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Título: Contos Tradicionais do Povo Português – volume 2

Autor: Teófilo Braga


Edição: Agrupamento de Escolas de Rio de Mouro
Coleção: Clássicos da literatura portuguesa
Adaptação, paginação e projeto gráfico: Carlos Pinheiro
1.ª edição: outubro de 2013
ISBN: 978-989-8671-16-5
Edição segundo as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de
1990.
LITERATURA DOS CONTOS
POPULARES EM PORTUGAL

I) Filomitia — Filosofia — Filologia


Reconhecida a quase generalidade da origem oriental dos contos populares,
pelas fontes donde provieram e pelas adaptações que receberam, melhor se
poderão seguir as transformações desse elemento tradicional através dos meios
sociais e épocas históricas por que passaram modificando-se, e deduzir das suas
transformações como atuaram na revelação dos génios literários, elevando as
línguas vulgares nacionais à expressão estética. Escreveu Gaston Paris sobre
este complexo problema: «Penetrando sucessivamente em meios bem
diferentes daqueles em que foram inventados, os contos orientais sofreram
naturalmente certas transformações, que por vezes os melhoraram e na maior
parte das vezes estragaram-nos não sendo bastante importantes, porque a
crítica aproximando-as com arte todas as variantes que haja coligido, chegue
quase sempre a reduzir as formas ocidentais à sua origem asiática, e possa
seguir os estádios destas narrativas emigrantes através dos séculos e das
nações.» (La Poésie du Moyen-Age, pág. 752.) Até aqui chega o simples processo
folclórico; há mais que avançar, para a morfologia literária apartando dos
elementos lendários de criação anónima, elementos que variam
indefinidamente, umas vezes abreviando-se em um laconismo claro e lógico,
outras prolongando-se pelo interesse da narrativa por episódios
sincreticamente agrupados. Por este conjunto cíclico, um mesmo conto reveste
formas diversas pelos seus episódios, tornando-se fácil a sua transmigração e
adaptação em diferentes meios e épocas sociais ou históricas.
O foco oriental é uma expressão vaga, que importa definir pelos modernos
recursos filológicos: há o orientalismo ariano, donde provieram os contos
difundidos pelo proselitismo dos budistas, e medo-persa, cujos contos se
propagaram pela ação expansiva dos Árabes na Europa Ocidental; há também
o orientalismo semita, donde as tradições hebraicas também pelos Árabes
espalhadas na cultura hispânica. E estes dois focos orientais, ainda se
fortalecem com o efeito das expedições de Alexandre na Índia, pela irradiação
das cortes bizantinas e regressos dos Cruzados, como também pela Igreja, na
propaganda católica medieval. Assim a Europa achou-se com o conhecimento
das conceções primitivas da Humanidade e que já foram as sínteses emotivas,
que precederam as abstrações filosóficas; por isso lhes chamou Aristóteles
Filomitia, um estado mental de credulidade, em que ficaram os povos que não
chegaram pela dúvida e ceticismo às noções racionais de Filosofia. Disse
Aristóteles, que o que mais nos encanta é aquilo em que acreditamos. Pelos
trabalhos folclóricos se confirma; é essa credulidade que prevalece na criança e
na gente rude e ingénua; e isso é que torna simpáticas todas as tradições,
conservando-as e transmitindo-as; e é por essa credulidade, que os moralistas
modificaram os contos vindos das civilizações politeicas dar encanto à crença
cristã. Todos esses materiais etnológicos dispersos e truncados constituem o
Saber Popular, que sinteticamente tem a designação de Folclorismo, mas
denomina-se Filomitia, como definiu Aristóteles esse estado mental
contraposto à Filosofia.
Podem seguir-se estas conceções na vida moderna, porque esse estado
filomítico persiste nas crianças, nas mulheres, nos velhos, em geral no vulgo, no
automatismo dos costumes, na emoção das grandes catástrofes, e em um
misticismo espontâneo. É um precioso campo de psicologia coletiva. Mas para
as origens remotas só o Oriente, que ainda persiste no estado filomítico é que
presta a mais vasta e segura documentação nos seus livros sagrados, ritos,
epopeias, símbolos, apólogos, fábulas, contos, em que a noção racional se deduz
da impressão sensorial. Como explicar toda essa riqueza contida em línguas e
literaturas inacessível à cultura normal, em civilizações históricas extintas e em
meios longínquos? Pela Erudição; não a erudição isolada, especial, de uma
preocupação sem destino, que se torna impertinente e pedantesca, mas aquela
que, pela designação de Filologia, Vico entreviu na marcha do estudo filosófico.
Vico, na Ciência Nova, chegou à conceção simples, que o saber é a condição de
espírito na sua perfeita intelectualidade; por este saber se obtêm os elementos
subjetivos da realidade, interpretando as ficções primitivas como resíduos das
conceções peculiares do passado humano. Veio pois esse saber a sistematizar-se
em um corpo de doutrina já denominado Filologia. É certo que o estudo das
obras de Bacon conduziu Vico a esta disciplina mental, que anteriormente se
limitava à erudição humanista; ele procurou relacionar as especulações
filosóficas com o saber enciclopédico (e nisto o continuou Comte) e a
designação misteriosa de Ciência Nova, com que empreendia uma renovação
do critério racional, no fundo era a aliança da Filosofia com a Filologia. Nisto
assenta o influxo de Vico no espírito dos pensadores do século XVIII e XIX; a
Erudição especializava-se e esterilizar-se-ia, se não fosse fecundada por uma
conceção de conjunto — a Filologia. Para este saber geral contribuíram
Indianistas, Zendicistas, Egiptólogos, Semitólogos, Sinólogos, Helenistas,
Romanistas, etnólogos, constituindo a essência de tão vasto material a
Filomitia.
Pelo critério seguro da Filologia, as literaturas são estudadas nas suas origens
tradicionais e populares; Max Müller observou enquanto à mitologia grega:
«Heródoto propagou a ideia de Homero e Hesíodo é que criaram a mitologia
da Grécia desfigurando a verdadeira natureza da Fábula como produto natural
do pensamento popular, e a inevitável sobrevivência dos colóquios do vulgo. Só
modernamente é que a teoria de Heródoto desapareceu diante de uma vista
mais perfeita, e que a tradição popular, o folclore tem igual importância ao
lado da fábula clássica.» (Mit., p. 77, 83.) Os mitógrafos gregos Paléfale e
Herochito consideravam essas lendas populares como degradação e deturpação
dos mitos helénicos, da forma como tinham sido sistematizados nos poemas
homéricos e hesiódicos. A Filologia moderna restabelecendo esse fundo
primário popular, mostra-nos como os géneros poéticos da literatura grega
provieram também de gérmenes populares no seu desenvolvimento e progresso
artístico. «A literatura grega, como observa Boissier, viveu nos seus mais
florescentes anos, de um certo número de narrativas transmitidas pela tradição
desde os tempos mais remotos e acumuladas na memória do povo. Essas
narrativas repetiram-se incessantemente, sendo o fundo ou tema desses
poemas de todos os géneros, que causam a admiração do mundo. Os Gregos
não sentiam então a necessidade de criar assuntos novos, os antigos lhes
bastavam. O prazer consistia para eles em ver como estes assuntos antigos
seriam tratados de uma maneira nova, e de que modo se chegava a comovê-los
pelas aventuras que tantas vezes os tinham comovido.» E assim um tema se
tornava obra de arte, pelo destaque da individualidade de génio e de estilo. A
Filologia estabeleceu a evolução dos gérmenes tradicionais, e a criação da
literatura, refletindo-se a obra dos génios na simpatia popular, que elabora na
transmissão oral os episódios, que vêm ciclicamente dar relevo aos temas que
mais encantaram. Isto observou Schuré: «Toda a grande arte começa por ser
uma arte espontânea. Não nasce do povo nem de uma aristocracia, mas do
concurso inteligente de ambos. Produz-se ordinariamente quando uma classe
superior da sociedade, ou um homem de génio se apossa da arte popular
espontânea para aperfeiçoá-la.» (Hist du drame music., pág. 231.)
A literatura dos contos populares é o quadro da transmissão oral das tradições
recebendo a nitidez e beleza estética da forma escrita.
Sob estes títulos gerais, agrupamos as ciências especiais:
1) FILOMITIA — Conhecimento pelas conceções subjetivas emocionais
Cosmogonias.
Teogonias.
Mitos siderais e solares.
Mitos telúricos e meteorológicos.
Mitos antropomórficos e antropopáticos.
Símbolos e emblemas.
Alegorias.
Fábulas e comparações.
Legendas.
Ritos, drama cultual, iconografia.

2) FILOSOFIA — Conhecimento pelas conceções gerais e abstratas formadas


por noções racionais
Filosofia primeira: Disciplina da racionalidade.
Filosofia segunda: Generalização dos dados objetivos verificáveis constituindo
ciências.
Filosofia terceira: Síntese dos fenómenos morais relativos ao fim humano.

3) FILOLOGIA — Conhecimento enciclopédico relacionando todas as


representações mentais dispersas por observações especiais, aproximando-as
pelo critério comparativo.
Paleontologia — Arqueologia — Etnologia — Antropologia — Geografia
Histórica — Hierologia — Literatura — Glotologia — Instituições História
Universal.
Assim como na linguagem existem duas correntes de elaboração, uma popular
ou dialetal e outra escrita, ou regularizada por uma norma gramatical,
acontecendo muitas vezes desconhecerem-se estas duas correntes, ou
entrecruzarem-se por efeito de causas sociais e históricas, o mesmo fenómeno
se observa com as tradições novelescas: um grande número de contos persiste
exclusivamente na transmissão oral do povo, que os transforma desde a
primitiva conceção mítica até à simples aventura faceta ou à referência vaga de
qualquer adágio; existe simultaneamente um outro grupo de contos
conservados por via da redação literária e escritos com uma certa
intencionalidade moral ou artística. Nem sempre estas duas correntes se
comunicam, havendo contudo uma época em que os escritores deram forma
literária aos temas tradicionais ou os imitaram, e em que os contos escritos por
seu turno vieram a influir na imaginação popular pelo emprego da Parábola na
prédica religiosa e do Exemplo na doutrinação concreta da moral. A
universalidade dos contos populares na tradição oral não se pode explicar
historicamente; este processo compete aos contos generalizados pela forma
literária, cuja transmissão se estabelece quase de um modo cronológico e por
documentos que subsistem. Huet, Sacy, Loiseleur des Longchamps, Benfey e
Max-Müller, segundo os recursos da ciência da sua época, a Filologia, fixaram
os caminhos diversos por onde os contos do Oriente fizeram a sua migração
para a Europa. Provenientes de coleções literárias, de que a mais antiga
conhecida é o Pantchatantra, eles acompanham os acidentes da história da
civilização da Europa, implantando-se no Ocidente com as invasões dos
Árabes, propagando-se como últimos lampejos do helenismo, com as
Cruzadas, sendo o assunto de redação dos novos dialetos românicos e dos
pregadores católicos da Idade Média. A Igreja afastando os povos da Europa do
contacto da civilização greco-romana, aproveitou-se deste fundo tradicional
para atuar sobre a imaginação da gente rude, e assim as literaturas começaram
o seu desenvolvimento sobre uma base e com um destino popular. A redação
literária dos contos e fábulas indianas foi provocada pela profunda revolução
religiosa do Budismo, que batendo as abstrações metafísicas da casta sacerdotal
bramânica e procurando os seus prosélitos entre as raças inferiores e amarelas,
teve de propagar-se pela exposição pitoresca dos contos; onde quer que o
Budismo se divulgou, aí encontram-se os contos como meio de propaganda. As
coleções da China, como os Avadanas, e as do Tibete, resultaram dessa crise
religiosa; no raríssimo livro das Cartas do Japão (fl. 99 v.), se lê: «Há aí mais
duas Seitas, que chamam Iexu e Muraçaqui. Estes são dados a meditações, tem
soma delas de cousas como fábulas e comparações.» Na luta do cristianismo
contra o protestantismo, a polémica religiosa fez-se à custa de contos morais,
de fácil compreensão, chamados Exemplos. Esta similaridade de crise religiosa
coincidiu com o conhecimento dos contos indianos traduzidos para árabe na
corte de Bagdad, e trazidos na invasão muçulmana da Europa Ocidental. Os
trovadores nas suas canções, os troveiros nos seus fabliaux, os menestréis nos
seus lais, secularizaram o conto com esse espírito de livre exame comunicado
pela civilização dos Árabes.
Pelos resultados da novelística geral e pelo estudo da literatura dos contos
populares, chegou-se a esta conclusão formulada por Gaston Paris: «Por um
fenómeno que, com surpresa a ciência constata cada vez melhor, parece que a
imaginação moderna e ocidental, mesmo nos espíritos mais brilhantes, é
incapaz de inventar um conto igual àqueles que, criados na sua maior parte na
Ásia há já longos séculos, de lá se propagaram nos nossos países e constituem
ainda hoje o fundo quase exclusivo do nosso património de ficção.» (Poésie du
Moyen Age, p. 152). É a consequência lógica do estudo mental da Filomitia.

II) Contos dos séculos XII a XV, da corrente
oriental e Idade Média
No período mais ativo da organização das sociedades modernas, no século XII,
é que se constituiu a nacionalidade portuguesa; dirigida a sua cultura pelos
latinistas eclesiásticos, os primeiros documentos literários em prosa foram
contos traduzidos do árabe e com uma intenção moral exclusiva. Com as
correntes cultas de outros elementos medievais, como os trovadores da
Provença, os jograis franceses e menestréis bretões, alargaram-se as fontes
literárias dos contos, estabelecendo-se essa unanimidade de sentimento da
civilização ocidental. Indicaremos estes diferentes veículos.
Desde o século XIII que se conheceu na Espanha a coleção árabe de Kalila e
Dimna, não só pela tradução castelhana do infante D. Afonso (1289), como pelo
Exemplario contra enganos y peligros del mundo. Sucederam-se as imitações
literárias, e a fonte escrita aparece citada com frequência nos poetas do
princípio do século xv, como se vê pelo Cancioneiro de Baena, (Ed. Pidal, t. I,
115):
Reyne de Byrra todo su feresa,
E Ias falsedades de Cadyna Dina...(I)

Que mudan discordias, consejos peores
Que Dyna y Cadyna con su lealdad... (ib. 119.)
O nome desta coleção é tirado das aventuras passadas entre os dois chacais
Karataka e Damanaka, que no persa anteislâmico se abrandou na forma Kalilak
e Damnak vulgarizada pelos Árabes. Assim na Espanha o chacal identificou-se
com a raposa, e as aventuras do Kalila e Dimna foram designadas pela palavra
genérica de raposias:
Sea asno ó letrado por contradicion
Segunt que del dixo la sabia raposa...
O nosso cronista Fernão Lopes, no princípio do século XV, emprega esta
designação de raposias. É talvez por esta influência árabe que o ciclo do Roman
du Renard, que se desenvolveu na Europa com um caráter heterodoxo e hostil à
Igreja, não se propagou entre as nações católicas.
O anexim português Quanto tens, tanto vales, pertence à história do Rei Lear,
quando Cordélia lhe responde:
— Tant as, tant vaux et tant je t’aime.
Tant comme j’eue et tant valus
— Et tant aimé et privé fus.
E nos adágios portugueses:
— Faze por ter, vir-te-ão ver.
— Tanto vale cada um na praça
Quanto vale o que tem na caixa. (F. Rol. 127.)
Pode-se afirmar que estes anexins são outros tantos vestígios de contos
obliterados, por isso que temos grande quantidade de anexins em que se dá este
facto. Exemplificamos com um dos mais curiosos, e que se refere ao Roman du
Renard, que literariamente foi conhecido em Portugal: a Gesta de Maldizer de
D. Afonso Lopes Baião personifica um burguês que se finge fidalgo com o
nome de D. Velpelho; na comédia Eufrosina, de Jorge Ferreira de Vasconcelos,
escrita depois de 1521, (p. 84, ed. ult;) encontra-se esta importante revelação de
o espírito da sátira burguesa ter penetrado no nosso povo:
O Lobo e a Golpelha (Vulpecula)
Fizeram uma conselha.
Outro anexim popular: Da pele alheia grande correia, proveio de um episódio do
Roman du Renard, como o conta Fleury de Bellingen: «O Leão achando-se
aflito com uma grande febre mandou chamar a Raposa para saber se no seu
conselho poderia ter remédio a sua doença; a Raposa fingindo de médico lhe
disse: Que para a sua cura precisava cingir os rins com uma larga cintura tirada
de fresco da pele de um Lobo. Seguindo esta receita o Leão doente mandou
chamar um Lobo, a quem a Raposa cortou ao largo do corpo uma comprida e
larga correia. O Lobo com as dores uivava desesperado: Ah, Senhora Raposa,
da pele que não é vossa tirais correia larga.» O espírito do anexim derivou do
antagonismo entre o Lobo (Ysengrin) e a Raposa (Trigodin-le-Renard) do velho
poema. Ainda à frase francesa piquer le renard, beber em jejum, corresponde no
mesmo sentido em português matar o bicho.
A influência árabe na Península foi simultaneamente popular e literária; Alvaro
de Cordova alude ao gosto dos contos «fabellis mille suis delectamur». Das
coleções árabes passaram para os nossos documentos literários do século XIV
bastantes contos intercalados no livro ascético do Orto do Esposo, e na tradução
da lenda mística de Barlaão e Josafat, tirada do Lalita Vistara, sendo Buda
santificado no cristianismo. No Nobiliário do conde Dom Pedro, o conto de
Gaia é também nos seus episódios semelhante às narrativas árabes, das quais
persiste no gosto popular ainda a folha volante da Donzela Teodora.
A divulgação da poesia provençal veio ajudar ao desenvolvimento da forma
literária dos contos, com os Noellaires; temos um exemplo na tradição da Chuva
de Maio, de que há reminiscências em um poeta do Cancioneiro de Resende, em
Sá de Miranda e D. Francisco Manuel de Melo. Os jograis abandonavam por
vezes os assuntos líricos, e contavam fábulas ou narrativas com um intuito
satírico.
Devido talvez a esta influência jogralesca e à propagação dos fabliaux franceses,
é que os contos vieram a receber em Espanha, embora no século XVI, o nome
de Francias. A influência bretã é também manifesta na forma dos lais, que além
do seu destino musical tinham um acentuado caráter narrativo, que veio a
desenvolver-se no ciclo da Távola Redonda. No Nobiliário do conde D. Pedro
é aonde existem os principais vestígios dos contos bretões, como no conto da
Dama Pé de Cabra. No mesmo Nobiliário se encontra rapidamente narrado o
conto do Rei Lear, a tradição de Merlin, e da Islavalon (ilha do Avalon.)
A tradição do Solar dos Marinhos deriva também dessas lendas heráldicas
fundadas na crença das fadas terrestres, como a Melusina e a Dama Pé de
Cabra, ou do mar como as Sereias, de que fala Gil Vicente:
Vai logo as ilhas perdidas,
No mar de penas ouvinhas,
Traze três fadas marinhas
Que sejam mui escolhidas. (Obras, t. III, p. 101.)
No Cancioneiro da Vaticana encontra-se uma alegoria satírica da Verdade, em
uma canção de Aires Nunes, que se avalia bem aproximando-a de um conto
popular da Andaluzia. Eis o conto: A Verdade e a Justiça foram pelo mundo
mostrar-se, e como eram muito formosas, arranjaram muito dinheiro. No
caminho agregou-se-lhes a Avareza, e ela é que guardava o dinheiro. Quando
resolveram voltar, a Avareza que não queria repartir o quinhão, ao passar por
uma ponte baldeou a Verdade na água, e por isso ela nunca mais apareceu no
mundo. A Justiça tratou logo de castigar o crime, mas a Avareza refugiou-se
com a bolsa em uma igreja e nunca mais de lá saiu, e lá há de ficar até que as
paredes venham abaixo[1]. Vejamos agora a sirvente de Aires Nunes:
Porque no mundo mengou a Verdade,
punhei um dia de a ir buscar,
e u per ela fu perguntar
disseram todos — Alhur a buscade;
cá de tal guisa se foi a perder,
que não pudemos em novas haver,
nem já não anda na irmaidade.
Nos moesteiros dos frades, regrados
a demandei, e disseram-m’assi:
Não busquedes vós a Verdade aqui,
ca muitos anos havemos passados
que não mor’em nosco, per boa-fé,
……………………………………………………
e d’al havemos maiores cuidados.
E em Cistel, u Verdade soía
sempre morar, disseram-me que não
morava i, havia grã sazão
nem frade d’i já não a conhecia;
nem o abade us’outrossi não estar,
sol não queria que fosse i pousar,
e anda já fora da abadia.
Em Santiago send’albergado
em ma pousada, chegaram romeus;
perguntei-os e disseram: Par deus,
muito levade-lo caminho errado;
ca se Verdade quiserdes achar
outro caminho convém a buscar
ca não sabem aqui dela mandado[2].
O conto mais antigo, que se acha escrito na língua portuguesa, está inserido no
Nobiliário do conde D. Pedro, do século XIV; a alusão ao cavalo--fada Pardallo
(o pardallus de Aristóteles) e ao coouro (o gouril bretão) provam-nos uma origem
erudita, que determinaremos abaixo, tornada tradicional nas lendas
genealógicas. No conto, hoje conhecido pelo título da Dama Pé de Cabra, se lê:
«E alguns há em Biscaia, que disseram e dizem hoje em dia, que esta sua mãe
de Enheguês Guerra, que este é o coouro de Biscaia.» E também: «E mais
dizem hoje em dia i, que jaz com algumas mulheres i nas aldeias ainda que não
queiram, e vem a elas em figura de escudeiro, e todas aquelas com quem jaz
tornam escoouradas.» Nas costas de Finisterra acredita-se na existência de uns
diabos malignos, que dançam ao luar, chamados courils, que M. de Cambraye
descreve na sua Voyage dans le Finisterre (1791); Leroux de Lincy traz
também as formas de Gourils, Gories e Crious.[3] No velho francês carole
significa a dança em redor; tanto no inglês carol, como no italiano carola e
também no português, este vocábulo exprime um vestígio de um costume
britânico. Na comédia Aulegrafia, de Jorge Ferreira de Vasconcelos, escrita
antes de 1554, vem esta locução popular: «soltam a carola à esperança.» (Act.
IV, cen. 5.)
As tradições eruditas da primeira Renascença receberam também uma forma
literária entre os latinistas eclesiásticos; da Biblioteca de Alcobaça subsiste
ainda a tradução portuguesa da Visão de Tundal, sob cujo tema, a descida aos
Infernos, Dante escreveu a Divina Comédia, tradição que os padres da Igreja
tomaram do Êucrates do Filopseudes de Luciano. Desta corrente erudita deriva
essa alusão do cavalo-fada Pardallo, citado no conto da Dama Pé de Cabra, que
é evidentemente uma forma do Pardallus de Aristóteles. No Orto do Esposo,
descrevendo-se os costumes da pantera, Frei Hermenegildo de Paio Pele
introduz o conto do animal agradecido: «Aconteceu uma vez que um homem
livrou da morte os filhos desta besta. E este homem caiu em uma cova e a esta o
tirou fora dela g o pôs em salvo do deserto indo com ele mui leda e afagando-o,
em guisa que parecia que lhe dava graças.[4]»
Deste ciclo erudito da primeira Renascença data o conhecimento das Gesta
Romanorum em Portugal. Na Biblioteca do rei Dom Duarte guardavam-se as
Cantigas de Santa Maria de Afonso X, o Conde de Lucanor, uma tradução
portuguesa dos versos do Arcipreste de Hita, e da Confissão do Amante de
Gower, em que receberam forma literária diversos contos da Idade Média. Na
corte de Dom Duarte prevaleceu o gosto dos contos com intuito moral,
chamados estórias e exemplos; na sua obra o Leal Conselheiro, cita o conto da
Manta e o Chocalho, que parece popular pela persistência do anexim: «O Diabo
tem uma manta e um chocalho.» Acham-se ali também o conto alegórico das
Duas Barcas e do Filho Pródigo: «E a festa que fez o padre ao filho degastador,
que confessando o seu desfalecimento dizia não sou digno ser chamado teu
filho...[5] O rei Dom Duarte condenava a leitura dos livros de contos, que ele
aponta como um vício entre a aristocracia portuguesa do século XV: «tais
leituras aos que de semelhantes não têm bom conhecimento mais são para
serem ensinados que para despender tempo ou se desenfadar com o livro
d’estórias, em que o entendimento pouco trabalha por entender ou se
membrar»[6]. Fernão Lopes, o nosso grande cronista, empregava a palavra
estória no sentido de tradição, tal como ainda subsiste entre o povo. O rei Dom
Duarte condenando o uso de ouvir contos, diz: «E da questa guisa erramos per
este desassossego: se no tempo de orar e ouvir ofícios, nos conselhos
proveitosos, falamentos ou desembargos, levantamos estórias, recontando
longos exemplos.»[7] Gil Vicente conservou esta designação medieval:
Como diz o exemplo antigo,
Que não são iguais os dedos.
No mesmo Nobiliário se encontra rapidamente narrado o conto do Rei Lear
(Leyr), o que prova que a corrente britónica se estendeu a Portugal, onde o
Roman de Brut teve autoridade histórica. A influência francesa é manifesta em
muitos romances populares, e mesmo neste Nobiliário existe outro conto de um
fidalgo que mata a mulher adúltera e o frade que estava com ela, incendiando o
seu castelo e tudo o que estava lá dentro; o mesmo se encontra nas Cem Novelas
Novas. Os contos que receberam elaboração literária devem essa conservação
não ao ter-se compreendido o seu valor nem a uma renovação artística
individual, mas ao andarem ligados às lendas genealógicas das famílias nobres
de Portugal; tal é o conto da Sereia ou Marinha, donde tira sua origem o Solar
dos Marinhos, e o conto de Gaia, das tradições árabes, que vem no já citado
Nobiliário, e se conserva ainda no onomástico local do Porto, em Gaia e
Miragaia. Destes contos existem algumas imitações literárias de diferentes
épocas da literatura portuguesa; o Rei Leyr é a base de um auto de António
Prestes; Gaia foi metrificada em outava rima no século XVII por João Vaz, de
Évora, e a Dama Pé de Cabra foi elaborada de novo por Alexandre Herculano
nas suas Lendas e Narrativas; Garrett também metrificou o conto de Gaia em
uma série de quadras em redondilha que intitulou Miragaia. São estes os
únicos vestígios dos contos populares do século XIV.
É também um documento da existência dos contos populares a designação com
que entre nós foram conhecidos; as Fábulas jogralescas, os Rumores, os
Noellaires provençais e Lais bretões, aparecem-nos referidos nos escritores dos
séculos XIV e XV. No Regimento da Casa de D. Afonso tu, estatui-se a
presença de três jograis no palácio, e um deles, Martim Moxa, diz em uma
canção:
Uns joglares
Sus nobles falares
Soíam dizer...
Afonso IX de Castela, ouvindo um fabliau de Ramon Vidal, disse-lhe: «Jogral,
tuas fábulas são agradáveis e formosas.» É esta a mesma corrente indicada por
Martim Moxa, que era como Vidal, da classe dos Segréis ou narradores. O
conto alegórico provençal chamado Noellaire vem também citado por Martim
Moxa:
Destes privados não sei noellar...
A tradição popular das Fadas era aproveitada por estes metrificadores da classe
jogralesca, de origem plebeia; diz Martim Moxa, na sua canção:
As nossas Fadas
Iradas
São chegadas
Por este fadar, etc.

No século XV acentua-se mais na literatura portuguesa a existência do conto,


e são mais evidentes as relações íntimas com a corrente francesa. Não se
conheceu em Portugal, o Roman du Renard, mas Fernão Lopes alude a esse
ciclo de aventuras na palavra Raposias; e no Cancioneiro de Baena, desta mesma
época, corresponde um igual vestígio da corrente literária:
Sea asno ó letrado por contradición
Segunt que del dixo la sabia raposa.
(Ed. Pidal, t. I, p. 118).
Na enciclopédia da Idade Média portuguesa, o Leal Conselheiro, de el-rei Dom
Duarte, cita-se resumidamente o conto das Duas Barcas, uma alegoria moral
que parece ter inspirado Gil Vicente nos seus Autos das Barcas por via da
tradição popular. Neste período o conto apresenta um caráter moral e ascético,
e é conhecido pelo nome de Exemplos, usados nas comparações religiosas dos
pregadores. Entre os eruditos a tradição novelesca é conhecida pelo nome de
Estória, como o emprega Fernão Lopes, e ainda hoje o povo em muitos pontos
de Portugal chama ao conto História. Pelo Leal Conselheiro sabe-se que mesmo
na classe aristocrática era costume ouvir contos, tal como entre o povo, que
ainda hoje faz seroadas à maneira das zambras mouriscas. Os dois termos
Exemplo e Estória acham-se na prosa de Dom Duarte, aludindo a este costume.
Do gosto dos contos da Idade Média escreve o mesmo rei invetivando-os: «E
daquesta guisa erramos per este desassossego: se no tempo de orar e ouvir
ofícios divinos, nos conselhos proveitosos, falamentos ou desembargo,
levantamos estórias, recontando longos exemplos.» (Leal Cons., p. 192.) Era o rei D.
Duarte essencialmente moralista, sendo para ele os livros de estórias ou novelas
mero passatempo: «para despender tempo e se desenfadar com o livro de
estórias em que o entendimento pouco trabalha por entender ou se membrar.»
(Ib., p. 7.) Os Exemplos e as Parábolas serviam-lhe o intuito moral; no Leal
Conselheiro declara que o Exemplo das Duas Barcas o mandara escrever pelo
seu confessor Fr. Gil Lobo: «um conselho apropriado as duas barcas que
escreveu por minha invenção e mandado, por que em um falamento assim lho
razoei, e disse-me que lhe parecia boa semelhança, porém lhe disse que a
escrevesse, e lhe furtando seu trabalho, a invenção foi minha solamente e
porém em conto das cousas por mim feitas, vo-la faço escrever.» (Ib., p. 345 e p.
447.)
O século XV é o período em que na literatura portuguesa maior influência
exerceu o ciclo das tradições épicas da Távola Redonda; esses longos poemas
enchem as estantes da livraria de el-rei D. Duarte e de seu irmão D. Fernando,
e alguns nomes dos seus heróis tornaram-se populares e ficaram no uso do
onomástico civil. Tudo isto favorecia o desenvolvimento do conto e lhe dava
uma cor cavalheiresca. Infelizmente pouco se conservou na forma escrita e
nem mesmo resta sinal de conhecimento da coleção árabe de Calila e Dimna,
que porventura seria também lida em Portugal:
E las falsedades de Cadyna Dyna
Sean mostradas, porque muy ayna
Gosen los nobles que aman limpieza.
(Ed. Pidal, 1, 115.)
Na Crónica da Conquista de Guiné, de Azurara, (ed. de Paris, p. 184) cita-se
«Obras dos Romãos» indubitavelmente a Gesta Romanorum. No Catálogo dos
Livros de Uso, de el-rei D. Duarte, vêm citadas as coleções espanholas do Conde
de Lucanor, as obras do Arcipreste de Hita e a Conquista de Ultramar. Cita-se
também a coleção novelesca de João Gower, Confissão do Amante, que chegou a
ser traduzida por um tal Roberto Paino. É deste século a folha manuscrita da
Biblioteca do Porto, que traz a fábula do Mons parturiens em redondilhas, e da
Biblioteca de Alcobaça são os textos da tradução da Visão de Tundal e de
Baarlão e Josafat, do século XIV. No manuscrito do Orto do Esposo, acham-se
para mais de vinte contos, alguns dos quais ainda se repetem na tradição oral.
Nos versos de Afonso Valente, coligidos no Cancioneiro de Resende, alude-se à
tradição popular: «As Fadas que me fadaram...» E em uns versos de Duarte da
Gama, neste mesmo Cancioneiro, alude-se ao noellaire provençal da Chuva de
Maio. Nas festas do casamento do príncipe D. Afonso, filho de D. João II,
representou-se às portas de Avis uma alegoria fiabesca ou Momo, em que se
prognosticava a aventura do consórcio:
Aqui as Fadas estavam,
Segundo lhes coube em sorte,
Que à princesa fadaram
Cada qual de sua sorte.
(Aires Teles, est. XXI).
O nome de Exemplo especializou-se aos contos populares, que os pregadores
intercalavam nos sermões da parenética medieval, explorando o gosto do vulgo,
com esse instinto com que procederam os propagandistas budistas. O verna do
mundo antigo, como notou Vico, usava essa linguagem pitoresca e franca, a
vernácula, que exprimiu a prosa legal da burguesia. Foi nessa linguagem que a
Igreja empregou os Exemplos, quando quis dominar a alma popular.
O costume de contos era tão persistente entre o povo como entre a aristocracia
portuguesa. As nossas seroadas e o tipo dos patranheiros populares derivarão dos
costumes mouriscos das zambras? As suas raízes são mais profundas, derivam
da primitiva raça do Ocidente; na Grécia havia uma classe de mulheres
chamadas paramítia, encarregadas de contarem contos por ofício; Guthrie,
descrevendo os velhos costumes da Rússia, diz: «Observam-se também nas
casas dos grandes, mulheres encarregadas de contar contos, Skaski... A sua
ocupação consiste em entreter suas amas até que elas adormeçam, com contos
semelhantes às Mil e Uma Noites árabes, antiquíssimo costume entre os
Orientais.»[8] Conhecida a íntima relação que existe entre os contos russos e os
sicilianos, compreendemos a relação que deve haver entre os Skaski russos e os
Chascos ou Chascarilhos com que ainda no século XVII se designavam em
Espanha os contos facetos.[9] Esse elemento mongólico que no século XIII
propaga na Rússia e no Norte da Europa as ficções orientais, é o mesmo que
no Ocidente sob a corrente ibérica produz esta similaridade de tradições e de
costumes.
Usavam-se os contos, na Idade Média, à mesa dos príncipes, sob o nome de
Rumor. Na descrição das festas do casamento do príncipe D. Afonso vem:
Depois ledos tangedores
À vinda da princesa
Fizeram fortes Rumores,
Espanto da natureza.
Camões empregou este termo na locução: «O rumor antigo conta.» O conto do
Boi Cardil parece-nos ter sido objeto de um destes rumores, como se depreende
dos versos latinos:
Ad mensam magni principis
Est rumor unius bovis...
A influência oriental conhece-se melhor nas fábulas da Raposa, que na Idade
Média da Europa formaram um ciclo poético, recebendo um sentido agressivo;
em Portugal não passaram do rudimento de Apólogos com a sua moralidade
tais como se conservam na tradição oral popular. Nos anexins aparecem alusões
aos ardis da Raposa: «Muito sabe a Raposa, mas mais sabe quem a apanha.»
(Delicado, Adágios, p. 22.) O cronista Fernão Lopes, alude a uma peripécia do
Roman du Renard: «Come a Raposa quando está ao pé da árvore» (Cr. de D.
João I, t. I, cap. 42.) Na língua portuguesa conserva-se o verbo arraposar, com
o significado de fingir-se morto como a raposa: «E o caso foi senão, que o
Demónio viu que apertavam pelo sacrifício, arraposou-se, para que havendo-o
por morto (assim o faz a raposa).» (Fr. Roque de Soveral, Hist. do Alfarec. livro
III, cap. 8). Jorge Ferreira de Vasconcelos também alude ao rifão: «O Lobo e a
Golpelha (Vulpecula) fizeram uma conselha.» Como se vê, apenas alguns
anexins fazem lembrar uma ou outra peripécia do grande poema das revoltas
comunais e do sarcasmo da burguesia. Escreve Du Méril, nas Poesias
Populares Latinas anteriores ao século XII: «Nos poemas do Renard não podia
haver outra superioridade real senão a argúcia e a força, donde resultavam
tendências democráticas e anticlericais e que os impediriam de adquirir uma
grande popularidade nos países aristocráticos ou profundamente católicos.
Também os ingleses, os Espanhóis e os Italianos não tiveram poemas do
Renard» (op. cit., p. 26.) Em Portugal prevaleceu o mesmo princípio, sendo aliás
a palavra Raposia sinónimo de perfídia e de argúcia, como se emprega em um
conto popular. Nas tradições conservadas no Talmude, há também uma fábula
da Raposa convidando o peixe a trocar a água pela terra firme; alguns destes
contos correm na tradição oral portuguesa, tal como o do homem entre duas
idades, ou quarentão, tendo duas amantes, uma nova que lhe arranca os cabelos
brancos, outra durázia, que o depila dos cabelos pretos (Talmude, Babakana,
livro 6.°). E o conto do coxo, que se põe às costas do cego para o conduzir (ib.,
Talmude Sanhédrim). Infere-se, que a influência judaica reforçou o elemento
oriental, na Península, que se atribuía unicamente aos Árabes.[10]
O Livro de Esopo, texto português do fim do século XIV, publicado por Leite
de Vasconcelos, com um largo e proficiente estudo filológico, mostra-nos
como a literatura portuguesa compartilhava com o espírito europeu
libertando-se da apatia mística pelo bom senso dos Fabulários medievais. É
uma paráfrase libérrima de Romulus vulgaris encostando-se a compilação em
prosa de uso escolar, com comentos e vulgarmente chamadas Isopet, alusivo ao
original grego. No seu processo comparativo Leite de Vasconcelos expõe: «A
conclusão a que chego é que o Livro de Esopo, conquanto efetivamente se
relacione com o Fabulário Anonymus de Nevelet (Walter) não provém
diretamente deste, mesmo com alterações, mas provém de algum texto em
prosa, latino ou românico, derivado do Fabulário gualteriano.» E acrescenta:
«Houve uma dissolução latina, em prosa, dos versos do Anonymus de Nevelet,
donde provêm diretamente as nossas fábulas, — dissolução que o compilador
português, ainda assim, modificou mais ou menos, pois enriqueceu de adágios
nacionais e de reflexões moralísticas os epitímios — O compilador português,
em lugar de utilizar um texto em prosa — não se poderá negar que teve
presente ao ato da tradução outros Fabulários» (Revista Lusitana, vol. IX, p.
103).

III) Contos do século XVI: Renascença e


Reforma — corrente novelesca italiana

O século XVI, a grande época de esplendor da literatura portuguesa, coincide


com um maior conhecimento da tradição popular e dos contos, bem como dos
cantares heroicos ou romances. Basta conhecer o fenómeno extraordinário da
situação de Portugal em frente da civilização da Europa desde o século XVI,
para deduzir que pela reação violenta contra a Reforma, pela elaboração
científica do século XVII e pela renovação crítica do nosso tempo, deve ser
compensada por uma rudeza ingénua, em que se reúnem as condições de
vitalidade e interesse das antigas tradições da Idade Média. Mas essa
indiferença produzida pelos terrores de um catolicismo sanguinário e por uma
monarquia aliada com o Queimadeiro, atrofiaram este povo, a ponto de quase se
obliterarem as suas tradições e ignorar as próprias origens. As tradições
persistem na realidade, mas em um sincretismo resultante das variantes com
que as remodelam. Na literatura portuguesa do século XVI os maiores
escritores são aqueles que mais se inspiraram das tradições populares, tais como
Gil Vicente, Sá de Miranda e Jorge Ferreira de Vasconcelos, como se verifica
apontando os contos a que eles aludem. É no século XVI que achamos
vulgarizadas as principais coleções de novelas do fim da Idade Média, e pode-
se com certeza afiançar que a influência francesa dos dois séculos anteriores
está aqui substituída pela literatura italiana. Pelos Índices Expurgatórios do
Santo Ofício conhece-se o grau de vulgarização desses livros de novelas; no
Índex de 1564, fl. 168, expunge-se: «Boccaccio, Decades, seu Novella centum»; e
a prova de que já esta coleção era anteriormente conhecida, é o achar-se citada
no Espelho de Casados do Dr. João de Barros, que diz: «João Boccaccio fez
muitas novelas contra as mulheres e delas diz mal no livro da Caída dos
Príncipes» (fl. 125). No Índex Expurgatório de 1581, fl. 17, v., cita-se: «Cento
Novelle scelte da piu nobili scriptori de la lengua volgari, com la -junta de Cento altre
Novelle»: e neste mesmo índex vem citado: «Facecie e motti e burle raccolte per M.
Ludovico Domenico e Guiejardin.» (fl. 19). No mesmo Índex (fl. 21, v.) cita-se o
Pecorone di Messer Jovani Fiorentino. No Índex de 1597, fl. 29, enumeram-se
entre os livros, cuja leitura era proibida em Portugal: Gesta Romanorum e
Cymbalum mundi, de Bonaventura Perier. Por esta lista sucinta se pode fazer
uma ideia das leituras da classe ilustrada, que durante o século XVI costumava
ir educar-se à Itália.
Mais se acentua a influência da novelística italiana, com a tradução portuguesa
da Fiameta de Boccaccio, referida pelo bispo Cenaculo, nas Memórias do
Ministério do Púlpito; e ainda nas Notte Piacevole de Straparola, donde veio para
os nossos livros populares a História dos Três Corcovados de Setúbal. (Notte V,
fol. 3).
Nos costumes palacianos e universitários, o conto tomou uma grande
importância, sobretudo desde que os pregadores os introduziram nos seus
sermões a título de Exemplos. Na Vida do Infante D. Duarte, por mestre André
de Resende, se fala deste uso: «Ora, senhor, deixemos a febre e falemos em
cousa de passatempo. Comecei-lhe então a dizer patranhas, com que o tornei
alegre.» O pobre infante, vítima de uma premente educação católica, fingiu-se
doente para não dar lição ao jurisconsulto Madeira; André de Resende tirou-o
da sua apreensão com contos mentirosos. Aqui a palavra patranha significa o
conto imaginoso, e ainda hoje é o nome de desprezo com que se designam as
narrativas populares. Nos seus versos, Sá de Miranda, referindo-se ao conto de
um rei mouro, diz: «Não do rei mouro a patranha...» (Ed. 1804, p. 104.)
Em António Prestes (Autos, pág. 426):
Podeis levar,
Comadre, que vos la conte
Patranhas de rir e folgar.

Pelo alvará de 23 de setembro de 1538, vê-se quanto se intermetia no ensino


público o conto, substituindo por um pedantismo de moralista a disciplina
científica; nesse alvará encontramos: «Eu el-rei, faço saber a vós reverendo
bispo reitor dos estudos e Universidade de Coimbra, e aos reitores que ao
diante poios tempos forem, que per quanto às vezes acontece a lentes nas lições
que leem, e nos autos públicos que se fazem, dizerem palavras de outros lentes
ou letrados, que nos ditos autos estão presentes, recebem escândalo, e assim os
ditos lentes nas lições que leem se põem a contar Estórias fora da matéria da
lição, em que gastam o tempo sem proveito, hei por bem que o lente que cada
uma das ditas cousas fizer, por cada vez perca o ordenado da lição daquele
dia...» O conto tornava-se um lugar-comum das conversas. Em uma carta a el-
rei D. Manuel, um capitão da ilha de S. Miguel dizia-lhe: «estou aqui como o
Peregrino de Jerusalém», aludindo à situação de algum conto sabido.
Este uso doméstico acha-se descrito no viver da principal aristocracia do século
XVI: «O mesmo usava D. Joana de Vilhena com as senhoras que a vinham
visitar, dando a cada uma delas algum trabalho com que se entreter; e
entretanto ou lhe lia algum capítulo dos documentos que o conde tinha
composto, ou lhe contava algum Exemplo ou história santa com que adoçar o
trabalho; o que fazia com tanta graça que assim D. Brites, duquesa de Coimbra
e Aveiro, como todas as mais senhoras, frequentavam com gosto a escola de D.
Joana.»[11]
Nos escritores quinhentistas é que se encontravam mais referências aos contos
populares:
E folgam de ouvir Novelas
Que durem noites e dias.
(Gil Vicente, Obras III, 287).
É o segredo das Canas
das orelhas do rei Mida.
(Autos, p. 259.)
Em Bernardim Ribeiro vem a referência:
«Quando eu era da vossa idade e estava em casa de meu pai, nos longos serões
das espaçosas noites de inverno, entre as outras mulheres da casa, delas fiando e
outras devando, muitas vezes para enganarmos o trabalho, ordenávamos que
alguma de nós contasse histórias, que não deixassem parecer o serão longo; e
uma mulher da casa, já velha, que vira muitas e ouvira muitas cousas, por mais
anciã, dizia sempre, que a ela pertencia aquele ofício. E então contava histórias
de cavaleiros andantes.» (Menina e Moça, p. I, cap. III). O poeta das Saudades
também aponta uma fábula alegórica:
A Dita e a Formosura
Dizem patranhas antigas,
Que pelejaram um dia,
Sendo de antes muito amigas.
Camões descreve nos Lusíadas, ao encetar a narrativa dos Doze de Inglaterra
como os marinheiros contavam contos e casos mi; para vencerem o sono dos
quartos de vigília.
A Reforma acabou com os Exemplos ou contos alegóricos nos sermões, que
foram o veículo das Tradições da Idade Média. Calvino escreve em uma
Epístola a Sadoleto, que uma parte dos sermões até então se passava, «em
fábulas divertidas e especulações recreativas, para excitar e mover o coração do
povo à jovialidade.» Os nossos escritores moralistas e místicos incorreram neste
julgamento de Calvino; os seus livros são manancial de contos do Decâmeron
popular português, transmitindo o espírito faceto em histórias tenebrosas e
infernais para terrorizar os crédulos.
O desprezo pelos contos populares foi-se tornando mais pesado à medida que
prevaleceu a erudição na literatura, e este veio tradicional chegou a perder-se
completamente; Soropita, o editor das Rimas de Camões, fala desses contos do
fim do século XVI com um desdém notável: «Primeiramente, assim no topete
da obra apareceram certos aventureiros pajens da lança da tolice, cujo ofício é
contar Contos prolixos, de uns certos maganazes desencadernados, que primeiro
que preguem uma lança do que querem contar, irão cem vezes a Roma; e os
ditos meios assim lhes aguardam pelo fundo da alma, como se de suas mãos
houvesse de sair as tábuas de Apeles. E se vem à mão, ou por a história não ser
tão branda que se deixe facilmente conversar, ou pelos seus entendimentos
serem de ferro, tal que não cortarão por um queijo fresco, ao cabo de os pobres
historiadores torcerem o queixo trezentas vezes e meterem toda a munição que
podem para se declararem, ficam eles tão virgens do negócio como se nunca
ouviram nada» (Poesias e Pros., pág. 103).
Este desprezo caracteriza em geral a literatura portuguesa, nos escritores
eruditos que estiveram em contradição com a alma popular; fazem uma
exceção a esta regra Jorge Ferreira de Vasconcelos, Sá de Miranda e Gil
Vicente, os quais pela sua compreensão das tradições se tornaram
organicamente nacionais. Antes de Pérrault colher da tradição oral o conto da
Cendrillon, já ele era conhecido em Portugal, como vemos pela comédia
Ulissipo, escrita por 1546; aí diz Jorge Ferreira: «Pois eu também não quero
Gatas Borralheiras» (fl. 32; e fl. 14). É este o título com que a Cendrillon é
conhecida entre o povo.
O conto ainda hoje repetido entre o povo, as Três Cidras do Amor, acha-se
citado por Soropita, no fim do século xvI: «Senão quando, falando com
referência, apareceram por proa as Três Cidras do Amor» (Poes. e Pros., pág. 103).
Na Gramática do cronista João de Barros, a propósito de uma figura de dicção,
vem narrado o conto de um pai que deixa a herança a um amigo com a
condição de dar ao filho o que ele quisesse (op. cit., p. 170); este conto estava já
três séculos antes coligido no Novellino.
Sá de Miranda introduz nas suas obras contos e fábulas, quase sempre de origem
literária; uns vêm narrados por inteiro, como a Fábula do Rato do Campo e o
Rato da Cidade, e o noellaire provençal da Chuva de Maio; do Cavalo Que Se
Deixa Enfreiar para Vencer o Seu Inimigo; do Bácoro Ovelheiro; e a fábula
filosófica de Psique. Outras vêm simplesmente esboçadas ou aludidas em um
verso; tais são:
A cabeça os membros manda, (pág. 39)
aludindo à fábula entre os membros e a cabeça, atribuída a Mnenio Aggripa, a
qual já se encontra nos Avadanas traduzidos do chinês por Stanislao Julien.
Seguem-se outras fábulas aludidas no texto:
Ao Leão deram a coroa
Entre a gente montesinha... (p. 39)
Com que lhes fazem das leis
Fracas teias de aranhas. (p. 40)
Diógenes claro o dia. (pp. 59 e 72)
Em outros versos alude à fábula da Cigarra e da Formiga:
Ajunto como as Formigas,
Porque ninguém me lançasse
Como à Cegarrega em rosto
No dezembro que bailasse,
Pois cantara em agosto. (p. 59)

Mas quien corriendo acá vienne?


En la conseja es el lobo.
Sá de Miranda, p. 140 (Ed. Mirb.)

Un raposo dió mil saltos


Per alcanzar los parrales;
Nunca pudo, que eran altos;
Dijo de las uvas males,
Que eran verdes! mal bocado.
(Id., p. 126)

Cita também a fábula de Apeles (p. 119) e o Parto da Montanha (p. 144). Estas
fábulas literárias têm um ponto de contacto com o conto, na moralidade final, e
confundem-se entre si com o título de Exemplos, designação frequentemente
empregada por Sá de Miranda e Gil Vicente:
Como diz o Exemplo antigo:
Que não são iguais os dedos.
João de Barros, na Ropica Pnefma, alude à fábula esópica: «seguia a ignorância
do cão da fábula...»; e também: como a gralha da fábula, vestindo-se das penas de
tôdalas formosas aves; mas o pavão vendo que o precedia em fermosura, houve-
lhe enveja, e fez com as aves que cada uma pedisse sua pena, para ficar em pior
estado» (op. cit., pp. 112 e 314.)
Ainda hoje entre o povo português é vulgar a locução: Como diz o outro, com
que precede todos os seus aforismos. É em Gil Vicente que se encontra a maior
riqueza para se recompor a área da tradição popular portuguesa; o conto da
Bilha de Azeite, sobre que Max Müller fez uma monografia importante por
onde demonstra a universalidade das tradições, acha-se em uma forma ingénua
no auto de Mofina Mendes, que o ilustre filólogo desconheceu, e que pertence
ao primeiro quartel do século XVI. Nesse conto escreve Gil Vicente:
Vou-me à feira de Trancoso... (t. I, p. 117)
Trancoso, na Beira, era no século XVI um centro popular de contos, profecias
e superstições; dali são naturais os dois escritores mais populares, Gonçalo
Eanes Bandarra, cujas profecias se ligavam ao futuro da nacionalidade
portuguesa, e Gonçalo Fernandes Trancoso, célebre pela sua coleção de Contos
Proveitosos, de que adiante falaremos. Da Beira saíram os tipos populares dos
Ratinhos, dos autos hieráticos do século XVI; escreve Gil Vicente:
Muitos ratinhos vão lá
De cá da Serra a ganhar,
e Serrão de Castro, na sua sátira:
Quando tão aproveitados
Da Beira são os ratinhos.
e o conto popular de João Ratão é uma síntese deste tipo nacional de Marculfo.
Os Castelhanos na sua desdenhosa antítese designam assim Portugal inteiro:
Entre Duero y Miño
Portugal ratinho.
Gil Vicente cita nos seus autos cançonetas e músicas francesas e no auto da
Floresta de Enganos, traz a cena do Doutor Justiça Maior, que já se acha no
conto xvII, das Cem Novelas Novas; isto provém do resto da influência
francesa, a que obedecemos no século XV. Gil Vicente abunda em alusões à
crença popular das Fadas, tema fundamental dos contos.
A tradição erudita das Sereiras, chamadas, pelo povo das ilhas dos Açores,
Marinhas, acha-se com este mesmo nome em Gil Vicente. Nos Contos
Populares do Arquipélago Açoriano (n.º 32, p. 271) um romance começa:
Escutai, se quereis ouvir
Um rico, doce cantar,
Devem de ser as Marinhas,
Ou os peixinhos no mar.
Ele não são as Marinhas...

E no romance n.º 28, da mesma coleção: (p. 259)


Que vozes do céu são estas
Que eu aqui ouço cantar?
Ou são os anjos no céu,
Ou as Sereias no mar.
O nome de Fada é com que se designa o maravilhoso popular em Portugal; a
forma genérica por excelência. Temos muitos anexins, em que as Fadas
simbolizam a ideia moral, e que sobretudo, são restos mal lembrados de contos
primitivos; tais são: «Cá e lá más Fadas há — A más Fadas más pragas.»
Ou também:
— De galinhas e más Fadas
Cedo se enchem as casas.

— Quem más Fadas não acha,
Das boas se enfada.

— Cerejas e Fadas
Cuidais tomar poucas
E vêm dobradas.
Por esses anexins, todos do século XVI, vemos que as Fadas se dividiam em
boas e más, conforme o que fadavam; Gil Vicente, que é o escritor aonde a vida
portuguesa se encontra mais intimamente retratada, alude a estes dois
carateres:
— Más Fadas que vos fadaram. (C. III, 19)
— Boas Fadas vós hajais.
— Bom prazer veja eu de vós, (C. II, p. 45)
E boas Fadas. (C. III, ib. 93)

— Ando nas encruzilhadas
Às horas que as boas Fadas
Dormem sono repousado. (Ib.)
— Por sus tristes negras hadas...[12]

A crença erudita das Sereias não podia deixar de ser adotada em Portugal, por
este povo essencialmente navegante; chamavam-lhe Fadas Marinhas:
Vai logo às Ilhas perdidas
No mar das penas ouvinhas,
Traze três Fadas marinhas
Que sejam mui escolhidas (ib. p. 101.)

Nos romances populares também se repete esta crença; na Infanta de França
(Rom. Ger., pp. 10 e 11) vem, como horóscopo da donzela:
Sete fadas me fadaram
No colo da madre minha,
Fadaram-me há sete anos
Por sete anos e um dia
Hoje se acabam os anos
Amanhã por noite o dia...
É como no Roman de Partinopeux de Blois.
Nas ilhas dos Açores é que as Fadas marinhas ou Sereias ocupam a imaginação;
há ali as duas designações de Marinhas e de Sereias.
Nos Contos Populares do Arquipélago Açoriano (n.º 32, p. 271) começa um
romance assim:
Escutai, se quereis ouvir:
Um rico doce cantar,
Devem de ser as Marinhas
Ou os peixinhos do mar,
Ele não são as Marinhas,
Nem os peixinhos do mar,
Deve de ser Dom Duardos
Que aqui nos vem visitar.
E no romance n.º 28 (p. 259):
Que vozes do céu são estas
Que eu aqui ouço cantar
Ou são os anjos no céu,
Ou as Sereias no mar.
Nas cantigas soltas da mesma coleção encontra-se esta bela quadra (P. 5):
A Sereia quando canta
Canta no pego do mar;
Tanto navio se perde,
Ó que tão doce cantar.
No Auto das Fadas, representado por Gil Vicente diante de el-rei D. João III,
perseguidor incansável das inofensivas superstições da rudeza popular, o poeta
pede tolerância para a inocente credulidade. Ali evoca as Fadas Marinhas ou
Sereias, que vêm fadar o rei, a rainha e os infantes e a aristocracia que estava
assistindo à representação. É Gil Vicente o único escritor português que
introduziu na literatura este riquíssimo elemento nacional; faltou-lhe a
liberdade de um Shakespeare, para poder dar forma a uma criação como o
Sonho de Uma Noite de S. João; o poeta era dotado de um sentimento lírico
profundo para realizar uma ideia assim bela:
Ora sus! má criatura,
I-me logo polas Fadas
Marinhas, bem assombradas
E tomai essa amargura.

Donde vindes?
— D’Almolina.
Que trazedes?
— Farinha.
Tomai lá, que não é minha[13]

E traga as Fadas asinha.
Ó Senhora Ladainha,
Ajudade-me ora vós;
Cabra preta vai por vinha,
Vai por vinha, mana minha,
Te rogamus, audi nos.

Quando fordes à Igreja
Não vos esqueça a soberba,
Tomad’ora meu conselho
Ó açoites do concelho
Que estrearam meus avós:
Te rogamus audi nos.

Ladainha da Pereira
Escrita em pele de rata,
Tinta de pingo de pata
Assada por mão demogueira.
Ó picota da Ribeira
Que estrearam meus avós,
Te rogamus audi nos.
«e vêm as Fadas marinhas cantando a cantiga seguinte:»

FADAS
Qual de nós vem mais cansada
N’esta cansada jornada?
Qual de nós vem mais cansada?

FEITICEIRA
Pitas, pitas, pitas, pitas,
Pateias, patelas, pateias,
Bem venhais, minhas donzelas,
Linguadas, frescas, fritas.
………………… (diz às Fadas)
Como vos vai n’esse mar
Tão profundo e espaçoso?

(Respondem as SEREIAS cantando)

Nosso mar é fortunoso,
Nosso viver lacrimoso,
E o chegar rigoroso
Ao cabo desta jornada:
Qual de vós vem mais cansada
Nesta cansada jornada?

FEITICEIRA
Não podedes vós falar.
Que respondedes cantando?

FADAS
Nós partimos caminhando,
Com lágrimas suspirando,
Sem saber como nem quando,
Fará fim nossa jornada,
Qual de nós vem mais cansada
Nesta cansada jornada.

FEITICEIRA
………………………………….
Minhas flores da ribeira
Descanso d’esta alma minha,
Rainhas da vida marinha,
Honrade ora esta romeira
Fadai de linda maneira
Este estrado de bons fados,
Que Deus lh’os dará dobrados
Praza a ele que assim virá.

«Fadam as Fadas a El-Rei e à Rainha, cada uma por sua vez:»

FADA
Os Fados que deram ser às Estrelas,
Quando a terra estava vazia
Façam caminhos a vossa alegria,
Por onde vos venha tão cara como elas.
E aqueles fados
Que para dar dita são determinados
Vos tragam as vossas das mais escolhidas,
E os instrumentos que alongam as vidas
Vos veja dobrados.

Os Fados que deram orvalhos às rosas.
Visitem as flores do vosso estrado,
E todo o cuidar de triste cuidado
Não hajam lugar nas Altezas vossas.
E aquelas Fadas
Que tem as ribeiras de verde pintadas,
Vos pintem as vidas d’alegre pintura,
E as altas sortes, que parte Ventura
Vos vejam guardadas.

2.ª FADA
As coisas que fazem a terra parir
Lírios alvos e veias divinas,
Cerquem os quadros de vossas cortinas,
E sempre vitória vos faça dormir.
E a Fada primeira
Que fez a Fortuna geral dispenseira,
E fez nossos mares e céus por medida,
Vos faça gozar o gozo da vida
De nova maneira.

3.ª FADA
As novas que temos nas ondas do mar
São, que na terra há pouca verdade;
E pois de verdades há má novidade,
Por novidades as haveis de tomar.
Ora é pera ver:
Tome Vossa Alteza qualquer que quiser,
Que todo é verdade as sortes que são,
Tomai d’esses sete Planetas que i vão
A que vos vier.

«Aqui deram as Sortes primeiramente a El-Rei — à Rainha — ao Príncipe — à Infanta D. Isabel —
à Infanta D. Beatriz, etc. »

Na tragicomédia da Rubena, representada em 1521, introduz Gil Vicente duas
Fadas, que vêm dotar Cismena, do mesmo modo que no romance da Infantina:

FEITICEIRA
Diabos, por meu amor
Filhos meus e meus senhores,
Ide à deusa maior.
Dizei que por seu louvor
Me mande as Fadas maiores:
As mais duas fermosas
Com melodia serena,
Que me fadem a Cismena
Sobre todas as ditosas.

«Vêm as Fadas Ledera e Minea, cantando, e acabando de cantar, diz:»

LEDERA
Esta nasceu em tal hora
Que há de correr grã tormenta
Dolorosa
Depois será grã senhora
De toda fortuna isenta
Mui ditosa.

Mas primeiro mui chorosa
Sem emparo aqui em Creta
Se verá;
E a poder de fermosa
E de casta e de discreta
Tornará.

MINEA
O primeiro perigo
Que a hão de querer ferrar
Para a vender
Por Moira, o ferro no pé
Aqui a havemos de fadar
E benzer.

Que ela o possa entender
E se salve na barcagem
D’Arrochela:
E lhe dará de comer
Uma bestial selvagem
De dó dela. (Obr. t. II, pág. 8, 29.)

«As Fadas que fadaram esta Cismena, vendo chegado o tempo em que lhe havia de acontecer
o que em seu nascimento lhe disseram, a vieram avisar disso, andando como gado naquele
monte; e vem cantando, etc.»
A Fada, que recebeu pela fatalidade da nossa etnologia, um caráter marítimo e
se confundiu com a Sereia, sendo chamada Marinha, também pelas nossas
relações com os Árabes, adquiriu uma nova feição: é a Moira encantada.
A Moira é para o povo português á fada que guardava os tesouros encantados; a
Moira é uma donzela árabe que vive sob encantamento desde que os Árabes
enterraram as suas riquezas, esperançados em que tornariam a dominar a
Península. A ideia da Moira nada tem de comum com a ideia das parcas gregas
que se chamavam Moire, nem com as divindades gaulesas análogas Mairae; a
Moira peninsular, apesar de virgem como a meir céltica, ou a moer escandinava,
[14] tem um carácer maravilhoso, fatídico, e sobretudo caracterizado pela
guarda de tesouros. O sincretismo dá-se sempre nas ideias e não nas
designações das cousas; antes de os Árabes serem repelidos da Península era
conhecida a tradição oriental de umas certas formigas monstruosas que
escavavam no chão e. amontoavam em volta de si areias de ouro; chamadas
pelos Gregos murmex, os Persas, segundo Wahl, as denominaram mur mess,
formiga grande; é de crer que os Árabes, não só pela influência culta que
recebiam da Pérsia, como pela comunicação direta que tinham com as obras de
ciência grega, popularizassem esta tradição da zoologia maravilhosa,[15] das
mur mess. Destas formigas mur escreve Alberto Magno: «custodiunt montes
aureos, et homines accedentes discepunt etc.» (De Animal, XXVI). Foi através
dos Árabes que os livros gregos e os trabalhos científicos se vulgarizaram na
Europa; o povo português desta incompleta lembrança de um fenómeno mal
explicado formou uma tradição confundindo-o como facto de terem os Árabes
enterrado muitos tesouros. Podemos crer que a lenda das Moiras encantadas se
firma sobre uma tradição erudita da Idade Média. Ainda hoje quando o nosso
povo quer fixar uma época histórica, exprime em frase genérica no tempo dos
Moiros. Em Gil Vicente encontramos formulada a crença popular:
Eu tenho muitos tesouros
Que lhe poderão ser dados,
Mas ficaram enterrados
D’eles do tempo dos Mouros
D’eles dos tempos passados.[16]

Nas Cortes de Júpiter, Gil Vicente introduz uma Moira, que vem falar à
infanta D. Beatriz quando partiu para Saboia:
E a Moira há de trazer
Três cousas que vou dizer,
Para do Estreito avante:
Um anel seu encantado
E um dedal de condão
E o precioso terçado
Que foi no campo achado
Depois de morto Roldão.
O Terçado para vencer:
O Dedal é tão fecundo,
Que tudo lhe fará prazer;
O Anel para saber
O que se faz pelo mundo. (II, 415.)
O dote que a fada concedia chamava-se condão; nesta passagem de Gil
Vicente, no verso: «O terçado para vencer» alude à crença das espadas
encantadas dos heróis dos poemas da Idade Média. Esta tradição liga-se pela
nossa história à espada do Condestável feita pelo alfageme de Santarém, como
se lê na sua Crónica anónima. Por estas citações de Gil Vicente, vemos que no
século xvi, antes do estabelecimento da Inquisição em Portugal as tradições
feéricas estavam vigorosas. Antes de Pérrault coligir da tradição oral o conto da
Cendrillon, já ele era conhecido em Portugal, como vemos por um documento
de 1546; na comédia Ulissipo, escreve Jorge Ferreira de Vasconcelos: «Pois eu
também não quero gatas borralheiras.» (Fl. 32 e fl. 14.) Na tradição popular
portuguesa é este o mesmo título dado a Cendrillon. Um dos contos mais belos,
não coligidos por Pérrault, é o que se intitula as Três Cidras do Amor, no século
XVI tão vulgar entre nós, que o licenciado Soropita alude a ele: «senão
quando, falando com reverência, apareceram por proa as Três Cidras do
Amor...» (Poesias e Prosas, p. 103.) Na poesia popular há uma alusão à peripécia
fundamental deste conto:
Ó Cidra, considra ó cidra,
Ó Cidra, considra bem,
Depois da cidra partida,
Cidra, que remédio tem?
Além destas duas preciosas referências, parece-nos que a locução popular
Cantar a Moliana, que significa gritar com aflição em um momento de perigo,
se prende à locução francesa do Cri de Melusine, tradição heráldica da casa de
Lusignan; temos a conexão histórica para esta afirmação na genealogia dos
Monizes, dos quais se lê nas Divisas de João Rodrigues de Sá:
Âmbalas armas reais
de Chipre e Jerusalém
com armas mistura tem
de Moniz; mas estas tais
a um só deles convém:
um só a quem com razão
chama-se do Lusinhão,
seu pai Ih’a fez alcançar
por se ajuntar e casar
com tão alta geração[17].
Além destas preciosas indicações, temos nos Livros de Linhagens excelentes
subsídios para fixarmos o nosso domínio feérico; sabe-se que em volta das
genealogias se agrupavam estas lendas maravilhosas, para darem à nobreza uma
origem quase divina.
Finalmente, na novela de cavalaria de Amadis de Gaula, há o tipo do mágico
Archelau que é uma espécie de Barbe-Bleu de Pérrault; mas pertencente aos
fins do século XIV; a fada Urganda a desconhecida é a boa fada que anda
evitando os desastres na sua passagem. O Amadis de Gaula é português, e esta
feição feérica vista pela aproximação da época em que foi escrito e em que
contos britónicos entraram no Nobiliário, são um forte argumento da sua
redação portuguesa.
Foi no século XVI que o conto recebeu a forma literária, dada por Gonçalo
Fernandes Trancoso[18]. Antes de falarmos da sua coleção, importa definir as
relações com os novelistas italianos e franceses da grande época da Renascença,
que neste tempo foram lidos em Portugal. Pelos Índices Expurgatórios conhece-
se essa corrente da leitura dos livros de novelas.
As Notte piaccevoli de Straparola foram conhecidas em Portugal como se infere
de algumas novelas de Trancoso, que traduziu o conto de Grisélidis do folheto
italiano, sem data, La Novella di Gualtieri, traduzida da redação portuguesa
por Timoneda no seu Patrañuelo. É um tema que recebeu todas as formas
literárias desde a Idade Média até hoje.
A comprovação de um vasto campo de tradições populares no século XVI,
explica-nos o aparecimento de Gonçalo Fernandes Trancoso, autor dos Contos
e Histórias de Proveito e Exemplo, para o qual fomos o primeiro que chamou a
atenção dos críticos europeus. A coleção de Trancoso, também conhecida com
o título de Contos Proveitosos, compõe-se de vinte e nove contos, derivados em
grande parte de fontes tradicionais, alguns de proveniência popular, como o
provamos em notas adiante, outros de obras eruditas. Apesar de se acharem
diluídos em divagações morais, que embaraçam as narrativas, e não obstante o
estilo forçado, são importantes para alargarem a área dos estudos comparativos
da novelística. Diremos algumas palavras da personalidade de Trancoso; era
natural da província da Beira, tomando o apelido da localidade do seu
nascimento; veio exercer para Lisboa a profissão de mestre de Humanidades,
isto é, Latim e Retórica, em um tempo em que estas disciplinas não eram
privilégio exclusivo dos Jesuítas. (1555.) Nos seus contos refere-se: «Ao
glorioso S. Pedro, cujo freguês sou»; donde se deduz que vivia na freguesia de
Alfama. A data em que começou a escrever os seus contos fixamo-la em 1544,
segundo esta referência a uma armadilha de jogo: «e ele levava consigo
duzentos e vinte reales de prata, que era isto o ano de 1544, que havia quase tudo
reales.[19]» No conto XIII, da primeira parte, que versa sobre o anexim do real
bem ganhado, alude outra vez a esta moeda: «o qual com muito contentamento
por ver que soube escolher, lhe deu um real em dois meios, como ora costumam.
[20] E também: «meteu real e meio na mão.[21]» Estas referências fixam
irrevogavelmente a época em que Trancoso escrevia.
Uma das circunstâncias que levaram Trancoso a prosseguir na continuação dos
seus contos, foi o terror que espalhou a chamada Peste Grande de Lisboa, em
1569, circunstância que lembra a peste de Florença que determinou Boccaccio
à composição do Decâmeron. No conto IX da segunda parte, declara Trancoso
este motivo: «Assim o exemplo deste marquês, os que este ano de mil e quinhentos e
sessenta e nove, a esta parte perdemos mulheres, filhos e fazenda, nos
esforçaremos e não nos entristeçamos tanto, que caiamos em caso de
desesperação sem comer e sem paciência, dando ocasião a nossa morte.»[22]
Desta peste, que ainda hoje se conhece entre o povo como uma data histórica, a
Peste Grande, subsiste uma reminiscência na chamada Procissão da Saúde, que se
faz em Lisboa. Inspirado pelo fervor religioso, que sucedeu ao fim da peste,
Trancoso publicou logo em 1570 um opúsculo das Festas Mudáveis, dedicado
ao arcebispo de Lisboa. A redação dos contos ficou suspensa, desde que cessou
a peste: «e assim eu, ainda que tenho desejo de escrever este mês trinta
histórias, as ditas para desenfadamento...» A perda de quase toda a sua família,
mulher, filhos e a falta de lições, obrigaram-no durante tão tremenda crise a
esses exercícios de desenfado, para se não deixar cair em desfalecimento.
Na primeira edição dos Contos Proveitosos, de 1575, de que conhecemos o
exemplar único, agora examinado pelos bibliógrafos, vem uma Carta à Rainha
D. Catarina, regente de Portugal e viúva de D. João ui, onde se descreve o
desastre da Peste Grande de 1569; nessa Carta narra Trancoso, que lhe
morreram em casa sua mulher, uma filha mais velha de vinte e quatro anos, um
filho estudante e também um neto que era menino do coro. Sob o peso da sua
desgraça é que foi escrevendo os Contos Proveitosos; pela Carta à Rainha infere-
se que Trancoso casara pouco antes de 1544; as suas relações com a Rainha,
extremamente severa, dão-nos o sentido da alusão à morte do príncipe D. João,
pai de D. Sebastião, e porventura autorizam a crer que Trancoso fora mestre
de ler no Paço.
A determinação de alguns paradigmas de Trancoso, e o confronto com contos
populares ainda existentes prova-nos que ele se apropriou dos temas
tradicionais mais correntes na literatura do seu tempo.
A coleção de Trancoso compõe-se de vinte e nove contos derivados
imediatamente da tradição popular na maior parte, outros de fontes eruditas,
confundidos em difusos comentários católicos e dificilmente narrados; ainda
assim os Contos Proveitosos são bastante importantes para o estudo comparativo.
Em uma edição dos Contos Proveitosos de 1585 impressa depois da morte de
Trancoso, por seu filho Afonso Fernandes, vem um prólogo na segunda parte,
que dá notícia, de que em 20 de abril de 1570 acabara Gonçalo Fernandes
Trancoso a primeira parte, dedicando-a à rainha D. Catarina, que fez mercê
do papel para a sua impressão, sendo-lhe passado o alvará do privilégio em data
de 20 de abril desse ano, e em 26 de novembro de 1571 ampliado à segunda e
terceira parte «por ser tudo uma história». «Eu El-Rei faço saber aos que este
alvará virem que, havendo respeito ao que na petição atrás escrita diz Gonçalo
Fernandes Trancoso, morador nesta cidade de Lisboa, hei por bem e me praz
que, no tempo de dez anos, imprimidor nem livreiro algum nem outra pessoa
de qualquer qualidade que seja não possa imprimir nem vender em todos meus
Reinos e senhorios nem trazer de fora deles o primeiro livro conhecido na dita
petição, salvo aqueles livreiros e pessoas que pera isso tiverem seu poder e
licença... etc. Lisboa, 20 de abril de 1570.» (Chancel. de D. Sebastião, Privilégios,
Liv. VIII, fl. 255, v.)
«Eu El-Rei faço saber aos que este alvará virem que, havendo respeito ao que
na petição atrás escrita diz Gonçalo Fernandes Trancoso, morador na cidade
de Lisboa, hei por bem e me praz, que ele possa vender os três livros de que na
dita petição faz menção, a preço de cinquenta réis cada um, e que o privilégio
que lhe tenho concedido pera pessoa alguma não poder imprimir nem vender
sem sua licença o primeiro dos ditos livros, se lhe cumpra e guarde no segundo e no
terceiro, por ser em tudo uma estória... Almeirim, 26 de novembro de 1571»
(Chancel. de D. Seb., Priv., Liv. VIII, fl. 98, v.)
«Eu El-Rei faço saber aos que este alvará virem, que havendo respeito ao que
na petição atrás escrita diz Gonçalo Fernandes Trancoso, morador nesta
cidade de Lisboa, hei por bem e me praz, que por tempo de dez anos mais além
doutros dez que já lhe foram dados, imprimidor nem livreiro algum nem outra
pessoa de qualquer qualidade que seja não possa imprimir nem vender em
todos meus Reinos e senhorios nem trazer de fora deles a primeira, segunda e
terceira partes do livro conteúdo na dita petição... Lisboa, 9 de agosto de 1581.»
(Chancel. de D. Seb., Privil. Liv. XIII, fl. 249, S.)
O filho do autor, Afonso Fernandes Trancoso, obteve privilégio de mais cinco
anos sobre os já concedidos, em 10 de janeiro de 1585.
Presumível é, que a primeira parte fosse publicada isoladamente, e com a
segunda se reunissem na edição de 1575. É nesta, extremamente rara, que vem
o Prólogo autobiográfico, dirigido à rainha:
«Ficando eu nesta cidade de Lisboa o ano de 1569, muito alta e muito poderosa
Rainha nossa Senhora, a tempo que por causa da peste (de que Deus nos
guarde) quase todos os seus moradores a despovoavam: vi tantas cousas que
provocam os ânimos à tristeza, que quem quisera escrevê-las, tinha matéria
para fazer grande e mui lastimoso Livro; porque da contagiosa enfermidade
havia cada dia feridos que sacramentar, grande multidão de mortos que
enterrar, e a muitos órfãos chorar. E em todos grandes necessidades que
prover, a que o Senhor socorreu com pessoas virtuosas, que por seu amor o
faziam: a uns por uma parte sacramentavam, outros medicavam e davam pela
cidade grandes e mui copiosas esmolas, outras enterravam, que ainda que havia
muitas a que acudir, não tantas as que nestas obras virtuosas se exercitavam,
que não ficou cousa sem se prover, ainda que nisso morreram muitas (por
mercê de Deus) não faltavam outras e outras. Neste tempo de tanto trabalho
me tocou o Senhor, alcançando-me tanta parte, que perdi no terrestre
naufrágio uma filha de vinte e quatro anos que em amor e em obras me era
mãe, um filho estudante, um neto moço do coro da Sé; e para minha lástima
perdi a mulher, que por suas virtudes era de mim amada, que foi causa de
grande tristeza minha, tanto que ainda que conhecia vir-me por meus pecados
da mão do Senhor, a carne que é tão fraca, com a imaginação se ia cada dia
metendo em tristes pensamentos, e tais, que me desinquietavam e provocavam
a grande melancolia, tanto que temi que o imaginar nos trabalhos presentes me
fosse prejudicial ao corpo e alma, se Deus me não tivesse de sua mão (como por
experiência adiante se viu em outros). E com este temor por fugir daquelas
tristezas, determinei prender a imaginação enferma. E com ajuda de Deus.
Nosso. Senhor, pude tanto, que ao tempo que ela queria fazer chaminé de
lamentações, a tirei delas, e me pus a escrever Contos de Aventuras, Histórias de
Proveito e Exemplo de alguns ditos de pessoas prudentes e graves, da qual esta é
a primeira parte. E tendo-a de todo acabado, por ser já tempo de saúde e eu me
achar desalivado das imaginações que foram a causa de a escrever, quiseram
contentar-me com isso e guardar o livro. Mas vendo assim ficava o proveito da
obra para mi só, e entendendo que nenhum bem é perfeito, se não comunicado,
determinei imprimi-lo, por que todos gozassem destes contos, os quais dando
gosto aos ouvintes, não carecem de lição. Mas porém considerando como
sempre (por nossos pecados) há entre nós murmuradores, que não tendo mãos
para escrever, têm línguas para danar e dentes para roer, receando por minhas
faltas me espedaçassem a obra, pois sem elas espedaçam e aniquilam obras de
doutos varões, perfeitos e bons, buscando-lhe valhacouto firme, em que o livro
estivesse seguro destes combates, achei que não há terra outra senão Vossa
Real Alteza, a quem peço, que usando da sua grandeza e costumada
liberalidade, que há tempo de fazer mercês, ma faça de aceitar este tratado:
porque debaixo do seu favor ande seguro, ainda que indigno de tão grande
mercê. E não julgue a temerária minha ousadia, que nasce do desejo de
comunicar com todos o prémio de meu trabalho, esperando em Deus que sairá
dele fruto virtuoso. E logo acabarei de imprimir a segunda parte: Rogando a
Nosso Senhor, prospere a vida e estado de Vossa Real Alteza por longos anos
com muita felicidade. Ámen.»
Vê-se por este final, que o privilégio de 20 de abril de 1570 compreendendo só
a primeira parte dos Contos, fora depois em 1571 reproduzido com a segunda
parte, por ser tudo uma história.
A dedicatória à rainha reproduzida na edição de 1575 ainda acompanhou a
edição dos Contos de 1596. No ano da peste grande, Trancoso ficara por fiador
por vinte cruzados de um Francisco Lainez tendo de ir servir em Africa um
ano; por ataque da peste morreu o Lainez estando já embarcado, e Trancoso
requereu para que lhe fosse perdoada a fiança; foi atendido por alvará de 17 de
outubro de 1575. Os paradigmas dos Contos Proveitosos é que nos podem dar a
conhecer a extensão das reminiscências de Trancoso e a importância do seu
livro. O conto do segredo revelado à mulher, do qual se serve contra o marido em
um momento de cólera, acha-se na Gesta Romanorum; (cap. 144 do Violier des
hist rom.); nas Novelas de Sacchetti, n.º XXI; nas Cento Novelle antiche, n.º 100;
nas Cem Novelas Novas, n.º nas Notte piacevoli, de Straparola, 1.ª da primeira
noite; e no livro de Chevalier de la Tour, cap. 128.
O conto das três donzelas que desejavam servir o rei acha-se também em
Straparola (nott. IV, fav. III) e já foi submetido a um estudo comparativo por
A. Coelho.
O conto do rapaz que resgata a cativa cristã e compra a relíquia acha-se também
em Straparola (nott. XI, fav. 2).
O conto o que Deus faz é pelo melhor acha-se em uma versão idêntica no Conde
de Lucanor, de Don Juan Manuel, fl. 81, v.
O conto de minha mãe, calçotes! é uma variante do conto da Bilha de Leite, de
Gil Vicente, e tem as suas raízes tradicionais no Hitopadessa.
O conto de D. Simão, que responde a todas as adivinhações que lhe propõe o rei acha-
se ainda hoje na tradição oral portuguesa, com o título de Padre João Sem
Cuidados, e existe uma versão publicada no Almanaque de Lembranças para
1866, p. 323; nas Novelas de Sacchetti, nov. IV, se acha um paradigma literário,
o que torna mais extensas as suas fontes tradicionais.
O conto IV de Trancoso acha-se na Gesta Romanorum (Violier, p. 392); na
Disciplina clericalis de Pedro Alfonso, e no Decâmeron (jorn. VIII, nov. 10).
Trancoso também traz um extenso conto da Grisélidis digno de ser comparado
nos seus principais episódios com a versão de Boccaccio, e com as demais fontes
já acumuladas por Edelestand du Méril. Como a versão de Timoneda no
Patrañuelo seria tomada de um folheto italiano, isto explica a sua analogia com
a lição de Trancoso. Nos anexins portugueses encontra-se um que parece
aludir à história de Grisélidis, e por certo derivado da versão oral portuguesa:
Pelo marido vassoura,
Pelo marido senhora.
Em um jornal literário do Porto, a Harpa, analisou Ad. Coelho segundo o
sistema empregado por Domenico Comparetti, o Canto XV da parte primeira
Histórias Proveitosas, de Trancoso, aproximando-o dos paradigmas já reunidos
por Benfey, na introdução ao Pantchatantra, § 166, seguindo assim a corrente
tradicional nas versões tibetana, russa, alemã, italiana e inglesa.
Desta análise minuciosa conclui: «Vê-se que Trancoso não pode tirar o seu
conto de nenhuma de essas formas conhecidas, nem das imediatamente
anteriores, e como o conto não se acha em nenhuma das coleções antigas de
contos e novelas que maior giro tiveram na Europa, torna-se muitíssimo
provável, podemos dizer, quase indubitável, que ele bebesse na tradição oral
portuguesa, para onde ele viria por algum dos muitos canais, que cá trouxeram
grande número de contos orientais.» Era esta a nossa opinião, que Coelho
começou por combater no seu estudo: «Nada mais difícil a nosso ver, do que
provar que Trancoso bebeu na tradição popular, nenhum testemunho direto
no-lo afirma...»
O segundo conto analisado por Coelho foi o das três irmãs, e indica-lhe fontes
árabes, florentinas, sicilianas, húngaras, alemãs, gregas, catalãs, e três versões
populares do Minho, de Coimbra e de Castelo Branco; e conclui que Trancoso
só poderia ter conhecido unicamente a forma literária de Straparola.
A coleção dos Contos de Trancoso compõe-se de três partes, interrompida pela
morte do autor; a primeira parte deve fixar-se por 1544, e talvez impressa
separadamente, como se poderá inferir de uma edição desconhecida, citada por
Brunet.
A segunda parte, redigida em 1569, foi reimpressa ainda em vida de Trancoso
com a primeira em 1575; a terceira parte, não continuada, apareceu depois da
morte do autor, publicada por seu filho António Fernandes em 1596. Por estas
edições se conhecem as relações literárias de Trancoso com o poeta Luís
Brochado, autor das popularíssimas Trovas do Moleiro. Além das numerosas
edições deste livro, nos séculos XVII e XVIII, acham-se também muitas
referências aos Contos nas comédias de cordel.
O conto da Imperatriz Porcina foi romanceado por Baltasar Dias, poeta cego
do tempo de Dom Sebastião, e o mais popular depois de Gil Vicente. Coube-
lhe a sorte dos Demódocos; a cegueira deu-lhe o profundo caráter do
sentimento popular. As origens históricas deste romance encontram-se nas
Lendas Alemãs, de Jacob Grimm, (t. II, p. 120) sob o título de Hildegarda: «O
imperador Carlos partira para a guerra, deixando em casa a bela Hildegarda
sua mulher. Durante este tempo, Taland, cunhado de Carlos, esperou que ela
acedesse a seus desejos. Mas a virtuosa princesa antes queria morrer, do que ser
infiel ao esposo; dissimulou contudo, e prometeu ao infame de consentir, logo
que construísse de propósito uma linda câmara nupcial. Imediatamente Taland
mandou construir a todo o custo um magnífico quarto de mulher, fechado por
três portas, depois pediu à rainha que o acompanhasse até ali. Hildegarda
fingiu que o seguia, e obrigou-o a entrar primeiro. Quando transpôs os
umbrais da terceira porta, ela a fechou de súbito e correu um pesado ferrolho.
Taland permaneceu fechado na prisão até à volta de Carlos, depois da vitória
sobre os Saxões. Então, comiserando-se dele, e cedendo a hipócritas súplicas, o
pôs em liberdade pensando que fora assaz punido. Mas logo que Carlos o viu,
perguntou porque estava assim tão magro e pálido. «Culpa de vossa esposa
ímpia e impudica, respondeu Taland; quando ela descobriu a solicitude com
que eu a vigiava, e se viu impossibilitada de cometer faltas, mandou construir
uma nova torre e ali me teve preso.» O rei ficou vivamente comovido com
aquela nova, e num momento de cólera ordenou à sua gente de afogarem
Hildegarda. Ela fugiu, e foi ocultar-se em segredo em casa de uma de suas
amigas; mas logo que o rei descobriu o refúgio, deu novamente ordem para a
conduzirem a uma floresta, de lhe vazarem os olhos, e de a banirem em seguida
do território. O que sucedeu? Quando a gente do rei a levava, encontraram no
caminho um cavaleiro da casa de Freudemberg, que a condessa Adelgemd, sua
irmã, enviara encarregado de uma mensagem para Hildegarda. Logo que viu
que perigo corria a rainha, arrancou-a das mãos dos algozes, e lhes deu o cão
que o havia seguido. Tiraram os olhos ao cão e os levaram ao rei como prova de
haverem cumprido as suas ordens. Salva deste modo Hildegarda pelo socorro
de Deus, veio a Roma em companhia de uma nobra dama, chamada Rosina, e
exerceu ali com tanta felicidade e sucesso a medicina, que aprendera e praticara
durante a vida, que em breve alcançou uma grande nomeada. No entretanto
Deus puniu a impiedade de Taland tornando-o leproso e cego. Ninguém o
podia curar; alfim ouviu dizer que em Roma uma mulher célebre pelos seus
conhecimentos médicos, curava muito bem aquela doença. Quando Carlos veio
a Roma, Taland o acompanhou, indagou a morada da mulher, disse-lhe o
nome, e pediu para a sua doença os socorros da arte, sem saber que estava
falando à rainha. Hildegarda ordenou que confessasse os seus pecados a um
padre, fizesse penitência, e que depois experimentaria nele a virtude da sua
arte. Taland seguiu o conselho, confessou-se, veio procurá-la e ela lhe restituiu
a saúde. O papa e o rei ficaram tão maravilhados da cura, que desejaram ver a
mulher que a praticara e a mandaram chamar. Ela obedeceu, mas com a
condição de no dia seguinte entrar para o Convento de São Pedro. Foi ao Paço
e contou ao rei seu senhor como fora traída. Carlos reconheceu-a com alegria,
e a tornou a tomar como mulher; mas condenou à morte seu cunhado.
Contudo a rainha, a poder de rogos, obteve que lhe poupassem a vida, e assim
ficou somente abandonado à miséria.»[23]
De onde viria esta tradição ao conhecimento de Baltasar Dias? Seria talvez dos
exemplos que se usavam então nos sermões? É certo, que como esta chegaram
até nós muitas lendas da Idade Média, como o conto de Grisélidis que traz o
Trancoso, vindas talvez por Espanha. O romance da Imperatriz Porcina ainda
hoje anda no pregão dos cegos e faz as delícias do nosso povo. Dá-se com ele o
facto notável de ser na tradição oral mais breve e por isso mais lindo.
A História da Imperatriz Porcina, tão querida, reimpressa, procurada e
apregoada, tornou-a clássica em Portugal esse infeliz cego, natural da Madeira,
o Gil Vicente do tempo de D. Sebastião, povo no seu estilo e cego como ele no
mundo; foi por isso que o povo o compreendeu como irmão, e se consolava
com as fantasias que ia criando na solidão em que se achava. Ainda hoje os
artífices das vilas e arrabaldes das cidades encontram uma distração predileta
no Auto de Santo Aleixo e no Auto de Santa Catarina de Baltasar Dias.[24]
Pertence-lhe também o Auto da Malícia das Mulheres[25], e essa pérola
perdida e modernamente desencantada pela vara mágica de Garrett, que a
salvou no terceiro tomo do seu Romanceiro, o Marquês de Mântua, apeado do
proverbial barbante em que tantos anos cavalgou, despindo-o do papel pardo
em que o traziam os vendilhões de feira e os cegos andantes; salvou este
venerando romance do ciclo de Carlos Magno, mau grado o desdém
supercilioso de hieráticos académicos.[26] O romance é de origem francesa;
inclinamo-nos a crer que viesse de Espanha, deixando o caráter épico que lá
tinha depois de dramatizado ao gosto popular por Baltasar Dias.
O nosso Marquês de Mântua, que anda na literatura de cordel, tinha sido
transcrito na coleção do Cavaleiro de Oliveira, com uma variante no princípio;
Baltasar Dias o traduziu dos pliegos sueltos espanhóis. Nas notas de Dom
Quixote, Pellecier atribui-o a Geronimo Trevião, mas Ochoa (Tesoro, p. 12,
not. 3) apenas o julga como editor, que lhe deu correção e modificou o original
antigo, fundado no encontro das consoantes forçadas, não usadas pelos poetas
dos séculos XIV e XV. Nos romanceiros espanhóis anda dividido em três
partes; na primeira encontra o marquês seu sobrinho Baldovinos ferido
mortalmente, que lhe conta a traição de Carloto, e a vingança que jura; o
segundo romance conta a embaixada a Carlos Magno para lhe pedir justiça
contra seu filho, e a execução da sentença contra Carloto; o terceiro é o funeral
de Baldovinos. Baltasar Dias transformou os três romances em um só,
reduzindo igualmente as descrições épicas a rubricas dramáticas, servindo-se
das falas para o diálogo. Por aqui se vê quase o processo artístico como o nosso
poeta foi naturalizando e melhorando os romances espanhóis. Quando Garrett
sacou do lixo da Feira da Ladra esta pérola, ainda não sabia quem era o autor.
A Formosa Magalona, que pertence à influência do romance cavalheiresco
francês sobre a Península,[27] depois de havê-la vertido por seu turno a
Espanha, chegou até nós. A Formosa Magalona, que andou entre nós tanto
tempo montada no cordel do cego andante, e agora passou para a canastra do
vendedor de fósforos, foi, segundo Victor Le Clerc, escrita primitivamente em
provençal ou em latim, no século XIV, pelo cónego Bernard de Triviez. É um
dos mais corretos de todos os contos populares, e dizem que aos catorze anos
Petrarca lhe retocara o texto.[28] O tradutor português alterou-lhe o título
antigo — Histoire de Pierre de Provence et de la belle Maguelone. As traduções à
letra não eram conhecidas na Idade Média. Apontamos aqui um excelente
subsídio de estudo:
Historia Dily Niebel e Viglion Cavalier, Pieder de Provenza e della Biala
Magelona, Prinzessa de Neapel (versão sursélvica). Na Zeitschrift für romanische
Philologie, 1881. V Band. 4 hept. (pp. 480 a 497).
IV) Os contos no século XVII: Rodrigues
Lobo e D. Francisco Manuel de Melo.A
tendência moralista ampliando os contos

No século XVII o conto recebia em Portugal duas poderosas influências;
Francisco Rodrigues Lobo, na Corte na Aldeia, procurava submetê-lo às regras
literárias, discriminando os seus géneros e estabelecendo o modo de narrá-lo;
por outro lado Saraiva de Sousa, no Báculo Pastoral, o padre Manuel Bernardes
na Floresta e Estímulo Prático limitam o conto no destino ascético, e Vieira na
intenção moral.
No diálogo X da Corte na Aldeia, traz Rodrigues Lobo a História dos Amores de
Aléramo e Adelasia, da qual diz um dos seus interlocutores: «poderá servir —
no modo como se devem contar outras semelhantes, com boa discrição das
pessoas, relação dos acontecimentos, razão dos tempos e lugares, e uma prática
por parte de alguma das figuras, que mova mais a compaixão e piedade, que
isto faz dobrar depois a alegria do bom sucesso. — Esta diferença me parece
que se deve fazer dos Contos para as Histórias, que elas pedem mais palavras que
eles, e dão maior lugar ao ornamento e concerto de razões, levando-as de
maneira que vão aperfeiçoando o desejo dos ouvintes, e os Contos não querem
tanto de retórica, porque o principal em que consistem é na graça do que fala, e
na que tem de seu a coisa que se conta.» Em aplicação destas regras apresenta a
História dos Amores de Manfredo e Eurice, à imitação dos novelistas italianos,
com divagações de estilo retórico, para confrontá-las com as narrativas
populares «com mais bordões e muletas do que tem uma casa de romaria,
porque me não escapam termos das velhas, nem remendos de descuidados, que
lhe não misture.» Em seguida exemplifica o processo com uma história contada
com o erro do costume dos ignorantes:
«Dizem que era um rei; vem este rei casou por amores com a filha de um seu
vassalo; era ela tão fermosa, que podia por sua beleza ser confiada, pois por essa
alcançara o ser rainha; mas sem lhe valerem esses privilégios, deu em tão ciosa,
que bem à mão, não dava o marido um passo que ela não acompanhasse com as
suas suspeitas; assim que apertavam estas tanto com ela, que jamais vivia em
paz, com seu gosto. Vem ela, e por vencer esta desconfiança, vai e manda
secretamente chamar uma feiticeira, que naquela terra havia, de muita fama,
em cujo engano achavam os namorados uma -botica de remédios para seus
males. Assim que dizia esta feiticeira por lhe vender mais cara sua diligência,
feitas algumas fingidas, meteu em cabeça à boa rainha ciosa, que o marido
amava com grande extremo a uma criada sua, que ela pintou logo a mais
galante, airosa, galharda e bem-assombrada, que havia no Paço. Quando ela
aquilo ouviu, ficou (guarde-nos Deus) como uma mulher transportada e sem
sangue; por maneira que prometeu àquela feiticeira que lhe faria e aconteceria
se a desafeiçoasse ao rei daqueles amores e empregasse nela todos os seus: a
outra, que não queria mais que aquilo, vede vós como ficaria contente, vem e
promete à rainha que lhe daria três águas conficionadas, de tal maneira que
uma, tanto que el-rei a provasse, bebesse logo os ventos por ela, e lhe quisesse
mais que o lume dos olhos com que a via; a outra, que em a rainha a bebendo,
parecesse a seu marido o maior extremo da formosura, que havia no mundo; a
terceira, que tanto que a dama a bebesse, a desfigurasse de maneira que a todos
aborrecesse a sua vista. As palavras não eram ditas, a rainha lhe deu muitos
haveres e fez grandes mercês e promessas, que muito fácil é de enganar a que
deseja aquilo com que lhe mentem. Vai a feiticeira dali a poucos dias, e traz
aquelas águas conficionadas, encarecendo muito a virtude e segredo delas; mas
ou porque lhe errou a têmpera ou porque todas se resolvem nestas boas obras, a
mudança que ela queria houvesse na vontade e nos pareceres, lhe houveram de
fazer na vida, que a peçonha, que é sempre material dos seus unguentos,
penetrou de maneira que os teve a todos três em passamento, e a bem livrar
ficaram daí a poucos dias sem juízo. Inda bem a feiticeira não soube o dano que
fizera, e que por não trazer a mão certa naqueles adubos podia vir a estado de a
porem na da justiça, desapareceu. Eis senão quando, se ajuntam todos os
médicos eminentes que havia no reino, e depois de muitos meses de cura (olhai
vós quantas se fariam a tais pessoas) foram pouco e pouco cobrando os sentidos
e entendimento; e com a força do mal lhes caiu a todos o cabelo da cabeça, sem
lhes ficar um só. E não foi tão ruim o partido, como era ter cabeça sem ele
quem antes o trazia sem ela. Tornando ao meu propósito, tanto que a rainha se
viu desfigurada, conhecendo o desatino que fizera, dando todas as culpas ao
amor, confessou seu erro, a criada sua inocência, e o rei sua desgraça; dali em
diante, conformando-se como exemplo daquele sucesso, fizeram vida sem
ciúmes, que deles e de casamentos por amores não escapam senão com as mãos
nos cabelos, ou com eles pelados.»[29]
Rodrigues Lobo continua definindo os diferentes géneros de contos: «A
noite... se tocou nesta conversação o modo que havia de ter o discreto em contar
uma história, fugindo muitos vícios e bordões que os néscios tem nelas
introduzidos, e como em dependência desta matéria, se falou nos Contos
galantes, que tem delas muito grande diferença: pois eles não consistem mais,
que em dizer com breves e boas palavras uma cousa sucedida graciosamente.
São estes contos de três maneiras. Uns fundados em descuidos e desatentos,
outros em mera ignorância, outros em engano e subtileza. Os primeiros e
segundos têm mais graça e provocam mais o riso, e constam de menos razões,
porque somente se conta o caso, dizendo o cortesão com graça própria os erros
alheios. Os terceiros sofrem mais palavras, porque deve o que conta referir o
como se houve o discreto com o outro que o era menos, ou que na ocasião ficou
mais enganado.» «Além destas três ordens de contos, de que tenho falado, há
outros muito graciosos e galantes, que por serem de descuido de pessoas, em
que havia em todas as cousas de haver o maior cuidado, nem são dignos de
entrar em regra, nem de serem trazidos por exemplos; a geral é que o
desatento, ou ignorância, donde menos se espera tem maior graça. Atrás dos
contos graciosos se seguem outros de subtileza, como são furtos, enganos de
guerra, outros de medos; fantasmas, esforço, liberdade, desprezo, largueza e
outras semelhantes, que obrigam mais a espanto que a alegria; e posto que se
devem todos contar com o mesmo termo e linguagem, se devem neles usar
palavras mais graves que risonhas.» «Os contos e ditos galantes devem ser na
conversação como os passamanes e guarnições nos vestidos, que não pareça que
cortaram a seda para eles, senão que caíram bem e betaram com a cor da seda
ou do pano sobre que os puseram; porque há alguns que querem trazer o seu
conto a remo quando lhe não dão vento os com que pratica, e ainda que com
outras cousas lhe cortem o fio, torna a teia e o faz comer requentado; tirando-
lhe o gosto e graça que podia ter se caíra a caso e propósito, que é quando se
fala na matéria de que ele trata, ou quando se contou outro semelhante. Assim
convém muita advertência e decoro para os dizer, outra maior se requer para os
ouvir, porque há muitos tão sôfregos do conto ou dito que sabem, que em o
ouvindo começar a outrem ou se lhe adiantam, ou o vão ajudando a versos
como se fora salmo o que a mim me parece notável erro...» «também eu não sou
de opinião, que se um homem souber muitos contos ou ditos de uma mesma
matéria que se falou, que os traga todos ao terreiro como jogador que, levou
rifa de um metal, mas que deixe lugar aos outros, e que não queira ganhar o de
todos, nem fazer a conversação só consigo.» Rodrigues Lobo conhecia a
coleção espanhola de Timoneda, El Sobremesa y Alivio de Cambiantes (1576),
que tomava por tipo:
«Antes me parecia a mim, que assim dos contos galantes, ditos engraçados e
apodos risonhos, se ordenasse que em uma destas noites, tomando um
propósito, cada um contasse a ele o seu conto, e dissesse o seu dito: e seria um
modo extremado para se tirar outro novo Alivio de Cambiantes, com melhor
traça que o primeiro.» (Corte na Aldeia, Diálogo XI.) Na tradição popular
portuguesa temos encontrado contos que aparecem no Alivio de Camiñantes,
tais como: A Mulher Afogada que o marido busca indo contra a corrente do rio
(Vol. I, p. 256); Tudo Andaremos (I, p. 263); Não Lhe Dar com o Tom (n.º 37); as
Orelhas do Abade (I, p. 266); Para Quem Canta o Cuco? (p. 262); e o Cego Que
Recobra o Seu Tesouro (p. 239).
Como Rodrigues Lobo, também D. Francisco Manuel de Melo soube
inspirar-se nas tradições populares, que tanto nacionalizaram a época
quinhentista. Nas suas Cartas alude por vezes D. Francisco Manuel de Melo
aos contos ainda hoje correntes na tradição oral: «E ainda que virei a ser aquela
Dona atrevida,
Doce na morte
E agra na vida.»
(Op. cit., p. 67)
Em outro conto (Cent. II, p. 74), alude às trovas de Maria Castanha, tipo já
afamado pela novela picaresca da Lozana Andaluza: «Só vos peço, pois ides
para terra de muitos castanheiros, que não caseis por lá com alguma Maria
Castanha.» Também faz referência ao conto dos Frangãos e do Milhafre. (Ib. p.
215). Nos Apólogos Dialogais traz: «mas andas falando como quem bebe por
púcaro pedrado, ou como a história do Salsinha, que não haver de dizer sim nem
não, é um maldito costume.» (Ib. p. 260). Na Feira de Anexins cita o proverbial
Conto da Carochinha: «— Esperai, contar-vos-ei uma história — A da
Carochinha? — Não! procurai outra mais cara, que essa é muito barata? — Pois
digo-lhe que ainda com a carocha, é essa história o feitiço das crianças.» (Op. cit., p.
8). O escritor seiscentista não escapou ao espírito da época, aproveitando os
equívocos de caro e Carochinha, conto contrastando com a insígnia trágica da
Carocha ou mitra de papel que levavam os condenados aos autos de fé. Na
Égloga I (Sanfonha de Euterpe, p. 60) faz sentir a predileção das mulheres
fantasiosas:
Destas que leem por patranhas,
Suspiram Motes de cor,
Entendem falas estranhas,
Quer de amor’s quer de Façanhas
Livre-nos Nosso Senhor.
Nas Obras Métricas tratou muitas fábulas, e é sempre com intenção artística,
que D. Francisco Manuel usa os anexins vulgares. Nas Cartas (Cent. n/, n.º 81):
«Já ouvi que não havia amigos em tempo de figos; mas não em tempo de figas.
Digo-o, senhor meu, porque estão-no-las metendo nos olhos estes
Brichotes...» O anexim: Cantar mal e porfiar é derivado da fábula do corvo
querendo cantar como a filomela, vulgarizado pelo Dialogus Creaturarum de
Nicolau de Pérgamo. (Ap. Du Méril, Hist de la fable, p. 152, not.).
O pai de D. João IV, D. Teodósio II, duque de Bragança costumava distrair-se
nas suas insónias ouvindo contos do seu guarda-roupa António Mouro, como
se lê nas Provas da História Genealógica: «Contava muitas histórias ao Duque,
sem prejuízo de pessoa com que aliviava muito ao Duque de suas menencorias,
que nunca faltavam, e como o Duque dormia pouco, as mais das noites gastava
nestas cousas.» (Prov., t. VI, n.º 165).
Em carta de Francisco de Sousa Coutinho a D. João IV: «cheguei a tempo em
que quando V. Maj. era servido de o reparar honrando-me com algum título
lho não houvera de aceitar; sou já velho para mudar de nome e sou muito
conhecido pelo meu. Sei bem que diria a Vossa Majestade, quem isto ouvisse, o
que dizia a Raposa, de que eram verdes as uvas, mas pela mesma vida de V. Maj.
juro que o digo do meu coração...»[30]
Nos Sermonários e obras ascéticas do século XVII, tão retórico nos países
católicos, os contos tradicionais e populares receberam uma exclusiva intenção
moral, continuando pelas necessidades da casuística a explorarem os Tesouros
de Exemplos dos pregadores da Idade Média. O livro de Francisco Saraiva de
Sousa, intitulado Báculo Pastoral é um apanhado de uns contos de matéria
predicável[31]; aí se encontra o conto do filho do rei a quem incutiram a ideia
de que as mulheres eram os demónios, (Novellino, n.º XVI); o do príncipe
castigado pelo mestre na pessoa de seus doze amigos (Novellino, n.º XLVIII), a
adaptação portuguesa da lenda do Pajem de Santa Isabel. Também o ascético
padre Manuel Bernardes, no Estímulo Prático, apresenta o conto dos três cegos
que entre si conversam, imitando o seu estilo popular; na Floresta, traz o
apólogo das Cotovias (I, p. 70); o Cavaleiro de Rodes (I, 355); a Mulher Marinha
(I, p. 403); o Anel de Bênção (II, 158); o Animal Agradecido (II, 158); os Três
Beijos (II, 228), e outros muitos nos Sermões e Pão Partido em pequeninos.
Também nas comédias de Simão Machado encontram-se metrificados
pequenos contos da tradição clássica.
O poemeto Gaia, de João Vaz, de Évora, é apreciável como elaboração literária
de uma lenda árabe, que penetrou como relação histórica nos Livros de
Linhagens. A lenda da Donzela da Torre, que segundo Menéndez y Pelayo, se
referiria à fuga de D. Teresa, irmã de D. Afonso V de Leão, para casar com um
rei mouro, foi tratada como episódio por D. Bernardo Ferreira de Lacerda no
poema Espatia Libertada, na parte I, canto IV, em 49 estâncias. A infanta é aí
chamada D. Ximena. Lope de Vega dramatizou esta lenda heráldica dos Teles
de Meneses nas duas comédias famosas Los Telles de Menezes e Valor y fortuna y
lealdade de los Telles de Menezes, 1635. (Parte XXI). Menéndez y Pelayo acha
nesta lenda a síntese da independência do povo trabalhador e honrado ante a
fidalguia orgulhosa; confirma-o a cantiga portuguesa:
Alfaiates não são homens,
Sapateiros também não;
Homens são os Lavradores
Que enchem a casa de pão.
O conto na forma literária desenvolve-se prolixamente em volumosas novelas,
em que o estilo consiste em cada período diluir-se em impertinentes acessórios.
São tipos do género os Infortúnios Trágicos da Constante Florinda de Gaspar
Pires Rebelo, 1665. Compete com este insulso moralista, o padre Mateus
Ribeiro, com o Alívio de Tristes, Consolação de Queixosos (1688) e a Roda da
Fortuna e Vida de Alexandre e Jacinta (1695). Bem mereciam o epíteto de carros
de palha, que Carlyle aplicava a um erudito inglês. Os Jesuístas levaram o
género até à insânia[32]. Eram os pródromos do romance moderno, que se
iniciara na literatura inglesa.
Os livros populares portugueses de folha volante, que se vendiam pelas feiras, na
arqueta do belfurinheiro, ou no barbante do cego, foram também condenados
pelos meticulosos da censura inquisitorial: «Os vendedores de Autos e
Cartilhas, não vendam, nem comprem para vender, outros livros sem primeiro
os mostrarem ao Revedor: porque algumas pessoas escondidamente têm alguns
livros, que eles compram e vendem, sem saber o que há nos tais livros, e se
seguem disso inconvenientes: e há informação, que nas tais tendas, se acham
livros suspectos e prejudiciais. E os solicitadores do Santo Ofício visitarão
algumas vezes os ditos lugares e farão saber ao Revedor, os livros que ali se
vendem. O mesmo se fará dos livros que se vendem nas feiras.» (Índex de 1581.
Mais implacável foi o índex de 1621).

V) Do século XVIII ao Romantismo — Os


livros populares — O conto com intuito
pedagógico condenado por Garrett

Apesar da profunda decadência da Literatura portuguesa no século xviii pela


ininteligência dos escritores quanto ao elemento tradicional, os contos de
Trancoso, mau grado o desdém com que os Jesuítas o citam na polémica com
Verney, continuaram a ser lidos com sofreguidão, e alguns poetas como Filinto
e Nicolau Tolentino, aludem ao grande interesse que ainda tinham os contos
populares. Na comédia de cordel Incisão da Peraltice acham-se citados os contos
de Trancoso, e mesmo no Folheto de Ambas Lisboas, n.º 25: «O dote dela consta
de memórias, sem serem dos dedos, mas sim de Contos de Trancoso...» E Filinto
Elísio, nas notas da tradução das Fábulas de La Fontaine, repete: «Conta de in
illo tempore: Como os Contos de Trancoso, do tempo de nossos avoengos.»[33]
Este poeta ultraclãssico, pela sua origem plebeia conservava certas
reminiscências tradicionais; assim alude a vários contos: «João Ratão e a
Princesa Doninha... Sem contar outras personagens, que não é muito que me
esqueçam (por mais doutrinais que sejam) contos que ouvi contar há mais de
setenta e dois anos!»[34] «Contem-me Pele de Asno... conto em França tão
conhecido como entre nós o das Três Cidras do Amor.»[35] Filinto, nas notas
dispersas pelas suas obras, à maneira de uns Tischreden, ou cavacos à mesa, faz
alusões importantes à novelística e literatura popular: «Com o título da Gata
Borralheira contava minha mãe a história da Cendrillon. E nunca minha mãe
soube francês.»[36] A mãe de Filinto tinha sido uma tricana de Aveiro; pelas
passagens supracitadas, vê-se que Trancoso era ainda bastante lido pelos nossos
avoengos, como o confirmam as edições das Histórias Proveitosas de 1710, 1722,
1734 e 1764. O gosto popular foi desvairado por novas leituras, mas a
predileção do conto oral conservou-se mesmo nas classes aristocráticas em
Portugal; diz Nicolau Tolentino, aludindo aos contos de fadas que contava à
marquesa de Alegrete, na sua infância:
Quando eu a teu pés contava,
Mentiroso historiador,
Ora a do Caixão de Vidro,
Ora a das Cidras do Amor.

Quando os mesmos tenros anos
A tua filha contar,
Todos os dias virei
Meu ofício exercitar[37].
Em outras passagens dos seus versos alude a esta predileção familiar:
Contando histórias de Fadas
Em horas que o pai não vem,
E co’as pernas encruzadas
Sentado ao pé do meu bem
Lhe dobo as alvas meadas.
(Ib., p. 262.)

São divertimento inútil,
São as histórias de fadas.
(Ib., p. 122.)
O conto não foi desprezado pela literatura ascética do século XVIII, que se
apropriou de elementos de erudição; o padre Manuel Consciência, na
Academia Universal de Vária Erudição, traz o conto dos ladrões que foram ao
Tesouro de Rampsínito, narrado por Heródoto. Encontrámo-lo na tradição
oral açoriana, em que um rei manda escutar pelas portas para descobrir onde se
chora e assim descobrir-se a família do morto. Ouviu-se chorar em uma casa,
bateram à porta, e nisto um dos filhos, que estava desmanchando um porco,
deu com um machado num pé, e assim se encobriu o motivo verdadeiro por
que se chorava. Na Hora de Recreio do padre João Batista de Castro vêm alguns
contos tradicionais, que já aparecem em coleções anteriores, como o da Quarta
de Leite (p. 29), a Velha Que Dá o Que Tem à Filha (p. 81), O Cego e o Moço
Comendo Uvas (p. 125), o Estudante Que Furta a Roupa do Transeunte (p. 130), e
o conto decamerónico do Marido Que Confessa a Mulher (p. 16). O conto do
estudante que se substitui ao burro que vai à feira, e do qual se originou o
adágio Quem não te conhecer que te compre, já contado por Bluteau, acha-se outra
vez narrado na Hora de Recreio (vol. II, p. 13).
Os contos tornaram-se raros e foram deixando de ser lidos, ao passo que entre
o povo se vulgarizaram as folhas volantes traduzidas do espanhol desde o
governo dos Filipes, tais como a Donzela Teodora, a Formosa Magalona, o
Roberto do Diabo, a História de Carlos Magno, os Sete Infantes de Lara, que
formam a base da literatura popular portuguesa; outros escritores, como
Baltasar Dias, descobriram também o segredo de se apoderar da imaginação do
povo, e é deste poeta cego a elaboração literária da grande lenda de Crescência,
conhecida e ainda vigente em Portugal sob o título de História da Imperatriz
Porcina. As aventuras de Bertoldo, Bertoldinho e Cacasseno foram traduzidas do
italiano; resumiu-se do francês a História de João de Calais (renovação do conto
do Morto Agradecido); e o velho conto oriental dos três irmãos corcovados
assimilado sob o título de História dos Três Corcovados de Setúbal
A História dos Três Corcovados de Setúbal é uma imitação do conto popular
francês Histoire des trois bossus de Besançon, já variante da que vem nos Contos
Tártaros de Gueullette, e derivada das Notte piaccevoli de Straparola. (Nott. V,
fol. 3.) A introdução das fábulas orientais na Europa, de que há vestígios
sensíveis nas Gesta Romanorum, na Disciplina clericalis e no Conde de Lucanor,
caracteriza-se neste conto dos Três Corcovados, pelo episódio dos afogados,
frequente nas criações imaginativas do Oriente[38]. Talvez que a sua primeira
forma seja a dos Trois Bossus de Durand, trovista do século XIII, inserta na
coleção dos Fabliaux de Barbazan[39].
É possível que o conto andasse no Decâmeron popular não escrito dos nossos
serões, introduzido pelo uso dos Exemplos da Idade Média; sua vulgarização
entre nós é proveniente da especulação, e pode dizer-se que as variantes são
devidas à ignorância dos tradutores, e à atualidade que procuram dar-lhe
acomodando-o a novos lugares.
A vulgarização crescente destes opúsculos explica-nos porque é que os Contos
de Trancoso deixaram de ser lidos pelo povo; a classe média foi também desviada
do seu gosto pela difusão de deploráveis traduções dos mais deslavados
romances franceses. A lenda de Roberto do Diabo, tradução abreviada da Vie du
terrible Robert le Diable, le quel après fut nommé l’Homme Dieu, vulgarizou-se no
— mercenário pregão do cego andante, — aceitando-o o povo com o interesse
pelo prestígio diabólico e da conversão piedosa. Acha-se proibida no Índice
Expurgatório de 1581.
Quem não conhece esse aventuroso João de Calais, que faz as delícias dos
sapateiros remendões, e que tem um favor público por todas as aldeias, que
ninguém lhe disputa, e à sombra do qual se vai arreando de ano para ano com
edições sucessivas? É um romance moderníssimo, do século XVIII, escrito por
Madame Gomez (Madeleine-Angélique Poisson). Quando se fará uma edição
dos raros folhetos da nossa Literatura de cordel, com a dos Volksbücher de
Gorres?
Filinto Elísio, apesar de todo o seu classicismo horaciano, pela sua origem
plebeia nunca esqueceu a poesia das tradições com que fora embalado. Na
Carta Defeitos da Filosofia (Obr., I, 148) descreve com simpatia as seroadas
portuguesas ante o espírito crítico do começo do século XIX:
Enquanto nossos pais, nossos avós,
Encostados na fé do padre cura,
Criam Fadas, Duendes, criam bruxas.
Que felizes que foram! Que sossego
Lhe adormentava então o entendimento!...

Junto do lar ardente, em cujo cerco,
Baixas as testas, corpos bem cerrados,
Toda a família nos serões do inverno
Embelezada nestas ventoinhas
Inquilinas do mundo imaginário,
Não sente o como ronca, esbravejando
O vento pelo trémulo arvoredo,
Nem como a telha-vã remexe e grita
Por saltante pedrisco fustigada.
Apenas, quando vai o Conto em meio,
Arreda do leitor um tanto os olhos
Para dar um meneio à frigideira
Ou virar o bom lombo que repinga.
Um Cavaleiro que a viseira cala,
Embraça o seu broquel de amante mote,
E vai correr o mundo confiado
Na aguda lança e na cortante espada;
Que acomete arriscadas aventuras
Por livrar encantadas formosuras
De mimosas Princesas; de esquecidas
Masmorras retirar ao claro dia,

Um Montesinhos, guapo Cavaleiro,
(Saudades da mísera Belerma)
Que para o conquistar, em campo afronta
Gigantes, Malandrins, Dragos, Duendes,
E de toda a refrega sai com brio.
Descrever (como digo) esas proezas
Era o talento de uma sábia pluma
Estimada na Corte e na cidade;
Farta leitura de Vilões e nobres...
De Carlos Magno o folheado livro,
C’os Doze Pares, de esforçado pulso...
Em duros corações que ternos golpes
Não deram sempre as lágrimas pudicas,
Os saxífragos rogos da formosa
Lastimada Floripes? Qual fé nunca
A dama bem-nascida, bem-criada,
Que lendo na Novela os altos feitos,
Galhardias de justas e torneios,
Às belas delicadas e vencidas
Não bebesse vanglória e bons desejos
De correr semelhantes aventuras,
A desconto de um susto, em negro bosque
De um assalto de amor em leito ou cerco?

Que cousa há i nas matas espinhosas
Dessa magra e subtil Filosofia
Que emparelhar se atreva c’um bom Conto
De Fadas, c’o condão de uma varinha?
Numa volta de mão c’um leve toque
Dessa bendita Vara milagrosa
Vos faziam sair lá das entranhas
Da terra obediente altos Palácios
De alabastro com seus capitéis de ouro
Engastados de fina pedraria
Sumptuosos jardins, fontes, passeios
Que recheiam, que servem, que aformosam
Mil pajens cortesãos, mil ninfas belas.
De uma casca de noz cair a rodo
As perlas em chuveiro, as esmeraldas,
São prodígios que pasmam, que divertem...
Nem conto os ânimos, músicas e amores
Surdindo da caverna mais escura
Que as Princesas amantes, pensativas
Na solidão maviosa deleitavam.
………………………………………………………….
Oh ricas Fadas, rico encantamento,
Enleio dos sentidos agradável,
Com que saudade crua, e com que pena
Vos choro, de entre nós afugentadas
Por esses maus Filósofos esquivos
De todo o bom saber, toda a delícia
De entretida lição, de útil estudo!

Quando Filinto escrevia esta carta a José Bonifácio de Andrada, que em missão
científica viajava pela Alemanha, os exímios filólogos Jacob e Guilherme
Grimm encetavam o estudo científico da Novelística, criando uma nova
compreensão do passado.
Na sátira Esfuziote, consolando o seu amigo Sebastião Barroco de uma deceção
de amor, exclamava:
— Sempre os valentes,
Bem o sabes, valeram mais co’as fêmeas,
Que os sábios cidadãos, que os virtuosos,
Esta paixão privou com elas sempre;
Esta fez, que as Princesas das Novelas
Prezassem mais que tudo o ser amadas
Dos andantes basbaques Cavaleiros,
Só por que eram brigões, e prometiam
Lançar-lhes, por fineza, aos pés rendidas
Mil testas de Gigantes encantados;
E porque nos torneios e nas justas
Para a sua Senhora ter a palma
De mais formosa, entre as Senhoras todas,
Faziam confessá-lo assim aos outros,
Ou a botes de lança em lide honrada
Lhes faziam morder raivando a terra.
Assim durou té’gora incontestada
Esta razão de avaliar amantes...
(Obra, t. V, p. 240.)
No período do Romantismo, em que as literaturas modernas se aproximaram
das suas fontes tradicionais, também Garrett e Herculano sentiram a
necessidade de imprimir uma feição nacional à literatura portuguesa;
Herculano romantizou o conto da Dama Pé de Cabra nas suas Lendas e
Narrativas, e Garrett metrificou a lenda de Miragaia, a Gaia do Nobiliário.
Seguiu-lhes Castilho o exemplo na lenda de Fuas Roupinho.
Na lenda de Gaia há um episódio que se encontra nas lendas germânicas. Lê-
se no Livro Velho das Linhagens: «fretou (Abencadão) seis naves e meteu-se em
elas, e veio aportar a Sanhoanç da Furada; e pois que a nave entrou pela foz
cobriu-a de panos em tal guisa que cuidassem que eram ramos, ca entonce Douro era
coberto de uma parte e da outra de árvores.» Em uma lenda franca, extraída
por Jacob Grimm de Aimonius, acha-se este mesmo estratagema de guerra.
«Quando Childebert entrou com um poderoso exército nos estados de
Gontran e Fredegond, a rainha exortou os Francos a defenderem-se com
arrojo... Fredegond imaginou um estratagema. À meia-noite, no meio das
trevas, o exército guiado por Landerick, tutor do jovem Clotário, pôs-se em
marcha e foi para uma floresta; Landerick pegou de um machado e cortou para
si um ramo de árvore, depois pendurou umas campainhas no pescoço do cavalo
que montava. Deu ordem a todos os seus cavaleiros para que fizessem o
mesmo; cada um deles tomou um ramo de árvore na mão, prendeu campainhas ao
pescoço do seu cavalo, e todos, logo que o dia começou a alvorecer, puseram-se
a andar para o campo inimigo!... Uma das vedetas do exército contrário os
descobriu através da luz duvidosa do crepúsculo; gritou logo para o
companheiro: Que floresta é esta, que aqui vejo? Em sítio onde ainda ontem à
noite não havia o menor graveto? — Tu ainda estás emborrachado e de nada te
lembras (disse o outro soldado) é gente nossa, que acharam na floresta vizinha
forragens para os seus cavalos. Não ouves o som das campainhas penduradas ao
pescoço dos corcéis que pastam?... Enquanto as vedetas isto diziam, os Francos
deixaram cair os ramos e a floresta ficou despojada de folhas, mas eriçada de
lanças refulgentes que se levantaram como troncos. A confusão entrou no
exército do inimigo; o terror apoderou-se deles; deixaram o sonho para
entrarem numa batalha sangrenta e os que não puderam fugir foram ceifados
pelo ferro; os comandantes só deveram a salvação à celeridade dos seus cavalos.»
(Jacob Grimm, Lendas Alemãs, t. II, 107, trad. L. Héretier (de l’Ain) 1838.)
A lenda de D. Fuas Roupinho salvo pela intercessão da Virgem da Nazaré, do
abismo em que o seu cavalo o precipitava, aparece na tradição alemã atribuída a
Hermann de Treffurt, que os cronistas Becherer, Toppius e Melissante,
pintam como um teutão devasso, brutal, um senhor feudal despótico. No seu
extrato, escreve Jacob Grimm: «Isto não obstava que fosse sempre à missa e de
rezar com devoção, o ofício da Santa Virgem. De uma vez partira a cavalo para
uma aventura de amor, depois de ter convenientemente segundo o seu
costume, rezado mui religiosamente o oficio da Virgem; mas como cavalgava
de noite sozinho nas trevas sobre o Hollestein, enganou-se no caminho e
chegou ao píncaro mais elevado da montanha; ali o cavalo estacou de repente;
mas o cavaleiro julgando que seria medo de alguma alimária, esporou-lhe o
flanco; o cavalo arrojou-se com o cavaleiro do alto do rochedo e morreu da
queda; a sela desfez-se; a espada do cavaleiro fez-se em estilhaços; mas na sua
queda o cavaleiro invocara a Virgem--Mãe, e pareceu-lhe que era segurado
por uma mulher que o colocou em terra levemente e sem mal.» (Lendas Alemãs,
t. II, p. 412.) Castilho tratou esta lenda deliciosamente nas Escavações Poéticas.
No seu tratado Da Educação, escrito em 1830 por Garrett em cartas dirigidas à
marquesa de Ponta Delgada, que instruía a princesa D. Maria da Glória (D.
Maria II) mostra-se contrário a que se contem ou leiam fábulas e contos às
crianças: «Em muitas partes é costume, especialmente em França, o ser um
livro de fábulas ou apólogos o primeiro que se dá às crianças; Maitre Corbeau é
a primeira personagem histórica com quem fazem conhecimento os meninos
franceses. — Mas ainda que o apresentador seja tão elegante e donairoso como
o engraçado João La Fontaine, ainda assim Maitre Corbeau sur un arbre perché
não é sujeito, que se escolha para a primeira amizade de uma criança.» II
n’appartient qu’ aux hommes de s’instruire dans les fables, diz Rousseau com muita
razão. Confirma diariamente a experiência o que ele assevera, que nunca se vê
tirarem as crianças uma ilação moral do seu apólogo; gostam porque é conto e
faz rir, e acham nos versos de Fedro ou La Fontaine repetidos pelo Lobo e
pelo Cordeiro, a mesma graça que no «Tó, Carocho! quem passa? el-rei, que
vai à caça,» do seu papagaio. Nunca pude descobrir o porquê razoável deste
costume, e vejo-lhe mil inconvenientes. Será que aprendam melhor os meninos
a moral pregada com as visagens do macaco desembargador ou nos diálogos da
formiga e da cigarra e semelhantes églogas de alimárias? Não o creio; não acho
que a ficção instrua melhor que a verdade.
«Inventaram-se para as pessoas grandes, para os grandes que não queriam
ouvir, que se ofendiam com a verdade nua e crua, e só toleravam com alguma
indulgência quando assim condimentada e disfarçada em parábolas. — E por
este modo e como os escravos romanos ou bobos senhoriais é que nós havemos
de presentar às portas da vida a receber o nosso pupilo para o guiar no caminho
da experiência com subterfúgios de fábulas e contos da Carochinha? —
Demais, fábula quer dizer fingimento; e fingimento é mentira; e mentira nem
zombando se deve ensinar às crianças; é mau divertimento; não se lhes deve
deixar folgar com ele... No tempo que os bichos falavam: começam os apólogos da
tradição oral, que se contam aos meninos; bem sabemos que ainda que creiam
nisso, não podem crer muito tempo; mas para que é ‘essa ideia falsa, por pouco
que dure? Sempre é mau, — é péssimo; faz-lhes perder o horror à falsidade,
ensina-lhes a contar contos e não a olhar a verdade como uma cousa santa, com a
qual não é lícito, não é possível brincar, que nem se deve nem se pode saber
dissimular ou alterar no mínimo ponto.» (Carta IV.) Neste juízo estava sendo
influenciado pelo negativismo crítico do fim do século XVIII, de que se
queixava Filinto na saudosa evocação das seroadas portuguesas; e os Grimm já
tinham fundado a escola que estudava as ficções poéticas tradicionais como
revelações do estado da consciência humana primitiva isentas de toda a
mentira, e constituindo um dos mais ricos elementos da Demopsicologia. O
que absolve Garrett é o abuso que se fez compondo fábulas e imaginando
contos de mero artifício pedagógico, como os de M.me de Beaumont, e
congéneres; desnaturando o sentimento da tradição, que tanto se manifesta nas
épocas de decadência. A simpatia natural das crianças pelas fábulas corresponde
ao atavismo do estado psicológico de um fetichismo espontâneo primitivo que
orientou a imaginação humana tão lucidamente estudado por Comte[40].
Mais tarde Mendes Leal fez uma espécie de mágica fiabesca das Três Cidras do
Amor, com toda a ininteligência do ultrarromântico. Era preciso fazer a
transição da emoção artística para a crítica consciente; esta fase do
Romantismo europeu só veio a operar-se muito tarde em Portugal, quando a
história literária recebeu um espírito filosófico, e o corpo das tradições poéticas
foi explorado com intuito científico. No último quartel do século XIX o conto
popular continuou a receber forma literária;[41] prevaleceu, porém, a direção
científica, havendo já numerosas coleções em que se vão arquivando as
tradições portuguesas, sintoma auspicioso de uma revivescência da
nacionalidade[42].
Depois de terem iniciado a colecionação dos contos populares da Alemanha em
1812 e 1813, os celebrados filólogos Jacob e Guilherme Grimm, determinando
em 1822 as formas do seu estudo em quanto às origens míticas e universalidade
desses temas novelescos e transmissão entre épocas e nações diversas pelo
influxo das obras literárias, esboçaram o processo crítico da novelística, criando
sobre este elemento tradicional uma nova ciência, a Demopsicologia. A ficção
deixou de ser considerada como um capricho da fantasia, mas a conceção
implícita na expressão subjetiva, que nos pode revelar estados primitivos da
inteligência. Deste automatismo tradicional através dos séculos, e sob os
inevitáveis sincretismos, tal como acontece com a linguagem, nunca a ficção
deixa na sua espontaneidade transparecer uma mentira propositada. Tal foi a
descoberta fundamental de Jacob Grimm, afirmando a verdade da poesia do
povo; pode essa tradição ser deturpada, e mesmo enganar-se, errar, mas
subsiste impertérrita a verdade do que a transmite. Que diferença entre um
mito e uma conceção científica! E contudo o mito é verdadeiro, como
documento revelador de um estado mental de subjetividade e credulidade. Esta
alta compreensão valorizou esses produtos da imaginação, que se abandonavam
às reminiscências da velhice e à fascinação das crianças, com o título de Contos
da Carochinha e Contos de Velhas; formaram-se por todas as nações sociedades
de folclore, para coligirem esses materiais da sabedoria popular, a que
chamaríamos Demótica, para completar a área das investigações. Jacob Grimm
apontou também a necessidade do exame das obras literárias das diversas
nações nas épocas várias da sua cultura. No pequeno quadro que aqui
intitulamos Literatura dos Contos Populares em Portugal, procuramos satisfazer a
indicação sugestiva de Grimm. Quando o diplomata conde de Lavradio foi à
Alemanha induzido pela duquesa do Kent para tratar do casamento de D.
Maria II com o jovem Fernando de Coburgo, filho segundo do duque
reinante, escreveu no seu Diário-Memorial.
«Novembro de 1835. À noite reuniram-se em casa do duque (Saxe-Coburgo)
diversos homens sábios do país, entre outros Mr. Jacob, que goza de grande
reputação na Alemanha; pareceu-me homem de conhecimentos muito variados, bom
saber e muita jovialidade, não obstante a sua avançada idade.» Era o grande
filólogo revelador do génio germânico; contava então cinquenta anos, e é
curiosa esta nova do seu saber aliado à muita jovialidade. (Memor., fl. 209.)
Ao contrário do que pensara Garrett, a generalização dos estudos do folclore
atuou na transformação da pedagogia infantil, entre os educadores ingleses,
alemães, belgas, suíços e escandinavos, servindo-se de todos os meios naturais e
morais para acordar o interesse e a inteligência da criança; formaram os
formosos livros de contos, as coleções de cantares, principalmente de baladas
narrativas, os brinquedos instrutivos, os álbuns de estampas coloridas com
intuito moral e artístico, e músicas alegres de valsas como as de Rudorff, e até
dar às visualidades da lanterna mágica a forma fascinadora do conto de fadas
em ópera, como fez com tanta felicidade o sábio compositor Humperding. E
nesta arena de esforços também Portugal está bem representado por delicados
espíritos femininos como Caiel (D. Alice Pestana) e D. Ana de Castro Osório,
dignas da maior benemerência.
As vias que se podem determinar para a introdução em Portugal dos contos
mais gerais da tradição universal são literárias e orais. As literárias, são
provençais, bretãs e francesas até ao século XV; eruditas e as provenientes da
corrente dos novelistas italianos no século XVI. A via popular ou oral é mais
difícil de determinar, mas uma das principais foi a comunicação com a
sociedade árabe, influência que fez que em Espanha se traduzisse o Calila e
Dimna; as Cruzadas e as relações com as cortes bizantinas; a corrente literária
vulgarizava-se entre o povo, por via dos pregadores. Muitos contos conservam
vestígios míticos inconscientes. A persistência da tradição entre o povo tem
também o seu porquê histórico; os pagi, na organização social da Idade Média,
eram as povoações rurais, com a vida industrial própria, com a sua crença e
igreja local, alheios a todo o movimento intelectual dos grandes centros.
Foi nos pagi, que os restos do politeísmo romano, do culto odínico germânico,
do druidismo céltico, e dos cultos mágicos trazidos pelos Romanos e Árabes
dos Egípcios e Caldeus, se encontraram com o cristianismo ainda em estado
sentimental. Mais tarde a Igreja, ao realizar a sua unidade, condenou essas
tradições populares, chamando-lhes paganismo. Nos contos de fadas o caráter
pagão é tanto mais evidente quanto maior é o sincretismo; toda esta
complexidade de origens recebe interesse histórico, segundo as épocas que
atravessa; nesses contos alude-se às grandes fomes; à antropofagia dos ogres, à
brutalidade feudal na situação de Grisélidis, ou ao símbolo jurídico dos
esponsais pelo sapatinho, como na Cendrillon. O ponto de vista mítico é o mais
importante e o verdadeiramente científico, hoje que Benfey e Max Müller
demonstraram a universalidade das tradições. O conto é um resto dos mitos de
um politeísmo decaído; Gubernatis determinou nesta decadência duas formas,
uma nacional, que produz as formas da epopeia, e outra doméstica ou familiar,
que se perpetua no conto. Pode-se dizer que estão achadas as leis da
imaginação humana, e que a pretendida originalidade subjetiva se dissolveu do
mesmo modo que perante a ciência se dissolveu o dogma de uma criação do
nada. A cadeia tradicional está reconstituída desde a sua fonte indiana até à
Europa, e pode-se dizer, que até onde os mitos védicos penetraram, já na forma
épica e purânica, já nas especulações búdicas propagadas entre as raças
amarelas, já no naturalismo das migrações indo-europeias, em toda a parte se
foram transformando em contos populares.
Sendo o conto uma fase de decadência dos mitos áricos, confundidos com
restos fetíchicos nos Bestiários e Lapidários, existe um outro subsolo da
imaginação humana, mais obliterado, mais inconsciente, é o das superstições,
restos provenientes de religiões ainda mais antigas que o politeísmo árico: tais
são os cultos mágicos turano-cuchitas, conservados pelos Gregos, e trazidos
pelos Romanos e Árabes para a Europa da tradição do Egito e da Caldeia. Não
é menos importante esta forma da vida da tradição, que se vai tornando pela
leitura dos hieroglíficos e dos cuneiformes, objeto de uma ciência. A Superstição
e o Conto são duas decadências de dois grandes e vastos sistemas religiosos.
Antero de Quental teve a intuição daquele estado da Filomitia, descrevendo-o
admiravelmente em uma das suas cartas: «será isto só poesia? A poesia é
também verdadeira: é a evidência da alma. Se o pensamento indaga, o coração
adivinha. —. É lá que a mesma lei da existência vive oculta, e dali solta os seus
oráculos sempre certos. Das ruínas das sociedades antigas quanto resta, quanto
aceita o futuro, como parcela de oiro, depurado de tantas fezes seculares?...
Serão os sistemas, as abstrações, as certezas? Não; as ilusões apenas — a poesia.
A poesia! O sonho da humanidade no berço infantil da sua primeira inocência!
A fada que lhe embalou os sonhos de criança! A sibila reveladora das palavras
misteriosas, cujas glosas foram as primeiras crenças, as primeiras religiões, as
primeiras sociedades! Do regaço dela nos caiu sobre as mães o mundo antigo,
ardente, belo, luminoso, pelo contacto daquele seio divino. Sobre esse candente
alicerce firmámos as frias construções do nosso mundo moderno. O chão sobre
que assenta a certeza de hoje, formou-se pelas aluviões sucessivas da intuição
antiga. O que é ciência foi já poesia; o sábio foi já cantor; o legislador, poeta; e a
evidência uma adivinhação, um admirável palpite, cujas profundas conclusões
são ainda o espanto, e porventura o desespero das mais rigorosas filosofias. E,
se nadamos hoje em plena luz da razão, foi entretanto a poesia, foi essa doce
mão, que nos guiou por entre o pálido crepúsculo dos velhos sonhos. Velhos?
não: sonhos eternos! — Sonharemos sempre! Que o sonho consola, dá fé e
virtude. Luminoso e belo deixará de ser também verdadeiro só por não ser
verdadeiramente lógico? Há muitas lógicas. O sentimento tem a sua; diversa, só,
mas nem por isso menos segura. É assim que a inteligência de hoje tem
confirmado todas as intuições da antiga poesia. A religião, o direito, a
liberdade, o amor, tudo isso nos legou o velho mundo poético; não o
descobrimos nós. Aquilatámos novamente o valor desse oiro, dessas pedras
finas, pelos novos processos; e o valor não se acha minguado; cresceu talvez. A
nobre confiança que a Antiguidade depositara no sentimento, não a iludiu, não
lhe mentiu. O que o coração segredou ao homem no doce crepúsculo das eras
instintivas, pode hoje dizer-se, repetir-se bem alto, a grande luz desse céu de
clareza e de razão, é a verdade.» (Cartas, p. 29.)
Depois desta página tão translúcida em que Antero de Quental nos dá
expressão sintética ao que Aristóteles chamou Filomitia, faz o contraste
deprimente e esterilizante da Filosofia «a monotonia do espírito chamada
lógica — por onde mede o ritmo impassível de suas palavras fatídicas» (p. 28) e
«a Ciência, que está fora da Natureza, é ela que se engana» (p. 31)[43] O
mundo moderno só alcançou o conhecimento desse estado da consciência
primitiva da humanidade, quando foram reunidas as complexas ciências na
Filologia; e a Filosofia reconheceu nesses mitos, lendas e contos os gérmenes
imortais, a que a Arte dá as formas plásticas, somáticas das criações literárias.
PARTE II

HISTÓRIAS E EXEMPLOS DE
TEMA TRADICIONAL E FORMA
LITERÁRIA
O REI LEIR

Quando foi morto o rei Balduc o voador, reinou seu filho que houve nome Leir.
E este rei Leir não houve filho, mas houve três filhas mui fermosas e amava-as
muito. E um dia houve suas razões com elas e disse-lhes — Que lhe dissessem
verdade qual delas o amava mais. Disse a maior — Que não havia cousa no
mundo que tanto amasse como ele. E disse a outra — Que o amava tanto como a
si mesma. E disse a terceira que era a menor — Que o amava tanto como deve
de amar filha a padre.
E ele quis-lhe mal por em, e por isto não lhe quis dar parte no reino. E casou a
filha maior com o duque de Cornualha, e casou a outra com rei de Tóstia, e não
curou da menor. Mas ela por sua ventura casou-se melhor que nenhuma das
outras, ca se pagou dela el-rei de França e filhou-a por mulher. E depois seu
padre dela em sua velhice, filharam-lhe seus genros a terra e foi maladante, e
houve a tornar à mercê de el-rei de França e de sua filha a menor a que não quis
dar parte do reino. E eles receberam-no mui bem e deram-lhe todas as cousas
que lhe foram mester e honraram-no mentre foi vivo; e morreu em seu poder. E
depois se combateu el-rei de França com ambos os cunhados de sua mulher e
tolheu-lhes as terras.

(Port. Mon. Historica (Scriptores), Livros de Linhagens, p. 238.)

NOTA: O rei Leir, ou Lear, é um daqueles reis da Pequena Bretanha, na série


entre Hudibras e Bladus, seguindo-se-lhe Brennus, Elidure, Peredure e outros,
que Geoffrey de Monmouth intercalou na sua Historia Britonum já conhecida
em 1139, extratando-a de uma crónica bretã, que hoje se reconheceu ser a de
Nennius; Monmouth floreou fantasticamente esses elementos propriamente
bretãos na sua versão latina à qual juntou também umas Profecias de Merin. Fez
para a história dos Bretões, o que o Pseudoturpin fez para a História de França.
Pode-se considerar Geoffrey de Monmouth como um dos fundadores dos falsos
cronicões que se tornaram típicos em Espanha e Portugal. O conde D. Pedro
extratou da Historia Britonum de Monmouth, as lendas relativas ao rei Artur
(Série da Távola Redonda) ou do Rei Lear, que entrou na corrente dos contos
populares portugueses. Interessa-nos esse extrato do conde D. Pedro, no
preâmbulo do Livro das Linhagens, porque com a Historia Britonum andava o
livro das Profecias de Merlin, já tão vulgarizado, que em 1340, aludindo à vitória
do Salado, já é citado o Leão dormente, do Vale bretão, personificando D. Afonso
IV. Gubernatis (Myth. zoolog. t. I. p. 93) acha nas lendas indianas de Dirghatamas
e Yafti, do Mahabaratha, «um primeiro esboço do Rei Lear» Isto basta para
explicar o fundo popular da tradição, como a tragédia de Shakespeare, escrita na
fase de sua mais patética emotividade, lhe deu plena universalidade.
A DAMA PÉ DE CABRA

Dom Diogo Lopes era mui bom monteiro, e estando um dia em sua armada e
atendendo quando verria o porco ouviu cantar muita alta voz uma mulher em
cima de uma penha: e ele foi pera lá e viu ser mui fermosa e mui bem vestida, e
namorou-se logo dela mui fortemente e perguntou-lhe quem era: e ela lhe disse
que era uma mulher de muito alta linhagem, e ele disse que pois era mulher de
alta linhagem que casaria com ela se ela quisesse, ca ele era senhor daquela terra
toda: e ela lhe disse que o faria se lhe prometesse que nunca se santificasse, e ele
lho outorgou, e ela foi-se logo com ele. E esta dona era mui fermosa, e mui bem
feita em todo seu corpo salvando que um pé forcado como pé de cabra. E
viveram grão tempo e houveram dous filhos, e um houve nome Enheguês
Guerra e a outra foi mulher e houve nome dona.
E quando comiam dessum, Dom Diogo Lopes e sua mulher, assentava ele a par
de si o filho, e ela assentava a par de si a filha da outra parte. E um dia foi ele a
seu monte e matou um porco mui grande e trouxe-o pera casa, e pô-lo ante si u
sia comendo com sua mulher e com seus filhos: e lançaram um osso da mesa e
vieram a pelejar um alão e uma podenga sobre ele em tal maneira que a podenga
travou ao alão em a garganta e matou-o. E Dom Diogo quando isto viu teve-o
por milagre e sinou-se e disse Santa Maria val, quem viu nunca tal cousa! E sua
mulher quando o viu assim sinar lançou mão na filha e no filho, e Dom Diogo
Lopes travou do filho e não lho quis deixar filhar: e ela recudiu com a filha por
uma fresta do paço e foi-se pera as montanhas em guisa que a não viram mais
nem a filha.
Depois a cabo de tempo foi este Dom Diogo Lopes a fazer mal aos Mouros, e
prenderam-no e levaram-no pera Toledo preso. E a seu filho Enheguês Guerra
pesava muito de sua prisão, e veio a falar com os da terra per que maneira o
poderiam haver fora da prisão. E eles disseram que não sabiam maneira por que
o pudessem haver, salvando se fosse às montanhas e achasse sua madre, e que ela
lhe daria como o tirasse. E ele foi a lá só, em cima de seu cavalo, e achou-a em
cima de uma penha: e ela lhe disse: «Enheguês Guerra, vem a mim ca bem sei eu
ao que vens.» E ele foi pera ela e ela lhe disse: «Vens a perguntar como tirarás
teu padre de prisão.»
Então chamou um cavalo que andava solto pelo monte que havia nome Pardalo
e chamou-o per seu nome: e ela meteu um freio ao cavalo que tinha, e disse-lhe
que não fizesse força polo desselar, nem polo desenfrear nem por lhe dar de
comer nem de beber nem de ferrar: e disse-lhe que este cavalo lhe duraria em
toda sua vida, e que nunca entraria em lide que não vencesse dele. E disse-lhe
que cavalgasse com ele e que o poria em Toledo ante a porta u jazia seu padre
logo em esse dia, e que ante a porta u o cavalo o pusesse que ali descesse e que
acharia seu padre estar em um curral e que o filhasse pela mão e fizesse que
queria falar com ele, que o fosse tirando contra a porta u estava o cavalo e que
desque ali fosse que cavalgasse em o cavalo e que pusesse seu padre ante si e que
ante noite seria em sua terra com seu padre: e assim foi.

(Livros de Linhagens, p. 258.)

NOTA: Na Chaine traditionelle, p. 156, Hyacinthe Husson traz uma tradição


análoga das ilhas Celebes. O episódio da ida de Enheguês Guerra libertar o pai
acha-se no Violier des histoires romaines, cap. XIV, p. 37 (ed. Janet). O cavalo-fada
acha-se nas Nuits facetieuses, de Straparola, III. fab. 2. Parece-nos que este
mesmo fundo tradicional subsiste no romance popular da lnfantina. A.
Herculano tratou literariamente esta tradição nas Lendas e Narrativas.
A MORTE SEM MERECIMENTO

Aconteceu grão cajão a D. Fernão Rodrigues, porque uma cuvilheira de sua


mulher Dona Estevainha fazia mal, com um peão, e ia cada dia ao serão a ele a
um pomar desque se deitava sua senhora, e levava cada dia o pelote de sua
senhora vestido: e Dom Fernão Rodrigues não era então i, e dous escudeiros
seus que i ficaram viram-no umas três noites ou quatro, e como entrava o peão a
ela per cima de um sanado do pomar a fazer mal sua fazenda sob uma árvore. E
quando chegou Dom Fernão Rodrigues espediram-se-lhe os escudeiros e
foram-se, e tornaram a ele outro dia e contaram-lhe esta maneira dizendo que
sua mulher fazia tal feito e que a viram assim umas três noites ou quatro e
disseram que se fosse dali e que lho fariam ver. E ele foi-se e tornou i de noute a
furto com eles àquele lugar u eles soíam a estar: e a cabo de pouco viram vir a
cuvilheira pera aquele lugar mesmo e trazia vestido o pelote da sua senhora bem
como soía; e Dom Fernão Rodrigues foi pera lá quanto pôde e travou no peão, e
enquanto o matava fugiu ela pera casa e colheu-se sob o leito u sua senhora jazia
dormindo com seu filho Dom Pero Fernandes nos braços. E desque Fernão
Rodrigues matou o peão endereçou pera o leito u jazia sua mulher dormindo
com seu filho e chantou o cutelo em ela e matou-a, e desque a matou pediu
lume, e quando a achou jazer em camisa e seu filho a par de si maravilhou-se e
catou toda a casa e achou a aleivosa da cuvilheira com o pelote vestido de sua
senhora sob o leito, e perguntou-lhe porque fizera talfeito, e ela lhe disse que
fizera como má e ele mandou-a matar e queimar por aleivosa: e ficou com grão
pesar deste cajão que lhe acontecera e bem quisera sua morte.

(Livros de Linhagens, p. 266, ed. cit.)


NOTA: Contaram-nos que este tema era objeto de um romance metrificado,
que nunca encontrámos na tradição popular. Sobre o mesmo assunto existe uma
tragédia de Lope de Vega.
A LINHAGEM DOS MARINHOS

Foi um cavaleiro bom que houve nome Dom Froião, e era caçador e monteiro.
A andando um dia em seu cavalo per riba do mar a seu monte achou uma mulher
marinha jazer dormindo na ribeira. E iam com ele três escudeiros seus, e ela
quando os sentiu quis-se acolher ao mar, e eles foram tanto em pós ela até que a
filharam ante que se acolhesse ao mar; e depois que a filhou àqueles que a
tomaram fê-la pôr em uma besta e levou-a pera sua casa. E ela era mui fermosa,
e ele fê-la batizar, que lhe não caía tanto nome nenhum como Marinha porque
saíra do mar, e assim lhe pôs nome e chamaram-lhe Dona Marinha: e houve
dela seus filhos, dos quais houve um que houve nome João Froiás Marinho. E
esta Dona Marinha não falava nemigalha. Dom Froião amava-a muito e nunca
lhe tantas cousas pôde fazer que a pudesse fazer falar. E um dia mandou fazer
mui grã fogueira em seu paço, e ela vinha de fora e trazia aquele seu filho
consigo que amava tanto como seu coração, e Dom Froião foi filhar aquele filho
seu e dela e fez que o queria enviar ao fogo; e ela com raiva do filho esforçou de
bradar e com o brado deitou pela boca uma peça de carne, e dali em diante falou.
E Dom Froião recebeu-a por mulher e casou com ela.

(Livros de Linhagens, p. 382.)

NOTA: Pertence ao ciclo das lendas heráldicas; o tipo da mulher muda ainda
persiste nas tradições populares. Vide a Muda Mudela, vol. 1.
EXEMPLO DO FILÓSOFO

E destes tais (sc. um filósofo) diz um exemplo e põe semelhança de uma árvore
que estava reigada em uma pouca terra em meio de uma grande água, e era bem
basta de rama e bem carregada de pomas. E em cima dela estava um homem
deleitando-se muito em tomar ora de umas ora doutras. E em no pé da árvore
roíam dous vermes, um branco e outro preto e tinham-lhe roída a raiz pera
quando daria com ela em terra. E a uma parte estava um leão bravo com a
garganta aberta, tendo mentes quando ele cairia, pera o arrebatar e comê-lo. E a
outra parte estava um alicórnio, mui espantoso, aguardando quando cairia a
árvore, polo debrotir e lastimar. E o mesquinho do homem tanto se deleitava em
as pomas que não parava mentes que nenhumas destas cousas nem curava delo.
Esta árvore significa este mundo em que se o homem deleita, tanto que lhe
esquece o feito de sua alma e não se lembra da hora da morte. E a terra significa
a vida do homem que é breve e pouca, e que não haverá em que se esconda. A
água significa o medo e o grande espanto que o homem haverá em a hora da
morte. E os vermes, um branco e outro preto, significa o dia e a noite que rói em
na vida do homem e lhe tolhem cada dia uma jornada, e o leão significa o
inferno, e o alicórnio significa o purgatório que está prestes com fogo e com frio
e com graves tormentos pera os homens pera sempre.

(Ms. de Alcobaça, n.º 266; fl. 145, v. (Na Bib. Pública.) Vários extratos na Romania,
XI, foram publicados depois sob o título Anciens textes portugais.)

NOTA: No Voilier des histoires romaines (Gesta Romanorum, cap. 137), tem o
sentido alegórico. Vem como apólogo na História de Barlãao e Josafat a qual
também foi traduzida em português no século XIV e se acha publicada pela
Academia Real das Ciências sobre a transcrição paleográfica de Aires de Sá. A
extensão de este apólogo na Idade Média foi vastíssima; Jubinal publicou uma
redação do século XIII no Nouveau recueil de fabliaux, t. II, p. 113; e em inglês há
uma redação do século XII de Odo de Ceriton; acha-se na Legenda Áurea, de
Voragine, e no Speculum Historiale, de Vicent de Beauvais, e na Vies des Pères.
Mone, publicando um texto latino, «aproxima este apólogo vindo da Ásia com a
tradição escandinava da árvore sagrada, o carvalho Yggdrasil, cujo cimo toca no
céu e cuja raiz é continuamente roída por Nidhogger, a serpente infernal.»
(Violier, p. 389, nota.) Esta mesma tradição acha-se nos preliminares da tradução
pélvi de Calila et Dimna, do começo do século VI, nas traduções árabe, hebraica
e grega, e no Directorium humanae vitae.
EXEMPLO DOS TRÊS AMIGOS

E disto põe a Escritura um exemplo u conta de um homem que tinha três


amigos, um amava mais que si, e outro tanto como si, e o outro menos que si. E
este homem foi chamado a juízo perante el-rei. E ele temendo-se de morte
chegou ao primeiro amigo que amava mais que si e disse-lhe que se fosse com
ele ante el-rei. E ele disse que não ousava de ir ante el-rei, mas pois, se ele temia
de morte, que lhe barataria cinco varas de pano que levasse ante os olhos. E des i
chegou ao segundo amigo que amava tanto como si e disse-lhe que lhe acorresse
e que lhe fosse bom, que não havia em ele senão morte. E ele disse-lhe que pois i
al não havia, que iria com ele até porta. E des i tornou-se ao terceiro de que
havia vergonça porque o amava tão pouco e disse-lhe que acorresse, que não
havia em ele vida. E ele esforçou-o e disse-lhe que não houvesse medo: que ele
iria com ele ante el-rei e rogaria por ele que houvesse dele mercê. E por isso diz
o sabedor: «O bom amigo não falece à coita.»
E este homem significa cada um daqueles que vivem em este mundo. E estes
três amigos, um deles é a riqueza que o homem ama mais que si, aventurando a
alma e o corpo a grandes perigos polas ajuntar, e quando vem a hora da morte,
leixa-as com grande dolor, e vai-se delas desejoso que não leva delas senão um
pouco de pano em que o envolvem. E por isto diz o sabedor: «Ó mundo, quem
te ama, não te conhece.» O segundo amigo é a mulher e os filhos que o homem
ama tanto como si, e quando vem a hora da morte doem-se dele, mas pola falha
que lhe fará e por a pena que ele haverá por quanto acá trabalhou polos manter,
des i vão com ele até cova, e não curam dele mais. E por isso diz Job: «Os vermes
são ali os seus irmãos.» E o terceiro amigo é misericórdia que o homem ama mui
pouco enquanto vive, em pero à hora da morte aparece com ele aquele bem que
faz ante Deus polo esforçar e polo tirar do inferno e por lhe gançar coroa devida.

(Ms. da Livraria de Alcobaça, n.º 266, fls. 147 e 148. Do século xiv. Na Bibl. Pública
de Lisboa. Vid. Vieux textes portugais, p. 28.)

NOTA: Acha-se no Conde de Lucanor, de Dom Juan Manuel, cap. XXXVII, fl.
104, porém mais desenvolvido. Nas Gesta Romanorum (tradução francesa,
Violier, p. 297) traz o título De la vraye probation d’amytié. Citam-se nas notas
muitas fontes tradicionais, entre outras o Dialogus creaturaram, cap. 56; a
Disciplina clericalis, de Pedro Alfonso, cap. 2.°; e Summa Predicantium, de
Bromyard, vb.° Amicitia; há uma tradução árabe de Cardone, Mélanges de
littérature orientale, t. I, p. 78; Apólogos de Stainhoewel, fl. 88; Hans Sachs fez
sobre este assunto a comédia Der halb Freund; Granuci a novela L’Eremita;
acha-se também na parábola dos três amigos, da História de Barlãao e Josafat.
(Na versão portuguesa foram suprimidos os contos.)
EXEMPLO ALEGÓRICO DA
REDENÇÃO

Um homem passou per cerca de um edifício mui fermoso em o qual eram


tôdalas cousas que pertenciam pera deleitação. E achou três donzelas estar
chorando cerca dos rios que saíam daquele castelo, porque a senhora do castelo
estava tão enferma que era chegada à morte. E disse-lhe aquele homem
caminheiro:
— Há esperança de vida em vossa senhora.
E as donzelas responderam:
— Os físicos desesperaram da sua vida: mais ela espera continuadamente um de
um rei que há em si três condições mui nobres. S. ele é mui fermoso e grande
físico e é virgem.
E disse-lhe o mancebo:
— Eu sou esse que ela espera que hei todas essas cousas mui compridamente.
E então levaram aquelas donzelas aquele mancebo ao castelo mui cortesmente.
E a senhora do castelo o recebeu mui bem, e com grande reverença.
E ele começou a fazer sua cura e suas mezinhas à senhora do castelo. E fez um
banho de sangue do seu próprio braço dextro, que fez sair, e pôs-se a senhora
em aquele banho. E tanta foi a virtude daquele sangue mui casto, que com a
quentura do sangue foi tornada aquela senhora a quentura natural, em guisa que
saiu sã, e curada daquele banho, depois que foi banhada em ele sete vezes. E
quando ela viu tão grande benefício como este, rogou a aquele físico que lhe
prouguesse de curar quinhentos cavaleiros que foram mortos de mui cruel
morte e jaziam encerrados em uma cova mui escura. E o físico veio àquela cova e
bradou alta voz:
— Ó cavaleiros, levantade-vos e alegrade-vos e cantade louvores ao vosso
livrador.
E os cavaleiros foram logo tornados à vida e começaram bradar em uma voz
dizendo todos:
— U é a mão dextra daquele que assim soa? U são os dões bem-aventurados.
Vem trigosamente e dá-nos as doas que perdemos em outro tempo. E isto
contra o sabedor Tefon.
E per este edifício tão nobre se entende a Santa Igreja que é ajuntamento dos
fiéis. — E aquele castelo da Santa Igreja estão a redor dele três donzelas, que
são três virtudes teologais, convém a saber, fé, esperança e caridade. E estas
choravam pola linhagem humanal, que era enferma de morte ante a vinda de
Jhuxpo...

(Fls. 16 e 17 do Orto do Esposo. Ms. n.º 273 da Livraria de Al-cobaça, hoje na Bibl.
Nac. de Lisboa.)


NOTA: Parece-nos a forma rudimentar donde se desenvolveu a novela de
cavalaria celeste. É provável que se encontre nas coleções medievais.
A JUSTIÇA DE TRAJANO

Um imperador de Roma que havia nome Trajano, ia uma vez a grande pressa a
uma batalha. E uma viúva saiu a ele chorando e disse-lhe:
— Rogo-te senhor, que façais justiça daquele que matou um meu filho sem
razão.
E disse-lhe o imperador:
— Eu te farei justiça depois que vier.
Respondeu a viúva:
— E se tu morreres em a batalha quem me fará justiça?
E disse-lhe o imperador:
— Aquele que reinar depós mi.
E disse a viúva:
— E que aproveitará a ti se outrem fizer justiça?
E o imperador respondeu:
— Certamente não me aproveitava nenhuma cousa.
E disse a viúva:
— E pois não é melhor que tu me faças justiça e ajas ende o galardão ca o
leixares a outrem.
E então descendeu o imperador do cavalo com piedade, e fez ali justiça da morte
daquele filho da viúva. E outrossim aconteceu uma, que o filho deste imperador
Trajano ia correndo pela vila em um cavalo e per aquecimento sem seu grado,
matou um filho de uma viúva, e ela queixou-se ao imperador chorando. E o
imperador deu então aquele seu filho em logo daquele que matara e deu-lhe
muito haver com ele.

(Op. cit., fl. 20.)

NOTA: Esta lenda da Idade Média, acha-se em João Diácono, em S. Tomás, e


Dante tratou-a no Purgatório, canto X; aparece no De Mirabilibus urbis Romae, e
foi metrificada no Dolopathos, canto quinto. (Vid. ed. Janet, p. 265.) Na coleção
do Novellino, vem sob o n.º LXIX. A lenda continuou a ser conhecida em
Portugal como tema de arte. Em uns panos de rãs do palácio de D. João II
estava representada a lenda da justiça de Trajano, como o referem os cronistas.
Também em uma festa palaciana, D. João n apareceu na sala «invencionado em
Cavaleiro do Cirne.» Sobre esta outra lenda, conhecida em Portugal, pode ver-se
Jacob Grimm, nas Veillées allemandes, t. II, pp. 342 a 370. (Ed. Paris, 1838) e a
larga introdução de Reifenberg na Crónica Rimada de Philippe de Mouskes.
A MORTE DOS AVARENTOS

Um avarento jazia mui mal enfermo pera morte.


Este homem havia muitas riquezas e nunca se aproveitava delas nem tanto a
Deus, nem quanto ao mundo, nem pera seu corpo. E jazendo assim chegado à
morte, sua mulher entendendo que não havia em ele vida, chamou uma sua
servente e disse-lhe:
— Vai tostemente e compra três varas de burel pera envolvermos meu marido
em que o soterrem.
E disse-lhe a servente:
— Senhora, vos havedes uma grande teia de pano de linho, dade-lhe quatro ou
cinco varas ou aquilo que lhe avondar em que o soterrem.
E a senhora disse-lhe queixosamente:
— Vai faze o que te mando, ca bem lhe avondaram três varas de burel, segunda
eu sei a sua condição e a sua vontade.
E estando em isto falando a dona e a servente, ouviu isto aquele homem
avarento, e esforçou-se quanto pôde pera falar e disse:
— Não comprade mais que três varas de burel, e fazede-me o saco curto
E grosso que se não leixe em o lodo.
E depois que ele morreu assim lhe fizeram. E a mulher casou com outro e
lograram os bens que tesourou o avarento.
Mas per outra guisa fez outro homem que havia muitas riquezas. E quando se
viu enfermo de morte, mandou trazer seu haver ante si. E começou-lhe a rogar
que o ajudasse em tal guisa que não morresse. E quando viu que não havia delas
ajuda nem conforto disse:
— Ó riquezas enganosas, eu vos amei de todo o coração e vos prezei e honrei. E
agora que sou posto em necessidade não possa haver de vós nenhum conselho
nem ajuda, e queredes-me desemparar a não vos queredes ir comigo. Pois assim
é, eu vos leixarei de todo. E tanto que isto disse, deu-as todas em esmolas a
pobres.

(Ib., fl. 48.)


NOTA: Nas facécias populares o avarento aparece em uma grande variedade de
episódios; é natural que os pregadores católicos se apropriassem de um fundo
tradicional conhecido.
AS MISÉRIAS DA RIQUEZA

Um rei era gentil e de maus feitos. Havia um bom conselheiro que havia disto
grande tristeza e estava um tempo convinhável para o tirar do erro em que
andava. Um dia disse el-rei àquele seu privado:
— Vem e andemos pela cidade se per ventura veremos alguma cousa proveitosa.
E andando eles pela cidade, viram lume que luzia per um furado. E tiveram
mentes per ele, e viram uma casa soterranha em que estava um homem mui
pobre vestido em uma vestidura mui vil e mui rota. E ante ele estava sua mulher
que lhe escantava o vinho per um vaso de vidro. E tanto que o marido tomou o
vaso de vinho na mão, começou de cantar altas vozes e ela outrossim a balhar
ante ele e louvá-lo muito, e tomavam ambos muito prazer. E aqueles que iam
com el-rei estiveram-nos olhando um grande espaço, e maravilhavam-se porque
aqueles homens tão pobres que não haviam casa em que morassem, nem
vestiduras senão mui rotas, como faziam sua vida tão segura e com tanto prazer.
Então disse el-rei ao seu conselheiro:
— Ó amigo, que maravilha é esta, que nunca a nossa vida foi tão aprazível nem
tão leda a mi nem a ti porque havemos tantos meios e tantos avondamentos,
como é a sua destes sandeus, ca como que ela haja vil e mesquinha e áspera,
parece-lhe a eles leda e blanda.
Quando isto ouviu o privado entendeu que tinha tempo de castigar el-rei e
disse-lhe:
— Senhor, quejanda te parece a vida destes homens?
El-rei disse:
— Parece-me que é a mais mesquinha e a mais mal-aventurada de tôdalas vidas
que eu vi.
E disse-lhe o privado:
— Senhor, sabe por certo que por mais mesquinha e mais mal-aventurada têm a
nossa vida aqueles que contemplam e recontam a glória perdurável e celeste que
sobre poiam todo sido. Ca os vossos paços resplandecentes como ouro e as vossas
vestiduras nobres e fermosas mais fedorentas e mais feias parecem que o esterco
aos olhos daqueles que contemplam as fermosuras das moradas do céu que não
são feitas com mão e as vestiduras feitas per Deus, e as coroas que nunca serão
corrompidas, que aparelhou o senhor Deus àqueles que o amam. E assim como
estes pobres homens parecem a vós sandeus, bem assim e muito mais nós que
andamos neste mundo e pensamos que havemos grande avondança em esta falsa
glória e com estas deleitações sem proveito, parecemos dignos e merecedores de
lágrimas e choros e de tristeza e de mesquindade, ante os olhos daqueles que
gostaram a doçura de bens perduráveis, que enganam os homens em esta vida
fazendo-se crer que hão em si blandeza e doçura grande e verdadeira, o que é o
contrário e per isto são enganados os viçosos.

(Ib., fl. 43, v)



NOTA: O tema do rei que anda de noite pela cidade tem uma base popular.
O QUE DEUS FAZ É POR MELHOR

Um escudeiro havia uma sua mulher, que havia tão grande esperança em Deus
que toda cousa de novo que acontecia a si ou aos seus, sempre dizia:
— Isto é por melhor.
E aconteceu que aquele escudeiro per aquecimento perdeu um olho. E sua
mulher trabalhou-se de o confortar, dizendo que aquilo lhe leixara Deus
acontecer por o melhor. E depois aconteceu a este escudeiro de se ir a uma terra
estranha que chamam dos lutuanos e servia um príncipe daquela terra. E ele
servia aquele príncipe mui graciosamente em tal guisa que o príncipe o amava
muito. E aconteceu ao príncipe enfermidade de morte. E o costume daquela
terra era tal, que quando o príncipe morria escolhiam um dos seus sargentos dos
melhores e mais graciosos, que morresse com ele, pera o servir em o outro
mundo; e queimavam-no com o senhor segundo era seu costume. E isto haviam
per grande honra àquele servente que assim era escolheito.
Então aquele príncipe mandou dizer àquele seu escudeiro que não havia mais
que um olho que ele o escolhia que morresse e fosse queimado com ele, porque
ele o servia mui bem e mui fielmente, e que o amava muito, e porém, o queria
assim honrar mais que todos os seus serventes. Quando o escudeiro isto ouviu
dava a entender que se tinha per mui honrado disto, dando muitas graças ao
príncipe pela mercê e honra que lhe fazia. E disse àqueles que lhe trouxeram o
recado:
— Como quer que isto seja a mi mui grande honra, pero dizede a meu senhor
que ele bem que sempre servi mui fielmente e ainda agora em este caso quero
ser fiel e quero leixar a minha honra a outro que tenha dous olhos. Ca não
cumpre à honra de meu senhor que ele parecesse em o outro segle com servidor
que não tivesse mais de um olho.
Quando o senhor ouviu esta resposta louvou-a e recebeu-a por boa, julgando
que em isto lhe fazia aquele escudeiro estremada e singular fieldade. E assim
escapou aquele escudeiro morte cruel per razão do olho que tinha quebrado.

(Ib., fl. 63 v.)

NOTA: Acha-se no Conde de Lucanor. Vid. o conto de Trancoso, sobre o


mesmo tema, mas em diversa situação.
UM HOMEM DE TAVERNA

Um homem rico usava muito em beber em as tavernas, em tal guisa que gastou
o que havia. E depois meteu-se a servir os que bebiam em as tavernas por tal que
bebesse com eles. E de si per tempo aborreceram-no e lançaram-no de si. E ele
estando desesperado, veio a ele o Diabo em semelhança de um homem velho e
disse-lhe:
— Vai tu à taverna e eu te darei dinheiros que te avondem, por tal que dês azo
aos outros que bebam mais.
E ele assim o fez. E fazia muitas peleias em a taverna, e muitas bebedices de que
se seguiam muitas pancadas e muitos maus feitos. E ele fez aí um feito tal per
que o mandaram enforcar. E puseram-no na forca por três vezes e nunca pôde
morrer, porque o Diabo o ajudava e o sustinha. E um santo homem que sabia a
má vida daquele homem, vendo isto maravilhou-se e entendeu que o Diabo o
ajudava. E foi-se u enforcavam aquele homem e começou a esconjurar o Diabo
pela virtude de Jhu xpõ que lhe disse a verdade daquele feito porque não podia
morrer aquele homem mais. E o Diabo respondeu e disse:
— Que como quer que ele desejasse a morte daquele homem porque morria
enforcado; pero que ele fazia ir ao Inferno tantos homens que já os diabos eram
cansados em os levar e receber; que por em o ajudava que não morresse.

(Ib., fl. 55 v.)


OS QUATRO RIBALDOS

Um rústico aldeano matou um carneiro e esfolou-o e levava-o às costas para o


vender, em o mercado. E falaram-se quatro ribaldos que estivessem em quatro
lugares em a carreira per u havia de ir aquele aldeão, e que cada um lhe dissesse
que aquele carneiro era cão, por tal que o deitasse de si, e que o houvessem eles.
E quando o aldeão passou per u estava o primeiro ribaldo, disse-lhe:
— Pera que levais assim esse cão?
Respondeu o aldeão:
— Irmão, não sabes o que dizes, ca certamente carneiro é e não cão.
E o ribaldo aperfiou com ele que era cão. E assim o fizeram os outros três
ribaldos. E o aldeão vendo isto disse antre si:
— Eu cuidava que isto era carneiro; mas pois todos dizem que é cão, não hei
que faça dele — e lançou o carneiro em terra e foi-se. E os ribaldos tomaram-
no.
E bem assim comunalmente todo o mundo fala mentirosamente.

(Orto do Esposo, de Frei Hermenegildo de Tancos, alcobacense.)

NOTA: Este conto acha-se traduzido no Orto do Esposo, ms. da Biblioteca de


Alcobaça, do século XIV. A redação mais antiga é a que vem no Pantchatantra,
liv. III, n.º 4: O Brâmane e os Ladrões. (Trad. de Lancereau, p. 225, e nota
resumida de Benfey, a p. 374). Acha-se igualmente no Hitopadeça, (trad.
Lancereau, p. 192) donde veio para a coleção árabe do Calila e Dimna, que foi
vulgar na Península Hispânica. Deste conto diz Max Müller que foi conhecido
em Constantinopla por um uma tradução grega pelo tempo das Cruzadas, sendo
espalhado pela Europa pela obra latina intitulada Directorium humanae vitae.
Quer pela latina entrou ele em Portugal, como se vê pelo caráter moral do
exemplo com que é referido no livro ascético supracitado. O conto acha-se
levado na corrente da transmissão literária e reaparece na Filosofia Morale e nas
Piacevoli Notte, de Straparola*; mas é certo que ele teve uma migração oral,
porque na coleção dos contos nórdicos de Asbjõrnsen e Moe, traduzidos para
inglês por Dasent (Popular tales from the Norse) figura com o título de Mestre
Ladrão.** Acha-se na coleção mais querida da Idade Média as Gesta Romanorum
(Violier des histoires romaines, cap. 132); no Decâmeron, de Boccaccio, jornada IX,
novela 3.ª; nas Facécias de Pogio, nas Cento Novelle antiche, nas Novelle, de
Fortini, n.º 8, e nas Novelas de Compriano.
* Notte I, Fabula 3.ª; há diferença, porque o padre traz da feira um macho, que
os ladrões teimam em chamar burro.
** Max Müller, Essais sur Ia Mythologie comparée, pp. 276 a 278.


A BOA ANDANÇA DESTE MUNDO

Um cavaleiro era mui namorado duma dona mui filha de algo, casada. E a dona
era de boa vida e não curava nada do cavaleiro como que a ele demandava mui
afincadamente. E aconteceu que morreu o marido da dona. E o cavaleiro
começou de a demandar mais afincadamente. E ela mandou-o chamar e disse-
lhe:
— Vós sabedes que não sodes igual a mim; pero quero-vos tomar por marido se
vos iguardes a mim al de menos em riquezas, e per isto me escusarei de meu
linhagem.
E o cavaleiro pediu a el-rei e aos outros senhores e trouve à dona muito ouro e
muita prata e muitas doas. E ela por se escusar do seu casamento disse-lhe que
todo aquilo era pouco, se mais não trouvesse. E então o cavaleiro teve o caminho
a um mercador que levava mui grande haver e matou-o e soterrou-o fora da
carreira e tomou todo o haver que levava e trouve-a à dona. E ela entendeu que
aquela riqueza era de mau ganho, e disse ao cavaleiro que se lhe não dissesse
donde houvera aquele haver que não casaria com ele. E o cavaleiro descobriu-
lhe todo o que fizera. E ela lhe disse que fosse ao lugar u jazia o mercador
soterrado e que estivesse ali des o serão até o galo cantante e que lhe não
encobrisse todo o que lhe acontecesse, e se isto não fizesse que o não tomaria por
marido. E ele fez assim como lhe a dona mandou. E viu sair da cova o mercador
e ficou os geolhos em terra e disse três vezes:
«Senhor Jesus Cristo, que és justo juiz, e que vês tôdalas cousas, posto que sejam
feitas escondidamente; dá a mim vingança deste cavaleiro que me matou e
tomou-me tôdalas cousas que vivíamos eu e minha mulher e meus filhos.»
E ouviu uma voz que lhe disse:
«Eu te digo e prometo em verdade, que se ele não fizer pendença em trinta
anos, que eu te darei dele tal vingança que será a todos exemplo.»
E tanto que isto foi dito tornou-se o morto pera sua cova. E o cavaleiro mui
espantado e tornou-se pera a dona e contou-lhe todo o que vira e ouvira. E ela
recebeu-o por marido e houve dele filhos e filhas. E ela lhe dizia muito a miúdo
cada dia que se lembrasse do espaço que lhe fora dado para fazer pendença. E
este cavaleiro fez em um seu monte umas casas mui nobres e mui fortes. E
estando ele um dia em aquele lugar comendo com sua mulher e com seus filhos,
e com seus netos em grande solaz com a boa andança deste mundo, veio um
jogral e o cavaleiro fê-lo assentar a comer. E entanto ele comia, os sargentos
destemperaram o estormento do jogral e untaram-lhe as cordas com fressura. E
acabado o jantar tomou o jogral o seu estormento pera tanger e nunca o pôde
temperar. E o cavaleiro e os que estavam com ele começaram a escarnecer do
jogral e lançaram-no fora dos paços com vergonça. E logo veio um vento grande
como tempestade e soverteu as casas e o cavaleiro com tôdolos que i eram. E foi
feito todo um grande lago. E parou mentes o jogral trás si e viu em cima do lago
andar umas luvas e um sombreiro nadando, que lhe ficaram em na casa do
cavaleiro quando o lançaram fora.

(Ibid., fls. 89, 90. Ms. 274 da Livr. de Alcobaça, hoje na Bib. Nacional.) Ainda
subsiste na tradição oral. Vid. Contos Populares Portugueses, n.º 74.)

NOTA: Primeiro conto que deparámos ao folhear o Orto do Esposo, antes de


termos pronta para a imprensa a nossa coleção. Encontrámos uma versão oral
com algumas modificações: «O amante para obter o sim da viúva, que exige que
ele traga muito dinheiro, em vez de matar o mercador faz um pacto com o
Diabo, que lhe aparece no caminho sob essa forma conduzindo muitas riquezas.
O pacto consiste em que lhe há de dar a primeira pessoa que entrar em casa
quando vierem do casamento. Assim se combinou. Ao saírem da igreja já casados,
todos montaram a cavalo, e o noivo montou também um muito lindo que um
criado lhe trouxe. O cavalo rompeu logo à desfilada adiante de todos, chegou a
casa, entrou pela porta dentro, e nisto ouviu-se uma voz, que disse: — Ah
danado, que te filei! A casa foi pelos ares com tudo que tinha dentro, e quando o
acompanhamento do noivado chegou ao sítio só achou um lago, que ainda
cheirava a enxofre.» Há uma preciosa versão oral nos Contos Populares
Portugueses, n.º LXXIV.
Exempli de un cavaller qui fon anamorat d .I. donzella. Una vegada fo una dona fort bella e de
bon linatge e molt bom eren anamorat que la presessen per muller si que .I. cavaller entre los
altres ne fo fort anamorat que no uabia sino ella axu com sen ha molts al mon que mes posen lur
ausor e lur enteniment en alo quils pot noure mes que en allo dou los pot venir he finalment lo
cavaller sen vench a ella e dix li que ell la prendria fort volonters per muller, e ella ques alta
molt dell, empero dix li ella si era richs cavaller e ell dix li axi com era veritat ell era bell mas
semblali pobre e dix li que si ell podia aver riquesa quel pendria. Lo cavaller sen ana en una
montayna on passa fort gran camj e aqui ell estech .I. estona, puxs vench .I. mercader ab gran
poder de diners e ausislo e porta los diners á la dona e demanali don los havia hants e ell dixley
tot tant nera torbat e anamorat. Ara dix ella sim volets per moller fets aço que yous dire vetsvos
en al mercader que auets mort e estarets aqui tate .I. nit e veurets que sera e feu hu e con fon
miga nit la anima del mercader mort crida alta veu senyor Deu tu venja que yo no meria mal. Et
una veu del cel va respondre de uy a tres anys sera aquell dia que tu seras vengat lo cavaller hac
gran pahor e nos es maravella e torna o dir aço a la donzella, e la donzella dix que deus los no
perdonara e que farien molt de be per tal que deus los ho perdonas pres la muller e hagueren
molt de he e nols membra de deu e adelitaren se en los delits de aquest mon. Com vench a cap
de .III. anys dia per dia lo cavaller e la dona faeren gran convit e gran fet, e nels anava lo cor que
fos agueil dia e tots quant jutglar podien trobar pagaven per tal que fossen aqui e .I. jutglar
passauan e gira si per tal que guayas axi com los altres e alscuns de aquells qui eren já aqui
untaren li la viula ai greix per tal que no sabes es de ber fer per enveia que avien e ell que viu
que tots lo jauglaven partissen e com fo lui mija legua ell regoneis que havia jaquit los guants e
dix tornar hibe que noy hauria obs res a perdre pus noy he altre gurayat tornay e com fo Ila on
lo oastell era tot fo aytaut pla com la palma que sen fo entrat e aplanat e traba la gnants al mig
del pla, e axi vens com se fa bon penedir de sos pecats e que bom reta ço que deu e que noy
spere hom dia hora e deus perdonarans tantost si fer.» (De uma Colec. de Exemplos, códice do
Arquivo aragonês, ap. Milà y Fontanals, Delos Trovadores en España, p. 500.)
Da versão portuguesa, lê-se no prólogo dos Contos Populares Portugueses, p.
XVII: «não achámos ainda prova palpável de que o monge de Alcobaça tivesse
simplesmente referido uma lenda estrangeira e não redigido uma tradição
popular portuguesa.» A versão catalã revela a fonte de um exemplar medieval
comum.
Nos Contos Populares Portugueses, p. 159, vem esta versão de Ourilhe:
«Um pobre homem tinha uma filha, e um criado; veio por ali a passar um
brasileiro, e disse-lhe:
— Se me deixasse ir o seu criado até eu passar aquela serra, que levo muito
dinheiro e tenho medo que mo roubem. Ele mandou o criado, e ele de volta
disse:
— Oh senhor! não me dá a sua filha, que quero casar com ela?
— Sempre és muito malcriado! Se não fora ter-te amizade, punha-te já fora da
porta com uma carregadeira de pau.
— Senhor, olhe que eu estou rico; que eu matei o brasileiro e tirei-lhe este
dinheiro.
E mostrou-lhe o dinheiro.
— Eu não duvido dar-te a minha filha, mas hás de ir três vezes a eito à volta da
meia-noite onde o mataste escutar o que ouvires.
O moço foi. Perguntou-lhe o amo:
— Tu o que ouviste?
— Eu ouvi dizer: — Tu pagarás.
— Torna lá; e tu hás de perguntar: — Eu quando é que hei de pagar?
O criado foi lá, e a voz disse-lhe:
— Daqui a trinta anos. E o amo disse-lhe:
— Daqui a trinta anos já eu não sou vivo. Casa com a minha filha.
Fez-se o casamento. Passados trinta anos, andavam dois pobres a pedir, e foram
pedir àquela casa. E disse o pai da rapariga:
— Venham para dentro:
E ao tempo que eles iam a entrar, embarraram numa cesta que tinha ovos, e
quebraram um. O dono da casa ralhou com eles. Disseram eles:
— Oh senhor! não ralhe connosco a troco do ovo, que nós lho pagamos, ainda
que ele custe uma moeda.
— Não é por isso: é que a roda enquanto anda, anda; Há trinta anos que dei a
casa à minha filha; há trinta anos que não dei nenhuma esmola, e até hoje não
tive nenhuma perda, só agora a de um ovo.
Os dois pobres deitaram-se, e disse um para o outro:
— Tu dormes?
— Eu não. Vamo-nos daqui embora; casa que há trinta anos não dá esmola nem
teve perda nenhuma se não hoje, aqui acontece alguma desgraça.
— Mas nós aonde havemos de ir agora dormir? Tão fora de horas, não achamos
pousada.
— Pois, enfim, vamo-nos. Como nós fiquemos fora dos beirais dela... fiquemos
por aí detrás de uma parede.
Saíram; ficaram aí perto das casas atrás de uma parede, e de noite ouviram um
grande ruído. Disse um para o outro:
— Tu ouviste aquilo?
— Eu ouvi.
— Olha que foram, certamente, as casas do fidalgo a cair.
Ao outro dia, assim que alvoreceu, foram ver e não encontraram casas, nem
telhas, nada! E no lugar da casa só uma grande cova.
OS DOUS CAMINHOS

Eram dous irmãos, e um era sabedor e o outro sandeu. E andavam ambos fora de
sua terra. E querendo-se tornar pera ela, chegaram a um lugar u se partiam dous
caminhos. E acharam pastores que guardavam gado, que lhes disseram que uma
carreira daquelas era dura e fragosa e estreita e per aquela iriam diretamente e
seguros a sua terra. E que a outra era ancha e chã mas era perigosa e cheia de
ladrões. Quando isto ouviu o irmão sabedor quisera ir pela carreira fragosa e
segura. E o irmão sandeu rogou muito que se fossem pela carreira ancha e chã.
E o sabedor consentiu. E foram-se ambos pela carreira chã e perigosa. E foram-
se e saíram os ladrões a eles e prenderam-nos e esbulharam-nos e feriram-nos. E
lançaram o sandeu em uma cova em que morresse. E levaram o outro para o
matarem; e dizia o sabedor ao sandeu:
— Maldito sejas tu, ca por a tua sandice mouro eu.
E o sandeu lhe disse:
— Mas tu sejas maldito, que sabias que eu era sandeu e trouveste-me.
E assim pereceram ambos. E bem assim acontece ao homem, ca a carne que é
sandia quer ir pela carreira da boa andança e das deleitações do mundo, mas a
alma que é sesuda queria andar pela carreira da pendença e das tribulações do
mundo, e a razão assim lho conselha, mas a sensualidade tem com a carne, e os
prelados e pregadores que são os pastores demonstram ao homem ambas as
carreiras.

(Ms. 273, fl. 98.)


NOTA: O tema tradicional do caminho que vai dar ao Céu e do que vai dar ao
Inferno conserva-se entre o povo. (Vid., t. I, p. 131.)
A PAPISA JOANA

Um papa que houve nome Joana, natural de Margantina de Inglaterra, foi


mulher. Ca ela sendo moça pequena levou-a um seu amigo à cidade de Atenas
em trajo de barão. E aprendeu tanto que foi sabedor em muitas ciências, em tal
guisa, que não havia nenhum que fosse igual a ela. E depois veio a Roma e leu i
de cadeira. E aprendiam dela grandes mestres e muitos outros discípulos, em
guisa que era de mui grande fama em a cidade de Roma. E porém foi eleito em
concórdia por papa. E sendo papa dormia com um seu familiar e emprenhou. E
ela não sabia o tempo do parto e indo um dia da Igreja de São Pedro pera São
João de Latrão vieram-lhe as dores do parto e pariu ali em a carreira e morreu, e
soterraram-na ali. Pouco aproveitou a esta a fama e os louvores dos homens,
assim como empeceu a outro papa a desonra que lhe foi feita.

(Ib., fl. 99.)


NOTA: Acha-se uma referência a esta lenda no livro de Mariannus. Scotus,
Chron. ad annum 854, dizendo que «Leão IV teve por sucessor uma mulher
chamada Joana, que ocupou a cadeira de Pedro durante dois anos, cinco meses e
quatro dias.» Em outro cronista do fim do século VIII, Sigberto (da coleção de
Leibniz), se lê: «Conta-se que este João fora uma mulher, conhecida somente
por um dos seus familiares...» Nos Anais de Otão, bispo de Fressingue, que
chegam até 1146, diz-se que este papa João era uma mulher. O mesmo
testemunho se acha nas crónicas de Gifrid Arthur, Godefroy de Viterbo (da
coleção Freher), colocando a papisa Joana entre Leão e Bento. No século XIII,
Martin Polonus, dominicano e penitenciário dos papas João XXI e Nicolau III,
diz na sua Chron. ad annum 854 (da coleção de Leibniz): «que Joana era filha de
pais ingleses e nascida em Marrence, e que depois de ter sido papa dois anos,
cinco meses e quatro dias, morrera de parto, em uma procissão, e foi enterrada
sem honra no mesmo lugar em que expirara. Os soberanos pontífices nunca
mais passaram por esta rua, e iam para a basílica de Latrão por outro caminho.»
Um bispo da Galiza, Bernardo Guy, do século XIV, nas suas Flores Temporum,
também alude ao facto da papisa Joana, seguindo-se a este outros, como João de
Paris, Sifrid de Misnia, Sozomeno, Barlaão, monge de Calábria, e Amalarico
d’Auger, na sua Nomenclatura Cronológica dos Bispos de Roma. Petrarca, na Vida
dos Imperadores e dos Papas, e Boccaccio, na obra De claris mulieribus, citam como
facto histórico a realidade da papisa Joana, que mais tarde Allatio atribuiu
impudentemente a fabricação dos protestantes. Basta-nos citar estas autoridades
para se conhecer por que via este facto penetrou no conhecimento dos teólogos
portugueses do século XIV, e com que intuito o citou Frei Hermenegildo de
Tancos no Orto do Esposo. Merece consultar-se a monografia de Emtn. Rhoïdes,
La papesse Jeanne, pp. 64 a 71.
O FIRMAL DE PRATA

Um barão segral havia grande cobiça de fazer seu pecado com uma mulher. E
ela era casta e boa, e porém não se atrevia ele de a demandar, mas cuidou
falsamente e arteiramente como cumpriria sua má vontade. E tomou um firmal
de prata que era de grande preço e deu-o em guarda àquela mulher. E depois
furtou-o em guisa que o ela não soube, e lançou o firmal em o mar, por tal que
não lho podendo ela dar, ficasse por sua serva, e assim cuidava usar com ela como
lhe prouguesse. E depois que isto fez demandou o firmal à boa mulher. E ela
entendeu o engano que lhe fora feito e acorreu-se a uma santa virgem que havia
nome Brígida, e estando com ela veio um homem que trazia peixes do mar que
ele tirara. E quando abriram um deles acharam em o ventre dele o firmal e deu-
o a boa mulher àquele homem mau. E assim ficou vão o seu pensamento e sua
arteirice.

(Fl. 105.)

NOTA: O tema da joia engolida por um peixe persiste na tradição popular (vid.
n.º 10); ou engolida por uma águia (vid. n.º 21). Nas Cantigas de Santa Maria, de
D. Alfonso el Sabio, séc. XI, n.º CCCLXIX, também se acha esta lenda.
Em Santarém contiu estas / a uma mulher tendeira / que sa cevada vendia, / e dizia amiúde: /
«Aquele é do mal guardada / que guarda Santa Maria.» / ……………………….. / Um alcaide era na
vila / de mal talã e sanhudo, / soberbo e cobiçoso / que por el nium direito / nunca bem era
julgado. / ………………………. / Disse o Alcaide: — Que lhe ora / fizesse per que errasse, / e que
daquela paraula / per mentira l’em ficasse / Mas ei agora osmado / uma cousa per que logo / em
este erro a metades: / filhade esta mia sortelha / e dade-lha per cevada, / que m’a logo aqui
tragades. / E enviou Deus dizendo / a cada um que punhasse / de lhe furtar a sortelha, / per que
pois se lh’achasse. / / E eles assi fizeram, / ca foram ali correndo / e compraram-lhe a cevada / e
deram-lhe a sortelhar, / que em penhor a tivesse / até que fosse pagada. / Mais não guiso um deles
/ que o anel lhe durasse, / antes buscou sutileza / perque logo lh’o furtasse. / …………………….. /
Outro dia o Alcaide / mandou aos dous mancebos / que enviara primeiros / a aquela mulher boa /
e lhe dessem seus dinheiros, / que logo sua sortelha / mantenente lhe tornasse, / e se não, que
quanto havia / a mulher, que lh’o filhasse. /………………………….. / A dona quando oiu esto, / foi por
filhar a sortelha / d’ali onde a pusera; / mas não achou nemigalha, / pera a andar buscando / a foi
em grã coita fora. / ……………………………. / O Alcaide mui sanhudo / que lhe desse a sortelha, / e se
logo lh’as não desse, / que quant’ havia lh’entregasse, / ateu em que a calis / de sortelha lhe
deixasse. / / A mulher quando ouviu isto / com mui grã coita chorando / disse: — Ai, Virgem
gloriosa, / a qual é do mal guardado / mia Senhor, a quem tu guardas. / / Ela dizendo aquanto, / o
Alcaide mui sobervio / cavalgava em seu cavalo / el deceu-se pera Tejo / per dar-lhe a beber em
rio / e o topete lavá-lo. / E em lavando derreio / quis Deus que lh’escorregasse / aquel seu anel do
dedo / e em a água voasse. / / O Alcaide pois viu esto, / des i todo despeito / tornou sobre la
mesquinha, / e mandou a um seu home / que tão muito a coitava / até que de quant’havia / de
todo a derrancasse. / A boa mulher coitada / foi tanto d’aqueste feito / que sol não soube conselho
/ de si nem ar que fizesse. / Ela havendo grã coita / e fazendo mui grã dó. / / veio a ela sa filha, /
Dizendo: — Madre comede, / e havede algum coho to. / / Des que l’aquesto houve dito / foi-se
correndo a Tejo / se o pescado vendiam, / e perguntou aos dos barcos. / ………………………….. / Des
que lh’houve assi comprado / aquele peixe a menina, / foi-se a sua madre correndo. / Então lhe
mandou a madre / que o peixe lh’adubasse / e o lavasse de dentro / e de fora o escamasse. / /
Então filou a menina / e pois lavar aquel peixe, / quando foi que o abrisse / em abrindo catou
dentro / e viu jazer a sortelha; / logo a su madre disse / como aquel anel achara / e ela que lho
mostrasse / mandou, e poi-lo viu logo, / e mandou que se calasse. / / Outro dia o Alcaide / veio
irado e sanhudo / a sua casa por prendê-la / se lh’a sortelha não desse, / pois lhe dera seus
dinheiros, / que morreria por elo. / / E então ela ante todos / tirou o anel do dedo / e deu-lh’o . E
ele logo / que o houve conosçudo / filhou-se-le um mui grão medo. / …………………………. / E deu-se
ende por culpado / e ante toda a gente / rogou que lhe perdoasse. /
OS QUATRO LADRÕES

Contam as histórias antigas que em Roma eram quatro ladrões. E andando uma
noite a furtar sentiram a Justiça e fugiram e esconderam-se em uma cova. E
quando a luz veio, acharam-se em uma casa de abóbada mui fermosa. E acharam
em ela um moimento de mármore mui fermoso. E disseram antre si:
— Este moimento foi de algum homem nobre e rico. Abramo-lo e vejamos se
acharemos algum bem. Ca em outros tempos acostumavam soterrar os grandes
homens com doas e cousas de grande preço.
Então abriram o moimento e acharam o moimento cheio de ouro e de prata e de
pedras preciosas e de vasos e de copas de ouro mui fermosas. E entre eles era
urna copa mui fermosa e maior que tôdalas outras. Quando este acharam,
disseram antre si:
— Ora somos nós ricos e de boa ventura, e seremos ricos pera sempre nós e
nossos filhos, mas será bem que algum de nós fosse à vila per vianda.
E cada um se escusava, dizendo que era conhecido em a cidade e se temia de o
enforcarem. Em cabo disse um deles:
— Se me vós derdes aquela maior e melhor copa, eu irei polo mantimento.
E os outros outorgaram, e ele foi e trouxe de comer. E indo pelo caminho
levando a vianda, cuidou como meteria em ela peçonha em guisa que comendo-a
seus companheiros morreriam e ficaria dele todo o que acharam em o
moimento. E os três ladrões que ficaram enquanto ele foi falaram-se antre si e
disseram:
— Aquele era nosso companheiro não quis ir polo mantimento senão que lhe
déssemos a copa melhor, matemo-lo e ficará a nós todo o haver.
E disse um deles:
— Como o mataremos sem perigo, ca ele é mais esforçado ca nós.
Respondeu o outro e disse:
— Quando ele vier digamos-lhe que entre dentro e tome a copa e quando se
antre dentro tiramos o madeiro que sustém as pedras e cairão as pedras sobre ele
e morrerá.
E quando veio o outro fizeram-no assim e ficou logo morto. E eles disseram:
— Comamos e bebamos e depois partiremos o haver antre nós.
E começaram a comer a vianda que o outro trouxera e morreram com a peçonha
que em ela andava.

(Fl. 105, v.)
O CAVALEIRO E O PACTO COM O
DIABO

Um cavaleiro nobre e poderoso sendo rico despendeu todos seus bens tão sem
discrição, que caiu em mui grã pobreza. Este cavaleiro havia uma sua mulher
muito casta e devota da benta Virgem Maria. E veio uma grande festa em que
este cavaleiro soía dar muitas doas e fazer grande despesa. E porque não tinha já
que desse, com vergonça foi-se esconder em uma mata,
E ali jazia fazendo seu dó até que passasse aquela festa. E estando ele em aquele
lugar chegou a ele uma criatura mui espantosa em cima de um cavalo espantoso
e perguntou-lhe por que era assim triste. E o cavaleiro lhe contou toda sua
fazenda. E a criatura espantosa lhe disse:
— Se quiseres fazer o que te eu mandar, eu te farei haver mais riquezas e mais
honras que antes havias.
E o cavaleiro lhe prometeu que faria todo o que ele quisesse, se ele cumprisse
tudo o que lhe prometera. E o Demo lhe disse:
— Vai a tua casa e cava em lugar e acharás muito ouro. E promete-me que tal
dia tragas aqui a mim tua mulher.
E o cavaleiro lhe prometeu. E foi-se a sua casa e achou mui grande riqueza
segundo lhe dissera o Diabo. E começou de viver honradamente como antes. E
quando veio o dia em que prometera levar sua mulher ao Diabo, disse-lhe que
subisse em um cavalo que se havia de ir longe com ele. E ela como quer que
houvesse grande temor, não ousou contradizer ao marido e foi-se com ele,
comendando-se devotamente a Santa Maria. E indo eles pelo caminho, viu ela
uma igreja de Santa Maria e desceu do cavalo e entrou em a igreja, e o marido
ficou fora atendendo-a. E ela fazendo a sua oração devotamente à benta Virgem
adormeceu. E a benta Virgem tomou semelhança daquela dona em todo e foi-se
fora da igreja e cavalgou em o cavalo da dona. E foi-se com o cavaleiro, pensando
ele que era sua mulher. E quando chegaram a o lugar veio logo o Diabo
tostemente. E quando perto deles não se ousou chegar, mais começou de tremer
e haver grande pavor e assanhar-se. E disse ao cavaleiro:
— Ó falso e mui desleal cavaleiro porque me fizeste tão grande escarnho e me
fizeste tanto mal por muitos bens que te eu fiz, tu me prometeste que me trarias
tua mulher e trouveste Maria. Ca eu me quisera vingar da tua mulher por
muitas injúrias que me faz, e tu trouveste-me esta que me atormenta
gravemente e me lança em o abisso do Inferno.
Quando isto ouviu o cavaleiro ficou mui espantado e maravilhado, e com temor
não pôde falar. E a Benta Virgem disse ao Diabo:
— Qual foi a tua ousança e o teu mau atrevimento que presumias empecer à
minha devota! Mas não escaparás assim sem pena, ca eu te mando que logo
descendas aos abissos do Inferno e que daqui em diante não empeças a nenhuma
pessoa que me chamar com devoção.
Quando isto ouviu o Diabo partiu-se logo dali tostemente uivando e fazendo
grande dó. E o cavaleiro desceu-se do cavalo e lançou-se em terra aos pés da
Benta Virgem. E esta o repreendeu do que fizera e mandou-lhe que se tornasse
pera sua mulher que acharia dormindo em a igreja e que lançasse de si aquelas
riquezas que houveram pelo Diabo. E a Benta Virgem desapareceu. E o
cavaleiro tornou-se à igreja e espertou sua mulher que jazia dormindo e contou-
lhe tudo quanto lhe acontecera. E foram-se pera sua casa e lançaram de todo
aquele haver que houveram polo Diabo. E perseveraram em louvores e em
serviço da Benta Virgem mui devotamente e depois houveram per ela muita
riqueza a serviço do Senhor Deus.
(Fl. 120)
NOTA: Esta tradição é ainda popular na Itália, e acha-se coligida na Sicília por
Pitré: a Idade Média elaborou-a profundamente em cantos, contos e autos.
Acha-se na narrativa do rei de Castela, Dom Sancho o Bravo, intercalada no El
Libro de los Exemplos; e foi assunto de um drama do velho teatro francês Du
chevalier qui donna sa femme au diable. Du Puymaigre cita uma balada alemã
sobre este mesmo tema. (La Poesie populaire en Italie, p. 42.) Nas Cantigas de
Santa Maria, por D. Alfonso el Sabio, n.º CCXVI, vem esta lenda curiosa:
... ora um miragre / fermoso quero dizer / que eu oí duma dona / que filhava grã prazer / de
servir Santa Maria / e em o seu bem fazer. / Ela dum bom cavaleiro / mui rico era mulher, / que
perdera quant’havia / e era-lhe mui mester / de o cobrar, e queria / cobrá-lo já como quer; / e
pelo cobrar vassalo / se foi do Demo tomar; / que lhe disse: Pois meu sodes, / mui grand’algo vos
darei, / e vossa mulher trazede / a um monte, e falarei / com ela e, porém rico / sem mesura vos
farei. / O cavaleiro oiu isto / e fê-lo-lh’o logo outorgar. / / O Diabo, pois menage / do cavaleiro
filhou / que sua mulher lhe aducesse, / mui grand’algo lh’amostrou; / porém, como lh’a levasse, / o
cavaleiro cuidou, / e disse: — Ai, mulher treides / hoje amigo a um lugar. / / Ela indo per carreira
/ viu igreja cabo a si / estar de Santa Maria / e disse : — houver eu ali / folgar ora uma peça, / e
andaremos des i. / E deceu i e deitou-se / a dormir cab’um altar. / / E saiu Santa Maria / de traio
altar então; / e assi a semelhasse, / que diríades que não / era senão essa dona; / e disse: — É já
sazão / de nos irmos, ai! marido. / E disse ah: — Tempo é d’andar. // Então foi Santa Maria / com
el ao lugar u / estava o Demo. Quando / viu a Madre de Jesus / Cristo, o Demo lhe disse: / —
Mentira forte tu / em trazer Santa Maria / e a ta mulher deixar. / / Disse então Santa Maria / —
Vai! Demo cheio de mal; / Cuidando a meter a dano / a mia serva leal. // E disse ao cavaleiro: / —
Fostes assi de mal seu, / que cuidastes pelo Demo / haver riqueza e bem; / mais filhado em
pendença, / e repentide-vos em... / / O cavaleiro da Virgem muit’alegre se espediu / e foi-se u sua
mulher era / e contou-lhe quanto viu / e do Demo e dos seus dões / de todo ali se partiu.

Acha-se esta lenda em Gil de Zamora, Liber Mariae, Tract. VII; mirac. 5.°
Jubinal, Le dit dus povre Chevalier, t. I, pág. 138; Libro de los Exemplos, CXCLX.
Pitré, Fiabe siciliane, n.º CCXX.
O DIABO ESCUDEIRO

Em uma terra havia um cavaleiro que era homem bom e sua mulher outrossim.
Este cavaleiro por amor e da gloriosa sua madre, mandou fazer espritais e casas
pera pobres e despendia em este o que havia. E havia um filho, e quando houve
de morrer chamou-o e recomendou-lhe os espritais que fizera, e o escudeiro
ficou com sua madre depois da morte de seu padre, e já quanto per vergonça de
sua madre curava do que lhe seu padre encomendara; mas depois da morte de
sua madre, começou ele a fazer má vida e não curava de semelhar seu padre, mas
despendia em vaidade o que lhe seu padre e sua madre leixaram.
Um dia este escudeiro estando em sua casa veio a ele um mancebo e disse-lhe
que queria viver com ele e que o serviria mui bem, ca era homem fidalgo, e que
sabia fazer tôdalas cousas que cumpriam a bom servidor. E o escudeiro recebeu-
o em sua companhia e ia com ele mui amiúde à caça e tão bem sabia caçar que o
escudeiro andava caçando com ele todo o dia até noite per lugares perigosos e
fragosos. Em aquela terra havia um bispo de boa vida que fora muito amigo
daquele cavaleiro e de sua mulher. E um dia dizendo ele missa pelas almas deles
foi-lhe demonstrado per Deus que aquele servidor do escudeiro era Diabo.
Então o bispo foi ver o escudeiro e comeu com ele e o mancebo servia ante eles.
E depois que comeram, perguntou-lhe o bispo donde houvera tal servidor. E o
escudeiro gabou-lho muito. Então o bispo mandou chamar o servidor, e ele não
queria vir ante ele. E o bispo mandou chamar outra vez mas ele fingiu-se
doente. Então o bispo lhe mandou que viesse per obediência, e ele veio contra
sua vontade. E o bispo lhe perguntou:
— Diz-me que homem és tu?
E ele respondeu:
— Sou Diabo.
E disse-lhe o bispo:
— A que vieste?
E ele respondeu:
— Vim pera matar este escudeiro, porque é mau homem e desviado da bondade
de seu padre, e não curou dos conselhos bons que ele deu.
E disse-lhe o bispo:
— Pois porque o não mataste?
Respondeu o Diabo:
— Porque havia em costume de dizer cada dia sete vezes ave-maria, e porém
andava eu com ele pelos montes e pelos lugares fragosos para o matar se algum
dia deixara de dizer aquelas sete ave-marias, mas nunca foi dia que as não
dissesse.
E o bispo lhe perguntou donde houvera o corpo que trazia e ele lhe disse que
era o corpo de um enforcado. Então o bispo mandou-lhe que se fosse dali e que
não empecesse a nenhum. E logo partiu dali e ficou ali o corpo que trazia morto
e fedorento. Quando isto viu o escudeiro mudou sua vida em bem segundo lhe
conselhou o bispo.

(Fl. 124.)
NOTA: Acha-se também nas Cantigas de Santa Maria, por D. Alfonso el Sabio,
cap. VII, n.º LXVII.
Ond’aveu que um home / mui poderoso e loução / sisudo e fazedor d’algo / …………………… /um
espital fezo fora / da vila u ele morava... / ele mancebos colhia / que aos pobres servissem; / mais o
Demo com inveja / meteu-se em um corpo morto / de home de mui grã beldade. / E veio para el
logo / manso, em bom contenente / e disse — Senhor, querede / que seja vosso sergente, / e o
serviço dos pobres / vos farei de boa mente... / / Em esta guisa o Demo / cheio de mal e arteiro, /
fez tanto, que o bom home / o filhou por escudeiro / e em todos os serviços / a el’ chamava
primeiro. / Tanto lhe soube o Diabo / fazer com que lhe prouguesse, / que nunca lh’ ela dizia /
cousa que ele não creuresse. / E por ende lhe fazia / amiúde que caçasse / em as montanhas mui
fortes, / e em o mar que passeasse / e muitas artes buscava / em que algur o matasse, / perque ele
houvesse a alma / e outro houvesse a herdade. / …………………… / Desta guisa o bom home, / que de
santidade cheio / era, viveu mui grã tempo / té que um bispo que veio / que foi sacar ao Demo /
logo as linhas do sêo. / …………………… / Onde aveu que um dia / ambos jantando siram, / e que
tôdolos sergentes / foras aquele, serviam; / perguntou-lhes o bom home / u era, eles diziam / que i
servir não viera / com míngua de soidade. // Então aquel’home bom / enviou por ele correndo. /
Quando esto soube o Diabo / andou muito revolvendo / mais pero na cima veio, / ant’ele todo
tremendo. / / E então disse ao Demo: / — Di-me toda ta fazenda, / porque aquesta companha /
todo o teu feito aprenda. / E eu te conjuro e mando, / que o digas sem contenda. // Então começou
o Demo / a contar de como entrara / em corpo dum home morto / com que enganar cuidara / e
aquel’ com quem andava / a que sem dulia metera / Quando el’aquesto dizia / E pois esto houve
contado / leixou caer aquel’ corpo / em que era encerrado...
É generalisadíssima esta lenda; dela aponta o marquês de Valmar os seguintes
paradigmas: Gaultiers de Coincy, Du rich home à cui le Dieble scrvi par vil ans;
Beauvais, Speculum hist., lib. VIII, cep. 101; Gil de Zamora, Liber-Mariae, trat.
VII, mirac. 4; Johann Gobins, Scala Coeli, fls. 159-160. Mussafia ampliou os
factos: Bowensa da Riva, De Elemosinis, 610; Voragine, Legenda Aurea, 11, 3;
Miraculi della Madona, II; Marienlegenden, XLV; Livro de Exemplos, XIV.
AS MÁS ARTES DAS MULHERES

Um mancebo trabalhava muito por saber a arte das mulheres. E pôs-se em sua
vontade de casar, e ante que casasse demandou conselho ao mais sabedor homem
daquela comarca u vivia, como poderia guardar aquela mulher com quem casar
queria. E o sabedor lhe deu conselho que mandasse fazer uma casa de mui altas
paredes, e que pusesse dentro sua mulher e lhe desse bom mantimento não
sobejo. E que aquela casa não tivesse mais de uma porta e uma fresta por que
visse, em tal guisa que pudesse sair nem entrar nenhum. E o mancebo fez tudo
per aquela maneira. E casou e pôs dentro sua mulher, e quando ele entrava ou
saía, fechava ele mui bem a porta. E quando havia de dormir escondia as chaves,
e a mulher havia grande sabor em a fresta pera ver os que iam ou vinham pela
rua. E um dia que o marido era ido fora, subiu-se ela em a fresta, e viu um
mancebo fermoso e pagou-se dele, e mandou falar com ele, e depois que teve
com ele formado sua má preitesia, embebedava amiúde seu marido, e depois que
dormia, furtava-lhe as chaves e abria a porta e saía a fazer sua vontade com
aquele mancebo. E porque o marido era ensinado sobre as artes das mulheres
parou mentes como sua lhe dava muito a beber. E um dia bebeu mais que soía
atente perante a mulher pera ver o que fazia. E ela levantou-se à meia-noite e
furtou-lhe as chaves assim como havia em costume e abriu a porta e saiu a o
mancebo; e o marido que jazia espreitando levantou-se e cerrou a porta mui
bem. E pôs-se em a fresta até que viu sua mulher que se tornava em camisa, pera
casa, e começou a puxar a porta; e o marido mostrando que não sabia que era,
perguntou quem estava à porta? E ela pediu-lhe perdão, dizendo: que nunca
mais sairia fora; mas ele não lhe quis abrir dizendo, que ele diria aquele feito a
seus parentes. E ela começou de gemer, dizendo que se lhe não abrisse, que se
lançaria em um poço que i estava, e que ele daria conta dela a seus parentes. Mas
o marido não a leixou porém entrar. E ela tomou uma grande pedra e lançou-a
em o poço com esta intenção que seu marido ouviria o som da pedra quando
caísse na água e cuidaria que ela se lançara em o poço.
E tanto que ela lançou a pedra em o poço, escondeu-se detrás o poço. E o
marido pensando que a mulher jazia em o poço, saiu fora da casa pera ver o
poço. E ela quando viu a porta aberta meteu-se em a casa, cerrou a porta sobre
si. E subiu-se em a fresta, e ele que a viu estar, disse-lhe:
— Ó mulher cheia de má arte e enganosa, leixa-me entrar e eu te perdoarei
quanto fizeste.
E ela lhe disse que o não faria, mas que diria a seus parentes que ele tôdalas as
noites assim saía a fazer seu pecado com as más mulheres, assim o fez. E eles
doestaram mui mal o marido. E per esta guisa tornou o seu mau feito sobre seu
marido. E não lhe aproveitou nada a guarda que pôs em ela.

(Fl. 137.)
O REI E OS CORTESÃOS

Um rei andava em um carro dourado, e iam com ele seus cavaleiros. E


encontrou com uns homens vestidos de vestiduras velhas e vis, e eram magros e
desfeitos. E el-rei quando os viu saiu-se logo do carro e lançou-se aos pés deles e
adorou-os e alçou-se e foi-os beijar em as faces. E os cavaleiros quando isto
viram, não houveram isto por bem. E porque não ousaram repreender el-rei por
aquilo que fez, disseram-no a um seu irmão, como el-rei fizera tal cousa que
não pertencia a ele. E o irmão de el-rei (repreendeu-o) daquilo que fizera. Em
aquele reino, havia tal costume, quando havia de matar per justiça algum
homem, mandava el-rei a um pregoeiro que tangessem uma tromba, que era
pera aquilo ante a porta daquele que haviam de matar. E depois que o irmão de
el-rei o repreendeu daquilo que fizera, quando foi à tarde mandou el-rei tanger
aquela tromba ante a porta de seu irmão. E fez seu testamento. E em outro dia
pela manhã vestiu-se de vestiduras negras e com sua mulher e com seus filhos
foi-se à porta do paço de el-rei chorando. E el-rei fá-lo vir ante si e disse-lhe:
— Ó sandeu, se tu houveste temor de teu irmão, que sabes que não lhe erraste,
como não haverei eu temor dos pregones do meu senhor Deus, ao qual muito
pequei e errei, os quais me significam a morte com mais nobre tromba e me
demonstram a vinda espantosa do Juízo.
E depois disto mandou fazer quatro arcas e duas delas mandou fazer douradas
de fora e mandou-as encher de ossos de mortos podres e fedorentos. E outras
duas mandou untar de fora de pez e mandou-as dentro encher de pedras
preciosas. E mandou chamar aqueles cavaleiros que haviam dito a seu irmão
aquilo que ele fizera. E mandou pôr ante eles aquelas arcas, e perguntou-lhes
quais delas eram de maior preço. E eles disseram que as duas que eram douradas
eram melhores e de maior valor. E el-rei mandou-as abrir. E saiu delas mui mau
fedor, e disse el-rei:
— Semelhantes são estas arcas àqueles que são vestidos em nobres vestiduras. E
dentro em suas almas são cheios de pecados. Assim como estas duas arcas que são
fermosas e douradas de fora e são cheias de dentro dos ossos fedorentos.
Então mandou abrir as outras duas arcas untadas de pez e apareceram as pedras
preciosas e saía de dentro mui bom odor. E disse el-rei:
— Estes são semelhantes àqueles pobres servos de Deus que eu honrei, que
como quer que andam vestidos de vis vestiduras pero dentro em as suas almas
resplandecem com odor de virtude; mas não parades mentes senão às cousas de
fora e não considerades aquelas cousas que são de dentro.

(Fl. 141.)
AS VESTIDURAS HONRADAS

Donde aconteceu que um filósofo chegou ao paço dum príncipe em vestidura vil
e nunca o leixaram entrar dentro, pero o provou muitas vezes. Então ele vestiu-
se em outra vestidura fermosa, e logo o leixaram entrar. E quando chegou ante o
príncipe começou de beijar a sua vestidura mesma que ele trazia e fez-lhe
reverença.
E o príncipe se maravilhou disto. E perguntou porque o fazia. E o filósofo
respondeu:
— Eu honro aquela que me honrou; porque aquilo que a virtude não pode
fazer, ganhou a vestidura. E isto é grande vaidade dar a honra pela vestidura a
qual honra é devida à virtude.

(Fl. 142, v.)

NOTA: Este conto aparece como exemplo citado pelo papa Inocêncio III, no
seu livro De contemptu Mundi seu de Miseria humane conditionis. Reinhold Koeller
apresentou a sua ampla vulgarização no Anuário da Literatura Românica e
Inglesa. Por essa fonte eclesiástica entrou na corrente da tradição popular; na
Itália coligiu-a Pitré nas Fiabe, Novelle e Racconti popolari, t. III, p. 365, n.º
CXC. O estribilho com que termina: Mangiati, rubbiceddi miei, / Cá vuatri
fustivu ‘mmitati. // corresponde a este final da tradição portuguesa: Comei,
mangas, aqui: / A vós honram, não a mim. (Contos Pop. Port., p. XXII.)
ROSIMUNDA

Um rei dos Lombardos que havia nome Alburno, era mui forte e mui poderoso
em armas. Este rei houve batalha com outro rei. E Alburno venceu e matou-o, e
tomou uma filha daquele rei por mulher, que havia nome Rosimunda. E do
testo da cabeça de seu padre, que matara, mandou fazer uma copa e encastou-a
em prata e bebia per ela. E este rei Alburno entrou em Itália e tomou todas as
cidades dela pela maior parte. E estando ele em uma cidade que chamou Verona,
fez um grande convite. E mandou ali trazer a copa que mandara fazer da cabeça
do rei que matara, padre da sua mulher Rosimunda; e bebeu per aquela copa e
fez a sua mulher que bebesse per ela, dizendo-lhe:
— Bebe com teu padre.
E quando ela isto soube, houve grande ódio a el-rei seu marido. E el-rei havia
um duque que dormia com uma donzela da rainha. E um dia não vendo el-rei,
dormiu com a rainha, cuidando que era a donzela. E a rainha fez-lho conhecer,
e disse-lhe:
— Sabe por certo que tu hás feito tal cousa, que ou tu matarás a el-rei Alburno,
ou tu morrerás das suas mãos. E eu quero que me tu vingues dele que matou
meu padre e fez copa da sua cabeça, e fez a mi que bebesse per ela.
E o duque lhe disse o não fazia, mas cataria outro que o fizesse. E então ela
guisou como se fizesse. E tirou as armas fora da câmara de el-rei e ligou a espada
que ele tinha à cabeceira em tal guisa que se não pudesse tirar. E depois que el-
rei jouve em seu leito, entrou aquele que o queria matar. E quando o sentiu el-
rei, saltou fora e quis tirar a espada e não pôde. E então começou el-rei de se
defender mui fortemente com uma cadeira que estava, mas pouco lhe valeu seu
ardimento nem sua fortaleza. Ca o outro andava mui bem armado e pôde mais
que el-rei e matou-o. E tomou tôdolos tesouros que achou em no paço e fugiu
com a rainha Rosimunda, pera uma cidade que há nome Ravena. E ali se pagou
a rainha de um mancebo que era prefeito de Ravena. E por casar com ela deu
peçonha àquele com quem fugira. E ela embebedou-o, sentiu que era peçonha e
fez que a Rosimunda que bebesse o que ficara à força da espada. E assim
morreram ambos. E assim parece que pouco prestou a fortaleza do corpo a el-
rei Alburno, nem ao outro que o matou, ca ambos morreram má morte.

(Fl. 77.)

NOTA: Nas Lendas Alemãs, de Jacob Grimm (Les veillées allemands, trad. de
L’Héretier de l’Ain), t. II, p. 45, vem esta tradição coligida de Paulo Diácono, e
de Gotfrid. Na poesia popular italiana ainda subsiste esta tradição germânica na
forma de romance, com o título Dona Lombarda, segundo a interpretação de
Nigra. Sabatini, falando deste canto, define a sua propagação na Itália do Norte:
«percorrendo dal norte al sud, Ia ritroviamo in Piemonte, nel Monferrato, nel
Veneto e a Ferrara; nella Toscana poi più non vive ma v’è ancora chi ricorda
averia udita. Si ritrova nelle Marche in Orvieto, a Viterbo, in Roma finalmente
non s’ode cantar che da pochi, e cosi proseguendo non si rinviene pid nelle terre
meridional e in Sicilia non se ne ha traccia veruna.» (Rivista di Letteratura
popolare, p. 14.) A obliteração da lenda à medida que se avança para o Sul indica a
sua origem germânica, e portanto a forma literária portuguesa proveio de uma
fonte erudita.
Nos Canti popolari piemontesi, publicados em 1888 pelo conde Nigra, vem um
extenso estudo das origens da tradição e determinação dos elementos históricos
conservados no canto popular Donna Lombarda, de que apresenta vinte e uma
versões. Pelos textos das crónicas de Paulo Diácono (De Gest. Longb., lib. III,
cap. XXIX), de Gregório de Tours (Hist. France, IV, 41) e de Jacob ab Aquis
(Monum. Hist. Patrum, t. III), reconhece-se que foi desta última fonte que
proveio o texto do século xiv do monge de Alcobaça. Na Crónica de Fra
Giacomo d’Acqui, o marido não se chama Elmichi como em Paulo Diácono,
mas Alboino, e o amante não é Longino mas o filho do Perfeito do Ravena. A
Lenda de Rosimunda, que na Itália deu elementos poéticos ao romance popular
da Donna Lombarda, também apareceu sincretizada com o caso de Rosimunda
de Inglaterra, a amante de Henrique II, o Plantageneta, que a tinha escondida
em um jardim em que fizera um Labirinto, e aonde a foi matar a rainha
Eleonora de Aquitânia, também com veneno. Como uma filha de Henrique 11 e
Eleonora de Aquitânia casara com o rei de Castela Afonso VIII, veio o
sincretismo do romance popular castelhano da coleção de D. Agustin Duran.
(Rom. General, n.º 1266)* E. Rolland coligiu um romance popular francês, que
Nigra considera provindo de versão italiana.
* No romance de D. Isabel de Liar, porque El-Rei tenia hijas dela, La Reina la
mando matar, este facto coincide com o que se conta de Alienor de Aquitânia,
mandando matar a amante de seu marido Henrique o, a bela Rosimunda, filha
de lord Chifford, que ele escondera em Wodstoch. No romance castelhano, fala
de D. Isabel de Liar: El Rey me pedio mi amor, / Yo no se lo guise dar, / Teniendo mas
a mi honra / Que no sus reinos mandare. / Cuando vió que no queria, / Mis padres
fuera a mandare. / Elles tan poco quizeran / Por la su honra guardare. / Desque todo
aquesto vira, / Por fuerza me fue a tomar / Troiu-me a esta fortaleza, / Do estoy en este
lugare; / Tres anos he estado en ella / Fuera de mi voluntade / Y si el Rey tiene en mi
hijos / Plugo a Dios y a su bondade / Porque me habeis de dar muerte, / Pues no merezco
mal? [Conc. do Romanc.] — Rom. Geral, III, 262.)
A VIÚVA E O ALCAIDE (A Matrona de
Éfeso)

Uma mulher tinha um seu marido, o qual ela dizia que amava sobre tôdalas
cousas do mundo.
Avinha per caso que lhe morreu este marido e foi soterrado em uma ermida,
pouco fora da vila, quase meia légua. Aquesta sua mulher tomou grã nojo e foi-
se a esta sepultura com grã chanto, e sobre esta sepultura dizia que queria viver
e morrer, e não fazia senão chorar; padre nem madre nem parente não a podiam
dali tirar.
Aconteceu que um ladrão, homem de grandes parentes, foi em aquele dia
enforcado a cerca daquela ermida, e foi dado em guarda ao alcaide por que o não
furtassem de noite seus parentes da forca, por que ele fosse exemplo aos outros
malfeitores; e o senhor disse ao alcaide que se lho furtassem per sua má guarda,
que enforcariam a ele. E estando este a aguardar, houve sede e mandou aos seus
que o guardassem bem, ca ele queria ir beber àquela ermida i cerca, onde parecia
um pouco de fogo. E em mentres que ele veio àquela ermida, os seus se
adormentaram, e foi furtado o enforcado, não sabendo o alcaide parte dele.
Quando o alcaide chegou à ermida deram-lhe água a beber. Depois que bebeu,
perguntou porque chorava aquela mulher. E foi-lhe dito porque lhe morreu ora
aqui um seu marido que ela amava mais que o seu coração. O alcaide lhe disse
que ela não tomasse nojo por aquela causa que ela não podia cobrar por
nenhuma rem do mundo, e ela disse que havia mui grã razão de chorar, ca ela
não podia já nunca achar homem que a tanto amasse como seu marido fazia; o
alcaide lhe disse que era homem que a amaria e serviria tanto e mais que ele e
que era tão rico e tão de prole como ele. E tanto lhe soube dizer com doces
palavras, que já não chorava, e namorou-se do alcaide, e recebeu-o por seu
marido. Depois tornou ele à forca e achou que lhe furtaram o enforcado, e seus
homens eram fugidos, e ele tornou logo àquela mulher e disse-lhe como lhe
furtaram o enforcado e que se temia que o senhor o faria enforcar. A dona, que
já dele era namorada muito, lhe disse:
— Amigo, não tomades nojo nem percadas per ende a terra, mas nós tomemos
este meu marido e ponhamo-lo na forca e eu vo-lo ajudarei a enforcar e a gente
cuidaria que é o que furtaram.
E assim o fizeram e viveram ambos casados em suas vidas.

(Fabulário Português do século XV, ms. da Bibl. de Viena, fl. 24. V. — Revista Lusit.,
vol. VIII, p. 127.)

NOTA: Loiseleur des Longchamps, no Ensaio sobre as Fábulas Indianas e sua
introdução na Europa (Ed. Paris, 1838) encontrou no Livro do Sindabad este
conto desfigurado, e dá-nos um quadro da sua transmissão desde o Oriente até
ao século XVII: acha provável que fosse uma lenda oriental, e segundo todos os
indícios muito viajou, se considerarmos derivado desta fonte o conto chinês que
o padre Du Holde traduziu em francês e publicou na Description historique de la
Chine, (vol. III, p. 40.) O grande sinólogo Abel de Remusat, também traduziu
do chinês outra lição deste conto. A Matrona de Éfeso indica a sua proveniência,
relacionando-o com essa criação dos Contos Milesianos, que o génio grego
tornou interessantes pela sua desenvoltura; Éfeso era como Mileto um centro de
literatura erótica, e também o seu novelista exímio, rivalizando Xenofon de
Éfeso com Aristides de Mileto, conhecido pelas novelas Abracome e Ântia. O
género literário era designado pelo nome dessas duas terras, Contos Efesíacos e
Contos Milesiacos. É admissível que a locução Ad Ephesios (que se considera
tomada da Epístola de São Paulo) pelo seu sentido malicioso nascera da atenção
que se dava a essas novelas voluptuosas. Tendo-se encontrado nas ruínas do
palácio de Nero um baixo-relevo representando a cena da Matrona de Éfeso,
Dacier considera-a como documento de anterioridade ao episódio do Satíricon
de Petrónio, que deu toda a celebridade à lenda. Dacier estudou
minuciosamente a dispersão universalista deste conto nas Memórias de
l’Academie des Inscriptions, t. XLI, considerando-o anterior a Petrónio, pois se
encontra no manuscrito de Perretti atribuído a Fedro. A narrativa de Petrónio
foi reproduzida no Policraticus sive de Nugis Curialóum, composto pelo bispo de
Chastres João de Saisbéri, falecido em 1183. Foi por esta via que se fez a maior
difusão do conto da Matrona de Éfeso na Idade Média, passando para a Historia
Septem Sapientium do monge de Haute Selve. Nas fábulas em hexâmetros
latinos, um anónimo, imitando Esopo incluiu o conto efesíaco, que se tornou
obra literária no século XIV por Eustáquio Deschamps, chegando a adquirir a
perfeição estética em La Fontaine, na forma dramática por Lamothe e na ópera
cómica por Fuselier. Ainda na literatura francesa recebeu toda a sua mordente
desenvoltura em um Fabliau (Coleç. de Méon, t. III, p. 462); Saint Evremont
revestindo-o da graça gaulesa, e Voltaire serviu-se dele como episódio no Zadig.
Na literatura italiana aparece incorporado nas Cento Novelle antiche, ou Libro di
Novelle e del bel parlar gentile, n.º LVI. (Ed. França, 1572) e na edição de 1895,
Milão, n.º LIX.
Na literatura portuguesa em que refletiram as principais obras da Idade Média,
estranhávamos não ter encontrado o conto da Matrona de Éfeso. O Livro de
Esopo — Romulus vulgaris ou ordinário, derivado das Fábulas de Fedro*, em que
se contam a Matrona de Éfeso (fábula XXXIV), trá-la traduzida para português,
aparecendo esse exemplar na Biblioteca de Viena. O Dr. Leite de Vasconcelos
copiando-o deu-lhe publicidade na Revista Lusitana, t. VIII, p. 127. Desse velho
texto português transcrevemos algumas fábulas.
Na Biblioteca de Viena têm aparecido outros monumentos portugueses da
Idade Média, tais como a Demanda do Santo Graal da Biblioteca de Dom João I,
e obras especiais da Época das Navegações, iniciadas pelos Portugueses, como O
Regimento do Astrolábio e do Quadrante, com cálculos desconhecidos de
Regiomontanus, e as Relações colhidas por Valentim Fernandes, de que deu
notícia o Dr. Smeller. Pelas observações de Joaquim Bensaúde, estes livros
foram da Biblioteca do erudito Peutinger, secretário do imperador Maximiliano
I, filho de D. Leonor, irmã de D. Afonso V e esposa do imperador Frederico
III. Por esta via para a Alemanha foram livros portugueses dessa época, depois
possuídos pelos Jesuítas em Augsburg e donde pela sua expulsão uma parte
dessas obras viera em 1808 para a Biblioteca de Viena. Por que caminhos andou
a Matrona do Éfeso, trajada em português! Ainda no século XVIII nos aparecem
duas abreviações deste conto na Hora de Recreio e no Divertimento de Estudiosos, p.
259.
* Vid. Journal des Savantes, 1884 e 1893, e Romania, vol. XV, pp. 229-231.
O JUDEU, O ESCUDEIRO E AS
PERDIZES

Um judeu queria passar pela terra de um rei com muitos haveres que consigo
levava; e rogou a el-rei que lhe desse um de sua casa que o acompanhasse seguro,
até que passasse seu reino. El-rei lhe deu um seu escudeiro, do qual se fiava
muito, e mandou-lhe que acompanhasse este judeu bem fielmente, até que
passasse em salvo fora de sua terra.
E quando este judeu foi em um mato, o escudeiro tirou fora de sua espada para o
matar e roubar-lhe seu haver, e o judeu lhe disse:
— Não me mates, porque se me matas, aquelas perdizes que estão em aquela
árvore te acusarão a teu senhor, e mandar-te-á matar.
O escudeiro escarneceu do que o judeu dizia e matou-o, e tomou-lhe todo o seu
haver que consigo levava.
E dali a pouco tempo presentaram a este rei perdizes, sendo a jantar. Este seu
escudeiro cortava ante ele, e como a Deus prouve começou este escudeiro de rir,
e não se podia ter nem fartar de rir. El-rei sendo à mesa não lhe disse nada, e
depois que jantou chamou-o de parte, e por que rira tão fortemente à mesa, que
lhe dissesse a verdade. O escudeiro não lho queria dizer, que se temia. El-rei
antre afagos e ameaças soube dele a verdade em como matara aquele judeu e lhe
tomara todo seu haver, e como o judeu, antes que o matasse, lhe dissera que as
perdizes que estavam na árvore o acusariam a ele, e que o mandaria matar. El-
rei tomou dele grã nojo porque amava muito o escudeiro.
— Por certo as perdizes te acusaram!
Depois houve conselho com seus conselheiros:
— O que merece este escudeiro?
E acudiram todos que morresse na forca.
E assim foi o escudeiro enforcado pelo mal que fizera.

(Fabulário Português, século XV, ms. da Bibl. de Viena, fl. 33. — Revista Lusit., vol.
8.°, p. 136.)
O LEÃO E O PASTOR

Andando um leão seu caminho, entrou-lhe uma espinha no pé; e este leão
andando mui tribulado com esta espinha pela mata, encontrou-se com um
pastor que guardava gado. O pastor com grão medo quando viu o leão e tomou
um carneiro e pô-lo de avante o leão; o leão não lho quis tomar, e mostrava-lhe
o pé onde tinha a espinha, e rogava ao pastor que lha tirasse. E o pastor tomou
uma sovela, e tirou-lhe a espinha e muito vurmo que já trazia. O leão lambia a
mão a este pastor.
Depois que o leão se sentiu são, sempre o acompanhou; e quando havia talante
de comer, andava a caça das alimárias à silva; e como havia seu mantimento,
tornava-se ao pastor. Em tal guisa lhe guardava seu gado, que lobo nenhum nem
outra animalha não lhe fazia dano; e com todo isto o leão espreveu mui bem no
seu coração o serviço que lhe o pastor fizera.
E de ende a poucos dias foi tomado aquele leão em um laço e foi posto em Roma
com outros leões. Dali a certo tempo o pastor fez um malefício; e mandou a
justiça que o metessem com os leões, que o matassem; e foi posto entre eles. O
leão a que ele tirara a espinha o conheceu e chegou-se a ele e andava o lambendo
e defendia-o dos outros leões, que lhe não fizessem mal. Vendo os senadores esta
maravilha, foram muitos espantados, e por isto perdoaram a morte ao pastor.

(Fabulário Português, século XV, ms. da Bibl. de Viena, fl. 19 V. — Revista Lusit.,
vol. 8.°, p. 121.)
O LOBO E O CORDEIRO

Conta-se que o lobo bebia uma vez em um ribeiro, da parte de cima, e o


cordeiro bebia em aquele mesmo ribeiro, da parte do fundo. Disse o lobo ao
cordeiro:
— Porque me luchas a água e danas este ribeiro?
E o cordeiro respondeu e disse humildosamente:
— Eu não te faço injúria, nem lucho a o rio, porque a água corre contra mim, e
a água é mui clara; e pero se a quisesse abolver, não poderia. Outra vez o lobo
brada forte e diz:
— Não te avonda que tu me fazes injúria e dano, e ainda me ameaças?
E o cordeiro outra vez humildosamente responde:
— Não te ameaço, mais eu me escuso com boa razão.
E o lobo respondeu outra vez:
— Ainda me ameaças? Já semelhável injúria me fizeste tu e teu padre, são já bem
seis meses.
E cordeiro disse:
— Ó ladrão, eu não hei tanto tempo!
E o lobo iroso disse:
— Ó mau rapaz, ainda ousas de falar?
E foi-se a ele e matou-o e comeu-o.

(Fabulário Português, ms. de Viena, fl. 2. — Rev. Lust., vol. 8.°, p. 104)
NOTA: Nos Cartas Familiares (p. 335) escreve D. Francisco Manuel de Melo:
«nunca vi amigo o Cordeiro e o Lobo, que não fosse mal para o cordeiro...»
Embora o tema desta fábula seja universal, pode ser sempre tratada com
novidade, conforme os sentidos que se lhe der moral ou historicamente.
Apresentamos uma versão literária, que visa o sucessor da tremenda guerra
atualmente: Que velha é esta fábula! / Um quadro já sabido / Do Lobo e do Cordeiro; /
Pode-se, (sem ser rábula) / Dar-lhe agora um sentido / Real e verdadeiro. / / Junto ao
regato ameno / Passa um Lobo esfaimado; / Cordeiro alvo, pequeno / Bebia descuidado. /
/ Sente o Lobo um abalo / Com a feliz surpresa: / — Que almoço! Que regalo, / Mesmo
aqui posta a mesa; / / Um manjar excelente, / Esplêndido banquete!... / Lança-lhe logo o
dente, / Crava-o no gasganete. / / Triste o Cordeiro inquire: / «Qual foi o mal que eu
fiz? / Porque me dás a morte?» / O Lobo, sem que se ire, / Tranquilamente diz; — Não
acuses a sorte; / / Estadistas de caco, / Proclamam com firmeza: — Há de ser sempre o
fraco / A legítima presa / Desse que for mais forte. — / Sigo o exemplo do Norte. / / E
enquanto crava os dentes / Nas carnes inocentes / E vai bebendo o sangue: / Diz a
vítima exangue; / / — Abonam esta manha / Do Lobo, quando topa / Desgarrado
Cordeiro, / Chanceleres prudentes / Do Império da Alemanha, / Aplicando-a na
Europa, / Perante o mundo inteiro. / / Há Nações que são lobos, / Do sangue nos
arrobos; / Assim Bismarck afirma: / Force prime le Droit, / Com franqueza, quem
há / Que um tal princípio negue? / Isto mesmo o confirma / Bethemann Holloweg. / /Lá
nas pristinas eras, / A Fábula consigna / Aos homens a lição; / Mas hoje, as próprias
feras / Da insânia maligna / Dá exemplo o Teutão.
EXEMPLO DA CABEÇA E OS
MEMBROS

«E isto podemos ver por exemplo nas cousas naturais, assim como é a cabeça, a
qual, posto que seja a mais alta parte do corpo, e a mais principal, não pode por
ende estar sem o ofício e serviço dos outros membros, e per essa mesma guisa os
outros nossos membros sem a sua cabeça se não podem manter, nem governar;
assim que, nem a cabeça aos membros, nem os membros à cabeça, poderão dizer
— Vai-te, que te não havemos mester, nem Eu poderei viver sem ti — porque será
mentira, mas que uma não pode escusar o outro, como é verdade: e assim de vós
outros, que vos deve nembrar, como vos destes e oferecestes e consagrastes a
Deus per vossos votos e vossa própria vontade; cá a mim não me prometestes
nenhuma cousa, nem eu vos não demando, nem requeiro al senão, o que deveis
de pagar a Deus, que o entregueis e deis a mim que sou seu procurador e
mordomo, etc.»

(Carta II de Frei João Álvares, abade do Paço de Sousa, 1467. — Ap. J. P. Ribeiro,
Diss. Cron., t. I, p. 368, ed. de 1860.)

NOTA: É a 32.ª Fábula de Lockman; acha-se nos Avadanas, contos chineses na


tradução de Stanislao Julian; no Sintipas, XXXV, e na História Romana de Tito
Lívio, lib. VI, cap. 32. Coligiu-a Planudes, CCVII, e Johanes Scriberos. De
Nugis Curialium, lib. VI, cap. 14; e também metrificada por Eustáquio
Deschamps, Poesias morales, p. 193. Estes paradigmas nos definem as vias de
transmigração das Tradições na humanidade.
Vid. adiante a fábula de Esopo, versão de Manuel Mendes, Os Membros e o Corpo.
A BILHA DE AZEITE

Paio Vaz:
Pois Deus quer que pague e peite
Tão daninha pegureira,
Em pago desta canseira
Toma este pote de azeite,
E vai-o vender à feira;
E quiçais, medrarás tu,
E que eu contigo não posso.

Mofina Mendes:
Vou-me à feira de Trancoso
Logo, nome de Jesu!
E farei dinheiro grosso;
Do que este azeite render
Comprarei ovos de pata,
Que é a cousa mais barata,
Que eu de lá posso trazer.
E estes ovos chocarão;
Cada ovo dará um pato,
E cada pato um tostão,
Que passará de um milhão
E meio, a vender barato.
Casarei rica e honrada,
Por este ovo de pata,
E o dia que for casada
Sairei ataviada
Com um brial de escarlata;
E diante o desposado
Que me estará namorando,
Virei de dentro bailando,
Assi desta arte bailando,
Esta cantiga cantando.

(Estas cousas diz Mofina Mendes com o pote de azeite à cabeça, e andando enlevada
no bailo, cai-lhe, e diz:)

Paio Vaz:
Agora posso eu dizer
E jurar e apostar
Que és Mofina toda.

Pessival:
E se ela baila na boda
Que está ainda por sonhar,
E os patos por nascer,
E o azeite por vender,
E o noivo por achar,
E a Mofina a bailar;
Que menos podia ser?

(Vai-se Mofina Mendes cantando:)


Por mais que a dita me enjeite
Pastores, não me deis guerra;
Que todo o humano deleite
Como o meu pote de azeite
Há de dar consigo em terra

(Gil Vicente, Obras, t. I, p. 115. Ed. de Hamb.)

NOTA: Este conto é um dos mais persistentes na tradição universal. Max


Müller tomou-o por tema comparativo para o seu estudo Sobre a Migração das
Fábulas, conferência feita na Royal Institution, em 3 de junho de 1870, e
publicado em julho na Contemporary Review, começando pela fábula de La
Fontaine La laitière et le pot au lait (fáb. X, do livro VII), e buscando-lhe os
paradigmas no Pantchatantra, liv. V, fábula IX: O Brâmane e o Pote de Farinha.
Aproveitando dos resultados críticos de Benfey, indicaremos a área de
propagação desta fábula: Hitopadessa, liv. IV, p. 182; Calila e Dimma, cap. X, p.
269; Auwâr-i Souhaiti, cap. VI, p. 409; Contes et fables indiennes, cap. VI, t. III,
p. 50; Del Governo de’ regni, exemplo V, fl. 50, v.; Directorium humanae vitae, cap.
VII; Exemplario contra los engaños, cap. VII; Filosofie morali, trat. IV, fol. 83; Alter
Esopus, de Baldo, XVI, ed. Du Méril; De viro et vase olei. Du Méril cita também
o Dialogus creaturarum, a Sylva Sermonum, e Rabelais, Gargântua, liv. I, cap. 33,
como veículos desta fábula. Acha-se também no Eyar-i Danisch; nas Mil e Uma
Noites, CLXXVI; no Conde de Lucanor, de D. João Manuel, n.º XXIX, fl. 97;
nos Joci ac Sales, de Ottomarus Luscinus; nas Facecie, de Domenichi, liv. V; nos
Contes et joyeux devis, n.º XXI, de Bonaventure Des Periers; nos Sermones
conviviales, de Gast; nos Apologi Phaedrii, de Reynerius, p. 1, fáb. XXV; no
Democritus ridens, p. 150; nas Favole e Novelle, de Pignotti, fab. Lôpe de Rueda
representava em 1560 o entremês Las Azitunas, sobre este tema. Gubernatis, na
Mythologie zoologique, t. I, p. 136, cita uma versão do Tuti-Namé, II, 26, que
interpreta no sentido mítico, em que o céu e a Lua são representados como um
pote ou taça. No XXI conto mongólico de Siddhi-Kür, há uma variante deste
apólogo (resumido por Gubematis, op. cit., p. 146) em que o achado é uma pele
de carneiro, de que o pai de família pretende fazer pano, e com ele comprar um
burro, e com o burro irem pedir esmola com os filhos. Esta versão explica-nos a
variante apresentada por Trancoso (vid. p. 110) a qual encontrámos referida em
uma locução popular do Porto, Minha mãe, calçotes! Sobre esta fábula vid.
Loiseleur des Longchamps, Essai sur les fables indiennes, p. 55. Há uma redação
deste conto sob o título. A Quarta de Leite, na Hora de Recreio, do padre J.
Batista de Castro, p. 29. Nos Kinder und Hausmärchen, n.º 164, dos irmãos
Grimm.
O nome de Mofina Mendes, heroína do conto da Bilha de Azeite, é de
proveniência popular; Jorge Ferreira de Vasconcelos, na Aulegrafia refere-se a
esta tradição metrificada por Gil Vicente: «fermosura com vanglória dana mais
do que aproveita, e as mais das vezes lhe corre per davante Mofina Mendes e a
boa diligência acaba o que merecimento não alcança.» (Fl. 55.) Abreu no seu
artigo citado atribui o título de Auto tendo um personagem secundário ao seu
tipo muito popular (p. 4.) Na linguagem popular o nome de mofina emprega-se
como sorte ou destino: a minha mofina. Jorge Ferreira alude a um outro conto
popular, de um diabo cuja atividade era tal que já não havia que lhe dar a fazer, a
não ser uma corda de areia: «Quer sempre ser a hidra e fazer cordas de areia.»
(Eufrosina, p. 300.) Na tradição popular ainda se repete esta oração: Se o Diabo
viesse / Para me atentar, / As areias do mar / Lhe mandaria contar.
Walter Scott traz uma lenda escocesa semelhante.
O conto de Gil Vicente revela o conhecimento de duas fontes que ele
aproximou, a do Calila e Dimna, vertida em latim por João de Cápua em 1270
sob o título de Directorium Vitae humanae, e o livro do Conde de Lucanor, de D.
João Manuel, que se guardava entre os livros do uso do rei D. Duarte. O chasco
contra as previsões do nascituro, de Calila e Dimna, trá-lo Gil Vicente ao seu
Auto dos Mistérios da Virgem.
Se tens prenhe tua mulher / e per ti o cometeste, / queria de ti entender / em que hora há de
nacer? / em que feição há de ter / esse filho que fizeste. / Não no sabes, quanto mais / cometerdes
falsa guerra, / presumindo que alcança / os secretos divinais, / que estão debaixo da terra.
Eis a versão de Calila e Dimna: «Dizem que havia em uma terra um religioso, e
tinha sua mulher, que estivera muito tempo estéril, mas por fim veio a ficar
grávida; pelo que o religioso mostrou-se muito contente e disse à mulher:
— Alegra-te, que fio em Deus, que parirás um filho varão, perfeito de seus
membros, com que nos regozijaremos; e eu quero ir procurar uma ama que o
crie, e consultar os sábios para que me digam o nome que tenho de pôr-lhe.
Diz-se a mulher:
— Quem te faz falar no de que não sabes nada do que há de ou não há de ser?
Cala-te, e contenta-te com o que Deus te der; pois que o homem entendido não
asma as cousas não certas, nem julga as vindouras; que o querer e o asmar isso só
Deus, e quem julga as cousas antes de acontecer, dá-se o que aconteceu ao
religioso, que derramou a manteiga e o mel sobre a cabeça.
Diz o religioso: — Como foi isso? — A mulher contou:
— Dizem que um religioso, recebendo cada dia esmola da casa de um mercador
rico, pão, manteiga, mel e outras cousas, ele comia o pão e ao mais guardava,
pondo o mel e a manteiga em uma compoteira, até que a encheu e a tinha
pendente à cabeceira da cama. Aconteceu que encarecendo o mel e a manteiga, o
religioso pôs-se a falar consigo assentado na cama, e disse: — Venderei quanto
está nesta compoteira por certos maravedis, e com eles comprarei dez cabras,
que prenhas ao fim de cinco meses parirão; e lançando desta maneira as suas
contas, achou que ao fim de cinco anos montariam a quatrocentas cabras. E
concluiu: Vendê-las-ei todas, e com o preço delas comprarei cem vacas, por
quatro cabeças uma vaca e arranjarei sementes e semearei com os bois, e
aproveitar-me-ei dos bezerros e das fêmeas e do leite, e das messes terei grande
rendimento, e construirei muitas nobres casas, e comprarei servos e servas, e
feito isto casarei com uma mulher que seja muito rica e fecunda, e de alto solar, e
emprenhará de um filho varão, e nascerá perfeito de seus membros; e criá-lo-ei
como um filho de rei, e castigá-lo-ei com esta vara se não quiser ser homem
obediente... — E dizendo isto, brandiu a vara que tinha na mão e bateu na
compoteira que estava pendurada por cima dele e derramou-se todo o mel e a
manteiga sobre a cabeça. E tu, pobre homem, não queiras desejar e asmar o que
não sabes e que tem de vir a ser.»
Gil Vicente seguiu o pensamento filosófico, a tese moral do Calila e Dimna, mas
deu ao quadro pitoresco essa figura da Mofina Mendes, verdadeira entidade
popular portuguesa, suscitado pela figura de Dona Truana, do conto de D. João
Manuel, no Conde de Lucanor: «una mujer, la qual era assaz mas pobre que rica,
un dia iba al mercado, et Ilevaba una olla (bilha) de miel en la cabeza, et yendo
per el camino, comenzo a cuidar que venderia aquella olla de miel et que
compraria partida de huevos, et que de aquellos nascerian gallinas et las
venderia, et de aquellos dineros compraria ovejas, et asi fue comprando de las
ganancias que faria fasta que se falló mas rica que ninguna de sus vizinas, et con
aquella riqueza, que ella cuidaba que habia, asmó como casaria e sus fijos a fijas...
Et pensando en esto comenzó a reir con placer que habia de la su buena
andanza, et en reyendo dió con la mano en la su cabeça et en su frente, et
entonce cayó la olla de la miel en tierra e quebrose...» (Ed. de 1575, fl. 57.)
Como Dona Truana, também a Mofina Mendes vai à feira de Trancoso; a
mudança do mel para azeite obedeceu às impressões do conto de Calila e Dimna
quanto ao artigo manteiga, adotando a conversão do preço do azeite para
comprar aves, como no Conde de Lucanor, terminando cenicamente, e um
personagem do Auto é que comenta: E s’ela bailava na boda, / qu’está inda por
sonhar, / e os patos por nascer / e o azeite por vender, / e o noivo por achar, / e a Mofina
a bailar, / que menos poder ser?
O anexim português Bilha de Azeite por Bilha de Leite, significa uma troca de
favores desiguais; atuaria esta tradição no trabalho artístico de Gil Vicente. Na
Revista do Conservatório de Lisboa, por ocasião do Centenário da Fundação do
Teatro Português, publica o professor Vasconcelos Abreu uma monografia
sobre este conto dramatizado por Gil Vicente: Os Apólogos e Fábulas da Índia:
Influência Indireta no Auto de Mofina Mendes de Gil Vicente (pp. 11 a 22.)
Em 1903, William Axen publicou um folheto Gil Vicente and La Fontaine: A
portuguese parallel of La Laitière et le Pot au lait, transcrevendo em Apêndice a
cena de Mofina Mendes. Mostra como nos contos populares da Índia ainda se
repete esta aventura já em nome de um idiota Lull em vez do brâmane
Somasarman. (Indian Nights Entertainement, por Swynriton, 1892.) Aponta a
opinião de Moland, na edição das Fábulas de La Fontaine, que considera fonte
primitiva europeia o exemplo de Jacques de Vitry, opinião reforçada por
Thomas Fr. Crane na edição dos Exemplos de 1890 feito pela Folklore Society.
Acrescenta a notícia do conto alemão Sehimpf und Ernst de Johannes Pauli, de
1522 (Ed. Leipzig. 1877, p. 161.) Termina mostrando que o estudo comparativo
do conto de Brahman, que chegou até Gil Vicente (1534) merece ser estudado ao
celebrar-se o quarto Centenário da Fundação do Teatro Português por «um
génio de sentimento religioso ou espírito liberal que estava acima da época em
que viveu; e ao mesmo tempo para seguir a cadeia das Tradições do Conto
sânscrito traduzido para o pélvi, deste para árabe, donde a sua difusão pela
Europa em versão grega, latina, castelhana, hebraica, italiana, turca, indostânica,
portuguesa, alemã, inglesa, etc.
Transcrevemos aqui uma versão popular transmontana (Águas Frias, do
Monforte) sobre este tema universal: «Um caçador foi à caça e viu uma lebre a
dormir; exclamou:
— Agora é que eu te apanho; e se te agarro vendo-te, e compro um carneiro
pequenino; e crio-o, e quando ele for grande ponho-o em dinheiro; e depois
compro um burrico, e mais crescido levara à feira e com o que render arranjo
casa e caso-me; e hei de ter um filho, e hei de lhe pôr o nome de Diogo; e depois
hei de chamar por ele: Diogo! ó Diogo!
E quando assim gritava, acordou a lebre, que botara logo a fugir, que o caçador
só teve tempo de dizer:
— Lá se me vai a minha fortuna.

(Revista do Conservatório de Lisboa, 1902. Junho, n.º 2, p. 22.)


A CHUVA DE MAIO

Dia de maio choveu,


A quantos a água alcançou
O miolo revolveu!
Houve um só que se salvou,
Que ao coberto se acolheu.
Dera vista as semeadas,
As que tinha mais vizinhas,
Viu armar as travoadas,
Acolhe-se às bem vedadas
Das suas baixas casinhas.

Ao outro dia um lhe dava


Paparotes no nariz;
Vinha outro e o escornava,
Aí também era o juiz,
Que de riso se finava.
Bradava ele: Homens! estai.
Vão-lhe co’ dedo ao olho.
Disse então: — E assi lhe vai?
Não creia logo em meu pai,
Se me desta água não molho. —
Apaixonado qual vinha,
Achou um charco que farte
(O conselho havido o tinha)
Molhar-se de toda a parte,
Tomando como mezinha.
Quanto viram lá correram,
Um que salta, outro que trota,
Quantas graças Ih’i fizeram!
Logo todos se entenderam,
Ei-los vão numa chacota.

(Sá de Miranda, p. 232, Ed. 1804.)

NOTA: Na linguagem usual ainda persiste a locução das Águas de Maio, mas
perdida a reminiscência do conto popular metrificado por Sá da Miranda com
tanta beleza de ingenuidade. Aparece-nos em um Noellaire trovadoresco de
Peire Cardinal, que frequentou a corte de Aragão, no século XIII.
Transcrevemos esse conto em sua linguagem provençal:
Yssi comensa la faula dela pluya: Una ciutat, no say quais / Hon cazee una pluia
tais, / Que tuy li home de la ciutat / Que toque furo forcenat. / Tuy desse n’ero
mais, sois os. / Et aquel escapet, ses pus / Que era dins una mayso, / Que dormia
quant aysso fo. / E vet, anant at dormi[ / Del plueya diquit, / E foras entre las
gens / Fero d’ensenamens / Aruquot, l’antre fosseis, / Utre stopit verens / E
trays peras contre estalas, / L’antre esquisset las gouelas, / Us ferie, el outrem
peys, / E l’antre enyet esser Reys / Et tene se riquement flanex. / E l’antre s’asset
per los bancx, / L’un menesee, l’autre mallisx, / L’autre piore et l’autre riz: /
L’autre parlee et no sanp que; / L’autre le mateys de ae. / Aguei que avia so seu, /
Maravilha-se molt formen, / Que vee que he destatz sou, / E garda ad aval el
amon, / E grans maravilha a de ler, / Mas mot l’han ilh do lui mayor; / Qu’el
veeon estar saviansen / Cuio que ai perdut so sen. / Car so qu’ell far no lhe veso
fayre / Que a casca de lores veyaire / Que ill son savi e assenatz. / Mas lui no tene
por dessenat / fer en gansa, que em col; / Nós por mandar que no degol; / L’us
l’empenh, e l’antre le bota, / El cuya isshir de la rota, / L’us l’esquiusa, l’autre li
tray, / E rien eolos, e leva, e chay, / Cascu’l leva a gran gabantz / El fuy a sa
mayzo deffantz, / Fangoz e battestz e mieg mort / E se gaug can lor for estort, /
Sort falle en aquest meu / Semblanz ais homes que i son. / A quest seigles es la
ciutat / Que es tal ples do forsennatz; / Que el marger sen qu’om pot aver / Se es
amar Dieu et sa mer, / E gardar sos mandemens. / Mas assas es perdutz agueis
sens. / La pluyã say es casuda. / Una cobeytat qu’es vengada / Us erguelh et una
maleza / Que toca la gent a perlueza. / E si Dieu n’a alen guardatz / L’autrs ils
tens per Pescessnat / E menon lo lemp en vill, / Car no es doi seu que sen ill /
Qu’el sen de Dieu lor par folis, / E l’ami era de Dieu en que via / Coneys que
dessenat, son tug / Con lo sen de Dieu an perdut, / E els ou lui per dessenat /
Car le son de Dieu en layssat. (Ap. Raynossard, Choix do Poésies des Troubadours,
t. IV, p. 366.)
No século XV encontramos uma referência à Chuva de Maio, em Duarte da
Gama, um dos poetas palacianos, do Cancioneiro Geral de Resende: Pois se eu em
tais desordens / Só quiser ser ordenado, / hei de ser apedrejado / Sem me valerem as
ordens; / Molhar-me-ei, em que me pez. / Pelo tempo e sazão, / Pois é natural razão.
(Canc. Geral. t. I, p. 514).
Com o mesmo sentido moral, D. Francisco Manuel de Melo emprega a
referência aos contos, na Sanfonha de Euterpe, sob a autoridade de Sá de
Miranda: Molhar nas Águas de Maio / O grande Sá deixou deito, / Que era
prudência tão vil / Qual fugir do sol no estio. (Op. cit., p. 147.) Molhar das Águas de
Maio / Revolver entre a Chacota, / Voltar nela como raio, / Não tenho por bom ensaio
/ Para quem mudar a nota. (Ibid., p. 66.)
O ERMITÃO E O LADRÃO

Em um ermo morava um virtuoso ermitão, ao qual se chegou um salteador de


caminhos, dizendo-lhe:
— Vós rogais a Deus por todos; rogai-lhe que me tire deste mau ofício que
trago, senão hei-vos de matar.
E indo dali tornava a fazer o mesmo que dantes; e outra vez tornava a vir ao
padre, dizendo:
— Vós não quereis rogar a Deus por mi, pois hei-vos de matar.
Tantas vezes fez isto, que uma vez veio determinando para matar o padre, o
qual lhe pediu e lhe disse:
— Já que me quereis matar, tiremos primeiro ambos uma lájea que tenho sobre
minha sepultura e, morto lançar-me-eis dentro sem muito trabalho.
Ele o aceitou, e assim foram ambos erguer a lájea; porém como o salteador
trabalhava quanto podia por erguê-la, assim trabalhava o padre ermitão por que
não se erguesse, e desta maneira ambos não faziam mudança na lájea. Atentou o
salteador no caso, e disse assim:
— E se vós não ajudais como posso eu só erguê-la? Que ainda que ergo da
minha parte, vós fazeis da vossa com que não aproveite o que faço.
Antes que passasse adiante, disse o padre ermitão:
— Vês aí, irmão, o que te eu digo.. Que me presta a mi rogar a Deus por ti,
pedindo-lhe que te tire do pecado e mau ofício que trazes, se tu não te queres
tirar e estás muito de propósito perseverando nele?

(Histórias de Proveito e Exemplo, de Gonçalo Fernandes Trancoso. Parte I, n.º 1)


DAQUELAS SETE AO DIA

Uma virtuosa dona de boa vida tinha uma filha de tão má inclinação que não
queria tomar os nobres conselhos da mãe, nem aprendia seus louvados costumes;
mas em tudo seguia seu próprio parecer sem obediência de pessoa alguma, nem
correição de vizinha nem parenta, porque era preguiçosa, gulosa, andeja, muito
faladeira e de outras feias manhas. A mãe, como mãe, desejosa de seu bem e de
lhe dar marido, determinou dar a um mancebo tudo o que a pobre velha tinha
por que casasse com a filha. E concertada com ele no dote, quis o mancebo que
não dessem conta à moça até que ele a fosse ver o dia seguinte, seguindo o
conselho do rifão que diz: Antes que cases, olha o que fazes. Foi a velha
contente e disse que assim faria; porém, por que a filha estivesse sobreaviso e
não caísse em alguma fraqueza a tal tempo, crendo que para casar tomaria seu
conselho, lhe descobriu aquela noite tudo o que se passava, dizendo-lhe:
— Filha, toda tua vida seguiste tua opinião, sem querer entender meus
conselhos; agora te rogo que este dia me ouças e aceites o que te disser.
E com discretas palavras lhe amoestou que o dia seguinte não se erguesse de seu
lugar; que sempre estivesse calada fiando, ou ao menos com a roca na cinta,
porque pois o futuro marido a queria ver a achasse quieta e ocupada. E para
mais ajuda fiou a velha aquele serão quase até meia-noite, e pela manhã pôs-se à
filha uma grande roca na cinta, e deixou-lhe as maçarocas que fora no regaço;
fê-la assentar, tal que à vista dos olhos a quem a não conhecera parecia uma
diligente fiandeira. Porém como aquele não era seu costume, tanto que a mãe
teceu à porta, (porque havia de esperar de ali o mancebo) a moça deixou a roca, e
com diligência fez lume, e nele uma honesta tigelada de papas, e porque se
esfriassem prestes as lançou em cinco ou seis escudelas, que logo chegou de
redor de si, e soprando e fervendo estava a pobre moça apressada por acabar sua
obra antes de ser sentida. A este tempo chegou o mancebo à porta, e ainda que o
viu a velha e ele a ela, pelo que tinham concertado não falaram, mas ele subiu de
manso por ver em que se ocupava a que ele queria receber por mulher. E a velha
o deixou ir, tendo pera si acharia a filha ao menos com a roca na cinta como a
deixara; mas ainda que ele subiu dez ou doze degraus da escada, ela de ocupada
não o sentiu, nem, posto que meteu a cabeça em casa o não viu; mas ela foi dele
muito bem vista, e notando o ofício em que estava, disse entre si:
— Nunca nós faremos boa matalotagem; porque quem tanto e com tal pressa
madruga a comer, pouca prol me pode fazer. Não é esta a que me arma.
E sem falar se desceu; e a velha vendo-o vir tão prestes, lhe perguntou:
— Que vos parece, filho? Que cuidado de moça!
E querendo-lha gabar, porque imaginava que estaria fiando, e mais com a roca
cheia, lhe disse:
— Vistes a pressa que tinha, e a habilidade das suas mãos, e o que já tinha
despachado; pois eu vos prometo que daquelas enche e vaza sete no dia.
Querendo a velha dizer as rocadas da roca; mas o mancebo sem descobrir o que
lhe vira fazer, respondeu:
— Senhora, não me arma; que se ela é tal, não na posso sustentar, e assim estesse
em vossa casa, e se as vazar e encher tantas vezes, sejam embora de vossa farinha.
E foi-se.

(Trancoso, Contos e Histórias de Proveito e Exemplo, p. 1, conto 2.°)

NOTA: Este conto aparece ainda na tradição popular do Minho; nos Contos
Populares Portugueses, n.º LIII, traz o título Os Simplórios:
«A mãe avisou a filha para falar a um namorado, e disse-lhe:
— Olha que aí vem um rapaz para te ver, e tu põe uma rocada grande na roca e
põe-te a fiar para ele se agradar de ti; e se ele te disser: «Ó que rica fiandeira» tu
dize: «Eu destas despejo sete ao dia.»
A rapariguinha, assim que a mãe saiu, pousou a roca; foi à adega, trouxe uma
infusa de vinho de meia canada para comer umas sopas; fê-las numa tigela
grande, e nisto chegou o rapaz, disse:
— Adeus, menina.
Disse ela: — Olha, que eu destas / Despejo sete ao dia.
Disse ele: — Será da sua cuba / Que não da minha.
E foi-se embora.»
Evidentemente Trancoso deu forma literária a esta anedota popular.
A DONZELA RECATADA

Em uma populosa vila havia uma dona honrada que tinha uma filha muito
virtuosa, sisuda, recolhida, e amiga de seu trabalho, que per ele alcançava com
que honestamente se mantinham ambas das portas adentro, mui limpamente
tratadas. Fazendo-se uma boda de uma sua parenta, assim se passaram mais de
quatro meses em recados até que a noiva lhe veio a casa rogar que fosse um dia à
sua o que a moça aceitou por comprazer com a parente; e chegando a noite, por
ser menos vista, com um irmão mancebo que àquele tempo viera de fora da
terra, saiu de sua casa para ir a casa da parenta. Na rua do próprio caminho por
onde haviam de ir, estava uma escola de dança, a que o mancebo era inclinado, e
a estas horas dançavam, e ao passar pela porta da escola fez uma pequena
detença; mas a donzela, que não tinha sua imaginação senão no caminho que
levava, andava pela rua tão baixo o rosto que o não erguia. Foi vista por um
nobre mancebo, que a seguiu, a pôs-se-lhe diante fingindo ser seu escudeiro,
encaminhou-a pera sua casa; e ela, quando ergueu o rosto, crendo ser seu irmão
lhe disse:
— Tão longe é isto!
Ele ainda que entendeu, não lhe respondeu nada; e dissimulado se meteu em sua
própria casa, dizendo:
— Aqui é.
E como a teve bem dentro, fez cerrar a porta, e mostrou-se-lhe, e descobriu-se a
ela quem era. Grandes promessas, que lhe fazia, e ricas joias que lhe dava, com
palavras amorosas e meigas, nesta casta e honesta donzela não fizeram abalo. Ele
que a viu tão determinada, a levou a um jardim, lugar onde ainda que bradasse
não pudesse ser ouvida; e lhe ia tirando das roupas que levava vestidas; por lhe
ganhar a vontade, largou-a de si um pequeno espaço, ficando-lhe porém o cabo
do trançado na mão. A donzela, tanto que se viu fora de suas mãos, tirou com
diligência o garavim da cabeça, e metendo-o no tronco de uma árvore, se foi até
chegar ao pé do muro do jardim, e subindo na parede, sem temer a queda, se
deixou ir abaixo em camisa e em cabelo. E assim se achou na rua a tempo que já
havia muito que era achada de menos do irmão, e dele e da mãe buscada por
todas as partes. E quando sua mãe a viu, e ela viu sua mãe, parecia que ambas
ressuscitavam, e logo quietamente coberta com a capa e sombreiro do irmão se
foram para casa. O fidalgo, tanto que lhe pareceu que tardava, ainda que tinha o
trançado na mão, porque não lhe respondia chamando-a, foi para ela cuidando
que lançava mão de sua pessoa; achou-se abraçado com o tronco da árvore onde
o garavim estava posto, e sentindo e engano, e como não sabia quem era, nem
cuja filha, se recolheu em sua casa triste, então lhe estava mais afeiçoado que
dantes. E com desejo de a ver e saber quem era, e havê-la por mulher, caiu em
cama doente de imaginação, e tanto esteve assim que se secava e houvera de
morrer, senão dera conta do caso a uma discreta dona que o criara, a qual
entendido tudo o que se passara, tomou o vestido, que foi tirado da moça, e foi-
se pela vila dizendo que o achara, e se alguma pessoa o conhecesse e mostrasse
como era seu lho daria. E isto fazia por saber quem era aquela donzela: o que a
boa dona fez com tanta sagacidade, que por inculcas veio à própria casa donde o
fato era. A dona foi dizer ao fidalgo a casa e a pessoa que era; e ele, visto e ouvido
o que dizia daquela que já tinha feito senhora de si na vontade, folgou muito e
aguardou tempo que soube que estava vestida com o próprio vestido, e então
para melhor se afirmar se era ela, se subiu pela escada acima, e de súbito deu com
a mãe, e com ela e seu irmão, que estavam descuidados de tal vinda. E o fidalgo
tanto que a viu logo conheceu ser aquela por quem passava os trabalhos que
passou desde que ficou sem ela no jardim, e com muita cortesia lhe disse:
— Senhora, desde agora vos fico que nunca haverei outra mulher senão a vós.
A donzela, vergonhosa de ouvir, e a este tempo se desbarretou e queria pedir-
lho em geolhos, se lhe humilhou muito e tomando-o polas mãos o fez erguer.
Depois se correram os banhos, e com muito contentamento de ambos viveram
sempre; e por esta donzela se disse o rifão:
A moça virtuosa
Deus a esposa.

(Trancoso, Contos e Histórias, parte I, conto 4.°)


O ÓDIO ENDURECIDO

Viviam em um lugar pequeno dous homens, que se queriam mal, e os vizinhos e


seu prelado haviam feito o que neles era per os fazer amigos; os quais, ainda que
algum tempo se falavam, como o ódio era de coração, não durava neles a
amizade, feita por cumprir com quem lho rogava, ou lho mandava, que logo
tornavam como de primeiro. Durou neles este ódio tanto, que vindo por ali el-
rei, lhe deram conta disto alguns homens da terra. E el-rei mandou chamar a
ambos, e ante si, por eles e por outros inquiriu o melhor que pôde qual seria a
causa; porque, sabida, atalhando-lhe os princípios, se faria a paz. E achou que
era pura inveja que cada um tinha dos bens e fazenda do outro, porque nisto
eram quase iguais e abastadamente ricos. Porém, cada um desejava ver-se
avantajado do outro, inda que fosse à custa de por isso o ver destruído e perdido
de todo; e o mal que um queria ao outro, esse mesmo lhe queria o avaro a ele.
El-rei desejoso de os contentar a ambos fartando-os de fazenda, por que
perdessem a inveja, lhes disse:
— Sede amigos; e eu quero que seja à minha custa, e me apraz de vos dar tudo o
que souberdes pedir de meu reino, que eu tenha, com esta condição, que um de
vós há de pedir à sua vontade tudo que ele quiser, com que fique contente, para
não haver inveja do outro, e eu desde agora lho dou; e ao outro que não pedir,
hei de dar em dobro sem míngua alguma.
Eles, à primeira face, parecendo-lhes bem o aceitaram e agradeceram, crendo
cada um que ficaria avantajado do outro; porém quando caíram na conta, que,
ainda que um pedisse muito, haviam de dar dobrado ao outro, nenhum queria
pedir por não ficar menos que seu vizinho. El-rei entendendo-os, mandou
lançar sortes, e ao que coubesse pedir, pedisse por força, dizendo-lhe:
— Tu que queres mais do que souberes pedir, pede à tua vontade, farta-te, e
depois deixa-me dar a estoutro dous tantos, que tu nada perdes nisso.
Nenhum deles tinha paciência, e per derradeiro lançaram sortes, e aquele a que
coube pedir, ficou per isso mui triste, e depois de bem imaginar no que pediria,
veio ledo a el-rei e disse-lhe:
— Senhor, já sei o que hei de pedir, e se mo deres cumprindo tua palavra, ficarei
contente e amigo de meu vizinho, dando-lhe a ele o dobro.
E el-rei lho prometeu sem falta; ele se pôs em geolhos, e lhe beijou a mão pela
mercê e logo lho pediu:
— Dê-me Vossa Alteza um destes meus olhos aqui posto na minha mão. El-rei
maravilhado do que pedia, lhe disse:
— Jesus! e porquê?
E o homem tornou a dizer:
— Porque, conforme a promessa de Vossa Alteza, se me tirarem um olho a
mim, hão-lhe de tirar dois olhos a ele, e assim vendo-lhe eu este dano me
contento.
Foi muito de espantar a crueldade deste e ver o endurecido ódio que ambos se
tinham.

(Trancoso, Contos, part. I, conto IX.)



VARIANTE
Em certa cidade havia dois homens, um era muito avarento e outro muito
invejoso; sabendo-o o senhor daquela terra, os mandou chamar e lhes disse:
«Determino de vos fazer mercês, e hão de ser desta sorte. Peça qualquer de vós
primeiro, e veja o que pede, e como, porque ao segundo hei de dar dobrado do
que ao primeiro.» Ora notai; o avarento como cobiçoso queria pedir primeiro
para levar alguma cousa, ainda que não fosse tanto; mas o invejoso para que não
levasse nada, inventou uma cousa diabólica, pediu primeiro, e foi que lhe
tirassem um olho, para que ao avarento lhe tirassem dois; conforme ao concerto
que haviam feito, assim foi, e ficaram ambos castigados.

(Saraiva de Sousa, Báculo Pastoral, t. I, p. 231.)



NOTA: Este conto, n.º IX. da parte I dos Contos Proveitosos, de Trancoso, acha-
se nas Fábulas de Aviano, n.º 42; no poema francês Les Enseignements Trebor; no
fabliau Du Convoiteux et de l’Envieux, par Jean de Boves (Recueil de Fabliaux, p.
107, bibl. choisie na Élitet des bons mots, t. II, p. 292); nos Detti et Fatti piacevoli de
Guiardini, p. 99; nas Mem. de l’Academie des Inscriptions et Belles Letres, t. XX; o
conde de Caylus publicou um extrato do fabliau do Convoiteux; Saraiva de Sousa
e o padre João Batista de Castro deram-lhe nova redação literária.
MINHA MÃE, CALÇOTES

Perto da cidade do Porto, onde chamam Paço de Sousa, havia um pobre homem
que tinha seis crianças, entre filhos e filhas, de que alguns eram de dezassete ou
dezoito anos, e dali para baixo. E tendo-os derredor de si um serão, sobre a ceia
de boroa e castanhas, de redor do lume muito contentes, olhou pera eles, e viu-
os tais, que o melhor arroupado, se tinha camisa não tinha pelote, e se pelote,
sem mangas, e se mangas sem falda, e todos descalços e sem barrete nem coifas;
assim que todos se cobriam com fato, que pera bem não bastava a um, e esse
muito velho e esfarrapado, que quase não prestava. E vendo-os tais, disse à
mulher:
— Ouvis? Lembre-vos amanhã, se Nosso Senhor quiser, que peçais a minha
comadre Briolanja de Paiva uma quarta de linhaça emprestada; semeá-la-emos,
e com ajuda de Deus, haveremos linho, de que façamos no verão calçotes para
estes cachopos.
Os filhos, tanto que o ouviram, saltando no ar com muito prazer, diziam uns aos
outros rindo:
— Ai, calçotes, mana! Ai calçotes!
Tanto riram e folgaram, estando ainda nus, que o pai disse:
— O dou ao Demo a canhalha, que, como se sentem vestidos, não há
quem possa com eles.

(Trancoso, Contos, p. 1, conto X. Ainda se repete na tradição popular do Porto.)



NOTA: Ainda ouvimos no Porto empregada como anexim esta frase que serve
de título ao conto. Quanto ao seu tema tradicional, é uma variante do da Bilha de
Azeite.
O REAL BEM GANHADO

Aconteceu que um domingo, estando um ermitão à porta da ermida, viu


atravessar pelo campo um pobre lavrador carregado de redes e armadilhas, que a
seu parecer ia aos pássaros. O ermitão chegou a ele, e lhe perguntou de donde
era e adonde ia; o qual respondeu:
— Sou de meia légua de onde estamos, e entendi hoje na estação que fez o cura,
que o Espírito Santo desceu ao mundo em figura de pomba, e eu desejo de o ver
e achar, e tomei estas redes emprestadas, e venho-as armar, e se o posso haver
nelas, lhe hei de pedir que haja misericórdia comigo, dando-me mantença para
cada dia, que eu e minha mulher com pão e água da fonte nos contentamos.
O bom do ermitão, visto isto, levou à ermida e deu-lhe quase todas as ofertas
que aquele dia havia recebido e lhe disse:
— Irmão, tomai isto, comei vós e vossa mulher; mas é necessário que me digais
qual quereis mais — um real bem ganhado, ou cento mal ganhados?
O pobre homem tomou o pão, com alegria se foi a sua casa, dizendo ao ermitão
que haveria conselho com sua mulher, qual era melhor, e tornaria a dizer-lho. E
tornando a casa, comeram contentes, e houveram conselho qual tomariam —
Um real bem ganhado ou cento mal ganhados; quiseram ambos de um acordo
um real bem ganhado, antes do que cento mal ganhados, e com isto tornou o
pobre homem ao ermitão a dizer-lhe para que lho desse; o qual com muito
contentamento, por ver que soube escolher, lhe deu um real em dois meios,
como ora se costumam, dizendo-lhe:
— Este é bem ganhado, com ele vos fará Deus mercê.
E assim se tornou o lavrador para casa contente; porém no caminho, antes de
chegar a ela, achou dous cachopos que pegados um no outro em grande briga
andavam, dando-se de punhadas e de cabeçadas, ensanguentadas as bocas de
sangue, tão encarniçados em matar-se, sem repousar, que era mágoa de ver. E
assim o pobre homem quando os viu, havendo dó de os ver tratar de tal sorte no
campo, donde se ele não passara, não podiam ser socorridos, desejoso de os
meter em paz, com caridade se meteu no meio a apartá-los, perguntando a causa
da briga. E ainda que deixavam de se ferir, nem por isso nenhum queria
desapegar do outro; mas estando assim pegados, disse um:
— Vedes, ali naquele chão jaz aquela pederneira, que é para ferir lume; eu a vi, e
querendo-a tomar, este mo impede, e a quer ele tomar.
O outro respondeu:
— Não é assim; mas eu a vi primeiro, e quero-a tomar, e tu queres-ma tolher e
tomá-la para ti.
Esta era a causa por que se feriam. O pobre homem vendo que entre eles não
havia maneira de paz, porque cada um queria a pedra, e ela não era tão grande
que bastasse para a partir, e por vê-los ambos em paz lhe disse:
— Filhos, rogo-vos que cesse vossa briga; tomai de mim este real que tenho;
cada um leve seu meio real; deixa ora esta pedra, não seja o Demo que vos faça
fazer algum desmancho.
Os moços, visto o real, e rogo do bom homem, aceitaram a paz, e cada um
tomou seu meio real, deixando a pedra ao lavrador se foram contentes e ela a
tomou, não por lhe parecer que teria valia, senão para testemunha, que quando
dissesse que lhe dera o real por ela fosse crido, e assim a levou todavia. Chegando
achou sua mulher à porta, que esperava desejosa de ver o real bem ganhado, que
o marido havia de trazer. Nisto ele que chega, e mostra-lhe a pedra que trazia, e
disse-lhe o caso que acontecera. A mulher logo à primeira face teve desgosto por
não ver com seus olhos o real; tomando a pedra da mão ao marido,
arremessando-a para dentro da casa, disse:
— Ah! que nem este real nos veio ter à mão.
Por que os pais dos moços, que os viram escalavrados e souberam dele a briga e
donde e sobre que fora, e quem fizera a paz e como lhes dera um real, que eles
sabiam que o pobre homem não tinha de seu, ambos juntos lho agradeceram
muito, e cada um deles por si lho pagou com grande vantagem, e dali em diante
lhe faziam muitas honras conhecidas, que mostravam ser feitas pelo amor com
que lhe tirou os filhos do arruído e peleja que tinham.
Aconteceu que em este tempo passou por aquele lugar um fidalgo, que por
mandado de el-rei ia a outro reino por embaixador, e levava consigo dez ou doze
homens; e conveio-lhe ficar ali uma noite em aquela aldeia, esperando certo
recado da corte. E ainda que para seu aposento lhe deram as melhores casas que
havia no lugar, não lhe bastaram, e foi necessário agasalhar alguns dos seus em
outras casas, e agasalhando-se pela aldeia, coube a este homem um deles. Este
homem, criado do embaixador, depois de lançado na cama, sendo passada uma
grande parte da noite, acordou e viu que a seu parecer havia resplendor na casa,
que a tal hora da noite, conforme ao tempo não se permitia e admirado, foi posto
em confusão, donde aquilo podia proceder. E por saber o que era se ergue como
sisudo, e mui quietamente se foi para onde via a claridade, e pouco a pouco, indo
para ela chegou donde estava a pedra. Tanto que chegou a ela e a viu, a tomou e
a guardou; até que vindo o dia a viu melhor, e parecendo-lhe de grande preço, se
foi ao senhor embaixador, com quem ele vinha, e mostrando-lha lha deu, e disse
donde a achara; e o senhor, vista a pedra, a estimou em muito, e mandou logo
chamar o homem em cuja casa se achara, e perguntando-lhe donde a houvera e
de que lhe servia, e o bom do homem lhe disse:
— Senhor, não serve de nada; se Vossa Mercê a quer, tome-a, que eu folgarei
muito disso, que um real me custou.
E contou-lhe como e de que maneira, assim como a história até agora o contou;
do qual o fidalgo se maravilhou, e teve para si, que pelo muito que vale o real
bem ganhado, permitiu Deus quer lhe deparasse aquela pedra àquele homem. E
o embaixador mexeu a mão em uma boeta, em que levava dinheiro para sua
despesa, e tomando um punhado de moedas de ouro em que haveria duzentos
mil réis lhe deu, dizendo:
— Irmão, esta pedra já que ma dais, eu a quero.
O pobre homem não queria tanto dinheiro, e a importunação do nobre fidalgo
tomou, e se foi para sua casa com muita alegria dar conta a sua mulher: comprou
herdades e chegou a ser chamado o rico homem, e ele o era.

(Trancoso, Contos e Histórias, parte I, n.º XIII)

NOTA: O tema tradicional da pedra preciosa conserva-se no povo. Vid. vol. I,
p. 164.
O SEGREDO REVELADO

Um nobre cavaleiro, virtuoso e muito rico, o qual chegando por velhice à última
hora da vida, chamou ante si um só filho que tinha:
— Rogo-te que pera minha consolação, antes que morra me prometas de fazer
o que te deixar por conselho; que segredo que revelar honra ou vida não no
descubras a ninguém, porque se tu não guardas o que tanto te releva a ti
próprio, como esperas que lo guardará outra pessoa alguma? E nisto de segredo
te guarda principalmente de tua mulher, porque todas em geral são mudáveis, e
por pouca cousa que lhe faças se pode enojar contra ti e descobrir-te o segredo.
Isto tudo o filho ouviu e entendeu, e aceitou de cumprir como o pai lhe pedia,
prometendo-lhe sem falta. Mas para ver que dano lhe podia vir de descobrir o
segredo, logo propôs de descobrir algum que fosse fingido haver feito que não
fizesse, para que se se descobrisse não fosse verdade, e pudesse mostrar o
contrário.
Andando um dia o duque à caça, trasmontou-se-lhe um nebri que ele prezava
muito, e tornando sem ele à cidade, fez apregoar que daria grande achado a
quem lho desse. E porque nem assim apareceu, tornou a mandar pregoar que
quem o encobrisse perdesse a fazenda e morresse morte natural; e a quem lho
descobrisse e fizesse vir à mão do duque, perdoava qualquer delito que tivesse,
ainda que fosse de morte. E nem assim o nebri apareceu, de que toda a terra
estava espantada; e não aparecia, porque caiu dentro da quinta deste mancebo,
que estava perto da cidade, a qual, como era muito grande e ele achasse ali
muitas aves, andou muitos dias sem saber dele, até que o mancebo foi um dia à
quinta; andando passeando dentro, achou o nebri, e como sabia muito daquele
mister, o chamou e fez vir a si, e o levou a uma câmara das casas da quinta, em
que havia todo aparelho para a criação daquelas aves, e que não pudesse fugir,
deixando a bom recado. Guardou consigo a chave da casa, que era muito grande,
e ele e outros pássaros que ali estavam tinham bem de que se manter, porque a
casa era artificialmente para isso, e estava bem provida do necessário. E deixando
o nebri arrecadado, matou o mancebo um grande pavão, de muitos que ali se
criavam, e cortados os pés, rabo, cabeça, o depenou e levou para sua casa; e tanto
que chegou, disse a sua mulher:
— Senhora, o nebri do duque foi ter à nossa quinta, e nos tem mortas muitas de
nossas aves e em satisfação disso eu o matei, e o trago aqui depenado para que o
ceemos, vós e eu.
Ela, tanto que o ouviu se agastou muito, e disse:
— Pesa-me muito disso, que melhor fora trazer-lho vivo ao duque; daqui vos
digo que me fizestes pesar, e eu não cearei dele, nem à mesa em que se comer.
E assim, ainda que o marido a chamou e lhe mostrou o pavão, gabando-o,
dizendo-lhe:
— Senhora, olhai como estava gordo este nebri; vinde comer dele, que é tal
como um gordo pavão.
Ela o não quis ver, nem aquela noite ceou com o marido, nem sem ele, tanto se
entristeceu. Porém, passada esta noite, de ali por diante quando falava com o
marido parecia que era com uma isentidão sobeja, menos recolheita e mais
despejada que dantes, menos cortês e humilde do que soía e por cima do ombro;
no que tudo o marido atentou, tendo para si que já ela cuidava que lhe tinha o pé
no pescoço em lhe saber o segredo do nebri, que na verdade estava vivo, e ele o
visitava cada dia para lhe prover o que fosse necessário; e a mulher cuidava que o
pavão que o marido ceou, como ouvistes, era verdadeiramente o nebri, como ele
disse.
E o mancebo, desejoso de chegar ao cabo com tudo, uma tarde entrando pela
porta sobre:
— Por que não está a mesa posta? Que fazeis à janela? (Cousa que nunca ele
perguntava, nem disso entendia.)
Ela lhe respondeu isenta:
— Que quereis vós agora para isso? (com um menosprezo no marido, e
gravidade nela, que ele não quis sofrer); e ali lhe deu uma grande bofetada; pelo
que ela, posta em cabelo, gritando muito rijo, disse:
— Isso mereço eu, falso traidor? Porque há mais de seis dias que calo e encubro
tua maldade, que matastes o nebri do Senhor Duque, e o comestes por lhe dar
desgostos, e não porque te faltavam a ti aves presadas de comer.
Como isto foi dito a grandes brados na praça, por para pouco se teve o que mais
tardou em dizê-lo ao duque, temendo que se o não descobrisse cairia em sua
desgraça. O duque tanto que o soube o mandou prender, e sem nenhuma
misericórdia, visto o testemunho da mulher e dos servidores e gente de sua casa,
que todos afirmaram ver-lhe trazer o nebri morto e mandá-lo assar, e que o
ceara uma noite, foi por sentença mandado degolar na praça da cidade, e que
perdesse sua direita parte dos seus bens que tinha para a coroa, conforme estava
apregoado. E tirando-o da cadeia para se executar nele a justiça, a este tempo
tinha o mancebo junto consigo um virtuoso padre religioso a quem tinha dado
conta do caso todo como passava assim como a história o tem contado, que
ouvindo-o, logo se ergueu em pé, e disse alto a todos que o ouviram:
— Este homem é julgado por falsa informação, e não é a sentença dada
justamente; esperai, que eu irei falar ao duque, e será de outra maneira.
E assim foi e contou a Sua Senhoria toda a história passada do rogo do velho pai
a seu filho até o estado em que estava, por ver o segredo que sua mulher lhe
tinha, no que fingidamente lhe dissera pera a provar. Que Sua Senhoria
mandasse pelo nebri à quinta, que ele lhe descobrira que era vivo e estava ali; e
para mais certeza, que tomasse aquela chave e o mandasse tirar, e que se
lembrasse que conforme ao pregão que mandou dar, por este feito de lhe
descobrir o nebri e fazer-lho haver era perdoado. Porém que ele o não pedia
senão, que se todavia o quisesse mandar matar, que dissesse o pregão, — que
morria por não ser obediente a seu pai, nem tomar seu conselho.
E o duque, visto isto e entendendo a verdade do caso, mandou que fosse solto e
perdoado da culpa que teve, e que sofresse o desgosto de ter sempre sua mulher
consigo, sem nunca pelo passado lhe dar remoque, nem fazer agravo, porque
visto o que sucedera estava arrependida do que fizera, e que em tudo dali por
diante guardasse os conselhos de seu pai, assim como lhos prometeu guardar.

(Trancoso, Contos, Parte I, n.º XI)

NOTA: Acha-se este conto nas Cento Novelle antiche, n.º 10; nas Novelle, de
Franco Sachetti, n.º XIV; nas Gesta Romanorum, cap. 124 (Violier, cap. 148); nas
Cent Nouvelles nouvelles, n.º LII; nas Nuits facetieuses, de Straparola, 1, da 1.ª
noite (t. I, p.15). Também se repete no Livre du Chevalier de la Tour, cap. 128. O
episódio do falcão morto (um carneiro, para simular um homem) vem nas Horas
de Recreio, de Guichardin, p. 161; nas Novelle, de Granuci, n.º V: no fabliau do
Prud’homme qui donna des instructions à sons fils (Rec. de Fabliaux, p. 131), na
coleção de Barbazan, e Ms. de Clayette. Vid. Melanges de littérature orientale, t. I,
p. 78. Há imitações deste conto em Hans Sachs, em uma comédia; o Dr.
Schmidt, na sua edição de Straparola determina bastantes paradigmas deste
conto, que ainda aparece nos Mille et un quart d’heure, de Gueullette. No
Dolopathos, d’Hebers (ed. 1856, p. 225), acha-se esta narrativa; nos Hausmärchen,
de Grimm, t. III, p. 176, ed. 1819, apontam-se outros paradigmas.
No Divertimento de Estudiosos, t. II. n.º 500, p. 187: «Um, querendo examinar o
segredo de sua mulher, quando se deitou escondeu um ovo debaixo da cabeceira;
depois pela noite adiante fingiu que a acordara mui ansiado e cheio de dores.
Perguntou-lhe a mulher, o que tinha. Respondeu ele, que lhe sucedia um caso
que de ninguém queria fiar. Com mais curiosidade o quis ela saber, e fazendo
mil juramentos de infalível segredo lhe pediu que lho descobrisse. Disse-lhe o
marido:
— Fiado em tais promessas te declaro, que pari um ovo (e mostrou-lho) porém,
segunda vez te recomendo o segredo, pela afronta que daqui se me seguirá.
A mulher, dizendo que estivesse descansado, sem dormir passou todo o resto da
noite, que lhe pareceu um ano, pelo desejo de ir contar o sucesso; mas assim que
amanheceu procurou logo uma vizinha e disse-lhe, que seu marido naquela
noite pariu dois ovos, porém, que tivesse segredo. A vizinha contou a uma
amiga, que seu vizinho N. havia parido naquela noite quatro; mas que ninguém
o soubesse. Assim se foi contando a história e multiplicando ao mesmo passo os
ovos, que na tarde do mesmo dia com universal espanto se contavam já
publicamente que parira quarenta ovos N., o qual aparecendo, lhe perguntaram
como sucedera o caso, e ele o declarou com bem admiração dos que o ouviram.
A PROVA DAS LARANJAS

Um tabelião foi de público e judicial em um lugar de Senhorio, e chegando a


idade que não podia servir o ofício, pediu ao senhor da terra que lhe fizesse
mercê dele para um filho, que tinha três já homens, e que cada um deles era
suficiente para o servir. E o senhor, por lhe fazer mercê, disse que lhe aprazia;
porém, que queria ver os mancebos um por um, para ver qual seria melhor
empregado, e que assim o daria.
O velho folgou disso, e mandou primeiro o mais velho, que apresentando-se
ante o senhor, lhe disse que ele era o filho do tabelião; que Sua Senhoria
mandara vir ante si para lhe fazer mercê do ofício de seu pai, se lhe parecesse,
para o servir nele. A este tempo o senhor tinha na sua sala uma bacia grande,
cheia de água, e estavam nela laranjas, a saber, quatro inteiras e sete partidas pelo
meio, com o agro para baixo, e o pé ou o olho para cima, que ao parecer de quem
não no atentara bem pareciam todas inteiras. E tanto que o mancebo deu o
recado, lhe respondeu ao senhor que logo o haveria, quase fingindo esperava por
outra pessoa, e como se não fosse aquilo do caso próprio, lhe disse:
— Entrementes, vede que laranjas estão ali fora naquela bacia.
O mancebo olhou, e vendo as catorze metades, que cuidou que eram inteiras, e
as quatro inteiras tudo, em lançando-lhe os olhos somente, disse:
— Senhor, são dúzia e meia de laranjas. (Que, na verdade, como estavam sobre a
água assim o pareciam); e o senhor disse:
— Dizei a vosso pai, que mande cá outro filho, (o qual veio).
E aconteceu-lhe da mesma maneira que ao primeiro, que também disse que as
laranjas eram dezoito, como o pareciam. E o senhor mandou vir o terceiro, o
qual vinha desgostoso, porque já sabia a pergunta, e não sabia que responder. E
todavia chegando, o senhor lhe mandou que visse as laranjas que estavam
naquela bacia, como dissera aos outros; e ele saindo fora, chamou dois homens
da casa, que andavam passeando na sala, e disse-lhes:
— Senhores, o duque manda saber as laranjas que estão nesta bacia; sede
presentes, por que sejais testemunhas do que achar:
E assim, tirou as laranjas fora, e viu ele e eles que eram as catorze metades e as
quatro inteiras; e meteu a mão na água e viu que não havia lá outra cousa, e
assim fez que o vissem aqueles dois homens que ali estavam. E visto isto, tirou
papel e escrivaninha que levava consigo e fez auto do que ali se achou, e nomeou
nele os dois homens que foram testemunhas e o assinaram, e com isto tornou ao
senhor, que visto lhe pareceu bem a diligência que fizera, e disse-lhe:
— Vós o fizestes como oficial, e não como os outros, que sem ver o que era
disseram o que lhes pareceu.
E logo mandou que mandasse fazer a carta do ofício, que lhe fazia mercê dele,
porque escreveu o que viu e palpou, que assim é necessário fazer-se para dar fé
verdadeira.

(Trancoso, Contos e Histórias, parte 1, n.º XIV.)

NOTA: Há uma situação análoga no Conde de Lucanor, n.º XIX; é um herdeiro


do trono o escolhido: De lo que fizo um rei moro com três fijos que havia, per
saber qual dellos era mayor hombre. Fl. 84, ed. 1642.
OS DOIS IRMÃOS

Um velho rico tinha dois filhos, e porque o maior que tinha cárrego da
administração da fazenda se casou sem licença, o lançou fora de casa, tirando-lhe
a posse e mando que nela tinha, e além disto lhe cobrou ódio mortal com desejo
de o empecer; e para o poder fazer ao menos na fazenda, imaginava sempre
como per sua morte o deixasse deserdado e desse tudo ao outro filho menor. E
achou que o faria, deixando de acabar umas casas sumptuosas que tinha
começadas no melhor da cidade, as quais estavam já galgadas as paredes para lhe
lançar o primeiro sobrado, e isto porque o que havia de gastar nelas ficasse em
dinheiro na mão do filho menor quando ele lho quisesse dar. E passados anos, o
velho perseverando em sua contumácia, não quis perdoar o filho nem lhe quis
mais ver o rosto. E com este rancor morreu e deixou grande fazenda em
dinheiro, ouro e prata ao segundo filho, dando-lho na mão, porque não desse
dali parte ao outro, ao qual ele deserdara, de todo se perdera. Coube ao maior
tão pouco, que não houve bem para se vestir de dó ele e seus filhos, que, como
havia dias que era casado, tinha quatro crianças, e assim ficou pobre e cercado de
trabalhos e muita necessidade, que, vendo-se o mais velho em tanta miséria foi
ao irmão, e com lágrimas lhe disse:
— Irmão, bem sabes e vês minha necessidade e pobreza; rogo-te que me dês
estes princípios de casas que meu pai deixou de acabar, porque alimpadas com
meu trabalho e de minha mulher e filhos, as possa cobrir de trouxa e agasalhar-
me dentro; que elas a ti não te aproveitam, nem as estimas, e estão em
esterqueira do concelho, feitas pardieiro; elas estão galgadas de maneira que sem
lhe acrescentar parede, ali as cobrirei do que puder, e nisto me farás grande
esmola.
O irmão menor vendo a necessidade de seu irmão, e como dizem, porque o
sangue não se roga, entregou-lhe as casas, e fez-lhe delas sua carta de doação
livre e desembargada.
Passados anos o irmão menor veio a casar, e porque a quem tem muito lhe dão
mais, deram-lhe grande dote com uma mulher tão cobiçosa da fazenda, que o
muito que tinha lhe parecia nada, e o pouco alheio cuidava que era muito e o
queria e cobiçava para si. E desta maneira, indo um dia a visitar a mulher do
cunhado, irmão de seu marido, viu o princípio e entrada da casa e o portal de
pedraria que mostrava demandar mais água, que ser logo em cima coberta de
trouxa como estava, e cobiçosa de haver aquele assento e fazer nele casas para
sua morada custosas e ricas, sem fazer ali muita tardança veio ao marido e disse-
lhe — que comprasse aquele assento a seu irmão dando-lhe por ele com que
pudesse haver casas pera si em outra parte. E ele lhe respondeu: que o não faria,
porque ele lho dera feito, pardieiro, que não era razão pedir-lho agora que o
tinha limpo, ainda que fosse por compra.
Quando ela isto ouviu, ali foi a grita, que em toda a vizinhança se ouviu seu
brado, dizendo: — que folgava muito de saber que ele lho tinha dado, porque já
agora não dizia ela por dinheiro, mas sem ele lho havia de dar, e se não fosse em
paz e por bem, seria por justiça. E dava logo esta razão:
— Se vós lho destes solteiro, sereis menor; e se lho destes em casado, a dada não
vale, que eu não consinto.
E isto dizia tão menencória e pelejando, que o marido não tinha mesa nem cama
sem arruído. E assim fez tanto, que por ter paz o marido citou a seu irmão,
pedindo-lhe as casas que lhe dera; e processado o feito, que correndo os seus
termos ordinários saiu por sentença a doação por boa. E assim foi a propriedade
julgada ao pobre; porém, a mulher do rico mal-contente, fez agravar da sentença
e seguir o feito até mor alçada, e assim foi à Suplicação, que então estava na
cidade de Évora. E partindo de Lisboa, o rico ia a cavalo e com grande
cevadeira, e o pobre a pé com dous pães e quatro cebolas no capelo; e assim
caminharam pera haver final sentença. Indo assim caminhando pera Évora,
foram pousar uma noite na Landeira, em casa de um vendeiro, que havia
dezoito anos que era casado e nunca tivera filho nem filha; e estava rico e
contente, porque a este tempo tinha a mulher prenhe, quase em dias de parir. E
por ser muito conhecido do rico o agasalhou e pôs grande mesa, dando-lhe de
cear o melhor que ele pôde e tinha; assim se puseram a cear com grande festa,
fazendo assentar à mesa a mulher do vendeiro pera que como prenhe tomasse de
cada cousa um bocado. E o pobre homem, sem dizer que era irmão do rico, se
assentou derredor do lume, e pôs no borralho a assar uma cebola para sua ceia,
que assada a ceou com seu pão e água. Esta mulher prenhe ainda que estava à
mesa com o marido e hóspede, onde tinham bem que cear, e recebiam gosto de
lhe dar o que ele pedia por que não perigasse, não lhe pareceu bem nada do que
ali havia, nem lhe prestava coisa que comesse, cheirando-lhe a cebola, que se
assava, que morria por ir comer dela, e com vergonha do hóspede não se erguia
da mesa, tomou-lhe tal desmaio que caiu no chão, e como criança era já grande a
boa mulher com grande trabalho moveu aquela noite antes de muitas horas com
muito pesar e dor do marido, o qual, inquirindo da mulher se desejara alguma
cousa, tanto que ela lhe disse que da cebola assada que aquele homem ceara, se
foi a ele com grande ira, que o queria matar a punhadas, e sem falta o fizera, se o
irmão o não escusara, dizendo:
— Eu vou com ele em demanda à corte; se vos parece que vos tem culpa e é caso
de o matar, como quereis, i comigo e acusai-o, e lá vos farão justiça.
Tanto que veio a manhã, determinou o vendeiro ir acusá-lo à corte. E assim
como o rico se pôs a cavalo, partiram ambos para a cidade de Évora donde o
vendeiro pretendia fazer enforcar aquele pobre homem. E assim caminhavam os
dous a cavalo, e o pobre a pé; chovia, e havia chovido toda a noite passada, de
maneira que o caminho tinha a lugares lamas e atoleiros, porque era tempo de
inverno. A esta conjunção achou no próprio caminho um homem, que com uma
azémola estava metido no olho de um grande lamarão de barro, tão pesado que
não podia sair, nem valer-se a si, nem à azémola, e anda que bradou pelos que
passavam a cavalo, nenhum quis acudir. Até que chegou este pobre homem que
caminhava a pé, e com muito mais trabalho que todos e de feito o ajudou com
vontade a livrar daquela afronta; e fez de maneira com que, tirando o homem da
pressa de sua pessoa, buscaram ambos mato que lançar aderredor da azémola
para poder chegar a ela sem atolar. Trabalhou tanto o pobre homem nisto,
tirando a vezes pelos pés e mãos, e outras pelo cabresto e rabo, com a força que
ele pôs lhe ficaram nas mãos tantas sedas do rabo da azémola, que lhe davam
grande fealdade. O dono, tanto que viu o defeito da azémola veio a grandes
brados com o pobre, dizendo que acinte lhe arrancara o rabo, e que lhe havia de
pagar por justiça o defeito, e que sobre isso iria à corte; e assim indo alcançou os
outros que iam diante na primeira venda donde estavam pousados e lhe fez
queixume do pobre que vinha a pé, muito triste de se ver com tantos desastres
com lhe aconteciam sem ele ter culpa; e porque não acontecessem mais, não quis
pousar naquela venda, mas só se pôs ao caminho e chegou a Évora a tempo, que
já lá estavam. E considerando o pobre como havia de parecer com três demandas
diante do regedor, assentou que era melhor matar-se ele mesmo a si, que ver-se
em poder de seus inimigos;
E logo o pôs por obra desta maneira. Subindo pela escada do muro da cidade, foi
acima até chegar às ameias da torre que está sobre a porta, e deixando-se cair da
torre abaixo para a banda de fora. Ora, aquela manhã, depois de tanta chuva,
tinha amanhecido o dia bom e muito fermoso; um velho que estava entrevado
doente e morava ali perto, por gozar o sol deste dia se fez levar ao soalheiro ao
pé do muro, por ali aquecer e ter refrigério de ver e falar com alguns
conhecentes que passavam; e assim pouco depois dele assentado em uma cadeira,
vedes, vem de cima do muro pelos ares aquele homem, que desesperado por se
ver com tanta demanda se lançou desejoso de receber a morte, o qual veio
direitamente dar sobre o desditoso velho, morreu, e o pobre homem que
desejava morrer não recebeu nenhum dano da queda, que foi toda em cheio
sobre o velho. Ao qual logo acudiram dois filhos que tinha, e achando-o morto
lançaram mão do matador e preso o levaram ante o regedor. Porém,
atravessando com ele pela praça, foi visto do irmão e dos outros dois contrários,
que o estavam aguardando; tomou o irmão a dianteira e o vendeiro também
queria dizer seu queixume e o da azémola o mesmo, de maneira que cada um se
atravessava por falar, não deixando dizer ao outro. Tanta briga tiveram entre si,
que o regedor olhou nisso e logo naquele instante propôs em si, que se achasse
da parte do pobre alguma coisa com que por direito o pudesse favorecer, que o
faria de boa vontade. E disse:
— Que as pessoas que tinham que dizer contra aquele homem dissessem um a
um, começando primeiro quem primeiro teve a diferença; e assim cada um per
sua ordem.
Pelo que o irmão foi o primeiro, que lhe pediu as casas, fundando-se nas razões
já ditas; ao qual respondeu o pobre com a verdade do caso como passava. O
regedor disse:
— Eu mando que este fique com as casas como estão julgadas, e que vós que
sabeis que lhas pedis mal e com malícia insistis nisso, lhe pagueis a ele duzentos
mil réis.
E logo foi por eles preso, e não foi solto até pagar. Concluído este, veio o
vendeiro, dizendo que lhe fizera mover a mulher; ao qual respondeu o pobre
com a verdade, contando como passara. E o regedor, visto o caso, julgou ao
pobre por sem culpa, e que o vendeiro pela afronta em que o pusera e em
emenda do dano que lhe fez em sua casa dando nele, lhe pagasse cinquenta
cruzados. E logo veio o da azémola, pedindo que maliciosamente pegara no rabo
daquela alimária e lho arrancara; o qual era muito defeito e grande fealdade, que
lhe mandasse pagar o que fosse avaliado. Ao que foi respondido pelo pobre,
dizendo que o ajudara a sair do atoleiro: ouvido pelo regedor e vista a ingratidão,
foi julgado por ele que a azémola ficasse em poder do pobre tanto tempo até que
lhe nascesse o rabo, e se servisse dela, e se o dono apelasse disso pagasse
cinquenta cruzados. Isto concluído, os filhos do velho que estava morto,
alcançaram as vozes pedindo justiça.
— Este matou; o matador morra por isso que assim é justo.
O regedor quis saber o caso miudamente, e ouviu ao pobre como e porque se
lançara do muro abaixo. O que tudo visto, mandou que aquele homem acusado
fosse assentado na cadeira em que estava o velho quando morreu, e o acusador se
subisse ao muro e se lançasse dele abaixo como o outro fez e assim caísse sobre
ele e o matasse, que desta maneira o matador pagaria como pecou; e se não
quisessem aceitar isto, que pagassem ao pobre pela afronta em que o puseram
cinquenta cruzados.
Os filhos do velho, visto que podia ser deitando-se do muro errar o golpe e não
lhe fazer dano, e o que se lançasse corria muito risco de perigar, davam brados, e
foram logo reteúdos e houveram por bem de pagar os cinquenta cruzados, antes
que aventurar a vida. E assim o homem acusado ficou livre e com muito
dinheiro com que se tornou para Lisboa na azémola, que lhe julgaram.
(Trancoso, Contos e Histórias, parte I, conto XV.)
NOTA: Há um largo estudo comparativo sobre este conto na Revista de
Etnologia e Glotologia, onde se compara a versão de Timoneda, no Patrañuelo, e as
russas, tibetanas, indianas e alemãs, coligidas por Benfey, as de Sercambi e de
Busoto, comparadas por Reinhold Köhler.
Na Revista de Etnologia, pp. 111 a 137, faz-se a transcrição das versões deste conto
do Patrañuelo de Timoneda e da africana de Mornand O Cadi d’Emessa; e
apontam-se as versões russa, tibetana, indiana, alemã, italiana e inglesa, de que
deu notícia. Benfey na Introdução à tradução do Pantchatantra, em que
aparecem os mesmos episódios com que têm sido bordados os contos primitivos,
sem seguirem a mesma ordem, que ficava ao capricho da fantasia do narrador.
Esses episódios são: «Animal roubado», «Criança morta», «Velha morta»,
«Penhor da carne», «Bolsa achada», «Machado ao rio», «Olho arrancado»,
«Casas», «Perguntas», «Encontros». Destas laboriosas comparações, conclui-se
que o conto não deriva de um fundo mítico, mas pertence ao ciclo dos Juízos
salomónicos e devem a sua vulgarização à propaganda búdica na intenção
casuística teológica, segundo Benfey, imitada pelos pregadores católicos. Muitos
episódios que se acumulam neste conto tornaram-se contos independentes,
reduzindo-se a crítica a determinar-lhe o tema fundamental. (Rev. de Etnologia,
pp. 108 a 134.)
DOM SIMÃO

Deu um príncipe poderoso uma comenda grande de muita renda a um fidalgo


nobre, que além de a ter ganhado em África, segundo costume, ele a merecia por
sua virtuosa condição e bons costumes. Pareceu-lhe a el-rei que Dom Simão era
caçador e tinha muitos galgos e outros cães, e se indignou tanto contra o fidalgo
e determinou destruí-lo ou matá-lo; e assim com súpita menencoria, fez fazer
prestes e cavalgou aforrado, e em cinco dias foi ter à comenda donde o bom
comendador estava, bem fora de cuidar da menencoria que el-rei trazia contra
ele. E tanto que el-rei chegou, foi o comendador para lhe beijar a mão, mas el-
rei lhe mostrou no rosto a má vontade que lhe trazia, e o apartou logo, e disse-
lhe:
— Eu tenho informações dos males que fazeis, os quais determino castigar, e há
de ser em todo caso amanhã; salvo se em amanhecendo me responderdes a três
cousas que agora vos quero perguntar, e acertando em todas terei para mim que
acertais no que fazeis, e senão, sois condenado à morte.
Muito lhe pesou ao comendador em ouvir isto, e quisera saber as culpas que lhe
punham e desculpar-se delas; porém el-rei o não quis escutar, mas disse-lhe:
— Pela manhã mui cedo vinde-me aqui dizer: Em que lugar do mundo é o meio
dele? E quanto há de altura da terra ao céu? E que está imaginando o meu
coração naquele momento que vós me responderdes? E sem estas respostas e
certas, não pareçais ante mim, nem me faleis.
E sem o querer ouvir se recolheu a uma câmara a cear e dormir, e o comendador
ficou agastado imaginando no caso sem saber porque estava el-rei menencorio
dele, nem entendia o que havia de responder a suas perguntas, e quando lhe
representava a imaginação que se fosse, em tal caso tinha mor pena. E com isto
se saiu a passear pola porta daquela sua casa, em a qual estava por hortelão um
virtuoso homem, que na idade, filosomia do rosto e fala parecia muito ao
comendador, e diferençava no traje somente, que algumas vezes querendo por
passatempo fazer festa, se vestia o hortelão roupas do senhor, levemente se
enganavam os criados da casa. E andando assim passeando foi vista sua tristeza
pelo hortelão que era virtuoso e de boa criação, e foi-se ao senhor, ao qual
afincadamente pediu por mercê que lhe desse conta de sua paixão, que poderia
ser que por seu meio lhe daria algum remédio. O senhor que sabia que este
hortelão era homem de muita habilidade e saber, lhe contou o caso todo como
passava com el-rei. O hortelão que era muito sisudo:
— Senhor, tudo se remediará com uma cousa: o que é necessário fazer para
remédio da afronta em que estamos é que dispais essas roupas e vistais estas
minhas, e eu fingirei ser vós e irei ter com el-rei, que já tenho cuidado tudo o
que hei de dizer e fazer para livrar a vossa vida e a minha da afronta presente.
E isto foi feito com tanto segredo e resguardo, que ninguém na casa o soube
nem suspeitou. E o fingido comendador começou a passear à porta da câmara
donde el-rei dormia, e tanto que sentira estava vestido, lhe mandou recado,
estava ali para lhe dar a resposta do que Sua Alteza perguntara ontem. El-rei
folgou disso, e saiu para fora a um corredor que ali se fazia, que ia ter sobre a
horta, e postos ali ambos disse o hortelão, fingindo ser o comendador:
— Ontem perguntou Vossa Alteza três perguntas, a que respondendo digo: que
quanto à primeira, que é — Donde está o meio do mundo? lhe afirmo que está
ali. (E lançando mão de um arremessão de murtos que naquele corredor estavam
o pregou na horta fazendo com ele fermoso tiro.) E para provar isto digo que o
mundo é redondo, e ninguém diz o contrário, e sendo tal como é, em qualquer
parte é o meio dele, como se pode ver em uma bola redonda, a qual donde lhe
puserem o dedo é o meio dela. Está Vossa Alteza nisto satisfeito?
El-rei disse:
— Dizei das outras!
E ele respondeu:
— A segunda pergunta é — Quanto há daqui da terra ao céu? Saiba Vossa
Alteza que isto tem medida igual e é uma vista de olhos. Abaixe os olhos ao chão,
e logo alevante-os ao céu, que com uma só medida chegam, que é como digo,
uma vista de olhos.
El-rei lhe disse:
— Bem respondestes; livre estais das duas; porém a terceira, tenho para mim,
que nunca acertareis.
E ele lhe disse:
— A essa, melhor; porque a terceira é que hei de dizer. Que é o que Vossa
Alteza cuida no seu coração a esta hora de agora? E porque isto não tem outro
juiz senão ele mesmo, eu lhe peço que o queira ser justo como o é em tudo o
mais, e respondendo, digo: que está Vossa Alteza com todo o seu coração
cuidando que está falando com Dom Simão o comendador, e fala com seu
hortelão, que eu não sou ele. E se o quer ver vestido com minhas roupas, está
dando esmola aos pobres que mantém cada dia nesta comenda.
El-rei vendo a habilidade deste homem, e que em tudo dissera bem, quis saber
dele com juramento a vida do comendador e seu exercício; folgou muito de saber
e despedindo-se do comendador lhe mandou dar das rendas da coroa dois mil
cruzados cada ano. E ao hortelão dava el-rei cárregos honrosos na corte, porque
andasse nela, o que ele não aceitou por servir a seu senhor, que lho agradeceu e
pagou, tratando-o dali por diante como a irmão carnal.

(Trancoso, Contos e Histórias, p. 1, conto XVII.)

NOTA: Vid. a versão popular com a nota respetiva, vol. 1. pág. 275 (Frei João
Sem Cuidados). Aparece nas novelas de Franco Sacchetti, nov. IV. No Almanaque
de Lembranças para 1861, p. 322.
OS TRÊS CONSELHOS

A casa de um sábio letrado chegou um mancebo de dezoito ou vinte anos, e lhe


disse:
— Meu pai, antes de sua morte me deu cento e cinquenta cruzados e me
mandou que buscasse nesta terra três doutos varões, a quem desse cinquenta a
cada um, e lhe pedisse por mercê que cada um me desse seu conselho daquilo
que me pertencia fazer para bom governo de minha pessoa e vida. Eu tenho já
escolhido os letrados, e Vossa Mercê é o primeiro; sirva-se destes cinquenta
cruzados.
E deu-lhos logo em dinheiro, que o letrado tomou, e estudando sobre o caso,
passados oito dias lhe respondeu:
— Assentai vivenda com algum senhor, e qualquer que for aquele que vos
aceitar honrai-o e servi-o com verdade e lealdade.
Despedido deste letrado se foi a outro, e com as mesmas palavras que disse ao
primeiro, lhe pediu seu conselho, declarando o conselho que já trazia, e lhe deu
cinquenta cruzados, que o letrado tomou. E estudando como o caso requeria, a
cabo de oito dias, respondendo-lhe disse:
— Filho, pressuposto que haveis de ser tal qual o douto varão vos aconselhou,
vos digo mais: Quando fordes poderoso, sede misericordioso, não façais com
rigor tudo o que puderdes ainda que seja justiça. E sendo misericordioso no que
fizerdes, sereis benquisto de todos, tereis amigos, que em alguma necessidade, se
a tiverdes, vos serão bons, e isto guardai sem falta.
E o mancebo se foi ao terceiro letrado, ao qual contou os conselhos dos dois que
já ouvistes, dando-lhe os cinquenta cruzados, que aceitou; e estudando sobre o
caso, conforme aos outros respondeu aos oito dias, e disse:
— Pois dais vosso dinheiro por conselhos, usai deles, que vos vai a vida em
guardá-los. E além deles digo, que se os amigos a que fizerdes bem vos
agasalharem, aceitai seu gasalhado, e quando caminhardes andai de dia, não
andeis de noite, ainda que seja uma pequena jornada; mas deixai-a pola manhã,
que vo vai nisto muito.
Estes foram os três conselhos que os sábios deram a este mancebo, que se foi
logo assentar vida com um senhor cidadão daquela cidade, ao qual sempre foi
leal e sem lisonja como lhe foi aconselhado. Aconteceu, que vindo el-rei àquela
terra, quis este senhor por fruta nova (que então o era) mandar-lhe alguns figos,
que os tinha, em certas figueiras temporãs muito boas; e mandou a eles três
pajens, cada um com seu açafate, que o enchessem de figos, encomendando-lhes
a limpeza e bom tratamento deles, porque eram para levar a el-rei. Dos quais
pajens era este mancebo um deles; e um dos outros, tanto que subiu na figueira,
desejoso de comer dos figos se pôs a isso comendo os melhores que achava. O
outro pajem pôs-se a encher o seu açafate, tendo o olho em quanto lhe vinha ter
à mão algum muito fermoso que lhe contentava mais, este comia. Este nosso
pajem de que tratamos, tanto que trepou na figueira, com grande diligência
buscou como encher seu açafate de muitos bons figos limpos e maduros, tendo
diante dos olhos que este era o gosto do seu senhor, que os havia de mandar a el-
rei. Todos os três açafates foram bem recebidos, e logo se viu a vantagem que o
deste pajem tinha aos outros, e foi descoberto o caso que aconteceu no apanhar,
pelo que o mestre-sala de el-rei o pediu àquele cidadão com quem estava, o qual
pelo aproveitar lho deu, e o moço se soube dar tal manha em seu serviço e com
tanta verdade, que el-rei de o saber e de que ver levou muito gosto e não queria
ser servido por outrem senão por ele, quando o mestre-sala era ausente.
Mandou el-rei para fora do reino ao mestre-sala com um cárrego honroso, e
mandou que até ele tornar serviço em cárrego aquele mancebo, o qual o fez,
tendo tão boa ordem no serviço do ofício, que el-rei estava muito satisfeito. E
tanto que vindo novas que era morto o mestre-sala donde fora, a este deu o
ofício, e foi tal, que mereceu que el-rei o fizesse mordomo da casa da rainha. E
querendo ir aforrado visitar seu reino, e prover algumas coisas dele, o deixou
onde ficava a rainha, servindo-a neste cargo em que esteve até que el-rei tornou.
Como nunca faltam maus, foi este mordomo-mor mexericado com el-rei, de
maneira que com falsas informações o indignaram tanto contra ele, que sendo
como era muito leal, afirmaram contra sua pessoa que era treidor, e isto dito por
palavra e per pessoa, que el-rei creu que seria verdade. E porque de todos era
benquisto, não quis el-rei na corte fazer justiça dele, nem descobrir seus delitos;
mas chamando-o ante si lhe disse:
— Esta carta não se fia de outra pessoa senão de vós; pelo qual com diligência
caminhando o mais que puderdes, a levai a Fuão, que está na raia deste reino, em
tal fortaleza, e dai-lha, e vede como e de que sorte tem a guarda daquele castelo.
E logo que lhe deu uma carta selada com o selo real, que o mordomo tomou
como leal criado; e visto o mandado d’el-rei, partiu logo para a fortaleza por
jornadas que já levava ordenadas da corte, em que o terceiro dia havia de ir
dormir àquele castelo. Porém, uma légua antes de chegar a ele, se achou com o
cavalo quase desferrado de todo. E porque isto era passado pelo meio de uma
boa povoação, quis repoisar sua cavalgadura, e ouvindo trabalhar um ferrador,
foi-se para aquela parte; mas antes que chegasse, lhe saiu ao encontro um
homem preto, alto de corpo, ladino, e lhe disse:
— Senhor, boa seja a vinda de Vossa Mercê; em verdade este é um alegre dia
para mim; apeie-se, repousará aqui esta noite.
E pôs-se a ferrar o cavalo, o qual fez com muito primor e graça, e feito disse:
— Senhor, conhecei-me, que tenho muita razão de vos servir, e fazei-me mercê
que entreis nesta casa, que é vossa.
E o mordomo atentando por ele, pareceu-lhe que já o vira. E nestas detenças
estiveram algum pequeno espaço, que lhe pareceu ao mordomo que devia de
ficar ali, porque o preto se lhe deu a conhecer e era amigo que já recebera honras
dele, e conforme ao terceiro conselho, não havia de passar adiante, e assim o fez
com intenção de se erguer muito cedo e amanhecer na fortaleza. Cearam todos
com contentamento, e sobre a mesa lhe disse como ia àquele castelo não a mais
que a dar aquela carta de el-rei ao capitão, que devia importar, pois el-rei a não
fiara de outrem senão dele, a qual mostrou, e pôs debaixo da cabeceira. Duas
horas antemanhã, o preto se ergueu da cama, e tomando mansamente a carta da
cabeceira ao mordomo, a bom recado caminhou, e antemanhã ele estava batendo
à porta da fortaleza.
Tanto que o capitão abriu a carta, sem outra detença o mandou enforcar de uma
ameia. Ora o mordomo-mor, tanto que foi manhã se ergueu, mas, quando não
achou a carta ficou agastado, e partiu a todo o galope. E em chegando à vista da
fortaleza viu o preto enforcado da ameia, que lhe dava já o sol, logo presumiu
que aquilo devia ser recado da carta, e estava consigo pensativo que faria.
Todavia com a fúria que o cavalo levava chegou à porta, e chamou, e porque foi
logo conhecido dos de dentro lhe foi logo aberta; o mordomo-mor tomou a
carta, e viu que era a que ele trazia; leu-a, que dizia assim: «Capitão, tanto que
esta receberdes enforcai o portador.» E estava escrita da própria letra de el-rei,
assinada e selada, de que o mordomo-mor ficou espantado. Determinou tornar
diante de el-rei com a própria carta. Chegou ao paço a horas que el-rei acabava
de jantar, e se recolhia a uma câmara a repousar. Entrou e posto em geolhos,
disse:
— Senhor, não sei que súbito acidente pôde tanto com Vossa Alteza, que sem
ser ouvido me mandasse matar tão cruelmente; minha inocência me livrou.
E com breves palavras lhe contou como, e disse:
— Porém se Vossa Alteza tem culpas de mim, aqui estou, faça justiça, mande vir
diante de mim quem me acusa. E se me faz mercê que eu seja ouvido, saiba que
antes de vir a casa de meu primeiro senhor, dei cento e cinquenta cruzados que
tinha, a três sábios por três conselhos que até hoje guardei. E do primeiro, que
era ser sempre leal, como o fui, resultou que subi a mais do que merecia, nem
esperava, como é chegar a servir de mordomo-mor da rainha. E neste tempo que
a servia, sendo Vossa Majestade ausente, senti que um escravo de casa saiu do
paço com certas peças ricas, que me pareceu levava de mau título: tomei-lhas, e
por não infamar à pessoa que as devera guardar, ou quem lhas deu para as
vender, dissimulei o caso, forrei o escravo, e mandei-o fora do paço, dando-lhe
dinheiro para o caminho; no que tudo usei do segundo conselho, que era — ser
misericordioso quando fosse poderoso. Agora levando a carta que Vossa Alteza
me mandou, achei-me a uma légua da fortaleza com o cavalo desferrado;
conheceu-me aquele escravo, que com o dinheiro que lhe dei aprendera a
ferrador, e estava ali casado, e quando me viu ferrou-me o cavalo, mostrando e
fazendo-me muito gasalhado me importunou que pousasse com ele aquela
noite, o qual eu aceitei por guardar o terceiro conselho, que era tomar pousada
com sol. O preto por me pagar, sem eu o saber, me tomou a carta da cabeceira,
porque lhe disse que a levava àquele capitão, e de madrugada partiu de sua casa e
a levou; donde resultou que conforme ao que nela dizia ele padeceu. Pode ser
que quem tinha culpa das peças que digo, quando achou que não parecia o
negro, temendo ser descoberto de mim, quis com minha morte inocente segurar
a vida maliciosa pondo-me algum falso testemunho.
El-rei ouvindo isto pasmou e fez vir ante si quem o acusava, o qual a poucas
perguntas confessou ser ele culpado em delitos que cuidava o mordomo-mor
sabia e por escapar lhe alevantou tudo o que contra ele se disse a el-rei. El-rei o
pôs em justiça e por ela foi condenado à morte, que logo se executou. E assim
pagaram ele e o negro como malfeitores, e escapou o inocente mordomo.
(Trancoso, Contos e Histórias, parte 1, n.º XVIII)
NOTA: Conserva-se ainda no povo este tema tradicional, a que Trancoso deu
forma literária. Vid. vol. 1. pág. 338 (Os Três Conselhos) e nota correspondente. O
tema da morte do mensageiro repete-se na tradição do Pajem da Rainha Santa
Isabel. (Vid. a nota de O Pajem da Rainha) Encontra-se uma versão no Conde de
Lucanor, de D. Juan Manuel, Conto XLVI: De lo que acontecio al mercador
que fue a comprar rosas. Fl. 118 X. (1642) Ed.
QUANTO VALE A BOA SOGRA

Uma nobre dona deu a um mancebo, que ia para as Índias de Castela, uma
beatilha, muito fina, que lha levasse de encomenda, dizendo, que lhe rogava que
a vendesse pelo mais que pudesse, e partiriam ambos o dinheiro. E o mancebo,
não por cobiça do ganho, mas por fazer bem à viúva, que tinha uma filha
virtuosa que manter, a guardou e levou a recado. Perderam os portugueses toda
a mercadoria que levavam, e de nojo morreram quase todos antes de vinte dias;
porém como não perdiam a roupa do seu corpo, houve este mancebo o caixão da
roupa de linho, donde metera a beatilha, e como se viu solto determinou por
misericórdia pedir a fazenda que perdera, e para se lhe fazer nisto favor teve
maneira como mandou aquela beatilha rica de presente à mulher do Justiça
Maior daquela terra. E ela tanto que a viu a aceitou, e desde logo trabalhou o
marido tudo o que pôde para que desse a fazenda àquele homem. E assim lhe
deram cinco vezes mais de que lhe tomaram, e vendeu também o que lhe ficou
na roupa de linho, que fez grande fazenda, e tudo feito em pedaços de ouro, veio
a Portugal riquíssimo.
Estando este mancebo já repousado em sua casa, disse-lhe um dia a sua própria
mãe:
— Filho, se fizeste algum dinheiro da beatilha da vizinha, rogo-vos que o
mandeis a sua filha, que ficou órfã.
E ele vendo isto, e tendo diante dos olhos que tudo o que trouxe lhe veio de
presentar a beatilha como presentou, tomou cinquenta cruzados de ouro e deu-
os à mãe:
— Dizei-lhe que tome isto por então.
Assim lhos mandou, e isto fez por quatro vezes; e a mãe vendo que ele tinha já
dado tanto dinheiro, e que lhe parecia não ter satisfeito, lhe disse:
— Filho, se vós tanto lhe deveis, que com o que lhe tendes dado não vos parece
que pagais, fazei o que eu vos disser, que eu vos rogo que caseis com ela, e que
verdadeiramente por sua pessoa o merece.
O mancebo ouvindo isto de sua mãe, aceitou o casamento, que se logo tratou.
Foram desposados e a seu tempo recebidos, porém como diz o rifão, que a órfã
não goza nem o dia da sua boda, assim aconteceu a esta, que o dia que os
receberam, azevieiros difamadores vinham da igreja detrás deles murmurando
do noivo porque se casara com aquela que sua mãe a vendera primeiro. E isto
diziam tão desavergonhadamente, que deram ocasião a que o noivo o ouvisse.
Porém, des então lhe ficou um rancor no coração, e tão grande menencoria
consigo, que se não podia consolar, tendo-a também contra a mãe. E assim
despedida a gente que os acompanhou até casa, ele disse que ia por certa cousa
que lhe faltava por trazer, e também se saiu de casa sem nunca mais tomar a ela.
Ficou a este tempo a noiva mais triste que a noite, sem ter consolação de
ninguém nem saber a causa daquela mudança, que não sabia que conselho
tomar, e certo se deixara morrer de nojo, se não fora a boa sogra que tinha, que
esta a acompanhou todo o tempo que lhe durou seu trabalho.
Porém como o mancebo tinha para si que era enganado, apartado daquela
vizinhança, em outra rua tomou casa, em que a pôs de mercadorias que ele sabia
tratar, com um sobrado em cima em que viveu mais de dois anos. Neste tempo
indo a mãe a ver o filho, algumas vezes lhe achou mulheres em casa. E tanto que
a mãe sentiu isto, imaginou o que havia de fazer, e foi-se a casa e disse a sua
nora:
— Filha, sempre tomaste meu conselho, e espero também tomareis agora este
que vos der: e é que deixeis estes trajes tão honestos e tristes e vos façais mui
fermosa e leda com outro traje que pareça de mulher que vai em corpo fora.
Fiai-vos de que vos acompanharei até vos mostrar a lógia de vosso marido;
entrai nela, e fingi comprar para um corpinho.
Daqui lhe aconselhou o que havia de fazer e se foi com ela até lhe mostrar a
porta da lógia, e a velha se tornou para casa. A moça viu seu marido,
envergonhada, pelo transe em que estava lhe veio outra cor ao rosto, que a fez
mais fermosa, ainda que ela o era assaz, e esteve um pouco suspensa. O marido
que a viu, não suspeitando nem por imaginação que fosse, lhe perguntou o que
queria, e a fez entrar, e deu ordem como despedir os que ali estavam, e ficando
com ela só começou a falar-lhe de amores, a que ela envergonhada não sabia que
responder. Ele a importunou, e ela aceitou ficar ali aquela noite, em que ele
conheceu claro que ela era muito fermosa. E chegada a manhã, ela lhe pareceu
que já não era razão nem tempo de usar tanta vergonha:
— Muito tempo há que vos tenho por meu senhor, e se até agora tardei e estive
sem vo-lo notificar foi por vos dar mostra de minha pessoa, que foi tão mofina,
que sem me ver nem haver porquê, me enjeitastes. E se todavia agora me
enjeitais mandai chamar vossa mãe que me leve, que ela me trouxe.
Quando ele entendeu isto e viu ser aquela sua mulher, não sabia determinar o
que faria, que por aquela noite que a teve, se ela não fora sua mulher, e ele fora
solteiro, lhe pareceu que lhe merecia casar-se com ela. E estando nestas
considerações, começaram a bater-lhe rijo à porta, e ele chegou a uma fresta, e
conhecendo que quem batia era sua mãe, lhe foi abrir, a qual, em entrando pela
casa disse:
— Filho, que vos parece da donzela que vos acompanhou esta noite? Credes que
é a que eu disse, já que sabeis que é vossa mulher?
Ele vendo a fermosura da mulher e sua grande humildade, e conhecendo que o
que ouvira foi engano, pesou-lhe do tempo em que deixou de estar com sua
nobre e virtuosa mulher, e com bom coração na vontade pedia perdão do agravo
que até então lhe tinha feito, e se começaram a abraçar como se então se viram a
primeira vez, e ficaram marido e mulher muito contentes, e tiveram a velha mãe
dele por mãe de ambos, que por esta se pode bem dizer:
A sogra boa
Da nora é coroa.

(Trancoso, Contos e Histórias, parte II, conto 1.°)

NOTA: Nos romances metrificados, como de Dom Bozo e D. Pedro, a sogra é


sempre crua. A mulher que engana o marido metendo-se com ele na cama é um
tema popular de muitos contos; este, porém, já recebeu forma literária na
composição de Shakespeare, Tudo É Bom quando Acaba bem.
O QUE DEUS FAZ É PELO MELHOR

Havia um médico, bom homem, em corte de um poderoso rei, sem refolho de


malícia, que visitando Sua Alteza, ainda que o achasse afligido com qualquer
trabalho ou dor não mostrava entristecer-se, mas, aplicados os remédios que
entendia lhe eram necessários, consolava el-rei dizendo: que se não agastasse,
que sofresse seu trabalho com paciência, porque tudo o que Deus faz é pelo
melhor.
Aconteceu que morreu o príncipe herdeiro do reino, pelo que el-rei esteve
encerrado e muito triste; e querendo este médico visitá-lo e consolá-lo, como
todos faziam, o fez com as palavras de seu costume, dizendo-lhe:
— Senhor, não vos agasteis tanto, que seja ocasião de perda de vossa pessoa;
tudo que Deus faz é pelo melhor.
El-rei não teve paciência a este dito em tal tempo, e disse:
— Que pior me podia ser a mim acerca do príncipe, que morrer-me ele!
Prometo de me vingar deste simples e ver se lhe dará por melhor a morte que lhe
mandarei dar, se deixá-lo viver.
E chamou dois homens, que eram para isso, e disse-lhes:
— Ide após Fuão, que agora vai daqui, e dizei-lhe que lhe quereis dar um
recado meu, e como chegar a ouvi-lo matai-o que eu o mando; não temais a
justiça.
Os quais foram a casa do médico e acharam a porta da escada fechada, porque,
como todos traziam dó pelo príncipe, ele também quando chegou a sua casa
vinha muito afrontado, e para comer despiu-se por desabafar, ficando em calças
e gibão, e por não ser achado assim se alguém o buscasse, que lhe pareceu que
estava desonesto, mandou cerrar a porta da rua, e os que o vinham matar
disseram que traziam recado de el-rei, e o médico alvoroçado com isto lançou
sobre si o capuz de dó, e quis ir adiante dos moços a abrir-lhe ele a porta, e com
a pressa ao descer empeçou no capuz e de tal maneira se atravessou na porta que
quebrou uma perna pela coxa, de que dava grandíssimos gritos. Acudiram os
servidores de casa; tirando-o dali o lançaram na cama, que os brados que dava
era lastimosa coisa de ouvir. Foi curado por donas de sua casa, como ele mandou,
e respondido aos homens que estavam à porta que se fossem e dissessem a Sua
Alteza o que acontecera; e eles o fizeram assim. E o médico esteve mais de seis
meses em uma cama, que cuidaram que morresse daquilo; porém sarou, e depois
que se ergueu, coxeando da perna foi beijar as mãos a el-rei, e el-rei vendo-lhe o
defeito que tinha e o trabalho passado, o quis consolar com palavras meigas; mas
o médico pelo costume que tinha não aceitou consolação:
— Não me pesa disso, porque o que Deus faz é pelo melhor.
Ouvido por el-rei e visto como em causa própria, teve-o dali por diante por bom
homem, e perdeu o rancor que contra ele tinha; e visto na verdade ser por
melhor o quebrar-lhe a perna, que se a não quebrasse morrera, como ele
mandava, lhe fez mercê para seu gasto, e aceitou seu conselho.

(Trancoso, Contos e Histórias, parte II, conto III)

NOTA: Acha-se no Conde de Lucanor, de D. João Manuel, n.º XVII (ed. 1642,
fl. 81 v). Indubitavelmente esta redação do século XIV tem uma fonte árabe. Na
pág. 90 deixámos outra redação portuguesa do ms. do século XLV (O Que Deus
Faz É Por Melhor). Orto do Esposo.
A RAINHA VIRTUOSA E AS DUAS
IRMÃS

Um rei mancebo, que não tinha conversação de mulher alguma, requerido dos
seus que se casasse, com desejo de achar na sua própria terra mulher para isso,
refusava o casamento de muitas princesas forasteiras que lhe traziam. E queria
que a mulher fosse de virtuosos costumes, claro sangue e boa vida, sem respeito
a fazenda, pelo que por dote queria que tivesse estas três cousas. E andando com
esta imaginação passeando um dia por uma rua, saíram certas mulheres e moças
todas fermosas a uma janela, e quando el-rei passou ficavam falando umas com
outras, que el-rei as ouviu, e não entendeu o que diziam, e por saber o que era
chamou a si fidalgos que estiveram mais perto. Foi-lhe respondido:
— Senhor, uma disse que se ela casasse com Vossa Alteza, se estrevia a fazer de
suas mãos lavores de ouro e seda, tão ricos e tanto em vosso serviço, que se se
avaliassem valessem tanto dinheiro que bastasse para gasto da mesa. E a outra
respondeu que aquilo era muito, mas que se ela tivesse tal dita que casasse com
ele, lhe faria camisas e outras cousas de que tivesse necessidade. E a outra
respondeu: Ambas não sabeis o que dizeis, nem vale todo vosso lavor tão
estimado tanto que basta para vossa mantença; eu vos digo o que farei: Se
chegasse a estado de casar eu com el-rei, de seu ajuntamento lhe pariria dois
filhos fermosos como o ouro e uma filha mais fermosa que a prata, o qual é
prometer que as mulheres podem cumprir.
El-rei folgou de o ouvir, e notando as considerações em que elas estavam propôs
de casar com uma delas. Visto isto mandou chamar mulheres de título, donas e
senhoras, a quem deu conta, diante das quais quis falar com estas donzelas para
se determinar qual tomaria por mulher. E logo fez vir ante si a mais velha, que
vista foi julgada por muito fermosa; el-rei lhe perguntou:
— O que prometestes fazer estando à vossa janela se eu casasse convosco,
estrevei-vos a cumpri-lo?
Ela se envergonhou, e mudada a cor disse:
— Farei em seu serviço tudo o que minhas forças bastarão.
El-rei a fez recolher e vir a segunda; porém nas perguntas aconteceu assim
como à primeira, pelo que el-rei a fez recolher e vir a menor, que claramente
mostrou ser ela a mais fermosa de todas. El-rei lhe perguntou se se estrevia a
cumprir o que prometera, e ela muito envergonhada respondeu:
— Senhor, sim; com as condições que então disse.
Coube isto em tanta graça a el-rei, que ele a recebeu por mulher e se fizeram
grandes festas que duraram muito. E el-rei trouxe para casa da rainha as duas
irmãs que a acompanhassem, e elas foram servidas e tratadas como irmãs da
rainha sua mulher. El-rei fez vida mui amorosa com sua mulher, porém durou
pouco tempo, porque com inveja que tinham do estado da rainha ambas de um
conselho lhe buscavam todo o dano e como a poder empecer e tirar da alteza e
honra em que estava. De sua indústria, com falsas testemunhas naquele parto e
em outro dois diante, publicaram com falsidade que a rainha parira monstros
peçonhentos e não criatura, e os fizeram ventes aos que tinham razão de os ver,
de que o reino todo se alterou, e el-rei aborreceu tanto a sua mulher, que
lançando-a fora de casa não lhe permitiu em todo o reino lugar nenhum em que
tivesse repouso, e as irmãs lhe buscavam tanto mal, que o faziam a quem a
recolhia; de modo que a rainha veio a ser a mais pobre e abatida mulher de
serviço que em seu tempo houve na Terra, porém permanecendo em toda
limpeza se fingiu forasteira e por mulher de serviço a recolheram em um
mosteiro de freiras. As irmãs procuravam ilicitamente de ver se podiam agradar
a el-rei, o qual dissimulando e apartando-se da conversação delas fazia que as
não entendia, e quando se achava só dizia mal da fortuna que lhe apartava da sua
presença a coisa do mundo que ele mais amava, e para recreação do desgosto que
trazia consigo não tinha outra consolação senão ir muitas vezes em um barco
pelo mar ao longo da terra por esparecer. Algumas vezes pescava e outras ia à
caça ao longo de algumas ribeiras. E costumando isto, aconteceu que um dia
indo ao longo de uma ribeira acima, viu à borda de água uma casa feita de novo.
E chegando perto, desejando saber cuja era, viu a uma janela um menino que
seria de sete anos, de muito fermoso rosto, pobremente vestido, perguntou-lhe:
— Filho, quem mora nesta casa?
E o menino como muito criança, disse:
— Senhor, mora meu pai, que não está aqui; se Vossa Mercê quer que chame
minha mãe, virá logo.
E neste tempo outro menino de menos idade dizia dentro:
— Senhora mãe, senhora mãe! aqui está um fidalgo à nossa porta.
E a esta conjunção saiu uma mulher à porta da rua com uma menina pela mão,
pequenina, e disse:
— Senhor, que manda Vossa Mercê?
El-rei, que tinha pregados os olhos e o coração nos meninos que via, tendo no
sentido que os filhos da rainha sua mulher já houveram de ser daquele tamanho,
lhe disse:
— Vejo estas casas novas ao longo desta ribeira, e estes meninos tão fermosos,
folgaria de saber cujo isto é?
Ela respondeu:
— Senhor, as casas e os meninos são meus e de meu marido.
— Dona, as casas creio que serão; mas os meninos, sois já de dias, que parece não
deveis de ter tão pequenos filhos. Dona honrada, sou el-rei, e quero saber cujas
são estas casas e estes meninos.
Ela se humilhou muito e com os geolhos no chão, que ao que perguntava
soubesse: — que as casas eram suas, mas que os meninos ela não sabia cujos
filhos eram mais que trazer-lhos seu marido, que aquela manhã fora ao mar e
viria à noite. Então disse el-rei:
— Pois dizei-lhe que amanhã ao jantar vá ter comigo ao paço, e leve estas
crianças para me dizer o que sabe delas, que o hei de esperar sobre mesa.
E ela assim lho prometeu. Ido el-rei, como se meteu ao longo da ribeira, já ia
acompanhado de muitos dos seus e iam buscando se descobririam alguma caça;
Sua Alteza viu umas lapas que parecia que outro tempo foram pedreira e de
dentro saiu uma mulher, que trazia os cabelos muito grandes, soltos e pretos, e
os vestidos muito rotos. E assim como ela saiu viu a el-rei e com muita diligência
se tornou a meter para dentro para se esconder; mas como foi vista, el-rei a
seguiu e asinha a alcançou:
— Quem sois? E porque estais neste ermo?
Ela que conheceu mui bem que era el-rei o que lhe falava, lhe disse:
— Para que quer saber Vossa Alteza a vida de uma mulher desventurada, que
em penitência de seus pecados a faz desta maneira, que agora vê?
El-rei, que viu que era conhecido dela, e que por muito que lhe rogou não quis
dizer quem era, desejoso de o saber a fez tomar por dois homens, lhe mandou
dar uma capa de água sua, e um sombreiro, que se cobrisse e a pusessem em
ancas de uma mula, e que um escudeiro com muito resguardo a levasse ao paço,
e sem que fosse vista de outra pessoa alguma a tivesse até que ele chegasse, o
qual se fez assim. Ao outro dia, chegadas as horas de recolher à mesa, trouxeram
aquela mulher por mandado de el-rei, que de novo lhe perguntou quem era e
porque andava daquela sorte; e ela cheia de lágrimas e soluços disse:
— Estando eu nesta casa em muito viça, favorecida da rainha e de suas irmãs,
elas me apartaram um dia, e me disseram que Sua Alteza estava de parto,
quando a primeira vez pariu, e que elas tinham determinado lança um grande
sapo-cão nas páreas quando deliberasse, para dizer que aquilo pariria a rainha, e
que eu com diligência tomasse a criança, que elas ma dariam envolta em panos,
que fosse lançar no mar, e que isto faziam, porque não acertasse de parir filhos
como o prometera. Tomei a criança acabada de nascer, que era um filho, e logo
em minha presença tiraram um grande sapo que tinham em uma panela, e o
embrulharam com as páreas; e isto feito gritaram fingindo que isto era medo do
sapo e lançaram a fugir juntamente com elas a parteira. E com esta revolta tive
muito tempo para me sair do paço levando a criança comigo, e quando me vi na
rua encaminhei para o mar, e fui ter junto àquele lugar donde Vossa Alteza me
achou; desembrulhei a criança, vi que era varão, e nisto vi vir um velho pescador:
deixei a criança embrulhada nos fatos como vinha e lancei a correr fugindo.
Ele como me viu deixar aquele vulto, foi ver o que era, e como lho vi erguer do
chão e levá-lo para sua casa, tornei-me ao paço com o rosto ledo, e disse às
senhoras que o lançara ao mar. Foram contentes do que eu disse que fizera, e
desta maneira aconteceu outra vez no segundo parto, quando disseram que a
rainha parira uma cabra; fugindo todas, fugi eu também e levei o infante ao
próprio lugar donde levara o outro. Antes de outro ano, ou nele, a rainha veio a
parir outra vez; chegada a hora me deram outra criança e fingiram como de ante
haver a rainha parido uma toupeira, que tinham para isto prestes; e no espanto e
alvoroço disto, quando fugiram fugi eu e fui ter à borda de água no lugar donde
deixei seus irmãos, e vi que levava uma menina. Esmoreci, e quanto acordei
achei o pescador comigo, e me dizia:
— Descoberta há de ser esta cousa a el-rei.
E porque me temi que buscasse no paço não quis tornar a ele, e meti-me
naquelas lapas, em que haverá bem quatro anos que estou.
El-rei acabando de ouvir, ficou espantado das treições que as irmãs fizeram
contra sua irmã, as quais ambas foram chamadas e viram a donzela e entenderam
tudo o que ela tinha dito, e como tudo era verdade não tiveram boca com que o
negar e como que queriam falar uma com a outra se chegaram a uma janela
daquela sala que ia ter ao mar, e abraçando-se ambas se lançaram em baixo com
tanta presteza que se lhe não pôde estorvar. Ainda a gente do paço não estava de
todo sossegada deste alvoroço quando entrou pela porta o velho pescador e sua
mulher; traziam no colo dois infantes e a infanta. E chegando ante el-rei o velho
se adiantou de sua companhia, e disse alto que todos ouviram:
— Disseram que ontem passara Vossa Alteza pela porta de casa em que vivo, e
vendo estes meninos perguntou cujos filhos eram, e porque minha mulher lhe
não deu razão suficiente, Vossa Alteza mandou que viesse eu aqui e os
trouxesse, que queria saber cujos filhos eram tão fermosos meninos; pelo que
vim e os trago comigo.
Ouvindo isto, e visto o que a donzela dissera, todos os circunstantes a uma voz
diziam que todos aqueles três eram filhos de el-rei; e as donas todas da casa
viram e conheceram todo o fato em que os infantes foram envoltos. Logo el-rei
mandou por todo o reino em busca da sua rainha, e que se publicassem as novas
do achamento dos três filhos infantes, e da treição das irmãs da rainha e sua
morte. E foi ter esta nova ao mosteiro onde a rainha estava; todos viam nela mais
alegria, que em nenhuma outra pessoa, e foi tanta que suspeitaram o que era, e a
rainha vendo que já não era tempo de se encobrir, lhes manifestou e declarou a
verdade.
El-rei mandou chamar toda a fidalguia da corte e muitos senhores, que
trouxessem suas mulheres, e com todos eles e elas em grande festa levou a rainha
dali para o paço com tanto alvoroço de alegria como se então se casaram de novo.

(Trancoso, Contos e Histórias, part. II, conto VII.)


NOTA: (Vid. a versão popular, n.º 39 e 40 e nota respetiva.)
Nos Contos Populares Portugueses, p. XVIII, este conto foi resumido para
justificar os seus numerosos paradigmas; árabe, na História das Irmãs Invejosas,
das Mil e Uma Noites; italiano, do século XVI em Straparola, nott. IV, cont. 3; e
variantes, coligidas por Imbriani, Gubernatis, Laura Gonzenbach, Pitré,
Comparetti e Schneller; a versão húngara, coligida por Ch. Graal; a alemã, por
Grimm, Ullf, Ernest Meyer e Henri Prohle, Fremann; a austríaca, por
Vemalcken e Zingerli; a avárica e a catalã, por Maspons y Labrós. No
Romanceiro do Arquipélago da Madeira, aparece este conto extensamente
metrificado sobre o ditado vulgar.
QUEM TUDO QUER, TUDO PERDE

Um homem muito rico, mercador famoso, teve um filho somente, o qual se


criou com tanto mimo, que já seu pai não podia com ele de travesso, e por
querê-lo então sujeitar com doutrina e castigo, o moço lhe fugiu e se foi. E
passando lá muito trabalho, se passaram mais de vinte e cinco anos sem vir, nem
mandar cartas suas, de maneira que alguns o tinham por morto. Neste tempo o
mercador veio a grande crescimento de fazenda, quintas, casas e outras herdades
e chegando a velhice, no último da vida fez seu solene testamento: «Deixo por
meu universal herdeiro ao mordomo de minha casa.» De tudo o que tinha fez
inventário mui copioso, e no cabo disse: «Porém digo que tenho um filho, o qual
há muitos anos se foi desta terra contra minha vontade, e não sei de certeza se é
vivo ou morto; se este meu filho for vivo e aparecer como eu desejo, quero que a
quem ora deixo por testamento e universal herdeiro desta minha fazenda lhe dê
ao dito meu filho o que quiser, sem ser constrangido a outra cousa, e a demasia
lhe fique.»
E desta maneira houve seu testamento por acabado, e desta enfermidade
morreu. Soube-se sua morte na terra onde estava o filho, o qual ouvindo a morte
de seu pai e da grossíssima fazenda que deixou, partiu donde estava e veio a sua
casa; e entrou por ela como por casa própria, perguntando quem tinha aquela
casa e fazenda. Foi-lhe dito quem e por que título; e ele disse quem era, e foi
conhecido por velhos que foram criados de seu pai. O mordomo, que o ouviu e
entendeu bem isto, lhe respondeu:
— Esta fazenda, ainda que ficou de vosso pai, é toda minha e não tendes nela
mais do que dar-vos eu o que eu quiser. Vede o testamento de vosso pai, que ele
vos desenganará, que vos não devo mais dar-vos o que eu quiser.
E mostrou-lhe a verba do testamento que o dizia assim à letra, como já
declarámos. E o mancebo lhe pedia que fizesse conta que eram irmãos e que
partisse pelo meio o qual o mordomo não quis. Visto isto, disse o mancebo:
— Ora, já que sois obrigado a dar-me alguma cousa, pois diz que me dareis o
que vós quiserdes, pergunto, que é que vós me quereis dar, pois meu pai o
deixou em vosso alvedrio?
Respondeu que lhe daria como cinco mil cruzados, valendo a fazenda mais de
cem mil. Rogaram ao mordomo que desse o que fosse honesto; ele nunca quis
vir em nenhum arrazoado, pelo qual o demandou, e ambos vieram a juízo e
ambos houveram o testamento por bom; porém dizia um que seu pai o não
podia deserdar sendo vivo, nem nunca tivera essa tenção. Dizia o mordomo:
— Já teu pai presumia que eras vivo, e para vivo mandou que te desse o que eu
quisesse, e assim não sou obrigado a mais.
Sobre o caso houve libelo, réplicas e o mais que em direito se costuma até
razoado final, que indo o feito concluso, como o caso era de tão grossa fazenda,
quis o rei da terra ser presente na determinação da sentença. Entre os mesmos
julgadores havia diferenças; porém um velho se levantou em pé e disse:
— Ora, Senhor, veja Vossa Alteza o testamento, que diz: Dará o mordomo ao
filho o que ele mordomo quiser dar; portanto vós, mordomo, dai ao filho do
mercador isto que vós quereis, e fique-vos para vós o que lhe dáveis, porque a
tenção do pai nunca foi deserdar o filho, mas por sustentar sua fazenda a fiou de
vós. Para se cumprir o testamento é necessário dar-lhe o que vós quiserdes, e
quiseste a maior parte, essa julgo que lhe deis, e fique-vos o que lhe dáveis.
El-rei, e todos os que ali estavam presentes houveram o caso por muito bem
julgado e aprovaram a sentença, e assim se cumpriu.

(Trancoso, Contos e Histórias, parte II, conto VIII.)


VARIANTE
«Como se conta de um homem, que tinha uma filha bastarda; quando veio a
hora da morte, fez um testamento e disse: — Leixo a Fuão por meu herdeiro, e
mando que dê a minha filha pera seu casamento tudo aquilo que ele quiser de
minha fazenda.
Crescida a moça, dava-lhe o herdeiro cem mil reais para casamento, que era mui
pouco: e sobre isso, vieram a juízo. Perguntando o juiz ao herdeiro quanto valia
a fazenda e quanto dava à moça, respondeu que valia um conto e que dava cem
mil reais. Disse o juiz, logo vós quereis desta fazenda novecentos mil reais?
Respondeu o herdeiro, sim. Pois segundo a verba do testamento (disse o juiz) vós
havereis cem mil reais, e a moça novecentos; porque ela há de haver aquilo que
vós quereis da fazenda do testador, e esta foi sua vontade, mas leixou a verba
anfibológica por olhardes melhor pola fazenda de sua filha, até ela ser em idade
para casar. E destes exemplos há muitos, de que os oráculos dos gentios usavam
para enganar os seus devotos.
João de Barros, Gramática, p. 170, 1540.

NOTA: Acha-se na coleção italiana Il Novellino, conto X; passou a adaptar-se


aos Jesuítas, e atribui-se a diferentes personagens históricos. A forma italiana
vem em Nannuci, Manual della Letteratura, t. II, p. 65.
O FALSO PRÍNCIPE E O
VERDADEIRO

Acabado de repousar a sesta um rei viúvo, que já saía fora da câmara para a
guarda-roupa, muitos fidalgos mancebos lhe apresentaram um, que traziam
ante si preso, e postos ante ele lhe disseram:
— Senhor, estando agora na sala grande jogando a pela o príncipe com este
fidalgo e outros, sobre uma chaça vieram a ter diferença no jogo, e tanta que o
príncipe menencorio contra ele o afrontou e lhe disse palavras muito feias e mal
ditas, que este fidalgo alevantou a mão e lhe deu tão grande punhada no rosto,
que lhe ensanguentou os narizes e a boca, cousa que a todos nos pareceu tão mal
que o queríamos matar por isso, e o fizéramos se não fora pelo duque seu avô,
que com grandes brados se pôs no meio, dizendo:
— Que pois Sua Alteza estava na terra não quiséssemos nós tirar-lhe seu
mando.
El-rei que o ouviu entendeu bem o caso, e disse:
— E o príncipe a esse tempo não tinha consigo nenhumas armas? Ou como lhe
não tirou a vida?
— Armas, tinha; que traz adaga na cinta; porém tanto que se viu ensanguentado
se pôs a um canto da sala a chorar, coisa que de todos lhe foi muito estranhada.
El-rei deixando passar um pequeno espaço em o qual deu lugar a apartar de si a
grande ira que com a súpita menencoria tinha concebido contra o fidalgo, e
sossegado no espírito, disse:
— Afirmo-vos, que em verdade, que mais quisera que me dissésseis que o
príncipe era morto ainda que não tenho outro filho, que saber que sofreu essa
injúria tamanha sem se vingar dela. Quero, que seja ouvido este fidalgo ante os
meus desembargadores, guardando-lhe também a ele seu direito e justiça, que
creio não terá nenhuma desculpa que o escuse de morte, havendo feito tão
grande delito como fez.
E ainda que o mancebo a este tempo quisera responder, el-rei o não quis ouvir,
mas mandou-o ter preso e arrecadado com grande guarda; porém que se
quisesse ir a alguma parte da cidade que o levassem com muito resguardo e
segurança, e que esta prisão fosse por quinze dias, dentro dos quais se provesse
do que lhe cumprisse, e no cabo se apresentasse ante ele e os seus
desembargadores. Muitos fidalgos que se acharam presentes acompanharam a
este mancebo e lhe aconselhavam que se fosse. Porque o podia fazer não
somente da cidade mas do reino até à raia na fronteira dos imigos, onde
trabalhando em armas na guerra podia fazer cousa com que el-rei lhe perdoasse
o mal que fizera, o que ele não aceitou nem quis nunca quebrar a prisão que lhe
deram. E assim se lhe passaram os catorze dias do prazo em os quais, ainda que
buscou conselho de letrados e fidalgos para sua salvação, não achou quem lhe
aconselhasse cousa que o satisfizesse, nem desculpa do delito, porque a todos
parecia caso de morte. E mui inteiro nesta tenção saía alguns dias de sua pousada
acompanhado de seus guardadores por se desagastar, e para ver se achava quem
lhe abrisse algum caminho como parecesse mais despejado diante de el-rei.
Recolhendo-se quase noite encontrou à porta de um mosteiro uma mulher
muito velha, que ao parecer seria de noventa anos, muito feia, seca e mal-
arroupada, e ela que o estava esperando, chegou-se a ele e disse-lhe:
— Senhor, eu vos faço saber que sei a pressa em que andais e o remédio que
tendes para sobrar vossa vida do caso que vos aconteceu; para o qual não achareis
no mundo quem vos aconselhe o que vos cumpre senão eu, e seguindo a ordem
do meu conselho sereis livre desta afronta e ficareis o mais honrado de vossa
geração. Porém, antes de tudo, para que eu tenha razão de vos dar a indústria e
modo que necessário é neste caso, convém que façais por mim o que vos eu
pedir.
O fidalgo tanto que a ouviu e entendeu o que lhe dizia, foi em extremo ledo,
prometendo-lhe de fazer por ela tudo o que lhe mandasse; porém ela disse que
havia de ser logo, e que o que lhe pedia era que a recebesse por sua mulher, do
qual ele se maravilhou muito e respondeu:
— Deixando à parte a qualidade das pessoas, em que não falo, vossa idade não
conforma com a minha, que eu ainda não fiz vinte anos e vós pareceis de cento
ou quase, pelo qual não posso casar convosco.
Ela se mostrou muito agastada e respondeu:
— Embora; e vós enjeitais-me por velha, pois eu vos certifico que me haveis de
rogar e receber, senão que ireis a casar com a picota, que é mais antiga deixando-
lhe lá a cabeça por arras.
E assim se apartou dele, indo muito direita pelas ruas. O fidalgo, que com as
suas palavras estava já esforçado e com esperança de vida, vendo-a ir, e temendo
se fosse ficaria sem remédio, foi-se após ela com tenção de lhe prometer o que
pedia, e tanto a seguiu, que a alcançou e lhe disse:
— Senhora, perdoai-me não aceitar antes de agora o que me pedistes, que eu
conheço que errei e quero fazer o que me mandardes.
E assim se foi ela a sua pousada e ali em mãos do cura prometeu e jurou de a
receber por sua mulher; porque sem isto não lhe quis ela dizer cousa alguma. E
tanto que perante testemunhas foram jurados, ela lhe aconselhou o que devia de
fazer aquela noite e o que havia de dizer ao outro dia apresentando-se diante de
el-rei. Vindo a manhã, quando foram horas e soube que estava el-rei com os
desembargadores na casa de despacho se foi lá, e lhe fez saber que estava ali, que
se vinha livrar. El-rei mandou que entrasse, maravilhando-se todos de sua
ousadia; e ele entrando disse o seguinte:
— Mui alto e poderoso rei e senhor nosso, ainda que Vossa Alteza está
menencorio, a seu parecer com razão, se me ouvir diante destes fidalgos e
letrados com ânimo desapaixonado, e de sua pessoa que será a principal
testemunha do que disser, ficarei desculpado e com muita honra; para o qual
somente lhe peço por mercê me queira ouvir, até que acabe de todo o que quero
dizer. Havendo quatro anos, pouco mais, que Vossa Alteza era casado com a
rainha, vendo que ela não paria, desejoso de ter filhos era afeiçoado a mulheres, e
a ela não mostrava tanto amor como no princípio. Por lhe ganhar a vontade,
aconselhada de outras mulheres se fingiu prenhe, e assim haveria príncipe no
reino e Vossa Alteza lhe teria mais amor. O que tudo se ordenou e fez como ela
pedia, e as parteiras lhe trouxeram um filho de uma pobre mulher, que morava
fora dos muros da cidade, cujo marido era um cavouqueiro. Isto tudo se fez com
tanto segredo, que nunca até hoje foi descoberto. Com esta imaginação a rainha
adoeceu de enfermidade de que morreu, dando primeiro conta a seu confessor
do que fizera. Verificado não ser príncipe o que cuidavam que o era, ficará o
meu caso menos grave e eu não merecendo tanta pena por sua parte. E se Vossa
Alteza não se esfada, ainda lhe direi adiante outras novidades maiores do tempo
e de mim, que fazem ao caso e folgue de as saber.
El-rei lhe disse:
— Por certo, que o que até aqui me dissestes foi tanto e estou disso tão
espantado e triste, que não posso imaginar que possais dizer adiante cousa
maior, nem que eu receba alegria; porém, por saber que é, e por vos ouvir como
tenho prometido, dizei.
— Saberá Vossa Alteza, que havendo quase dous meses que a rainha se fazia
prenhe, por encobrir melhor o engano não consentia que houvesse mais
ajuntamento, e per a não anojar, se foi para fora desta corte Vossa Alteza e assim
andando pelas terras do duque meu avô mandou rodear a cerca por ver se havia
entrada no pomar; e achando-lhe uma pequena porta a fez lançar fora do couce,
e aberta viu que andavam dentro mulheres, e uma donzela muito fermosa, que
naquele tempo seria de catorze anos, e peitando com joias e dinheiro aquelas
que a deveram guardar, a meteu na casa do pomareiro, e ali houve ajuntamento e
lhe deu estes três anéis que Vossa Alteza levava nos dedos, e esta cadeia com esta
cruz e lhe descobriu que ele era rei, ainda que ela não lhe quis dizer quem era,
porque ficou tão anojada de seu corrompimento, recolheu-se em casa sem
tornar mais em sua vida ao pomar. Seu pai, que é o duque meu avô, tomou isto
por mal, porque minha mãe se determinou de não casar, e como o duque não
tem outro filho nem filha senão minha mãe, e sabia ser eu seu neto, criou-me
com mimo, pois sou com verdade filho de Vossa Alteza, e veja se conhece estes
anéis, cadeia e cruz. E assim sendo isto verdade, como é, já vê que este que até
agora se teve por príncipe o não é, que se o fora não couberam em sua boca as
palavras torpes e vis que me disse.
E com isto se pôs em geolhos na alcatifa que estava aos pés de el-rei; admirados
ficaram todos os desembargadores e fidalgos que estavam presentes, em especial
Sua Alteza, que então se lhe representou diante dos olhos aquela donzela
fermosa e como a houvera naquele pomar, e as muitas vezes que desejou saber
quem era; lembrou-se que ele dera aquelas joias, conheceu-as e considerando o
mais que fica dito, teve para si que aquele que tinha diante dos olhos era seu
verdadeiro filho, e quanto ao mais do que estava em posse de príncipe fizeram-
se as diligências necessárias, e de um em outro se soube a verdade, e o mancebo
foi julgado por sem culpa do passado, e do presente lhe fizeram grandes honras,
jurando-o por príncipe do reino para o haver depois da morte de seu pai.
Mandou el-rei o mancebo que até então tivera o principado e sua mãe com todas
as pessoas que foram ao conselho e consentimento de o trazer por filho de el-rei,
se fossem da terra e os mandou levar a uma ilha donde nunca mais nenhum
tornou à corte.
Estando sobre mesa com grande contentamento, el-rei quis saber como e por
quem fora descoberto a seu filho, que o era e não o outro, rogando ao príncipe
lho contasse. Contou como à porta de sua casa achara aquela velha que lhe
descobriu o caso miudamente, e que ela lhe ensinou que fosse pedir aquelas joias
a sua mãe, e também tudo o mais que até então tinha dito e feito, e lhe descobriu
como para isso ele lhe jurara casar com ela, porém que o não faria pela
disformidade das idades, baixeza e fealdade dela, e não tinha tenção de casar
senão quando e com quem Sua Alteza ordenasse. El-rei lhe disse:
— Já que lho jurastes de a receber e ela cumpriu o que vos prometeu, seja quem
for, cumpri vossa palavra.
Fez el-rei que a velha viesse ao paço, e foi recebida por mulher do príncipe, o
qual ficou disto tão triste como já fora ledo com o sossego de seu conselho. O
príncipe e ela foram levados a uma câmara rica donde tinham seu leito, em que o
príncipe se deitou com mostras de tanto pesar por se ver casado contra seu gosto,
que ninguém lhe podia ver o rosto, nem ele quis ver o da princesa, mas deitado
na cama virando-se para a dianteira e ela da outra parte voltada para a parede
estiveram sem se verem nem falarem um ao outro esta noite e outras muitas.
Uma noite, estando o príncipe e a princesa na cama, segundo seu costume, ouviu
um rumor na câmara, e era tal, que parecendo-lho fosse alguma treição se
ergueu do leito, e com a espada na mão foi para aquela parte adonde o rumor
parecia, e ali nem em toda a casa não havia cousa que se pudesse temer, nem
mostras que dessem suspeita do que fora, que ele pôde ver tudo bem porque
tinha um brandão aceso que alumiava a casa toda. Vista a quietação deixou a
espada e tornou-se ao leito, e como a este tornar levasse o rosto para a cama
donde a princesa jazia, ainda que estava virada para a parede viu-lhe a cabeça em
que tinha uma coifa feita de ouro tirado com algumas pérolas riquíssimas que
davam de si muito lustro e faziam que os fermosos cabelos, que estavam debaixo
se diferençassem na cor do ouro. Ele vendo o resplendor da coifa, sem saber
determinar consigo o que seria aquilo, considerando que a velha tinha os cabelos
muito alvos, desejou afirmar-se que era o que via, chegou mais perto; viu-lhe o
rosto muito alvo e fermoso. Ficou mais maravilhado do que se pode imaginar,
porque viu que era a mais fermosa e bela criatura que seus olhos viram. Não
podia acabar consigo de crer que aquela fosse a velha, que ele cuidava tinha
consigo, porque lhe parecia, como na verdade era, moça que não passava de
catorze anos, alva e loura.
Vista pelo príncipe a fermosa dama que tinha consigo, pediu-lhe se voltasse pera
ele; por que se não desconcertasse no termo, inda que era sua mulher e ele seu
marido, conhecendo que era acabado o tempo do seu encantamento, lhe disse:
— Senhor, quem me desconhece de dia na sua sala por velha, não é razão que
me venere e conheça em outra parte por moça e fermosa; pelo que Vossa Alteza
não haverá de mim mais do que até agora houve sem se determinar de duas
cousas qual quer: Se me quer esta que ora me vê de noite consigo na cama, e que
me há de sofrer de dia velha e feia na sala; ou pelo contrário, ter-me na sala de
dia esta moça e fermosa, e na cama de noite velha e feia. E como se determinar
no caso assim lhe responderei e direi o que há de fazer ao diante.
O príncipe, que já a este tempo estava tão namorado dela, que por nenhum
preço a queria perder, nem aventurar-se a isso, lhe respondeu:
— Seja eu tão ditoso que vos não perca, e no mais vos quero como vós quiserdes
que vos queira, porque em vossa vontade deixo a minha, e essa quero seguir toda
a minha vida.
A este tempo ficou a princesa muito leda, e logo disse:
— Pois senhor, de hoje para sempre serei esta que aqui me vedes e não parecia,
porque já é acabado meu encantamento. Parece cousa tão contra razão ver-me
ontem velha e feia e hoje moça e fermosa; é necessário dizer-vos quem sou. El-
rei de Granada é meu pai; sendo eu de sete meses, estando no berço a desoras a
ama que me criava viu que em um instante se me mudou a cor e se me arrugou a
pele de maneira que me tornei logo velha muito feia; minha ama deu logo
grandes brados, aos quais acudiram el-rei e a rainha, e ainda que a ama lhes disse
o que vira, disseram eles que não era possível senão que alguma cousa má lhe
levara a filha, e logo lançaram fora de casa a ama, queixosos dela, que saiu
comigo do paço, e buscou quanto a ela foi possível, quem lhe dissesse que cousa
fora aquela e o remédio que tinha, e achou um velho que lhe disse, que antes de
quinze anos de minha idade seria livre e com muito contentamento, porque
aquilo fora feito por ciúmes de uma mulher com quem meu pai antes de casar
tivera conversação; e aconselhou a minha ama me trouxesse a esta cidade,
porque aqui haveria fim meu trabalho e eu ficaria livre.
Todos folgaram muito de saber que era de tão alto sangue; despediram logo
mensageiros que fizeram saber aos reis de Granada, os quais levaram tanto
gosto disso, que não se puderam ter sem virem ali donde viram a filha e genro e
aos reis seus sogros.
(Trancoso, Contos e Histórias, p. III, conto I.)

NOTA: Sobre o tema tradicional de um príncipe que se dá a conhecer pela sua


valentia, vid. vol. 1, O Matador dos Bichos. Em um conto da Idade Média, que
vem no Novellino, e no Báculo Pastoral, o príncipe é ensinado por um mestre,
que tem mais doze discípulos em quem bate quando o príncipe erra a lição.
CONSTÂNCIA DE GRISÉLIA

Em os confins de Itália, mais à parte do Ponente, região alegre e deleitosa,


povoada de vilas e lugares, habitava um excelente e formosíssimo marquês, que
se chamava Valtero, homem mancebo, dotado de grandes forças e rara gentileza.
Por diversas vezes indo à caça havia visto Grisélia, que morava não longe da
cidade onde o marquês tinha seus paços, com seu pai, em um lugarzinho de
poucos e pobres moradores com algum gado, que com indústria de Grisélia
eram governados grandemente. Era esta lavradora de bom parecer quanto à
disposição e presença corporal, porém fermosa, de ânimo, nobre criação, raro
aviso, era excelente e como era criada a todo o trabalho, não se achava em seu
pensamento nenhum modo de deleite, antes um grave e varonil coração
publicava em defensão de sua honestidade; era coisa de notar como estimava suas
ovelhas e servia seu pai. O marquês determinou que Grisélia fosse sua mulher;
neste comenos fez aparelhar com grande diligência vestidos, joias e todo o mais
que para tal caso convinha, os quais vestidos mandava cortar à medida de uma
criada de sua casa, semelhante à estatura de Grisélia. Vindo o dia tão desejado
em que se haviam de celebrar as bodas, acudiram ao paço muitos cavaleiros e
damas ricamente vestidos, e em não saber quem seria a noiva estavam todos
suspensos e maravilhados. Mas o marquês vendo que tudo estava a ponto, tomou
consigo seis privados seus e foi-se direitamente a casa do pai de Grisélia.
Tomando o velho pela mão se apartou em secreto com ele, e lhe disse:
— Se assim como sou teu senhor, quererás dar-me tua filha por mulher?
— Senhor, nenhuma coisa devo eu querer, senão o que tiverdes por bem.
— Entremos, porque diante de ti tenho necessidade de fazer certas perguntas a
tua filha Grisélia.
Entrados em casa, ficando os seus cavaleiros fora, começou sua prática
amorosamente:
— Eu e teu pai somos contentes que sejais minha mulher; creio que não sairás
de nosso contentamento; porém, que quero saber de ti uma cousa, e é que
quando nosso casamento vier a feito, que será logo, me digas se estás pronta e
aparelhada a eu fazer de ti tudo o que me bem parecer, sem por causa nenhuma
mostrares tristeza, nem em tuas palavras contradizeres cousa alguma?
A considerada donzela, cheia de vergonha e tremendo de alegria, lhe disse:
— Senhor, bem sei que este favor é muito maior que meu merecimento; porém
se vossa vontade e minha ventura é tal, não digo eu fazer cousa contra vosso
parecer, porém nem pensá-la no pensamento; nem do que vós fizerdes
contradizer-vos cousa alguma, ainda que por isso haja de receber mil mortes.
Ouvindo o marquês tais promessas, disse:
— Baste isso, que não se espera menos de vosso bom entendimento. E tomando-
a pela mão, a tirou fora diante de seus cavaleiros, dizendo-lhes:
— Amigos, esta é, ainda que malcomposta, minha mulher e senhora vossa;
portanto amai-a e servi-a como é razão.
Entonces os cavaleiros com os chapéus nas mãos se ageolharam beijando-lhe a
mão com muita cortesia cada um por si. Ela abraçando um a um os alçou do
chão com toda a humildade que podia ser. Nisto mandou o marquês que um
deles levasse secretamente a nova marquesa ao paço e a pusesse no aposento de
uma ama sua de quem muito se fiava, pera que fosse despida dos vestidos que
trazia, e vestida daqueles ricos, que o marquês pera aquela hora havia feito. E
despedido deles com a cortesia costumada se entrou em o aposento onde estavam
a Grisélia vestindo e compondo pera tal efeito; a qual estava já posta a ponto, e o
marquês lhe deu um rico anel em sinal de desposada e tomando-a pela mão saiu
com ela onde estava já aguardando todos os cavaleiros e damas que haviam de ver
a noiva, e onde logo foram desposados por um bispo e se celebraram as bodas,
passando aquele dia com grandes festas e prazeres.
Mostrou-se despois em pouco tempo na nobre e já feita marquesa tanta graça e
prudência, que não mostrava em cousa alguma ser nascida nem doutrinada na
aspereza do monte. Com tão excelente mulher vivia o marquês em suas terras
em muita paz e sossego. Dali a tempos pariu uma filha em extremo fermosa; do
qual parto levou o marquês estranho contentamento, o qual por provar sua
constância ordenou uma cousa estranha de maravilhar e não digna de louvor,
que mandou a sua ama, que era mais sagaz e cautelosa, do que ele se fiava: «Que
tomasse uma menina, que havia trazido do esprital falecida daquela hora, e
estando a marquesa dormindo de noite na sua cama lhe tomasse sua filha e lhe
pusesse aquela morta com os próprios vestidos que a sua tinha.» Feito tudo isto
com maior sagacidade, a marquesa acordando e achando ao seu lado a criança
morta, cuidando ser sua filha começou a gritar. O marquês que já estava de
sobreaviso, acudiu muito apressado, mostrando-se muito espantado do
acontecido. Ele esteve recolhido em seu aposento por espaço de alguns dias, em
os quais ordenou a um criado seu mui familiar secretário de suas cousas, levasse
sua filha a el-rei de Polónia, pera que a criasse em toda sorte de bons e virtuosos
costumes e sobretudo a tivesse tão secreta, que ninguém soubesse cuja filha era.
Dali a quatro ou cinco dias, determinou o marquês de visitar a marquesa, a qual
achou encerrada mui triste, e entrando mandou que todos se saíssem fora, e ele
ficando só com a marquesa lhe começou a dizer:
— Meus vassalos estão de vós malcontentes e lhe parece cousa áspera ter por
senhora uma mulher baixa de rústica geração; e eu como desejo de os ter
contentes e em paz, queria que vos tornásseis para casa de vosso pai.
Acabado que a marquesa ouviu isto, nenhum sinal de turbação mostrou, antes
com gentil semblante lhe respondeu:
— Não há aí cousa nenhuma que vos agrade, que a mim me não contente; isto é
que firmei no meio do meu coração quando vos dei a palavra de ser vossa
mulher.
Considerando o marquês o ânimo e profundíssima humildade de tal mulher,
sem conhecer nela mudamento nenhum do que antes era, atalhou a prática,
dizendo:
— Abaste por agora isto; ponha-se silêncio neste negócio até ver se meus
vassalos me tornam a importunar.
Com esta dissimulação passaram doze anos no cabo dos quais a marquesa pariu
um filho. Ao fim de dois anos, sendo já o infante desmamado, ordenou o
marquês, por lhe dar sobressalto maior e provar sua paciência e constância, que
se fosse a marquesa com ele à caça de monte folgaria em extremo. Ela mui
contente e festejada se vestiu mui ricamente, não deixando a seu filho. Chegados
que foram ao monte, mandou o marquês que o jantar (a causa da grande calma
que fazia) se fizesse junto de uma fonte sombria e deleitosa. E determinando sair
à caça com seus monteiros, encarregou muito a seu secretário que trabalhasse
quanto possível fosse por furtar à marquesa o filho que sempre trazia consigo, e
vista a presente o levasse a el-rei de Polónia, por que o criasse secretamente com
a filha que lhe tinha mandado. O menino, levantando-se de a par da mãe, se
alongou algum espaço a brincar com umas pedrinhas que ali achou; nisto o
secretário, que não estava descuidado, vendo que ninguém o podia ver, apanhou
o menino e levou-o onde o marquês lhe tinha mandado.
Quando a marquesa despertou, perguntando pelo menino a algumas mulheres e
escudeiros que aí estavam, e não lhe dando razão dele, cuidando que alguma fera
o houvesse comido ou feito algum dano, os extremos que fazia eram tão grandes
que dava lástima. Achegando o marquês, e dando-lhe parte da perda de seu filho,
foi tão grande o pesar que fingiu ter, que não quis comer, nem beber, senão logo
se partiu para a cidade, e a marquesa também: Passados alguns dias, lhe disse:
— Grande desdita foi em haver-vos tomado por mulher, pois por vossa culpa
hei perdido dois sucessores e herdeiros de meu estado; e meus vassalos vendo a
baixeza de vossa linhagem e a negligência que tivestes de guardar meus filhos,
sou importunado deles que vos mande para casa de vosso pai, e me case com uma
donzela, que dizem que é filha do rei de Polónia. Portanto é necessário que
despida de vossos vestidos reais, conforme a vossa natureza vos vades para casa
de vosso pai:
A isto respondeu a nobre marquesa:
— Sempre eu entendi que entre vossa grandeza e meu pouco merecer não havia
proporção nenhuma. Em o demais aparelhada estou a servir a vossa desejada
esposa, se for necessário.
O marquês como não cansado de a experimentar em diversas coisas, lhe disse:
— Já que, fermosa Grisélia, vos ofereceis para servir minha esposa, eu quero
que fiqueis em casa a dardes ordem ao recebimento e banquetes, que se
oferecerem.
Ela foi mui contente e ficou em casa feita criada e despenseira, e nisto com sua
boa prudência cuidava que tinha alcançado muito. Neste tempo que isto
passava, mandou o marquês a seu secretário, de quem muito se fiava, com cartas
escritas de sua mão, acompanhado de muitos cavaleiros pedindo a el-rei de
Polónia que lhe mandasse a filha que lhe tinha mandado. Era tão grande a
amizade que el-rei tinha ao marquês, que determinou de os acompanhar e
assinado certo dia tomou seu caminho, levando consigo a donzela, que em
extremo era fermosa e levava consigo o infante seu irmão, chegando em poucos
dias em frente do marquês.
A que sabia ser marquesa, em figura de servidora de casa, chegou a dar os
parabéns à noiva e fingida desposada, sem se poder fartar de louvá-la de fermosa
e avisada. Determinados de se assentarem a comer, revirou-se o marquês para
sua Grisélia, meio rindo, em presença de todos lhe disse:
— Que vos parece, Grisélia, esta minha desposada? Não é muito fermosa?
— Não cuido que se ache em todo o mundo outra que mais o seja.
O marquês vendo a generosidade com que isto dizia, e considerando aquela
grande constância de mulher tantas vezes e tão fortemente tentada da paciência,
não podendo mais dissimular a fez vir assentar a par de si, dizendo:
— Ó minha nobre e amada mulher, não cuido haver homem debaixo do céu,
que tantas experiências de amor de sua mulher haja visto como eu. Vós sois,
senhora, minha mulher, nunca outra tive, nem tenho, nem terei. E esta que vós
cuidais que é minha esposa, é vossa filha, a qual fingidamente fiz que a tivésseis
por morta; e este é o infante vosso filho. Pois juntamente cobrais tudo, perdoai-
me os desgostos que vos tenho dado, pois foram para mais fineza de vossa honra.
Ouvindo isto a nobre marquesa, de prazer perdia o sentido e com o soberano
gozo de ver seus filhos, que tantas vezes tivera por mortos, saía fora de seu juízo,
e querendo ir-se para eles desfeita toda em lágrimas, não se pôde escusar de os
abraçar muitas vezes. Vendo isto as damas e senhoras que ali estavam, todos à
porfia com muito gosto e prazer a despiram de seus fatos pobres e lhe vestiram
os seus acostumados. Foi para todos um mui grande dia de alegria, e com isto
viveram depois marido e mulher largos anos com muita paz.

(Trancoso, Contos e Histórias, parte III, n.º V.)

NOTA: É notável a relação que existe entre o texto de Trancoso e a redação


castelhana de Timoneda no seu Patrañuelo, n.º 11 (ed. Ribadaneyra, p. 131). Ou
Timoneda traduziu a sua versão da portuguesa de Trancoso, ou ambos os
autores se serviram de uma lição comum. Esta última suposição parece inferir-
se do folheto italiano sem data La Novella di Gualtieri, anterior aos dois. O
conto de Grisélidis acha-se no Decâmeron, de Boccaccio, X Jornada. Du Méril,
investigando as fontes tradicionais do Decâmeron, cita os livros em que se acha
este conto; Philippo Foresti, De plurimis claris scelectisque Mulieribus, p. 145;
Bouchet, Annales d’Aquitaine, liv. III, citam-na como realidade histórica. A
tradição recebeu a forma poética no Lais del Freisne, de Marie de France.
(Oeuvres, t. I, p. 138.) Chaucer tratou este assunto no The Nut-Brown;
representa-se nos teatros populares da Inglaterra; há um mistério francês de
1395, e Hans Sachs compôs uma comédia Die gedultig und gehorsam Marggrãfin
Griselda (Vid. Du Méril, Histoire de la poesie scandinave, pp. 359 e 360.) O conto
de Grisélidis acha-se na tradição popular da Rússia, na coleção de Afanasieff, liv.
5, n.º 29, do qual Gubernatis dá um resumo.
Historia de Watter e de la pacient Griselda, em latim, por Francesco Petrarca, e
arromançada por Bernat Metje. (Ms. impresso em 1883 por D. Mariano Aguilá.) O
antigo tradutor refere-se «como a recitavam as velhas ao lar, nas vigílias do
inverno.» (Cervães e Rodrigues Lit. mortas, p. 225.) Petrarca agradecendo em uma
carta a Boccaccio o seu Decâmeron, exalta a beleza da narrativa do Conto de Grisélidis
e declara que o traduziu para latim, De Prude entia et Fide uxoria. — No romance de
Chrétien de Troyes, Erec et Enide, reconhece-se este tema popular, tantas vezes
elaborado literariamente na Idade Média. (Julesville, Hist de la langue, et littérature
française, t. I, p. 304.) A versão portuguesa da tradição oral alentejana é preciosa
como expressão do sentimento popular. (Vid. vol. I, p. 246.)
O BARBEIRO DO REI

Um rei havia ficado por falecimento de sua mulher com uma filha, a qual era
herdeira e sucessora do reino. Este, para tirar de si paixão e merenconia, que lhe
sobrevinha por causa de sua tristeza, se saía muitas vezes por tempo de verão a
um pátio que tinha, muito fresco, ornado de muitas flores cheirosas, que ali
mandara criar por seu refrigério. Estando neste pátio que digo, vinha por
algumas vezes com ele por seu mandado o seu barbeiro para lhe fazer a barba, e
como os barbeiros têm por seu natural serem práticos e chocarreiros, el-rei o
mandava chamar, mais por gostar de sua boa conversação, que por necessidade
que tinha do seu ofício. Estando um dia com el-rei fazendo-lhe a barba como
costumava, veio el-rei a gostar tanto de sua boa conversação, que lhe disse que
lhe pedisse mercês, que o barbeiro desprezou sua promessa, dando-lhe a
entender que não havia mister nada. Mas vindo outras vezes ao próprio ofício
como costumava, lhe veio el-rei a cobrar tanta afeição, que lhe importunava, que
lhe pedisse mercês, que por grandes que fossem lhas não negaria. Ele, tomando
ousadia e atrevimento às promessas que el-rei lhe fazia, lhe disse:
— Saberá Vossa Alteza que não há aí na vida cousa que hoje aceite que me possa
fazer contente e que meu desejo satisfaça, senão é uma, a qual é dar-me em
casamento a princesa sua filha.
El-rei, sobressaltado de tão estranha novidade, dissimulou com ele,
interrompendo a prática noutra matéria, cuidando que aquilo era dito a modo de
graça, por dar passatempo a el-rei com suas chocarrices e zombarias: mas ele era
tão em seu inteiro juízo, que vindo outra vez barbear a el-rei, e tornando-lhe a
pedir el-rei que lhe pedisse mercê, tornou a repetir sua primeira petição
dizendo: «Que não tomaria outra cousa senão a princesa sua filha por mulher.»
El-rei parecendo-lhe isto já mais que zombaria, determinou de o despedir com
brevidade, e ido, mandou chamar um homem letrado, de grande entendimento
em diversas ciências, e, dando-lhe conta como desejando por muitas vezes de
fazer algumas mercês àquele homem, sempre lhe saíra com desatinos tamanhos,
a que não podia nem sabia dar entendimento.
O letrado esteve um pouco cuidando consigo em seu entendimento, e disse a el-
rei:
— Senhor, faça-me Vossa Alteza mercê de se pôr em outro lugar, fora desta
casa a barbear com esse barbeiro, e de lhe tornar a repetir que lhe peça mercês,
para ver se acerto em um segredo que tenho imaginado nesta casa.
El-rei fez assim, e pondo-se noutra casa o mandou chamar, e com dissimulação,
lhe disse:
— Mestre, desejo tanto de voz fazer mercês, e vejo que nunca me pedis nada;
folgara que me ocupásseis em alguma cousa, porque de verdade que vos tenho
tanta afeição, que não haverá cousa que me peçais que, ainda que seja uma
grande parte do meu reino, vos não conceda.
O barbeiro lhe respondeu:
— Certo, senhor, que Vossa Alteza me oferece há tempo mercês que não posso
deixar de não lançar mão delas, portanto se Vossa Alteza mas quer fazer, serão
para mim mui grandes, e é que me há de fazer mercê de me mandar dar dez
cruzados para pagar o aluguer de minha casa de que estou penhorado, e nisto a
receberei mui assinalada.
Se el-rei de primeiro se espantou de lhe pedir sua filha em casamento, mais se
espantou abatendo-se tanto que para lhe pedir dez cruzados lhe mostrava ficar
em tamanha obrigação. El-rei mandou dar os dez cruzados, e depois de ido fez
vir diante de si o letrado que lhe havia conselhado, e vindo diante dele lhe disse o
que passara com o barbeiro, que deitasse juízo em tamanha diferença.
O letrado respondeu:
— Vossa Alteza saberá que meu entendimento saiu certo, e para saber a prova
disto mande Vossa Alteza abrir a terra aonde esse homem punha os pés quando
estando barbeando, lhe pedia sua filha em casamento, que eu creio que nesse
lugar se achará um grande tesouro, e não pode ser menos senão que pisasse com
seus pés algum grande tesouro quem tinha fumos de pedir a princesa em
casamento.
Mandou el-rei abrir a terra onde isto passou e foi achado um grande haver, que
a el-rei foi de grande admiração; e para pagar ao letrado tão bom conselho como
tinha dado, em especial tirá-lo de uma dúvida tamanha, lhe concedeu uma boa
parte daquele haver, e outra parte mandou dar ao barbeiro com que se
autorizasse em estado.

(Trancoso, Contos e Histórias parte II, conto III)


O ACHADO DA BOLSA

Havia um mercador muito rico, e assim como cada dia se lhe iam acrescentando
suas riquezas, assim nele se lhe ia multiplicando tanta avareza, que em outra
cousa não trazia o sentido senão em ajuntar dinheiro. Este estando um dia
vendendo suas mercadorias, tomou quatrocentos cruzados em ouro, que havia
vendido, e deitou-os em uma bolsa, e despois de recolher seu fato se foi para sua
casa entesourar. Indo pelo caminho fazendo suas contas com a imaginação, lhe
acertou a cair a bolsa, e até que chegou a casa a não achou menos. Esteve para
perder o juízo juntamente com a bolsa. Com grande dor e paixão se foi ao
duque, que era senhor daquela cidade, e lhe pediu que mandasse Sua Excelência
em seu nome apregoar que achasse uma bolsa com quatrocentos cruzados em
ouro, que os trouxesse diante dele, que lhe daria quarenta cruzados de achado.
Foi dado o pregão pela cidade, e sendo ouvido de todos, chegou a ouvidos de
quem tinha achado a bolsa, que era uma mulher viúva, muito pobre e virtuosa. E
ouvindo dizer, que davam quarenta cruzados de achado foi mui leda,
entendendo que ficar com a bolsa seria infernar sua alma. Assim com esta
determinação se foi diante do duque e lhe pôs em sua mão a bolsa que havia
achado assim e da maneira que o mercador a havia perdido. Vendo o duque a
pobreza desta mulher, e que era digna de ser grandemente favorecida, logo
mandou chamar o mercador e lhe disse como a bolsa havia já aparecido, que não
faltava mais que cumprir sua promessa àquela mulher honrada que a havia
achado. Folgou em extremo o avarento mercador, porém achegou-lhe à alma o
ver que havia de dar os quarenta cruzados que tinha prometido de achado, e
assim imaginou logo naquele instante um ardil para os não dar, e foi que tomou
a bolsa e vazou o dinheiro em uma mesa que ali estava, e contou-o, e posto que o
achasse certo, contudo isso revirando para a mulher que o havia achado, lhe
disse:
— Mulher de bem, aqui nesta bolsa faltam trinta e quatro escudos venezianos,
que estavam de mais dos quatrocentos cruzados em ouro que aqui estão.
A boa velha afrontada e corrida, lhe disse:
— De maneira, senhor, que credes de mim que vos havia de furtar o vosso
dinheiro! Quem me obrigava, tendo eu em meu poder essa bolsa, a trazê-la
aqui, senão não querer eu o alheio?
Não deixava o mercador de gritar e dar vozes dizendo que lhe fosse buscar os
trinta e quatro escudos venezianos que faltavam, se queria que lhe desse o
achado que tinha prometido. O duque, conhecendo a malícia do mercador e
tudo aquilo que fazia e dizia era a fim de se escusar de dar o que prometera,
entendendo que quanta era a bondade da virtuosa mulher tanta era a maldade do
avarento mercador, imaginou que a maior pena que podia dar a um homem tão
ruim como aquele era fazer que com seu engano se ofendesse a si mesmo, e a
esta causa, virando-se para ele, lhe disse:
— Vinde cá; se isto é assim como dizeis, porque me não declarastes que a bolsa
levava mais esses escudos de ouro? Ora eu tenho entendido que vós sois tal que
quereis fazer o alheio vosso, e que esta bolsa que essa mulher honrada achou não
é vossa, pois nela faltam esses ducados venezianos que dizeis; antes essa bolsa
que se achou sem dúvida nenhuma é uma que esse próprio dia perdeu um meu
criado com esta mesma soma de dinheiro que essa tem, e pois sendo assim como
é, a mim e não a vós pertence.
E dizendo isto, virou-se para onde estava a velha, e lhe disse:
— Boa mulher, pois que achastes esta bolsa com estes cruzados de ouro, eu vos
faço graça dela com o dinheiro que tem.
Não se atreveu o inconsiderado avarento a replicar ao que o duque dizia; antes
arrependido de não haver cumprido a palavra que prometera se foi para sua casa
chorar seu desastre.

(Trancoso, Ibid., parte III, conto VII).

NOTA: Aparece também no Patrañuelo, n.º VI, de Timoneda (ed.


Ribadaneyra); no fabliau Du Marchand qui perdit sa bourse (Recueil de Fabliaux, p.
101, da Bibliothèque choisie); nas Novelas de Geraldo Cynthio, X, e no
Novellino italiano. O conto de Trancoso, n.º XV, anda como episódio no conto
do Justo Juízo largamente estudado por Benfey e Köhler, sobre as versões
russas, tibetanas, indianas e alemãs. Nos Contos Nacionais, n.º III, Porto, 1883,
vem uma versão popular portuguesa, que nos leva a crer que Trancoso poucas
vezes recorreu a fontes literárias.
Lê-se no Divertimento de Estudiosos, t. II, p. 184: «Certo mercador perdeu em
Mântua uma bolsa provida, e publicamente dizia que daria quarenta coroas a
quem a achasse. Apareceu com ela uma velha, e entregou-lha. Duvidou o
mercador dar-lhe o prometido, asseverando falsamente, que lhe faltava uma
grande parte do seu dinheiro. Foi consultado o duque, que, ouvindo as partes
conheceu a cavilação, e entregou a bolsa à velha, dizendo ao mercador: Que
buscasse a sua, que não era aquela, pois se compunha de tanto mais dinheiro,
como dizia.» Acha-se nas Novelas de Giovani Sercambi, De justo judicio, e no
Patrañuelo de Timoneda, como episódio de outro conto.
O CAPÃO TORNADO SAPO

Houve um homem pobre, o qual veio a ter muita fazenda, e não tendo mais que
um filho, certa gente procurou de o casar com uma filha sua; a nora começou
(como costumam) a aborrecer tanto, que o não podia ver; e como mulher muitas
vezes pode muito no mal, pôde também com o marido, para que aborrecesse seu
pai, de modo que também o não podia ver; o pobre pai morria de fome, seu
comer eram favas muito ruins, e com esta grande fome chegou um dia à porta do
filho pedindo que lhe desse de comer; tinha um capão cozido para jantar, mas
logo o escondeu metendo-o em uma arca, e dando ao pai uma tigela de favas, o
deitou pela porta fora, e acabando de as comer, despois que se foi, disse à
mulher: — Agora comeremos à nossa vontade, ide buscar o capão; — o qual
achou que se tinha tornado em um terrível e espantoso sapo, que lhe saltou no
rosto, aferrando-lhe os dois pés na barba e as mãos na testa, não havia quem o
pudesse desapegar; foi um homem com uma tenaz pegando ele para o tirar, o
sapo o atravessou com os olhos, tão terrível e peçonhentamente, que logo caiu
no chão, nem houve quem pudesse dar remédio a tal caso.

(Francisco Saraiva de Sousa, Báculo Pastoral de Flores de Exemplos, t. I, p. 87. Ed.


1657.)

NOTA: Cita-se uma variante de Cesário, lib. 60, cap. 22, em que em vez de um
sapo era uma serpente.
OS PODERES DO OURO

Houve em Itália, e em um dos mais conhecidos lugares dela, um honrado pai de


famílias, nobilíssimo por geração, rico de bens procedidos da herança e nobreza
antiga de seus passados, dotado de muitas partes e graças naturais, e tão liberal
do que possuía, que mais parecia despenseiro das riquezas que carcereiro delas.
Teve este em sua mocidade um filho tão industrioso e esperto nos negócios da
mercancia, que ajuntou em poucos anos grande cópia de dinheiro, o qual ele
guardava com tão solícito cuidado, como costumam os que com cobiça e
trabalhos o adquiriram, e era notável espanto aos naturais, verem em um velho a
largueza e liberalidade de mancebo, e em o filho a avareza e tenacidade de velho.
O pai, que o via responder tão mal a suas inclinações, e que já com a idade e
continuação de gastar largo estava menos rico, muitas vezes lhe dizia, e
aconselhava com brandura, que conservasse com o que ganhara, a honra que
tinha de seus passados, e não degenerasse deles por seguira vileza do interesse.
Que usasse das riquezas como nobre, e favorecesse a velhice de quem o criara, e
honrasse aos pequenos irmãos que tinha; que fosse proveitoso aos amigos e
parentes, benigno aos pobres, e se não cativasse ao trabalho de entesourar
riquezas sem fruto. Mas como falar a um morto e aconselhar a um avarento é
cuidado vão, nenhum efeito faziam os paternos rogos em sua má natureza.
Sucedeu que o Senado daquela República por a nobreza e pessoa do mancebo, e
pela indústria e sagacidade que mostrava, o elegerem em companhia de outros,
para ir com uma embaixada a Roma ao Sumo Pontífice. Depois de sua partida,
vendo o pai ocasião ao que havia muito que desejava, mandou secretamente
fazer chaves falsas com que entrou na câmara do filho, e abriu os cofres em que
aquele inútil tesouro estava depositado, e com a brevidade que o desejo lhe
pedia, vestiu a si, a sua mulher e filhos custosamente, deu libré a seus criados,
comprou ricas armações e baixelas, encheu a estrebaria de cavalos fermosos,
acudiu em ocasiões a parentes e amigos necessitados; despendeu, enfim, aquela
prata e ouro que o filho com muitas vigílias ajuntava, da maneira em que ele
quando florescia em riquezas usava delas. Gastado o dinheiro, encheu os sacos
em que antes estava de muitos seixos e areia, e posto tudo na mesma ordem em
que o filho o deixara, tornou a fechar os cofres e as caixas como de antes. Tomou
depois o filho da sua embaixada, e os pequenos irmãos o foram esperar à entrada
da cidade vestidos custosamente, e com o magnífico aparato de que então
usavam. Vendo-se o irmão rodeado deles, ficou confuso e enleado, lhes
perguntou logo donde houveram tão ricos vestidos e fermosos cavalos? Ao que
eles com uma simplicidade inocente responderam: Que seu pai e senhor vivia
com diferente largueza da que antes tinha, e que outros trajos e cavalos de maior
preço lhe ficavam. Entrando depois em casa de seu pai, nem a ele conhecia, pelo
diferente estado em que o deixara, e como nesta mudança se lhe não aquietava o
coração, foi-se com muita pressa aonde tinha posto o seu tesouro, entrou na sua
câmara, abriu os cofres, e vendo que os deixara, se quietou, porque não dava
lugar à mais vagarosa experiência a pressa com que os companheiros o
chamavam e o Senado o esperava. Depois que deu fim àquela obrigação, que a
ele lhe não pareceu que fosse tão custosa, fechando-se de vagar no seu aposento,
abriu as arcas e os sacos em que lhe parecia que estava a sua bem-aventurança, e
vendo o engano da areia e seixos, que dentro tinham, começou a gritar com
grandes lamentações e brados, a que, primeiro que todos, acudiu o generoso
velho, perguntando-lhe que tinha? de que se queixava? e quem o ofendera? —
Ai de mim (disse ele), que me roubaram as riquezas que com tantos trabalhos e
com tão largo discurso de anos tinha granjeadas. — Como é possível que te
roubaram (respondeu dele), se eu vejo esses cofres e sacos cheios, que parece que
não podiam tirar nada deles, nem eles levarem mais? — Ai, triste de mim
(tornou o filho), que o de que eles estão cheios, não é do ouro e prata com que os
deixei, que não tem agora mais que pedras e areia sem proveito. A isto
respondeu o generoso pai, sem no rosto fazer mudança: — Ah, enganado filho,
que importava para que estes sacos estivessem cheios de ouro fino ou de areia
grossa, se a tua avareza te não deixava fazer nas obras diferença dela? Cessaram
os brados, mas não já o sentimento do filho com esta resposta, que a mim me
pareceu digna de ser contada entre as mais célebres do mundo.
(Rodrigues Lobo, Corte na Aldeia, diál. VII).
O TESOURO ESCONDIDO

Acho estremada aquela história que toca o Ausónio, poeta, em um seu epigrama:
E é que um homem desesperado com uma paixão que teve, se ia enforcar em um
lugar secreto, levando consigo o baraço em que havia de deixar a vida. Sucedeu
que com a força que fez, caindo uma parte da terra naquele lugar, se lhe
descobriu um tesouro, a cuja vista mudou logo o pensamento, e levando o que
achara, deixou em seu lugar o baraço que trazia. Vindo depois o que ali
escondera, e achando-o menos, e em seu lugar a tentação da sua desventura, fez,
porque perdera um tesouro, o que o outro deixou de fazer porque o achara; de
modo que a um deu vida o ouro, a outro matou a avareza dele.
(Rodrigues Lobo, Corte na Aldeia, diál. VII)

NOTA: Compare-se com a tradição popular, conto O Tesouro do Enforcado de


vol. 1.
ERRAMOS (E RAMOS)

Uma mulher não tratava bem de obras a honra de seu marido, e ele muito mal de
palavras a toda a sua vizinhança; era o seu nome dele Ramos, e pondo-se um dia
em práticas com a mulher começou a contar com ela todos os cornudos que
havia no seu bairro; a mulher, com raiva de sua má natureza, a cada passo dizia:
— E Ramos, marido; tornai a contar, que falta um.
Ele, que entendia mal o remoque, sem se meter na conta, a tornava a fazer de
novo muitas vezes.

(Rodrigues Lobo, Corte na Aldeia, diál. XI, p. 156).

NOTA: Encontrámo-lo também na tradição insulana, e no Porto.


O PAJEM DA RAINHA

Teve a Rainha Santa Isabel um pajem ou criado de câmara que servia de seu
esmoler e outras obras pias e caritativas em que a santa rainha de contínuo se
ocupava; era este moço de boas partes que foi a herança que seu pai lhe deixou,
segundo conta Henrique Grã, que estando para morrer lhe disse: — Filho, a
melhor herança que te posso deixar é dar-te este conselho: que sejas muito
virtuoso e que ouças cada dia missa inteira e sejas muito devoto da Virgem
Nossa Senhora. Estas e outras cousas santas lhe encomendou. Neste tempo
tinha el-rei Dom Dinis outro pajem muito seu privado e querido; este, vendo a
privança que o outro tinha com a rainha, por inveja e por mais cair em graça de
el-rei, determinou de lhe levantar um falso testemunho e pô-lo em mal com el-
rei; e foi este que afirmou que a rainha tinha uma afeição má; como o rei vivia
não mui honestamente, pouco bastou logo para lhe dar crédito, e assim dali por
diante andava pensativo, triste, malenconizado, vivendo com muita desconfiança
da rainha pelo que seu pajem lhe tinha dito, determinou de o matar
secretamente, e saindo aquele dia a passear, passou por onde estavam ardendo
uns fornos de cal, e chamando de parte os homens que neles trabalhavam, lhes
mandou que a um criado da câmara que ele enviaria com um recado: — se
tinham feito o que el-rei lhe tinha mandado? — o arrebatassem logo e o
lançassem dentro no forno para que assim se fizesse em pó e em cinza, porque
assim convinha ao seu serviço. Ao outro dia pela manhã mandou o pajem da
rainha que fosse logo com este recado, para que os homens pusessem em
execução o que lhes tinha mandado; mas Nosso Senhor, que nunca falta aos seus
e acode aos inocentes, ordenou que em passando este moço tangessem no
Mosteiro de S. Francisco (que estava em caminho) à missa, e entrando esteve-a
ouvindo até ao cabo, e ainda outras duas, que se começaram. Neste tempo
desejando el-rei saber se era já morto, mandou ao pajem da câmara (que era
aquele que o havia acusado levantando-lhe o falso testemunho) e lhe disse: —
Vai ao forno a saber se tem já feito o que mandei: foi e dando o recado,
arrebataram-no os homens e vivo o meteram no forno. Neste tempo acabando o
moço inocente e sem culpa de ouvir as missas, foi dar o recado que el-rei tinha
dito, se haviam feito o que Sua Alteza lhes havia mandado, e dizendo eles que
sim, se volveu com a resposta a el-rei, o qual vendo e considerando que havia
acontecido este negócio ao revés de como ele havia mandado, e tornando-se ao
pajem o começou a repreender, perguntando-lhe donde havia estado tanto
tempo? Respondeu ele: — Senhor, indo a cumprir o mandado de Vossa Alteza,
tangendo a missa entrei dentro, e ouvi aquela missa até ao cabo, e antes que
aquela se acabasse começaram duas, e assim ouvi todas três até ao cabo, porque
assim mo encomendou meu pai e deixou por bênção, que todas as missas que
visse começar estivesse a elas até ao fim. Então viu el-rei por este juízo de Deus
as falsidades, e veio a cair na conta da verdade e a conhecer a inocência da santa
rainha, e a fidelidade e virtude do criado, e assim lançou a má imaginação que
trazia contra a rainha.

(Saraiva de Sousa, Báculo Pastoral, I, 148)

NOTA: Acha-se no Patrañuelo, de Timoneda, n.º XVII. (Ed. Ribadaneyra, p.


158.) Loiseleur des Longchamps, no Essai sur les fables indiennes, p. 134, not., cita
um dos contos dos Sete Vizires, e o fabliau D’un roi qui voulut faire brûler le fils de
son sénéchal. (Legrand d’Aussy, Fab., t. v, p. 56.) Esta mesma tradição acha-se na
redação inglesa das Gesta Romanorum, cap. XCVIII; nas Cento Novelle antiche
(Libro di Novelle, LXVIII); nas Novelas de Geraldo Cíntio, 2.ª cent., 8.ª dez., 6.ª
novela; a lenda de Santa Isabel, em Portugal, no Báculo Pastoral, de Saraiva de
Sousa, já se achava em verso por Afonso o Sábio, avô do rei D. Dinis, contada
como um milagre da Virgem. A sua proveniência oriental acha-se no Katha sarit
ságara, coleção de Somadeva Bhatta, do século XII. (Trad. Brockaus, vol. II, p.
62). Œsterley, na sua edição das Gesta Romanorum, cita na nota ao número 283
os paradigmas desta lenda, também popular na Alsácia com o título de Fridolin,
sobre que Schiller fez a balada Gang nach dem Eisenkammer. Vid. também o
estudo de D’Ancona, na Romania, t. III, p. 187. Repete-se ainda na tradição
popular de Coimbra.
A lenda só entrou muito tarde em Portugal, porque não foi incluída no texto da
Vida de Santa Elisabeth (1225-1336) publicada por Fr. Francisco Brandão, e
aparece adaptada à Rainha Santa por Fr. Marcos de Lisboa, na sua Crónica da
Ordem dos Menores, de 1562. É esta a forma literária da tradição hagiológica:
«El-rei Dom Dinis, no tempo de seus vícios, em que ao Demónio servia e a sua
carne, induzido também per o mesmo inimigo, teve algumas desconfianças da
gloriosa rainha, sua mulher. E um seu moço de câmara movido por o mesmo
devaneio, com a cobiça de lhe ser aceito, e com inveja que tinha doutro moço da
câmara a quem a rainha ocupava em distribuir as esmolas e obras de misericórdia
que fazia, por ver nele virtude e bons costumes, afirmou a el-rei que a rainha lhe
tinha afeição. E el-rei espantado disto, posto que o não acabasse de crer,
determinou-se em secretamente fazer matar aquele moço da câmara de que se a
rainha servia. E cavalgando aquele dia, e passando por um forno de cal que se
cozia, chamados à parte os cozedores que lhe metiam a lenha, lhes mandou que
o moço de câmara que outro dia lhes mandasse ali com recado seu, que dissesse
se tinham feito o que lhes mandava, o metessem logo no forno, per a que
morresse, que assim cumpria o seu serviço.
E outro dia pola manhã mandou el-rei o moço da câmara da rainha com o
recado ao forno, per que logo morresse.
Mas Nosso Senhor que nunca falta na honra e inocência dos seus, ordenou, em
que passando aquele moço da câmara por a porta duma igreja, tangiam a
levantar a Deus; entrou na igreja e teve até o cabo desta missa e de outras duas
ou três que se começaram. No qual tempo el-rei que desejava saber se era já
morto aquele moço de câmara, vendo o seu moço da câmara que acusara o outro,
mandou-o muito depressa ao forno saber dos cozedores se cumpriram seu
mandado, os quais o tomaram logo e atado o meteram per lenha dentro do forno
ardendo. E o outro moço de câmara inocente, acabando de ouvir as missas, deu o
recado de el-rei aos cozedores do forno, se cumpriram seu mandado, e eles
responderam que sim.
E tornando com a resposta a el-rei, ficou fora de si, vendo que aconteceu o
contrário do que ordenara. E repreendeu-o e perguntando onde se detivera
tanto, lhe respondeu o moço da câmara da santa rainha:
— Senhor, passei por junto de uma igreja e ouvindo tanger a campa a levantar a
Deus, entrei dentro a ver Deus, e começou-se outra missa, e antes de aquela
acabar outra, e esperei que se acabasse, per que meu pai me lançou per bênção
que a toda a missa que visse começar, estivesse até o fim.
E caiu el-rei por este juízo de Deus em conta da verdade e inocência da gloriosa
rainha e da virtude de seu moço da câmara e deixou toda imaginação. E mostrou
Nosso Senhor neste caso, o valor da inocência e virtude e devoção das missas e
Santíssimo Sacramento, também como a malícia cai nos laços que pera os
inocentes arma.» (Op. cit., p. II, fl. 195.). Pelos considerandos de Frei Marcos, a
legendogonia hagiológica é um processo de propaganda religiosa igual ao dos
pregadores do budismo, aliciando a imaginação popular.
Esta lenda da Rainha Santa Isabel acha-se fundamentalmente estudada pelo
insigne folclorista Emm. Cosquin, em uma monografia publicada na Revue des
questions historiques, fasc. de janeiro e de julho de 1903. Observa Cosquin, que
quando Isabel de Aragão, contava ainda sete anos de idade, em 1278 já Martinus
Polonus (Martins Strabiki) no seu Promptuarium Exemplarum consignava esta
lenda:
«Certo homem idoso, tendo servido durante muito tempo fielmente o seu rei,
lhe recomendara na hora da morte a seu filho Guilherme, para que tomasse a
criança para o seu serviço. O rei tendo concordado, o pai disse em voz baixa a seu
filho:
— Filho, eu te dou três conselhos, e se tu os seguires, tu te acharás bem. O
primeiro é de não te meteres em companhia de invejoso ou de maldizente. O
segundo é: todas as vezes que vires teu senhor ou senhora inquietos ou com
tristeza, manifestares que tomas parte em seus pesares. O terceiro é de nunca
deixares de ouvir missa, sejam quais forem os cuidados urgentes nessa ocasião.
Morto o pai, Guilherme portou-se com todo o discernimento no serviço do rei,
que todos o gabavam, exceto um balio do rei, que notara que Guilherme se
afastava dele como de um maldizente. Impelido pela inveja, este balio foi ter
com o rei, acusando o pajem de andar apaixonado pela rainha.
— E se quiserdes, disse ele, assegurar-vos disto, fazei chorar a rainha ralhando
com ela, e vereis como Guilherme se põe logo a chorar com ela.
Assim aconteceu. E o rei, muito encolerizado, procurava meio para fazer morrer
o Guilherme, mas ninguém dar por isso, e o invejoso aconselhou-o que o
mandasse com recado ao mestre do forno da cal: «O primeiro que amanhã de
manhã vier de mandado do rei, importa que seja imediatamente lançado no
forno.»
Então o rei disse à noite ao Guilherme para ir logo de manhã cedo ao forno de
cal e dizer ao mestre caleiro de cumprir o que rei lhe tinha recomendado na
véspera. No dia seguinte, pôs-se Guilherme a caminho muito cedo, e ouviu ao
passar a floresta tocar à missa. Lembrando-se do conselho do pai, dirigiu-se para
esse lado. O padre demorando-se para vir começar solenemente a missa em
honra de nossa Santa Virgem, o rapaz teve de esperar algum tempo, contrariado
por retardar o cumprimento da ordem do rei, mas impunha-se a recomendação
que lhe fizera seu pai. E como ele se demorasse tanto, o invejoso fez com que o
rei o enviasse ao forno de cal para ver se Guilherme estava já queimado. Logo
que ele ali chegou, perguntou ao mestre do forno, se ele tinha cumprido a real
ordem?
— Não, respondeu-lhe o outro; mas vamos dar-lhe cumprimento
imediatamente.
E agarrando-o, o forneiro arrojou-o para dentro do forno. Acabou a missa,
Guilherme pôs-se em marcha para o forno de cal, a dar conta do seu recado.
— Dizei ao rei, meu senhor, volveu o forneiro, que eu cumpri à risca o que me
ordenara.
O rei vendo o Guilherme de regresso, perguntou-lhe porque é que tanto se
tinha demorado. O rapaz, todo trémulo, declarou que se tinha retardado por
causa de uma missa, e participou ao rei, que isso fizera pela recomendação que
seu pai à hora da morte lhe aconselhara. O rei vendo que o invejoso tinha sido
alcançado pelo juízo de Deus e que Guilherme era mais fiel que todos os outros,
dali em diante tratou-o melhor do que até então tinha.»
Emmanuel Cosquin faz notar os elementos semelhantes entre o exemplo de
Martinus Polonus com a narrativa de Frei Marcos de Lisboa; provavelmente o
cronista dos Menores colheu-a dessa fonte de 1278, porque na Vida de Santa
Isabel, atribuída a Diogo Afonso, secretário do cardeal-infante D. Afonso, e
publicada em Coimbra em 1560, não aparece ali esta lenda.
O ilustre folclorista encontra este conto em diferentes Sermonários da Idade
Média; de Jean Herolt, de 1418 nos Sermones Discipuli, e no do franciscano
Pelbar de Temervar, e outros do fim do século XV. O tema dos Conselhos tem
tido desenvolvimento novelesco independentemente; e o terceiro conselho, da
audição da missa encontra-se no poema medieval Ruodlieb, duzentos anos
anterior ao exemplo de Martinus Polonus; e nota, que a primeira máxima do
Ruodlieb é a que recomenda: Se ouvires tocar à missa, ou que alguma se canta,
desce do cavalo e vai logo assistir a ela. Dez anos antes do nascimento da rainha
Isabel de Aragão, já no Liber de Donis aparece este conto redigido pelo
dominicano Etienne de Bourbon; e Afonso o Sábio (1252-1284) tratava este
tema da devoção da missa nas Cantigas de Santa Maria, mas sem o episódio dos
Conselhos, refletindo-se a ação narrada na Cantiga, em um conto espanhol do
século XV, no conto 5.° do suplemento do Libro de los Exemplos de Clemente
Sanches, publicado por Morel-Fatio.
Como Santa Maria guardou um privado do conde de Tolosa que não fosse queimado no forno,
porque oía missa cada dia.
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E’ d’aquest’aveio, grã teme ‘há já passado / que houve em Tolosa um Conde mui
preçado, / e aquese havia um home seu privado / que fazia vida como religiosa. /
Antr’os outros bem muito que fazia, / mais que outra rem amava Santa Maria; /
assi que outra missa nunca ‘el queria / oir, erg ‘a sua, nem lh’era saborosa. / E
outros privados que com el Conde andavam / haviam-lh’ inveja, e por ende
punhavam / de com el’volvê-lo, porque d’ess’ i cuidavam / haver com el Conde
sa vida mais viçosa. / E sobr’esto tanto com el Conde falaram, / que aquel’ bom
home mui mal com el mescraram, / e de tais cousas a el’ o acusaram, / per que lhe
mandava dar morte doorosa. / E que não soubessem de qual morte lhe dava, /
por um seu caleiro a tão l’est’ enviava, / e um mui grão forno entender Ih’o
mandava / de lenha mui grossa, que não fosse fumosa! / E mandou-lhe, que o
primeiro que chegasse / home a el dos seus, que tantoste filasse, / e que sem
demora no forno o deitasse, / e que i ardesse a carne d’el astrosa. / Outro dia el
Conde do que mecrado era, / mandou-o que fosse a ver se fizera / aquele seu
caleiro o que lhe dissera, / dizendo: Esta via não te seja nojosa. / E si ele ia cabo
de sua carreira, / achou um’ ermida que estava senlheira, / u diziam missa bem
de mui grã maneira / de Santa Maria, a Virgem preciosa. / E logo tão toste
entrou em a igreja, / e disse: — Esta missa, a como quer que seja, / oirei eu toda,
por que Deus de peleja / me guarde de mescra má e revoltosa. — / Enquanto el’a
missa oía bem cantada, / teve já el Conde que a cousa acabada / era, que mandara;
e porém sem tardada / enviou outr’home natural de Tolosa. / E aquel’home era
o que a mescra feita / houvera, e toda de fond’ a cima treita, / e disse-lhe lego: —
Vai corrend’ e aseita / se fez o caleiro a justiça fremosa. / Tão toste correndo foi-
s’ aquel falso arteiro / e não teve via, mas per um semedeiro / chegou ao forno e
logo o caleiro / o deitou na chama forte e perigosa. / O outro, pois toda a missa
houv’ oída, / foi ao caleiro et disse-lh’: — Hás cumprida / a vontade del Conde?
(Diss’el): — Sem falida / senão, nunca faça eu mia vida goiosa. / Então do caleiro
se partia tão toste / aquel’home bom; e per um grão recoste / se tornou al Conde,
e dentr’em sa reposte / contou-lh’ end’a estória maravilhosa. / Quando viu el
Conde aquel’ que chegara / ant’ele vivo, e soube de como queimara / o caleiro o
outro que aquel’ mescrara, / teve-o por cousa d’oir mui espantosa. / E disse
chorando: — Virgem, bêeita sejas, que nunca te pagas de mestras nem d’invejas,
/ porém farei ora per todas tas igrejas / contar este feito e como és poderosa.
Não pode prender nunca morte vergonhosa / aquele que guarda a virgem
graciosa.
Transcrito das. Cantigas de Santa Maria, de D. Alfonso el Sábio, t. I, pp. 125 a
127. Ed. da Academia Española, Madrid, 1889. O sábio académico marquês de
Valmar acompanhou todas as lendas tratadas nas Cantigas de Santa Maria, com
notas dos paradigmas apresentados pelos principais filólogos europeus: O
erudito Ad. Mussafia aponta os estudos sobre esta lenda, de Wilhelm Hertz,
Deutsche Sagen im Elsas, p. 278, sobre a balada de Schiller Der Gang nach dem
Eisenhammer, Johanes Gobius, Scala Coeli, fol. 168 V (v.° Missa.)
Gaston Paris, Romania, vol. V, p. 454; Wesselofsky, ibid., vol. VI, p. 181;
D’Ancona, Studi di Critica e Storia letteraria, p. 347; e Gesta Romanorum, p. 749,
Ed. de Œsterley. E restringindo-se ao tema do inocente salvo pela sua devoção,
cita Mussafia as versões ocidentais, edição de Œsterley, p. 688; Cento Novelle
antiche, LXVIII; Méon, Vie de Pères, II, 331; tradução catalã antiga; publicada
por Morel Fatio na Romania, vol. v, 453; Timoneda, Patrañuelo, p. 158, ed. 1846.
Na sua completa monografia, Emm. Cosquin assenta a origem indiana, deste
conto no seu vastíssimo ciclo no folclore russo, grego, de origem búlgara, turca,
africana, ilha de Java, Bengala, e nas tradições populares judaicas.
Transcrevemos aqui a versão indiana coligida pelo pandita Natêsa Sastri, que
Cosquin traduziu para francês do Indian Antiquary de Bombaim:
«Um pobre velho brâmane recebeu outrora de seu pai moribundo três
conselhos:
— Não recuses nunca a refeição da manhã. (Refere-se à imposição ritualística
para terminar sacramentalmente o jejum.)
— Não digas o que os teus olhares viram. — Serve lealmente o teu rei. Todos os
dias, muito cedo o brâmane vai dar os bons-dias e apresentar os seus respeitosos
cumprimentos ao rei e abençoá-lo, proferindo esta sentença: Quem semeia o
bem, colherá o bem; e semeando o mal, colherá só mal. E assistia à sua oração.
Um certo dia, em dia do jejum (o undécimo dia da Lua, ékadassi), o rei que tinha
toda a confiança no velho, mandou-o ao aposento da rainha buscar a sua
cimitarra, que lhe esquecera.
Ao atravessar o jardim, o brâmane surpreendeu a rainha acompanhada do
ministro do rei. Entrou na câmara e pegou na cimitarra; porém, fiel ao segundo
conselho de seu pai, nada disse ao rei do que vira:
A rainha temendo ser denunciada pelo brâmane, desmaiada, com audácia
acusou-o de ele ter-lhe feito propostas desonestas. O rei, furioso, chamou dois
dos seus algozes e disse-lhes:
— Ide à porta oriental da cidade e arranjai lá um grande caldeirão cheio de
azeite, e tratai de o pôr a ferver. Amanhã irá ali um homem que vos há de fazer a
pergunta: «Está tudo feito?» Sem considerar quem ele possa ser, amarrai-o de
pés e mãos e atirai-o ao azeite fervente. Depois o rei chamou o brâmane e deu-
lhe ordem para no dia seguinte, logo de manhã, ir à porta oriental e perguntar
aos dois homens, que encontrará ao pé de um grande caldeirão, se: «Está tudo
feito.» E seja qual for a resposta, vem trazer-ma.
No dia seguinte, de manhãzinha, o brâmane dirigiu-se para a porta oriental;
mas no seu caminho um amigo saiu-lhe ao encontro e pediu-lhe de quebrar com
ele o jejum da véspera, compartilhando a refeição do duodécimo dia (imposição
sacramental avadasi.) Lembrando-se do primeiro conselho de seu pai, o brâmane
aceitou o convite, apesar de toda a pressa em cumprir o seu recado.
Enquanto ele se achava assim impedido, o ministro que tinha sido informado
pela rainha da ordem do rei, não pôde resistir ao desejo de saber se esta ordem já
tinha sido cumprida, vai ter com os algozes, e pergunta-lhes: Se estava tudo
feito? Imediatamente os algozes o agarraram e atiraram-no ao azeite fervente.
O brâmane despedindo-se do seu comensal, foi ter com os algozes, e fazer-lhes
a pergunta prescrita.
«Sim, responderam-lhe eles; está tudo feito. O ministro está bem morto, já
executámos a ordem do rei.»
O rei estupefacto ao ver diante de si o brâmane com tal resposta, ameaçou-o de
o mandar matar se não declarasse toda a verdade sobre o seu comportamento
com a rainha. Então o brâmane contou o que vira, e o rei depois de ter punido a
culpada, nomeou o velho brâmane seu ministro.» (Cosquin, op. cit., p. 48.)
É também interessante este tema tradicional do folclore judaico: «Um homem
piedoso e rico, pertencente à corte, tinha um filho gentil e bem-afigurado, e
instruído. À hora da morte esse homem piedoso recomendou ao filho — nunca
saísse da Sinagoga, desde que o ministro oficiante se levante para a oração, e
comece o Kaddisch, até final da prece. Igualmente, se alguém se levantar a fim de
dizer Barbu, por não ter ouvido o ofício, espere que ele tenha terminado a sua
oração. Foi o que eu fiz toda a minha vida, e tudo me saiu bem nos meus
negócios. Também, se tu passares por alguma cidade em que haja alguma
sinagoga e que tu ouças o ministro oficiante, entra e não saias antes do ofício
acabado.
Este homem piedoso expirou a seguir. O filho era muito estimado de toda a
gente, ele tinha um cargo na corte; era ele o escanção do rei e da rainha (o que
lhes enche os copos), que lhes corta o pão e carne. Estimavam-no extremamente,
e pela sua parte ele só tinha boas intenções. Vendo isto o ministro, encheu-se de
inveja, e tratou de dizer ao rei:
— Senhor, tendes olhos e não vedes que o jovem copeiro é amante da rainha.»
E assim por diante. A marcha da narrativa é completamente a mesma da legenda
do Pajem de Santa Isabel. (Ibid., p. 42 do Ap.)
Além da lenda do Pajem, anda ligada também à rainha Santa Isabel a da esmola
convertida em rosas, repetida nos contos populares portugueses. Do milagre das
rosas, escreve M.me Busquet, no seu livro La Normandie romanesque et
merveilleuse: «O milagre das rosas é conhecido e popularizado em muitos
departamentos de França e da Alemanha. Não podemos recordar os nomes de
todas as personagens, em cujo favor ele se operou; citaremos apenas de memória
Santa Elisabeth de Hungria, e San Mayel, um dos patronos mais venerados do
antigo priorado de Souvigny, onde existia o seu túmulo.» (Op. cit., p. 385.) M.me
Busquet refere o Milagre das Rosas, passado com a filha do senhor feudal
Nicolau d’Estousteville, que em 1116 fundara a abadia de Valency-en-Caux. O
sire d’Estousteville, na sua construção, com que dotou a igreja que edificara,
ratinhava os salários dos mestres escultores, arquitetos e pedreiros, que mandara
vir da Alemanha, e forçava os seus vassalos a servirem nesse trabalho,
mandando-lhes distribuir rações insuficientes. A própria filha de sire
d’Estousteville, é que empregava generosamente todos os seus pecúlios, e de vez
em quando da cozinha paterna socorria aquela gente esfaimada. Uma tarde,
quando ela ia, como de costume, fazer algumas distribuições aos artistas
estrangeiros, tendo o que era de comer no regaço e levando na mão um canjirão
de vinho, aconteceu encontrar-se com seu pai. Ladino nas suas suspeitas, o avaro
castelão avançou furioso para a filha, e perguntou-lhe em um tom de arrepiar:
— Que levas, com tanta cautela assim resguardado?
— Meu pai, são rosas e água. (A primeira escusa graciosa que se lhe ofereceu à
lembrança.)
O inexorável castelão não se fiou na doce voz da filha, e ordenou-lhe com um
gesto violento que mostrasse o que levava na saia. E esperando ver a provisão de
comestíveis, qual não foi a sua surpresa vendo cair a seus pés bastantes flores do
roseiral; e ainda levado por um brutal impulso despejando no chão a vasilha que
a filha levava na mão, o furor injusto do pai cruel foi novamente enganado, por
que uma água límpida e cristalina espalhou-se em gotas cintilantes pela relva.»
(Op. cit., p. 383, ss.) Como Santa Isabel, no século XIII, também Maria
d’Estousteville se meteu a freira em um convento de Carmelitas no século XII.
Neste livro ainda cita uma outra heroína do milagre das rosas, M.me Bréauté,
filha de um castelão de Saint-Valency-en-Caux; depois da morte de seu pai deu
largas à sua piedosa caridade fundando a Gafaria (Leproserie) de Sainte Marie de
Clemencé.
Pelo processo legendogónico, variam os nomes das pessoas e das localidades
persistindo os temas lendários.
A INGRATIDÃO DOS FILHOS

Certa mulher dera à sua filha em dote quanto possuía; e depois, assim ela como
o genro a desprezavam e lhes aborrecia em casa como carga inútil. Vendo isto a
velha:
— Já sei (disse consigo) como emendar o erro meu.
Dali por diante fingia que se furtava aos olhos dos domésticos para se retirar a
certo aposento interior, onde tinha uma arca com muitas fechaduras, cujas
chaves recatava; ali, de noite, a horas escusas, com dissimulação afetada, abria,
vazava, contava e tornava a guardar, em lugar de patacas, pedacinhos de louça
quebrada, espreitando entretanto se fora sentida a mesma que o desejava ser.
Também entre a conversação deixava cair algumas palavras prenhes, que
indicavam testamento feito, ou quantidade de sufrágios e esmolas, ou louvor dos
que pouparam para a sua velhice ou outras semelhantes. Do que tudo vieram a
filha e o genro a entender que a velha tinha dinheiro escondido e logo
deliberaram dar-lhe bom trato e falar-lhe com agrado e sujeição. Tanto que
chegou o seu dia e passou desta vida, foram muito sôfregos registrar o que havia
na arca, suave tormento de suas esperanças, mas o que acharam entre os telhos,
foi só um papel com estas palavras:
— Filhos meus, se os tiverdes, não vos esqueçais de vós no dar-lhes estado; este
desengano que tenho vos deixo, em lugar do dinheiro que não tenho.
(P. Manuel Bernardes, Nova Floresta de Vários Apotegmas, t. I, p. 145.)

VARIANTE
Achava-se certo pai com duas filhas capazes já de tomarem estado, e querendo
dar-lho com mais grandeza lhes consignou em dote quanta fazenda possuía.
Supôs que os consortes nunca deixariam de corresponder a esta liberalidade com
igual gratificação provendo-o depois do que necessitasse, servindo-o e tratando-
o com aquele amor que podia prometer-se de pessoas tão próximas no
parentesco como obrigadas pelo benefício. Mostraram-lhe os esposos ao
princípio algumas demonstrações de afeto, mas faltando-lhes pouco a pouco as
esperanças de conseguirem já nada do velho, que lhes tinha dado tudo,
começaram-no a maltratar de sorte, que bem cedo conheceu o erro em que
caíra, reduzindo-se à pobreza. Vendo-se o velho reduzido a tão triste estado, e
cuidando no remédio da sua necessidade, lhe ocorreu enfim uma indústria, que
lhe saiu bem-sucedida e acertada. Tinha um amigo particular, e pediu-lhe certa
quantia bastante de mil cruzados, a qual sem falência alguma lhe restituiria
passado aquele termo. Conseguiu prontamente o dinheiro, e levando-o às
escondidas para a sua câmara que ficava próxima às dos genros e filhas, vazou o
saco sobre uma mesa e pôs-se a contar o dinheiro, manejando-o de sorte que
tinisse e soasse fora o estrondo. Perceberam as filhas o som, acudiram logo ao
reclamo, espreitaram pela fechadura da porta, e vendo sobre o bufete tanta soma
de moedas, comunicada a novidade aos maridos, assentaram que convinha
mudar de estilo e dar ao velho outro tratamento. Como lhe supunham ainda
algum cabedal, temerosas que talvez o deixasse a pessoas estranhas, julgaram
que importava ganhar-lhe a vontade para segurarem deste modo toda a herança.
Assim como o resolveram o executaram, e para mais se certificarem, em certa
ocasião procuraram saber dele um dia se lhe restava ainda alguma cousa, e
quanta soma de dinheiro de que dispusesse.
Respondeu o acautelado velho que alguma quantia reservara para fazer seu
testamento. Que sua tenção era deixar a soma dos mil cruzados, que lhe
restavam, a suas filhas, deixando a uma ou outra mais ou menos, conforme os
obséquios e serviços que delas recebesse naquela sua velhice necessitada de
tantos.
Bastaram estas palavras para acenderem nas filhas o apetite do dinheiro, e cada
qual logo à porfia começou a ganhar a vontade e benevolência do pai, servindo-o
em tudo e gozando-se ele dissimuladamente do bom sucesso que surtira o
estratagema. Passado algum tempo adoeceu de morte o velho, e chamando as
filhas e os genros, disse-lhes ser chegada a sua última hora, e que assim tanto
que expirasse, acabados os sufrágios, receberiam dos Frades a chave da caixa, a
qual abrissem, porque de quanto estava dentro as deixava igualmente por
herdeiras. Apenas o bom velho expirou, prontamente se disseram missas, e
recebendo as filhas com alvoroço a chave, abriram a arca mui ligeiras, mas não
estava dentro uma só moeda; somente acharam um malho, que tinha estas letras
ao redor escritas:
«Com este malho se dê na cabeça de quem não tratando de si, deixa a sua
fazenda a outrem.»

(P. Manuel Consciência, Academia Universal de Vária Erudição, p. 95.)

NOTA: Acha-se nos fabliaux da Idade Média: Le bourgeois d’Abbeville, por


Bernier (Recueil de Fabliaux, p. 166); o conto do Sapo, no Doctrinal de Sapience, f.
21, v. A herança de pedras acha-se no testamento de Fauchet, em que os
logrados são os frades; há outras versões nas Histoires plaisantes et ingenieuses, p.
146; e em Piron, Fils ingrats, comédia. Esta história afeta outras formas, como é
o episódio da intervenção do neto que se prepara para exercer a mesma
crueldade com o pai. Nos Contos Nacionais para Crianças, n.º 1, há uma
referência a uma versão popular ainda corrente em Portugal. Nas Horas de
Recreio, do P.e João Batista de Castro, p. 81, vem este tema da Velha que dá o que
tem à filha. António Prestes no Auto dos Dois Irmãos, tem este tema: «no cabo do
qual Auto se trata como estes dois filhos se casaram a furto do pai, e o pai não os
querendo ver, houve quem os metesse de amizade, de maneira que o pai lhes deu
tudo o que tinha. Depois que lho deu não o quiseram mais ver nem agasalhar,
até que o pai se fez que queria morrer, e encheu um cofre de areia, e meteu
dentro um rifão, que diz: Quem se deserda antes da morte, e com isto fenece o
Auto, etc.»
A USURA DE NOSSA SENHORA

Um onzeneiro famoso foi avisado e castigado com lepra. Tendo já quase


esgotado a medicina e a bolsa, por último remédio recorreu à Senhora do
Loreto, prometendo-lhe se sarasse, oferta de cem escudos de ouro. Foi ouvido e
restituído à saúde brevemente. Os amigos, aproveitando a ocasião o amoestaram,
não tornasse a manchar a sua alma com aquele vício da usura.
Respondeu:
— Se fora vício esse que dizias, não levara a Senhora cem escudos por curar-me.

(P. Manuel Bernardes, Estímulo Prático, exemplo V.)


O MÉDICO DE BOA-FÉ

Como o outro que curava de um espinho certo cavaleiro, e tinha-lhe metido em


cabeça que era postema. Ausentou-se um dia e deixou um seu filho instruído,
que continuasse com os emplastos do espinho, a que chamavam postema. Mas o
filho na primeira cura, para se mostrar mais dextro, arrancou o espinho;
cessaram logo as dores, e sarou o doente em menos de vinte e quatro horas. Veio
o pai; pediu-lhe o filho alvíssaras, que sarara o doente só com tirar o espinho.
Respondeu-lhe o pai:
— Pois daí comerás, pura besta. Não vias tu, selvagem, que enquanto se
queixava das dores continuavam as visitas e se acrescentavam as pagas? Secaste o
leite à cabra que ordenhávamos.

(Alexandre de Gusmão, Arte de Furtar, p. 26.)

NOTA: Este conto popular e os cinco que se lhe seguem foram transcritos do
celebrado livro Arte de Furtar, atribuído ao P.e António Vieira, o grande
pregador do século XVII; aparecem hoje aqui sob o nome do seu verdadeiro
autor, Alexandre de Gusmão, ministro e secretário de D. João V.
Na Academia de Ciências de Portugal, fizemos uma comunicação, tendo por
fim resolver o problema literário, posto pelo vogal José Pereira de Sampaio
(Bruno), sobre quem seja o autor da Arte de Furtar. Este académico, num
trabalho apresentado, há anos, em sessão, estabeleceu a prova definitiva de que
esse tratado não fora escrito pelo P.e António Vieira, mostrando que, em 1741,
Barbosa Machado, no artigo biobibliográfico do insigne orador, não inclui entre
as suas obras, a Arte de Furtar, citando-a, no Suplemento da Biblioteca Lusitana,
a edição de Amesterdão de 1744, (da qual há duas edições do mesmo ano, com
paginação diferente in-4.º de XII-508 p., e outra em diferente tipo, com
retrato, de 409 p.). Ferreira Gordo, dando conta à Academia das Ciências de um
exame dos manuscritos portugueses da Biblioteca de Madrid, ao referir-se aos
do P.e António Vieira, escreve: «Do mesmo ou de João Pinto Ribeiro, Arte de
Furtar, e se acha já proibido pelo Edital de 1755.»
E, como José Sampaio não tenha revelado a parte positiva do problema até ao
presente, lançámo-nos nessa investigação, sem invadir a esfera de atividade de
um crítico que muito prezamos. Eis as considerações que estabelecemos para
encontrar a solução desejada:
De todos os escritores portugueses do século XVIII, só o ministro Alexandre de
Gusmão era capaz de simular o estilo do P.e António Vieira; como ele, nasceu
no Brasil, estudou no Colégio dos Jesuítas de Santos, o que não é indiferente
para o apocrifismo literário; aos vinte anos acompanhou para Paris, como
secretário de embaixada, o conde da Ribeira Grande, em 1715, formando-se ali
em Direito Civil, e, no regresso, incorporou-se na Universidade de Coimbra,
em 1719.
D. João v enviou-o para Roma, a auxiliar seu irmão Bartolomeu de Gusmão,
onde se demorou sete anos, adquirindo o conhecimento prático das gírias da
Cúria. Desde 1734, foi encarregado dos despachos da Secretaria do Estado para
o Brasil. Neste complicado serviço, encontrou continuados e industriosos
roubos e fraudes da Fazenda, aos quais opôs hábeis regulamentos e expedientes,
que melhoraram os rendimentos do Estado. Em 1742, entra para o Conselho
Ultramarino, onde também prestou valiosos serviços, para reprimir engenhosos
latrocínios, que se lhe revelavam como uma completa Arte de Furtar. Com o seu
raro talento de escritor, e uma observação ironista, adquirida nas viagens e longa
residência em Roma e em Paris, e com o malicioso espírito de engenhoso
intérprete de cifras diplomáticas, era fácil a Alexandre de Gusmão, nascido no
último quinquénio do século XVIII, imitar o estilo digressivo faceto do padre
Vieira, fazendo habilmente imprimir, na Holanda, a «A Arte de Furtar, gazua
geral dos reinos de Portugal». Em 1740, em carta de 2 de maio escreveu
Alexandre de Gusmão a Barbosa Machado respondendo ao pedido de
apontamentos biográficos para a Biblioteca Lusitana. Por esse tempo, elaborava
ele, na sua mente, este livro, com um estilo em que a beleza ressalta da verdade
da observação e das situações pitorescas que descreve. É inquestionavelmente
um moderno, com uma fina crítica, que não possuíam Luís António Verney, o
Cavaleiro de Oliveira e José da Cunha Brochado. Do estilo de Alexandre de
Gusmão trataram Fr. Fortunato de S. Boaventura e Camilo Castelo Branco,
por modo a determinar qualidades idênticas às da Arte de Furtar, conforme o
documentam esses trechos.
De todos os escritores da primeira metade do século XVIII, só o ministro
Alexandre Gusmão era capaz de simular o estilo de Vieira, e de fazer esse livro
faceto e de mordente moral a Arte de Furtar. Frei Fortunato de S. Boaventura,
nos seus Subsídios para Se Escrever a História Literária de Portugal, falando da
decadência da força e majestade da língua portuguesa nos escritos retóricos,
contrapõe: «resplandecem mais no gabinete do Soberano (D. João v) do que nas
cadeiras sagradas e professas, do que nos oferecem um claro testemunho os Decretos e
Aviso régios, que escreveu Alexandre de Gusmão.» (Op. cit., p. 193.) Foi nos ócios
desta redação oficial, que o perspicaz ministro fantasiou esses quadros realistas,
nos ditos e considerandos morais, que fazem da Arte de Furtar, além de um
profícuo documento, uma digna obra literária. Por uma intuição do caráter do
estilo, Camilo Castelo Branco roçou pela verdade do problema que Barbosa
Machado na Biblioteca Lusitana suscitou, dando em 1749 notícia da Arte de
Furtar edição de 1744. No Curso de Literatura Portuguesa, p. 162, reconheceu
Camilo nos escritos de Alexandre de Gusmão: «esperteza de observação, na
solércia da crítica, e para quem antepõe estudos sociológicos a perluxidades
linguísticas, o secretário de D. João V, excede António Vieira e D. Francisco
Manuel de Melo.»
NÃO ESCAPA DE LADRÃO
QUEM SE PAGA PELA SUA MÃO

A um cego, desses que pedem por portas, deram uma vez em certa parte um
cacho de uvas por esmola; e como se guarda mal cevadeira de pobres o que se
pode pisar, tratou de o assegurar logo repartindo igualmente com o seu moço
que o guiava; e para isso concertou com ele que o comessem bago a bago,
alternadamente; e depois de quatro idas e venidas, o cego para experimentar se o
moço lhe guardava fidelidade, picou os bagos a pares; o moço vendo que seu amo
falhava no contrato, calou-se e deu-lhe os cabes a ternos. Não lhe esperou muito
o cego e ao terceiro invite descarregou-lhe o bordão na cabeça. Gritou o rapaz:
— Porque me dais?
Respondeu o amo:
— Porque contratando nós que comêssemos igualmente estas uvas bago a bago,
tu comes a três e quatro.
Perguntou então o moço:
— E quem vos diz a vós, que eu fiz tal aleivosia?
— Isso está claro (respondeu o cego), porque faltando-te eu primeiro no
contrato comendo a pares, tu te calaste, sem me requereres tua justiça; e não eras
tu tão santo que me levasses em conta nem em silêncio a minha sem-razão,
senão pagando-te em dobro pela calada.

(Idem, Arte de Furtar, p. 33.)


A VENDA DAS GALINHAS

E menos agudo andou o outro, que talhando o preço das galinhas a quem vendia
na feira, e levando-o a quem dizia lhas havia de pagar, o pôs em uma igreja onde
estava o padre cura confessando; e chegando-se a ele lhe pediu por mercê à
puridade, se lhe queria ouvir de confissão aquele homem, e respondeu alto que
sim e que esperasse, que logo o despacharia, se deu o vendedor por satisfeito,
cuidando que o mandava esperar para lhe dar o preço da compra, e teve lugar o
ladrão de se acolher com o furto.
(Idem, Ibid. p. 276.)

NOTA: Esta anedota acha-se extremamente vulgarizada; nas Facetieuses


journées, p. 107; nas Repues franches, de Villon; nas Facetie di Poncino, na Arcadia
di Brenta, p. 152; nos Nouveaux contes à rire, p. 262; nos Contes du siur d’Ouville, t.
II. p. 471; no Courrier facétieux, p. 355; na Histoire générale des Larrons, p. 20; na
Bibliothèque de Cour, t. III, p. 23. As variantes dão-se entre o objeto da compra e a
pessoa que paga. No conto Des trois aveugles vem esta peripécia como episódio.
(Recueil de fabliaux, p. 85.) Nas Novelle de Morlini, n.º XIII, fab. II, e em
Bebelius, liv. II, conto 126, acha-se este mesmo conto do jesuíta português, e
ainda corrente nas facécias populares.
O ROUBO DO VESTUÁRIO

Mais agudo andou outro, que vendo entrar pela ponte de Coimbra um
forasteiro bem vestido armou a lhe furtar o fato, na volta; e armou bem para seu
intento, porque o esperou no bocal de um poço, que está na estrada por onde
havia de passar, chorando sua desgraça, e que lhe caíra naquele instante uma
cadeia de ouro dentro do poço e que daria um dobrão a quem lha tirasse.
Moveu-se à compaixão o passageiro, que devia de ser homem de bem, senão que
o picou o interesse, e por isso não presumiu de malícia; gabou-se que sabia nadar
como um golfinho e que lhe tiraria a cadeia de mergulho. O matalote da cadeia,
tanto que o viu debaixo de água, tomou as de vila-diogo com todo o fato e
cabana.
(Idem, Ibidem, p. 278.)
A ROUPA DOS MENDIGOS

Um fidalgo piedoso lançou um pregão na sua terra que tal dia dava um vestido
novo por amor de Deus a cada pobre. Ajuntaram-se no seu pátio infinitos, e a
todos deu vestidos novos, mas obrigou-os a que logo os vestissem, e tomou-lhes
os velhos, e neles achou bem cosido e escondida por entre os remendos maior
quantidade de dinheiro vinte vezes que a que tinha gasto nos vestidos.
(Idem, Arte de Furtar, p. 316.)
A CASA DOS MORTOS

Indo o pajem de um fidalgo que tinha fama de rico a comprar uma moeda e
rábãos para a ceia de todos, encontrou uma grande procissão de religiosos e
clérigos, que levavam a enterrar um defunto, e detrás da tumba se ia carpindo a
mulher, e lamentando a sua desgraça; e ouviu que dizia entre lágrimas e
suspiros:
— Aonde vos levam, meu mal-logrado? À casa onde se não come, nem bebe;
nem tereis cama mais que a terra fria.
Em ouvindo isto o rapaz, voltou para casa como um raio fugindo, trancou as
portas e disse espavorido a seu amo:
— Senhor, ponhamo-nos em armas, que nos trazem cá um homem morto.
— Tu deves vir doudo, disse o amo, pois cuidas que a nossa casa é igreja?
— Entrei em suspeitas se viriam cá enterrar aquele finado; e confirmei-me de
todo, porque a gente que o traz vem dizendo que o levam à casa onde se não
come, nem bebe, nem há cama mais que a terra fria; fiz bem em fechar as portas,
pois assaz bastam os defuntos, que cá jazemos mortos de fome, que é pior que
maleitas.
(Idem, Ib., p. 328.)
AS BOTAS FIADAS

Um fidalgo tomou por matéria de riso calçar todo o ano sem pagar nenhum par
de obra aos sapateiros, que vieram a dar-lhe na trilha; levantando-se às maiores
com palavras, que correu entre todos que nenhum se fiasse dele, nem lhe desse
calçado sem lhe pagar primeiro.
Vendo-se o fidalgo posto em cerco, e que ninguém lhe queria dar sapatos sem o
dinheiro na mão, mandou ao moço que pedisse um só sapato à prova, e que se
lhe contentasse mandaria buscar o outro com o dinheiro de ambos.
— Isso sim, disse o oficial; um sapato levará você, mas dois não os verá seu amo
sem me pôr nesta banca o dinheiro.
Como o fidalgo teve um nas unhas, mandou o pajem a outro sapateiro com o
mesmo recado, e do mesmo modo fiou um sapato dele, persuadindo-se que
mandaria buscar o outro com o dinheiro, ou lho restituiria não lhe servindo.
Vendo-se assim com os dois, calçou-os e foi-se ao paço rir sobre a história.

(Idem, Arte de Furtar, p. 474.)


A MATRONA DE ÉFESO (Variante)

Em Éfeso havia uma matrona honestíssima que, morrendo-lhe seu marido, fez
por ele os maiores extremos de dor que se podem considerar; e não se
contentando com as cerimónias comuns das outras viúvas, se foi à sepultura de
seu marido (que antigamente se enterravam nos adros das igrejas) e ali estava a
chorar, sem querer comer, nem afastar-se daquele lugar. Aconteceu terem ali
perto enforcado a uns facinorosos, para guarda dos quais deixara a Justiça alguns
soldados. Soube um destes que estava junto da sepultura aquela matrona, e
compadecido da sua mágoa, lhe levou da sua ceia, e a obrigou a que comesse, por
não morrer desesperada. Passou adiante, porque o mesmo que a convenceu a
que comesse, a persuadiu também a que lhe desse seu corpo, com a qual cousa
descuidando-se da sua obrigação, vieram os parentes de um dos justiçados e o
furtaram. Vindo depois o soldado e não achando o corpo na forca, temendo o
castigo, veio dizê-lo mui triste à viúva, a qual o consolou e remediou logo,
tirando o corpo de seu marido defunto, pelo qual havia feito tantos extremos, e o
puseram na forca em lugar do justiçado.

(P.e João Batista de Castro, Hora de Recreio nas Férias de Maiores Estudos,
Centúria I, n.º 79, Lisboa, 1770.)

NOTA: Sobre esta tradição e sua forma popular, vid. A Viúva e o Alcaide e nota
correspondente.
A par da variante do século XVIII, aditamos-lhe agora outra para mostrar a sua
degradação.
«Uma romana, morrendo-lhe seu marido, de quem fora sempre estimada,
mandou-o enterrar no cemitério dos enforcados, que juntamente com a forca
estava diante das suas casas, e ficou carpindo a falta de seu marido com gemidos
e prantos lastimosos. Ouvindo-os um soldado que estava de guarda a um corpo
de um justiçado veio consolá-la e lhe assistiu toda a noite, deixando o cadáver só,
que entretanto foi levado pelos parentes. Amanhecendo, viu o guarda a falta, e
deu-se por perdido; mas a mulher remediou o caso, dizendo-lhe que
desenterrasse o corpo de seu marido, que o pendurasse na forca, como o outro
estava. Assim o fez, e obrigado à viúva pelo arbítrio, e esta ao soldado pela
compaixão que tivera dela, casaram-se ao dia seguinte, trocando a viúva
repentinamente os excessivos choros com excessivas alegrias.»
(Marques Soares, Divertimentos de Estudiosos, t. II, p. 258.)
O POBRE CHAGADO E AS MOSCAS

Essa frequente mudança de vice-reis não agrada aos portugueses e a outra gente
da Índia, nem tampouco a semelhante mudança que há nos capitães das
fortalezas e entre os oficiais; e para significarem isto, contam que:
Era uma vez um pobre à porta de uma igreja com as pernas todas cheias de
chagas, nas quais pousavam as moscas em tal quantidade, que fazia grande
compaixão; pelo que outro homem se chegou a ele, e julgando que ele lhe dava
muito gosto, lhe enxotou todas as moscas, com o que o pobre paciente se agastou
muito, dizendo que:
— As moscas que ele enxotava já estavam fartas, e o não picavam, mas as que
viessem de novo famintas o picariam muito mais.
Assim (dizem eles) acontece com os vice-reis, porque os fartos se vão embora e
vêm os famintos.
(Pyrard, Viagem, Contendo a Notícia da Sua Navegação às Índias Orientais, 1601-
1611.)
O ANJO E O EREMITA

Houve um ermitão antigamente, que havendo gastado alguns anos nesta


solitária vida retirada no ermo, exercitando-se em obras de virtude e
mortificação grande da própria vontade, foi grandemente tentado algumas vezes
de um espírito de blasfémia, não lhe parecendo justos os juízos de Deus, a ele
ocultos e não entendidos. Este pensamento o atormentava, este cuidado o
entristecia, esta tentação o molestava de maneira que nem de dia nem de noite
lhe deixava livre uma hora de descanso, havendo uma perpétua guerra em
resistir a vontade o dar consentimento aos desacertos que lhe representava o
entendimento. Um dia, quando mais descuidado do socorro e mais molestado da
tentação o ermitão estava, lhe apareceu um anjo em figura de homem mancebo e
bem-disposto, e lhe disse:
— Segue-me, se queres considerar e conhecer os ocultos juízos de Deus, que
tanto saber desejas.
Alegre em extremo o pensativo ermitão aceitou sua companhia, com o grande
desejo de aclarar sua dúvida, de sossegar seus desvelos. Caminharam ambos larga
jornada aquele dia, e já no crepúsculo da noite chegaram a casa de um homem
não rico, porém mui virtuoso e caritativo, que os agasalhou mui urbanamente
com o sustento que tinha, e à ceia lhe pôs na mesa uma taça ou copo de prata
para beberem, de debuxo e lavor mui curioso, que ele muito estimava e em cuja
vista se revia.
Porém o anjo subtilmente naquela noite lho furtou sem que ele o sentisse e o
levou consigo. Despediram-se pela manhã do hóspede; e continuando sua
jornada, o anjo mostrou ao ermitão a taça que furtara, de que o ermitão muito se
escandalizou, estranhando o desprimor e vilania de roubar a prenda de mais
estima que tinha aquele pobre homem, que em sua casa com tanta caridade
hospedara. Pouco caso fez o anjo daquelas queixas e sentimentos do
companheiro; foram continuando seu caminho e se agasalharam a seguinte noite
em casa de um homem rico dos bens da terra, porém mau e perverso, de pouca
caridade, nem cortesia, que sem alguma os recebeu, e pesadamente os agasalhou
com tão pouca urbanidade, que mais tinham motivo de queixas que de
agradecimento. Pela manhã, despedindo-se o anjo e companheiro dele, lhe
ofereceu o anjo a taça curiosa, que ao outro hóspede caritativo furtara, ação que
ao ermitão de novo acrescentou sentimento, em ver que a prenda de estima que
a um pobre primoroso e tão caridoso furtara, a um rico sem caridade nem
primores dera; tudo lhe parecia desacertos e ações alheias de todo bom juízo.
Nestas queixas e debates, do que o anjo se lhe dava pouco, foram continuando
seu caminho, vindo na terceira noite da sua peregrinação agasalhar-se em casa
de um homem afável, benévolo e caridoso, que os hospedou com grande
benignidade e largueza; e vindo a manhã, despedidos dele, o anjo lhe despenhou
no rio, de uma ponte alta, um criado seu, que nela estava, de quem o hóspede
muito fiava, e lho afogou no rio. Admirou-se o ermitão de tal crueldade,
repreendendo-lhe o homicídio e mau galardão que dera a quem com tanta
liberalidade e amor os tratara; porém, como o anjo da sua admiração e
repreensão pouco caso fazia, foi continuando a sua jornada; e chegada a quarta
noite dela, se hospedaram em casa de um honrado e caridoso homem, que os
recebeu com grande cortesia. Tinha este um menino de pouca idade, e que de
noite com o seu choro não deixava repousar a quem na casa estava; o que visto
pelo anjo, sem ser do pai sentido, se levantou e o afogou no berço, ação que vista
do ermitão, sem poder remediá-lo, além do grande sentimento e pena que dela
recebeu, parecendo-lhe que tão desordenadas e tiranas obras não podiam
proceder senão de algum espírito maligno, qual ser o anjo imaginava, se resolveu
de não continuar mais tal jornada nem ir em sua companhia a parte alguma; e
assim, saindo de casa deste caridoso homem que ficava com notável sentimento
lamentando a morte de seu defunto filho, que era o espelho em que se reviam
suas esperanças, o ermitão armando-se com o sinal da cruz conjurou o anjo, que
ser demónio imaginava, que o deixasse e em sua companhia não fosse; porém o
anjo lhe disse:
— Eu não sou demónio, como imaginas, senão anjo do Senhor, que me mandou
para que te manifestasse os ocultos juízos de Sua eterna Providência, que tanto
alcançar procuras; e assim saberás que tirei a curiosa taça de prata àquele
caridoso homem que nos agasalhou a primeira noite tão afavelmente porque
com o muito em que vê-la se desvelava e recreava, se esquecia e mostrava tíbio
nas contínuas orações, que antes de tê-la fazia, do que já o divertiam assim o
gosto de possuí-la como o cuidado de guardá-la, privei-o dela para que sua
antiga devoção nada diminua, mas antes se afervore e cresça. Dei a mesma taça
àquele homem rico e descaridoso, para que nesta vida receba o prémio de
alguma obra boa natural que tem feito, pois o não há de receber na outra. —
Precipitei no rio ao criado do terceiro hóspede que com tanta caridade nos
recebeu, porque tinha firme propósito de matar a seu amo na noite seguinte, e,
assim afogando o traidor criado livrou Deus da morte aquele que nos agasalhou
tão caridosamente por Seu amor. — Ultimamente afoguei no berço ao menino,
filho do nosso último hóspede caritativo, porque sendo de antes de extremo
liberal para os pobres, de lhe nascer este filho apertou a mão no fazer bem, indo
de cada vez diminuindo as esmolas com os desejos de conservar e adquirir
fazendas para o filho; e assim tirei a vida ao menino inocente em idade tão
virtuosa para que fosse gozar da glória e ficaria ocasião ao pai para continuar na
eficácia das obras de caridade, de que já se descuidava. Estes são os juízos de
Deus em tudo justos, e acertados, que a quem os ignora, parecer podiam
desordens ou injustiças.
Com isto desapareceu o anjo, e ficou o ermitão fora da tentação que o molestava,
e consolado nas aflições que sentia.

(P.e Mateus Ribeiro, Alívio de Tristes e Consolação de Queixosos. Parte I. Edição de


1672.)

NOTA: Na conceção dita vulgar, a harmonia do universo e o destino humano


estão sob a vontade da Providência, a que tudo coordenadamente obedece; mas
na sucessão dos acontecimentos eles contradizem essa crédula confiança. O
ditado: Deus escreve direito por linhas tortas ressalva esse outro anexim que diz
contra a justiça providencial: Dá Deus nozes a quem não tem dentes. Este problema
instante do destino humano provocou a especulação filosófica do génio judaico,
mais do que em qualquer dos outros ramos da raça semita, e expressou essas
flagrantes antinomias da vontade de Deus em poemas como o de Job e em
contos como este do Anjo e o Eremita. O génio judaico pôs no Eclesiastes o
problema na sua crueza: «Há justos sobre os quais pesa a desgraça como se
vivessem como ímpios, e há também ímpios que vivem tão sossegados como se
vivessem como justos. Tenho visto correr as lágrimas dos inocentes sem que
alguém os console; e também visto privados de todo o socorro importante
resistirem à violência... Eu compreendo, que o homem não pode por nenhum
modo descobrir a razão das obras de Deus, que passam sob o Sol; quanto mais
ele se afadigar a procurá-la, menos a encontrará.» Gaston Paris, seguindo este
pensamento dos Hebreus, achou a sua mais antiga expressão poética, no livro de
Adjaib ou Livro das Maravilhas de Zachariah Ben Mohammmed e também no
Talmude, notado pelo folclorista Baring-Gould. Dessas fontes orientais
antiquíssimas do conto é que ele passou para a tradição muçulmana corânica e
para a tradição cristã ocidental da Idade Média. Reconhecida esta fonte
primitiva da conceção casuísta, importa descrever o seu quadro aproximando os
dois paradigmas semitas.
«Moisés andando atormentado pelo problema da distribuição dos bens e dos
males sobre a Terra, Deus o arrebatou ao cimo de uma montanha, e quis fazer-
lhe compreender como se governa o mundo. À falda da montanha manava uma
fonte. Moisés viu aproximar-se um cavaleiro para dessedentar-se; sobre a borda,
ao ir-se embora deixou um saco de peças de oiro esquecido. Vem depois um
pastor, deparou como saco, e foi-se embora com ele. O cavalheiro tendo dado
pela sua perda, tornou à fonte, onde encontrou ali apenas um velho, que havia
instantes chegara, tendo posto no chão o seu carreto para descansar um pouco.
O velho bem protestou que não vira saco algum, e invocou o testemunho de
Deus, mas o cavalheiro ergueu o sabre e matou-o. Moisés estava cheio de horror
e de indignação diante de tamanha injustiça. Mas Deus disse-lhe:
— Não te espantes pelo que acabas de ver. O velho tinha outrora assassinado o
pai desse cavaleiro; o ouro pertencia legitimamente, sem que ele o soubesse, ao
pastor, que o achou; o cavaleiro tinha-o adquirido por mal, e com ele ia fazer
mau emprego; assim a todos justiça foi feita.»
Agora a versão do Corão 64-81); é Iaveh que fala:
«Moisés encontrou um de nossos servos, favorecido de graça e esclarecido de
ciência.
— Posso eu seguir-te, disse-lhe Moisés, a fim de que tu me ensines uma parte
do em que foste ensinado?
O desconhecido respondeu:
— Tu não tens a paciência bastante para andares longo tempo comigo, pois que
tu não poderás suportar cousas de que tu não compreenderás o sentido.
— Se a Deus prouver, disse Moisés, tu me acharás perseverante, e eu não
desobedecerei às tuas ordens.
— Está bem, disse o desconhecido; acompanha-me, mas não me faças perguntas
sobre o quer que seja, se eu primeiro te não falar.
Meteram-se então ao caminho ambos, e entraram para um batel; quando eles
desembarcaram o desconhecido deixou-o em estado de não poder mais servir.
— Tu acabas agora de praticar uma ação clamorosa, disse Moisés, arrombaste
este batel, para se afogaram todos que vão dentro dele.
— Não te disse eu que te faltaria a paciência para me acompanhares?
— Não me imponhas, disse Moisés, obrigações tão difíceis; e desculpa-me de
ter desobedecido às tuas ordens. Eles partiram, e imediatamente encontraram
um mancebo. O desconhecido matou-o.
— Que é isto? disse Moisés; acabas de matar um inocente! Que ação detestável!
— Bem te disse eu que não terias paciência bastante para me acompanhares.
— Desculpa-me por esta vez. Se te fizer ainda uma só pergunta, tu não
consentirás mais que eu te acompanhe.
Eles caminharam até às portas de uma cidade. Pediram hospitalidade aos
habitantes, mas estes lha recusaram. Como um muro ameaçasse ruína, o
desconhecido compô-lo.
— Tu devias, disse Moisés, pedir a esta gente uma recompensa.
— Nós vamo-nos separar, disse o desconhecido; tu não tens toda a paciência
que é precisa. Eu vou explicar-te os casos que te espantaram; o batel pertencia a
pobres pescadores; eu o arrombei, porque atrás de nós chegava um rei que se
apoderaria de todos os navios em bom estado. Quanto ao mancebo, os seus
parentes eram crentes, mas se ele vivesse infetá-los-ia da sua perversidade e da
sua incredulidade. Deus lhes dará em troca um filho virtuoso e digno da afeição.
O muro é herança de dois órfãos, cujo pai era um homem piedoso; no alicerce
deste muro está um tesouro, e Deus quer que a sua idade de razão chegue antes
de este tesouro ser achado. Eu não pratiquei nenhuma destas ações pela minha
cabeça, e eis aqui a explicação, que tu não tiveste a paciência de esperar.»
Agora a mesma lenda no meio cristão, vinda pelo sincretismo operado no Egito,
pelo encontro da cultura judaica, do domínio muçulmano e contactos do
cristianismo ocidental; tal é a origem do episódio apenso às legendas das Vitae
Patrum. Escreve Gaston Paris sobre a apropriação da lenda judaica: «Pode-se
crer que esta apropriação se efetuou no Egito, neste país, onde, antes da invasão
muçulmana, judeus, cristãos e pagãos de todas as variedades viviam uns e outros
acomodadamente; conservando por personagens eremitas da Tebaida, a legenda
da Idade Média latina parece ainda atestar essa origem. Esta legenda foi
admitida pelos cristãos, então, quase como a encontraram sob uma forma que
parece mais a do Corão do que a dos livros rabínicos; eles conservaram então
quase inteiramente a aplicação exclusivamente temporal; mas para de logo
esforçaram-se em referir esta aplicação à doutrina propriamente cristã
transformando-a...» (Op. cit., p. 181).
De um ms. francês da Biblioteca Mazarin do século XIV, publicado por
Edelestand du Méril, fez Gaston Paris a tradução deste conto, como a mais
antiga fonte donde derivaram as versões ocidentais:
— «Havia no Egito um solitário que pedia a Deus para lhe serem revelados os
seus juízos. Um dia um Anjo de Deus, sob a aparência de um ancião lhe
apareceu e disse:
— Vem, vamos divagar por este deserto; vamos ter com os santos padres que o
habitam e obtenhamos a sua bênção.
Partiram os dois, e, depois de muita fadiga, chegaram a uma gruta, aonde
encontraram um santo homem, que muito bem os recebeu, lhes lavou os pés e
ofereceu do que tinha. De manhã, quando eles se despediram, o Anjo rapiocou o
prato em que lhes fora apresentada a comida. Dizia o Eremita consigo:
— Que ideia haveria para furtar ao santo homem, que nos agasalhou com tão
grande caridade, o seu prato?
O hospedeiro enviou atrás deles o seu filho, que ainda os alcançou e lhes disse:
— Entregai-me o prato de que vos apoderastes.
Disse-lhe o Anjo:
— O meu companheiro, que ali vai adiante é que tem o prato; vai-lho pedir.
E quando o rapazito lhe passava na dianteira empurrou-o para o precipício da
borda da estrada, onde morreu. O Eremita vendo isto, ficou cheio de temor, e
disse:
— Desgraçado de mim! O que fomos fazer ao nosso bondoso hospedeiro!
Depois de o termos roubado, matamos-lhe seu filho.
Foram andando ainda, e chegaram a um casebre em que vivia um anacoreta com
dois discípulos. Bateram à porta mas o anacoreta mandou-lhes dizer:
— Que se fossem embora, porque não tinha lugar para os agasalhar.
Eles suplicaram de os deixar passar a noite sob o seu teto, porque estavam
cansadíssimos; seguiu-se a recusa. Eles insistiram:
— As feras vão-nos devorar, se não nos acolherdes.
Por fim o anacoreta, impacientado, disse a um dos seus discípulos:
— Conduzi-os para o estábulo.
Aí chegados, pediram uma luz para verem onde é que poderiam deitar-se; foi-
lhes recusada a luz. Pediram qualquer refeição; um dos discípulos trouxe-lhes
pão e água, dizendo-lhes:
— É da minha ração isto que vos dou; olhai, que não o saiba meu mestre.
Ficaram toda a noite assim, deitados sobre o chão duro.
Rompendo o dia, disse o Anjo a um dos discípulos:
— Pede a teu mestre, que nos atenda, que temos alguma cousa a dar-lhe.
O anacoreta apareceu-lhes, e o Anjo ofereceu-lhe o prato, que ele tinha furtado
ao santo homem. E continuaram a sua jornada. O Eremita não sabendo que este
ancião era um Anjo, disse-lhe com indignação:
— Afasta-te de mim; que não quero mais a tua companhia. Tu furtas o que
pertencia àquele santo homem que tão bem nos recebeu; tu fazes morrer seu
filho, e isso que lhe roubaste dás agora a um homem que não teme a Deus e não
tem compaixão de ninguém.
O Anjo respondeu-lhe:
— Não pediste tu a Deus que te revelasse os seus altos juízos? Eu fui enviado
para tos revelar. O prato que eu furtei àquele santo bom homem não tinha uma
boa origem; não era conveniente que um homem tão bom e tão piedoso tivesse
em sua casa qualquer cousa mal adquirida; isso que era mau foi dado a um
malvado para realizar-se a sua perdição. Quanto ao filho, se eu não o tivesse
matado, ele teria assassinado o pai na noite seguinte.
Então o Eremita conhecendo que era um Anjo que lhe falava, lançou-se a seus
pés com a face em terra. O Anjo desapareceu, e o Eremita compreendeu que os
juízos de Deus são justos.»
É este o fundo simples de diferentes narrativas latinas, das quais uma foi
apensada à coleção das Legendas que têm o título geral de Vitae Patrum, tendo
o pequeno conto o título: Do Eremita Que Foi Acompanhado por Um Anjo.
Desta forma passou para a elaboração em conto versificado da época de S. Luís e
publicado nos Fabliaux por Méon em 1825; compilado nas Gesta Romanorum do
século XIII, e vulgarizado nos sermonários a começar nos da Scala Celi de João
o Moço, e nos sermões do arcebispo de Tiro, Jacques de Vitri. O insigne
romanista Gaston Paris fez a tradução desta forma do conto; considerando-a
«muito superior pela felicidade da expressão, pelo encanto dos detalhes,
ocupando pela sua hábil composição um lugar à parte na poética narrativa da
Idade Média.» A sua versão acha-se na Poesia da Idade Média, da p. 155 a 164.
(Ed. Paris, 1885.)
Gaston Paris fez a comparação deste episódio das Vitae Patrum, com a versão
mais antiga do Corão (XVIII, 64-81), concluindo, se não pela identidade, pelas
mais íntimas relações, provindas ambas independentemente de uma fonte mais
antiga em relação à narrativa árabe, que deriva de uma lenda judaica, pois que aí
figura Moisés, personagem do Velho Testamento donde se alimentava a
imaginação árabe.
OS DIAS POR MILÉNIOS

Lá se escreve no Espelho dos Exemplos, que um religioso santo e devoto se


desvelava em desejar de entender, cada vez que ouvia cantar no coro, aquele
verso do Salmo 89: Mil anos, Senhor, à vossa vista são o dia de ontem passado;
como podia ser não sentir nem computar o tempo em anos a milhares? Quis o
Senhor mostrar-lhe um emblema deste mistério, e assim, viu diante dos seus
olhos um pássaro de formosíssimas penas e cores tão belas, que por não carecer
de tão fermosa e agradável vista, o foi seguindo fora do convento a um bosque
que vizinho estava, onde começou a cantar com tal suavidade, que elevado o
devoto religioso no suave da melodia, se esqueceu de tudo o que no mundo
havia. Deu fim o músico pássaro a seu canto; e voltando o religioso para o
mosteiro, batendo à portaria, que estava mudada; e não sendo dos religiosos
conhecido, nem ele conhecendo aos que via, se veio a achar pelos anos do
prelado que ele nomeava que então era, buscados os livros do convento; que
havia trezentos e sessenta anos que o devoto religioso do mosteiro saíra, que a
ele lhe pareciam breves horas.
(Id., Alívio de Tristes, etc. Parte III, p. 382.)

NOTA: Nas Cantigas de Santa Maria, de Afonso, o Sábio, vem metrificada esta
lenda, que encheu a Idade Média: Como Santa Maria fez estar o monge trezentos
anos ao canto do passarinho, porque lhe pedia que lhe mostrasse qual era o bem que
haviam os que eram em Paraíso.
Quem a Virgem bem servirá a Paraíso irá.
E d’aquest’um grão milagre / vos quero eu ora contar / que fezo Santa Maria / por um monge
que rogar / lh’ia sempre que lhe mostrasse / quel bem em Paraíso há. / / E que o visse em sua vida
/ ante que fosse morrer. / E por ende a Graciosa / vedes que lhe foi fazer: / fê-lo entrar n’uma
horta en que muitas vezes ia. / / Entrara; mais aquel’dia / fez que uma fonte achou / mui clara et
mui fermosa / et cab’ela se assentou, / e pois lavou mui bem sas mãos, / disse: — Ai Virgem, que
será? / / Se verei do Paraíso / o que ch’eu muito pedi, / algum pouco de seu viço / ante que saia
d’aqui, / e que sábia do que bem obra / que galardão haverá! / / Tão toste que acabada / houve o
monge a oraçom / oiu uma passarinha / cantar logo em tão bom som, / que se escaeceu, sendo / e
cantando sempre a lá. / / A tão grave sabor havia / d’aquel canto e d’aquel lais, / que grandes
trezentos anos / esteve assi ou mais, / cuidando que não estivera / senão pouco como está. / /
Monge alguma vez no ano / quando sal ao vergeu, / des i foi-se a passarinha / de que foi a el mui
Breu, / e disse: — Eu d’aqui ir-me quero / ca oí mais comer guerra / / O convento. E foi-se logo, / e
achou um grão portal / que nunca vira, e disse: / — Ai Santa Maria, val! / Não é este o meu
moesteiro, / pois de mi que se fará? / Des i entrou na igreja, / e houveram grão pavor / os monges
quando o viram, / e demantou-lh’o prior, / dizendo: — Amigo, vós quem sodes, / ou quem buscades
a cá? / / Disse el’: — Busco meu abade / que agora aqui leixei, / e o prior e os frades / de que mi
agora quitei, / quando fui a aquela horta / si seem, que mi o dirá? / / Quando esto oío o abade /
teve-o por de mal sem / e outrossi o convento, / mais des que souberam bem / de como fora este
feito / disseram: — Quem oirá? / / Nunca tão grã maravilha / como Deus por esto fez / polo rogo
de sa Madre / Virgem Santa de grão prez, / E por aquesto a loemos / mais quem a não loará. / /
Mais doutra cousa que seja? / ca par Deus grão dereito é, / pois quanto nós lhe pedimos, / nos dá
seu Filho a la fé, / por ela, e aqui nos mostra / o que nos depois dará.
Quem a Virgem bem servirá a Paraíso irá.
Anotando esta legenda, Adolfo Mussafia aponta o trabalho de W. Hertz,
Deutsche Sagen im Elsas, p. 273, versando a concentração de muitos anos em
momentos; como também Reinhold Köhler, na Revista de Filologia Alemã, vol.
XIV. e na Germânia, vol. II, p. 432. Investigou a difusão da lenda D’Ancona,
Stadü di critica e storia letteraria, pp. 309 a 312; Œsterley na edição de Schimpf
und Ernest de Pauli, no n.º 537; Paulo Meyer, România, vol. V, p. 473,
publicando a prédica de Martino di Sully; também no Libro de Exemplos, n.º
CX. Ed. Gayangos Luzel publicou uma versão oral nas Legendes chrétiennes de la
Basse Bretagne, t. I, p. 222; e Carnoy, Litterature orale de la Picardie, p. 149.
Todos estes Contos figuram o versículo 4.º do Salmo 90: Mil anos diante de
Deus são como um dia.
FORTUNA DE POLÍCRATES

Notável foi a felicidade de Polícrates, tirano de Sarno, que ocupou esta ilha com
as armas repentinamente, crescendo em pouco tempo tanto seu poder e
grandeza, que era alvo a que os olhos e os discursos de toda a Grécia se
encaminhavam. Jamais cousa intentou que não conseguisse; nunca intentou
empreender cousa que não alcançasse. Era temido com armadas nos mares e
vitorioso com exércitos em terra; correndo tanto sem encontro nem embaraço
sua ventura, subindo tanto ao auge sua felicidade, que Amósis rei do Egito, seu
grande amigo, lhe aconselhou que voluntariamente tomasse algum desgosto,
pois a fortuna lho dava, porque não parecia possível durar tanta felicidade sem
infortúnios. Aceitou Polícrates o conselho, e lançou ao mar uma esmeralda, que
estimava em muito por ser de excessivo preço e valia; porém, não querendo a
fortuna que sentisse este, ainda que voluntário desgosto, sucedeu que acaso daí a
cinco dias um pescador recolhera nas redes um grande peixe lho presenteasse, e
no ventre dele se achasse a rica pedra que no mar arrojado tinha. Mas como
tanta ventura ameaçasse já, sendo na terra declinação apressada, sucedeu que
sendo preso à traição de Oretre, governador da Lídia por Dario, rei da Pérsia, o
mandou crucificar na eminência de um levantado monte onde acabou a vida
miseravelmente, sendo espetáculo da mais lastimável compaixão a quantos de
antes o adoravam por tão favorecido da ventura.
(Idem, Ib. Parte I, p. 45.)

NOTA: A lenda do tirano de Santo e do anel que arrojado ao mar lhe veio outra
vez parar à mão foi apresentada por Heródoto, Hist. Liv. III, e por Ateneu e
Tucídides. Provém de um fundo popular, em situações de diferentes contos:
esperar a desgraça depois de uma felicidade ininterrupta (supra, p. 258); o anel
arrojado ao mar, que volta à mão do dono, sendo pescado o peixe que o engolira
(ib., p. 260.)
Na tradição colhida por Heródoto, Amósis, faraó do Egito, separa-se de
Polícrates para não sofrer a fatalidade que o espera após continuadas
prosperidades; mas Grote, na sua História da Grécia, t. IV, pende para o
contrário, que foi Polícrates que rompeu a aliança com Amósis logo que o viu
atacado por Cambises.
ESPELHOS REJEITADOS

Um homem de melhor parecer e estatura por entendimento, se apartou a viver


alguns anos longe da cidade em um monte aonde além de tratar pouco de sua
pessoa, com ar dos matos, o discurso da idade e algumas enfermidades, que
tivera, estava do rosto e das feições muito dessemelhado; vindo depois com nova
ocasião a viver à terra donde saíra, querendo-se vestir e concertar ao galante,
mandou que lhe comprassem um espelho; fez o criado a diligência e não achou
nenhum de que se satisfizesse o amo; tendo provado muitos ou quase todos os
que havia, e perguntando-se-lhe porque o enjeitava, respondeu:
— Porque fazem tão mau rosto e tão avelhentado, que se não pode um homem
de bem ver a eles; e há poucos anos que os havia nesta terra tão excelentes, que
me faziam o rosto como de um anjo.
Riu-se o moço, dizendo entre si:
— Mais se desconhece meu amo por ignorante que por mal visto; pois ao
espelho põe a culpa que tiveram os montes e a idade.
(Francisco Rodrigues Lobo, Corte na Aldeia, diál. XI)
GAIA
(Argumento e declaração da história)

Em tempo que reinava em Galiza, e parte de Espanha, o animoso rei Ramiro


que foi casado com uma senhora chamada Gaia, tendo os Mouros ocupada: a
demais: por ser em tempo que se havia perdido Espanha entre outros reis
mouros, reinava Almançor.
Estes dous reis, havendo entre si batalhas, em uma cativou Ramiro uma irmã
deste Almançor, a qual tinha por amiga; do que enojada Gaia, tratou com
Almançor a quisesse furtar, que ela daria ordem como se fosse com ele, como
deu, e a cobrou, e levou pera Portugal, que estava de Mouros, e a foi pôr junto
da cidade do Porto, e junto do rio Douro, sobre o lugar que agora chamam Gaia,
onde Almançor tinha fortaleza, e paços dos quais hoje em dia se veem os
alicerces, e fundamentos. O que vendo Ramiro, ordenou de improviso três galés
de armada, com elas veio aportar a São João da Foz, meia légua do Porto, e
sendo de noite com elas se entrou por o rio Douro, sem serem sentidas dos
Mouros, e cobertas de ramos por não serem vistas, tanto que amanheceu.
Ramiro se pôs em trajos de romeiro, saiu em terra deixado em sinal aos seus que
se ouvissem tanger uma buzina que consigo levava lhe acudissem. E assim se foi
guiando pera os paços deste mouro, e antes disso chegou a uma fonte, onde com
ele veio ter uma moura, que vinha buscar um púcaro de água, pera mesma Gaia,
o qual falando-lhe em aravia lhe pediu o púcaro pera beber por ele, e lho deu, e
des que bebeu, tirando um anel do dedo o deitou dentro, sem o ver a moura.
Bebendo Gaia conheceu o anel que era de seu marido Ramiro, e o mandou
chamar, por ser já então ido Almançor, e vendo-se, se abraçaram, e trataram de
matar o mouro e se irem ambos, e pera isso o meteu em uma câmara, pera que
quando Almançor dormisse a sesta lhe desse rebate; nisto veio Almançor da caça,
e sentado à mesa pera comer, esta Gaia lhe deu conta de Ramiro, e como vinha
pera o matar, e assim o Mouro mandou vir ante si a Ramiro, e passadas entre si
razões, por fim, disse Almançor: — Se eu Ramiro fora a tua casa pera te matar,
que me fizeras? respondeu: Mandara-te levar a um alto, e com esta buzina te
fizera tanger até que rebentara. Mandou Almançor, que isso lhe fizessem;
levado ao alto, começou a tanger, e logo a gente de Ramiro acudiu, e tomando os
Mouros descuidados degolaram Almançor, e os mais, e foi saqueada a terra, e
dessa Gaia ficou o nome ao lugar de Gaia, da cidade do Porto.
NOTA: Na tradição portuguesa encontra-se um vestígio da poesia árabe do
período em que principiou a missão de Maomé. É a história dos amores do
jovem poeta Murakkich, que pedindo em casamento sua prima Esma, filha de
Auf, este lha recusou dizendo que era criança e pobre, que se fosse nobilitar em
feitos guerreiros primeiramente. Murakkich voltou passados anos rico e coberto
de glória; seu tio tinha casado Esma com um rico e opulento árabe do Iémen,
mas ocultou ao mancebo a cruel nova, dizendo que sua filha tinha morrido. O
poeta veio a descobrir o casamento de sua prima, e quase moribundo,
acompanhado de dois escravos partiu para as terras de Nadjan; o cansaço
prostrou-o, e os que o conduziram depuseram-no em uma gruta e aí o deixaram
por morto. Traduzimos agora a seguinte situação, para aproximá-la da tradição
portuguesa que anda no Livro Velho das Linhagens contada na pitoresca prosa do
século XIV:
«Murakkich assim abandonado e voltando a si foi descoberto na gruta por um
pastor que guardava os rebanhos do marido de Esma.
— Aproximas-te algumas vezes da mulher de teu senhor? — perguntou
Murakkich —, e poderias levar-lhe mensagem secreta?
— Não; — respondeu o pastor —, mas eu vejo todos os dias uma das suas
escravas, que vem ordenhar o leite das minhas cabras para levá-lo à sua ama.
— Pois bem — disse Murakkich —, eu reclamo de ti um serviço, de que serás
largamente recompensado. Toma este anel e lança-o no leite que a escrava leva a
Esma.
À noite, à hora em que a escrava trazia o tarro em que bebia sua ama, o pastor ao
deitar o leite também deixou cair dentro o anel. Ao beber, Esma sentiu o anel
que tinia contra os seus dentes; tomou-o na mão, mirou-o ao clarão do fogo, e
conheceu por certos sinais que nele gravara quando outrora o dera a seu primo.
Pediu explicações à escrava, que também estava maravilhada. Então Esma
chamou seu marido e lhe disse:
— Manda chamar o pastor das tuas cabras e dele sabe donde lhe veio este anel.
O pastor respondeu:
— Eu recebi este anel de um homem que encontrei na gruta de Djebban.
Pediu-me que lançasse esse anel no leite destinado a Esma. Fiz o que ele me
pediu. Quanto ao mais ignoro o seu nome e a sua tribo, e quando o deixei na
gruta estava quase a expirar.
— Mas, a quem pertence este anel? — perguntou o marido à consorte.
— É o anel de Murakkich — respondeu Esma —; está a expirar, apressemo-
nos a ir buscá-lo.»*
Esta mesma situação se descreve na lenda do rei Ramiro, que procurava sua
mulher que estava em poder de Abencadão; pelo paralelo se verá que a tradição
árabe se naturalizou em Portugal, acomodando-se às nossas lendas nacionais;
uma fonte representa a mesma ideia do leite dos rebanhos do deserto, e tanto o
poeta, querendo saber da sua namorada Esma, e Ramiro sua esposa Gaia,
empregam o mesmo meio, do anel, que também vamos encontrar empregado
por Tristão em uma mensagem a Isolda. Esta tradição pertence ao ciclo dos
Moalacats, que andaram na memória das tribos até receberem forma escrita,
vindo pela corrente oral comunicado às classes populares dos Mallaudi e dos
Moçárabes, de preferência a qualquer redação poética escrita.
Escreve Villemarqué, para mostrar como apesar da grande transformação
artística dos Contos de Tristão, pelos romancistas, não desfiguraram
completamente as situações, que se não conheçam os traços da fisionomia
primitiva. Assim «Uma balada muitíssimo espalhada na Armórica deu-lhe a
presença da semelhança da situação do conto rústico com o do troveiro: Um
jovem príncipe bretão feito prisioneiro, querendo informar sua mãe, manda-lhe
um mensageiro portador de um anel, que o fará reconhecer» (p. 82.) No
romance da Gaia, é pela entrega de um anel que Ramiro se anuncia a Gaia, sua
mulher em poder de Almançor. Tristão, vendo-se doente em um país
estrangeiro manda uma mensagem a Isolda e é o anel que brilha em um dedo
que o faz ser levado à rainha.
Como Sepúlveda, que tirava os seus romances das crónicas espanholas, João Vaz
compilou a tradição dos amores de Gaia de algum documento escrito. Qual ele
fosse ninguém o pode asseverar. É certo que se encontra a narração desses
amores com esta forma graciosa no Livro Velho das Linhagens: «e este rei D.
Ramiro se vê casado com uma rainha, e fez nele rei D. Ordonho; e pois lha
filhou rei Abencadão que era mouro, e foi-lha filhar em Salvaterra no logo que
chamam Maier: então era rei Ramiro nas Astúrias: e quando Abencadão tornou
adússia para Gaia, que era seu castelo, e quando veio rei Ramiro não achou a sua
mulher e pesou-lhe ende muito, e enviou por seu filho D. Ordonho e por seus
vassalos, e fretou suas naves, e meteu-se em elas, e veio aportar a Sanhoane da
Furada; e pois que a nave entrou pela foz cobriu-a de panos verdes, em tal guisa
que cuidassem que eram ramos, ca entonce Douro era coberto de uma parte e da
outra de árvores; e esse rei Ramiro vestiu-se em panos de veleta, e levou consigo
sua espada, e seu corno, e falou com seu filho e com os seus vassalos que quando
ouvissem o seu corno que todos lhe acorressem, e que todos juvecem pela ribeira
per entre as árvores, fora poucos que ficassem na nave para mantê-la, e ele foi-se
estar a uma fonte que estava perto do castelo; e Abencadão era fora do castelo; e
fora correr seu monte contra Alfão; e uma donzela que servia a rainha levantou-
se pela manhã que lhe fosse pela água para as mãos; e aquela donzela havia nome
Ortiga; e ela na fonte achou jazendo rei Ramiro, e nem o conheceu, e ele pediu-
lhe de água pela aravia, e ela deu-lha por um antre, e ele meteu um camafeu na
boca o qual camafeu havia partido com sua mulher a rainha pela meadade; ele
deu-se a beber e deitou o anel no antre, e a donzela foi-se, e deu água à rainha, e
caiu-lhe o anel na mão, e conheceu ela logo; a rainha perguntou quem achara na
fonte; ela respondeu que não era i ninguém: ela disse que mentia, e que, lhe não
negasse, ca lhe faria por ende bem, e mercê; e a donzela lhe disse então que
achara um mouro doente e lazarado, e que lhe pedira de água que bebesse, ela
que lha dera; e entonce lhe disse a rainha que lhe fosse por ele, e se o i achasse
que lho aducesse. A donzela foi por ele, e disse-lhe ca lhe mandava dizer a rainha
que fosse a ela; e entonces rei Ramiro foi-se com ela; e ele entrando pela porta
do paço conheceu-o a rainha, e disse-lhe — «Rei Ramiro, quem te aduce aqui?»
— E ele lhe respondeu — «ca o teu amor» —: e ela lhe disse que vinha a
morrer, e ele lhe respondeu, ca pequena maravilha: e ela disse à donzela que o
metesse na câmara, e que lhe não desse que comesse, nem que bebesse; e a
donzela pensou dele sem mandado da rainha; e ele jazendo na câmara chegou
Abencadão e deram-lhe que jantasse, e depois de jantar foi-se para a rainha; e
desque fizeram seu prazer, disse a rainha — «se tu aqui tivesses rei Ramiro, que
lhe farias?» O mouro então respondeu — «o que ele a mim faria; matá-lo.»
Então a rainha chamou Ortiga que o aducesse da câmara, e ela assim o fez, e
aduciu-o ante o mouro, e o mouro lhe disse — «és tu rei Ramiro?» — e ele
respondeu — «eu sou» — e o mouro lhe perguntou — «a que vieste aqui?» —
el-rei Ramiro lhe disse então — «vim ver minha mulher que me filhaste, a
torto; ca tu havias comigo tréguas, e não me catava de ti:» — e o mouro lhe disse
— «vieste a morrer; mas quero-te perguntar: se me tivesses em Mier que morte
me darias?» — El-rei Ramiro era muito faminto e respondeu-lhe assim — «eu
te daria um capão assado e uma regueifa, e dar-te-ia tudo comer, e dar-te-ia em
cima em sua capa (copa?) cheia de vinho que bebesses: em cima abrira portas do
meu curral, e faria chamar todas as minhas gentes, que viessem ver como
morrias, e far-te-ia subir a um padrão, e far-te-ia tanger o corno, até que te
saísse o fôlego.» — Então respondeu Abencadão — «essa morte te quero eu
dar.» — E fez abrir os currais, e fê-lo subir em um padrão que i então estava; e
começou rei Ramiro então seu corno tanger e começou chamar sua gente pelo
como que lhe acorressem, ca agora havia tempo; e o filho como ouviu, acorreu-
lhe com seus vassalos, e meteram-se pela porta do castelo, e ele desceu-se do
padrão adonde estava, e veio contra eles, e tirou sua espada da bainha, e
descabeçando até o menor mouro que havia em Gaia, andaram todos à espada, e
não ficou em essa vila de Gaia pedra sobre pedra que tudo não fosse em terra; e
filhou rei Ramiro sua mulher com suas donzelas, e quanto haver aí achou, e
meteu na nave, e quando foram a foz de Âncora amarraram as barcas, e
comeram i e folgaram, e D. Ramiro deitou-se a dormir no regaço da rainha, e a
rainha filhou-se a chorar, e as lágrimas dela caíram a D. Ramiro pelo rostro, e
ele espertou-se, e disse-lhe, por que chorava, e ela disse-lhe — «choro por o mui
bom mouro que mataste» — e então o filho que andava i na nave ouviu aquela
palavra que sua madre dissera, e disse ao padre — «padre não levemos connosco
mais o Demo». — Então rei Ramiro filhou uma mó que trazia na nave, e ligou-
lha na garganta, e ancorou-a no mar, e des aquela hora chamaram i Foz de
Âncora. Este Ramiro foi-se a Mier e fez sua corte, e contou-lhe tudo como lhe
acaecera, e então batizou Ortiga, e casou com ela, e louvou-lhe toda sua corte
muito, e pôs-lhe o nome D. Aldara, e fez nela um filho, e quando nasceu pôs-lhe
o padre o nome Albozar, e disse então o padre, que lhe punha este nome porque
seria padre e senhor de muita boa fidalguia; e morreu rei D. Ramiro. Deus lhe
haja saúde a alma, requiescat in pace.**
* Ap. Lamartine, História da Turquia, t. I, p. 79.
** Mon. his., II, Scriptores, pp. 180-181. Esta mesma legenda se encontra no
Livro das Linhagens do Conde Dom Pedro (Mon. hist., ibid. pp. 274-277) com
algumas variantes na ação.
ROMANCE DA GAIA

Cantemos de Ramiro Rei de Espanha,


E d’el-rei Almançor de Berberia,
Quando por desventura tão estranha,
No mais de Espanha então Mouros havia;
Com ânimo cruel, com cruel sanha,
Cada qual um ao outro pretendia
Privar de sua fama, honra, estado.
Com todas suas forças e cuidado.

Desse Ramiro, digo o esforçado,


Que deste nome três com ele hão sido,
Daquele que com Gaia foi casado,
Por quem tantos trabalhos há sofrido,
Da qual Gaia do Porto há tomado,
Em Portugal o mesmo apelido,
Lugar junto do Douro em o Porto,
Onde foi Almançor preso e morto.

Por mãos deste Ramiro animoso,


No que se satisfez de sua afronta,
E lhe valeu em isso o ser manhoso,
Segundo a história o aponta,
Que não bastava ser rei valeroso,
Que força sem saber mui pouco monta,
E os ardis é cousa mui notória,
Que são causa urgente de vitória.

Nem tratamos aqui das mais pendenças


E batalhas antre estes reis havidas,
Que foram muito largas e extensas,
E em crónicas estão bem referidas;
Só queremos tratar das diferenças,
Que antre estes reis foram movidas
Quando Ramiro houve cativado
A irmã de Almançor, e desonrado.

Donde este Almançor tempo esperando,


A mulher a Ramiro há furtado,
No qual se foi enfim mui bem vingando,
Ou estava no furto melhorado,
De Gaia Almançor ficou gozando,
E com ela ficou como casado;
Assim que um pecado outro chama,
E fazem na maldade calo e cama.
Vendo-se Almançor com a tal presa,
Como Águia-real voou com ela,
Logo que a furtou com ligeireza
Perdeu de vista os reinos de Castela,
E veio aqui portar nesta devesa
Do Douro, onde então estava aquela.
Povoação, e paços, donde Gaia,
A qual aí está junto da praia.

Ramiro tal ficou com esta nova,


Que se lhe deu lá onde era ausente,
Que esteve em se meter em uma cova,
Não querendo viver antre a gente;
Não haver igual dor, é clara prova,
Porque de si é quase impaciente,
Mas como é cristão, e rei sabido,
A Deus logo então se há socorrido.

Tanto, e mais chorava o seu pecado,


Que toda esta mesma desventura,
No que consiste o ser cristão chamado,
E nisto está o seu remédio, e cura;
Ramiro que em isto se há fundado.
Ver quão pouco na vida o gosto dura,
A Deus se dedicou, o que Deus vendo,
Neste caso quis logo ir provendo.

E assi lhe inspirou que ordenasse


Uma pequena e secreta armada,
De umas três galés, e que guiasse
Aonde sua Gaia era levada;
E que como fiel bem confiasse,
Que por ele seria i cobrada,
E o mesmo Almançor morto e vencido,
Porque Deus o havia permitido.

Ordenou pois Ramiro com bom siso


As três galés da armada pela posta,
Com bonança vieram de improviso,
A Portugal a demandar a costa,
E por ela guiando sobre aviso,
Calados sem falar, nem dar resposta.
A São João da Foz foram surgidos
De noite, sem dos Mouros ser sentidos.

Chegadas as galés à foz, e entrada
Daquesse rio Douro caudaloso,
Aí parou então esta armada,
Com perigo, por ser lugar fragoso;
Da noite era já parte andada,
O céu estava claro e luminoso,
O ar sereno, tudo sossegado,
O mar porém ali sempre é irado.

E por se segurar determinaram


Tomar o rio acima assi surgindo,
Pela parte adentro se deitaram,
Com os remos o Douro vão ferindo,
E por fazer carreira deceparam,
Mil árvores, que o rio vão cobrindo,
Que sem isso galés ir não podiam,
Até onde levá-las pretendiam.

Era o arvoredo nessa idade,


Mui sobejo e crecido até à praia,
Na parte donde agora é a Cidade,
E na banda d’aquém chamada Gaia,
De árvores mui grã variedade,
De brózios e louro, mirtos, faia,
E com ser tudo frágua e penedia,
Somente o arvoredo ali se via

Nesta parte de cá d’aquém do Douro,


No mais alto outeiro, e o maior,
Aí tinha seus paços el-rei Mouro,
Aquele a quem chamaram Almançor;
Aí tinha também o seu tesouro,
Porque daquela terra era senhor,
Contente e recreado ali vivia,
Por ser terra de caça e monteria.

Aí vai uma cava como mina,


Até o rio feita entre dous valos,
Que ainda agora se vê, e determina,
Ser pera irem beber os seus cavalos;
Também é cousa certa, e de crer digna,
Que tinha outros Reis Mouros vassalos,
Todos a este Rei obedeciam
Porque em sua lei maldita criam.

Ali se estava o Mouro aposentado,


Donde o largo mar c’os olhos via,
Dali o via às vezes sossegado,
E outras quando bravo bem o ouvia;
Também estava ali fortalezado,
Porque d’el-rei Ramiro se temia,
Que quem deve, enfim sempre receia,
Se tem um bom jantar, de haver má ceia.

Ali gastava a vida com sabores,


O Mouro Almançor mui namorado,
Gozando dessa Gaia, e seus favores,
Mulher d’el-rei Ramiro o magoado;
Mas o jogo, a caça, e os amores,
O fazem do perigo descuidado,
E entre tanto o tempo dá uma volta,
Pesca o pescador n’água envolta.

Chegado pois Ramiro, o mui prudente,


Com suas três galés apercebidas,
De noite, já que bem dormia a gente,
Ali se prepararam escondidas;
E posto que vem feito uma serpente,
Ordena que não sejam ali sentidas,
E seu furor resguarda pera quando
Se veja de Almançor ir triunfando.

Ali gastada a noite em sossego,


Quanto possível era e importava,
Tratavam do segredo em emprego,
E do que tal empresa demandava;
A língua de Arábigo, e Grego,
Mui ao natural pronunciava,
Só do aviso da terra tendo míngua
Por si se oferece ir tomar língua.

Ficou porém por todos assentado,


Que tocando Ramiro uma cometa
Não fique em Galé nenhum soldado,
Que logo o outeiro não cometa,
E com ânimo forte e esforçado,
Contra os cruéis Mouros arremeta,
E todos juntos dando, Sant’Iago,
Os Mouros hajam um cruel estrago.

Passada pois a noite, veio o dia,


Ramiro toma trajos de romeiro,
Deixada toda sua companhia,
Subindo se vai só pelo outeiro,
A Deus só quis levar por sua guia,
E em sua fé firme, e mui inteiro,
E fazendo o sinal da Cruz no peito,
Aos paços do Mouro foi direito.

Por ver se indo assi desconhecido


A sua mulher Gaia ver pudesse,
Ou sendo Almançor à caça ido,
Ela com seu Ramiro se viesse.
O Febo então mostrava haver nascido,
Contra quem disse: Se ora te aprouvesse,
Com teu resplandor, Febo, me ir mostrando
Este bem que pretendo e vou buscando.

Assi se vai o triste Ramiro,


De pensamentos tais arrodeado,
De pedra não seria mais de um tiro,
Que perto estava já de povoado;
Dizendo vai: Se este bem adquiro,
Deste Mouro serei mui bem vingado,
E por esta história ser sabida
Aqui se verá feita uma ermida.

E dando mais Ramiro uma passada


Viu uma fonte d’água mui fermosa,
De rica pedraria fabricada,
De água mui delgada, e saborosa,
A qual hoje em dia é chamada,
A fonte de Ramiro, sem mais glosa,
A qual hoje aí está por memória
Em testemunho, e fé desta história.

Ali se assentou por ir cansado,


Não, para descansar, que mal descansa
Aquele que então há começado,
Trabalhar por o que depois alcança,
E ali se dispõe determinado
Armar uns certos laços d’esperança,
Esperando que vá alguém à fonte,
Que novas de Almançor lhe diga e conte.

Cuidando está’ Ramiro o que faria,


Se espere ali, ou fosse prosseguindo,
Que só da sua armada se temia,
Não fossem os Mouros i sentindo,
Pelo perigo grande que corria
Em não se ir primeiro descobrindo,
A terra antes de se dar rebate,
Por que melhor se desse o seu combate.

Começou a dizer: Já fenecera


Com a morte que eu mesmo me daria,
Se a esperança não me entretivera.
Dizendo, espera a noite e mais um dia,
Tantas vezes me diz espera, espera
Que já cuido que o faz de zombaria;
Se me ouves esperança por esmola
Te peço, ou me mata ou me consola.

Qual sói o mar fazer naturalmente,


Nas marinhas que a ele são chegadas,
Quando vem com maré, e com enchente,
Da qual são de contino visitadas,
Que com o ardor do sol quando é quente
As tais águas com sal são congeladas,
E se antes de o ser, i tem vazante
Não fica i sal atrás, nem adiante.

Assi a mágoas em o pensamento,


Vão ao coração, e i represadas,
Traz maré de enchente o sentimento,
E em águas de sal i são tornadas,
E com força da dor, e do tormento,
Por os olhos rebentam e destapadas,
Nas lágrimas vem tudo, e quem não chora,
Da cova esta tal mui perto mora.

Assi o bom Ramiro recordado


Daquela pena e dor que o atormenta,
Posto que a chorar está avezado,
Como de novo agora o mal lamenta,
E a presa da mágoa se há quebrado,
Dos olhos outra fonte lhe arrebenta,
E assi duas fontes ali correm
Porque uma nascia deste homem.

E assi era de ver esta perfia


Com que cada qual delas caminhava,
Que se da fonte muita água corria
Ramiro pelos olhos mais deitava,
Mil lástimas o triste ali dizia,
Perguntai pera quem, ou a quem falava,
Com dor a língua fala desatinos,
E faz homens chorar como meninos.

Uma Ninfa então fazendo abalo


Lá dentro em a fonte se banhava,
E começou cantar por consolá-lo,
Notou Ramiro então o que cantava.
Cantando (disse a Ninfa) a ti falo.
Ramiro, lá te ouvi aonde estava,
Sou Ninfa, Esperança sou chamada,
Espera que a boa hora te é guardada.

Com esperança caçam os caçadores,


As aves em os laços enlaçadas,
Com o esperar recolhem os lavradores,
E fruito das sementes semeadas,
E com canas também os pecadores,
Com sêdelas e boias e chumbadas,
Os peixes quando o comer engolem
Com que por engano de anzóis cobrem.

Neste conto Ramiro está enlevado


E a Ninfa no mesmo ainda procede,
Quando junto a eles há chegado
Uma Moura da lei de Mafamede,
Sapatinhos de cor de laranjado
A medida do pé três pontos pede,
Escassamente a Moura foi sentida
Quando a Ninfa na foi sumida.

Na idade mostrava esta Moura,


Que ainda donzela ser devia,
De gentil parecer tão branca e loura,
Que nisso nada Moura parecia,
Não sei a natureza, porque doura,
De graça a que dá graça e bem fugia,
Que bem sem graça é como está visto,
Aquele que não crê na lei de Cristo!

Vestida vem de cor alionado


De uma roupa de seda até o artelho,
E uma touca tunisil com um trançado
De fitas d’amarelo e vermelho,
Com um cinto mui largo, e apertado
Em tudo traz concerto, e aparelho
Por isso de ser vizia não receia,
Mas em ver, e ser vista se recreia.

Vaso dourado traz de grã valia,


De mui ricos esmaltes esmaltado,
Quer ser cousa de rei bem parecia,
Segundo era rico e bem obrado,
Cantando vem a Moura em aravia;
O tal cantar Ramiro há notado,
D’amor era seu canto mui subido,
Porque se aqueixava de Cupido.

Ali saúda a Moura o bom andante,


Ao seu modo em sua aravia,
Ramiro lhe responde em consoante,
De arábigo que bem o entendia;
A Moura que o vê feito um brivante,
Posto que de nenhum modo o conhecia,
Suspeita por o ver tão bem criado
Ser homem que seus trajos há mudado.

Pediu-lhe de beber o bom romeiro,


A Moura de cortês não lho negava,
Mas o vaso encheu, e lavou primeiro,
E com mesura lho apresentava,
Ramiro lhe tirou o seu sombreiro,
E o púcaro d’água lhe tomava,
Que ser de Almançor claro se via,
Pelas letras, e armas que trazia.

Ramiro, que em tal ventura se acha,


Bebendo perguntou a quem servia,
A Moura respondeu servia a Gaia,
Pera quem ia buscar a água fria;
Vede que trago amargo ali traga,
Ver que sua mulher também bebia
Por jarros de Almançor, seu inimigo,
O qual ela já tinha por amigo.

Não quis Ramiro mais saber do caso,


Mas encobrindo a dor que n’alma sente,
Tornou encher na fonte o rico vaso,
(Dizendo) de força é, seja paciente;
Mas vagando vai já aquele prazo,
Se minha esperança não me mente,
Que presto se verá morto este Mouro,
Perdendo sua fama e seu tesouro.

Consigo isto dizia o magoado


Tirando d’um anel no vaso o deita,
Sem que fosse sentido, nem olhado
Da Moura por não ter disso suspeita;
Por el-rei Almançor lhe há perguntado
A caçar deve ser ido, a cousa feita,
A caçar vai dos porcos e veados,
Que os seus lá lhe tinham emprazados.

A Moura se despede do romeiro


Só por representar honestidade,
Que ali se detivera o dia inteiro,
Segundo que isso pede a mocidade;
Subindo vai a Moura pelo outeiro,
Ligeiro, e com grã velocidade,
Porque parece que ia já tardando,
E teme que o tardar lhe vão notando.

Ramiro, que na fonte só ficava,


Donde sua figura clara via,
Consigo mesmo o triste ali falava;
E ele mesmo assim se respondia
E sendo d’antes águia que voava,
E que na nota a todos excedia,
Agora com a dor que o aperta
Parece que desvaira e desconcerta.

Se verdadeira és minha figura,


(Dizia) tu figura já és tal,
Que como cousa que já não tem cura,
Se devem deixar ao natural,
Porque teu mal é mal que sempre dura,
E que é sobre todos sem igual,
Por isso, pois o tens e o padeces
Não sei como de todo não faleces.

A figura então lhe respondia,


Em voz, e em toada diferente,
Que serem duas cousas parecia,
Cada uma por si distintamente,
Ou fosse a esperança a qual seria,
Que já o reprendera de impaciente,
Agora nisso mesmo lhe aponta,
No que lhe respondeu, ou tanto monta.

Deixemos a Ramiro por agora,


Sobre seu mal soltar mil desatinos;
Chore o seu mal, que com razão o chora,
Dê mil ais, dê suspiros mui continos,
Até que Deus lhe traga aquela hora,
Na qual, nem Mouros velhos nem meninos
Fiquem mais povoando aquela terra,
E morra Almançor naquela guerra.

Vamos saber da Moura o que passava,


Quando sua senhora a água bebia,
E se se alterava, ou perguntava,
Cujo fosse o anel que dentro ia?
Porque nisso Ramiro se fundava
Em que o seu anel conheceria,
E se lhe tinha amor de mulher boa,
No caso ela faria de pessoa.

Bebeu pois a Rainha, e achando


E anel conheceu que de Ramiro era,
E quanto pode em si dissimulando.
Um mui grande suspiro aí dera;
E confusa está imaginando,
Porque via, e arte ali viera,
Ou porque invenção, modo, e jeito,
E se era aquele, ou contrafeito.

Perguntou se achara alguém na fonte


Ao tempo que ela água tomara,
Dizendo que lhe diga, e lhe conte,
Tudo o que ante ela se passara,
Ou outra alguma cousa lhe aponte,
Por onde o anel ali achara;
E porque disso a Moura se espantava,
A Rainha contra ela se assanhava.

A Moura, que se vê ser inocente,


Do caso que então mal entendia,
Jura que não achou nenhuma gente,
A Rainha lhe disse que mentia;
E com esta porfia diferente,
A Rainha em ira se encendia,
Com um chapim lhe tira d’arremesso,
Quis Deus se desviou, e foi avesso.

Tornou a Moura, então assegurou-se,


Dizendo que achara a um romeiro,
Mas que não se acordava, e desculpou-se,
Da culpa de lho não dizer primeiro;
A Rainha com isso aquietou-se,
Crendo ser seu marido verdadeiro,
E ou fosse com fé, ou sem verdade,
De vê-lo mostrou ter grande vontade.

Mandou pois a Rainha, que o chamasse


E que de sua parte lhe dissesse,
Que fosse logo lá, e não tardasse,
E fosse confiado, e não temesse,
E que em bom segredo lhe guardasse,
E que do tal romeiro entendesse,
Que Almançor à caça era ido,
Que podia fazer em seu partido.

A Moura parte logo diligente,


A cumprir o mandado da senhora,
Ramiro que tornar a moura sente,
Esforço (disse) se há mister agora;
E como viu a Moura vir contente,
Alegrou-se também naquela hora,
Posto que o coração o convidava
Com outro desprazer, que adivinhava.

Chegando pois a Moura lhe dizia;


Romeiro, a rainha Gaia manda,
Te peça com amor e cortesia,
A vejas, que te espera na varanda.
Que de ver-te grã gozo levaria,
E de favorecer tua demanda,
Que lhe queiras fazer aquesta graça,
Antes que Almançor venha da caça.

Que saibas que Almançor à caça é ido,


Não percas ponto algum de tal ensejo;
Ramiro que a mensagem há ouvido,
Ousado mostra logo o seu desejo,
Cuidando que fazia em seu partido,
Alegre sem algum receio ou pejo,
Tomando o bordão, disse: Senhora,
Guiai, que em vossas mãos me ponho agora.

E sem fazer demora obedecendo,


Acompanhou a Moura com cautela,
Perguntando se vão, e respondendo,
A Moura a Ramiro, e ele a ela,
No andar pausa às vezes vão fazendo,
Ramiro vai soltando à Moura a trela,
A Moura é cortesã, e confiada,
E demonstrava ser mui namorada.

A prática de amores é fingida,


Da parte de Ramiro enganosa,
A Moura vai de amor presa e vencida,
Enganada merece a invejosa,
Nos amores, mui solta e atrevida,
O que dana, e afeia o ser fermosa,
Enganada merece uma tal dama,
Quando de namorada quer ter fama.

Pois trata de adquirir o que pretende,


A ver sua senhora, e o deseja,
Mormente, pois o sabe, e o entende,
Mas todas são feridas da inveja,
O fogo da cobiça as acende,
Que sempre umas com outras tem peleja,
Sobre o negro amar e ser amadas,
E são umas das outras desdenhadas.

Junto vão já dos paços e castelo,


A Rainha andava passeando,
Na varanda mui morta já por vê-lo,
Ramiro os seus olhos levantando,
Não pôs dúvida alguma em conhecê-lo,
Nem ele dela esteve duvidando,
Subindo pois Ramiro uma escada,
A Rainha com ele está chegada.

E como onde há amor não há receio,


Sem receio de nada se abraçaram,
Porque o seu prazer era tão cheio,
Que remeteu por mais que o represaram,
E estando assim neste enleio
De amor, dos olhos rios emanaram,
De águas que dizem ser salgadas,
Estas porém por doces são julgadas.

Qual Píramo e Tisbe se mostraram,


Amar-se de verdade o que pedia
O vínculo de amor que professaram,
Mais mostra de amor ser não podia,
Que a que ali ambos demonstraram,
Nem outra cousa d’eles se entendia,
Mas como a mulher baila ou dança,
Logo sabe fazer uma mudança.

Perguntou-lhe então Gaia o que buscava


Ou porque via e arte ali viera;
Ali Ramiro então se assentava,
Como se em sua casa estivera,
Assentado dizer-lhe começava
O caso que a isto me trouxera:
Se tu, senhora, o tens também sabido,
Porque me julgarás por atrevido?

Se venho por ventura a salvar-te,


O amor sobretudo é cousa forte,
Ao menos senão puder cobrar-te,
Consolar-me-ei em ver-te em minha morte,
E se Deus conceder poder livrar-te,
Quero provar em isso minha sorte;
A isso (como digo) venho agora,
A cobrar-te, ou morrer por ti, senhora.

Gaia sabiamente respondia,


Fingindo ser leal, e verdadeira:
Isso mui bem agora se faria,
Se se tivesse modo ou maneira
De ser a nossa salvo, mas não via
Nem sabia caminho, nem carreira,
Nem tu, Ramiro, mostras aparelho
E nisso há mister mui bom conselho.

Ramiro lhe tornou: aconselhado


Estou, senhora, e bem apercebido,
Mas em só te levar não sou vingado,
Sem matar este Mouro fementido.
E se de nós pode ser descabeçado,
Em salvo te porá o teu marido
Porque eu que a isso me aventuro,
Não é sem te poder pôr em seguro.

Pois isso (disse) mandas que se faça,


Assi se fará bem, e sem perigo,
Com o favor de Deus e sua graça,
A qual seja contigo e comigo;
Mas porque pode vir cedo da caça
Este Mouro cruel teu inimigo,
Eu te direi o modo e que termos
Pera a nosso salvo isto fazermos.

Abriu logo uma câmara dourada,


De verão lhe servia de aposento,
Onde nunca o sol fazia entrada,
E na sesta ia ter contentamento
Que só por sua mão era fechada
Por lhe servir de seu recolhimento,
Aí o fez entrar, e sendo entrado,
Deste modo e maneira lhe há falado:

— Aqui te ficarás dentro metido,


Se queres concluir em este feito,
E se vês do caminho afligido
Bem podes acostar-te em este leito;
Aqui podes estar sem ser sentido,
Onde podes fazer de teu proveito,
Quando for tempo, e hora de acostar-se,
E aqui Almançor vier deitar-se.

Virá ora da caça encalmado,


A mesa tem já posta esperando,
O comer está já negociado
Não poderá já ir muito tardando;
E desque de comer há acabado,
O sono o vai logo convidando,
E é certo vir logo a este pouso
A descansar a sesta, e ter repouso.

Nisto deu-se rebate, e nova certa,


Que vinha Almançor da montaria,
A câmara fechou que estava aberta,
E de Ramiro então se despedia;
Tornou a seu estrado e alerta
Se pôs a entender no que entendia,
Com as damas lavrando seda e ouro,
Quando a esta hora chegou o Mouro.

Acompanhado vem de caçadores,


De monteiros de pé e cavaleiros,
E de cães, como eles filhadores,
Muitos mouros de lança, besteiros
Vestidos de libreiras, de mil cores,
Com buzinas e cornos presenteiros,
Porém vinham mui surdos, e calados
Por não acharem porcos, e veados.

Descavalga Almançor mui diligente,


Subindo para o paço e aposento;
Ela que o vê vir tão descontente,
Per si lhe foi fazer recebimento,
Com passo perlongado, e diferente,
Lhe demonstrou ter contentamento
Com sua boa vinda, e alvoroço,
Deitando-lhe os braços no pescoço.

Almançor lhe pagou por esta via,


Os afagos de amor na mesma hora,
Fazendo-lhe uma grande cortesia,
Dizendo-lhe: — Vivais, minha senhora,
E com este prazer e alegria,
Sem se fazer alguma outra demora,
Se sentaram à mesa e, assentados
Serviram-lhe seus pajes e criados.

No meio do comer os dous estando,


Com grande gosto, festa e alegria,
O segredo esta má lhe foi soltando,
Dizendo: — Quero dar-te iguaria,
Da qual bem sei que deves d’ir gostando,
Por ser nova de gosto t’a daria,
No que conhecerás quanto te ama,
Quem não dá por Ramiro, em que a chama.

— Que deras, Almançor, rei poderoso,


(Lhe disse) a quem Ramiro te entregara,
Que deras se te viras tão ditoso,
A quem agora preso t’o mostrara
Não me estranhes mostrar-te d’isto gozo,
Que se com firme amor não te amara,
Na treição de Ramiro consentira
Que hoje te matava neste dia. —

Que diremos de caso tão horrendo,


De fêmea tão má, tão fera, dura,
Que coração tão duro há, que vendo
Deslealdade tal em criatura,
Não deixe de ser duro amolecendo
Havendo dó de tanta desventura,
Num Rei que vem em trajos de romeiro,
A tirar a mulher de cativeiro.

Ah falsa, que te vais ao profundo,


Como não temes que há Deus verdadeiro?
Que trocas por amor falso, e segundo,
A teu Rei e a teu marido, o amor primeiro,
Por isso, e cousas tais vai mal ao mundo,
Por isso vem a peste, e o cativeiro.
E há falta de paz na cristandade,
Por falta de verdade, e lealdade.

Se a verdade cá nasceu na terra,


Qual terra, ou quem ousa desterrá-la,
Se tão natural é que lhe põe guerra?
Quem ousa, ou pretende degradá-la?
Se na verdade todo o bem se encerra,
Qual é o que se põe a pedrejá-la.
E sendo como é cousa tão forte.
Que só ela é senhora sobre a morte.

Oh, se esta verdade se abraçasse,


Ali onde parece claramente,
Se cada um a casa a levasse,
Assi como quem leva um bom parente,
E se dentro no peito a conservasse,
E o mesmo fizesse toda a gente,
Servindo-lhe de peso, e medida,
A Deus seria alegre nossa vida.

Ó celeste virtude, ó lealdade,


Qual há antre as mais que melhor seja,
De ti produz, e nasce a castidade,
Que todo o poder vence em peleja;
Que cousa há melhor na Cristandade?
Que cousa mais chegada à Igreja?
Que cousa, porque Deus melhor se renda,
E nos dê Sua graça, e nos defenda.

Almançor, que o caso há ouvido,
Bem crê que esta Gaia isto dizia
Por folgar de falar no seu marido,
Que tudo aquilo que era zombaria,
Então lhe disse: — Aqui está escondido,
E sabe que matar-te pretendia,
E levar-me consigo sem mais ordem,
Mas eu quero ser tua, não doutro homem.

Confuso fica o Mouro, e mui turbado


Do caso, e perigo em que estivera;
Que antes de muito fora degolado,
Se esta mesma Gaia o quisera
Por outra parte está mui alterado,
Festejando este bem que amor lhe dera,
Trazendo a seu poder seu inimigo,
Sem perda de batalha e sem perigo.

Ó cruel sobre todas as mulheres,


Tal fama queres ter, tal nomeada,
Porque o teu Ramiro já não queres?
Por estar com um Mouro abarregada,
Não te lembram os filhos teus prazeres?
Nem te acordas que és mulher casada,
E que fosse cristão? não sei agora,
Antes parece que em ti lei não mora.

Das mais que foram más calar se pode,


Só desta sobre todas má praguejo,
Não sinto nelas mal que se acomode,
A uma tal treição, a tal despejo,
Pôr um Mouro infiel cara de bode,
Em quem foi por amor, e o desejo
Perde do bom Ramiro, a memória,
Perde honra e fama, perde a glória.

Ramiro bem ouvia o que passava,


Porque dali estava muito perto,
E como a má tudo lhe contava,
E já era enfim bem descoberto,
Já vedes em que estado o triste estava.
Com que dor, agonia, em que aperto,
Que saltos lhe daria nessa hora,
O coração querendo saltar fora.

Não quis mais Almançor comer bocado,


Com festa de prazer e alegria,
Dizendo: — Eu estou bem consolado,
Não quero comer outra iguaria,
E mais pois tenho hóspede honrado,
Razão é que lhe guarde cortesia.
E pois aqui está neste aposento,
Vamos-lhe fazer um recebimento.

Seu capitão da guarda então chamando,


Ali se lhe humilhou, e lhe há mandado,
Que com a sua guarda vá guiando,
Pera donde Ramiro está fechado.
O triste de Ramiro está orando
A Deus, que lhe socorra em tal estado,
Porque mui claramente ali via,
Que a morte à porta lhe batia.
A porta desfechada num momento,
Do número de mouros mui armados,
Foi cheio todo aquele aposento,
Com alfanges, e braços remangados.
Deus te valha, Ramiro, em tal tormento,
Que os teus estão de ti mui alongados,
E a tua armada está no Douro,
E tu só preso antre tanto Mouro.

Vendo pois Almançor tal desatino,


A seu contrário estar tão desarmado,
E em hábito vil de peregrino,
Mostrou-se disso mui maravilhado,
Dizendo: — Eu não sei nem determino,
Que este seja Ramiro esforçado,
Mas se ele este é, e fez mudança,
Bem pouco val agora a sua lança.

Ali Ramiro então lhe respondia:


— Alguma hora foi ela nomeada,
Antre cristãos e antre a barberia
Também em essa Veiga de Granada,
Onde morreu mui grã cavalaria,
E se perdeu a tua cavalgada.
Agora, eu venho a conquistar-te,
Porque venho de paz, e desta arte.
A irmã te furtei sendo casada,

Tendo-a por amiga sendo dama,


No que ocasião a ti te hei dado
A quereres roubar minha honra e fama;
Por isso se causou por meu pecado,
Chegares, Almançor, a minha cama,
E não sendo na terra, sem perigo
Me furtaste a mulher que tens contigo.

E pois fui causador dessas afrontas,


O Reino busque lá outro herdeiro,
Que já não quero mais, que estas contas,
E andar neste trajo de romeiro —
Almançor lhe tornou: — Mui bem apontas,
Mas vês Lobo em figura de Cordeiro,
E já não te crerei o que disseres,
Inimigo da honra das mulheres.

Perdoa-me, Ramiro, isto que digo,


Que como a Rei que és, devo tratar-te;
Mas estou des’agora mal contigo,
Des’que de teu engano soube parte;
E pois que te metestes em tal perigo,
Sem te valer o teu saber, e arte,
Podes dizer que a ti em este feito,
Vieste cá fazer pouco proveito.

Tua Gaia comigo, está senhora


De ti, Ramiro, está pouco lembrada,
E diz que oxalá que nunca fora,
Contigo em algum tempo desposada;
Se dizes que te há sido traidora,
Em esta tua máquina ordenada,
Com bem razão to foi, pois tu hás sido,
O que foste pera ela mau marido.

Por uma parte tenho sentimento


Do mísero estado em que estás posto,
Mas que fazes tu neste aposento,
Agora sem meu grado, e sem meu gosto?
Por isso me não dá de teu tormento,
E de se te mudar em teu desgosto,
E gosto que levavas tão profundo,
Em me privar da vida deste mundo.

Ramiro respondeu: — Teu ódio claro


Te cega, e faz que julgues de ligeiro,
Não deves de razão ser tão avaro;
E deves de ouvir partes primeiro.
E por minha defesa te declaro,
Qual mal posso sem armas ser guerreiro,
E a minha tenção foi e é boa,
E isto julgará toda a pessoa.

Vinha ver se acaso ver podia,


Essa por quem eu tanto hei padecido,
Pois já ver, nem cobrá-la não podia,
Por ir de meu estado despedido,
E em lei de razão se permitia,
Vir vê-la, pois enfim sou seu marido,
Que quanto é tratar de seu tormento,
Nunca me veio tal ao pensamento.

Está mesma mulher que nunca fora,


De ver-me mostrou grã contentamento,
Mil lágrimas chorando nesta hora,
Cuidando neste nosso apartamento;
E por tu, Almançor, vires de fora,
Da caça, me meteu neste aposento,
E se ela outra conta te há dado,
Inocente sou disso, e mal culpado.

Almançor não curando de argumento


Nem razões que Ramiro apontasse,
(Lhe disse em final) que ao tormento,
Desde então ali se aparelhasse.
Porque o que dizia era vento,
E que da culpa não se escusasse,
Que o que a sua Gaia lhe contara,
Isto em verdade se passara.

Dizendo: — Se em teu Reino me acolheras,


Como agora eu te hei acolhido,
Com tenção de matar-te, que fizeras?
Responde-me se disso és servido,
Que se pelo perdão ainda esperas,
O teu juízo deves ter perdido,
Que não tenho razão de perdoar-te,
Nem menos me mereces, que acabar-te.

Ramiro com bom ânimo esforçado,


Lhe tornou: — Pois enfim queres padeça,
Sem nessa minha morte ser culpado,
A justiça do céu sobre ti deça,
Pois julgas como homem apaixonado,
Nem tomas parecer doutra cabeça;
Mas já que assi é, se eu te colhera,
A ti, Almançor, mesmo isto fizera.

Mandara-te levar mui bem atado,


Sem te valer ser Rei nem teus primores,
Com dous algozes cada um a seu lado,
E pôr em o mais alto dessas torres,
E com esta buzina a ser forçado
Tanger sem descansar, sofrendo as dores,
E fosses despois disso enforcado,
Como homem qualquer de baixo estado. —

Almançor ouvindo este pendença,


Que Ramiro contra ele imaginava,
Em ira encendido, sem detença,
Contra Ramiro, disse que mandava,
Que nele se execute a tal sentença,
Porque do mesmo modo a confirmava,
Juntando-se pois gente infinita
De mouros, o levaram com grã grita.
No alto da muralha o puseram
Atado, e ia com corda no pescoço,
E ali a tanger o constrangeram,
Com mui grande prazer e alvoroço;
A esta festa todos concorreram,
Nenhum velho ficou nem mouro moço,
Ao som da buzina, uns cantavam,
Outros dando risas apupavam.

Essas mouras de honra encerradas,


E damas mais fermosas e as feias
Subiam ao alto por escadas,
Por verem dos eirados e açoteias,
As mais mouras e mouros e manadas
Vão, só ficam, os presos nas cadeias,
Mas nas cadeias ouvem claramente,
A festa e clamor que vai na gente.

Almançor ao som da alegria,


Que por toda a Vila há soado,
De novo disse, que comer queria,
E à mesa se pôs logo assentado,
E quantas vezes a buzina ouvia,
Com grã gosto metia o bocado,
E a Gaia cruel com ele estava
Que à ira, e zombar o ajudava.

A gente de Ramiro, que emboscada


Estava d’aí perto donde ouvia
Os mouros quando davam apupada,
E vendo a buzina que tangia,
Remetendo com ordem ordenada,
Toda dentro da Vila se metia,
Que as guardas que a Vila então guardavam,
Onde estava Ramiro então estavam.

E dali como lobos indomados,


Nos paços de Almançor deram de siso,
Ao tempo que ele e seus privados
Estavam com mais festa e com mais riso;
Aonde logo foram degolados,
El-Rei, e os mais mouros de improviso,
E a Gaia também às mãos tomada,
E a vila sujeita e saqueada.

Essa Mourama junta como estava,


Pera ver a Ramiro padecente,
Que de nada então se precatava,
Vendo entrar na Vila alheia gente
E o furor, e esforço que mostrava
Matando e degolando cruelmente,
Se põe a defender com seus terçados,
Mas logo foram i desbaratados.

E como ia já sentenciado
Que não se desse vida a nenhum Mouro,
De sangue um grão rio há manado,
Que pelos matos foi sair ao Douro,
E em sangue as águas se hão tornado,
E perdeu por então a cor de louro,
E o mar pelos Portos há mostrado,
Ter muito sangue então derramado.

Ramiro lá do alto tudo vendo,


A Deus pelas mercês as graças dando
Como livre se viu, se foi decendo,
Vendo que o andavam os seus buscando,
E como os seus o fossem conhecendo,
A mão todos ali lhe então beijando,
Por seu Rei, senhor, e satisfeito,
Aos paços guiou e foi direito.
Dois filhos de Ramiro ali vinham,
Filhos da mesma Gaia nesta armada,
Que chegando Ramiro já i tinham,
A sua mesma mãe às mãos tomada,
Os quais por animá-la lhe diziam,
Que fariam que fosse perdoada;
Chegado pois Ramiro lhe rogaram,
Por ela, e a vida lhe alcançaram.

Em isto o bom Ramiro lhe contava


A treição que esta Gaia lhe urdira,
Do que toda a gente se espantava,
E como de seus laços se expedira,
Que proposto à morte já estava,
Se Deus com seu favor não lhe acudira,
Dando com discrição e bom esforço,
Que já tinha o baraço no pescoço.

— Contudo, pois pedis, filhos amados,


(Lhe disse) lhe perdoe, e dê a vida,
Pois dela quereis ser filhos chamados,
Mando que ninguém isso vos impida,
E vão à vossa conta os seus pecados,
Que por eles melhor fora punida,
Pera ficar aviso às semelhantes
Casadas com bons Reis e com infantes.

Assolada a terra, e destruída,


E havida esta presa, e grão vitória,
Ficou a soldadesca enriquecida,
E com honra e fama, e grande glória;
Dos trabalhos passados esquecida,
Só deste bem presente tem memória,
Dando louvor a Deus toda a gente,
Por vitória tal tão excelente.

Foi este tal triunfo celebrado,


Cuja fama correu o mar e a terra,
E logo o arraial i foi alçado,
Decendendo do alto e da serra,
Nas galés se hão todos embarcado,
Por terem concluído aquela guerra,
Começando a remar os remadores,
Ao som das trombetas e atambores.

A Gaia vai chorando amargamente,


Pelo mouro Almançor que já não via,
Ramiro e os filhos de repente,
Vendo quão pouco a vida agradecia,
Mandaram-na deitar em continente
No mar, porque mui bem o merecia,
Com uma grande pedra a ela atada,
Ali fica esta Gaia mergulhada.

E com próspero vento e bonança,


Ramiro a seus Reinos há tornado,
Levando de Almançor a tal vingança,
E vitória que Deus lhe havia dado.
E daí em diante a sua lança
Já mais mouro algum há aguardado,
E sempre este bom Rei lhes moveu guerra,
Ganhando-lhes de Espanha muita terra.

Aquele Rei dos Reis omnipotente,


Que na terra mercês lhe há outorgado,
E tenha em a glória eternamente
Com coroa da glória coroado;
E aos Reis cristãos que ao presente,
Reinam, paz e concórdia haja dado,
Pelos quais nesta Liga assi ligados:
Os imigos da Fé sejam domados.

João Vaz[44]
OS AMORES DE MACHIM E ANA DE
HARFET

Imperando na Selva Calidónia


Eduardo Terceiro, Rei famoso
A quem a Gália, como a gente Ausónia
Coroa e cetro deu, por belicoso,
O que a rara grandeza Macedónia
Imitou a Alexandre poderoso,
E a cujo valor, brio e potência
Rendeu com feudo Escócia obediência.

Florecia em beldade peregrina,


Em sua corte então por celebrada,
Uma formosa e nobre Proserpina,
Em nome próprio Ana de Harfet chamada,
De mil louvores por beleza digna
Por de heroica prosápia venerada,
Honesta, sábia e rica na pureza,
Esmaltes finos da maior nobreza.

Com negros olhos graves e resgados,


Faces de pura neve e fresca rosa,
Os dous pequenos lábios encarnados,
Que a boca faziam mais formosa,
As sobrancelhas arcos delicados,
Garganta e testa, cada qual lustrosa,
Barba e nariz perfeitos e excelentes,
Aljofres brancos por pequenos dentes.

Havendo na puerícia demonstrado


Com prudência constante fortaleza,
Na gravidade, engenho delicado,
E no galhardo brio alta firmeza,
Em o olhar gracioso e sossegado
(Ferida de que mais amor se preza),
Atrativa ocasião, para que olhada,
A tivesse maior de ser amada.

Teve na Corte vários pretendentes,


Que a seu querer renderam liberdades,
Umas secretas, outras aparentes,
Que são várias de amor as qualidades.
Como à Pandora, graças e acidentes
Lhe ofereciam de amantes mil vontades,
Mas só Machim, de todos escolhido
Foi pera ser da dama mais querido.
Era Machim mancebo a quem cobria
Ao lábio levando subtil ouro,
Olhos verdes, com quem amor feria
De estremado cabelo, crespo e louro;
A boca grande Tiro lhe vertia,
E nela amor fazia seu tesouro,
Airoso em corpo, grave em estatura,
Suave em fala, e belo em compostura.

Em a Corte o lugar tinha presado


Que merece um fidalgo cavaleiro,
Por cortesão de todos estimado,
E em os jogos de Marte por primeiro.
Humilde não, nem fero ou regalado,
Mas de ânimo perfeito em tudo inteiro,
Alegre, livre e afábil, generoso,
A pé bizarro e a cavalo airoso.

Amor, que oferta livre é da vontade


Desterro do temor que oprime o peito,
Perda certa da própria liberdade
E quem nela descobre o mor efeito,
Vínculo que só junta com verdade
Os corações, que ilustram seu sujeito,
Valor que quando mostra segurança,
O não obrigam males à mudança.

De Machim a vontade recebendo,


O temor desterrou do bem que amava,
Pois que a liberdade foi perdendo,
O efeito lhe mostrou no que ganhava;
E de tal sorte aqui se viu crescendo,
Que quanto mais os corações atava,
Para os males que o tempo dar podia,
Sempre maior firmeza oferecia.

………………………………………………………
Assim Machim que o pálio foi seguindo
Desta Hipodamia, sol da formosura,
Ou no curso de Atlanta, em que vencendo
A tantos foi com graças e ventura,
Entre todos ficou só merecendo
Da glória singular, palma segura,
Por méritos tão justos alcançado
Que dos mesmos depois foi celebrada.

………………………………………………………
E posto que o amor quando secreto
Em o gosto maior amor se chama,
Se quem o busca amando, por decreto
Sabe a honra guardar, do bem que ama;
Machim, que em observar este decreto
Foi nos Nove de Amor o de mais fama,
Não por isso deixou como estimado
De arriscar este bem por invejado.

………………………………………………………
Amava Ana de Harfet com força viva
A seu Machim, de tantos invejado,
Com virtude de amor tão unitiva,
Que um no outro vivia transformado;
Pela vista ordinária, que o não priva
Crescia mais de amor, o último estado,
Porque sempre na vista desejada,
Se sustentou melhor da cousa amada.

………………………………………………………
Isto se viu no amoroso trato
Que Machim teve na correspondência,
Pois descoberto foi do tempo ingrato,
Sem merecer gozar sua assistência,
Que os pais de Ana de Harfet, em o boato
Do vulgo só fazendo experiência,
A certeza do amor e trato acharam,
E dividir-lhe os corpos procuraram.

Como é delito amor, lhe é concedido


Por absência gozar de apartamento,
Sem que o trato lhe seja permitido,
Para abraçar melhor o esquecimento;
Aos dois amantes este há dividido,
Porque moura Machim com mais tormento,
Que em processo de absência duro e forte,
Sempre há sentença com rigor de morte.

A Bristol finalmente Ana levada,


Foi com rogo materno persuadida,
Que melhor se lograsse bem casada
Que sem gosto do pai, tão mal querida;
Ela, que sem Machim estima em nada
Tudo quanto lhe oferece o bem da vida,
Só disse, que num peito generoso
Assentaria mal forçado esposo.

Porém o pai baseando na potência


Do real cetro, favor alto e subido,
Igual esposo achou, à descendência
Do tronco donde fica produzido.
Com ele no rigor da larga absência,
Pretendeu que Machim fosse excluído,
Porque as paixões de amor cessassem, quando
Honra, as da honra estavam demandando.

………………………………………………………
Assim a bela Harfet, que combatida
De seus parentes, e de amor estava,
Em tormento em que quase vê vencida
A esperança maior que a sustentava,
Duvidosa de achar o bem da vida,
Se contrários intentos intentava,
Os novos pensamentos de si lança
Salvando de Machim só a esperança.

Com ela mais de amor novo obrigada


Lhe pediu que em secreto a visitasse,
Antes de perseguida e maltratada
Em contrário poder se sepultasse;
Que posto que está firme e desculpada
Do mal, que em seu dano Juno ordenasse,
Teme, como quem ama, ver perdida
A vida, por quem só sustente a vida.

Quando Machim famoso, que de Marte


Então seguia o amoroso intento,
Apercebido, e posto de tal arte
Qual se devia a tal atrevimento;
Entra a buscar a glória que reparte
Glória a seu bem, e bem ao pensamento,
Que já por esperar, no amor mostrava,
Ser Nero, do Leandro que aguardava.

………………………………………………………
As primeiras razões foram suspiros,
Com que os amantes dois se saudaram,
Em tal princípio rigorosos tiros
Que os corações amando ali provaram,
soluços e penas, vários giros,
O colóquio primeiro dilataram,
Té que Machim não vendo neles pausa,
Assim de tanto mal procura a causa.

— Mil vezes, doce amor e vida minha,


Machim querido, centro e luz desta alma,
Por resistir de um mal que nela tinha
O peso, fui na força como a palma;
Mas na dor, conhecendo que detinha
Pensa maior que o bem, me punha em calma,
Intentei publicar-ta por ser certa,
Que a dor causa mais dor quando encoberta,

Sabe, que deste amor que brandamente


Com a imaginação se foi criando,
A causa sendo à vida indificiente,
Que por minutos se ia acrescentando,
Por contrário ao meu bem, vário acidente,
De sorte o foi na fama dilatando,
Que quando estar cuidei mais escondido,
Foi de meus pais por público sabido.

………………………………………………………
Intentaram pois dele divertir-me
Tanto a outro himeneu querer honrar-me,
Que da força chegada persuadir-me,
Pode, que era melhor precipitar-me;
Mas, como amor merece mais por firme
Com mais glória cheguei a resolver-me
De a vida antes perder, que sem ti ver-me.
Bem vejo que o paterno amor vencido
O castigo me oferece por ingrata,
Pois qual o humor na planta conhecido
É o amor, que a seu querer me ata;
Mas também sei, que humor não reduzido
De tornar à raiz mui pouco trata
Pois só ao fruto leva o justo intento,
Que tal deve de ser meu pensamento.

«Mal poderei deixar-te, amor querido,


Pois eras quem...» E nisto soluçando,
O mais no coração que tem ferido,
Vai com brandos suspiros dilatando.
Machim, nos belos olhos suspendido,
Vendo que estão aljofres destilando
Do êxtase amoroso recordado
Assim responde ao bem do seu cuidado:

— Deixa, querido bem, de lamentar-te


Nem querer com mais choros afligir-te,
Pois, sabes que nasci só para amar-te,
E com eterno amor saber servir-te.
Agora, tens mais causas de alegrar-te,
E de paixões e penas divertir-te,
Pois podes deste jugo livre ver-te,
E mais no de himeneu engrandecer-te.

………………………………………………………
Se com amor a tua se conforma,
E queres dar à minha glória aumento,
Pois vês que o meu, do seu querer te informa
E unidos faz de dois em pensamento,
Os receios, meu bem, que tens reforma,
Que com audaz e livre atrevimento,
Se teus olhos me deram confiança,
Seguro viverei contigo em França.

Que pelo pregão público da guerra,


Não nos pode faltar real seguro,
A fuga confessando de Inglaterra,
E ser a causa amor funesto e puro;
Se esta vida da pátria nos desterra,
Tantos gostos na Gália te asseguro,
Na paz de um himeneu, que outra memória
Será nada, respeito de tal glória.

………………………………………………………
Perantes e agravados esforçados
Tenho, que nesta empresa aventureiros
Com atrevidos ânimos ousados
Serão, qual devem, nossos companheiros.
Navios, há no porto mil fretados,
Que obrigando de algum os marinheiros,
Ao que cair a sorte venturosa,
Farei Touro de Europa tão fermosa.

No primeiro será célebre dia


Em que a divina igreja, mãe sagrada,
Do trabalho suspende, como pia
A ocasião, de tantos desejada;
Dentro nela com minha companhia
O repente darei, com mão armada,
E desfraldando o tréu, navegaremos
A porto onde seguro descansemos.

Disse Machim e Ana, que só sente


De a liberdade amada ver perdida,
Lhe torna: — Antes que algum rigor me absente,
Dispõe, meu bem, qual deves, na partida,
Que contigo viver na Líbia ardente,
Para mim só será perfeita vida,
Mas em que amor não falte a seu descargo
Em o prazo vai muito breve ou largo.

Advertidos assim se despediram,


E alegres a partida prepararam.
Que os amados que se viram
À fuga com mais glória se animaram
E se pena estes dois então sentiram
Foi só enquanto a causa dilataram;
Se largas esperanças penas deram,
O que em ser possessão detiveram.

Enquanto poucos dias vão passando


Que se julgam por muito esperados,
Suas joias a dama vai juntando
E os vestidos que tem mais estimados;
Um precioso Joiel dos mais prezados,
Entre eles com mil gostos ocultando
A cuja vista real e alta assistência
Rendem mar, terra e céus obediência.

………………………………………………………
Quando já pela mão com seus amores
Machim, e de parentes rodeado,
No campo deixa inveja às frescas flores
E ao mar dá presunção no que há ganhado.
Alegre, em um navio dos melhores
Entra, sem de ninguém ser reprovado,
E com força guiando o próprio intento
As velas faz largar ao fresco vento.

………………………………………………………
Assim aquele dia navegaram,
Mas, tanto que dos montes foi caindo
A sombra, e que as estrelas divisaram
A notívaga luz, ir descobrindo,
Os da nau a conselho se juntaram.
Temendo que do porto os vem seguindo.
Que talvez o temor só tira a trave,
Com que aos olhos cerrou a culpa grave.

Resolveram-se enfim com confiança,


Por o piloto em terra haver deixado,
Que por terem mais certo a segurança
Fosse todo o Canal atravessado,
E nos últimos fins da nobre França,
Seguro porto fosse então baseado,
Que o risco temor causa na aventura
Da cousa amada enquanto não segura.

………………………………………………………
Ia Machim alegre navegando
Posto que mareados seus amores.
A quem com vários mimos regalando
Amor lisonjeava com louvores.
Febo nas ondas já com o carro entrando
Adormia no campo as frescas flores,
E Cíntia com seus cornos levantados,
Longe fazia os mares prateados.

………………………………………………………
Quando desenfreados e violentos
Da cova saem, em fúria revestidos
Os mais que irados e queixosos ventos,
De poucos na soberba conhecidos.
Tremeram ao sair os elementos
Que deles sempre em tudo sai temidos,
E do centro do triste lago Averno
A negra areia rociou o inferno.

Pelo Canal investem furiosos


E de Machim a nau acometendo,
Com repentino assalto impetuosos
A querem em um instante ir desfazendo;
Mas sem piloto, os nautas animosos,
E seu rigor primeiro conhecendo,
Por as velas de presto ir amainando,
Às ostagas acodem vozes dando.

………………………………………………………
Com isto, e com se pôr dobrado intento
No governo do leme necessário,
Por que se cena à discrição do vento
Ao Orião tomando temerário,
Machim, que só lhe aflige o pensamento
Ver seu amor com vento tão contrário,
Acode a Ana, que a acha trespassada,
Com o Joiel Cristífero abraçada.

Mas depois de alguns dias engolfados


À discrição do vento que os levava
Duvidosos, por ver-se derrotados
E que o piloto Amor cego os guiava,
Vista houveram de montes levantados
A quem o mar em torno cerca e lava,
E de uma parte à outra, onde surgiram,
Uma enseada alegres descobriram.

Alvoroçada com a vista a gente,


Alegres a tenaz âncora lançava,
Que antes de dar ao fundo o curvo dente
Dele ferido o mar, na nau saltava;
Lança o batel também que diligente
Saber que terra era desejava,
Que faz ser sua própria natureza
Mais dela o trato e vista estima e preza.

Coberta esta se via de arvoredo


À vista espesso e alto em demasia,
Cercado pelo mar, de alto rochedo,
Com que inculta e ser nova parecia,
Metidos no batel em que, com medo
Viram que uma ribeira clara e fria
Entre árvores e rochas despenhada
Dava tributo ao mar pela enseada.

Viram que dois formosos e altos montes


A ribeira causavam deleitosa,
Cobrindo o arvoredo os horizontes,
Que cria ali a terra por viçosa;
Que forma a linfa em pedra várias fontes,
Na terra a grama, estância graciosa,
E que as árvores temem com aviso
De em si ver a filáucia de Narciso,

Ali da parte donde nasce o dia,


Em uma rocha e cais, que propriamente
A natureza fabricado havia,
Saiu à terra a Calidónia gente;
Cobiçosa da caça, a discorria
Sem encontrar nem ver cousa vivente,
Mais que diversas aves modulando
Louvores mil, que a Deus estavam dando.

Aqui Machim com Ana em doce glória


Esquecia do mar a dura guerra,
A seus amores dando larga história
Na praia, na ribeira, vale e serra.
Os companheiros com maior memória
Da terra para a nau, da nau à terra
Iam e vinham alegres, e aumentavam
As glórias que na terra os dois gozavam.

………………………………………………………
A noite escura, negra e temerosa
De quem Délia com medo se escondia,
Se mostrou com o vento tão furiosa
Que com a nau pairar-se não podia,
E com a tempestade rigorosa
No cativeiro deu de Berbéria,
Donde os Anglos que os Afros nela acharam
De Atlante ao grande reino os trespassaram.

………………………………………………………
Perdeu também Harfet supitamente,
Com grave dor do sobressalto a fala;
Que um temor alterando de repente
A vida com a morte em breve iguala.
Machim em tantas penas tristemente
Se esforçou quanto pôde em animá-la,
Mas pode muito mal ser suspendida
Em a fuga ligeira a breve vida.

Assim, sem mais obséquias sepultada


Foi em túmulo breve a bela Inglesa,
Coberto em tosca pedra e só lavrado
Do lavor que lhe deu a natureza;
E de gótica letra bem formada
Um epitáfio heroico, cuja alteza
Abrevia este caso sem segundo
Na língua que terceira chama o mundo.

………………………………………………………
Mas com a cousa amada por perdida
Causou no sentimento a dor mais forte,
E com pena a memória mais crescida
Sempre se viu em as que leva a morte;
Machim, que por faltar-lhe o bem da vida.
Via nestas tristezas sua sorte,
Querendo com a vida malograda
Píramo ser de Tisbe tão amada.

Chamando os companheiros, que a ventura


Em tanto mal leais sempre lhe dera,
Como quem já da vida mal segura
Esperança melhor seu prémio espera,
Pondo os olhos na breve sepultura
Em que seu mal da vida o bem pusera,
Assim os foi a todos advertindo.
Seus contrários intentos encobrindo.

O batel que o rigor do tempo irado


Em terra vos deixou, e a sorte impia,
Convém que logo seja reparado
E que busque do mar a incerta via.
O mantimento de aves aprestado
Será por todos, hoje neste dia,
Em quanto eu de meu bem só me despido
E em orações lhe dou amor devido.

Depois que os companheiros prepararam


O sustento das aves, e o não viram,
Também pela espessura se embrenharam
E de seu mal o dano pressentiram;
Em cuja busca cinco sóis passaram,
Depois dos quais já morto o descobriram,
Diante de uma cruz ageolhado,
Com o que perdão pede do pecado.

Finalmente Machim na última sorte


A os seus mereceu por despedida,
Juntarem os dois corpos em a morte,
Que foram tão queridos em a vida,
Trás da qual, por a tanto mal dar corte
Da nova terra a gente despedida,
Buscando de salvar-se novo intento,
Torna a provar o húmido elemento.

No pequeno batel não teme a guerra


Que lhe pede Neptuno dar triunfante,
Antes nela atrevida chega à Terra,
Em que foi convertido o grande Atlante;
Mas este escassamento a gente aferra
Quando de Agar os netos vi diante
De quem na liberdade condenados
A Marrocos depois foram levados.

Entre os vários cristãos que ao jugo duro


Se vieram dos ímpios Mauritanos,
Co’mar a seus intentos mal seguro,
Foram uns derrotados Anglicanos;
De quem com limpo trato e amor puro,
Mais devido a cristãos entre os tiranos,
Em Marrocos achei pois cousa certa
Que uma Ilha deixavam descoberta.

Não dista da paragem donde estamos


Largas navegações que receemos,
Que se no mar Atlântico a buscamos
Não duvido que dela o porto achemos.
Quando por bem das Pátrias empreendamos
Empresas tais, mais glória merecemos,
Que por ela (no risco) a confiança
Mais glória mais valor, mais nome alcança. (Est. 110 e 112.)

Assim o Piloto experto a seu discurso


Alegre fim ditosamente dava,
E o coração do Céu, do dia o curso
Com clara luz no ocaso sepultava;
E porque a negra noite ao concurso
Dos astros já no Céu claro mostrava,
Do sábio Capitão foi estimado
E com amor e mimos regalado.

Se guardada de Deus, por maravilha


Alguma Terra ou Ilha ali deserta
Dos Anglos será esta a fresca Ilha
De arvoredos altíssima coberta,
A cuja densidade mais se humilha
Névoa que sempre nela é cousa certa;
Se a fazeis na altura donde estamos,
Esta é seira falta a terra que buscamos. (Liv. III, nat. 62.)

(Manuel Tomás, Insulana. Livro II.) Ed. 1635.
NOTA: Na legendogonia, os nomes de pessoas e de lugares favorecem a
formação de relações históricas, geográficas e hagiológicas, que facilmente
entram na corrente da tradição e se impõem como realidade. É uma
eflorescência parasítica custosa de extirpar. Do nome de Machim, dado a uma
parte da ilha da Madeira pelos navegadores portugueses, fez-se no meado do
século XVI a lenda de Machim, um cavaleiro inglês, que fugindo com uma
dama casada foi no baixel levado pelas tempestades à ilha desconhecida, que
vindo a ser descoberta pelos Portugueses conservaram, não se imagina por que
revelação esse nome de Machim como testemunha dessa prioridade inglesa.
A lenda, como todas as invenções fantasistas, abunda em detalhes e situações
romanescas, que servem quase sempre para se descobrir as suturas dos
elementos tradicionais e até os intuitos do fabricador da lenda. É o que se dá
com a lenda de Machim, que o historiador inglês Henry Major, no seu livro Life
of Prince Henry de Portugal, procurou dar-lhe foros de documento histórico, por
assim convir autenticar a prioridade da descoberta da Madeira por um inglês.
Mas esta tradição de Machim é na, lenda, comunicada por um castelhano, que
estivera cativo dos Mouros, João de Morales ou João de Amores, ao capitão João
Gonçalves Zarco, que por indicações deste seu piloto singra para a ilha a que
aportara o namorado inglês. Há portanto o intuito de aliar as duas iniciativas
inglesa e castelhana, de que o descobrimento dos navegadores portugueses seria
a resultante. Esta circunstância revela-nos a razão da lenda: a glorificação das
navegações inglesa e castelhana fantasiou-se nesse momento histórico dos
esponsais e casamento de Filipe II com Maria Tudor, em 1550-55. A forma mais
antiga em que essa tradição foi reduzida é a que Valentim Fernandes, alemão,
compilou sob o título Descrição ou Notícia das Ilhas do Atlântico, que com mais
seis relações várias vendeu ao erudito bibliotecário Peutinger, e hoje conservadas
na Biblioteca de Munique. O interesse que Peutinger teve sempre das coisas das
navegações portuguesas, levou Valentim Fernandes ou de Morávia, hábil
arranjador da vida, a explorar esta curiosidade; assim o primeiro opúsculo da
coleção vendida é a tradução da Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné,
por Azurara. Esta crónica, que tanto preconizava o infante D. Henrique, foi
desconhecida de Pedro Nunes e de todos aqueles que não falaram da lenda
infantista; só foi utilizada por João de Barros, em 1552 na sua Década I,
alterando-a estilisticamente e dando pasto às amplificações retóricas de outros
narradores. Portanto a cópia de Valentim Fernandes foi feita pouco antes de
1552, isto é, quando Barros andava redigindo a Década; anula a declaração de
Valentim Fernandes no fim do seu manuscrito: Deus seja louvado, ano de 1506 aos
14 dias de novembro acabei aqui de escrever e traladar esta história da Guiné —
Valentim Fernandes. O ano foi posto para apagar qualquer relação com o
exemplar explorado por João de Barros, por isso que era vendido para a
Alemanha. Mas este conhecimento de Valentim Fernandes suscita o reparo ao
sétimo folheto do Descobrimento e Notícia das Ilhas do Atlântico, pois desprezando
a narrativa de Azurara que cita os dois navegadores da Casa do Infante, João
Gonçalves e Tristão Vaz, neste folheto é que fabrica a lenda do descobrimento
pelo Machim. Note-se que este manuscrito de Valentim Fernandes não tem
data, e que os argumentos do historiador inglês Major tiram a sua força da
atribuição de 1507, que está na relação que antecede esta.
Só depois de 1550 é que António Gaivão, começando o seu Tratado dos
Descobrimentos Antigos e Modernos Que São Feitos em a Era de 1550, é que alude —
outros também afirmam — à notícia a que dera curso Valentim Fernandes, que
lhe sobreviveu. Por este simples fio propagou-se a lenda engalanada com o caso
dos amores, já amplamente contado pelo Dr. Gaspar Frutuoso, na sua história
geral do arquipélago dos Açores, Saudades da Terra, de 1590, e depois
metrificado em oitava rima por Manuel Tomás, no seu poema épico Insulana,
de 1634, e romanceado pelo seu amigo D. Francisco Manuel de Melo, na
Epanáfora Amorosa, de 1658, inventando um Francisco Alcoforado, criado
imaginário da Casa do infante D. Henrique, que redigiu à Relação para
conhecimento de seu amo. A Epanáfora Amorosa apareceu traduzida em francês
em folheto com o nome de Francisco Alcanforado, em 1671, e depois também
em inglês. Foi nesta forma independente do corpo das Epanáforas, que se
encobriu o seu intuito novelesco, vindo pela sua raridade a ser considerado como
um precioso documento histórico, que Henry Major aproveitou com a
entusiástica credulidade na Vida do Infante D. Henrique. O Dr. Álvaro
Rodrigues de Azevedo na edição das Saudades da Terra, do Dr. Gaspar
Frutuoso, de 1873 (História das Ilhas do Porto Santo, Madeira, Deserta e Selvagem)
refutou perentoriamente os argumentos em que se justificava Major, e Camilo
Castelo Branco, na Lenda de Machim, Reflexões à Vida do Infante D. Henrique,
também dissolveu esse erro, que prejudica a importante monografia. Mas apesar
desta mancha, que a Academia Real das Ciências tentara apagar em uma nova
tradução, que não foi levada a efeito, ainda se lê: «Se não fosse a forte mão dos
historiadores ingleses, já há muito que a personalidade do infante D. Henrique
teria desaparecido entre nós, em meio de insignificantes episódios, que alguns
conterrâneos do infante têm avolumado, levados pelo espírito de partido.»
(Boletim da Academia, vol. VIII, p. 47.) Major continuou a retórica de João de
Barros, que ampliou estilisticamente o simples texto de Azurara escrito «por
mandado do infante» o que explica o panegírico, de atribuir aos homens do
infante as ilhas que já figuram nos mapas do século XIV; daí sua linguagem
dúbia, não falando em descobrimentos mas dizendo: e assi chegaram à ilha que
se chama agora do Porto Santo,» e da ilha da Madeira, também dubiamente: no
«ano seguinte passaram-se à outra Madeira.» João de Barros desconhecia os
documentos cartográficos dos séculos XIV e XV, daí a sua improvisação de
descobrimentos; nas cartas geográficas italianas de 1351 (reinado de D. Afonso
IV), de 1375 (reinado de D. Fernando) e de 1384 (início do reinado de D. João I)
vêm apontados esses nomes de Porto Santo, Insule de Lengam (da Lenha ou
Madeira) Insule deserte, Insule salvage. João de Barros foi provavelmente
iludido pelos herdeiros de João Gonçalves Zarco, que «fizeram escritura mui
particular deste descobrimento, e querem que toda a honra e trabalho dele lhes seja
dada.» Está-se a ver donde soprava o vento da falsa tradição, cuja poeira
empanou as vistas históricas de João de Barros, que contagiou Damião de Góis.
Mas as vagas notícias deste descobrimento no século XIV, pré-infantistas, e
ainda o nome de alguns navegadores, fizeram criar outra lenda, cujos vestígios se
vão achar no nome de Machim, encontrado em diversos anos em documentos
por Brito Rebelo e Jordão de Freitas: «em 1375 e em 1379, quer dizer, no
reinado de D. Fernando, vivia em Lisboa um marítimo, mestre de barco deste
rei, chamado Machim, que como se sabe é o nome de uma das vilas da ilha da
Madeira, cabeça da capitania de Tristão Vaz, e ao qual vários autores têm
pretendido encontrar origem no nome lendário do amante de Ana d’Arfet.»
(Freitas, Quando Foi Descoberta a Madeira, p. II.) «Mais importante, porém, será
consignar que no cap. XIX, fls. 47, da cópia que a Biblioteca da Ajuda possui das
Saudades da Terra de Gaspar Frutuoso, este autor açoriano diz que a ilha de
Ferro, nas Canárias, foi casualmente descoberta, depois de tornado Colon, por um
biscainho chamado João Machim, do qual ficaram duas filhas, chamadas Maria
Machim e Luísa Machim, que viviam no tempo do autor daquela obra, escrita
em 1590. A descrição que Gaspar Frutuoso faz deste descobrimento, leva-nos a
crer que o nome de Machim se tornou lendário nos relances do descobrimento
da Madeira e das Canárias, arquipélagos vizinhos um do outro» (ib). Por 1590,
também o cónego da Sé do Funchal, Jerónimo Dias Leite, escrevia com a lenda
de Machim a História do Descobrimento da Ilha da Madeira, e também a
Insulae Materiae Historia, que Manuel Constâncio publicou em Roma em 1590,
onde se lê que Macino em tempo de D. João I, descobrira aquela ilha, e deriva o
nome de Machino: «ea enim a Macino reperta est; tum primum cum Joannes,
hoc nomine primus Imperio Lusitaniae potiretur. — Oppidum Machici a
nomine Praetfecti nuncutum...» (Ib., 10.) Neste texto coloca-se a lenda de
Machim em 1384, começo do reinado de D. João I; e para a ajuda da formação da
lenda o João de Morales torna-se em João de Amores, que em vez de castelhano,
é historicamente o nome do porteiro da Câmara de D. João I, agraciado pelo
monarca com o reguengo de Linha Pastora.
Da Relação do cónego Jerónimo Dias Leite transcreveu Manuel Tomás,
cónego da Sé do Funchal, a lenda poética para a Insulana; e deste poema tomou
D. Francisco Manuel de Melo o quadro que romanceou na Epanáfora Amorosa
em 1660, em que se refere também a História do Descobrimento escrita em
latim pelo Dr. Manuel Clemente (publicada em 1590.) O nome de Machim
aparece também em um pirata italiano, mencionado por Diogo Gomes; em
Machim Fernandes, grumete, mencionado no Livro das Despesas do Tesoureiro da
Casa da Mina; e para mais localizar a lenda em Inglaterra, no século XVIII, aí
se nomeia um astrónomo Johnes Machim, e um Dr. João Machim da Inquisição
de Espanha.
Como a crítica intencional pretendeu desvalorizar os nomes das ilhas nas cartas
italianas considerando-os de inclusão tardia, o visconde de Santarém observa
que a indicação do arquipélago da Madeira só aparece nas cartas posteriores à
expedição de D. Afonso IV às Câmaras (1331-1344) sendo esses nomes
traduzidos dos nomes portugueses em italiano, como também o fizeram para os
das ilhas dos Açores.
Valentim Fernandes, o ardiloso sócio de Nicolau de Saxónia, hábeis impressores
da Vita Christi, no melhor período da sua prosperidade industrial, imprimiu e
dedicou ao rei D. Manuel o livro das Viagens de Marco Polo, e de Nicolau Veneto e
a Carta de um Genovês, em 1502; estas relações maravilhosas e misto de fábulas
mandara-as traduzir em português para exploração do gosto do género da
geografia fantástica. Esta sua tendência exploradora vê-se na impressão da
novela do Ciclo de Santo Graal, a História do Mui Nobre Vespasiano. O
impressor foi-se convertendo em editor, e como autor plagiando
descaradamente o Almanach perpetuum de Abraão Zacuto, de 1496, no seu
Reportório dos Tempos, de 1557.
Entre as relações geográficas que compilou para vender para o estrangeiro, não
era como homem de ciência que procedia, mas para satisfazer curiosidades
científicas como as do célebre humanista Peutinger, que lhas pagavam. Pelas
suas relações com os mais influentes fidalgos da corte, ele pôde tirar uma cópia
do raro manuscrito da Crónica da Conquista da Guiné por Gomes Eanes de
Azurara. Nesta crónica, então consultada por João de Barros, é que viu o facto
do descobrimento das ilhas do Porto Santo e Madeira. João de Barros que
difundiu a inexata versão de que pelos anos de 1418-1420, os Portugueses
descobriram primitivamente aquelas ilhas e lhes deram os nomes, «em que
excede a lista do anterior cronista Azurara, do qual o mesmo Barros confessa ter
derivado as notícias de que se serviu.» (Major, Life, cap. V, pág. 66.) Servindo-se
da mesma fonte, Valentim Fernandes na Notícia das Ilhas do Atlântico, que
compilou para o erudito Peutinger, altera a narrativa de Azurara, substituindo
os nomes de João Gonçalves e Tristão Vaz, pelo nome de Machim, um inglês
que aportou impelido pela tempestade à ilha do Porto Santo e daí passando
depois à ilha da Madeira, ao fim de seis meses; ali fabricou de um grande tronco
um batel, no qual se aventurou ao mar, chegando a Marrocos. O sultão o
mandou de presente ao rei de Castela, o qual estando em guerra com o rei de
Portugal, pouco caso fez de Machim, que em Espanha morreu. É a primeira
relação que elabora a lenda de Machim, nome corrente, na tradição popular de
marinheiros do tempo do rei D. Fernando. Convinha ao génio imaginoso de
Valentim Fernandes bordar esta lenda; como observa o Dr. Álvaro Rodrigues de
Azevedo, sobre o caráter dessa relação: «Descobrimentos e sucessos
ultramarinos extraordinários e até maravilhosos, eram a expectativa
supersticiosa dos espíritos ao fecho do século de Quatrocentos e introito do de
Quinhentos; expectativa tanto mais exigente, quanto via irem recuando diante
das proas exploradoras os fabulosos países com que as lendas marítimas as
embalavam. Livro, pois, que lisonjeasse esta paixão da época, voava do mercado
literário e por bom preço. — Publicaram-se então e ainda depois muitos deste
género e neste intuito. E a relação do caso de Machim usado era para o intento;
participava do erótico maravilhoso da Idade Média e de trágico-marítimo do
gesto do tempo: amores malogrados; um rei intervindo; um marido traído; uma
dama. Ana d’Harfet raptada por modo impossível; uma fuga mais impossível que
o rapto; tempestades; ilhas encantadoras e desertas; Harfet morta de dor de
alma. Machim e os companheiros cativos de mouros; e ele, por conclusão
finando-se por essas terras de Espanha; novela ultrarromânica de todos os
quatro costados!
«Se não houvera razão de acreditar que a lenda de Machim fora inventada para
fins políticos internacionais, suspeitá-lo-íamos inspirada pela Egéria gananciosa
de algum editor de livros de então;... mas nada obsta a que com a invenção do
estadista quisesse especular o industrial da letra redonda; até é vulgar ainda hoje,
ser este o instrumento daquele, quando não tratam de potência a potência.
«Será pois o célebre inédito de Valentim Fernandes o mais antigo documento
português, ou melhor, em português, do caso de Machim? Isto mesmo
corrobora-lhe a presunção de haver sido, não a origem da lenda mas o primeiro
tentame de nacionalização dela. O nome e circunstâncias de Valentim
Fernandes vinculados ao caso de Machim, constituem a nosso ver, uma das
maiores razões contra a realidade do sucesso.» (Ed. Saudades da Terra, p. 372)
A aliança do aventureiro inglês Machim com a revelação, do seu maravilhoso
descobrimento a João de Morales, castelhano, manifesta um intuito da lenda,
quando Carlos V planeava e negociava o casamento de seu filho Filipe II com
Maria Tudor, rainha de Inglaterra, filha de uma princesa castelhana.
Por este tempo se encontrava Valentim Fernandes em Lisboa com António
Gaivão, que trabalhava no seu Tratado de Todos os Descobrimentos Antigos e
Modernos Que São Feitos em a Era de 1550, impresso anos depois da sua morte,
em 1563. A parte que neste tratado relata o descobrimento da ilha da Madeira,
alude à nova explicação divergente da de Azurara:
«No ano de 1344, reinando Dom Pedro de Aragão, o quarto, dizem os cronistas
do seu tempo, que lhe pediu ajuda Dom Luís de Lacerda, neto de D. João de
Lacerda para ir conquistar as ilhas Canárias.
«Também querem que neste meio tempo fosse a ilha da Madeira descoberta, que
está em trinta e dois graus, por hum Ingrês que se chamava Machim, que vindo de
Inglaterra para Espanha com uma mulher furtada, fora ter à ilha com tormenta
e surgiram naquele porto que se agora chama Manchico, de seu nome tomado, e
pela amiga vir do mar enjoada, saiu em terra com alguns da companhia, e a nau
com tempo se fez à vela, e ela faleceu de anojada.
Machim, que a muito amava, para sua sepultura fez uma ermida do Bom Jesus,
e escreveu em uma pedra o nome seu e dela; e a causa que o ali trouxera, e pôs-se
por cabeceira; e ordenou um barco de tronco de uma árvore, que ali havia muito
grossa, e embarcou-se nele com os que tinha, e foram ter à costa de África sem
velas nem remo. Os Mouros houveram isto por cousa milagrosa, e por tal os
apresentaram ao senhor da terra, e pela mesma causa os mandou a el-rei de
Castela.»
Todos estes detalhes, característicos da invenção fantasista, denunciam que
Valentim Fernandes lhe comunicara a sua relação, ainda hoje inédita na
Biblioteca de Munique. Mas António Gaivão, que ressalvara a transcrição da
narrativa, Também Querem, transcreve depois a narrativa de Azurara,
sincretizando-a com a de Valentim Fernandes:
«No ano de 1420, descobriram (João Gonçalvez o Zarco e Tristão Vaz) a ilha
da Madeira, e se passaram a ela onde ainda acharam a ermida e pedra que
contava como Machim ali estivera. Outros dizem, que vendo um Castelhano os
desejos que o infante tinha de descobrir novo mundo, lhe dera conta como eles
acharam a ilha do Porto Santo, e por ser cousa pequena não faziam dela estima.
Que foi causa de mandar o infante Bartolomeu Perestrelo, João Gonçalves
Zarco, Tristão Vaz Teixeira, e pelos sinais e derrotas que o Castelhano dera do
Porto Santo, foram ter a ele, e depois de ali estar dois anos, no de 1420, se
passaram à ilha da Madeira, onde acharam como Machim ali estivera.» (Op. cit.
fl. 15.)
Quando em 1563 se publicou o Tratado dos Descobrimentos por António Galvão,
que a estas versões ajuntava a ressalva: Outros Querem trabalhava Gaspar
Frutuoso na História Geral das Ilhas Atlânticas, as Saudades da Terra, e ao tratar
do descobrimento da ilha da Madeira transcreve na sua narrativa a lenda de
Machim. Mas a adoção da lenda, embora fantasiada, obedecia à necessidade de
corrigir o erro manifesto adotado por João de Barros, dando Porto Santo e
Madeira descobertos em 1418-1420, o que era desmentido pelos mapas e
relações do século XIV. No Boletin da la Sociedad Geografica de Madrid (vol. I. p.
109, 1877) foi publicada a relação de um frade mendicante espanhol do século
XIV com o título Conocimiento de todos los Reynos e Terras e Señorios que son por el
mundo. E los señales e armas que han cada tierra e señorio per sy. E de los Reys e
señorios que los proveen. Nele descreve as viagens feitas e menciona também as
ilhas Selvage, Desierta, Lecname e Porto Santo logo depois das Canárias e antes
dos Açores. Escreve Jordão de Freitas: «Das informações fornecidas pelo livro
de aquele franciscano se serviram o normando João de Bettencourt e seus
companheiros nas expedições que fizeram às Canárias em 1402 (quer dizer 16
anos antes de João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz haverem aportado ao Porto
Santo) como consta da obra de Pierre Bontier e Jeham Le Verrier domestiques
da dit sieure de Bettencourt, editado por Pierre Bergeron em 1630.*» Os
documentos de Baronio publicados por Costa Macedo provaram à evidência que
em 1331 e 1345, D. Afonso IV organizara expedições às Canárias. De tudo isto
resulta, que Azurara quis interessadamente glorificar o infante D. Henrique
com o descobrimento que não fez; e que João de Barros ampliou com mais
fantasias o texto de Azurara. A lenda de Machim obedecia a uma necessidade de
coordenações cronológicas. António Gaivão escrevia no seu Tratado dos
Descobrimentos, consignando estes dados: «No ano de 1393, reinando em Castela
el-rei Dom Anrique III pela informação que Machim deste lhe dera, e a
companhia de sua nau moveu a muitos de França e Castela irem a descobri-la e a
Grã Canária, principalmente andaluzes, biscainhos..., querem que fossem os
primeiros que houveram vista das Canárias e saíssem nelas e cativassem cento e
cinquenta pessoas: outros querem que fosse isto no ano de 1405.» Nesta expedição
como vimos aparece um Machim, biscainho. O valor histórico da lenda é nulo;
achadas as datas autênticas de 1331 e 1345, a lenda fica substituída pela realidade,
subsistindo apenas o romance geográfico, a que deram forma literária Manuel
Tomás no poema a Insulana, e Dom Francisco Manuel de Melo na Epanáfora
Amorosa. O Doutor Gaspar Frutuoso, apresentando essa lenda nas Saudades da
Terra, tinha, além do seu Conhecimento do Tratado dos Descobrimentos, notícia de
um biscainho João Machim que descobrira a ilha de Ferro, conhecendo ainda
em 1590 duas filhas desse navegador. Todos estes vestígios que tornaram
lendário o nome de Machim, usado por diversos marítimos portugueses,
italianos e biscainhos, mostram que só muito tarde é que a lenda de Machim se
tornou castelhana e inglesa.

* Jordão de Freitas, Quando Foi Descoberta a Madeira.


O texto das Saudades da Terra ficou inédito até à abreviação clara e sistemática
da História Insulana feita pelo P.e António Cordeiro.
A narrativa do Dr. Gaspar Frutuoso merece ser lida e conhecida para se apreciar
melhor a forma que, passados muitos anos, lhe deram Manuel Tomás e D.
Francisco Manuel de Melo. Eis o cap. IV, da História das Ilhas Porto Santo,
Madeira, Desertas e Selvagem:
DA HISTÓRIA MAIS VERDADEIRA E PARTICULAR COMO O
INGLÊS MACHIM ACHOU A ILHA DA MADEIRA.
«Ainda que já atrás tenho contado brevemente o que se conta do inglês Machim,
que, desgarrado com tormenta foi ter à ilha da Madeira* (a qual ainda nunca
fora descoberta) e tudo foi relatado conforme do que escreve o notável capitão
António Galvão, em um Tratado que fez de novos Descobrimentos; agora
quero contar mais particularidades do descobrimento da mesma ilha, como
então prometi. Direi também mais verdadeira e particularmente seguida,
segundo outros que melhor a inquiriram e examinaram, da maneira que
aconteceu esta saudosa história cheia de muitas saudades.
«No tempo de el-rei Duarte de Inglaterra, houve um nobre inglês, afamado
cavaleiro, a que chamavam de alcunha o Machim, o qual por ter altos
pensamentos e ser também de haveres fortes, andava de amores com uma dama
de alta linhagem, a que chamavam Ana de Harfet. Prosseguindo ele com
extremo seus amores, veio ela também a amar muito a quem a amava; porque,
enfim o amor, se não for com amor, não tem igual paga; e, como este (como as
cousas odoríferas) se não podem encobrir aonde está encerrado, com mostras e
suspeitas que de si deram, foram descobertos os amantes, por se quererem
ambos muito (que ainda às vezes a proibição de uma cousa é causa de maior
desejo dela, e é isca de maior incêndio o querer alguém apagar o fogo amoroso,
pois nossa natureza mais incita, e aspira ao que mais lhe é vedado...) os parentes,
cuidando deitar água no fogo, e não alcatrão — para divertir a corrente do amor
— com aprazimento de el-rei a casaram em Bristol com um homem de alto
estado. Machim foi disto mui lastimado, e ela muito descontente, e não tendo
nenhum meio à paixão e destes extremos com que ambos se viram, mostrando
com lágrimas ardentes a lástima deste casamento, acordaram com grande
segredo fugirem para França, com quem Inglaterra então tinha grandes guerras.
E falando Machim com alguns agravados e parentes, a quem descobriu seu peito
e todo seu talento e tesouro, (que tinha encerrado onde estava seu coração, e
amor,) deram-se as fés e juraram de ir todos com eles para França. E para
melhor porem em efeito esta partida foram secretamente poucos a poucos ter a
Bristol, onde estavam certas naus de mercadores carregados para Espanha,
determinados a meterem-se em uma delas e, por força, fazendo-se à vela,
passaram-se a França, fazendo saber com todo secreto este seu acordo a Ana de
Harfet para vir ter com eles e fugirem. E, ordenado o dia que as naus estivessem
despejadas de gente principal, um dia de festa, sendo o mestre e mercadores em
terra, e estando Ana de Harfet avisada, cavalgou o mais secreto que houve, em
seu palafrém, e levando um crucifixo, e todas suas joias de preço, deu consigo no
lugar ordenado, onde a estavam já esperando com um batel. Meteu-se nele com
o seu Machim, que com seus criados e amigos a recolheram e levaram a uma das
naus que tinham prestes, a qual fizeram logo à vela, e cortadas as amarras,
recolheram o batel. Acertou porém de ventar uma grande tormenta, revolvendo
as ondas, como invejosas daquele desenvolto amor, com que logo se afastaram da
terra; e como anouteceu, havendo conselho que poderiam sair as outras naus
atrás ela, porque haviam de entender que passavam a França, desviaram-se desse
caminho esperando de ir tomar as derradeiras partes de França em Gasconha ou
Espanha. E, como o piloto e mestre ficaram em terra, e os que iam na nau não
sabiam tomar a terra nem a altura dela, achando vento próspero, correram para
onde os levava a ventura com todas as velas, por não os alcançarem; e em poucos
dias se acharam em uma parte de uma terra brava toda coberta de arvoredo até
ao mar, de que ficaram espantados e confusos. Logo detrás da ponta viram uma
enseada grande, e metendo-se nela deitaram âncora, lançaram um batel fora,
foram ver que terra era; e não podendo sair com a quebrança do mar, foram dar
a uma rocha, que entrava no mar da banda nascente, onde saíram bem à sua
vontade, e daí se foram à praia entre o arvoredo e o mar, até darem em uma
fermosa ribeira de boa água, que por entre o arvoredo se saía ao mar, não
achando animal nem bicho nenhum, porém acharam muitas aves e viram o
arvoredo tão grosso e espesso, que os pôs em espanto. Entre outras árvores,
acharam junto do mar uma mui grande e grossa, que da antiguidade tinha um
oco no pé onde entravam como uma casa. Tornando com esta nova à nau, o
Machim e os companheiros, entendendo que era terra nova, puseram em
vontade de a pedirem aos reis de Espanha. Ana de Harfet, como ia enjoada e
mareada do mar, rogou ao Machim que a levasse a terra a ver aquela ribeira, e
desmarear-se alguns dias do enjoo. Fê-lo ele assim, mandou levar roupas e
mantimentos a terra, para estar ali alguns dias de vagar, enquanto o tempo lhe
desse, levando consigo alguns companheiros para estarem em sua companhia na
terra, e outros iam i vinham à nau; mas como a fortuna corre em alguém não lhe
dá vagar de repouso. À terceira noite depois que chegaram levantou-se um
grande vento tão forte sobre a terra, que a nau se desamarrou; os que dentro
estavam deram à vela, sem poderem parar, seguiram por onde o vento os levava,
e em poucos dias, dizem, que foram dar à costa de Berbéria, onde foram logo
cativos dos Mouros e levados a Marrocos. Quando amanheceu, os que ficaram
em terra não viram a nau, quedaram-se mui tristes, dando-se logo por perdidos
e desesperados de mais poderem dali sair. A dama de Machim de se ver ficar ali,
pasmou, e nunca mais falou, e dali a três dias morreu. Machim, pelo muito que
lhe queria, arrebentava, e, vendo-se desterrado de sua pátria, e seu amor morto,
que era todo o conforto de seu desterro, não lhe lembrava já saudades da terra;
só as tinha insofríveis da sua Ana de Harfet, que diante de si prestes via feita em
terra. Com estas com que ficava, e com ardentes suspiros e lágrimas a
acompanhava ali; onde estavam agasalhados a mandou enterrar e pôs-lhe uma
cruz de pau à cabeceira, e uma mesa ou campa de pedra com o seu crucifixo
sobre ela, e aos pés do crucifixo pôs um letreiro em latim, em que contava todo
seu tristíssimo sucesso e o que naquela viagem tão sem ventura lhe tinha
acontecido, que se em algum tempo ali viessem cristãos, fizessem naquele lugar
uma igreja da invocação de Cristo. Acabado o que pediu aos companheiros que,
com a roupa que tinham e aves que tomassem, se fossem onde a ventura os
guiasse, pois ele a não tivera de lhe viver sua amiga; e que queria ali ficar e
morrer onde matara Ana de Harfet, e só com sua saudade acompanhando o
corpo morto, pois ela o acompanhara vivendo.
Os companheiros movidos pela piedade lhe disseram todos que o não haviam de
deixar e que ali haviam de morrer e ficar com ele. O Machim, que muito lhes
agradeceu aquele amor, e mais lhe agradecera sua crueldade se só o deixaram, de
dor e paixão de sua amiga não durou mais de cinco dias. Os companheiros, que
não com pouca saudade de sua companhia o enterraram junto de sua Ana de
Harfet, puseram-lhe outra vez a cruz à cabeceira, e, deixando o mesmo crucifixo
como Machim o pusera, e estas duas sepulturas naquela terra erma, por
tristíssimo espetáculo saudoso e amoroso, meteram-se no batel em que vieram
da nau, (posto que outros querem que o fizeram do tronco da árvore, que grossa
era capaz de muitas pessoas,) e indo ter à costa da Berbéria, foram lá cativos dos
Mouros e levados a Marrocos, onde já estavam cativos os outros companheiros
da nau, tão sem prazer e sem ventura.
* No cap. II, diz de João Gonçalves e Tristão Vaz: «se foram ambos nas barcas
até à Ponte de S. Lourenço e de lá até à baía e porto de Machim, e
desembarcaram... onde acharam uma choupana derribada, e dali foram onde
agora está a Igreja de Cristo na vila de Machim, e aí acharam uma cruz em uma
árvore com letras, que diziam — Aqui chegou Machim, inglês, com tormenta, e
aqui jaz uma mulher que com ele vinha. — E tanto que eles isto viram, se
tornaram para a ilha do Porto Santo e levaram as mostras da madeira no navio
que veio de Lagos, no dito ano...»
CAP. V - Ao tempo que a nau trouxe Machim à ilha da Madeira, desgarrou da dita ilha e foi ter
a Berbéria, onde foram cativos com os outros que depois vieram da mesma companhia, — havia
em Marrocos muitos cativos, entre os quais estava um Castelhano por nome João Damores,
homem do mar e bom piloto, mui entendido na arte de navegar, o qual como lá viu estes
ingleses que da ilha vieram desgarrados quis saber delas que ventura os trouxera a Berbéria e
os chegara àquele estado de cativeiro..., e porque os tristes sempre têm algum alívio em contar
suas tristezas, eles lhe contaram a João Damores os amores de Machim miudamente:
O João Damores era homem esperto nas cousas do mar, e sobretudo curioso: —
perguntou a estes companheiros de Machim de que porto de Inglaterra
partiram e que tempo trouxeram e que derrota levaram, e em quantos dias
vieram ter àquela terra nova, e quando a nau desamarrou, que caminho
trouxeram, e em quantos dias vieram ter à costa de Berbéria. — Neste tempo
faleceu em Castela o mestre de Santiago, pessoa de grande estudo e, deixou em
seu testamento que por sua alma tirassem certo número de cativos de África, e
entre eles tiraram o piloto João Damores. E como no mesmo tempo havia
guerra entre Portugal e Castela, andava por capitão de uma armada João
Gonçalves Zarco, guardando a costa do Algarve, porque faziam nele muito
dano os Biscairthos. E andando assim na costa de Andaluzia, houve vista do
navio em que vinha de África João Damores com outros resgatados o qual
alcançou e tomou. O piloto João Damores como se viu em poder dos cristãos,
foi-se logo ao capitão e contou-lhe tudo o que havia passado e sabido dos
Ingleses e da terra nova que acharam, que pedia pertencer a el-rei de Portugal.
O capitão ficou muito alegre com o que lhe ouviu, lançou logo mão deste piloto,
e trazendo-o consigo — e fazendo a volta para o Algarve trouxe o piloto ao
infante D. Henrique, que estava neste tempo em Sagres, mandando logo a João
Gonçalves que fosse com o piloto a Lisboa oferecê-lo a el-rei seu pai... El-rei,
tanto que viu e ouviu a João Gonçalves Zarco, houve muito prazer com a nova
que ele lhe deu da terra nova e fez-lhe muita honra. E vindo neste tempo a
Lisboa o infante Dom Henrique ver-se com el-rei para este descobrimento da
ilha nova, ordenaram que o mesmo João Gonçalves a fosse a descobrir com o
piloto que tomara, pois que estava informado com os Ingleses onde demorava; e
mandando-lhe aparelhar um navio de Armada e um barinel partiram... e logo
foram demandar à ilha do Porto Santo a qual havia dois anos que era descoberta por
uns navios de castelhanos, que iam para as ilhas de Canárias, as quais, havia pouco
tempo que — uns franceses tinham achadas, e por isso o piloto tomou esta
derrota.» (Esta referência do Dr. Gaspar Frutuoso revela-nos a apagada
reminiscência da expedição do sieur Jean de Bettencourt às Canárias em 1402,
que se dirigira pelas informações do Conocimiento de todalos Reynos do frade
mendicante castelhano, dos fins de século XIV, confessadas na Histoire de la
primière descouverte et conqueste des Canaries, faite des l’an 1402, por dois
serventuários do aventureiro normando.
«Havia fama entre os navegantes e homens do mar, que desde a ilha do Porto
Santo, aparecia um negrume mui grande e espantoso... Conhecendo eles que era
terra, houveram todos muito prazer, e deram uns aos outros grandes gritos com
alegria, zombando do medo passado e do espanto que tinham, sendo aquilo ilha
e terra tão formosa. Viram logo uma praia grande e espaçosa, e o piloto pelos
sinais conheceu que era a terra dos ingleses.»
Na Historical and descriptive account of the Island of Madeira, considera T. M.
Hughes, que: «Esta história (de Machim) achou cabida nas crónicas espanholas,
nas quais aparece com significativa diferença, de ter Machim sobrevivido e chegado
a Castela muitos anos depois de cativo dos Mouros, sendo evidente intuito desta
variante o pretexto a qualquer direito da Espanha à ilha da Madeira.» (pp. 5 e 6.) O
que Hughes pressentiu, leva a deduzir que a fabricação da lenda anglo-
castelhana, fora para lisonjear a omnipotência de Carlos V, quando negociava o
casamento de seu filho Filipe II com Maria Tudor, rainha de Inglaterra. A
diferença da lenda dando como falecido Machim junto de Ana de Harfet, e
ficando ali sepultado na Madeira abandonado pelos outros companheiros, é a
versão seguida pelo Dr. Gaspar Frutuoso nas Saudades da Terra
estilisticamente romanticada. E esta diferença é a que segue, encostando-se em
toda a marcha da ação e frases sentimentais, D. Francisco Manuel de Melo, que
acobertou a sua narrativa com o nome suposto de Francisco Alcoforado, fictício
escudeiro do infante D. Henrique. Na dedicatória da Epanáfora Amorosa D.
Francisco Manuel de Melo indica uma das fontes desta narrativa: «O Doutor
Manuel Clemente, que foi pregador de três pontífices em Roma, compôs desta
história um livro em latim, que dedicou à Sant. de Clemente vit. Antes e melhor
que todos, Francisco Alcoforado, escudeiro do infante D. Henrique fez de todo
este sucesso uma relação, que ofereceu ao mesmo infante, tão cheia de singeleza
como de verdade, por ser um dos companheiros neste descobrimento: a qual
relação original eu guardo como joia preciosa vinda à minha mão por extraordinário
caminho.» O historiador Major cansou-se a imaginar genealogias de D.
Francisco Manuel de Melo para explicar heranças de papéis da família de João
Gonçalves Zarco; e Álvaro Rodrigues de Azevedo refutando essa investigação
ainda chegou a formular a hipótese de ter D. Francisco lido uma relação
manuscrita de poucas áginas do cónego Dias Leite. Mas, lidos os capítulos IV e
V, da História do Descobrimento da Madeira pelo Dr. Gaspar Frutuoso, chega-se
à evidência de que a Epanáfora Amorosa fora escrita sobre traslado da narrativa
de Frutuoso. Mas como era possível essa leitura, se o texto manuscrito e único
existia inédito na Livraria do Colégio dos Jesuítas da cidade de Ponta Delgada,
na ilha de São Miguel, e aí se conservou sempre reservado até à expulsão dos
Jesuítas pelo marquês de Pombal? Apesar deste poderoso óbice, D. Francisco
Manuel de Melo leu e tomou nota da narrativa da lenda de Machim da versão do
Dr. Gaspar Frutuoso: O modo como isto se efetuou é o extraordinário caminho
a que alude na dedicatória e que somente hoje se esclarece. D. Francisco Manuel
de Melo quebrou o degredo do Brasil, e dirigindo-se para Portugal aportou na ilha
de S. Miguel em 1658, como se sabe por Carta de 14 de junho, na qual diz:
«ventos inimigos e inimigos como os ventos, me fizeram arribar nesta ilha de
São Miguel, depois de 84 dias de molestíssima viagem. Eu a passei com pouca
saúde, porque vim do Brasil sem ela. Mas o agasalho do governador desta terra,
Luís Velho, fará ressuscitar os mortos, quanto mais convalescer os doentes.
Aqui fico... desejando de achar via segura para me ir a provar a ventura dessa
Corte...* Pelas suas íntimas relações com o governador, os Jesuítas acercaram-se
do antigo aluno do Colégio de Santo Antão, por irmandade, e lhe mostraram o
tesouro inédito de Frutuoso de que eram depositários perpétuos. Como à ida
para o degredo do Brasil, D. Francisco Manuel estivera na ilha da Madeira, um
mês, leu de curiosidade o poema da Insulana do seu amigo e velho cónego da Sé
do Funchal Manuel Tomás, que no episódio do livro 11, relata a lenda de
Machim seguindo os traços de Frutuoso. D. Francisco Manuel cita-o
efetivamente, ocultando por conveniência jesuítica o extraordinário caminho por
onde lhe viera aquela tradição.
As relações de similaridade da Epanáfora Amorosa com a Insulana, já apontadas
desde 1845 por Hughes; e comprovadas pelo Dr. Álvaro Rodrigues de Azevedo
em 1873, bem fundamentam uma fonte comum aos dois poetas, que se
inspiraram de uma narrativa inédita das Saudades da Terra. O erudito anotador
desta crónica, acha que a publicação da Insulana, dedicada em 1643 ao
governador da ilha da Madeira, D. João de Meneses, «oculto, mas firme inimigo
do domínio dos Filipes», que não é aventuroso que tivesse o pensamento
reservado de nos abrigarmos ao protetorado de Inglaterra, para nos libertarmos
da tirania dos Filipes, ou (quem sabe?) talvez o intuito de predispor este
arquipélago a desmembrar-se da metrópole...» A suposição pode fortificar-se
por uma circunstância histórica; em 1634 casou D. João IV com uma fidalga
castelhana por negociação do conde-duque de Olivares, a aprazimento de Filipe
IV. Todos os que alimentavam as esperanças da libertação da autonomia de
Portugal, sempre sustentadas pelo velho duque de Bragança D. Teodósio,
sentiram-nas completamente perdidas; e atendendo ao ódio castelhano, a
emancipação ou desmembramento do Arquipélago era-lhes ainda um refúgio.
Levado neste ponto de vista quis o Dr. Álvaro Rodrigues de Azevedo considerar
a Epanáfora Amorosa de D. Francisco Manuel, impressa com outras narrativas
históricas em 1660, como intencionalmente publicada para auxiliar a negociação
do casamento da infanta D. Catarina com Carlos it de Inglaterra, levando ela
como joia do seu dote a ilha da Madeira: «Com efeito, enquanto D. Luísa
mandava em 1660, para a Câmara do Funchal, uma carta apócrifa da doação da
ilha de Madeira à infanta D. Catarina, datada de 1656, — D. Francisco Manuel
publicava nesse mesmo ano de 1660 as Epanáforas e a meio delas a III;
supositícia como essa doação, como ela antedatada também ainda do tempo de
D. João IV, enquanto a regente guardava a mesma doação como extremo
recurso, — Melo historiava o descobrimento da mesma ilha como de origem
inglesa, a fim de tornar menos duro ‘ao pundonor português a alienação dela à
Inglaterra, e ainda a preço do renome do seu progenitor João Gonçalves Zarco,
serenar quanto possível a paixão dos povos se o sacrifício da Flor do Oceano
chegara a ser consumado. — Porém Melo com tal arte debuxou o quadro, que
os toques com que prodigiou o caso de Machim, e pelos quais o imbuiu por
verdadeiro ao vulgo, são em si mesmos implícitos protestos da sua nobre e
ilustrada pena contra a pretendida realidade da lenda; foram judicioso ardil do
hábil escritor em auxílio de outro ardil patriótico da rainha.» (Ed. Saud. p. 386.)
Aqui o Dr. Azevedo escreve como advogado; o casamento de D. Catarina de
Bragança com Carlos II foi feito por assim convir a Luís XIV no plano da sua
política; a redação da Epanáfora Amorosa depois do conhecimento do autógrafo
das Saudades da Terra, em 1658, foi anterior às negociações do casamento da
infanta, uma das quatro princesas em que Luís XIV tinha de escolher a
consorte; e além de tudo, D. Francisco Manuel de Melo tendo quebrantado o
degredo do Brasil, não podia entender-se com a regente, que sempre o hostilizara
junto de D. João sendo, aliás, em 1662 reabilitado pelo conde de Castelo
Melhor, ministro que acutou no termo da regência imposto pela maioridade de
D. Afonso VI. Camilo Castelo Branco no seu estudo A Lenda de Machim —
Reflexões à Vida do Infante D. Henrique por Henry Major, rejeita a interpretação
de Azevedo: «Parece-me que D. Francisco Manuel de Melo não teve o menor
intuito político na formação do seu romance histórico, nem se me afigura que
ele se prestasse a iludir o público sobre assunto de tamanha gravidade, pondo
uma lenda a cobrir uma infâmia da rainha, que para salvar a dinastia empobrecia
um reino desfalcando-o vergonhosamente para comprar um genro poderoso. A
meu ver o motivo que teve a vítima do déspota para escrever a Epanáfora é de
uma simplicidade tão verosímil como a dos espíritos atribulados que repousam
em imagens de um sentimento entre amoroso e trágico. Ele mesmo o explica ao
amigo a quem a oferece: — Vendo-me agora nesta solidão, a cujo favor vim
fugindo da justiça ou da injustiça do povoado, me pus a discorrer vagarosamente
sobre de que maneira eu poderia satisfazer aquela íntima promessa, escrevendo
a relação de algum sucesso grande que pertencesse a este reino, precedido ou
ilustrado de afetos amorosos.» (Sentimentalismo e Hist.) Não era para Belas, que
D. Francisco Manuel fugia da justiça ou da injustiça do povoado; mas sim do
degredo perpétuo na Baía, vindo parar ao fim de oitenta dias de borrascas na ilha
de São Miguel, sendo ali na cidade de Ponta Delgada, onde folheou o autógrafo
das Saudades da Terra, do Doutor Gaspar Frutuoso, deixado aos Jesuítas, que o
guardavam no seu Colégio. Major considerando a Epanáfora Amorosa como
exclusiva obra de D. Francisco Manuel e por ele parafraseada sobre uma ignota
relação, dava-lhe valor histórico por desconhecer o protótipo da lenda que o Dr.
Frutuoso romanceou nas Saudades da Terra. Nenhum dos críticos da lenda de
Machim considera esta conexão coma Epanáfora; nem tão-pouco apontam as
cartas geográficas, em que o arquipélago da Madeira vem apontado e
denominadas as suas ilhas no tempo de D. Afonso IV, circunstância que dissolve
a lenda infantista. O que na lenda se evidencia é o intuito de unificar a glória
marítima dos Ingleses e Castelhanos apagando as iniciativas dos navegadores
portugueses do século XIV. Que facto histórico determinaria uma tão especial
lisonja? Quando Fernando e Isabel realizavam a unidade imperial ibérica,
casaram sua quarta filha Catarina de Aragão com o príncipe de Gales, Artur,
filho de Henrique VII, de Inglaterra. Tendo falecido o príncipe ao fim de cinco
meses, o rei de Inglaterra para não ter de restituir o dote da princesa espanhola,
casou a nora com o seu filho imediato, que foi Henrique VIII que a coroou
como rainha. Desta união anglo-castelhana nasceu Maria Tudor, que sendo
rainha de Inglaterra veio a casar com Filipe II, conforme os planos imperialistas
de Carlos V, que imprimiu na política peninsular o imperialismo germânico de
seu pai. Não é para estranhar que o alemão Valentim Fernandes (de Morávia),
folheasse um capítulo de geografia maravilhosa explorando-o como impressor e
compilador de viagens extraordinárias e relações manuscritas. Coincidia a
grandeza marítima dos dois países com o apagamento de Portugal na História, e
era essa corrente que o impressor alemão servia evemerizando lendas românticas
com banais situações fantásticas que se tornaram narrativas novelescas em
Gaspar Frutuoso, Manuel Tomás e D. Francisco Manuel de Melo.
Refutando judiciosa e cabalmente os argumentos com que Henry Major
pretendia tomar documento histórico a lenda de Machim fantasiada na
Epanáfora Amorosa, diz Camilo: «Nós, os Portugueses, trabalhamos há
cinquenta anos para expurgarmos da história os Laimundos, Ortegas e os
Pedros Alfardos. Permita o Sr. H. Major que refuguemos dos vossos estudos
sérios o historiador Valentim Fernandes e mais o historiador Francisco
Alcoforado.» (Ob. cit. ed. p. 257, 1914).

* Prestage. Esboço, p. 291; erra no facto de atribuir o regresso a licença concedida

por D. Luísa de Gusmão (p. 263).


PARTE III
LENDAS, PATRANHAS
E FÁBULAS
A LENDA DA TERRA

No princípio do mundo, quando o homem cavava a terra, a terra abria bocas e


gritava. O homem queixou-se ao Senhor, e o Senhor disse então à terra:
— Cala-te, que tudo criarás e tudo comerás.

(Guarda, Mondim da Beira, etc.)
LENDA DOS RIOS

Há dois rios ao pé de Mirandela, chamados Tuela e Rabaçal. No tempo em que


os rios falavam, dizia o rio Tuela:
Arreda, arreda,
Rio Tuela;
Se não quiseres arredar
Aí vem o Rabaçal
Que ele te fará arredar.
Porque o rio Rabaçal leva mais água do que o Tuela.

(Torre de D. Chama)
LENDA DO MILHO E DO CENTEIO

Quando se acaba de gastar o milho, começa a colheita do centeio barroso, que se


semeia em fevereiro e só se malha em julho. De uma vez o milho disse-lhe,
chasqueando-o desta sua demora:
— Gandarela, gandarela,
Que andas seis meses na terra!
Respondeu-lhe o centeio:
«Cala-te, meu reboludo,
Quanto te acabas sou eu que acudo.

(Airão)

VARIANTE

Disse o Trigo para o Centeio:


Cala-te lá, Centeio, centeiaço;
Que tu não fazes as funções que eu faço.

Retrucou o Centeio para o Trigo:


Cala-te lá, Trigo aspadanudo,
Que não acodes ao que eu acudo.

Diz dali a Aveia:


Eu sou a Aveia, Negra e feia;
Mas quem me tem em casa
Não se deita sem ceia.

(Vila Nova de Gaia. — Leite de Vasconcelos, Trad., p. 124)
TEJO, DOURO E GUADIANA

Havia três rios irmãos, o Tejo, o Guadiana e o Douro, que combinaram deitar-
se a dormir, dizendo que o primeiro que acordasse partisse para o mar. O
Guadiana foi o primeiro que acordou; escolheu lindos sítios e partiu de seu
vagar. O Tejo acordou depois, e como queria chegar primeiro ao mar, largou
mais depressa, e já as suas margens não são tão belas como as daquele. O Douro
foi o último que acordou, por isso rompeu por montes e vales, sem se importar
com a escolha, e eis porque as suas margens são tristes e pedregosas.

(Mondim da Beira, Famalicão, Porto)


LENDA DA LUA E DA ÁGUA

Quando Deus foi fazer o Inferno, deixou Luz-Vela (Lusbel=Lucifer) na cadeira


dele; quando veio não lhe quis Luz-Vela restituir a cadeira, alegando que o
Senhor lha tinha dado.
Dizia o Senhor:
— A cadeira é minha; emprestei-ta, não ta dei.
Luz-Vela ateimava muito e pôs uma demanda com o Senhor. O Senhor
apresentou a Lua, a Água e o Sol como testemunhas de que tinha emprestado e
não dado a cadeira. A Lua e a Água juraram falso; o Sol jurou a verdade, dizendo
ao Senhor:
— O que é dado, é dado; o que é vendido é vendido; o que é emprestado, é
emprestado. Portanto, a cadeira é vossa.
Deus então castigou a Lua (que era tão linda como o Sol) tirando-lhe os raios
para os dar ao Sol; castigou a Água, obrigando-a a correr sempre, sem nunca
estar queda.

(Famalicão)
A LENDA DAS ADUELAS E DOS
ARCOS DA PIPA

Diziam as aduelas da pipa: — Muito fortes somos nós, que sustemos o vinho.
Responderam os arcos: — Mais fortes somos nós que em todas vós temos mão.
Nisto começa a falar o vime, que liava os arcos de loureiro:
Mas se eu tiro a minha mão,
Vai-se o vinho pelo chão.

(Airão)
A LENDA DAS MANCHAS DA LUA

Uma vez andava um homem a trabalhar ao domingo apanhando silvas. Apareceu


Deus e disse-lhe:
— Então, andas a trabalhar ao domingo?
— Senhor, aqui ninguém me vê neste canto.
— Pois deixa estar, que toda a gente te há de ver.
Depois Deus colocou na Lua o homem com o molho de silvas às costas. É ele
que, andando lá, produz as manchas.

(Freixo, Carrazeda de Ansiães, etc. — L. de Vasconcelos, Vanguarda n.º 34)

NOTA: Stanislao Prato estudou largamente esta lenda no opúsculo L’Uomo


nella Luna, como complemento ao ensaio crítico sobre Caino e le Spine secondo
Dante e la tradizione popolare; nela cita versões de diversos países: Contes
populaires de la Haute Bretagne, de Paul Sebilot, 2.ª série n.º 64; na Melusine, de
Gaidoz e Rolland, pp. 403-6, n.º 5; nos Norddeutsche Sagen, de Kuhn e Schwartz,
n.º 55; nas Seize superstitions populaires de la Gascogne, de Bladé, n.º 4, p. 10. Na
tradição popular açoriana é um pescador que andando de noite às lapas, é
arrebatado para a Lua. A lenda deriva-se da crença gaulesa e cítica da
transmigração das almas para a Lua. (Vid. Belloguet, Ethnogénie gauloise, t. III.
p. 184.) A ideia de castigo afrontoso é uma reação contra o antigo respeito da
crença religiosa.

OUTRA
A Lua era mais linda que o Sol. O Sol queria casar com ela, mas a Lua não lhe
dava cavaco. Ele então despeitado atirou-lhe à face com cinza, e ela a ele com
agulhas de costura.
A Lua ficou sem brilho, e o Sol cheio de raios. Ainda nos eclipses é o Sol que
batalha com a Lua.

(Porto, Vimieiro, Leça de Balio, Famalicão, Carrazeda, Torre de D. Chama. —


Ibidem)

NOTA: Pedroso, nas Superstições Populares Portuguesas, coligiu esta lenda como
supersticiosa, sob o n.º 578: «O Sol passou pela Lua atirou-lhe com uma mão
cheia de terra; por isso ela ficou escura e com manchas.»
LENDAS DE FEVEREIRO

Uma vez o Fevereiro pediu a março uma tigela de papas; disse o Março:
— Só se tu me emprestares três dias.
Fevereiro caiu nessa, e daí em diante ficou com vinte e oito dias e o Março com
trinta e um.

Dizia a velha dos bezerrinhos:


— Vai-te, meu fevereiro curto,
Que cá ficam os meus bezerrinhos
Todos oito.

Diz agora ele:


— Ora, cala-te tu,
Que aí vem meu irmão Março,
Que dos oito ficarão quatro.
(Foz)
Fevereiro,
Enganou a mãe
Ao soalheiro.

(Adágio do P.e Delicado)

NOTA: Na Revista de Etnologia e Glotologia, vêm paradigmas espanhóis, e é


conhecida na França meridional, na Suíça, Inglaterra, Escócia, Itália; vid. pp.
103 a 108. Saco Arce traz na sua Gramática Galega este ditado: Febreiriño corto /
Cós teus dias vinteoito, / Si durarás mais quatro / Non paraba can nin gato.
Na tradição popular espanhola de Guadalcanal e Sevilha também se encontra
esta lenda em que figura São Pedro, que mete o dinheiro em certo lugar do
Perro de las especias. (Ap. Rodriguez Marin, Cantos populares españoles, t. IV. p.
382.)
LENDA DE SALOMÃO

O rei Salomão era tão esperto, que mesmo de cima de uma palheira sabia ver
tudo o que há por esses céus além. Vai de uma vez a mãe tirou-lhe a palheira
debaixo dos pés, quando ele estava a ver as estrelas, e ele parou a falar consigo:
— Temos caso! Ou o céu se arredou, ou a terra se afundou.

(Açores)
LENDA DO CHORÃO
O chorão protestou com Deus que havia de chegar ao céu. O Senhor disse-lhe,
que nunca lá havia de chegar, porque quanto mais crescesse mais havia de virar
para o chão.
(Famalicão)
LENDA DA LENHA
Quando se queimava a lenha, gritava; foi por isso que o Senhor lhe tirou a fala
para não comover a gente.
LENDA DA OVELHA

No princípio do mundo, a ovelha falava. Ela estava presa, mas queria que lhe
abrissem a porta, porque tinha chegado março e já havia que comer; e disse
então:
No março, onde quer eu passo;
No abril, abre a porta e deixa-me ir;
Em maio, onde quer eu caio.
LENDA DO CÃO

O cão pediu ao lobo para o ensinar a uivar. E o lobo pediu-lhe que o ensinasse a
farejar. O lobo ensinou-o a uivar mas quando quis que o ensinasse a farejar, o
cão disse:
Se te eu ensinasse a farejar,
À cama me irias matar.

(Guarda)
LENDA DA SERPENTE, DO SAPO E
DO SARDÃO

No princípio falavam a serpente, o sardão, o sapo, etc. Deus perguntou-lhes se


queriam ter pernas e não falar. A serpente disse que não queria ter pernas, mas
ferrar. O sardão disse que queria ter pernas e não ferrar mas ser avesso às
mulheres. O sapo disse que não queria ter pernas, nem ferrar, mas ter o corpo
feio e os olhos bonitos.

(Leça do Balio)
LENDA DA CORUJA

Havia um pássaro sem penas, chamado o pito-nu. A coruja ficou por fiadora
para que todas as outras aves emprestassem ao pito-nu penas para ele se vestir.
Mas o pito-nu, assim que se agarrou vestido, fugiu. A coruja nunca aparece de
dia com medo de que as outras aves a piquem, pelo facto de ela não poder
restituir as penas do pito-nu.

(Do pé da Guarda)
LENDA DO SAPO

O sapo sustenta-se de terra que come, mas come mui poucochinho de cada vez
com medo que ela se acabe.

(Airão — Minho)
PORQUE OS CÃES SE CHEIRAM

Os cães deram uma vez um banquete entre si; como faltasse a pimenta ofereceu-
se um deles para ir de uma carreira à cidade buscá-la. Os outros cães esperaram
que esperaram e o mensageiro não aparecia; por fim resolvem ir cada um à sua
procura, e daqui resultou que quando algum cão se encontra com outro sempre
se cheiram para saberem se é o que foi buscar a pimenta.
(Braga e Ilha de S. Miguel)
OS TORDOS E AS ANDORINHAS

«...faltam aqui os tordos, os quais por São Miguel vêm a Portugal, e então se vão
de ela as andorinhas não se sabe para onde, pois se não veem na África; parece
que irão para algumas ilhas, ou terras, que estarão por descobrirem, e costumam
dizer, que encontrando no caminho as andorinhas lhe dizem:
— Donde vindes, loucos,
Que fostes muitos e vindes poucos?
Porque os caçaram lá onde eles foram, por serem bons para comer; e que as
andorinhas não são, e por isso as não matam; e os tordos respondem:
Donde vindes, utas,
Que fostes poucas e vindes muitas?
Porque eram já filhos, que cá em Portugal criaram no verão.»

(Gaspar Frutuoso, Saudades da Terra, cap. 55, — Arqu. dos Açores, vol. XII, p.
156.)
LENDA DAS ANDORINHAS E DOS
TARALHÕES

Dizem os taralhões:
— Donde vindes, andorinhas,
Que fostes poucas e muitas vindes?

Replicam elas:
— Donde vindes, taralhões loucos,
Que fostes muitos, e vindes poucos?
CONTO DA CODORNIZ
(VOZES DE ANIMAIS)

A codorniz passando um dia por certo sítio, viu o sapo à porta do seu covil, e
como ele só tivesse visível a cabeça, a codorniz encantou-se dos olhos dele e
pediu-lhe que saísse cá fora; o sapo obedeceu, mas a codorniz aterrou-se tanto
com a figura dele que se retirou, bradando: Tem-te, lá! Tem-te lá! Daqui
acredita-se que veio a forma do seu canto.

(Paços de Ferreira)
ONOMATOPEIAS

Canta o galo:
— Quem virá lá?
Outro galo:
— Um cavalheiro.

A galinha:
— Jantará cá?
O frango:
— Triste de mim.
O franganito:
— Tripas ao sol.

(Airão)
O CUCO E A POUPA

A poupa foi uma vez chamar o cuco para a ajudar a fazer certo trabalho; disse o
cuco:
Eu, se estiver suão,
Vou-te dar uma demão;
E se estiver nevoeiro
Quero ir para o meu cuqueiro.
LENDA DOS ANIMAIS

Quando os animais falavam, a pulga disse:


Que a matassem,
Mas que a não estorcegassem.

(Oliveira de Azeméis — Leite de Vasconcelos, Tradições, p. 139)

A galinha, referindo-se ao milho, disse:


Que muito se medisse, e nenhum se vendesse.

(Penafiel — Ibid., p. 154)


O burro disse:
Que tanto nevasse,
Que até as ventas se lhe arreganhasse.

(Carregosa do Douro — Ib., 176)


O boi disse:
Que tanto chovesse,
Que até os cornos lhe amolecesse.

(Penafiel — Ib., 177)

A cabra disse:
Que tanto sol raiasse,
Que até as pedras rachasse.

(Ib., p. 180)
Disse a ovelha:
Que tanto ventasse,
Que até a lã lhe voasse.

(Penafiel, Gaia — Ib., p. 182)
VOZ DO CORVO

Uma vez andavam uns pedreiros no monte a arrigar um penedo, o que muito
lhes custava; passou um corvo por cima e disse.
— Scaba, scaba, scaba (exeava).
Daqui lhe veio a sua feia voz.

(Paços de Ferreira — Ib., p. 158)
LENDA DO SAPO E DA TOUPEIRA

O sapo em outro tempo tinha rabo, e a toupeira tinha olhos. Depois fizeram
uma troca entre si; a toupeira ficou cega mas em paga com cauda, e o sapo
desrabado ficou com uns olhos lindos.

(Chaves — Ap. Leite de Vasconcelos)

NOTA: Vem como forma de superstição nas Tradições Populares Portuguesas, de


C. Pedroso, n.º 577.
A PROVA DOS LOBOS

Uma vez uns lobos tinham enterrado um carneiro para o comerem em certo dia;
mas um deles foi às escondidas e comeu-o sozinho; os outros, quando viram que
o carneiro tinha desaparecido, disseram que haviam de saltar todos por cima de
um carro com estadulhos, que o criminoso ficaria espetado nos estadulhos.
Saltaram, e o criminoso ficou efetivamente espetado nos paus.

(Mondim da Beira — Leite de Vasconcelos, Tradições, p. 187)


O GORAZ

O goraz tem duas malhas, uma de cada lado da cabeça; é o sinal dos dedos de São
Pedro, quando um dia que andava pescando apanhou este peixe.

(Pedroso, Vária, n.º 446 — Leite de Vasconcelos, Trad., 188)


O GRITO DO CÃO

Abel tinha um cão, que estimava muito; quando Caim matou Abel, e o cão foi
pelo mundo fora a dizer:
— Caim, Caim!
Daqui o grito do cão, quando lhe batem.

(Mafra — L. Vasc. ib., 197)


AS ORELHAS DO BURRO

Quando Deus criou os animais, deu o nome a todos; daí a dias veio verificar se
eles se lembravam ainda dos seus nomes. Todos se lembravam, menos o burro;
Deus então puxou-lhe muito as orelhas, e disse-lhe:
— Burro, burro! sempre hás de ser burro!

(Mafra)
A CRIAÇÃO DA MULHER

Quando Deus quis formar Eva, tirou uma costela de Adão, mas veio um cão
(raposa, gato, etc.) e levou a costela. Deus correu atrás dele, e agarrando-lhe pela
cauda fez dela a mulher, dizendo:
Tanto vale fazer Eva
De uma costela de Adão.
Como de um rabo de cão.

(Ap. Leite de Vasconcelos, Vanguarda, n.º 39)
A OBRA DE S. PEDRO

Andava uma mulher a bulhar com o Diabo. Deus mandou São Pedro apartá-los.
O santo foi, cortou a cabeça a ambos, e voltou. O Senhor perguntou-lhe:
— Ó Pedro, tu que fizeste?
— Não se queriam acomodar, e eu peguei e cortei-lhes as cabeças.
— Eu não te mandei fazer isso. Torna lá.
São Pedro foi, mas ao colocar as cabeças nos troncos, enganou-se e colocou na
mulher a cabeça do Diabo, e neste a da mulher.

(Ibidem)
NOTA: Gubernatis, na Mitologia Zoológica, t. I, p. 325, explica o sentido mítico
das lendas da troca de cabeças.
O CANTO DO GALO

Quando os Apóstolos estavam à mesa, afirmaram eles que Cristo não era Deus;
e Cristo respondeu:
— Que tanto era Deus como o galo falar.
Foi então que o galo disse: Coroado!
E ainda hoje é a sua linguagem.

(Penafiel)
LENDA DA CODORNIZ

Quando a Virgem ia de Belém para Nazaré, a codorniz levantou o voo e fez


bulha; a Senhora amaldiçoou-a para que não pudesse pousar em árvore
nenhuma.

(Cabo Verde)

OUTRA
Indo Nossa Senhora a fugir para o Egito com o seu filho, a codorniz levando o
voo dianteiro, gritava: Cá vai! A Senhora vendo que ela a denunciava,
condenou-a a andar rasteira, sem erguer voo nem sorrir para o Sol.

(Açores)


LENDA DA ARVELINHA

Quando ia de fugida para o Egito a Virgem com o Menino, a arvelinha ia atrás


apagando as pegadas com o rabinho. Então Nossa Senhora abençoou-a, dando-
lhe o poder de matar o milhafre metendo-se debaixo das asas.

(Açores)
O BALIDO DA OVELHA

Quando a Virgem ia para o Egito, andava a ovelha no monte a berrar: Belém!


Belém! A Virgem não queria que ela berrasse para não se saber que ela ia ali, e a
ovelha continuava sempre a dizer aquilo. A Virgem Maria amaldiçoou então a
ovelha, ficando esta condenada a sempre berrar.

(Famalicão)
NOSSA SENHORA E A SOLHA

Estando Nossa Senhora à beira do rio, viu uma solha e perguntou-lhe:


— Ó solha! a maré enche ou vaza?
A solha pôs a boca à banda, e repetiu com escárnio:
— Ó solha! a maré enche ou vaza? Nossa Senhora disse:
— Assim fiques sempre com a boca à banda.

(Foz e Porto — Ap. Positivismo t. IV, , p. 225.)


A ROMARIA DA ABADIA

Deus mandou a Senhora para o deserto, e ela não queria ir. Deus disse-lhe
então:
— Vai, Maria. Todas as romarias se hão de renovar e acabar, e a tua há de ficar.

(Famalicão)
LENDA DAS GIESTAS

Quando Cristo veio ao mundo, foi procurado pelos Judeus para o matarem, e
como estes o vissem entrar para uma casa, colocaram-lhe à porta um ramo de
giesta, a fim de no dia seguinte o prenderem.
Nesse dia, porém todas as casas da povoação apareceram marcadas e os Judeus
não puderam dar com ele.

(Vanguarda, n.º 20)


LENDA DO MANTO DE NOSSA
SENHORA

Estava Nossa Senhora em sua casa, quando lhe vieram dizer:


— Vinde ver o vosso amado Filho, que vem pela Rua da Amargura com a cruz
às costas.
Nossa Senhora arranjou-se à pressa e disse para Santa Isabel:
— Prima, dá-me dali daquela arca o meu manto.
Santa Isabel foi e perguntou:
— Qual quereis, o manto roxo ou o manto encarnado?
Responde-lhe a Senhora:
— Ó bêbada! Eu estou cá agora para mantos encarnados!

(Porto)
LENDA DOS TREMOÇOS

A Virgem passava por um campo de tremoços. Como eles rugiram, e a Virgem


não querendo que eles fizessem barulho, disse-lhes:
— Amaldiçoados sejais vós! Quem vos comer nunca se satisfará.

(Famalicão — Vanguarda, n.º 50)

NOTA: Na Itália e Espanha são frequentes estas lendas, último vestígio da


elaboração dos Evangelhos populares a que a Igreja chama apócrifos. Pitré
coligiu-as sob o título de Ciclo Legendário Evangélico. Na Andaluzia este género
de contos tem um nome popular; chama-se-lhes Susedios e Suseios, considerando-
os não como contos mas Sucedidos (acontecidos). Rodriguez Marin coligiu Cinco
Contezuelos Populares Andaluzes, em que São Pedro é o herói, uma espécie de
Sancho.
LENDA DE NOSSA SENHORA

A Virgem passava por um campo de trigo e perguntou aos lavradores:


— Que semeais?
— Semeamos pedras.
— Pedras vos nasçam! Daqui a três dias vinde quebrar os penedos. E continuou
a andar. Logo ao outro dia o campo apareceu coberto de penedos.
Chegou a outro campo, onde andava outra sementeira. Perguntou:
— Que semeais?
— Trigo.
— Trigo vos nasça. Daqui a três dias vinde segá-lo.
Dali a três dias vieram os Judeus e perguntaram aos lavradores:
— Vistes aqui passar uma mulher com um menino, montada numa jumentinha?
— Vimos. Andávamos nós a semear este trigo.
— Ah! isso então já foi há muito. Podemos ir embora.
Assim escapou a Virgem.

(Id. ibid.)

NOTA: «Os pinhões também foram amaldiçoados por denunciarem a


passagem da Senhora com barulho. Os fetos igualmente foram amaldiçoados
pelo mesmo motivo; e esses então ficaram com as mãos na cabeça (as folhas
voltadas para cima). Sob o n.º 614 traz a lenda da origem do Gato — nascido da
baba do leão.
A SUBMERSÃO DAS CIDADES

Na ilha de S. Miguel existe uma lagoa das Sete Cidades. A tradição da


submersão de cidades em lagos é frequente na Península Hispânica, explicando-
se pela seguinte forma:
Nossa Senhora foi à cidade de Valverde vestida de pobre pedir esmola; como a
trataram com crueza, Valverde afundou-se na lagoa do Carregal.

(Galiza)

NOTA: Esta lenda repete-se na Galiza, substituindo à Virgem São Tiago, e


localiza-se em outras lagoas, como a de Doniños e Riega; o historiador Manuel
Morguia considera esta crença da submersão de Valverde como a tradição
inconsciente e remota da passagem das cidades lacustres para as aldeias
territoriais. A lenda da condenação é comum a outras cidades de origem lacustre,
como a Ars afundada no lago de Paradru. Diz o Dr. Anselmo de Andrade, de
quem tomámos estes factos: «Na tradição portuguesa encontra-se também
mencionado este género de pecado e de expiação. Uma cidade transmontana,
que negou hospitalidade a um santo, teria sofrido o castigo de ser sepultada nas
águas exatamente como as ímpias cidades espanholas.» Ciência Pré-Histórica —
As habitações lacustres, p. 17, nota.
ORIGEM DO NOME DE LISBOA

Diz La Martinière, no seu Dicionário Geográfico:


«A tradição afirma que Ulisses, depois da destruição de Troia, viera a estes
distritos e que lançara os primeiros fundamentos de Lisboa, que se ficou
chamando Ulissipone, ou Ulissipo ou mesmo Olissipo: mas pode ser que a
parecença dos nomes ocasionasse esta opinião. Com efeito além de ser difícil
provar que Ulisses saíra do Mediterrâneo, o verdadeiro nome da cidade não era
nenhum daqueles, mas sim Olissipo, como se vê de uma inscrição achada em
Lisboa.» — Ainda hoje esta tradição medieval é corrente entre os fadistas, há
bastantes cantigas jocosas a Ulisses, como fundador de Lisboa.
OUTRA ORIGEM DO NOME DE
LISBOA

Um padre espanhol, querendo refutar o Teatro Crítico, de Feijó, diz que o nome
de Lisboa vem do grego olis e hyppon, tirado do que refere Plínio acerca das
ligeiras éguas, que concebiam do vento. (Pan., t. IV, p. 18, col. 2.)
A MOURA SALUQUIA E O NOME DA
VILA

«Querem alguns que Moura fosse fundada sobre as ruínas da antiga Araucitana:
seja porém como for, o nome da vila indica origem posterior a Gregos,
Romanos e Godos. — Conta-se que em tempo de el-rei Dom Afonso
Henriques, sendo possuidora desta povoação e seu castelo uma dona árabe
chamada Saluquia, filha de Buaçon, senhor de várias terras do Alentejo, tratara
este de se casar com um mouro chamado Brafama, alcaide do castelo de Aroche,
dez léguas distante de Moura; o qual vindo celebrar as núpcias foi acometido no
trânsito por dois fidalgos, Álvaro e Pero Rodrigues, ascendentes da nobre
família dos Mouras, que o mataram num vale, a uma légua da vila, que em
memória do caso se chamava Brafama, ainda no tempo do P.e Carvalho, isto é,
no princípio do século passado. Diz mais a tradição, que os fidalgos com sua
gente se disfarçaram em trajos mouriscos e caminharam, fingindo comitiva da
boda para a fortaleza, onde a moura esperava o noivo a uma janela que deitava
para o campo, mas assim que ao entrarem os hóspedes no castelo se descobriu o
engano, precipitou-se de uma torre abaixo para não cair cativa. Daqui vem ter a
vila por armas uma mulher ao pé de uma torre, em alusão à morte de Saluquia; e
com este brasão de armas combina o letreiro de uma sepultura, que está na igreja
do castelo, e que declara jazerem ali sepultados os cavaleiros, que tomaram esta
terra aos Mouros.» (Panorama, t. IV. p. 4, 1840.)
PENHOR SAGRADO

Governando a Índia António Moniz Barreto, e querendo socorrer a fortaleza de


Malaca cercada pelos Achéns, mandou pedir a Goa vinte mil pardaus
emprestados, dando à cidade o seu filho Duarte Moniz, em penhor da quantia.
A cidade aceitou o penhor, que era um menino de sete para oito anos. — Este
mesmo facto se conta de Balduíno II, que empenhou seu filho aos Venezianos,
por uma grande soma com que salvou o seu reino de Constantinopla.
A ABÓBADA DO MOSTEIRO DA
BATALHA

Da Sala do Capítulo, diz Frei Luís de Sousa: «Sendo quadrada, e tendo 340
palmos em âmbito, a 85 por cada lanço, é fechada de abóbada de cantaria, sem
coluna, nem esteio, nem cousa que a sustente, nem mais repuxo da banda de
fora, que a companhia do edifício que lhe fica dos lados. Assim está em forma,
que a quem põe os olhos no alto, engana, e faz parecer pela grandeza da casa,
que se sustenta sem côncavo. É fama que ao tempo que se fabricava caiu duas
vezes ao tirar dos simples, com dano de oficiais; e el-rei, desejando que todavia
ficasse a casa sem o desar das colunas ao meio, prometeu mercês ao arquiteto, as
quais o fizeram espertar de sorte que, tornando-a a fechar, afirmou que teria
melhor sucesso; porém ao tirar a madeira dos simples, dizem que não quis el-rei
arriscar os oficiais, e mandou vir das prisões do Reino alguns homens, que
estavam sentenciados a grandes penas, para que sobre eles caísse o terceiro dano
quando sucedesse.»

(Tal é o fundamento do romance a Abóbada de A. Herculano, no t. II das Lendas e


Narrativas.)
OS CARRILHÕES DE MAFRA

«Corre, por tradição, que tendo o Monarca fundador encomendado (para


Liège) primeiro só um carrilhão com as dimensões e requisitos que desejava
tivesse, lhe responderam com o preço, acrescentando que era obra mui rica e
dispendiosa, como quem inculcava que os recursos da coroa portuguesa não
suportavam tamanho dispêndio. Dom João V, que sentiu ofendido o seu amor
próprio, e julgou menoscabada a sua grandeza, replicou que, visto a obra ser mais
barata do que pensara, fizessem em vez de um daqueles, dois carrilhões.»

(Panorama, t. IV, p. 61.)


CONTO APLICADO

«Neste campo se acham muitas vezes umas pedrinhas como chícharos e grãos;
contam os da terra, e se traz em prática, que Nossa Senhora indo para o Egito,
passando por este lugar andava um lavrador semeando chícharos, e que a
Senhora lhe perguntara, que semeava? E ele lhe respondera, que semeava
pedras; e a Senhora repetira: — pedras te nasçam. Ainda que parece fábula e
conto de velhos, bem me lembra ter já visto em duas ou três partes pintada esta
história, ainda que a contam de muitas maneiras; mas na verdade eu vi algumas
vezes aos peregrinos colher aquelas pedrinhas com muita devoção, e sem ela as
colhi de companhia com eles, vendo-lhas colher, e trouxe comigo ao Reino.»

(Frei Pantaleão de Aveiro, Itiner., p. 292.)


A TORRE DO LADRÃO

«Lembra-me que quando vão de Tomar para Coimbra, entre Ceras e a Venda
do Pereiro, nos mostram uma Torre à mão direita, desviada do caminho, na qual
dizem que morava um ladrão, que salteava os caminhantes: pouco vai em crer ou
não ser verdade a história que sobre isso nos contam; mas todavia muitos têm ser
verdadeira, vendo os indícios tão manifestos.»

(Frei Pantaleão de Aveiro, Itiner., p. 90.)


NÚMERO FATÍDICO

Estava-se à missa na Amêndoa.


Um vulto de homem (diabo?) entrou na igreja tendo na mão uma cabaça. Deu
uma volta, subiu à capela-mor e pôs-se a beber. A garganta era transparente e
via-se-lhe correr o líquido pela garganta abaixo. Desceu e quase todos foram
atrás dele para o ver ou matar. No templo ficaram só onze pessoas. O vulto foi
até um sítio (que é hoje um charco) onde se sumiu e com ele os que o seguiam.
Nunca mais ali nasceu erva. Daí vem que, de então, na Amêndoa só podem viver
onze moradores. Quando há mais passam para defronte, para Vila de Rei, ou
morrem.

(Comunicação do Dr. Marcelino de Mesquita.)
MARIA EXTRAVANDIA
(Loulé)

Eu na terra fui gerada,
Nas ondas do mar nascida;
De meu triste nascimento
Minha mãe foi falecida.
Lá deitaram-na ao mar,
Em caixão de oiro metida,
Puseram-lhe coroa e cetro
Já rainha falecida,
Deitaram-me cá na terra,
De um senador me confia;
Minha ama me criou
Com muito amor que me tinha,
Ao cabo de quinze anos
Minha ama falecida.
Eu lhe fiz o seu enterro
Como ela merecia;
Todos os dias do ano
À cova rezar-lhe-ia.
A mulher do senador
Por inveja que me tinha,
Prometeu a escravo seu
Dar-lhe carta de alforria,
Me deitasse ponte abaixo
P’lo caminho que seguia.
De fidalgos e marqueses,
De todos fui socorrida,
Só el-rei da Babilónia,
Que uma estátua ali tinha,
Levou-me para sua casa
Com estado de rainha,
Falou-me do seu amor,
E eu de amor não sabia,
Me meteu em uma torre,
Pela raiva que me tinha,
Numa torre me metera
Que nem sol nem lua via;
Dava-me o pão por onça
E a água por medida.
Já me leva o meu amor,
Que eu de mouros fui cativa,
Vendida em pública praça
Para ver quem mais daria;
Comprou-me estalajadeiro
Para lhe ganhar a vida,
P’ra lhe fazer de comer,
Com as mais que ali havia.
Eu fora tida em pouco,
Fazer comer não sabia,
Pedi-lhe bons instrumentos,
Que eu melhor lhe ganharia,
Pois eu tinha na tenção.
Dar-lhe um tanto cada dia.

Recordai imperador,
Aqui tendes vossa filha,
Pelo nome me puseram
De Maria Extravandia.[45]
LENDA DA FONTE DOS AMORES

Conta-se que D. Inês de Castro se correspondia com Dom Pedro, trazendo a


corrente da água que alimentava a fonte do seu jardim, a mensagem dos seus
ocultos amores. Dois séculos, antes, descreveu Goffried de Estrasburgo no belo
poema do Tristão este estratagema do namorado da rainha Isolda: «O rei
proibiu a Tristão a entrada no palácio. No meio do jardim corria uma fonte, à
sombra de uma grande oliveira. A água da fonte corria passando diante dos
aposentos de Isolda. Combinou-se que todas as vezes que Tristão visse o jardim
solitário cortaria uma tabuinha em que gravasse um T ao lado de um I e a
corrente levará a mensagem, que Brangiene terá o cuidado de apanhar. Assim
fizeram, e a oliveira cobria com a sua sombra os colóquios dos amantes.»

(Bossert, La Littérature allemande au Moyen Age p. 291)
CLAVINAS DE AMBRÓSIO

Esta locução popular, ainda usada, significa os meios de defesa impotentes.


Provém do antigo conhecimento dos poemas da Távola Redonda, em que o
sábio Merlin, (denominado Ambrósio, na Crónica de Geoffroy de Monmouth),
defendia com as ameaças das suas Profecias os povos britânicos da barbaridade
dos Saxões. — Outros vestígios se encontram, como Artes merlínicas, aludindo
aos recursos do profeta, entre o povo Arte de berliques; e a imprecação: Valha-te
São Barambum! resto da lenda do Monge bretão San Brendan conhecido dos
nossos navegadores e cartógrafos.

NOTA: Com esta locução aparece uma outra: Voltas de Andresa, também
explicável pelos poemas medievais. Nos poemas de Tristão o intrigante que
muito se esforça para malquistar o rei March com seu sobrinho o namorado de
Isolda, é chamado Andret, que se torna típico, dando lugar à locução — Voltas
de Andresa.
LENDA DOS FERREIROS

Nas proximidades de Penela há dois montes bastante elevados e de forma mais


ou menos cónica.
Dois ferreiros, dizem que irmãos, foram estabelecer as forjas cada um em seu
monte, mas possuindo ambos um só martelo, dele se serviam alternadamente. Os
montes, na sua parte superior distam uns dois quilómetros um do outro; e
quando o Melo, assim se chamava um dos ferreiros, precisava do martelo,
chegava à porta da forja e gritava para o Jurumelo, assim se chamava o outro,
para lho atirar. Os dois ferreiros eram gigantes; uma vez zangou-se o Jurumelo
com o companheiro, e atirou-lhe o martelo com tanta violência, que
desencavando-se este no ar, foi cair o ferro na encosta do monte Melo, e logo daí
brotou uma fonte de água férrea, e o cabo, que era de madeira de zambujo, foi
espetar-se na terra, reproduzindo-se um zambujo, que deu o nome à povoação
do Zambujal, a quatro quilómetros dos referidos montes.

(Ap. Positivismo, t. II, p. 452, Porto, 1880)

VARIANTE
Havia um ferreiro no monte de Arcela e outro no de Guisande (Minho), mas
tinham entre si apenas um malho com que trabalhavam. Quando um descansava
atirava o malho ao outro, de monte a monte.

(Cercanias de Vermoim — Epopeias Moçárabes, p. 102. Porto, 1871)


LENDA DA PONTE DE DOMINGOS
TERNE

A ponte de Domingos Terne, sobre o Ave, uma légua para o norte da Senhora
do Porto de Ave, foi segundo a tradição, feita pelo Diabo. Eis o caso:
O Diabo queria ajuntar dois namorados, cada um dos quais morava em lugares
diferentes e separados pelo rio. Todas as noites lançava este uma ponte para o
rapaz ir ter com a sua conversada (namorada). Soube-se disto, e numa noite um
padre pôs-se à espreita, e depois que o rapaz passou, exorcismou de repente a
ponte, que o Diabo nunca mais pôde retirar.

(Positivismo, t. IV, pág. 116. Lendas análogas se contam das pontes de Valtelhas,
Misarela e outras)
LENDA DA AMENDOEIRA

A amendoeira é a árvore que enganou o Diabo. Como o Diabo a viu florescer


em janeiro, sentou-se debaixo dela, à espera que lhe amadurecessem os frutos,
para depois ir guardar as outras árvores. Esteve até setembro à espera do fruto,
pois é neste mês que a amendoeira o dá. Como nesse mês não estivessem
maduras ainda as amêndoas, cansado já de esperar foi espreitar as outras árvores.
Estas porém já estavam apanhadas, e o Diabo todo desapontado voltou para
debaixo da amendoeira, mas neste meio tempo tinham-lhe apanhado as
amêndoas e o Diabo ficou logrado.

(Idem, ibid., Lisboa)
A PONTE DA ALIVIADA

Quando o Diabo fez a ponte da Aliviada chamou São Gonçalo, que andava a
fazer a de Amarante, e disse-lhe que a não benzesse; o Santo ergueu a bengala a
modo de cruz, assim como quem ao falar aponta; o Diabo então fugiu para cima
de um monte de onde começou a atirar pedras ao Santo, as quais ele desviava.

(Leite de Vasconcelos, Tradições, p. 312)


A PONTE DA MISARELA

Um salteador das terras de além-Douro perseguido pela justiça embrenhou-se


pelas serras de Trás-os-Montes, mas chegou à beira de uma torrente caudal e
não pôde passar. Para fugir ofereceu a alma ao Diabo, e logo ali apareceu uma
ponte, que se desfez assim que ele passou. Na hora da morte o salteador
confessou-se, e o padre disfarçou-se em salteador, chamou o Diabo, fez-lhe a
mesma proposta, a ponte apareceu, e meteu-se por ela. Quando já estava no
meio da ponte faz o sinal da cruz, bota-lhe água benta, e a ponte ficou firme até
hoje. É de um só arco.

(Ap. J. A. d’Almeida, Dic. Corográfico.)


LENDA DE SIMANCAS

A vila de Simancas, chamada de antes Gureba, cobrou este nome porque sete
donzelas que daqui haviam de ser levadas, se cortaram as mãos para de este
modo escaparem; e como as amostrassem aos mouros que vinham arrecadar o
tributo, dizendo:
— Que não podiam ir por estarem mancas, — eles responderam, que:
— Assi mancas as queriam.
Mas o povo compadecido de tanta virtude, arremeteu tumultuariamente contra
os mouros e mortos de mão comum, foram as donzelas postas em liberdade,
deixando por nome à vila a resposta que deram aos bárbaros: Si mancas as
queremos, e por armas as mãos cortadas das donzelas.

(Fr. Bernardo de Brito, Monarqu. Lusit., p. II, liv. 7, cap. 9)


LENDA DE CHACIM
E DO MOSTEIRO DE BALSEMÃO

Um habitante da Alfândega da Fé recusou-se a ceder sua noiva para a


prelibação, onde resultou uma renhida peleja entre cristãos e mouros. Como os
cristãos eram poucos, Nossa Senhora veio socorrê-los, trazendo uma âmbula de
bálsamo na mão, com que ia dando vida aos mortos e sarando os vivos. Em
reconhecimento da vitória alcançada por este modo, o povo fez uma ermida a
Nossa Senhora do Bálsamo na Mão, e ainda hoje se celebra ali a festa do Cara-
Mouro, resultando para a Aldeia o nome de Chacim da chacina, que ali se fez
nos infiéis, e para a povoação de Alfândega o título da Fé

(J. A. de Almeida, Dicionário Abreviado de Corografia, t. I, p. 37)

NOTA: Sobre a lenda do Tributo das Donzelas elaboraram-se muitas outras


tradições de etimologia popular ou toponímia, tais como a de Peito Burdelo,
Figueiredo das Donas, Valdoncel, etc.
ORIGEM DO NOME DE BRAGANÇA

querença, era este o nome que primeiro se deu à vila de Bragança, por ser o
mesmo que antes tinha o terreno, quinta ou lugar em que el-rei Dom Sancho I
a fez de novo construir.

(Viterbo, Elucidário)
NOTA: Viterbo extrata um codicilo de 1183 onde vem Benequerência, como
alatinização do nome local, e que explica a lenda.
ORIGEM DO NOME DE VISEU

Quase pegado a esta cidade para o lado do Nascente, está o Alto do Viso, onde se
dividem as águas para os rios Paiva e Dão: deste alto os guerreiros cristãos
avistaram uma povoação, e disse um deles:
— Que Viso eu?
Daqui ficou o nome à terra.
LENDA DE BRITIANDE

Era uma vez um rei que passou por aquele sítio (de Britiande) na ocasião em
que um lavrador andava a varejar uma nogueira. O pobre homem ofereceu
nozes a um dos da comitiva real, e como este aceitasse, o rei disse-lhe:
— Conde, Brite e ande.
Daqui o nome da povoação.

(Ap. Leite de Vasconcelos, Enciclopéd. Republicana, p. 195)


LENDA DE CRESCIDO
(A CASTRO DAIRE)

Um rei, visitando um certo fidalgo, exclamou ao reparar no desenvolvimento


físico de um filho do fidalgo:
— Ah! está crescido.

(Id., ibid.)
LENDA DE LAMEGO

Vem de jeito esta conhecida frase Noites de Lamego, que se interpreta assim: Um
viajante hospedou-se uma noite em Lamego. O dono da casa deu-lhe um quarto
muito escuro, onde havia um armário com queijos, e pela manhã esqueceu-se de
ir abrir a porta. O viajante acordou, e cuidando que o armário era uma janela,
abriu-o e como não visse luz e ele lhe cheirasse ao queijo que lá estava, disse:
— É muito cedo, não se vê nada, e só ainda agora as mulheres vão a vender o
leite pela rua.
E tornou-se a deitar, dormindo não sei se um dia se mais. Quando lhe abriram a
porta, ficou tão admirado por as noites de Lamego serem tão compridas.

(Id., Ibid.)
A TORRE DOS NAMORADOS

Conta-se na povoação do Alcaide que, no tempo dos Mouros, o rei era lavrador
e tinha uma filha muito formosa que era requestada por dois mancebos. O rei
não sabendo a qual havia de dar a filha, porque ambos a queriam, deu-lhes duas
empresas arrojadas, para desempenharem, e então se decidir. Um tinha de
levantar dentro de certo prazo uma torre muito alta, e o outro encanar um
ribeiro para o lago do palácio.
Ambos cumpriram tudo como o rei talhara, e julgavam-se já com direito à mão
da princesa. Ela fugiu para uma floresta, e os namorados lá a encontraram, e não
querendo nenhum ceder do seu amor, mataram-na. A torre ainda existe de pé.

(Povoação do Alcaide — Fundão Ap. Diário de Notícias, n.º 6339, 1883)


A SEPULTURA DOS DOIS IRMÃOS EM
SINTRA

Dois irmãos traziam amores com uma donzela que por aqueles sítios habitava,
ignorando ambos os amores um do outro. Acontecendo por uma triste fatalidade
encontrarem-se os dois irmãos em uma noite tenebrosa, debaixo do balcão do
objeto que tão enfeitiçados os trazia, um deles persuadido que o outro lhe
disputava os favores de sua dama, corre cego e inconsiderado sobre ele e o
estende morto a seus pés, vítima de um frenético ciúme. Porém qual a sua
desesperação quando pela voz moribunda daquele que julgava seu rival,
reconhece ter sido o assassino de seu próprio irmão, que muito amava e que lhe
expira nos braços! Cheio de desesperação volta contra o peito o ferro fratricida,
e cai morto sobre o cadáver ensanguentado do irmão, preferindo uma morte
pronta a uma vida inconsolável cheia de remorsos.

(Sintra Pitoresca, p. 114)

NOTA: Esta lenda também existe em Verona, contando-se a situação como


passada entre Bartolomeu Scaligero e seu irmão, que se assassinaram em uma
entrevista amorosa. (Philarète Chasles, Etudes sur Shakespeare, p. 159.) Diz o
abade Castro: «Muitas tradições vogam acerca desta campa, que nós temos por
falsas ou viciadas... referindo uns que é a sepultura dos dois irmãos, outros
diversas lendas que mais se assemelham a contos de fadas ou de velhas com que
embalam as crianças, do que realidades, que tenham por base algum sólido
fundamento.»
(Panorama, t. I, da 2.ª série, p. 359.)
QUANTOS PÃES DÁ UM ALQUEIRE?

«Dizia certo arcebispo a um criado que soubesse quantos pães de arrátel lhe
dava a padeira por cada alqueire de trigo, que lhe mandavam amassar; e se não
fossem tanto, que lhos não aceitassem, porque cada alqueire dava tanto.
Respondeu-lhe o criado:
— Pois, senhor, eu não quero viver com quem sabe quantos pães faz um alqueire.
E despediu-se logo.»

(Marques Soares, Divertimento de Estudiosos, t. II, p. 37. Lisboa 1766.)

NOTA: É uma simples locução figurada, para exprimir o conhecimento prático


e a experiência adquirida. Do seu sentido genérico converte-se em forma
concreta, quase objetiva e suscita um conto.
Na sua Égloga I, D. Francisco Manuel de Melo descrevendo as qualidades da
boa mulher burguesa, escreve entre outras quintilhas: Unha com carne co’a roca, /
Que na feira os fusos feire / Grande alma de maçaroca / E saiba, pois que lhe toca, /
Quantos pães dá um alqueire?
FÁBULA DA RAPOSA E DO MOCHO

Uma raposa passou por um souto e sentiu piar um mocho; disse ela para si:
— Ceia já eu tenho.
E foi muito sorrateira trepando pelo castanheiro em que estava piando o mocho,
e filou-o.
O mocho conheceu a sorte que o esperava, e viu que não podia livrar-se da
raposa sem ser por ardil. Disse então para ela:
— O raposa, não me comas assim como qualquer frango desses que furtas pelos
galinheiros; tu também sabes andar à caça de altenaria, e é preciso que todos o
saibam. Agora que me vais comer, grita bem alto: «Mocho comi!»
A raposa levada por aquela vaidade, gritou:
— Mocho comi!
— A outro sim, que nenja a mim! — replicou-lhe o mocho caindo-lhe de entre
os dentes e voando pelo ar fora, livre do perigo.

(Airão)
A ÁGUIA E A CORUJA

A coruja encontrou a águia, e disse-lhe:


— Ó águia, se vires uns passarinhos muito lindos em um ninho, com uns
biquinhos muito bem-feitos, olha lá não mos comas, que são os meus filhos.
A águia prometeu-lhe que os não comia; foi voando e encontrou numa árvore
um ninho de coruja, e comeu as corujinhas. Quando a coruja chegou e viu que
lhe tinham comigo os filhos, foi ter com a águia, muito aflita:
— Ó águia, tu foste-me falsa, porque prometeste que não me comias os meus
filhinhos, e mataste-mos todos!
Diz a águia:
— Eu encontrei umas corujas pequenas num ninho, todas depenadas, sem bico,
e com os olhos tapados, e comi-as; e como tu me disseste que os teus filhos eram
muito lindos e tinham os biquinhos bem-feitos entendi que não eram esses.
— Pois eram esses mesmos, disse a coruja.
— Pois então queixa-te de ti, que é que me enganaste com a tua cegueira.

(Porto)
AINDA NÃO SE ACABA O MUNDO

Frase proverbial, quando se veem muitas crianças juntas; liga-se à lenda do


Malcho, preso em uma estreita casa, no fundo do mar, e girando em volta de
uma coluna, até acabar o mundo. Aos navios que passam faz a pergunta: —
Ainda não acaba o mundo?
Apenas temos encontrado a frase, mas não a lenda vulgar na tradição da
Catalunha e da Sicília.
A BARATA E OS FILHOS

A barata saiu debaixo de umas pedras com os filhos e disse-lhes, enquanto eles
ainda pequenos estavam ao sol:
— Passeai, flores! Passeai, flores!
Daqui vem o ditado: «Quem o feio ama, bonito lhe parece.»

(Ilha de S. Miguel)
A RAPOSA E O LOBO

A raposa e o lobo mataram dois carneiros e fugiram. Depois que se acharam


seguros, deitaram-se a comer, mas só puderam comer um, e o outro ficou
inteiro. Diz a raposa:
— Compadre, é melhor enterrarmos este carneiro e vimos cá amanhã comê-lo
juntos.
Vai o lobo e diz-lhe:
— Mas nem eu nem tu temos faro, como é que o havemos tornar a achar?
— Deixa-se-lhe o rabo de fora.
Assim se fez. No dia seguinte apresenta-se o lobo e diz:
— Comadre, vamos comer o carneiro?
— Hoje não posso; tenho de ir ser madrinha de um cachorrinho.
O lobo fiou-se, mas a raposa foi ao lugar onde estava enterrado o carneiro e
comeu um grande pedaço. No outro dia torna o lobo a perguntar-lhe:
— Que nome puseste ao teu afilhado?
— Comecei-te — exclama o lobo:
— Que nome! Vamos comer o carneiro?
— Ai, compadre (disse-lhe a raposa), hoje também não pode ser; estou
convidada para ir ser madrinha.
O lobo fiou-se; a raposa tornou a ir comer sozinha. Ao outro dia vem o lobo:
— Que nome deste ao teu afilhado?
— Meei-te.
— Que nome! (replica o lobo). Vamos comer o carneiro?
A raposa tornou a escusar-se com outro batizado, e foi acabar de comer o
carneiro. O lobo vem:
— Como se chama o teu afilhado?
— Acabei-te.
— Vamos comer o carneiro?
Foram e chegaram ao sítio; assim que viram o rabo, disse a raposa:
— Puxa com força, compadre.
O lobo puxou, e caiu de pernas para o ar; a raposa safou-se.

(Airão)
NOTA: Nos Contes populaires de la Grande Bretagne, trad. de Brueyre, p. 362 (vid. nota 1, p. 364 e
365). A fábula dos Highlanders versa sobre uma panela de manteiga; é popular na Noruega, como
se vê pela coleção de Absjörsen, A Raposa e o Urso.
A RAPOSA NO GALINHEIRO

De uma vez uma raposa apanhou um buraquinho num galinheiro, entrou para
dentro fazendo-se muito esguia, e depois que se viu lá, comeu galinhas à farta.
Quando foi para sair estava com a barriga muito cheia, e por mais que fez não
pôde passar pelo buraco. Viu-se perdida, porque já vinha amanhecendo. Por fim
teve uma lembrança: Fingiu-se morta.
De manhã veio o lavrador e viu-a:
— Cá está ela. E que estrago que me fez!
Vai para lhe dar pancadas e matá-la, mas vê-a hirta, com a língua atravessada
nos dentes e os olhos envidraçados:
— Poupaste-me o trabalho; morreste arrebentada. Foi bom.
E pegando-lhe pelas pernas atira-a para o meio da horta para a enterrar. A
raposa assim que se viu fora do galinheiro, pernas para que te quero! botou a
fugir pelos campos fora e fez do rabo bandeira. O lavrador deu a cardada ao
dianho, e jurou que nunca mais se fiaria em raposas.

(Airão)
A RAPOSA E O GALO

Uma raposa viu um galo pousado em cima de um palheiro, e não podendo


agarrá-lo começou a falar-lhe cá de baixo:
— Ó galo, tu não sabes? Veio agora uma ordem para todos os animais serem
amigos uns dos outros. Nós cá as raposas já não temos guerra com os cães,
estamos amigos; e tu podes-te descer cá para baixo, que eu já te não faço mal.
Estava nisto, quando vem uma matilha de cães, e farejando a raposa, botam-se
atrás dela. A raposa ia sendo agarrada, mas fugiu o mais que podia. O galo de
cima do palheiro gritava-lhe:
— Mostra-lhe a ordem! Mostra-lhe a ordem!
A raposa, ainda de longe, lhe respondia:
— Não tenho vagar! Não tenho vagar.
E fugia por entre uns tremoçais, que já estavam secos, que faziam uma grande
bulha, e ela dizia:
— Ai, que rica festa! E logo hoje, que vou com tanta pressa.

(Airão)

NOTA: Nos Contos Populares da Grã-Bretanha, trad. de Brueyre, p. 369, vem


também esta fábula. Acha-se em La Fontaine, Le Coq et le Renard.
O LOBO E A OVELHA

Uma vez um lobo encontrou uma ovelha, que andava a pascer, e disse-lhe:
— Ó ovelha! eu como-te.
Respondeu a ovelha:
— Pois sobe ali para cima, que eu entretanto vou pascendo, e depois entro-te lá
mesmo pela boca dentro.
O lobo subiu para o alto do monte e esperou. A ovelha assim que viu o lobo
longe, fugiu. O lobo começou a correr atrás dela, e como a não pudesse agarrar,
disse:
Eu, que sou lobinho-cão
Nunca corri tanto em vão.
Respondeu a ovelha:
Eu, que sou ovelhinha ruça,
Nunca corri tanto de escaramuça.

(Vila Cova, Leite de Vasconcelos, Trad., p. 183)


O RATO DA CIDADE E O RATO DA
ALDEIA

Um Rato usado à cidade,


Tomou-o a noite por fora;
(Quem foge à necessidade?)
Lembrou-lhe a velha amizade
De outro Rato, que ali mora.

Faz um homem a conta errada


Muitas vezes, e acontece
Crescimento na jornada;
Diz, e entretanto na pousada,
Cidadão logo parece.

O pobre assi salteado


De um tamanho cortesão,
Em busca de algum bocado,
Vai e vem, sempre apressado,
Sem tocar c’os pés no chão.

Ordena a sua mezinha,


Pôs-lhe nela algum legume,
Mesura, quando ia e vinha,
Deu-lhe tudo quanto tinha,
Pede perdão por costume.

Diz, quem tal adivinhara,


Contra o cortesão[46] severo,
Que tanto andara e buscara,
Té que alguma cousa achara,
A quem tanto devo e quero?

Cumpre porém nesta mesa,


Que haja mais fome, que gula:
Tem-lhe a fogueirinha acesa,
Faz rostro ledo à despesa,
Vê-a o outro, e dissimula.

E dizendo está consigo:


Que gente a d’entre penedos!
Quando há, de Pedro e Rodrigo!
Que bem diz o exemplo antigo,
Que não são iguais os dedos.

Ora, depois de comer
Jazendo detrás do lar,
Começa o nobre a dizer:
Dous dias, que hás de viver,
Aqui os queres passar?

Na aspereza do deserto,
Que não sei quem o suporte,
De urzes e de tojos coberto,
Sendo tudo tão incerto,
Sendo só tão certa a morte?
Vive, amigo, a teu sabor;
Mais é que cousa perdida
Quem por si escolhe o pior;
Vai-te comigo onde eu for,
Lá verás que cousa é vida.

E depois que ambas provares,


(Que eu de outrem não adivinho)
Quando te enganado achares,
Aqui tens os teus manjares,
I também tens o caminho.

Assi disse; eis o vilão


Em alvoroço e balança,
Ia, e vinha o coração,
Ora si, e ora não;
Venceu porém esperança.

E que pode i al[47] fazer!


Vive com tanto suor,
E mal pode inda viver;
Mal pode o amo vencer,
Sempre a saída é maior.

E diz: Quem não se aventura,


Não ganha; quem há que o negue?
Escolheram hora segura,
Foram pela noite escura;
Que o rico, o pobre segue.

Entram por paços dourados,


Cheirosos inda da ceia;
Tristes dos casais colmados,
Do sol, do vento queimados,
Pobre e faminha da aldeia!

Vou-me por meu conto avante;


Mostra-lhe o cidadão tudo,
Que traz no bucho um Infante;
Quem quereis que não se espante?
Anda o vilãozinho mudo.

Que somente em provar


Das cousas, que mais lhe aprazem,
Já começam de enjeitar;
Fartos para arrebentar
Em lãs estrangeiras jazem.

Nisto o despenseiro chega,


Que estes bens não duram tanto;
Vê-os, mas a pressa o cega,
Um tiro, ou dous mal emprega,
Corre-os de canto em canto.

Os cães à volta[48] se ergueram,


Ladram, que é alto serão.
As casas estremeceram;
Todos juntos lá correram.
Foi dita que os gatos não.

Sabia o da casa a manha,


Subiu o paço, e fugiu:
O Ratinho da montanha,
Aos pés em pressa tamanha
O coração lhe caiu.

Enfim passado o perigo


Da morte, que ante si vira,
O coitado só consigo
Polo seu repouso antigo,
Que mal deixara, suspira.

Minha segura pobreza,


Se chegarei a ver, quando
A vós torne, e esta riqueza,
Mal, que o mundo tonto preza,
Fuja, se puder, voando!

Ai baldias esperanças,
Meu entendimento fraco!
Deixemos tais abastanças,
Tais riquezas, tais mostranças,
Deus me torne ao meu buraco.[49]
(Francisco de Sá de Miranda, Cart. TH, est. 39, e segs.)

NOTA: É o n.º CVII das Fábulas de Babrius: «Dois ratos, um habitando nos
campos como verdadeiro labrego, e outro recolhido em uma despensa bem
fornecida, combinaram de viverem juntos. O citadino foi prontamente cear ao
campo o qual começava a verdejar e a florir. Depois de ter roído algumas raízes
de trigo húmidas e empastadas de terra, diz:
— Que vida miserável que tu aqui levas, pior do que a da formiga, roendo
alguns grãozitos que apodrecem na terra. Eu cá, tenho tudo em abundância, até
mesmo supérfluo; comparando-me contigo, eu vivo dentro do Como de
Almateia. Se queres anda daí comigo; todos os teus dias a teu grado se tornarão
dias de festa, e tu deixarás às toupeiras o cuidado de esgaravatar este torrão.
Leva ele então o rústico consigo, tendo-o convencido de vir para a habitação e
teto dos homens. Foi-lhe mostrando onde estava a provisão de farinha, onde
amontoados os legumes, as ceiras de figos, as talhas de mel e as bocetas de
tâmaras. Enquanto o camponês ficava maravilhado da opulência que estava
vendo, metendo-se por todos os lados, e arrastando um queijo que tirara de um
açafate, vieram abrir a porta. Imediatamente atirou-se de um salto rápido e todo
trémulo procurou o esconderijo de um pequeno buraco, soltando confusamente
alguns guinchos e sem roçar pelo corpo do seu hospedeiro. Depois de alguns
momentos de expectativa botou o focinho de fora, e quando levava à boca um
figo de caixa, entra um outro homem a buscar qualquer cousa. Os dois amigos
esconderam-se o melhor que puderam, e o rato dos campos disse para o seu
amigo:
— Goza tuas riquezas, regala-te em jantares assim, atasca-te nas delícias dos
teus esplêndidos bródios e de todas as satisfações de que gostas sempre em
alarmes. Quanto a mim não deixarei a pequena moita de terra que me dá abrigo,
e me faculta remoer tranquilamente os meus grãozinhos.» (Trad. de Beyer, p.
85, Ed. 1844.)
A RAPOSA E O LEÃO ENFERMO[50]

Os desejos são sem termo,


A esperança é saborosa:
Eu contentei-me deste ermo
Pola razão, que a Raposa
Deu ao Leão, que era enfermo:

Meu Rei, meu senhor Leão,


Olho cá, e olho lá,
Vejo pegadas no chão,
Que todas para lá vão,
Nenhuma vem para cá.

(Idem, ib., e st. 45 e seg.)

NOTA: É a 6.ª Fábula de Loqman: «Um leão tendo envelhecido, chegou a não
poder já ir à caça de outros animais. Resolveu empregar a manha para alcançar a
subsistência. Fingiu-se doente, e retirou-se a uma caverna. Aconteceu pois que
qualquer dos animais que o ia visitar era por ele despedaçado dentro da caverna
e devorado. Veio visitá-lo a Raposa, e parando à porta do antro cumprimentou-
o nestes termos:
— Como vais de saúde, ó Rei dos Animais?
Respondeu-lhe o Leão:
— E porque não entras tu, ó Senhora do Castelo?
Replicou a Raposa:
— Meu senhor, nessa intenção vinha eu, mas estou a ver pelas pegadas marcadas
no solo, que muitos são os visitantes que entram, e no entanto não vejo que haja
saído um só deles.» (Trad. árabe por Joseph Benoliel, op. cit. p. 23).
A Fábula CII de Bahrius O Leão Doente e os Animais, é este mesmo tema
graciosamente tratado. (Trad. de Beyer, p. 79).
AGLAU OU A BEM-AVENTURANÇA

Dos antigos Romãos foi perguntado


Apoio, qual dos homens desta vida
Julgava por mais bem-aventurado.

Respondeu à pergunta referida,


Que era Aglau; cousa mais não declarando,
O que a resposta fez mal entendida.

Eles que dele estavam esperando,


Que nomeasse algum mui conhecido
Dos grandes, que no mundo tinham mando:

Querendo conhecer quem preferido


Fora em ventura à régia dignidade,
Acharam, tendo já muito inquirido,

Ser um homem, que fora da cidade,


No campo cultivava uma horta pobre,
O qual era mais pobre de vontade.

(Diogo Bernardes, Lima, cart. II, v. 85 e seg.)


O BACOROTE[51], AS OVELHAS, O
LOBO
E OS PORCOS DA ALDEIA

Bacorote orgulhoso
Deu vista ao gado ovelhum,
De quexiquer[52] espantoso;
Trombejava ele hum e hum,
Andava todo bravoso.
Vem um dia o Lobo, e apanha
Pela cabeça o doudete:
Abrandou-lhe aquela sanha;
Brada: — Ah dos meus! Em tamanha
Pressa ninguém arremete.

Vinham os Porcos da aldeia


Mais atrás, grunhir ouviram,
Um escuma, outro esbraveia;
Estes si, que lhe acudiram,
Perdeu o Lobo a sua ceia:
Ele solto viu que o gado
De lã branca estava olhando
De longe, inda amedrontado:
Antes, disse, ser mandado,
Que em tal perigo tal mando[53].
(Sá de Miranda, Églog. VII, est. 57 e seg.)
O CERVO E O CAVALO

Quando tudo era falante,


Pascia o Cervo um bom prado;
I veio um Cavalo andante,
Quis comer algum bocado,
Pôs-se-lhe o Cervo diante.
Outra razão lhe não deu,
(Que eram pascigos gerais)
Salvo — posso e quero, é meu.
Este meu, e este teu
Tanto há já que nos fez tais.

Vendo tão pouca prestança


O Cavalo, dantes forro,
Com desejo de vingança,
Pedindo ao homem socorro
Por terra a seus pés se lança.
Não pôde à justa querela
Deixar de se pôr no meio;
Mas foi necessária a sela:
Pôs-lhe, e fez-se forte nela,
Toma a rédea, prova o freio.
Assim dão volta ao imigo:
O Cervo, quando tal viu,
Homem ao Cavalo amigo,
Deixou-lhe o campo, e fugiu,
Foi buscar outro pascigo.
O Cavalo vencedor
Corre o verde e corre o seco,
Fora, fora o contendor;
Ficou-lhe porém senhor,
Não foi tanto o outro enxeco.[54]

Quem há tal medo à pobreza,


Tal à fome e frialdade,
Que por ouro e por riqueza
Dá a só rica liberdade,
E mais outrem, que a si preza?
Se lhe vês herdades largas,
Não lhe hajas inveja à troca;
Embaraçam as roupas largas,
Faz sangue o freio na boca,
As esporas nas ilhargas.

(Id., Églog. VIII, est. 73, e seg.)


A FORMIGA E A CIGARRA

O trigo, que juntou no seco estio


Solícita a Formiga assoalhava,
Des que o bosque deixou de ser sombrio.
A Cigarra importuna, que passava
Acaso por ali morta de fome,
Que lhe emprestasse dele, lhe rogava.
A fim que da resposta aviso tome,
Perguntou-lhe a Formiga, em que gastara
O tempo, em que se colhe o que se come?
A Cigarra lhe disse, que cantara,
Bem fora de cuidar poder cair
Naquela grande falta, em que se achara.
Começou a Formiga então de rir,
Dizendo: — Amiga, pois no verão cantas,
Podes bailar no inverno, e não pedir.

(Diogo Bernardes, Lima, cart. XIV, V. 151 e seg.)


O CÃO SÔFREGO

Um cão, passando um dia por um rio


De cristalinas águas e correntes,
Devia por razão de ser no estio;
Dum osso duro, que antre os duros dentes
Levava atravessado, a sombra viu
Naquelas frescas águas transparentes,
Ser outro mor cuidando, a boca abriu,
E por querer tomar a presa vã,
A certa na corrente lhe caiu.

(Diogo Bernardes, Lima, carta V, v. 31 e segs.)


A RÃ E O BOI

Mas que me dirás tu daquela Rã,


Que vendo o Boi no prado andar pascendo,
Chamou uma filha sua, ou sua irmã,
E disse-lhe: — Eu espero, se me estendo,
De ser tamanha, como este animal;
E começou de inchar, e foi crescendo.
Amiga, inchares muito, pouco val,
Respondeu a que veio; certa estou,
Que não lhe podeis nunca ser igual.
A douda da resposta não curou;
Antes inchou com tanta força tanto,
Que não cabendo em si, arrebentou.
As outras, em lugar de fazer pranto,
Riram da presunção desta sandia;
De rirem e zombarem não me espanto.
Além de ser costume, merecia
Tamanha vaidade, qual foi esta,
Fazerem dela grande zombaria.
(Bernardes, Lima, V, 160 e seg.)
A CEGA FÁTUA

Já lhe ouvi ao Cura, um dia


Contar lá na sua arenga
De certa mulher, que havia,
Que nesse tempo, em que via,
Como a Raposa, era senga.[55]

Eis senão que de repente


Mau ar a vista lhe veda;
Ficou cega em continente:
Porém foi tão levemente,
Que em vez de triste era leda.

Todos do trabalho seu


Se lhe mostravam pesantes;
Mas que resposta lhes deu?
O sol é que escureceu,
Que eu vejo melhor que dantes.[56]
Tal lhes sucede a uns doutores,
Que, no que querem querer,
Julgam por faltas menores
Mudar o sol seus primores,
Que eles o seu parecer.

(D. Francisco Manuel de Melo, Obras Métricas, églog. II, est. 77 e seg.)
O ÓDIO E O AMOR

Ouvi que o Ódio e o Amor


Jogaram a matar um dia,
A quem matava melhor:
Um se armou todo de dor,
Outro todo de alegria.

Ia o Ódio, o arco atesado,


Sempre envolto em fúria brava,
Fero, medonho, indignado:
Ia o Amor, mui repousado,
Salvando a quantos topava.

As gentes, que o Ódio viam


De tal jeito, anteparavam,
E as mais sem parar fugiam:
As setas se lhe perdiam,
Como do arco lhe voavam.

Mas indo delas fugindo


Os tristes homens com medo,
Eis o Amor, que era já indo,
Vai matando e vai ferindo,
Muito falso, e muito quedo,

Depois ao fazer da conta,


Com ser destro o Ódio e membrudo,
Não fez nada, ou tanto monta;
E o Amor só, sem perder ponta,
Tinha morto quase tudo.

Donde de certo se sabe,


Que por mais que o Amor estude,
Inda o Ódio é menos grave;
Somos tais, que em nós não cabe
Excesso, nem de virtude.

(D. Francisco Manuel de Melo, Obras Métricas, cart. 1, est. 19 e seg.)


A FORTUNA E O MOÇO

Diz um conto, que jazia


Sôbola[57] borda dum poço,
Cheio e fundo em demasia,
Onde com párvoa ousadia
Quis dormir a sesta um Moço.

Nisto, a Fortuna passou:


E vendo o que ali se azava,
Foi-se ao Moço, e o acordou;
Deu-lhe muito, ele gritou;
Ela dava, ele gritava.

Porque (diz) com tão mortais


Golpes me tratas assim?
Ela responde (e dá mais):
Porque errais; e do que errais,
Me pondes a culpa a mim.

Quer no mar e quer na terra,


Buscais o risco por cama,
Trocais a paz pela guerra;
Então, se o apetite erra,
A Fortuna é quem se infama.

(D. Francisco Manuel de Melo, Obras Métricas, cart. II, est. 24 e seg.)

NOTA: Acha-se nas Fábulas de Babrius, n.º XLVIII: O Obreiro e a Fortuna.


«Uma noite, sobre a borda de um poço estava dormindo imprudentemente um
operário. Ele acreditava que ouvia a Fortuna a rir para ele e dizer-lhe: — Meu
amigo, vê lá se acordas! Queres tu, se tu caíres, que os homens me acusem, e que
eles a meu respeito digam malévolas palavras? Todos me fazem responsável,
desde que lhes acontece o menor acidente, ou a mais pequena queda.» (Trad.
Beyer, p. 44.)
AS LEBRES E AS RÃS

Diz que as Lebres, como gente,


Um dia conselho houveram,
Por não viver tristemente;
E afogar-se de repente
Todas juntas resolveram.

Duas Rãs, como soíam,[58]


Junto ao charco eram, pastando
Adonde as Lebres corriam,
E de medo do que ouviam
Vão-se no charco lançando.

Uma Lebre mais ladina,


Que isto viu, teve-se quedo,
E gritou pela campina:
Tende mão, gente mofina,
Que inda há Rãs, que vos tem medo.

(Idem, Cart. V, est. 35 e seg.)


VARIANTE
Diz que lá não sei onde se ajuntaram as Lebres a conselho, e que por todas foi
apontado, que se fossem lançar em uma lagoa, e se afogassem, sem ficar mais
geração de tão triste gente, perseguida de todo o mundo, que toma seu perigo
por divertimento. Ora indo já correndo todas, fizeram tão grande matinada, que
as ouviram as Rãs que estavam junto do charco; e como tivessem grande medo
do ruído, foram-se lançando na água, ganhando-lhe a dianteira do precipício.
Notou isso uma das lebres, que ia diante, e parou, fazendo deter as outras, a
quem disse:
— Senhoras, tende mão, não nos lancemos a perder por miseráveis, pois vemos
que ainda o são mais estas Rãs, que têm medo de nós, e a nosso respeito se
precipitam.
O que digo, que não há estado tão triste no mundo que não haja outro mais
triste, com que aquele possa consolar-se.

(D. Francisco Manuel de Melo, Apólog. Dialog., pág. 107 e seg.)


O LOBO E A RAPOSA

Quando tudo era falante,


Diz que a Raposa caiu
Num poço de água abundante:
Chegou um Lobo arrogante,
Que passava acaso, e a viu.

Duma polé pendurava,


Porque o poço era profundo,
Uma corda, a qual atava
Dous baldes: um no alto estava,
Noutro a Raposa no fundo.

Pois a bicha, que era arteira,


Chama o Lobo, e diz: — Senhor,
Já que eu não fui a primeira,
Socorrei vossa parceira,
Que eu sei que tendes valor.

Ora assim sem mais porfia


O Lobo, que é fanfarrão,
Já no balde se metia:
Ele cai, ela subia
Por uma mesma invenção.

Toparam-se ao perpassar;
E o Lobo, meio caindo,
Nem lhe ousava de falar;
Ela a rir, e a arrebentar
De se ver tão bem subindo.

Em fim ao medo venceu,


Fala o Lobo, e diz: — Comadre,
Isto vos mereça eu?
Ela a zombar do sandeu,
Nem lhe quis chamar Compadre.

Mas diz-lhe: Dum[59] vagabundo,


Teus queixumes não me empecem;
Acaba já de ir-te ao fundo:
Isto são cousas do mundo,
Quando um sobe, os outros descem.
(Id. Cart. VI, est. 21 e seg.)
O FILÓSOFO E O FANFARRÃO

C’um Filósofo chapado


Apostava um Fanfarrão,
A qual mais era, um cruzado;
O Fanfarrão era honrado,
O Filósofo vilão.

Cada qual das duas partes


Buscando a Justiça, apenas
(Que tu, Sorte, mal repartes)
Vão lá dar c’um Mestre em Artes,
Mestre das Artes de Atenas.

Chega o Fanfarrão, e alega


Por sextos progenitores,
Cuja fama ele hoje cega;
Cala, e o Filósofo chega,
O alega só seus suores.

Faz presente o estudo imenso,


O ânimo pronto à razão,
Seu juízo ao bem propenso;
Em fim que ali por extenso
Cada qual diz sim e não.

Eu já sei que o vosso intento,


Diz o Juiz sem receio,
É medir no entendimento
O próprio merecimento
C’o merecimento alheio.

Tu, que vens de altiva gente,


De cujo ser participas,
Não te nego a honra eminente:
Mas que importa, se vilmente
A não herdas, que a dissipas?

Porém tu, que entre os terrões


Das paternas semeadas[60]
Semeaste tais tenções,
Que todas tuas ações
Foram justas e regradas:

Se nunca errar procuraste,


Só do bem seguindo o esmo,[61]
Quando o creste, o imitaste,
Na virtude te geraste,
E foste pai de ti mesmo.

Quem logo o sangue turvou,


Não pode ser que mereça
Como aquele, que o apurou:
Neste a nobreza acabou,
Nest’outro agora começa.
(D. Francisco Manuel de Melo, Obras Métricas, cart. VIII, est. 16 e seg.)
JÚPITER E O SÁBIO

Diz que um Sábio impertinente


A Júpiter se queixava,
Porque no tempo presente
Já c’os homens não falava,
Qual falava antigamente.

Mas o Deus, porque entendesse


A gente a simples fadiga,
E a presente conhecesse,
Respondeu: Que qués[62] te diga,
Que o mundo te não dissesse?

Enquanto o mundo não viu


Casos de escarmentos vários,
Minha voz entanto ouviu:
Dei-lhe avisos necessários;
Chore, se os mal advertiu.

No que ontem foi, podes ver


O que há de ser amanhã;
Muito esperar, pouco crer;
A nova esperança é vã,
Se não crer o que não quer.

Se queres de pensamentos

Lançar pelo vento as redes,


Que só te caçam tormentos,
Queixa-te do mal que medes
Ditas e arrependimentos.

(D. Francisco Manuel de Melo, Obras Métricas, cart. IX, est. 25 e seg.)
O CONSELHO DOS RATOS

Os Ratos fizeram entre si uma grande, e a seu parecer, útil consulta (fábula é,
mas doutrinal), querendo dar remédio à perseguição que lhes faziam os Gatos;
pois raramente lhes escapavam das unhas; e dando cada qual seu parecer,
acordaram que se deitasse um grande chocalho no pescoço dos Gatos, e com isto
os não tomariam descuidados, pois ao tom do chocalho se poriam em cobro, ou
acautelariam. Contentes todos com a traça, que parecia boa, respondeu um mais
autorizado e velho: — E qual há de ser o primeiro da companhia, que se atreva a
deitar esse chocalho? — Aqui calaram e pasmaram todos.

(Fr. João de Ceita, Quadragen. I, pág. 244, col. I)


A TARTARUGA E A ÁGUIA

Viu a Tartaruga voar a Águia por esses ares com tanta soltura e liberdade,
quanta tem a rainha das Aves (fábula é com sua doutrina), e quis ela também
fazer o mesmo. Pediu com encarecimento à Águia a quisesse levar ao alto, e tirar
daquele poço, onde andava.
— És mui pesada, e impedida de membros e concha — lhe disse a Águia.
— Não importa isso nada — respondeu a Tartaruga —; que quem tão bem se
meneia na água, que faz mais resistência, por ser mais grossa, melhor o fará no
ar, que é mais delgado.
— Que não tens asas, nem instrumentos para te ter?
— Não releva[63] — replica ela —, isto quero experimentar.
— Pera que te pões nesses perigos? — lhe pergunta a Águia.
— Porque quero ser conhecida, e não estar toda a minha vida em um poço, ou
charco escondido; e se vós voais, também eu.
— Alto, vamos ambas acima.
Pega a Águia da Tartaruga, e em a largando, que esperais fosse dela? Caiu, e
fez-se em pedaços. E vem o Conto a dizer: Que se não há asas, ou posses, pera
que é querer voar ou dar de comer a ventos? Quem vive e se meneia no seu poço,
pera que quer ares? Quem na sua herdade ou quinta, pera que quer Corte, ou
Cidade? Quem no seu quartau[64], pera que em coches? Quem no pano
honesto, pera que em galas, ou mangas perdidas, senão pera se perder? — Oh!
que anda o outro assim, e é costume do tempo e da Cidade! — Quiçá[65] terá
asas o outro, com que possa sustentar esse fausto e esse vento; mas quem se não
pode bulir mais que uma Tartaruga, porque se não contenta com a sua concha,
ou com andar metido nelas?

(Fr. João de Ceita, Quadragen. I, pág. 244, col. I)


O HOMEM, O ÍDOLO E O TESOURO

Lá me lembra a mim fazer menção a Esopo, em uma Fábula sua, de certo


Homem, que tinha em sua casa um ídolo, alfaia de seus antepassados, os quais
fizeram dele seu mealheiro, ou depósito do seu dinheiro; porque além de o
terem ali mais escondido, cuidaram o tinham mais guardado, encomendado ao
seu Deus. O Homem, herdeiro da casa e do Ídolo, não sabendo do Tesouro deu
em pobreza (como dão muitos herdeiros de grandes casas); e achando não ter
outro meio mais eficaz pera se livrar da lazeira, que encomendar-se ao Deus,
pois o tinha de casa, começou de lhe fazer suas novenas e preces: e pera ter mais
efeito, ia-se ao campo todos os dias, e colhendo das flores e boninas, o enramava,
e com mil capelas o laureava, e punha nas mãos ramalhetes, despois perfumes,
etc. Continuou sua devoção per muitos dias; mas como o Deus era de pau tais
tinha as respostas. A lazeira cada vez era maior, a bolsa mais magra, a fome mais
viva; e quanto mais o apertavam as necessidades, mais deprecativas e brados
multiplicava, e o Deus não lhe acudia. Ele um dia enfadado de tanto buscar de
bonina, e fazer de ramalhetes sem proveito, deu-lhe a cólera e enviando-se ao
ídolo, lhe pegou per uma perna e deu com ele no chão: e como era já antigo e
carunchoso, quebrou em pedaços: começam de se espalhar os dobrões e as
moedas de caras, ouro velho e fino. Ele, que não cabia de contente, olha pera o
ídolo, e diz-lhe:
— E assim vos quereis vós? Por bem zombastes de mim e por mal me acudistes;
quisestes-vos por mal. — Vem a dizer isto, que há gente, que quanto mais a
animais, e fazeis de bem, mais de pedra e mais de pau se faz: vindes a tratá-la
como Deus, e não há fruta no mundo que não vá pera aquele Ídolo; as primícias,
que são de Deus, ele as logra; não há cravo, nem bonina, que suas mãos e narizes
não gozem; as cortesias e continências não têm número; mas pera vos fazer bem,
é falar com um pau, ou com um Ídolo feito dele; tais como estes, espedaçá-los e
maltratá-los, deitam alguma cousa.

(Fr. João de Ceita, Quadragen. pág. 267, col. 2)

NOTA: Encontra-se este tema nas Fábulas de Loqman: «O Homem e o Ídolo. —


Um homem tinha em casa um ídolo a que prestava culto e a quem oferecia cada
dia um sacrifício, até dar cabo de tudo o que possuía em despesas com o ídolo.
Apareceu-lhe o ídolo e lhe disse:
— Não desbarates o que te pertence por mim, que depois me deitarás a mim as
culpas. (Eis o conceito. Há tal que despende todos os seus bens no pecado, e que
depois pretende que foi Deus que o empobreceu.» (Fáb. 16, trad. de Joseph
Benoliel.)
É tema de uma simplicidade primitiva; mas na Fábula de Babrius A Estátua de
Mercúrio, há já o espírito crítico do génio grego:
«Um homem tinha um Mercúrio de pau; era um artista. Todos os dias lhe
oferecia libações e sacrifício, mas não melhorava de fortuna. Por fim, zangado
contra o Deus, agarrando-o por uma perna, atirou-o ao chão e escacou-se-lhe a
cabeça. Espalharam-se logo muitas moedas de ouro, que este tal foi apanhado e
dizendo:
— Mercúrio, tu és um deus esquisito e ingrato para os teus adoradores.
Enquanto me prosternei diante de ti não me concedeste nenhum dos teus
favores, agora que me arrebatei até ao ultraje, é que te tornas liberal. É um culto
inteiramente novo que eu desconhecia.» (Fábula CXVII. Trad. Beyer, 1844.)
AS DUAS MÃES

Vieram duas mulheres diante de Salomão com uma demanda notável. Traziam
consigo dois meninos, um morto outro vivo: o vivo cada uma dizia que era seu
filho, o morto cada uma dizia que o não era. Que faria o grande Rei nesta
perplexidade? — Parta-se o menino vivo pelo meio, e leve cada uma a sua parte.
— Ouvida a sentença, uma das mulheres consentiu, e disse, parta-se: a outra não
consentiu, e disse, viva o menino, e leve-o embora minha competidora. E qual
destas duas seria mãe? A que disse, viva o menino. Assim o julgou Salomão, e
assim era: porque a que disse morra mostrou que não amava; a que disse, viva
provou que amava, e da que amava o menino, desta era filho.

(P. António Vieira, Sermões, t. IV, pág. 367, n. 389.)


O QUE FAZ MAL A SI MESMO
POR FAZÊ-LO A OUTREM

Houve um rei antigamente neste mundo, que sabendo de dous vassalos seus, que
eram grandes inimigos entre si, mandou chamar o mais apaixonado, e disse-lhe:
— Quero-vos fazer uma mercê, e há de ser a que vós me pedirdes; com
advertência que a hei de fazer dobrada a fulano, de quem sei, sois grande
inimigo.
Beijou a mão ao rei pelo favor, e pediu logo por mercê, que lhe mandasse
arrancar um olho; porque assim seria obrigado a arrancar dous ao outro, para
que ficasse cego, ainda que ele ficasse torto. E bem cego estava, quando
procurava dano alheio sem proveito próprio
.
(Arte de Furtar, pág. 468 e seg.)
FÁBULAS DE ESOPO
(Vertidas do grego por Manuel Mendes, da Vidigueira)
I - O GALO E A PÉROLA

Andava o Galo esgravatando no monturo, para achar migalhas, ou bichos, que


comer, e acertou de descobrir uma pedra: disse então: — Pedra preciosa, ainda
que lugar sujo, se agora te achara um discreto Lapidário, te recolhera; mas a
mim não me prestas; mais caso faço de uma migalha, que busco para meu
sustento, ou dous grãos de cevada. Dito isto, a deixou, e foi por diante
esgravatando para buscar conveniente mantimento.
II - O LOBO E O CORDEIRO

Estava bebendo um Lobo encarniçado em um ribeiro de água, e pela parte de


baixo chegou um Cordeiro também a beber. Olhou o Lobo de mau rosto, e
disse, reganhando os dentes:
— Porque tiveste tanta ousadia de me turvar a água onde estou bebendo?
Respondeu o Cordeiro com humildade:
— A água corre para mim, portanto não posso eu torvá-la.
Torna o Lobo mais colérico a dizer:
— Por isso me hás de praguejar? Seis meses haverá que me fez outro tanto teu
pai.
Respondeu o Cordeiro:
— Nesse tempo, senhor, ainda eu não era nascido, nem tenho culpa.
— Sim, tens (replicou o Lobo) que todo o pasto de meu campo estragaste.
— Mal pode ser isso, disse o Cordeiro, porque ainda não tenho dentes.
O Lobo, sem mais razões, saltou sobre ele e logo o degolou, e o comeu.
III - O LOBO E AS OVELHAS

Havia guerra travada entre Lobos e Ovelhas; e elas, ainda que fracas, ajudadas
dos rafeiros, sempre levavam o melhor. Pediram os Lobos paz, com condição
que dariam de penhor seus filhos, e as Ovelhas que também lhe entregassem os
rafeiros. Assentadas as pazes com estas condições, os filhos dos Lobos uivavam
rijamente. Acodem os pais, e tomam isto por achaque de ser a paz quebrada; e
tornam a renovar a guerra. Bem quiseram defender-se as Ovelhas, mas como
sua principal força consistia nos rafeiros, que entregaram aos Lobos, facilmente
foram deles vencidas, e todas degoladas.
IV - O REI DOS BUGIOS E DOIS
HOMENS

Caminhavam dois companheiros, tendo perdido o caminho, depois de terem


andado muito, chegaram à terra dos Bugios. Foram logo logo levados ante o rei,
que vendo-os lhes disse: — Na vossa terra, e nessa por onde vindes, que se disse
de mim, e do meu reino? Respondeu um dos companheiros: — Dizem que sois
rei grande, de gente sábia, e lustrosa. O outro, que era amigo de falar verdade,
respondeu: — Toda vossa gente são bugios irracionais, forçado é que o rei
também seja bugio. Como isto ouviu o rei, mandou que matassem a este, e ao
primeiro fizessem mimos, e o tratassem muito bem.
V - A ANDORINHA E OUTRAS AVES

Semeavam os homens linho, e vendo-os a Andorinha disse aos outros pássaros:


— Por nosso mal fazem os homens esta seara, que desta semente nascerá linho, e
farão dele redes e laços para nos prenderem. Melhor será destruirmos a linhaça,
e a erva, que dela nascer, para que estejamos seguras. Riram as Aves deste
conselho e não quiseram tomá-lo. O que vendo a Andorinha, fez pazes com os
homens e se foi viver em suas casas. Eles fizeram redes, e instrumentos de caça,
com que tomaram e prenderam todos os pássaros, tirando só a Andorinha, que
ficou privilegiada.
VI - O RATO E A RÃ

Desejava um Rato passar um rio, e temia, por não saber nadar. Pediu ajuda a
uma Rã, a qual se ofereceu de o passar, se se atasse ao seu pé. Consentiu o Rato,
e tomando um fio, se atou pelo pé e na outra ponta atou o pé da Rã. Saltaram
ambos na água, mas a Rã com malícia trabalhava por se mergulhar, por que o
Rato se afogasse. O Rato fazia por sair para fora, e ambos andavam neste
trabalho e fadiga. Passava um milhano por cima e vendo o rato sobre a água, se
abateu per o levar, e levou juntamente a Rã, que estava atada com ele, no ar os
comeu ambos.
VII - O LADRÃO E O CÃO DE CASA

Querendo um Ladrão entrar em uma casa de noite para roubar, achou à porta
um Cão, que com ladridos o impedia. O cauteloso Ladrão, para o apaziguar, lhe
lançou um pedaço de pão. Mas o cão disse: — Bem entendo que me dás este pão
por que me cale, e te deixe roubar a casa, não por amor que me tenhas: porém já
que o dono da casa me sustenta toda a vida, não deixarei de ladrar, se não te
fores, até que ele acorde, e te venha estorvar. Não quero que este bocado me
custe morrer de fome toda a minha vida.
VIII - O CÃO E A OVELHA

Demandou o Cão à Ovelha certa quantidade de pão, que dizia haver-lhe


emprestado, ou dado na sua mão em depósito. Ela negou havê-lo recebido. Dá o
Cão três testemunhas, convém a saber: um Lobo, um Buitre e um Milhano, os
quais todos já vinham com o Cão subornados, e apostados a jurar em seu favor,
como com efeito juraram, dizendo que eles viram receber à Ovelha o pão, que se
lhe pedia. Vendo a prova, a condenou o Juiz a que pagasse; e como ela não
tivesse por onde, lhe foi forçado tosquiar o pelo, e vendê-lo ante tempo, do que
pagou o que não comera, e ficou nua padecendo as neves e frios do inverno.
IX - O CÃO E A CARNE

Levava um Cão na boca um pedaço de carne, passava com ela um rio, e vendo no
fundo da água a sombra da carne maior, soltou a que levava nos dentes, por
tomar a que via dentro na água. Porém como o rio levou para baixo com sua
corrente a verdadeira, levou também a sombra e ficou o Cão sem uma e sem
outra.
X - A MOSCA SOBRE A CARRETA

Sobre um carro de mulas, carregado, pousou uma mosca, e achou-se tão altiva
de ir a seu gosto, alta, que começou a falar soberba contra a mula dizendo que
andasse depressa, senão que a castigaria, picando-a onde lhe doesse. Virou a
mula o rosto dizendo: — Cala-te, parva sem vergonha, que não temo nem me
podes fazer nada; o medo que me causa é do carreteiro, que leva na mão o açoite,
que tu só com importunações cansas-me, sem me fazer outro mal.
XI - O CÃO E A IMAGEM

Buscando de comer, o Cão acertou de achar uma Imagem de homem, muito


primorosa, e bem-feita de papelão com cores vivas. Chegou o Cão a cheirar por
ver se era homem que dormia. Depois deu-lhe com o focinho e viu que se
rebolava, e como não quisesse estar queda, nem tomar assento, disse o Cão: —
Por certo que a cabeça é linda, senão que não tem miolo.
XII - O LEÃO, A VACA, A CABRA E A
OVELHA

Fizeram parceria um Leão, uma Vaca, uma Cabra e uma Ovelha, para que
caçassem de mão comum e partissem o ganho. Correndo sobre este concerto,
acharam um Veado, depois de terem andado e trabalhado muito, o mataram.
Chegaram todos cansados e cobiçosos da presa, e fizeram-no em quatro partes
iguais. O Leão tomou uma, e disse: — Esta é minha conforme ao concerto;
estoutra me pertence por ser mais valente de todos; também tomarei a terceira,
porque sou rei de todos os animais, e quem na quarta bulir, tenha-se por meu
desafiado. Assim as levou todas, e os parceiros se acharam enganados, e com
agravo, mas sofreram por serem desiguais na força ao Leão.
XIII - O CASAMENTO DO SOL

Dizem que em certo tempo desejou o Sol de se casar, e todas as gentes,


agravadas disso, se foram queixar a Júpiter, dizendo: — Que no estio
trabalhosamente sofriam um Sol, que com seus raios os abrasava, donde
inferiam e provavam, que se o Sol casasse e viesse a ter filhos, queimaria o
mundo todo; porque um Sol faria verão calmoso na Índia, outro em Grécia,
outro na Noruega e terras setentrionais; pelo que sendo todas as três zonas
tórridas, não teriam as gentes onde viver. Visto isto por Júpiter, mandou que
não casasse.
XIV - O HOMEM E A DONINHA

Um homem que caçava Ratos, prendeu na armadilha uma Doninha. Ela vendo-
se em seu poder, lhe disse que a soltasse, e alegou razões, dizendo: que ela
nenhum mal fazia, antes, lhe alimpava a casa de ratos e bichos, e sempre, por lhe
fazer bem, os andava matando. Respondeu o homem: — Se tu por fazer bem o
fizeras, devia-te eu agradecimento, mas como o fazes pelo comer, não te devo
nada, antes te quero matar, que se eles te faltarem, comer-me-ás o meu, pior do
que o fazem os mesmos ratos.
XV - A BUGIA E A RAPOSA

Rogava a Bugia à Raposa que cortasse a metade do seu rabo e lho desse,
dizendo: — Bem vês que o teu rabo arroja, e varre a terra, e é defeito por
demasiado; o que dele sobeja me podes prestar a mim, e cobrir-me estas partes,
que vergonhosamente trago descobertas. Antes quero que arroje, (disse a
Raposa) e varra o chão, e me seja pesado, que aproveitares-te tu dele. Por isso
não to darei nem quero que coisa minha te preste. E assim ficou sem ele a Bugia.
XVI - JUNO E O PAVÃO

Veio o Pavão a Juno muito queixoso, dizendo, por que razão o Rouxinol havia
de cantar melhor que ele, e ter-lhe outras muitas vantagens? Disse Juno, que
não se agastasse; que por isso tinha ele as penas formosas cheias de olhos, que
parecem estrelas. — Isso é vento (replicou o Pavão) mais tomara saber cantar.
Juno respondeu. Não podes ter tudo. O Rouxinol tem voz, a Águia força, o
Gavião ligeireza, tu contenta-te com tua formosura.
XVII - O LOBO E O GROU

Comendo o Lobo carne, atravessou-se-lhe um osso na garganta, que o afogava.


Estando nesta afronta, pediu ao Grou que lhe valesse nela, e com seu pescoço
comprido lhe tirasse do papo o osso. Fê-lo o Grou, tirou-lhe o osso, e estando
livre o Lobo, pediu-lhe alguma parte do muito que antes se oferecia a dar-lhe.
Porém o Lobo lhe respondeu: — Ó ingrato! Não me agradeces que te tivesse
metido a cabeça dentro na minha boca, e que pudera apertar os dentes e matar-
te. Não me peças paga, que obrigado me ficas, e assaz és de ingrato em não
reconheceres tão grande benefício. Calou-se o Grou, e foi muito arrependido do
que fizera, dizendo: — Nunca mais por gente ruim meterei a cabeça, e vida em
semelhante perigo.
XVIII - AS DUAS CADELAS

Tomando a uma cadela as dores de parir, e não tendo lugar donde parisse, rogou
a outra que lhe desse a sua cama e pousada, que era em um palheiro, e tanto que
parisse se iria com seus filhos. Fê-lo a outra com dó dela, e depois de haver
parido, lhe disse que se fosse embora; porém a boa hóspeda mostrou-lhe os
dentes, e não a quis deixar entrar, dizendo que estava de posse, e que não a
lançariam dali, senão fosse por guerra e às dentadas.
XIX - O HOMEM E A COBRA

Na força do chuvoso e frio inverno andava uma Cobra fraca e encolhida, e um


homem de piedade a recolheu, agasalhou e alimentou enquanto houve frio.
Chegado o verão, começou a Cobra a estender-se, e desenroscar-se, pelo que ele
a quis lançar fora; mas ela levantou o pescoço para o morder. O que vendo o
homem, tomou um pau, assanhou-se a Cobra, e começaram ambos a pelejar. De
que resultou ficar ela morta, e ele bem mordido.
XX - O ASNO E O LEÃO

O Asno simples e torpe encontrou-se com o Leão em um caminho; e de altivo, e


presunçoso, se atreveu a lhe falar, dizendo: — Vades embora companheiro.
Parou-se o Leão vendo este desatino e ousadia; mas tornou logo a prosseguir
seu caminho, dizendo: — Leve cousa me fora matar e desfazer agora este;
porém não quero sujar meus dentes, nem as fortes unhas em carne tão bestial e
fraca. Assim passou, sem fazer caso dele.
XXI - O RATO CIDADÃO E
MONTESINHO

Um rato que morava na Cidade, acertando de ir ao campo, foi convidado por


outro, que lá morava, e levando-o à sua cova, comeram ambos cousas do campo,
ervas e raízes. Disse o Cidadão ao outro: — Por certo, compadre, tenho dó de ti,
e da pobreza em que vives. Vem comigo morar na Cidade, verás a riqueza, e a
fartura que gozas. Aceitou o rústico e vieram ambos a uma casa grande e rica, e
entrados na despensa, estavam comendo boas comidas e muitas, quando de
súbito entra o despenseiro, e dois gatos após ele. Saem os Ratos fugindo. O de
casa achou logo seu buraco, o de fora trepou pela parede dizendo: — Ficai vós
embora com a vossa fartura; que eu mais quero comer raízes no campo sem
sobressaltos, onde não há gato nem ratoeira. E assim diz o adágio: Mais vale
magro no mato, que gordo na boca do gato.
XXII - A ÁGUIA E A RAPOSA

Tinha a Águia filhos e para os cevar levou nas unhas dois raposinhos tomados de
uma lousa. A mãe, que o soube, lhe foi rogar que desse seus filhos. Mas a Águia
lá do alto zombou dos rogos e disse que não deixaria de lhos comer. A raposa
magoada começou logo a cercar a árvore, onde a Águia tinha seu ninho, de
muitas palhas, tojos, paus secos e acendalhas de tal maneira, que pondo-lhe o
fogo, fez uma fogueira muito grande. Viu-se a Águia atribulada do fumo, e
labareda, e do receio que ardesse a árvore toda, lançou-lhe os filhos sem lhe
tocar, e quase ficou chamuscada pela indústria da Raposa.
XXIII - O GALO E A RAPOSA

Fugindo as Galinhas com seu Galo de uma Raposa, subiram-se em um


pinheiro, e como a Raposa ali não pudesse fazer-lhes mal, quis usar de cautela, e
disse ao Galo: — Bem podeis descer-vos seguramente, que agora acabou-se de
assentar paz universal entre todas as aves e animais; portanto vinde, festejaremos
este dia. Entendeu o Galo a mentira; mas com dissimulação respondeu: — Estas
novas por certo são boas e alegres, mas vejo acolá assomar três Cães; deixemo-los
chegar, todos juntos festejaremos. Porém a Raposa, sem mais esperar, acolheu-
se dizendo: Temo que o não saibam ainda, e me matem. Assim se foi e ficaram as
Galinhas seguras.
XXIV - O BEZERRO E O LAVRADOR

Tinha um Lavrador um Bezerro, forte e mimoso e pô-lo no jugo, com outro boi
manso; mas como o Bezerro o não quisesse tomar nem sofrer, com pancadas e
pedradas, trabalhava o Lavrador per o amansar. E disse ao Boi manso: — Não
te tomo com este para que lavres, que ainda não é para isso, senão para o
amansar de pequeno, porque depois que for touro madrigado não haverá quem
o amanse.
XXV - O LOBO E O CÃO

Encontrando-se um Lobo e um Cão em um caminho, disse o Lobo: Inveja


tenho, companheiro, de te ver tão gordo, com o pescoço grosso e cabelo luzidio;
eu sempre ando magro e arrepiado. Respondeu o Cão: — Se tu fizeres o que eu
faço, também engordarás. Estou em uma casa, onde me querem muito, dão-me
de comer, tratam-me bem; e eu tenho cuidado só de ladrar quando sinto ladrões
de noite. Por isso, se queres, vem comigo, terás outro tanto? Aceitou o Lobo, e
começaram a ir. Mas no caminho disse o Lobo: — De que é isso companheiro,
que te vejo o pescoço esfolado? Respondeu o Cão: — Porque não morda de dia
aos que entram em casa, estou preso com uma corda, de noite me soltam até pela
manhã, que tornam a prender-me. — Não quero tua fartura; respondeu o
Lobo: A troco de não ser cativo, antes quero trabalhar, e jejuar livre. E dizendo
isto se foi.
XXVI - OS MEMBROS E O CORPO

As mãos e os pés se queixavam dos outros membros, dizendo — que eles toda a
vida trabalhavam e traziam o corpo às costas, e tudo redundava em proveito do
estômago que comia sem trabalho; portanto que se determinasse a buscar sua
vida, que eles não haviam de dar-lhe de comer. Por muito que o estômago lhes
rogou, não quiseram tomar outra determinação, e assim começaram a negar-lhe
a comida: e ele enfraqueceu. Mas como juntamente enfraquecessem os pés e
mãos, tornaram depressa a querer alimentá-lo; mas como já a fraqueza fosse
muita, nada lhes valeu, e morreram todos juntamente.
XXVII - A ÁGUIA E A COREIXA

A Águia tomou nas unhas um Cágado para cevar-se, e trazendo-o pelo ar, e
dando-lhe picadas, não podia matá-lo, porque estava mui recolhido em sua
concha. Embravecia-se muito com isso a Águia, sem lhe prestar, quando chega a
Coreixa, e diz: — A caça que tomastes é em extremo boa, mas não podereis
gozar dela senão por manha. Disse a Águia que lhe ensinasse a manha e partiria
com ela da caça. A Coreixa o fez dizendo: — Subi-vos sobre as nuvens, e de lá
deixai cair o Cágado sobre alguma laje, quebrará a concha e ficar-nos-á a carne
descoberta. A Águia assim o fez; sucedendo como queriam, comeram ambas da
caça.
XXVIII - A RAPOSA E O CORVO

O Corvo apanhou um queijo, e com ele fugindo, se poisou sobre uma árvore.
Viu-o a Raposa, e desejou de lhe comer o seu queijo: e pondo-se ao pé da árvore,
começou a dizer ao Corvo: — Por certo que és formoso, e gentil-homem, e
poucos pássaros há que te ganhem. Tu és bem-disposto e mui galante; se
acertaras de saber cantar, nenhuma ave se comparará contigo. Soberbo o Corvo
destes gabos e desejando de lhe parecer bem, levanta o pescoço para cantar;
porém abrindo a boca, caiu-lhe o queijo. A Raposa o tomou e foi-se, ficando o
Corvo faminto e corrido de sua própria ignorância.
XXIX - O LEÃO E OS OUTROS
ANIMAIS

Estava um Leão doente e fraco de velho, e vindo um Porco-Montês, que lhe


lembrou ser maltratado dele noutro tempo, deu-lhe uma forte trombada, e
passou. Veio um Touro e escornou-o, e outros muitos animais por se vingarem
o maltrataram. Por derradeira veio um asno e deu-lhe dous couces, com que lhe
derrubou as queixadas. Chorava o Leão, dizendo: — Tempo sei eu que todos
estes só de meu bramido tremiam e nenhum havia tão forte, que não fugisse de
se encontrar comigo, agora que me veem fraco, todos querem vingar-se, e não
há quem não se me atreva.

NOTA: João de Deus, com a sua intuição poética tratou artisticamente o tema
desta fábula alegorizando no Leão velho Portugal caído no meio das fações
políticas da pedantocracia liberal, ao serviço de uma dinastia tarada: Leão
moribundo. Achou-se um dia o rei dos animais / Por velhice ou doença moribundo, / E
(há casos neste mundo / Incríveis, mas reais...) / Quem dantes mais solícito o servia, / É
que às portas da morte o injuria! // Veio o cavalo e deu-lhe uma patada! / Veio o lobo,
ferrou-lhe uma dentada, / Veio o boi, arrumou-lhe uma marrada! / Ele, coitado, manso
como um lago, / Apenas lhes lançou um olhar vago. // Mas, quando ouviu um zurro, / E
olhando então deveras, / Viu aos pinotes vir correndo o burro... / Ah! pressentindo a
injúria, / O forte de outras eras, / Rei dos bosques e feras, / Em suma, o grande, o
generoso, o forte, / Arranca das entranhas / Um gemido, um rugido, um uivo, um urro, /
Que retumbou por vales e montanhas: / «Antes a morte! a morte! / A morte! a morte!»
(Campo de Flores, p. 252. Ed. 1897.)
XXX - AS RÃS E JÚPITER

As Rãs, no outro tempo, pediram a Júpiter que lhes desse rei, como tinham
outros muitos animais. Riu-se Júpiter da ignorante petição, e deferindo a ela,
lançou um madeiro no meio da lagoa. Começaram as Rãs a ter-lhe respeito,
porém desde que entenderam que não era cousa viva, de novo tornaram a
Júpiter pedindo rei. Agastado Júpiter da importunação, deu-lhes a Cegonha,
que começou a comê-las uma a uma. Vendo elas esta crueldade, foram-se com
queixas, e por remédio a Júpiter, mas ele as lançou de si, dizendo: — Andai para
loucas: já que vos não contentastes do primeiro rei, sofrei este, que tanto me
pedistes.
XXXI - AS POMBAS E O FALCÃO

Vendo-se as Pombas perseguidas do Milhano, que as maltratava de quando em


quando, e buscando como poderiam livrar-se, quiseram valer-se do Falcão.
Tomou este o cargo de as defender; mas começou a tratá-las muito pior,
matando-as e comendo-as sem piedade. Vendo-se sem remédio, diziam: Com
razão padecemos, pois não nos contentando do que tínhamos, soubemos tão mal
escolher cousa que tanto nos importava.
XXXII - O PARTO DA TERRA

Em certo tempo, começou a Terra a dar urros, e inchar, dizendo que queria
parir. Andava a gente mui pasmada, e cheia de temor, e receosa que nascesse
algum monstro proporcionado com a mãe, que pudesse destruir o mundo todo.
Chegado o tempo do parto, estando todos juntos suspensos, pariu a Terra um
Murganho, e ficou sendo riso o que antes era medo.
XXXIII - O GALGO VELHO E SEU
AMO

A um Galgo velho, que havia sido muito bom, se lhe foi uma lebre dentre os
dentes, porque quase já os não tinha. O amo por isso o açoitou cruelmente, e
lançou de si, como cousa que nada valia. Disse o Galgo: Deves, senhor, lembrar-
te como te servi bem enquanto era moço, quantas lebres tomei, e quanto me
estimavas: agora que sou velho, e estou posto no osso, por uma que me fugiu,
me açoutas, e lanças fora, devendo perdoar-me e pagar-me bem o muito que te
tenho servido.
XXXIV - AS LEBRES E AS RÃS

Vendo-se as Lebres corridas dos Galgos e espantadas de todos os animais,


assentaram, por não passar tanto sobressalto, de se matarem afogadas em um rio;
e querendo dá-lo à execução, como corressem com ímpeto para se arremessarem
na água, chegando à borda dela viram grande número de Rãs saltarem com
medo na ribeira. Reportaram-se as Lebres um pouco, e mudando o conselho,
disseram: — Pois que vivem estas Rãs, havendo medo de nós e de todos os que
no-lo causam, soframos nós a vida, que já há outros mais acossados e medrosos.

NOTA: Acha-se nas Fábulas de Babrius, n.º XXIV: «As lebres resolveram pôr
termo à vida, indo-se precipitar na água turva de um charco, pois que eram os
mais medrosos dos animais, que na sua poltroneria só tinham fôlego para fugir.
Assim que elas chegaram junto de um grande charco, viram sobre as suas
margens uma multidão de rãs, que de um salto se precipitaram no lodaçal. As
lebres estacaram, e uma delas, enchendo-se de coragem disse:
— Vamo-nos embora. Já não é preciso morrer, porque ainda há quem tem mais
medo do que nós.» (Trad. Beyer, p. 29.)
XXXV - O LOBO E O CABRITO

Uma Cabra, indo pastar ao campo, deixou o filho em casa e mandou-lhe que
não abrisse ao Urso, nem Lobo, que ali viesse, porque morreria. Ida ela veio um
Lobo, e fingindo a voz de Cabra, começou a afagar o cabrito, dizendo — que
lhe abrisse, que era sua mãe. Ouvindo isto o Cabrito, chegou a porta e por uma
fenda olhou, e viu o Lobo, e sem outra resposta virou as costas e recolheu-se em
casa. O Lobo foi-se, e ele ficou salvo.
XXXVI - O CERVO, O LOBO E A
OVELHA

Demandava o Cervo à Ovelha falsamente certo trigo, que dizia haver-lhe


emprestado. A Ovelha pudera negar-lho, mas receou, porque estava um Lobo,
de companhia com o Veado, e assim com dissimulação lhe disse: Rogo-te por
tua vida, que esperes alguns dias, e então averiguaremos nossas contas, que eu te
pagarei quanto te dever. Foi contente o Cervo. Porém tanto que ambos se
encontraram sem o Lobo estar presente, a Ovelha o desenganou, que nem lhe
devia trigo, nem lho devia de pagar.
XXXVII - A CEGONHA E A RAPOSA

Sendo amigas a Cegonha com a Raposa, a Raposa a convidou um dia a jantar.


Chegado o tempo, preparou a Raposa ardilosa uma comida líquida, manjar
como papas e a estendeu por uma lousa, e importunava a Cegonha a que
comesse. Mas como ela picava na lousa, quebrava o bico, e nada tomava nele,
com que se foi faminta para o ninho. Mas por se vingar, convidou a Raposa
outra vez e lançou o manjar em uma almotolia, donde comia com o bico, e
pescoço comprido. E a Raposa não podendo meter o focinho, se tornou para sua
casa, corrida e morta de fome.
XXXVIII - A GRALHA E OS PAVÕES

Fez-se a Gralha bizarra e louca vestindo-se de penas de Pavões, que pediu


emprestadas e desprezando as outras Gralhas, andava com os Pavões de mistura.
Porém eles lhe pediram as suas penas, e começando a depená-la, todos lhe
levavam penas e carne no bico. Depois querendo chegar-se às outras, ainda que
com temor e vergonha, diziam elas: Quanto te valera mais contentares-te com o
que te deu a natureza, que quereres mudar de estado; para vires a este em que
estás, pelada, ferida e vergonhosa.
XXXIX - A FORMIGA E A MOSCA

Entre a Mosca e a Formiga houve grande altercação sobre pontos de honra.


Dizia a Mosca: — Eu sou nobre, vivo livre, ando por onde quero, como viandas
preciosas, e assento-me à mesa com o rei, e dou beijos nas mais formosas damas.
Tu mal-aventurada, sempre andas trabalhando. Respondeu a Formiga: Tu és
douda ociosa. Se pousas uma vez em prato de bom manjar, mil vezes comes
sujidades e imundícias, aborrecida de todos; se te pões no rosto das damas ou à
mesa com o rei, não é por sua vontade, senão porque tu és enfadonha e
importuna.
XL - A RÃ E O TOURO

Andava um grande Touro passeando ao longo da água, e vendo-o a Rã tão


grande, tocada de inveja, começou de comer, e inchar-se com vento, e
perguntava às outras se era já tão grande. Responderam elas que não. Torna a
Rã segunda vez, e põe mais força por inchar; e desenganada do muito que lhe
faltava para igualar o Touro, terceira vez inchou tão rijamente, que veio a
arrebentar com cobiça de ser grande.
XLI - O CAVALO E O LEÃO

Viu o Leão andar comendo o Cavalo em um outeiro, e cuidando em que


maneira faria que lhe esperasse para o matar, chegou-se com palavras amigas,
dizendo que era médico, se queria que o curasse. O Cavalo, que o conheceu e
entendeu, disse com dissimulação:— Em verdade, vens, amigo a bom tempo,
que tenho neste pé um estrepe de que estou maltratado. Chegou-se o Leão a
ver-lhe o pé; e o Cavalo o levantou e lho assentou nas queixadas, em modo que
ficou embaraçado; e tornando em si, vendo era ido o Cavalo, disse: — Por certo
que fez bem em me ferir e ir-se, pois eu queria comê-lo e não curá-lo.
XLII - AS AVES E O MORCEGO

Havia guerra travada entre as Aves e outros animais, que, como eram fortes,
andavam as Aves maltratadas e vencidas. Temeroso disto, o Morcego passou-se
do bando contrário e voava por cima dos animais de quatro pés, posto já de sua
parte. Sobreveio a Águia em favor das Aves, e alcançaram vitória. E tomando o
Morcego, em castigo de traição, lhe mandaram que andasse sempre pelado e às
escuras.
XLIII - O CAVALO E O ASNO

Indo o Cavalo com jaezes ricos de seda e ouro de muito preço, encontrou no
caminho um Asno carregado, e disse-lhe com muita soberba: Animal
descomedido, porque não me dás lugar; e te desvias para que eu passe? Calou e
sofreu o pobre Asno. Mas daí a poucos dias emanqueceu o Cavalo, e puseram-no
de albarda para servir. Acertou o Asno de o achar carregado de esterco, e disse-
lhe: — Que vai, irmão, onde está vossa soberba, porque não mandais agora que
me arrede, como fazias em outro tempo?
XLIV - O FALCÃO E O ROUXINOL

O Falcão uma manhã se apossou do ninho onde o Rouxinol tinha seus filhos, e
quis matá-los. Começou o Rouxinol com muita brandura a rogar-lhe que não os
matasse, e que o serviria. Disse o Falcão, que era contente, se cantasse de modo
que o satisfizesse. Começou o triste Rouxinol a cantar muito sentido, e suave.
Porém o Falcão mostrando-se descontente da música, começou a comê-los.
Chega nisto por detrás um caçador e lança ao Falcão um laço em que o prendeu
e o levou arrastos, e o Rouxinol ficou livre.
XLV - AS ÁRVORES E A MACHADA

Um machado de aço bem forjado, faltando-lhe o cabo, sem ele não podia cortar.
Disseram as Árvores ao Zambujeiro, que lhe desse o cabo. E como o machado
esteve encavado, um homem com ele começou a fazer madeira, e destruir o
arvoredo. Disse então o Sobreiro ao Freixo: — Nós temos a culpa, que demos
cabo ao Machado para nosso mal; porque a não lho darmos, seguras pudéramos
estar dele.
XLVI - O ASNO E O MERCADOR

Um tendeiro caminhando para a feira levava um Asno carregado de


mercadorias, que de mui fraco, andava devagar. O Mercador cobiçoso com
desejo de chegar, dava tanto no Asno, que não podia bulir-se, que caiu no
caminho com a carga e morreu. Depois de morto o esfolaram e da pele lhe
fizeram um tambor, em que andavam de contínuo rangendo e batucando.
XLVII - O RATO E A DONINHA

Uma Doninha, como de velha e cansada, não pudesse já caçar, usava esta manha:
Enfarinhava-se toda e punha-se mui queda a um canto da casa. Vinham alguns
Ratos que cuidando ser outra coisa, chegavam por comer, e ela os comia. Por
derradeiro veio um Rato velho, que tinha já escapado de muitos trances, e posto
de longe disse: — Por mais artes que uses, não me colherás. Engana tu a esses
pequenos; mas eu, conheço-te bem, não hei de chegar a ti. E dizendo isto, foi-
se.
XLVIII - A RAPOSA E AS UVAS

Chegava a Raposa a uma parreira, viu-a carregada de uvas maduras e formosas,


e cobiçou-as. Começou a fazer suas diligências para subir, porém como estavam
altas e íngreme a subida, por muito que fez, não pôde trepar; pelo que disse: —
Estão uvas em agraço e botar-me-ão os dentes, não quero colhê-las verdes, que
também sou pouco amiga delas. E dito isto se foi.
XLIX - O PASTOR E O LOBO

Fugiu um Lobo de um caçador que vinha em seu seguimento, e diante de um


Pastor se escondeu em umas moutas, rogando-lhe que se o caçador lhe
perguntasse, dissesse era ido. Ficou o Pastor de o fazer. E chegado o caçador,
perguntando pelo Lobo, o Pastor lhe dizia que era ido, mas com a cabeça lhe
acenava para onde estava; não atentou o caçador nos acenos, e foi-se. Saiu o
Lobo e disse-lhe o Pastor: — Que vai amigo, muito me deves, bom valedor
tiveste em mim. Valeu-me a mim minha ventura, (respondeu o Lobo) e não te
entender o caçador, pelo que nada te devo, antes se bendigo a tua língua,
amaldiçoo a tua cabeça, que tanto fez por me descobrir.
L - O ASNO E A CACHORRINHA

Vendo o Asno que seu amo brincava com uma Cachorrinha, e se alegrava com
ela, e a tinha à mesa, dando-lhe de comer, porque o afagava vindo de fora e
saltava nele, creio que se o outro tanto lhe fizesse, também seria estimado; e com
essa inveja se vai ao senhor em entrando de fora e pondo-lhe as mãos sobre os
ombros, começou a lamber-lhe o rosto com a língua. Espantado o amo, brada, e
acodem os criados e a poder de muitas pancadas tornaram a meter o Asno em sua
estrebaria.
LI - O LEÃO E O RATO

Estando o Leão dormindo, andavam uns Ratos brincando ao redor dele, e


saltando-lhe por cima, o acordaram. Tomou ele um entre as mãos, e estava para
o matar, mas pelo, ter em pouco, e pelos muitos rogos, com que lhe pedia, o
soltou. Sucedeu daí a pouco tempo cair o Leão em uma rede, onde ficou liado,
sem poder valer-se de suas forças. E sabendo-o o Rato, tal diligência pôs, que
roeu brevemente os laços e cordéis, e soltou o Leão, que se foi livre, em paga da
boa obra que lhe fez.
LII - O MILHANO E SUA MÃE

Estando o Milhano enfermo e receando a morte, que via já chegada, rogou de


propósito a sua mãe que fizesse, por sua saúde, romarias aos Santos. Respondeu
ela: De boa vontade, filho, as fizera, mas temo que não te prestem; porque como
gastaste a vida toda em males e sempre com teu esterco sujaste os Templos dos
Santos, receio que não me queiram ouvir, ainda que os rogue por sua saúde.
LIII - O PORCO E O LOBO

Estava uma Porca com dores de parir, e um faminto Lobo se chegou a ela,
dizendo que era seu amigo, e tinha dó de a ver desamparada, que queria servir-
lhe de parteira. Bem entendeu a Porca que vinha ele por lhe comer os filhos; e
dissimulando disse: — que não pariria enquanto ele ali estivesse, que era mui
vergonhosa, e que se pejava dele, que era seu afilhado; portanto, que se fosse e a
deixasse parir, e que depois tomaria. Fê-lo o Lobo assim, mas em se desviando
dali, a Porca também se foi buscar um lugar seguro em que parir.
LIV - O VELHO E A MOSCA

Repousava à soalheira um Velho calvo, com a cabeça descoberta, e uma Mosca


não fazia senão picar-lhe na calva. Acudia logo o Velho com a mão, e como ela
fugisse mui depressa, dava em si mesmo grandes palmadas, de que a Mosca
gostava e se ria. Disse o Velho: — Ride-vos, embora, de quantas vezes eu der
em mim; que isso não me mata, mas se uma só vez vos acerta, ficareis morta, e
pagareis o novo e o velho.
LV - O CORDEIRO E O LOBO

Andava um Cordeiro entre as cabras e chegou o Lobo, dizendo-lhe: Não é este


o teu rebanho, vem comigo, levar-te-ei a tua mãe. Respondeu o Cordeiro: —
Não quero; porque esta Cabra me quer muito, e me faz mais mimo que a seu
próprio filho. Contudo (replicou o Lobo) melhor estarás com tua mãe. Bem
estou aqui (disse o Cordeiro) não quero provar ventura, que por bem que me
suceda, não deixará o pastor de me tirar o velo, e ficarei morrendo de frio.
LVI - O HOMEM POBRE E A COBRA

Um homem pobre costumava afagar e dar de comer a uma Cobra, que em sua
casa trazia; e enquanto assim o fez, tudo lhe ia por diante. Depois, por certa
agastadura, fez-lhe uma grande ferida. E vendo que tornava a empobrecer, com
muitas palavras e humildade lhe pediu perdão. Respondeu a Cobra: — Eu de
boamente te perdoo, mas não te há de isto prestar para deixares de ser pobre;
que esta ferida sempre me há de doer, e sempre há de estar pedindo vingança de
ti.
LVII - O BUGIO, O LOBO E A RAPOSA

Querelou o Lobo da Raposa, dizendo que fizera um furto. Era juiz o Bugio. E
a Raposa negou fortemente, disputando ambos diante do juiz e cada um
descobriu quantas maldades sabia do outro. Depois de o Bugio os ouvir,
pronunciou a sentença, dizendo: que o Lobo não provara bem ser-lhe feito
furto: mas que ele entendera que a Raposa tinha furtado alguma cousa;
portanto, condenava a ambos que ficassem entre si sempre desavindos, e
suspeitosos.
LVIII - A FAIA E A CANANOURA

A Faia alta e direita não queria dobrar-se ao vento, antes vendo a Cananoura
que se meneava facilmente, a aconselhava que estivesse tesa, sem dobrar-se.
Respondeu a Cananoura: — Tu podes resistir e eu não, que não tenho raízes
compridas, nem sou forte como tu és. Dizendo isto, veio um pé de vento com
braveza, que arrancou a Faia com raízes e tudo; mas a Cananoura, que se
dobrou, ficou em pé.
LIX - A FORMIGA E A CIGARRA

No inverno tirava a Formiga da sua cova à assoalhar o trigo, que nela tinha, e a
Cigarra com as mãos postas lhe pedia que repartisse com ela, que morria à fome.
Perguntou-lhe a Formiga: que fizera no estio, porque não guardara para se
manter? Respondeu a Cigarra: — O verão e estio, gastei a cantar e passatempos
pelos campos. A Formiga então, perseverando em recolher seu trigo, lhe disse:
— Amiga, pois os seis meses de verão gastaste em cantar, bailar é comida
saborosa e de gosto.

NOTA: Por muito velha e universal que seja uma fábula, ela pode pela
alegorização receber um sentido novo, atualizando-se. Assim, representando na
Formiga o povo que trabalha, e na Cigarra a aristocracia que se diverte, faz-se o
quadro do conflito que sintetiza a Revolução Francesa. No poemeto Leviatã,
trata-se assim o tema esópico: Debaixo de um sol de agosto, / Na fadiga / A que a
precisão obriga, / Gira da aurora ao sol posto / A Formiga. // Aqui sobe, ora além desce,
/ Quase esbarra; / De manhã, ‘té que anoitece / Canta ociosa de entre a messe / A
Cigarra. // Chega a enxurrada de outubro: / — Minha amiga! / Fome negra... este
olhar rubro... / Que horrenda crise descubro! / Ai Formiga. // Com frio, faminta,
inquieta / Seu mal narra; / Responde a outra: «Pateta! / Cura a febre com dieta, / Mãe
Cigarra. // Chasqueavas-me em agosto, / Na fadiga / Com descuidada cantiga; / Hoje,
vai-te e dança ao gosto / Da Formiga.» // E foi o Seis de outubro o grande dia / Da
tremenda Justiça! Dia amargo, / Embate de dois mundos. / Pelo caminho que a
Versalhes guia, / Irrompe a multidão que expande ao largo / Doestos iracundos. (Visão
dos Tempos, C. IV, 221).
LX - O CAMINHANTE E A ESPADA

Achou um Caminhante uma Espada bem guarnecida em meio da estrada, e


perguntou-lhe, quem a perdera, e deixara ali. Calou-se ela e esteve queda.
Depois, sendo outra vez perguntada, respondeu: — Ninguém me perdeu a
mim, ainda que me vês lançada neste chão, antes eu fiz perder a muita gente;
que dando ocasiões a brigas, matei alguns homens de que resultou ficarem
perdidos os matadores, e os mortos mais perdidos se não estavam em graça;
porque caminharam para o Inferno.
LXI - O ASNO E O LEÃO

Encontrando-se em um caminho o Asno com o Leão, lhe disse: — Subamos a


um outeiro, que quero que vejas os muitos animais, que hão medo de mim. Riu-
se o Leão e foi com ele. Zurrou o Asno, e fez fugir grande número de lebres,
coelhos, zorras e outros semelhantes. Disse-lhe então: — Que te parece? Vês
este medo com que fogem de mim? Fogem de ti (respondeu o Leão) os fracos,
que são os que cobram medo de ouvir bradar; mas eu sem brados desfaço às
mãos os mais valentes; pelo que de nenhum, nem de ti tenho temor.
LXII - A GRALHA E A OVELHA

Uma Gralha ociosa pousou sobre o pescoço da Ovelha, e ali a repelava, e lhe
tirava a lã, picando-a por entre ela. Virou a Ovelha o rosto, dizendo:
— Esta manha ruim e antiga havereis de deixá-la esquecer, que podeis ir picar
um rafeiro no pescoço e matar-vos-á levemente. Respondeu a Gralha:
— Já sou velha, e muito feia e conheço a quem posso agravar e a quem devo
afagar. Não temas que me ponha no pescoço do cão, senão no teu, que me não
podes fazer mal.
LXIII - O BOI E O VEADO

Por fugir o Veado de um caçador, se acolheu à vila, e entrando medroso em uma


estrebaria, achou o Boi, a quem perguntou — se podia esconder-se ali. Disse o
Boi, que era muito certo o morrer e que antes devera tornar-se ao mato, e
contudo o escondeu, e o cobriu de palha. Veio o dono da estrebaria e olhando
por ele, viu as pontas do Veado. Foi descobri-lo, e achou o que era. Mas disse-
lhe: Já que de tua vontade vieste à minha casa, não te quero matar, senão
defender e fazer muitos mimos.
LXIV - O HOMEM E O LEÃO

Andando o Leão à caça, meteu um estrepe no pé, com que não podia bulir-se.
Encontrou um homem e mostrou-lhe para que lho tirasse. Fê-lo assim o
homem, e o Leão em paga partiu da caça com ele. Dali a muito tempo foi
tomado este Leão para certas festas e nelas se lançavam homens para que os
matassem. Entre eles lhe lançaram este que o curou, que estava preso por
algumas culpas. Porém o Leão não só o não matou, antes se pôs em sua guarda, e
o acompanhou toda a vida, caçando para ele.
LXV - O LOBO E A RAPOSA

O Lobo se aparelhou e proveu sua cova muito bem de mantimento. A Raposa


chegou e disse que obrigada de amor andava atrás dele, por vê-lo e servi-lo. Não
quero o teu serviço, (disse o Lobo) que tua intenção não é senão roubar-me e
comeres-me o que eu tenho. Vendo-se a Raposa alcançada, buscou quem
matasse o Lobo, e meteu-se de posse da sua cova, e de quanto estava nela, mas
sobrevindo uns caçadores, foi achada dos cães e feita em pedaços.
LXVI - O LEÃO E OUTROS ANIMAIS

Eleito o Leão rei de todos os animais, prometeu de a nenhum fazer mal. E logo
chamando-os a cortes, os pôs por ordem, e corria-os, dando-lhes a cheirar o seu
bafo. Os que diziam que lhes cheirava mal, os matava. Os que diziam que bem,
feria-os. Andando assim, chegou à Mona, e perguntou-lhe, como a todos, se lhe
fedia o bafo. A Mona o cheirou, e dizendo que não fedia, se foi. Porém o Leão,
per a matar, se fingiu doente, e disse que sararia se a comesse. E por esta manha
tomou ocasião de a matar.
LXVII - O VEADO E O CAÇADOR

Bebendo o Veado em uma ribeira, viu nos seus cornos ramos e as pernas
delgadas, pareceram-lhe as pernas mal, e ficou pesaroso de as ter, e por outra
parte tão satisfeito da formosura dos cornos, que se fez soberbo de contente.
Ainda bem não saía da água, quando dá sobre ele um Caçador. Foi-lhe forçado
valer-se dos pés, que pouco antes desprezara, e eles o punham em salvo. Mas
entrando por um arvoredo basto, embaraçavam-se-lhe os cornos com os ramos
das árvores, com que se embaraçou e foi tomado. Pelo que dizia, vendo-se preso
e ferido: Grande parvo fui; que o que me era bom desestimei, fazendo muito
caso do que me causou a morte.
LXVIII - A BICHA E A LIMA

Buscando a Bicha de comer na tenda de um ferreiro, foi topar com uma lima e
quis roê-la, mas como os dentes não entravam pelo aço, dava-lhe muitas voltas
virando-a de todas as bandas. Enfadada a Lima de andar aos tombos, lhe disse:
Que fazes, parva? Não sabes que sou de ferro, e lima? Por muito que trabalhes
desfarás os dentes; eu com os meus de aço bem temperado, cortarei dentes e
qualquer arma a quem chegar, em pouco tempo.

NOTA: É a Fábula 28 de Loqman: O Gato. Eis a sua versão do árabe por


Joseph Benoliel: «Um gato entrou uma vez na oficina de um ferreiro, e
encontrando uma lima caída, pôs-se a lambê-la com a língua. Ora começou a
correr-lhe sangue da língua e como ele julgasse que era da lima foi-o engolindo,
e continuou até que se lhe fendeu a língua e morreu.» (Op. cit., p. 85.)
LXIX - OS CARNEIROS E O
CARNICEIRO

Estando juntos uns Carneiros, entrou o Carniceiro, e eles não se alvoroçaram,


nem fizeram caso disso. Tomou o Carniceiro um e logo o matou; e nem com ver
sangue temeram os outros. Foi por diante e os matou a todos um a um até o
derradeiro, que, vendo-se manietado, disse: — Por certo, com razão padecemos,
pois vendo o nosso mal não quisemos entendê-lo. No princípio às marradas nos
poderíamos defender, vendo que nos matavam, então não quisemos; agora eu só
não posso: e assim acabámos todos.
LXX - O LOBO E O ASNO DOENTE

Estava o Asno maldisposto, e foi o Lobo visitá-lo, fazendo-se muito amigo.


Tomou-lhe o pulso, correu-lhe a mão pelo rosto e disse: que queria curá-lo.
Estava o Asno quedo, bem desejoso de se ver a cem léguas do Lobo, o qual lhe
apalpava os membros todos: perguntou onde lhe doía, e apertava-o e arrepelava-
o tanto, que disse o Asno: — Onde quer que me pões a mão, logo aí me dói; mas
rogo-te que te vás e não me cures, que ido tu, sararei logo.
LXXI - A PULGA E O CAMELO

Pôs-se uma Pulga sobre um Camelo carregado, e deixou-se ir sobre a carga uma
jornada, no fim da qual saltou abaixo, e sacudindo-se, disse: Folgo em verdade
de me descer: porque tinha dó de ti; agora irás leve com pouca carga. O Camelo
se riu deste cumprimento e respondeu: — Nunca te senti se te levava em cima,
nem tu podes carregar-me nem aliviar-me; que não tens peso para isso. A carga
que eu levo, essa sinto. Tu não tens peso para te sentirem.
LXXII - O CAÇADOR E AS AVES

Consertava um pobre Caçador as varas do visco; e as Aves olhando, estavam


cantando à sombra das árvores e gabando-o de benfeitor e primoroso. Um
pássaro já experimentado lhes disse aos outros: — Fujamos logo todos, porque
este que vedes, não quer mais que enviscar-nos e prender-nos. Andemos pelo ar,
até ver o que acontece a outra; porque este e todos como ele, quantos de nós
houverem às mãos, ou lhes torcem o pescoço, ou lho cortam, e mortos, ou presos
nos metem em sua taleiga.
LXXIII - O CERVO E O CAVALO

Pelejaram algumas vezes sobre o pasto, o Cervo e o bom do Cavalo, e porque o


Veado com os cornos fez sempre fugir o Cavalo, foi-se a um homem e disse-lhe:
— Põe-me um freio, uma sela e sobe sobre mim, e matarás um Veado que aqui
anda. Fê-lo o homem assim. E morto o Veado, quis o Cavalo que se apeasse;
mas o homem acolheu-se à posse e o Cavalo ficou sempre sujeito ao freio e sela,
e a andar debaixo.
LXXIV - O BUITRE E MAIS PÁSSAROS

O Buitre convidou a banquete todas as outras aves, dizendo que queria


solenizar o seu natal. Vieram muitas delas e recolhendo-as todas em um
aposento, depois que foram horas de cear, como todas estivessem assentadas
esperando, vem o Buitre e cerra as portas, e começa a matá-las a uma e uma.
Todas com medo avoejavam, por não haver alguma que se atrevesse com ele. E
enfim ele sem piedade as matou, porque para isso as convidou ou ao menos para
as pilhar.
LXXV - A RAPOSA E O LEÃO

Fingindo-se o Leão enfermo, visitavam-no os outros animais; e de quantos


entravam na cova, nenhum deixava sair. Eles obedeciam como a rei, mas o Leão
a um e um os comia todos. Por derradeiro chegou a Raposa à porta da cova e
perguntou-lhe: — como estava? Respondeu o Leão, — porque não entrava a
vê-lo? Respondeu a Raposa — que não era necessário, que devia estar a casa
cheia de gente; que ela via muitas pegadas dos que entravam, e nenhuma de que
saíssem para fora.
LXXVI - O CARNEIRO GRANDE E OS
PEQUENOS

Três Carneiros moços e um marroço andavam passando. Saiu o velho correndo


e fugindo. Os outros estavam pasmados, sem saber a causa, e como não
entendiam seu perigo, riam-se do medo, e fugida do marroço, o qual vendo-os
escarnecer-lhes, disse: — Vós sois loucos e ignorantes; não vedes que quando
vem o carniceiro sempre mata os maiores? Eu por isso fujo. Mas quando ele vier
e vos matar, pesar-vos-á de terdes escarnecido e esperado.
LXXVII - O LEÃO E O HOMEM

O Homem com o Leão altercavam sobre qual era mais valente. O Homem, para
provar sua tenção, o levou a um sepulcro, onde estava de pedra um homem
afogando um Leão, que tinha debaixo de si. O Leão se riu de ver isto, dizendo:
— Se não fora homem o que isto aqui pôs, pudera ter algum crédito, mas sendo
homem é suspeito. Portanto, deixemos pinturas e provemos isto pelo braço. E
logo isto dito estendeu o Homem no chão, e o matou com muita facilidade.[66]
NOTA: É entre as fábulas de Loqman, a 7.ª; ei-la traduzida do árabe: «Um
Leão e um Homem iam uma vez em sociedade pelo caminho. Puseram-se
ambos a conversar, e travaram uma contenda a respeito da força e do valor do
ânimo. O Leão insistia na ponderação da sua força e da sua valentia. Nessa
ocasião avistou o homem, numa parede, um quadro representando o homem a
estrangular um leão, e pôs-se a rir. Então o Leão lhe disse: — Na verdade, se os
leões soubessem pintar como os filhos de Adão, não seria o homem que afogaria
o leão, mas o leão que afogaria o homem.» (Op. cit. p. 27).
A PANELA DE BARRO E A DE COBRE

Uma corrente de água levava duas panelas, uma era de cobre, outra de barro, e
cada uma ia por sua banda. Disse a de Cobre à outra: Cada uma de nós só não
tem força para fazer resistência à água, mas chega-te a mim, e ambas poderemos
resistir-lhe. Não quero (disse a de barro) nem me vem bem, porque se na água
tu me deres uma topada, ou ta der a ti, de qualquer maneira tu ficarás sã, e eu
far-me-ei em pedaços.
Moralidade
Quem faz bando com homem mais poderoso, corre grande risco, porque enfim
os poderosos são de cobre, e os pobres de barro, e sempre quebra a corda pelo
mais fraco. E se dois poderosos têm brigas, e depois querem concertar-se, fazem
tão pouco caso da honra dos pobres, que os ajudaram nelas, que muitas vezes
fazem concertos, como fez Augusto com Lépido, e Marco António, que por se
vingarem de seus inimigos, cada um entregou seus amigos à morte.
O CÃO E O SEU DONO

Um Cão de um Hortelão chegou ao poço, e como em baixo viu sua figura,


começou a afeiçoá-la; e tanto fez, e buliu, que caiu no poço. Andava o Cão meio
afogado, e o Hortelão com dó dele desceu abaixo junto da água, para o tirar, e
como lhe pegasse, o Cão lhe meteu os dentes no braço, e o atravessou: o
Hortelão o largou com a dor, e o Cão daí a pouco afogou-se.
Moralidade
Per este Cão se entende o pecador, que quando alguém com bons conselhos o
quer tirar do poço dos pecados, vira-se e morde-o com afrontas de obras; mas o
que ganha o tal é que seu ajudador o larga, e se Deus não lhe acode afoga-se, e
acaba em seus vícios, para ir começar a pagá-los no Inferno.
A NORA E A SOGRA

Uma mulher casada, que tinha sogra, estava muito mal com ela, e uma à outra se
tinham má vontade. Acertaram de mandar a esta mulher certas cousas de doce,
entre as quais vinha uma mulher, feita de espécie. E disse quem as trazia que
aquela era a figura de sua sogra. Ela partiu uma migalha, que meteu na boca, e
tornando-a a cuspir, disse: Basta que é sogra, que até de açúcar amarga.
Moralidade
Além de mostrar esta fábula humana cousa tão ordinária como é ódio entre
noras e sogras, também nos ensina quão má cousa é o ódio, e quanto para fugir,
pois faz que o açúcar pareça fel; como se vê muitas vezes, quando a boa obra,
que um inimigo faz a outro; ele a não quer aceitar, antes a despreza, e tem por
ruim.
O LADRÃO E O ANJO

Dormia o Ladrão ao longo de uma parede, e viu entre sonhos um Anjo, que o
acordava, dizendo: Levanta-te, e guarda-te daqui. Acordou o Ladrão, e
apartando-se da parede, viu-a vir de súbito ao chão. Ficou deste acontecimento
muito alegre, e soberbo, crendo que por sua virtude o guardara Deus. Mas
tornando a dormir, tornou a ver o Anjo, que lhe dizia: Não te ensoberbeças, que
se ontem te guardei, foi porque não era aquela tua morte, senão a da forca, para
que estás guardado.
Moralidade
Na forca do Inferno vão parar os que das mercês, que Deus lhes faz, tomam
ocasião de o ofender, e serem mais soberbos. E esta fábula nos avisa e ensina que
a muitos favorece a fortuna por seu mal. Muitos vivem, que lhes fora melhor
morrer. Pelo que um filósofo, escapando de uma casa, que se arruinou e matou
muita gente, disse com humildade: Ó ventura! para que ocasião me terás
guardado?
A RAPOSA E O LEÃO

Tinha a Raposa sua cava bem fechada, e estava-se dentro gemendo, porque
estava enferma; chegou à porta um Leão, e perguntou-lhe como estava, e que
lhe abrisse, porque a queria lamber, que tinha virtude na língua, e ele
lambendo-a, logo havia de sarar. Respondeu a Raposa de dentro: Não posso
abrir, nem quero: creio que tem virtude a tua língua; porém é tão má vizinhança
a dos dentes, que lhe tenho grande medo, e portanto quero antes sofrer-me com
meu mal.
Moralidade
Avisa-nos esta raposa, que quando nos oferecem alguma obra boa, notemos as
circunstâncias dela, que às vezes são tais, que custam muito mais do que vale a
obra pia.
O SOLDADO E O PÍFANO

Um Soldado velho aposentado e enfadado da guerra, por se tirar de ocasiões,


assentou de queimar todas as armas que tinha; e pondo-o em efeito, tinha entre
elas um Pífano, o qual lhe rogava que não quisesse queimá-lo, dizendo que ele
não era arma, nem instrumento de matar ou ferir, pelo que não merecia pena.
Tu a mereces maior (respondeu o Soldado) e a ti hei de queimar primeiro;
porque não prestando tu para pelejar, atiçavas os outros, se matassem na peleja; e
logo o queimou com as armas.
Moralidade
Na figura do Pífano se mostra o castigo que merecem alguns cobardes, que
servem de urdir brigas com a língua, e tomam o ofício do Diabo, tecendo
meadas, e incitando a mal, gente perniciosa na República, e que os delitos, que
por sua causa se fizessem, deveram ser castigados em dobro.

(Manuel Mendes)
O LOBO ESFAIMADO

Passando um lobo esfaimado por uma casa, ouviu chorar dentro um menino, e
lhe dizia a mãe: — Se choras, hei de te dar ao lobo. Este, parecendo-lhe ser
aquilo assim, esperou um pouco; porém vendo que, sossegando-se o menino, a
mãe, fazendo-lhe carícias, lhe dizia: Se vier o lobo havemos matá-lo, uivando
partiu dali, dizendo: Esta diz uma cousa, e faz outra! Há muitos cobiçosos, que
cegos da sua utilidade, esperam cousas impossíveis.

(Marques Soares, Divertimento de Estudiosos, t. II, p. 62)


AS DUAS RÃS

Duas Rãs, que se achavam em um charco, secando-se este com o calor do verão,
foram em busca de outro, e achando no caminho um poço, disse uma: Parece-
me que entremos para ele. Respondeu-lhe a outra com mais acerto: Por nenhum
modo farei tal; porque secando-se esta água, como a outra, não poderemos sair.
É ofício do Sábio prever e evitar os futuros danos.

(Id. ib., p. 64)


O CAÇADOR E A REDE

Estendia um Caçador suas redes. Um Melro, que o viu, perguntou-lhe o que


fazia. Respondeu-lhe o Caçador, que edificava uma cidade; e acabando de
espalhar as redes, escondeu-se. O Melro, dando-lhe crédito, chegou-se para ver
o novo edifício, e caiu na rede. Saiu o Caçador para apanhá-lo, e o Melro lhe
disse mui indignado: Homem falso, e enganador, se assim edificas tal cidade,
poucos habitadores lhe acharás.

(Id. ib., p. 135)


O LOBO MORDIDO PELO CÃO

Sendo um Lobo mordido gravemente por um Cão, estava estirado na terra, em


se poder erguer. Vendo passar uma Ovelha, pediu-lhe que lhe trouxesse uma
pouca de água de um rio, que por ali corria, dizendo-lhe, que, se lhe dava de
beber, ele lhe daria de comer. Entendeu a Ovelha ser aquilo assim; trouxe-lhe de
beber, e contra sua vontade também de comer. A malícia faz grande dano aos
simples.

(Id. ib., p. 136)


QUEIXUMES DO PORCO
(Versão da ilha da Madeira)

Fui chamado à cidade
No mês do Natal um dia,
Pera eu feitorizar
Grande casa morgadia:
E levei, p’ra meu negócio,
Uma cabra, sua cria,
Um porco e um carneiro,
Comigo de companhia.
Vai o porco vagaroso,
Arrastado bem par’cia;
Todos os mais vão calados,
Só o porco se carpia;
Os gemidos que ele dava
A cabra não os sofria:

— Cal’-te porco. Porque choras?


(A cabra ao porco dizia)
Vês o carneiro calado,
Eu calada também ia;
O filho que vai comigo
Nem de mamar me pedia.
Para tu já de grunhir,
Que ninguém te sofreria
Por tão longa caminhada
Tão seguida gritaria.

O porco, sem se calar,


Estas razões respondia:

— Cada qual conta da festa


Como na festa lhe iria.
Vocês vão viver no pasto
Com farta comedoria,
O carneiro, p’ra dar lã,
E tu, leite cada dia:
Mas cá eu, só dou toicinhos,
Só minhas carnes daria;
Tenho meus dias contados,
Só me espera a agonia.

Tinha o porco razão.


Quem também não chiaria?
Pola festa do Natal
O triste porco morria.

(Romanceiro do Arquipélago da Madeira, p. 452)


NOTA: Nas fábulas de Loqman, vertidas do árabe em português, pelo exímio
hebraizante Joseph Benoliel, vem esta lição primitiva: O Homem e o Porco. Um
homem carregou um dia num jumento, um carneiro, uma cabra e um porco, e
foi vendê-los à cidade. O carneiro e a cabra não se agitaram nem se mexeram
sobre o animal; quanto ao porco, esse debatia-se de contínuo e não podia estar
quieto. Disse-lhe o homem:
— Ó tu, o pior dos animais, porque é que o carneiro e a cabra estão calados e
sossegados, ao passo que tu nem te acalmas nem te aquietas?
— Ó meu amo, respondeu o porco, cada um porta-se conforme o que mais lhe
convém. Ora, eu sei que o carneiro é procurado pela sua lã, e a cabra pelo seu
leite; enquanto eu, infeliz de mim! sem lã e sem leite, apenas chegar à cidade,
logo serei mandado matar, sem a menor dúvida. (Fábulas de Loqman, p. 56.
Lisboa, Imprensa Nacional, 1898.)
João de Deus metrificou esta fábula com extraordinário relevo artístico,
tornando-a uma bela obra de arte. Na versificação varia o âmbito dos versos nos
seus hemistíquios quebrados, fazendo dessa polimetria modulações de um
grande poder dramático e descritivo.
BIBLIOGRAFIA DE CONTOS
POPULARES PORTUGUESES
Histórias de Proveito e Exemplo, de Gonçalo Fernandes Trancoso. Lisboa. António
Alvares, 1575. I vol. in-8.°.
Contos Populares Portugueses, coligidos por Francisco Adolfo Coelho. Lisboa,
1879.
Contos Tradicionais do Povo Português, com notas comparativas e um estudo
sobre novelística geral. Porto, 1883. 2 vols.
Contos Nacionais para Crianças, por F. A. Coelho. Porto, 1883. i vol. in-32.
Portuguese Folk-Tales, collected by Consilieri Pedroso and translated from
original ms. by Miss Henriqueta Monteiro, with and Introduction by W. R. S. Ralston.
London, 1882. I vol. (Na Revista Lusitana foram publicados 15 destes contos da
coleção portuguesa. — Acham-se atualmente impressos em volume independente.)
Romanceiro do Arquipélago da Madeira, colig. por Álvaro Rodrigues de Azevedo.
Funchal, 1881. (Traz alguns contos metrificados extensamente.) In-8.°.
Contos Tradicionais do Algarve, por F. Xavier de Ataíde Oliveira. Tavira, 1900. Vol.
1, de 480. In. 8.° grande. Vol. II. Porto, 1905. In-8.° grande de 527.
As Mouras Encantadas e os Encantamentos do Algarve, por F. Xavier de Ataíde
Oliveira. Tavira, 1898. I vol. de 309 p.
Contos Populares do Brasil, coligidos pelo Dr. Sílvio Romero, com um estudo sobre
a novelística brasileira e notas comparativas por Teófilo Braga. Porto, 1885, I vol. in-
8.° de 235 pág.
Contos Tradicionais Portugueses (Para as crianças) por Ana de Castro Osório. Com
ilustrações de Raquel Gameiro e Hebe Gonçalves. Setúbal, 1606. In-8.° de 129 p. (2.ª
ed.) — Outro: Setúbal, 1905, de 144 p. — Outro: Setúbal 1905. In-8.° de 143 p. —
Outro: Setúbal, 1906, in-8.°, de 143 p. (Formam a BIBLIOTECA INFANTIL: 11.ª, 12.ª,
13.ª e 14.ª séries).
Old Deccan Days, or bindoo fairy Legends current in Southern India collected
from oral tradition, by M. Frere. London, 1870. In-8.° XXXVI — 300 p. (Importante
sob o ponto de vista português, pois foram narrados estes contos por uma
portuguesa, Ana Liberata de Sousa, com o retrato dela).
Notas
[1] Folclore Andaluz, p. 126; R. Marin, Contos populares españoles, t. II, p. 196.

[2] Cancioneiro Português da Vaticana Canç. n.º 455.

[3] Livre des Legendes, p. 167.


[4] Orto do Esposo, fl. 73, v.

[5] Leal Conselheiro, p. 81.

[6] Ibidem, p. 7.

[7] Ibidem, p. 192

[8] Antiquités de Russie, p. 151.

[9] Ticknor, Hist. da Literatura Esp., t. III, p. 25, not. 38.

[10]Comprova-se a doutrina destes capítulos com as notas dos contos Bilha de


Azeite (p. 99); O Pajem da Rainha (150); O Anjo e o Eremita (p. 163); e Gaia (p.
174).
[11] P. Francisco da Fonseca, Évora Gloriosa, p. 627.

[12] Gil Vicente, apud. Gallardo, p. 983.

[13] Ainda hoje jogo popular

[14] Alfred Maury, Fées, pág. 11.

[15] Berger de Xivrey, Traditions tératologiques, pág. 265.

[16] Obras, t. II, pág. 489.

[17] Canc. Ger., t. II, pág. 367.

[18]Os contos de Trancoso tornaram-se tipos do género: «Finalmente para


prova do que tem dito, conta dois casos, que me parecem de Trancoso.» Frei
Arsénio da Piedade. Reflex. Apologéticas, p. 34.
[19] Contos, p. 153, ed. 1642

[20] Ibidem, p. 46.


[21] Ibid., p. 247.

[22] Ibid., p. 208.

[23]Annalis Campidenenses. — Nic. Frischlini, Comedia; Hildegardis magna. —


Cf. Vinc. Bellovac., Sp. Hist. VII, c. 90 -- 02, e o velho poema alemão Crescentia.
Grandes semelhanças da Imperatriz Porcina com a Patraña 21, de Timoneda.
[24]Lê-se no volume I do Panorama: «publicou um grande número de Autos e
outras obras, humildes pelo estilo, mas com toques tão nacionais e tão gostosos
para o povo, que ainda hoje são lidos por este com avidez.» — Pág. 14.
[25] Dic. Bibl., vol. I, Baltasar Dias.

Garrett, Romanceiro, t. III, pág. 19. O Snr. Inocêncio dá-o como original de
[26]
Baltasar Dias.
[27] Ticknor, Histoire de la littérature espagn., pág. 223.

Victor Le Clerc, Discours sur I'état des lettres en France au quatorzième siècle,
[28]
pág. 53.
[29] Op. cit., pág. 146.

[30] Carta de 11 de Nov. de 1566 (Corpo Diplomático, t. XIII, p. 372). Nesta data já

havia sete dias que era o rei falecido.


[31]Nos Sermões improvisados do P. António Vieira, ele intercalava anedotas e
casos, com que tornava interessante a prédica. E escrevia D. Francisco Manuel
de Melo, aludindo a um grande interesse: «Como quem manda lançar tapete de
madrugada em São Roque para ouvir o P. Vieira.» (Carta de 25 de janeiro de
1650.)
Satisfação de Agravos e Confusão de Vingativos, por modo de Diálogo, entre
[32]
um Ermita e um Soldado. Dividido em dois tratados com Exemplos e Histórias
Notáveis em confirmação. Autor o P. M. João da Fonseca, da Companhia de Jesus,
Évora, com as licenças necessárias na Oficina da Universidade e Ano de 1700.
(Licenças de 1605).
[33] Op. cit., p. 441.

[34] Ibid., p. 511.

[35] Obras, p. 342.

[36]Ibid., t. III, p. 60. Por este texto se vê a verdade da nossa interpretação do


texto de Jorge Ferreira.
[37] Obras de Nicolau Tolentino, p. 93. Ed. Castro Irmão.
Por exemplo: as Parábolas de Sindabar. Vid. Ensaio sobre as Fábulas Indianas,
[38]
de Loise-leur des Longchamps, p. 655; — Histoire littéraire de la France, t.
XXIII, pág. 165.
Fabliaux, t. III. — Vid. Charles Nizard, Hist. des livres populaires, t. I, pág.
[39]
267.
[40]«Quanto à aptidão estética do fetichismo, ela é evidentíssima, para exigir
agora um exame especial. Porque, o sistema que nos assemelha diretamente
todos os seres, até aos mais inertes, convém eminentemente à nossa expansão
poética musical e mesmo plástica.» (Política Positiva, t. III, p. 101.)
[41] Ramalho Ortigão, nas suas Farpas, traz o conto do Manto do Rei, porventura
conhecido pela coleção de Andersen, mas já desde o século XIV vulgarizado na
Península pelo Conde de Lucanor, de D. João Manuel. Em um outro número das
Farpas, traz o conto do lazarento que não quer que lhe enxotem as moscas; este
conto é de Esopo (col. do Planudes) e Josefo cita-o nas Antiguidades Judaicas
(Livro XVIII, cap. 8) em nome de Trajano.
[42]O Dr. João Teixeira Soares, iniciando na ilha de S. Jorge esta investigação,
escrevia-nos acerca do folclore açoriano: «Aconteceu o outro dia passar aqui
uma noite a Maria Inácia. Chamei-a e à minha criada para junto desta mesa de
trabalho para as interrogar sobre contos populares a que o povo chama casos.
Desculparam-se da falta da memória juvenil, para entrarem francamente neste
campo, contudo disseram bastante para me deixarem estupefacto. Que
peripécias! que maravilha! que poesia! Afirmaram-me unanimemente que seria
impossível ao investigador mais diligente formar uma coleção completa de todos
os casos sabidos do povo: — Todos escritos, enchiam esta casa! disse a Maria
Inácia.»
[43] Aos estudos do folclore português chamou Antero de Quental, erudição em
delírio; e a filosofia positiva, considerou-a uma banalidade francesa: «O
positivismo, como quase todas as cousas banais, e particularmente as banalidades
francesas, parece claro, não pede esforço algum da inteligência para ser
compreendido.» (Cartas, p. 102) Junqueiro seguiu-o, considerando a filosofia
positiva própria para discutir depois de um bom jantar burguês.
Diante destes perentórios juízos, devem causar pena, Bain e Stuart Mill que
estudando juntos a filosofia positiva concluíram que era um sistema perfeito,
aplicando-a à renovação da lógica moderna; Littré e Spencer, um devendo-lhe a
disciplina mental da sua erudição e crítica histórica, este outro o valor da ideia de
evolução para construir o sistema da filosofia sintética; Maudslay confessa
quanto a orientação atuou na sua Patologia do Espírito, e Carey segue Comte na
organização da sua Economia Social; grandes fisiologistas como Charles Robin,
Claude Bernard e o matemático Pierre Laffite, autor das lições de Filosofia
Primeira, reconheceram em Comte o coordenador do pensamento moderno,
como fora Descartes para o século XVII.
[44]Breve Composição e Tratado, agora tirado das Antiguidades de Espanha:
Que trata de como El-Rei Almançor morreu em Portugal junto da cidade do
Porto, onde chamam Gaia, às mãos d’el Rei Ramiro com sua gente, donde
também cobrou e matou sua mulher chamada Gaia, que estava com este Mouro,
da qual ficou este lugar chamado do seu nome. Composto por João Vaz natural
da cidade de Évora, em versos de oitava rima e dirigido a Dom Miguel de
Meneses, Marquês de Vila Real, etc. Em Lisboa com todas as licenças
necessárias. Por António Alvares. 1630. (In 4.° pequeno.)
Segue um Soneto ao justiçado da Conspiração de 1641.
[45]Contos Tradicionais do Algarve, t. II, p. 116. A segunda parte do Conto é em
prosa, continuando a cena do reconhecimento e o casamento com o príncipe.
Vê-se que este tipo das novelas bizantinas também tomava a forma de romance
cavalheiresco narrativo em monólogo de solau: Na Lusitânia nasci / Ora vivo
forasteiro, / Por tirar do cativeiro / Quem me cativou a mi. // Eu sou quem na Barberia
/ Comprei a graça real; / Trouxe-a livre a Portugal / E perdi minha alegria. // E
resultou-me d’aqui / Tormento grave, excessivo, / Porque tirei de cativo / Quem me
cativou a mi. // Deci a tanta baixeza, / Porque pus meu coração / Na suma da perfeição
/ Que tem o estado e alteza. // Perdi lembrança de mi: / Deixei de ser cavaleiro, / Por
tirar do cativeiro / Quem me cativou a mi.
Vem no Conto II, da Parte segunda dos Contos e Histórias de Proveito e Exemplo,
de Trancoso, intercaladas na narrativa e cantadas pelo mancebo na Corte de
Inglaterra, dando-se assim a conhecer à princesa quem a resgatara do cativeiro
de Fez.
[46] Para o cortesão.

[47] Outra cousa.

[48] Ao mesmo tempo.

[49] Esta fábula é imitação de Horácio, liv. II, Sátir. 6. v. 79 e segs.

[50] Imitação de Horácio, liv. I, Epist. I, v. 73 e segs.

A Raposa não quis entrar na cova do Leão, porque observou que as pegadas dos
outros animais todas iam para dentro, e não tomavam para fora.
(Vieira, Serro., tom. X, pág. 248, col. I.)
[51] Porco novo de mais de ano.

[52] De qualquer cousa.

Sobre este Apólogo pode ler-se o que se acha escrito no tomo V das
[53]
Memórias de Literatura Portuguesa, pág. 108 e seg.
[54] Mal, dano. — Esta fábula é imitação de Horácio, liv. I, Epist. 10, v. 34 e seg.

[55] Sagaz, astuta.

[56] Vid. Sénec. Epist. 50, verb. Harpasten, ou Vieira, Serm. 1, col. 669 e seg.

[57] Sobre a.

[58] Costumavam.

[59] Dom.

[60] Sementeiras, campos semeados.

[61] Estimativa, trilho, rumo.

[62] Queres.

[63] Não importa.

[64] Cavalo pequeno de má raça.

[65] Talvez, porventura.

[66]Merece estima esta tradução das Fábulas de Esopo, feita da língua grega, por
Manuel Mendes, professor de Latim e considerado humanista dos fins do século
xvi. Teve o seu livrinho numerosas edições: 1603, 1611, 1643, 1673, 1705 e 1778,
rolandiana, in-8.° pequeno, de VII-155 p. e 4 de índice n.n.
Manuel Mendes da Vidigueira ajuntou a cada Fábula de Esopo a Moralidade
com certa ingenuidade; e acrescentou-lhes, uma Segunda parte, como
Suplemento às Fábulas de Esopo, com quinze Fábulas portuguesas, umas
colhidas da tradição popular e de anedotas vulgares com sua Moralidade.
Transcrevemos por isso seis destas fábulas, de valor folclórico.

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