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HERNANDEZ, Leila Leite. O olhar imperial e a invenção da África.

In: A
África na Sala de Aula. Visita à História Contemporânea. São Paulo: Selo
Negro, 2008.

É recorrente, nos compêndios que apresentam a ideia de uma história da civilização


ocidental, o equívoco no tratamento do referencial que diz respeito ao continente
africano e às suas gentes. Estes se apresentam ligados à construção de um
conhecimento cuja gênese remonta ao século XVI, quando surge o racionalismo como
método que se desenvolve e se consolida mais tarde, entre a segunda metade do
XVIII e a primeira metade do XIX, passando a dominar o pensamento ocidental.

Esse saber moderno que permeia a formulação de princípios políticos, éticos e


morais, fundamenta os colonialismos do final dos oitocentos. Seus efeitos
prolongam até os nossos dias, deixando fortes marcas nas ciências humanas e, em
particular, na antropologia e na historiografia sobre a África.

A atividade do conhecer passa a ser reconhecida como um privilégio dos que são
considerados mais capazes, sendo-lhes, por isso, conferida a tarefa de formular uma
nova visão do mundo, capaz de compreender, explicar e universalizar o processo
histórico.

Significa dizer que o saber ocidental constrói uma nova consciência planetária
constituída por visões de mundo, auto-imagens e estereótipos que compõem um
“olhar imperial” sobre o universo. Assim, o conjunto de escrituras sobre a
África, em particular entre as últimas décadas do século XIX e meados do XX,
contém equívocos, pré-noções e preconceitos decorrentes, em grande parte,
das lacunas do conhecimento, quando não do próprio desconhecimento sobre o
continente africano.

Os estudos sobre esse mundo não ocidental foram, antes de tudo, instrumentos de
política nacional, contribuindo, de modo mais ou menos direto, para uma rede de
interesses político-econômicos que ligavam as grandes empresas comerciais, as
missões, as áreas de relações exteriores e o mundo acadêmico.

História. Pela ocultação da complexidade e da dinâmica cultural próprias da


África, torna-se possível o apagamento de suas especificidades em relação ao
continente europeu e mesmo ao americano. Quanto às diferenças, são tratadas
segundo um modelo de organização social e política, bem como de padrões
culturais próprio da civilização europeia. Em outros termos: aproximando por
analogia o desconhecido ao conhecido considera-se que a África não tem povo,
não tem nação nem Estado; não tem passado, logo, não tem história.

O problema posto nessa lógica interpretativa possibilita que o diverso, no caso a


África, seja enquadrado no grau interior de uma escala evolutiva que classifica
os povos como primitivos e civilizados.
No início do XIX, Charles Linné, no livro Systema naturae coloca o Homo sapiens
(1778) classificado em cinco variedades: a) Homem selvagem; b) Americano; c)
Europeu; d) Asiático e e) Africano

(ler p. 19).

Vale salientar que esse sistema classificatório integrou o discurso político-ideológico


europeu, justificador tanto do tráfico atlântico de escravos como dos genocídios na
África do Sul praticados pelos bôeres, e da violência colonialista contra as revoltas de
escravos nas Américas.

Para acentuar a importância desse pensamento representativo de toda uma época, é


relevante destacar a contribuição do filósofo Friedrich Hegel (1770-1831) como porta-
voz do pensamento hegemônico de fins do século XVIII e de todo o século XIX. Na
sua Filosofia da História Universal, a aistoricidade da África, tal como é considerada
por Hegel, decorre, em particular, de duas razões interdependentes. A primeira, pelo
fato de a história ser entendia como própria de um Velho Mundo que excluía a
África subsaariana e a segunda por conceber o africano como sem autonomia
para construir a sua própria história.

Quanto à primeira razão cabe explicar que a história se restringia aos espaços
geográficos que tinha como elemento de união o mar Mediterrâneo, promotor da
civilização. Estavam ligado a esse “coração do mundo antigo” o sul da Europa, o
sudoeste da Ásia, África Setentrional (Marrocos, Argel, Túnis, Trípoli) e o Egito.

Em síntese, o “mar Mediterrâneo é o elemento de união destas três partes do mundo,


e isso o converte no centro de toda a história universal. [...] Assim, pois, o
Mediterrâneo é o coração do mundo antigo, o que o condiciona e o anima, o centro da
história universal, porquanto essa se acha em si relacionada”.

Ler p. 20 e 21.

Repensando o continente africano

Após o processo de descolonização e independência da África, nas décadas de 60,


inicia-se a busca de sua história, consultando os documentos antigos, fazendo
trabalhos de arqueologia e pesquisando a tradição oral.

Tradição oral. No que se refere à tradição oral, vale-se do desenvolvimento da


metodologia da coleta, transmissão e interpretação das informações obtidas,
constituindo-se uma fonte de reconhecida relevância para a reconstrução histórica de
civilizações predominantemente orais. A exigência é que o historiador se inicie, antes
de tudo, nos modos de pensar da sociedade oral para só depois interpretar suas
tradições.

Vale registrar que os que detêm o “conhecimento da palavra falada” por


revelação divina são denominados “tradicionalistas” e transmitem-no com
fidelidade, uma vez que a palavra tem um caráter sagrado derivado de sua
origem divina e das forças nela depositadas. Significa dizer que a fala tem uma
relação direta com a harmonia do homem consigo mesmo e com o mundo que o
cerca. Assim, a mentira é execrada, pois “aquele que corrompe a palavra
corrompe a si próprio”.

Griots. São aqueles que contam histórias. Eles não são, mas podem vir a se tornar
“tradicionalistas conhecedores”; no entanto, estão excluídos da iniciação da tradição
maior e mais divina, referente ao mito da criação do universo e do homem.

Ler p.30 e 31.

África: um continente em movimento

Escravos. Umas das mercadorias que integram os intercâmbios comerciais nas


principais rotas transaarianas é a população negra feita escrava. Nesse sentido, é
importante compreender o papel fundamental do trato de escravos na formação de
estruturas sociopolíticas complementares, na região sahelo-sudanea, compostas por
aristocracias guerreiras de formações político-militares, como Tekrur, Gana, Mali e
Sylla (às quais cabia apenas a captura e a transformação de homens livres em
cativos), e as cidades mercantis como Djenné e Tombuctu, dominadas pelo comércio
capitaneado por homens islamizados.

[Estes eram povos negros e mestiços responsáveis pelo comércio de longa distância,
seja por “revezamento” (quando cada grupo controlava apenas o seu espaço, ficando
com a sua parte do lucro), seja pelo “comércio em rede” (no caso de um grupo de
comerciantes especializados em acompanhar o trânsito de mercadorias do primeiro ao
último ponto da cadeia comercial).]

O tráfico transaariano de escravos para o Magrebe e depois para a Europa,


permanente do século VIII ao XVI, sugere o tema da escravidão no continente
africano. 1

Mas quais mecanismos levaram à escravidão nas sociedades africana do século


VII até o século XV? Em termos gerais é sabido que o fornecimento de cativos
provinha basicamente (primeiro) das guerras internas decorrentes das próprias
estruturas econômicas de cada região, as quais se remontavam à Antiguidade,
tendo crescido com a expansão islâmica e com a demanda ao longo do
Mediterrâneo.

Esses embates ocorriam por razões variadas, como o rapto de mulheres pertencentes
a clãs ou a linhagens, os conflitos entre “Estados” em formação ou os já constituídos
ou ainda pelas guerras de expansão, assim chamada porque os mercadores
incorporavam povos tributários, segundo um sistema de pagamento de tributos e
prazos fixados pela tradição. Uma vez capturados, vendidos ou mesmo no caso de
morrerem em combate, os filhos desses escravos não eram vendidos nem
maltratados. Criados na maioria das vezes na corte, acabavam por reconhecer o
soberano como seu próprio pai; além disso, desempenhavam funções quase sempre
importantes nas esferas administrativa e militar.

1
É indispensável explicar que os vocábulos império, reino e Estado são instituições políticas que têm
particularidades históricas, não sendo equivalentes aos conceitos próprios da filosofia política e da
ciência política ocidentais.
O segundo mecanismo que levava à escravidão era fome que, desestruturando
uma sociedade, impelia os destituídos a vender a si mesmos ou aos seus filhos
como escravos, como um meio de sobrevivência.

Por sua vez, o terceiro mecanismo era “resultado de punição judicial por algum
crime ou como uma espécie de garantia para o pagamento de débito. No último
caso trata-se da difundida instituição da penhora humana. Nessas situações os
escravos eram relativamente bem-tratados: tinham acesso aos meios de
produção (basicamente a terra), podiam casar-se com pessoas livres e eram
considerados membros da família do senhor”.

Genericamente, a escravidão esteve presente na África como um todo, fazendo-se


necessário observar as especificidades históricas próprias de complexos sociais e
políticos e das formas de poder das diversas sociedades africanas. Mas é fundamental
acrescentar que a dinâmica e a intensidade da escravidão no continente africano tem
a ver com a maior ou menor demanda do tráfico atlântico gerada pelo expansionismo
europeu sobre a América. Isso acarreta mudanças sociais na África, como a expansão
e a subsequente transformação da poligenia, o desenvolvimento de diferentes tipos de
escravidão no continente, além do empobrecimento de uma classe de mercadores
africanos.

Ouro. Podemos afirmar que, adensado a partir do século XII, o comércio de escravos
era inferior ao do ouro, material necessário para a cunhagem de moedas feita ao redor
do Mediterrâneo.

Sal. Acresce que o sal, ao lado do ouro, da prata e do cobre, serviu de moeda
comercial para os sudaneses, sendo que, em Teghazza e Takedda (Tigida), eram
utilizados como moeda para aquisição de madeira, carne, sorgo e trigo.

Conclusão. Como é possível constatar, o assunto sobre o intercâmbio é vasto,


complexo e sugere inúmeros temas de pesquisa. Sugere a articulação entre
colonialismo e racismo, par dicotômico constante na história da humanidade. As
considerações precedentes, no seu conjunto, afastam a noção de um continente
cindido em duas partes incomunicáveis, ao mesmo tempo que superam a ideia da
homogeneização da África subsaariana.

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