que estiveram mais perto. Foi-lhe respondido:
— Senhor, uma disse que se ela casasse com Vossa Alteza, se estrevia a fazer de
suas mãos lavores de ouro e seda, tão ricos e tanto em vosso serviço, que se se
avaliassem valessem tanto dinheiro que bastasse para gasto da mesa. E a outra
respondeu que aquilo era muito, mas que se ela tivesse tal dita que casasse com
ele, lhe faria camisas e outras cousas de que tivesse necessidade. E a outra
respondeu: Ambas não sabeis o que dizeis, nem vale todo vosso lavor tão
estimado tanto que basta para vossa mantença; eu vos digo o que farei: Se
chegasse a estado de casar eu com el-rei, de seu ajuntamento lhe pariria dois
filhos fermosos como o ouro e uma filha mais fermosa que a prata, o qual é
prometer que as mulheres podem cumprir.
El-rei folgou de o ouvir, e notando as considerações em que elas estavam propôs
de casar com uma delas. Visto isto mandou chamar mulheres de título, donas e
senhoras, a quem deu conta, diante das quais quis falar com estas donzelas para
se determinar qual tomaria por mulher. E logo fez vir ante si a mais velha, que
vista foi julgada por muito fermosa; el-rei lhe perguntou:
— O que prometestes fazer estando à vossa janela se eu casasse convosco,
estrevei-vos a cumpri-lo?
Ela se envergonhou, e mudada a cor disse:
— Farei em seu serviço tudo o que minhas forças bastarão.
El-rei a fez recolher e vir a segunda; porém nas perguntas aconteceu assim
como à primeira, pelo que el-rei a fez recolher e vir a menor, que claramente
mostrou ser ela a mais fermosa de todas. El-rei lhe perguntou se se estrevia a
cumprir o que prometera, e ela muito envergonhada respondeu:
— Senhor, sim; com as condições que então disse.
Coube isto em tanta graça a el-rei, que ele a recebeu por mulher e se fizeram
grandes festas que duraram muito. E el-rei trouxe para casa da rainha as duas
irmãs que a acompanhassem, e elas foram servidas e tratadas como irmãs da
rainha sua mulher. El-rei fez vida mui amorosa com sua mulher, porém durou
pouco tempo, porque com inveja que tinham do estado da rainha ambas de um
conselho lhe buscavam todo o dano e como a poder empecer e tirar da alteza e
honra em que estava. De sua indústria, com falsas testemunhas naquele parto e
em outro dois diante, publicaram com falsidade que a rainha parira monstros
peçonhentos e não criatura, e os fizeram ventes aos que tinham razão de os ver,
de que o reino todo se alterou, e el-rei aborreceu tanto a sua mulher, que
lançando-a fora de casa não lhe permitiu em todo o reino lugar nenhum em que
tivesse repouso, e as irmãs lhe buscavam tanto mal, que o faziam a quem a
recolhia; de modo que a rainha veio a ser a mais pobre e abatida mulher de
serviço que em seu tempo houve na Terra, porém permanecendo em toda
limpeza se fingiu forasteira e por mulher de serviço a recolheram em um
mosteiro de freiras. As irmãs procuravam ilicitamente de ver se podiam agradar
a el-rei, o qual dissimulando e apartando-se da conversação delas fazia que as
não entendia, e quando se achava só dizia mal da fortuna que lhe apartava da sua
presença a coisa do mundo que ele mais amava, e para recreação do desgosto que
trazia consigo não tinha outra consolação senão ir muitas vezes em um barco
pelo mar ao longo da terra por esparecer. Algumas vezes pescava e outras ia à
caça ao longo de algumas ribeiras. E costumando isto, aconteceu que um dia
indo ao longo de uma ribeira acima, viu à borda de água uma casa feita de novo.
E chegando perto, desejando saber cuja era, viu a uma janela um menino que
seria de sete anos, de muito fermoso rosto, pobremente vestido, perguntou-lhe:
— Filho, quem mora nesta casa?
E o menino como muito criança, disse:
— Senhor, mora meu pai, que não está aqui; se Vossa Mercê quer que chame
minha mãe, virá logo.
E neste tempo outro menino de menos idade dizia dentro:
— Senhora mãe, senhora mãe! aqui está um fidalgo à nossa porta.
E a esta conjunção saiu uma mulher à porta da rua com uma menina pela mão,
pequenina, e disse:
— Senhor, que manda Vossa Mercê?
El-rei, que tinha pregados os olhos e o coração nos meninos que via, tendo no
sentido que os filhos da rainha sua mulher já houveram de ser daquele tamanho,
lhe disse:
— Vejo estas casas novas ao longo desta ribeira, e estes meninos tão fermosos,
folgaria de saber cujo isto é?
Ela respondeu:
— Senhor, as casas e os meninos são meus e de meu marido.
— Dona, as casas creio que serão; mas os meninos, sois já de dias, que parece não
deveis de ter tão pequenos filhos. Dona honrada, sou el-rei, e quero saber cujas
são estas casas e estes meninos.
Ela se humilhou muito e com os geolhos no chão, que ao que perguntava
soubesse: — que as casas eram suas, mas que os meninos ela não sabia cujos
filhos eram mais que trazer-lhos seu marido, que aquela manhã fora ao mar e
viria à noite. Então disse el-rei:
— Pois dizei-lhe que amanhã ao jantar vá ter comigo ao paço, e leve estas
crianças para me dizer o que sabe delas, que o hei de esperar sobre mesa.
E ela assim lho prometeu. Ido el-rei, como se meteu ao longo da ribeira, já ia
acompanhado de muitos dos seus e iam buscando se descobririam alguma caça;
Sua Alteza viu umas lapas que parecia que outro tempo foram pedreira e de
dentro saiu uma mulher, que trazia os cabelos muito grandes, soltos e pretos, e
os vestidos muito rotos. E assim como ela saiu viu a el-rei e com muita diligência
se tornou a meter para dentro para se esconder; mas como foi vista, el-rei a
seguiu e asinha a alcançou:
— Quem sois? E porque estais neste ermo?
Ela que conheceu mui bem que era el-rei o que lhe falava, lhe disse:
— Para que quer saber Vossa Alteza a vida de uma mulher desventurada, que
em penitência de seus pecados a faz desta maneira, que agora vê?
El-rei, que viu que era conhecido dela, e que por muito que lhe rogou não quis
dizer quem era, desejoso de o saber a fez tomar por dois homens, lhe mandou
dar uma capa de água sua, e um sombreiro, que se cobrisse e a pusessem em
ancas de uma mula, e que um escudeiro com muito resguardo a levasse ao paço,
e sem que fosse vista de outra pessoa alguma a tivesse até que ele chegasse, o
qual se fez assim. Ao outro dia, chegadas as horas de recolher à mesa, trouxeram
aquela mulher por mandado de el-rei, que de novo lhe perguntou quem era e
porque andava daquela sorte; e ela cheia de lágrimas e soluços disse:
— Estando eu nesta casa em muito viça, favorecida da rainha e de suas irmãs,
elas me apartaram um dia, e me disseram que Sua Alteza estava de parto,
quando a primeira vez pariu, e que elas tinham determinado lança um grande
sapo-cão nas páreas quando deliberasse, para dizer que aquilo pariria a rainha, e
que eu com diligência tomasse a criança, que elas ma dariam envolta em panos,
que fosse lançar no mar, e que isto faziam, porque não acertasse de parir filhos
como o prometera. Tomei a criança acabada de nascer, que era um filho, e logo
em minha presença tiraram um grande sapo que tinham em uma panela, e o
embrulharam com as páreas; e isto feito gritaram fingindo que isto era medo do
sapo e lançaram a fugir juntamente com elas a parteira. E com esta revolta tive
muito tempo para me sair do paço levando a criança comigo, e quando me vi na
rua encaminhei para o mar, e fui ter junto àquele lugar donde Vossa Alteza me
achou; desembrulhei a criança, vi que era varão, e nisto vi vir um velho pescador:
deixei a criança embrulhada nos fatos como vinha e lancei a correr fugindo.
Ele como me viu deixar aquele vulto, foi ver o que era, e como lho vi erguer do
chão e levá-lo para sua casa, tornei-me ao paço com o rosto ledo, e disse às
senhoras que o lançara ao mar. Foram contentes do que eu disse que fizera, e
desta maneira aconteceu outra vez no segundo parto, quando disseram que a
rainha parira uma cabra; fugindo todas, fugi eu também e levei o infante ao
próprio lugar donde levara o outro. Antes de outro ano, ou nele, a rainha veio a
parir outra vez; chegada a hora me deram outra criança e fingiram como de ante
haver a rainha parido uma toupeira, que tinham para isto prestes; e no espanto e
alvoroço disto, quando fugiram fugi eu e fui ter à borda de água no lugar donde
deixei seus irmãos, e vi que levava uma menina. Esmoreci, e quanto acordei
achei o pescador comigo, e me dizia:
— Descoberta há de ser esta cousa a el-rei.
E porque me temi que buscasse no paço não quis tornar a ele, e meti-me
naquelas lapas, em que haverá bem quatro anos que estou.
El-rei acabando de ouvir, ficou espantado das treições que as irmãs fizeram
contra sua irmã, as quais ambas foram chamadas e viram a donzela e entenderam
tudo o que ela tinha dito, e como tudo era verdade não tiveram boca com que o
negar e como que queriam falar uma com a outra se chegaram a uma janela
daquela sala que ia ter ao mar, e abraçando-se ambas se lançaram em baixo com
tanta presteza que se lhe não pôde estorvar. Ainda a gente do paço não estava de
todo sossegada deste alvoroço quando entrou pela porta o velho pescador e sua
mulher; traziam no colo dois infantes e a infanta. E chegando ante el-rei o velho
se adiantou de sua companhia, e disse alto que todos ouviram:
— Disseram que ontem passara Vossa Alteza pela porta de casa em que vivo, e
vendo estes meninos perguntou cujos filhos eram, e porque minha mulher lhe
não deu razão suficiente, Vossa Alteza mandou que viesse eu aqui e os
trouxesse, que queria saber cujos filhos eram tão fermosos meninos; pelo que
vim e os trago comigo.
Ouvindo isto, e visto o que a donzela dissera, todos os circunstantes a uma voz
diziam que todos aqueles três eram filhos de el-rei; e as donas todas da casa
viram e conheceram todo o fato em que os infantes foram envoltos. Logo el-rei
mandou por todo o reino em busca da sua rainha, e que se publicassem as novas
do achamento dos três filhos infantes, e da treição das irmãs da rainha e sua
morte. E foi ter esta nova ao mosteiro onde a rainha estava; todos viam nela mais
alegria, que em nenhuma outra pessoa, e foi tanta que suspeitaram o que era, e a
rainha vendo que já não era tempo de se encobrir, lhes manifestou e declarou a
verdade.
El-rei mandou chamar toda a fidalguia da corte e muitos senhores, que
trouxessem suas mulheres, e com todos eles e elas em grande festa levou a rainha
dali para o paço com tanto alvoroço de alegria como se então se casaram de novo.
Acabado de repousar a sesta um rei viúvo, que já saía fora da câmara para a
guarda-roupa, muitos fidalgos mancebos lhe apresentaram um, que traziam
ante si preso, e postos ante ele lhe disseram:
— Senhor, estando agora na sala grande jogando a pela o príncipe com este
fidalgo e outros, sobre uma chaça vieram a ter diferença no jogo, e tanta que o
príncipe menencorio contra ele o afrontou e lhe disse palavras muito feias e mal
ditas, que este fidalgo alevantou a mão e lhe deu tão grande punhada no rosto,
que lhe ensanguentou os narizes e a boca, cousa que a todos nos pareceu tão mal
que o queríamos matar por isso, e o fizéramos se não fora pelo duque seu avô,
que com grandes brados se pôs no meio, dizendo:
— Que pois Sua Alteza estava na terra não quiséssemos nós tirar-lhe seu
mando.
El-rei que o ouviu entendeu bem o caso, e disse:
— E o príncipe a esse tempo não tinha consigo nenhumas armas? Ou como lhe
não tirou a vida?
— Armas, tinha; que traz adaga na cinta; porém tanto que se viu ensanguentado
se pôs a um canto da sala a chorar, coisa que de todos lhe foi muito estranhada.
El-rei deixando passar um pequeno espaço em o qual deu lugar a apartar de si a
grande ira que com a súpita menencoria tinha concebido contra o fidalgo, e
sossegado no espírito, disse:
— Afirmo-vos, que em verdade, que mais quisera que me dissésseis que o
príncipe era morto ainda que não tenho outro filho, que saber que sofreu essa
injúria tamanha sem se vingar dela. Quero, que seja ouvido este fidalgo ante os
meus desembargadores, guardando-lhe também a ele seu direito e justiça, que
creio não terá nenhuma desculpa que o escuse de morte, havendo feito tão
grande delito como fez.
E ainda que o mancebo a este tempo quisera responder, el-rei o não quis ouvir,
mas mandou-o ter preso e arrecadado com grande guarda; porém que se
quisesse ir a alguma parte da cidade que o levassem com muito resguardo e
segurança, e que esta prisão fosse por quinze dias, dentro dos quais se provesse
do que lhe cumprisse, e no cabo se apresentasse ante ele e os seus
desembargadores. Muitos fidalgos que se acharam presentes acompanharam a
este mancebo e lhe aconselhavam que se fosse. Porque o podia fazer não
somente da cidade mas do reino até à raia na fronteira dos imigos, onde
trabalhando em armas na guerra podia fazer cousa com que el-rei lhe perdoasse
o mal que fizera, o que ele não aceitou nem quis nunca quebrar a prisão que lhe
deram. E assim se lhe passaram os catorze dias do prazo em os quais, ainda que
buscou conselho de letrados e fidalgos para sua salvação, não achou quem lhe
aconselhasse cousa que o satisfizesse, nem desculpa do delito, porque a todos
parecia caso de morte. E mui inteiro nesta tenção saía alguns dias de sua pousada
acompanhado de seus guardadores por se desagastar, e para ver se achava quem
lhe abrisse algum caminho como parecesse mais despejado diante de el-rei.
Recolhendo-se quase noite encontrou à porta de um mosteiro uma mulher
muito velha, que ao parecer seria de noventa anos, muito feia, seca e mal-
arroupada, e ela que o estava esperando, chegou-se a ele e disse-lhe:
— Senhor, eu vos faço saber que sei a pressa em que andais e o remédio que
tendes para sobrar vossa vida do caso que vos aconteceu; para o qual não achareis
no mundo quem vos aconselhe o que vos cumpre senão eu, e seguindo a ordem
do meu conselho sereis livre desta afronta e ficareis o mais honrado de vossa
geração. Porém, antes de tudo, para que eu tenha razão de vos dar a indústria e
modo que necessário é neste caso, convém que façais por mim o que vos eu
pedir.
O fidalgo tanto que a ouviu e entendeu o que lhe dizia, foi em extremo ledo,
prometendo-lhe de fazer por ela tudo o que lhe mandasse; porém ela disse que
havia de ser logo, e que o que lhe pedia era que a recebesse por sua mulher, do
qual ele se maravilhou muito e respondeu:
— Deixando à parte a qualidade das pessoas, em que não falo, vossa idade não
conforma com a minha, que eu ainda não fiz vinte anos e vós pareceis de cento
ou quase, pelo qual não posso casar convosco.
Ela se mostrou muito agastada e respondeu:
— Embora; e vós enjeitais-me por velha, pois eu vos certifico que me haveis de
rogar e receber, senão que ireis a casar com a picota, que é mais antiga deixando-
lhe lá a cabeça por arras.
E assim se apartou dele, indo muito direita pelas ruas. O fidalgo, que com as
suas palavras estava já esforçado e com esperança de vida, vendo-a ir, e temendo
se fosse ficaria sem remédio, foi-se após ela com tenção de lhe prometer o que
pedia, e tanto a seguiu, que a alcançou e lhe disse:
— Senhora, perdoai-me não aceitar antes de agora o que me pedistes, que eu
conheço que errei e quero fazer o que me mandardes.
E assim se foi ela a sua pousada e ali em mãos do cura prometeu e jurou de a
receber por sua mulher; porque sem isto não lhe quis ela dizer cousa alguma. E
tanto que perante testemunhas foram jurados, ela lhe aconselhou o que devia de
fazer aquela noite e o que havia de dizer ao outro dia apresentando-se diante de
el-rei. Vindo a manhã, quando foram horas e soube que estava el-rei com os
desembargadores na casa de despacho se foi lá, e lhe fez saber que estava ali, que
se vinha livrar. El-rei mandou que entrasse, maravilhando-se todos de sua
ousadia; e ele entrando disse o seguinte:
— Mui alto e poderoso rei e senhor nosso, ainda que Vossa Alteza está
menencorio, a seu parecer com razão, se me ouvir diante destes fidalgos e
letrados com ânimo desapaixonado, e de sua pessoa que será a principal
testemunha do que disser, ficarei desculpado e com muita honra; para o qual
somente lhe peço por mercê me queira ouvir, até que acabe de todo o que quero
dizer. Havendo quatro anos, pouco mais, que Vossa Alteza era casado com a
rainha, vendo que ela não paria, desejoso de ter filhos era afeiçoado a mulheres, e
a ela não mostrava tanto amor como no princípio. Por lhe ganhar a vontade,
aconselhada de outras mulheres se fingiu prenhe, e assim haveria príncipe no
reino e Vossa Alteza lhe teria mais amor. O que tudo se ordenou e fez como ela
pedia, e as parteiras lhe trouxeram um filho de uma pobre mulher, que morava
fora dos muros da cidade, cujo marido era um cavouqueiro. Isto tudo se fez com
tanto segredo, que nunca até hoje foi descoberto. Com esta imaginação a rainha
adoeceu de enfermidade de que morreu, dando primeiro conta a seu confessor
do que fizera. Verificado não ser príncipe o que cuidavam que o era, ficará o
meu caso menos grave e eu não merecendo tanta pena por sua parte. E se Vossa
Alteza não se esfada, ainda lhe direi adiante outras novidades maiores do tempo
e de mim, que fazem ao caso e folgue de as saber.
El-rei lhe disse:
— Por certo, que o que até aqui me dissestes foi tanto e estou disso tão
espantado e triste, que não posso imaginar que possais dizer adiante cousa
maior, nem que eu receba alegria; porém, por saber que é, e por vos ouvir como
tenho prometido, dizei.
— Saberá Vossa Alteza, que havendo quase dous meses que a rainha se fazia
prenhe, por encobrir melhor o engano não consentia que houvesse mais
ajuntamento, e per a não anojar, se foi para fora desta corte Vossa Alteza e assim
andando pelas terras do duque meu avô mandou rodear a cerca por ver se havia
entrada no pomar; e achando-lhe uma pequena porta a fez lançar fora do couce,
e aberta viu que andavam dentro mulheres, e uma donzela muito fermosa, que
naquele tempo seria de catorze anos, e peitando com joias e dinheiro aquelas
que a deveram guardar, a meteu na casa do pomareiro, e ali houve ajuntamento e
lhe deu estes três anéis que Vossa Alteza levava nos dedos, e esta cadeia com esta
cruz e lhe descobriu que ele era rei, ainda que ela não lhe quis dizer quem era,
porque ficou tão anojada de seu corrompimento, recolheu-se em casa sem
tornar mais em sua vida ao pomar. Seu pai, que é o duque meu avô, tomou isto
por mal, porque minha mãe se determinou de não casar, e como o duque não
tem outro filho nem filha senão minha mãe, e sabia ser eu seu neto, criou-me
com mimo, pois sou com verdade filho de Vossa Alteza, e veja se conhece estes
anéis, cadeia e cruz. E assim sendo isto verdade, como é, já vê que este que até
agora se teve por príncipe o não é, que se o fora não couberam em sua boca as
palavras torpes e vis que me disse.
E com isto se pôs em geolhos na alcatifa que estava aos pés de el-rei; admirados
ficaram todos os desembargadores e fidalgos que estavam presentes, em especial
Sua Alteza, que então se lhe representou diante dos olhos aquela donzela
fermosa e como a houvera naquele pomar, e as muitas vezes que desejou saber
quem era; lembrou-se que ele dera aquelas joias, conheceu-as e considerando o
mais que fica dito, teve para si que aquele que tinha diante dos olhos era seu
verdadeiro filho, e quanto ao mais do que estava em posse de príncipe fizeram-
se as diligências necessárias, e de um em outro se soube a verdade, e o mancebo
foi julgado por sem culpa do passado, e do presente lhe fizeram grandes honras,
jurando-o por príncipe do reino para o haver depois da morte de seu pai.
Mandou el-rei o mancebo que até então tivera o principado e sua mãe com todas
as pessoas que foram ao conselho e consentimento de o trazer por filho de el-rei,
se fossem da terra e os mandou levar a uma ilha donde nunca mais nenhum
tornou à corte.
Estando sobre mesa com grande contentamento, el-rei quis saber como e por
quem fora descoberto a seu filho, que o era e não o outro, rogando ao príncipe
lho contasse. Contou como à porta de sua casa achara aquela velha que lhe
descobriu o caso miudamente, e que ela lhe ensinou que fosse pedir aquelas joias
a sua mãe, e também tudo o mais que até então tinha dito e feito, e lhe descobriu
como para isso ele lhe jurara casar com ela, porém que o não faria pela
disformidade das idades, baixeza e fealdade dela, e não tinha tenção de casar
senão quando e com quem Sua Alteza ordenasse. El-rei lhe disse:
— Já que lho jurastes de a receber e ela cumpriu o que vos prometeu, seja quem
for, cumpri vossa palavra.
Fez el-rei que a velha viesse ao paço, e foi recebida por mulher do príncipe, o
qual ficou disto tão triste como já fora ledo com o sossego de seu conselho. O
príncipe e ela foram levados a uma câmara rica donde tinham seu leito, em que o
príncipe se deitou com mostras de tanto pesar por se ver casado contra seu gosto,
que ninguém lhe podia ver o rosto, nem ele quis ver o da princesa, mas deitado
na cama virando-se para a dianteira e ela da outra parte voltada para a parede
estiveram sem se verem nem falarem um ao outro esta noite e outras muitas.
Uma noite, estando o príncipe e a princesa na cama, segundo seu costume, ouviu
um rumor na câmara, e era tal, que parecendo-lho fosse alguma treição se
ergueu do leito, e com a espada na mão foi para aquela parte adonde o rumor
parecia, e ali nem em toda a casa não havia cousa que se pudesse temer, nem
mostras que dessem suspeita do que fora, que ele pôde ver tudo bem porque
tinha um brandão aceso que alumiava a casa toda. Vista a quietação deixou a
espada e tornou-se ao leito, e como a este tornar levasse o rosto para a cama
donde a princesa jazia, ainda que estava virada para a parede viu-lhe a cabeça em
que tinha uma coifa feita de ouro tirado com algumas pérolas riquíssimas que
davam de si muito lustro e faziam que os fermosos cabelos, que estavam debaixo
se diferençassem na cor do ouro. Ele vendo o resplendor da coifa, sem saber
determinar consigo o que seria aquilo, considerando que a velha tinha os cabelos
muito alvos, desejou afirmar-se que era o que via, chegou mais perto; viu-lhe o
rosto muito alvo e fermoso. Ficou mais maravilhado do que se pode imaginar,
porque viu que era a mais fermosa e bela criatura que seus olhos viram. Não
podia acabar consigo de crer que aquela fosse a velha, que ele cuidava tinha
consigo, porque lhe parecia, como na verdade era, moça que não passava de
catorze anos, alva e loura.
Vista pelo príncipe a fermosa dama que tinha consigo, pediu-lhe se voltasse pera
ele; por que se não desconcertasse no termo, inda que era sua mulher e ele seu
marido, conhecendo que era acabado o tempo do seu encantamento, lhe disse:
— Senhor, quem me desconhece de dia na sua sala por velha, não é razão que
me venere e conheça em outra parte por moça e fermosa; pelo que Vossa Alteza
não haverá de mim mais do que até agora houve sem se determinar de duas
cousas qual quer: Se me quer esta que ora me vê de noite consigo na cama, e que
me há de sofrer de dia velha e feia na sala; ou pelo contrário, ter-me na sala de
dia esta moça e fermosa, e na cama de noite velha e feia. E como se determinar
no caso assim lhe responderei e direi o que há de fazer ao diante.
O príncipe, que já a este tempo estava tão namorado dela, que por nenhum
preço a queria perder, nem aventurar-se a isso, lhe respondeu:
— Seja eu tão ditoso que vos não perca, e no mais vos quero como vós quiserdes
que vos queira, porque em vossa vontade deixo a minha, e essa quero seguir toda
a minha vida.
A este tempo ficou a princesa muito leda, e logo disse:
— Pois senhor, de hoje para sempre serei esta que aqui me vedes e não parecia,
porque já é acabado meu encantamento. Parece cousa tão contra razão ver-me
ontem velha e feia e hoje moça e fermosa; é necessário dizer-vos quem sou. El-
rei de Granada é meu pai; sendo eu de sete meses, estando no berço a desoras a
ama que me criava viu que em um instante se me mudou a cor e se me arrugou a
pele de maneira que me tornei logo velha muito feia; minha ama deu logo
grandes brados, aos quais acudiram el-rei e a rainha, e ainda que a ama lhes disse
o que vira, disseram eles que não era possível senão que alguma cousa má lhe
levara a filha, e logo lançaram fora de casa a ama, queixosos dela, que saiu
comigo do paço, e buscou quanto a ela foi possível, quem lhe dissesse que cousa
fora aquela e o remédio que tinha, e achou um velho que lhe disse, que antes de
quinze anos de minha idade seria livre e com muito contentamento, porque
aquilo fora feito por ciúmes de uma mulher com quem meu pai antes de casar
tivera conversação; e aconselhou a minha ama me trouxesse a esta cidade,
porque aqui haveria fim meu trabalho e eu ficaria livre.
Todos folgaram muito de saber que era de tão alto sangue; despediram logo
mensageiros que fizeram saber aos reis de Granada, os quais levaram tanto
gosto disso, que não se puderam ter sem virem ali donde viram a filha e genro e
aos reis seus sogros.
(Trancoso, Contos e Histórias, p. III, conto I.)
Um rei havia ficado por falecimento de sua mulher com uma filha, a qual era
herdeira e sucessora do reino. Este, para tirar de si paixão e merenconia, que lhe
sobrevinha por causa de sua tristeza, se saía muitas vezes por tempo de verão a
um pátio que tinha, muito fresco, ornado de muitas flores cheirosas, que ali
mandara criar por seu refrigério. Estando neste pátio que digo, vinha por
algumas vezes com ele por seu mandado o seu barbeiro para lhe fazer a barba, e
como os barbeiros têm por seu natural serem práticos e chocarreiros, el-rei o
mandava chamar, mais por gostar de sua boa conversação, que por necessidade
que tinha do seu ofício. Estando um dia com el-rei fazendo-lhe a barba como
costumava, veio el-rei a gostar tanto de sua boa conversação, que lhe disse que
lhe pedisse mercês, que o barbeiro desprezou sua promessa, dando-lhe a
entender que não havia mister nada. Mas vindo outras vezes ao próprio ofício
como costumava, lhe veio el-rei a cobrar tanta afeição, que lhe importunava, que
lhe pedisse mercês, que por grandes que fossem lhas não negaria. Ele, tomando
ousadia e atrevimento às promessas que el-rei lhe fazia, lhe disse:
— Saberá Vossa Alteza que não há aí na vida cousa que hoje aceite que me possa
fazer contente e que meu desejo satisfaça, senão é uma, a qual é dar-me em
casamento a princesa sua filha.
El-rei, sobressaltado de tão estranha novidade, dissimulou com ele,
interrompendo a prática noutra matéria, cuidando que aquilo era dito a modo de
graça, por dar passatempo a el-rei com suas chocarrices e zombarias: mas ele era
tão em seu inteiro juízo, que vindo outra vez barbear a el-rei, e tornando-lhe a
pedir el-rei que lhe pedisse mercê, tornou a repetir sua primeira petição
dizendo: «Que não tomaria outra cousa senão a princesa sua filha por mulher.»
El-rei parecendo-lhe isto já mais que zombaria, determinou de o despedir com
brevidade, e ido, mandou chamar um homem letrado, de grande entendimento
em diversas ciências, e, dando-lhe conta como desejando por muitas vezes de
fazer algumas mercês àquele homem, sempre lhe saíra com desatinos tamanhos,
a que não podia nem sabia dar entendimento.
O letrado esteve um pouco cuidando consigo em seu entendimento, e disse a el-
rei:
— Senhor, faça-me Vossa Alteza mercê de se pôr em outro lugar, fora desta
casa a barbear com esse barbeiro, e de lhe tornar a repetir que lhe peça mercês,
para ver se acerto em um segredo que tenho imaginado nesta casa.
El-rei fez assim, e pondo-se noutra casa o mandou chamar, e com dissimulação,
lhe disse:
— Mestre, desejo tanto de voz fazer mercês, e vejo que nunca me pedis nada;
folgara que me ocupásseis em alguma cousa, porque de verdade que vos tenho
tanta afeição, que não haverá cousa que me peçais que, ainda que seja uma
grande parte do meu reino, vos não conceda.
O barbeiro lhe respondeu:
— Certo, senhor, que Vossa Alteza me oferece há tempo mercês que não posso
deixar de não lançar mão delas, portanto se Vossa Alteza mas quer fazer, serão
para mim mui grandes, e é que me há de fazer mercê de me mandar dar dez
cruzados para pagar o aluguer de minha casa de que estou penhorado, e nisto a
receberei mui assinalada.
Se el-rei de primeiro se espantou de lhe pedir sua filha em casamento, mais se
espantou abatendo-se tanto que para lhe pedir dez cruzados lhe mostrava ficar
em tamanha obrigação. El-rei mandou dar os dez cruzados, e depois de ido fez
vir diante de si o letrado que lhe havia conselhado, e vindo diante dele lhe disse o
que passara com o barbeiro, que deitasse juízo em tamanha diferença.
O letrado respondeu:
— Vossa Alteza saberá que meu entendimento saiu certo, e para saber a prova
disto mande Vossa Alteza abrir a terra aonde esse homem punha os pés quando
estando barbeando, lhe pedia sua filha em casamento, que eu creio que nesse
lugar se achará um grande tesouro, e não pode ser menos senão que pisasse com
seus pés algum grande tesouro quem tinha fumos de pedir a princesa em
casamento.
Mandou el-rei abrir a terra onde isto passou e foi achado um grande haver, que
a el-rei foi de grande admiração; e para pagar ao letrado tão bom conselho como
tinha dado, em especial tirá-lo de uma dúvida tamanha, lhe concedeu uma boa
parte daquele haver, e outra parte mandou dar ao barbeiro com que se
autorizasse em estado.
Havia um mercador muito rico, e assim como cada dia se lhe iam acrescentando
suas riquezas, assim nele se lhe ia multiplicando tanta avareza, que em outra
cousa não trazia o sentido senão em ajuntar dinheiro. Este estando um dia
vendendo suas mercadorias, tomou quatrocentos cruzados em ouro, que havia
vendido, e deitou-os em uma bolsa, e despois de recolher seu fato se foi para sua
casa entesourar. Indo pelo caminho fazendo suas contas com a imaginação, lhe
acertou a cair a bolsa, e até que chegou a casa a não achou menos. Esteve para
perder o juízo juntamente com a bolsa. Com grande dor e paixão se foi ao
duque, que era senhor daquela cidade, e lhe pediu que mandasse Sua Excelência
em seu nome apregoar que achasse uma bolsa com quatrocentos cruzados em
ouro, que os trouxesse diante dele, que lhe daria quarenta cruzados de achado.
Foi dado o pregão pela cidade, e sendo ouvido de todos, chegou a ouvidos de
quem tinha achado a bolsa, que era uma mulher viúva, muito pobre e virtuosa. E
ouvindo dizer, que davam quarenta cruzados de achado foi mui leda,
entendendo que ficar com a bolsa seria infernar sua alma. Assim com esta
determinação se foi diante do duque e lhe pôs em sua mão a bolsa que havia
achado assim e da maneira que o mercador a havia perdido. Vendo o duque a
pobreza desta mulher, e que era digna de ser grandemente favorecida, logo
mandou chamar o mercador e lhe disse como a bolsa havia já aparecido, que não
faltava mais que cumprir sua promessa àquela mulher honrada que a havia
achado. Folgou em extremo o avarento mercador, porém achegou-lhe à alma o
ver que havia de dar os quarenta cruzados que tinha prometido de achado, e
assim imaginou logo naquele instante um ardil para os não dar, e foi que tomou
a bolsa e vazou o dinheiro em uma mesa que ali estava, e contou-o, e posto que o
achasse certo, contudo isso revirando para a mulher que o havia achado, lhe
disse:
— Mulher de bem, aqui nesta bolsa faltam trinta e quatro escudos venezianos,
que estavam de mais dos quatrocentos cruzados em ouro que aqui estão.
A boa velha afrontada e corrida, lhe disse:
— De maneira, senhor, que credes de mim que vos havia de furtar o vosso
dinheiro! Quem me obrigava, tendo eu em meu poder essa bolsa, a trazê-la
aqui, senão não querer eu o alheio?
Não deixava o mercador de gritar e dar vozes dizendo que lhe fosse buscar os
trinta e quatro escudos venezianos que faltavam, se queria que lhe desse o
achado que tinha prometido. O duque, conhecendo a malícia do mercador e
tudo aquilo que fazia e dizia era a fim de se escusar de dar o que prometera,
entendendo que quanta era a bondade da virtuosa mulher tanta era a maldade do
avarento mercador, imaginou que a maior pena que podia dar a um homem tão
ruim como aquele era fazer que com seu engano se ofendesse a si mesmo, e a
esta causa, virando-se para ele, lhe disse:
— Vinde cá; se isto é assim como dizeis, porque me não declarastes que a bolsa
levava mais esses escudos de ouro? Ora eu tenho entendido que vós sois tal que
quereis fazer o alheio vosso, e que esta bolsa que essa mulher honrada achou não
é vossa, pois nela faltam esses ducados venezianos que dizeis; antes essa bolsa
que se achou sem dúvida nenhuma é uma que esse próprio dia perdeu um meu
criado com esta mesma soma de dinheiro que essa tem, e pois sendo assim como
é, a mim e não a vós pertence.
E dizendo isto, virou-se para onde estava a velha, e lhe disse:
— Boa mulher, pois que achastes esta bolsa com estes cruzados de ouro, eu vos
faço graça dela com o dinheiro que tem.
Não se atreveu o inconsiderado avarento a replicar ao que o duque dizia; antes
arrependido de não haver cumprido a palavra que prometera se foi para sua casa
chorar seu desastre.
Houve um homem pobre, o qual veio a ter muita fazenda, e não tendo mais que
um filho, certa gente procurou de o casar com uma filha sua; a nora começou
(como costumam) a aborrecer tanto, que o não podia ver; e como mulher muitas
vezes pode muito no mal, pôde também com o marido, para que aborrecesse seu
pai, de modo que também o não podia ver; o pobre pai morria de fome, seu
comer eram favas muito ruins, e com esta grande fome chegou um dia à porta do
filho pedindo que lhe desse de comer; tinha um capão cozido para jantar, mas
logo o escondeu metendo-o em uma arca, e dando ao pai uma tigela de favas, o
deitou pela porta fora, e acabando de as comer, despois que se foi, disse à
mulher: — Agora comeremos à nossa vontade, ide buscar o capão; — o qual
achou que se tinha tornado em um terrível e espantoso sapo, que lhe saltou no
rosto, aferrando-lhe os dois pés na barba e as mãos na testa, não havia quem o
pudesse desapegar; foi um homem com uma tenaz pegando ele para o tirar, o
sapo o atravessou com os olhos, tão terrível e peçonhentamente, que logo caiu
no chão, nem houve quem pudesse dar remédio a tal caso.
NOTA: Cita-se uma variante de Cesário, lib. 60, cap. 22, em que em vez de um
sapo era uma serpente.
OS PODERES DO OURO
Acho estremada aquela história que toca o Ausónio, poeta, em um seu epigrama:
E é que um homem desesperado com uma paixão que teve, se ia enforcar em um
lugar secreto, levando consigo o baraço em que havia de deixar a vida. Sucedeu
que com a força que fez, caindo uma parte da terra naquele lugar, se lhe
descobriu um tesouro, a cuja vista mudou logo o pensamento, e levando o que
achara, deixou em seu lugar o baraço que trazia. Vindo depois o que ali
escondera, e achando-o menos, e em seu lugar a tentação da sua desventura, fez,
porque perdera um tesouro, o que o outro deixou de fazer porque o achara; de
modo que a um deu vida o ouro, a outro matou a avareza dele.
(Rodrigues Lobo, Corte na Aldeia, diál. VII)
Uma mulher não tratava bem de obras a honra de seu marido, e ele muito mal de
palavras a toda a sua vizinhança; era o seu nome dele Ramos, e pondo-se um dia
em práticas com a mulher começou a contar com ela todos os cornudos que
havia no seu bairro; a mulher, com raiva de sua má natureza, a cada passo dizia:
— E Ramos, marido; tornai a contar, que falta um.
Ele, que entendia mal o remoque, sem se meter na conta, a tornava a fazer de
novo muitas vezes.
Teve a Rainha Santa Isabel um pajem ou criado de câmara que servia de seu
esmoler e outras obras pias e caritativas em que a santa rainha de contínuo se
ocupava; era este moço de boas partes que foi a herança que seu pai lhe deixou,
segundo conta Henrique Grã, que estando para morrer lhe disse: — Filho, a
melhor herança que te posso deixar é dar-te este conselho: que sejas muito
virtuoso e que ouças cada dia missa inteira e sejas muito devoto da Virgem
Nossa Senhora. Estas e outras cousas santas lhe encomendou. Neste tempo
tinha el-rei Dom Dinis outro pajem muito seu privado e querido; este, vendo a
privança que o outro tinha com a rainha, por inveja e por mais cair em graça de
el-rei, determinou de lhe levantar um falso testemunho e pô-lo em mal com el-
rei; e foi este que afirmou que a rainha tinha uma afeição má; como o rei vivia
não mui honestamente, pouco bastou logo para lhe dar crédito, e assim dali por
diante andava pensativo, triste, malenconizado, vivendo com muita desconfiança
da rainha pelo que seu pajem lhe tinha dito, determinou de o matar
secretamente, e saindo aquele dia a passear, passou por onde estavam ardendo
uns fornos de cal, e chamando de parte os homens que neles trabalhavam, lhes
mandou que a um criado da câmara que ele enviaria com um recado: — se
tinham feito o que el-rei lhe tinha mandado? — o arrebatassem logo e o
lançassem dentro no forno para que assim se fizesse em pó e em cinza, porque
assim convinha ao seu serviço. Ao outro dia pela manhã mandou o pajem da
rainha que fosse logo com este recado, para que os homens pusessem em
execução o que lhes tinha mandado; mas Nosso Senhor, que nunca falta aos seus
e acode aos inocentes, ordenou que em passando este moço tangessem no
Mosteiro de S. Francisco (que estava em caminho) à missa, e entrando esteve-a
ouvindo até ao cabo, e ainda outras duas, que se começaram. Neste tempo
desejando el-rei saber se era já morto, mandou ao pajem da câmara (que era
aquele que o havia acusado levantando-lhe o falso testemunho) e lhe disse: —
Vai ao forno a saber se tem já feito o que mandei: foi e dando o recado,
arrebataram-no os homens e vivo o meteram no forno. Neste tempo acabando o
moço inocente e sem culpa de ouvir as missas, foi dar o recado que el-rei tinha
dito, se haviam feito o que Sua Alteza lhes havia mandado, e dizendo eles que
sim, se volveu com a resposta a el-rei, o qual vendo e considerando que havia
acontecido este negócio ao revés de como ele havia mandado, e tornando-se ao
pajem o começou a repreender, perguntando-lhe donde havia estado tanto
tempo? Respondeu ele: — Senhor, indo a cumprir o mandado de Vossa Alteza,
tangendo a missa entrei dentro, e ouvi aquela missa até ao cabo, e antes que
aquela se acabasse começaram duas, e assim ouvi todas três até ao cabo, porque
assim mo encomendou meu pai e deixou por bênção, que todas as missas que
visse começar estivesse a elas até ao fim. Então viu el-rei por este juízo de Deus
as falsidades, e veio a cair na conta da verdade e a conhecer a inocência da santa
rainha, e a fidelidade e virtude do criado, e assim lançou a má imaginação que
trazia contra a rainha.
(Saraiva de Sousa, Báculo Pastoral, I, 148)
Certa mulher dera à sua filha em dote quanto possuía; e depois, assim ela como
o genro a desprezavam e lhes aborrecia em casa como carga inútil. Vendo isto a
velha:
— Já sei (disse consigo) como emendar o erro meu.
Dali por diante fingia que se furtava aos olhos dos domésticos para se retirar a
certo aposento interior, onde tinha uma arca com muitas fechaduras, cujas
chaves recatava; ali, de noite, a horas escusas, com dissimulação afetada, abria,
vazava, contava e tornava a guardar, em lugar de patacas, pedacinhos de louça
quebrada, espreitando entretanto se fora sentida a mesma que o desejava ser.
Também entre a conversação deixava cair algumas palavras prenhes, que
indicavam testamento feito, ou quantidade de sufrágios e esmolas, ou louvor dos
que pouparam para a sua velhice ou outras semelhantes. Do que tudo vieram a
filha e o genro a entender que a velha tinha dinheiro escondido e logo
deliberaram dar-lhe bom trato e falar-lhe com agrado e sujeição. Tanto que
chegou o seu dia e passou desta vida, foram muito sôfregos registrar o que havia
na arca, suave tormento de suas esperanças, mas o que acharam entre os telhos,
foi só um papel com estas palavras:
— Filhos meus, se os tiverdes, não vos esqueçais de vós no dar-lhes estado; este
desengano que tenho vos deixo, em lugar do dinheiro que não tenho.
(P. Manuel Bernardes, Nova Floresta de Vários Apotegmas, t. I, p. 145.)
VARIANTE
Achava-se certo pai com duas filhas capazes já de tomarem estado, e querendo
dar-lho com mais grandeza lhes consignou em dote quanta fazenda possuía.
Supôs que os consortes nunca deixariam de corresponder a esta liberalidade com
igual gratificação provendo-o depois do que necessitasse, servindo-o e tratando-
o com aquele amor que podia prometer-se de pessoas tão próximas no
parentesco como obrigadas pelo benefício. Mostraram-lhe os esposos ao
princípio algumas demonstrações de afeto, mas faltando-lhes pouco a pouco as
esperanças de conseguirem já nada do velho, que lhes tinha dado tudo,
começaram-no a maltratar de sorte, que bem cedo conheceu o erro em que
caíra, reduzindo-se à pobreza. Vendo-se o velho reduzido a tão triste estado, e
cuidando no remédio da sua necessidade, lhe ocorreu enfim uma indústria, que
lhe saiu bem-sucedida e acertada. Tinha um amigo particular, e pediu-lhe certa
quantia bastante de mil cruzados, a qual sem falência alguma lhe restituiria
passado aquele termo. Conseguiu prontamente o dinheiro, e levando-o às
escondidas para a sua câmara que ficava próxima às dos genros e filhas, vazou o
saco sobre uma mesa e pôs-se a contar o dinheiro, manejando-o de sorte que
tinisse e soasse fora o estrondo. Perceberam as filhas o som, acudiram logo ao
reclamo, espreitaram pela fechadura da porta, e vendo sobre o bufete tanta soma
de moedas, comunicada a novidade aos maridos, assentaram que convinha
mudar de estilo e dar ao velho outro tratamento. Como lhe supunham ainda
algum cabedal, temerosas que talvez o deixasse a pessoas estranhas, julgaram
que importava ganhar-lhe a vontade para segurarem deste modo toda a herança.
Assim como o resolveram o executaram, e para mais se certificarem, em certa
ocasião procuraram saber dele um dia se lhe restava ainda alguma cousa, e
quanta soma de dinheiro de que dispusesse.
Respondeu o acautelado velho que alguma quantia reservara para fazer seu
testamento. Que sua tenção era deixar a soma dos mil cruzados, que lhe
restavam, a suas filhas, deixando a uma ou outra mais ou menos, conforme os
obséquios e serviços que delas recebesse naquela sua velhice necessitada de
tantos.
Bastaram estas palavras para acenderem nas filhas o apetite do dinheiro, e cada
qual logo à porfia começou a ganhar a vontade e benevolência do pai, servindo-o
em tudo e gozando-se ele dissimuladamente do bom sucesso que surtira o
estratagema. Passado algum tempo adoeceu de morte o velho, e chamando as
filhas e os genros, disse-lhes ser chegada a sua última hora, e que assim tanto
que expirasse, acabados os sufrágios, receberiam dos Frades a chave da caixa, a
qual abrissem, porque de quanto estava dentro as deixava igualmente por
herdeiras. Apenas o bom velho expirou, prontamente se disseram missas, e
recebendo as filhas com alvoroço a chave, abriram a arca mui ligeiras, mas não
estava dentro uma só moeda; somente acharam um malho, que tinha estas letras
ao redor escritas:
«Com este malho se dê na cabeça de quem não tratando de si, deixa a sua
fazenda a outrem.»
NOTA: Este conto popular e os cinco que se lhe seguem foram transcritos do
celebrado livro Arte de Furtar, atribuído ao P.e António Vieira, o grande
pregador do século XVII; aparecem hoje aqui sob o nome do seu verdadeiro
autor, Alexandre de Gusmão, ministro e secretário de D. João V.
Na Academia de Ciências de Portugal, fizemos uma comunicação, tendo por
fim resolver o problema literário, posto pelo vogal José Pereira de Sampaio
(Bruno), sobre quem seja o autor da Arte de Furtar. Este académico, num
trabalho apresentado, há anos, em sessão, estabeleceu a prova definitiva de que
esse tratado não fora escrito pelo P.e António Vieira, mostrando que, em 1741,
Barbosa Machado, no artigo biobibliográfico do insigne orador, não inclui entre
as suas obras, a Arte de Furtar, citando-a, no Suplemento da Biblioteca Lusitana,
a edição de Amesterdão de 1744, (da qual há duas edições do mesmo ano, com
paginação diferente in-4.º de XII-508 p., e outra em diferente tipo, com
retrato, de 409 p.). Ferreira Gordo, dando conta à Academia das Ciências de um
exame dos manuscritos portugueses da Biblioteca de Madrid, ao referir-se aos
do P.e António Vieira, escreve: «Do mesmo ou de João Pinto Ribeiro, Arte de
Furtar, e se acha já proibido pelo Edital de 1755.»
E, como José Sampaio não tenha revelado a parte positiva do problema até ao
presente, lançámo-nos nessa investigação, sem invadir a esfera de atividade de
um crítico que muito prezamos. Eis as considerações que estabelecemos para
encontrar a solução desejada:
De todos os escritores portugueses do século XVIII, só o ministro Alexandre de
Gusmão era capaz de simular o estilo do P.e António Vieira; como ele, nasceu
no Brasil, estudou no Colégio dos Jesuítas de Santos, o que não é indiferente
para o apocrifismo literário; aos vinte anos acompanhou para Paris, como
secretário de embaixada, o conde da Ribeira Grande, em 1715, formando-se ali
em Direito Civil, e, no regresso, incorporou-se na Universidade de Coimbra,
em 1719.
D. João v enviou-o para Roma, a auxiliar seu irmão Bartolomeu de Gusmão,
onde se demorou sete anos, adquirindo o conhecimento prático das gírias da
Cúria. Desde 1734, foi encarregado dos despachos da Secretaria do Estado para
o Brasil. Neste complicado serviço, encontrou continuados e industriosos
roubos e fraudes da Fazenda, aos quais opôs hábeis regulamentos e expedientes,
que melhoraram os rendimentos do Estado. Em 1742, entra para o Conselho
Ultramarino, onde também prestou valiosos serviços, para reprimir engenhosos
latrocínios, que se lhe revelavam como uma completa Arte de Furtar. Com o seu
raro talento de escritor, e uma observação ironista, adquirida nas viagens e longa
residência em Roma e em Paris, e com o malicioso espírito de engenhoso
intérprete de cifras diplomáticas, era fácil a Alexandre de Gusmão, nascido no
último quinquénio do século XVIII, imitar o estilo digressivo faceto do padre
Vieira, fazendo habilmente imprimir, na Holanda, a «A Arte de Furtar, gazua
geral dos reinos de Portugal». Em 1740, em carta de 2 de maio escreveu
Alexandre de Gusmão a Barbosa Machado respondendo ao pedido de
apontamentos biográficos para a Biblioteca Lusitana. Por esse tempo, elaborava
ele, na sua mente, este livro, com um estilo em que a beleza ressalta da verdade
da observação e das situações pitorescas que descreve. É inquestionavelmente
um moderno, com uma fina crítica, que não possuíam Luís António Verney, o
Cavaleiro de Oliveira e José da Cunha Brochado. Do estilo de Alexandre de
Gusmão trataram Fr. Fortunato de S. Boaventura e Camilo Castelo Branco,
por modo a determinar qualidades idênticas às da Arte de Furtar, conforme o
documentam esses trechos.
De todos os escritores da primeira metade do século XVIII, só o ministro
Alexandre Gusmão era capaz de simular o estilo de Vieira, e de fazer esse livro
faceto e de mordente moral a Arte de Furtar. Frei Fortunato de S. Boaventura,
nos seus Subsídios para Se Escrever a História Literária de Portugal, falando da
decadência da força e majestade da língua portuguesa nos escritos retóricos,
contrapõe: «resplandecem mais no gabinete do Soberano (D. João v) do que nas
cadeiras sagradas e professas, do que nos oferecem um claro testemunho os Decretos e
Aviso régios, que escreveu Alexandre de Gusmão.» (Op. cit., p. 193.) Foi nos ócios
desta redação oficial, que o perspicaz ministro fantasiou esses quadros realistas,
nos ditos e considerandos morais, que fazem da Arte de Furtar, além de um
profícuo documento, uma digna obra literária. Por uma intuição do caráter do
estilo, Camilo Castelo Branco roçou pela verdade do problema que Barbosa
Machado na Biblioteca Lusitana suscitou, dando em 1749 notícia da Arte de
Furtar edição de 1744. No Curso de Literatura Portuguesa, p. 162, reconheceu
Camilo nos escritos de Alexandre de Gusmão: «esperteza de observação, na
solércia da crítica, e para quem antepõe estudos sociológicos a perluxidades
linguísticas, o secretário de D. João V, excede António Vieira e D. Francisco
Manuel de Melo.»
NÃO ESCAPA DE LADRÃO
QUEM SE PAGA PELA SUA MÃO
A um cego, desses que pedem por portas, deram uma vez em certa parte um
cacho de uvas por esmola; e como se guarda mal cevadeira de pobres o que se
pode pisar, tratou de o assegurar logo repartindo igualmente com o seu moço
que o guiava; e para isso concertou com ele que o comessem bago a bago,
alternadamente; e depois de quatro idas e venidas, o cego para experimentar se o
moço lhe guardava fidelidade, picou os bagos a pares; o moço vendo que seu amo
falhava no contrato, calou-se e deu-lhe os cabes a ternos. Não lhe esperou muito
o cego e ao terceiro invite descarregou-lhe o bordão na cabeça. Gritou o rapaz:
— Porque me dais?
Respondeu o amo:
— Porque contratando nós que comêssemos igualmente estas uvas bago a bago,
tu comes a três e quatro.
Perguntou então o moço:
— E quem vos diz a vós, que eu fiz tal aleivosia?
— Isso está claro (respondeu o cego), porque faltando-te eu primeiro no
contrato comendo a pares, tu te calaste, sem me requereres tua justiça; e não eras
tu tão santo que me levasses em conta nem em silêncio a minha sem-razão,
senão pagando-te em dobro pela calada.
E menos agudo andou o outro, que talhando o preço das galinhas a quem vendia
na feira, e levando-o a quem dizia lhas havia de pagar, o pôs em uma igreja onde
estava o padre cura confessando; e chegando-se a ele lhe pediu por mercê à
puridade, se lhe queria ouvir de confissão aquele homem, e respondeu alto que
sim e que esperasse, que logo o despacharia, se deu o vendedor por satisfeito,
cuidando que o mandava esperar para lhe dar o preço da compra, e teve lugar o
ladrão de se acolher com o furto.
(Idem, Ibid. p. 276.)
Mais agudo andou outro, que vendo entrar pela ponte de Coimbra um
forasteiro bem vestido armou a lhe furtar o fato, na volta; e armou bem para seu
intento, porque o esperou no bocal de um poço, que está na estrada por onde
havia de passar, chorando sua desgraça, e que lhe caíra naquele instante uma
cadeia de ouro dentro do poço e que daria um dobrão a quem lha tirasse.
Moveu-se à compaixão o passageiro, que devia de ser homem de bem, senão que
o picou o interesse, e por isso não presumiu de malícia; gabou-se que sabia nadar
como um golfinho e que lhe tiraria a cadeia de mergulho. O matalote da cadeia,
tanto que o viu debaixo de água, tomou as de vila-diogo com todo o fato e
cabana.
(Idem, Ibidem, p. 278.)
A ROUPA DOS MENDIGOS
Um fidalgo piedoso lançou um pregão na sua terra que tal dia dava um vestido
novo por amor de Deus a cada pobre. Ajuntaram-se no seu pátio infinitos, e a
todos deu vestidos novos, mas obrigou-os a que logo os vestissem, e tomou-lhes
os velhos, e neles achou bem cosido e escondida por entre os remendos maior
quantidade de dinheiro vinte vezes que a que tinha gasto nos vestidos.
(Idem, Arte de Furtar, p. 316.)
A CASA DOS MORTOS
Indo o pajem de um fidalgo que tinha fama de rico a comprar uma moeda e
rábãos para a ceia de todos, encontrou uma grande procissão de religiosos e
clérigos, que levavam a enterrar um defunto, e detrás da tumba se ia carpindo a
mulher, e lamentando a sua desgraça; e ouviu que dizia entre lágrimas e
suspiros:
— Aonde vos levam, meu mal-logrado? À casa onde se não come, nem bebe;
nem tereis cama mais que a terra fria.
Em ouvindo isto o rapaz, voltou para casa como um raio fugindo, trancou as
portas e disse espavorido a seu amo:
— Senhor, ponhamo-nos em armas, que nos trazem cá um homem morto.
— Tu deves vir doudo, disse o amo, pois cuidas que a nossa casa é igreja?
— Entrei em suspeitas se viriam cá enterrar aquele finado; e confirmei-me de
todo, porque a gente que o traz vem dizendo que o levam à casa onde se não
come, nem bebe, nem há cama mais que a terra fria; fiz bem em fechar as portas,
pois assaz bastam os defuntos, que cá jazemos mortos de fome, que é pior que
maleitas.
(Idem, Ib., p. 328.)
AS BOTAS FIADAS
Um fidalgo tomou por matéria de riso calçar todo o ano sem pagar nenhum par
de obra aos sapateiros, que vieram a dar-lhe na trilha; levantando-se às maiores
com palavras, que correu entre todos que nenhum se fiasse dele, nem lhe desse
calçado sem lhe pagar primeiro.
Vendo-se o fidalgo posto em cerco, e que ninguém lhe queria dar sapatos sem o
dinheiro na mão, mandou ao moço que pedisse um só sapato à prova, e que se
lhe contentasse mandaria buscar o outro com o dinheiro de ambos.
— Isso sim, disse o oficial; um sapato levará você, mas dois não os verá seu amo
sem me pôr nesta banca o dinheiro.
Como o fidalgo teve um nas unhas, mandou o pajem a outro sapateiro com o
mesmo recado, e do mesmo modo fiou um sapato dele, persuadindo-se que
mandaria buscar o outro com o dinheiro, ou lho restituiria não lhe servindo.
Vendo-se assim com os dois, calçou-os e foi-se ao paço rir sobre a história.
Em Éfeso havia uma matrona honestíssima que, morrendo-lhe seu marido, fez
por ele os maiores extremos de dor que se podem considerar; e não se
contentando com as cerimónias comuns das outras viúvas, se foi à sepultura de
seu marido (que antigamente se enterravam nos adros das igrejas) e ali estava a
chorar, sem querer comer, nem afastar-se daquele lugar. Aconteceu terem ali
perto enforcado a uns facinorosos, para guarda dos quais deixara a Justiça alguns
soldados. Soube um destes que estava junto da sepultura aquela matrona, e
compadecido da sua mágoa, lhe levou da sua ceia, e a obrigou a que comesse, por
não morrer desesperada. Passou adiante, porque o mesmo que a convenceu a
que comesse, a persuadiu também a que lhe desse seu corpo, com a qual cousa
descuidando-se da sua obrigação, vieram os parentes de um dos justiçados e o
furtaram. Vindo depois o soldado e não achando o corpo na forca, temendo o
castigo, veio dizê-lo mui triste à viúva, a qual o consolou e remediou logo,
tirando o corpo de seu marido defunto, pelo qual havia feito tantos extremos, e o
puseram na forca em lugar do justiçado.
(P.e João Batista de Castro, Hora de Recreio nas Férias de Maiores Estudos,
Centúria I, n.º 79, Lisboa, 1770.)
NOTA: Sobre esta tradição e sua forma popular, vid. A Viúva e o Alcaide e nota
correspondente.
A par da variante do século XVIII, aditamos-lhe agora outra para mostrar a sua
degradação.
«Uma romana, morrendo-lhe seu marido, de quem fora sempre estimada,
mandou-o enterrar no cemitério dos enforcados, que juntamente com a forca
estava diante das suas casas, e ficou carpindo a falta de seu marido com gemidos
e prantos lastimosos. Ouvindo-os um soldado que estava de guarda a um corpo
de um justiçado veio consolá-la e lhe assistiu toda a noite, deixando o cadáver só,
que entretanto foi levado pelos parentes. Amanhecendo, viu o guarda a falta, e
deu-se por perdido; mas a mulher remediou o caso, dizendo-lhe que
desenterrasse o corpo de seu marido, que o pendurasse na forca, como o outro
estava. Assim o fez, e obrigado à viúva pelo arbítrio, e esta ao soldado pela
compaixão que tivera dela, casaram-se ao dia seguinte, trocando a viúva
repentinamente os excessivos choros com excessivas alegrias.»
(Marques Soares, Divertimentos de Estudiosos, t. II, p. 258.)
O POBRE CHAGADO E AS MOSCAS
Essa frequente mudança de vice-reis não agrada aos portugueses e a outra gente
da Índia, nem tampouco a semelhante mudança que há nos capitães das
fortalezas e entre os oficiais; e para significarem isto, contam que:
Era uma vez um pobre à porta de uma igreja com as pernas todas cheias de
chagas, nas quais pousavam as moscas em tal quantidade, que fazia grande
compaixão; pelo que outro homem se chegou a ele, e julgando que ele lhe dava
muito gosto, lhe enxotou todas as moscas, com o que o pobre paciente se agastou
muito, dizendo que:
— As moscas que ele enxotava já estavam fartas, e o não picavam, mas as que
viessem de novo famintas o picariam muito mais.
Assim (dizem eles) acontece com os vice-reis, porque os fartos se vão embora e
vêm os famintos.
(Pyrard, Viagem, Contendo a Notícia da Sua Navegação às Índias Orientais, 1601-
1611.)
O ANJO E O EREMITA
NOTA: Nas Cantigas de Santa Maria, de Afonso, o Sábio, vem metrificada esta
lenda, que encheu a Idade Média: Como Santa Maria fez estar o monge trezentos
anos ao canto do passarinho, porque lhe pedia que lhe mostrasse qual era o bem que
haviam os que eram em Paraíso.
Quem a Virgem bem servirá a Paraíso irá.
E d’aquest’um grão milagre / vos quero eu ora contar / que fezo Santa Maria / por um monge
que rogar / lh’ia sempre que lhe mostrasse / quel bem em Paraíso há. / / E que o visse em sua vida
/ ante que fosse morrer. / E por ende a Graciosa / vedes que lhe foi fazer: / fê-lo entrar n’uma
horta en que muitas vezes ia. / / Entrara; mais aquel’dia / fez que uma fonte achou / mui clara et
mui fermosa / et cab’ela se assentou, / e pois lavou mui bem sas mãos, / disse: — Ai Virgem, que
será? / / Se verei do Paraíso / o que ch’eu muito pedi, / algum pouco de seu viço / ante que saia
d’aqui, / e que sábia do que bem obra / que galardão haverá! / / Tão toste que acabada / houve o
monge a oraçom / oiu uma passarinha / cantar logo em tão bom som, / que se escaeceu, sendo / e
cantando sempre a lá. / / A tão grave sabor havia / d’aquel canto e d’aquel lais, / que grandes
trezentos anos / esteve assi ou mais, / cuidando que não estivera / senão pouco como está. / /
Monge alguma vez no ano / quando sal ao vergeu, / des i foi-se a passarinha / de que foi a el mui
Breu, / e disse: — Eu d’aqui ir-me quero / ca oí mais comer guerra / / O convento. E foi-se logo, / e
achou um grão portal / que nunca vira, e disse: / — Ai Santa Maria, val! / Não é este o meu
moesteiro, / pois de mi que se fará? / Des i entrou na igreja, / e houveram grão pavor / os monges
quando o viram, / e demantou-lh’o prior, / dizendo: — Amigo, vós quem sodes, / ou quem buscades
a cá? / / Disse el’: — Busco meu abade / que agora aqui leixei, / e o prior e os frades / de que mi
agora quitei, / quando fui a aquela horta / si seem, que mi o dirá? / / Quando esto oío o abade /
teve-o por de mal sem / e outrossi o convento, / mais des que souberam bem / de como fora este
feito / disseram: — Quem oirá? / / Nunca tão grã maravilha / como Deus por esto fez / polo rogo
de sa Madre / Virgem Santa de grão prez, / E por aquesto a loemos / mais quem a não loará. / /
Mais doutra cousa que seja? / ca par Deus grão dereito é, / pois quanto nós lhe pedimos, / nos dá
seu Filho a la fé, / por ela, e aqui nos mostra / o que nos depois dará.
Quem a Virgem bem servirá a Paraíso irá.
Anotando esta legenda, Adolfo Mussafia aponta o trabalho de W. Hertz,
Deutsche Sagen im Elsas, p. 273, versando a concentração de muitos anos em
momentos; como também Reinhold Köhler, na Revista de Filologia Alemã, vol.
XIV. e na Germânia, vol. II, p. 432. Investigou a difusão da lenda D’Ancona,
Stadü di critica e storia letteraria, pp. 309 a 312; Œsterley na edição de Schimpf
und Ernest de Pauli, no n.º 537; Paulo Meyer, România, vol. V, p. 473,
publicando a prédica de Martino di Sully; também no Libro de Exemplos, n.º
CX. Ed. Gayangos Luzel publicou uma versão oral nas Legendes chrétiennes de la
Basse Bretagne, t. I, p. 222; e Carnoy, Litterature orale de la Picardie, p. 149.
Todos estes Contos figuram o versículo 4.º do Salmo 90: Mil anos diante de
Deus são como um dia.
FORTUNA DE POLÍCRATES
Notável foi a felicidade de Polícrates, tirano de Sarno, que ocupou esta ilha com
as armas repentinamente, crescendo em pouco tempo tanto seu poder e
grandeza, que era alvo a que os olhos e os discursos de toda a Grécia se
encaminhavam. Jamais cousa intentou que não conseguisse; nunca intentou
empreender cousa que não alcançasse. Era temido com armadas nos mares e
vitorioso com exércitos em terra; correndo tanto sem encontro nem embaraço
sua ventura, subindo tanto ao auge sua felicidade, que Amósis rei do Egito, seu
grande amigo, lhe aconselhou que voluntariamente tomasse algum desgosto,
pois a fortuna lho dava, porque não parecia possível durar tanta felicidade sem
infortúnios. Aceitou Polícrates o conselho, e lançou ao mar uma esmeralda, que
estimava em muito por ser de excessivo preço e valia; porém, não querendo a
fortuna que sentisse este, ainda que voluntário desgosto, sucedeu que acaso daí a
cinco dias um pescador recolhera nas redes um grande peixe lho presenteasse, e
no ventre dele se achasse a rica pedra que no mar arrojado tinha. Mas como
tanta ventura ameaçasse já, sendo na terra declinação apressada, sucedeu que
sendo preso à traição de Oretre, governador da Lídia por Dario, rei da Pérsia, o
mandou crucificar na eminência de um levantado monte onde acabou a vida
miseravelmente, sendo espetáculo da mais lastimável compaixão a quantos de
antes o adoravam por tão favorecido da ventura.
(Idem, Ib. Parte I, p. 45.)
NOTA: A lenda do tirano de Santo e do anel que arrojado ao mar lhe veio outra
vez parar à mão foi apresentada por Heródoto, Hist. Liv. III, e por Ateneu e
Tucídides. Provém de um fundo popular, em situações de diferentes contos:
esperar a desgraça depois de uma felicidade ininterrupta (supra, p. 258); o anel
arrojado ao mar, que volta à mão do dono, sendo pescado o peixe que o engolira
(ib., p. 260.)
Na tradição colhida por Heródoto, Amósis, faraó do Egito, separa-se de
Polícrates para não sofrer a fatalidade que o espera após continuadas
prosperidades; mas Grote, na sua História da Grécia, t. IV, pende para o
contrário, que foi Polícrates que rompeu a aliança com Amósis logo que o viu
atacado por Cambises.
ESPELHOS REJEITADOS
E como ia já sentenciado
Que não se desse vida a nenhum Mouro,
De sangue um grão rio há manado,
Que pelos matos foi sair ao Douro,
E em sangue as águas se hão tornado,
E perdeu por então a cor de louro,
E o mar pelos Portos há mostrado,
Ter muito sangue então derramado.
………………………………………………………
Assim Machim que o pálio foi seguindo
Desta Hipodamia, sol da formosura,
Ou no curso de Atlanta, em que vencendo
A tantos foi com graças e ventura,
Entre todos ficou só merecendo
Da glória singular, palma segura,
Por méritos tão justos alcançado
Que dos mesmos depois foi celebrada.
………………………………………………………
E posto que o amor quando secreto
Em o gosto maior amor se chama,
Se quem o busca amando, por decreto
Sabe a honra guardar, do bem que ama;
Machim, que em observar este decreto
Foi nos Nove de Amor o de mais fama,
Não por isso deixou como estimado
De arriscar este bem por invejado.
………………………………………………………
Amava Ana de Harfet com força viva
A seu Machim, de tantos invejado,
Com virtude de amor tão unitiva,
Que um no outro vivia transformado;
Pela vista ordinária, que o não priva
Crescia mais de amor, o último estado,
Porque sempre na vista desejada,
Se sustentou melhor da cousa amada.
………………………………………………………
Isto se viu no amoroso trato
Que Machim teve na correspondência,
Pois descoberto foi do tempo ingrato,
Sem merecer gozar sua assistência,
Que os pais de Ana de Harfet, em o boato
Do vulgo só fazendo experiência,
A certeza do amor e trato acharam,
E dividir-lhe os corpos procuraram.
………………………………………………………
Assim a bela Harfet, que combatida
De seus parentes, e de amor estava,
Em tormento em que quase vê vencida
A esperança maior que a sustentava,
Duvidosa de achar o bem da vida,
Se contrários intentos intentava,
Os novos pensamentos de si lança
Salvando de Machim só a esperança.
………………………………………………………
As primeiras razões foram suspiros,
Com que os amantes dois se saudaram,
Em tal princípio rigorosos tiros
Que os corações amando ali provaram,
soluços e penas, vários giros,
O colóquio primeiro dilataram,
Té que Machim não vendo neles pausa,
Assim de tanto mal procura a causa.
………………………………………………………
Intentaram pois dele divertir-me
Tanto a outro himeneu querer honrar-me,
Que da força chegada persuadir-me,
Pode, que era melhor precipitar-me;
Mas, como amor merece mais por firme
Com mais glória cheguei a resolver-me
De a vida antes perder, que sem ti ver-me.
Bem vejo que o paterno amor vencido
O castigo me oferece por ingrata,
Pois qual o humor na planta conhecido
É o amor, que a seu querer me ata;
Mas também sei, que humor não reduzido
De tornar à raiz mui pouco trata
Pois só ao fruto leva o justo intento,
Que tal deve de ser meu pensamento.
………………………………………………………
Se com amor a tua se conforma,
E queres dar à minha glória aumento,
Pois vês que o meu, do seu querer te informa
E unidos faz de dois em pensamento,
Os receios, meu bem, que tens reforma,
Que com audaz e livre atrevimento,
Se teus olhos me deram confiança,
Seguro viverei contigo em França.
………………………………………………………
Perantes e agravados esforçados
Tenho, que nesta empresa aventureiros
Com atrevidos ânimos ousados
Serão, qual devem, nossos companheiros.
Navios, há no porto mil fretados,
Que obrigando de algum os marinheiros,
Ao que cair a sorte venturosa,
Farei Touro de Europa tão fermosa.
………………………………………………………
Quando já pela mão com seus amores
Machim, e de parentes rodeado,
No campo deixa inveja às frescas flores
E ao mar dá presunção no que há ganhado.
Alegre, em um navio dos melhores
Entra, sem de ninguém ser reprovado,
E com força guiando o próprio intento
As velas faz largar ao fresco vento.
………………………………………………………
Assim aquele dia navegaram,
Mas, tanto que dos montes foi caindo
A sombra, e que as estrelas divisaram
A notívaga luz, ir descobrindo,
Os da nau a conselho se juntaram.
Temendo que do porto os vem seguindo.
Que talvez o temor só tira a trave,
Com que aos olhos cerrou a culpa grave.
………………………………………………………
Ia Machim alegre navegando
Posto que mareados seus amores.
A quem com vários mimos regalando
Amor lisonjeava com louvores.
Febo nas ondas já com o carro entrando
Adormia no campo as frescas flores,
E Cíntia com seus cornos levantados,
Longe fazia os mares prateados.
………………………………………………………
Quando desenfreados e violentos
Da cova saem, em fúria revestidos
Os mais que irados e queixosos ventos,
De poucos na soberba conhecidos.
Tremeram ao sair os elementos
Que deles sempre em tudo sai temidos,
E do centro do triste lago Averno
A negra areia rociou o inferno.
………………………………………………………
Com isto, e com se pôr dobrado intento
No governo do leme necessário,
Por que se cena à discrição do vento
Ao Orião tomando temerário,
Machim, que só lhe aflige o pensamento
Ver seu amor com vento tão contrário,
Acode a Ana, que a acha trespassada,
Com o Joiel Cristífero abraçada.
………………………………………………………
A noite escura, negra e temerosa
De quem Délia com medo se escondia,
Se mostrou com o vento tão furiosa
Que com a nau pairar-se não podia,
E com a tempestade rigorosa
No cativeiro deu de Berbéria,
Donde os Anglos que os Afros nela acharam
De Atlante ao grande reino os trespassaram.
………………………………………………………
Perdeu também Harfet supitamente,
Com grave dor do sobressalto a fala;
Que um temor alterando de repente
A vida com a morte em breve iguala.
Machim em tantas penas tristemente
Se esforçou quanto pôde em animá-la,
Mas pode muito mal ser suspendida
Em a fuga ligeira a breve vida.
………………………………………………………
Mas com a cousa amada por perdida
Causou no sentimento a dor mais forte,
E com pena a memória mais crescida
Sempre se viu em as que leva a morte;
Machim, que por faltar-lhe o bem da vida.
Via nestas tristezas sua sorte,
Querendo com a vida malograda
Píramo ser de Tisbe tão amada.
(Airão)
VARIANTE
Havia três rios irmãos, o Tejo, o Guadiana e o Douro, que combinaram deitar-
se a dormir, dizendo que o primeiro que acordasse partisse para o mar. O
Guadiana foi o primeiro que acordou; escolheu lindos sítios e partiu de seu
vagar. O Tejo acordou depois, e como queria chegar primeiro ao mar, largou
mais depressa, e já as suas margens não são tão belas como as daquele. O Douro
foi o último que acordou, por isso rompeu por montes e vales, sem se importar
com a escolha, e eis porque as suas margens são tristes e pedregosas.
(Famalicão)
A LENDA DAS ADUELAS E DOS
ARCOS DA PIPA
Diziam as aduelas da pipa: — Muito fortes somos nós, que sustemos o vinho.
Responderam os arcos: — Mais fortes somos nós que em todas vós temos mão.
Nisto começa a falar o vime, que liava os arcos de loureiro:
Mas se eu tiro a minha mão,
Vai-se o vinho pelo chão.
(Airão)
A LENDA DAS MANCHAS DA LUA
OUTRA
A Lua era mais linda que o Sol. O Sol queria casar com ela, mas a Lua não lhe
dava cavaco. Ele então despeitado atirou-lhe à face com cinza, e ela a ele com
agulhas de costura.
A Lua ficou sem brilho, e o Sol cheio de raios. Ainda nos eclipses é o Sol que
batalha com a Lua.
NOTA: Pedroso, nas Superstições Populares Portuguesas, coligiu esta lenda como
supersticiosa, sob o n.º 578: «O Sol passou pela Lua atirou-lhe com uma mão
cheia de terra; por isso ela ficou escura e com manchas.»
LENDAS DE FEVEREIRO
Uma vez o Fevereiro pediu a março uma tigela de papas; disse o Março:
— Só se tu me emprestares três dias.
Fevereiro caiu nessa, e daí em diante ficou com vinte e oito dias e o Março com
trinta e um.
O rei Salomão era tão esperto, que mesmo de cima de uma palheira sabia ver
tudo o que há por esses céus além. Vai de uma vez a mãe tirou-lhe a palheira
debaixo dos pés, quando ele estava a ver as estrelas, e ele parou a falar consigo:
— Temos caso! Ou o céu se arredou, ou a terra se afundou.
(Açores)
LENDA DO CHORÃO
O chorão protestou com Deus que havia de chegar ao céu. O Senhor disse-lhe,
que nunca lá havia de chegar, porque quanto mais crescesse mais havia de virar
para o chão.
(Famalicão)
LENDA DA LENHA
Quando se queimava a lenha, gritava; foi por isso que o Senhor lhe tirou a fala
para não comover a gente.
LENDA DA OVELHA
No princípio do mundo, a ovelha falava. Ela estava presa, mas queria que lhe
abrissem a porta, porque tinha chegado março e já havia que comer; e disse
então:
No março, onde quer eu passo;
No abril, abre a porta e deixa-me ir;
Em maio, onde quer eu caio.
LENDA DO CÃO
O cão pediu ao lobo para o ensinar a uivar. E o lobo pediu-lhe que o ensinasse a
farejar. O lobo ensinou-o a uivar mas quando quis que o ensinasse a farejar, o
cão disse:
Se te eu ensinasse a farejar,
À cama me irias matar.
(Guarda)
LENDA DA SERPENTE, DO SAPO E
DO SARDÃO
(Leça do Balio)
LENDA DA CORUJA
Havia um pássaro sem penas, chamado o pito-nu. A coruja ficou por fiadora
para que todas as outras aves emprestassem ao pito-nu penas para ele se vestir.
Mas o pito-nu, assim que se agarrou vestido, fugiu. A coruja nunca aparece de
dia com medo de que as outras aves a piquem, pelo facto de ela não poder
restituir as penas do pito-nu.
(Do pé da Guarda)
LENDA DO SAPO
O sapo sustenta-se de terra que come, mas come mui poucochinho de cada vez
com medo que ela se acabe.
(Airão — Minho)
PORQUE OS CÃES SE CHEIRAM
Os cães deram uma vez um banquete entre si; como faltasse a pimenta ofereceu-
se um deles para ir de uma carreira à cidade buscá-la. Os outros cães esperaram
que esperaram e o mensageiro não aparecia; por fim resolvem ir cada um à sua
procura, e daqui resultou que quando algum cão se encontra com outro sempre
se cheiram para saberem se é o que foi buscar a pimenta.
(Braga e Ilha de S. Miguel)
OS TORDOS E AS ANDORINHAS
«...faltam aqui os tordos, os quais por São Miguel vêm a Portugal, e então se vão
de ela as andorinhas não se sabe para onde, pois se não veem na África; parece
que irão para algumas ilhas, ou terras, que estarão por descobrirem, e costumam
dizer, que encontrando no caminho as andorinhas lhe dizem:
— Donde vindes, loucos,
Que fostes muitos e vindes poucos?
Porque os caçaram lá onde eles foram, por serem bons para comer; e que as
andorinhas não são, e por isso as não matam; e os tordos respondem:
Donde vindes, utas,
Que fostes poucas e vindes muitas?
Porque eram já filhos, que cá em Portugal criaram no verão.»
(Gaspar Frutuoso, Saudades da Terra, cap. 55, — Arqu. dos Açores, vol. XII, p.
156.)
LENDA DAS ANDORINHAS E DOS
TARALHÕES
Dizem os taralhões:
— Donde vindes, andorinhas,
Que fostes poucas e muitas vindes?
Replicam elas:
— Donde vindes, taralhões loucos,
Que fostes muitos, e vindes poucos?
CONTO DA CODORNIZ
(VOZES DE ANIMAIS)
A codorniz passando um dia por certo sítio, viu o sapo à porta do seu covil, e
como ele só tivesse visível a cabeça, a codorniz encantou-se dos olhos dele e
pediu-lhe que saísse cá fora; o sapo obedeceu, mas a codorniz aterrou-se tanto
com a figura dele que se retirou, bradando: Tem-te, lá! Tem-te lá! Daqui
acredita-se que veio a forma do seu canto.
(Paços de Ferreira)
ONOMATOPEIAS
Canta o galo:
— Quem virá lá?
Outro galo:
— Um cavalheiro.
A galinha:
— Jantará cá?
O frango:
— Triste de mim.
O franganito:
— Tripas ao sol.
(Airão)
O CUCO E A POUPA
A poupa foi uma vez chamar o cuco para a ajudar a fazer certo trabalho; disse o
cuco:
Eu, se estiver suão,
Vou-te dar uma demão;
E se estiver nevoeiro
Quero ir para o meu cuqueiro.
LENDA DOS ANIMAIS
A cabra disse:
Que tanto sol raiasse,
Que até as pedras rachasse.
(Ib., p. 180)
Disse a ovelha:
Que tanto ventasse,
Que até a lã lhe voasse.
(Penafiel, Gaia — Ib., p. 182)
VOZ DO CORVO
Uma vez andavam uns pedreiros no monte a arrigar um penedo, o que muito
lhes custava; passou um corvo por cima e disse.
— Scaba, scaba, scaba (exeava).
Daqui lhe veio a sua feia voz.
(Paços de Ferreira — Ib., p. 158)
LENDA DO SAPO E DA TOUPEIRA
O sapo em outro tempo tinha rabo, e a toupeira tinha olhos. Depois fizeram
uma troca entre si; a toupeira ficou cega mas em paga com cauda, e o sapo
desrabado ficou com uns olhos lindos.
Uma vez uns lobos tinham enterrado um carneiro para o comerem em certo dia;
mas um deles foi às escondidas e comeu-o sozinho; os outros, quando viram que
o carneiro tinha desaparecido, disseram que haviam de saltar todos por cima de
um carro com estadulhos, que o criminoso ficaria espetado nos estadulhos.
Saltaram, e o criminoso ficou efetivamente espetado nos paus.
O goraz tem duas malhas, uma de cada lado da cabeça; é o sinal dos dedos de São
Pedro, quando um dia que andava pescando apanhou este peixe.
Abel tinha um cão, que estimava muito; quando Caim matou Abel, e o cão foi
pelo mundo fora a dizer:
— Caim, Caim!
Daqui o grito do cão, quando lhe batem.
Quando Deus criou os animais, deu o nome a todos; daí a dias veio verificar se
eles se lembravam ainda dos seus nomes. Todos se lembravam, menos o burro;
Deus então puxou-lhe muito as orelhas, e disse-lhe:
— Burro, burro! sempre hás de ser burro!
(Mafra)
A CRIAÇÃO DA MULHER
Quando Deus quis formar Eva, tirou uma costela de Adão, mas veio um cão
(raposa, gato, etc.) e levou a costela. Deus correu atrás dele, e agarrando-lhe pela
cauda fez dela a mulher, dizendo:
Tanto vale fazer Eva
De uma costela de Adão.
Como de um rabo de cão.
(Ap. Leite de Vasconcelos, Vanguarda, n.º 39)
A OBRA DE S. PEDRO
Andava uma mulher a bulhar com o Diabo. Deus mandou São Pedro apartá-los.
O santo foi, cortou a cabeça a ambos, e voltou. O Senhor perguntou-lhe:
— Ó Pedro, tu que fizeste?
— Não se queriam acomodar, e eu peguei e cortei-lhes as cabeças.
— Eu não te mandei fazer isso. Torna lá.
São Pedro foi, mas ao colocar as cabeças nos troncos, enganou-se e colocou na
mulher a cabeça do Diabo, e neste a da mulher.
(Ibidem)
NOTA: Gubernatis, na Mitologia Zoológica, t. I, p. 325, explica o sentido mítico
das lendas da troca de cabeças.
O CANTO DO GALO
Quando os Apóstolos estavam à mesa, afirmaram eles que Cristo não era Deus;
e Cristo respondeu:
— Que tanto era Deus como o galo falar.
Foi então que o galo disse: Coroado!
E ainda hoje é a sua linguagem.
(Penafiel)
LENDA DA CODORNIZ
LENDA DA ARVELINHA
(Famalicão)
NOSSA SENHORA E A SOLHA
A ROMARIA DA ABADIA
Deus mandou a Senhora para o deserto, e ela não queria ir. Deus disse-lhe
então:
— Vai, Maria. Todas as romarias se hão de renovar e acabar, e a tua há de ficar.
(Famalicão)
LENDA DAS GIESTAS
Quando Cristo veio ao mundo, foi procurado pelos Judeus para o matarem, e
como estes o vissem entrar para uma casa, colocaram-lhe à porta um ramo de
giesta, a fim de no dia seguinte o prenderem.
Nesse dia, porém todas as casas da povoação apareceram marcadas e os Judeus
não puderam dar com ele.
(Vanguarda, n.º 20)
LENDA DO MANTO DE NOSSA
SENHORA
(Porto)
LENDA DOS TREMOÇOS
(Id. ibid.)
(Galiza)
Um padre espanhol, querendo refutar o Teatro Crítico, de Feijó, diz que o nome
de Lisboa vem do grego olis e hyppon, tirado do que refere Plínio acerca das
ligeiras éguas, que concebiam do vento. (Pan., t. IV, p. 18, col. 2.)
A MOURA SALUQUIA E O NOME DA
VILA
«Querem alguns que Moura fosse fundada sobre as ruínas da antiga Araucitana:
seja porém como for, o nome da vila indica origem posterior a Gregos,
Romanos e Godos. — Conta-se que em tempo de el-rei Dom Afonso
Henriques, sendo possuidora desta povoação e seu castelo uma dona árabe
chamada Saluquia, filha de Buaçon, senhor de várias terras do Alentejo, tratara
este de se casar com um mouro chamado Brafama, alcaide do castelo de Aroche,
dez léguas distante de Moura; o qual vindo celebrar as núpcias foi acometido no
trânsito por dois fidalgos, Álvaro e Pero Rodrigues, ascendentes da nobre
família dos Mouras, que o mataram num vale, a uma légua da vila, que em
memória do caso se chamava Brafama, ainda no tempo do P.e Carvalho, isto é,
no princípio do século passado. Diz mais a tradição, que os fidalgos com sua
gente se disfarçaram em trajos mouriscos e caminharam, fingindo comitiva da
boda para a fortaleza, onde a moura esperava o noivo a uma janela que deitava
para o campo, mas assim que ao entrarem os hóspedes no castelo se descobriu o
engano, precipitou-se de uma torre abaixo para não cair cativa. Daqui vem ter a
vila por armas uma mulher ao pé de uma torre, em alusão à morte de Saluquia; e
com este brasão de armas combina o letreiro de uma sepultura, que está na igreja
do castelo, e que declara jazerem ali sepultados os cavaleiros, que tomaram esta
terra aos Mouros.» (Panorama, t. IV. p. 4, 1840.)
PENHOR SAGRADO
Da Sala do Capítulo, diz Frei Luís de Sousa: «Sendo quadrada, e tendo 340
palmos em âmbito, a 85 por cada lanço, é fechada de abóbada de cantaria, sem
coluna, nem esteio, nem cousa que a sustente, nem mais repuxo da banda de
fora, que a companhia do edifício que lhe fica dos lados. Assim está em forma,
que a quem põe os olhos no alto, engana, e faz parecer pela grandeza da casa,
que se sustenta sem côncavo. É fama que ao tempo que se fabricava caiu duas
vezes ao tirar dos simples, com dano de oficiais; e el-rei, desejando que todavia
ficasse a casa sem o desar das colunas ao meio, prometeu mercês ao arquiteto, as
quais o fizeram espertar de sorte que, tornando-a a fechar, afirmou que teria
melhor sucesso; porém ao tirar a madeira dos simples, dizem que não quis el-rei
arriscar os oficiais, e mandou vir das prisões do Reino alguns homens, que
estavam sentenciados a grandes penas, para que sobre eles caísse o terceiro dano
quando sucedesse.»
«Neste campo se acham muitas vezes umas pedrinhas como chícharos e grãos;
contam os da terra, e se traz em prática, que Nossa Senhora indo para o Egito,
passando por este lugar andava um lavrador semeando chícharos, e que a
Senhora lhe perguntara, que semeava? E ele lhe respondera, que semeava
pedras; e a Senhora repetira: — pedras te nasçam. Ainda que parece fábula e
conto de velhos, bem me lembra ter já visto em duas ou três partes pintada esta
história, ainda que a contam de muitas maneiras; mas na verdade eu vi algumas
vezes aos peregrinos colher aquelas pedrinhas com muita devoção, e sem ela as
colhi de companhia com eles, vendo-lhas colher, e trouxe comigo ao Reino.»
«Lembra-me que quando vão de Tomar para Coimbra, entre Ceras e a Venda
do Pereiro, nos mostram uma Torre à mão direita, desviada do caminho, na qual
dizem que morava um ladrão, que salteava os caminhantes: pouco vai em crer ou
não ser verdade a história que sobre isso nos contam; mas todavia muitos têm ser
verdadeira, vendo os indícios tão manifestos.»
Recordai imperador,
Aqui tendes vossa filha,
Pelo nome me puseram
De Maria Extravandia.[45]
LENDA DA FONTE DOS AMORES
NOTA: Com esta locução aparece uma outra: Voltas de Andresa, também
explicável pelos poemas medievais. Nos poemas de Tristão o intrigante que
muito se esforça para malquistar o rei March com seu sobrinho o namorado de
Isolda, é chamado Andret, que se torna típico, dando lugar à locução — Voltas
de Andresa.
LENDA DOS FERREIROS
VARIANTE
Havia um ferreiro no monte de Arcela e outro no de Guisande (Minho), mas
tinham entre si apenas um malho com que trabalhavam. Quando um descansava
atirava o malho ao outro, de monte a monte.
A ponte de Domingos Terne, sobre o Ave, uma légua para o norte da Senhora
do Porto de Ave, foi segundo a tradição, feita pelo Diabo. Eis o caso:
O Diabo queria ajuntar dois namorados, cada um dos quais morava em lugares
diferentes e separados pelo rio. Todas as noites lançava este uma ponte para o
rapaz ir ter com a sua conversada (namorada). Soube-se disto, e numa noite um
padre pôs-se à espreita, e depois que o rapaz passou, exorcismou de repente a
ponte, que o Diabo nunca mais pôde retirar.
(Positivismo, t. IV, pág. 116. Lendas análogas se contam das pontes de Valtelhas,
Misarela e outras)
LENDA DA AMENDOEIRA
Quando o Diabo fez a ponte da Aliviada chamou São Gonçalo, que andava a
fazer a de Amarante, e disse-lhe que a não benzesse; o Santo ergueu a bengala a
modo de cruz, assim como quem ao falar aponta; o Diabo então fugiu para cima
de um monte de onde começou a atirar pedras ao Santo, as quais ele desviava.
A vila de Simancas, chamada de antes Gureba, cobrou este nome porque sete
donzelas que daqui haviam de ser levadas, se cortaram as mãos para de este
modo escaparem; e como as amostrassem aos mouros que vinham arrecadar o
tributo, dizendo:
— Que não podiam ir por estarem mancas, — eles responderam, que:
— Assi mancas as queriam.
Mas o povo compadecido de tanta virtude, arremeteu tumultuariamente contra
os mouros e mortos de mão comum, foram as donzelas postas em liberdade,
deixando por nome à vila a resposta que deram aos bárbaros: Si mancas as
queremos, e por armas as mãos cortadas das donzelas.
querença, era este o nome que primeiro se deu à vila de Bragança, por ser o
mesmo que antes tinha o terreno, quinta ou lugar em que el-rei Dom Sancho I
a fez de novo construir.
(Viterbo, Elucidário)
NOTA: Viterbo extrata um codicilo de 1183 onde vem Benequerência, como
alatinização do nome local, e que explica a lenda.
ORIGEM DO NOME DE VISEU
Quase pegado a esta cidade para o lado do Nascente, está o Alto do Viso, onde se
dividem as águas para os rios Paiva e Dão: deste alto os guerreiros cristãos
avistaram uma povoação, e disse um deles:
— Que Viso eu?
Daqui ficou o nome à terra.
LENDA DE BRITIANDE
Era uma vez um rei que passou por aquele sítio (de Britiande) na ocasião em
que um lavrador andava a varejar uma nogueira. O pobre homem ofereceu
nozes a um dos da comitiva real, e como este aceitasse, o rei disse-lhe:
— Conde, Brite e ande.
Daqui o nome da povoação.
(Id., ibid.)
LENDA DE LAMEGO
Vem de jeito esta conhecida frase Noites de Lamego, que se interpreta assim: Um
viajante hospedou-se uma noite em Lamego. O dono da casa deu-lhe um quarto
muito escuro, onde havia um armário com queijos, e pela manhã esqueceu-se de
ir abrir a porta. O viajante acordou, e cuidando que o armário era uma janela,
abriu-o e como não visse luz e ele lhe cheirasse ao queijo que lá estava, disse:
— É muito cedo, não se vê nada, e só ainda agora as mulheres vão a vender o
leite pela rua.
E tornou-se a deitar, dormindo não sei se um dia se mais. Quando lhe abriram a
porta, ficou tão admirado por as noites de Lamego serem tão compridas.
(Id., Ibid.)
A TORRE DOS NAMORADOS
Conta-se na povoação do Alcaide que, no tempo dos Mouros, o rei era lavrador
e tinha uma filha muito formosa que era requestada por dois mancebos. O rei
não sabendo a qual havia de dar a filha, porque ambos a queriam, deu-lhes duas
empresas arrojadas, para desempenharem, e então se decidir. Um tinha de
levantar dentro de certo prazo uma torre muito alta, e o outro encanar um
ribeiro para o lago do palácio.
Ambos cumpriram tudo como o rei talhara, e julgavam-se já com direito à mão
da princesa. Ela fugiu para uma floresta, e os namorados lá a encontraram, e não
querendo nenhum ceder do seu amor, mataram-na. A torre ainda existe de pé.
Dois irmãos traziam amores com uma donzela que por aqueles sítios habitava,
ignorando ambos os amores um do outro. Acontecendo por uma triste fatalidade
encontrarem-se os dois irmãos em uma noite tenebrosa, debaixo do balcão do
objeto que tão enfeitiçados os trazia, um deles persuadido que o outro lhe
disputava os favores de sua dama, corre cego e inconsiderado sobre ele e o
estende morto a seus pés, vítima de um frenético ciúme. Porém qual a sua
desesperação quando pela voz moribunda daquele que julgava seu rival,
reconhece ter sido o assassino de seu próprio irmão, que muito amava e que lhe
expira nos braços! Cheio de desesperação volta contra o peito o ferro fratricida,
e cai morto sobre o cadáver ensanguentado do irmão, preferindo uma morte
pronta a uma vida inconsolável cheia de remorsos.
«Dizia certo arcebispo a um criado que soubesse quantos pães de arrátel lhe
dava a padeira por cada alqueire de trigo, que lhe mandavam amassar; e se não
fossem tanto, que lhos não aceitassem, porque cada alqueire dava tanto.
Respondeu-lhe o criado:
— Pois, senhor, eu não quero viver com quem sabe quantos pães faz um alqueire.
E despediu-se logo.»
Uma raposa passou por um souto e sentiu piar um mocho; disse ela para si:
— Ceia já eu tenho.
E foi muito sorrateira trepando pelo castanheiro em que estava piando o mocho,
e filou-o.
O mocho conheceu a sorte que o esperava, e viu que não podia livrar-se da
raposa sem ser por ardil. Disse então para ela:
— O raposa, não me comas assim como qualquer frango desses que furtas pelos
galinheiros; tu também sabes andar à caça de altenaria, e é preciso que todos o
saibam. Agora que me vais comer, grita bem alto: «Mocho comi!»
A raposa levada por aquela vaidade, gritou:
— Mocho comi!
— A outro sim, que nenja a mim! — replicou-lhe o mocho caindo-lhe de entre
os dentes e voando pelo ar fora, livre do perigo.
(Airão)
A ÁGUIA E A CORUJA
(Porto)
AINDA NÃO SE ACABA O MUNDO
A barata saiu debaixo de umas pedras com os filhos e disse-lhes, enquanto eles
ainda pequenos estavam ao sol:
— Passeai, flores! Passeai, flores!
Daqui vem o ditado: «Quem o feio ama, bonito lhe parece.»
(Ilha de S. Miguel)
A RAPOSA E O LOBO
De uma vez uma raposa apanhou um buraquinho num galinheiro, entrou para
dentro fazendo-se muito esguia, e depois que se viu lá, comeu galinhas à farta.
Quando foi para sair estava com a barriga muito cheia, e por mais que fez não
pôde passar pelo buraco. Viu-se perdida, porque já vinha amanhecendo. Por fim
teve uma lembrança: Fingiu-se morta.
De manhã veio o lavrador e viu-a:
— Cá está ela. E que estrago que me fez!
Vai para lhe dar pancadas e matá-la, mas vê-a hirta, com a língua atravessada
nos dentes e os olhos envidraçados:
— Poupaste-me o trabalho; morreste arrebentada. Foi bom.
E pegando-lhe pelas pernas atira-a para o meio da horta para a enterrar. A
raposa assim que se viu fora do galinheiro, pernas para que te quero! botou a
fugir pelos campos fora e fez do rabo bandeira. O lavrador deu a cardada ao
dianho, e jurou que nunca mais se fiaria em raposas.
(Airão)
A RAPOSA E O GALO
Uma vez um lobo encontrou uma ovelha, que andava a pascer, e disse-lhe:
— Ó ovelha! eu como-te.
Respondeu a ovelha:
— Pois sobe ali para cima, que eu entretanto vou pascendo, e depois entro-te lá
mesmo pela boca dentro.
O lobo subiu para o alto do monte e esperou. A ovelha assim que viu o lobo
longe, fugiu. O lobo começou a correr atrás dela, e como a não pudesse agarrar,
disse:
Eu, que sou lobinho-cão
Nunca corri tanto em vão.
Respondeu a ovelha:
Eu, que sou ovelhinha ruça,
Nunca corri tanto de escaramuça.
Na aspereza do deserto,
Que não sei quem o suporte,
De urzes e de tojos coberto,
Sendo tudo tão incerto,
Sendo só tão certa a morte?
Vive, amigo, a teu sabor;
Mais é que cousa perdida
Quem por si escolhe o pior;
Vai-te comigo onde eu for,
Lá verás que cousa é vida.
Ai baldias esperanças,
Meu entendimento fraco!
Deixemos tais abastanças,
Tais riquezas, tais mostranças,
Deus me torne ao meu buraco.[49]
(Francisco de Sá de Miranda, Cart. TH, est. 39, e segs.)
NOTA: É o n.º CVII das Fábulas de Babrius: «Dois ratos, um habitando nos
campos como verdadeiro labrego, e outro recolhido em uma despensa bem
fornecida, combinaram de viverem juntos. O citadino foi prontamente cear ao
campo o qual começava a verdejar e a florir. Depois de ter roído algumas raízes
de trigo húmidas e empastadas de terra, diz:
— Que vida miserável que tu aqui levas, pior do que a da formiga, roendo
alguns grãozitos que apodrecem na terra. Eu cá, tenho tudo em abundância, até
mesmo supérfluo; comparando-me contigo, eu vivo dentro do Como de
Almateia. Se queres anda daí comigo; todos os teus dias a teu grado se tornarão
dias de festa, e tu deixarás às toupeiras o cuidado de esgaravatar este torrão.
Leva ele então o rústico consigo, tendo-o convencido de vir para a habitação e
teto dos homens. Foi-lhe mostrando onde estava a provisão de farinha, onde
amontoados os legumes, as ceiras de figos, as talhas de mel e as bocetas de
tâmaras. Enquanto o camponês ficava maravilhado da opulência que estava
vendo, metendo-se por todos os lados, e arrastando um queijo que tirara de um
açafate, vieram abrir a porta. Imediatamente atirou-se de um salto rápido e todo
trémulo procurou o esconderijo de um pequeno buraco, soltando confusamente
alguns guinchos e sem roçar pelo corpo do seu hospedeiro. Depois de alguns
momentos de expectativa botou o focinho de fora, e quando levava à boca um
figo de caixa, entra um outro homem a buscar qualquer cousa. Os dois amigos
esconderam-se o melhor que puderam, e o rato dos campos disse para o seu
amigo:
— Goza tuas riquezas, regala-te em jantares assim, atasca-te nas delícias dos
teus esplêndidos bródios e de todas as satisfações de que gostas sempre em
alarmes. Quanto a mim não deixarei a pequena moita de terra que me dá abrigo,
e me faculta remoer tranquilamente os meus grãozinhos.» (Trad. de Beyer, p.
85, Ed. 1844.)
A RAPOSA E O LEÃO ENFERMO[50]
NOTA: É a 6.ª Fábula de Loqman: «Um leão tendo envelhecido, chegou a não
poder já ir à caça de outros animais. Resolveu empregar a manha para alcançar a
subsistência. Fingiu-se doente, e retirou-se a uma caverna. Aconteceu pois que
qualquer dos animais que o ia visitar era por ele despedaçado dentro da caverna
e devorado. Veio visitá-lo a Raposa, e parando à porta do antro cumprimentou-
o nestes termos:
— Como vais de saúde, ó Rei dos Animais?
Respondeu-lhe o Leão:
— E porque não entras tu, ó Senhora do Castelo?
Replicou a Raposa:
— Meu senhor, nessa intenção vinha eu, mas estou a ver pelas pegadas marcadas
no solo, que muitos são os visitantes que entram, e no entanto não vejo que haja
saído um só deles.» (Trad. árabe por Joseph Benoliel, op. cit. p. 23).
A Fábula CII de Bahrius O Leão Doente e os Animais, é este mesmo tema
graciosamente tratado. (Trad. de Beyer, p. 79).
AGLAU OU A BEM-AVENTURANÇA
Bacorote orgulhoso
Deu vista ao gado ovelhum,
De quexiquer[52] espantoso;
Trombejava ele hum e hum,
Andava todo bravoso.
Vem um dia o Lobo, e apanha
Pela cabeça o doudete:
Abrandou-lhe aquela sanha;
Brada: — Ah dos meus! Em tamanha
Pressa ninguém arremete.
(D. Francisco Manuel de Melo, Obras Métricas, églog. II, est. 77 e seg.)
O ÓDIO E O AMOR
(D. Francisco Manuel de Melo, Obras Métricas, cart. II, est. 24 e seg.)
Toparam-se ao perpassar;
E o Lobo, meio caindo,
Nem lhe ousava de falar;
Ela a rir, e a arrebentar
De se ver tão bem subindo.
Se queres de pensamentos
(D. Francisco Manuel de Melo, Obras Métricas, cart. IX, est. 25 e seg.)
O CONSELHO DOS RATOS
Os Ratos fizeram entre si uma grande, e a seu parecer, útil consulta (fábula é,
mas doutrinal), querendo dar remédio à perseguição que lhes faziam os Gatos;
pois raramente lhes escapavam das unhas; e dando cada qual seu parecer,
acordaram que se deitasse um grande chocalho no pescoço dos Gatos, e com isto
os não tomariam descuidados, pois ao tom do chocalho se poriam em cobro, ou
acautelariam. Contentes todos com a traça, que parecia boa, respondeu um mais
autorizado e velho: — E qual há de ser o primeiro da companhia, que se atreva a
deitar esse chocalho? — Aqui calaram e pasmaram todos.
Viu a Tartaruga voar a Águia por esses ares com tanta soltura e liberdade,
quanta tem a rainha das Aves (fábula é com sua doutrina), e quis ela também
fazer o mesmo. Pediu com encarecimento à Águia a quisesse levar ao alto, e tirar
daquele poço, onde andava.
— És mui pesada, e impedida de membros e concha — lhe disse a Águia.
— Não importa isso nada — respondeu a Tartaruga —; que quem tão bem se
meneia na água, que faz mais resistência, por ser mais grossa, melhor o fará no
ar, que é mais delgado.
— Que não tens asas, nem instrumentos para te ter?
— Não releva[63] — replica ela —, isto quero experimentar.
— Pera que te pões nesses perigos? — lhe pergunta a Águia.
— Porque quero ser conhecida, e não estar toda a minha vida em um poço, ou
charco escondido; e se vós voais, também eu.
— Alto, vamos ambas acima.
Pega a Águia da Tartaruga, e em a largando, que esperais fosse dela? Caiu, e
fez-se em pedaços. E vem o Conto a dizer: Que se não há asas, ou posses, pera
que é querer voar ou dar de comer a ventos? Quem vive e se meneia no seu poço,
pera que quer ares? Quem na sua herdade ou quinta, pera que quer Corte, ou
Cidade? Quem no seu quartau[64], pera que em coches? Quem no pano
honesto, pera que em galas, ou mangas perdidas, senão pera se perder? — Oh!
que anda o outro assim, e é costume do tempo e da Cidade! — Quiçá[65] terá
asas o outro, com que possa sustentar esse fausto e esse vento; mas quem se não
pode bulir mais que uma Tartaruga, porque se não contenta com a sua concha,
ou com andar metido nelas?
Vieram duas mulheres diante de Salomão com uma demanda notável. Traziam
consigo dois meninos, um morto outro vivo: o vivo cada uma dizia que era seu
filho, o morto cada uma dizia que o não era. Que faria o grande Rei nesta
perplexidade? — Parta-se o menino vivo pelo meio, e leve cada uma a sua parte.
— Ouvida a sentença, uma das mulheres consentiu, e disse, parta-se: a outra não
consentiu, e disse, viva o menino, e leve-o embora minha competidora. E qual
destas duas seria mãe? A que disse, viva o menino. Assim o julgou Salomão, e
assim era: porque a que disse morra mostrou que não amava; a que disse, viva
provou que amava, e da que amava o menino, desta era filho.
Houve um rei antigamente neste mundo, que sabendo de dous vassalos seus, que
eram grandes inimigos entre si, mandou chamar o mais apaixonado, e disse-lhe:
— Quero-vos fazer uma mercê, e há de ser a que vós me pedirdes; com
advertência que a hei de fazer dobrada a fulano, de quem sei, sois grande
inimigo.
Beijou a mão ao rei pelo favor, e pediu logo por mercê, que lhe mandasse
arrancar um olho; porque assim seria obrigado a arrancar dous ao outro, para
que ficasse cego, ainda que ele ficasse torto. E bem cego estava, quando
procurava dano alheio sem proveito próprio
.
(Arte de Furtar, pág. 468 e seg.)
FÁBULAS DE ESOPO
(Vertidas do grego por Manuel Mendes, da Vidigueira)
I - O GALO E A PÉROLA
Havia guerra travada entre Lobos e Ovelhas; e elas, ainda que fracas, ajudadas
dos rafeiros, sempre levavam o melhor. Pediram os Lobos paz, com condição
que dariam de penhor seus filhos, e as Ovelhas que também lhe entregassem os
rafeiros. Assentadas as pazes com estas condições, os filhos dos Lobos uivavam
rijamente. Acodem os pais, e tomam isto por achaque de ser a paz quebrada; e
tornam a renovar a guerra. Bem quiseram defender-se as Ovelhas, mas como
sua principal força consistia nos rafeiros, que entregaram aos Lobos, facilmente
foram deles vencidas, e todas degoladas.
IV - O REI DOS BUGIOS E DOIS
HOMENS
Desejava um Rato passar um rio, e temia, por não saber nadar. Pediu ajuda a
uma Rã, a qual se ofereceu de o passar, se se atasse ao seu pé. Consentiu o Rato,
e tomando um fio, se atou pelo pé e na outra ponta atou o pé da Rã. Saltaram
ambos na água, mas a Rã com malícia trabalhava por se mergulhar, por que o
Rato se afogasse. O Rato fazia por sair para fora, e ambos andavam neste
trabalho e fadiga. Passava um milhano por cima e vendo o rato sobre a água, se
abateu per o levar, e levou juntamente a Rã, que estava atada com ele, no ar os
comeu ambos.
VII - O LADRÃO E O CÃO DE CASA
Querendo um Ladrão entrar em uma casa de noite para roubar, achou à porta
um Cão, que com ladridos o impedia. O cauteloso Ladrão, para o apaziguar, lhe
lançou um pedaço de pão. Mas o cão disse: — Bem entendo que me dás este pão
por que me cale, e te deixe roubar a casa, não por amor que me tenhas: porém já
que o dono da casa me sustenta toda a vida, não deixarei de ladrar, se não te
fores, até que ele acorde, e te venha estorvar. Não quero que este bocado me
custe morrer de fome toda a minha vida.
VIII - O CÃO E A OVELHA
Levava um Cão na boca um pedaço de carne, passava com ela um rio, e vendo no
fundo da água a sombra da carne maior, soltou a que levava nos dentes, por
tomar a que via dentro na água. Porém como o rio levou para baixo com sua
corrente a verdadeira, levou também a sombra e ficou o Cão sem uma e sem
outra.
X - A MOSCA SOBRE A CARRETA
Sobre um carro de mulas, carregado, pousou uma mosca, e achou-se tão altiva
de ir a seu gosto, alta, que começou a falar soberba contra a mula dizendo que
andasse depressa, senão que a castigaria, picando-a onde lhe doesse. Virou a
mula o rosto dizendo: — Cala-te, parva sem vergonha, que não temo nem me
podes fazer nada; o medo que me causa é do carreteiro, que leva na mão o açoite,
que tu só com importunações cansas-me, sem me fazer outro mal.
XI - O CÃO E A IMAGEM
Fizeram parceria um Leão, uma Vaca, uma Cabra e uma Ovelha, para que
caçassem de mão comum e partissem o ganho. Correndo sobre este concerto,
acharam um Veado, depois de terem andado e trabalhado muito, o mataram.
Chegaram todos cansados e cobiçosos da presa, e fizeram-no em quatro partes
iguais. O Leão tomou uma, e disse: — Esta é minha conforme ao concerto;
estoutra me pertence por ser mais valente de todos; também tomarei a terceira,
porque sou rei de todos os animais, e quem na quarta bulir, tenha-se por meu
desafiado. Assim as levou todas, e os parceiros se acharam enganados, e com
agravo, mas sofreram por serem desiguais na força ao Leão.
XIII - O CASAMENTO DO SOL
Um homem que caçava Ratos, prendeu na armadilha uma Doninha. Ela vendo-
se em seu poder, lhe disse que a soltasse, e alegou razões, dizendo: que ela
nenhum mal fazia, antes, lhe alimpava a casa de ratos e bichos, e sempre, por lhe
fazer bem, os andava matando. Respondeu o homem: — Se tu por fazer bem o
fizeras, devia-te eu agradecimento, mas como o fazes pelo comer, não te devo
nada, antes te quero matar, que se eles te faltarem, comer-me-ás o meu, pior do
que o fazem os mesmos ratos.
XV - A BUGIA E A RAPOSA
Rogava a Bugia à Raposa que cortasse a metade do seu rabo e lho desse,
dizendo: — Bem vês que o teu rabo arroja, e varre a terra, e é defeito por
demasiado; o que dele sobeja me podes prestar a mim, e cobrir-me estas partes,
que vergonhosamente trago descobertas. Antes quero que arroje, (disse a
Raposa) e varra o chão, e me seja pesado, que aproveitares-te tu dele. Por isso
não to darei nem quero que coisa minha te preste. E assim ficou sem ele a Bugia.
XVI - JUNO E O PAVÃO
Veio o Pavão a Juno muito queixoso, dizendo, por que razão o Rouxinol havia
de cantar melhor que ele, e ter-lhe outras muitas vantagens? Disse Juno, que
não se agastasse; que por isso tinha ele as penas formosas cheias de olhos, que
parecem estrelas. — Isso é vento (replicou o Pavão) mais tomara saber cantar.
Juno respondeu. Não podes ter tudo. O Rouxinol tem voz, a Águia força, o
Gavião ligeireza, tu contenta-te com tua formosura.
XVII - O LOBO E O GROU
Tomando a uma cadela as dores de parir, e não tendo lugar donde parisse, rogou
a outra que lhe desse a sua cama e pousada, que era em um palheiro, e tanto que
parisse se iria com seus filhos. Fê-lo a outra com dó dela, e depois de haver
parido, lhe disse que se fosse embora; porém a boa hóspeda mostrou-lhe os
dentes, e não a quis deixar entrar, dizendo que estava de posse, e que não a
lançariam dali, senão fosse por guerra e às dentadas.
XIX - O HOMEM E A COBRA
Tinha a Águia filhos e para os cevar levou nas unhas dois raposinhos tomados de
uma lousa. A mãe, que o soube, lhe foi rogar que desse seus filhos. Mas a Águia
lá do alto zombou dos rogos e disse que não deixaria de lhos comer. A raposa
magoada começou logo a cercar a árvore, onde a Águia tinha seu ninho, de
muitas palhas, tojos, paus secos e acendalhas de tal maneira, que pondo-lhe o
fogo, fez uma fogueira muito grande. Viu-se a Águia atribulada do fumo, e
labareda, e do receio que ardesse a árvore toda, lançou-lhe os filhos sem lhe
tocar, e quase ficou chamuscada pela indústria da Raposa.
XXIII - O GALO E A RAPOSA
Tinha um Lavrador um Bezerro, forte e mimoso e pô-lo no jugo, com outro boi
manso; mas como o Bezerro o não quisesse tomar nem sofrer, com pancadas e
pedradas, trabalhava o Lavrador per o amansar. E disse ao Boi manso: — Não
te tomo com este para que lavres, que ainda não é para isso, senão para o
amansar de pequeno, porque depois que for touro madrigado não haverá quem
o amanse.
XXV - O LOBO E O CÃO
As mãos e os pés se queixavam dos outros membros, dizendo — que eles toda a
vida trabalhavam e traziam o corpo às costas, e tudo redundava em proveito do
estômago que comia sem trabalho; portanto que se determinasse a buscar sua
vida, que eles não haviam de dar-lhe de comer. Por muito que o estômago lhes
rogou, não quiseram tomar outra determinação, e assim começaram a negar-lhe
a comida: e ele enfraqueceu. Mas como juntamente enfraquecessem os pés e
mãos, tornaram depressa a querer alimentá-lo; mas como já a fraqueza fosse
muita, nada lhes valeu, e morreram todos juntamente.
XXVII - A ÁGUIA E A COREIXA
A Águia tomou nas unhas um Cágado para cevar-se, e trazendo-o pelo ar, e
dando-lhe picadas, não podia matá-lo, porque estava mui recolhido em sua
concha. Embravecia-se muito com isso a Águia, sem lhe prestar, quando chega a
Coreixa, e diz: — A caça que tomastes é em extremo boa, mas não podereis
gozar dela senão por manha. Disse a Águia que lhe ensinasse a manha e partiria
com ela da caça. A Coreixa o fez dizendo: — Subi-vos sobre as nuvens, e de lá
deixai cair o Cágado sobre alguma laje, quebrará a concha e ficar-nos-á a carne
descoberta. A Águia assim o fez; sucedendo como queriam, comeram ambas da
caça.
XXVIII - A RAPOSA E O CORVO
O Corvo apanhou um queijo, e com ele fugindo, se poisou sobre uma árvore.
Viu-o a Raposa, e desejou de lhe comer o seu queijo: e pondo-se ao pé da árvore,
começou a dizer ao Corvo: — Por certo que és formoso, e gentil-homem, e
poucos pássaros há que te ganhem. Tu és bem-disposto e mui galante; se
acertaras de saber cantar, nenhuma ave se comparará contigo. Soberbo o Corvo
destes gabos e desejando de lhe parecer bem, levanta o pescoço para cantar;
porém abrindo a boca, caiu-lhe o queijo. A Raposa o tomou e foi-se, ficando o
Corvo faminto e corrido de sua própria ignorância.
XXIX - O LEÃO E OS OUTROS
ANIMAIS
NOTA: João de Deus, com a sua intuição poética tratou artisticamente o tema
desta fábula alegorizando no Leão velho Portugal caído no meio das fações
políticas da pedantocracia liberal, ao serviço de uma dinastia tarada: Leão
moribundo. Achou-se um dia o rei dos animais / Por velhice ou doença moribundo, / E
(há casos neste mundo / Incríveis, mas reais...) / Quem dantes mais solícito o servia, / É
que às portas da morte o injuria! // Veio o cavalo e deu-lhe uma patada! / Veio o lobo,
ferrou-lhe uma dentada, / Veio o boi, arrumou-lhe uma marrada! / Ele, coitado, manso
como um lago, / Apenas lhes lançou um olhar vago. // Mas, quando ouviu um zurro, / E
olhando então deveras, / Viu aos pinotes vir correndo o burro... / Ah! pressentindo a
injúria, / O forte de outras eras, / Rei dos bosques e feras, / Em suma, o grande, o
generoso, o forte, / Arranca das entranhas / Um gemido, um rugido, um uivo, um urro, /
Que retumbou por vales e montanhas: / «Antes a morte! a morte! / A morte! a morte!»
(Campo de Flores, p. 252. Ed. 1897.)
XXX - AS RÃS E JÚPITER
As Rãs, no outro tempo, pediram a Júpiter que lhes desse rei, como tinham
outros muitos animais. Riu-se Júpiter da ignorante petição, e deferindo a ela,
lançou um madeiro no meio da lagoa. Começaram as Rãs a ter-lhe respeito,
porém desde que entenderam que não era cousa viva, de novo tornaram a
Júpiter pedindo rei. Agastado Júpiter da importunação, deu-lhes a Cegonha,
que começou a comê-las uma a uma. Vendo elas esta crueldade, foram-se com
queixas, e por remédio a Júpiter, mas ele as lançou de si, dizendo: — Andai para
loucas: já que vos não contentastes do primeiro rei, sofrei este, que tanto me
pedistes.
XXXI - AS POMBAS E O FALCÃO
Em certo tempo, começou a Terra a dar urros, e inchar, dizendo que queria
parir. Andava a gente mui pasmada, e cheia de temor, e receosa que nascesse
algum monstro proporcionado com a mãe, que pudesse destruir o mundo todo.
Chegado o tempo do parto, estando todos juntos suspensos, pariu a Terra um
Murganho, e ficou sendo riso o que antes era medo.
XXXIII - O GALGO VELHO E SEU
AMO
A um Galgo velho, que havia sido muito bom, se lhe foi uma lebre dentre os
dentes, porque quase já os não tinha. O amo por isso o açoitou cruelmente, e
lançou de si, como cousa que nada valia. Disse o Galgo: Deves, senhor, lembrar-
te como te servi bem enquanto era moço, quantas lebres tomei, e quanto me
estimavas: agora que sou velho, e estou posto no osso, por uma que me fugiu,
me açoutas, e lanças fora, devendo perdoar-me e pagar-me bem o muito que te
tenho servido.
XXXIV - AS LEBRES E AS RÃS
NOTA: Acha-se nas Fábulas de Babrius, n.º XXIV: «As lebres resolveram pôr
termo à vida, indo-se precipitar na água turva de um charco, pois que eram os
mais medrosos dos animais, que na sua poltroneria só tinham fôlego para fugir.
Assim que elas chegaram junto de um grande charco, viram sobre as suas
margens uma multidão de rãs, que de um salto se precipitaram no lodaçal. As
lebres estacaram, e uma delas, enchendo-se de coragem disse:
— Vamo-nos embora. Já não é preciso morrer, porque ainda há quem tem mais
medo do que nós.» (Trad. Beyer, p. 29.)
XXXV - O LOBO E O CABRITO
Uma Cabra, indo pastar ao campo, deixou o filho em casa e mandou-lhe que
não abrisse ao Urso, nem Lobo, que ali viesse, porque morreria. Ida ela veio um
Lobo, e fingindo a voz de Cabra, começou a afagar o cabrito, dizendo — que
lhe abrisse, que era sua mãe. Ouvindo isto o Cabrito, chegou a porta e por uma
fenda olhou, e viu o Lobo, e sem outra resposta virou as costas e recolheu-se em
casa. O Lobo foi-se, e ele ficou salvo.
XXXVI - O CERVO, O LOBO E A
OVELHA
Havia guerra travada entre as Aves e outros animais, que, como eram fortes,
andavam as Aves maltratadas e vencidas. Temeroso disto, o Morcego passou-se
do bando contrário e voava por cima dos animais de quatro pés, posto já de sua
parte. Sobreveio a Águia em favor das Aves, e alcançaram vitória. E tomando o
Morcego, em castigo de traição, lhe mandaram que andasse sempre pelado e às
escuras.
XLIII - O CAVALO E O ASNO
Indo o Cavalo com jaezes ricos de seda e ouro de muito preço, encontrou no
caminho um Asno carregado, e disse-lhe com muita soberba: Animal
descomedido, porque não me dás lugar; e te desvias para que eu passe? Calou e
sofreu o pobre Asno. Mas daí a poucos dias emanqueceu o Cavalo, e puseram-no
de albarda para servir. Acertou o Asno de o achar carregado de esterco, e disse-
lhe: — Que vai, irmão, onde está vossa soberba, porque não mandais agora que
me arrede, como fazias em outro tempo?
XLIV - O FALCÃO E O ROUXINOL
O Falcão uma manhã se apossou do ninho onde o Rouxinol tinha seus filhos, e
quis matá-los. Começou o Rouxinol com muita brandura a rogar-lhe que não os
matasse, e que o serviria. Disse o Falcão, que era contente, se cantasse de modo
que o satisfizesse. Começou o triste Rouxinol a cantar muito sentido, e suave.
Porém o Falcão mostrando-se descontente da música, começou a comê-los.
Chega nisto por detrás um caçador e lança ao Falcão um laço em que o prendeu
e o levou arrastos, e o Rouxinol ficou livre.
XLV - AS ÁRVORES E A MACHADA
Um machado de aço bem forjado, faltando-lhe o cabo, sem ele não podia cortar.
Disseram as Árvores ao Zambujeiro, que lhe desse o cabo. E como o machado
esteve encavado, um homem com ele começou a fazer madeira, e destruir o
arvoredo. Disse então o Sobreiro ao Freixo: — Nós temos a culpa, que demos
cabo ao Machado para nosso mal; porque a não lho darmos, seguras pudéramos
estar dele.
XLVI - O ASNO E O MERCADOR
Uma Doninha, como de velha e cansada, não pudesse já caçar, usava esta manha:
Enfarinhava-se toda e punha-se mui queda a um canto da casa. Vinham alguns
Ratos que cuidando ser outra coisa, chegavam por comer, e ela os comia. Por
derradeiro veio um Rato velho, que tinha já escapado de muitos trances, e posto
de longe disse: — Por mais artes que uses, não me colherás. Engana tu a esses
pequenos; mas eu, conheço-te bem, não hei de chegar a ti. E dizendo isto, foi-
se.
XLVIII - A RAPOSA E AS UVAS
Vendo o Asno que seu amo brincava com uma Cachorrinha, e se alegrava com
ela, e a tinha à mesa, dando-lhe de comer, porque o afagava vindo de fora e
saltava nele, creio que se o outro tanto lhe fizesse, também seria estimado; e com
essa inveja se vai ao senhor em entrando de fora e pondo-lhe as mãos sobre os
ombros, começou a lamber-lhe o rosto com a língua. Espantado o amo, brada, e
acodem os criados e a poder de muitas pancadas tornaram a meter o Asno em sua
estrebaria.
LI - O LEÃO E O RATO
Estava uma Porca com dores de parir, e um faminto Lobo se chegou a ela,
dizendo que era seu amigo, e tinha dó de a ver desamparada, que queria servir-
lhe de parteira. Bem entendeu a Porca que vinha ele por lhe comer os filhos; e
dissimulando disse: — que não pariria enquanto ele ali estivesse, que era mui
vergonhosa, e que se pejava dele, que era seu afilhado; portanto, que se fosse e a
deixasse parir, e que depois tomaria. Fê-lo o Lobo assim, mas em se desviando
dali, a Porca também se foi buscar um lugar seguro em que parir.
LIV - O VELHO E A MOSCA
Um homem pobre costumava afagar e dar de comer a uma Cobra, que em sua
casa trazia; e enquanto assim o fez, tudo lhe ia por diante. Depois, por certa
agastadura, fez-lhe uma grande ferida. E vendo que tornava a empobrecer, com
muitas palavras e humildade lhe pediu perdão. Respondeu a Cobra: — Eu de
boamente te perdoo, mas não te há de isto prestar para deixares de ser pobre;
que esta ferida sempre me há de doer, e sempre há de estar pedindo vingança de
ti.
LVII - O BUGIO, O LOBO E A RAPOSA
Querelou o Lobo da Raposa, dizendo que fizera um furto. Era juiz o Bugio. E
a Raposa negou fortemente, disputando ambos diante do juiz e cada um
descobriu quantas maldades sabia do outro. Depois de o Bugio os ouvir,
pronunciou a sentença, dizendo: que o Lobo não provara bem ser-lhe feito
furto: mas que ele entendera que a Raposa tinha furtado alguma cousa;
portanto, condenava a ambos que ficassem entre si sempre desavindos, e
suspeitosos.
LVIII - A FAIA E A CANANOURA
A Faia alta e direita não queria dobrar-se ao vento, antes vendo a Cananoura
que se meneava facilmente, a aconselhava que estivesse tesa, sem dobrar-se.
Respondeu a Cananoura: — Tu podes resistir e eu não, que não tenho raízes
compridas, nem sou forte como tu és. Dizendo isto, veio um pé de vento com
braveza, que arrancou a Faia com raízes e tudo; mas a Cananoura, que se
dobrou, ficou em pé.
LIX - A FORMIGA E A CIGARRA
No inverno tirava a Formiga da sua cova à assoalhar o trigo, que nela tinha, e a
Cigarra com as mãos postas lhe pedia que repartisse com ela, que morria à fome.
Perguntou-lhe a Formiga: que fizera no estio, porque não guardara para se
manter? Respondeu a Cigarra: — O verão e estio, gastei a cantar e passatempos
pelos campos. A Formiga então, perseverando em recolher seu trigo, lhe disse:
— Amiga, pois os seis meses de verão gastaste em cantar, bailar é comida
saborosa e de gosto.
NOTA: Por muito velha e universal que seja uma fábula, ela pode pela
alegorização receber um sentido novo, atualizando-se. Assim, representando na
Formiga o povo que trabalha, e na Cigarra a aristocracia que se diverte, faz-se o
quadro do conflito que sintetiza a Revolução Francesa. No poemeto Leviatã,
trata-se assim o tema esópico: Debaixo de um sol de agosto, / Na fadiga / A que a
precisão obriga, / Gira da aurora ao sol posto / A Formiga. // Aqui sobe, ora além desce,
/ Quase esbarra; / De manhã, ‘té que anoitece / Canta ociosa de entre a messe / A
Cigarra. // Chega a enxurrada de outubro: / — Minha amiga! / Fome negra... este
olhar rubro... / Que horrenda crise descubro! / Ai Formiga. // Com frio, faminta,
inquieta / Seu mal narra; / Responde a outra: «Pateta! / Cura a febre com dieta, / Mãe
Cigarra. // Chasqueavas-me em agosto, / Na fadiga / Com descuidada cantiga; / Hoje,
vai-te e dança ao gosto / Da Formiga.» // E foi o Seis de outubro o grande dia / Da
tremenda Justiça! Dia amargo, / Embate de dois mundos. / Pelo caminho que a
Versalhes guia, / Irrompe a multidão que expande ao largo / Doestos iracundos. (Visão
dos Tempos, C. IV, 221).
LX - O CAMINHANTE E A ESPADA
Uma Gralha ociosa pousou sobre o pescoço da Ovelha, e ali a repelava, e lhe
tirava a lã, picando-a por entre ela. Virou a Ovelha o rosto, dizendo:
— Esta manha ruim e antiga havereis de deixá-la esquecer, que podeis ir picar
um rafeiro no pescoço e matar-vos-á levemente. Respondeu a Gralha:
— Já sou velha, e muito feia e conheço a quem posso agravar e a quem devo
afagar. Não temas que me ponha no pescoço do cão, senão no teu, que me não
podes fazer mal.
LXIII - O BOI E O VEADO
Andando o Leão à caça, meteu um estrepe no pé, com que não podia bulir-se.
Encontrou um homem e mostrou-lhe para que lho tirasse. Fê-lo assim o
homem, e o Leão em paga partiu da caça com ele. Dali a muito tempo foi
tomado este Leão para certas festas e nelas se lançavam homens para que os
matassem. Entre eles lhe lançaram este que o curou, que estava preso por
algumas culpas. Porém o Leão não só o não matou, antes se pôs em sua guarda, e
o acompanhou toda a vida, caçando para ele.
LXV - O LOBO E A RAPOSA
Eleito o Leão rei de todos os animais, prometeu de a nenhum fazer mal. E logo
chamando-os a cortes, os pôs por ordem, e corria-os, dando-lhes a cheirar o seu
bafo. Os que diziam que lhes cheirava mal, os matava. Os que diziam que bem,
feria-os. Andando assim, chegou à Mona, e perguntou-lhe, como a todos, se lhe
fedia o bafo. A Mona o cheirou, e dizendo que não fedia, se foi. Porém o Leão,
per a matar, se fingiu doente, e disse que sararia se a comesse. E por esta manha
tomou ocasião de a matar.
LXVII - O VEADO E O CAÇADOR
Bebendo o Veado em uma ribeira, viu nos seus cornos ramos e as pernas
delgadas, pareceram-lhe as pernas mal, e ficou pesaroso de as ter, e por outra
parte tão satisfeito da formosura dos cornos, que se fez soberbo de contente.
Ainda bem não saía da água, quando dá sobre ele um Caçador. Foi-lhe forçado
valer-se dos pés, que pouco antes desprezara, e eles o punham em salvo. Mas
entrando por um arvoredo basto, embaraçavam-se-lhe os cornos com os ramos
das árvores, com que se embaraçou e foi tomado. Pelo que dizia, vendo-se preso
e ferido: Grande parvo fui; que o que me era bom desestimei, fazendo muito
caso do que me causou a morte.
LXVIII - A BICHA E A LIMA
Buscando a Bicha de comer na tenda de um ferreiro, foi topar com uma lima e
quis roê-la, mas como os dentes não entravam pelo aço, dava-lhe muitas voltas
virando-a de todas as bandas. Enfadada a Lima de andar aos tombos, lhe disse:
Que fazes, parva? Não sabes que sou de ferro, e lima? Por muito que trabalhes
desfarás os dentes; eu com os meus de aço bem temperado, cortarei dentes e
qualquer arma a quem chegar, em pouco tempo.
Pôs-se uma Pulga sobre um Camelo carregado, e deixou-se ir sobre a carga uma
jornada, no fim da qual saltou abaixo, e sacudindo-se, disse: Folgo em verdade
de me descer: porque tinha dó de ti; agora irás leve com pouca carga. O Camelo
se riu deste cumprimento e respondeu: — Nunca te senti se te levava em cima,
nem tu podes carregar-me nem aliviar-me; que não tens peso para isso. A carga
que eu levo, essa sinto. Tu não tens peso para te sentirem.
LXXII - O CAÇADOR E AS AVES
O Homem com o Leão altercavam sobre qual era mais valente. O Homem, para
provar sua tenção, o levou a um sepulcro, onde estava de pedra um homem
afogando um Leão, que tinha debaixo de si. O Leão se riu de ver isto, dizendo:
— Se não fora homem o que isto aqui pôs, pudera ter algum crédito, mas sendo
homem é suspeito. Portanto, deixemos pinturas e provemos isto pelo braço. E
logo isto dito estendeu o Homem no chão, e o matou com muita facilidade.[66]
NOTA: É entre as fábulas de Loqman, a 7.ª; ei-la traduzida do árabe: «Um
Leão e um Homem iam uma vez em sociedade pelo caminho. Puseram-se
ambos a conversar, e travaram uma contenda a respeito da força e do valor do
ânimo. O Leão insistia na ponderação da sua força e da sua valentia. Nessa
ocasião avistou o homem, numa parede, um quadro representando o homem a
estrangular um leão, e pôs-se a rir. Então o Leão lhe disse: — Na verdade, se os
leões soubessem pintar como os filhos de Adão, não seria o homem que afogaria
o leão, mas o leão que afogaria o homem.» (Op. cit. p. 27).
A PANELA DE BARRO E A DE COBRE
Uma corrente de água levava duas panelas, uma era de cobre, outra de barro, e
cada uma ia por sua banda. Disse a de Cobre à outra: Cada uma de nós só não
tem força para fazer resistência à água, mas chega-te a mim, e ambas poderemos
resistir-lhe. Não quero (disse a de barro) nem me vem bem, porque se na água
tu me deres uma topada, ou ta der a ti, de qualquer maneira tu ficarás sã, e eu
far-me-ei em pedaços.
Moralidade
Quem faz bando com homem mais poderoso, corre grande risco, porque enfim
os poderosos são de cobre, e os pobres de barro, e sempre quebra a corda pelo
mais fraco. E se dois poderosos têm brigas, e depois querem concertar-se, fazem
tão pouco caso da honra dos pobres, que os ajudaram nelas, que muitas vezes
fazem concertos, como fez Augusto com Lépido, e Marco António, que por se
vingarem de seus inimigos, cada um entregou seus amigos à morte.
O CÃO E O SEU DONO
Uma mulher casada, que tinha sogra, estava muito mal com ela, e uma à outra se
tinham má vontade. Acertaram de mandar a esta mulher certas cousas de doce,
entre as quais vinha uma mulher, feita de espécie. E disse quem as trazia que
aquela era a figura de sua sogra. Ela partiu uma migalha, que meteu na boca, e
tornando-a a cuspir, disse: Basta que é sogra, que até de açúcar amarga.
Moralidade
Além de mostrar esta fábula humana cousa tão ordinária como é ódio entre
noras e sogras, também nos ensina quão má cousa é o ódio, e quanto para fugir,
pois faz que o açúcar pareça fel; como se vê muitas vezes, quando a boa obra,
que um inimigo faz a outro; ele a não quer aceitar, antes a despreza, e tem por
ruim.
O LADRÃO E O ANJO
Dormia o Ladrão ao longo de uma parede, e viu entre sonhos um Anjo, que o
acordava, dizendo: Levanta-te, e guarda-te daqui. Acordou o Ladrão, e
apartando-se da parede, viu-a vir de súbito ao chão. Ficou deste acontecimento
muito alegre, e soberbo, crendo que por sua virtude o guardara Deus. Mas
tornando a dormir, tornou a ver o Anjo, que lhe dizia: Não te ensoberbeças, que
se ontem te guardei, foi porque não era aquela tua morte, senão a da forca, para
que estás guardado.
Moralidade
Na forca do Inferno vão parar os que das mercês, que Deus lhes faz, tomam
ocasião de o ofender, e serem mais soberbos. E esta fábula nos avisa e ensina que
a muitos favorece a fortuna por seu mal. Muitos vivem, que lhes fora melhor
morrer. Pelo que um filósofo, escapando de uma casa, que se arruinou e matou
muita gente, disse com humildade: Ó ventura! para que ocasião me terás
guardado?
A RAPOSA E O LEÃO
Tinha a Raposa sua cava bem fechada, e estava-se dentro gemendo, porque
estava enferma; chegou à porta um Leão, e perguntou-lhe como estava, e que
lhe abrisse, porque a queria lamber, que tinha virtude na língua, e ele
lambendo-a, logo havia de sarar. Respondeu a Raposa de dentro: Não posso
abrir, nem quero: creio que tem virtude a tua língua; porém é tão má vizinhança
a dos dentes, que lhe tenho grande medo, e portanto quero antes sofrer-me com
meu mal.
Moralidade
Avisa-nos esta raposa, que quando nos oferecem alguma obra boa, notemos as
circunstâncias dela, que às vezes são tais, que custam muito mais do que vale a
obra pia.
O SOLDADO E O PÍFANO
Passando um lobo esfaimado por uma casa, ouviu chorar dentro um menino, e
lhe dizia a mãe: — Se choras, hei de te dar ao lobo. Este, parecendo-lhe ser
aquilo assim, esperou um pouco; porém vendo que, sossegando-se o menino, a
mãe, fazendo-lhe carícias, lhe dizia: Se vier o lobo havemos matá-lo, uivando
partiu dali, dizendo: Esta diz uma cousa, e faz outra! Há muitos cobiçosos, que
cegos da sua utilidade, esperam cousas impossíveis.
Duas Rãs, que se achavam em um charco, secando-se este com o calor do verão,
foram em busca de outro, e achando no caminho um poço, disse uma: Parece-
me que entremos para ele. Respondeu-lhe a outra com mais acerto: Por nenhum
modo farei tal; porque secando-se esta água, como a outra, não poderemos sair.
É ofício do Sábio prever e evitar os futuros danos.
[6] Ibidem, p. 7.
Garrett, Romanceiro, t. III, pág. 19. O Snr. Inocêncio dá-o como original de
[26]
Baltasar Dias.
[27] Ticknor, Histoire de la littérature espagn., pág. 223.
Victor Le Clerc, Discours sur I'état des lettres en France au quatorzième siècle,
[28]
pág. 53.
[29] Op. cit., pág. 146.
[30] Carta de 11 de Nov. de 1566 (Corpo Diplomático, t. XIII, p. 372). Nesta data já
A Raposa não quis entrar na cova do Leão, porque observou que as pegadas dos
outros animais todas iam para dentro, e não tomavam para fora.
(Vieira, Serro., tom. X, pág. 248, col. I.)
[51] Porco novo de mais de ano.
Sobre este Apólogo pode ler-se o que se acha escrito no tomo V das
[53]
Memórias de Literatura Portuguesa, pág. 108 e seg.
[54] Mal, dano. — Esta fábula é imitação de Horácio, liv. I, Epist. 10, v. 34 e seg.
[56] Vid. Sénec. Epist. 50, verb. Harpasten, ou Vieira, Serm. 1, col. 669 e seg.
[57] Sobre a.
[58] Costumavam.
[59] Dom.
[62] Queres.
[66]Merece estima esta tradução das Fábulas de Esopo, feita da língua grega, por
Manuel Mendes, professor de Latim e considerado humanista dos fins do século
xvi. Teve o seu livrinho numerosas edições: 1603, 1611, 1643, 1673, 1705 e 1778,
rolandiana, in-8.° pequeno, de VII-155 p. e 4 de índice n.n.
Manuel Mendes da Vidigueira ajuntou a cada Fábula de Esopo a Moralidade
com certa ingenuidade; e acrescentou-lhes, uma Segunda parte, como
Suplemento às Fábulas de Esopo, com quinze Fábulas portuguesas, umas
colhidas da tradição popular e de anedotas vulgares com sua Moralidade.
Transcrevemos por isso seis destas fábulas, de valor folclórico.