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ENTREVISTA COM

MARY KARASCH

ENTREVISTA
Goiânia, v. 15, n.1, p. 171-181, jan./jun. 2017.
A revista Habitus tem o privilégio de publicar nesta edição uma entrevista com a Dra.
Mary Karasch concedida em junho de 2017 às antropólogas Izabel Missagia (UFRRJ)
e Marlene Ossami de Moura (PUC Goiás/IGPA) e ao arqueólogo Marcos Torres de
Souza (UFRJ/MN) desde sua residência em Tempe, Arizona. A entrevista foi traduzida

DOI 10.18224/hab.v15i1.5904
para o português por Izabel Missagia.
Mary Karasch é doutora em História pela Universidade de Wisconsin em Ma-
dison e foi professora emérita da Universidade de Oakland, Michigan. No Brasil, atuou
como professora Fulbright nas Universidades de Brasília, de 1977 a 1978, e na Federal
de Goiás, em 1993 e 1996, sendo também conhecida por suas inúmeras conferências
ministradas por todo o país. Seus estudos, muito deles baseados em extensas pesquisas ar-
quivísticas e documentais, são de extrema importância para a história do Brasil colonial.
Abordou diferentes temas como a escravidão, a resistência dos negros, principalmente de
Zumbi dos Palmares, das mulheres livres de cor, dos quilombos, dos índios ladinos, dos
conflitos e resistência interétnica em Goiás, da política indigenista colonial entre outros.
Dentre suas publicações, destaca-se o livro “Slave Life in Rio de Janeiro”, publicado em
1987 pela Universidade de Princeton, traduzido no Brasil como “A Vida dos Escravos no
Brasil”, no ano de 2000, pela Editora Companhia das Letras. Este livro lhe concedeu, em
1987, o prêmio “Albert J. Beveridge” da Associação Americana de História.

Izabel Missagia: a Senhora menciona em seu novo livro (KARASCH, 2016) - do


qual aguardamos ansiosamente uma versão em língua portuguesa - algumas situa-
ções relacionadas ao tempo em que esteve no Centro-Oeste brasileiro como investi-
gadora e professora, tanto na UNB como na UFG. Menciona, ainda, as relações de
colaboração com historiadores da PUC-Goiás, como foi o caso do jesuíta Padre Luís
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Palacin. Gostaríamos de saber um pouco mais sobre a relação de sua obra com esses
importantes pioneiros da histografia do centro-oeste brasileiro.

Mary Karasch: Entre muitos goianos que me ajudaram a escrever Before Brasilia
[Antes de Brasília] se encontram três pioneiros. O primeiro, que conheci no final da
década de 1970 em Goiás Velho, foi Frei Simão Dorvi. Embora ele não fosse exata-
mente um historiador, havia coletado registros paroquiais de Goiás e Tocantins e os
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levou a Goiás para serem preservados. Uma das razões pelas quais eu decidi estudar
a história de Goiás foi porque ele me mostrou documentos que eu não tinha visto no
Rio de Janeiro, especialmente aqueles sobre as irmandades negras dedicadas a Nossa
Senhora do Rosário. O segundo foi Padre Luís Palacin. Lembro-me dele como um
padre jesuíta enérgico, jogador de tênis, que não só escreveu sobre a história de Goi-
ás em numerosos livros, mas também ajudou a organizar os documentos. Quando
comecei a fazer pesquisas em Goiânia, fui visitar o Arquivo Estadual, então alojado
em um prédio do Ministério da Educação. Ao entrar em uma grande sala, vi montes
de documentos que ele ajudara a organizar. Quando fui encontrá-lo na residência
dos jesuítas em Goiânia, o conheci em uma sala cheia de livros. Ele gentilmente me
deu uma orientação para o estudo histórico em Goiás e me apontou para arquivos
importantes. Mais tarde, Padre Palacin lecionou na UFG e forneceu a mesma aten-
ção cuidadosa aos estudantes lá. Uma terceira mentora importante foi a professora
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Dalísia Doles, que me ajudou quando fiz visitas iniciais de pesquisa em Goiânia. Ela
também me levou a visitar a cidade, as montanhas de Pireneus e a fazenda Babilônia.
Até sua morte em 2005, contei com sua amizade e hospitalidade sempre que estive
em temporadas de pesquisas em Goiânia.

Izabel Missagia: Before Brasilia é resultado da acumulação de décadas de pesquisas. A


metodologia para o estudo das regiões de fronteira tem evoluído contemporaneamente.
Como a Senhora avalia a contribuição desta área de estudos para o conhecimento his-
tórico do Centro-Oeste no Brasil?

Mary Karasch: Uma das novas contribuições significativas dos estudos de fronteira
é o fato de enfocar as relações inter-étnicas, ou mesmo as relações internacionais nas
fronteiras, assim como no processo de mudança. Quando as pessoas atravessam as fron-
teiras e têm contato, raramente podem evitar as mudanças, muitas vezes desenvolvendo
novas identidades à medida que vão se deparando com amigos ou inimigos. A natureza
dinâmica das mudanças culturais nas fronteiras é o que torna o estudo contemporâneo
das fronteiras tão atraente. O Centro-Oeste brasileiro é exatamente uma dessas fron-
teiras notáveis para o desenvolvimento de relações inter-étnicas complexas ao longo
dos séculos. As visões anteriores do Centro-Oeste em estudos históricos, freqüente-
mente enfatizavam seu isolamento e sua distância da costa, concentrando-se apenas
em populações indígenas isoladas, sem o reconhecimento dos povos complexos que se
instalaram no Centro-Oeste. O meu livro é uma tentativa de apontar para a grande
diversidade de atores históricos e de suas muitas interações culturais no Centro-Oeste
no período colonial.
Uma excelente introdução à historiografia mais recente sobre fronteiras, in-
cluindo o Centro-Oeste, é Borderlands of the Iberian World [Fronteiras do Mundo Ibéri-
co] (RADDING; LEVIN ROJO, no prelo), a ser publicado em breve. 172
Izabel Missagia: Dois aspectos chamam muito a atenção na escrita da sua obra: o ri-
gor com o exame das fontes primárias nas visitas exaustivas aos arquivos e o amor pelas
paisagens naturais e humanas do Cerrado – vivenciado em suas frequentes incursões de
campo. Como a Senhora considera que o diálogo entre as informações do passado e a
experiência do presente pode exercer influências para a investigação histórica?

Mary Karasch: Eu acredito que os historiadores são influenciados pelas preocupações

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do tempo presente. Nos Estados Unidos, os historiadores da minha geração estudaram
a escravidão e as relações raciais africanas, tanto nos Estados Unidos como em outros
lugares, devido às relações raciais difíceis da década de 1960 e à luta histórica dos
Direitos Civis. Buscamos entender porque houve tanta violência nas relações raciais
americanas em comparação a outros países e, naturalmente, nos voltamos para a escra-
vidão como uma explicação. A independência dos países africanos também trouxe mais
atenção para a África e começamos a estudar a história africana.
Atualmente, à medida que os Estados Unidos adotam uma abordagem mais
internacional ou global do seu lugar no mundo, os historiadores estão voltando para
um foco mais amplo em nossa história, com referência particular ao mundo atlântico.
Já não nos vemos isolados dos desenvolvimentos globais mais amplos: agora estabelece-
mos vínculos maiores. Há também mais estudos sobre Impérios: por exemplo, os his-

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toriadores trabalham não apenas a história da França, mas também o domínio francês
do Canadá, São Domingos etc. Portanto, também estamos examinando a centralidade
das potências coloniais e seus usos e abusos do trabalho indígena e africano.
Para o Brasil, muitos historiadores estão finalmente estudando a escravidão
brasileira em todo o país. O crescente interesse popular parece estar relacionado a um
maior acesso à educação por parte das pessoas de ascendência africana. O que tem
permanencido em atraso é o estudo dos povos indígenas no Brasil de forma integrada
às narrativas nacionais. Isso finalmente vem acontecendo nos Estados Unidos e um dos
resultados na historiografia sobre a escravidão indígena vem aparecendo, como o livro
mais recente de Andrés Reséndez, The Other Slavery [A Outra Escravidão] (2016), no
qual examina a escravização dos povos indígenas das Américas. O autor conclui que
a escravidão indígena tomou muitas formas escondidas nos registros oficiais e estima
a existência de 2,5 a 5 milhões de índios escravizados entre os séculos XV e XIX. Re-
séndez também argumenta que a escravidão foi uma das principais causa de altas taxas
de mortalidade. Particularmente tenho dado maior ênfase às doenças epidêmicas como
causas das altas taxas de mortalidade, mas concordo com sua ênfase na centralidade da
escravidão indígena na colonização das Américas e do Brasil.

Izabel Missagia: A relação de interdisciplinaridade entre a Antropologia e a História


vem sendo muito utilizada no Brasil no estudo da história indígena. Um dos precur-
sores e defensores desta necessária relação – contextualizada no âmbito da redemocra-
tização do Estado brasileiro - foi o professor John Monteiro (1956-2013). Apesar do
campo acadêmico nos Estados Unidos possuir suas próprias características, a Senhora
vê interesse neste intercâmbio de saberes nos estudos das fronteiras, dos povos indígenas
e da escravidão?

Mary Karasch: Um intercâmbio entre História e Antropologia é absolutamente essen-


173 cial. Os historiadores precisam ler o trabalho dos antropólogos e os antropólogos não
devem ignorar a análise histórica. Quando há uma troca de idéias e pesquisas, os resul-
tados conferem uma compreensão muito maior a um povo e sua história. Estudei na
Universidade de Wisconsin com o professor Jan Vansina - um dos pioneiros no uso das
tradições orais no estudo da história da África, que acaba de falecer. Ele enfatizava a im-
portância de usar os trabalhos de antropólogos e missionários na compreensão do passado
africano. Embora muitos antropólogos tenham rejeitado o uso de fontes coloniais das
elites, ele mostrou o caminho para uma análise crítica do que esses estrangeiros podem
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revelar sobre o passado africano. Vansina também enfatizava o uso crítico de relatos de
viagens estrangeiras como fontes. Claro, as melhores fontes para utilizar são as escritas
pelos próprios povos indígenas, como o caso dos Xavante, que escreveram uma história
de seu próprio povo. Mas, infelizmente, esse tipo de história ainda é raro e pode até não
sobreviver nas histórias orais. As metodologias que aprendi com Vansina foram úteis para
minha pesquisa sobre história dos africanos escravizados no Rio de Janeiro e sobre as
populações indígenas escravizadas do Brasil Central. Sem o intercâmbio dos insights de
antropólogos e historiadores, não poderia ter escrito nem A Vida dos Escravos no Rio de
Janeiro (KARASCH, 2000), nem Before Brasília (KARASCH, 2016).

Izabel Missagia: Além de importantes estudos sobre os povos indígenas do Cen-


tro-Oeste, seu trabalho sobre os africanos escravizados no Brasil, do qual é uma das
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pioneiras, é bastante reconhecido academicamente. Na sua opinião, a historiografia


sobre os indígenas no Brasil e a dos negros escravizados apresentam aspectos em
comum?

Mary Karasch: Sim, há muitos aspectos em comum, mas o estudo de índios escravizados
é muito menos desenvolvido do que o da escravidão africana, em parte devido ao silêncio
nos arquivos sobre a escravidão indígena. O uso do termo administrado, por exemplo,
obscurece a experiência de cativeiro tantos de índios em Goiás como nas plantações e
fazendas de São Paulo. Simplesmente porque é mais difícil documentar a escravização
dos povos indígenas, especialmente no período colonial. O mesmo acontece nos Estados
Unidos. Em ambos os países, uma das diferenças entre índios escravizados e africanos é
relativa ao gênero. Uma vez que os proprietários de escravos costumavam preferir escra-
vos do sexo masculino para o trabalho na mineração ou plantação, suas condições de
trabalho foram diferentes das escravas indígenas, colocadas nos serviços domésticos e nos
campos. Portanto, a historiografia se concentrou nos escravos masculinos e nos tipos de
trabalho que eles fizeram e não nas mulheres escravizadas.

Marcos A. Torres: Tendo realizado estudos em diferentes regiões brasileiras, incluindo,


principalmente, Goiás e Rio de Janeiro, qual sua percepção sobre as variações regionais
que existiram nas situações de cativeiro? Entende essas diferenças como significativas?
Em que medida?

Mary Karasch: Em minha opinião, as variações regionais foram muito importantes


na formação da experiência do cativeiro de escravos indígenas ou africanos. Mas, es-
pecialmente importantes foram as diversas ocupações exigidas dos escravos, muitas
vezes dependendo da cultura cultivada em grandes plantações ou pequenas fazendas
ou empregos alternativos nas cidades. O gênero também é um fator significativo. As
diferenças podem ser bastante significativas entre um escravo africano que trabalhou 174
como prospector de ouro ou garimpeiro em Goiás e outro, em uma grande plantação
de açúcar altamente capitalizada em Pernambuco ou na Bahia. Um minerador de ouro
bem-sucedido poderia esperar comprar sua liberdade e a dos membros de sua família,
enquanto um trabalhador do campo em um engenho raramente poderia fazê-lo. Tam-
bém era difícil para os escravos de engenho formar famílias. Caso as escravas traba-
lhassem em uma casa grande em Salvador ou em uma fazenda de café no interior, isso
também afetaria suas experiências de escravidão.

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Se eu tivesse que enfatizar diferenças regionais em termos de tratamento
dos escravos, eu me concentraria nas condições extremas das plantações de açúcar
no Nordeste, além das plantações de arroz no Maranhão e das plantações de café em
São Paulo. Elas podem ser contrastadas com as condições menos pesadas das planta-
ções de tabaco na Bahia, ou talvez com a maior liberdade permitida aos escravos na
prospecção de ouro e dos vaqueiros. Os escravos das minas, no entanto, muitas vezes
tinham formas difíceis de trabalho, quando tinham que cavar na terra ou mover
montanhas de terra.
Mas seja qual for o tipo de plantação, as mulheres escravizadas sofreram, mui-
tas das vezes, maior exploração, devido às suas múltiplas demandas de mão-de-obra do-
méstica, que incluíam serviços sexuais e cuidados infantis, além do trabalho no campo.
Trabalhos manuais difíceis que os homens se recusaram a fazer, como bater o milho ou

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processar a mandioca, foram definidos como trabalhos femininos e tiveram que ser fei-
tos pelas mulheres após o dia de trabalho nos campos. O trabalho noturno era muitas
vezes opressivo aos escravos, mas ainda mais para as escravas.

Marcos A. Torres: Um dos temas mais debatidos sobre a escravidão diz respeito aos
processos de mudança cultural pelos quais os africanos passaram depois da sua chegada
nas Américas. Após muitas pesquisas já realizadas, como resumiria o seu entendimento
sobre esse tema?

Mary Karasch: Este é um tema muito amplo, mas eu argumentaria que muitos africa-
nos conseguiram preservar muitas tradições culturais no Brasil por causa da contínua
renovação do comércio de escravos africanos ao longo dos séculos. Como a conexão
África-Brasil foi intensa ao longo do tempo, isso facilitou a renovação das lembranças,
mas não a elaboração de linguagens criolas. Ao contrário do Caribe, que desenvolveram
línguas crioulas, elas não surgiram no Brasil. Em vez disso, certas línguas africanas
foram preservadas, como Yorubá.
Não estou argumentando que as tradições africanas não sofreram mudanças
no Brasil, mas evoluíram por séculos com a contribuição das novas levas chegadas da
África. O conceito de nações e uma identidade como nação angolana, mina ou mo-
çambicana serviu para distinguir diversas culturas no Brasil. Gostaria de salientar que
essas novas nações evoluíram no Brasil, já que diversos povos se juntaram às nações já
existentes para criar novos grupos sociais. Ao contrário daqueles que argumentaram
que a escravidão teria destruído a capacidade dos africanos de continuar sua cultura
nas Américas, eu argumentaria que as tradições dos escravos trazidos da África contri-
buíram para criar novas identidades no Brasil. Os africanos também foram auxiliados
pelas irmandades organizadas por diversas nações.
Em contraste, os Estados Unidos não tinham uma construção nacional tão vi-
175 brante, exceto em Nova Orleans e em algumas outras regiões no sul. Como não houve
um processo de migração forçada da África tão contínuo e por tanto tempo, no início
do período escravagista as identidades crioulas tornaram-se importantes. Tampouco
tivemos muitas irmandades, devido à grande maioria protestante.
Por ter estudado processos relativos às nações africanas, fui levada às nações
indígenas do Brasil. Deste modo, me concentrei também no conceito de “nação” para
os povos indígenas das Américas, devido ao seu uso no Canadá, onde os indígenas
preferem ser designados como “primeiras nações”. Aqui no Arizona, os povos indígenas
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também usam o termo nação, enquanto os descendentes de africanos, não.

Marlene Moura: Professora Mary, a política indigenista no Brasil se deu de forma


oscilante, ora se posicionando a favor dos indígenas, ora decretando a violência - para
a desapropriação de suas terras e exploração da mão-de-obra indígena -, e decretando
seu extermínio, como na aprovação do Governador Mem de Sá, que alegando “guerra
justa”, atacou os Caeté, acusados de terem assassinado e devorado o primeiro bispo do
Brasil, Dom Pero Sardinha. Como a Senhora resumiria a aplicabilidade da política
indigenista no Brasil, sobretudo na então Província de Goiás, e como os indígenas
reagiram a esta política?

Mary Karasch: Para responder a esta pergunta, gostaria de encaminhar os leitores para
o meu capítulo sobre política indigenista para Goiás no livro Historia dos Índios no Bra-
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sil, editado por Manuela Carneiro da Cunha em 1992. Naquele capítulo, examinei as
mudanças na política indigenista ao longo do tempo em Goiás até a década de 1880.
Neste ponto, eu gostaria de dar apenas um exemplo de reação indígena às mudanças na
política indigenista. Quando o Diretório dos Índios foi imposto no século XVIII, substi-
tuiu as missões jesuítas. Sob os jesuítas, geralmente havia apenas dois sacerdotes em uma
missão. Eles foram expulsos e levados presos para o Rio de Janeiro; por isso os indígenas
se levantaram em rebeliões por cerca de dois anos. Finalmente “pacificados”, a política
imperial passou a designar um administrador, apoiado por guarnição militar. Esses ad-
ministradores foram muitas vezes corruptos e exploradores e, em pelo menos um caso, os
tratava como escravos, enquanto os soldados abusavam de suas mulheres. Por causa desse
tratamento nas aldeias, eles fugiram das missões e levantaram-se em outras rebeliões. Os
povos mais resistentes às missões foram os Avá-Canoeiro, que lutaram contra os colonos
locais e os governos colonial e imperial ao longo do século XIX. Tenho a suspeita, que
ainda não posso demonstrar por meio dos documentos históricos, que eles devem ter
passado por algum período de tempo em uma missão jesuítica, pois conheciam algumas
orações latinas e conhecimento da língua portuguesa suficiente para maldizer seus opo-
nentes. Após a expulsão dos jesuítas, o povo Avá-Canoeiro ocupou uma antiga fazenda
jesuíta conhecida como Gilbués, em Amaro Leite.

Marcos A. Torres: Em termos de linhas de investigação, como vê o futuro dos estudos


sobre a escravidão no Brasil?

Mary Karasch: Em geral, estudos futuros devem localizar a escravidão no Brasil em pa-
noramas globais mais amplos de escravização, em particular, aqueles com foco no mundo
atlântico. Mais especificamente, seguem aqui algumas sugestões para futuros estudos:
Primeiro, gostaria de ver uma análise aprofundada da base de dados do comér-
cio de escravos do Atlântico elaborada por pesquisadores na Universidade de Emory. 176
Embora os historiadores estejam fazendo isso à medida que emergem novos dados, me
parece que ainda precisamos de uma avaliação completa sobre nossa compreensão sobre
a etnicidade e os números relativos aos escravos no Brasil.
Relacionado ao tema do comércio internacional de escravos, outra área fru-
tífera para pesquisas futuras é o comércio interno de escravos no Brasil, que levou
escravos de uma parte do Brasil para outro. Em Goiás, e penso que também possa ser
verificado em outras localidades, temos documentação das entradas que identificam os

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africanos importados para a Capitania, existindo ainda as matrículas para o período
posterior. No caso de Goiás, as listas das vendas de escravos para Minas Gerais se en-
contram nas matrículas. Devo acrescentar que o comércio interno de cativos indígenas
é outra área frutífera para pesquisa. Eu consegui documentar um pequeno comércio de
cativos indígenas para Belém a partir dos portos do rio Tocantins, bem como o fluxo
de africanos escravizados de Belém para as cidades mineiradoras de Goiás.
Outra área de pesquisa se refere à cultura material. Aqui nos Estados Unidos,
o Museu Afro-americano em Washington, D.C., localizou muitos itens relacionados à
escravidão e ao período pós-emancipação através de um apelo às famílias que os salva-
guardaram. Eu suspeito que seja possível aprender muito sobre a escravidão nos Estados
Unidos a partir desses objetos. Minha esperança é que museus similares no Brasil possam
coletar e preservar tesouros familiares que documentem a cultura material da escravidão.

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As famílias das antigas plantações do sul dos Estados Unidos doaram os regis-
tros sobre essas e é possível que também no Brasil famílias como aquelas possam loca-
lizar tais registros para arquivá-los. O mesmo se aplica aos registros paroquiais. No Rio
de Janeiro, professores da Universidade Federal Fluminense estiveram ativamente en-
volvidos na localização e preservação dos registros paroquiais do Rio de Janeiro. Já em
Goiás, muitos desses registros sobrevivem no Orfanato de São José, na cidade de Goiás,
mas eu suspeito que um projeto de pesquisa para reunir registros paroquiais adicionais
de outras igrejas permitiria mais estudos sobre os escravizados. Eles são especialmente
importantes para localizar informações sobre etnia, cor e famílias, e até manumissão
como no caso de um bebê ser libertado no batismo.
No caso dos prisioneiros indígenas levados às cidades, também é possível re-
cuperar a etnia dos capturados, quando foram batizados ou enterrados, por meio dos
registros paroquiais. Por exemplo, os Bororo aparecem em registros iniciais em Meia
Ponte e os Xavante, em registros de morte em Natividade.
Relacionados a este tipo de fonte estão os registros das irmandades de negros
e pardos, usados atualmente por muitos historiadores em outras partes do Brasil para
documentar práticas afro-católicas. Em tais documentos, podemos encontrar líderes lo-
cais de comunidades negras, geralmente identificadas como reis, rainhas e juízes. Esses
mesmos líderes eram frequentemente membros das milícias pretas e pardas que defen-
diam as cidades mineradoras de ataques indígenas. Os católicos indígenas não tinham
irmandades separadas, mas se esperava que se reunissem à Irmandade do Rosário dos
pretos, ou seja, à categoria dos escravizados.
Embora possamos determinar quem pertenceu às irmandades, é mais difícil
recuperar suas crenças religiosas, a menos que tenham atinjido a atenção da Inquisição.
A fonte mais comum é a das Visitas, geralmente arquivadas no arquivo do Bispo. Estas
fontes permitem investigações sobre rituais locais e feiticeiros. Um dos acervos inquisi-
torais mais ricos para o Centro-Oeste foi conduzido em Mato Grosso, e contém mui-
177 tas informações sobre práticas religiosas africanas. Mais investigação sobre os registros
eclesiásticos deve levar a uma maior compreensão da cultura religiosa dos escravizados,
tanto dos africanos como dos indígenas.
Um dos pontos de vista que adquiri de um estudo sobre as irmandades dos pretos
e pardos é o papel importante das mulheres negras nos conselhos das irmandades e na anga-
riação de fundos. Estas são fontes importantes sobre mulheres escravizadas, que raramente
podem ser identificadas nos registros oficiais. Embora os historiadores tenham estudado a
história das mulheres há muitos anos, ainda há a tendência de ignorar os papéis das mulhe-
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res negras e indígenas. Fiquei satisfeita em participar de uma coleção editada, Mulheres Ne-
gras no Brasil Escravista e do Pós-Emancipação (2012), na qual me concentrei nas figuras das
rainhas e juízas. Um desafio futuro para os estudos sobre a escravidão é incluir as mulheres
e seus filhos. Nos Estados Unidos um novo campo de estudo enfoca crianças escravas.
Muito já foi feito, mas ainda há mais necessidade de levantamentos de fontes
tanto sobre escravidão indígena como na africana. Mais histórias orais dos descendentes
dos escravos também são necessárias. De fato, a história oral pode ser uma das poucas
metodologias pelas quais historiadores e antropólogos podem recuperar as experiências
de mulheres e crianças cativas.
Finalmente, uma síntese geral da escravidão no Brasil que reconhece a escra-
vidão indígena e africana estimularia ainda mais a pesquisa.

Izabel Missagia: Quais temas para investigação sobre a história indígena a Senhora
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sugere para os novos pesquisadores da temática?

Mary Karasch: Não há novos temas, em vez disso, precisamos refazer as mesmas per-
guntas antigas e localizar novas fontes para respondê-las. Aqui estão algumas sugestões,
especialmente para o período colonial:
Integrar a nova arqueologia nas nossas histórias indígenas. A evidência para
grandes cidades e populações na região amazônica antes de 1500 pode ajudar a mudar
os estereótipos estudantis e populares.
Integrar os novos estudos genéticos e linguísticos para rastrear padrões de
migração e assentamento. Em contato, quantos estavam lá? Onde viviam as pessoas?
Quem eram eles? Embora essas sejam questões básicas, minha esperança é que os estu-
dos genéticos e os estudos científicos dos padrões de assentamento e das línguas possam
render algumas respostas.
Devemos nos afastar da costa e do foco português nas populações costeiras
que excluem o interior. Muitos estudiosos reconhecem que os primeiross contato ocor-
reram com frequência após 1800, após a depopulação resultante das epidemias. Uma
busca de registros de missão e relatórios dos presidentes das Províncias pode levantar
mais informações sobre os deslocamentos das doenças. A documentação do século XIX
e do século XX é extensa. Na pesquisa que fiz para o século XX, foi impressionante que
as pessoas no Centro-Oeste ainda estivessem morrendo em altos índices, por doenças
comuns. A questão é: por quê?
Precisamos explorar mais a documentação de Portugal, localizando as peti-
ções de nações indígenas à Coroa na Torre do Tombo. Eu suspeito que documentos
semelhantes para o Rio de Janeiro possam ser localizados durante o período do Império
no século XIX.
Gostaria também de ver mais ênfase na coleção de imagens da cultura ma-
terial nos museus europeus e americanos. Em Viena, o museu etnográfico exibe os 178
artefatos coletados por Johann E. Pohl no Brasil Central. Em sua Viagem de 1819, ele
registra que recebeu um machado de um bandeirante; e está em sua coleção junto com
outros objetos. No século XIX, muitos artistas europeus visitaram o Brasil e fizeram
ilustrações de brasileiros nativos. Apenas um exemplo bonito entre muitos é a repre-
sentação dos Apiaka de Mato Grosso. Nos Estados Unidos, fiquei surpresa ao ver uma
máscara Karajá em Nova York, enquanto o Museu do Índio Americano em Washing-
ton mantém muitos belíssimos cocares de penas, que não se encontram em exibição.

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O que gostaria que fosse feito é que essa cultura material extraordinária depositada em
arquivos estrangeiros se tornasse mais acessível aos brasileiros, talvez através de um site.
Outro site que gostaria de ver produzido seria para publicação de uma coleção
de mapas que localizam as populações indígenas do Brasil desde o primeiro contato.
Para dar apenas um exemplo, encontrei recentemente um mapa do Rio de Janeiro do
século XVII que localizava aldeias com seus estilos habitacionais. Este mapa faz parte
do projeto Imagine Rio, da Universidade de Rice, que está mapeando o Rio de Janeiro.
Este mesmo tipo de projeto poderia ser feito no mapeamento de povos indígenas ao
longo dos séculos. Os mapas podem ser uma fonte incomum e valiosa para localizar
pessoas e costumes, especialmente no período colonial.
A tecnologia atual é de grande ajuda para localização de relatórios e documen-
tação colonial sobre os indígenas. Os relatórios dos governadores da Capitania de Goiás

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para Lisboa estão disponíveis através dos CDs do Projeto Resgate - há uma cópia em
Goiânia. Eu usei um deles na Biblioteca do Congresso em Washington, DC. Para o
período nacional, os relatórios dos governadores da Província de Goiás são mais úteis
para o estudo das políticas públicas dirigidas às aldeias, bem como os seus relatórios
sobre a resistência armada dos Avá-Canoeiro, Xavante, entre outros. Agora estes docu-
mentos se encontram disponíveis on-line.
As histórias orais ainda precisam de coleta enquanto as pessoas estão vivas e
se lembram de seus antepassados. Fiquei surpresa ao saber, por exemplo, que as nações
que pediram a proteção de suas terras na década de 1820 tiveram uma tradição oral
de que seus antepassados haviam ajudado os portugueses a expulsar os holandeses no
século XVII.
Outro tema que gostaria de explorar é o papel das mulheres indígenas, não só
nas aldeias, mas também como cativas e intérpretes para os luso-brasileiros.
No geral, ainda há muito por fazer e escrever boa etno-história. O futuro exi-
girá a utilização de tecnologia e novas metodologias para responder a perguntas antigas.
Muito já foi feito, mas ainda há mais necessidade de ser recolhido tanto na escravidão
indígena como na africana. Mais histórias orais dos descendentes dos escravos também
são necessárias.
Finalmente, há que ser produzida uma síntese geral da escravidão no Brasil
que reconheça a escravidão indígena e africana para estimular ainda mais futuras in-
vestigações.

Marlene Moura: Estamos, atualmente, no Brasil, vivendo um cenário de regressão aos


direitos dos povos indígenas no que toca a política indigenista, pelos últimos governos
instalados no Brasil, de forma particular, no atual governo. A ideologia desenvolvimen-
tista vem se sobrepondo aos anos de avanços em termos de demarcação de terras indí-
genas assim como de áreas de preservação ambiental. Como a Senhora analisa a atual
179 política indigenista brasileira e o futuro dos povos indígenas no Brasil?
Mary Karasch: O mais crítico é o problema da demarcação das terras para as nações
indígenas, bem como sua execução pelo governo federal. Nos Estados Unidos, a admi-
nistração Trump está tentando conceder terras sagradas dos indígenas para o desenvol-
vimento empresarial. Se isso de fato acontecer, as terras indígenas estarão ameaçadas.
O ponto crítico para a sobrevivência indígena nos Estados Unidos tem sido o sistema
de reservas, embora haja inúmeras falhas. Sem ele, nações como o Navajo e o Apache
perderiam suas terras aqui no Arizona. Somente as reservas respaldadas pelo governo
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federal impedem os empreendedores de utilizarem as terras indígenas. Sem essa prote-


ção federal, todas as terras teriam sido apreendidas por estes empresários.
Também importante nos Estados Unidos é que muitos não-indígenas de ori-
gem britânica valorizam as culturas indígenas e o fizeram há muito tempo. Educação e
museus, como o Heard Museum em Phoenix, introduzem o não-indígena ao valor cul-
tural de nossos nativos americanos. Em comparação, no Brasil existem poucos museus
bem apoiados; ainda assim os acadêmicos brasileiros poderiam estimular a exibição de
artefatos indígenas brasileiros e exibi-los em sites. O campus da Universidade do Ari-
zona em Tucson tem um pequeno, mas importante museu, que protege a cerâmica e a
cestaria de povos antigos, que já moraram no Arizona. Sua coleção é amplamente uti-
lizada por estudantes e apreciada pelos turistas. Tal museu cria um clima de apreciação
entre os não-indígenas para contrariar o preconceito e a discriminação contra os nativos
americanos. O museu de arte do MASP, em São Paulo, está planejando uma exposição
Goiânia, v. 15, n.1, p. 171-181, jan./jun. 2017.

sobre os indígenas brasileiros na arte, para 2018.


Sem o apoio da elite dirigente não-indígenas será difícil para eles garantirem e
manterem seu controle da terra. É angustiante que muitas conquistas no Brasil em ter-
mos de proteção de terras indígenas estão sendo eliminadas. A proposta de desmantela-
mento da FUNAI é especialmente problemática. Se as leis federais não forem aplicadas
para proteger as terras indígenas, nos Estados Unidos ou no Brasil, tanto as pessoas e
seu ambiente natural serão devastados pelo desenvolvimento.
O futuro deve ser uma colaboração entre os não-indígenas que apoiam as
nações indígenas, o governo federal e as primeiras nações das Américas. Nos Estados
Unidos, os Lakota Sioux receberam apoio de todos os três setores quando protestaram
e desafiaram a administração Trump, no inverno passado, contra a construção do oleo-
duto em suas terras. Mas, os empreendedores reverteram a vitória inicial dos indígenas,
e a obra será concluída. Os Lakota, no entanto, não foram expulsos de suas terras e ape-
nas uma parte do oleoduto será construída em suas terras sagradas. O que seus protes-
tos demonstraram foi a capacidade de uma pequena nação empobrecida de obter apoio
internacional e nacional generalizado através das mídias sociais. Esta abordagem global
será cada vez mais importante no futuro. Mas pode ser mais difícil no Brasil proteger
as nações indígenas, especialmente aquelas em partes isoladas da região amazônica.

Referências
KARASCH, Mary C. Catequese e cativeiro: política indigenista em Goiás, 1780-1889.
Carneiro da CUNHA, Manuela (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Editora
Companhia das Letras, 1992.
KARASCH, Mary C. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Ed.
Companhia das Letras, 2000. 180
KARASCH, Mary C. Before Brasília: Frontier Life in Central Brazil. Albuquerque:
University of New Mexico Press, 2016.
RADDING, Cynthia; LEVIN ROJO, Danna. eds. Borderlands of the Iberian World,
Nova York: Oxford University Press (no prelo).
RESÉNDEZ, Andrés The other slavery: the uncovered story of Indian enslavement in
America. Boston: Houghton Mifflin Harcourt, 2016; NEWELL, Margaret E, “The
Forgotten Slaves,” The Chronicle of Higher Education, December 11, 2016.

ENTREVISTA
XAVIER, Giovana; FARIAS, Juliana Barreto; GOMES, Flávio (Orgs.). Mulheres negras
no Brasil escravista e do pós-emancipação. São Paulo: Selo Negro Edições, 2012.

Goiânia, v. 15, n.1, p. 171-181, jan./jun. 2017.

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