Você está na página 1de 15

O papel do racismo na construção do Egito branco1

Juliana Aparecida de Souza Guilherme. Centro Universitário Claretiano.


Historiadora, Professora de História na rede pública e Especialista em
História e Cultura Afro-brasileira e Africana.

Resumo
A pesquisa investigou como o racismo foi parte integrante no branqueamento do Egito e
na sua eventual “retirada” do continente africano, a partir de ideais imperialistas
europeus, que causaram uma cisão entre a civilização egípcia e o continente africano.
As consequências estão presentes nos livros didáticos e nos livros comerciais, em que o
Egito muitas vezes não é associado à África. Buscou-se também uma tentativa para
reafricanizar o Egito a partir de uma bibliografia que tenta resgatar a origem africana do
país em questão, levando em consideração a perspectiva africana e a relação existente
entre o Egito antigo e os demais povos africanos.
Palavras-chave: Egito, racismo, reafricanização.
Abstract
The research investigated how racism was an integral part in the bleaching of Egypt and
its eventual " withdrawal" of the African continent from European imperialist ideals,
which caused a rift between the Egyptian civilization and the African continent. The
consequences are present in textbooks and trade books, that Egypt is not often
associated with Africa. It also sought an attempt to reafricanization Egypt from a
bibliography that tries to rescue the African origin of the country in question , taking
into account the African perspective and the relationship between ancient Egypt and
other African peoples.
Keywords: Egypt, racism, reafricanization.

Introdução
Este trabalho tem como principal objetivo apresentar de que forma o Egito se
tornou um país branco, através do racismo que atingiu seu auge no século XIX, com o

1
Artigo apresentado para a obtenção do título de Especialista em História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana, pelo Centro Universitário Claretiano, em 2013.
Imperialismo e com o surgimento da Egiptologia - ciência que estuda o Egito antigo -
para que se fundamentasse a ideia de um Egito não africano, portanto não negro.

O trabalho está dividido em três partes: a primeira apresenta os feitos realizados


pelos egípcios antigos na Filosofia, confirmando o seu status de civilização, diga-se
africana e negra; a segunda parte apresenta o racismo como principal fator no
branqueamento do Egito e sua consequente "retirada" da África, o que legitimou
estereótipos negativos sobre o continente que, infelizmente, perduram até os dias de
hoje, além de apresentar as consequências dessa retirada ideológica; a terceira e última
parte apresenta uma tentativa de reafricanização do Egito para uma nova História
africana livre de racismos.

Este trabalho surgiu da dúvida que trago desde a faculdade com relação ao Egito
antigo, pois o mesmo apesar de ser um país africano, dificilmente é referido como tal.
Geralmente, seus feitos são oriundos de sua “única relação” com o Oriente ou com o
Ocidente. Também percebi em meu trabalho docente, que os alunos do 6º ano do ensino
fundamental dificilmente relacionam o Egito ao continente africano, o associando à
Europa ou à Ásia. Com isso, procurei as bases dessa distorção histórica tão presente na
história do Egito.

1. O papel do racismo na construção do Egito branco

O objetivo desse artigo é apresentar como o racismo possibilitou o


branqueamento do Egito e a sua “retirada” do continente africano. O branqueamento
esteve ligado ao Imperialismo europeu do século XIX, em que as nações europeias
adentraram o continente africano para dominar econômica, cultural e ideologicamente o
território. Mas como legitimar a “inferioridade” africana quando o Egito nos mostra o
contrário? Foi necessário “branqueá-lo”, apresentar uma nação magnífica construída por
brancos, para que o restante da África pudesse ser dominada sob o pretexto de se levar a
civilização aos povos “bárbaros”. Portanto, nesse sentido, entende-se por retirada a
questão ideológica, até porque não seria possível geograficamente retirar o Egito da
África.

A seguir, será apresentada a Filosofia como um ramo do vasto conhecimento


egípcio, ressaltando sua origem africana e sua autonomia enquanto império, pois se
observa que muitas vezes a história do Egito é apresentada apenas subjugada por outros
povos: gregos, romanos, árabes e britânicos.

1.1 Conhecimento egípcio

Nesta etapa do trabalho, será exposta a Filosofia como um grande feito realizado
e desenvolvido pelos egípcios, portanto, não será uma cronologia de sua história, pois
existem inúmeros livros que a fazem dos seus primórdios aos dias atuais. O principal
objetivo é desmistificar a ideia de um Egito apenas branco, sem o fator negro, portanto
africano, como civilizador. O mais importante nesse momento é enfatizar que o Egito é
um país africano, localizado no nordeste do continente, cortado pelo imenso Rio Nilo,
que possui como uma das nascentes o Lago Vitória, que pertence aos países Tanzânia,
Uganda e Quênia.

Os egípcios formaram uma das grandes civilizações da antiguidade, sendo


responsáveis por vários feitos, entre eles: Filosofia, matemática, medicina, astronomia,
engenharia e agricultura. Também não será aprofundado em todos esses ramos do saber,
ficará restrita à Filosofia, que originalmente foi uma criação egípcia, porém, houve uma
tentativa de não caracterizá-la como tal, ficando para os gregos o mérito de sua criação.

Muito se ouve sobre a origem grega da filosofia, que data do século VI a.C. com
Tales de Mileto, porém, o chamado “primeiro filósofo da história” estudou no Egito
antigo, assim como vários filósofos e matemáticos gregos, entre eles, Pitágoras. Ainda
sobre Tales de Mileto, o mesmo é apresentado no trabalho de Jostein Gaarder, intitulado
“O mundo de Sofia”2 (Apud Nascimento, 2001 p.126), em que o mesmo foi capaz de
calcular a pirâmide, perceber o crescimento das plantações após o recuo das cheias do
Nilo e que o Egito é um lugar desabitado, dando a entender que os gregos eram os
únicos habitantes do território que hoje corresponde ao Egito. Com isso, há uma nítida
negação do que foi toda a civilização egípcia, que a pesquisadora Elisa Larkin
Nascimento sintetiza de forma objetiva:

[...] Assim, numa espécie de passe de magia branca, apaga-se o


conhecimento construído por uma civilização ao longo de quatro
milênios e surge o grego como o primeiro construtor da filosofia e da
ciência. O problema é que a pirâmide e a produção agrícola do povo
do rio Nilo são frutos da construção, ao longo de milênios, de um
profundo e desenvolvido conhecimento humano. (Nascimento, 2001
p. 127)

Ao analisar um pequeno tópico sobre o que foi a Filosofia africana, pode se


perguntar sobre o que ocorreu para que todo o conhecimento egípcio fosse “transferido”
para os gregos. Percebemos que os próprios gregos antigos reconhecem a dívida cultural
para com o Egito, mas essa usurpação não ocorreu na antiguidade, mas sim na chamada
“Era Moderna”, em as potências europeias precisavam legitimar a dominação no
continente africano, portanto desqualificar qualquer criação autóctone, por isso a
tentativa de branquear o Egito ou transferir os seus feitos para as “verdadeiras
civilizações”, e entende-se por civilizados os povos europeus, que nesse caso são os
gregos.

A seguir, será aprofundada a questão do racismo como causador do


branqueamento do Egito e sua eventual “retirada” do continente.

2.2 O racismo como principal fator no branqueamento do Egito e sua


consequente "retirada" da África

2
Para mais detalhes, ler a obra de Jostein Gaarder, O Mundo de Sofia, Nova York: Berkeley Books,
1994.
Primeiramente, é necessário definir o que é racismo. No Novo Dicionário
Aurélio da Língua Portuguesa, racismo é “s.m. 1. Doutrina que sustenta a superioridade
de certas raças. 2. Qualidade, sentimento ou ato de indivíduo racista.” (Ferreira, 1986 p.
1443).

Para entender como se deu essa ideia de que o Egito não pertence à África,
precisamos entender primeiramente que houve uma tentativa de “retirá-lo” do
continente africano. Porém, essa retirada não aconteceu na questão geográfica, até
porque seria impossível mudar algum país do continente ao qual pertence apenas por
desejos imperialistas, mas sim na questão ideológica, que por vezes pode ser muito mais
destrutiva, pois acontece no campo das ideias e nega o direito à verdade, uma vez que a
mesma foi distorcida para satisfazer os desejos da classe dominante, e é nesse ponto que
o racismo ganha força e colabora para a visão distorcida que temos até hoje do Egito.

A partir do trabalho do pesquisador senegalês Cheikh Anta Diop 3, o professor e


pesquisador Ricardo Matheus Benedicto4 fundamenta a ideia de que o racismo
contribuiu para a visão distorcida que temos da África e, consequentemente do Egito:

O racismo foi o responsável pelo que Diop chamou de moderna


falsificação da história. O século XIX foi o século de
consolidação do domínio europeu sobre os povos africanos. Para
este domínio, que se iniciou no século XV, ser concretizado não
bastava armas. Foi preciso uma ideologia que justificasse toda a
violência e brutalidade da colonização. (Benedicto, 2010 p. 4).

Portanto, fica nítido que houve uma tentativa de manipulação da história e que
por sinal, foi muito bem feita, pois até hoje há questionamentos quando tratamos de
explicar que o Egito é um país africano. Geralmente, há a associação com a Europa e a

3
Cheikh Anta Diop, pesquisador senegalês que dedicou a vida aos estudos sobre a origem africana do
Egito.
4
Ricardo Matheus Benedicto. Prof. Ms. orientador deste artigo e que escreveu o texto “As origens
africanas da filosofia”, em 2010.
Ásia, menos com a África, pois infelizmente, a mesma ainda é vista como um
continente pobre cercado por miséria e mortes.

Segundo Ama Mazama5, os europeus praticamente construíram sua identidade à


custa dos povos africanos, entre eles, os egípcios, com isso, formulando uma falsa visão
sobre o continente africano, sempre o associando a características negativas:

A tomada do espaço mental africano ocorre por meio do disfarce


de ideias teorias e conceitos europeus como universais normais e
naturais. Todos são ‘étnicos’, menos os europeus. Mas essa
aceitação não questionada da Europa como normativa é
altamente problemática para os africanos. Com efeito, a Europa
forjou grande parte de sua identidade moderna à custa dos
africanos, particularmente por meio da construção da imagem do
europeu como o mais civilizado e do africano como seu espelho
negativo isto é, como primitivo, supersticioso, incivilizado,
aistórico e assim por diante. (Mazama, 2009, p. 112).

Leila Hernandez nos apresenta os critérios utilizados por Hegel para segregar a
África, facilitando a ideia de “superioridade e inferioridade humana”

[...] A África setentrional apresenta-se ligada ao Mediterrâneo e


“pode-se dizer que esta parte não pertence propriamente à
África, senão à Espanha com a qual forma uma concha”. Está
separada da África meridional, que contém o Egito, por um
grande deserto e pelo Níger. Quanto à “África propriamente
dita”, fica ao sul do Saara, e é “quase desconhecida” (Apud
Hernandez, 2005 p. 20).

Fica nítido o interesse imperialista no continente, pois segundo os intelectuais da


época, seria necessário levar a civilização aos povos “bárbaros” que habitavam o sul do
Saara. Caberia às nações europeias esta árdua tarefa em prol dos mais necessitados.
Porém, observa-se mais uma vez a tentativa descabida de invadir territórios autônomos

5
Ama Mazama, professora associada do Departamento de Estudos Africano-Americanos na Universidade
de Temple, Filadélfia, EUA, que realiza pesquisas sobre a teoria afrocentrista, raízes africanas da cultura
do Caribe e as religiões e línguas africanas.
e repletos de civilização, apenas para satisfazer os desejos imperialistas das nações
europeias que se auto intitulavam como berço da civilização.

Devido à localização geográfica do Egito, foi possível separá-lo da África, pois


o Mar Mediterrâneo era a confluência das civilizações da antiguidade, sendo, portanto
mais fácil associá-lo aos continentes europeus e asiáticos, menos ao continente africano
propriamente dito. Isso não significa que o racismo enquanto criador de uma identidade
falsa para o Egito possa ser legitimado, mas a ignorância também fez parte dessa
história deturpada, que ao lado de mentes perversas que almejavam apenas o lucro a
partir do esforço alheio, colaboraram para a visão deturpada que se tem do continente
africano e, portanto do Egito, até os dias atuais.

Molefi Kete Asante6, explica em poucas palavras a questão da negação da


africanidade egípcia e a apropriação por parte da Europa do rio Nilo, sem fazer
nenhuma menção à origem africana do rio e do país em questão:

[...] Quando Champollion decifrou a escrita dos antigos


egípcios, a Europa lançou-se à empreitada de desmontar a
africanidade da história egípcia, bem como da história africana
no que esta se relaciona ao vale do Nilo. O único rio do
continente africano que se tornou parte da experiência europeia
foi o Nilo. Foi como se a Europa o tivesse retirado da África,
mililitro por mililitro, para despejá-lo na paisagem europeia.
Todas as contribuições africanas do vale do Nilo se tornaram
contribuições europeias, e a Europa deu início à tarefa de
confundir o mundo quanto à natureza do antigo Egito. Trata-se
da maior de todas as falsificações – e aquela que aparece nas
discussões sobre as grandes civilizações da antiguidade.
(Asante, 2009, p.100).

Por conta de toda essa manipulação histórica, fica um pouco mais fácil entender
o porquê o Egito não é associado à África, como se toda a sua africanidade pudesse

6
Molefi Kete Asante. Pesquisador estadunidense e professor titular do Departamento de Estudos Afro-
Americanos da Universidade de Temple, Filadélfia, EUA e um dos principais articuladores da teoria
Afrocêntrica, que tem como principal objetivo recolocar os africanos como agentes de sua própria
história, levando em consideração a perspectiva africana.
desaparecer num passe de mágica. Não é por acaso que em livros sobre o Egito, não há
a discussão sobre sua origem, seja em livros didáticos ou livros comerciais sobre o
famoso “país das pirâmides”, como se esse país existisse sem uma localização definida
no globo terrestre, ficando à deriva de quem ousa fazer este questionamento.

A seguir, serão apresentadas as consequências da retirada ideológica do Egito do


continente africano, pois se percebe nos livros comerciais e nos livros didáticos que os
mesmos não apresentam o Egito como um país pertencente à África, e quando fazem
essa relação à mesma é superficial e sem um questionamento mais aprofundado sobre a
sua origem africana e consequentemente negra.

No livro didático de história para o 6º ano do ensino fundamental, de Alfredo


Boulos Júnior (2009), percebe-se que o mesmo tem a preocupação em apresentar o
Egito como um país africano, porém, a preocupação se resume ao início do capítulo,
sem fazer uma relação com a origem negra da civilização, não existindo um mapa da
África para enfatizar sua origem, por exemplo, (Boulos Júnior, 2009, p. 120-143). No
entanto, no capítulo referente à Núbia e o Reino de Kush, percebe-se a relação com o
restante da África, pois o autor menciona a Núbia como parte da “África negra”, há
mapas do continente africano enfatizando a relação existente entre a região e o
continente, o que não existe no capítulo anterior referente ao Egito (Boulos Junior,
2009, p. 144-159).

Na revista National Geographic (2002), não existe menção nenhuma à origem


africana do Egito antigo, nem mesmo uma pequena frase ou qualquer coisa do tipo,
apesar da revista apresentar informações pertinentes ao Egito antigo. Quando há alguma
menção geográfica, apenas o rio Nilo é citado, como se o rio fosse exclusivo do Egito.
Nesse caso, é perceptível a consequência da retirada ideológica do Egito da África,
afinal, são exibidos apenas pesquisadores europeus e estadunidenses, não sendo citado o
trabalho de nenhum arqueólogo ou egiptólogo africano, como se o Egito não pudesse
estudar toda a sua riqueza cultural e histórica, restando aos pesquisadores “de fora” a
“árdua tarefa” de estudar o legado egípcio.

No livro de David E. Sentinella (2008), intitulado “O Enigma das Múmias”, o


autor apresenta as múmias que existiram no mundo, sejam naturais ou as múmias
“artificiais”, ou seja, múmias que foram preparadas para a posteridade, entre elas, as
egípcias. Apesar das informações pertinentes ao Egito, também não há a relação ou
menção ao continente africano. Entende-se que essa não é a premissa do livro, mas
mesmo em publicações que tenham alguma relação com o Egito, seja na questão
cultural, religiosa ou política, por exemplo, não há a intenção de ressaltar a origem
africana da população egípcia.

Com esses poucos exemplos, percebe-se que a ideologia imperialista europeia


conseguiu manter uma visão deturpada sobre o país em questão, afinal, essa não
inserção egípcia na história africana nem sempre é realizada com o intuito de manter o
status de civilização versus barbárie, ou seja, Egito como parte integrante da Europa ou
Ásia contra o restante da África considerada inferior e incapaz de ser berço de alguma
civilização, não concordo com esse ponto de vista, porém, foi à visão que se perpetuou
por séculos e até hoje condena o continente africano à ideia de inferioridade e
submissão frente às nações ocidentais.

O racismo também fez parte deste pensamento, onde o Egito era considerado
uma terra de transição da cultura oriental para a ocidental, mas em nenhum momento, à
cultura africana propriamente dita, sendo a África Subsaariana deixada à própria sorte e
considerada sem história, sendo, portanto, legitimado o seu domínio e sua exploração
por parte das potências europeias ditas “civilizadas”. Georg Hegel7 deixa bem nítido o
quanto o continente africano é desprezado pelas nações europeias, sendo apenas o Egito
e Cartago livre de estereótipos negativos, portanto não sendo considerados africanos de
fato:

Neste ponto nós deixamos a África, para não mencioná-la de


novo. Pois, não é parte da história do mundo; não tem
movimento ou desenvolvimento para exibir. O movimento
histórico em si – em sua região Nordeste – pertence ao mundo
asiático e europeu. Cartago apresentou uma transitória e
importante fase de civilização, porém, como colônia fenícia, ela
pertence à Ásia. O Egito será considerado em referência à
passagem da mente humana que sua fase Oriental para a fase

7
HEGEL, G. W. F. Filosofia da História. Brasília, Editora da UnB, 1999.
Ocidental, porém este não pertence ao Espírito africano. O que
nós propriamente entendemos por África é o Não-Histórico. Não
Desenvolvido Espírito, ainda envolvido na condição de mera
natureza, e que foi apresentado aqui somente como soleira da
História mundial. (Apud Benedicto, 2010, p. 5).

Se isso não é racismo em sua forma extrema, não poderá ser outra coisa. Fica
nítida a visão que se tem da África – um lugar que não possui história e sem
desenvolvimento – e a tentativa de retirar geograficamente o Egito e o Norte da África
do continente, como se fosse possível tal ato. Mas infelizmente, a retirada ideológica do
Egito da África foi muito bem feita e articulada, pois até hoje percebemos em nossos
livros o quanto esta questão não foi bem resolvida e no seu devido lugar. Com isso,
percebe-se que de fato houve uma tentativa de branquear o Egito e sua eventual retirada
ideológica do continente.

Portanto, fica nítida a advertência que Cheikh Anta Diop nos fez, pois o
pesquisador enfatizou a questão arbitrária que permeia as pesquisas que poderiam
confirmar a origem negra da sociedade egípcia, pois o mesmo a confirmou através de
uma ampla pesquisa científica, porém, não é o que acontece nos dias atuais, pois o Egito
continua a ser associado a outros territórios, e quando é associada à África, essa relação
pouco é explorada, não enfatizando tal argumento (Diop, p.2).

A seguir, será apresentada uma tentativa de reafricanizar o Egito, tendo o


pesquisador senegalês Cheikh Anta Diop como maior expoente dessa tentativa, pois o
mesmo lutou contra uma academia tradicional tentando provar a africanidade egípcia e
sua relação com o continente africano.

1.3 Uma tentativa de reafricanizar o Egito

Alguns estudiosos afirmam que não é importante saber se os antigos egípcios


eram brancos ou negros, os mesmos estariam certos se não vivêssemos em uma
sociedade racista, de fato não teria sentido estudar a origem branca ou negra de
determinada população, afinal, o mais importante seria estudar sua contribuição para a
humanidade como um todo, mas como esta questão foi manipulada e o fator negro foi
“retirado” ideologicamente do Egito para legitimar racismos e teorias infundadas, se faz
extremamente necessário o seu estudo e análise para rompermos com essa lógica
impiedosa e para que exista de fato uma história e consequentemente uma educação
antirracista.

Para uma tentativa de reafricanizar o Egito, se faz necessário buscar traços em


comum entre a cultura egípcia e as demais culturas africanas. O pesquisador que se
destacou em questionar tal “premissa” foi o senegalês Cheikh Anta Diop, que pode ser
considerado um dos grandes pensadores e pesquisadores africanos do século XX.

Diop fez uma relação entre as práticas realizadas no Egito antigo e em outras
culturas africanas, provando assim, a origem africana e negra do Egito antigo, entre
elas: descendência matrilinear, totemismo, dança personalidade espiritual, culto dos
ancestrais, amuletos, circuncisão, veneração da serpente e monarquia divina (Finch III,
2009, p. 86-7).

Elisa Larkin Nascimento, a partir dos trabalhos de Diop, nos apresenta a


importância das mulheres em duas sociedades africanas: o Egito e o império de Gana.
Isso prova que as sociedades matriarcais em nada são inferiores às sociedades
patriarcais e, acima de tudo, são possuidoras de uma altíssima organização:

A matrilinearidade, identificada pelo evolucionismo como


‘estágio primitivo’ no desenvolvimento social humano,
caracterizava algumas das sociedades mais altamente
organizadas da História, como o Egito e o império de Gana,
onde o protagonismo da mulher prevalecia na organização
jurídica, econômica, social e política. Refutando as teses
evolucionistas, Diop sustenta que o desenvolvimento social
político e econômico não depende da subordinação da mulher.
Ao contrário, indaga o africanista: qual a sociedade mais
plenamente desenvolvida – a que nega à metade de sua
população sua plena condição humana ou a que reconhece e
estimula em todos a sua capacidade de realização e contribuição
à vida coletiva? (Nascimento, 2001, p. 133).
Segundo Elisa Larkin Nascimento, Van Sertima8 também nos apresenta as
similaridades entre os antigos povos do Egito e de Mali, mas no que se refere à
medicina. Um ponto a se destacar neste trecho é o termo ‘africanos’ para se referir aos
dois povos, pois geralmente, os povos egípcios não recebem tal denominação, ficando
oculta a sua real origem: “[...] Africanos do antigo Egito e de Mali praticavam a
remoção de cataratas oculares por meio de cirurgias, e tumores cerebrais eram operados
no Egito há 4600 anos.” (Apud Nascimento, 2001, p. 131).

Até aqui, percebe-se um alto grau de desenvolvimento africano, que


infelizmente, nos foi negado, ou seja, sua história foi silenciada para que estereótipos
negativos se perpetuassem na história. Mas como a história africana foi silenciada e a
história egípcia não? Como já vimos anteriormente, houve uma real tentativa de
branqueá-lo e retirá-lo do continente africano, por isso é muito mais fácil encontrar
bibliografia sobre o Egito do que sobre o continente africano como um todo.

No que se refere à questão linguística, temos a semelhança entre o egípcio antigo


e o walaf - uma língua senegalesa – que Diop brilhantemente fez um estudo provando a
africanidade egípcia, para que no futuro, possa ser estudada uma língua matriz das
demais línguas de origem africana:

O walaf, língua senegalesa falada no extremo oeste da África, na


costa atlântica, é, talvez, tão próximo do egípcio antigo quanto o
copta. Recentemente foi feito um estudo exaustivo sobre essa
questão. [...] apresentamos apenas o suficiente para mostrar que
o parentesco entre as línguas do antigo Egito e as da África não
é uma suposição, mas um fato demonstrável e impossível de ser
ignorado pelos círculos acadêmicos. (Diop, 2010, p. 27).

Após a breve apresentação das semelhanças entre os povos egípcios e os demais


povos africanos, se faz necessário apresentar também como os próprios egípcios
denominavam a si mesmos, afinal, também é necessário estudar a história egípcia sob a
própria perspectiva:

8
Van Sertima, Ivan. Black in Science. New Brunswick: Transaction Press, 1983.
Os egípcios tinham apenas um termo para designar a si mesmos:
kmt ,= “os negros” (literalmente). Esse é o termo mais forte
existente na língua faraônica para indicar a cor preta; assim, é
escrito com um hieróglifo representando um pedaço de madeira
com a ponta carbonizada, e não com escamas de crocodilo. Essa
palavra é a origem etimológica da conhecida raiz kamit, que
proliferou na moderna literatura antropológica. Dela deriva,
provavelmente, a raiz bíblica kam. Portanto foi necessário
distorcer os fatos para fazer com que essa raiz atualmente
signifique “branco” em egiptologia, enquanto, na língua‑mãe
faraônica de que nasceu, significava “preto-carvão”. (Diop,
2010, p. 21-2)

Com relação às nossas origens, Asante é enfático quanto à ligação existente


entre as nações africanas, entre elas a civilização egípcia. Também nos alerta para
estudarmos a história africana sob a sua própria perspectiva e não apenas a sua relação
com a Europa, que foi realizada por tanto tempo e acabava ofuscando o passado
glorioso africano, sem criar a relação entre as nações que acabam por ter uma origem
comum:

Não existe nenhum engano quanto as nossas origens: a África


clássica deve ser o ponto de partida de todo discurso sobre o
rumo da história africana. O Kemet9 está diretamente
relacionado e ligado às civilizações Kush, Cayor, Peul, Ioruba,
Akan, Congo, Zulu e Bamun. É o que já sabemos; há muito a
desvendar, porque só recentemente nosso foco de estudos se
voltou para a África em si mesma. No passado estudávamos a
África em sua relação com a Europa, e não como as culturas
africanas se relacionavam entre si. (Asante, 2009, p.101).

Com isso, fica nítido o quão atrelado à África está o Egito. Pode-se afirmar que
os egípcios antigos eram negros e tinham vários pontos em comum com a África, sendo
necessário, portanto, reafricanizá-lo para que a história do continente possa de fato

9
Entende-se por Kemet o Egito antigo, o nome dado ao próprio território, que significa “terra dos pretos”.
alcançar a tão sonhada Renascença Africana e possa ser reconstruída sob a própria
perspectiva.

Considerações finais

Neste breve artigo pode-se afirmar que a história do Egito foi intencionalmente
retirada da história da África, baseada em ideais racistas e imperialistas, sendo possível
branquear o país, o transferido para qualquer outro continente que não fosse o africano.
Com isso, foi possível silenciar a história da África abaixo do Saara, legitimando
afirmações de que o continente não possui história, sendo apenas a história do Egito
disseminada pelo mundo como uma nação europeia ou mesmo asiática. Por isso,
encontramos livros sobre a civilização egípcia apenas e livros sobre o continente
africano, como se ambos não tivessem relação alguma.

Percebe-se então, o quanto é difícil estudar o continente africano, pois a


historiografia oficial nos apresenta informações contraditórias, sendo necessária uma
busca minuciosa sobre a bibliografia africanista, para que só assim, seja possível uma
busca completa. Mas se faz necessário o uso da historiografia tradicional para que seja
possível questioná-la e quem sabe, em um futuro próximo, modificá-la. Só assim será
possível a reafricanização do Egito de fato e a possível construção de uma nova história
africana.

Referências bibliográficas

ASANTE, Molefi Kete. Afrocentricidade: notas sobre uma posição disciplinar. In:
NASCIMENTO, Elisa Larkin (org.). Sankofa 4 Afrocentricidade: uma abordagem
epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009.

BENEDICTO, Ricardo Matheus. As origens africanas da Filosofia. [S.l.: s.n.], 2010,


12 p.
BORGES, Jorgeval Andrade. Ambígua Africa, memórias e representações da África
Antiga no livro didático: Egito, reinos e impérios africanos. Programa de Pós-
Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade. Vitória da Conquista: [s.n], 2009.

BOULOS JÚNIOR, Alfredo. História: sociedade e cidadania, 6º ano. São Paulo: FTD,
2009.

BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-


Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: MEC,
2004.

DIOP, Cheikh Anta. A origem dos antigos egípcios. In: MOKHTAR, Gamal (Edit.).
História geral da África, II: África Antiga. 2. ed. rev. Brasília: UNESCO, 2010.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da Língua Portuguesa. 2ª
ed. rev. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira S.A., 1986.

FINCH III, Charles S. Cheikh Anta Diop confirmado. In: NASCIMENTO, Elisa Larkin
(org). Sankofa 4 Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São
Paulo: Selo Negro, 2009.

HERNANDES, Leila Leite. África na sala de aula: visita à História contemporânea.


São Paulo: Selo Negro, 2005.

MAZAMA, Ama. A Afrocentricidade como um novo paradigma. In: NASCIMENTO,


Elisa Larkin (org). Sankofa 4 Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica
inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009.

MOKHTAR, Gamal (Edit.). História geral da África, II: África Antiga. 2 ed. rev.
Brasília: Unesco, 2010.

NASCIMENTO, Elisa Larkin. Sankofa: educação e identidade afrodescendente. In:


CAVALLEIRO, Eliane (org). Racismo e anti-racismo na educação: repensando nossa
escola. São Paulo: Summus, 2001.

NATIONAL GEOGRAPHIC ESPECIAL. São Paulo: Editora Abril, ano 3, nº 26 A, jun.


2002.

SENTINELLA, David E. O enigma das múmias. São Paulo: Novo Século, 2008.

Você também pode gostar