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A ANÁLISE DO DISCURSO FRANCÊS, UMA TEORIA DEFICIENTE.

RELEITURA
CRÍTICA DA NOÇÃO DE SUJEITO A PARTIR DA FILOSOFIA AFRICANA.
Marie-Anne PAVEAU (USPN)
ma.paveau@orange.fr
https://orcid.org/0000-0001-8499-0141

RESUMO: No contexto atual de questionamento das dominações epistêmicas do


Norte Global, é necessário examinar a situação da análise do discurso francesa, dada
sua situação hegemônica em muitos países do Sul Global. O objetivo deste artigo é
mostrar que a análise do discurso francesa sofre de defeitos e pontos cegos devido
à sua própria hegemonia, sendo a dominação epistêmica construída sobre a
inexistência devidamente organizada de outros conhecimentos. Após uma
apresentação dos quadros de reflexão propostos pelos estudos de gênero, pós-
coloniais e decoloniais, o artigo propõe adotar uma perspectiva ocidental afrocentrada
para realizar uma reinterpretação crítica da noção de sujeito por meio das obras de
vários filósofos africanos de língua francesa contemporâneos.
PALAVRAS-CHAVE: afrocentricidade; análise do discurso francesa; hegemonia;
filosofia africana; sujeito.

Organon, Porto Alegre, v. 38, n. 75, jan/julho. 2023. DOI: 10.22456/2238-8915.130922


1 Introdução

Neste artigo, gostaria de demonstrar que a análise do discurso francesa


(doravante ADF, e AD para análise do discurso), amplamente difundida desde os
anos 1980 em várias áreas geográficas de língua francesa (por exemplo, Magrebe,
África Ocidental e Central) ou não francófonas (notadamente América do Sul
hispanófona e lusófona) e que adquiriu nessas regiões um status hegemônico, sofre
de lacunas significativas relacionadas a essa hegemonia em si. A ADF, ao contrário
da capacidade de generalização que seu status de teoria dominante lhe confere,
permitindo que seja aplicada a qualquer realidade discursiva, independentemente de
sua ancoragem, é, na verdade, uma teoria situada, local e, portanto, parcial, não
generalizável e até mesmo defeituosa. Minha hipótese é que essas falhas (no sentido
de o que está faltando e o que não funciona) são de sua própria responsabilidade: a
dominação epistêmica ocidental estabelecida a partir da colonização epistemicida das
Américas (SANTOS, 2016), do tráfico de escravos e da produção de "indignidade
negra" (AJARI, 2019), e da destruição colonial da capacidade dos colonizados de
serem sujeitos (FANON, 1952) tornou impossíveis olhares, hipóteses e possibilidades
de análise, empobrecendo assim as possibilidades epistêmicas da própria ciência
ocidental; a ADF, como produto da dominação epistêmica ocidental, parece carente
dos conhecimentos que ela mesma excluiu.
Estou seguindo o trabalho crítico proposto em um artigo anterior que explorava
as perspectivas interseccionais e pluriversais do "Sul" (incluindo Soumaya Mestiri na
Tunísia e Maria Lugones na Argentina) para mostrar algumas limitações da ADF
(PAVEAU, 2023). Este artigo se baseia em trabalhos filosóficos africanos e aprofunda
especificamente a questão do sujeito. Primeiro, explico o contexto em que minha
reflexão crítica se insere; em seguida, apresento a filosofia africana e a releitura que
ela parece permitir da AD, usando o exemplo do sujeito.

2 Lectures não hegemônicas do conhecimento

Uso o termo "não hegemônico" para se referir a propostas alternativas aos


modelos dominantes, que não têm o objetivo de substituí-los, à semelhança do que
foi discutido por Dufoix; Macé, 2016 e Saillant et al., 2011.
2.1 Uma crítica ocidental afrocentrada
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A expressão pode parecer paradoxal: como ser simultaneamente ocidental e
afrocentrado? Na verdade, isso expressa a posição que desejo adotar: uma
pesquisadora francesa ocidental branca (PAVEAU, 2022a) reflete sobre sua
ocidentalidade teórica hegemônica a partir de um ponto de vista não hegemônico, o
que lhe permite uma crítica de sua própria posição. Não pretendo adotar outra filiação
além da minha, de acordo com a feliz formulação que dá título a este dossiê, o que
seria politicamente insustentável e teoricamente hegemônico, precisamente. No
entanto, proponho uma leitura da Análise do Discurso Francesa (ADF) a partir da
minha leitura da filosofia africana, na posição que ocupo.
Por que essa escolha, especialmente em uma revista brasileira? Em primeiro lugar,
por razões históricas (ver MUSUASA MUSUASA, 2010, PAVEAU, 2010, 2022b) e
outras que ainda precisam ser esclarecidas, não existe uma ADF africana, ou seja,
produzida na África. O corpus teórico e metodológico dessa disciplina ainda é quase
exclusivamente francês ou francófono. Portanto, fui buscar um pensamento africano
sobre a língua e o discurso em filosofia, uma disciplina próxima das ciências da
linguagem em termos de temas, que fornece reflexões e análises sobre questões
relacionadas ao sujeito e à enunciação, à natureza da enunciação, ao status da fala,
ao contexto, à memória e, é claro, à própria língua. Acrescento que a ADF foi
amplamente desenvolvida a partir da filosofia em seus primórdios. Michel Pêcheux,
um filósofo agregado, discípulo de Althusser e militante marxista, foi autodidata em
ciências da linguagem, e grande parte das noções de formação discursiva,
interdiscurso e a concepção do sujeito presentes em "Les vérités de la Palice" devem-
se em grande parte ao pensamento filosófico (PÊCHEUX, 1975).
Além disso, faço essa escolha por razões relacionadas à língua: como
pesquisadora francófona, meu universo de pensamento é francófono (é em francês
que penso, escrevo e teorizo), meus dados discursivos estão em francês e minhas
conversas científicas ocorrem principalmente em francês. Portanto, para realizar essa
análise descentrada da ADF, eu precisava ter um diálogo com um pensamento na
minha língua, localizado no "Sul global", e foi na África que encontrei isso.
Na região oeste e central onde a encontrei, o francês ainda é frequentemente
a língua oficial de ensino e pesquisa.

2.2 ADF, teoria hegemônica,


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Geralmente chamada de 'análise do discurso francesa', que consiste em um
conjunto de propostas formuladas a partir do final dos anos 1960 por grupos de
pesquisadores em torno de Pêcheux e seus sucessores. Em seu último artigo,
Pêcheux se refere à 'tradição francesa de análise do discurso' (PÊCHEUX 1990
[1983], p. 305), e é essa tradição que, desenvolvida por diversos pesquisadores em
diferentes direções, foi gradualmente institucionalizada a partir do final dos anos 1970
(MAINGUENEAU, 1976, para o primeiro manual francês) e incorporada em
dicionários a partir dos anos 2000 (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2002, DÉTRIE;
SIBLOT; VÉRINE, 2001), tornando-se um ponto de vista dominante agora
estabelecido na França e em outras regiões geográficas. A ADF, assim como a
linguística europeia como um todo, ainda não refletiu sobre seu status hegemônico,
e este número atual é provavelmente uma das primeiras tentativas desse tipo.
Portanto, proponho aqui algumas ideias que dizem respeito a aspectos externos (vida
institucional e desenvolvimento) e internos (teoria e metodologia) da disciplina. A ADF
me parece hegemônica por:
- Sua ampla difusão, em grande parte impulsionada por suas traduções: Raus,
2019, uma síntese lacunar mas interessante da ADF fora da França, menciona a
Itália, a Bélgica, a Romênia e, fora da Europa, o Brasil, o Uruguai e a Argentina, e
finalmente em uma categoria um tanto peculiar, '... em outros lugares do mundo',
incluindo Israel e a Argélia (para uma síntese sobre o Brasil, consulte Orlandi, 2019,
neste coletivo);
- As demandas por formação que ela recebe: muitos pesquisadores de países
do 'Sul' vêm à França para se capacitarem com representantes dessa corrente, seja
em estágios de doutorado, doutorados ou pós-doutorados. Inversamente,
pesquisadores franceses são convidados a ensinar ADF nos países estrangeiros
envolvidos;
- Sua presença nos currículos das universidades: não tenho espaço para
detalhar isso aqui, mas basta consultar os programas de cursos em ADF nos países
envolvidos para notar a presença significativa dos autores da ADF.
- Sua importância nas referências bibliográficas dos pesquisadores: não é raro
que as bibliografias de pesquisadores estrangeiros sejam quase exclusivamente

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francesas ou francófonas1, mesmo quando os dados discursivos tratados são locais
em termos socioculturais e linguísticos;
Sua dimensão teórica em si, inserida nas noções que constituem seu dispositivo,
documentadas nos dicionários da disciplina: a generalização, que é constitutiva da
teoria, implica a hegemonia, pois a teoria fabrica sua própria aplicabilidade e
legitimidade2.
- Seu dualismo e seu logocentrismo: no mesmo ano, Pêcheux publicou a
Análise Automática do Discurso, mas também Sobre a História das Ciências, em
colaboração com Michel Fichant, que trata da distinção entre ciência e ideologia
(FICHANT; PÊCHEUX, 1969). O projeto fundador da ADF se baseia em uma
concepção dualista da ciência, que é encontrada, é claro, no apoio à linguística
saussuriana, incluindo a vontade de trabalhar com o discurso como zona de encontro
entre a língua e a sociedade: o dualismo língua/mundo é mantido, já que a sociedade
só é considerada como rastro linguístico nos discursos, com todo o empirismo
mantido afastado; o projeto da ADF é, de fato, logocêntrico, e as pesquisas realizadas
na corrente principal se concentram em dados discursivos, como conjunto de
enunciados reunidos em corpora. No entanto, a perspectiva logocêntrica permite
homogeneizar e generalizar os traços linguísticos em detrimento das singularidades
ou coletividades dos locutores.

2.3 Estruturas para um pensamento não hegemônico

As ciências humanas e sociais estão atualmente envolvidas em um amplo


questionamento das dominações epistêmicas em nível global, em três estruturas de
pensamento bastante diferentes, mas que contribuem para a posição que desejo
adotar. A análise do discurso e, mais amplamente, as ciências da linguagem
francesas ainda estão distantes, apesar de algumas incursões tímidas.
É comum, a partir de uma perspectiva ocidental e branca, atribuir a noção de
saberes situados à standpoint epistemology dos Estados Unidos (HARDING, 2021

1 Minha precisão 'francesas e francófonas' tem como objetivo integrar autores como, no Québec,
Régine Robin ou Marc Angenot, ou, em Israel, Ruth Amossy ou Roselyne Koren, que fazem parte
plenamente da corrente da ADF sem serem franceses.
2 A crítica à teoria sempre foi um dos elementos de contestação à hegemonia branca ocidental, como

no caso das feministas negras nos Estados Unidos, por exemplo (voltarei a isso mais adiante), ou
nas feministas autônomas na América do Sul (veja, por exemplo, VIVEROS VIGOYA, 2015).
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[1993]) e, em particular, à filósofa Donna Haraway em seu artigo fundador de 1988,
"Saberes Situados: A Questão da Ciência no Feminismo e o Privilégio da Perspectiva
Parcial" (HARAWAY, 2007 [1988]). Ela explica que os saberes situados a partir da
experiência minoritária das mulheres implicam uma perspectiva parcial, que ela
defende como muito superior ao ponto de vista patriarcal "divino" (ou seja, universal)
dos homens majoritários. Essa noção foi debatida, criticada e enriquecida desde o
início, especialmente pelas pesquisadoras do feminismo negro, que fazem críticas ao
feminismo branco dos Estados Unidos e, mais amplamente, ao ocidental, desde a
década de 1980 (CRENSHAW, 1989; LADNER, 1987; DILL, 1987).
Uma década antes, os estudos subalternos surgiram no Sul da Ásia e na Índia,
fazendo uma crítica anglofônica das sociedades pós-coloniais. O grupo formado em
torno de Ranajit Guha descreveu as condições de existência e a autonomia das
classes dominadas rurais, que eram majoritárias na época nesses países, com a
questão da enunciação sendo central nesse trabalho (GUHA, 1983). Os estudos
subalternos, influenciados principalmente por Gayatri Spivak, alimentarão o
movimento pós-colonial, um quadro privilegiado para a contestação da hegemonia
epistêmica ocidental nos estudos literários (SPIVAK, 2009 [1985]). Várias noções
sustentam essa leitura crítica: o orientalismo de Edward Said, que denuncia a
dominação política, econômica e cultural do Ocidente sobre a região geográfica
oriental árabe e muçulmana, mas que também se entende de forma mais ampla como
a dominação do Norte global sobre o Sul global (SAÏD, 2005 [1978]); a
provincialização definida por Dipesh Chakrabarty em "Provincializar a Europa. O
Pensamento Pós-colonial e a Diferença Histórica": para ele, a Europa continua sendo
um "referente tácito" para o conhecimento histórico dos países não europeus, que
deveria ser "provincializado" para ser deslocado de sua posição central
(CHAKRABARTY, 2009 [2000]).
A partir do meio da década de 1990, o grupo Modernidad / Colonialidad
(Modernidade/Colonialidade) propõe na América do Sul uma nova perspectiva sobre
a colonização e uma contestação mais radical da centralidade europeia/ocidental. Um
dos conceitos fundadores nessa perspectiva de língua espanhola e língua inglesa é
o "pluriversalismo transmoderno" de Enrique Dussel, entendido como a multiplicidade
das perspectivas humanas sem hierarquia ou classificação (DUSSEL, 1992). Os
pesquisadores do grupo repensam a colonização e a descolonização não como
eventos limitados no tempo, mas como processos longos e contínuos nas sociedades
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politicamente descolonizadas. Isso é o que significa a noção de colonialidade,
proposta pelo sociólogo Aníbal Quijano, que terá várias variações (colonialidade do
poder, do conhecimento, do ser e do gênero); é a noção de colonialidade do
conhecimento que me interessa aqui, significando que as formas enunciativas do
conhecimento ocidental são superiores às dos conhecimentos locais considerados
subalternos.

3. Considerações sobre a filosofia africana

Antes de entrar no corpo dos textos filosóficos africanos, explicarei por que
adoto a perspectiva afrocentrada ocidental mencionada anteriormente.

3.1 A perspectiva afrocentrada

Entre esses três fluxos frequentemente mobilizados sobre o tema da


descentralização do pensamento, opto por preferir a perspectiva afrocentrada, que é
menos visível, mas às vezes mais antiga. Meu objetivo é levar em consideração outra
pertença que não a minha sem a adotar, mantendo minha posição como
pesquisadora francesa. Para definir a afrocentricidade, farei uma breve digressão pelo
filósofo norte-americano Molefi Kete Asante, que propôs o conceito em 1980
(ASANTE, 2003 [1980]) e cujo único livro foi traduzido para o francês (ASANTE,
2013):"
A afrocentricidade é um paradigma filosófico que enfatiza a centralidade e a
capacidade do africano de assumir o controle de sua própria história e
cultura. Dessa forma, os afrocentristas expressam claramente uma visão
anti-hegemônica. Essa visão questiona ideias epistemológicas
profundamente enraizadas na experiência cultural europeia, que são
aplicadas aos africanos e a outros povos, como se fossem princípios
universais (ASANTE, 2013, p. 7).

A essa dimensão epistemológica, Asante adiciona uma dimensão ética: 'A


afrocentricidade, ele explica, é uma maneira de honrar a humanidade em vez de ser
uma perspectiva separatista' (ASANTE, 2013, p. 8). 'Honrar a humanidade': nenhum
dos paradigmas anteriores menciona essa dimensão ética, que é importante para
mim, pois considero que as categorias do ético e do epistêmico estão interligadas
(PAVEAU, 2015 [2013]).

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Para entrar em detalhes nesta perspectiva, seguirei a abordagem do filósofo
camaronês Ernest-Marie Mbonda. Em sua síntese dedicada a essa questão, intitulada
'Uma descolonização do pensamento. Estudos de filosofia afrocentrada', ele explica
que o modelo afrocentrado se baseia, por um lado, na desconstrução das epistemes
fundamentadas na ideia de uma razão universal que se desdobraria através do
pensamento ocidental e, por outro lado, na 'reabilitação' dos 'centros' de produção de
conhecimento subestimados, rejeitados ou mal compreendidos sob o domínio da
razão colonial" (MBONDA, 2020, p. 13). Ele fornece a seguinte definição:
O modelo afrocentrico consiste em libertar-se de qualquer perspectiva
hegemônica para considerar a África (sua história, sua cultura, suas religiões,
seus valores, suas sabedorias, suas mitologias, seus imaginários) como o
'ponto de vista' das escritas africanas sobre si mesmas e sobre o mundo,
mantendo-se aberto para o que outras centrais, outras perspectivas, possam
permitir compreender sobre a África e o mundo (MBONDA, 2020, p. 14;
tradução do autor).

Situar-se a partir de uma perspectiva africana significa adotar as seguintes três


'orientações', segundo ele: a desconstrução dos conhecimentos coloniais; a
desconexão 'dos locais de enunciação ligados à colonialidade/modernidade para se
conectar consigo mesmo, com seus próprios locais de enunciação, com seus próprios
'mitos'' (MBONDA, 2020, p. 18); e, por fim, a reconstrução, vista como o 'ponto de
chegada' das orientações anteriores, considerada uma migração do conhecimento
(herança do conceito de 'teoria viajante' de Saïd) e uma tradução, mobilizada por
Santos sob a forma de 'tradução intercultural' (SANTOS, 2016).
Os autores citados por Mbonda escrevem a partir dos anos 1980, e seus
trabalhos podem, portanto, parecer contemporâneos às correntes mencionadas
anteriormente. No entanto, o pensamento decolonial africano está inserido em uma
história longa de emancipação da África, como enfatiza Sabelo J. Ndlovu-Gatsheni
em um artigo intitulado 'O longo giro decolonial nos estudos africanos. Desafios da
reescrita da África' (NDLOVU-GATSHENI, 2021). Ele destaca que a genealogia do
giro decolonial é enganadora e que

se um certo número de pesquisadores tende a associar a virada decolonial


à teoria decolonial da América Latina, é importante destacar que ela também
emerge de lutas e tradições de pensamento provenientes da África, da
diáspora africana e de outros locais epistêmicos, como a tradição radical
negra, a negritude, o rastafarianismo, a afrocentricidade, os movimentos
feministas/womanistas, os nacionalismos radicais e os afro-marxismos, bem
como os movimentos intelectuais indígenas subalternos/locais, entre muitos
outros (NDLOVU-GATSHENI, 2021, p. 453).

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Esta observação é importante porque coloca o desejo de descolonização do
conhecimento na África de maneira múltipla, tanto em termos de espaço quanto de
tempo, e também enfatiza que as tradições epistêmicas não devem ser consideradas
independentemente umas das outras, mas em uma visão geral.
Nesta multiplicidade de reflexões, vou escolher a perspectiva adotada por
filósofos africanos que trabalham em universidades africanas e escrevem em francês,
e cujos trabalhos se concentram em noções utilizadas em ADF (Análise do Discurso
Francófona), relacionadas a questões de língua e discurso.

3.2 Qual filosofia africana?

A filosofia africana está imersa em um debate sobre sua própria existência,


debate do qual ela deve, sem dúvida, parte de seu significativo desenvolvimento nas
universidades africanas de língua francesa e inglesa. Em 1945, um padre belga, o
padre Tempels, publicou em neerlandês um livro intitulado "A Filosofia Bantu"
(traduzido para o francês em 1949), que defende a ideia de uma filosofia autóctone,
descrita para permitir uma melhor aplicação da missão civilizadora do Ocidente, em
uma perspectiva colonialista (Tempels 2013 [1949]). Em 1977, Hountondji publicou
um trabalho que se opõe a essa tese, a qual ele qualifica, juntamente com seu colega
Marcien Towa, como "etnofilosofia", ou seja, um conjunto de conhecimentos mais
relacionados com o sistema de pensamento ou cosmogonia, elaborado por europeus
a partir da alterização da cultura africana (Hountondji, 1977). Ele propõe chamar de
filosofia africana um conjunto de textos conceituais que se insere no corpus filosófico
mundial. Esta questão complexa é detalhadamente abordada por Bado Ndoye em
seu livro recentemente dedicado a Paulin Hountondji, intitulado "Lições de Filosofia
Africana" (Ndoye, 2022). Nele, é mostrado que o filósofo beninense propõe
"desmarginalizar os conhecimentos endógenos" e "pensar sua retomada crítica com
o objetivo de integrá-los no movimento da ciência mundial em formação, com base
nas exigências teóricas do continente, com o objetivo de não depender mais do
conhecimento dos outros" (Ndoye, 2022, p.147).
Os trabalhos filosóficos que me ajudam a reler a Filosofia Africana do Diálogo
nas lentes desmarginalizantes ou pluriversalistas são produzidos a partir desse tipo
de posição e abordam de maneira privilegiada a questão do sujeito. Além das obras
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de Fanon, um africano cosmopolita, recorro aos trabalhos de Hountondji, Jean-Marc
Ela (sociólogo, antropólogo, teólogo e padre camaronês, exilado no Canadá em
1995), Fabien Eboussi Boulaga (filósofo e teólogo camaronês), todos da mesma
geração (nascidos nas décadas de 1930-40), e em menor medida, às reflexões de
Achille Mbembe, historiador e cientista político da geração seguinte (nascido em
1957). Todos eles compartilham a abordagem das questões filosóficas.
A partir das realidades africanas, longe das 'proposições fossilizadas dos
saberes africanistas, que fixam as realidades africanas a partir de categorias
sobrepostas', como expressou Nadia Kisukidi (2021, p. 9). A perspectiva que eles têm
sobre conceitos centrais na Análise do Discurso a partir de sua identidade africana,
pensada de forma filosófica, parece constituir um arquivo muito rico para uma revisão
crítica de minha disciplina.

3.3 O exemplo do sujeito

Existência ocidental e rejeição africana. A noção de sujeito é fundamental tanto


na Análise do Discurso quanto na filosofia, e parece ser um bom laboratório para
avaliar a hegemonia restrita da teoria francesa.

3.3.1 A forma-sujeito da existência ocidental

Na Análise do Discurso, conforme ela é desenvolvida a partir dos anos 1960,


o sujeito é o resultado de uma dupla transformação: a transformação dos sujeitos
históricos em sujeitos da enunciação pelo uso individual da língua (BENVENISTE,
[1974] 1970); a transformação dos indivíduos em sujeitos por meio da interpelação
ideológica (ALTHUSSER, 1970).
Este duplo aspecto é trabalhado por Pêcheux3, que define, no contexto
marxista e estruturalista da época, o sujeito do discurso como um 'não-sujeito' (o
termo é de Althusser) dotado da ilusória evidência de sua 'existência espontânea' e
da 'existência de sentido' (PÊCHEUX 1975, p.1374).

3 No contexto restrito deste artigo, examino apenas o trabalho de Pêcheux com base nas
proposições de Althusser, mas seria necessário, evidentemente, considerar sua leitura de Lacan e,
além disso, mencionar também a versão do sujeito proposta por Foucault.
4 Todas as citações a seguir remetem a PÊCHEUX, 1975; todas as itálicas são dele.

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Este não-sujeito que pensa que é um sujeito que vê, que fala, que pensa, etc.,
é fabricado pela interpelação ideológica, o que implica que:
- o sujeito é chamado à existência', com um 'efeito retroativo que faz com
que todo indivíduo seja "sempre-já sujeito"' (PÊCHEUX 1975, p. 138);
- há um descompasso entre 'o sujeito identificável, responsável,
responsável por seus atos' e este 'sempre-já sujeito' que lhe vem de fora e da
anterioridade, descompasso que 'funciona na contradição' (PÊCHEUX 1975, p. 140);
- o sujeito está imerso em uma rede de significantes, de tal forma que
resulta em uma causa de si mesmo, o que Pêcheux chama de 'efeito Münchhausen'
(PÊCHEUX 1975, p. 142);
- a formação do sujeito e a formação do sentido são interdependentes:
'Todos os indivíduos recebem como evidente o sentido do que ouvem e dizem, leem
e escrevem (do que desejam dizer e do que querem que lhes seja dito) como 'sujeitos-
falantes' (PÊCHEUX 1975, p. 142);
- 'o eu', ou seja, o imaginário dentro do sujeito (onde se estabelece a
relação imaginária com a realidade), não pode reconhecer sua subordinação, seu
sujeitamento ao Outro, ou ao Sujeito, uma vez que essa subordinação e sujeitamento
ocorrem precisamente dentro do sujeito na forma de autonomia' (PÊCHEUX 1975, p.
147).
Esse sujeito iludido por sua própria existência, Althusser chama de 'forma-
sujeito', um conceito que Pêcheux utiliza para examinar 'as propriedades discursivas'.
A Análise do Discurso do francês, em sua fundação, tem como objetivo identificar,
nos discursos dos sujeitos, as marcas linguísticas e formulações pelas quais o sujeito
de enunciação constrói sua representação imaginária e a do mundo em que vive.
Essa versão, apresentada de forma muito resumida aqui, obviamente evoluiu ao
longo dos últimos 50 anos, diversificou-se e foi contestada, mas ainda constitui uma
espécie de consenso estrutural sobre o qual a corrente principal da disciplina está
construída: daí derivam diretamente os conceitos de interdiscurso, formação
discursiva, memória discursiva, heterogeneidade discursiva e a metodologia da
análise do discurso, que busca revelar, a partir das enunciações, o que é dito sem ser
dito, na perspectiva logocêntrica mencionada anteriormente. De fato, é o discurso dos
sujeitos que constitui o objeto da disciplina e não os sujeitos falantes em si, um
discurso considerado como ultrapassando sua própria consciência do que dizem,

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produzindo efeitos deliberados ou involuntários sobre os destinatários e sendo ele
mesmo o produto de uma rede de determinações inconscientes.
No entanto, essa versão do sujeito opera em um cenário científico, social e
existencial francês, não questionado e tomado como óbvio no que diz respeito ao
eurocentrismo e ao imperialismo epistêmico mencionados anteriormente. O franco-
centrismo nunca é mencionado nas obras teóricas em Análise do Discurso, como se
os contextos científicos, políticos e intelectuais marxistas-freudianos e estruturalistas
possuíssem um valor universal, o que é um tanto irônico para uma teoria que enfatiza
as condições de produção, as exterioridades do discurso e A história está no centro
de seu dispositivo. No entanto, as décadas de 1960 e 1970 são marcadas pelas
independências e suas guerras, que colocam diretamente a questão do sujeito
africano e de sua autonomia; Aimé Césaire e Léopold Sédar Senghor frequentaram
a École Normale Supérieure nos anos 1950; a revista Présence Africaine foi fundada
em 1947; o primeiro Congresso Internacional de Escritores e Artistas Negros foi
organizado em 1956 na Sorbonne; Os Condenados da Terra foi publicado em 1961
pela editora de Althusser e intelectuais marxistas, François Maspero (FANON, 1961);
e muitas reflexões políticas originárias do 'mundo negro' foram publicadas nas
revistas Présence Africaine e Les Temps Modernes, bem como por diferentes
editores.
Dessas reflexões, nada transparece nos escritos relacionados à ADF. Esse
fenômeno, é claro, tem explicações políticas e históricas, em particular o papel do
Partido Comunista Francês na formação e orientação científica dos pesquisadores da
ADF, o que, no entanto, não justifica, em minha opinião, o que deve ser chamado de
cegueira para questões políticas e epistemológicas extra-europeias, em particular
africanas, que são plenamente constitutivas do contexto francês.

3.3.2 O sujeito rejeitado da filosofia africana

Se olharmos para a cena africana do conhecimento, da sociedade e da


existência, temos um tema completamente diferente em mãos, e parece difícil
postular abstratamente, especialmente nas décadas de 1960-70, esse sujeito
'chamado à existência', vítima da ilusão de sua 'autonomia' e 'causa de si' descrita
por Althusser e Pêcheux. Certamente, não existe uma figura unificada de sujeito entre
os filósofos africanos, mas várias propostas, algumas das quais descrevo aqui.
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É com Fanon que devemos começar, o título de 'Pele Negra, Máscaras
Brancas', publicado em 1952, constitui uma teoria de sujeito por si só. No capítulo 5,
'A Experiência do Negro', encontramos várias notas que contribuem para uma
definição de sujeito. Fanon, falando através de uma primeira pessoa genérica,
primeiro se descreve como objeto, e não sujeito: '"Negro sujo!" ou simplesmente: "Ei,
um negro!" Eu entrava no mundo, ansioso por dar sentido às coisas, minha alma cheia
do desejo de ser a origem do mundo, e aqui eu me descobria como objeto entre outros
objetos' (FANON, 1952, p. 108; eu destaco). No mesmo capítulo, encontramos uma
espécie de antecipação invertida da teoria althusseriana da interpelação: 'O mundo
branco, o único honesto, me negava qualquer participação. De um homem, exigia-se
uma Conduta de homem. De mim, uma conduta de homem negro - ou pelo menos
uma conduta de negro. Eu desafiava o mundo, e o mundo me amputava de meu
entusiasmo. Pediam-me que me confinasse, que me reduzisse" (FANON 1952, p.
123; eu destaco). Aqui, é o candidato ao estatuto de sujeito que interpela o mundo
em busca de reconhecimento, obtendo em troca uma forma de mutilação.
Comentários desse tipo também permeiam "Os Condenados da Terra", apresentando
os negros como não-sujeitos, sem acesso possível à ilusão de sua existência,
"espectadores esmagados de insignificância" (FANON 1961, p. 40) em um "mundo
encolhido, semeados de proibições" (p. 41). Portanto, estamos longe da plenitude e
da autonomia, por mais ilusórias que sejam, do sujeito da ADF.
Encontramos essa abordagem também em Eboussi Boulaga. Nas primeiras
linhas de um artigo de 1976 sobre identidade africana, ele também enfatiza que, para
o africano, o status de sujeito é uma suposição, e não uma evidência: "Se a
'identidade' do Negro-Africano é a de um sujeito e não a de um objeto, ela é a de um
ser que se determina a existir, tomando como pertencente a si próprio o que ele
encontrou, estabelecendo fins para se realizar" (EBOUSSI BOULAGA, 1976, p. 3).
Ele observa mais adiante que esse status existencial de objeto também o torna um
objeto de discurso.

A ausência de um sujeito vivo faz com que sempre se trate de um


discurso sobre o Negro-Africano, ou seja, na medida em que ele é objeto, e
não de um discurso do Negro-Africano, na medida em que ele se quer, se
projeta, se realiza, na medida em que ele é a atualidade de uma iniciativa
única na história no presente. Afirma-se dele que ele é menos humano:
apenas se fala de seus condicionamentos, sua factualidade e não do ato de
determiná-los, e não do que ele faz ao inscrevê-los em um destino, em uma
temporalidade e uma presença a si mesmo, no modo propriamente humano

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de existir, ou seja, de ser para si mesmo (EBOUSSI-BOULAGA 1976, p.5-6;
tradução do autor).

No famoso trabalho que é lançado no ano seguinte, "A Crise do Muntu",


Eboussi Boulaga estende essa reflexão sobre o tema africano, mostrando que o apelo
à filosofia leva o Muntu, ou seja, "o homem na condição africana que deve se afirmar
superando o que contesta sua humanidade e a coloca em perigo" (EBOUSSI
BOULAGA, 2006, p. 106), à impostura do sujeito ocidental: "A atividade filosófica
aparece primeiro como uma conduta entre outras do processo de identificação do
Muntu com o mestre, que vai desde a negação de si mesmo, da situação de objeto,
até a negação da negação de si mesmo, ou seja, à afirmação de 'si' como sujeito
abstrato, sem conteúdo" (EBOUSSI BOULAGA, 1977, p. 15). Ele argumenta mais
adiante que "a negação da negação de si mesma dá lugar à vazia afirmação de um
sujeito que busca seus atributos, os do homem em geral, através da alegação de
liberdade, da ideologia do desenvolvimento, do estado e da eficácia" (EBOUSSI
BOULAGA, 1977, p. 18). A pergunta, reformulada por Nadia Kisukidi, é a seguinte:
"Como pensar na autonomia de um sujeito diante de uma heteronomia herdada?"
(KISUKIDI, 2021, p. 6).
A partir do que ele chama de "derrota total", Eboussi Boulaga se questiona
como "ser a si mesmo seu próprio fundamento, mesmo diante da 'densidade da
história', ou melhor, com ela, e em um sentido em que, se é impossível escapar dela,
ela não 'determina' necessariamente os destinos sociais e humanos em sua
totalidade" (KISUKIDI, 2021, p. 8).
Sua resposta está no relacionamento entre o Muntu e o mundo: "Basta
aprofundar-se, considerar-se como um segmento do mundo, uma parte total. Há uma
reciprocidade entre o universo do Muntu e o mundo, um envolvimento mútuo. Um
mediatiza o outro" (EBOUSSI BOULAGA, 1977, p. 226). Essa imagem do "segmento
do mundo" está no cerne da filosofia de Eboussi Boulaga, que constitui um
"pensamento espacial". A concepção do ser, do indivíduo ou do sujeito africano não
parte da pessoa, nem do espírito (eurocêntrico egocéfalocêntrico), mas de seus
lugares: "A compreensão de um evento (uma proposição singular do cotidiano, uma
quebra no devir histórico, etc.) requer ser conduzida a partir de seu lugar, de seu
espaço próprio - esse é precisamente o significado do 'pensamento espacial',
inspirado pelos geógrafos, defendido por Eboussi Boulaga" (KISUKIDI, 2021, p. 10).

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Deve-se destacar a contemporaneidade do pensamento de Eboussi Boulaga e o de
Althusser e Pêcheux, que escrevem nas mesmas épocas, na mesma língua e nos
mesmos lugares, embora sem encontro ou diálogo: é nisso que consiste o que chamo
de falha na teoria ocidental, apoiada em seus pontos cegos, universalmente centrada
em uma concepção local e limitada do sujeito, ignorando um pensamento africano
que conhece profundamente essa Europa que colonizou seu corpo e sua mente.
Contemporâneo e compatriota de Eboussi Boulaga, Ela, a partir da sociologia
e do que ele chama de "teologia sob a árvore", também descreve, em "O Grito do
Homem Africano", o sujeito africano a partir de sua ausência na história. Ele situa seu
pensamento em um contexto posterior, o dos regimes pós-independência e da
"recolonização", ou seja, a manutenção do continente africano na dependência do
estrangeiro, especialmente das potências ocidentais, levando-o a falar de uma "África
de parias da independência" (ELA, 1993, p. 70). Assim como Eboussi Boulaga, ele
usa o termo "objeto": "Não é evidente que homens aos quais toda iniciativa é proibida
aceitem indefinidamente desempenhar o papel de objeto na história que se
desenrola" (ELA, 1993, p. 70); e, ao contrário de Fanon, ele acredita que a
descolonização não resultou na criação de "homens novos" e que a noite colonial
ainda cobre a África trinta anos após as independências.

Parece difícil para a África de hoje escapar de seu passado recente.


A noite colonial continua a lançar sua imensa sombra sobre este vasto
continente. [...] A descolonização não trouxe a nova humanidade sonhada
por Fanon; ela pouco alterou fundamentalmente o ser e as coisas na África
Negra. [...] E a violência não, que se saiba, elevou os indivíduos a um nível
de responsabilidade e consciência que os coloque em posição de contestar
seus líderes quando estes tentam desviá-los e mistificá-los com uma retórica
pseudorrevolucionária (ELA, 1993, p. 79).

Em uma obra posterior, "Repensando a teologia africana", ele destaca que a


memória africana é marcada pela "dor negra", na qual, através do homem africano,
toda a humanidade, em última análise, foi ultrajada ao longo dos séculos (ELA 2003,
p. 191). Essa memória evoca um novo sujeito: "Em um plano filosófico, a experiência
da 'dor negra', ou seja, o conjunto de fenômenos de recusa do humano produzidos
pela interligação raça/escravidão/colonização/neocolonização, inaugura uma cena
moral e política atenta a uma nova figura do sujeito" (KISUKIDI, 2019, p. 365). De que
forma Ela concebe então essa figura? Se Fanon considerava que era a
descolonização que poderia levar o ser africano da inexistência à existência, e se
Eboussi Boulaga desenvolvia sua teoria do sujeito a partir dos lugares, Ela, por sua

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vez, busca no cristianismo (um cristianismo descolonizado) para propor o que Kisukidi
chama de "auto-criação" do sujeito africano, que pressupõe uma "revolução" na
cultura tradicional: "Portanto, é necessário morrer para si mesmo para se encontrar;
a afirmação de si mesmo passa pela negação de si mesmo; exige um esforço
contínuo de superação, que é o próprio movimento da liberdade" (ELA, 1993, p. 154).
3.3.3 Ilusão da existência e dinâmica da negatividade

Fanon na década de 1950, Eboussi Boulaga a partir dos anos 1970, Ela na
década de 1980 e 1990: todos eles rejeitam a figura do sujeito africano construída
pelo Ocidente como inexistente. Esse paradigma é encontrado em muitos autores até
os dias de hoje, seguindo a metáfora de Fanon da noite, como em Mbembe, em 'Sair
da grande noite': 'Nunca tendo realmente nascido, escreve ele sobre a África, nunca
tendo saído da opacidade do nada, ela só pode entrar na consciência universal à
força - e mesmo assim. Em outras palavras, ela é uma realidade sem real.' (MBEMBE,
2010, p. 75).
A recusa do sujeito africano também é, in absentia, realizada pela ADF, que
funda uma teoria generalizável e generalizada sobre a concepção de um sujeito como
sujeito, mesmo que essa posição seja imaginária, e que ignora de fato o sujeito
negado como sujeito produzido pela própria ciência à qual ela se refere. Em nenhum
lugar no corpus teórico da ADF, que se refere Construído, no entanto, como um
dispositivo para revelar ideologias, não há menção da recusa do sujeito realizada a
partir da Europa colonizadora na ADF. Portanto, a ADF parece ser uma teoria local e
incompleta, que age como se pudesse dar conta dos discursos de sujeitos que nunca
foram realmente considerados. Se aceitarmos, de fato, o princípio fundamental da
ADF, assim como de qualquer Análise do Discurso, que existe uma historicidade dos
sujeitos, que se tornam sujeitos falantes através da mediação da linguagem,
inscrevendo sua existência em discursos, de quem estamos falando exatamente
quando nos referimos ao sujeito na ADF?
O modo de existência do sujeito recusado é, de fato, muito diferente daquele
do sujeito europeu que inscreve em discursos uma relação consigo mesmo e uma
representação de si. Para todos os autores mencionados aqui, o sujeito africano
existe a partir de um processo dinâmico, libertador e criativo de negação da negação
colonial; no entanto, a ADF, como teoria hegemônica, participa plenamente dessa
negação colonial, continuando no regime pós-colonial e de colonialidade. Em outras
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palavras, o sujeito africano realiza uma negação do sujeito da ADF, uma vez que este
último nega a realidade do primeiro.

Conclusão

Os filósofos africanos mencionados aqui permitem destacar as falhas na


concepção ocidental do sujeito, apresentando um sujeito falado em vez de falante,
um sujeito que elabora sua agência a partir de suas localizações (suas pertenças?),
um sujeito que se auto-cria a partir da 'grande noite' e da 'dor negra'. Esses traços do
sujeito africano constituem ângulos mortos para a ADF (Abordagem Dominante no
Ocidente), lacunas criadas por seu status hegemônico: eles encarnam, no sentido
literal da palavra, concepções inexistentes, pois são tornadas impossíveis pelas
epistemologias ocidentais dominantes. Em 'O Grito do Homem Africano', Ela destaca
a importância da religião na libertação dos negros e faz esta observação: 'Como
afirmar, em pleno século XIX, que a religião é o 'ópio do povo', quando na África, na
época dos impérios, o religioso é o local da luta pela libertação dos oprimidos?' (ELA
1993, p. 61; ital. do autor). Isso é exatamente um exemplo de uma concepção
inexistente, tornada impossível pela dominação colonial, assim como a do sujeito que
acabei de detalhar. E é também um exemplo plenamente ilustrativo da noção de
pertencimento que fundamenta este número: trata-se realmente de 'diferentes
sistemas ontológicos sobre uma 'mesma realidade'', conforme a fórmula do
argumento, um sobrepondo a existência do outro até anulá-la."
Espero que esta tradução seja útil. Se precisar de mais alguma ajuda ou correções,
fique à vontade para perguntar.
Para concluir este artigo, gostaria de estabelecer uma ligação entre o meu
trabalho em análise do discurso e a "sociologia das ausências" de Santos, definida
da seguinte forma:

Pela "sociologia das ausências", entendo uma pesquisa que busca


demonstrar que o que não existe é, na verdade, ativamente produzido como
não existente, ou seja, como uma alternativa não credível ao que se supõe
existir. O objeto empírico dessa pesquisa é impossível do ponto de vista das
ciências sociais convencionais. Portanto, o objetivo dessa sociologia é tornar
possíveis os objetos impossíveis, tornar presentes os objetos ausentes

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(SANTOS, 2011, § 43).

Minha perspectiva encontra plenamente esta proposição, e é sem dúvida uma


forma de 'teoria das ausências' que este artigo testemunha, através da questão do
sujeito, que é, aliás, uma das noções defeituosas da ADF (Análise do Discurso
Foucaltiana) nesta perspectiva descentrada. Esta pesquisa continuará
posteriormente com o exame da própria noção de discurso, que envolve a questão
muito discutida e controversa da oralidade na África, bem como as noções de ethos,
contexto e memória. Parece-me que nos contextos epistemológicos atuais, marcados
pela descolonização do conhecimento, isso é um imperativo. Se a análise do discurso,
cujo principal objetivo é explicar como o sentido é construído nas enunciações dos
sujeitos, não se debruçar sobre os sentidos que ela própria produz como teoria, quem
o fará por ela?

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Artigo submetido em: 17 mar. 2023


Aceito para publicação em: 26 jun. 2023
DOI: https://dx.doi.org/10.22456/2238-8915.130922

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