Você está na página 1de 8

3

Autor: Saide Cassimo E-mail:saidecassimo@gmail.com Contacto: 849456407

Construções Sintácticas do Verbo Haver no Português Falado em Moçambique

Autor: Saide Cassimo

Resumo: Este artigo de pesquisa tem como tema Construções Sintácticas do Verbo Haver e o Seu uso
no Português de Moçambique, e tem como objectivo geral explicar os factores que fazem com que os
falantes da língua portuguesa, usem o verbo haver duma forma desviante da norma padrão, ou seja, os
diferentes mecanismos que fazem com que os falantes do Português de Moçambique, nas suas
construções frásicas, flexionem ou usem de forma desviante o verbo haver em contextos em que ele
não é necessariamente permitido pela gramática tradicional. Nesse sentido, pretende-se analisar a
ocorrência do verbo haver em diferentes contextos frásicos, e sempre contrastando com a norma
padrão. O Português é a língua oficial do país desde a independência, em 1975, o que faz com que seja
a língua voltada para fins bem específicos, principalmente as relações de trabalho. A maioria dos
moçambicanos têm-na como L2, e para os que a tem como L1, adquiriram-na num meio, onde os seus
pais tiveram-na como L2. Para a Realização deste artigo de pesquisa, usou-se a pesquisa bibliográfica,
visto que o trabalho foi feito na base de material já elaborado. Portanto, é um conjunto de materiais
escritos que contém informações elaboradas e publicadas de autores. A pesquisa bibliográfica foi
utilizada para complementar e embaçar o trabalho em abordagem, através de autores e fundamentar o
trabalho.
Palavras-chave: Verbo Haver; Verbo haver no sentido de Existir; Português de Moçambique.

Introdução
A Língua é o veículo de comunicação, de informação e de expressão entre os
indivíduos, usado em situações naturais de interacção social e é comum a um grupo de
indivíduos pertencentes a uma mesma comunidade.
O artigo de pesquisa em alusão é intitulado Construções Sintácticas do Verbo Haver e
o Seu uso no Português de Moçambique. Importa referir que nesse estudo, aborda-se as
diferentes formas de colocação frásica do verbo Haver no sentido de posse e existencial,
tendo como base, o Português falado e escrito de Moçambique, em comparação com o
Português Europeu, tido como padrão.
Quanto ao Português de Moçambique (PM), só começou a ganhar um formato mais
consistente depois da independência do país, em 1975, pelo que a investigação sobre esta
variedade africana tem igualmente uma história recente. O governo reconhece oficialmente a
existência de mais de vinte línguas nacionais. Escolhida como língua oficial do país após a
independência em 1975, a Língua Portuguesa seguiu rumos de difusão muito diferentes
durante o período de colonização de Moçambique se comparados a outras colónias. Até hoje
há poucas pessoas com alto nível de escolaridade, e há um forte ambiente de multilinguismo
que faz com que o uso da língua portuguesa seja um tanto irregular e voltada para fins bem
específicos, principalmente as relações de trabalho.
4
Autor: Saide Cassimo E-mail:saidecassimo@gmail.com Contacto: 849456407

O objectivo geral deste artigo consiste em explicar os factores que fazem com que os
falantes da língua portuguesa, usem o verbo haver duma forma desviante da norma padrão, e,
a par do objectivo geral, apresentam ˗ se os seguintes objectivos específicos:

 Descrever os diferentes contextos de uso do verbo Haver pelos falantes do Português


de Moçambique;
 Comparar o Português de Moçambique com a norma padrão no que tange ao uso do
verbo haver;
 Descrever as frases tidas como gramaticais, produzidas pelos falantes do Português de
Moçambique.

Importa salientar que é muito comum empregar-se o verbo haver no contexto frásico,
duma forma incorrecta. No Português Falado em Moçambique, o seu uso se confunde devido
à diversidade de aspectos que ele assume.

1. Breves considerações sobre o verbo haver

A língua é um objecto social, heterogéneo e variável. Ao adoptar essa concepção de


língua, os estudos sociolinguísticos partem dos pressupostos de que há diferenças linguísticas
entre as normas estabelecidas pela gramática normativa e os reais usos da língua, e de que a
variação linguística não é aleatória, mas sim condicionada por restrições linguísticas e sociais.
Inicialmente, importa referir que, quanto a tipologia, o verbo haver é irregular e impessoal e
no que se refere a sua transitividade, é transitivo directo1, e transitivo directo e indirecto2. Na
língua portuguesa, o uso do verbo haver na escrita é muito mais frequente, pois nota-se que o
verbo não sofreu mudança na forma padrão da língua, mas foi substituído na fala pelo verbo
ter com função de posse.
Ademais, é preciso mencionar que o verbo haver é derivado do verbo latino clássico
habere. O verbo habere comportava-se, entre outros, os seguintes significados: ter, possuir,
guardar, existir e dever. Ademais, o verbo haver é usado para indicar a posse de coisas
materiais e também para relacionar o sujeito a seu complemento, o que deve ser considerado
uma posse espiritual” (SAMPAIO, 1978: 1).
Nos dias actuais, os falantes do português preferem a utilização do verbo ter como valor
de posse, não existindo mais o verbo haver com esse valor. A norma padrão imposta pela

1
Selecciona um complemento directo.
2
Quando selecciona um objecto directo e indirecto, ou um complemento oblíquo.
5
Autor: Saide Cassimo E-mail:saidecassimo@gmail.com Contacto: 849456407

Gramática Tradicional (GT) normatiza que o verbo “haver” pode ser utilizado no sentido de
existir, sendo, neste caso, um verbo impessoal.
Quanto a questão da posse do verbo haver, observa-se que o verbo ter foi ganhando,
cada vez mais, espaço na história da língua portuguesa, de maneira que excluiu totalmente o
uso de haver com valor de posse e ainda passou a disputar com este verbo o sentido
existencial, como se pode ver no exemplo a seguir:
Exemplo:
a) Não há/tem cadeiras na sala.

Portanto, cabe analisar, contrastivamente, como se processa, actualmente, no português


falado de Moçambique. JON-AND (2011), afirma que os estudos centrados no uso variável
do verbo haver no sentido de existência demonstram que, no PM, construções existenciais são
normalmente formadas com o verbo ter, estando o processo de substituição de haver por ter
em estágio avançado, principalmente em contextos menos formais de produção e na
modalidade oral da língua.
Exemplo: Não tem saldo no telemóvel para ligar para minha filha.

Hoje tem festa de rua na cidade de Montepuez.

Portanto, conclui-se que as construções no passado favorecem a ocorrência de haver,


enquanto as do presente favorecem o uso do verbo ter.

2. Uso do verbo Haver no sentido existencial no Português de Moçambique

Em Moçambique, a norma tomada oficialmente como referência é o Português Europeu


padrão (PE). O país abriga uma grande diversidade linguística, sendo o português a língua
oficial do país, convivendo com diversas línguas africanas do grupo banto. Ademais, a Língua
Portuguesa, tem se tornado nas últimas décadas cada vez mais uma língua de prestígio,
principalmente nas zonas urbanas, onde se usa em ambientes de trabalho (nas relações com
chefes, clientes e colegas) ou no ambiente educacional, com professores e colegas.
Apesar do país ter sido uma colónia de Portugal durante vários séculos, o processo de
formação da variedade moçambicana do Português só teve verdadeiramente lugar depois da
independência, em 1975. A partir desta data, teve início um importante processo de difusão e
valorização do Português, que se deve, em grande medida, ao envolvimento desta língua
“num novo quadro ideológico, que o promoveu e adoptou como um importante símbolo de
unidade nacional” e também à forte expansão da rede escolar, (FIRMINO 2002: 231)
6
Autor: Saide Cassimo E-mail:saidecassimo@gmail.com Contacto: 849456407

Quanto ao uso do verbo haver no PM, dos diferentes autores consultados e citados neste
artigo, como é o caso de FIRMINO (2002) e GONÇALVES (2013: 157-168.), constatou-se
que ele é simplesmente usado sem se obedecer a norma padrão, ou o que a gramática
preconiza.

De uma forma geral, pode-se dizer que há fortes tendências em se flexionar o verbo
haver no plural em casos em que a norma europeia ou a gramática normativa3 requer o seu
uso no singular. Este fenómeno ocorre em frases com o verbo haver possuindo o sentido de
existência, como se pode ver na tabela a seguir:

Tabela 1: Referente a frases desviantes e gramaticais quanto ao uso do verbo Haver


Frases desviantes Frases gramaticais
Estou certo de que haverão leis que vão Estou certo de que haverá leis que vão
defender as crianças moçambicanas. defender as crianças moçambicanas.
Houveram vários pedidos de paz no mundo. Houve vários pedidos de paz no mundo.
Antigamente, Haviam muitos assaltos no Antigamente, havia muitos assaltos no bairro
bairro de Ncoripo. de Ncoripo.
Houveram acidentes na estrada. Houve acidentes na estrada.
Haviam escutado a campainha. Haviam escutado a campainha.
Devem haver pessoas em casa Deve haver pessoas em casa.
Devem haverem muitos conflitos na equipe Deve haver muitos conflitos na equipe

Portanto, os falantes do PM revelam mais dificuldades em usar o verbo haver quando a


posição de sujeito está vazia, quer porque este está posposto ao verbo, quer por não estar
realizado lexicalmente em frases complexas. No entanto, é a área que apresenta maiores
desafios para os falantes do PM, mesmo para aqueles que tem um grau de instrução superior.
Outro aspecto que também, vale a pena comentar é quando o verbo haver desempenha o papel
de verbo principal, como nas duas últimas frases apresentadas na tabela. O que acontece é que
os falantes do PM, simplesmente flexionam o verbo auxiliar e o principal, contrariando o que
a norma preconiza. A gramática tradicional preconiza que quando o verbo haver estiver

3
A gramática normativa apresenta e dita normas de bem falar e escrever, normas escritas do idioma, prescreve o
que se deve e o que não se deve usar na língua. Essa gramática considera apenas uma variedade da língua como
válida, como sendo a língua verdadeira.
7
Autor: Saide Cassimo E-mail:saidecassimo@gmail.com Contacto: 849456407

acompanhado por outros verbos e desempenhar o papel de verbo principal, ambos os verbos
devem aparecer somente na 3.ª pessoa do singular, ou seja, sem qualquer variação. Isso
porque “haver”, com sentido de “existir” ou “ocorrer”, é um verbo impessoal e não deve ser
usado no plural.

3. Verbo haver no sentido de existir ou existencial no PE

Nas estruturas existenciais o verbo haver é seguido de objecto directo, e é impessoal.


Assim sendo, ao se analisar o comportamento variável do verbo haver com sentido de existir,
percebe-se que, de um modo geral, na acepção de existir, constitui o padrão de referência de
uso “correcto” da língua, ou seja, o que a gramática preconiza.
Como afirma TRAVAGLIA (2003: 30) o verbo haver em orações equivalentes às
formadas com existir seguidas de objecto directo e que denotam a existência de uma pessoa
ou coisa, comporta-se como um verbo impessoal sendo empregado sempre na 3ª pessoa do
singular, como se pode observar nas seguintes frases:
Exemplo3:
a) Há um estudante na biblioteca.
b) Havia uma multidão que desfilava nas ruas da cidade de Pemba.
a) Não sei se ainda há, mas havia muitas vagas.
b) O professor disse que haverá aulas durante o mês das férias.
Associando-me nas ideias do autor supracitado, percebe-se que trata-se de um caso em
que haver possui o sentido existencial4, pois tem o valor de «existir», razão pela qual é
«invariavelmente usado na 3.ª pessoa do singular. Ademais, esse verbo, quando utilizado com
valor existencial (substituível por “existir”, “acontecer”, “ocorrer”), é impessoal. A
impessoalidade implica o seguinte: o verbo não apresentará sujeito5 e ficará, sempre, na 3ª
pessoa do singular. O verbo haver será também impessoal nas locuções formadas por ir,
dever, poder + haver. Dessa forma, o verbo permanecerá conjugado na 3ª pessoa do singular.

Exemplo6: Deve haver leis mais rígidas.

Portanto, tendo em conta ao que acima foi exposto, percebe-se que sempre que este
verbo é usado com o valor de «existir», nunca tem sujeito, mas sim, complemento directo. No

4
(ou impessoal, na terminologia tradicional). Por outras palavras, o verbo “haver” nos sentido existencial é um
verbo impessoal, ou seja, não possui sujeito, e é empregado na terceira pessoa do singular, independente do
tempo verbal.
5
(formará oração sem sujeito)
8
Autor: Saide Cassimo E-mail:saidecassimo@gmail.com Contacto: 849456407

que diz respeito ao comportamento variável do verbo haver com sentido de existir, percebe-se
que, de forma geral e na visão de alguns gramáticos como CUNHA & CINTRA (2001: 443),
flexionar o verbo haver é uma incorrecção na língua culta, visto que o verbo haver, na
acepção de existir, o padrão de referência de uso “correcto” da língua é impessoal. O verbo
haver em orações equivalentes às constituídas com existir, ou seja, seguido de objecto directo
e significando a existência de uma pessoa ou coisa comporta-se como um verbo impessoal e,
por isso, deve sempre ser empregado na 3ª pessoa do singular, a exemplo do que foi
apresentado.

4. Verbo haver como Auxiliar no Português Europeu

A evolução dos verbos auxiliares no Português Europeu é uma problemática muito


complexa porque tem vários aspectos interligados.
Como afirma RAPOSO (2013: 62), o Português Contemporâneo dispõe de dois verbos
auxiliares usados na formação dos tempos compostos, respectivamente ter e haver. No
entanto, o verbo auxiliar haver tem certas limitações de uso, reduzindo-se o seu emprego ao
pretérito mais-que-perfeito composto e quase exclusivamente ao registo escrito, como por
exemplo:
a) O Pedro tinha/havia escrito uma carta a Maria.
b) A Maria havia saído com os pais.
No Português Antigo, o inventário de verbos auxiliares era maior. Alem dos verbos ter
e haver, empregava-se como auxiliar também o verbo ser. Os dois primeiros auxiliares (ter e
haver) usavam-se para formar tempos compostos dos verbos transitivos, enquanto que o
verbo ser era empregue com os verbos intransitivos (morrer, nascer, passar) ou de
movimento (partir, chegar, vir).
Portanto, no Português Antigo, o auxiliar haver era muito mais frequente do que o
verbo ter. Só a partir do século XV, o verbo ter começa a aparecer como auxiliar com cada
vez maior frequência e vai substituindo o auxiliar original haver. Ter e haver são pois dois
verbos que desde o latim clássico caminham paralelamente. Devido à crescente perda de força
expressiva de haver, a língua recorreu ao verbo ter, que o foi substituindo gradualmente, até
usurpar-lhe todas as funções. A grande afinidade que havia entre os dois verbos e o
progressivo esvaziamento semântico de haver, criou, portanto, condições para a substituição
de haver por ter.
9
Autor: Saide Cassimo E-mail:saidecassimo@gmail.com Contacto: 849456407

Considerações finais

Este artigo de pesquisa teve como tema Construções Sintácticas do Verbo Haver no
sentido de Existir, e o Seu uso no Português Falado em Moçambique, e o teve o seguinte
objectivo explicar os factores que fazem com que os falantes da língua portuguesa usem o
verbo haver duma forma desviante da norma padrão.

A partir do que foi exposto, é possível perceber que os falantes do PM usam


inadequadamente o verbo haver, principalmente quando esse, tem o sentido de existir. No
entanto, há fortes tendências em se flexionar o verbo haver no plural em casos em que a
norma europeia ou a gramática normativa requer o seu uso no singular. Apesar de não ser uma
forma aceita pela tradição gramatical, o uso de haver em construções existenciais é um
fenómeno que aos poucos está se instalando no seio académico e poucas vezes é
estigmatizado pela sociedade, pois é utilizado por falantes de diferentes níveis de
escolarização sem causar preconceito linguístico e social.

Portanto, a partir dessa pesquisa, é possível tirar a conclusão de que o uso variável do
verbo haver no sentido de existência demonstra que, no PM, construções existenciais são
normalmente formadas com o verbo ter, estando o processo de substituição de haver por ter
em estágio avançado, principalmente em contextos menos formais de produção e na
modalidade oral da língua. Nesse sentido, postula que o processo de ensino/aprendizagem
deve levar em consideração todas as variedades sociolinguísticas e não apenas aquele padrão
culto exclusivo da classe social de maior prestígio, sendo, portanto, tarefa da escola combater
o preconceito linguístico e valorizar a diversidade linguística.
10
Autor: Saide Cassimo E-mail:saidecassimo@gmail.com Contacto: 849456407

Referencias Bibliográficas

CALLOU, Dinah Maria Isensee & AVELAR, Juanito. Sobre ter e haver em construções
Existenciais: variação e mudança no português do Brasil. 2000

CUNHA & CINTRA. Nova Gramática do Português Contemporâneo. Lisboa. Sá da


Costa. 2002

FIRMINO, Gregório. A “questão linguística” na África pós-colonial: o caso do Português


e das línguas autóctones em Moçambique. Maputo. Promédia. 2002.

GONÇALVES, Perpétua. O português em África. em M. F. Bacelar, A. Mendes, M. A.


Mota, L. Segura e M. do C. Viana (orgs.), Gramática do Português. Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian: 2013.
JON-AND, Anna. Variação, contacto e mudança linguística em Moçambique e Cabo
Verde: A concordância variável de número em sintagmas nominais do português.
2011. Tese de doutoramento, Universidade de Estocolmo. Estocolmo. Inédita.
Disponível em http://su.diva-portal.org/smash/record.jsf?pid=diva2:464222
Raposo, E. P. et alii. Gramática do Português – Volume I. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian. 2013.

SAMPAIO, M. L. P. Estudo diacrónico dos verbos ter e haver, duas formas em


concorrência. CopyMarket.com. 1978

TRAVAGLIA, L. Gramática e interacção: uma proposta para o ensino de gramática. São


Paulo: Cortez, 2003.

Você também pode gostar