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AULA 2

IDENTIDADE E COMUNIDADE
AFRICANA NO BRASIL

Profª Edimara Gonçalves Soares


INTRODUÇÃO

As sociedades africanas: história, dinamismo e complexidade

O propósito desta aula é evidenciar estudos e pesquisas científicas


contemporâneas que atestam a África como berço da humanidade; elucidar as
principais características e contribuições das antigas civilizações africanas, bem
como visibilizar os reinos africanos existentes na Idade Antiga e Média; provocar
reflexão sobre as diferenças fenotípicas que nos constituem e que estão
relacionadas às primeiras migrações do ser humano na Terra; e, por fim, refletir
sobre a definição de diáspora africana, cujos efeitos chegam aos dias de hoje.

TEMA 1 – ÁFRICA: BERÇO DA HUMANIDADE

Os estudos científicos acerca da origem e desenvolvimento da humanidade


sempre foram um campo marcado por relações de poder no qual a perspectiva
eurocêntrica se manifestou/manifesta. Nesse sentido, Diop (1974) adverte que é
preciso:

[...] ter coragem, como cientista, para levar a sério a ideia de que a África
pudesse ser o nascedouro da humanidade. [...] se um africano
advogasse semelhante tese, era interpretado unicamente como
afirmação absurda e resultado de um complexo psicológico criado pela
colonização. (Diop, 1974, p. 23-24)

O senegalês, químico, físico, antropólogo, arqueólogo e historiador Cheikh


Anta Diop desestabilizou os currículos e teses científicas da Europa quando
publicou suas teses e artigos científicos (1955; 1959; 1967) contestando conceitos
e teorias eurocêntricas sobre África.
Diop ampliou e aprimorou suas técnicas de pesquisa e metodologias dentro
da racionalidade científica europeia, seguiu os padrões rigorosos que legitimam a
ciência moderna, portanto, produziu uma obra que o universo acadêmico/científico
não poderia simplesmente refutar/ignorar sem fundamentos coerentes.
Na obra A Origem Africana da Civilização (1974), Diop defende que África
não é somente o nascedouro da raça humana, mas é também origem da
civilização e da própria cultura ocidental. Várias pesquisas científicas vêm
corroborando as teses de Diop e avançando em novas descobertas.
Os pesquisadores Roger Lewin e Richard Leakey (1996) expõem
importantes descobertas arqueológicas feitas no Vale da Grande Fenda, na África.

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Uma dessas descobertas foi o esqueleto de uma mulher africana (Dinknesh, ou
Lucy), que datava de 3,2 milhões de anos. O fóssil com mais de 40% dos ossos
foi encontrado na Etiópia e conferiu uma nova dimensão à história da evolução
humana, pois foi o esqueleto mais completo de uma antiga espécie humana
encontrada. Esse achado fóssil pertencia a nova espécie que recebeu o nome
científico Australopithecus afarensis.
Seguindo na escala evolutiva, a próxima espécie é o Homo erectus ou
Homo habilis, achado por Mary Leakey no Olduvai, Tanzânia, em 1961. Esse
hominídeo já possuía uma cultura lítica com ferramentas rudes, como o machado
de pedra.
Conforme Moore (2012), dentre as tantas singularidades do continente
africano, a mais marcante é o fato de seus povos terem sidos os progenitores de
todas as populações do planeta. Para essa afirmação, o autor se fundamenta em
dados científicos, originários tanto de pesquisas e análises do DNA mitocondrial
quanto dos achados paleontológicos que continuam sinalizando na direção de que
a África é berço único da espécie humana.
Mas quais seriam os fatores favoráveis para surgimento da espécie
humana na África? Segundo os pesquisadores Lewin e Leakey (1996), o Vale da
Grande Fenda (Etiópia, Quênia e Tanzânia) é matriz ecológica com diversidade
incomum de vegetação, sendo: floresta tropical, savana, deserto semiárido, matas
abertas, campinas alpinas, condições que propiciaram a evolução e disseminação
hominídea na África.
Conforme Pena e Birchal (2006, p. 13), o Homo sapiens é uma espécie
muito jovem na Terra. Tal afirmação ancora-se em duas linhas de pesquisa
genética, que sugerem a origem da espécie humana como única e recente, na
África, há menos de 150.000 anos.
A primeira linha de pesquisa e evidencia genética confirma a observação
de que a diversidade genética humana é maior na África do que em qualquer outro
continente. O olhar interpretativo desse resultado é de que as “que as populações
mais antigas teriam tido mais tempo para acumular variabilidade genética”.
A segunda linha de pesquisa e evidência genética é fornecida pelas
análises filogenéticas feitas pelo DNA mitocondrial. Com base no trabalho seminal
de Can et al. (1987, citados por Pena e Birchal, 2006, p. 14), “praticamente todos
os estudos baseados em DNA mitocondrial produziram uma árvore na qual a
primeira bifurcação separa populações africanas de todas as outras populações”.

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Conforme Moore (2012), o continente africano foi palco exclusivo dos
processos interligados de hominização e de sapienização, é o único lugar do
mundo onde se encontram, em perfeita sequência geológica, e acompanhados
pelas indústrias líticas ou metalúrgicas correspondentes, todos os indícios da
evolução da nossa espécie a partir dos primeiros ancestrais hominídeos.

TEMA 2 – ANTIGAS CIVILIZAÇÕES AFRICANAS

Conforme orienta Ki-Zerbo (2010, p. 23), para tratar da historiografia das


sociedades africanas é necessário “evitar ser excessivamente fatual”, pois isso
pode destacar em demasia os fatores e influências exógenos ao continente
africano. Assim, o autor indica que uma tarefa primordial é evidenciar fatos-chave,
destacando as “civilizações, as instituições, as estruturas: técnicas agrárias e de
metalurgia, artes e artesanatos, circuitos comerciais, formas de conceber e
organizar o poder”.
No que se refere à civilização, Nascimento (1994) destaca a definição
padrão/clássica da New Columbia Encyclopedia, que exclui a África de sua
origem, ao definir que civilização é:

aquele complexo de elementos culturais que primeiro apareceram na


história humana, entre 8 mil e 6 mil anos atrás. Nessa época, baseada
na agricultura, criação de gado e metalurgia, começou a aparecer a
especialização ocupacional extensiva nos vales dos rios do sudoeste da
Ásia (Tigre e Eufrates). Apareceu lá também a escrita, bem como
agregações urbanas bastante densas que acomodavam
administradores, comerciantes e outros especialistas. (Encyclopedia
citada por Nascimento, 1994, p. 39)

Todavia, essa definição é contestada pelas pesquisas e estudos


contemporâneos, visto que os elementos materiais e simbólicos utilizados para
definir civilização estão presentes na evolução do continente africano, entre 15 mil
e 18 mil anos atrás. Dessa forma, a anterioridade da civilização africana se dá na
agricultura, criação de gado, metalurgia e escrita. Nascimento (1994) apoia seus
argumentos nos estudos/registros do conde Constantino Volney, membro da
Academia Francesa, para afirmar que a cultura e ciência egípcia foram as
primeiras pedras da civilização ocidental.
Para Munanga e Gomes (2006), entre as civilizações mais antigas da
história da humanidade, algumas desenvolveram-se no continente africano, como
a egípcia, a cuxita, a axumita e a etíope. A história do Egito faraônico talvez seja

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a mais conhecida por nós, entretanto, todas as citadas existiram por um longo
período histórico e deixaram importante legado cultural para humanidade.
Nesse sentido, iremos evidenciar de maneira breve as principais
características da civilização egípcia. Apesar da tentativa eurocêntrica de mostrar
o Egito fora da África, com a finalidade de ocultar/destituir suas
produções/contribuições, a autodefinição dos próprios egípcios é crucial
definidora da sua identidade.
Segundo Nascimento (1994, p. 45), os egípcios se autodefiniam em sua
língua como kemet, que quer dizer “cidade negra” ou “comunidade negra”. Nas
esculturas, os egípcios se retratavam como africanos; na arte egípcia, a esfinge,
os faraós e suas rainhas aparecem como africanos clássicos.
A seguir destaca-se algumas contribuições importantes da civilização
egípcia para humanidade, conforme Nascimento (1994):

• A invenção da escrita, talvez a mais importante da história humana;


• Antes da era cristã, a civilização desenvolveu calendário mais preciso do
que o ocidental moderno;
• As pirâmides evidenciam a precisão da engenharia há quase 5 mil anos;
• Os papiros de Ahmes e Moscou mostram a existência de uma matemática
avançada/complexa, desenvolvida treze séculos antes de Euclides.
• A medicina era praticada e pesquisada desde 3.200 a.C. por Atótis, e a
partir de 2.980 a.C. teve avanços consideráveis com Imhotep. Os papiros
descobertos por Smith (1.650 a.C.) e Ebers (2.600 a.C.) revelam a
existência de conhecimentos médicos avançados, como as primeiras
saturas e fitas, começo da assepsia com sais de cobre.

Em relação à escrita, os egípcios desenvolveram um sistema de escrita


hieroglífica no qual os símbolos majoritariamente derivam da realidade africana,
portanto, “não se trata de um empréstimo, mas de uma criação original” (Diop,
2010, p. 179).
No que se refere à civilização cuxita, Munanga e Gomes (2006) destacam
como uma característica importante o reinado feminino, que contou com várias
linhagens das rainhas-mães, as “Candaces”.
Já a civilização axumita, ou Axum, posterior às civilizações egípcia e cuxita,
se desenvolveu no território que atualmente corresponde à Etiópia. Uma das
características dessa civilização foi o cristianismo, introduzido a partir de

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Alexandria, durante a ocupação romana do Egito. Por isso, até hoje a Etiópia é
considerada como o país cristão mais antigo da África subsaariana, sem que
houvesse contato com a colonização (Munanga; Gomes, 2006).

TEMA 3 – OS REINOS SUDANESES: GANA, MALI E SONGAI

É consenso que a África é o nascedouro da espécie humana, berço da


civilização; entretanto, o preconceito, as ideologias racistas e as visões
eurocêntricas provocaram um apagamento ou invisibilização das civilizações que
existiram no continente africano, principalmente na Antiguidade e Idade Média.
Assim, conhecemos a história da África pela ótica da colonização, exploração e
guerras/conflitos.
Conforme Coquery-Vidrovitch (2004)

Deparamos, em última análise, com as lacunas dos medievais: salvo


raras exceções, nem os homens nem os lugares eram conhecidos e,
ainda menos, compreendidos, embora os árabes fossem, nesse
domínio, muito superiores aos viajantes europeus que iriam substituí-los.
[...] menos sábios ou sistematicamente “interessados” que os árabes, os
europeus não fizeram mais do que agravar, de uma forma que repercutiu
durante séculos, a incompreensão de que eram objeto os povos negros,
desconhecidos e pagãos, portanto duplamente desprezíveis. (Coquery-
Vidrovitch, 2004, p. 58)

Algumas culturas africanas prosperam a ponto de se tornarem impérios ou


grandes civilizações desenvolvidas às margens dos rios Níger e Senegal. Na
Idade Média, mantiveram importantes rotas comerciais com países islâmicos e
com a Europa, por cerca de sete séculos. Os árabes, como grandes comerciantes,
igualmente contribuíram para dispersar conhecimentos sobre a existência desses
“reinos sudaneses”, ou “impérios do Sudão Ocidental”.
Assim, Gana foi o primeiro império do Sudão Ocidental, conhecido como
país do ouro. Era grande a extensão de terras ocupada pelo império de Gana, que
hoje corresponde à Mauritânia, ao Norte do Senegal. No que tange à organização
sociopolítica, o soberano vivia na capital, Kumbi-Saleh, composta por duas
cidades, sendo uma mulçumana, com doze mesquitas, onde viviam os
mercadores e juristas, e na outra localizava-se o palácio e suas dependências,
túmulo dos príncipes e o bosque sagrado (Munanga; Gomes, 2006).
Conforme Lambert (2001), os povos da África Subsaariana produziam ouro
em grande quantidade, mas necessitavam de sal, que era produzido na África do
Norte, por sua vez, carente de ouro. O império de Gana ocupava uma posição
privilegiada, no meio do caminho, portanto, podia intermediar as trocas. Assim, o
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desenvolvimento do comércio pelas rotas transaarianas se fortalecia, com trocas
comerciais entre os mercadores árabes, berberes e sudaneses que vinham
buscar ouro e em troca ofereciam tecidos e sal.
Para Giordani (1985), o ouro foi responsável pelo crescimento e projeção
internacional do Império de Gana. Ainda segundo o autor, Gana, durante toda a
Idade Média, forneceu ouro para os países do Mediterrâneo. As caravanas de
camelos que atravessavam o deserto não ligavam apenas o império à Europa e
ao Oriente, mas, disseminavam a fama de Gana como terra do ouro.
No século XI, os almorávidas invadiram e conquistaram a capital do
império. Após a dissolução do reino, as províncias se transformaram em estados
menores dirigidos por reis com poder reduzido.
O império do Mali foi o segundo do Sudão Ocidental, e formou-se a partir
de uma província mandiga ao Norte de Fouta Djalon. A capital, Niani, situava-se
na fronteira entre o atual Mali e Guiné. Conforme Munanga e Gomes (2006),
durante dois séculos, Mali foi o mais rico Estado da África Ocidental. Possuía
minas de ouro e tinha controle das vias transaarinas em direção ao Maghreb, à
Líbia e ao Egito.
As histórias do império Mali são marcadas por disputas e mortes pelo
poder. Assim, o rei Sosso, que havia conquistado Gana, invadiu a região onde
habitavam os povos mandinga e massacrou a família do rei que estava no poder.
Apenas um filho do soberano, Sundiata Keita, escapou. Refugiado em regiões
vizinhas, depois de adulto organizou um exército e voltou para o Mali, derrotou
Sumanguru Kante e retomou o poder. Esse foi o marco inicial da ascensão do
império Mali e o estabelecimento de uma dinastia que reinou do início do século
XIV ao final do século XVI.
Segundo Coquery-Vidrovitch (2004), ao contrário de Gana, o poder do Mali
se assentava no Islã, pois os mandingas já haviam se convertido há mais de cem
anos. Com a vitória de Sundiata, o Islã reaparece na história do Mali.
Ao fazer uma peregrinação a Meca, Mansa Mussa visitou o sultão do Cairo
e causou forte impressão, que permaneceu nos comentários locais por mais de
um século. Ele distribuiu tão significativa quantidade de ouro que o metal ficou
desvalorizado por mais de uma década. Segundo Gordani (1985), a riqueza da
caravana e a gentileza de Mansa Mussa aumentaram a influência islâmica no
Sudão Central e Ocidental e dispersaram o conhecimento do império pela Europa.

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Igualmente, sobre a riqueza do Mali, Lambert (2001) destaca que atraiu
letrados árabes e propiciou a modernização da cidade de Tombuctu, na época,
considerada grande centro intelectual. Enquanto a Europa estava envolvida no
caos da Guerra dos Cem Anos, o universo das letras se fazia presente em cidades
como Tombuctu, Djenné e Ualata, que além de oferecer conforto e segurança aos
sábios, possuíam centros comerciais, religiosos e literários.
O declínio do império do Mali teve início na primeira metade do século XV,
com a morte de Mansa Mussa. Também a invasão dos portugueses aguçou
rivalidades e fomentou a desorganização geral.

TEMA 4 – MIGRAÇÕES AFRICANAS E FENÓTIPO HUMANO

Por muito tempo, as sociedades africanas foram narradas pela


historiografia oficial como tribos isoladas, povos sem movimentação no espaço,
estagnados no tempo. Essa concepção se afirma no que chamamos de
eurocentrismo, que criou estereótipos específicos para hierarquizar povos e
culturas como inferiores e superiores.
Sobre o eurocentrismo, Amin (1989) salienta que ele

opera espontaneamente, muitas vezes na imprecisão da evidência


aparente e do senso comum. É por isso que se manifesta de maneiras
diferentes, tanto na expressão de preconceitos banalizados na mídia
como nas frases eruditas de especialistas em vários domínios de
ciências sociais. (Amin, 1989, p. 9)

As pesquisas e estudos sobre a organização das sociedades africanas no


mundo antigo indicam significativas movimentações dos povos africanos pelo
espaço geográfico. Trata-se de migrações internas e externas ao continente
africano, caracterizadas por trocas comerciais e culturais. Conforme Nascimento
(1994, p. 55), “o africano se fez presente em todo o mundo antigo”.
Uma das maiores migrações africanas está relacionada às nossas
diferenças fenotípicas, como cor da pele, textura do cabelo, cor dos olhos e
formato do nariz. Uma reportagem da BBC assinada por Marcos González Díaz
(2018) mostra a discussão e avanços científicos nesse tema.
Assim, a análise genética do esqueleto humano mais antigo encontrado no
Reino Unido revelou que a pigmentação de sua pele não era de cor “escura
negra”. A reconstrução fenotípica se deu graças ao uso de um scanner de alta
tecnologia, que mostra características fenotípicas opostas à dos britânicos. Para
o responsável pelo estudo, Yoan Dieckmann, da equipe da Universidade College

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London, a pele clara que associamos aos europeus modernos, principalmente do
Norte, seria um fenômeno relativamente recente.
Os especialistas destacam dois fatores principais para explicar esse
fenômeno que nos diferencia fenotipicamente.
De acordo com o professor Víctor Acuña, da Escola Nacional de
Antropologia e História do México, o primeiro deles é a mobilidade geográfica das
populações africanas há cerca de 150 mil anos. Essas populações, nossos
ancestrais diretos, começam a migrar e chegaram na Europa há cerca de 45 mil
anos. Estudos genéticos indicam que a pigmentação da pele mais clara teve início
em algumas regiões europeias, por volta de 25 mil anos atrás.
O segundo fator apontado como mais importante é a proteção contra os
raios ultravioletas. Conforme explica Víctor Acuña, os seres humanos,
diferentemente de outros primatas, têm muito pouco pelo no corpo. Por isso, a
pigmentação da pele era uma barreira aos efeitos negativos dos raios
ultravioletas, que é tão intensa na África.
A migração africana para o Norte do planeta, nas altas latitudes, chegou a
locais onde a intensidade dos raios solares é menor, portanto, a pigmentação da
pele com mais melanina vai se tornando desnecessária. O percentual maior de
melanina servia como proteção natural contra queimaduras e possíveis doenças
de pele. Nas regiões com menos Sol, a pele clara permitia maior absorção da luz
ultravioleta, vital para obtenção de vitamina D.
O desenvolvimento de pesquisas genéticas a partir de 1980 tem lançado
novas luzes sobre a origem africana da nossa espécie. O foco das pesquisas é
no DNA nuclear e DNA mitocondrial, que apresentam diferenças significativas;
aqui não serão elucidadas porque não é nosso objetivo. Entretanto, os estudos
sobre o DNA mitocondrial nos ajudam a compreender as migrações africanas e a
formação/evolução/mutações do fenótipo humano ao longo das gerações.
Conforme Symanski (2013, p. 71), o DNA mitocondrial é herança exclusiva
materna, e suas mutações ocorrem de forma regular a cada 100 gerações. Essa
regularidade possibilitou estimar datas com maior precisão para o aparecimento
das características de cada população. Assim, “quanto mais similar o DNA
mitocondrial de uma população em relação a outra, mais próximo o ancestral
comum entre essas duas populações”.
No decorrer dos milênios, nossa espécie se disseminou pela África e por
volta de 110 mil anos atrás um grupo migrou para além das fronteiras daquele

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continente, seguindo pela região que hoje compreende a Síria, Líbano, Israel e
Palestina. Essa região era um grande corredor para passagem de animais e
humanos entre África e Eurásia (Symanski, 2013).

4.1 Migrações africanas no mundo antigo

Contemporaneamente, pesquisas e estudos arqueológicos e


antropológicos vêm mostrando evidências acerca das migrações e influências
africanas no mundo antigo. O historiador guianense Ivan Van Sertima tem sido
pioneiro na sistematização e divulgação de conhecimentos sobre o continente
africano na Idade Antiga e Idade Média.
Aqui interessa sintetizar as influências das migrações africanas no mundo
antigo, comprovadas por meio de trabalhos de pesquisa científica. Esses
deslocamentos populacionais, invisibilizados pela historiografia oficial e/ou
escolar, desconstroem preconceitos e equívocos sobre a África.
As pesquisas arqueológicas mostradas pelos vestígios/achados
arqueológicos em diferentes regiões do continente africano dão indícios da
evolução e organização dos povos africanos no mundo antigo. Esses povos
munidos de diferentes aparatos de sobrevivência, aprimoramento das técnicas de
caça e coleta, e principalmente com desenvolvimento cognitivo gradual, são os
primeiros a partir para novas descobertas, além dos limites territoriais conhecidos.
Assim, conforme Symanski (2013, p. 72), nossos ancestrais africanos, se
aventuram fora da África em grupos colonizadores que aos poucos ocuparam a
Eurásia e a Austrália. A hipótese é que essas migrações tenham sido forçadas
pelas condições extremas advindas das mudanças climáticas na terra, sendo a
era glacial um fator preponderante. Ainda que a África, diferente da Eurásia, não
tenha sido coberta por imensas geleiras, as condições glaciais provocaram
intensa aridez, com formação de grandes desertos.
De acordo com o autor supracitado, esse primeiro grupo migratório se
deslocou para o sudoeste da Ásia. Foi esse grupo de pioneiros que se disseminou
pelo globo terrestre e grupos originados dele colonizaram a Europa, Ásia e
Austrália, e milênios depois, as Américas. Esse grupo migratório, do qual todas as
populações não africanas são descendentes, provavelmente cruzou o Mar
Vermelho na extremidade sul. No decorrer do tempo, chegou ao atual Iêmen e se
dispersou em pequenos grupos em direções distintas.

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A cultura e princípios da civilização africana estão presentes na Ásia, a
partir da transposição dos rios Tigre e Eufrates, na região que compreende a porta
de entrada do Oriente Médio (Irã, Iraque, Palestina e Israel). Em 1872, John
Baldwin registrava que:

Os povos descritos nas escritas hebraicas como de Cush foram os


civilizadores primordiais do sudoeste da Ásia, e na mais remota
antiguidade sua influência estabeleceu-se em todas as regiões
litorâneas, desde o extremo leste até o extremo oeste do antigo mundo
(citado por Nascimento, 1994, p. 58)

A civilização suméria, conhecida na história universal como primeira


presença cultural na Ásia ocidental, teve influência direta dos povos cuchitas do
vale do Nilo (Egito). Conforme Nascimento (1994), os sumérios se
autoidentificavam como “cabeças pretas”, o que os diferenciava de outros povos
da região, e remetia à origem africana, mais precisamente aos cuchitas. Esses
povos “cabeças pretas” foram responsáveis pela construção da cidade-Estado de
Ur, edificando moradias e templos piramidais.
De acordo com Nascimento (1994), a península arábica também foi
habitada originalmente por negros, oriundos do norte e nordeste da África há cerca
de 8 mil anos. Eles eram chamados de veddoids, e ainda hoje seus descendentes
ocupam uma porção no mundo árabe. A miscigenação milenar nessa região
propiciou o surgimento da população de Sabá, que teve como rainha a lendária
Makeda.
A civilização indiana foi originalmente formada pela população de origem
africana. A base econômica era agrícola. Com a invasão da Índia pelos arianos,
povos nômades e guerreiros subjugaram essa população original, impondo seus
costumes culturais, sendo o sistema de castas uma dessas imposições. O sistema
de castas tinha como base critérios raciais, principalmente a cor das pessoas.
Desde a imposição do sistema casta os africanos têm permanecido nas castas
baixas, os “párias”, tratados com desprezo pelas castas privilegiadas. (Diop, 2010;
Nascimento, 1996).

TEMA 5 – DIÁSPORA AFRICANA NO MUNDO MODERNO

O termo diáspora tem sido utilizado com sentidos múltiplos em estudos


culturais e pós-coloniais, no âmbito dos interesses econômicos, políticos e
ideológicos, com a finalidade de aglutinar perspectivas que tratam do retorno ao
continente de origem de africanos e afrodescendentes.

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Segundo Walters (2005, p. VII), diáspora refere-se ao “espaço global, uma
teia de abrangência mundial, que se deve tanto pelo continente original quanto
por qualquer lugar no mundo em que seus filhos possam ter sido levados pelas
infortunas forças da história”. Essa definição expressa referências nítidas no que
tange a migração forçada dos filhos daquela terra, desterritorializados pelos
colonizadores.
Além disso, a autora acredita que “a noção de diáspora pode representar
uma construção do lar múltipla, plurilocal, portanto, evitando ideias de fixidez,
liberdade espacial, e exclusividade nostálgica que a ideia de lar tradicionalmente
levanta” (Walters, 2005, p. XVI). Diáspora é a ausência de lar em um primeiro
momento e, em seguida, a reconstrução do ambiente acompanhada do frequente
desejo de retorno ao que foi perdido.
No entanto, Paul Gilroy afirma que “parece imperativo impedir que a
diáspora se torne apenas um sinônimo de movimento” (Gilroy, 2001, p. 22), e
cuidemos para não observar o fenômeno africano apenas como o resultado final
do trânsito – uma vez que encarar dessa maneira o fenômeno possibilitaria retirar
dele o aspecto conflituoso e violento –, mas toda sua extensão de movimento – a
busca, a captura, as negociações de venda, o armazenamento das “peças”, a
viagem já como cativos, a travessia no Atlântico, a chegada ao Novo Mundo e,
finalmente, a adaptação e as manifestações culturais desses homens e mulheres
nas novas terras.
Entre os séculos XV e XIX, a diáspora de povos africanos pela Europa,
América e Ásia foi intensa, pois é período da escravização, do tráfico humano.
Conforme Gilroy (2001), esse é um dos movimentos migratórios mais desumanos
da História moderna, a migração forçada, sendo que os cálculos indicam que
aproximadamente de dez a cinco milhões de pessoas foram brutalmente
arrancadas da África para América, cuja a travessia foi feita pelo Oceano Atlântico.
A diáspora africana, junto com o domínio colonial, deixou profundas
sequelas na organização social, econômica e política do continente africano.
Diversos países europeus ocuparam e subjugaram territórios e povos africanos
em nome de uma ideologia do progresso, e justificavam suas ações como
benéficas à humanidade. Hoje, vários Estados africanos enfrentam diversos
problemas e desafios.
No século XIX, o olhar científico e ideológico para o continente africano era
da não civilização; com o passar do tempo, essa concepção irá se transformar,

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sendo a Segunda Guerra Mundial um marco nessa mudança de perspectiva
ideológica. Assim, gradativamente construção de outras representações são
engendradas para África, porém, a desqualificação continua sendo adjetivo
central.
Nos materiais didáticos, na mídia, enfim, nos diversos meios de
comunicação, os discursos e representações sobre a África após a Segunda
Guerra Mundial são de um continente dominado pela miséria, desordem, doenças,
analfabetismo, golpes de Estados contínuos, seca e conflitos étnicos; em síntese,
o subdesenvolvimento.
Assim, nas longas batalhas pela independência e posterior conquista, os
países africanos surgidos tiveram que lidar com várias questões no esforço de
uma “construção nacional”. Esses novos países não poderiam ignorar a
diversidade de povos e culturas existentes em seus espaços. Conforme M’Bokolo
(2007, p. 587), “os Estados nascidos das independências declaram todos que
‘cultura’, constituía uma das principais prioridades”. Ainda segundo o autor, “há de
maneira geral, um retorno a elementos considerados ‘tradicionais’ dentro das
culturas africanas, de retorno a dignidade do passado, da valorização da história
que fora negada ou mal contada pelo colonizador” (M’Bokolo, 2007, p. 589).
Além do esforço para que a diversidade cultural não fosse o motivo de
conflitos entre diferentes povos que ocupam o mesmo espaço, há o desafio das
fronteiras artificiais criadas pelos colonizadores. Também a saída das
ex-metrópoles dos territórios africanos aguçou várias disputas entre grupos
antagônicos que desejam ocupar o poder para defender seus interesses
particulares e não do povo.

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REFERÊNCIAS

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