Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Tradução
Estevão de Rezende Martins
EDITORA
Equipe editorial : Airton Lugarinho ( Supervisão editorial ): Fá tima Rejane
de Meneses ( Acompanhamento editorial ): Sonja Cavalcanti ( Preparação
de originais): Mauro Caixeta de Deus e Sonja Cavalcanti ( Revis ã o ):
Fá tima Rejane de Meneses, Sonja Cavalcanti e Yana Palankof (índice):
Eugê nio Felix Braga (Editora ção eletró nica ): Leonardo Branco ( Capa ).
Impresso no Brasil
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publica ção poder á scr
armazenada ou reproduzida por qualquer meio sem a autorização por
escrito da Editora.
R íisen , J õ rn
R 951 Razão histó rica : teoria da histó ria : fundamentos da
ci ê ncia hist ó rica / J õ rn R íisen ; tradu çã o de Estev ã o
de Rezende Martins. - Brasília : Editora Universidade de
Bras í lia , 2001.
194 p.
CDU 930.1
Cap ítulo 3
s
que as fundamenta ções de suas pretensões de validade se tornam
parte integrante da própria hist ória . As hist órias sã o especifica -
mente cient íficas, por conseguinte, quando a fundamentaçã o siste-
má tica de sua pretensão de validade é parte essencial delas mesmas,
ou seja, quando elas são narradas de forma contirmamente funda-
J\
mentada.
Narrar fundamentadamente , como forma especif ícamente cient í-
fica do pensamento hist ó rico, significa pois, proceder metodica -
,
^^
^
documenta çã o precisa . Nada do que pertence ao âmbito dessa ex -
periê ncia pode ser fundamentado fora das situa ções existenciais em
que as hist ó rias são narradas: à experiê ncia pertence tudo o que o
narrador e seus destinat á rios entendem como fazendo parte dos
dados reais de sua vida pr á tica concreta.
Como ciê ncia, a hist ó ria baseia-se no fato de que a opera çã o
basilar do testemunho pela experiê ncia é metodizada. Uma vez
metodizada de maneira especificamente cient ífica , essa opera ção
basilar assume a forma da pesquisa hist órica. O pensamento histó-
rico faz-se cient ífico ao se submeter, por princípio, à regra de tor -
nar o conte ú do empírico das histórias controlá vel, ampliá vel e
garantirei pela experiê ncia.
O que ocorre com a rela ção das histórias com a experi ência
quando ela se transforma em pesquisa ? Em primeiro lugar, essa
relação torna-se visível: os fatos histó ricos são distinguidos dos
significados que lhes sã o atribu ídos no contexto interpretativo de
uma hist ória. Sua facticidade pura torna-se objeto de uma operação
intelectual própria. Com isso, o que se chama de “ experi ê ncia ”,
como instâ ncia autenticadora da validade de sentenças empíricas, é
precisado e restringido: experi ê ncia é , por princípio, apenas o que
_
pode e deve ser reconhecido, por qualquer um , como um dado em -
pírico.
A metodização da relaçã o das hist ó rias com a experi ê ncia sob
a forma da pesquisa é , portanto, inicialmente restritiva: os histo-
riadores abstraem da atribuiçã o de significado e da constituiçã o de
sentido elementos essenciais do pensamento hist ó rico e isolam o
conte ú do empírico das hist ó rias. Dessa maneira eles limitam o â m -
bito das sentenças capazes de validação sobre o que efetivamente
foi o caso, no passado. Admitir-se -iam como experi ê ncias apenas
as constatações que pudessem ser controladas, intersubjetivamente,
quanto à sua credibilidade como testemunhos do passado. Teste -
Razã o histó rica 103
como o senso comum espera que aconteça , quando é a ciê ncia que
fala. A verdade das histórias cujo conte ú do empírico se baseia em
experi ê ncia torna -se uma grandeza evolutiva , quando a rela ção
com a experi ência se faz de modo metódico e sistem á tico: ela é
absorvida pelo processo de crescimento constante de saber hist órico.
Pode-se denominar a passagem à versão cient ífica da narrativa
hist ó rica, no que diz respeito a seu conte ú do empírico, de passa-
gem de uma certeza insegura para uma certa insegurança. Insegu -
ramente certas são todas as histórias cuja pertin ê ncia empírica
pretende que n ã o existe razã o alguma para ter d ú vidas. Esse é o
caso da maior parte das hist ó rias narradas na vida quotidiana . Essa
certeza - que é també m autoritá ria - é superada (e reconhecida,
subseqiientemente, como insegura ) quando chega o momento de se
elencar as razões que devem demonstrar ter ocorrido assim, e n ã o
de outra forma , o que se enuncia como tendo sido o caso no passa -
do. Por princípio, sempre que as razões sã o enumeradas, a perti -
nê ncia empírica das hist ó rias adquire o estatuto de uma certa
insegurança, pois a pesquisa , como processo de fundamenta çã o,
revela-se como procedimento constante de correçã o de erros e ob-
ten çã o de novas informações sobre o passado, de forma tal que não
se pode afirmar, definitivamente, que esse ou aquele episódio ocor -
reu assim e não de outro modo.
O pensamento hist ó rico somente se insere no movimento do
progresso do conhecimento quando destaca expressamente o con -
te ú do empírico das histórias e distingue-o das normas que lhe atri-
buem sentido e com as quais, a partir dos fatos, se constroem
( mediante narrativa) as histórias. Essa distin ção tem certamente
algo de artificial , j á que os fatos, no processo da narrativa, nunca
sã o puros em si, mas articulados em um contexto temporal que é
mais que meramente factual: nas histó rias, os fatos sempre est ão
inseridos nas determina ções de sentido da vida prá tica atual . So-
mente quando os fatos são artificialmente isolados das normas que
lhes atribuem significado para a determinaçã o de sentido da vida
prá tica atual é que as opera ções met ódicas específicas da pesquisa
hist órica põem -se e mant ê m-se em ação. As histó rias baseadas
nessas opera ções adquirem uma característica especial: elas sã o
verdadeiras (no sentido de pertinentes empiricamente) també m para
aqueles que n ã o aceitam sua pretensã o de sentido e significado.
Razã o hist ó rica 105
J
Esse tipo de isolamento est á presente na famosa tese de Max Weber, segundo a
qual a histó ria seria, tomada por si só, sem as relações valorativas do historiador ,
um “caos”, uma “ infinitude sem sentido do fluxo do mundo” (ver anteriormente
p. 68 e nota 13 do cap í tulo II.)
108
J õ rn Rusen
hist ó rico.
Isolados um do outro os conte ú dos emp í rico e normativo das
hist ó rias, fica claro que nenhuma consequ ê ncia narrativa decorre
do puro conte údo empírico de uma hist ória. A demonstração, pela
pesquisa , do que foi o caso no passado n ã o enseja conclusão algu -
ma sobre os elementos normativos do agir atual com respeito ao
futuro. (J á Max Weber havia tratado dessa quest ão com toda a cia - \ - '
reza necessá ria).4 Fica claro també m que “ neutralidade de valores”
n ã o quer dizer que as normas e os valores n ã o desempenhem papel
de import ância no conhecimento hist ó rico e que o historiador n ã o k
tenha de ocupar -se deles . Pelo contrá rio! Os fatos do passado obti - ^
dos pela pesquisa empí rica somente se articulam para formar o '
4
Weber, Die “Objektività t” sozialwissenschaftlicher und sozialpolitisclier
Erkenntnis, Gesammelte Aufsãtze zur Wissenschaftslehre (4 ), p. 149 ss.
116
J õ rn Rusen
5
A esse respeito, leiam -se as argumentações nestes dois volumes: Kocka/Nipperdey
(eds.), Theorie wui Erzahlimg in der Geschichte (3); S. Quandt/H. Sussmuth (eds.),
Hisí orisches Erzàhlen. Formen und Funktioneiu 1982.
120
J õ rn Rusen
6
Ainda sobre essa questão, ver Rusen , Wie kann man Geschichte verniinftig
schreiben ? Ú ber das Verh áltnis von Narrativit ã t und Theoriegebrauch in der
Geschichtswissensschaft, in: Kocka/Nipperdey (eds.), Theorie undErzàhlung (3 ).
Razã o histó rica 121
7
Ver també m H. Lubbe, Wieso es keine Theorie der Geschichte gibt, in : Kocka/
Nipperdey (eds.), Theorie wut Erzàhltmg (3), p. 65-84.
8
Ver anteriormente [ p. 16-17, Intr.] e J. Kocka. Theorieorientierung and Theori -
eskepsis in der Geschichtswissenschaft (5).
122
Jorn Rusen
9
Cf . J . Ritter , Die Lehre vom Ursprung und Sinn der Theorie bei Aristoteles,
Metaphysik und Polií ik. Studien zu Arisíoteles und Hegel , Frankfurt , 1969, p. 9-
33.
10
Cf. sobretudo Kocka , Theorien in der Sozial- und Gesellschaftsgeschichte (vide
nota 2 da Introdu ção).
Raz ã o histó rica 123
11
Droysen , Historik, in : R. Hubner (ed .) (4 ), p. 32.
124
Jõ rn Rusen
13
Cf ., a esse respeito, J . Riisen , Die Kraft der Erinnerung im Wandel der Kultur.
zur Innovations- und Erneuerungsfunktion der Geschichtsschreibung, in : B.
Cerquiglini/H.- U. Gumbrecht (eds.), Der Diskurs der Literatur- und Sprachhisíorie.
Wissenschqftsgeschichte a/ s Vorgabe einer Neuorientierung , Frankfurt, 1983.
126 J õrn Rusen
14
Essa posi ção foi vigorosamente defendida por Max Weber em seu famoso en -
saio sobre a objetividade ( vide nota 5 da Introdu çã o).
Razã o histó rica 131
b
Assim , por exemplo, D . Junker, Uber die Legitimit ã t von Werturteilen in den
Soziahvissenschaften und der Geschichtswissenschaft, Historische Zeitschrift
211 (1970), p. 1-33; D. Junker / P. Reisinger , Was kann Objektivií cií in der
Geschichtswissenschaft heissen, und wie ist sie mõ glichl (7) .
16
Assim , por exemplo, W. Mommsen , Der perspektivistische Cbarakter historis-
cher Aussagen und das Problem von Parteilichkeit und Objektivit ã t historischer
Erkenntnis, in: Koselleck/Mommsen /Riisen (eds.), Objektivitàt und Parteilichkeit
(3) , p. 441- 468.
132 J õ rn Rusen
17
Cf. indicações nesse sentido em Faber, Theorie der Geschichtswissenschaft (4),
p. 205 ss.
Razã o histó rica 133
respeito à qual esse sentido se constr ói. Antes pelo contr á rio: uma
determinação pré ou a-histórica, pela espécie, dissolve essa identi-
dade na uniformidade indiferenciada da grandeza abstrata de uma
“ natureza” humana .
Em resumo, pode-se constatar que a neutralização da subjeti-
vidade do pensamento histó rico, ocasionadora de partidarismo, que
se busca em benef ício de uma objetividade especificamente cient í-
fica, tem um efeito bumerangue: sempre que a subjetividade no
pensamento hist ó rico deva ser neutralizada metodicamente, torna-se
evidente que ela é indispens á vel.
Do malogro das tentativas de alcançar objetividade no conhe-
cimento hist órico mediante exclusão da subjetividade responsável
pelo partidarismo pode-se tirar a conclusão que essa objetividade é
uma quimera , um “belo sonho”. ls Se o conhecimento hist ó rico n ão
pode constituir-se sem normas e id éias, e se essas normas e id éias
engendram , simultaneamente, partidarismo, ent ã o elas n ão podem
ser ignoradas. O historiador n ão deve ter mais consci ê ncia pesada
por causa delas - essa é a consequência -, mas assumi-las e ser
conscientemente partid á rio. O imperativo de um pluralismo irres-
trito est á vinculado a essa consequ ê ncia - em vez de organizar o
conhecimento histó rico na forma de um saber v á lido universal e
uniformemente para todos, que o podem utilizar de igual maneira
( embora para finalidades diferentes, em cada caso), tratar -se-ia
ent ã o apenas de elaborar o maior n ú mero poss ível de versões do
mesmo conjunto de fatos do passado humano, a fim de que o maior
n ú mero possível de posições, carê ncias e interesses obtenha uma
orienta çã o hist ó rica pró pria .
Em compara ção com o pluralismo que foi examinado no item
precedente, com relação à ampliação das perspectivas mediante a
reflexão sobre referenciais, o pluralismo descrito anteriormente
pode ser chamado de pluralismo deficiente , pois deixa de lado a
quest ão da verdade.
As histórias sã o verdadeiras aqui na medida em que se vincula -
rem às diversas posi ções, carê ncias e aos interesses atuais. Isso
corresponde à função orientadora das histórias, mas n ão basta para
satisfazê -la . As diferentes posições, carê ncias e interesses com que
Cf. Beard , That noble dream , The American Histovical Review 41 (1935), p. 74 87.
i
-
134 J õrn Rusen
20
J . Riisen , Theorien im Historismus, in : R íisen /Stissmuth (eds.), Theorien in der
Geschichtswissenschaft (3), p. 13-33, especialmente p. 25 s.
138
J õ rn Rusen
^
no movimento do jprõ êsso co itlVoT; transformando-
^
em conhecimento histórico sob a forma de histórias caracte-
rizadas pela objetividade de fundamentação . Objetividade
L
^
de fundamenta çã o21 significa a propriedade de as hist ó rias
21
Tomo a expressão “objetividade de fundamentação” de H. Liibbe (Geschichtsbe
griff mui Geschichí sinteresse , 4, p. 173 ss.)
-
Razã o histó rica 139
O crit é rio para uma cr ítica das normas que desemboque na pe-
cha de unilateralidade é a capacidade de consenso das normas que
reflitam os referenciais. A linguagem da tradi ção chama de “ é ticas”
as normas caracterizadas pela capacidade de gerar consenso. A meto-
dização da relação com as normas, que torna cient ífico o pensamento
hist ó rico, tem por premissa , pois, que a forma çã o do consenso so-
bre as posições na vida social, sobretudo quando de grande diver-
sidade , pode dar -se na intera çã o entre os homens e sempre e
mediante uma argumentação racional ( pode-se cham á -la de reco-
nhecimento social ). Quem negar essa premissa abandona as pers-
pectivas do pensamento histórico à irracionalidade de uma luta
pelo poder e desconsidera as possibilidades de a ci ê ncia delinear o
passado humano, racionalmente, como uma hist ória relevante para
o presente.
Da inserçã o das normas significativas do pensamento histórico
na arquitetura de uma argumenta ção desse tipo geram-se impulsos
para a pesquisa. Quer -se mais e melhor do passado humano talvez
porque o saber atual não baste para garantir historicamente o ne-
cessá rio e almejado reconhecimento. Por exemplo: a aproxima çã o
entre as diversas confissões religiosas, na Alemanha , promoveu
uma série de pesquisas sobre a Reforma protestante, por parte de
historiadores cat ólicos da Igreja , com as quais se construiu uma
outra imagem de Lutero;22 assim també m se terá um novo relacio-
namento entre os gê neros, como consequ ê ncia do progresso dos
movimentos de emancipação da mulher, que trouxe uma ampliaçã o
de perspectivas para as pesquisas sobre a mulher na hist ó ria , reve-
lando empiricamente relações mais complexas entre os gê neros do
que as que faziam aparecer a mulher como mera vítima de opressão.
"
Cf. H. Lutz, Zum Wandel der katholischen Luther- Interpretation , in: Kose-
Ileck/ Mommsen / Riisen (eds.), Objektivitàt und Pavteilichkeit (3), p. 173-198,
especialmente p. 192 s.
Raz ã o histó rica 143
23
Vide p. 124 ss.
Raz ã o histó rica 145