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PONTOS – PROVA ORAL – DPE/SP – DIREITOS

HUMANOS
Origem, sentido e evolução histórica dos Direitos Humanos.
Estudo conjunto com:
1 Os fundamentos filosóficos dos Direitos Humanos. Os direitos naturais do Milenna
jusnaturalismo racional e do contratualismo moderno. Os direitos
fundamentais do juspositivismo.
A sacralidade da pessoa e a dignidade humana. Gabriele
2
Estábile
Teoria crítica dos Direitos Humanos. A denúncia da mistificação ideológica
dos direitos humanos abstratos. A dificuldade de reconstrução dos direitos
Fabrício dos
3 humanos na era da biopolítica: os limites da cidadania como direito a ter
Santos
direitos, estado de exceção e campo de concentração como paradigmas
políticos modernos.
Encantos e desencantos dos Direitos Humanos: entre dominação e
emancipação. Perspectivas pós-violatórias, estatais e monistas X pré-
4 Rebeca
violatórias, existenciais e pluralistas para a proteção dos Direitos
Humanos.
Efeito encantatório e usos políticos dos Direitos Humanos: intervenções
5 humanitárias e imperialismo dos Direitos Humanos (universalismo, Iuscia
relativismo e hermenêutica diatópica).
5. As tensões da Modernidade ocidental e as tensões dos Direitos
Humanos: da colonialidade à descolonialidade. Os Direitos Humanos na
6 Daniele
zona de contato entre globalizações rivais. Os Direitos Humanos como
bandeiras de lutas dos movimentos sociais.
A reconstrução contra-hegemônica dos Direitos Humanos: Direitos
7 Humanos interculturais, pós imperiais e descoloniais no horizonte pós- Luis Gustavo
capitalista.
Direito internacional dos Direitos Humanos: fontes, classificação,
Leonardo de
8 princípios, características e gerações de direitos humanos. Normas de
Paula
interpretação dos tratados de Direitos Humanos.
A responsabilidade internacional por violação dos direitos humanos:
9 tratados internacionais de direitos humanos e as obrigações assumidas Letícia
pelo Brasil, formas de reparação e sanções coletivas e unilaterais.
10 O controle de convencionalidade. Cristina
11 O direito da autodiscriminação: discriminação direta e indireta e ações Mariana

1
afirmativas.
O sistema internacional de proteção e promoção dos Direitos Humanos:
Organização das Nações Unidas (ONU). Declarações, tratados,
12 Roberto
resoluções, comentários gerais, relatórios e normas de organização e
funcionamento dos órgãos de supervisão e controle.
Lucas
13 Órgãos convencionais e extraconvencionais.
Mariela

14 Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ana Carolina


Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e Primeiro
Protocolo (Criação do Comitê e International accountability). Segundo
15 Protocolo (Abolição da pena de morte). Bel
Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC)
e Protocolo Facultativo.
Convenção para a Prevenção e Punição ao crime de genocídio (junto com
o TPI). Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados. Protocolo sobre o
16 Danilo
Estatuto dos Refugiados. Convenção contra a tortura e outros tratamentos
ou penas cruéis, desumanos ou degradantes. Protocolo facultativo
Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial.
Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação
17 contra a Mulher (CEDAW). Protocolo Facultativo. Convenção sobre os Camila
direitos da Criança. Protocolos Opcionais. Convenção sobre os direitos da
pessoa com deficiência. Protocolo Facultativo.
Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os
Trabalhadores Migrantes e dos membros de suas Famílias. Convenção
18 Gisela
Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o
Desaparecimento Forçado.
Convenção Relativa à proteção do patrimônio mundial, cultural e natural –
“Declaração de Estocolmo”. Convenção sobre a diversidade biológica Érica
19
(1992).
Carta Africana de Direitos Humanos e dos povos. Declaração das Nações
20 Gabriel Kenji
Unidas sobre os direitos dos povos indígenas.

2
Sistema Regional Interamericano de Proteção de Direitos Humanos.
Organização dos Estados Americanos (OEA): declarações, tratados,
resoluções, relatórios, informes, pareceres, jurisprudência (contenciosa e
21 Maria Camila
consultiva da Corte Interamericana de Direitos Humanos), normas de
organização e funcionamento dos órgãos de supervisão, fiscalização e
controle.
Comissão Interamericana de Direitos Humanos: relatórios de casos,
Bruno
22 medidas cautelares, relatórios anuais e relatoria para a liberdade de
Zogaibe
expressão.
Corte Interamericana de Direitos Humanos. Leonardo
23
Lima
Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. Convenção
Americana de Direitos Humanos. Protocolo adicional à Convenção
24 Bruna
Americana sobre Direitos Humanos em matéria de direitos econômicos,
sociais e culturais – “Protocolo de San Salvador”.
Convenção Interamericana para prevenir e punir a tortura. Protocolo à
Convenção Americana sobre direitos humanos relativo à abolição da pena
de morte. Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a
25 violência contra mulher. Convenção Interamericana sobre o Thomaz
desaparecimento forçado de pessoas. Convenção Interamericana sobre a
eliminação de todas as formas de discriminação contra pessoas
portadoras de deficiência.
Reflexos do Direito Internacional dos Direitos Humanos no direito
brasileiro. Programa Nacional de Direitos Humanos I, II e III. Programa
26 Estadual de Direitos Humanos do Estado de São Paulo. Comissão Gabriela
Nacional da Verdade: histórico, atribuições, legislação, audiências públicas
e relatórios.
Direitos Humanos em espécie e grupos vulneráveis. Direitos Humanos das
minorias e de vítimas de injustiças históricas: Mulher, Negro, Criança e
Adolescente, Idoso, Pessoa com Deficiência, Pessoas em situação de rua,
27 Eduardo
Povos Indígenas, LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais
e transgêneros), Quilombolas, Sem-teto, Sem-terra, Imigrantes e
Refugiados.

O que ficou de fora:


i. Resolução de conflitos ante a colisão de direitos humanos (a ser visto
em constitucional).

3
ii. A vigência e eficácia das normas do direito internacional dos Direitos
Humanos. As possibilidades de aposição de reservas e de oferecer
denúncia relativas aos tratados internacionais de Direitos Humanos. A
incorporação dos tratados internacionais de proteção de direitos
humanos ao direito brasileiro. A posição hierárquica dos tratados
internacionais de Direitos Humanos em face da Constituição da
República do Brasil (estudado em constitucional).
iii. Direitos Humanos e acesso à justiça: o dever dos Estados de promover
o acesso à justiça, 100 Regras de Brasília e desenvolvimentos no
âmbito da Organização dos Estados Americanos relacionados à
Defensoria Pública.
iv. Mecanismos de proteção aos direitos humanos na Constituição da
República do Brasil. Federalização de crimes contra os Direitos
Humanos. Remédios constitucionais.

Sumário

PONTO 1..............................................................................................................6
PONTO 2............................................................................................................16
PONTO 3............................................................................................................21
PONTO 4............................................................................................................22

4
PONTO 5............................................................................................................25
PONTO 6............................................................................................................30
PONTO 7............................................................................................................37
PONTO 8............................................................................................................48
PONTO 9............................................................................................................56
PONTO 10..........................................................................................................65
PONTO 11...........................................................................................................75
PONTO 12..........................................................................................................83
PONTO 13..........................................................................................................92
PONTO 14..........................................................................................................99
PONTO 15........................................................................................................109
PONTO 16........................................................................................................121
PONTO 17........................................................................................................128
PONTO 18........................................................................................................136
PONTO 19........................................................................................................140
PONTO 20........................................................................................................150
PONTO 21........................................................................................................154
PONTO 22........................................................................................................161
PONTO 23........................................................................................................167
PONTO 24........................................................................................................175
PONTO 25........................................................................................................184
PONTO 26........................................................................................................190
PONTO 27........................................................................................................203

PONTO 1
Origem, sentido e evolução histórica dos Direitos Humanos. Estudo
conjunto com: Os fundamentos filosóficos dos Direitos Humanos. Os
direitos naturais do jusnaturalismo racional e do contratualismo moderno.
Os direitos fundamentais do juspositivismo.

1. O que se entende por fundamentação dos direitos humanos e qual é a


importância desse estudo?

5
Fundamentar os direitos humanos é buscar as razões que legitimam e
motivam o reconhecimento dos direitos humanos, buscar essa genealogia,
investigar o porquê dos direitos humanos.
Através desse estudo temos maior possibilidade de garantir efetividade aos
direitos humanos, de tirá-los do papel e fazer com que eles não sejam somente
“direitos de cartas”. Para Caio Granduque, “a proteção dos direitos do homem
depende dos fundamentos com que eles se justificam”.
Assim, em que pese haver posição em sentido contrário, entendendo pela
desnecessidade de buscar a fundamentação dos direitos humanos, Caio
defende uma fundamentação existencialista e afirma que o baixo nível de tutela
jurisdicional de direitos humanos está intimamente ligado à fundamentação
tradicional e idealista desses direitos.

2. Fale sobre a corrente negacionista a respeito da fundamentação dos


direitos humanos.
A corrente negacionista é defendida por Norberto Bobbio, o qual entende
que a grande questão dos direitos humanos diz respeito à sua efetividade, e
não à sua fundamentação. Para o autor não existe relação entre a proteção e a
fundamentação dos direitos humanos. Nesse sentido, Bobbio afirma que “o
problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o
de justifica-los, mas o de protege-los. Trata-se de um problema não filosófico,
mas político”. Dessa forma, a questão não é saber quais e quantos são esses
direitos, qual é a sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou
históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para
garanti-los.
Caio Granduque discorda desse entendimento e ressalta que a “resolução
do urgentíssimo problema da proteção dos direitos humanos” não pode deixar
de lado um regresso aos seus fundamentos. Isso porque a violação estrutural
desses direitos passa pelos desdobramentos jurídicos que cada
fundamentação enseja. Caio afirma, ainda, que a concepção que o jurista
possui a respeito dos direitos humanos condiciona a sua prática, seja ela
comprometida ou indiferente a esses direitos. Esse é também o pensamento do
constitucionalista espanhol Antonio Enrique Pérez Luño.
Nas palavras de Caio Granduque, “entende-se o certo exagero do notável
pensador italiano, que, em razão do advento da Declaração Universal de 1948,
deu por encerrada a discussão acerca dos fundamentos dos direitos humanos,
talvez como estratégia para advertir sobre a necessidade de que os direitos
humanos sejam ‘levados a sério’”.

3. Fale sobre a fundamentação jusnaturalista dos direitos humanos.


Como ensina André de Carvalho Ramos, o jusnaturalismo é uma corrente
do pensamento jurídico que defende a existência de um conjunto de normas
vinculantes anterior e superior ao sistema de normas fixadas pelo Estado
(direito posto). É a corrente mais antiga na história do pensamento, podendo
ser identificada desde a Antiguidade, na peça de teatro “Antígona”, de Sófocles.
Nessa peça a personagem principal, recusando-se a obedecer as ordens do rei
em relação ao direito de enterrar os mortos, afirma que as leis dos homens não
podem sobrepor-se às leis eternas dos deuses.
Para a doutrina jusnaturalista, é direito o que é natural, isto é, a juridicidade
é um dado eterno, imutável e universal, que provém e deve ser descoberto da

6
“natureza”. Sendo assim, a depender da concepção que se tenha da
“natureza”, teremos significados diversos a respeito do direito natural.

4. Discorra sobre o jusnaturalismo cosmológico da Antiguidade.


No jusnaturalismo cosmológico a natureza era vista como o cosmos, a
physis, e dela decorreriam determinadas regras. Tais regras seriam eficazes
em todos os lugares e válidas por todo o tempo, constituindo-se no direito
natural. Símbolo dessa corrente é a postura de Antígona na tragédia grega de
Sófocles, a qual desobedece o direito positivo com base nas leis não escritas e
intangíveis dos deuses, que não são leis de hoje ou de ontem, são de sempre.
Como destaca Caio Granduque, essa concepção jusnaturalista também
pode ser vislumbrada no direito romano. Nesse sentido é a assertiva de Cícero,
para o qual a lei natural não pode ser contestada, derrogada em parte ou
anulada, devendo ser cumprida tanto pelo povo como pelo Senado. Não se
trata de uma lei em Roma e outra em Atenas, uma lei antes e outra depois. Ao
contrário, é uma lei sempiterna e imutável, entre todos os povos e em todos os
tempos.

5. Discorra sobre o jusnaturalismo teológico da Idade Média.


O jusnaturalismo teológico é incentivado pela visão religiosa de São Tomás
de Aquino, o qual entendia que a “lex humana” deve obedecer a “lex naturalis”,
fruto da razão divina mas perceptível aos homens. O direito natural, portanto,
seria o que está contido no Antigo e no Novo Testamento, e o cristianismo seria
a comprovação da supremacia do direito natural sobre o direito positivo.
Sendo assim, a natureza na Idade Média era considerada o produto da
inteligência e da potência criadora de Deus. O jusnaturalismo assume,
portanto, uma perspectiva teológica e o direito natural passa a ser visto como a
lei inscrita por Deus no coração dos homens, ou a lei revelada pelos textos
sagrados, os quais transmitem a palavra divina, ou, ainda, a lei comunicada por
Deus aos homens através da razão.

6. Fale sobre o jusnaturalismo racional moderno.


No jusracionalismo a natureza é percebida como a ordem racional do
universo. Dessa forma, o direito natural é visto como o conjunto de leis sobre a
conduta ou natureza humana, que podem ser captadas, apreendidas ou
descobertas pela razão humana.
Nesse sentido, Hugo Grócio, considerado o pai do direito natural e do
direito internacional moderno, defendia no século XVI a existência de um
conjunto de normas ideais, fruto da razão humana. Assim, afirmava que para
captar racionalmente o direito não deveríamos recorrer à autoridade das
Sagradas Escrituras ou aos antigos pensadores, mas sim observar a natureza
humana. Para Grócio, o direito dos legisladores humanos só seria válido se
compatível com os mandamentos daquela lei imutável e eterna.
Cabe destacar que Hugo Grócio contribuiu para o nascimento dos direitos
humanos no século XVIII ao tratar do método dedutivo como o que permite à
reta razão alcançar as regras invariáveis da natureza humana. Essa é a ideia
que está na raiz das modernas Declarações de Direitos Humanos. Declara-se
não aquilo que é oculto e imperceptível, mas sim o que é de fácil acesso à
razão humana.

7
As premissas de Grócio foram desenvolvidas pelo jurista alemão Samuel
Pufendorf, que concebia o direito natural como um rígido e estruturado sistema
racional. Seu maior legado foi a edificação de um sistema de direito natural
deduzido de um único princípio imanente à natureza, a saber, o de
“conservação do indivíduo”, do qual decorre a ideia de que os homens são
naturalmente livres e iguais. Pufendorf destaca o que ele chama de “dignidade
da natureza humana”, avançando no estabelecimento de condições para a
insurgência dos direitos humanos.
Em suma, através do método dedutivo-racional, esses pensadores
libertaram o direito natural do conteúdo teológico que prevaleceu na doutrina
jusnaturalista da Idade Média. Como explica Caio Granduque, o direito natural
passou a ser considerado um conjunto de normas e princípios eternos,
universais e imutáveis descobertos racionalmente da natureza do homem, o
que foi fundamental para o posterior nascimento dos direitos humanos. Nas
palavras de Caio, “a ideia de que o homem possui direitos inatos, decorrentes
da sua própria natureza humana, pressupostos e antecedentes a qualquer
organização política, foi elaborada pelo jusnaturalismo moderno. Foi o
jusnaturalismo antropológico, portanto, quem deu à luz os direitos humanos,
travestidos de direitos naturais”.

7. Comente algumas características presentes em todas essas doutrinas


do direito natural.
Segundo Caio Granduque, podemos citar as seguintes características
comuns a todas essas doutrinas:
(i) admissão do direito natural como direito;
(ii) afirmação do direito natural como superior ao direito positivo;
(iii) concepção do direito natural como ordem objetiva, superior, dada,
pronta e acabada; e
(iv) identificação do direito natural com normas de condutas universais,
eternas e imutáveis.
Ademais, todas as vertentes do jusnaturalismo assumem a tríade
“verdadeiro, justo, obrigatório”, isto é, a partir do verdadeiro (ser) se chega ao
obrigatório (dever ser) por meio de um critério de justiça natural.
Caio afirma, ainda, que o jusnaturalismo procura compreender o direito
pela explicitação dos seus fundamentos ontológicos, seja por meio da ontologia
metafísica dos gregos, seja com base na ontologia teológico-metafísica
medieval, seja através da ontologia convertida em antropologia (investigação
acerca da “natureza do homem”) no pensamento moderno e iluminista.
No mesmo sentido, André de Carvalho Ramos esclarece que o traço
marcante da corrente jusnaturalista de direitos humanos é seu cunho
metafísico, tendo em vista que se funda na existência de um direito
preexistente ao direito produzido pelo homem, seja oriundo de Deus (escola de
direito natural de razão divina), seja oriundo da natureza inerente do ser
humano (escola de direito natural moderno).

8. Discorra sobre o jusnaturalismo contratualista.


Como ensina André de Carvalho Ramos, os iluministas, em especial Locke
e Rousseau, fundaram a corrente do jusnaturalismo contratualista, a qual
aprofunda o racionalismo e o individualismo. A razão é vista como a fonte de
direitos inerentes ao ser humano e é defendida a prevalência dos direitos do

8
indivíduo em face do Estado. Essa supremacia dos direitos humanos teria
como base um contrato social firmado por todos na comunidade humana, que
limita o arbítrio do Estado e impõe a proteção desses direitos.
Os teóricos do contratualismo buscavam teorizar a limitação do poder
político, tendo em vista que seu exercício era o grande responsável pela
violação da dignidade e dos direitos das pessoas da época. Para tanto,
recepcionaram a doutrina moderna do direito natural, instituída por Hugo
Grócio (que inaugurou o processo de laicização do jusnaturalismo) e
desenvolvida, entre outros, por Pufendorf. Os pensadores contratualistas
perceberam a força dos direitos naturais diante do desafio de superar a ordem
estamental em vigor e, assim, conferiram a esses direitos um espaço de
destaque em suas doutrinas.
Locke e Rousseau partem da dicotomia estado de natureza/estado civil,
pois sabem que a única hipótese racional que poderia inverter a concepção
secular de que o poder político procede de cima para baixo seria a de um
estado de natureza no qual os indivíduos possuíssem direitos naturais.
Thomas Hobbes construiu seu contratualismo em sentido oposto,
buscando legitimar o poder soberano das monarquias absolutas. Assim,
descreve o estado de natureza como aquele em que há a guerra de todos
contra todos, onde o homem é o lobo do próprio homem. Dessa forma, os
direitos naturais (exceto o direito natural à vida) deveriam ser contratualmente
transferidos a um Estado artificialmente criado, o Leviatã, único capaz de
assegurar a paz e a segurança. Por defender a transferência dos direitos
naturais dos indivíduos ao Leviatã, Hobbes não contribuiu para o surgimento
dos direitos humanos no século XVIII. Segundo Bobbio, Hobbes adota a teoria
do direito natural para reforçar o poder, e não para limitá-lo, usa meios
jusnaturalistas para alcançar objetivos positivistas.
Locke, por outro lado, utiliza sua teoria a serviço da limitação do poder
político, condicionando-o ao respeito das leis naturais. O estado de natureza
para Locke é uma mistura de bem (representado pelos direitos naturais, como
liberdade e igualdade) e mal (traduzido na falta de um juiz imparcial que
canalizasse o exercício pacífico desses direitos). Assim, a função do estado
civil, contratualmente constituído pelos indivíduos, seria a de conservar o bem
e eliminar o mal. O Estado, portanto, surge com poderes limitados,
configurando-se o modelo de Estado Liberal. Vale destacar que caberia ao
Estado garantir o direito de propriedade, visto por Locke como um direito
sagrado, natural e inviolável, como consta do artigo 17 da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.
Rousseau entendia o estado de natureza como um estado de plena
liberdade e igualdade natural entre os homens. No estado de natureza temos o
homem bom, em pleno gozo de sua liberdade, até que o advento da sociedade
provoque sua corrupção. Com o objetivo de superar essa questão, Rousseau
propõe a celebração de um contrato social a ser estabelecido conforme os
ditames da razão, restabelecendo-se as leis naturais por meio das leis civis.
Aqui reside sua contribuição para a afirmação dos direitos humanos: sua
filosofia política busca encontrar uma forma de associação política que proteja
e potencialize os direitos naturais do homem.
Diante do exposto, percebe-se que o jusnaturalismo moderno dos
pensadores contratualistas lançou mão da lei (entendida como produto da
vontade geral) para a tutela dos direitos naturais. O direito se converteu em

9
legalidade e a lei que passou a dar validade aos direitos. Assim, o
contratualismo moderno, que partiu das ideias jusnaturalistas para legitimar a
inversão da titularidade do poder político, chega ao legalismo, com base no
qual posteriormente se afirmaria o positivismo jurídico.

9. Há menção ao direito natural na jurisprudência do Supremo Tribunal


Federal?
Sim. O direito natural já foi utilizado como fundamentação em diversos
casos do STF, merecendo destaque os seguintes:
(1) ADI 595/ES, Relator Ministro Celso de Mello, 2002 – nesse julgado o
Ministro Celso de Mello reconheceu a existência de um bloco de
constitucionalidade material, que seria o conjunto de normas de status
constitucional composto pelas normas expressas da Constituição e normas
implícitas e valores do direito natural;
(2) Decisão monocrática da Presidência, SS 2061 AgR/DF, Relator Ministro
Marco Aurélio, 2001 – foi reconhecido o caráter de direito natural do direito de
greve (inerente a toda prestação de trabalho, público ou privado). Com base
nisso, STF decidiu que não cabe o não pagamento dos salários e que eventual
compensação pela ausência do trabalho deve ser feita somente após
encerrada a greve;
(3) RCH 84.851/BA, Relator Ministro Marco Aurélio, 2005 e RHC
73.491/PR, Relator Ministro Marco Aurélio, 1996 – mesmo não estando
positivado na Constituição ou nos tratados de direitos humanos, o direito à fuga
foi reconhecido como direito natural. Nas palavras do Ministro Marco Aurélio no
julgamento do RHC 73.491, “a fuga não pode ser considerada como fator
negativo, tendo em vista consubstanciar direito natural”;
(4) HC 83.943, Relator Ministro Marco Aurélio, 2004 – o direito do preso de
permanecer calado foi transformado pela jurisprudência do STF, com base no
direito natural, em um direito de não se autoincriminar e não colaborar com as
investigações criminais;
(5) HC 80.616, Relator Ministro Marco Aurélio, 2004 – também com base
no direito natural o STF ampliou o conceito de autodefesa, impedindo que o
acusado fosse prejudicado por não admitir a culpa ou por mentir (atribuindo a
autoria a terceiro).

10. Fale sobre a fundamentação juspositivista dos direitos humanos


Com a consolidação do Estado constitucional, os direitos humanos tidos
como naturais foram inseridos no corpo da Constituição e das leis, passando a
ser considerados direitos positivados.
A Escola positivista traduziu a ideia de um ordenamento jurídico produzido
pelo homem de forma coerente e hierarquizada, que teria em seu topo a
Constituição (pressuposto de validade de todas as demais normas). Os direitos
humanos foram inseridos na Constituição, obtendo, com isso, um estatuto
normativo superior. Com o tempo, muitos autores passaram a reservar o termo
“direitos humanos” para o plano internacional e a utilizar o termo “direitos
fundamentais” para se referir aos direitos essenciais positivados no plano
interno e, especialmente, na Constituição.
Os positivistas também buscam as razões que legitimam os direitos
humanos e entendem que essas razões estão na lei, na validade formal da
norma. Assim, os direitos humanos justificam-se graças à sua validade formal e

10
sua previsão no ordenamento posto. Dessa forma, a ideia de “direitos
inerentes” da corrente jusnaturalista é substituída pela ideia dos “direitos
reconhecidos e positivados pelo Estado”.
Como explica Caio Granduque, se o jusnaturalismo é dualista na medida
em que admite a convivência do direito natural com o direito positivo
(defendendo a superioridade daquele), o positivismo jurídico é monista, tendo
em vista que admite apenas o direito positivo.
Vale ressaltar que os direitos do homem que nasceram como direitos
naturais e, portanto, imutáveis, eternos, universais, titularizado pelo homem em
geral, passaram, no século XIX, a ser entendidos como direitos fundamentais,
isto é, direitos positivos particulares, cuja titularidade restringia-se aos cidadãos
do respectivo Estado. Buscando combater o idealismo abstrato ou metafísico
do jusnaturalismo racional, o positivismo jurídico não reconhece direitos para
além do direito posto. Sendo assim, o direito passa a ser identificado com a lei,
convertendo-se na legalidade.
Em suma, pela concepção legada pelo positivismo jurídico, os direitos
humanos nada mais são do que direitos fundamentais, cuja existência e
validade dependem da lei, na forma da doutrina do século XIX, e, após um
processo de adaptação teórica, encontram-se subordinadas à Constituição no
século XX.

11. Que frustração o positivismo pode causar no jurista?


Segundo Caio Granduque, o positivismo pode causar uma dupla frustração
no jurista, a saber:
(i) frustração científica: nem todos os casos que precisam ser resolvidos
estão previstos no sistema jurídico, tendo em vista a historicidade imanente à
realidade humana, condenada à liberdade;
(ii) frustração existencial: se o jurista não passa de um operador ou
aplicador do direito, ou seja, se ele tem uma existência inautêntica, ele pode
ser trocado a qualquer momento por uma máquina, a qual, com maior
eficiência, pode deduzir do sistema a norma aplicável ao caso.

12. Fale sobre a fundamentação moral ou pós-positivista dos direitos


humanos
A fundamentação dos direitos humanos como direitos morais vai buscar
conciliar os direitos humanos entendidos como exigências éticas (seriam
supralegais) e aqueles direitos humanos entendidos como direitos positivados.
Por demandar o direito escrito, essa linha também pode ser entendida
como positivista, tendo em vista que se resume, em alguma medida, à função
de interpretação da norma.

13. Discorra sobre a fundamentação existencialista dos direitos humanos


Ao trabalhar com a construção existencial dos direitos humanos, Caio
Granduque parte da lógica de que estamos questionando a efetividade dos
direitos humanos o tempo todo. Segundo Caio, a proteção dos direitos do
homem depende diretamente dos fundamentos pelos quais esses mesmos
direitos se justificam. Dessa forma, se não buscarmos a justificação não
conseguiremos compreender e manejar os instrumentos de proteção desses
direitos.

11
O problema da não realização dos direitos humanos é um problema
econômico, político, social e cultural, mas é também um problema jurídico.
Consequentemente, será um problema jusfilosófico, na medida em que exige a
busca dos fundamentos que os legitimam.
Como ensina Caio Granduque, o baixo nível da proteção jurisdicional dos
direitos humanos está intimamente relacionado com a fundamentação
tradicional e idealista, seja jusnaturalista ou juspositivista, tendo em vista que
se prestam a artifícios ideológicos funcionais para a indiferença dos juristas
frente a esses direitos.
Enquanto não buscamos a fundamentação (corrente negacionista),
permitimos uma fundamentação tradicional, que coloca esses direitos apenas
como direitos abstratos, direitos de cartas. As fundamentações jusnaturalista e
juspositivista acabam sendo manejadas para funcionalizar uma posição do
jurista que fecha os olhos, uma posição de indiferença, um suicídio intelectual,
e por isso não podemos aceitá-las.
Os direitos humanos têm uma relação direta com as revoltas, com as lutas
de classe. O próprio nascimento dos direitos humanos no século XVIII como
direitos naturais nas declarações de direitos se refere a uma luta da classe
burguesa contra os privilégios da nobreza. No século XIX, esses direitos vão se
transmudar das declarações para as Constituições, ou seja, vão deixar de ser
direitos naturais e vão se tornar direitos fundamentais, porque positivados nas
Constituições. Na fase de internacionalização dos direitos humanos (século
XX), vão se positivar em um plano supranacional, nos tratados e convenções.
Questão que se coloca, portanto, é: de que modo vamos buscar um
fundamento para esses direitos humanos que os retirem do papel?
Como afirma Caio Granduque, a gênese dos direitos humanos é (e está
sendo!) um produto de revoltas de homens que, lançados nas mais diversas e
absurdas situações históricas, não voltaram aos grilhões, e com coragem e
lucidez souberam o que fazer com sua liberdade. Os direitos nasceram do agir
e do fazer de homens que, alimentados pela solidariedade e tendo em mente a
máxima fundamental “eu me revolto, logo existimos”, ousaram reinvidicar o fim
do escândalo e da injustiça vivenciados.
O existencialismo pode ser entendido, portanto, como o conjunto de
filosofias que se valem da análise da existência, ou seja, que analisam a
existência do homem, a vida. Para Caio Granduque o existencialismo se opõe
a toda forma de explicação sistemática, universal, lógica e abstrata da
realidade, preocupando-se com o existente homem concreto.
Diferentemente do jusnaturalismo, para quem os direitos humanos são
descobertos, e do positivismo, para quem os direitos são aplicados, a
fundamentação existencialista defende que os direitos humanos são
construídos, isto é, são aquilo que nós fizermos com que eles sejam.

14. Qual é a relação da evolução dos direitos humanos com o


desenvolvimento do conceito de pessoa?
Fábio Konder Comparato analisa o homem no mundo e as etapas de
elaboração do conceito de pessoa. Os direitos humanos são a proteção da
pessoa humana e essa proteção vai mudando ao longo da história, vai
buscando uma afirmação histórica. Para fazer essa análise, Comparato
seleciona diversos documentos e períodos importantes, a começar pelo
período axial (século VIII a II a. C.). Essa é a primeira vez em que o ser

12
humano é considerado em sua igualdade essencial e dotado de liberdade e
razão. Cabe lembrar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que
consubstancia essa noção, vai aparecer apenas 25 séculos depois, mas já é
nesse momento que começa a surgir essa ideia.
Na segunda fase da construção do conceito de pessoa identificada por
Comparato (século VI, Boécio), percebemos que a igualdade de essência da
pessoa forma o núcleo do conceito universal de direitos humanos, ou seja, os
direitos humanos nascem a partir dessa noção de igualdade de essência.
Na terceira fase temos como grande marco teórico Kant (século XVIII),
para quem a pessoa deve ser compreendida como sujeito de direitos
universais, anteriores e superiores a toda ordenação estatal. Para Kant todo
homem tem dignidade, jamais preço, pois ele não pode ser confundido com as
coisas. O homem é sujeito de sua própria história e titular de direitos universais
anteriores e superiores à ordenação estatal.
No século XIX, Karl Marx critica a noção de direitos humanos de forma
abstrata e o capitalismo enquanto sistema de coisificação da pessoa humana,
uma vez que dentro do sistema capitalista o homem é explorado e dominado
pelo próprio homem que detém os meios de produção.
No século XIX temos a quarta fase da construção do conceito de pessoa
com a (re)descoberta do mundo dos valores, da ética. Comparato diz que o
homem é o único ser vivo que dirige sua vida em função de preferências
valorativas. A compreensão da realidade axiológica transforma no sec. XIX toda
a teoria jurídica, porque os direitos humanos passam a ser identificados como
os valores mais importantes da convivência humana.
No século XX chegamos à quinta fase de construção do conceito de
pessoa. Após os horrores das Grandes Guerras, temos a elaboração do
conceito de pessoa dialogando com a construção concreta, existencial dos
direitos humanos. Nesse sentido, o ser humano é um vir-a-ser, um contínuo
devir, ele é sendo. Trabalhamos, portanto, com a filosofia da vida e com o
pensamento existencialista e o homem passa a ser visto como o protagonista
do seu próprio destino.
Em suma, a partir da noção do que é pessoa se constrói a noção de direito
dessa pessoa. E com a evolução a pessoa deixa de ser vista como o cidadão
de um Estado, passa a ser vista como um indivíduo, um ser dotado de
humanidade e chega, enfim, à noção de pessoa como um “vir-a-ser”.

15. Comente sobre a noção de “fluxos e refluxos” no processo de


evolução e afirmação histórica dos direitos humanos.
Segundo Fabio Konder Comparato, a primeira chave para entendermos as
grandes etapas históricas de afirmação dos direitos humanos é a ideia de
fluxos e refluxos, tendo em vista que a história se escreve em avanços e
recuos. Nas palavras do autor, “a cada grande surto de violência, os homens
recuam, horrorizados”.
Comparato trabalha com a ideia de que todas as vezes na história do
mundo em que homem se depara com a barbárie, ele busca como reação uma
atitude mais preservacionista.
Percebemos, portanto, dentro dessa ideia de avanços e retrocessos, que
os direitos humanos nunca são “entregues de graça”, eles nascem das revoltas
e lutas sociais.

13
16. Fale sobre a noção de sincronismo entre as grandes declarações e as
grandes descobertas científicas no processo de afirmação histórica dos
direitos humanos.
Fabio Konder Comparato afirma que há um sincronismo entre as grandes
evoluções da técnica e as grandes regras que protegem direitos, considerando
essa a segunda chave para a compreensão das grandes etapas históricas de
evolução dos direitos humanos. Segundo Comparato, são dois grandes fatores
de solidariedade humana, um de ordem técnica, que transforma os meios e
instrumentos de convivência, mas é indiferente aos fins; e outro de ordem ética,
que procura submeter a vida social ao valor supremo da justiça.

17. Como podem ser definidos os direitos humanos?


Segundo André de Carvalho Ramos, os direitos humanos são um conjunto
de direitos considerado indispensável para uma vida pautada na liberdade,
igualdade e dignidade. São, portanto, os direitos essenciais e indispensáveis à
vida digna. Para o autor não há um rol predeterminado desse conjunto mínimo
de direitos, tendo em vista que as necessidades humanas variam e, de acordo
com o contexto histórico de uma época, novas demandas sociais são
traduzidas juridicamente e incluídas na lista de direitos humanos.
André de Carvalho Ramos explica que os direitos humanos podem ser
divididos em quatro espécies, quais sejam, (i) direito-pretensão; (ii) direito-
liberdade; (iii) direito-poder; e (iv) direito-imunidade.
(i) direito-pretensão: consiste na busca de algo e, consequentemente, no
dever gerado a outrem de prestar. Como exemplo, temos o direito à educação
fundamental, que gera para o Estado o dever de prestá-la gratuitamente;
(ii) direito-liberdade: trata-se da faculdade de agir que gera a ausência de
direito de qualquer outro ente ou pessoa. Cite-se, a título de exemplo, a
liberdade de credo (o Estado não possui direito de exigir que a pessoa tenha
determinada religião);
(iii) direito-poder: implica uma relação de poder de uma pessoa de exigir
uma sujeição do Estado ou de outra pessoa. Exemplo: uma pessoa ao ser
presa tem o poder de requerer a assistência da família e do advogado, o que
sujeita a autoridade pública a providenciar esse contato;
(iv) direito-imunidade: consiste na autorização dada por uma norma a uma
determinada pessoa que impede que outra interfira de qualquer modo.
Exemplo: uma pessoa é imune à prisão, salvo nas hipóteses previstas em lei.
Por fim, é importante lembrar que, como ensina Hannah Arendt, os direitos
humanos não são um dado, mas um construído, uma invenção humana em
constante construção e reconstrução.

18. Fale sobre a internacionalização dos direitos humanos.


No século XIX temos a primeira fase de internacionalização dos direitos
humanos, em que tais direitos começam a ser uma preocupação do direito
internacional, e não mais do Estado. Surge uma preocupação com o homem no
momento da guerra e nasce, com isso, o Direito Internacional Humanitário,
considerado o primeiro antecedente histórico importante para o nascimento do
Direito Internacional dos Direitos Humanos. Também podemos citar como
antecedentes históricos a Liga das Nações, que nasce no pós 1ª Guerra
Mundial, e a OIT.

14
Na segunda metade do século XX, pós 2ª Guerra Mundial, temos a
segunda fase de internacionalização dos direitos humanos. Nesse momento
temos o surgimento das Declarações de Direitos (Declaração Universal de
Direitos Humanos e Declaração Americana de Direitos Humanos), a extinção
da Liga das Nações e o nascimento da ONU e da OEA.
Nessa segunda fase temos também o surgimento do Direito Internacional
dos Direitos Humanos como uma disciplina autônoma, trazendo uma
preocupação com a pessoa humana enquanto sujeito de direito internacional.
Cabe lembrar que o surgimento da pessoa como sujeito de direito internacional
está vinculado ao direito a ter direitos e à releitura da noção clássica de
soberania.

19. Fale sobre as dimensões / gerações dos direitos humanos.


Podemos identificar 3 dimensões relacionadas com o lema da Revolução
Francesa, de acordo com a teoria das gerações de Karel Vasak:
1ª geração/dimensão: direitos informados pelo valor da liberdade -> direitos
individuais, civis e políticos. Trata-se de um direito vocacionado às prestações
negativas, que exigem do Estado um “não fazer” (dever de proteger a
autonomia do indivíduo). Como lembra André de Carvalho Ramos, é possível,
no entanto, se exigir ações do Estado como, por exemplo, para a garantia da
segurança pública e administração da justiça.
2ª geração/dimensão: direitos informados pelo valor da igualdade ->
direitos sociais, econômicos e culturais. Cabe lembrar que a Revolução
Industrial e as Guerras Mundiais acabam acentuando a pobreza e a exclusão
social, o que leva à necessidade de uma nova conformação do Estado: Estado
Liberal -> Estado Social. Estado deve adotar prestações positivas com o intuito
de alcançar uma igualdade.
Segundo André de Carvalho Ramos, podemos identificar duas espécies de
direitos aqui: (i) direitos sociais essencialmente prestacionais (exemplo: pedido
de medicamento); e (ii) direitos sociais de abstenção ou de defesa (Estado
deve se abster de interferir de modo indevido – exemplo: liberdade de
associação sindical, direito de greve).
3ª geração/dimensão: direitos informados pelo valor da fraternidade ->
direitos difusos. Estados percebem que há necessidade de flexibilização do
conceito de soberania e de uma concepção de cidadão que extrapola a égide
cosmopolita, ou seja, que extrapola os limites territoriais. Temos o surgimento
dos direitos metaindividuais. O vetor da solidariedade se espraia e faz com que
os Estados entendam que há necessidade de proteção do indivíduo, ainda que
não resida no seu território.
Há posição na doutrina defendendo a existência de outras gerações de
direitos humanos. José Alcebíades Oliveira Júnior, por exemplo, entende que
teríamos uma 4ª geração incluindo o biodireito e, ainda, uma 5ª dimensão,
dizendo respeito à cibernética. Ricardo Lorenzetti, por sua vez, defende que a
4ª dimensão dos direitos humanos envolveria o direito à diversidade. Bobbio
afirma que a 4ª dimensão surge com a finalidade de proteção do patrimônio
genético. Outra parte da doutrina, contudo, cita apenas as 3 dimensões.

20. Por que alguns autores preferem falar em dimensões de direitos


humanos, e não em gerações?

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Parte da doutrina critica o termo “dimensões” por entender que ele poderia
levar a uma falsa impressão de encerramento de uma fase e surgimento de
outra de maneira totalmente independente. Dessa forma, poderíamos ter uma
ideia equivocada e que violaria a característica de indivisibilidade dos direitos
humanos.

21. Como nascem os direitos humanos no plano internacional?


Segundo André de Carvalho Ramos, os direitos humanos nascem,
inicialmente, de “parto natural” e depois de uma gestação de anos (que inclui
exaustivas conferências internacionais e inúmeras modificações de textos e
projetos de tratados internacionais, até que finalmente é alcançado o consenso
e surge um novo tratado internacional de direitos humanos).
Mas nascem também de “cesariana”, através de construções
jurisprudenciais dos tribunais internacionais de direitos humanos. Por meio de
uma interpretação evolutiva dos tratados, os tribunais ampliam o alcance de
velhos direitos e criam novas esferas sociais protegidas.
Dessa forma, os direitos humanos são uma parte do ordenamento que
possui duas foram de elaboração jurídica: legislativa e jurisprudencial. As
normas previstas em lei internas, Constituição e tratados são sempre um ponto
de partida para o intérprete, nunca de chegada. Devemos sempre verificar a
real interpretação e configuração normativa dada pelos Tribunais, sendo certo
que o impacto da concretização jurisprudencial dos direitos humanos é imenso
na esfera internacional.

PONTO 2
A sacralidade da pessoa e a dignidade humana.

Obs.: As respostas foram elaboradas com base nos seguintes materiais: (i) “A
sacralidade da pessoa: nova genealogia de direitos humanos” – Hans Joas,
2012, Editora UNESP; (ii) “Sobre direitos humanos na era da bio-política” –
Oswaldo Giacoia Junior; (iii) caderno FMB – 1ª fase.

1. Qual a tese de Hans Joas sobre a fundamentação dos direitos


humanos?
O tema está no entrecruzamento da história dos DH e a questão de sua
fundamentação.
Hans Joas propõe uma tese inovadora nos estudos sobre fundamentação
dos direitos humanos, tendo como cerne os conceitos de ‘sacralidade’ e
‘santidade’. O autor sustenta que a crença nos direitos humanos e na
dignidade humana universal seriam resultado de um processo específico de
sacralização.
O núcleo argumentativo de Joas tem como pressuposto um processo a
partir do qual, gradativamente, com motivação e sensibilização cada vez mais
intensas, o ser humano individual passou a ser entendido como sagrado e essa
compreensão foi institucionalizada no direito. Destaca-se, porém, que o termo
sacralização não deve ser concebido como se tivesse um significado
exclusivamente religioso. Os conteúdos seculares também podem assumir as
qualidades características da sacralidade, ou seja, ‘evidência subjetiva’ e
‘intensidade afetiva’.

16
O pensamento central da obra passa pelo desafio de sustentar que a
sacralização e a genealogia afirmativa ocorreram por meio de processos nos
quais muitas vezes a adesão aos direitos humanos não surgiu de ponderações
racionais.
Joas se vale de sua definição da modernidade como uma “sacralização do
indivíduo”. Porém, o binômio sagrado/profano não tem correspondência direta
com a dualidade de religioso/secular. Sagrado, etimologicamente, quer
dizer: separado. Algo da ordem secular, ou seja, fora da esfera religiosa, pode
ser investido de um valor sagrado, à medida que for preservado pela
comunidade. Em uma palavra: consagrado. Sagrado é tudo aquilo que,
entendido como dom inalienável, consegue resistir à lógica instrumental das
relações de troca. Não por acaso, Kant havia definido dignidade como um valor
que não pode ser trocado. Portanto, não pode ser alienado. Esse bem humano
salvaguardado dos demais bens cambiáveis constitui a pessoa.
Assim, ao se tornarem sistemas complexos, as sociedades precisam criar
valores cada vez mais abstratos que consigam mitigar os conflitos locais que
surjam no seio de seus grupos. Para Joas, a categoria pessoa, sacralizada, ou
seja, separada do âmbito geral das relações de troca, pode assumir o estatuto
dessa universalidade genérica e, ao mesmo tempo, preservar as dinâmicas
vitais particulares.
A ideia-chave é, portanto, que a história dos DH constitui uma história da
sacralização da pessoa - genealogia afirmativa de direitos - próxima da
construção existencial de DH do Caio.
Hans Joas discorda de Nietsche no que tange à tese de que a descoberta
da gênese dos valores enfraqueceria a relação do homem com os valores (pois
se descortinaria a crença em meros ídolos). Para Hans Joas, a história não
enfraquece a ligação com a gênese/origem dos DH, ao contrário: “voltemos
nosso olhar da genealogia afirmativa para o aspecto programático, do passado
para o futuro. (...) No longo prazo, os DH, a sacralização da pessoa, só terão
alguma chance se todos os três atuarem em conjunto: se os DH tiverem o
suporte das instituições e da sociedade civil, forem defendidos
argumentativamente e se encarnarem nas práticas da vida cotidiana”.
Aproximando o processo de sacralização da visão existencial de Caio
Granduque: A pessoa não é sagrada em um aspecto religioso, ela é sagrada
porque, no curso da História, a dignidade humana, como um valor universal, se
torna o epicentro ideológico dos ordenamentos jurídicos. A pessoa, assim, não
pode ser profanada por leis ou atos.
É aí que essa noção de sacralidade se aproxima da visão existencial dos
direitos humanos. Os direitos são sendo, não são um todo acabado e dado,
são construídos diariamente, com bases fincadas nessa ideia de que a pessoa
é sagrada.

2. Historicamente, aponte alguns passos para esta dita sacralização.


A primeira declaração de direitos humanos, no final do século XVIII
(Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão), teria como base a tese de
Weber de que os direitos humanos constituem uma carismatização da razão,
colocando à prova a visão convencional das origens da declaração com
resultado exclusivo das ideias iluministas.

17
Também o processo de eliminação e marginalização da tortura na Europa
do século XVIII desponta como fator de influência na sacralização da ideia de
indivíduo humano.
O autor estabelece uma relação entre a importância das experiências de
violência para a difusão dos direitos humanos. O entusiasmo e a adesão das
pessoas em relação a valores se dão por uma característica de ‘sensibilização
afetiva’. O objeto de análise aqui é o movimento antiescravista como modelo de
mobilização moral. Não há como não perceber o caráter religioso do
movimento. Os movimentos abolicionistas da Grã-Bretanha e dos EUA foram
carregados principalmente por atores que finalmente queriam levar a sério
exigências morais que já estavam embutidas no cristianismo.

3. O que seria a genealogia afirmativa?


Parte-se da noção de elementos básicos da tradição cristã que estariam
diretamente relacionados com a sustentação dos direitos humanos. O primeiro
destes elementos seria a concepção de alma imortal de cada ser humano
como núcleo sagrado desta pessoa. O segundo elemento seria a concepção de
vida do indivíduo como dom, do qual resultam deveres que limitam o direito
de autodeterminação de nossa vida.
Assim como a história e afirmação dos valores cristãos está diretamente
relacionada como a formação dos direitos humanos no ocidente e que
representaram novas articulações e adaptações de fundamentos da teologia
cristã – outras tradições religiosas que possuem elementos de sacralização do
ser humano como base de suas crenças encontrariam, sob novas condições,
um elo entre a afirmação dos direitos humanos e a visão religiosa com relação
ao indivíduo.

4. Relacione sacralidade e dignidade humana em uma perspectiva


existencialista.
A sacralidade da pessoa expressa a sua separação das relações de
troca, separação que é garantida pelo Estado; sagrado = separado; a
definição de Kant de dignidade a contrapõe justamente àquilo que pode
ser trocado (o que tem valor, preço); a sacralidade da pessoa implica em sua
dignidade e em sua universalidade.
Mas, numa perspectiva existencialista, a dignidade humana decorre da
própria condição humana, a qual não é fixa, nem universal, mas
contextual; toda pessoa tem de ser, está condenada a existir e a ser livre, e
daí decorre sua dignidade perante qualquer outro ser; “basta vir ao mundo
para que a pessoa humana incorpore a sua dignidade”, a qual não é um dado,
mas é determinado pelo contexto e história da própria pessoa.
Numa perspectiva existencialista, “a dignidade humana está presente em
todos aqueles que simplesmente existem”; mas há aqueles que não têm uma
existência digna, uma existência autêntica; A autenticidade está relacionada
ao alcance do ser-para-si, aquele que constrói seu ser e sua essência na sua
história, por suas escolhas, em seu contexto, um ser que se torna algo diante
do outro; a inautenticidade está relacionada à limitação ao ser-em-si, um
ser estático, sem história, já-dado, pleno.
Cada homem é feito de outros homens e todos possuem o mesmo valor.
Processos de despersonalização continuam ocorrendo no contexto capitalista

18
atual; luta pela autodeterminação humana; luta contra as desigualdades de
riqueza e poder.

5. A partir do conceito de biopolítica, estabeleça uma relação entre vida


nua e vida sacra.
No debate atual sobre direitos fundamentais, faz-se antes de tudo
necessário tomar consciência da função histórico-política do trinômio:
nação/nacionalidade, soberania e poder jurídico sobre a vida. Quer dizer que,
ao lado da função emancipatória das declarações de direitos
fundamentais, seria também indispensável perceber que elas integram o
dispositivo de abandono da vida nua à violência dos mecanismos de
poder. Ora, é nesse sentido que a arqueologia das sociedades européias
modernas, configuradas como sociedades bio-políticas ao longo do século
XVIII e depois, fornece um instrumental teórico indispensável para as análises
de Agamben.
Como bio-poder, o Estado moderno inclui a vida biológica - tanto ao nível
individual dos corpos adestrados pelas disciplinas, como no registro genérico
das populações, cujos ciclos vitais de saúde e morbidez, natalidade e
mortalidade, reprodução, produtividade e improdutividade, devem ser
calculados em termos de previdência e assistência social. É desse modo que,
com a bio-política, a antiga soberania régia (que se encarnava no poder do
monarca de fazer morrer e deixar viver) se converte num poder de fazer viver e
deixar morrer.
Compreende-se a importância do racismo no exercício de um poder assim:
é a condição para que se possa exercer o direito de matar. Se o poder de
normalização quer exercer o velho direito soberano de matar, ele tem de
passar pelo racismo.
Empreende-se, no horizonte dessa crítica radical da teoria dos direitos
humanos, uma aproximação - que não parece desautorizada pelo texto do
próprio Agamben -, entre vida nua e vida sacra. E tal aproximação se deve
tanto à ausência de uma definição explícita (e de um uso conceitualmente
diferenciado) desse termo no Homo Sacer, como também na recusa, por parte
de Agamben, de explicitar os termos e os traços distintos de uma forma política
inteiramente emancipada do princípio jurídico da soberania. Para Giacoia, é a
sacralidade - comum ao homo sacer e ao caráter sagrado dos direitos
humanos fundamentais - que institui uma insidiosa cumplicidade entre a vida
nua e o poder (bio-político) do direito.
O termo latino sacer encerra a representação para nós mais precisa e
específica do 'sagrado'. É em latim que melhor se manifesta a divisão entre o
profano e o sagrado; é também em latim que se descobre o caráter ambíguo
do 'sagrado'.
Esse duplo valor é próprio de sacer; ele contribui para a diferenciação
entre sacer e sanctus, pois não afeta de maneira alguma o adjetivo aparentado
sanctus.
Além disso, é a relação estabelecida entre sacer e sacrificare que melhor
nos permite compreender o mecanismo do sagrado e a relação com o
sacrifício. O termo 'sacrifício', familiar a nós, associa uma concepção e uma
operação que parecem nada ter em comum. Por que 'sacrificar' quer de fato
dizer 'pôr à morte', se significa propriamente 'tornar-se sagrado'?

19
Seria ilustrativo contrapor a isso a instrutiva definição, segundo a qual
o homo sacer é o portador de uma mácula que o coloca fora do direito
divino e do direito humano, ele é insacrificável e sua morte não constitui
homicídio.
Homem sacro é, portanto, aquele que o povo julgou por um delito; e não é
lícito sacrificá-lo, mas quem o mata não será condenado por homicídio; na
verdade, na primeira lei tribunícia se adverte que 'se alguém matar aquele que
por plebiscito é sacro, não será considerado homicida'. Disso advém que um
homem malvado ou impuro costuma ser chamado sacro.
A instituição da sacratio, como princípio, de um caráter sagrado da vida,
todavia, seria de datação recente, embora se nos tenha tornado tão familiar
que nos faz esquecer do vínculo essencial entre sacralidade e sacrifício, entre
o sacer e o impunemente matável - estranha figura jurídico-política do arcaico
direito romano, a insinuar que a vida sacra é também aquela capturada sob
o bando/proscrição soberana, portanto matável sem que sua eliminação
constitua um homicídio, no sentido jurídico do termo.
E, com base nessa evocação, procuram-se conectar os elementos que
foram examinados até agora com a discussão atual a respeito dos direitos
humanos - precisamente nos termos propostos por Giorgio Agamben. Pois é
corrente o entendimento dos mesmos como direitos 'sagrados e inalienáveis'
do homem, o que lhes confere o status de princípios asseguradores dos
valores cardinais positivados nas declarações de direitos das constituições dos
estados modernos.
Evidentemente, não se trata, de modo algum, de questionar a importância
fundamental das declarações de direitos como garantia das liberdades
públicas; sua função histórica de emancipação e resistência ao arbítrio e à
tirania, seu papel decisivo na história do constitucionalismo moderno não pode
deixar de ser reconhecido, salvo por uma deficiência de lucidez analítica. A
intenção consiste apenas em indicar o caráter bifronte que também quanto a
eles se pode reconhecer, como em todo e qualquer acontecimento de efetiva
relevância histórica e política.
Tudo se passa, portanto, como se, "a partir de um certo ponto, todo evento
político decisivo tivesse sempre uma dupla face: os espaços, as liberdades e
os direitos que os indivíduos adquirem no seu conflito com os poderes centrais
simultaneamente preparam, a cada vez, uma tácita porém crescente
inscrição de suas vidas na ordem estatal, oferecendo assim uma nova e
mais temível instância ao poder soberano, do qual desejariam liberar-se.

Conceitos básicos:
- Homo sacer – conceito que era usado no direito romano para
caracterizar a pessoa legalmente excluída da proteção conferida pelo direito
aos cidadãos; o próprio direito regula a exclusão; isto nos leva a
compreender melhor o próprio direito como instrumento para criar a
exclusão, a exceção é jurídica.
- Vida nua – grosso modo, denominação de Walter Benjamin para a vida
despida da proteção política e jurídica da comunidade.
- Soberano – está fora da ordem jurídica, acima dela, é quem pode dizer
onde, quando e para quem será excluída a ordem jurídica e política.
- Caráter dúbio do Estado: o corpo é capturado pelas instituições
ocidentais da política e do direito – o corpo está tutelado pelo direito, é sacro

20
diante do Estado e ao mesmo tempo está sempre sob a ameaça soberana de
ser excepcionado; esta é a essência do Estado moderno, da política e do
direito; o Estado protege e ameaça ao mesmo tempo.
- Dificuldade de reconstrução dos direitos humanos se explicita com o
desvelamento dos limites destes direitos e do papel da biopolítica para o
domínio dos corpos.

PONTO 3
Teoria crítica dos Direitos Humanos. A denúncia da mistificação
ideológica dos direitos humanos abstratos. A dificuldade de reconstrução
dos direitos humanos na era da biopolítica: os limites da cidadania como
direito a ter direitos, estado de exceção e campo de concentração como
paradigmas políticos modernos.

1. O que é a “denúncia da mistificação ideológica dos direitos humanos”?


Segundo Oswaldo Giacoia Junior, é a crítica, anunciada por Marx, à
concepção “jusnaturalista dos direitos humanos como prerrogativas
inalienáveis, naturais e universais”, titularizadas pelo homem em razão de sua
humanidade, versão que, em verdade, é a mera perspectiva dos direitos
humanos formais como “expressão simbólica e jurídica do domínio econômico
e da hegemonia política da burguesia”.
Tal entendimento é uma mistificação ideológica da noção de direitos
humanos, na medida em que toma por “homem natural” o “homem burguês”,
o “indivíduo privado”, habitante típico da sociedade civil burguesa, em oposição
ao “cidadão”, categoria do universal humano e antítese do “homem livre”,
particular.
Assim, a organização da moderna sociedade civil, com a positivação dos
direitos humanos, encerra essa oposição, essa dialética, entre (i) “homem”
(homem real, membro da sociedade burguesa, em sua existência individual,
egoísta e imediata) e (ii) “cidadão” (homem verdadeiro, homem político,
abstrato, artificial, alegórico e moral).
[fonte: Oswaldo Giacoia Junior. Sobre direitos humanos na era da
biopolítica.]

2. Por que, na era da biopolítica, a cidadania funciona como um limite ao


direito a ter direitos?
Porque, na modernidade biopolítica na qual o direito e a política têm a vida
como campo de incidência, a pessoa humana, para ser cidadã (e ter direito a
ter direitos), passa a depender de um “ato de reconhecimento” pelo Estado,
que se dá através do ato de nascimento dentro do território da uma “Nação”.
Daí porque “refugiados” e “apátridas” seriam “homini sacri” modernos.
[fonte: Oswaldo Giacoia Junior. Sobre direitos humanos na era da
biopolítica.]

3. Por que estado de exceção e campos de concentração podem ser


vistos como paradigmas políticos modernos?
Porque, apesar do fim dos regimes formalmente totalitários, continua a
viger, como matriz oculta da política em que vivemos na moderna democracia
liberal-capitalista, um estado de exceção permanente, no qual direitos e
garantias fundamentais – notadamente de certos grupos vulneráveis de

21
excluídos (os “homini sacri”) – são sistematicamente violados, na forma de
legalidade, por atos e decretos dos poderes constituídos, em plena
normalidade institucional.
Por sua vez, o campo de concentração “é a estrutura em que o estado de
exceção é realizado normalmente, caracterizando-se por uma zona de
indistinção entre regra e exceção, lícito e ilícito, confundindo-se fato e direito”.
[fonte: Caio Jesus Granduque José. Espelho com critérios de correção
para a terceira prova escrita do VII Concurso.]

PONTO 4
Encantos e desencantos dos Direitos Humanos: entre dominação e
emancipação. Perspectivas pós-violatórias, estatais e monistas X pré-
violatórias, existenciais e pluralistas para a proteção dos Direitos
Humanos.
1. Discorra sobre o duplo efeito, encantador e de desencanto, dos
Direitos Humanos:
Como toda produção humana, deve-se partir da ideia de que Direitos
Humanos podem ser uma instância de luta libertadora por uma dignidade que
emancipa, como também pode ser um instrumento de dominação que legitima
distintas formas de exclusão e inferiorização humanas, e aí está o seu duplo
efeito, encantador e de desencanto.
No processo relacional entre as pessoas, a forma de se definir e se
comportar entre elas por meio de tramas sociais pode resumir-se através de
duas dinâmicas:
a) Relações ou tramas de dominação ou império, que
consistem em formas de tratar os outros como objetos, classificando-os
e hierarquizando-os a partir de significados de discriminação,
marginalização, exploração, exclusão, desprezo e rechaço; e
b) Tramas sociais de emancipação e libertação, com as quais
uns e outros tratam-se como sujeitos, de maneira horizontal, solidária,
de forma a articular reconhecimentos e acompanhamentos mútuos.
A libertação e a emancipação se desenvolvem e se atingem quando se luta
pela transformação e contra qualquer situação social, cultural, política,
ideológica, étnica, racial, sexual e econômica que provoca exclusão,
discriminação ou injustiça. Desta forma, os grupos afetados por essas
exclusões conquistam espaços de reconhecimento, autoestima, autonomia e
responsabilidade enquanto sujeitos.
Direitos Humanos entendidos como processos de abertura e consolidação
de espaços de luta pela dignidade humana fazem alusão a diversas
expressões de reivindicações políticas, sociais, econômicas, sexuais, culturais
etc, com o intuito de que os seres humanos sejam reconhecidos como sujeitos
diferenciados. Expressam formas de humanidade múltiplas e plurais,
individuais e coletivas, sempre em relação ao contexto em que cada indivíduo
ou cada coletivo esteja situado. Por isso, são veículos de expressão e de
produções representativas de dinâmicas emancipadoras e libertadoras. Mas
também podem ser manifestações de tendências e lógicas que limitam e
aniquilam humanidades. Aí está o sentido dúbio de encanto e de desencanto
dos Direitos Humanos.
A dimensão que desencanta pode aparecer no instante em que os Direitos
Humanos se fixam sobre discursos e teorias, instituições e sistemas estruturais
22
que sociocultural e sociomaterialmente não permitem que estes sejam factíveis
e nem possíveis, devido às assimetrias e hierarquias desiguais sobre as quais
se mantêm. A dimensão que desencanta aparece quando se reduz os Direitos
Humanos à sua dimensão jurídico-positiva, formal e procedimental, adotando-
se uma postura anestesiada, indolente e conformista sobre seus efeitos e
resultados.

2. Discorra sobre alguns limites que podem contribuir para a manutenção


do conhecido abismo que existe entre o que se diz e o que se faz, ou
entre a teoria e a prática dos Direitos Humanos:
Um primeiro problema que se observa é o fato de que o imaginário jurídico
se orienta, constantemente, pelo que Edgar Morin tem chamado de paradigma
da simplicidade, que dualiza, hierarquiza, amputa e reduz a realidade em geral.
Assim, da maneira como interpretamos o direito a partir do paradigma da
simplicidade, temos a tendência de separar e segmentar as diversas partes
que compõem o mundo jurídico e dividir sua complexa e plural realidade.
Assim, por exemplo, é marcante a ausência de diálogo entre os especialistas
em direitos humanos e os civilistas; ou entre o direito das universidades e o
mundo social em que ele se constrói.
Como consequência disso, reduzimos o direito ao “direito estatal” (cultura
monista-estatal), ignorando outras expressões jurídicas não estatais (pluralismo
jurídico). E reduzimos o direito à “norma”, herança do positivismo jurídico. O
resultado é a absolutização da lei e do Estado, bem como a burocratização de
sua estrutura, ignorando as conexões entre o jurídico e o ético, entre o direito e
o político. Outra consequência dessa simplificação é a separação acrítica entre
o público e o privado, e entre o mundo jurídico e o contexto sociocultural em
que ele se encontra e que o condiciona.
Tudo isso, enfim, contribui para a separação entre a teoria e a prática dos
direitos humanos, de tal modo que esta se volte apenas para a dimensão pós-
violadora dos Direitos Humanos - pela qual estes se reivindicam apenas pela
via judicial e quando violados.

3. Apresente algumas propostas para o enfrentamento do conhecido


abismo que existe entre o que se diz e o que se faz, ou entre a teoria e a
prática dos Direitos Humanos:
1) Assumir um pensamento complexo, relacional e interdisciplinar*
2) Adotar uma racionalidade e uma ética da vida e do vivo**
3) Incorporar o paradigma pluralista do direito***
*Frente a um pensamento simples e estreito, que reduz e abstrai a
diversidade do real, há que se cultivar um pensamento que saiba distinguir – e
não separar – os elementos que constituem a realidade jurídica. Atualmente
vivemos processos sociopolíticos e socioeconômicos de transformação e de
reestruturação do capitalismo dentro de um contexto de globalização do
mundo. Essa realidade afeta o papel, a funcionalidade e o alcance do direito
positivo, tanto em seu âmbito interno, quanto em seu âmbito externo (relação
com outras manifestações de poder). Por causa disso, o paradigma da
simplicidade e sua consequência técnico-formal-estatal se mostram
insuficientes.
**Devemos incorporar uma racionalidade e uma ética da vida e do vivo,
uma ética que saiba resistir de forma sensível e comprometida com o

23
sofrimento humano. Todo ser humano deve viver sem ser sacrificado por um
valor, um ideal, uma instituição, enfim, uma produção ou criação humana.
***As normas tradicionais assentadas em pretensões de homogeneidade,
promulgadas com base nos princípios da impessoalidade, generalidade e
abstração, organizadas a partir de um sistema unitário, lógico, fechado e
hierarquizado, coerente, sem lacunas e antinomias, são excessivamente
simples para dar conta da pluralidade das situações sociais, econômicas e
culturais cada vez mais diferenciadas. A complexidade socioeconômica e a
crescente desigualdade dos conflitos mostram a perdida capacidade de regular
e disciplinar nossas sociedades, e, assim, o surgimento de outras expressões
de pluralidade jurídica rompem o monopólio estatal. A proposta de Antonio
Carlos Wolkmer parte de uma noção de pluralismo jurídico capaz de
reconhecer e legitimar normas extras e infraestatais, engendradas por
carências e necessidades provenientes de novos atores sociais, e capaz de
captar as representações legais de sociedades emergentes marcadas por
estruturas de igualdades precárias e pulverizadas por espaços de conflito
permanente.
Assim, devemos assimilar e incorporar o paradigma pluralista de direito por
duas razões fundamentais: a) porque permite uma melhor interpretação da
complexidade dos atuais acontecimentos que o contexto da globalização está
provocando sobre o mundo jurídico; e b) porque em sua versão emancipadora,
o direito tanto estatal quanto não estatal pode ser instrumento a serviço dos
coletivos mais desprotegidos e mais vulneráveis. Em outras palavras, existem
mecanismos multiescalares de garantias de direitos humanos de caráter
jurídico estatal, jurídico não-estatal e não jurídico (socioeconômico, cultural,
sexual, político...) – direitos humanos são para todo momento e em todo lugar.

4. Diferencie as perspectivas pós-violatórias e pré-violatórias para a


proteção dos Direitos Humanos:
Nossa cultura de direitos humanos é extremamente limitada porque se
concentra na sua dimensão pós-violada, ignorando a dimensão preventiva e
pré-violadora, ou seja, aquela que existe antes de ser violada. Reduzimos,
assim, os direitos humanos a teorias filosóficas e a normas, instituições
jurídicas e eficácia jurídica do Estado.
Devemos apostar em uma noção de direitos humanos entendidos como
processos de abertura e consolidação de espaços de luta por diversas formas
de entender a dignidade humana, e como forma de acessar a bens que
satisfazem necessidades humanas e que, em geral, são condicionadas por
contextos materiais hegemônicos (antes da violação).

5. Discorra sobre os encantos e desencantos dos Direitos Humanos com


ênfase na mistificação ideológica dos direitos humanos abstratos
(questão 2ª fase):
O processo de reconstrução dos direitos humanos no pós-guerra a partir da
metade do século XX levou Norberto Bobbio a designar nossos tempos de “a
era dos direitos”. Com efeito, a profusão de tratados e convenções
internacionais de direitos humanos possui inegável caráter emancipatório e
libertário, mas a síndrome de inefetividade que os acometem permite-se pensar
que se vive na “era do desrespeito dos direitos”, eis que eles podem funcionar
como artifícios ideológicos para manutenção do status quo, ou seja, o sistema-

24
mundo capitalista globalizado, legitimando relações de poder de opressão e
dominação de pessoas nos diversos espaço-tempo sociais, daí o duplo efeito
de encanto e desencanto.
Nessa esteira, compreende-se o diagnóstico de Carlos Drummond de
Andrade, eis que da Lua, ou seja, tomados em perspectiva a-histórica, os
direitos humanos não merecem reparos, vale dizer, são encantadores, mas
causam repentino desencanto quando examinados na realidade sócio-histórica,
aquela a que José Saramago se refere, cujos sistemas político e econômico de
organização social são incompatíveis com sua efetivação.
O grande precursor dessa denúncia da mistificação ideológica dos direitos
humanos abstratos foi Karl Marx, eis que, para o autor de A questão judaica,
“os direitos humanos formais seriam a expressão simbólica e jurídica do
domínio econômico da burguesia, de tal sorte que o reconhecimento da livre
personalidade e de direitos subjetivos, permitindo-se a celebração de contrato
sobre a sua própria força de trabalho, seriam as condições essenciais para a
criação da mais valia e para a valorização do capital.

PONTO 5
Efeito encantatório e usos políticos dos Direitos Humanos: intervenções
humanitárias e imperialismo dos Direitos Humanos (universalismo,
relativismo e hermenêutica diatópica).

1. Discorra sobre a relação entre intervenções humanitárias e o


imperialismo dos Direitos Humanos1:
Segundo Hobsbawm, mesmo com o retumbante fracasso da suposta
intervenção humanitária no Iraque, subsiste “uma proposição genérica da
legitimidade e até da eventual necessidade de intervenções armadas
internacionais para preservar ou impor os direitos humanos em uma era de
crescente barbárie, violência e desordem” (HOBSBAWM, 2007, p. 14-15).
Complementa o autor que tal proposição implica, para alguns, “a desejabilidade
de uma hegemonia imperial mundial especificamente exercida pela única
potência capaz de estabelecê-la, os Estados Unidos”, o que pode ser chamado
de imperialismo dos direitos humanos, ou seja, que intervenções armadas
internacionais possuem legitimidade para preservar ou impor direitos humanos
e, para isso, é necessário uma potência bélica.
Umas das premissas subjacentes ao imperialismo dos direitos humanos é
de que os regimes tiranos seriam imunes à mudança interna, de modo que
apenas a força armada externa poderia conduzi-los a adotar os valores e
instituições políticas ocidentais (HOBSBAWM, 2007, p. 18-19). Outra premissa
equivocada é que tais instituições ocidentais podem ter êxito em qualquer lugar
e, assim, cuidar eficazmente dos problemas transnacionais, trazendo a paz ao
invés de instaurar a desordem (HOBSBAWM, 2007, p. 14-15).
Ambas as premissas das intervenções humanitárias imperialistas “se
fundamentam na crença de que atos de força podem produzir
instantaneamente grandes transformações culturais, o que não é verdade, pois
a única possibilidade de sucesso de uma tentativa de difusão de valores e
instituições através de uma força estranha é quando já se encontram presentes
no local as condições que tornem tais valores e instituições adaptáveis e sua
1
Questão e resposta formulada com base no prefácio do livro “Globalização, Democracia e
Terrorismo” de Eric Hobsbawn, publicado pela Companhia das Letras no ano de 2007.

25
introdução, aceitável, ou seja, quando não seria mais necessário o uso da força
ou a força seria utilizada realmente como ajuda a uma resistência interna.
A impossibilidade de sucesso da difusão dos valores ocidentais, como
democracia e direitos humanos, pelo uso da força reside no fato de tais valores
não são como produtos tecnológicos de importação, cujos benefícios são
óbvios desde o início e que são adotados de uma mesma maneira por todos os
que têm condições de usá-los, como uma pacífica bicicleta ou um mortífero AK
47, ou serviços técnicos, como os aeroportos. Se fossem, haveria maior
similaridade política entre os numerosos Estados da Europa, da Ásia e da
África, todos vivendo (teoricamente) sob a égide de constituições democráticas
similares (HOBSBAWM, 2007, p. 18-19). Nas palavras do autor, “a história tem
muito poucos atalhos”, ou seja, não se parte da ditadura para democracia ou
da barbárie para a civilização pela força de quem em realidade não tem como
maior interesse a realização de tais passagens.

2. De acordo com a teoria crítica dos direitos humanos, a intervenção


humanitária de caráter bélico é um instrumento apto a defesa dos direitos
humanos?
A resposta é negativa com base em um artigo de David Sanchez Rubio
(20102), no qual este autor procura resumir uma pesquisa mais ampla sobre
intervenção humanitária, cujo principal propósito foi “reafirmar o rechaço ao uso
da força armada como instrumento de proteção dos direitos humanos,
principalmente em sua versão mais cruel: a guerra” (RUBIO, 2010, p. 209).
Inclusive, o autor afirma que a partir da pesquisa realizada chegou-se a
conclusão que em nenhum momento na história da humanidade se realizou um
ato de suposta intervenção humanitária com o único, o exclusivo ou mesmo
com o principal propósito de evitar uma situação de violação massiva e
sistemática dos direitos humanos, entendida intervenção humanitária como
utilização da força armada para proteger as vítimas. Isto porque, segundo o
autor, em nenhum momento as pessoas, os sujeitos concretos e corporais,
foram/são consideradas como os principais destinatários desse tipo de
atuação,. Ao contrário, se tem analisado e priorizado outros tipos de razões ou
circunstâncias, tais como: interesses econômicos, questões de segurança
internacional, a proteção a interesses geoestratégicos e geopolíticos, a
preocupação seletiva com seus próprios nacionais ou por determinados
coletivos com maior afinidade ideológica, motivos religiosos, etc. (RUBIO,
2010, p. 227).
Nesse sentido, assevera que, se nas situações do normal funcionamento
do sistema socioeconômico global não se reconhecem os direitos humanos,
nem se valoriza a vida de todos os sujeitos humanos como objetivo prioritário,
a legitimidade para a intervenção em situações ditas de anormalidade, ou seja,
a “salvação” pontual e ocasional de vidas que se alega em casos de
intervenção, possui todas as tintas de falsidade, hipocrisia e cinismo (RUBIO,
2010, p. 223 – 224).
O autor relaciona tais questões com o problema de responsabilidade e da
legitimidade de quem atua a favor dos direitos humanos sistemática e
massivamente violados, tendo em vista que aqueles que possuem maior

2
Artigo denominado “Reflexiones e (im)precisiones em torno a la intervención humanitaria y
los derechos humanos” publicado no livro “Direitos Humanos e Globalização: fundamentos
e possibilidades desde teoria crítica. EDIPUCRS. 2010.

26
capacidade de intervir são as grandes potências, os quais, além de contribuir
para manutenção da exclusão cotidiana, também fecham as portas para o
reconhecimento dos direitos humanos humanos com ações muito diretas:
impedindo a imigração, não reconhecendo os direitos econômicos, sociais e
culturais, mantendo a dívida externa, fornecendo armas para países em guerra
civil, etc.
Contudo, importante sublinhar a ressalva do autor no sentido que existem
situações de fato nas quais a ação armada e violenta ocorre e tem que ser
utilizada transitoriamente, mas se deve retirar qualquer roupagem ideológica
que legitima o uso da força e que a batize ou a vista sob o manto de ação
humanitária (RUBIO, 2010, p. 225).
Para concluir, chama atenção para o fato de que há indícios muito claros
para suspeitar e questionar, em situações reais, sobre as verdadeiras intenções
de quem, em nome de direitos que no cotidiano não reconhecem a maioria da
população do planeta, usam a força militar. Quando o ser humano não conta,
estranha maneira de recuperá-lo a base de bombas e ou armas humanitárias
(RUBIO, 2010, p. 226).

3. Discorra sobre o tema “relativismo e universalismo dos direitos


humanos”, abordando necessariamente os seguintes tópicos: a)
multiculturalismo dos direitos humanos; b) hermenêutica diatópica; c)
universalismo de confluência3.
a) Multiculturalismo dos direitos humanos: Segundo Boaventura de Souza
Santos, os ideais da corrente que defende o universalismo dos direitos
humanos implicam uma imposição moral universal; isto é, eles não poderiam
ser postos em prática no cenário mundial sem a imposição de uma cultura
hegemônica às minorias, o que caracterizaria uma espécie de “canibalização
cultural”. Em resposta a esse problema, Santos defende uma concepção
multicultural dos direitos humanos, pautada no diálogo entre as culturas com o
objetivo de alcançar uma universalidade construída por diversas concepções
culturais, sem, no entanto, a imposição de valores ocidentais às culturas
orientais e vice-versa, atingindo com isso um ideal cosmopolita.
“Para poderem operar como forma de cosmopolitismo, como globalização
de-baixo-para-cima ou contra-hegemônica, os direitos humanos tem de ser
reconceptualizados como multiculturais. O multiculturalismo, tal como eu o
entendo, é pré-condição de uma relação equilibrada e mutuamente
potencializadora entre a competência global e a legitimidade local, que
constituem os dois atributos de uma política contra-hegemônica de direitos
humanos no nosso tempo. É sabido que os direitos humanos não são
universais na sua aplicação. Atualmente, são consensualmente identificados
quatro regimes internacionais de aplicação de direitos humanos: o europeu, o
inter-americano, o africano e o asiático. Mas serão os direitos humanos
universais enquanto artefato cultural, um tipo de invariante cultural, parte
significativa de uma cultura global? Todas as culturas tendem a considerar os
seus valores máximos como os mais abrangentes, mas apenas a cultura
ocidental tende a formulá-los como universal. Por isso, a questão da
universalidade dos direitos humanos trai a universalidade do que questiona
pelo modo como o questiona. Por outras palavras, a questão da universalidade
é uma questão particular, uma questão específica da cultura ocidental”
3
Questão elaborada com base na 2ª rodada do curso cei para 2ª fase da DPE/SP

27
(SANTOS, Boaventura de Souza. Por uma concepção multicultural de direitos
humanos. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 48, jun 1997, pp. 18-19; grifo
nosso).
b) Hermenêutica diatópica: Na linha do item anterior, e como forma de
proporcionar um diálogo intercultural dos direitos humanos, Boaventura de
Souza Santos propõe o que denomina hermenêutica diatópica, que, em breve
síntese, consiste na compreensão mútua dos distintos universos de sentidos
das culturas envolvidas no diálogo, para que se consiga alcançar uma
universalidade dos direitos humanos construída por diversas concepções
culturais. Sobre a hermenêutica diatópica proposta por Boaventura de Souza
Santos como forma de proporcionar um diálogo intercultural dos direitos
humanos, é a lição de Paulo Henrique Gonçalves Portela:
“Por fim, Boaventura de Souza Santos vem defendendo uma proposta de
superação da polêmica entre o universalismo e o relativismo, que é a chamada
“hermenêutica diatópica”, que se fundamenta na noção de que os referenciais
de uma cultura ‘são tão incompletos quanto a própria cultura a que pertencem’,
ou seja, no reconhecimento das limitações dos valores dos universos culturais.
O objetivo dessa hermenêutica é ampliar ao máximo a consciência de
incompletude mútua através de um diálogo que se desenrola, por assim dizer,
com um pé numa cultura e outro, noutra, num verdadeiro diálogo intercultural. A
hermenêutica diatópica tem dois imperativos: o primeiro é o de que das
‘diferentes visões de uma dada cultura, deve ser escolhida aquela que
representa o círculo mais amplo de reciprocidade dentro dessa cultura, a
versão que vai mais longe no reconhecimento do outro’; o segundo é o de que
‘as pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença
os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os
descaracteriza’. Com isso, as possibilidades e exigências das normas de
direitos humanos poderão ser progressivamente absorvidas e apropriadas
pelas culturas locais, sem que isso signifique aquilo que Boaventura de Souza
Santos chama de ‘canibalização cultural’” (PORTELA, Paulo Henrique
Gonçalves. Direito Internacional Público e Privado. 7. ed. Bahia: Juspodivm,
2015, pp. 826-827; grifo nosso).
c) Universalismo de confluência: O denominado “universalismo de
confluência”, também chamado de “universalismo de chegada”, é um conceito
elaborado pelo filósofo espanhol Joaquim Herrera Flores ao estudar o papel
dos direitos humanos como forma de unir os indivíduos em prol de embates
pela dignidade. Para Herrera Flores, a concepção tradicional do universalismo
seria chamada de “universalismo de partida”, já que os defensores desta
concepção de universalismo partem de um conjunto de direitos
preestabelecidos pela cultura ocidental e desconsideram questões importantes
como a diversidade cultural, a distribuição do poder, as questões de gênero e a
assimetria econômica entre os indivíduos, ignorando o contexto real dos fatos.
Segundo o autor, o universalismo tradicional (ou “de partida”) é regido pelos
ideais capitalistas, através de um fenômeno chamado de “racionalidade da mão
invisível”, que é nada mais, nada menos do que um paralelo realizado por
Herrera Flores com a famosa teoria da mão invisível do mercado de Adam
Smith, aplicada no período do Estado Liberal de Direito. Ainda para o autor
espanhol, a concepção culturalista pura seria insuficiente para uma
compreensão dos direitos humanos, já que, na maioria das vezes, os membros
de determinada cultura tendem a ignorar e não valorar práticas culturais não

28
coincidentes com sua cultura, caracterizando um verdadeiro “universalismo de
retas paralelas”. Nessa linha, Joaquim Herrera Flores propõe uma visão mais
rebuscada dos direitos humanos, pautada em uma “racionalidade de
resistência”. Para isso, o autor aduz que os indivíduos devem possuir uma
concepção prévia de que são dotados de determinados direitos e, além disso,
estão por vezes em uma situação de opressão (ante a imposição de práticas
hegemônicas). Nessa linha de raciocínio, o autor propõe que o indivíduo se
situe na periferia, afinal, segundo o filósofo espanhol, a periferia seria o lugar
ideal para a compreensão dos valores impostos de forma hegemônica pelo
“universalismo de partida”. Desse modo, e com forte semelhança com a
concepção multicultural dos direitos humanos proposta por Boaventura de
Souza Santos, Joaquim Herrera Flores propõe o denominado “universalismo de
chegada” ou de “confluência”, segundo o qual os indivíduos buscam chegar até
uma concepção universalista dos direitos humanos através da convivência e de
diálogos interculturais, proporcionando cruzamentos e misturas entre os
indivíduos sem a pretensão de excluir nenhum ser humano na luta por sua
dignidade.
Sobre o universalismo de confluência, é a lição de Joaquim Herrera Flores:
“Por isso, nossa visão complexa dos direitos aposta por uma racionalidade de
resistência. Uma racionalidade que não nega que é possível chegar a uma
síntese universal das diferentes opções relativas aos direitos. E tampouco
descarta a virtualidade das lutas pelo reconhecimento das diferenças étnicas
ou de gênero. O que negamos é considerar o universal como um ponto de
partida ou um campo de desencontros. Ao universal há de se chegar –
universalismo de chegada ou de confluência – depois (não antes) de um
processo conflitivo, discursivo de diálogo ou de confrontação no qual cheguem
a romper-se os prejuízos e as linhas paralelas. Falamos do entrecruzamento, e
não de uma mera superposição de propostas. O universalismo abstrato
mantém uma concepção unívoca da história que se apresenta como o padrão
ouro do ético e do político”. (FLORES, Joaquim Herrera. Direitos Humanos,
Interculturalidade e Racionalidade de Resistência. Revista da UFSC. V. 23, N.
44, 2002, p. 21; grifo nosso).

4. Para Boaventura de Sousa Santos, qual o significado do debate entre


universalismo e relativismo dos direitos humanos na atualidade?
De acordo com o autor, tal debate deve ser superado, pois intrinsecamente
falso e prejudicial para uma concepção emancipatória dos direitos humanos.
Afirma o autor que todas as culturas são relativas, mas o relativismo cultural,
como posição filosófica, é incorreto. Por outro lado, todas as culturas aspiram a
preocupações e valores válidos independente do contexto enunciado, mas o
universalismo cultural como posição filosófica é incorreto. (“Direitos Humanos:
o desafio da interculturalidade” in Revista Direitos Humanos)

PONTO 6
As tensões da Modernidade ocidental e as tensões dos Direitos
Humanos: da colonialidade à descolonialidade. Os Direitos Humanos na
zona de contato entre globalizações rivais. Os Direitos Humanos como
bandeiras de lutas dos movimentos sociais.
1. Conceitue colonialidade e descolonialidade e relacione ambos os
conceitos com o conceito de modernidade ocidental:
29
A noção de colonialidade é extraída do pensamento de Aníbal Quijano y
Walter Mignolo. De acordo com Quijano, a colonialidade enquanto padrão de
poder se estabelece sob a ideia de raça e a articulação de todas as formas de
trabalho em torno do capital.
Já para Boaventura de Sousa Santos a colonialidade é compreendida como
o mecanismo mediante o qual um grupo humano e sua cultura domina a outro
e retira dele todas suas potencialidades. É um exercício de poder que opera
mediante uma diversidade de mecanismos que podem ser agrupados como 1)
mecanismo de diferenciação – estabelecimento de dualismos que classificam
as formas de conhecer o mundo e distingue entre o “eu” e o “outro”; 2)
mecanismos de hierarquização, que implicam na valorização positiva do “eu”
sobre a negativa do “outro”, que deve ser eliminado, invisibilizado e; 3)
mecanismo de dominação, que permitem o poder sobre os “outros” de maneira
efetiva, mediante o disciplinamento e o controle.
Em suma, a colonialidade nada mais é que uma constatação simples: a de
que as relações de colonialidade nas esferas econômica e política não
findaram com o fim do período colonial.
A modernidade está intrinsecamente associada à experiência colonial. Não
poderia haver uma economia-mundo capitalista sem as Américas, conforme
explica Enrique Dussel, autor da filosofia da libertação:
1. A civilização moderna autodescreve-se como mais desenvolvida e
superior (o que significa sustentar inconscientemente uma posição
eurocêntrica). 2. A superioridade obriga a desenvolver os mais primitivos,
bárbaros, rudes, como exigência moral. 3. O caminho de tal processo educativo
de desenvolvimento deve ser aquele seguido pela Europa (é, de fato, um
desenvolvimento unilinear e à europeia o que determina, novamente de modo
inconsciente, a "falácia desenvolvimentista"). 4. Como o bárbaro se opõe ao
processo civilizador, a práxis moderna deve exercer em último caso a violência,
se necessário for, para destruir os obstáculos dessa modernização (a guerra
justa colonial). 5. Esta dominação produz vítimas (de muitas e variadas
maneiras), violência que é interpretada como um ato inevitável, e com o sentido
quase-ritual de sacrifício; o herói civilizador reveste a suas próprias vítimas da
condição de serem holocaustos de um sacrifício salvador (o índio colonizado, o
escravo africano, a mulher, a destruição ecológica, etecetera). 6. Para o
moderno, o bárbaro tem uma "culpa" (por opor-se ao processo civilizador) que
permite à "Modernidade" apresentar-se não apenas como inocente mas como
"emancipadora" dessa "culpa" de suas próprias vítimas. 7. Por último, e pelo
caráter "civilizatório" da "Modernidade", interpretam-se como inevitáveis os
sofrimentos ou sacrifícios (os custos) da "modernização" dos outros povos
"atrasados" (imaturos), das outras raças escravizáveis, do outro sexo por ser
frágil, etecetera (Dussel, 2000, p. 49).
O examinador denuncia o “Mito da Modernidade”, anunciado por Dussel,
que desconstrói a ideia de Modernidade como um fenômeno exclusivamente
europeu e com viés apenas emancipatório (de liberdade, igualdade,
fraternidade) ao demonstrar que a Modernidade nasce em 1492, quando a
Europa pôde se confrontar com seu “outro” (a América), vencê-lo e violentá-lo,
de maneira que se trata de um fato europeu em relação dialética e dominadora
com o não-europeu.
A partir dessa crítica contundente à relação entre modernidade e
colonialidade se dá o "Giro decolonial", que significa o movimento de

30
resistência teórico e prático, político e epistemológico, à lógica da
modernidade/colonialidade. A decolonialidade aparece, portanto, como o
terceiro elemento da modernidade/colonialidade. Para Mignolo, "a
conceitualização mesma da colonialidade como constitutiva da modernidade é
já o pensamento de-colonial em marcha" .
O projeto des-colonial difere também do projeto pós-colonial, pois a teoria
pós-colonial ou os estudos pós-coloniais estão entre a teoria crítica da Europa
(Foucault, Lacan y Derrida), sobre cujo pensamento se construiu a teoria pós-
colonial e/ou estudos pós-coloniais, e as experiências da elite intelectual nas
ex-colônias inglesas na Ásia e África do Norte (Mignolo, 2010, p. 19).
Por outro lado, o processo de decolonização não deve ser confundido com
a rejeição da criação humana realizada pelo Norte global e associado com
aquilo que seria genuinamente criado no Sul, no que pese práticas,
experiências, pensamentos, conceitos e teorias. Ele pode ser lido como
contraponto e resposta à tendência histórica da divisão de trabalho no âmbito
das ciências sociais (Alatas, 2003), na qual o Sul Global fornece experiências,
enquanto o Norte Global as teoriza e as aplica (Connell, 2012). Atualmente,
diversos autores e autoras, situados tanto nos centros quanto nas periferias da
produção da geopolítica do conhecimento, questionam o universalismo
etnocêntrico, o eurocentrismo teórico, o nacionalismo metodológico, o
positivismo epistemológico e o neoliberalismo científico contidos no mainstream
das ciências sociais. Essa busca tem informado um conjunto de elaborações
denominadas Teorias e Epistemologias do Sul.
O papel e a importância da teoria repousam não somente na sua
capacidade explicativa mas também no seu potencial normativo. Se toda teoria
serve para algo ou para alguém, é razoável partir do princípio de que ela
reproduz relações de colonialidade do próprio poder. Historicamente, a teoria e
a filosofia política foram predominantemente pensadas no Norte e para o Norte.
Por um lado, ela serviu como pilar fundamental para a arquitetura da
exploração, dominação e colonização dos povos não situados no Ocidente
exemplar. Por outro, o Ocidente foi capaz de reagir desde dentro, improvisando
teorias outras, críticas e contra-hegemônicas. Essa marginalidade teórica
dialoga com as versões periféricas e subalternas produzidas fora do Norte.
Dessa perspectiva, decolonizar a teoria, em especial a teoria política, é um dos
passos para decolonização do próprio poder.

2. Quais as tensões da modernidade ocidental e suas relações com os


direitos humanos?
De acordo com Boaventura de Sousa Santos, são três as tensões dialéticas
que informam a modernidade ocidental. A primeira ocorre entre regulação
social e emancipação social. A segunda ocorre entre o Estado e a sociedade
civil. A terceira ocorre entre o Estado Nação e o que designamos por
globalização.
A primeira tensão dialética entre regulação social – simbolizada pela crise
do Estado intervencionista e do Estado-providência – e emancipação social –
simbolizada pela crise da revolução social e do Socialismo como transformação
radical – deixou de ser, neste início de século, tensão criativa. As crises de
regulação e emancipação sociais são simultâneas e alimentam-se uma da
outra. A política de Direitos Humanos, que pode ser simultaneamente uma

31
política regulatória e uma política emancipatória, está armadilhada nessa dupla
crise, ao mesmo tempo em que é sinal do desejo de a ultrapassar.
A segunda tensão dialética que ocorre entre o Estado e a sociedade civil,
apesar de considerado o dualismo fundador da modernidade ocidental, aponta
como problemáticas e contraditórias a distinção e a relação entre ambos. Nas
últimas décadas, tornou-se mais claro que a distinção entre o Estado e a
sociedade civil, longe de ser um pressuposto da luta política moderna, é o
resultado dela. A tensão deixa, assim, de ser entre Estado e sociedade civil
para ser entre interesses e grupos sociais que se reproduzem sob a forma de
Estado e interesses e grupos sociais que se reproduzem melhor sob a forma
de sociedade civil, tornando o âmbito efetivo dos Direitos Humanos
inerentemente problemático. Historicamente, nos países do Atlântico Norte, a
primeira geração dos Direitos Humanos, dos direitos civis e políticos, foi
concebida como luta da sociedade civil contra o Estado, considerado principal
violador potencial dos Direitos Humanos. A segunda e terceira gerações, dos
direitos econômicos, sociais e culturais e da qualidade de vida foram
concebidas como atuações do Estado, considerado principal garantidor dos
Direitos Humanos.
Por fim, a terceira tensão ocorre entre o Estado Nação e o que designamos
por globalização. Hoje, a erosão seletiva do Estado Nação, imputável à
intensificação da globalização, coloca a questão de saber se, quer a regulação
social, quer a emancipação social, deverão ser deslocadas para o nível global.
É nesse sentido que se começa a falar em sociedade civil global, governança
global, equidade global e cidadania pós-nacional. A efetividade dos Direitos
Humanos tem sido conquistada em processos políticos de âmbito nacional, e
por isso a fragilização do Estado Nação pode trazer consigo a fragilização dos
Direitos Humanos. Por outro lado, os Direitos Humanos aspiram hoje a um
reconhecimento mundial e podem mesmo ser considerados como um dos
pilares fundamentais de uma emergente política pós-nacional. A reemergência
dos Direitos Humanos é hoje entendida como sinal do regresso do cultural e
até mesmo do religioso. Ora, falar de cultura e de religião é falar de diferença,
de fronteiras, de particularismos.
Mais tarde, Boaventura verifica, conforme demonstrado em artigo do
examinador, que a simbiose entre capitalismo e colonialismo, constituidora da
própria Modernidade, torna inapropriada, aliás, a aplicação da dicotomia
regulação/emancipação para os territórios coloniais, os quais foram regidos por
outra tensão, baseada na dicotomia apropriação/violência, que lançou mão do
direito, para além da cruz e da espada, para a missão “civilizadora”
responsável por genocídios, etnocídios e epistemicídios em nosso território. (o
examinador cita o filósofo Enrique Dussel, que sustenta que o primeiro
‘holocausto’ da Modernidade foi contra os índios e o segundo ‘holocausto’
contra os negros – o terceiro, foi o perpetrado pelos nazistas contra os judeus).
Enquanto a lógica da regulação/emancipação é impensável sem a distinção
matricial entre o direito das pessoas e o direito das coisas, a lógica da
apropriação/violência reconhece apenas o direito das coisas, sejam elas
humanas ou não.
A lógica da apropriação/violência passou por uma série de deslocamentos e
desvios, perdurando, ainda hoje, de maneira mais sofisticada e mistificada, nas
práticas dos juristas e agentes estatais em pleno regime político republicano e
democrático. Isso porque, o fim do colonialismo enquanto relação política

32
legitimadora de assimetrias entre o Norte e o Sul não significou o fim do
colonialismo enquanto relação social, mentalidade e forma de sociabilidade
autoritária e discriminatória, que se exerce pela “colonialidade do poder”, a
qual, aliás, é fundamental para a preservação do sistema-mundo capitalista, na
medida em que a acumulação de capital sempre esteve enredada com
ideologias racistas, homofóbicas e sexistas.

3. Qual a relação entre positivismo e modernidade?


De acordo com o examinador, no artigo publicado na revista “Temas
Aprofundados da DP”, o positivismo jurídico é um produto tipicamente
moderno, com pretensão de explicação universal, totalizante e absoluta do
fenômeno jurídico, valendo-se, para tanto, de cortes epistemológicos
simplificadores da complexidade do fenômeno, da metodologia lógico-formal,
fundada na filosofia idealista e analítica, que acaba por descarnar o
pensamento, distanciar a reflexão das corporalidades, cindir o pensar do sentir,
a lógica da emoção, o mundo do ser em que se tramam relações de poder de
dominação de classe e de normalização disciplinar, que consolida a opressão e
a discriminação de gênero, raça, etnia, etc, do mundo do dever ser, revelando-
se pois, incapaz de apreender a quintessência do direito, que se encontra no
coração de seu eterno devir.
Assim, tendo como horizonte a descolonização da justiça, se a DP não
ousar transcender os paradigmas do positivismo jurídico, ainda hegemônicos
na praxe forense e, sobretudo, no imaginário dos juristas, a despeito do
anúncio equivocado de sua prescrição no campo da teoria e filosofia do direito
contemporâneas (o autor cita Antônio Alberto Machado, para dizer que apesar
de muitos darem o positivismo jurídico como superado, ele permanece, pois
seus paradigmas permanecem). Deste modo, para superar o positivismo, será
necessário superar seus 4 elementos paradigmáticos: a) concepção do direito
como pura lei ou norma; b) método lógico-formal; c) ideologia política exclusiva
do liberalismo; e d) matriz filosófica racional-analítica.

4. Boaventura de Sousa Santos trabalha com o conceito que não há uma


globalização, ou melhor, que não há um único sentido para o que se
entende por globalização, existindo, inclusive, globalizações rivais, de
perspectivas opostas. Assim, caracterize as diversas formas de
globalização e identifique o papel dos direitos humanos com relação as
globalizações rivais.
O autor citado afirma que muitas definições de globalização centram-se na
economia e que procurou privilegiar uma definição mais sensível às dimensões
sociais, políticas e culturais.
Segundo ele, não existe estritamente uma entidade única chamada
globalização, mas, em vez disso, globalizações, termo que, a rigor, só deveria
ser usado no plural e que, como feixes de relações sociais, envolvem conflitos,
vencedores e vencidos. Frequentemente, o discurso sobre globalização é a
história dos vencedores. Frente a isso, Boaventura propõe a seguinte definição:
a globalização é o processo pelo qual determinada condição ou entidade local
estende a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade
de designar como local outra condição social ou entidade rival. Aquilo que
chamamos globalização é sempre a globalização bem-sucedida de
determinado localismo.

33
Com base nessa afirmativa, o autor distingue a globalização em quatro
modos de produção, que dão origem a quatro formas distintas de globalização:
1) localismo globalizado: no processo pelo qual determinado fenômeno
local é globalizado com sucesso. Ex: a atividade mundial das multinacionais, a
transformação da língua inglesa em língua franca, a globalização do fast food
americano ou da sua música popular, ou seja a adoção mundial das leis de
propriedade intelectual ou de telecomunicações dos EUA.
2) globalismo localizado: impacto específico de práticas e imperativos
transnacionais nas condições locais. Ex: desflorestamento e destruição maciça
dos recursos naturais para pagamento da dívida externa; tesouros históricos,
lugares ou cerimônias religiosos, artesanato e vida selvagem postos à
disposição da indústria global do turismo; “compra” pelos países do Terceiro
Mundo de lixos tóxicos produzidos nos países capitalistas centrais para gerar
divisas externas; conversão da agricultura de subsistência em agricultura para
exportação como parte do “ajustamento estrutural”; alterações legislativas e
políticas impostas pelos países centrais ou pelas agências multilaterais que
eles controlam; uso de mão de obra local por parte de empresas multinacionais
sem qualquer respeito por parâmetros mínimos de trabalho (labor standards).
3) cosmopolitismo: conjunto muito vasto e heterogêneo de iniciativas,
movimentos e organizações que partilham a luta contra a exclusão e a
discriminação sociais e a destruição ambiental produzidas pelos localismos
globalizados e pelos globalismos localizados, recorrendo a articulações
transnacionais tornadas possíveis pela revolução das tecnologias de
informação e de comunicação.Ex: diálogos e articulações Sul-Sul; novas
formas de intercâmbio operário; redes transnacionais de lutas ecológicas, pelos
direitos da mulher, pelos direitos dos povos indígenas, pelos Direitos Humanos
em geral; solidariedade anticapitalista entre o Norte e o Sul. O Fórum Social
Mundial que se reuniu em Porto Alegre a partir de 2001 é hoje a mais pujante
afirmação de cosmopolitismo no sentido aqui adotado. O autor ressalva que
não utiliza a noção de cosmopolitismo no sentido moderno convencional. Para
ele, cosmopolitismo é a solidariedade transnacional entre grupos explorados,
oprimidos ou excluídos pela globalização hegemônica, ou seja, é um
cosmopolitismo do subalterno em luta contra a sua subalternização.
4) Patrimônio Comum da Humanidade: emergência de temas que, por sua
natureza, são tão globais como o próprio planeta. Ex: sustentabilidade da vida
humana na Terra, temas ambientais como a proteção da camada de ozônio, a
preservação da Antártica, da biodiversidade ou dos fundos marinhos, a
exploração do espaço, da Lua e de outros planetas, dadas as interações
globais, físicas e simbólicas, entre eles e o planeta Terra.
Diante do exposto, verifica-se, segundo o autor, que a divisão internacional
da produção da globalização assume o seguinte padrão: os países centrais
especializam-se em localismos globalizados, enquanto aos países periféricos
cabe tão só a escolha entre várias alternativas de globalismos localizados.
A trama formada entre os globalismos localizados e localismos globalizados
é denominada pelo autor de globalização hegemônica ou globalização de cima
para baixo ou, ainda, globalização neoliberal. Já o cosmopolitismo e o
patrimônio comum da humanidade são denominados pelo autor como
globalização contra-hegemônica, globalização solidária ou globalização de
baixo-para-cima.

34
Nesse contexto, segundo Boaventura, reside a complexidade dos Direitos
Humanos, pois eles podem ser concebidos e praticados quer como
globalização hegemônica, quer como globalização contra-hegemônica.
No contexto de globalização hegemônica, o conceito de Direitos Humanos
assenta num bem-conhecido conjunto de pressupostos, todos claramente
ocidentais e facilmente distinguíveis de outras concepções de dignidade
humana em outras culturas. A marca ocidental liberal do discurso dominante
dos Direitos Humanos pode ser facilmente identificada em muitos outros
exemplos: na Declaração Universal de 1948, elaborada sem a participação da
maioria dos povos do mundo; no reconhecimento exclusivo de direitos
individuais, com a única exceção do direito coletivo à autodeterminação; na
prioridade concedida aos direitos civis e políticos sobre os direitos econômicos,
sociais e culturais; e no reconhecimento do direito de propriedade como o
primeiro e, durante muitos anos, o único direito econômico. A história dos
Direitos Humanos no período imediatamente posterior à Segunda Guerra
Mundial nos leva a concluir que as políticas de Direitos Humanos estiveram em
geral a serviço dos interesses econômicos e geopolíticos dos Estados
capitalistas hegemônicos. Um discurso generoso e sedutor sobre os Direitos
Humanos coexistiu com atrocidades indescritíveis, as quais foram avaliadas de
acordo com revoltante duplicidade de critérios. A dualidade entre uma “política
de invisibilidade” e uma “política de supervisibilidade” correlacionadas aos
imperativos da política externa norte-americana foi enunciada por Richard Falk
(1981), ao citar a ocultação total pela mídia das notícias sobre o genocídio do
povo maubere em Timor Leste ou a situação dos cerca de duzentos milhões de
“intocáveis” na Índia, bem como a exuberância com que os atropelos pós-
revolucionários dos Direitos Humanos no Irã e no Vietnã foram relatados nos
Estados Unidos.
Mas essa não é toda a história das políticas dos Direitos Humanos. Muitas
pessoas e organizações não governamentais têm lutado pelos Direitos
Humanos, correndo riscos em defesa de grupos oprimidos vitimizados por
Estados autoritários, por práticas econômicas excludentes ou por políticas
culturais discriminatórias. Tais lutas emancipatórias são, por vezes, explícita ou
implicitamente anticapitalistas.
Assim, para o autor, a tarefa central da política emancipatória do nosso
tempo consiste em transformar a conceitualização e a prática dos Direitos
Humanos, de um localismo globalizado num projeto cosmopolita.

5. Quais as premissas apontadas por Boaventura de Sousa Santos para


que os direitos humanos sejam concebidos e praticados de forma
cosmopolita, ou seja, na perspectiva de uma globalização contra-
hegemônica?
O autor identifica três premissas para tal transformação.
A primeira premissa é a superação do debate intrinsecamente falso e
prejudicial para uma concepção emancipatória dos Direitos Direitos Humanos
sobre universalismo e relativismo cultural. Todas as culturas são relativas, mas
o relativismo cultural, como posição filosófica, é incorreto. Por outro lado, todas
as culturas aspiram a preocupações e valores válidos independentemente do
contexto de seu enunciado, mas o universalismo cultural, como posição
filosófica, é incorreto.

35
A segunda premissa da transformação cosmopolita dos Direitos Humanos é
que todas as culturas possuem concepções de dignidade humana, mas nem
todas elas a concebem em termos de Direitos Humanos.
A terceira premissa é que todas as culturas são incompletas e
problemáticas nas suas concepções de dignidade humana. Se cada cultura
fosse tão completa como se julga, existiria apenas uma só cultura. Aumentar a
consciência de incompletude cultural é uma das tarefas prévias à construção
de uma concepção multicultural de Direitos Humanos.
A quarta premissa é que todas as culturas têm versões diferentes de
dignidade humana, algumas mais amplas do que outras, algumas com um
círculo de reciprocidade mais largo do que outras, algumas mais abertas a
outras culturas do que outras.
Por último, a quinta premissa é que todas as culturas tendem a distribuir as
pessoas e os grupos sociais entre dois princípios competitivos de pertença
hierárquica. O princípio da igualdade e o princípio da diferença. Embora na
prática os dois princípios se sobreponham frequentemente, uma política
emancipatória dos Direitos Humanos deve saber distinguir entre a luta pela
igualdade e a luta pelo reconhecimento igualitário das diferenças, a fim de
poder travar ambas as lutas eficazmente.
Essas são as premissas de um diálogo intercultural sobre a dignidade
humana que pode levar, eventualmente, a uma concepção mestiça de Direitos
Humanos, uma concepção que, em vez de recorrer a falsos universalismos, se
organiza como uma constelação de sentidos locais, mutuamente inteligíveis, e
que se constitui em rede de referências normativas capacitantes.

7. Quais os tipos de movimentos sociais e qual sua relação com os


direitos humanos?
De acordo com o examinador (citando Boaventura), os partidos políticos e
sindicatos constituem os velhos movimentos sociais, que se encontram em
refluxo e declínio nos países centrais devido a crise das metanarrativas da
Modernidade, com sua atuação política restrita na escala nacional, na
propositura de alternativas para a emancipação social.
Em contrapartida, exsurgem, no último quartel do século XX, novos
movimentos sociais em resistência às diversas formas de opressão e
dominação forjadas pelas relações de poder diluídas nas tramas sociais, que
impedem subjetividades de se exprimir, exercer autenticamente a sua liberdade
e afirmar sua alteridade, restando-se bloqueada a fruição de direitos e a
realização de necessidades humanas fundamentais para inúmeros grupos
vulneráveis.
Assim, fervilham lutas de movimentos sociais para superação das
explorações decorrentes de outras mais-valias ou dimensões de injustiça, para
além da clássica mais-valia econômica desvelada genialmente por Karl Marx,
dentre as quais se destacam a mais-valia ou injustiça racial, étnico-cultural,
sexual, cognitiva, ambiental e histórica.
Para desenvolver tais lutas, os novos movimentos sociais tem se utilizado da
linguagem dos direitos humanos, a qual tem um caráter dúbio, mas que
somente os movimentos sociais poderão transformar tal linguagem numa
prática emancipatória.
Isto porque, de acordo com o examinador, ao mencionar a relação da
Defensoria Pública com os novos movimentos sociais, afirmar que: “São,

36
portanto, os vitimizados, herdeiros daqueles com cujo sangue e suor o Brasil se
fez, triturando-os em “moinhos de gastar gente”, conforme Darcy Ribeiro, que
devem nortear a caminhada institucional (da DPE) na busca pela justiça e
construção de uma sociedade solidária.
Para concluir, transcrevo abaixo uma citação de Darcy Ribeiro que estava
na nota de rodapé do artigo do examinador, mas que considero pertinente com
o tema trabalhado até então:

“Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios


supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os
supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram
para fazer de nós a gente sentida e a sofrida que somos e a gente
insensível e brutal, que também somos. Descendentes de escravos e
senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e
instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida
para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre
mulheres, sobre crianças convertidas em pasto da nossa fúria. A mais
terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de
torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e
classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira
predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às
mãos. Ela, porém, provocando crescente indignação nos dará forças,
amanhã, para conter os possessos e criar aqui uma sociedade solidária”.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2.ed.
São Paulo: CompanhiadasLetras,1995.p.120.
PONTO 7
A reconstrução contra-hegemônica dos Direitos Humanos: Direitos
Humanos interculturais, pós imperiais e descoloniais no horizonte pós-
capitalista.
Texto base utilizado para o ponto: A Gramática do Tempo de Boaventura de
Sousa Santos (com foco no capítulo 13 – Para uma Concepção Intercultural
dos Direitos Humanos).

1. É possível manejar um uso contra-hegemônico de um instrumento


hegemônico como o Direito? Qual o papel do Estado nas lutas contra-
hegemônicas por emancipação social?
As lutas da globalização contra-hegemônica não podem dar-se ao luxo de
não fazer uso de todos os meios não violentos ao seu alcance para combater a
modernidade capitalista, incluindo os que foram inventados pela modernidade
capitalista para trair as suas próprias promessas de liberdade, igualdade e não
discriminação. Nisto reside uma concepção transmoderna e intercultural
do direito e da política.
O Estado moderno capitalista, longe de procurar eliminar diversificados
processos de exclusão (assenta-se neles), tem-se proposto a gerir a exclusão
de modo que ela se mantenha dentro de níveis tensionais socialmente
aceitáveis (por mecanismos como transferência do sistema de exclusão para o
sistema de desigualdade, divisão do trabalho social de exclusão entre o espaço
público e o espaço privado; diferenciação entre diferentes formas de exclusão
segundo a perigosidade e a consequente estigmatização e demonização).

37
Contra o discurso neoliberal deve-se defender que o Estado nacional não
está em vias de extinção e continua a ser um campo de luta decisivo. A erosão
da soberania e das capacidades de ação do Estado ocorre muito seletivamente
e apenas nos domínios da providência para os cidadãos. Nos domínios
repressivos e no domínio da providência para as empresas não se vislumbra o
mínimo sinal de erosão das capacidades do Estado. A luta contra-hegemônica
tem que proceder a uma profunda reinvenção do Estado, não temendo a
tonalidade utópica que algumas medidas podem assumir. Essa reinvenção tem
um forte sinal anticapitalista e dificilmente poderá ser levada a cabo pela
democracia representativa. Urge que se tenha novas práticas democráticas,
surgindo aí a importância da globalização contra-hegemônica geradora do novo
cosmopolitismo subalterno e insurgente. As novas práticas democráticas
devem ser multiculturais se quiserem ser o instrumento propiciador de uma
nova articulação entre políticas de igualdade e políticas de identidade segundo
o imperativo que enunciei: temos o direito a ser iguais sempre que a
diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes sempre que a
igualdade nos descaracteriza.

2. Tendo em vista o exposto por Boaventura de Sousa Santos na questão


anterior, no sentido de que o Estado ainda é uma arena de luta contra-
hegemônica, sintetize o pensamento do Dr. Caio Jesus Granduque José
para a construção identitária da Defensoria Pública no caminho da
descolonização da justiça e da resistência com os movimentos sociais.
[Temas Aprofundados Volume 2]

Como se sabe, a Constituição de 1988 adotou o modelo público de


prestação de assistência jurídica aos necessitados, erigindo como órgão estatal
responsável por esse serviço a Defensoria Pública.
Para Granduque, o descompasso entre a plêiade de direitos humanos
existentes no ordenamento jurídico e a realidade concreta das pessoas
destinatárias dos serviços prestados pela Defensoria Pública deve ser motivo
de revolta.
Tal situação deriva do próprio passado colonial brasileiro, que fez do país
uma civilização de dupla face em que coexistem as promessas iluministas da
Modernidade com a violação sistemática de direitos pelo Estado, que é
orientado por uma cultura de indiferença e até menosprezo dos direitos
humanos proclamados. Tal situação se dá com maior intensidade quando se
trata dos direitos humanos titularizados pelos potenciais assistidos da
Defensoria Pública.
A simbiose entre colonialismo e capitalismo significou em territórios
coloniais do Sul a aplicação da dicotomia apropriação/violência, que lançou
mão do direito para a missão “civilizadora” responsável por genocídios,
etnocídios e epistemicídios em nosso território.
Tal lógica da apropriação/violência passou por uma série de deslocamentos
mas perdura até hoje, ainda que de maneira mais sofisticada e mistificada, nas
práticas dos juristas e agentes estatais, tudo em pleno regime político
republicano e democrático. Isso porque o fim do colonialismo enquanto relação
política legitimadora de assimetrias entre o Norte e o Sul não significou o fim do
colonialismo enquanto relação social, mentalidade e forma de sociabilidade
autoritária e discriminatória, que se exerce pela "colonialidade do poder”, a

38
qual, aliás, é fundamental para a preservação do sistema-mundo capitalista, na
medida em que a acumulação de capital sempre esteve enredada com
ideologias racistas, homofóbicas e sexistas.
Nem mesmo as ondas renovatórias de que falam Cappelletti e Garth foram
efetivas no Brasil, dada a ausência no país de um efetivo Estado Providência
conjugada com a colonialidade ainda remanescente na constituição de
relações assimétricas de poder (em especial quanto a classe, raça e gênero).
A Defensoria Pública, considerando a atribuição constitucional constante do
artigo 134 da CR, deve aproveitar a oportunidade histórica de sua emergência
para promover, ao lado de movimentos sociais e assistidos, a descolonização
da justiça e a construção de novas sociabilidades pautadas pela solidariedade
e regidas pela cultura democrática.
Para isso, a instituição precisa transcender os paradigmas do positivismo
jurídico, ainda hegemônicos na praxe forense e no imaginário dos juristas. Isso
porque o positivismo jurídico, enquanto produto tipicamente moderno, tem a
pretensão de uma explicação universal, totalizante e absoluta do fenômeno
jurídico, valendo-se de cortes epistemológicos simplificadores da complexidade
do fenômeno, para não falar da metodologia lógico-formal que não permite a
análise de facetas como as relações de poder de dominação de classe e de
normalização disciplinar.
Por outro lado, a atuação da Defensoria Pública não pode se resumir ao
âmbito estatal, já que o poder circula por toda a sociedade e não se limita ao
aparelho estatal. A educação em direitos é um importante instrumento nesse
sentido. Na luta contra o poder disciplinar, não é em direção do velho direito da
soberania que se deve marchar, mas na direção de um novo direito
antidisciplinar e, ao mesmo tempo, liberado do princípio da soberania.
Considerando a perda de centralidade do Estado e a coexistência com um
direito não oficial de múltiplos legisladores fáticos, fala-se na emergência de um
“fascismo de raposa”, de microfascismos que se irradiam e se capilarizam pelo
corpo social. Tal fascismo pluralista demanda uma resistência plural, encenada
por múltiplos sujeitos, interligados em redes de contrapoderes. Os movimentos
sociais são os protagonistas dessas lutas libertárias, ao lado dos quais a
Defensoria Pública deve se colocar, partilhando dessas lutas.
Para “tornar-se aquilo que é”, a Defensoria Pública não pode abrir mão da
guerra libertária por novas formas de vida e por novas formas jurídicas. Deve
fazer um uso emancipatório do direito.

3. Nas últimas décadas, a linguagem de uma política emancipatória se


deslocou das ideias de socialismo e revolução para o locus dos direitos
humanos. Em que condições podem os direitos humanos ser
efetivamente capazes de reinventar a linguagem da emancipação?
A referida alteração da linguagem da política emancipatória do socialismo
para os direitos humanos causa algum estranhamento especialmente porque,
no pós-guerra e durante a guerra fria, o uso político do discurso dos direitos
humanos foi intenso (ex: complacência com ditadores pelas potências
ocidentais, desde que aliados). À essa época, as forças progressistas
preferiam a linguagem do socialismo e da revolução para formular uma política
emancipatória.
Boaventura acredita que os DHs podem vir a preencher o vazio deixado
pelo socialismo e projetos emancipatórios correlatos, mas o acredita de

39
maneira muito condicional. Isso só será possível se for adotada uma política de
DHs radicalmente diferente da liberal hegemônica e se tal política for concebida
como parte de uma constelação mais ampla de lutas pela emancipação social.
Para que esse uso seja possível, é preciso identificar 3 tensões dialéticas
da modernidade ocidental:
- regulação social x emancipação social. Esta tensão se apresenta na
divisa positivista “ordem e progresso” e se baseia na discrepância entre
experiências sociais (presente) e expectativas sociais (futuro). Com a
emergência do neoliberalismo (80s) as expectativas sociais passaram a ser de
mudança para pior, o que descaracterizou esta tensão. O colapso das formas
modernas de emancipação social parece ter arrastado consigo o colapso das
formas de regulação social a que se opunham e procuravam superar. Enquanto
até meados dos anos 70 as crises de regulação social suscitavam o
fortalecimento das políticas emancipatórias, hoje a crise da regulação social
(do Estado intervencionista) e a crise da emancipação social (crise da
revolução, do reformismo social-democrático e do socialismo enquanto
paradigma da transformação social) são simultâneas e alimentam-se uma da
outra. A política dos DHs, que pode ser simultaneamente uma política
regulatória e uma política emancipatória, está armadilhada nesta dupla crise,
ao mesmo tempo que é sinal do desejo de a ultrapassar.
- Estado x sociedade civil. A partir dos 80s e do neoliberalismo, o Estado
passou de fonte de infinitas soluções a fontes de infinitos problemas. A
sociedade civil deixou de ser o espelho do Estado para se tornar o seu oposto
e, concomitantemente, uma sociedade civil forte passou a exigir um Estado
fraco.
- Estado-nação x globalização. A erosão seletiva do Estado-nação,
imputável à intensificação da globalização neoliberal, coloca a questão de
saber se, quer a regulação social, quer a emancipação social, deverão ser
deslocadas para o nível global. É nesse sentido que se começa a falar em
sociedade civil global, governação global, equidade global e cidadania pós-
nacional. Nesse contexto, a política dos DHs é posta diante de novos desafios
e tensões. A partir dos 90s, movimentos sociais passaram a reivindicar
novas e progressistas concepções de DHs. Na concepção norte-cêntrica, o
Sul global seria essencialmente problemático no que toca ao respeito pelos
DHs, enquanto que o Norte global seria exemplo desse respeito e procuraria
melhorar a situação dos DHs no Sul global. Com a emergência da globalização
contra-hegemônica, o Sul global passa a contestar essa visão, mostrando que
a fonte primária das mais massivas violações de DHs reside na dominação do
Norte global sobre o Sul global, agora intensificada pelo capitalismo neoliberal
global.

4. Sintetize o que Boaventura de Sousa Santos chama de globalizações


hegemônicas e contra-hegemônicas.
Não existe uma única globalização. Enquanto feixes de relações sociais, as
globalizações envolvem conflitos (e vencedores e vencidos). Globalização é o
processo pelo qual determinada condição ou entidade local estende a sua
influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar
como local outra condição social ou entidade rival.
Há quatro formas ou processos de globalização que dão origem a dois
modos de produção de globalização.

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Globalização hegemônica (versão mais recente do capitalismo e
imperialismo globais):
- localismo globalizado (coisa local é globalizada: língua inglesa como
língua franca; fast food etc.)
- globalismo localizado (influxo do transnacional no local, que passa a ser
marginalizado ou excluído. Ex: eliminação de agricultura tradicional.)
Globalização contra-hegemônica:
- cosmopolitismo insurgente e subalterno (resistência transnacionalmente
organizada contra os localismos globalizados e os globalismos localizados. Ex:
diálogos e articulações Sul-Sul, movimentos transnacionais anti-discriminação.
Tem um caráter muito aberto e, por isso, problemático. Exige, por exemplo,
vigilância auto-reflexiva)
- patrimônio comum da humanidade (lutas transnacionais por valores ou
recursos que, pela sua natureza, são globais. Ex: temas ambientais.)

5. Descreva as condições ou maneiras possíveis para uma


reconstrução intercultural dos direitos humanos.
A complexidade dos direitos humanos reside em que estes podem ser
concebidos e praticados como forma de localismo globalizado ou
cosmopolitismo subalterno e insurgente. Logo, podem ser praticados como
globalização hegemônica ou contra-hegemônica.
A condição para que os DHs sejam praticados de forma contra-
hegemônica é deixar a visão do universalismo abstrato em prol de uma
reconceituação como DHs interculturais.
A primeira visão (universalismo) costuma ser instrumento de “choque de
civilizações”, arma do Ocidente contra o resto do mundo, cosmopolitismo do
Ocidente imperial contra quaisquer concepções alternativas de dignidade
humana. Os DHs não são universais na sua aplicação. O único fato
transcultural é a relatividade de todas as culturas. A relatividade cultural (não o
relativismo) exprime também a incompletude e a diversidade cultural: todas as
culturas tendem a definir como universal os valores que consideram
fundamentais. A questão específica sobre as condições de universalidade
numa dada cultura é em si mesma não universal. A questão da universalidade
dos DHs é uma questão cultural do Ocidente. Logo, os DHs são universais
apenas quando olhados de um ponto de vista ocidental.
O próprio conceito de DHs se assenta em um conjunto de pressupostos
que são, todos eles, tipicamente ocidentais: existe uma natureza humana
universal que pode ser conhecida racionalmente; a natureza humana é
essencialmente diferente e superior à restante realidade; o indivíduo possui
uma dignidade absoluta e irredutível que tem de ser defendida da sociedade ou
do estado; a autonomia do indivíduo exige que a sociedade esteja organizada
de forma não hierárquica, como soma de indivíduos livres. Contudo, há outras
concepções de dignidade humana em outras culturas.
A marca ocidental liberal do discurso dominante dos direitos humanos
pode ser facilmente identificada na DUDH/1948, que, elaborada sem a
participação da maioria dos povos do mundo, reconheceu só direitos
individuais (salvo a autodeterminação, que a própria Europa não respeitou com
seu colonialismo). Já no pós-guerra, o discurso dos DHs esteve a serviço dos
interesses econômicos e geopolíticos dos Estados capitalistas hegemônicos.
Nesse sentido, o discurso generoso e sedutor de DHs coexistiu com

41
atrocidades (política da invisibilidade x política da supervisibilidade: desencana
do genocídio no Timor Leste x Vietnã malvado viola DHs – exemplo dos EUA).
Contudo, apesar da situação descrita, no período mais recente milhares de
pessoas e organizações não governamentais passaram a lutar pelos direitos
humanos em defesa de classes sociais e grupos oprimidos, vitimizados por
Estados autoritários e por práticas econômicas excludentes ou por práticas
políticas e culturais discriminatórias. Os objetivos políticos de tais lutas são
emancipatórios e por vezes explícita ou implicitamente anticapitalistas. Isto
quer dizer que, paralelamente aos discursos e práticas que fazem dos direitos
humanos um localismo globalizado, têm vindo a desenvolver-se discursos e
práticas contra-hegemônicos que, além de verem nos direitos humanos uma
arma de luta contra a opressão independente de condições geo-estratégicas,
avançam propostas de concepções não-ocidentais de direitos humanos e
organizam diálogos interculturais sobre os direitos humanos e outros princípios
de dignidade humana. À luz desses desenvolvimentos, Boaventura entende
que a tarefa central da política emancipatória do nosso tempo consiste
em transformar a concepção e a prática dos direitos humanos de um
localismo globalizado para um projeto cosmopolita insurgente.

6. Quais são as premissas apontadas por Boaventura de Sousa Santos


para uma política contra-hegemônica de direitos humanos?
Conforme mencionado em questão anterior, desenvolveram-se
recentemente discursos e práticas contra-hegemônicas dos DHs. Abaixo lista-
se as premissas da transformação dos direitos humanos num projeto
cosmopolita insurgente. Tais premissas, que envolvem um diálogo intercultural
sobre a dignidade humana, podem levar a uma concepção mestiça de direitos
humanos, que, em vez de recorrer a falsos universalismos, se organiza como
uma constelação de sentidos locais, mutuamente inteligíveis, e que se constitui
em rede de referências normativas capacitantes.
(1) superação do debate sobre universalismo e relativismo cultural. O
debate é falso e os dois pólos são igualmente prejudiciais para uma concepção
emancipatória de DHs. Todas as culturas são relativas, mas o relativismo
cultural, enquanto posição filosófica, é incorreto. Por outro lado, ainda que
todas as culturas aspirem a um dado valor cuja validade depende do contexto
de sua enunciação, o universalismo enquanto posição filosófica também é
incorreto.
(2) todas as culturas possuem concepções de dignidade humana, mas
nem todas elas a concebem em termos de direitos humanos. É importante
buscar preocupações isomórficas entre diferentes culturas. Muitas vezes
designações e conceitos diferentes podem transmitir preocupações ou
aspirações semelhantes ou mutuamente inteligíveis.
(3) todas as culturas são incompletas e problemáticas nas suas
concepções de dignidade humana. Aumentar a consciência da incompletude
cultural é uma das tarefas prévias à construção de uma concepção
emancipadora e multicultural de DHs.
(4) nenhuma cultura é monolítica. Todas as culturas comportam versões
diferentes de dignidade humana, algumas mais amplas do que outras, algumas
com um círculo de reciprocidade mais largo do que outras, algumas mais
abertas a outras culturas que outras.

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(5) todas as culturas tendem a distribuir as pessoas e os grupos
sociais entre dois princípios competitivos de pertença hierárquica. Um – o
princípio da igualdade – opera através de hierarquias entre unidades
homogêneas (a hierarquia entre estratos socioeconômicos). O outro – o
princípio da diferença – opera através da hierarquia entre identidades e
diferenças consideradas únicas (hierarquia entre etnias ou raças, entre sexos,
entre religiões, entre orientações sexuais). Os dois princípios não se
sobrepõem necessariamente e, por esse motivo, nem todas as igualdades são
idênticas e nem todas as diferenças são desiguais. Daí que uma política
emancipatória de DHs deva saber distinguir entre a luta pela igualdade e a luta
pelo reconhecimento igualitário das diferenças a fim de poder travar ambas as
lutas eficazmente.

7. Discorra brevemente sobre a hermenêutica diatópica.


A hermenêutica diatópica é um procedimento hermenêutico que busca
ampliar ao máximo a consciência de incompletude mútua das culturas através
de um diálogo que se desenrola com um pé numa cultura e outro, noutra
(caráter diatópico). Ex: topos dos DHs na cultura ocidental (dignidade humana),
topos do dharma na cultura hindu e topos da umma na cultura islâmica.
O reconhecimento de incompletudes mútuas é condição sine qua non de
um diálogo intercultural. A hermenêutica diatópica desenvolve-se tanto na
identificação local como na inteligibilidade translocal das incompletudes.
A hermenêutica diatópica é um trabalho de colaboração intercultural e não
pode ser levado a cabo a partir de uma única cultura ou por uma só pessoa.
Implica um diferente processo de produção de conhecimento, que será
coletivo, participativo, interativo, intersubjetivo e reticular. É uma produção de
interconhecimento baseada em trocas cognitivas e afetivas que avançam
através do aprofundamento da reciprocidade. A hermenêutica diatópica
privilegia o conhecimento-emancipação em detrimento do conhecimento-
regulação.
Vista a partir da cultura ocidental, a hermenêutica diatópica é
provavelmente o único meio de integrar nela as noções de direitos coletivos,
direitos da natureza, direitos das futuras gerações, bem como a noção de
deveres e responsabilidades para com entidades coletivas, sejam elas a
comunidade, o mundo ou mesmo o cosmos.

8. Que se entende por uma concepção pós-imperial de direitos humanos?


Um diálogo intercultural deve partir da dupla constatação de que as
culturas sempre foram interculturais, e de que as trocas e interpenetrações
entre elas foram sempre muito desiguais e quase sempre hostis ao diálogo
cosmopolita que Boaventura preconiza. A questão que hoje se coloca é de
saber se será possível a construção de uma concepção pós-imperial de
direitos humanos, entendido como tal a perquirição de se o vocabulário
dos DHs se encontra de tal forma impregnado de sentidos hegemônicos
que exclua a possibilidade de sentidos contra-hegemônicos.
Em face de sua íntima ligação histórica com o colonialismo, submeter os
direitos humanos a uma hermenêutica diatópica é uma das mais difíceis tarefas
de tradução intercultural. A ideia de “aprender com o Sul” é um ponto de
partida, já que a formulação asséptica e ahistórica que o Ocidente formou

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sobre os direitos humanos oculta o lado negro de suas origens, desde os
genocídios da expansão europeia até ao Thermidor e o Holocausto.
Por outro lado, as origens conturbadas dos direitos humanos enquanto
“monumento da cultura ocidental” não podem ser vistas apenas da perspectiva
da dominação imperial que eles justificaram; devem sê-lo também a partir do
seu caráter compósito original enquanto artefatos culturais. Os pressupostos
iluministas e racionais dos direitos humanos contêm ressonâncias e vibrações
de outras culturas e as suas raízes históricas estendem-se para além da
Europa. Retoma-se a ideia, então, de que as culturais sempre foram
interculturais, mas as trocas entre elas sempre foram muito desiguais
(colonialismo, imperialismo).

9. O imperialismo cultural e o epistemicídio são parte da trajetória


histórica da modernidade ocidental. Após séculos de trocas culturais
desiguais, será justo tratar todas as culturas de forma igual? A conquista
cultural em curso pode ser substituída por diálogos interculturais
assentes em condições estabelecidas por mútuo acordo?
No campo dos DHs a cultura ocidental tem de aprender com o Sul global
para que a falsa universalidade atribuída aos DHs no contexto imperial seja
convertida numa nova universalidade, construída a partir de baixo, o
cosmopolitismo subalterno e insurgente.
O dilema da completude cultural pode ser assim formulado:
- se uma cultura se considera inabalavelmente completa, não tem nenhum
interesse em envolver-se em diálogos interculturais;
- se, pelo contrário, admite, como hipótese, a incompletude que outras
culturas lhe atribuem e aceita o diálogo, perde confiança cultural, torna-se
vulnerável e corre o risco de ser objeto de conquista.
Por definição, não há saídas fáceis para este dilema, mas Boaventura não
pensa que se trate de dilema insuperável. Tendo em mente que o fechamento
cultural é uma estratégia auto-destrutiva, não parece haver outra saída senão
elevar as exigências do diálogo intercultural até um nível suficientemente alto
para minimizar a possibilidade de conquista cultural, mas não tão alto que
destrua a própria possibilidade do diálogo (caso em que se reverteria ao
fechamento cultural e, a partir dele, à conquista cultural).

10. Quais são as condições para uma reconstrução intercultural dos


direitos humanos?
Boaventura aponta que as condições para um multiculturalismo
progressista variam muito no tempo e no espaço e segundo as culturas
envolvidas e as relações de poder entre elas. Apesar disso, o autor elenca
algumas condições que devem ser aceitas por todos os grupos sociais e
culturais interessados no diálogo intercultural:
- da completude à incompletude: uma pré-compreensão de incompletude
da própria cultura deve levar ao impulso do diálogo intercultural e à
hermenêutica diatópica. A hermenêutica diatópica não pretende reconstruir a
completude cultural, mas aprofunda a incompletude cultural, fomentando a
auto-reflexividade a respeito desta incompletude.
- das versões culturais estreitas às versões amplas: longe de serem
entidades monolíticas, as culturas comportam grande variedade interna. A
consciência dessa diversidade aprofunda-se à medida que a hermenêutica

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diatópica progride. Dentro de uma mesma cultura, deve-se privilegiar para o
diálogo intercultural a faceta que representa o círculo de reciprocidade mais
amplo, a versão que vai mais longe no reconhecimento do outro. Ex: na cultura
ocidental, considerando as versões liberal e social-democrática (marxista ou
não) de direitos humanos, deve ser privilegiada a última porque amplia para os
domínios econômico e social a igualdade que a versão liberal apenas
considera legítima no domínio político.
- de tempos unilaterais a tempos partilhados: o tempo do diálogo
intercultural não pode ser estabelecido unilateralmente; pertence a cada
comunidade cultural decidir quando está pronta para o diálogo intercultural.
- de parceiros e temas unilateralmente impostos a parceiros e temas
escolhidos por mútuo acordo: sempre que uma dada comunidade cultural
decide envolver-se num diálogo intercultural não o faz indiscriminadamente,
com uma qualquer outra comunidade cultural ou para discutir qualquer tipo de
questões. O requisito de que tanto os parceiros como os temas do diálogo não
podem ser unilateralmente impostos e devem antes resultar de acordos mútuos
é talvez a condição mais exigente da hermenêutica diatópica. Esta
hermenêutica diatópica tem de se centrar não nos “mesmos” temas, mas antes
em preocupações isomórficas, em perplexidades e desconfortos que apontam
na mesma direção apesar de formulados em linguagens distintas e quadros
conceituais virtualmente incomensuráveis.
- da igualdade ou diferença à igualdade e diferença: provavelmente todas
as comunidades culturais ou pelo menos as mais complexas distribuem os
indivíduos e os grupos sociais segundo dois princípios de pertença
hierarquizada – trocas sistematicamente desiguais entre indivíduos ou grupos
formalmente iguais, de que é exemplo a exploração capitalista dos
trabalhadores; atribuição de hierarquia entre diferenças consideradas
primordiais, expressa, por exemplo, no racismo e no sexismo – e, portanto,
segundo concepções rivais de igualdade e de diferença. Nestas circunstâncias,
nem o reconhecimento da igualdade nem o reconhecimento da diferença serão
condição suficiente de uma política multicultural emancipatória. O
multiculturalismo progressista pressupõe que o princípio da igualdade
seja prosseguido de par com o princípio do reconhecimento da diferença.
A hermenêutica diatópica pressupõe a aceitação do seguinte imperativo
transcultural: temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza;
temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza (de
novo!).

11. Disserte sobre a construção de uma concepção de direitos humanos


interculturais e pós-imperiais. Que são ur-direitos para Boaventura de
Sousa Santos?
É necessária uma nova arquitetura de direitos humanos que seja baseada
numa nova fundamentação e com uma nova justificação.
Enquanto entre os séculos XVI e XVIII a modernidade se assumiu como
um projeto simultaneamente universal e ocidental, do século XIX em diante
reconceptualizou-se como universal, de um ponto de vista supostamente
universal. Os direitos humanos universais ocidentais tornaram-se então
direitos humanos universais.
A partir daí desenvolveu-se uma relação totalizadora entre vitimizadores e
vítimas – a zona de contato colonial – que embora desigual nos seus efeitos,

45
brutalizou ambos, forçando-os a partilhar uma cultura comum de dominação
caracterizada pela produção sistêmica de versões rarefeitas e empobrecidas
de diferentes culturas presentes na zona de contato.
As ciências sociais modernas não escaparam a essa epistemologia de
rarefação e empobrecimento. Nessas condições, a construção de uma
concepção intercultural e pós-imperial de direitos humanos é, em primeiro
lugar, uma tarefa epistemológica. Boaventura então aponta que é necessário
escavar os fundamentos subterrâneos, clandestinos e invisíveis dos direitos
humanos, fundamentos estes que o autor chamará de ur-direitos. Esses ur-
direitos seriam os fundamentos ocultos dos direitos humanos, as
normatividades originárias que o colonialismo ocidental e a modernidade
capitalista suprimiram da maneira mais radical, de forma a erigirem sobre suas
ruínas a estrutura monumental dos direitos humanos fundamentais.
A concepção de ur-direitos ou normatividades originárias é um exercício de
imaginação retrospectiva radical porque consiste em formular negatividades
abissais. Implica denunciar um ato abissal de negativismo no âmago da
expansão colonial, uma negatividade abissal na qual a modernidade ocidental
se baseou para erigir as suas deslumbrantes construções epistemológicas,
políticas, econômicas e culturais. Por isso, os ur-direitos não são direitos
naturais, mas são direitos de naturezas cruelmente desfiguradas que existem
apenas no processo de serem negados e enquanto negações. Reivindicar
esses ur-direitos é abrir o espaço-tempo para uma concepção pós-
colonial e pós-imperial de direitos humanos.
São ur-direitos:
- direito ao conhecimento: a supressão desta normatividade originária foi
responsável pelo epistemicídio massivo a partir do qual a modernidade
ocidental erigiu o seu monumental conhecimento imperial. Num período de
transição paradigmática, a reivindicação desse ur-direito implica
necessariamente o direito a conhecimentos outros. Tais conhecimentos outros
devem ancorar-se numa nova epistemologia do Sul, de um Sul não imperial.
- direito de levar o capitalismo global a julgamento num tribunal mundial : o
capitalismo deve ser responsabilizado pela sua decisiva quota de
responsabilidade na destruição sistêmica do cuidado para com o outro e para
com a natureza. A atribuição de responsabilidades será determinada à luz de
cursos de ação intergeracionais, de longo alcance, tanto na sociedade como na
natureza.
- direito à transformação do direito de propriedade segundo a trajetória do
colonialismo para a solidariedade: uma política cosmopolita insurgente de DHs
deve confrontar abertamente o individualismo possessivo da concepção liberal
de propriedade. Para além do Estado e do mercado, um terceiro campo social
deve ser reinventado: coletivo, mas não centrado no Estado; privado, mas não
vocacionado para o lucro; um campo social que sustente social e politicamente
a transformação solidária do direito de propriedade.
- direito à concessão de direitos a entidades incapazes de terem deveres,
nomeadamente a natureza e as gerações futuras: a supressão desta
normatividade diz respeito à concepção ocidental de direitos humanos no
sentido de que apenas os potenciais sujeitos de deveres tem direito a ser
sujeitos de direito. Esta simetria estreitou o âmbito do princípio da
reciprocidade de tal forma que deixou de fora, em diferentes épocas históricas,
mulheres, crianças, escravos, povos indígenas, natureza e gerações futuras.

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Uma vez removidos do círculo da reciprocidade, foram transformados em
objetos de propriedade e de cálculos econômicos.
- direito à autodeterminação democrática: Boaventura ilustra o ponto com a
Declaração dos Direitos dos Povos de Argel, um documento não
governamental que parte de uma concepção não-imperial de
autodeterminação. Segundo o autor, tal declaração fornece uma base
adequada para uma concepção mais ampla e profunda do direito à
autodeterminação na medida em que atua como um princípio condutor nas
lutas por uma globalização contra-hegemônica.
- direito à organização e participação na criação de direitos: a supressão
desse ur-direito tem sido o fundamento da norma e da dominação capitalistas.
Sem essa supressão, não seria possível às minorias imporem-se às maiorias
num campo político composto por cidadãos livres e iguais. O direito à
organização é um direito primordial sem o qual nenhum dos outros direitos
poderia ser minimamente viável. Trata-se de um ur-direito primordial no sentido
mais estrito por a sua supressão estar no centro da concepção moderna de
que os direitos fundamentais não tem de ser criados: eles são direitos naturais,
dados, inerentes. Sem a denúncia desta supressão abissal será impossível
organizar todas as solidariedades necessárias contra todos os colonialismos
existentes. O direito originário à organização e o direito originário a criar direitos
constituem duas dimensões inseparáveis do mesmo direito. Variando com as
vulnerabilidades identificáveis dos grupos sociais específicos, a repressão dos
direitos humanos é dirigida à criação de direitos, ou à organização para defesa
ou criação destes mesmos direitos. A repugnância moral divide o Norte global e
o Sul global e, relacionada a ela, a crescimento acelerado do Terceiro Mundo
interior no Norte global (os pobres, os desempregados de longa duração, os
sem-abrigo, os emigrantes sem documentos, os que buscam asilo, os
prisioneiros, bem como as mulheres, as minorias étnicas, as crianças, os gays
e as lésbicas) mostram claramente em que medida a política emancipadora de
direitos humanos se encontra vinculada às políticas de democracia
participativa, apelando, por isso, a uma reconstrução teórica radical da teoria
democrática.

12. Sintetize o pensamento de Boaventura de Sousa Santos no que diz


respeito à construção de uma concepção intercultural dos direitos
humanos.
Na forma como têm sido convencionalmente entendidas, as políticas de
direitos humanos baseiam-se na supressão massiva de direitos constitutivos,
originários, que Boaventura designou como ur-direitos para salientar o seu
caráter inapropriável. É a negação radical desses direitos originários que
legitima os direitos humanos hegemônicos e os incapacita para imaginar o
futuro para além do capitalismo.
Na forma como têm sido predominantemente concebidos, os direitos
humanos são um “localismo globalizado”. Trata-se de uma espécie de
esperanto, de uma língua franca que dificilmente se poderá tornar na
linguagem quotidiana da dignidade humana nas diferentes regiões culturais do
globo. Ao longo de sua obra, o autor delineou os fundamentos para uma
concepção intercultural das políticas emancipatórias de direitos humanos.
Estas políticas devem basear-se em duas reconstruções radicais. Por um lado,
uma reconstrução intercultural por meio da tradução da hermenêutica

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diatópica, através da qual a rede de linguagens nativas mutuamente traduzíveis
e inteligíveis da emancipação encontra o seu caminho para uma política
cosmopolita insurgente. Por outro lado, uma reconstrução pós-imperial dos
direitos humanos centrada na desconstrução dos atos massivos de supressão
constitutiva – os ur-direitos, as normatividades originárias – com base nos
quais a modernidade ocidental foi capaz de transformar os direitos dos
vencedores em direitos universais.
Esse projeto pode parecer bastante utópico. É certamente tão utópico
quanto o respeito universal pela dignidade humana. E nem por isso este último
deixa de ser uma exigência ética séria. Como disse Sartre, antes de ser
concretizada, uma ideia apresenta uma estranha semelhança com a utopia.
Nos tempos que correm o importante é não reduzir a realidade apenas ao que
existe.

PONTO 8
Direito internacional dos Direitos Humanos: fontes, classificação,
princípios, características e gerações de direitos humanos. Normas de
interpretação dos tratados de Direitos Humanos.
1. Cite e explique as principais características dos Direitos Humanos
(DH).
A primeira característica apresentada é a universalidade/universalismo,
que significa que os DH tutelam todos os seres humanos, porque todos são
sujeitos ativos desses direitos. Reconhece-se que, a partir do
constitucionalismo, os Estados, isoladamente, passaram a incorporar em suas
legislações, direitos atrelados aos vetores da liberdade, da igualdade e da
solidariedade. Os DH assumiram, assim, o contorno universal porque seu
conjunto essencial foi absorvido pelos Estados Democráticos. Mais adiante
com a institucionalização/internacionalização dos DH, os Estados passaram a
reconhecer, em conjunto, a existência de direitos que extrapolam a existência
interna deles próprios e que são reconhecidos como universais (bem comum
internacional). A internacionalização dos DH obedece a um movimento
pendular, caminha adiante com avanços e retrocessos causado pela
historicidade - consonante à ideia de Dinamogeneses de Perez Luño (segundo
a qual, o conceito de DH sofre variações de acordo com as relações de poder
vigentes no mundo ou em determinado país. O dinamismo causado pela
historicidade do conceito leva a sua variação, passando a depender dos fatores
ou interesses econômicos, políticos e sociais defendidos na sociedade. Esse
movimento é chamado de procedimento elíptico, o que leva à ampliação e à
redução das exigências da dignidade humana, vetor principal de interpretação
dos DH) e ao conceito de historicidade dos DH de Hannah Arendt (os DH não
são um dado, mas um construído, uma invenção humana em constante
processo de construção e reconstrução).
Nesse contexto, aponta-se também a característica da historicidade, que
indica que os DH possuem natureza histórica a partir da mutação sofrida ao
longo do tempo (ideia presente no próprio conceito de DH).
Como consequência do universalismo, encontra-se a inerência, que
expressa a ideia segundo a qual os DH são inatos, são ínsitos ao ser humano
(fundamento jusnaturalista – a existência humana antecede a criação do
Estado e permite a limitação deste ou o seu direcionamento a criação de
condições favoráveis à vida em sociedade). A partir da inerência o direito
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positivo é transformado, alteram-se os direitos inerentes à dignidade humana,
assim como os textos anteriormente positivados.
Uma quarta e importante característica é a da indivisibilidade,
Interdependência ou complementaridade dos DH, que denota que estes
compõem um único conjunto de direitos não podendo sofrer divisão. Os DH se
complementam e um depende do outro para a concretização da dignidade
humana. Não se permitem interpretações restritivas que levem a
implementação parcial dos direitos. A conclusão inevitável a que se chega é a
de que a realização dos direitos civis e políticos não ocorre sem os direitos
econômicos, sociais e culturais.
OBS “direitos humanos híbridos”: demandam tanto a ação quanto a
omissão estatal (ex: liberdade de locomoção e pessoa com deficiência; direito a
voto; direito à jurisdição etc).
Também aponta-se a inter-relacionalidade, ou seja, os DH e os sistemas
de proteção se inter-relacionam, possibilitando a escolha entre o sistema
regional ou o sistema global.
Outrossim, destaca-se a característica da transnacionalidade, que indica
que os DH são reconhecidos e protegidos em todos os Estados,
independentemente da nacionalidade ou cidadania, sendo assegurados a
qualquer pessoa (mesmo que apátridas).
Elenca-se, ainda, as características da: individualidade (os DH podem ser
exercidos conjuntamente ou por um único sujeito de direitos);
imprescritibilidade (não se perdem pelo não uso, ou decurso do tempo);
inalienabilidade (não podem ser objeto de comercialização, sendo
intransferíveis a qualquer título); indisponibilidade (o ser humano não pode
dispor desses direitos); irrenunciabilidade (não podem ser objeto de
renúncia); inviolabilidade (os atos do Estado, leis infraconstitucionais, as
autoridades e pessoas são limitadas por esses direitos – dever de respeito e
garantia); efetividade (os Estados devem criar mecanismos coercitivos para a
efetivação desses direitos); concorrência (podem ser exercidos de forma
cumulada); limitabilidade (podem sofrer limitação em momentos
constitucionais de crise – ex: sigilo da correspondência no estado de defesa;
liberdade de locomoção e direitos de reunião em estado de sítio).
Por fim, arrola-se a vedação do retrocesso (que também é princípio de
DH e princípio constitucional implícito), uma vez que os DH não se admitem
retrocessos que conduzam a eliminação ou limitação/enfraquecimento (ex:
CADH, art 4°, item 3 – é proibido o reestabelecimento da pena de morte nos
países que a tiverem abolido; PEC 184/2012 – concorrência da assistência
jurídica).

2. O termo “gerações” de direitos humanos é o mais adequado?


Perez-Luño defende que o termo dimensões é o mais apropriado, pois a
inerência dos DH fez com que eles existissem durante toda a era, porém o
poder conferiu dinamismo à extensão dos DH, instituindo uma conformação
elíptica, de modo que o conteúdo pudesse sofrer mutações no tempo, fazendo
surgir, fortalecer, ou enfraquecer determinados direitos.
Nesta linha, Weis e Cançado Trindade defendem que a classificação
geracional dos DH é incompatível com as características da indivisibilidade e
da interdependência, que impedem a concepção hierarquizada e fragmentada
dos DH. Sustentam, assim, que a classificação partida tem a finalidade de

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ressaltar a historicidade desses direitos, sujeitos às interações políticas,
econômicas, culturais e sociais do tempo, mas ressaltando que não há mera
sucessão cronológica de gerações, causando o encerramento de uma e o
surgimento de outra completamente diferente.
Também nessa esteira, Paulo Bonavides vislumbra que há um processo
cumulativo e qualitativo desses direitos, até porque é proibido o retrocesso,
sendo mais adequado falar-se em dimensões de DH.

3. Qual o histórico da primeira dimensão de DH? Quais os DH que foram


enfatizados neste período?
A primeira dimensão dos DH abrange o período compreendido entre a
Magna Charta inglesa (1215) até o século XVIII, mas cujo ápice ocorreu com
as revoluções liberais/burguesas dos séculos XVII e XVIII, frutos do liberalismo
iluminista, que combatiam o regime político centralizado e totalitário do ancien
régime. Há uma forte ruptura entre direito e teologia, passando o direito a ser
creditado na razão humana. Neste período, destacam-se os direitos civis e
políticos, cujo conteúdo principal consubstanciam-se em liberdades públicas,
liberdade negativas ou clássicas, fundadas na existência da liberdade
individual. Como afirma J. J. Gomes Canotilho, estes direito possuem
inspiração liberal, vinculados à autonomia e defesa, fundado na pré-existência
de tais direitos em relação ao Estado, o que impossibilita a intervenção
sistemática, salvo para a garantia desse próprio modelo de máxima liberdade.

4. Qual o perfil do Estado na primeira dimensão de DH?


O Estado era de modelo liberal, também chamado de Estado-mínimo,
Estado guardião (État Gendarme), fundado no Laissez-faire (liberalismo
econômico). Há obrigação de abstenção do Estado, ou não fazer (non-facere),
sobre as relações privadas, limitando-se a situações excepcionais – ex: livre
exploração do comércio, direito de ir e vir, presunção de inocência etc. Institui-
se o Estado de direito com poderes públicos subordinados às leis gerais do
país (limite formal) assim como a limitação das leis ao limite material dos
direitos fundamentais considerados constitucionalmente (Bobbio). O Poder do
Estado era limitado para intervir no domínio privado dos indivíduos, apenas
para assegurar o próprio desenvolvimento da sociedade.

5. Discorra sobre a segunda dimensão de DH.


A segunda dimensão dos DH é marcada pelo desenvolvimento de direitos
econômicos, sociais e culturais, ocorrido em meados do século XIX e início do
século XX. Com o surgimento da revolução industrial, que se espraiou no
mundo no séc XIX, desencadeou-se o agravamento da pobreza e da
desigualdade social, trabalhadores eram marginalizados (não tinham direitos) e
eram expulsos do campo para migrarem em direção aos centros urbanos. Já
no século XX a situação se agrava com as duas Guerras Mundiais.
O vetor principiológico desta dimensão é a igualdade (material) – ao
contrário da primeira dimensão, os direitos de segunda dimensão consideram o
ser humano concreto e situado, de acordo com a sua específica realidade, a
igualdade deixa de limitar-se à universalidade em abstrato (igualdade perante a
lei) e passa a ser concebida materialmente (igualdade na lei) – Bobbio.
O conteúdo principal dos DH desse período consubstancia-se em
prestações positivas do Estado, através de políticas e serviços públicos.

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O Perfil do Estado que se desenvolve é o de intervenção e regulamentação
moderadas, a fim de garantir a igualdade com a eliminação da exclusão social.
Surge o constitucionalismo social ou Estado-social (Welfare State), segundo o
qual os DH devem cumprir uma função social.
Os textos mais relevantes dentre os representativos desta dimensão são:
Constituição francesa – 1848; Constituição mexicana 1917, Constituição de
Weimar – 1919; e o Tratado de Versailles (criou a OIT).

6. Quais os direitos característicos da terceira dimensão de DH?


Os direitos que marcam a terceira dimensão de direitos humanos são os
denominados direitos globais, que possuem como vetor a ideia de
solidariedade, e cujo conteúdo principal se encerra na tutela dos interesses
metaindividuais (direitos difusos) – ex: direito ao desenvolvimento, ao meio
ambiente, à autodeterminação dos povos e, para a maioria da doutrina, à paz.

7. Qual o contexto histórico em que se desenvolve a terceira dimensão de


DH?
A terceira dimensão de DH tem um acentuado desenvolvimento a partir da
secunda metade do século XX. A proteção dos DH das dimensões anteriores
encontraram problemas na ausência de juridicização de alguns Estados, já que
eles não incorporavam estes direitos em suas legislações; ao lado deste
problema surge a globalização, acompanhada de grandes avanços
tecnológicos e científicos, transformando a sociedade do séc XX e conferindo
dinamismo às relações econômicas e sociais. Nesse contexto, emerge o
cidadão cosmopolita, que ultrapassa os contornos territoriais e as fronteiras de
cada Estado. Tais fatores potencializaram a necessidade de proteção de
interesses globais, que extrapolam tanto a esfera do indivíduo a ser protegido
quanto a do Estado que deve protege-lo. Nesta esteira, a responsabilidade
passa a ser pelo todo (o que ocorre fora do Estado) e por todos (o que ocorre
com nacionais e estrangeiros), ensejando a necessidade de regulamentação
máxima, inclusive compatível com o surgimento de relações multilaterais (ex:
relações consumeristas, novos direitos como o ECA, Estatuto do Idoso etc.),
originando uma flexibilização das fronteiras e da soberania estatal, que abre
espaço para o Estado Constitucional Cooperativo, oriundo do princípio da
cooperação internacional - a cooperação surge principalmente para que haja a
expansão da economia e para que haja a proteção e promoção dos DH.

8. Há uma quarta dimensão dos DH?


Primeiramente, alerta-se que parte da doutrina critica essa tendência
meramente teórica de expansão das dimensões de DH, para além das, já
clássicas, primeira, segunda e terceira, haja vista que mesmo os direitos de
primeira dimensão encontram dificuldades em serem protegidos ampla e
devidamente pelos Estados, e os de segunda sequer conseguiram ser
minimamente efetivados em grande parte dos Estados.
Feita essa advertência, constata-se que autores como Norberto Bobbio
sustentam a existência de uma quarta dimensão de DH, que decorreria dos
avanços da genética, clamando pela proteção do patrimônio genético como

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forma de preservação do ser humano - ex: lei de biossegurança que assegura
estudos científicos e regula o descarte de material genético.
O brasileiro Paulo Bonavides, por seu turno, elenca os direitos à
democracia, à informação (lei de acesso à informação) e ao pluralismo
(diversidade e participação das minorias), como fazendo parte da quarta
dimensão dos DH. Para o autor, haveria, ainda, uma quinta dimensão dos DH,
que seria responsável pelo direito à paz, o qual, devido a sua importância,
necessitaria de uma dimensão própria para sua proteção e efetivação.

9. Conceitue as categorias de DH, na esteira do Direito Internacional dos


DH, endossada, entre outros, por Carlos Weis.
Direitos civis: dizem respeito às relações do homem nas suas inter-
relações sociais (liberdade-autonomia);
Direitos políticos: dizem respeito às relações do homem na formação da
vontade do poder, ou seja, na vida política de seu país (liberdade-participação);
Direitos econômicos: dizem respeito à regulação do mercado e às
relações entre produtores, fornecedores e consumidores;
Direitos sociais: dizem respeitos às condições mínimas de sobrevivência,
com foco na igualdade;
Direitos culturais: dizem respeito às manifestações de identidade cultural,
memória, ou seja, valores de uma comunidade.
Direitos globais: por serem a categoria mais recente surgida no âmbito do
direito internacional dos DH, ainda encontram-se nos estágios iniciais de
evolução, encontrando problemas quanto a precisão de seu conteúdo. Todavia,
é possível afirmar que a especificidade dos direitos globais, em relação aos
demais, é a sua titularidade difusa ou coletiva, que decorre do fato de que tais
direitos objetivam proteger os interesses que transcendem a órbita individual
(distinguindo-os dos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, uma vez
que estes, direta ou indiretamente, visam estabelecer e garantir a liberdade
individual).

10. Qual o conceito de tratado?


Segundo o art. 2, item 1.”a” da Convenção de Viena, tratado é o acordo
internacional concluído entre Estados em forma escrita e regulado pelo direito
internacional, consubstanciado em um único documento ou em dois ou mais
docs. conexos, qualquer q seja a sua designação específica.

11. Há hierarquia entre tratado e costume internacional?


Não há hierarquia entre essas fontes, mas há uma preferência aos
tratados, pois é mais fácil aplicar uma norma escrita do que uma norma de
costume internacional.

12. No que consiste a “soft law”?


São disposições em processo de formação do direito positivo, mas que não
criam obrigações jurídicas, sendo reconhecidas pela expressão: “um direito que
ainda não é, mas virá a ser”. Originam-se de manifestações políticas dos
Estados, através de resoluções e declarações, que estabelecem parâmetros
mínimos de atuação, mas que não possuem força cogente.

52
As características da “soft law” são: a) disposições genéricas dispostas em
princípios; b) linguagem ambígua ou incerta (ex; colaborar, cooperar...); c)
conteúdo não exigível, ou seja, meras exortações, recomendações...; d)
ausência de coercibilidade ou de mecanismos de responsabilização.

13. Qual o conceito de costume internacional?


Costume internacional é a prática geral como sendo de direito (art. 38 do
estatuto da Corte Internacional de Justiça).
Seus elementos são:
a) elemento objetivo: prática geral (consuetudo) – é a prática oficial
emitida apor órgãos estatais, ex: pela presidência, pelo ministro das relações
exteriores, diplomatas..., que acarreta fatos interestaduais, reiterado por certo
tempo, “quase que universalmente”;
b) elemento subjetivo: “como sendo de direito” - é a opinião jurídica dos
Estados de que tal conduta corresponde a uma obrigação jurídica (opinio juris
sive necessitatis).
Há de ser apontado, todavia, um problema prático dos costumes,
consistente na dificuldade de delimitação (identificação) de seus elementos.
Como solução a doutrina moderna propõe um método dedutivo: direitos que
possuam reconhecidamente significado fundamental para o direito internacional
serão considerados costumes, pela falta de prática estatal contraditória. O
costume internacional obriga todos os Estados, inclusive aqueles que não
ratificaram qualquer tratado ou ratificaram com a posição de reservas, logo, o
costume prescinde da conclusão formal de um tratado - ex: a proibição da
tortura; proibição de privar a liberdade de expressão, a liberdade religiosa e a
liberdade de consciência, entre outros. Importante destacar que não há
precedente de costume internacional em relação aos direitos econômicos,
sociais e culturais, segundo a doutrina de KÄLIN e KÜNZLI.

14. Existe alguma forma do Estado se opor ao costume internacional?


A exceção à força obrigatória do costume internacional é possível mediante
o instituto jurídico denominado de Persistent Objectors, que são as
manifestações inequívocas e permanentes dos Estados que apontam a
contrariedade a determinado costume internacional. Todavia, caberá ao Estado
o ônus de provar a contrariedade durante o processo de formação do costume
e, assim, esse Estado estará livre do costume.
Ressalta-se que esta exceção não se aplica às normas componentes do
jus cogens.

15. O que é “jus cogens”?


Jus cogens são regras dotadas de significado fundamental à ordem
internacional e que não permitem derrogação - ex: proibição da escravidão, do
genocídio etc.
OBS: tratados que violarem jus cogens são nulos (Art. 53, Convenção de
Viena).
Destaca-se o efeito erga omnes da regra jus cogens, isto é, todos os
Estados poderão tutelar essas normas, ainda que a violação de DH tenha
ocorrido em outro Estado.
Entretanto, aponta-se como problema da normativa integrante do jus
cogens a dificuldade de identificação precisa de seu conteúdo.

53
16. O que são princípios gerais de direito para o Direito Internacional dos
Direitos Humanos?
Reconhecidos pelo Art. 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, os
princípios gerais de direito, no contexto do Direito Internacional dos Direitos
Humanos, são aqueles princípios que fazem parte de quase todas as ordens
jurídicas - ex: princípio da proporcionalidade.
Sua função é a de sanar lacunas jurídicas a partir da análise do direito
comparado.
O problema prático que enseja é a baixa densidade do conteúdo e a falta
de consequência jurídica suficientemente determinável que levasse a
obrigações concretas.

17. A celebração de tratados internacionais ofende a soberania do


Estado?
A doutrina majoritária de Direito Internacional Público entende que o
fundamento de validade do Tratado Internacional é o princípio do pacta sunt
servanda. Logo, o Estado apenas se obriga internacionalmente se manifestar
referida vontade. E essa possibilidade de se vincular internacionalmente é
expressão da soberania estatal, pois se não fosse soberano, o Estado não teria
possibilidade de se obrigar internacionalmente.

18. Quais são as fontes auxiliares do Direito Internacional dos Direitos


Humanos?
Consideram-se fontes auxiliares do Direito Internacional dos Direitos
Humanos: a) as decisões judiciais; b) a doutrina mais qualificada de diversas
nações (Art. 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça); c) a equidade,
segundo o Estatuto da Corte Internacional de Justiça (o Estatuto da Corte
Internacional de Justiça dispõe sobre a possibilidade de julgamento baseado
na equidade - julgamento ex aequo et bono (o que é justo é bom), porém não
se trata de fonte clássica ou auxiliar segundo a doutrina).

19. Quais os principais elementos de interpretação dos Tratados


Internacionais de Direitos Humanos - TIDH?
Segundo o art. 31 da Convenção de Viena, os principais elementos de
interpretação dos TIDH são: I) a boa-fé (é um princípio geral de interpretação);
II) o teor (interpretação literal ou gramatical); III) o contexto (interpretação
sistemática); IV) o objetivo e a finalidade do texto (interpretação teleológica ou
finalística).

20. Os elementos de interpretação são complementados pelos princípios


de interpretação, dentre os quais destaca-se a dignidade humana,
conceitue-o.
Em seu aspecto positivo a dignidade humana cria a obrigação do Estado
de dar assistência para que a pessoa se desenvolva, adquirindo bens e
serviços indispensáveis à vida digna. Já em seu aspecto negativo, cria a
obrigação de abstenção estatal, ou seja, o Estado ou terceiros não podem
intervir na esfera privada, permitindo o uso pleno da autonomia e da
autodeterminação.

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Destaca-se que o princípio da dignidade humana serve não só para a
interpretação dos DH, mas também para valoração do seu núcleo essencial – a
teoria do núcleo essencial surge após a 2ª Guerra Mundial e é referendada nas
constituições europeias como resposta às ditaduras, impedindo a limitação ou
eliminação de alguns direitos pelo Estado, pelas leis, ou pelo Judiciário.
Importante ressaltar que duas correntes se divergem acerca do preenchimento
do núcleo essencial (ou núcleo intangível): a) corrente absoluta: o vetor
dignidade humana permite a identificação de direitos inatacáveis (critica-se
argumentando que ignora a existência de sacrifício de alguns direitos, ex:
direito de correspondência dos sentenciados); b) corrente relativa: o núcleo
essencial protege os DH de violações desproporcionais em seu conteúdo (R.
Alexy).
Por derradeiro, é mister apontar que a dignidade humana é um predicado,
uma qualidade e não um direito, é intrínseca ao ser humano e o define como
tal, e que, destarte, não pode ser conferida ou não ao indivíduo pelo Estado.

21. Dentre os princípios de interpretação dos TIDH, encontra-se o


princípio da interpretação autônoma. Defina-o.
O princípio da interpretação autônoma compreende a ideia de que não se
pode admitir definições dos TIDH criadas por instituições nacionais, uma vez
que o conteúdo do TIDH sofreria variação local. Assim, como o direito interno
não se confunde com o direito internacional, este deve receber interpretações
próprias, as quais devem prevalecer.

22. No que consiste o princípio de interpretação dos TIDH denominado de


princípio da interpretação evolutiva?
O princípio da interpretação evolutiva encerra a ideia de que os direitos
previstos nos TIDH acompanham a evolução social, deste modo, a vontade
primária do Estado ao ratificar o TIDH passa a ser irrelevante. Reocorda-se que
os Estados não são senhores dos tratados, que devem receber interpretação
contramajoritária por mecanismos e órgãos internacionais de DH - ex: o direito
à vida atualmente não é só o direito à sobrevivência, mas direito a uma vida
com dignidade.

23. Conceitue o princípio da interpretação dinâmica dos TIDH.


O princípio da interpretação dinâmica é aquele que estabelece que os
TIDH são instrumentos vivos, criados para garantir e otimizar a proteção dos
indivíduos e grupos contra violações à dignidade humana, assim, deve-se partir
do padrão humanitário existente no momento de sua interpretação, e não de
quando se origina o tratado.
OBS devido à íntima relação entre o princípio da interpretação dinâmica e
o princípio da interpretação evolutiva, há quem os conceitue conjuntamente
como princípio da interpretação dinâmico-evolutiva dos TIDH.

24. No que consiste a interpretação “effet utile” dos TIDH?


O princípio da efetividade (interpretação effet utile) dos TIDH é o princípio
de interpretação dos TIDH que determina que o conteúdo das normas abertas,
provindo da interpretação dinâmica, deve ser concretizado pelos aplicadores da
lei. Assim, se houver mais de uma possibilidade de interpretação de uma

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mesma norma, deve ser priorizada aquela que melhor garanta a realização da
finalidade do tratado, ou seja, a que garanta a sua maior aplicação.

25. O que é o princípio da interpretação “pro homine”?


O princípio da interpretação pro homine é o princípio de interpretação dos
TIDH que preconiza que, independentemente de previsão expressa em
tratados internacionais ou na legislação interna, os DH existem, uma vez que
são inerentes à pessoa (art. 29, item c, CADH). Assim, devem se restringir ao
máximo as limitações de direito prevista no tratado e eventual lacuna em TIDH
deve ser colmatada partindo dessa interpretação, ou seja, havendo lacuna a
interpretação é que o DH existe.
26. O que é o princípio da interpretação mais favorável ao indivíduo?
O princípio da interpretação mais favorável ao indivíduo (princípio da
primazia da norma mais favorável) é o princípio de interpretação dos TIDH que
preconiza que no conflito ente norma interna e norma internacional será
aplicada a mais favorável à pessoa (ao indivíduo).
Pontua-se, todavia, que a grande dificuldade do aludido princípio é
determinar-se qual é a norma mais favorável, haja vista que, em muitos casos,
a norma internacional pode ser mais favorável para determinado indivíduo e a
interna para outro. Nesses casos, a doutrina aponta que a solução deve se dar
através do princípio da proporcionalidade.

27. Há alguma peculiaridade acerca do princípio da proporcionalidade no


Direito Internacional dos Direitos Humanos?
Para a corrente dos DH existe um patamar (degrau) antes da sub-regra da
“adequação”, consistente na “legitimidade fim” - controle da legitimidade do fim,
ou seja, o fim deve ser compatível com os direitos humanos (o Tribunal
Europeu de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos
adotam esse 4° degrau – que acaba sendo o 1º degrau).
PONTO 9
A responsabilidade internacional por violação dos direitos humanos:
tratados internacionais de direitos humanos e as obrigações assumidas
pelo Brasil, formas de reparação e sanções coletivas e unilaterais.
1. O que é responsabilidade internacional do Estado por violação dos
direitos humanos?
O Estado, ao assumir obrigações internacionais, tem o dever de cumpri-las.
A responsabilidade internacional consiste, portanto, em obrigação internacional
de reparação em face de violação prévia de norma internacional, sendo
considerado por alguns como princípio geral do Direito Internacional.
A responsabilidade internacional é uma reação jurídica, pela qual o Direito
Internacional reage às violações de suas normas, exigindo a preservação da
ordem vigente por meio da reparação aos danos causados.
O direito internacional contemporâneo consolidou um catálogo de direitos
fundamentais da pessoa e, simultaneamente, também foram estabelecidos
mecanismos de supervisão e controle do respeito, pelo Estado, desses
mesmos direitos protegidos. Ao Estado incumbe, portanto, respeitar e garantir
os direitos elencados nas normas internacionais.

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2. Quais são as obrigações estatais assumidas em relação aos tratados
internacionais de direitos humanos? Como estas obrigações são
abordadas em relação à cláusula federal?
Pode-se falar basicamente, em duas ordens/espécies de obrigações
estatais: a) adequação do direito interno e b) respeito e garantia por parte
dos Estados.
Além delas, a sistemática dos direitos econômicos, sociais e culturais prevê
o modelo de realização progressiva.
a) Quanto à adequação normativa, a Corte IDH firmou, em sua OC nº 2
que, ao aprovar os tratados sobre direitos humanos, os Estados se submetem
a uma ordem legal dentro da qual eles, em prol do bem comum, assumem
várias obrigações, não em relação a outros Estados, mas em relação aos
indivíduos sob sua jurisdição. As obrigações incluem a adequação do direito
interno às normas de direito internacional de direitos humanos (art. 2, 2 PIDCP,
art. 2, 1, PIDESC e art. 2º, CADH).
Para Valerio Mazzuoli, quando os Estados assumem TIDHs eles se
autolimitam em sua soberania, o que inclui o dever de adequação normativa –
2 vertentes:
a.1) supressão de normas e práticas de qualquer natureza que contenham
violações das garantias previstas na Convenção (obrigação negativa) e
a.2) expedição de normas e desenvolvimento de práticas que conduzam
à efetiva observância das disposições do TIDH.
Obs: a Corte IDH apontou, na OC nº 7, o caráter autoaplicável da CADH,
que deve ser imediatamente aplicada, inclusive pelos Tribunais, sem qualquer
necessidade de integração legislativa.
Obs.: No caso Gomes Lund e outros VS. Brasil, a Corte IDH reafirmou a
posição já firmada no caso “A última tentação de Cristo” (Olmedo Bulos vs
Chile), no sentido de que a obrigação de adequação de direito interno pode
incluir até mesmo a reforma constitucional.

b) Quanto às obrigações de respeito e garantia, Mazzuoli aponta que a


obrigação de respeitar tem natureza negativa (não fazer), enquanto a
obrigação de garantir corresponderia a obrigação positiva, impondo um fazer.
b.1) respeitar: dever estatal de abster-se da violação de direitos humanos
(ex.: proibição de tortura), configura direitos de defesa, uma pretensão
omissiva, referente tanto aos DCP quanto aos DESC. Obs: algumas
ingerências (limitações) são expressamente admitidas pelos próprios TIDHs e,
devido à colidência inerente aos dh, também há possibilidade de aplicação da
regra da proporcionalidade, sempre respeitando seu núcleo essencial.
b.2) garantir: dever estatal de proteger e implementar os dh. A subdivisão
é feita por alguns doutrinadores (vide Sven Peterke), possuindo nomenclaturas
diversas, mas com significados similares. Forma-se o chamado modelo
tridimensional, com a obrigação de respeitar.
b.2.1) proteção: em relação a ameaças não estatais, o que engloba
eficácia horizontal. Nesse caso, há quebra da teoria da responsabilidade
objetiva (regra), para se exigir elemento subjetivo (ciência do perigo ou
obrigação de conhecê-lo), somada à possibilidade objetiva de evitar a
violação. A violação se dá por omissão em relação a uma exigível reação
apropriada ao perigo.

57
b.2.2) implementação – traz nova subdivisão:
(i) dever de facilitar: exige do Estado uma obrigação de
estruturação, de criação de pressupostos legais, institucionais e
processuais necessários, para possibilitar aos titulares a efetiva
realização de seus direitos. Aqui, inclui-se a exigência de políticas
públicas e planos de ações destinados no plano coletivo à fruição de
direitos.
(ii) dever de prestar: verdadeiro dever prestacional, correspondente
a direito subjetivo (hoje, inclusive DESC), especialmente aqueles
referentes ao mínimo existencial.

Com relação à cláusula federal, lembra-se que o Brasil é Estado federal


uno e, portanto, passível de responsabilização mesmo quando o fato
internacionalmente ilícito seja de atribuição interna de um Estado-membro. A
União atua como ente com personalidade jurídica internacional (art. 21, I, CF –
competência para as relações internacionais), sendo responsável. Mais ainda,
os TIDHs emblemáticos trazem a previsão da chamada cláusula federal,
anotando sua obrigatoriedade nesse tipo de divisão política estatal e sua
vinculação ao Estado em sua totalidade (art. 50, PIDCP e art. 28, CADH).

3. Ainda no que diz respeito a este dever estatal de dar cumprimento aos
TIDHs a que se vincula, fale sobre o IDC.
O incidente de deslocamento de competência é o mecanismo previsto no
art. 109, § 5º, CF que permite ao PGR requerer ao STJ o deslocamento de
competência para a justiça federal, em qualquer fase do inquérito ou processo,
nos casos de grave violação a direitos humanos, com a finalidade de assegurar
o cumprimento dos TIDHs ratificados pelo BR. Para Carvalho Ramos, pode ser
criminal ou cível. Flávia Piovesan faz a crítica quanto à necessidade de
democratização do acesso ao pedido de deslocamento.
As balizas começaram a ser delineadas pelo STJ nos dois IDCs a ele
submetidos:
- no IDC 2, definiu três pressupostos: existência de grave violação de dh; risco
de responsabilização internacional decorrente do descumprimento de
obrigações jurídicas assumidas em tratados internacionais e a incapacidade
das instâncias e autoridades locais em oferecer respostas efetivas.
- IDC 1 (Dorothy Stang - negado): confirmou a constitucionalidade do IDC,
proporcionalidade e razoabilidade; todo homicídio é violação grave de dh; IDC
exige demonstração concreta de risco de descumprimento das obrigações
decorrentes de TIDHs, resultante da inércia, negligência, falta de vontade
política ou de condições reais do Estado-membro, por suas instituições, em
proceder à devida persecução penal. O STJ indeferiu esse IDC por entender
que não haveria violação de direitos humanos que implicasse em risco de
responsabilização internacional.
- IDC 2 (Manoel Mattos - deferido): grave violação demonstrada, pois não é
simples homicídio, mas praticado por grupo de extermínio, ferindo as próprias
bases do Estado; risco de responsabilização por já ter havido pronunciamento
da CIDH com expressa recomendação ao BR para adoção de medidas de
proteção a pessoas ameaçadas por tais grupos, nas divisas dos Estados PA e
PE; notória incapacidade das instancias e autoridades locais em oferecer
respostas efetivas, reconhecida a limitação e precariedade dos meios por elas

58
próprias, havendo quase um pronunciamento uníssono em favor do
deslocamento.
Há duas ADIS (3493 e 3486) atacando a EC 45, quanto ao IDC, apontado o
amesquinhamento do pacto federativo e a violação ao juiz natural e due
process. Para Carvalho Ramos, o próprio texto constitucional convive com
instituto semelhante no art. 102, I, CF – deslocamento para STF, no vício de
parcialidade da magistratura. O IDC tem por meta criar cultura de prevenção no
tocante às violações de dhs.
Obs.: IDC 3/GO, crimes graves contra direitos humanos cometidos em
Goiás – procedente; IDC 4/PE – sumariamente extinto porque ajuizado pela
suposta vítima e não PGR e IDC 5/PE, morte de promotor em PE – procedente
(j. 13/08/14).

4. Quais os elementos da responsabilidade internacional?


A prática do direito internacional destaca três elementos da
responsabilidade internacional: fato internacionalmente ilícito, resultado lesivo e
nexo causal entre o fato e o resultado lesivo.
Quanto ao fato internacionalmente ilícito, consiste no descumprimento dos
deveres básicos de garantia e respeito aos direitos fundamentais inseridos nas
dezenas de convenções internacionais ratificadas pelos Estados.
O resultado lesivo é toda a gama de prejuízos materiais e morais causados
à vítima e familiares.
A imputabilidade consiste no vínculo entre a conduta do agente e o Estado
responsável. O Estado comete atos violadores do Direito internacional por
intermédio de pessoas e é sempre necessário avaliar quais atos por elas
cometidos podem vincular o Estado. Não importa a natureza ou tipo de ato, o
importante será o conceito jurídico de imputação.

5. Quais atos geram a responsabilidade internacional do Estado por


violação aos direitos humanos?

A responsabilidade do Estado pode derivar de atos do Poder


Executivo, Legislativo e Judiciário.
a) Atos do poder executivo:
i. Atos comissivos ou omissivos: Estado pratica ou deixa de praticar.
Cabe ao Estado respeitar e garantir os direitos humanos, tais obrigações
ensejam responsabilização quando seus agentes violam direitos
humanos ou se omitem injustificadamente, na prevenção ou repressão
de violações realizadas por particulares.
ii. Atos “ultra vires”: atos praticados com abuso de poder ou abuso de
autoridade. Ato que parece legal/legítimo, mas esconde um abuso de
autoridade, os agentes extrapolam a competência legal. Ex. violência
policial.
iii. Atos de particulares: exige-se descumprimento do dever de prevenção
ou punição por parte do Estado. BRASIL - Caso José Pereira:
trabalhador que procurava oportunidade de emprego, um dia viu
proposta para trabalhar em Fazenda no Pará, só que, na verdade, era
praticamente um campo de trabalho escravo. José Pereira, ao tentar
fugir, levou um tiro no olho, enquanto outros trabalhadores morreram. O

59
Brasil reconheceu sua responsabilidade por não ter fiscalizado
corretamente (solução amistosa).
b) Atos do poder legislativo: todas as leis, inclusive a Constituição podem
ensejar violação aos direitos humanos e a consequente responsabilização do
Estado. Em geral, não são aceitos casos sem elementos concretos de violação
de direitos humanos, mas já houve situações em que este critério foi
abrandado. Na Corte IDH, destaca-se o Caso Suárez Rosero: questinou-se o
art. 114 do Código Penal do Equador, segundo este dispositivo não seria
necessário o respeito à duração razoável do processo nos casos de tráfico de
drogas.
c) Atos do poder judiciário: a sentença é ato como outro qualquer, apenas
será analisado se aquela sentença, independente de seu conteúdo, viola
tratado internacional.
Dois tipos de sentenças que geram a responsabilidade do Estado:
i. Decisão tardia ou inexistente (monocrática, acórdão,...): processo
demora ou processo sequer existe. A demora impede uma prestação
jurisdicional útil e eficaz.
ii. Decisão por si só violadora: a decisão em seu mérito é injusta e
viola direito internacionalmente protegido. Neste ponto, alegam os
Estados a ‘Teoria da 4ª Instância’, pela qual não pode o órgão
internacional funcionar como espécie de 4ª instância do Poder
Judiciário. Contudo, não é este o papel dos Tribunais Internacionais
O órgão Internacional não analisará o erro judiciário.
É muito comum os Estados alegarem também a coisa julgada como
obstáculo à responsabilização internacional. Contudo, a análise da
responsabilidade do Estado não se sujeita às limitações de um
tribunal nacional, mas somente àquelas impostas pelo Direito
Internacional. Ademais, em análise mais acurada do instituto da
coisa julgada, que fundamenta a imutabilidade das decisões
internas, impossível a utilização em sede internacional, visto que
seria necessária identidade de partes, pedido e causa de pedir entre
a causa local e a internacional, o que não ocorre.
As instâncias internacionais não reformam decisões internas,
apenas condenam o Estado infrator a reparar o dano causado.
Há ainda um tema muito sensível no caso dos atos do poder judiciário, é o
caso da impunidade, que consiste na falta de investigação, persecução
criminal, condenação e detenção dos responsáveis pelas violações de
direitos humanos: há dever estatal de reprimir a impunidade por todos os
meios legais disponíveis, evitando repetições crônicas de violações. O Estado
pode ser também responsabilizado, portanto, pela omissão em punir.
Lembrando que a obrigação de investigar e punir é de meio e não de resultado.

6. Diante de responsabilização do Estado, quais são as possíveis formas


de reparação?
A reparação é a consequência maior do descumprimento da obrigação
internacional. Entendendo-se por reparação toda e qualquer conduta do Estado
infrator para eliminar as consequências do fato internacionalmente ilícito, sendo
o retorno ao status quo ante a essência da reparação, sem excluir outras
formas.

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a) Reparação integral (restitutio in integrum ou retorno ao status quo
ante): é a melhor fórmula na defesa das normas internacionais. Permite a
completa eliminação da conduta violadora e de seus efeitos, por isso há
preferência sobre a prestação pecuniária. A equivalência pecuniária só deve
ser usada em ultima hipótese, quando impossível o retorno à situação anterior.
Para que todos os efeitos nefastos da violação sejam eliminados, deve haver
reparação do dano emergente e dos lucros cessantes. Destaca-se a atual
compreensão de tais reparações não se resume aos danos ora mencionados,
observa-se ainda a noção de dano ao “projeto de vida”. O projeto de vida é o
conjunto de opções que pode ter o indivíduo para conduzir sua vida e alcançar
o destino a que se propõe. Tal conceito não corresponde à noção patrimonial
derivada imediata e diretamente dos fatos, como na aferição do dano
emergente. Nem nos lucros cessantes, que consistem na perda de ingressos
econômicos futuros. As violações de direitos humanos interrompem o previsível
desenvolvimento do indivíduo, mudando drasticamente o curso de sua vida.
b) Cessação do ilícito: o Estado violador de obrigação internacional deve
interromper imediatamente sua conduta ilícita, sem prejuízo de outras formas
de reparação. A cessação é considerada exigência básica para a completa
eliminação das consequências do fato ilícito internacional.
c) Satisfação: conjunto de medidas, aferidas historicamente, capazes de
fornecer fórmulas extremamente flexíveis de reparação a serem escolhidas, em
face dos casos concretos, pelo juiz internacional. Em geral, três modalidades
de satisfação são escolhidas: (i.) Estado violador reconhece a ilegalidade do
fato e declara seu pesar quanto ao ocorrido, (ii.) fixação de somas nominais e
indenização punitiva (“punitive damages”), sendo toda a quantia apurada
revertida à vítima, (iii.) obrigações de fazer, cuja escolha fica a cargo do juiz
internacional, de forma a reparar adequadamente as vítimas, dentre estas
destacamos a reabilitação (apoio médico e psicológico necessário às vítimas),
estabelecimento de datas comemorativas em homenagem às vítimas e
inclusão em manuais escolares textos relatando as violações de direitos
humanos.
d) Indenização: pagamento em dinheiro, em geral. Utilizada quando não
for possível a eliminação por completo da violação pelo retorno ao status quo
ante. A indenização deve ser utilizada como forma complementar à reparação
integral, se esta for insuficiente para reparar os danos constatados.
e) Garantias de não repetição: Estado garante que a conduta violadora
de obrigação internacional não vai mais se repetir. Apenas nos casos em que
existe risco de repetição da conduta. Pode ser fixado o dever do Estado de
investigar e punir os responsáveis pelas violações.
f) Sanções internacionais: são mecanismos políticos. A comunidade
internacional se junta e sanciona o Estado. Em regra, são políticas, mas podem
ser econômicas. O problema é que normalmente quem sofre com essas
sanções é a população vulnerável do Estado violador.

7. Discorra sobre as sanções internacionais no caso de


responsabilização do Estado por violações aos direitos humanos.
A comunidade internacional pode utilizar-se de sanções para coagir o
Estado a respeitar os direitos humanos. As sanções reconhecidas no plano
internacional são as sanções unilaterais ou contramedidas, as coletivas e
também a pressão moral ou social.

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A sanção unilateral ou contramedida consiste em conduta de um Estado,
que, se não fosse justificada como reação à prévia violação de obrigação
internacional por outro Estado, seria, por seu turno, ilícita em face do Direito
Internacional. O uso de contramedidas na defesa de direitos humanos é
polêmico e questionável, pois há evidente perigo de abuso por parte do Estado
mais forte, redundando em seletividade e ‘double standard’.
A sanção coletiva decorre de organizações internacionais e visa coagir os
Estados infratores a cumprir obrigações internacionais violadas. Ou seja, toda
medida adotada por organismos internacionais em reação à violação prévia de
obrigação internacional, quer tenha a medida caráter de mera retorsão (dano
aos interesses do Estado infrator, mas lícita aos olhos do direito internacional)
ou de represálias (medida que seria ilícita, se não tivesse sido tomada em
reação ao comportamento ilícito anterior do Estado infrator). Ex: No caso
interamericano, que interessa ao Brasil, cabe lembrar que o golpe haitiano foi o
impulso final para a redação do Protocolo de Washington de 14 de dezembro
de 1992, que reformou a Carta da OEA. Graças a esse Protocolo, deu-se nova
redação ao art. 9º da Carta, permitindo suspender qualquer Estado membro
cujo governo tenha sido destituído pela força, por maioria de dois terços.
A pressão moral ou social (mobilisation de la honte), por sua vez, decorre
de Estados ou da chamada ‘opinião pública mundial’. É a pressão moral ou
política de grupos de Estados, em face de outros Estados, apesar de não ser
vinculante, pode ser útil para convencer o Estado infrator a adotar medidas
reparadoras de violação dos direitos humanos.

8. Como são implementadas as sentenças oriundas de tribunais


internacionais de proteção dos dh?
Cumpre lembrar que a prática reiterada dos Estados e das Cortes
Internacionais é considerar a norma interna como ‘mero fato’, que expressa a
vontade do Estado, uma vez que o direito internacional possui suas próprias
fontes normativas e o Estado é considerado uno perante a comunidade
internacional. Assim, o direito interno apenas será utilizado se a norma
internacional lhe fizer remissão. A consequência de tal posicionamento é que o
Estado brasileiro não pode justificar o descumprimento de uma obrigação
internacional de direitos humanos, alegando a existência de norma
constitucional ou mesmo utilizando em sua defesa a teoria da separação de
poderes e o respeito à posição do STF.
Atente-se que a decisão de uma organização internacional não encontra
identidade em uma sentença judicial oriunda de Estado estrangeiro, logo, não é
necessário, nem autorizado por nosso ordenamento, homologação de sentença
internacional pelo STJ, sob pena de violação da CF, que estabelece os limites
da competência deste tribunal.
Para André Carvalho Ramos, com base nos comandos da CF que preveem
a obediência a ‘tratados internacionais de direitos humanos’ (art. 5º, §§ 2º, 3º,
CF) e, ainda, fundado no comando do art. 7º, ADCT, as decisões da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, cuja jurisdição o Brasil reconheceu, são
vinculantes e possuem força constitucional. Obs.: o capítulo versa sobre o
impacto das decisões judiciais internacionais no direito brasileiro, mas o ponto
de referência são as decisões da Corte IDH, pois o Brasil reconheceu sua
jurisdição.

62
Para a Corte IDH, o art. 68, da CADH traz duas regras de execução: a
primeira, de que a execução depende da normatividade interna – cabe a cada
Estado escolher a melhor forma de acordo com seu direito e a segunda prevê a
utilização de regras internas de execução de sentenças nacionais contra o
Estado para a execução da parte indenizatória.

A) Execução da indenização pecuniária.


O cumprimento das sentenças da Corte IDH é obrigação do Estado
brasileiro, o que implica o dever de cumprimento espontâneo pelo Estado. Já
há previsão orçamentária para pagamentos eventualmente ordenados pela
Corte e que serão realizados pelo Poder Executivo Federal (vide L.
12214/2010) – dotação a cargo da Secretaria Especial de Direitos Humanos.
Assim, fica superada a burocrática aprovação de lei federal para pagamento de
indenização às vítimas.

B) Execução das demais medidas exigidas pela sentença


judicial internacional
b.1) Leis de implementação: as chamadas enabling legislations ou
legislações nacionais de implementação das decisões de instâncias
internacionais de proteção de direitos humanos são raras. Pouco foi o avanço
das legislações específicas no contexto interamericano de incorporação interna
das decisões de responsabilidade internacional dos Estados por violação de
direitos humanos.
b.2) Projetos de lei no BR: deve-se fornecer baliza jurídica não somente
para o pagamento de indenizações, mas especialmente para execução das
obrigações de fazer e não fazer. André C. Ramos cita alguns projetos de lei que
surgiram no Congresso Nacional, mas nenhum vingou até o momento. Melhor
seria, segundo ele, que a futura lei de implementação restrinja-se a concretizar
os comandos das decisões vinculantes ao Brasil, abarcando também os
relatórios da Comissão Interamericana, pois ao reconhecer a necessidade de
implementar as deliberações da Comissão, visaria a impedir que esta viesse a
processar o BR perante a Corte IDH.
Com fins de efetivação das decisões dos tribunais de direitos humanos, é
necessário que se analisem os diferentes tipos de atos ensejadores de
responsabilidade internacional do Estado e as soluções possíveis de nosso
ordenamento para total implementação das decisões internacionais que
venham a condenar o Brasil.

C) Implementação pelo Executivo


As decisões internacionais vinculantes devem ser apropriadas pelo
Executivo e aqui implementadas. Na ausência disto, urge o apelo ao Judiciário,
seja pela própria vítima, seja pelo MP (interesse indisponível).
Pelo Executivo, pode ser realizada através de edição de atos
administrativos, propositura de projetos de lei, pagamento de reparações em
pecúnia e outros. No BR, temos a previsão de medidas provisórias a servir de
auxílio para implementar a decisão internacional, visto que a proteção de dh é
tema de urgência e relevância, aptas a justificá-la. Ex.: no caso Gomes Lund,
cabe ao Ministério da Justiça e ao Departamento de Polícia investigar os
desaparecimentos forçados, com respectivos inquéritos policiais federais. Além
disso, é do Executivo o dever de entregar arquivos e documentos sobre as

63
atividades do aparelho de repressão da ditadura militar na Guerrilha do
Araguaia e mesmo disponibilizar tratamento médico adequado aos familiares
das vítimas – idem para publicação da sentença e outras espécies de
satisfação.

D) Implementação pelo Legislativo


Os tratados impõem aos Estados o dever genérico de adaptar sua
legislação interna aos dispositivos internacionais. De fato, a responsabilização
internacional do Estado por ato do legislador ocorre quando o Estado falha
nessa tarefa de impor o disposto no tratado internacional, mesmo quando em
choque com os comandos legais internos. No caso americano, não há previsão
de satisfação equitativa (previsão de prestação pecuniária do Estado infrator na
impossibilidade de cumprimento de uma decisão, prevista para a Corte
europeia), cabendo diversos precedentes com obrigação de implementar
reformas legislativas.
No caso Tamayo, a Corte IDH, a partir do caso concreto, estipulou medidas
genéricas de reforma legislativa interna e estipulou curto prazo de 6 meses
para que esta forma de reparação fosse efetivada.
Nestes casos, para fazer cessar a violação de obrigação internacional, cabe
ao Estado adequar seu direito interno à normatividade internacional. A
adequação pode ser por meio de revogação pura e simples da lei violadora ou
interpretação conforme o texto convencional – esta última alternativa parece
mais viável, se considerada a lentidão do processo legislativo brasileiro. Cabe
ao Judiciário fornecer a interpretação da lei conforme a decisão da
responsabilização internacional.
No caso brasileiro, a vítima em potencial pode exigir o adimplemento da
decisão internacional face ao juiz interno e evitar sofrer os efeitos da norma
legal impugnada. Pode ser utilizada, processualmente, a ACP, que rege direitos
difusos, coletivos e individuais homogêneos, retratados no termo genérico
direitos humanos, pela normatividade internacional.
Obs.: a lei brasileira não é revogada pela decisão internacional. O
Judiciário apenas suspende os efeitos dela. A revogação depende de lei
posterior e manifestação do Congresso, o que não impede imediata exigência
pela vítima ou MP.
Obs.1: Além disso, tendo em vista a aceitação pela Corte IDH da visão
ampliativa do controle em abstrato de convencionalidade de lei ou ato
normativo interno, esta deve ser implementada internamente. Aceito este
posicionamento já ventilado na Corte, a execução desta decisão em abstrato
(sem vítima identificada) caberá a entes legitimados para a defesa da
sociedade pela ordem jurídica interna.

E) Implementação pelo Judiciário


Ocorre quando os outros órgãos não cumprem por vontade própria as
decisões internacionais. Há, contudo, uma espécie de ato estatal, que, se
violador de direitos humanos, pode causar dúvida quanto a sua correta
implementação. É o caso da decisão judicial transitada em julgado que tenha
sido considerada uma violação dos direitos humanos internacionalmente
protegidos.

64
Como todo ato estatal, decisão judicial transitada em julgado é passível de
ser analisada pelos órgãos internacionais quanto a sua compatibilidade com os
dispositivos do direito internacional de direitos humanos.
O órgão internacional que constata a responsabilidade internacional do
Estado não possui caráter de tribunal de apelação ou cassação, contra o qual
pode ser oposta a exceção da coisa julgada. A natureza jurídica de direito
internacional redunda na ausência de hierarquia entre o tribunal local e o órgão
internacional. Esta separação é justamente para evitar que eventuais exceções
processuais de direito interno sejam utilizadas para tolher o exercício da
jurisdição internacional. Além disso, na jurisdição internacional, as partes, e o
conteúdo da controvérsia são, por definição, distintos dos da jurisdição interna.
Obs.: na Europa, a preocupação em implementar decisões internacionais em
choque com decisões judiciais internas tem suscitado o estudo do uso de
instrumentos similares à ação rescisória.
Com a inclusão de decisão internacional como nova hipótese de cabimento
da rescisória, seria superada a eventual impossibilidade de fazer cumprir
decisão internacional, em face do princípio interno do respeito à coisa julgada.
Entretanto, André Carvalho considera não ser necessária a modificação
legislativa. Isto porque a decisão internacional é a constatação da
responsabilidade internacional do Estado por violação de direitos humanos,
devendo o Estado, por mandamento constitucional, implementar a sentença –
art. 5º, §§ 2º e 3º, CF e 7º, ADCT.
Seria possível a implementação do comando pelo próprio Executivo, pois a
decisão interna não conflita com a internacional (teoria do duplo controle) e, na
sua inércia, cabível provocação pela vítima ou pelo MP.
Devemos pensar que, no limite, o Judiciário nacional também depende de
legitimidade social e a erosão desta legitimidade pelo desrespeito aos dh é um
cenário extremamente grave para qualquer julgador.
Obs.: André C. Ramos dá destaque ao papel do MP na implementação das
decisões internacionais, utilizando-se de seus poderes judiciais e extrajudiciais
de instrumentos como ACP, ação penal pública, ação de improbidade, IDC,
controle abstrato de constitucionalidade etc.
Importante ressaltar, que a Defensoria Pública também tem legitimidade para
atuação em matéria de direitos coletivos em sentido lato, podendo assumir o
papel na implementação de decisões condizentes com sua missão institucional.

PONTO 10
O controle de convencionalidade.
1. Conceitue o que é Controle de Convencionalidade.
O controle de convencionalidade pode ser conceituado como a análise da
compatibilidade das normas internas às normas de tratados internacionais de
Direitos Humanos ratificados pelo Brasil e do cumprimento das obrigações
estatais em virtude desses tratados. O controle não pode se limitar a
meramente citar o texto das convenções, mas deve observar a interpretação
realizada pelos órgãos internacionais de Direitos Humanos instituídos pelos
tratados.

2. Quais são as modalidades de controle apontadas pela doutrina?


Segundo André de Carvalho Ramos, podem ser apontadas duas
modalidades de controle. O controle de convencionalidade internacional,
65
também conhecido como autêntico, que é a atividade de fiscalização efetivada
pelos órgãos e mecanismos internacionais e o controle de convencionalidade
nacional, que é aquele realizado pelos tribunais domésticos. O Dr. Valério
Mazzuolli ainda classifica o controle de convencionalidade em abstrato e
difuso. Segundo o autor, abstrato é o controle de convencionalidade realizado
pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de ADI e ADPF e, que tem por
parâmetro tratado internacional internalizado pelo rito das emendas
constitucionais. Já o controle difuso, é aquele realizado por qualquer juiz ou
tribunal e que tem por parâmetro qualquer tratado internacional.

3. Por que o controle internacional é chamado de autêntico?


No voto proferido pelo então Juiz ad hoc da Corte Interamericana de
Direitos Humanos Roberto Caldas, no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil,
este asseverou que aos tribunais supremos ou as cortes constitucionais
nacionais incumbe o controle de constitucionalidade e a última palavra no
âmbito interno, à Corte Interamericana de Direitos Humanos cabe o controle de
convencionalidade e a última palavra quando o tema encerre debate sobre
direitos humanos. Segundo ele, isso decore do reconhecimento formal da
competência jurisdicional da corte.

4. A Corte Interamericana realiza o controle de convencionalidade apenas


de forma contenciosa?
Não. A Corte Interamericana de Direitos Humanos possui duas importantes
competências, a consultiva e a contenciosa. Por meio da competência
consultiva a corte emite pareceres sobre a interpretação da dos Tratados de
Direitos Humanos do Sistema interamericano, sobre quaisquer tratados de
direitos humanos aplicáveis aos Estados partes (ainda que o tratado não
pertença ao Sistema Interamericano – Opinião Consultiva 1/82) e sobre a
compatibilidade das leis domésticas dos Estados partes com os tratados.
Assim, ao emitir uma Opinião Consultiva a Corte também efetua controle de
convencionalidade. A doutrina afirma que esse controle é abstrato, pois não se
vincula a nenhum caso concreto. Até esta data a Corte Interamericana emitiu
21 Opiniões Consultivas. Um exemplo de controle de convencionalidade
operado por meio de Opinião Consultiva é a Opinião Consultiva n. 4/84, por
meio da qual a Corte Interamericana analisou a compatibilidade de proposta de
alteração legislativa de normas internas do estado da Costa Rica referente à
nacionalidade com a Convenção Americana de Direitos Humanos.

5. Qual a postura da Corte Interamericana sobre o controle de


convencionalidade nacional?
A Corte Interamericana tem incentivado o controle de convencionalidade
pelos juízes dos Estados partes, o que vem constando, inclusive, de seus
informes anuais. A realização desse controle é importante, pois pode prevenir
futura condenação do Estado parte.

6. Quais são os riscos de um controle interno que não considere o


controle internacional?
A admissibilidade de um controle nacional que não considere o controle
autêntico possibilita que um Estado assuma internacionalmente compromissos
na seara do Direitos Humanos, mas internamente os descumpra alegando

66
seguir sua própria interpretação. Esse fenômeno foi chamado por André de
Carvalho Ramos de “truque de ilusionista” e cria “tratados internacionais
internos”, na medida em que prestigia a interpretação doméstica, por vezes,
apartada e conflitante com a interpretação realizada pelo interprete autentico.
Por meio do “truque de ilusionismo” os tratados de direitos humanos são
transformados em verdadeiras peças de retórica, em direitos de papel.

7. O que é Diálogo das Cortes?


O Diálogo das Cortes, também chamado de fertilização cruzada entre
tribunais internos e internacionais, é uma teoria criada pelo Professor André de
Carvalho Ramos. Segundo seu magistério, essa teoria é uma forma de superar
interpretações conflitantes, pois impõe aos tribunais internos que dialoguem
com as Cortes Internacionais de modo a observar sua jurisprudência na
decisão de um caso internamente. É necessário que os tribunais domésticos e
internacionais andem lado a lado para que a proteção internacional dos direitos
humanos se perfectibilize da melhor maneira possível. Com a adoção do
“diálogo das cortes”, haveria uma maior interação entre os tribunais nacionais e
internacionais e, consequentemente, menos ações de responsabilização por
violações de direitos humanos, dado que os entendimentos dos tribunais
nacionais estariam, muito provavelmente, alinhados com a jurisprudência das
cortes internacionais. Sobre o diálogo das cortes, é a lição de André de
Carvalho Ramos: “[...] como seria possível a execução da parte central da
condenação brasileira no caso Gomes Lund, que é justamente a obrigação de
investigar, perseguir em juízo e punir criminalmente os agentes da ditadura
militar que violaram barbaramente os direitos humanos naquele período? Antes
de responder, parto da seguinte premissa: não há conflito insolúvel entre às
decisões do STF e da Corte de San José, uma vez que ambos os tribunais têm
a grave incumbência de proteger os direitos humanos. Eventuais conflitos são
apenas conflitos aparentes, fruto do pluralismo normativo que assola o mundo
de hoje, aptos a serem solucionados pela via hermenêutica. Para resolver
esses conflitos aparentes, há dois entendimentos. O primeiro deles é
preventivo e consiste no apelo ao ‘Diálogo das Cortes’ e à fertilização cruzada
entre os tribunais. Com isso, antevejo, no futuro, o uso pelo STF das posições
dos diversos órgãos internacionais de direitos humanos aos quais o Brasil já se
submeteu. Claro que não é possível obrigar os juízos nacionais ao ‘diálogo das
Cortes’, pois isso desnaturaria a independência funcional e o Estado
Democrático de Direito. No atual estágio da proteção internacional dos direitos
humanos, o critério do diálogo das cortes é, na maioria das vezes, insuficiente.
No Brasil, o próprio Supremo Tribunal Federal tem postura lamentável ao
ignorar, na grande maioria dos casos, os precedentes da Corte Interamericana
de Direitos Humanos, fazendo-lhes menção apenas quando determinado
entendimento da Corte IDH corrobora o entendimento que o Pretório Excelso
pretende que prevaleça”.

8. O que é Teoria do Duplo Controle?


A Teoria do Duplo Controle, de criação do Professor André de Carvalho
Ramos, reconhece a atuação separada do controle de convencionalidade e do
controle de constitucionalidade. Por essa teoria, um ato interno para ser válido,
deveria passar pelos dois controles. A tese encontra fundamento na
Constituição Federal, pois esta previu e reconhece a competência de ambas as

67
jurisdições (STF – artigo 102 CF e Tribunal Internacional de Direitos Humanos
– artigo 7º ADCT). Caracterizado o fracasso ou insuficiência da teoria “diálogo
das cortes”, o interprete pode lançar mão da teoria do duplo controle (ou duplo
crivo) de direitos humanos para tentar solucionar a divergência entre a
jurisprudência nacional e a internacional. Segundo essa teoria, os direitos
humanos possuem no Brasil uma dupla garantia: controle abstrato de
constitucionalidade, exercido pelo Supremo Tribunal Federal, e o controle de
convencionalidade autêntico, exercido pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos. Assim, com base na teoria do duplo controle de direitos humanos,
seria possível dirimir uma eventual controvérsia aparente entre uma decisão do
Supremo Tribunal Federal e uma decisão da Corte Interamericana de Direitos
Humanos; seria necessário para tanto que o entendimento esposado por
ambas as Cortes respeite ao mesmo tempo o crivo da constitucionalidade e o
crivo da convencionalidade. Vejamos a lição do criador da teoria do duplo
controle, André de Carvalho Ramos: “De um lado, o STF, que é o guardião da
Constituição e exerce o controle de constitucionalidade. Por exemplo, na ADPF
153 (controle abstrato de constitucionalidade), a maioria dos votos decidiu que
o formato amplo de anistia foi recepcionado pela nova ordem constitucional.
Por outro lado, a Corte de San José é guardiã da Convenção Americana de
Direitos Humanos e dos tratados de direitos humanos que possam ser
conexos. Exerce, então, o controle de convencionalidade. Para a Corte IDH, a
Lei da Anistia não é passível de ser invocada pelos agentes da ditadura. Com
base nessa separação, é possível dirimir o conflito aparente entre uma decisão
do STF e da Corte de San José. Assim, ao mesmo tempo em que se respeita o
crivo de constitucionalidade do STF, deve ser incorporado o crivo de
convencionalidade da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Todo ato
interno (não importa a natureza ou origem) deve obediência aos dois crivos.
Caso não supere um deles (por violar direitos humanos), deve o Estado envidar
todos esforços para cessar a conduta ilícita e reparar os danos causados. No
caso da ADPF 153 houve o controle de constitucionalidade. No caso Gomes
Lund, houve o controle de convencionalidade. A anistia aos agentes da
ditadura, para subsistir, deveria ter sobrevivido intacta aos dois controles, mas
só passou (com votos contrários, diga-se) por um, o controle de
constitucionalidade. Foi destroçada no controle de convencionalidade. Cabe,
agora, aos órgãos internos (Ministério Público, Poderes Executivos, Legislativo
e Judiciário) cumprirem a sentença internacional. A partir da teoria do duplo
controle, agora deveremos exigir que todo ato interno se conforme não só ao
teor da jurisprudência do STF, mas também ao teor da jurisprudência
interamericana, cujo conteúdo deve ser estudado já nas Faculdades de Direito
”. Ainda sobre a teoria do duplo controle, é importante ressaltar que o Ministério
Público Federal adota essa teoria, conforme o parecer do PGR na ADPF 320,
que será julgada pelo Supremo Tribunal Federal em um futuro próximo.

9. O que é a teoria da margem de apreciação? É adotada no Brasil?


A teoria da margem de apreciação é oriunda da jurisprudência da Corte
Europeia. Segunda essa teoria determinados temas, notadamente quando
versarem sobre assuntos muito polêmicos (Caso Cossey vs. Reino Unido –
versava sobre mudança de identidade de transexual e caso Goodwin vs. Reino
Unido – versava sobre mudança de sexo de transexual) devem ser decididos

68
pelas cortes internas e de acordo com a legislação doméstica, os costumes,
princípios morais, diretrizes econômicas, sociais e culturais do Estado parte, o
qual teria, deste modo, uma margem para apreciar o caso posto. Essa teoria
revela o velho conflito entre universalismo e relativismo cultural. A Corte
Interamericana não adota a teoria da margem de apreciação e até mesmo no
sistema europeu a teoria vem tendo seu alcance reduzido.

10. O Tribunais Nacionais tem observado a jurisprudência da Corte


Interamericana em suas decisões?
No RE 511.961, o STF decidiu que o artigo 4º, V, do Decreto Lei 972/1969,
que exigia o diploma de jornalista para o exercício da mencionada profissão,
não fora recepcionado pela Constituição Federal, por ferir a liberdade de
imprensa e a livre manifestação do pensamento. Na decisão da causa o STF
considerou que a exigência violava o disposto no artigo 13 da Convenção
Americana de Direitos Humanos e a Opinião Consultiva n. 5/85 (parênteses –
em abril de 2015 o Senado aprovou em segundo turno uma PEC que insere no
texto da Constituição a exigência de diploma de jornalista para o exercício da
profissão). No RE 466343 o STF decidiu que a prisão do depositário infiel, em
qualquer de suas modalidades, violava o Pacto de São José da Costa Rica,
pois o diploma em seu artigo 7º, veda a prisão por dívida. Posteriormente foi
editada a Súmula Vinculante número 25 contemplando a vedação da prisão do
depositário infiel. Em 2015, o Juiz Alexandre Morais da Rosa, aplicando a
Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão, aprovada em 2000,
no âmbito da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, absolveu um
acusado por crime de desacato e resistência, por entender que a tipificação de
tais condutas como delituosas vulnerava a liberdade de expressão assegurada
no artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Todavia, em
regra, os tribunais desconsideram totalmente em suas decisões os tratados
internacionais de direitos humanos e a jurisprudência internacional sobre o
tema. Caso emblemático sobre os problemas que podem ensejar a ausência
de observância da jurisprudência internacional sobre direitos humanos foi o
conflito ocorrido entre decisão do STF e da Corte Interamericana. O STF
estava julgando a ADPF 153 que buscava dar interpretação conforme à Lei de
Anistia. Concomitantemente o a Corte Interamericana conhecia o caso Gomes
Lund (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil. O Supremo Tribunal Federal,
desconsiderando a extensa jurisprudência da Corte sobre a
inconvencionalidade das leis de anistia (Caso Barrios Altos v. Peru, Caso
Almonacid Arellano e Outros v. Chile) entendeu que a Lei de Anistia é
constitucional. A Inicial do CFAOB sequer citou a Convenção Americana. A
maioria dos ministros sequer citou a jurisprudência da Corte. Poucos meses
depois o Brasil foi duramente condenado pela Corte Interamericana por
violação dos direitos humanos dos desaparecidos na Guerrilha do Araguaia e
seus familiares. A Corte entendeu que a lei de anistia impediu que o Brasil,
investigasse, processasse e punisse os violadores de direitos humanos.

11. Candidato, me detalhe melhor esse caso Gomes Lund vs. Brasil.
Excelência, o caso Gomes Lund e outros vs. Brasil, popularmente
conhecido como “caso Guerrilha do Araguaia”, versa sobre a responsabilidade
do Estado brasileiro pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento

69
forçado de aproximadamente setenta pessoas, entre elas integrantes do PCB
(Partido Comunista Brasileiro) e camponeses da região do Araguaia, situada no
Estado do Tocantins, entre 1972 e 1975. A maioria das vítimas desaparecidas
integrava (ou pelo menos havia uma suspeita de que o fizessem) o movimento
de resistência intitulado “Guerrilha do Araguaia”, conhecido por realizar atos de
resistência e oposição aos militares. Naquela época, o governo do Estado
brasileiro implementou ações com o objetivo de exterminar todos os integrantes
do movimento “Guerrilha do Araguaia”, no que obteve êxito. Ocorre que, no dia
28 de agosto de 1979, o Brasil aprovou a Lei Federal nº 6.683, popularmente
conhecida como “Lei da Anistia”. Esse diploma normativo perdoou todos
aqueles que haviam cometidos crimes políticos ou conexos com eles no
período da ditadura militar, o que acabou gerando a irresponsabilidade de
todos os agentes do Estado brasileiro que participaram dos massacres
ocorridos no período da ditadura, inclusive em relação aos fatos ocorridos na
região do Araguaia. A controvérsia chegou até a Comissão Americana de
Direitos Humanos no dia 07 de agosto de 1995, através de petição
apresentada pelo Centro de Justiça e de Direito Internacional (CEIJL) e
também pela organização não-governamental Human Rights Watch, em nome
dos familiares dos desaparecidos na região do Araguaia. No dia 21 de
novembro de 2008, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos aprovou
um relatório de mérito sobre o feito, com o propósito de que o Brasil adotasse
suas recomendações. O prazo foi prorrogado duas vezes sem que o Estado se
manifestasse sobre o caso, o que levou a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos a submeter o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos. A
Comissão pugnou pela responsabilização do Estado brasileiro pela violação
dos seguintes dispositivos da Convenção Americana de Direitos Humanos:
artigo 3º (direito ao reconhecimento da personalidade jurídica), artigo 4º (direito
à vida), artigo 5º (direito à integridade pessoal), artigo 7º (direito à liberdade
pessoal), artigo 8º (garantias judiciais), artigo 13 (liberdade de pensamento e
de expressão) e artigo 25 (proteção judicial). A Comissão Interamericana de
Direitos Humanos ainda fez referência à promulgação da Lei da Anistia no
Estado brasileiro, que ocasionou a não-realização da investigação penal e do
cumprimento do dever de perseguir e julgar os responsáveis pelos massacres
no caso Gomes Lund vs. Brasil. O Estado Brasileiro alegou quatro exceções
preliminares, postulando que a Corte: a) não poderia atuar como uma “quarta
instância” diante do Judiciário Brasileiro; b) declarasse a sua incompetência,
em razão dos fatos ocorridos no caso “Guerrilha do Araguaia” terem ocorrido
antes da aceitação da jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos
pelo Brasil (cláusula ratione temporis); c) a falta de interesse processual dos
representantes das vítimas no caso; d) a falta do esgotamento dos recursos
administrativos. Entretanto, nenhuma destas exceções foi acolhida pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos, que passou a julgar o mérito da causa.
No mérito, a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu por
unanimidade que: “3. As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem
a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são
incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não
podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do
caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco
podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves
violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana

70
ocorridos no Brasil. 4. O Estado é responsável pelo desaparecimento forçado
e, portanto, pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade
jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal, estabelecidos nos
artigos 3, 4, 5 e 7 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em
relação com o artigo 1.1 desse instrumento, em prejuízo das pessoas
indicadas no parágrafo 125 da presente Sentença, em conformidade com o
exposto nos parágrafos 101 a 125 da mesma. 5. O Estado descumpriu a
obrigação de adequar seu direito interno à Convenção Americana sobre
Direitos Humanos, contida em seu artigo 2, em relação aos artigos 8.1, 25 e
1.1 do mesmo instrumento, como consequência da interpretação e aplicação
que foi dada à Lei de Anistia a respeito de graves violações de direitos
humanos. Da mesma maneira, o Estado é responsável pela violação dos
direitos às garantias judiciais e à proteção judicial previstos nos artigos 8.1 e
25.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação aos
artigos 1.1 e 2 desse instrumento, pela falta de investigação dos fatos do
presente caso, bem como pela falta de julgamento e sanção dos responsáveis,
em prejuízo dos familiares das pessoas desaparecidas e da pessoa executada,
indicados nos parágrafos 180 e 181 da presente Sentença, nos termos dos
parágrafos 137 a 182 da mesma. 6. O Estado é responsável pela violação do
direito à liberdade de pensamento e de expressão consagrado no artigo 13 da
Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação com os artigos 1.1,
8.1 e 25 desse instrumento, pela afetação do direito a buscar e a receber
informação, bem como do direito de conhecer a verdade sobre o ocorrido. Da
mesma maneira, o Estado é responsável pela violação dos direitos às
garantias judiciais estabelecidos no artigo 8.1 da Convenção Americana, em
relação com os artigos 1.1 e 13.1 do mesmo instrumento, por exceder o prazo
razoável da Ação Ordinária, todo o anterior em prejuízo dos familiares
indicados nos parágrafos 212, 213 e 225 da presente Sentença, em
conformidade com o exposto nos parágrafos 196 a 225 desta mesma decisão.
7. O Estado é responsável pela violação do direito à integridade pessoal,
consagrado no artigo 5.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos,
em relação com o artigo 1.1 desse mesmo instrumento, em prejuízo dos
familiares indicados nos parágrafos 243 e 244 da presente Sentença, em
conformidade com o exposto nos parágrafos 235 a 244 desta mesma decisão
10 ”. Nesse sentido, a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu que a
sua sentença constitui per se uma forma de separação, além de outras
medidas que devem ser tomadas pelo Brasil como forma de reparação no caso
Gomes Lund e Outros vs. Brasil. São elas: 1. O Estado deverá conduzir
eficazmente a investigação penal dos fatos do presente caso, esclarecer,
responsabilizar penalmente e aplicar sanções e consequências dispostas em
lei; 2. Determinar os autores materiais e intelectuais do desaparecimento
forçado das vítimas e da execução extrajudicial; 3. O Estado não poderá aplicar
a lei de anistia em benefício dos autores, ou qualquer excludente similar de
responsabilidade para eximir-se da obrigação; 4. As autoridades que realizarão
as investigações disponham de todos os recursos necessários para realizá-las
da melhor forma possível, as pessoas que participem da investigação recebam
a devida segurança, não sejam realizados atos que prejudiquem o processo
investigativo; 5. Que os supostos responsáveis militares sejam julgados em
jurisdição ordinária e não em jurisdição militar; 6. O resultado dos processos
deverá ser publicamente divulgado, para que a sociedade brasileira conheça os

71
fatos, objeto do presente caso; 7. O Estado deve esforçar-se para que, com
brevidade, sejam encontrados os restos mortais das vítimas da Guerrilha do
Araguaia. O Estado também deve ser encarregado de custear possíveis
despesas funerárias; 8. Conceder o prazo de seis meses, contados a partir da
notificação da sentença para requerer atendimento psicológico e psiquiátrico,
que deverá ser prestado por entidades públicas, na localidade mais próxima à
vítima, e os medicamentos necessários; 9. A sentença deverá ser publicada no
Diário Oficial e também em um jornal de grande circulação nacional. A
sentença ainda deve ser publicada em formato de livro eletrônico na internet;
10. Deve ser realizado um ato público para o reconhecimento de
responsabilidade internacional, no prazo de um ano após a publicação da
sentença, na presença de altas autoridades nacionais, com cobertura do
evento pela imprensa; 11. O Estado brasileiro deverá implementar, em prazo
razoável, um programa ou curso permanente e obrigatório sobre direitos
humanos em todos os níveis das forças armadas; 12. Realizar a tipificação do
delito de desaparecimento forçado; 13. O Estado brasileiro deverá adotar
medidas legislativas que reforcem o acesso à informação da população; 14.
Realizar a criação de uma Comissão da Verdade para que se investigue e se
faça conhecer toda a verdade sobre os fatos ocorridos no período da ditadura
militar; 15. O pagamento da quantia de US$ 3.000,00 (três mil dólares) para
cada familiar da vítima pelo dano material; 16. O pagamento da quantia de US$
45.000,00 (quarenta e cinco mil dólares) para cada familiar direto e de US$
15.000,00 (quinze mil dólares) para cada familiar indireto; 17. O pagamento de
US$ 5.000,00 (cinco mil dólares) aos familiares e US$ 35.000,00 (trinta e cinco
mil dólares) a favor do grupo “Tortura Nunca Mais” da Comissão de Familiares
de Mortos e Desaparecidos Políticos de São Paulo e do Centro pela Justiça e o
Direito Internacional, respectivamente a título de custas e gastos. No dia 21 de
outubro de 2008, o Conselho Federal da OAB ajuizou uma ADPF almejando
conferir interpretação conforme a Constituição para que a Lei da Anistia
brasileira fosse interpretada no sentido de excluir os agentes da ditadura militar
dos seus efeitos. Em síntese, o Conselho Federal da OAB invocou preceitos
fundamentais constitucionais como o princípio da igualdade, o direito à
verdade, o princípio republicano e a dignidade da pessoa humana. Ocorre que,
no dia 28 de abril de 2010, o Supremo Tribunal Federal julgou improcedente a
demanda proposta pelo CFOAB. Segundo o Pretório Excelso, a Lei da Anistia
deve ser aplicada aos atos criminosos cometidos pelos agentes da ditadura. Já
no dia 24 de novembro de 2010, quase sete meses após a decisão proferida
pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 153, a Corte Interamericana de
Direitos Humanos julgou o caso Gomes Lund e outros vs. Brasil, reconhecendo
a invalidade da Lei de Anistia brasileira e condenando o Estado brasileiro a
investigar e punir os agentes da ditadura militar pelas graves violações de
direitos humanos ocasionadas na região do Araguaia durante o período
ditatorial. Segundo a Corte Interamericana de Direitos Humanos, são
incompatíveis com a Convenção Americana de Direitos Humanos todas as
anistias de graves violações de direitos humanos e não somente as
“autoanistias”. Desse modo, restou instalada uma divergência entre a
jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do Supremo
Tribunal Federal.

12. O que é teoria da quarta instância?

72
A teoria da quarta instância é comumente sustentada pelos estados como
exceção preliminar. O Brasil invocou tal defesa no caso Gomes Lund. Vs
Brasil. A mencionada defesa consiste em sustentar que a Corte Interamericana
não pode funcionar como uma instância revisora das decisões internas,
convertendo-se, deste modo, em uma quarta instância. No caso Gomes Lund.
Vs. Brasil, a exceção alegada pelo Estado brasileiro não foi acolhida pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos, sob o argumento de que não há qualquer
hierarquia entre o Supremo Tribunal Federal e a Corte Interamericana de
Direitos Humanos. O que deve haver é uma relação de diálogo,
complementaridade e reciprocidade, mas jamais de hierarquia. A Corte IDH
não possui o intuito de revisar as decisões das cortes internas, mas apenas de
realizar o controle de convencionalidade das leis em face da Convenção
Americana de Direitos Humanos. Desse modo, a Corte Interamericana de
Direitos Humanos não pode ser rotulada como uma “quarta instância” perante
a hierarquia do Judiciário, seja ele brasileiro ou de outro Estado-membro da
Convenção Americana de Direitos Humanos.

13. A doutrina afirma que o caso Gomes Lund vs. Brasil se refere à
Justiça de Transição. Me explique o que é justiça de transição.
Entende-se por justiça de transição (ou “transitional justice”) um conjunto
de mecanismos judiciais ou extrajudiciais utilizados por uma sociedade como
um ritual de passagem à ordem democrática após graves violações de direitos
humanos por regimes autoritários e ditatoriais, de forma que se assegure a
responsabilidade dos violadores de direitos humanos, o resguardo da justiça e
a busca da reconciliação. Assim, a justiça de transição compreende diversas
práticas administrativas e judiciais que visam deslegitimar o regime
antidemocrático anterior, como por exemplo, prover indenizações aos familiares
das vítimas, responsabilizar o Estado pelos abusos cometidos, etc.
Historicamente, o conceito de “justiça de transição” e suas quatro dimensões é
de autoria do Conselho de Segurança da ONU. Vejamos o conceito Onusiano
proferido por Jorge Chediek, representante residente do Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e coordenador residente do Sistema
ONU Brasil: “Para a família da ONU, justiça de transição é o conjunto de
mecanismos usados para tratar o legado histórico da violência dos regimes
autoritários. Em seus elementos centrais estão a verdade e a memória, através
do conhecimento dos fatos e do resgate da história. Se o Desenvolvimento
Humano só existe de fato quando abrange também o reconhecimento dos
direitos das pessoas, podemos dizer que temos a obrigação moral de apoiar a
criação de mecanismos e processos que promovam a justiça e a reconciliação.
No Brasil, tanto a Comissão de Anistia quanto a Comissão da Verdade
configuram-se como ferramentas vitais para o processo histórico de resgate e
reparação, capazes de garantir procedimentos mais transparentes e eficazes.
É papel da ONU, como agente de mudança e de transformação, sensibilizar e
predicar àqueles que não compartilham destes ideais a importância da
construção e do respeito aos Direitos Humanos, pedra fundamental sobre a
qual está edificada a Carta das Nações Unidas. É através desse prisma que os
ideais de um mundo mais justo e pacífico devem ser concretizados. Justiça,
paz e democracia não são objetivos que se excluem. Ao contrário, são
imperativos que se reforçam.

73
14. Quais são as dimensões da justiça de transição?
O Conselho de Segurança da ONU definiu quatro práticas para lidar com o
regime de exceção. A doutrina costuma chamar essas facetas de “dimensões”.
São elas: a) direito à memória e à verdade; b) direito à reparação das vítimas
(e seus familiares); c) o adequado tratamento jurídico aos crimes cometidos no
passado; d) a reforma das instituições para a democracia. O Direito à verdade
e à memória: O direito à verdade e à memória nada mais é do que uma busca
de toda informação ou esclarecimento de interesse público para que a
população que saiba o que realmente aconteceu ou não durante o período do
regime antidemocrático. Essa faceta da justiça de transição pode ser
concretizada através de medidas administrativas, resguardando a história do
país afetado pelo regime antidemocrático, e também através de ações judiciais
que visem obter a devida reparação pelos danos sofridos no regime
antidemocrático, bem como responsabilizar os responsáveis pelas violações de
direitos humanos. Nessa linha, André de Carvalho Ramos esclarece que o
direito à verdade e à memória é dotado de uma dupla finalidade. Vejamos o
esclarecimento do autor: “O direito à verdade consiste na exigência de toda
informação de interesse público, bem como exigir o esclarecimento de
situações inverídicas relacionadas a violações de direitos humanos. Tem dupla
finalidade: o conhecimento e também o reconhecimento das situações,
combatendo a mentira e a negação de eventos, o que concretiza o direito à
memória. […] O direito à verdade é concretizado tanto na sua faceta histórica,
mediante Comissões da Verdade, quanto na sua faceta judicial (fruto das
ações judiciais – cíveis e criminais – de punição dos agentes responsáveis)”.
Direito à reparação das vítimas: Essa dimensão da justiça de transição pode
ser realizada tanto pela Corte Interamericana de Direitos Humanos quanto pelo
próprio Judiciário brasileiro. O direito à reparação das vítimas pode ocorrer de
inúmeras maneiras, tais como: a publicação da sentença da Corte
Interamericana de Direitos Humanos no Diário Oficial da União como pedido de
desculpas; a descoberta do que efetivamente ocorreu no período do regime
antidemocrático; a localização dos corpos das vítimas do delito de
desaparecimento forçado no período ditatorial; a concessão de indenizações
para os familiares das vítimas, etc. No caso Gomes Lund e outros vs. Brasil, a
Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiro a
indenizar diversos familiares das vítimas desaparecidas na região do Araguaia.
Além disso, e como concretização do direito à reparação das vítimas (e seus
familiares), o Judiciário brasileiro vem entendendo que a Lei de Anistia não
pode ser estendida à esfera civil, o que possibilita que as pessoas suspeitas de
cometer atos ilícitos no período entre 1961 e 1979 possam ser demandadas na
justiça para que reparem seus danos. Assim, a Lei de Anistia não obsta à
propositura de ações indenizatórias e o entendimento do STJ de que as
pretensões reparatórias por violações a direitos humanos consubstanciadas em
tortura são imprescritíveis. O STJ entende que a anistia, na forma como
outorgada, afastou a possibilidade de persecução penal dos autores de graves
violações a direitos humanos, mas os efeitos cíveis dessas violações
remanescem, sendo reiteradamente reconhecidos pela via administrativa e
judicial. Tanto é assim que o direito às indenizações continua a ser
reiteradamente reconhecido, seja na via administrativa, seja na via judicial,
revelando-se plenamente hígido, com fundamento em uma interpretação
sistemática e teleológica, humanista e democrática, a pretensão declaratória de

74
responsabilidade pelos danos morais advindos de atos de tortura ser formulada
individualmente em face daquele que foi beneficiado penalmente pela anistia.
O adequado tratamento jurídico aos crimes cometidos no passado, que impõe
a investigação, processo e punição dos agentes da ditadura que cometeram
graves violações de direitos humanos durante a ditadura. Reforma das
instituições para a democracia: Desde o advento da Constituição Federal de
1988, o Brasil vem em uma crescente para o cumprimento dessa dimensão da
justiça de transição. A Constituição Federal de 1988 estabeleceu no Brasil o
que muitos entendem como o regime mais democrático de toda a história
brasileira. Nesta linha, as próprias Forças Armadas passaram por um processo
de reformulação e democratização desde o fim do período ditatorial.
Atualmente, a liberdade de expressão, a liberdade de ir e vir, o direito de
reunião e o direito de associação, estão consagrados como direitos
fundamentais e não podem sofrer limitação arbitrária por parte do Estado.
Entretanto, se reconhece que o Brasil ainda pode melhorar seu regime
democrático, principalmente no que tange a concretização de direitos sociais.

15. Foi ajuizada uma outra ADPF sobre versando sobre a Lei da Anistia e
o caso Gomes Lund vs. Brasil. Me fale sobre essa ação.
Irresignado com a postura do Estado brasileiro diante da inércia e do não-
cumprimento da decisão proferida pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil, o Partido Socialismo e
Liberdade (PSOL) ingressou no dia 15 de maio de 2014 com uma ADPF no
Supremo Tribunal Federal para que a corte máxima do Judiciário brasileiro
reconheça a validade e o efeito vinculante da decisão proferida pela Corte IDH
no caso da Guerrilha do Araguaia. Embora possa parecer um tanto confuso,
não há que se falar em qualquer conflito entre a ADPF 153 (já julgada pelo
Supremo Tribunal Federal) e a ADPF 320 proposta pelo PSOL em 2014, visto
que são ações com pretensões diversas. O objetivo da ADPF 153, proposta
pelo Conselho Federal da OAB, era que o STF adotasse uma interpretação da
Lei de Anistia, nos conformes da Constituição, de forma a excluir do alcance de
sua proteção os agentes da ditadura. O STF decidiu pela improcedência da
primeira ADPF. Já na ADPF 320, o objetivo da demanda é obter do Supremo
Tribunal Federal o reconhecimento da validade e do caráter vinculante da
decisão proferida no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil. Assim, não há que
se falar em qualquer conflito ou violação ao princípio do ne bis in idem neste
caso.

PONTO 11
O direito da autodiscriminação: discriminação direta e indireta e ações
afirmativas.
1. Qual o conceito de discriminação indireta? No que se difere da
discriminação direta?
Roger Raupp Rios, em sua obra “Direito da Antidiscriminação”, ao tratar da
discriminação indireta, explica que ocorre uma discriminação indireta,
(“disparate impact”), quando um ato aparentemente neutro e igualitário tem o
efeito de colocar indivíduos ou grupos de desvantagem ou em perda de
direitos. Enquanto na discriminação direta há um ato volitivo de discriminar, de
retirar direitos ou colocar um grupo em desvantagem, na discriminação indireta
essa vontade não existe ou não é detectável, porém do ato resultam essas
75
consequências negativas. A “Convenção Internacional sobre a eliminação de
todas as formas de discriminação racial” prevê especialmente a hipótese de
discriminação indireta4.

2. Cite um exemplo de discriminação indireta presente no ordenamento


jurídico brasileiro.
Cita-se como exemplo a criminalização da prática do aborto, sob uma
aparente neutralidade viola a igualdade, na medida em que gera um impacto
desproporcional sobre as mulheres (principalmente as mulheres pobres), já que
as afeta com intensidade incomparavelmente maior do que aos homens, de
forma tendente a perpetuar a assimetria de poder entre os gêneros presente
em nossa sociedade. De acordo com Daniel Sarmento 5 tratar-se-ia, aqui, da
aplicação da doutrina do impacto desproporcional, também conhecida com
teoria da discriminação indireta, da qual decorre a invalidade de normas que,
apesar de regulares, na sua aparência, geram, em sua aplicação, um ônus
desproporcional para grupos vulneráveis. A aplicação desta teoria é de grande
importância nas questões de gênero6.

3. Toda discriminação viola o princípio da igualdade?


Celso Antônio Bandeira de Mello, ao delinear sua teoria sobre o Conteúdo
Jurídico do Princípio da Igualdade, trata de discriminações que devem ser
aceitas em nosso ordenamento jurídico desde que guardem relação com este.
Tais discriminações consistem em atos legitimados pelo legislador a fim de
suprir uma desigualdade já existente. Segundo o doutrinador para que o
discrímem legal seja conveniente com a isonomia, é necessário que concorram
quatro elementos: a) que a desequiparação não atinja, de modo atual e
absoluto, um só indivíduo; b) que as situações ou pessoas desequiparadas
pela regra de direito sejam efetivamente distintas entre si, vale dizer, possuam
características, traços, nelas residentes, diferençados; c) que exista, em
abstrato, uma correlação lógica entre os fatores diferenciais existentes e a
distinção de regime jurídico em função deles, estabelecida pela norma jurídica;
d) que, in concreto, o vínculo de correlação supra-referido seja pertinente em
função dos interesses constitucionalmente protegidos.

4. Defina Ação Afirmativa. Trata-se de um sinônimo de discriminação


positiva? E de sistema de Cotas?

4
“Na presente Convenção, a expressão "discriminação racial" significa qualquer distinção,
exclusão, restrição ou preferência fundadas na raça, cor, descendência ou origem nacional ou
étnica que tenha por fim ou efeito anular ou comprometer o reconhecimento, o gozo ou o
exercício, em igualdade de condições, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais
nos domínios político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio da vida
pública.”
5
Legalização do aborto e constituição.
6
Nas palavras de Barry Fizpatrick, “desde o desenvolvimento do princípio do impacto
desproporcional pela Suprema Corte norte-americana, os regimes de igualdade também vieram
a incorporar o que hoje é conhecido na Europa como princípio da discriminação indireta,
através do qual políticas e práticas aparentemente neutras abrem-se a questionamentos, com
base no seu impacto desproporcional sobre um gênero. A batalha entorno da amplitude do
princípio da discriminação indireta é vital para o desenvolvimento dos objetivos da igualdade, já
que é um princípio mais intrusivo do que o da discriminação direta”

76
Roger Raupp Rios apresenta a evolução do conceito de ações afirmativas,
entendida inicialmente como “conjunto de medidas, conscientes do ponto de
vista racial, visando a beneficiar minorias raciais em situação de desvantagem
social, decorrente de discriminação disseminada nas esferas social e estatal”.
Contemporaneamente, “passou a ser conceituada como o uso deliberado de
critérios raciais, étnicos ou sexuais com o propósito específico de beneficiar um
grupo em situação de desvantagem prévia ou de exclusão, em virtude de sua
respectiva condição racial, étnica ou sexual”.
Ações afirmativas são, portanto, medidas adotadas com o fim de beneficiar
grupos em situação de desvantagem ou exclusão em virtude de uma condição
que, de algum modo, cause, sob o ponto de vista social, aquela situação de
desvantagem ou exclusão.
As ações afirmativas buscam a realização de igualdade fática ou real entre
grupos a partir de medidas formalmente desiguais, visando evitar ou pelo
menos atenuar os efeitos da discriminação passada e/ou presente, atual.
Define-se discriminação positiva o instituto jurídico que busca, através de
adequada tipificação, trazer equilíbrio social ao estabelecer garantias a
determinados segmentos sociais que, por razões históricas e/ou sociológicas,
foram mantidos à periferia da contemplação de direitos constitucionais básicos,
onde, por vezes, ocorreu mitigação do pleno exercício da cidadania oriunda de
tal negligência. Grande parte da doutrina jurídica costuma igualar este instituto
ao da ação afirmativa. Entretanto, os que as diferenciam apontam que na
discriminação positiva se verifica uma imposição legal mais explícita.
Ação afirmativa não é sinônimo de Cota, as políticas públicas afirmativas
comportam diversos programas, dentre eles os sistemas de cotas, ou seja,
ação afirmativa é gênero, do qual o sistema de cotas é apenas espécie. Além
do sistema de cotas, também existem outras opções que podem ser
consideradas importantes para efetivação das ações afirmativas, como o
método do estabelecimento de preferências, o sistema de bônus e os
incentivos fiscais.
Sob quais prismas os objetivos das ações afirmativas podem ser
compreendidos?
Segundo Flavia Piovesan as ações afirmativas devem ser compreendidas
não somente pelo prisma retrospectivo — no sentido de aliviar a carga de um
passado discriminatório —, mas também prospectivo — no sentido de fomentar
a transformação social, criando uma nova realidade. As ações afirmativas
objetivam acelerar o processo de igualdade, com o alcance da igualdade
substantiva por parte de grupos socialmente vulneráveis, como as minorias
étnicas e raciais, dentre outros grupos.
Joaquim Barbosa explica que ações afirmativas são um conjunto de
políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário,
concebidas com vista ao combate à discriminação racial, de gênero e de
origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação
praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva
igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego.

5. Qual a sua origem?


Segundo o Min. Lewandowski, as políticas de ações afirmativas têm origem
na Índia, país marcado, há séculos, por uma profunda desigualdade entre as
pessoas, decorrente de uma rígida estratificação social. Com o intuito de

77
reverter esse quadro, politicamente constrangedor e responsável pela eclosão
de tensões sociais desagregadoras, proeminentes lideranças políticas indianas
do século passado, entre as quais o patrono da independência do país,
Mahatma Gandhi, lograram aprovar, em 1935, o conhecido Government of
India Act.
Aponta-se também, em meados do século XX a promulgação pelo
Congresso dos EUA de leis dos direitos civis, editando-se a lei sobre igualdade
de salário.

6. Qual o conceito de Justiça distributiva?


A transformação do direito à isonomia em igualdade de possibilidades,
sobretudo no tocante a uma participação equitativa nos bens sociais, apenas é
alcançado, segundo John Rawls, por meio da aplicação da denominada “justiça
distributiva”. Só ela permite superar as desigualdades que ocorrem na
realidade fática, mediante uma intervenção estatal determinada e consistente
para corrigi-las, realocando-se os bens e oportunidades existentes na
sociedade em benefício da coletividade como um todo. A aplicação do princípio
da igualdade, sob a ótica da justiça distributiva, considera a posição relativa
dos grupos sociais entre si. Ela consiste em uma técnica de distribuição de
justiça, que, em última análise, objetiva promover a inclusão social de grupos
excluídos ou marginalizados, especialmente daqueles que, historicamente,
foram compelidos a viver na periferia da sociedade.

7. Quais as concepções quanto à concepção de igualdade?


Flavia Piovesan destaca três vertentes no que tange à concepção da
igualdade: a) a igualdade formal, reduzida à fórmula “todos são iguais perante
a lei” (que, ao seu tempo, foi crucial para abolição de privilégios); b) a
igualdade material, correspondente ao ideal de justiça social e distributiva
(igualdade orientada pelo critério socioeconômico); e c) a igualdade material,
correspondente ao ideal de justiça enquanto reconhecimento de identidades
(igualdade orientada por critérios de gênero, orientação sexual, idade, raça,
etnia e outros).

8. Faça uma retrospectiva histórica do princípio da igualdade nos


instrumentos internacionais.
A ética emancipatória dos direitos humanos demanda transformação social,
a fim de cada um possa exercer, em sua plenitude, suas potencialidades. Sob a
perspectiva histórica de construção dos direitos humanos, uma primeira
vertente de instrumentos internacionais nasce com a vocação de proporcionar
uma proteção geral, genérica e abstrata, refletindo o próprio temor da diferença
(igualdade formal). No entanto, percebe-se posteriormente, a necessidade de
conferir a determinados grupos uma proteção especial e particularizada, em
face de sua própria vulnerabilidade. Isto significa que a diferença não mais
seria utilizada para a aniquilação de direitos, mas, ao revés, para a promoção
de direitos. Inicia-se na ordem internacional um processo de especificação do
sujeito de direitos, criando-se um sistema especial de proteção, como por ex.
Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial; Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher; Convenção sobre os Direitos da Pessoa com
Deficiência.

78
9. Explique os conceitos de redistribuição e reconhecimento de
identidades.
Para Nancy Fraser, a justiça exige, simultaneamente, redistribuição e
reconhecimento de identidades. No mesmo sentido, Boaventura de Souza
Santos afirma que apenas a exigência do reconhecimento e da redistribuição
permite a realização da igualdade.
O direito à redistribuição requer medidas de enfrentamento da injustiça
econômica, da marginalização e da desigualdade econômica, por meio da
transformação nas estruturas socioeconômicas e da adoção de uma política de
redistribuição. O direito ao reconhecimento requer medidas de enfrentamento
da injustiça cultural, dos preconceitos e dos padrões discriminatórios, por meio
da transformação cultural e da adoção de uma política de reconhecimento. É à
luz desta política de reconhecimento que se pretende avançar na reavaliação
positiva de identidades discriminadas, negadas e desrespeitadas; na
desconstrução de estereótipos e preconceitos; e na valorização da diversidade
cultural. Como leciona Boaventura de Souza Santos: “temos o direito a ser
iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser
diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de
uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não
produza, alimente ou reproduza as desigualdades”.

10. Como enfrentar a problemática da discriminação?


Flavia Piovesan aponta que no âmbito do Direito Internacional dos Direitos
Humanos, destacam-se duas estratégias para enfrentar a discriminação: a) a
estratégia repressiva-punitiva (que tem por objetivo punir, proibir e eliminar a
discriminação); e b) a estratégia promocional (que tem por objetivo promover,
fomentar e avançar a igualdade).
Na vertente repressiva-punitiva, há a urgência em se erradicar todas as
formas de discriminação, medida fundamental para que se garanta o pleno
exercício dos direitos civis e políticos, como também dos direitos sociais,
econômicos e culturais. No entanto, faz-se necessário combinar a proibição da
discriminação com políticas compensatórias que acelerem a igualdade
enquanto processo. São essenciais as estratégias promocionais capazes de
estimular a inserção e inclusão de grupos socialmente vulneráveis nos espaços
sociais, visto que a proibição da exclusão, em si mesma, não resulta
automaticamente na inclusão.

11. As políticas de ações afirmativas possuem amparo em Convenções


Internacionais?
Inicialmente destaca-se que a Conferência de Durban, em suas
recomendações, endossa a importância dos Estados em adotarem ações
afirmativas, enquanto medidas especiais e compensatórias voltadas a aliviar a
carga de um passado discriminatório, daqueles que foram vítimas da
discriminação racial, da xenofobia e de outras formas de intolerância correlatas.
As ações afirmativas possuem amparo em diversas convenções
internacionais, entre elas: Convenção Internacional sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação Racial 7; Convenção sobre a Eliminação de
7
1.4. Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único
objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de

79
Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher 8; Convenção sobre os
Direitos da Pessoa com Deficiência9.

12. Discorra sobre as ações afirmativas na ordem jurídica nacional.


A ordem jurídica nacional, gradativamente, passa a introduzir marcos legais
com o objetivo de instituir políticas de ações afirmativas.
A Constituição Federal de 1988 estabelece importantes dispositivos que
traduzem a busca da igualdade material. Como princípio fundamental,
consagra, dentre os objetivos do Brasil, construir uma sociedade livre, justa e
solidária, mediante a redução das desigualdades sociais e a promoção do bem
de todos, sem quaisquer formas de discriminação (art. 3º, I, III e IV).
Nesse sentido, destaca-se o art. 7º, XX, que trata da proteção do mercado
de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, bem como o art. 37,
VII, que determina que a lei reservará percentual de cargos e empregos
públicos para as pessoas com deficiência. Acrescente-se ainda a chamada “Lei
das cotas” de 1995 (Lei n. 9.100/95), que introduziu uma cota mínima de 20%
das vagas de cada partido ou coligação para a candidatura de mulheres. Esta
lei foi posteriormente alterada para 30% e o máximo de 70% para candidaturas
de cada sexo.
Foram adotados programas de cotas para afrodescendentes em
Universidades — como é o caso da UERJ, UNEB, UnB, UFPR, dentre outras.
Além disso, adicione-se o Estatuto da Igualdade Racial (Lei n. 12.288, de
20 de julho de 2010), que tem por objetivo garantir à população negra a
efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa de direitos étnicos e o
combate à discriminação, estabelecendo a possibilidade de ações afirmativas
para o provimento de cargos da administração pública federal e estadual; a
valorização da herança cultural afrodescendente na história nacional; o
estímulo à participação de afrodescendentes em propagandas, filmes e
programas; programas de ações afirmativas para afrodescendentes e povos
indígenas em universidades federais; estímulo à adoção de programas de
ações afirmativas pelo setor privado; dentre outras medidas. O Estatuto
prescreve a obrigação de se efetivar a igualdade de oportunidades por meio de
políticas públicas e ações afirmativas, determinando a realização de ações que
assegurem a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho para a
população negra, inclusive mediante a implementação de medidas visando à
promoção da igualdade nas contratações do setor público (art. 1 e 39).

indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais
grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais,
contanto que tais medidas não conduzam, em consequência, à manutenção de direitos
separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus
objetivos.
8
1.4. Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único
objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de
indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais
grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais,
contanto que tais medidas não conduzam, em consequência, à manutenção de direitos
separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus
objetivos.
9
Art. 27.1.h) Promover o emprego de pessoas com deficiência no setor privado, mediante
políticas e medidas apropriadas, que poderão incluir programas de ação afirmativa, incentivos e
outras medidas;

80
13. Qual a importância das cotas para ingresso na Universidade?
A universidade é um espaço de poder, já que o diploma pode ser um
passaporte para ascensão social. É fundamental democratizar o poder e, para
isto, há que se democratizar o acesso ao poder, vale dizer, o acesso ao
passaporte universitário. Segundo Min. Lewandowski é certo afirmar, ademais,
que o grande beneficiado pelas políticas de ação afirmativa não é aquele
estudante que ingressou na universidade por meio das políticas de reserva de
vagas, mas todo o meio acadêmico que terá a oportunidade de conviver com o
diferente ou, nas palavras de Jürgen Habermas, conviver com o outro.

14. Qual a relação da Deliberação Conselho Superior da Defensoria


Pública de SP n. 307/2014 com as ações afirmativas? 10
A Deliberação CSDP nº 307/2014, altera a Deliberação CSDP nº 10/2006,
sobre as regras para a realização do concurso de ingresso na Carreira de
Defensor Público do Estado; estabelecendo que pelo período de 10 anos serão
reservadas aos candidatos negros e indígenas 20% das vagas nos concursos
para ingresso na carreira de Defensor Público. Tal prazo deverá ser prorrogado
sucessivamente caso seja objetivamente constatado que as desigualdades
étnico-raciais que ensejaram a sua implantação ainda persistem.

15. Quais os fundamentos utilizados pelo Conselho Superior para sua


edição?
O Conselho Superior da Defensoria Pública de São Paulo, no exercício das
atribuições que lhe são conferidas pelo artigo 31, inciso III, da Lei
Complementar nº 988/ 2006, considerando o direito à igualdade (art. 5, CF); o
Estatuto da Igualdade Racial (Lei n. 12.288/10) que dispõe que a participação
da população negra, em condição de igualdade de oportunidade, será
promovida, prioritariamente, por meio de implementação de programas de ação
afirmativa destinados ao enfrentamento das desigualdades étnicas; que é
dever do poder público promover ações que assegurem a igualdade de
oportunidades no mercado de trabalho para a população negra, inclusive
mediante a implementação de medidas visando à promoção da igualdade nas
contratações do setor público e os fundamentos do acórdão do Supremo
Tribunal Federal proferido nos autos da ADI nº 186, que reconheceu a
constitucionalidade das políticas de ações afirmativas e a sua fixação por meio
de ato infralegal quando editado por Instituição titular de autonomia
constitucional.

16. Qual o critério utilizado para considerar o candidato negro, pardo ou


indígena?
Para fins da reserva de vaga, considera-se negro o candidato preto, pardo
ou índio que assim se declare no momento da inscrição para o respectivo
concurso e obtenha decisão favorável do Presidente da Banca Examinadora. O
candidato índio pode apresentar certidão administrativa emitida pela Funai –
Fundação Nacional do Índio.
A declaração para reserva de vagas, no caso de candidato negro ou índio,
será analisada por Comissão Especial, devendo esta levar em consideração
10
Cf.http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Nucleo_Politicas_Publicas/GT_Igualdade_Racial/
cotas_raciais/Defensoria%20de%20SP%20-%20cotas%20no%20concurso.pdf

81
em seu parecer os critérios de fenotipia do candidato ou do (s) seu (s)
ascendente (s) indígena (s) ou preto (s) de primeiro grau, o que poderá ser
comprovado também por meio de documentos complementares.
A fim de subsidiar a decisão do Presidente da Banca Examinadora, deverá
ser realizada entrevista com todos os candidatos indicados. Durante a aferição,
o Presidente da Banca Examinadora ainda contará com o apoio de Comissão
Especial, com caráter consultivo. Sobrevindo decisão do Presidente da Banca
Examinadora que não reconheça a condição de negro ou indígena, ou que não
compareça à convocação o candidato será excluído da lista
específica, permanecendo somente na lista geral. Dessa decisão não cabe
recurso.
Observa-se que o candidato negro ou indígena que também seja pessoa
com deficiência poderá concorrer concomitantemente às vagas e, caso seja
aprovado em mais de um grupo, será chamado para ocupar a vaga a que
corresponde a maior nota exigida.

17. Resuma a ADPF 186.


O Partido Democrata ingressou com uma ADPF contra os atos (resoluções,
atas de reunião, editais de vestibular, entre outros) da Universidade de Brasília
– UnB que instituíram o sistema de cotas raciais. Por unanimidade, o STF
decidiu que o sistema de cotas é CONSTITUCIONAL e julgou improcedente a
ADPF, considerando, em especial, que as políticas de ação afirmativa adotadas
pela Universidade de Brasília (i) têm como objetivo estabelecer um ambiente
acadêmico plural e diversificado, superando distorções sociais historicamente
consolidadas, (ii) revelam proporcionalidade e a razoabilidade no concernente
aos meios empregados e aos fins perseguidos, (iii) são transitórias e preveem
a revisão periódica de seus resultados, e (iv) empregam métodos seletivos
eficazes e compatíveis com o princípio da dignidade humana.

18. Adoção do critério étnico-racial é justificável?


O uso do termo “raça” é justificável nas políticas afirmativas em razão deste
“fator” ter sido utilizado, historicamente, para a construção de “hierarquias”
entre as pessoas. Assim, se a raça foi utilizada para construir hierarquias,
deverá também ser utilizada para desconstruí-las. Após serem
“desconstruídas” estas hierarquias, as ações afirmativas baseadas na raça
podem ser abandonadas, adotando-se então apenas políticas universalistas
materiais. Os programas de ação afirmativa são uma forma de compensar a
discriminação histórica, culturalmente arraigada, não raro, praticada de forma
inconsciente e à sombra de um Estado complacente. As ações afirmativas,
portanto, encerram também um relevante papel simbólico.

19. Explique a transitoriedade das políticas de ação afirmativa.


É importante ressaltar a natureza transitória das políticas de ação
afirmativa, já que as desigualdades decorrem de uma acentuada inferioridade
em que determinados grupos foram posicionados nos planos econômico, social
e político em razão de séculos de dominação. Assim, na medida em que essas
distorções históricas forem corrigidas e a representação dos negros e demais
minorias nas esferas públicas e privadas de poder atenda ao que se contém no
princípio constitucional da isonomia, não haverá mais qualquer razão para a
subsistência dos programas. Assim, as políticas de ação afirmativa fundadas

82
na discriminação reversa apenas são legítimas se a sua manutenção estiver
condicionada à persistência, no tempo, do quadro de exclusão social que lhes
deu origem.

PONTO 12
O sistema internacional de proteção e promoção dos Direitos Humanos:
Organização das Nações Unidas (ONU). Declarações, tratados,
resoluções, comentários gerais, relatórios e normas de organização e
funcionamento dos órgãos de supervisão e controle.

1. Qual o contexto de criação da ONU? Quais seus principais órgãos e


suas respectivas atribuições? Quais os propósitos centrais da ONU?
Após a 2ª Guerra Mundial, relevantes fatores contribuíram para que se
fortalecesse o processo de internacionalização dos direitos humanos. Dentre
eles, o mais importante foi a maciça expansão de organizações internacionais.
A criação da ONU, com suas agências especializadas, demarca o
surgimento de uma nova ordem internacional, que instaura um novo modelo de
conduta nas relações internacionais, com preocupações que incluem a
manutenção da paz e segurança internacional, o desenvolvimento das relações
amistosas entre os Estados, a adoção da cooperação internacional no plano
econômico, social e cultural, a adoção de um padrão internacional de saúde, a
proteção ao meio ambiente, a criação de uma nova ordem econômica
internacional e a proteção internacional dos direitos humanos.
Criada em 1945 pela Carta das Nações Unidas, a ONU tem como
principais órgãos:
i. Assembleia Geral, a quem compete discutir e fazer recomendações
relativamente a qualquer matéria objeto da Carta;
ii. Conselho de Segurança, cuja principal responsabilidade é a
manutenção da paz e segurança internacionais – é composto por 5 membros
permanentes (China, França, Reino Unido e EUA) e 10 não permanentes
(eleitos pela Assembleia Geral para mandato de 2 anos);
iii. Corte Internacional de Justiça, que é o principal órgão judicial das
Nações Unidas, composto por 15 juízes, dispondo de competência contenciosa
e consultiva, mas somente os Estados são partes perante ela (não julga
pessoas);
iv. Conselho Econômico e Social, composto por 54 membros. Tem
competência para promover a cooperação em questões econômicas, sociais e
culturais, incluindo os direitos humanos. Cabe ao Conselho fazer
recomendações destinadas a promover o respeito e a observância dos direitos
humanos, bem como elaborar projetos de convenções a serem submetidos à
Assembleia Geral. Nos termos do art. 68 da Carta, o Conselho poder criar
comissões que forem necessárias ao desempenho de suas funções. Nesse
sentido foi criada, em 1946, a Comissão de Direitos Humanos da ONU.
Tendo em vista sua crescente crise de credibilidade e profisisonalismo, a
Comissão foi extinta em 2006, sendo substituída pelo Conselho de Direitos
Humanos;
v. Conselho de Tutela – atualmente, seu papel encontra-se esvaziado. Foi
criado para fomentar o processo de descolonização e de autodeterminação dos
povos;

83
vi. Secretariado, chefiado pelo Secretário-Geral, que é o principal
funcionário administrativo da ONU, indicado para mandato de 5 anos pela
Assembleia Geral, a partir de recomendação do Conselho de Segurança.
Embora a Carta das Nações Unidas seja enfática em determinar a
importância de defender, promover e respeitar os direitos humanos e as
liberdades fundamentais, ela não define o conteúdo dessas expressões,
deixando-as em aberto. A sua importância reside na internacionalização dos
direitos humanos.
Os propósitos centrais da ONU são:
i. manter a paz e a segurança internacional;
ii. fomentar a cooperação internacional nos campos social e econômico;
iii. promover os direitos humanos no âmbito internacional.
E, atualmente, a ONU conta com três Conselhos, conforme acima
exposto: (i) Conselho de Segurança; (ii) Conselho Econômico e Social; (iii)
Conselho de Direitos Humanos.

2. O que se entende por “Carta Internacional de Direitos Humanos”


(“International Bill of Rights”)?
O processo de universalização dos direitos humanos traz em si a
necessidade de implementação desses direitos, mediante a criação de uma
sistemática internacional de monitoramento e controle: a chamada international
accountability.
À luz desse raciocínio e considerando a ausência de força jurídica
vinculante da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 (tema
polêmico – ver questão abaixo), instaurou-se larga discussão sobre qual seria a
maneira mais eficaz de assegurar o reconhecimento e a observância universal
dos direitos nela previstos. Prevaleceu, então, o entendimento de que a
Declaração deveria ser “juridicizada” sob a forma de tratado internacional.
Dessa forma, a Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) de
1948 foi elaborada pela extinta Comissão de Direitos Humanos da ONU para
ser uma etapa anterior à elaboração de um “tratado internacional de Direitos
Humanos”. Esse processo de “juridicização” da Declaração começou em 1949.
Porém, a Guerra Fria impediu a concretização desse objetivo. Somente em
1966 (quase 20 anos depois) foram aprovados 2 Pactos Internacionais: o dos
Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e o dos Direitos Sociais, Econômicos e
Culturais (PIDESC).
Na época, a doutrina consagrou o termo “Carta Internacional de Direitos
Humanos” (International Bill of Rights), que compreende: (i) DUDH, (ii) PIDCP;
(iii) PIDESC.
A Carta Internacional inaugura, assim, o sistema global de proteção dos
direitos humanos. Esse sistema, por sua vez, viria a ser ampliado com o
advento de diversos tratados multilaterais de direitos humanos.

3. Nesse contexto, qual o significado da Declaração Universal?


O significado decorre dos próprios objetivos da criação da ONU: a
reconstrução da ordem mundial fundada em novos conceitos de direito
internacional, em contraposição à doutrina da soberania nacional absoluta e à
exacerbação do positivismo jurídico, que possibilitaram os regimes políticos
baseados na hipertrofia estatal e no repúdio do fundamento jusnaturalista dos
direitos humanos.

84
4. Como ocorre a apuração das violações de direitos humanos no âmbito
da ONU?
A apuração das violações de direitos humanos no âmbito da ONU é
complexa e dividida em duas áreas: a área convencional, originada por acordos
internacionais, elaborados sob a égide da ONU, dos quais são signatários os
Estados, e a área extraconvencional, originada de resoluções da ONU e de
seus órgãos, editadas a partir de interpretação da Carta da Organização das
Nações Unidas e seus dispositivos relativos à proteção dos direitos humanos.
Ambas (a convencional e extraconvencional) formam o sistema onusiano,
universal ou global de proteção de direitos humanos. (André Ramos de
Carvalho).

5. Fale sobre o sistema de relatórios periódicos.


A apuração da violação de direitos humanos por meio de mecanismos não
contenciosos é o mais antigo dos mecanismos no seio da ONU. O principal
mecanismo não contencioso é o sistema de relatórios periódicos pelo qual os
Estados, ao ratificar tratados elaborados sob os auspícios da ONU,
comprometem-se a enviar informes, nos quais devem constar as ações que
realizaram para respeitar e garantir os direitos mencionados nesses tratados.
Os informes são examinados por especialistas independentes, sendo
possível um diálogo entre eles e o Estado. O princípio informador do sistema
de relatórios é o da cooperação internacional e a busca de evolução na
proteção de direitos humanos, baseado no consenso entre o Estado e o órgão
internacional.
São exemplos de tratados que trazem em seu bojo o sistema de relatórios
periódicos: Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de
Discriminação Racial; Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; Pacto
Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; Convenção sobre a
Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher; Convenção
contra a Tortura e outros tratamentos ou penas cruéis (...); Convenção de
Direitos da Criança; Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência; Convenção Internacional para a Proteção dos Direitos de todos os
Trabalhadores Migrantes e suas Famílias; Convenção para a proteção de todas
as pessoas contra desaparecimentos forçados.
Cada Convenção mencionada acima estabeleceu seu próprio comitê de
controle dos relatórios periódicos (os chamados “treaty bodies”), indicando
ainda o órgão responsável pela análise dos informes e pelo posterior diálogo
com o Estado.

6. O que se entende por “relatório sombra” ou “shadow report”?


Trata-se da possibilidade de organizações não governamentais oriundas da
sociedade civil tecerem comentários sobre os relatórios dos Estados, a pedido
dos Comitês. Em outras palavras, para se evitar o oficialismo e a parcialidade
natural dos relatórios estatais, organizações não governamentais elaboram um
informe paralelo.

7. O que são os comentários gerais?


São comentários (também chamadas observações) elaborados pelos
diversos Comitês existente no âmbito de proteção da ONU, sobre a

85
interpretação dos direitos protegidos. Essas observações gerais são hoje
repertório precioso sobre o alcance e sentido das normas de direitos humanos.

8. Cite algumas críticas ao sistema de relatórios.


1ª pouca flexibilidade para combater situações de emergência de violações
de direitos humanos;
2ª concentração das informações nas mãos do Estado, em que pese a
atual participação da sociedade civil e seus “relatórios sombra”;
3ª a diversidade dos Comitês produz práticas díspares e uma sobrecarga
de trabalho nos Estados, sem contar com possíveis redundâncias nos
relatórios enviados.
4ª como os Comitês não são vinculados entre si, nada impe as
recomendações contraditórias ou suicidas. Determinado Comitê recomenda
ação que colide com outra ação proposta por Comitê distinto, sem maior
preocupação com coerência;
5ª ausência de força vinculante das recomendações dos Comitês.

9. Qual o órgão próprio das Nações Unidas voltado à proteção dos


direitos humanos na área da educação?
Ressalta-se que a preocupação com o direito à educação no âmbito das
Nações Unidas vai além das disposições genéricas da DUDH e do PIDESC,
culminando no estabelecimento de um órgão vinculado próprio, qual seja a
UNESCO – Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e
Cultura, fundada em 16 de novembro de 1945 conforme carta constitutiva
assinada em Londres, modificada por diversas conferencias que a seguiram.
No setor de educação, a principal diretriz da UNESCO é auxiliar os países
membros a atingir as metas de Educação para Todos, promovendo o acesso e
a qualidade da educação em todos os níveis e modalidades, incluindo a
educação de jovens e adultos. Para tanto, a Organização desenvolve ações
direcionadas ao fortalecimento das capacidades nacionais, além de prover
acompanhamento técnico e apoio à implementação de políticas nacionais de
educação, tendo sempre como foco a relevância da educação como valor
estratégico para o desenvolvimento social e econômico dos países.

10. Qual organismo das Nações Unidas é o responsável pela busca de


proteção do direito à saúde? Quais prioridades e objetivos dele?
A preocupação das Nações Unidas com o direito à saúde vai além das
previsões da DUDH e do PIDESC e ganha força com a criação da OMS –
Organização Mundial da Saúde, vinculada às Nações Unidas e criada em 7 de
abril de 1948, objetivando promover o mais elevado nível de saúde possível.
Assim, é responsável por prover liderança no mundo em questões de saúde,
controlando a agenda de pesquisa da saúde, estabelecendo normas e
estandartes, articulando opções políticas, provendo suporte técnico para países
e monitorando e acessando tendência de saúde.

11. Quem são os membros permanentes do Conselho de Segurança das


Nações Unidas? Quantos são os facultativos? Sobre quais matérias este
órgão delibera?
O Conselho de Segurança é composto por quinze Membros das Nações
Unidas, sendo cinco permanentes (China, França, Rússia, Reino Unido e

86
Estados Unidos) e dez não permanentes, eleitos pela Assembleia Geral para
um mandato de 2 anos, cada qual contando com um representante (art. 23,
Carta da ONU) que terá direito a um voto.
O Conselho age em nome dos demais membros da ONU em prol da
manutenção da paz e da segurança mundiais, submetendo relatório anuais à
Assembleia Geral (art. 24, Carta ONU). Por isso mesmo tem uma competência
bastante ampla, notadamente quando o assunto perpassa por questões como
guerras, conflitos armados e desarmamento: pode convidar partes para
resolver controvérsias de forma pacífica (art. 33, Carta da ONU), investigar
sobre qualquer controvérsia ou situação suscetível de provocar atritos entre as
Nações ou dar origem a uma controvérsia (art. 34), fazer recomendações às
partes buscando uma solução pacífica (art. 38), determinar a existência de
qualquer ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de agressão e recomendar
medidas definitivas ou provisórias (art. 43 e 44). Assim, são suas atribuições
exclusivas: a) ação nos casos de ameaça à paz; b) aprova e controla a tutela
estratégica; c) execução forçada das decisões da CIJ.

12. Quais órgãos pertencem ao sistema convencional e ao


extraconvencional das Nações Unidas? Em quais categorias eles se
dividem?
Os órgãos pertencentes ao sistema convencional são aqueles criados por
convenções específicas de direitos humanos, ao passo que os não-
convencionais são aqueles decorrentes de resoluções elaboradas por órgãos
das Nações Unidas, como a Assembleia Geral e o Conselho Econômico e
Social, extraindo legitimidades para proteção da ampla estrutura de
competência das Nações Unidas.
O órgão não-convencional mais relevante das Nações Unidas é o Conselho
de Direitos Humanos, criado após votação da Assembleia Geral, substituindo a
antiga Comissão de Direitos Humanos. Outro órgão não-convencional é o
Conselho de Segurança.
O sistema convencional pode ser desmembrado em três diferentes formas:
a) não-contencioso (envio de relatórios e comentários gerais); b) quase-
judicial: deliberações emitidas pelos Comitês que obrigam os Estados a
reparar os danos; c) mecanismo judicial: gerido pela Corte Internacional de
Justiça.

13. Por que são tão raros os casos brasileiros que tramitam perante a
Corte Internacional de Justiça em matéria de direitos humanos?
Quando o Brasil reconheceu a competência da CIJ, o fez por prazo
determinado, o qual expirou em 12 de março de 1953. Não significa que a CIJ
não tenha competência para julgar nenhum caso brasileiro, mas que apenas
pode julgar: a) aqueles propostos entre o Brasil e Estados-parte com os quais
ele tenha tratado específico reconhecendo a competência da Corte; b) aqueles
que versem sobre matéria de Convenção específica da ONU na qual o Brasil
reconheça a competência da Corte apenas quanto a litígios naquela matéria.
Em verdade, como o Brasil efetua amplo reconhecimento dos órgãos
interamericanos de proteção dos direitos humanos e possui reservas quanto à
Corte Internacional de Justiça, os casos mais relevantes de participação
brasileira em litígios internacionais de direitos humanos se dão perante a OEA,
e não diante da ONU.

87
14. Como é composto o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas?
É composto por 28 membros que sejam eleitos pelos Estados-partes do
Pacto, dotados de reputação moral e reconhecida competência em matéria de
direitos humanos (art. 28, PIDCP). Tais pessoas constarão em uma lista de
indicados pelos Estados-partes, cada qual indicando duas, sendo possível que
uma pessoa seja indicada mais de uma vez por Estados diferentes (art. 29,
PIDCP).
Não é possível que figure no Comitê mais de um nacional do mesmo
Estado (art. 31). O mandato é de quatro anos, sendo possível uma recondução
(art. 32).

15. Quais os requisitos para reconhecimento de denúncias pelo Comitê


de Direitos Humanos das Nações Unidas? Qual o trâmite procedimental?
Os requisitos para reconhecimento de denúncia pelo Comitê de Direitos
Humanos da ONU e seu trâmite procedimental estão previstos nos artigos 41 e
42 do PIDCP.
(Considerando a extensão dos artigos, transcreve-se)
ARTIGO 41
1. Com base no presente Artigo, todo Estado Parte do presente Pacto
poderá declarar, a qualquer momento, que reconhece a competência do
Comitê para receber e examinar as comunicações em que um Estado Parte
alegue que outro Estado Parte não vem cumprindo as obrigações que lhe
impõe o presente Pacto. As referidas comunicações só serão recebidas e
examinadas nos termos do presente artigo no caso de serem apresentadas por
um Estado Parte que houver feito uma declaração em que reconheça, com
relação a si próprio, a competência do Comitê. O Comitê não receberá
comunicação alguma relativa a um Estado Parte que não houver feito uma
declaração dessa natureza. As comunicações recebidas em virtude do
presente artigo estarão sujeitas ao procedimento que se segue:
a) Se um Estado Parte do presente Pacto considerar que outro Estado
Parte não vem cumprindo as disposições do presente Pacto poderá, mediante
comunicação escrita, levar a questão ao conhecimento deste Estado Parte.
Dentro do prazo de três meses, a contar da data do recebimento da
comunicação, o Estado destinatário fornecerá ao Estado que enviou a
comunicação explicações ou quaisquer outras declarações por escrito que
esclareçam a questão, as quais deverão fazer referência, até onde seja
possível e pertinente, aos procedimentos nacionais e aos recursos jurídicos
adotados, em trâmite ou disponíveis sobre a questão;
b) Se, dentro do prazo de seis meses, a contar da data do recebimento da
comunicação original pelo Estado destinatário, a questão não estiver dirimida
satisfatoriamente para ambos os Estados partes interessados, tanto um como o
outro terão o direito de submetê-la ao Comitê, mediante notificação endereçada
ao Comitê ou ao outro Estado interessado;
c) O Comitê tratará de todas as questões que se lhe submetem em virtude
do presente artigo somente após ter-se assegurado de que todos os recursos
jurídicos internos disponíveis tenham sido utilizados e esgotados, em
consonância com os princípios do Direito Internacional geralmente
reconhecidos. Não se aplicará essa regra quanto a aplicação dos mencionados
recursos prolongar-se injustificadamente;

88
d) O Comitê realizará reuniões confidencias quando estiver examinando as
comunicações previstas no presente artigo;
e) Sem prejuízo das disposições da alínea c) Comitê colocará seus bons
Ofícios dos Estados Partes interessados no intuito de alcançar uma solução
amistosa para a questão, baseada no respeito aos direitos humanos e
liberdades fundamentais reconhecidos no presente Pacto;
f) Em todas as questões que se submetam em virtude do presente artigo, o
Comitê poderá solicitar aos Estados Partes interessados, a que se faz
referencia na alínea b) , que lhe forneçam quaisquer informações pertinentes;
g) Os Estados Partes interessados, a que se faz referência na alínea b),
terão direito de fazer-se representar quando as questões forem examinadas no
Comitê e de apresentar suas observações verbalmente e/ou por escrito;
h) O Comitê, dentro dos doze meses seguintes à data de recebimento da
notificação mencionada na alínea b), apresentará relatório em que:
(i se houver sido alcançada uma solução nos termos da alínea e), o
Comitê restringir-se-á, em relatório, a uma breve exposição dos fatos e da
solução alcançada.
(ii se não houver sido alcançada solução alguma nos termos da alínea e),
o Comitê, restringir-se-á, em seu relatório, a uma breve exposição dos fatos;
serão anexados ao relatório o texto das observações escritas e as atas das
observações orais apresentadas pelos Estados Parte interessados.
Para cada questão, o relatório será encaminhado aos Estados Partes
interessados.
2. As disposições do presente artigo entrarão em vigor a partir do momento
em que dez Estados Partes do presente Pacto houverem feito as declarações
mencionadas no parágrafo 1 desde artigo. As referidas declarações serão
depositados pelos Estados Partes junto ao Secretário-Geral das Organizações
das Nações Unidas, que enviará cópias das mesmas aos demais Estados
Partes. Toda declaração poderá ser retirada, a qualquer momento, mediante
notificação endereçada ao Secretário-Geral. Far-se-á essa retirada sem
prejuízo do exame de quaisquer questões que constituam objeto de uma
comunicação já transmitida nos termos deste artigo; em virtude do presente
artigo, não se receberá qualquer nova comunicação de um Estado Parte uma
vez que o Secretário-Geral tenha recebido a notificação sobre a retirada da
declaração, a menos que o Estado Parte interessado haja feito uma nova
declaração.
ARTIGO 42
1. a) Se uma questão submetida ao Comitê, nos termos do artigo 41, não
estiver dirimida satisfatoriamente para os Estados Partes interessados, o
Comitê poderá, com o consentimento prévio dos Estados Partes interessados,
constituir uma Comissão ad hoc (doravante denominada “a Comissão”). A
Comissão colocará seus bons ofícios à disposição dos Estados Partes
interessados no intuito de se alcançar uma solução amistosa para a questão
baseada no respeito ao presente Pacto.
b) A Comissão será composta de cinco membros designados com o
consentimento dos Estados interessados. Se os Estados Partes interessados
não chegarem a um acordo a respeito da totalidade ou de parte da composição
da Comissão dentro do prazo de três meses, os membro da Comissão em
relação aos quais não se chegou a acordo serão eleitos pelo Comitê, entre os

89
seus próprios membros, em votação secreta e por maioria de dois terços dos
membros do Comitê.
2. Os membros da Comissão exercerão suas funções a título pessoal. Não
poderão ser nacionais dos Estados interessados, nem de Estado que não seja
Parte do presente Pacto, nem de um Estado Parte que não tenha feito a
declaração prevista no artigo 41.
3. A própria Comissão alegará seu Presidente e estabelecerá suas regras
de procedimento.
4. As reuniões da Comissão serão realizadas normalmente na sede da
Organização das Nações Unidas ou no escritório das Nações Unidas em
Genebra. Entretanto, poderão realizar-se em qualquer outro lugar apropriado
que a Comissão determinar, após consulta ao Secretário-Geral da Organização
das Nações Unidas e aos Estados Partes interessados.
5. O secretariado referido no artigo 36 também prestará serviços às
condições designadas em virtude do presente artigo.
6. As informações obtidas e coligidas pelo Comitê serão colocadas à
disposição da Comissão, a qual poderá solicitar aos Estados Partes
interessados que lhe forneçam qualquer outra informação pertinente.
7. Após haver estudado a questão sob todos os seus aspectos, mas, em
qualquer caso, no prazo de doze meses após dela tomado conhecimento, a
Comissão apresentará um relatório ao Presidente do Comitê, que o
encaminhará aos Estados Partes interessados:
a) Se a Comissão não puder terminar o exame da questão, restringir-se-á,
em seu relatório, a uma breve exposição sobre o estágio em que se encontra o
exame da questão;
b) Se houver sido alcançado uma solução amistosa para a questão,
baseada no respeito dos direitos humanos reconhecidos no presente Pacto, a
Comissão restringir-se-á, em relatório, a uma breve exposição dos fatos e da
solução alcançada;
c) Se não houver sido alcançada solução nos termos da alínea b) a
Comissão incluirá no relatório suas conclusões sobre os fatos relativos à
questão debatida entre os Estados Partes interessados, assim como sua
opinião sobre a possibilidade de solução amistosa para a questão, o relatório
incluirá as observações escritas e as atas das observações orais feitas pelos
Estados Partes interessados;
d) Se o relatório da Comissão for apresentado nos termos da alínea c), os
Estados Partes interessados comunicarão, no prazo de três meses a contar da
data do recebimento do relatório, ao Presidente do Comitê se aceitam ou não
os termos do relatório da Comissão.
8. As disposições do presente artigo não prejudicarão as atribuições do
Comitê previstas no artigo 41.
9. Todas as despesas dos membros da Comissão serão repartidas
90quitativamente entre os Estados Partes interessados, com base em
estimativas a serem estabelecidas pelo Secretário-Geral da Organização das
Nações Unidas.
10. O Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas poderá caso
seja necessário, pagar as despesas dos membros da Comissão antes que
sejam reembolsadas pelos Estados Partes interessados, em conformidade com
o parágrafo 9 do presente artigo.

90
15. Cabem denúncias por particulares ao Comitê de Direitos Humanos
das Nações Unidas?
Embora o PIDCP não tenha previsto diretamente um mecanismo para a
apresentação de denúncias pelos indivíduos ao Comitê, o protocolo facultativo
ao Pacto, de 16 de dezembro de 1966, o fez. A denúncia somente pode ser
recebia se o Estado houver ratificado o Protocolo Facultativo (art. 1º, PPIDCP).
Aceita a competência, o indivíduo que se considerar vítima de violação de
qualquer dos direitos enunciados no Pacto e que tenha esgotado todos os
recursos internos disponíveis, poderá apresentar uma comunicação escrita ao
Comitê para que este a examine (art. 2º).
Além do esgotamento dos recursos na via interna, salvo excesso dos
prazos razoáveis (art. 5º), são requisitos de admissibilidade, nos termos do art.
3º, não serem denúncia anônimas e não constituírem abuso de direito ou
serem incompatíveis com as disposições do Pacto, e, nos termos do art. 5º,
que a mesma questão não esteja sendo examinada por uma outra instância
internacional de investigação ou decisão.
Procedimento:

ARTIGO 4º

1. Ressalvado o disposto no artigo 3º, o Comitê dará conhecimento das


comunicações que lhe sejam apresentadas, em virtude do presente Protocolo,
aos Estados Partes do Protocolo que tenham alegadamente violado qualquer
disposição do Pacto.

2. Dentro de seis meses, os citados Estados deverão submeter por escrito


ao Comitê as explicações ou declarações que esclareçam a questão e
indicarão, se for o caso, as medidas que tenham tomado para remediar a
situação.

ARTIGO 5º

1. O Comitê examinará as comunicações recebidas em virtude do presente


Protocolo, tendo em conta s informações escritas que lhe sejam submetidas
pelo indivíduo e pelo Estado Parte interessado.

2. O Comitê não examinará nenhuma comunicação de um indivíduo sem


se assegurar de que:
a) A mesma questão não esteja sendo examinada por outra instância
internacional de inquérito ou de decisão;
b) O indivíduo esgotou os recursos internos disponíveis. Esta regra não
se aplica se a aplicação desses recursos é injustificadamente prolongada.

3. O Comitê realizará suas sessões a portas fechadas quando examinar as


comunicações previstas no presente Protocolo.

4. O Comitê comunicará as suas conclusões ao Estado Parte interessado e


ao indivíduo.

12) Fale sobre o caráter subsidiário da atuação dos órgãos internacionais:

91
É dever primário dos órgãos internos atuarem em matéria de direitos
humanos. Antes de provocar um órgão internacional para apurar eventuais
violações de direitos humanos, é preciso provocar os órgãos internos, e isso
para que o Estado tenha a possibilidade de ele próprio apurar e resolver a
situação. Assim, de uma maneira geral, um caso somente será recebido por um
órgão executivo ou por um Tribunal Internacional se houver sido esgotados os
recursos internos ou se ficar demonstrado a desídia do Estado para com o
tratamento do caso (cláusula de esgotamento dos recursos internos) - recursos
insuficientes ou inexistentes, demora na apuração, corrupção do Judiciário.

16. Fale sobre Mecanismos Convencionais e Não-Convencionais.


O DIDH é formado por mecanismos de fiscalização de natureza
convencional e de natureza não convencional, sendo que a diferença básica
entre eles é o fato de que um é formado por convenção e o outro não.
Mecanismos Convencionais resultam, como o próprio nome sugere, de
Convenções, de Tratados e de Acordos, e a grande peculiaridade é que
somente são aplicáveis em relação aos Estados que vierem a aderir ao
sistema. Mecanismos Não-Convencionais são originados de resoluções da
ONU e de seus órgãos (Ex: Comissão e Conselho de DHs), instrumentalizados
pelos chamados procedimentos especiais.

17. Quais são esses mecanismos?


Os mecanismos formais são os relatórios, as comunicações interestaduais
e as petições individuais.

PONTO 13
Órgãos convencionais e extraconvencionais.

(Perguntas e respostas elaboradas com base na obra Processo Internacional


de Direitos Humanos, de André de Carvalho Ramos, 2ª edição, pags. 26 e
seguintes).

1. De que forma se dá a proteção internacional aos Direitos Humanos?


O Direito Internacional dos Direitos Humanos se desenvolve na esfera
global, por meio da ONU, e em esferas regionais, por meio da OEA, por
exemplo. Há, ainda, outros sistemas regionais, como o europeu e o africano. O
Brasil está inserido no sistema da OEA, em âmbito regional e da ONU, em
âmbito global.
A tutela internacional de direitos humanos ocorre por meio da adoção de
declarações e tratados versando sobre variados temas sensíveis à comunidade
internacional, visando implementar de forma plena a dignidade da pessoa
humana.
Como já salientado, são dois os sistemas de proteção: o global e o
regional. Dentro da órbita de cada um existem aparatos convencionais e
extraconvencionais de proteção aos direitos humanos.

2. De que forma se realiza a proteção dos direitos humanos no sistema


global?
A apuração das violações de direitos humanos no âmbito da ONU é
complexa e dividida em duas áreas: a área convencional, originada de acordos

92
internacionais, elaborados sob a égide da ONU e a área extraconvencional,
originada de resoluções da ONU e de seus órgãos, editadas a partir da Carta
da ONU e da Declaração Universal de Direitos Humanos (1948) – esses dois
diplomas fundamentam a existência dos órgãos extraconvencionais.
Ambos os mecanismos – convencional e extraconvencional – formam o
sistema universal ou global de proteção dos direitos humanos.

3. Discorra sobre os órgãos convencionais onusianos.


Os órgãos convencionais da ONU são aqueles criados por tratados e que
se destinam a verificar a implementação dos direitos versados no texto
convencional pelos Estados que o ratificaram. Essa verificação ocorre através
de três grandes métodos: não-contencioso, quase-judicial e judicial.
O método não-contencioso é o mais antigo e elaborado a partir da lógica
do diálogo. Se aperfeiçoa por meio do envio de relatórios periódicos (a
periodicidade varia de tratado para tratado) por parte dos Estados-partes. Com
o tempo, foi se percebendo que alguns Estados mascaravam o grau de
implementação do compromisso internacional assumido, razão pela qual se
criou os chamados shadow reports, que são relatórios alternativos submetidos
por meio de ONGs e outras organizações da sociedade civil para evitar que a
informação oficial seja a única.
O método quase-judicial é representado pelas comunicações interestatais e
por petições particulares ou em grupo.
Finalmente, o sistema judicial ou contencioso apura a responsabilidade
internacional do Estado por violação de direitos humanos e é estabelecida
através de um processo judicial, processado perante a Corte Internacional de
Justiça.

4. O que são treaty bodies?


Os treaty bodies estão inseridos no sistema convencional de proteção dos
direitos humanos da ONU e são correspondem aos órgãos de supervisão
criados por tratados específicos a fim de verificar o andamento da
concretização dos direitos pelos Estados-partes. Esses órgãos de supervisão
são denominados de Comitês ou treaty bodies (órgãos de tratados, pela
tradução literal).

5. Como funciona o mecanismo convencional não contencioso?


Esse mecanismo é o mais antigo no seio da ONU e o principal instrumento
são os relatórios periódicos (o prazo é estabelecido por cada Tratado), pelos
quais os Estados que ratificaram o Tratado enviam informes contendo as ações
que realizaram para promover os direitos mencionados nesse tratado. Esses
informes são examinados por especialistas independentes, sendo possível um
diálogo entre eles e o Estado. Os princípios informadores do sistema de
relatórios são: cooperação internacional e busca de evolução na proteção
dos direitos humanos.
Para a análise do relatório, nomeia-se um relator que fará as primeiras
perguntas à delegação do Estado, quando da apreciação do informe em
sessão formal do Comitê. Então, os membros e representantes do Estado
travam diálogo para obtenção, via consenso, das medidas e ações a seres
adotadas – diálogo construtivo. Os Comitês buscam, também, informações
de outros órgãos do sistema internacional (OIT, OMS, Banco Mundial) e, ainda,

93
informes alternativos – denominados shadow reports – que são fornecidos por
entidades da sociedade civil (ONGs, por exemplo), a fim que a o informe oficial
não seja a única fonte de informação. Superados os debates, são adotadas
observações finais – também denominadas conclusivas (concluding
observations) – contendo a análise crítica do informe estatal, seus pontos
positivos e negativos, trazendo recomendações para os problemas
encontrados. As observações finais são encaminhadas para a Assembleia
Geral da ONU para, se for o caso, subsidiar embargos comerciais, políticos,
etc.
É importante mencionar que paralelamente às observações finais, os
Comitês também podem editar Comentários Gerais sobre a interpretação dos
direitos protegidos. Esses documentos são repertório precioso sobre
interpretação das normas de direitos humanos (alcance e sentido), por ex.,
Comentário Geral nº 4 PIDESC sobre moradia adequada; Comentário Geral nº
07 PIDESC sobre vedação de despejos forçados; Comentário Geral nº 15
PIDESC sobre água.

6. Quais são as críticas apontadas ao sistema convencional não-


contencioso (relatórios periódicos)?
Podem ser sintetizadas 4 críticas:
a) Pouca flexibilidade do sistema de relatórios para combater situações de
emergência de violações de direitos humanos. Para tentar resolver isso, alguns
Comitês têm decidido realizar visitas in loco e adotar ações preventivas, como
o sistema de alerta rápido (early warning) e o procedimento de urgência, para
ações que requeiram atenção imediata.
b) Concentração das informações nas mãos do Estado. O envio de
informes pelos próprios Estados-partes gera, algumas vezes, o mascaramento
da situação de violação dos direitos previstos nos Tratados. Essa problemática
é enfrentada por meio da adoção dos shadows reports que são os informes
alternativos enviados por entidades da sociedade civil, trazendo maior
transparência ao procedimento de supervisão.
c) Os Comitês não são vinculados entre si e, portanto, é possível que haja
recomendações contraditórios, o que causa desprestígio ao próprio sistema de
relatórios periódicos.
d) Ausência de vinculação das Observações Finais: as concluding
observations não são coercitivas, visto que o método de relatórios periódicos é
fundado no princípio da cooperação internacional, privilegiando-se o diálogo
construtivo. Nesse ínterim, é possível que enquanto de desenvolve as
comunicações Comitê-Estado, estejam sendo perpetradas sistemáticas
violações de direitos humanos.

7. Quais são os pontos positivos do sistema convencional não-


contencioso (relatórios periódicos)?
A obrigação internacional do Estado produzir os relatórios periódicos existe
mesmo que não haja violação, de forma que esse método previne a usurpação
de direitos e força os Estados a dedicarem atenção às políticas internas de
defesa dos direitos humanos. Ainda, com base nas Observações Finais dando
conta de descumprimento de obrigação internacional assumida por
determinado Estado, é possível que a Assembleia Geral da ONU edite
resolução condenando o Estado ou que acione o Conselho de Segurança para

94
que este edite atos vinculantes para a preservação dos direitos humanos, em
nome da paz e segurança mundial.
Ademais, vários países ratificam Tratados e apenas aceitam se submeter
aos mecanismos não contenciosos, de forma que este se torna a única saída
para captação de informações e eventual responsabilização internacional do
Estado, no âmbito dos órgãos convencionais.

8. A Defensoria Pública pode submeter shadow reports?


O mecanismo convencional de relatórios periódicos admite o envio de
relatórios alternativos por entidades da sociedade civil. Nesse turno, a
Defensoria Pública é instituição de matriz constitucional a quem incumbe o
serviço de assistência jurídica aos necessitados. Além disso, de acordo com a
LC 80/94 (artigo 3º-A, VI) e LCE 988/06 (artigo 4º, VI, b), compete a Defensoria
Pública a tutela dos direitos humanos perante os sistemas global e regional.
Desta forma, verifica-se a plena aptidão da instituição enviar informes
alternativos aos Comitês – shadow reports.

9. O que são os mecanismos quase-judiciais?


São verdadeiros mecanismos coletivos de apuração de responsabilidade
internacional do Estado. Também são geridos pelos Comitês – treaty bodies –
e, por isso, integram os órgãos convencionais de proteção de direitos
humanos.
O mecanismo quase-judicial se manifesta por comunicação interestatal
(denúncia de um Estado contra o outro) e petições individuais ou em grupos.
As declarações são analisadas pelo Comitê e, sendo o caso, adota-se
deliberação com força vinculante, ordenando determinada reparação.
Normalmente, os mecanismos quase-judiciais vem previstos em protocolos
facultativos, então, é possível que um Estado ratifique o Tratado específico,
mas não o seu protocolo facultativo (não se submetendo ao mecanismo quase-
judicial).
a) Comunicações Interestatais: um Estado apresenta uma petição contra
outro, acusando-o da violação de direitos humanos. Trata-se de uma espécie
de actio popularis. Três principais convenções da ONU preveem tal
procedimento: Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (art. 11
e s – previsto na Convenção); PIDCP (art. 41.1 – protocolo facultativo); CAT
(art. 21 – protocolo facultativo).
Após a denúncia, é instalada uma Comissão especial visando a conciliação
dos Estados. Essa Comissão apresenta um relatório final, com recomendações
sobre a solução do litígio. Esse relatório é enviado aos Estados e estes
possuem o prazo de 3 meses para notificar o Comitê sobre a aceitação ou não
das recomendações. Transcorrido o prazo, o Comitê transmite esse relatório da
Comissão a todos os Estados-partes do Tratado. Caso não haja reparação da
situação de violação, o Comitê enviará o relatório final da Comissão à
Assembleia Geral da ONU, que poderá editar resolução condenando o Estado
ou acionar o Conselho de Segurança.
Petições individuais ou em grupo: primeiramente, o Estado-parte de ter
aceito expressamente a competência do Comitê respectivo para receber as
petições individuais. O procedimento é confidencial e escrito. Possui 4 fases:
admissibilidade, instrução probatória, deliberação sobre o mérito, publicação e
execução.

95
a) Fase de admissibilidade: devem ser preenchidos os requisitos de forma:
escrita, não anônima, da própria vítima ou representante.
b) Fase da instrução probatória: Estado requerido dispõe de 6 meses para
responder as questões de mérito alegadas na petição individual.
c) Fase da deliberação sobre o mérito: consiste na indicação de violação
ou não de direitos humanos protegidos e na reparação a ser efetuada pelo
Estado.
d) Fase da publicação: o Comitê pode publicar o texto com suas decisões e
opiniões no informe anual remetido à Assembleia Geral da ONU.
e) Fase de execução: realizada através da indicação de um relator especial
pelo Comitê para acompanhar a execução da decisão. As conclusões do relator
são incluídas no Informe Anual do Comitê, que são repassados à Assembleia
Geral da ONU, de forma a exercer pressão política nos países que não
cumprem as decisões.

10. Como se desenvolve o mecanismo convencional judicial?


Trata-se da apuração de violações de Direitos Humanos na Corte
Internacional de Justiça (CIJ). A CIJ é o órgão judicial da ONU e tem
competência reconhecida para todos os litígios versando sobre a Carta da
ONU, tratados/convenções internacionais vigentes.
Duas críticas são feitas à CIJ: 1) o artigo 34.1 do Estatuto da CIJ apenas
reconhece como partes Estados, o que limita sobremaneira a proteção judicial
de direitos humanos. 2) o caráter facultativo da competência da CIJ, visto que
depende de adesão facultativa pelos Estados (art. 36.2). Além disso, o Estado
pode condicionar sua declaração de aceitação ao princípio da reciprocidade.
Além disso, no procedimento perante a CIJ há pelo controle pelos Estados,
uma vez que os direitos dos indivíduos são mencionados apenas como objeto
de controvérsia. Esse controle pelos Estados pode gerar o abandono da causa,
mesmo na ausência de reparação à violação de direitos humanos.

11. Discorra sobre órgãos extraconvencionais no sistema global:


Os mecanismos extraconvencionais não estão previstos em tratados
específicos, mas decorrem de dispositivos referentes a direitos humanos que
estão presente na Carta da ONU e na Declaração Universal de 1948
(Declaração de Paris). A existência desses órgãos é muito importante, pois
permite a supervisão da efetivação dos direitos humanos, ainda que o Estado
não tenha ratificado nenhum tratado específico. Portanto, a mera participação
no seio da ONU é suficiente para que o Estado seja obrigado a abdicar do
discurso de apego à soberania e reconhecer como válidos os atos
internacionais sobre direitos humanos, ainda que tenham natureza jurídica de
soft law (sem coercibilidade).
São órgãos extraconvencionais da ONU: Conselho de Direitos Humanos
(antiga Comissão de Direitos Humanos) e o Conselho de Segurança.
- Conselho de Direitos Humanos: Procedimento 1235 e 1503; Revisão
Periódica Universal (RPU)
- Conselho de Segurança: resoluções vinculantes para garantir paz e
segurança mundial; pode realizar intervenção armada (única hipótese); pode
criar tribunais penais internacionais ad hoc – Ruanda e Iugoslávia (atribuição
muito criticada).

96
Inicialmente, o principal órgão extraconvencional da ONU para tutela dos
direitos humanos era a Comissão de Direitos Humanos (1947), que foi extinta
em 2006, dando início ao Conselho de Direitos Humanos. No âmbito do
Conselho de Direitos Humanos são utilizados três instrumentos de supervisão
dos direitos humanos: os procedimentos especiais (herdados da antiga
Comissão) da resolução 1235 (“procedimento 1235”) e da resolução 1503
(“procedimento 1503”). Além disso, com a instalação do Conselho em 2006,
criou-se a Revisão Periódica Universal (peer review).
De outro lado, temos o Conselho de Segurança – que também é um órgão
extraconvencional – responsável pela paz e segurança mundial, editando
resoluções de forças vinculantes e agindo de forma vinculante em caso de
violações sistemáticas de Direitos Humanos perpetrados por um Estado. O
Conselho de Segurança pode, ainda, criar Tribunais internacionais ad hoc -
atribuição bastante criticada por legitimar Tribunais de Exceção, o que motivou
a realização do Estatuto de Roma com a instalação do Tribunal Penal
Internacional, de cunho permanente.

12. Por que a Comissão de Direitos Humanos foi extinta e substituída


pelo Conselho de Direitos Humanos?
A Comissão foi criada em 1947, composta por representantes de Estado
para preservar a representatividade geográfica e atuava por meio de
procedimentos especiais, públicos ou confidenciais, para a proteção dos
direitos humanos.
A Comissão escolhia um País e constituía um órgão especial que iria
averiguar violações maciças e sistemáticas de direitos humanos (as violações a
direitos de determinados indivíduos era de competência exclusiva dos órgãos
convencionais.
Ocorre que esses procedimentos foram tidos por seletivos, na medida em
que a escolha do País a ser analisado era discricionária, fazendo surgir
propostas de mudança. Assim, em 2006 a Comissão foi extinta e foi criado, em
seu lugar, o Conselho de Direitos Humanos. A principal vontade, com a
instalação do Conselho, foi a de extinguir os procedimentos especiais (1235 e
1503), substituindo-os pela Revisão Periódica Universal (RPU). Ocorre que não
houve força política dos Estados descontentes para extinguir os procedimentos
especiais, de sorte que, nesse momento, estamos numa época de transição: a
RPU está em pleno funcionamento, mas os procedimentos especiais também
foram mantidos.

13. Quais as características e finalidade do procedimento 1235?


Esse procedimento é público e nasceu vinculado a uma situação específica
de direitos humanos: discriminação racial e apartheid. A partir de 1976, os
Estados aceitaram que a investigação versasse sobre qualquer situação de
ofensa maciça e sistemática de direitos humanos. Dessa forma, iniciam-se
grupos especiais de investigação e relatores especiais para determinados
temas ou áreas geográficas (Ex. Raquel Rolnik). Os relatores especiais têm a
incumbência de investigar situações de violação de direitos humanos, efetuar
visitas in loco e elaborar relatórios finais contendo recomendações de ação aos
Estados. Os relatores encaminham seus relatórios ao Conselho e este à
Assembleia Geral da ONU, para que a mesma possa adotar alguma resolução
em face do Estado violador.

97
Em uma nova etapa, o procedimento 1235 amplia sua gama de temas para
aceitar, também, situações de violação de direitos humanos de indivíduos
específicos, inclusive, a partir de petições individuais. A partir disso, instala-se
o sistema de ações urgentes, que assinala medidas a serem cumpridas pelos
Estados para prevenir ou interromper imediatamente as violações de direitos
humanos em prol de determinados indivíduos.

14. Quais as características e finalidade do procedimento 1503?


Esse procedimento foi instituído pela Resolução 1503 do Conselho
Econômico e Social (Comissão DH era vinculada a esse conselho) e é um
mecanismo permanente e confidencial. Por isso, é também chamado de
procedimento de queixas ou procedimento confidencial.
Se desenvolve a partir de petições individuais contra Estados recebidas
pela ONU. O objetivo do procedimento é identificar as comunicações que
indiquem a existência de quadro persistente de violações de direitos humanos
e liberdades fundamentais (situação que afete grande número de pessoas por
um período dilatado de tempo). A partir da criação do Conselho DH (2006) fora
feitas algumas atualizações no procedimento 1503 e foram estabelecidos dois
grupos de trabalho: o Grupo de Trabalho sobre Comunicações e o Grupo de
Trabalho sobre Situações. O primeiro faz a triagem das queixas: descarta as
anônimas, manifestamente ilegítimas e verifica se comunica um quadro
sistemático de graves violações.
O segundo analisa em conjunto as comunicações e respostas dos Estados,
bem como eventuais recomendações do Grupo de Comunicações. Após,
apresenta um relatório final ao Conselho, com recomendações a serem
tomadas.
Caso o Estado não cumpra as recomendações do Conselho, este pode
eliminar a confidencialidade do procedimento, tratando-o em sessão pública.

15. O que é a revisão periódica universal (RPU)?


A RPU foi criada pelo Conselho de Direitos Humanos e é fundada no peer
review – monitoramento pelos pares – pelo qual um Estado tem a sua situação
de direitos humanos analisada pelos demais Estados da ONU. Todos os
Estados serão avaliados em períodos de 4-5 anos, evitando-se a seletividade.
O trâmite é simples: o Estado examinado apresentará um relatório nacional
oficial ao Conselho de DH, contendo a situação geral de direitos humanos em
seu território. Serão agregadas todas as informações referentes a direitos
humanos no Estado examinado constante nos procedimentos especiais (1235
e 1503) e demais órgãos internacionais de direitos humanos. Por fim, as
organizações não governamentais também podem enviar informes alternativos
e outros documentos relevantes.
O Estado examinado é questionado no Conselho, por meio de um diálogo
construtivo. Esse diálogo permite responder às dúvidas e opinar sobre os
comentários e sugestões dos demais Estados. Não há, portanto, condenação
ou conclusões vinculantes.
Para participar da relatoria do Estado Examinado são escolhidos por
sorteio pelo Conselho três países, que irão compor a Troika e atuar como
verdadeiros relatores da RPU. O relatório final apresentado pela Troika será
apreciado pelo colegiado do Conselho de DH. O Brasil já foi examinado duas
vezes – em 2008 e 2012 – sendo que em 2012 recebeu recomendação da

98
Dinamarca para unificar a polícia e desmilitarizá-la, sugestão que foi
expressamente rechaçada.

16. Como funciona o procedimento extraconvencional perante o


Conselho de Segurança da ONU?
A ação do Conselho de Segurança se inclui no campo das sanções
coletivas autorizadas como reação à violação de prévia obrigação internacional
por parte de um Estado. A missão do Conselho de Segurança é garantir a paz
a segurança mundial, editando resoluções vinculantes a todos os Estados
membros da ONU. Assim, o Conselho de Segurança contata a violação,
declara o Estado infrator responsável por esta violação e determina as
consequências do ilícito. Essas medidas são diversas: declaração de nulidade
do ato estatal, imposição de embargo de armas, embargo do espaço aéreo,
embargo comercial, autorização do uso da força armada e mesmo a criação de
um tribunal penal internacional ad hoc (ex. Ruanda e Iugoslávia) e listas sujas
de pessoas e entes de apoio ao terrorismo internacional.
Vale ressaltar que, inicialmente, o Conselho de Segurança não possuía
atribuição para tutela de direitos humanos. Isso foi se alterando a partir das
políticas de apartheid, que geraram ações do Conselho em prol dos direitos
humanos. Atualmente, o entendimento é que o Conselho de Segurança possui
aptidão para tutela de direitos humanos, quando afetarem a paz e segurança
internacionais. A ausência de guerras e conflitos militares entre Estados não
assegura, por si só, paz e segurança para o mundo. Todavia, a atuação do
Conselho de Segurança ainda é tímida, relevando apenas o uso esporádico de
sua competência na adoção de resoluções vinculantes diante de violações
graves de direitos humanos.

PONTO 14
Declaração Universal dos Direitos Humanos.

1. Em que contexto surge o Sistema Internacional de Proteção dos


Direitos Humanos?
O Sistema Internacional de Direitos Humanos surge a partir de um
contexto de desrespeito e desprezo pelos direitos da pessoa humana,
especialmente durante a II Guerra Mundial, que ocasionou a crise no modelo
de Estado Democrático Liberal, o qual renegou os freios do direito natural
ao poder estatal e calcou-se exclusivamente no positivismo jurídico.

2. Quais são os documentos que compõem a Carta Internacional de


Direitos Humanos?
A Carta Internacional de Direitos Humanos é composta pela Declaração
Universal dos Direitos Humanos, pelo Pacto de Direitos Civis e Políticos e
seus dois Protocolos Opcionais, bem como pelo Pacto Internacional de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e seu Protocolo Facultativo.

3. Nesse contexto, qual o significado da Declaração Universal?


O significado decorre dos próprios objetivos da criação da ONU: a
reconstrução da ordem mundial fundada em novos conceitos de direito
internacional, em contraposição à doutrina da soberania nacional absoluta e
à exacerbação do positivismo jurídico, que possibilitaram os regimes

99
políticos baseados na hipertrofia estatal e no repúdio do fundamento
jusnaturalista dos direitos humanos.

4. Qual a natureza jurídica da Declaração Universal de Direitos Humanos?


Aprovada em 1948 pela Resolução 217-A (111) da Assembleia Geral, por
48 Estados, com 8 abstenções. A inexistência de qualquer questionamento ou
reserva feita pelos Estados aos princípios da Declaração, bem como de
qualquer voto contrário às suas disposições, confere à Declaração Universal o
significado de um código de plataforma comum de ação. A Declaração
consolida a afirmação de uma ética universal ao consagrar um consenso sobre
valores de cunho universal.
A Declaração Universal não é um tratado, pois foi adotada pela Assembleia
Geral das Nações Unidas sob a forma de resolução que, por sua vez, não
apresenta força de lei.
No entanto, há quem entenda que a Declaração Universal tem sido
concebida como a interpretação autorizada da expressão direitos humanos,
constante da Carta das Nações Unidas, apresentando, por esse motivo, força
jurídica vinculante – Flávia Piovesan.
Há aqueles que defendem que a Declaração teria força jurídica vinculante,
por integrar o direito costumeiro internacional e/ou os princípios gerais de
direito, apresentando, assim, força jurídica vinculante.

5. Quais características diferem a Declaração de Direitos Humanos


de 1948 das congêneres proclamadas sob inspiração iluminista nos
séculos XVII e XVIII?
A diferença é que a Declaração de 1948 consagrou três objetivos
fundamentais: a certeza do direitos (exigindo fixação prévia e clara dos
direitos e deveres), a segurança dos direitos (com previsão de respeito em
qualquer circunstância) e a possibilidade dos direitos (exigindo que sejam
assegurados a todos os indivíduos os meios de fruição, não permanecendo no
formalismo cínico e mentiroso).

6. Comente acerca das inovações trazidas pela Declaração Universal


de Direitos Humanos.
A Declaração de 1948 inovou ao introduzir elementos que passariam a
caracterizar a concepção atual dos direitos humanos, como a
universalidade, a indivisibilidade e a interdependência, bem como ao tratar
dos direitos humanos, tanto os civis e políticos, quanto os econômicos,
sociais e culturais, de maneira indivisível, ainda que reconhecendo sua
distinta natureza jurídica. Não faz distinção entre as categorias de direitos
humanos, no que diz respeito ao seu reconhecimento e gozo, ainda que o
regime de implementação possa ser diferenciado.

7. Cite exemplos de direitos civis e políticos, bem como de direitos


econômicos, sociais e culturais previstos na Declaração Universal.
Como direitos civis e políticos a Declaração de 1948 prevê a proibição à
escravidão e à tortura, o reconhecimento da personalidade jurídica, o direito ao
asilo e à nacionalidade, além dos consagrados direitos relativos às diversas
expressões da liberdade. Quanto aos direitos econômicos e sociais, pode-se
citar os trabalhistas, ao repouso, ao lazer e a um padrão de vida digno.

100
8. A Declaração de 1948 trata do direito à propriedade? De que forma?
O direito de propriedade é reconhecido pela Declaração Universal
dos Direitos Humanos, seja a de titularidade individual como a de
titularidade coletiva, redação que proporcionou consenso em um momento
que se materializada a bipolaridade capitalista e socialista do Estado e da
sociedade.

9. Quais são as críticas que se pode fazer à Declaração Universal


de Direitos Humanos?
Pode-se citar a ausência de mecanismos de implementação, o que tem
sido superado com a criação de mecanismos convencionais e
extraconvencionais de proteção dos direitos humanos. Outra crítica diz
respeito ao conteúdo da dignidade humana refletir o contexto do pós-guerra,
o que acaba por ser superado com a característica da historicidade dos
direitos humanos, além do constante estabelecimento de novos tratados,
declarações e programas que atualizam o catálogo positivado dos direitos
humanos.

10. Há direitos previstos na Declaração Universal de Direitos


Humanos não reproduzidos no Pacto de Direitos Civis e Políticos?
Sim. O Pacto de Direitos Civis e Políticos não traz previsão sobre o
direito de propriedade (decisão tomada pelos Estados Unidos, uma vez
que o texto proposto remetia a regulamentação do direito à legislação de
cada país), assim como não prevê o direito de asilo, tema este próprio de
legislação especializada no direito dos refugiados (Convenção Relativa ao
Estatuto dos Refugiados e seu Protocolo), não justificando sua inclusão no
Pacto.

11. Quais as características da Declaração Universal de Direitos


Humanos?
A Declaração tem as seguintes características:
i. amplitude – compreende um conjunto de direitos e faculdades sem as quais
um ser humano não pode desenvolver sua personalidade física, moral e
intelectual;
ii. universalidade – é aplicável a todas as pessoas de todos os países, raças,
religiões e sexos, seja qual for o regime político dos territórios nos quais incide.
A condição de pessoa é o requisito único e exclusivo para a titularidade de
direitos – absoluta ruptura com o legado nazista;
iii. indivisibilidade – conjugação (inédita) dos direitos civis e políticos com os
direitos econômicos, sociais e culturais. Combina assim o discurso liberal e o
discurso social da cidadania;
iv. interdependência – ao conjugar o valor liberdade (direitos civis e políticos)
com o valor igualdade (direitos econômicos, sociais e culturais), a Declaração
introduz uma concepção contemporânea dos direitos humanos, concebidos
como uma unidade interdependente.

12. Fale um pouco sobre o contexto de criação da DUDH.

101
Resposta (fonte: <http://virtual.cesusc.edu.br/portal/externo/direito/wp-
content/uploads/2010/05/Os-direitos-humanos-como-processos-de-lutas-
_ruben-rockenbach_.pdf>)
Inicialmente, é bom situar a declaração universal dos direitos humanos
como forjada no seio de uma TEORIA HEGEMÔNICA DOS DIREITOS
HUMANOS.
Os direitos humanos são conceituados, apresentados e pensados – de
maneira tradicional e hegemônica – como sendo “direitos inerentes a todos os
seres humanos, sem distinção alguma de nacionalidade, lugar de residência,
sexo, origem nacional ou étnica, cor, religião, língua ou qualquer outra
condição”.
Com efeito, consoante a mencionada teoria tradicional, os direitos
humanos são caracterizados como universais, uma vez que decorreriam da
própria dignidade humana representada pela essência da nossa natureza.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, ao estabelecer a
ideia da universalidade, destaca “como ideal comum a ser atingido por todos os
povos e todas as nações (...) por assegurar o seu reconhecimento e a sua
observância universal e efetiva”, dispondo em seu artigo I que “todos os seres
humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos” e acrescenta, no
artigo II, que “todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as
liberdades estabelecidas nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie,
seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza,
origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”.
Dessa maneira, o ideário comum dos direitos humanos como universais se
origina – e justifica suas raízes – na própria natureza da condição humana
(todos têm esses direitos ao nascer!), sendo considerados prévios aos
contextos socioculturais em que se encontram.
A concepção tradicional (e hegemônica) do conceito dos diretos humanos
resulta da enorme positivação no âmbito internacional em relação à matéria,
surgida, em especial, na época do pós-guerra e com a elaboração – pela
Organização das Nações Unidas (ONU) – da Declaração dos Direitos
Humanos de 1948, do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais e do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, ambos de
1966.
O processo de internacionalização dos direitos humanos foi celebrado em
um contexto histórico de repúdio às violações da vida humana geradas pelo
período de guerras (em específico, os atos que ultrajaram a consciência da
humanidade durante a Segunda Guerra Mundial). De fato, a barbárie do
totalitarismo significou a ruptura do paradigma dos direitos humanos por meio
da negação do valor da pessoa humana como valor-fonte do Direito.
Igualmente, a Declaração Universal de 1948 e os Pactos Internacionais de
1966 atuaram como elementos formadores do atual conjunto da legislação
internacional de direitos humanos, uma vez que gradativamente foram sendo
ratificados pelas nações e impulsionaram o advento de uma série de acordos
regionais e seus respectivos mecanismos e instrumentos de proteção,
desenvolvendo o chamado direito internacional dos direitos humanos.
Sim, pois, a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) para
manter a paz, proporcionar a segurança no mundo e aumentar padrões de
vida, ao lado da posterior Declaração dos Direitos Humanos de 1948,

102
marcaram o nascimento do novo direito internacional com a instauração de um
pacto social e ordenamento jurídico mundial.
Por meio da ratificação dos pactos, acordos e tratados internacionais de
direitos humanos, os governos se comprometem a adotar medidas internas
(políticas, jurídicas, econômicas e culturais) compatíveis com as obrigações e
deveres assumidos nos documentos perante a comunidade global.
Nas últimas décadas, destarte, houve um amplo processo de alargamento
no âmbito jurídico em relação aos direitos humanos (e sua normatização), em
nível interno e/ou externo aos Estados, formando uma base mínima de
proteção aos direitos.
Reforçando a elaboração de uma base mínima de direitos e garantias
humanas, dispõe o preâmbulo da Declaração dos Direitos Humanos de 1948:
“o advento de um mundo em que todos gozem de liberdade de palavra, de
crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi
proclamado como a mais alta aspiração do ser humano comum”.
De forma idêntica, além do repúdio às mencionadas atrocidades das
grandes guerras, o surgimento do conceito hegemônico (tradicional ou
contemporâneo) dos direitos humanos deve ser analisado sob o enfoque de
outras duas perspectivas: 1) sociopolítica, no marco da Guerra Fria com a luta
ideológica, política e econômica travada entre os países defensores do
capitalismo e do socialismo que provocou um enfrentamento entre a defesa e
garantia dos direitos individuais e os direitos sociais, econômicos e culturais; e
2) geoestratégica, no marco do processo de descolonização das colônias que
reduziu o papel liberador dos direitos de autodeterminação e consolidou um
sistema jurídico internacional baseado na supremacia dos Estados centrais
sobre os periféricos. Imperioso destacar, ademais, que a concepção
contemporânea dos direitos humanos e os respectivos sistemas normativos
elaborados ocasionaram a redução da liberdade absoluta e selvagem da
soberania externa e interna dos Estados-Nações a duas normas fundamentais:
o imperativo da paz e a tutela dos direitos humanos.

13. Esse contexto de criação pode trazer a alguma reflexão para o nosso
contexto?
(Trechos abaixo extraídos do seguinte artigo: “os direitos humanos como
processos de lutas”: <http://virtual.cesusc.edu.br/portal/externo/direito/wp-
content/uploads/2010/05/Os-direitos-humanos-como-processos-de-lutas-
_ruben-rockenbach_.pdf>. Preferi não delimitar bem uma a resposta por ser um
tema bastante amplo e com espaço enorme para problematização. Esse artigo
referencia alguns autores da teoria crítica dos direitos humanos)
Atualmente vivemos em outro (e muito distinto!) contexto social,
econômico, político e cultural (impulsionado a partir da queda do muro de
Berlim e suas respectivas consequências), em que é flagrante a degradação do
meio ambiente, das injustiças propiciadas por um comércio e um consumo
indiscriminado e desigual, de uma cultura de violência e de guerra e das
deficiências na seara da saúde pública e da convivência individual e social.
Estamos (e vivemos) em uma realidade absurdamente diferente daquela
que impulsionou a comunidade internacional a partir de 1948 e em que se
construiu a teoria tradicional (e hegemônica) dos direitos humanos:
“as forças da globalização econômica trouxeram novas promessas, mas
também novos desafios. Apesar de os líderes mundiais alegarem ter-se

103
comprometido com a erradicação da pobreza, em sua grande maioria,
ignoraram os abusos de direitos humanos que provocam e que
aprofundam a pobreza. A promessa da Declaração Universal dos
Direitos Humanos continuou a existir só no papel. Hoje, olhando para
trás, o que mais surpreende é a unidade de propósitos demonstrada
pelos Estados-membros da ONU àquela época, quando adotaram a
DUDH por absoluto consenso. Agora, frente a inúmeras e urgentes
crises de direitos humanos, não há, entre os líderes mundiais, uma visão
compartilhada sobre como lidar com os desafios contemporâneos de
direitos humanos em um mundo que está cada vez mais ameaçado,
inseguro e desigual. O cenário político, hoje, é muito diferente do que
era 60 anos atrás. Existem muito mais países hoje do que em 1948.
Algumas ex-colônias estão entrando no jogo global lado a lado com seus
antigos senhores coloniais. Pode-se esperar que as potências novas e
as antigas se unam, como fizeram seus predecessores em 1948, para
reafirmar seu compromisso com os direitos humanos? A julgar por 2007,
o quadro não é nada promissor”.
Presenciamos uma época de exclusão generalizada, em um mundo onde
30% da população mundial vive (ou tenta viver) com menos de um dólar por
dia, 20% das pessoas mais pobres recebem menos de 2% da riqueza, ao
passo que os 20% mais ricos reservam 80% da riqueza mundial e 1 bilhão de
pessoas não têm acesso à água potável e são analfabetos.
A complexidade do contexto atual (existência de uma legião de excluídos e
alijados do processo econômico) revela a incapacidade – pelo menos em
termos de efetivação e implantação – da referida concepção contemporânea
dos direitos humanos e de sua respectiva característica da universalidade e,
ademais:
“no que respeita à promessa da liberdade, as violações dos direitos
humanos em países vivendo formalmente em paz e democracia
assumem proporções avassaladoras. Quinze milhões de crianças
trabalham em regime de cativeiro na Índia; a violência policial e prisional
atinge o paroxismo no Brasil e na Venezuela, enquanto os incidentes
raciais na Inglaterra aumentaram 276% entre 1989 e 1996, a violência
sexual contra as mulheres, a prostituição infantil, os meninos de rua, os
milhões de vítimas de minas antipessoais, a discriminação contra os
tóxico-dependentes, os portadores de HIV ou os homossexuais, o
julgamento de cidadãos por juízes sem rosto na Colômbia e no Peru, as
limpezas étnicas e o chauvinismo religioso são apenas algumas
manifestações da diáspora da liberdade”.
Em relação ao Brasil, as conclusões do informe “o estado dos direitos
humanos no mundo” levado a efeito pela Anistia Internacional no ano de 2008
são cruciais:
“os moradores das comunidades marginalizadas continuaram a viver em
meio a níveis extremamente elevados de violência, praticada tanto por
grupos criminosos organizados quanto pela polícia. As operações
policiais realizadas nessas comunidades resultaram em milhares de
mortos e de feridos, geralmente intensificando a exclusão social. Grupos
de extermínio ligados à polícia também foram responsáveis por centenas
de assassinatos. O sistema de justiça criminal falhou em seu dever de
fazer com que os responsáveis por abusos prestem contas de seus atos.

104
Infligiu ainda uma série de violações de direitos humanos às pessoas
detidas em suas prisões e centros de detenção juvenis superlotados e
exauridos de recursos. As mulheres detidas em penitenciárias ou em
celas policiais continuaram sendo vítimas de tortura e de maus-tratos.
Ativistas rurais e povos indígenas que realizam campanhas por acesso à
terra foram ameaçados e atacados por policiais e por seguranças
privados. Houve denúncias de trabalho forçado e de exploração do
trabalho em diversos estados, inclusive no setor canavieiro em
expansão”.
O Brasil se revela um local que “não ouve o clamor dos esquecidos, onde
nunca os humildes são ouvidos e uma elite sem Deus é que domina”. Um país
que possui território de 8,5 milhões de quilômetros quadrados em que vivem
mais de 190 milhões de pessoas (2007), que registra um Produto Interno Bruto
(PIB) de 880 milhões de dólares (2005) e possui 9% da população subnutrida
(2002), taxa de mortalidade infantil de 27,4% (2005), 11% dos domicílios sem
acesso à água potável (2002) e 25% sem rede sanitária (2002).
Registre-se, a título de análise da realidade nacional, que o Brasil obteve
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) igual a 0,800, nos termos do
relatório do ano 2007/2008 elaborado pelo Programa das Nações Unidas para
o Desenvolvimento (PNUD).
O Brasil que se transforma em um lugar de espaços divididos,
demonstrando, como aponta o geógrafo Milton Santos, que “o problema que
temos de enfrentar é o da pobreza, cuja dimensão, portanto, não é somente
econômica, mas também espacial, cuja definição não se esgota em termos
contábeis, mas exige uma dimensão social”. Um país de angústias, cujo
sofrimento é “ver crianças barrigudas de vermes sem direito a uma infância
feliz, a menina condenada à prostituição precoce, a mãe vendo o filho largar a
escola para ingressar no narcotráfico, o pai desempregado sem poder
sustentar a família”.
O Brasil dos cidadãos servos que entregaram seu poder e confiaram ao
Estado a tutela de seus direitos e que – nos termos de Juan Rámon Capella–
se tornaram sujeitos de direitos sem poder e “han quedado dotados de
ciudadanía ante el Estado cuando no es ya el Estado un soberano: cuando
cristaliza otro poder, superior y distinto, supraestatal e internacional,
esencialmente antidemocrático, que persigue violentamente sus fines
particulares”. Um país gerador de uma multidão oprimida! A legião de
brasileiros e brasileiras que pertencem à classe social desfavorecida e
dominada. A subjetividade coletiva que busca se tornar sujeito absoluto dos
processos de potência. Pessoas que trabalham (às vezes até a morte!) para
sair da condição de miserabilidade a que estão submetidas e sonham que um
dia a boa sorte apareça de algum lugar, mas, como adverte Eduardo Galeano,
“a boa sorte não chove ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma
chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e
mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou
comecem o ano mudando de vassoura”.
Nesse avassalador contexto, que, repita-se, a esmagadora maioria da
população vive em exclusão social e está apartada do poder econômico, é
necessária uma nova concepção dos direitos humanos que possa potencializar
a multidão oprimida e reduzir a desigualdade de poder material no momento de
ascender aos bens (materiais e imateriais) indispensáveis para uma vida digna.

105
Por certo não podemos rechaçar e abandonar como um todo as conquistas
jurídicas obtidas nos tratados, convenções internacionais e na Constituição
Federal do Brasil, mas sim, ao contrário, devemos ampliar o objeto de estudo
do âmbito normativo. Não estamos negando a importância dos ordenamentos
jurídicos, do Estado Democrático de Direito e do sistema de garantias
estabelecidas, afinal, não se pode negar o esforço da comunidade internacional
realizado para lograr êxito em estabelecer uma base de proteção mínima de
direitos que alcance a todas as pessoas e às demais formas de vida.
Entretanto, qualquer reflexão geral que despreze a realidade socioeconômica
do país em que é aplicada estará fadada a ser um mero exercício intelectual
sobre a irrealidade, gratuita ficção, uma ilusão, uma quimera sem a mínima
importância para a sociedade. A desigualdade social é um quadro visível no
cotidiano de sociedade, passível de ser comprovado empiricamente, contudo, é
tratada como natural ou inexistente. Não há culpados, ninguém é responsável.
O Estado impessoal, regulado por lei, não assume a sua parte.
As classes ricas, tampouco. Por palavras se transfere a responsabilidade
para o livre mercado, para a falta de competência dos perdedores. No entanto,
temos que deixar de considerar o referido sistema de proteção mínima de
direitos como única e exclusiva forma de entender e conceituar os direitos
humanos, visto que “está muy claro que hay que mejorar y fortalecer el papel
del derecho y de los sistemas de protección de los derechos humanos tanto a
nivel nacional como internacional, así como se hace imprescindible
reconocerlos institucionalmente, pero no hay que darle el exclusivo y el único
protagonismo” (está muito claro que há que melhorar e fortalecer o papel do
direito e dos sistemas de proteção dos direitos humanos tanto a nível nacional
como internacional, assim como se faz imprescindível reconhecer-los
institucionalmente, mas não há que dar-lhes o exclusivo e o único
protagonismo”. (tradução livre). SÁNCHEZ RUBIO, David. Repensar derechos
humanos: de la anestesia a la sinestesia. Sevilha: MAD, 2007, p. 16).
Fazendo uma análise crítica sobre as características e os efeitos do
discurso conservador (aquele que tudo naturaliza), Samir Amin destaca a
imposição de uma amálgama de valores que regem o mundo moderno e
conclui:
“nessa amálgama lança-se uma mistura de princípios de organização
política (o Estado de direito, os direitos humanos, a democracia), valores
sociais (a liberdade, a igualdade, o individualismo), princípios de
organização da vida econômica (a propriedade privada, os mercados
livres). A amálgama deixa entender que esses valores constituem um
todo indissociável, que provém de uma só e mesma lógica, ela associa,
portanto, capitalismo e democracia, como se isso fosse algo evidente
por si. A história mostra antes o contrário, que os avanços democráticos
foram conquistados e não são o produto espontâneo, natural, da
expansão capitalista. A análise crítica permite, então, precisar os
conteúdos históricos reais dos valores em questão – a democracia, por
exemplo – e, portanto, seus limites e suas contradições, assim como os
meios de fazê-los avançar.”
Igualmente, a concepção tradicional dos direitos humanos que determina
sua universalidade utiliza por um lado “lo global para imponer determinada
perspectiva de las cosas y obligar a todos a que acepten determinados
modelos de desarrollo, por otro se articulan instrumentos de separación y

106
división entre quienes salen más perjudicados en ese reparto desigual de los
bienes” (“o global para impor determinada perspectiva das coisas e obrigar a
todos a que aceitem determinados modelos de desenvolvimento, por outro se
articulam instrumentos de separação e divisão entre quem sai mais prejudicado
neste reparto desigual dos bens”. (tradução livre). SÁNCHEZ RUBIO, David.
Repensar derechos humanos: de la anestesia a la sinestesia. Sevilha: Editorial
MAD, 2007, p. 89). (...).
O grande equívoco levado a efeito quando se universalizam os direitos
humanos decorre do fato de perceber os direitos e as garantias individuais
como de natureza privada, de caráter egoístico e de tutela e propriedade
exclusiva do sujeito que postula seu reconhecimento e respeito (quando, ao
contrário, a marca comum caracterizadora dos direitos humanos é a dimensão
pública). A ideia de direitos humanos desprega-se das instituições,
constituindo-se patrimônio da humanidade conquistado no processo histórico
de afirmação da dignidade de toda pessoa humana. Os direitos humanos
existem independentemente do seu reconhecimento formal, visto que, em
grande medida, legitimam ações (políticas, sociais, econômicas, culturais e,
inclusive, jurídicas) contra as instituições mesmas.

14. Os Direitos Humanos são universais?


Muito embora em sua concepção mais “original”, vincada às primeiras
declarações internacionais de direitos humanos, tal caráter de universalidade
tenha sido bastante destacado, colocando-se toda pessoa como titular abstrato
de direitos relativos tão somente à natureza humana do ser, a teoria crítica dos
direitos humanos problematiza profundamente tal concepção. Isso porque a
universalidade muitas vezes mascara, fetichiza os processos históricos de lutas
e resistências, nos quais realmente se forjam os direitos humanos, no seio
sociedade extremamente desigual e excludente. Ou seja, embora previstos nas
declarações de direitos como universais, os direitos humanos da realidade não
são universais.
(Trechos abaixo extraídos do seguinte artigo: “os direitos humanos como
processos de lutas”: <http://virtual.cesusc.edu.br/portal/externo/direito/wp-
content/uploads/2010/05/Os-direitos-humanos-como-processos-de-lutas-
_ruben-rockenbach_.pdf>. Preferi não delimitar bem uma a resposta por ser um
tema bastante amplo e com espaço enorme para a problematização. Esse
artigo referencia alguns autores da teoria crítica dos direitos humanos)
“Não podemos desconsiderar o fato de que a pretensa universalidade
abstrata que reconhece os direitos a todos os seres humanos por natureza e
pelo simples fato de terem nascido surgiu em determinado contexto histórico
(trânsito para a modernidade e desenvolvimento do sistema capitalista) que
atualmente não nos serve para compreender e atuar sobre a realidade social
existente. É que, de fato, por trás de uma norma jurídica de pretensão
universal, existem interesses (particulares ou não) concretos que reclamam ser
parte constitutiva de um novo sentido do humano que não descanse somente
no reconhecimento do comum-coletivo, senão que se estenda ao âmbito da
diferença.”
“O que torna universais os direitos não se baseia em seu mero
reconhecimento jurídico, nem na adaptação de uma ideologia determinada que
os entenda como ideais abstratos ademais dos contextos sociais, econômicos
e culturais nos quais surgem e para os quais devem servir de pauta crítica. A

107
universalidade dos direitos somente pode ser definida em função da seguinte
variável: o fortalecimento de indivíduos, grupos e organizações na hora de
construir um marco de ação que permita a todos e a todas criar as condições
que garantam de um modo igualitário o acesso aos bens (...) que fazem que a
vida seja digna de ser vivida”.
A proposta é um conceito de direitos humanos que se traduzam mais do
que o conjunto de normas formais (internacionais e nacionais) que os
declarem. É dizer: os direitos humanos não se limitam aos Tratados e às
Constituições, mas, sim, são resultado de lutas sociais e coletivas que buscam
a construção de espaços sociais, econômicos, políticos e jurídicos que
permitam à subjetividade coletiva se tornar sujeito absoluto dos processos de
potência.
Os direitos não são prévios à construção de condições sociais,
econômicas, políticas e culturais que propiciam o desenvolvimento e sua
apropriação nos contextos em que se situam. O que não podemos aceitar
como natural é um universalismo como ponto de partida (humanismo
abstrato) que justifica as raízes dos direitos humanos na própria natureza da
condição humana e os considera prévios aos contextos socioculturais em que
se encontram e são superiores à sociedade e ao Estado, mas, ao revés,
devemos fazer da característica da universalidade um ponto de chegada por
meio da criação de condições (não de imposições ou exclusões!) para o
desenvolvimento das potencialidades humanas”.
(Trechos abaixo extraídos de resenha da obra de David Sanchez Rubio
que podem auxiliar na condução da resposta. fonte:
<http://pt.slideshare.net/kapoars/resenha-direitos-humanos-rubio>).
“o autor argumenta que na América Latina não há problemas com a
insuficiência de normatização, no sentido de restringir a extensão da
universalidade dos direitos humanos. O que ocorre, de fato, é que,
apesar de os critérios de reconhecimento estarem definidos de forma
universal nas constituições e nas leis, os contextos e os tramas sociais
sobre as quais as normas estão assentes reproduzem lógicas de
exclusão, marginalização e discriminação, reduzindo os espaços formais de
participação popular (p. 25-6).
Rubio chama a atenção, citando Oraa (p. 49), do paradoxo enfrentados
pela humanidade. Ao passo que se avança na formulação teórica jurídica-
institucional dos direitos fundamentais, se observa cada vez mais violações de
direitos, tendo esse século XX assistido, possivelmente, aos maiores
massacres da história da humanidade, resultando em crescente exclusão e
pobreza da população mundial.
A questão crucial colocada por Rubio é se realmente existe uma clara
intenção de reconhecer as capacidades e potencialidades de todo ser
humano concreto e corpóreo, como sujeito de necessidades? Ou então
os discursos relacionados à universalização dos direitos falam de um
sujeito abstrato? O caráter excessivamente formal das modernas
concepções sobre direitos humanos sofrem de um caráter excessivamente
abstrato, tendência oriunda na ordem burguesa, em que se concebe o ser
humano como “indivíduo” e cada indivíduo pertence a uma ideia de
“humanidade” independente das relações sociais efetivas e das lógicas que a
permeiam. Ambas as circunstâncias são a-históricas e ignoram o contexto. O
resultado é que se respaldam os direitos humanos com normas jurídicas

108
que garantem sua vigência jurídico-formal mas não sua eficácia social
(RUBIO, p. 50-1).

PONTO 15
Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e Primeiro
Protocolo (Criação do Comitê e International accountability). Segundo
Protocolo (Abolição da pena de morte).Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) e Protocolo Facultativo.
PACTO INTERNACIONAL DOS DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS (PIDCP)
1. A maior parte dos direitos elencados no Pacto Internacional de Direitos
Civis e Políticos já contava do rol da Declaração Universal de Direitos
Humanos. Por que foi necessário repeti-lo em outro documento
internacional?
O Pacto teve por finalidade tornar juridicamente vinculantes aos Estados
vários direitos já contidos na Declaração Universal de 1948, detalhando-os e
criando mecanismos de monitoramento internacional de sua implementação
pelos Estados Partes. Assim, assumindo a roupagem de tratado internacional,
o intuito desse Pacto foi permitir a adoção de uma linguagem de direitos que
implicasse obrigações no plano internacional, mediante a sistemática da
international accountability.

2. A Carta Internacional de Direitos Humanos é composta pela Declaração


Universal dos Direitos Humanos, pelo PIDCP e pelo PIDESC. O tratamento
dos direitos civis e políticos e dos direitos econômicos, culturais e
sociais em tratados diversos implicou ofensa ao princípio da
indivisibilidade dos direitos humanos?
Não obstante a elaboração de dois pactos diversos, a indivisibilidade e a
unidade dos direitos humanos não restaram prejudicadas, pois sem direitos
sociais, econômicos e culturais, os direitos civis e políticos só poderiam existir
no plano nominal, e, por sua vez, sem direitos civis e políticos, os direitos
sociais, econômicos e culturais também apenas existiriam no plano formal.

3. É possível a derrogação temporária dos direitos enunciados no PIDCP?


Sim, excepcionalmente admite-se a suspensão dos direitos enunciados no
PIDCP nos termos do art.4 do tratado:
ARTIGO 4
1. Quando situações excepcionais ameacem a existência da nação e sejam
proclamadas oficialmente, os Estados Partes do presente Pacto podem adotar,
na estrita medida exigida pela situação, medidas que suspendam as
obrigações decorrentes do presente Pacto, desde que tais medidas não sejam
incompatíveis com as demais obrigações que lhes sejam impostas pelo Direito
Internacional e não acarretem discriminação alguma apenas por motivo de
raça, cor, sexo, língua, religião ou origem social.
2. A disposição precedente não autoriza qualquer suspensão dos artigos 6,
7, 8 (parágrafos 1 e 2) 11, 15, 16, e 18.
3. Os Estados Partes do presente Pacto que fizerem uso do direito de
suspensão devem comunicar imediatamente aos outros Estados Partes do
presente Pacto, por intermédio do Secretário-Geral da Organização das
Nações Unidas, as disposições que tenham suspendido, bem como os motivos
de tal suspensão. Os Estados partes deverão fazer uma nova comunicação,
109
igualmente por intermédio do Secretário-Geral da Organização das Nações
Unidas, na data em que terminar tal suspensão.
Frise-se que os direitos previstos nos arts. 6º (direito à vida), 7º (direito
de não ser submetido a tortura, nem a penas ou tratamentos cruéis,
desumanos ou degradantes, ou a experiências médicas ou científicas), 8º (§§
1º e 2º – direito de não ser submetido à escravidão e à servidão), 11 (direito de
não ser preso apenas por não cumprir obrigação contratual), 15 (direito de não
ser condenado por atos ou omissões não definidos como crime no direito
nacional ou internacional, de não ser submetido a pena mais grave que a
aplicável no momento da ocorrência do delito e de ver aplicada a lei penal mais
benéfica), 16 (direito ao reconhecimento da personalidade jurídica) e 18
(liberdade de pensamento, consciência e religião) não podem ser suspensos
nestas hipóteses, tampouco se admitirá restrição ou suspensão dos direitos
reconhecidos em virtude de leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob
pretexto de que o Pacto não os reconhece ou os reconhece menor grau.

4. Admite-se a limitação a algum(ns) direito(s) enunciado(s) no PIDCP?


Caso a resposta seja positiva, quais as críticas pertinentes?
Sim, os artigos 21 e 22 do PIDCP admitem a restrição ao direito de reunião
e ao direito de associação nos casos previstos em lei:
ARTIGO 21
O direito de reunião pacifica será reconhecido. O exercício desse direito
estará sujeito apenas às restrições previstas em lei e que se façam
necessárias, em uma sociedade democrática, no interesse da segurança
nacional, da segurança ou da ordem pública, ou para proteger a saúde ou a
moral pública ou os direitos e as liberdades das demais pessoas.
ARTIGO 22
1. Toda pessoa terá o direito de associar-se livremente a outras, inclusive o
direito de construir sindicatos e de a eles filiar-se, para a proteção de seus
interesses.
2. O exercício desse direito estará sujeito apenas ás restrições previstas
em lei e que se façam necessárias, em uma sociedade democrática, no
interesse da segurança nacional, da segurança e da ordem públicas, ou para
proteger a saúde ou a moral públicas ou os direitos e liberdades das demais
pessoas. O presente artigo não impedirá que se submeta a restrições legais o
exercício desse direito por membros das forças armadas e da polícia.
3. Nenhuma das disposições do presente artigo permitirá que Estados
Partes da Convenção de 1948 da Organização Internacional do Trabalho,
relativa à liberdade sindical e à proteção do direito sindical, venham a adotar
medidas legislativas que restrinjam ou aplicar a lei de maneira a restringir as
garantias previstas na referida Convenção.
Contudo, esses dispositivos são altamente criticáveis ante a vagueza e
imprecisão dos seus termos. Precisas são as palavras de Flávia Piovesan:
“Crescente é a crítica ante a vagueza e a imprecisão dos dispositivos
constantes do Pacto, o que por vezes vem a conferir um catálogo apenas
formal e nominal de direitos. Nesse sentido, destaca-se a posição de Henry
Steiner: “Considerando a ameaça posta pelos direitos, por que Estados
autoritários tornaram-se partes e permanecem partes do Pacto Internacional
dos Direitos Civis e Políticos? As vantagens são óbvias: ganham legitimidade
pelo suporte aos valores humanistas, identificando-se com a ideologia e o

110
discurso das relações internacionais contemporâneas. Ao mesmo tempo, vários
fatores esvaziam o significado da participação no regime de direitos humanos.
Termos com textura muito aberta permitem a Estados, com diferentes
ideologias políticas, formular e justificar suas próprias interpretações. Não há
dúvida de que o valor das normas de direitos humanos torna-se esvaziado em
virtude da insuficiência de instituições que os implementem. (...) Estes
instrumentos não propõem uma agenda específica de reformas. Eles não
acusam regimes em particular ou sistemas socioeconômicos ou políticos. O
custo da aceitação desses instrumentos por regimes repressivos parece não
apenas suportável, mas baixo. Aceitações nominais implicam em uma era de
direitos nominais” (Steiner, The youth of rights, Harvard Law Review, v. 104, p.
927)” (Direitos Humanos e Direito Constitucional Internacional, 2013,p. 287).

5. Um estrangeiro (seja imigrante regular, ilegal ou refugiado) pode


invocar o PIDCP em face do Estado em que se encontra, se este for
signatário do PIDCP, ainda que seu país de origem não seja?
Na Parte II, integrada por quatro artigos, o Pacto estabelece o dever do
Estado de respeito e a garantia de todos os direitos nele previstos a todos os
indivíduos que se achem em seu território, sem qualquer tipo de discriminação,
inclusive quanto a origem nacional e, especialmente, entre homens e mulheres.
Mesmo o imigrante em situação irregular pode invocar os direitos do PIDCP
contra o Brasil.

6. No ano de 2015 dois brasileiros foram executados em cumprimento a


penas de morte na Indonésia, ambos pelo crime de tráfico de drogas.
Esses episódios geraram grande debate acerca do desrespeito pela
Indonésia aos direitos humanos. Em que pese a Indonésia não ter se
comprometido a abolir a pena de morte, não tendo aderido ao 2º
protocolo facultativo ao PIDCP, é signatária do PIDCP. (1) O crime de
tráfico de drogas pode ser considerado de natureza “grave”? (2) A
Indonésia violou o PIDCP? (3) Se a resposta for sim, a Indonésia poderia
ter sido demandada perante órgãos da ONU de proteção dos direitos
humanos?
As respostas a essas indagações foram retiradas do artigo “Pena de morte
e direitos humanos – o carrasco não atendeu o carcereiro”, de autoria do
defensor público federal Caio Paiva:
http://justificando.com/2015/01/19/pena-de-morte-e-direitos-humanos-o-
carrasco-nao-atendeu-o-carcereiro/
A resposta para primeira pergunta é absolutamente negativa, pois,
conforme registra Luis Arroyo Zapatero em estudo específico acerca do tema, o
entendimento, tanto no plano global como no plano regional da OEA, veiculado
em diversos Informes, Relatórios e Estudos, aponta para a conclusão de
sistematicamente negar legitimidade da previsão da pena de morte para crimes
relacionados com as drogas, conferindo interpretação severamente restritiva à
expressão “crimes mais graves” (prevista tanto no PIDCP como na CADH), a
qual abrangeria somente delitos com consequências mortais ou outras
consequências extremamente graves. Tal interpretação restritiva restou
acolhida na Observação Geral nº. 6 do Comitê de Direitos Humanos da ONU,
órgão que, depois, ainda avançou para esclarecer, em suas Observações
Finais sobre o Irã, que os crimes que não impliquem em perda de vidas

111
humanas não podem ser castigados com a pena de morte. Ainda no sistema
global, no mesmo sentido é a orientação da Comissão de Direitos Humanos da
ONU, que já instou os Estados a velarem para que “o conceito de ‘crimes mais
graves’ se limite aos delitos intencionais com consequências fatais ou
extremamente graves e que não imponham a pena de morte por atos não
violentos (...)”.
Apenas para ilustrar, porquanto a Indonésia não se vê, obviamente, sujeita
ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos, também na nossa região a
interpretação que se dá à expressão “crimes mais graves” é notadamente
restritiva, já tendo a Corte Interamericana decidido, p. ex., que “ao considerar
todo responsável do crime de homicídio doloso como merecedor de pena
capital, se está tratando os acusados deste crime não como seres humanos
individuais e únicos, senão como membros indiferentes e sem rostos de uma
massa que será submetida à aplicação cega da pena de morte”. Tendo a Corte
censurado a aplicação da pena capital em hipótese de homicídio doloso sem
consideração das circunstâncias do caso concreto, já se pode deduzir que igual
ou mais severa seria se instada a se manifestar sobre a pena de morte para o
crime de tráfico de drogas.
A partir deste raciocínio, não sendo o crime de tráfico de drogas
considerado de natureza “grave” segundo o Direito Internacional dos Direitos
Humanos, chego, então, à minha segunda conclusão, respondendo, pois, a
segunda pergunta: sim, a Indonésia violou o PIDCP, mais precisamente o seu
art. 6.2. Logo, estamos habilitados a passar para a terceira pergunta, relativa à
possibilidade de a Indonésia ser demandada perante órgãos da ONU de
proteção internacional dos direitos humanos.
Para o que interessa à esta ocasião, importa dizer que o PIDCP tem como
órgão para fiscalizar o seu cumprimento pelos Estados-Partes o Comitê de
Direitos Humanos, que, por sua vez, conta com dois procedimentos de
apuração: (a) as demandas interestatais – artigos 41 a 43; e (b) as petições
individuais – Protocolo Facultativo. O Brasil poderia ter denunciado a Indonésia
no Comitê de Direitos Humanos da ONU? Não, pois nem o Estado brasileiro
nem tampouco a Indonésia reconheceram a competência do Comitê para
receber e examinar denúncias interestatais. Um familiar ou uma entidade
poderiam ter denunciado a Indonésia no referido Comitê? A resposta também é
negativa, pois a Indonésia não aderiu ao Protocolo Facultativo do PIDCP que
viabiliza as petições individuais, diversamente do Brasil, cuja adesão se deu –
tardiamente – em 2009.
No entanto, se o acesso ao Comitê não seria permitido, o mesmo não se
pode dizer do acesso ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, órgão de
proteção e fiscalização extraconvencional dos direitos humanos, cujas
Resoluções, embora não vinculem juridicamente os Estados, eis que baseadas
no dever de cooperação dos Estados com a própria ONU, não deixam de ter,
porém, certa efetividade em alguns casos. A atuação do Conselho, aqui,
poderia se dar mediante a adoção do seu Procedimento 1503, que, embora
não se preocupe tanto com a situação individual das vítimas, eis que as
petições individuais são utilizadas somente para caracterizar uma situação de
violação flagrante e maciça de direitos humanos em um país ou região, pode
concluir, conforme recorda André de Carvalho Ramos, “com recomendações de
ações aos Estados, o que beneficiava as vítimas”. Logo, concluo com a
resposta à terceira questão: a Indonésia poderia ter sido demandada perante o

112
Conselho de Direitos Humanos, seja por meio de petição individual, seja por
denúncia interestatal.
Para o que interessa à esta ocasião, importa dizer que o PIDCP tem como
órgão para fiscalizar o seu cumprimento pelos Estados-Partes o Comitê de
Direitos Humanos, que, por sua vez, conta com dois procedimentos de
apuração: (a) as demandas interestatais – artigos 41 a 43; e (b) as petições
individuais – Protocolo Facultativo. O Brasil poderia ter denunciado a Indonésia
no Comitê de Direitos Humanos da ONU? Não, pois nem o Estado brasileiro
nem tampouco a Indonésia reconheceram a competência do Comitê para
receber e examinar denúncias interestatais. Um familiar ou uma entidade
poderiam ter denunciado a Indonésia no referido Comitê? A resposta também é
negativa, pois a Indonésia não aderiu ao Protocolo Facultativo do PIDCP que
viabiliza as petições individuais, diversamente do Brasil, cuja adesão se deu –
tardiamente – em 2009.

7. Quais as garantias processuais e penais asseguradas pelo PIDCP? Há


vedação ao bis in idem? Caso positivo, o tratamento é diverso do Pacto
de San José da Costa Rica?
ARTIGO 14
1. Todas as pessoas são iguais perante os tribunais e as cortes de justiça.
Toda pessoa terá o direito de ser ouvida publicamente e com devidas garantias
por um tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei, na
apuração de qualquer acusação de caráter penal formulada contra ela ou na
determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil. A imprensa e o
público poderão ser excluídos de parte da totalidade de um julgamento, quer
por motivo de moral pública, de ordem pública ou de segurança nacional em
uma sociedade democrática, quer quando o interesse da vida privada das
Partes o exija, que na medida em que isso seja estritamente necessário na
opinião da justiça, em circunstâncias específicas, nas quais a publicidade
venha a prejudicar os interesses da justiça; entretanto, qualquer sentença
proferida em matéria penal ou civil deverá torna-se pública, a menos que o
interesse de menores exija procedimento oposto, ou processo diga respeito à
controvérsia matrimoniais ou à tutela de menores.
2. Toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua
inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa.
3. Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualmente, a,
pelo menos, as seguintes garantias:
a) De ser informado, sem demora, numa língua que compreenda e de
forma minuciosa, da natureza e dos motivos da acusão contra ela formulada;
b) De dispor do tempo e dos meios necessários à preparação de sua
defesa e a comunicar-se com defensor de sua escolha;
c) De ser julgado sem dilações indevidas;
d) De estar presente no julgamento e de defender-se pessoalmente ou por
intermédio de defensor de sua escolha; de ser informado, caso não tenha
defensor, do direito que lhe assiste de tê-lo e, sempre que o interesse da justiça
assim exija, de ter um defensor designado ex-offício gratuitamente, se não tiver
meios para remunerá-lo;
e) De interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusão e de obter o
comparecimento eo interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas
condições de que dispõem as de acusação;

113
f) De ser assistida gratuitamente por um intérprete, caso não compreenda
ou não fale a língua empregada durante o julgamento;
g) De não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se
culpada.
4. O processo aplicável a jovens que não sejam maiores nos termos da
legislação penal em conta a idade dos menos e a importância de promover sua
reintegração social.
5. Toda pessoa declarada culpada por um delito terá direito de recorrer da
sentença condenatória e da pena a uma instância superior, em conformidade
com a lei.
6. Se uma sentença condenatória passada em julgado for posteriormente
anulada ou se um indulto for concedido, pela ocorrência ou descoberta de fatos
novos que provem cabalmente a existência de erro judicial, a pessoa que
sofreu a pena decorrente desse condenação deverá ser indenizada, de acordo
com a lei, a menos que fique provado que se lhe pode imputar, total ou
parcialmente, a não revelação dos fatos desconhecidos em tempo útil.
7. Ninguém poderá ser processado ou punido por um delito pelo qual já foi
absorvido ou condenado por sentença passada em julgado, em conformidade
com a lei e os procedimentos penais de cada país.
A proibição do bis in idem consiste no direito do cidadão de não ser julgado
novamente pelos mesmos fatos que ensejaram o julgamento anterior. Trata-se
de garantia que encontra correspondência nos Tratados Internacionais de
Direitos Humanos, variando apenas o seu grau de abrangência. A CADH, por
exemplo, contém uma normativa mais benéfica ao cidadão do que a redação
encampada pelo PIDCP, já que estabelece a proibição de o cidadão absolvido
por sentença transitada em julgado vir a ser submetido a novo julgamento
pelos “mesmos fatos”, ao passo que o PIDCP veda o segundo julgamento
apenas pelo “mesmo crime”. Tal diferenciação foi ressaltada pela Corte
Interamericana no Caso Loayza Tamayo vs. Peru (2007): reconheceu-se a
violação do bis in idem pelo fato de a acusada ter sido julgada na Justiça
Comum pelos mesmos fatos a que já teria sido absolvida na Justiça Militar.
Quanto à extensão da vedação do bis in idem, a Corte IDH já decidiu que não
se trata de uma garantia absoluta (Caso Almonacid Arellano e outros vs. Chile),
o que converge com a redação do Estatuto de Roma (art. 20.3), vedando-se,
pois, que se legitime a denominada “coisa julgada fraudulenta ou aparente”.

8. Quais os mecanismos de implementação e monitoramente previstos no


PIDCP?
No sentido de assegurar a observância dos direitos civis e políticos, o
Pacto desenvolve uma sistemática peculiar de monitoramento e implementação
internacional desses direitos — uma special enforcement machinery. O Pacto
oferece, assim, suporte institucional aos preceitos que consagra, impondo
obrigações aos Estados-partes.
Sistemática de relatórios: ao ratificar o Pacto, os Estados-partes passam
a ter a obrigação de encaminhar relatórios sobre as medidas legislativas,
administrativas e judiciárias adotadas, a fim de ver implementados os direitos
enunciados pelo pacto, nos termos de seu art. 40. Por essa sistemática, por
meio de relatórios periódicos, o Estado-parte esclarece o modo pelo qual está
conferindo cumprimento às obrigações internacionais assumidas. Esses
relatórios são apreciados pelo Comitê de Direitos Humanos, instituído pelo

114
Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, e devem ser encaminhados
em um ano a contar da ratificação do Pacto e sempre que solicitado pelo
Comitê. Ao Comitê cabe examinar e estudar os relatórios, tecendo comentários
e observações gerais a respeito; posteriormente, cabe a esse órgão
encaminhar o relatório, com os comentários aduzidos, ao Conselho Econômico
e Social das Nações Unidas.
Comunicações interestatais: o acesso a esse mecanismo é opcional e
está condicionado à elaboração pelo Estado-parte de uma declaração em
separado e conhecendo a competência do Comitê para receber as
comunicações interestatais. Vale dizer, em se tratando de cláusula facultativa,
as comunicações interestatais só podem ser admitidas se ambos os Estados
envolvidos (“denunciador” e “denunciado”) reconhecerem e aceitarem a
competência do Comitê para recebê-las e examiná-las. O procedimento das
comunicações interestatais pressupõe o fracasso das negociações bilaterais e
o esgotamento dos recursos internos. A função do Comitê é auxiliar na
superação da disputa, mediante proposta de solução amistosa

9. Qual a relevância do 1º Protocolo Adicional ao PIDCP?


O 1º protocolo adicional institui o mecanismo de petições individuais.
Assim, a importância do Protocolo está em habilitar o Comitê de Direitos
Humanos a receber e examinar petições encaminhadas por indivíduos, que
aleguem ser vítimas de violação de direitos enunciados pelo Pacto dos Direitos
Civis e Políticos.

10. Qual é o conceito de “vítima” para o cabimento de petições


individuais? É necessário o vínculo de nacionalidade entre a vítima e o
Estado demandado?
O Comitê já determinou que um indivíduo só pode ser considerado “vítima”,
para os fins do art. 1º do Protocolo, se pessoalmente sofreu a violação de
direito consagrado pelo Pacto.
Para o exercício da sistemática das petições o vínculo exigido, ao invés da
nacionalidade, é antes o da relação entre o reclamante e o dano ou violação
dos direitos humanos que denuncia.

11. Somente indivíduos podem apresentar petições ao Comitê de Direitos


Humanos?
Não, pois as comunicações também podem ser encaminhadas por
organizações ou terceiras pessoas, que representem o indivíduo que sofreu a
violação.

12. Qual o conteúdo possível das decisões do Comitê de Direitos


Humanos no mecanismo de decisões individuais? A decisão tem força
obrigatória e vinculante?
Ao decidir, o Comitê não se atém apenas a declarar, por exemplo, que
resta caracterizada a alegada violação a direito previsto no Pacto. Por vezes, o
Comitê determina a obrigação do Estado em reparar a violação cometida e em
adotar medidas necessárias a prover a estrita observância do Pacto.
Contudo, tal decisão não detém força obrigatória ou vinculante, tampouco
qualquer sanção é prevista na hipótese de o Estado não lhe conferir
cumprimento. Embora não exista sanção no sentido estritamente jurídico, a

115
condenação do Estado no âmbito internacional enseja consequências no plano
político, mediante o chamado power of embarrassment, que pode causar
constrangimento político e moral ao Estado violador.

13. Qual o objeto do 2º Protocolo Adicional ao PIDCP? O Brasil o


ratificou?
O Segundo Protocolo Adicional ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis
e Políticos com vistas à Abolição da Pena de Morte foi adotado e proclamado
pela Resolução n. 44/128 da Assembleia Geral da ONU, de 15 de dezembro de
1989. No Brasil foi aprovado junto do Protocolo Facultativo ao Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos, em 16 de junho de 2009, pelo
Decreto Legislativo n. 311/2009, com a reserva expressa no art. 2º.
Esse dispositivo (art. 2º) prevê não ser admitida qualquer reserva ao
Segundo Protocolo, exceto se for formulada no momento da ratificação ou
adesão, que preveja a aplicação da pena de morte em virtude de condenação
por infração penal de natureza militar de gravidade extrema cometida em
tempo de guerra.

PACTO INTERNACIONAL DOS DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E


CULTURAIS (PIDESC)

14. É correto afirmar que os direitos civis e políticos demandam dos


Estados apenas prestações negativas?
Não. Cabe realçar que, tanto os direitos sociais, econômicos e culturais,
como os direitos civis e políticos, demandam do Estado prestações positivas e
negativas, sendo equivocada e simplista a visão de que os direitos sociais,
econômicos e culturais só demandariam prestações positivas, enquanto os
direitos civis e políticos demandariam prestações negativas, ou a mera
abstenção estatal. A título de exemplo, cabe indagar qual o custo do aparato de
segurança, mediante o qual se asseguram direitos civis clássicos, como os
direitos à liberdade e à propriedade, ou ainda qual o custo do aparato eleitoral,
que viabiliza os direitos políticos, ou do aparato de justiça, que garante o direito
ao acesso ao Judiciário. Isto é, os direitos civis e políticos não se restringem a
demandar a mera omissão estatal, já que a sua implementação requer políticas
públicas direcionadas, que contemplam também um custo.

15. O PIDESC fixa um prazo para implementação dos direitos que


enuncia? Caso a resposta seja negativa, pode-se afirmar que o momento
e a forma de implementação dos direitos econômicos, culturais e sociais
são de livre escolha do Estado parte?
Comentário Geral nº3 do Comitê dos Direitos Econômicos, Culturais e
sociais:
“9. A principal obrigação de resultado refletida no artigo 2º (1) é tomar
medidas “com vistas a alcançar progressivamente a plena realização dos
direitos reconhecidos” no Pacto. O termo “progressiva realização” é muitas
vezes usado para descrever a intenção dessa expressão. O conceito de
progressiva realização constitui um reconhecimento do fato de que a plena
realização de direitos econômicos, sociais e culturais não é possível de ser
alcançada num curto espaço de tempo. Nesse sentido, a obrigação difere

116
significativamente daquela contida no artigo 2º do Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Políticos que inclui uma obrigação imediata de respeitar e
assegurar todos os direitos relevantes. Contudo, o fato de a realização ao
longo do tempo ou, em outras palavras, progressivamente, ser prevista no
Pacto, não deve ser mal interpretada como excluindo a obrigação de todo um
conteúdo que lhe dê significado. De um lado, a frase demonstra a necessidade
de flexibilidade, refletindo as situações concretas do mundo real e as
dificuldades que envolve para cada país, no sentido de assegurar plena
realização dos direitos econômicos, sociais e culturais. Por outro lado, a
expressão deve ser lida à luz do objetivo global, a verdadeira razão de ser[3],
do Pacto que é estabelecer obrigações claras para os Estados- partes no que
diz respeito à plena realização dos direitos em questão. Assim, impõe uma
obrigação de agir tão rápida e efetivamente quanto possível em direção àquela
meta. Além disso, qualquer medida que signifique deliberado retrocesso
haveria de exigir a mais cuidadosa apreciação e necessitaria ser inteiramente
justificada com referência à totalidade dos direitos previstos no Pacto e no
contexto do uso integral do máximo de recursos disponíveis.”

16. O artigo 6.1. do PIDESC determina que “Cada Estado Parte do


presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço
próprio como pela assistência e cooperação internacionais,
principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus
recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por
todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos
no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas
legislativas”. O que se entende por “todos os meios apropriados”?
Bastam, para tanto, instrumentos legislativos?
Comentário Geral nº3 do Comitê dos Direitos Econômicos, Culturais e
sociais:
“5. Entre as medidas que devem ser consideradas apropriadas, além da
legislação, é a previsão de remédios judiciais, em relação a direitos que
podem, em concordância com o sistema legal nacional, serem considerados
justiciáveis[2]. O Comitê nota, por exemplo, que a fruição dos direitos
reconhecidos, sem discriminação, será muitas vezes apropriadamente
promovida, em parte, através da previsão de remédios judiciais ou de outra
natureza igualmente efetiva. De fato, esses Estados- partes que são também
partes no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos já são obrigados
( em virtude dos artigos 2 ( parágrafos 1 e 3), 3 e 26 ) do Pacto a assegurar
que qualquer pessoa cujos direitos ou liberdades (incluindo o direito à
igualdade e à não - discriminação) reconhecidos no Pacto tenham sido
violados, “ devam ter um remédio efetivo” (art. 2º (3) (a)). Além disso, há um
número de outras provisões no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, incluindo os artigos 3, 7 (a) (i), 8, 10, (3), 13 (2) (a), (3) e (4)
e 15 (3) que pareceriam capazes de aplicação imediata por órgãos judiciais ou
de outra natureza em muitos sistemas legais nacionais. Qualquer sugestão de
que as provisões indicadas são inerentemente não auto- aplicáveis pareceriam
serem difíceis de sustentar.
6. Onde políticas públicas específicas visando diretamente à realização dos
direitos reconhecidos no Pacto têm sido adotados sob forma de legislação, o
Comitê desejaria ser informado, entre outros, quanto a se tais leis criaram

117
qualquer direito de ação em nome de indivíduos ou grupos que sintam que
seus direitos não estão sendo completamente realizados. Em casos onde o
reconhecimento constitucional tem sido concedido a específicos direitos
econômicos, sociais e culturais ou onde as provisões do Pacto têm sido
incorporadas diretamente ao Direito Nacional, o Comitê desejaria receber
informações quanto ao alcance do caráter “justiciável” desses direitos (i.e.
capazes de serem invocados perante as Cortes). O Comitê também desejaria
receber informação específica quanto a exemplos em que provisões
constitucionais existentes relativas a direitos econômicos, sociais e culturais
tenham sido enfraquecidas ou significativamente mudadas.
7. Outras medidas que podem também ser consideradas apropriadas para
os propósitos do artigo 2(1) incluem medidas administrativas, financeiras,
educacionais e sociais, embora a elas não se limitem.”

17. O artigo 6.1. do PIDESC determina que “Cada Estado Parte do


presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço
próprio como pela assistência e cooperação internacionais,
principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus
recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por
todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos
no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas
legislativas”. O que se entende por “até o máximo de seus recursos
disponíveis”? Os Estado podem invocar esse dispositivo para
fundamentar o argumento da “reserva do possível”?
Comentário Geral nº3 do Comitê dos Direitos Econômicos, Culturais e
Sociais:
“10. Com base na vasta experiência obtida pelo Comitê, assim como pelo
organismo que o precedeu, ao longo de um período de mais de uma década de
exame dos relatórios dos Estados- partes, o Comitê é da opinião de que um
núcleo mínimo de obrigações para assegurar a satisfação de níveis mínimos
essenciais de cada um dos direitos é incumbência de cada Estado- parte.
Assim, por exemplo, um Estado- parte em que qualquer número significativo de
indivíduos é privado de gêneros alimentícios essenciais, de cuidados
essenciais de saúde, de abrigo e habitação básicos ou das mais básicas
formas de educação está, à primeira vista, falhando para desincumbir-se de
suas obrigações em relação ao Pacto. Se o Pacto fosse interpretado no sentido
de não estabelecer tal núcleo mínimo de obrigações, seria largamente privado
de sua razão de ser. Além disso, deve ser observado que em relação a
qualquer avaliação no sentido de verificar se o Estado se desincumbiu desse
núcleo mínimo de obrigações, deve-se também levar em conta as restrições de
recursos disponíveis no país considerado. O artigo 2º (1) obriga cada Estado-
parte a tomar as medidas necessárias “até o máximo de seus recursos
disponíveis”. Para que um Estado- parte atribua seu fracasso em cumprir seu
núcleo mínimo de obrigações à falta de recursos disponíveis, ele deve
demonstrar que todo esforço foi feito para usar todos os recursos que estão à
disposição num empenho para satisfazer, como matéria de prioridade , essas
obrigações mínimas.
11. O Comitê deseja enfatizar, porém, que até onde os recursos disponíveis
são demonstravelmente inadequados, a obrigação do Estado- parte permanece
no sentido de se esforçar para assegurar o mais amplo gozo possível de

118
direitos relevantes de acordo com as circunstâncias predominantes. Além
disso, as obrigações para monitorar a extensão da realização, ou mais
especialmente da não realização, de direitos econômicos, sociais e culturais e
para planejar estratégias e programas para promoção desses direitos, não são
de modo algum eliminadas como resultado das restrições de recursos .O
Comitê já tratou dessas matérias no Comentário Geral n.º 1 (1989).
12. De igual modo, o Comitê destaca o fato de que até em tempos de
severas restrições de recursos disponíveis, se causadas por um processo de
ajustamento, de recessão econômica ou por outros fatores, os membros
vulneráveis da sociedade podem e de fato devem ser protegidos pela adoção
de programas relativamente de baixo custo para o alcance das metas
almejadas. Em sustentação dessa abordagem, o Comitê nota a análise
preparada pela UNICEF entitulada “Ajuste com uma face humana: protegendo
os vulneráveis e promovendo o crescimento”, a análise pelo PNUD em seu
Relatório sobre o Desenvolvimento Humano de 1990 e a análise pelo Banco
Mundial no Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 1990 .
13. Um elemento final do artigo 2º (1), para o qual atenção deve ser dirigida
é que o compromisso assumido por todos os Estados- partes é “adotar
medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação
internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico...”.O Comitê
nota que a expressão “até o máximo de recursos disponíveis” foi entendida
pelos redatores do Pacto como referindo-se tanto aos recursos existentes
dentro de um Estado quanto àqueles disponíveis na comunidade internacional
através da cooperação e assistência internacionais. Além disso, o papel
essencial de tal cooperação em facilitar a completa realização dos direitos
relevantes é ainda mais realçado pelas disposições específicas contidas nos
artigos 11, 15, 22 e 23. Com respeito ao artigo 22, o Comitê já chamou a
atenção, no Comentário Geral n.º 2(1990), para algumas das oportunidades e
responsabilidades que existem em relação à cooperação internacional. O
artigo 23 também especificamente identifica “o fornecimento de assistência
técnica”, assim como outras atividades, como sendo “medidas de ordem
internacional, para a conquista efetiva dos direitos reconhecidos...”.”
Segundo os itens 10 a 13 do Comentário Geral nº3 do Comitê dos Direitos
Econômicos, Culturais e Sociais, pode-se afirmar que na implementação pelos
dos direitos econômicos, sociais e culturais, os Estados-parte devem sempre
garantir o “mínimo existêncial” ou “núcleo essencial”, ou seja, aqueles direitos
básicos sem os quais não é possível a vida digna. A partir dessas
considerações do os Estados-parte não podem invocar o texto “até o máximo
de seus recursos disponíveis” para eximirem-se de implementar o mínimo vital
por meio dos direitos econômicos, sociais e culturais. O Comitê vai além e
inclusive afirma que mesmo em hipótese de crise e “em tempos de severas
restrições de recursos disponíveis, se causadas por um processo de
ajustamento, de recessão econômica ou por outros fatores, os membros
vulneráveis da sociedade podem e de fato devem ser protegidos pela adoção
de programas relativamente de baixo custo para o alcance das metas
almejadas”. Ou seja, nem mesmo um período extraordinário de recessão
econômica ensejaria o recurso ao argumento da “reserva do possível”.

119
18. Qual é a relação entre a progressividade da implementação dos
direitos econômicos, sociais e culturais e a proibição do retrocesso
social?
Da aplicação progressiva dos direitos econômicos, sociais e culturais
resulta a cláusula de proibição do retrocesso social, como também de proibição
da inação ou omissão estatal, na medida em que é vedado aos Estados o
retrocesso ou a inércia continuada no campo da implementação de direitos
sociais. Vale dizer, a progressividade dos direitos econômicos, sociais e
culturais proíbe o retrocesso ou a redução de políticas públicas voltadas à
garantia de tais direitos, cabendo ao Estado o ônus da prova. Isto é, em face
do princípio da inversão do ônus da prova, deve o Estado comprovar que todas
as medidas necessárias – utilizando o máximo de recursos disponíveis – têm
sido adotadas no sentido de progressivamente implementar os direitos
econômicos, sociais e culturais enunciados no Pacto.

19. Quais as obrigações dos Estados parte no campo dos direitos


econômicos, sociais e culturais?
Respeitar, proteger e implementar. Quanto à obrigação de respeitar, obsta
ao Estado que viole tais direitos. No que tange à obrigação de proteger, cabe
ao Estado evitar e impedir que terceiros (atores não estatais) violem esses
direitos. Finalmente, a obrigação de implementar demanda do Estado a adoção
de medidas voltadas à realização desses direitos

20. Quais os mecanismos de monitoramento do PIDESC?


Sistemática de relatórios: o PIDESC apresenta uma peculiar sistemática de
monitoramento dos direitos enunciados, restringindo-se, todavia, apenas à
sistemática dos relatórios a serem encaminhados pelos Estados-partes. Como
no caso dos relatórios exigidos pelo PIDCP, esses relatórios devem consignar
as medidas adotadas pelo Estado-parte no sentido de conferir observância aos
direitos reconhecidos pelo Pacto. Devem ainda expressar os fatores e as
dificuldades no processo de implementação das obrigações decorrentes do
Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Os Estados-
partes devem submeter os respectivos relatórios ao Secretário-Geral das
Nações Unidas, que, por sua vez, encaminhará cópia ao Conselho Econômico
e Social para apreciação. Note-se que o Conselho Econômico e Social
estabeleceu um Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, com a
competência de examinar os relatórios submetidos pelos Estados.
Diversamente do PIDCP, que institui o Comitê de Direitos Humanos como
órgão principal de monitoramento, o PIDESC não cria um Comitê próprio, que,
como realçado, foi estabelecido posteriormente pelo Conselho Econômico e
Social. Ainda diversamente do PIDCP, o PIDESC não estabelece o mecanismo
de comunicações interestatais.

21. Qual o objeto do Protocolo Facultativo ao PIDESC? O Brasil o


ratificou?
O Protocolo Facultativo habilita o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais a:
a) apreciar petições submetidas por indivíduos ou grupos de indivíduos,
sob a alegação de serem vítimas de violação de direitos enunciados no Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais;

120
b) requisitar ao Estado-parte a adoção de medidas de urgência para evitar
danos irreparáveis às vítimas de violações;
c) apreciar comunicações interestatais, mediante as quais um Estado-parte
denuncia a violação de direitos do Pacto por outro Estado-parte; e
d) realizar investigações in loco, na hipótese de grave ou sistemática
violação por um Estado-parte de direito enunciado no Pacto Internacional dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
O Brasil ainda não ratificou o protocolo facultativo.

PONTO 16
Convenção para a Prevenção e Punição ao crime de genocídio (junto com
o TPI). Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados. Protocolo sobre
o Estatuto dos Refugiados. Convenção contra a tortura e outros
tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes. Protocolo
facultativo.

Convenção para a Prevenção e Punição ao crime de genocídio (junto com


o TPI)

1. O que se entende por genocídio?


O crime de genocídio foi definido pela primeira vez pela Convenção para a
Prevenção e Punição ao Crime de Genocídio (art. 2º) e se trata de crime de jus
cogens. O conceito de genocídio foi cunhado por LEMKIN e consiste na prática
de quaisquer atos, cometido com a intenção de destruir, no todo ou em
parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Dentre as condutas,
temos: assassinato de membro de grupos; atentado grave à integridade física e
mental de membros do grupo; submissão deliberada do grupo a condições de
existência que acarretarão a sua destruição física, total ou parcial; medidas
destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e a transferência
forçada das crianças do grupo para outro.

2. Quem pode ser agente do crime?


Tanto governantes como particulares (art. 4º) Nesta linha, nota-se que o
art. 7º impede a consideração de tais atos como crimes políticos para fins de
extradição, obrigando-se as partes a conceder a extradição de acordo com a
legislação e os tratos em vigor.

3. O feminicídio tem relação com o genocídio?


Consoante lições extraídas do Curso CEI (Jurisprudência de Direitos
Humanos – 1ª Rodada), verificamos que sim. Ainda que não haja previsão de
gênero como conduta tipificada pelo genocídio, verifica-se que o tipo de
feminicídio é inspirado no ânimo subjetivo de destruir um grupo pela simples
razão de existir. Transcrevo:
“O Caso Campo Algodonero representa, também, segundo Lucas
Lixinski, “a primeira vez em que um tribunal internacional reconheceu a
existência de feminicídio como crime”. E avança o autor na sua explicação para
dizer que “feminicídio é uma alusão ao crime internacional de genocídio, que
está codificado na Convenção de 1948 contra o Crime de Genocídio como
sendo atos cometidos com a intenção de destruir, em sua totalidade ou em
parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Esses atos são: matar

121
membros do grupo; causar dano corporal ou mental sério a membros do grupo;
deliberadamente impor condições de vida a um grupo que levem à sua
destruição física em todo ou em parte; imposição de medidas para impedir
nascimentos dentro do grupo; e transferência forçada de crianças de um grupo
para outro (Artigo 2 da Convenção). Note-se que os grupos que podem ser
vítimas de genocídio não incluem “gênero”. Mas a ideia de destruição de um
grupo pela simples razão de existir é o que importa para a definição de
feminicídio”.

4. Discorra sobre as características gerais do Tribunal Penal Internacional


(TPI).
Na visão de André de Carvalho Ramos, o TPI exerce importante função por
ressaltar o vínculo entre Direito Penal e Proteção de Direitos Humanos,
servindo ao combate à impunidade e obtenção da prevenção de novas
violações (acho que o Patrick não concordaria).
Trata-se de um Tribunal dotado de Personalidade Jurídica Internacional
e de Capacidade Jurídica. Diferentemente do que se pode pensar, é um
Tribunal independente da ONU, com o qual possui relação de cooperação com
esta organização.
Nota-se que ele é importante ainda por afastar o regime manco dos crimes
jus cogens, afinal, antes de sua criação, eram crimes internacionais que
dependiam da seletividade e desejo de persecução nacionais.
A adesão ao TPI não admite reservas, mas admite concessões (Art. 8º -
Possiblidade de suspensão da punição aos crimes de guerra por sete anos).

5. O TPI é um Tribunal de Direitos Humanos?


Na leitura de André de Carvalho Ramos, sim. O Estatuto é Convenção
Internacional, bem como define crimes de natureza jus cogens. O TPI evita
que a impunidade dos agentes responsáveis possa servir de estímulo a novas
violações. Outrossim, o faz clara menção a missão de proteção às vítimas de
graves atrocidades, que tem direito a exigir justiça. Por fim, o TPI permite a
proteção de bens jurídicos tidos como direitos humanos.

6. Existem limites à jurisdição do TPI?


Há limitações de duas ordens: materiais e espaciais. No que tange às
limitações materiais, o TPI restringe-se aos crimes de jus cogens (gravidade
ofende os valores de toda a comunidade internacional), havendo a
possibilidade de emendas ao Estatuto e ampliação do rol. No âmbito espacial,
a jurisdição só pode ser exercida quando o crime for cometido no território de
Estado parte, ou nacional deste, ou por meio de declaração específica do
Estado não contratante.
No entanto quanto às restrições espaciais, verifica-se que há uma exceção:
seja pode o Conselho de Segurança adotar resolução vinculante adjudicando o
caso ao Tribunal Penal Internacional. Foi o Caso de Darfur, visto acima, o
primeiro no qual o Conselho de Segurança determinou o início das
investigações, mesmo sem a ratificação, pelo Sudão, do Estatuto do TPI (art.
13, b, Estatuto de Roma).

7. O que se entende por princípio da complementaridade?

122
O Princípio da Complementaridade estabelece a subsidiariedade da
jurisdição internacional. O TPI não exerce sua jurisdição caso o Estado com
jurisdição já houver iniciado ou terminado investigação ou processo penal,
salvo se este não tiver capacidade ou vontade de fazer justiça. A falta de
capacidade ou vontade é auferida pelo próprio TPI (art. 20, §3º) e ocorre
quando: (i) há intenção evidente do Estado de usar o processo nacional para
subtrair a pessoa em causa à sua responsabilidade criminal por crimes da
Competência do Tribunal, gerando impunidade; existe delonga injustificada no
processo; há condução tendenciosa e parcial do caso; ou há eventual colapso
total ou substancial da respectiva administração da justiça.

8. Haveria incompatibilidade entre a entrega do brasileiro nato e a


proibição da extradição de brasileiro nato?
André de Carvalho Ramos defende que não. A extradição é ato pelo qual
um Estado entrega um indivíduo acusado ou já condenado por um delito à
Justiça de outro Estado, competente para julgá-lo e puni-lo, sendo decidido
pelo STF. Trata-se de tema reservado à cooperação judicial entre Estados
soberanos.
Por sua vez, a entrega é instituto diverso. É utilizado no caso de
cumprimento de ordem de Organização Internacional de proteção de Direitos
Humanos. Não há óbice à entrega de nacional. Outrossim, não se poderia usar
a CF como obstáculo ao funcionamento do TPI, vez que a própria CF (art. 7º,
ADCT) reconhece a jurisdição do TPI.
Por fim, a vedação da extradição foi construída para impedir aquela
cooperação entre Estados pudesse se realizar fora de determinados padrões
de respeito ao DH. No entanto, o TPI visa a proteção de Direitos Humanos, de
modo que o suposto obstáculo estaria superado (o que não deixa de ser
passível de críticas diante de uma concepção crítica dos DH, já que se poderia
falar na ambiguidade da sacralidade do corpo, por exemplo).

9. Se determinada conduta prescreve no Brasil, haveria óbice dela ser


julgada no TPI?
Verifica-se que o Estatuto de Roma estabelece a imprescritibilidade dos
crimes sob a sua jurisdição (genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de
guerra, crime de agressão).
Nesta linha, conforme o Princípio II da Res 95 da AG da ONU relativa aos
crimes de guerra, o fato da lei interna não estipular pena para um ato
consistente em crime de Direito Internacional não exime o criminoso de sua
responsabilidade perante o Direito Internacional. Como se trata de ato de
entrega e não de extradição, não é possível falar em prescrição.

10. É possível que um nacional alegue que foi absolvido nacionalmente e,


mesmo assim, seja julgado pelo TPI?
Sim. Em casos de impunidade, haverá conflito positivo entre as jurisdições
do TPI e do Estado, sendo que o próprio TPI é que julgará se houve ou não
impunidade.
O TPI não admite a coisa julgada nacional sob pena de se gerar uma
verdadeira carta d de imunidade. O TIPO tem interesse na efetividade da
punição, do contrário, os Estados têm o dever de julgar ou entregar ao TPI

123
Outrossim, inexiste identidade dos elementos de ação entre causa nacional
e internacional. O pedido e causa de pedir são amparados em normas
internacionais.
Por fim, defende-se que as imunidades da CF só se aplicam em âmbito
nacional e não podem ser usadas contra o TPI.
Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados. Protocolo sobre o Estatuto
dos Refugiados,

11. O que se entende por refugiado?


De acordo com o art. 1º do Protocolo, com o art. 1º da Convenção, pode-se
definir refugiado como a pessoa que é perseguida ou tem fundado temor de
perseguição, por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou
opiniões políticas e encontra-se fora do país de sua nacionalidade ou
residência, e que não pode ou não quer voltar a tal país em virtude da
perseguição ou fundado temor de perseguição.

12. Qual o estatuto pessoal do refugiado?


O estatuto é regido pela lei do país de domicílio, conforme art. 12º. Não
havendo domicílio, será a lei do país de residência. Nota-se ainda que, quanto
aos direitos adquiridos anteriormente e decorrentes de seu estatuto pessoal (tal
como casamento), devem ser respeitados pelo Estado Contratante, exceto no
que tange ao cumprimento das formalidades previstas pela legislação do
Estado.

13. Como se dá o princípio do non refoulement?


O refugiado não poderá ser expulso ou rechaçado para fronteiras de
território em que sua vida ou liberdade estejam ameaçadas em decorrência de
sua raça, religião, nacionalidade, grupo social a que pertença ou opiniões
políticas. No entanto, o princípio não é absoluto e não poderá ser invocado se o
refugiado for considerado, por motivos sérios, um perigo á segurança do país,
ou se for condenado definitivamente por um crime ou delito particularmente
grave, ou ainda, se ele constitua ameaça para a comunidade do país no qual
ele se encontre.
Por fim, nota-se que a entrada de maneira irregular do refugiado em
determinado Estado não dá ensejo para que este descumpra o princípio do
non-refoulement.

14. Qual a diferença entre asilo e refúgio


Em comum, ambos se referem ao acolhimento daquele que sofre uma
perseguição e que, portanto, não pode continuar vivendo no local de
nacionalidade ou residência. Outrossim, ambos estão amparados em normas
internacionais e nacionais, constituindo garantias essenciais para a proteção de
direitos essenciais do indivíduo. Além disso ambos os institutos, se
corretamente concedidos, impedem a extradição pelos mesmos fatos que
geraram a concessão. Tanto o asilo como o refúgio podem ser sujeitos à
revisão judicial interna, como provam os precedentes do STF e, por fim, os dois
institutos são sujeitos à vigilância internacional dos direitos humanos, em
especial perante os tribunais especializados em direitos humanos como a Corte
Interamericana de Direitos.

124
O asilo exige a condição de um estrangeiro (requisito subjetivo) perseguido
por motivações políticas (requisito objetivo) – não caracterizando crime comum
nem atos contrário aos propósitos e princípios da ONU -, bem como a
existência de uma estado de urgência (requisito temporal), com a constatação
da atualidade da perseguição política.
Já o refúgio se destina a várias espécies de perseguição (religiosas,
étnicas...) e pode ser concedido em qualquer situação de perseguição,
bastando que exista um quadro de violação grave e sistemática de direitos
humanos na região para a qual o indivíduo não pode retornar (o asilo não
contempla tal hipótese de concessão).
Outrossim no refúgio, o solicitante de refúgio possui direito público
subjetivo de ingresso no território nacional (é o único estrangeiro que possui tal
direito), o que não ocorre com o solicitante de asilo.
Por fim, a decisão de concessão do refúgio tem natureza declaratória e a
do asilo é constitutiva – ou seja, não há direito a obter asilo, mas, no caso do
refúgio, o solicitante que preencher as condições, tem direito ao refúgio - logo,
não pode ter seu pleito indeferido pelo CONARE por razões de política
internacional

Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis,


desumanos ou degradantes. Protocolo facultativo.

15. Qual a natureza do dever de investigar, de julgar ou de extraditar (aut


dedere aut judicare) prevista na Convenção da ONU? Há previsão deste
dever em legislação nacional.
As obrigações previstas nos artigos 6º e 7º são obrigações erga omnes
(conforme decidiu a Corte Internacional de Justiça no caso Habré), pois
resguardam valores da comunidade internacional. A Convenção da ONU, em
seu art. 5º, §2º estabelece o princípio do aut dedere, aut judicare, pelo qual o
Estado contratante tem o dever de extraditar ou julgar o torturador que esteja
sob sua jurisdição, não importando a nacionalidade do autor, vítima ou local
que a tortura tenha ocorrido.
O dever é positivado na ordem interna, seja porque a Convenção da ONU
em questão já foi internalizada, seja porque também há disposição no mesmo
sentido no Código Penal, em seu art. 7º11.

16. O que é Jurisdição Universal e como ela se aplica na Convenção da


ONU?
A jurisdição universal significa que o Estado pode regular e sancionar
condutas realizadas fora do seu território, visando cumprir o dever de
cooperação internacional, combate à impunidade ou proteger valores

11
“Complementando esses tratados internacionais, há a previsão do art. 7º do Código Penal
que dispõe “Ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro: (…) II – os
crimes a) que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir”. Na mesma linha, o
Supremo Tribunal Federal possui precedentes que pugnam pela aplicação da lei brasileira
a condutas ilícitas ocorridas no exterior – cujos autores não estão sujeitos à extradição –
para cumprir o ideal grociano de “aut dedere aut judicare”, revelando, aos olhos do STF, “o
compromisso ético-jurídico que o Brasil deve assumir na repressão a atos de criminalidade
Comum” (Curso de Direitos Humanos. André de Carvalho Ramos/ CEI Jurisprudência DH.
8ª Rodada)

125
essenciais da comunidade internacional como um todo. Ela se subdivide em
duas: comum e qualificada.
A jurisdição universal comum estabelece que o Estado é autorizado a
regulamentar e sancionar uma conduta realizada fora de seu território, pois, do
contrário, haveria impunidade, prejudicando os esforços de outro Estado.
Assim, evita-se a existência de safe heavens (portos seguros de impunidade),
bem como se permite a aplicação do aut dedere aut punire.
A jurisdição universal qualificada visa impedir que indivíduos possam
violar normas internacionais essenciais. Esta se subdivide em duas também:
condicional e absoluta (perfeita ou in absentia). A condicional exige que o
acusado esteja em custódia do Estado para o início da persecução, sob pena
de se criar “xerifes mundiais” (é aceito pelo Brasil). A absoluta determina
possibilita o início da persecução mesmo que jamais o agressor tivesse tido
algum contato com o Estado do processo (não é aceito pelo Brasil).
A convenção estabelece a Jurisdição Universal Comum, de modo que o
pais signatário se torna competente para o exercício da jurisdição nos casos do
art. 5º (crime cometido em seu território ou a bordo de navio ou aeronave
registrada no Estado em questão; quando o suposto autor for seu nacional;
quando a vítima for nacional em questão e este o considerar apropriado).
Nesta mesma linha, cabe salientar que a Lei 9455/97 estabelece também
os casos de extraterritorialidade (vide nota de rodapé com base no Curso
CEI12).

17. Comente as semelhanças e diferenças entre o conceito de tortura na


Convenção Contra Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis da
ONU em relação à Convenção Interamericana para Prevenir e Punir
Tortura.
Em primeiro lugar, observa-se que tanto a Convenção da ONU quanto a
Convenção Interamericana consideram tortura como “sofrimentos físicos e
mentais”. Além disso, ambas as convenções consideram configurada a prática
de tortura quando ela for realizada para fins de investigação penal, castigo
pessoal ou intimidação.
No entanto, verificamos que apenas a Convenção Interamericana prevê a
tortura por ato omissivo. Outrossim, só ela criou a figura equiparada (que
consiste em condutas equiparadas à primeira, que, ainda que não inflijam dor
ou sofrimento, acabem diminuindo a capacidade física ou mental da vítima) e
também admite que determinada medida preventiva ou pena pode resultar em
configuração de tortura.
Por sua vez, temos que somente a Convenção da ONU exige a presença
de agente público ou sua aquiescência para a caracterização da prática de
tortura. Outrossim, só ela exige que o sofrimento ocorra de forma aguda.

12
Extraterritorialidade incondicionada do crime de tortura: A Lei n. 9455/97 prevê em
seu artigo 2º uma das raras hipóteses de extraterritorialidade incondicionada da jurisdição
brasileira. Segundo o artigo 2º da Lei de Tortura, aplica-se a lei brasileira mesmo que o
crime não tenha sido cometido no território nacional, desde que a vítima seja brasileira ou,
ainda, se o agente estiver em local sob jurisdição brasileira. Sobre essa hipótese de
extraterritorialidade incondicionada, é a lição de André de Carvalho Ramos: “Assim, há dois
casos de extraterritorialidade: 1) pelo princípio da personalidade passiva, quando a vítima
da tortura for brasileira; e 2) pelo princípio da universalidade da jurisdição, quando o agente
se encontra em território brasileiro“.

126
Na lição de André de Carvalho Ramos, conclui-se que “comparando o
disposto nos diplomas internacionais ratificados pelo Brasil e a Lei 9.455/97,
nota-se que a lei brasileira é mais próxima do diploma interamericano, pois é
mais geral que a Convenção da ONU, que considera essencial ser a tortura
cometida por agente público ou com sua aquiescência“.

17. O que é o principio do non-refoulement? Existe previsão normativa?


O princípio do non-refoulement consiste em uma garantia do refugiado de
que este não seja reenviado para um Estado onde possa estar sujeito a
tratamento desumano e degradante, ou ainda a perseguição política 13.
O princípio da proibição do rechaço, entretanto, não poderá ser invocado
se o refugiado for considerado, por motivos sérios, um perigo à segurança do
país, ou se for condenado definitivamente por um crime ou delito
particularmente grave, constitua ameaça para a comunidade do país no qual
ele se encontre.
Além do art. 7º, §2º da Lei 9.474/1997 (diploma que regulamenta o instituto
do refúgio no Brasil), o princípio do non-refoulement tem sua origem atrelada à
Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura e outros Tratamentos ou
Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (art. 3º) e também ao artigo 22, VIII
do Pacto de San José da Costa Rica.

18. A proibição da tortura também é aplicável no que tange a relação entre


particulares? Existe algum caso em que tal foi aplicado?
A eficácia horizontal determina que os direitos humanos devem ser
aplicados nas relações entre particulares e não só nas relações entre estado e
pessoa (eficácia vertical). Nesta linha, é defeso ao indivíduo realizar condutas
violadoras de direitos fundamentais, tal como a tortura. Exemplo de aplicação
da teoria se deu no caso Damião Ximenes Lopes, em que a vítima foi torturada
por funcionários da clínica privada (embora prestasse o serviço de atendimento
psiquiátrico sob a supervisão do SUS) de internação em que estava. O caso foi
levado à Corte Interamericana e resultou na condenação do Brasil (por
omissão do dever de investigar as circunstâncias do falecimento da vítima e
sancionar os responsáveis pelos maus tratos a ele infringidos e por sua morte
na Casa de Repouso Guararapes).

19. Quais os mecanismos de monitoramento da Convenção.


São previstos três mecanismos: Procedimento de Relatorias Periódicas;
Comunicações interesetatais e Petições Individuais.

20. Fale sobre os mecanismos específicos previstos no tratado sobre a


tortura da ONU e seu protocolo facultativo (questão retirada do VI
Concurso).
A Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis,
Desumanos ou Degradantes, em seu artigo 17, prevê um Comitê para
monitoramento das violações aos Direitos Humanos especificados na
Convenção.

13
“O refugiado não poderá ser expulso ou rechaçado para fronteiras de territórios em que
sua vida ou liberdade estejam ameaçadas em decorrência de sua raça, religião,
nacionalidade, grupo social a que pertença, opiniões políticas, o que consagra o princípio
do non-refoulement (proibição do rechaço)” (André de Carvalho Ramos).

127
Cada Estado-Parte deve enviar ao Comitê contra a Tortura relatórios a
cada 4 anos. De sua análise, o Comitê manifestará suas preocupações e
recomendações, que são encaminhadas em retorno, sob a forma de
Observações Conclusivas.
Além do sistema de relatórios, a Convenção estabelece três outros
mecanismos através dos quais o Comitê realiza o monitoramento da ocorrência
de tortura, a saber: a) exame das reclamações interestatais (mediante adesão);
petições individuais (mediante adesão); e a realização de investigações “in
loco” a partir de notícias reiteradas de graves violações dos direitos humanos,
nessa área.
O Protocolo Facultativo, ainda, criou o Subcomitê para a Prevenção da
Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes
do Comitê contra a Tortura, que tem por objetivo visitar locais onde pessoas
sejam privadas de sua liberdade de locomoção e fazer as recomendações
pertinentes.
Além disso, os Estados Partes devem estabelecer mecanismos nacionais
independentes para a prevenção da tortura no âmbito local - chamados
mecanismos preventivos nacionais - os quais devem, igualmente, ter mandato
para inspecionar locais de detenção.
Em 2 de agosto de 2013, foi editada a Lei nº 12.847, que institui o Sistema
Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e cria o Comitê Nacional de
Prevenção e Combate à Tortura e o Mecanismo Nacional de Prevenção e
Combate à Tortura (SNPCT). Nota-se que o SNPCT foi criado em consonância
com o Protocolo Facultativo (Art. 17), com o objetivo de fortalecer a prevenção
e o combate à tortura e cumprir a obrigação internacional assumida pelo Brasil
com a ratificação do Protocolo Adicional à Convenção contra a Tortura”, tal
como disposto no art. 8º da Lei 12.84714.
Por fim, importante ressaltar que a Defensoria Pública compõe o Sistema
Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (SNPCT) e o Comitê Nacional de
Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT), conforme, respectivamente, artigo
2º, parágrafo 2º, inciso V e artigo 7º, parágrafo 4º, da referida Lei, na condição
de membro permanente, com direito à voz.

PONTO 17
Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação
racial. Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher (CEDAW). Protocolo Facultativo.
Convenção sobre os direitos da Criança. Protocolos Opcionais.
Convenção sobre os direitos da pessoa com deficiência. Protocolo
Facultativo.

1. Em que consiste a discriminação racial?


Nos termos da Convenção sobre a eliminação de todas as formas de
discriminação racial, trata-se de “toda distinção, exclusão, restrição ou
preferência baseada na cor, descendência ou origem nacional ou étnica que
14
“Art. 8º. Fica criado o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura-MNPCT,
órgão integrante da estrutura da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República, responsável pela prevenção e combate à tortura e a outros tratamentos ou
penas cruéis, desumanos ou degradantes, nos termos do Artigo 3º, do Protocolo Facultativo
à Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis,
Desumanos ou Degradantes”.

128
tenha por objeto ou resultado anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou
exercício em um mesmo plano de direitos humanos e liberdades fundamentais,
nos campos político, econômico, social e cultural ou qualquer outro campo da
vida pública”.

2. Quais são os deveres estatais previstos na Convenção sobre a


eliminação de todas as formas de discriminação racial?
A Convenção prevê tanto prestações negativas quanto positivas. São
exemplos de prestações negativas não efetuar nenhum ato ou prática de
discriminação racial e não encorajar, defender ou apoiar a discriminação racial
praticada por uma pessoa ou uma organização qualquer. São exemplos de
prestações positivas a adoção de ações afirmativas e o cumprimento de um
mandado de criminalização previsto na Convenção.
São ações afirmativas as medidas especiais e temporárias tomadas com o
único objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos raciais ou
étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária
para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de
direitos humanos e liberdades fundamentais.
Por mandado de criminalização entende-se o dever previsto no Tratado de
que os Estados signatários declararem como crime qualquer difusão de ideias
baseadas na superioridade ou ódio raciais, qualquer incitamento à
discriminação racial, assim como quaisquer atos de violência ou provocação a
tais atos, dirigidos contra qualquer raça ou qualquer grupo de pessoas de outra
cor ou de outra origem técnica, como também qualquer assistência prestada a
atividades racistas, inclusive seu financiamento. Tal mandado foi cumprido pelo
Brasil, a exemplo da edição da Lei nº 7716/89 (define os crimes resultantes de
preconceito de raça ou de cor) e do art. 140, §3º, do Código Penal (injúria
racial).

3. Quais os mecanismos de monitoramento previstos no corpo do


tratado?
O órgão responsável pelo monitoramento é o Comitê para a eliminação da
discriminação racial. O Brasil reconheceu a competência do Comitê sobre a
eliminação da discriminação racial para receber e processar reclamações de
violações de direitos humanos.
A Convenção prevê o sistema de relatórios, segundo o qual cada Estado-
parte deve enviar relatórios periódicos, inicialmente no primeiro ano após a
ratificação da Convenção, e desde então bienalmente e o Comitê dá um
retorno, sob a forma de observações conclusivas, manifestando suas
preocupações e recomendações.
Pelo exame de tais relatórios e de informações recebidas dos Estados-
Partes, o Comitê pode apresentar sugestões e recomendações de caráter geral
baseadas no exame dos relatórios e em informações recebidas dos Estados-
Partes. Levará estas sugestões e recomendações de ordem geral ao
conhecimento da Assembleia Geral, e se as houver juntamente com as
observações dos Estados Partes.
Além do sistema de relatórios, o Comitê se utiliza de mais três mecanismos
para realizar o monitoramento: o exame das reclamações interestatais, o das
reclamações individuais, e o procedimento de “Alerta Rápido”, voltado ao envio
de recomendações urgentes quanto aos procedimentos a serem tomados pelo

129
Estado-parte para prevenir ou limitar a ocorrência de violações à Convenção,
em situações de conflito.
O Comitê publica seus Comentários Gerais sobre a interpretação das
normas de Direitos Humanos relacionadas à discriminação racial.

4. Discorra brevemente sobre o histórico de proteção dos direitos das


mulheres no sistema ONU.
O Sistema Global de Proteção aos Direitos Humanos é encabeçado pela
Declaração Universal dos Direitos dos Homens de 1948, seguida pelos Pactos
de 1966 e pelas demais Convenções de Direitos Humanos. Contudo, já em
1946, a Assembleia Geral da ONU instituiu a Comissão sobre o Status da
Mulher para estudar, analisar e criar recomendações de formulação de políticas
que melhorassem a situação das mulheres. A Comissão sobre o Status da
Mulher, no período 1949 a 1962, fez muitos estudos sobre a situação das
mulheres no mundo, o que deu origem a vários documentos, dentre os quais se
podem mencionar: Convenção dos Direitos Políticos das Mulheres (1952),
Convenção sobre a Nacionalidade das Mulheres Casadas (1957), Convenção
sobre o Casamento por Consenso, Idade Mínima para Casamento e Registro
de Casamentos (1962).
A ONU declarou o período 1976-1985 como a Década da ONU para a
Mulher. Foi nessa época que muitas militantes feministas se reuniram em
vários espaços e formularam propostas referentes aos Direitos Humanos,
buscando incluir questões específicas para as mulheres. Nessa conjuntura foi
aprovada a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher (CEDAW) pela Assembleia Geral da ONU em 18
de dezembro de 1979, que entrou em vigor em 3 de setembro de 1981,
entendendo que as pessoas do sexo feminino seriam alvo de várias maneiras
de discriminação por parte da sociedade global.

5. Qual é o principal objetivo da Convenção sobre a Eliminação de todas


as Formas de Discriminação contra a Mulher?
A Convenção destaca a importância das medidas estatais no sentido de
modificar os padrões socioculturais de conduta de homens e mulheres, com o
fim de eliminar os preconceitos e práticas consuetudinárias, baseados na ideia
de inferioridade ou superioridade de qualquer dos sexos ou em funções
estereotipadas de homens e mulheres. Também prevê a possibilidade de
políticas públicas baseadas na “discriminação positiva” para alcançar aquela
finalidade.

6. Em que consiste a discriminação contra a mulher?


Nos termos da Convenção da Mulher, a expressão "discriminação contra a
mulher" significa toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que
tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou
exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na
igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades
fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em
qualquer outro campo.

7. Quais os principais direitos previstos na Convenção sobre a


Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher?

130
Os principais direitos previstos pela Convenção são:
i. Direitos civis e políticos: direito de votar e ser elegível, participação na
formulação de políticas públicas governamentais, no exercício de cargos
públicos, na participação em organizações e associações não governamentais
que se ocupam da vida pública e política do país e na oportunidade de
representar seu governo no plano internacional e de participar no trabalho das
organizações internacionais;
ii. Educação: mesmas condições de orientação em matéria de carreiras e
capacitação profissional, acesso aos estudos e obtenção de diplomas nas
instituições de ensino, em todos os níveis de educação e em todos os tipos de
capacitação profissional, eliminação da estereotipação dos papeis masculinos
e femininos, dentre outros;
iii. Emprego: direito às mesmas oportunidades de emprego, aos mesmos
critérios de seleção, direito à promoção e estabilidade no emprego, o direito a
igual remuneração, o direito à igualdade de tratamento com respeito à
avaliação da qualidade do trabalho, direito à seguridade social, férias pagas,
proteção à saúde e à segurança nas condições de trabalho, proibição de
demissão por motivo de gravidez ou de licença-maternidade ou de estado civil,
direito à licença-maternidade com salário pago ou benefícios sociais
comparáveis, sem perda do emprego anterior, antiguidade ou benefícios
sociais;
iv. Acesso a serviços médicos, com assistência apropriada em relação à
gravidez, ao parto e ao período pós-parto;
v. Outras esferas da vida econômica e social: direito a obter empréstimos
bancários, hipotecas e outras formas de crédito financeiro, direito de participar
em atividades de recreação, esportes e em todos os aspectos da vida cultural;
vi. Reconhecimento de igual capacidade jurídica em matérias civis e das
mesmas oportunidades para o seu exercício;
vii. Direitos iguais aos dos homens para adquirir, mudar ou conservar sua
nacionalidade e ainda em todos os assuntos relativos ao casamento e às
ralações familiares.

8. Quais as principais medidas a serem adotadas pelos Estados-parte


signatários da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher?
As principais medidas a serem adotadas pelos Estados são:
i. Adoção de política destinada a eliminar a discriminação contra a mulher,
por meio, inclusive, de medidas adequadas, legislativas e de outro caráter, com
as sanções cabíveis e que proíbam toda discriminação contra a mulher
(mandado de criminalização);
ii. Medidas apropriadas para assegurar o pleno desenvolvimento e o
progresso da mulher, para garantir-lhe o exercício e o gozo dos direitos
humanos e liberdades fundamentais em igualdade de condições com o
homem;
iii. Medidas especiais de caráter temporário, para acelerar a igualdade de
fato entre homens e mulheres, que deverão cessar quando os objetivos de
igualdade de oportunidade e tratamento forem alcançados (ações afirmativas);
iv. Medidas apropriadas para alterar os padrões socioculturais de conduta;
v. Medidas para suprimir todas as formas de tráfico de mulheres e
exploração da prostituição da mulher.

131
9. Fale a respeito das ações afirmativas previstas na Convenção.
São, nos termos da Convenção, medidas especiais de caráter temporário,
destinadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem e a mulher até que os
objetivos de igualdade de oportunidade e tratamento sejam alcançados.

10. Quais os mecanismos de monitoramento previstos no corpo do


tratado?
O órgão responsável pelo monitoramento é o Comitê sobre a Eliminação
da Discriminação contra a Mulher.
A Convenção apenas prevê como mecanismo de monitoramento o sistema
dos relatórios periódicos, segundo o qual os Estados-Partes comprometem-se
a submeter ao Secretário-Geral das Nações Unidas, para exame do Comitê,
um relatório sobre as medidas legislativas, judiciárias, administrativas ou outras
que adotarem para tornarem efetivas as disposições desta Convenção e sobre
os progressos alcançados a esse respeito: a) no prazo de um ano a partir da
entrada em vigor da Convenção para o Estado interessado; e b)
posteriormente, pelo menos cada quatro anos e toda vez que o Comitê a
solicitar. Pelo exame de tais relatórios e de informações recebidas dos
Estados-Partes, o Comitê, através do Conselho Econômico e Social das
Nações Unidas, pode apresentar sugestões e recomendações de caráter geral
baseadas no exame dos relatórios e em informações recebidas dos Estados-
Partes.

11. A Convenção das Mulheres admite a formulação de reservas?


Sim, as reservas devem ser feitas pelos Estados no momento da
ratificação ou adesão, desde que não sejam incompatíveis com o objeto e o
propósito da Convenção.
Ainda, qualquer Estado-Parte, no momento da assinatura ou ratificação,
poderá declarar que não se considera obrigado a resolver eventuais litígios
internacionais entre dois ou mais Estados-Partes relativos à interpretação ou
aplicação da Convenção por meio de arbitragem internacional ou, ante o
eventual insucesso desta, perante a Corte Internacional de Justiça. O Brasil fez
essa reserva!

12. Quais são os seus protocolos facultativos?


Há apenas um protocolo facultativo, que prevê a competência do Comitê
para receber e analisar comunicações feitas por ou em benefício de indivíduos
ou grupos de pessoas sob a jurisdição de um Estado-parte alegando serem
vítimas de violação de qualquer direito previsto no Tratado (petições
individuais), bem como o procedimento de investigação in loco. O Protocolo
não permite reservas.

13. Qual a situação desses tratados (Convenção das Mulheres e


protocolo) no Brasil?
Ambos já passaram por todo o trâmite legislativo necessário à validade
interna do tratado, com a promulgação de decreto executivo.

14. Qual é a importância da Convenção sobre os Direitos da Criança?

132
Destaca-se como o tratado internacional de proteção de direitos humanos
com o mais elevado número de ratificações. Trata não só de direitos
econômicos, sociais, culturais, civis e políticos, mas também de direitos
humanitários e conceitos novos. É, ainda, um documento importante na defesa
dos interesses metaindividuais de crianças, considerando-as como sujeitos
individuais e coletivos de direito, permitindo a intervenção da comunidade
internacional e obrigando os Estados-parte a tomarem todas as providências
no sentido da implementação desses direitos.

15. Quais são os princípios adotados pela Convenção sobre os Direitos


da Criança?
A Convenção acolhe a concepção do desenvolvimento integral da criança,
reconhecendo como verdadeiro sujeito de direito, que exige proteção especial
e absoluta prioridade.
Adota-se, ainda, o critério do best interests of the child – interesse maior da
criança. O problema é que, no caso concreto, poderá existir conflito entre o
interesse individual e coletivo de crianças, ou mesmo entre aquele interesse e
outro direito fundamental, devendo ser ponderado qual deles deve prevalecer.

16. Quem é considerada criança nos termos da Convenção?


Considera-se criança todo ser humano com menos de dezoito anos de
idade, a não ser que, em conformidade com a lei aplicável à criança, a
maioridade seja alcançada antes.
OBSERVAÇÃO: A Convenção foi promulgada internamente pelo Dec.
99710/90, portanto, posteriormente à própria vigência do ECA.

17. Quais são os direitos previstos na Convenção? E quais foram


ignorados?
São incluídos mais de quarenta direitos específicos, relativos à saúde,
educação, moradia, segurança social, etc. Como exemplos, o direito à vida, à
liberdade de pensamento; o direito a ter uma nacionalidade; a proteção ante a
separação dos pais; proteção para não ser levada ilicitamente ao exterior;
proteção contra a exploração econômica e contra o envolvimento na produção,
tráfico e uso de drogas, à proteção contra a exploração e o abuso sexual.
Apesar de apresentar um extenso rol de direito, a Convenção deixou de
prever regras protetoras para crianças estrangeiras, para vítimas de migrações
internas forçadas e para proteção contra experiências médicas.

18. Quais os mecanismos de monitoramento previstos no corpo do


tratado?
O órgão responsável pelo monitoramento é o Comitê para os Direitos da
Criança.
A Convenção prevê o sistema de relatórios, segundo o qual cada Estado-
parte deve enviar relatórios periódicos, inicialmente no prazo de dois anos a
partir da data em que entrou em vigor para cada Estado a Convenção, e a
partir de então a cada cinco anos. O Comitê poderá formular sugestões e
recomendações gerais com base nas informações recebidas, transmitindo-as
aos Estados Partes e encaminhando-as à Assembleia geral, juntamente com
os comentários eventualmente apresentados pelos Estados Partes.

133
19. Fale sobre os Protocolos Facultativos à Convenção das Crianças.
O Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança sobre a
Venda de Crianças, Prostituição Infantil e Pornografia Infantil foi aprovado pelo
Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo 230/2003, e promulgado
pelo Dec. 5007/2004.
Tal como fez a Convenção, o Protocolo não se utiliza da técnica brasileira
de diferenciar os menores de 18 anos em crianças e adolescentes, adotando a
expressão genérica “criança”. Sua finalidade primordial foi fortalecer o rol de
medidas protetivas no que tange às violações sobre as quais discorre, a serem
adotadas pelo Legislativo, Judiciário e Executivo. Cada país deve adotar
medidas tendentes à responsabilização civil, penal e administrativa das
pessoas envolvidas nas práticas objeto do Protocolo, assim como garantir que
a adoção de crianças se dê em conformidade com os instrumentos
internacionais aplicáveis. Os Estados devem elaborar legislação sobre o tema
(mandado de criminalização) e implementar políticas públicas para prevenir a
ocorrência dos atos previstos no Protocolo. O Protocolo apenas prevê como
mecanismo de monitoramento o sistema de relatórios.
O Protocolo Facultativo à Convenção sobre Envolvimento de Crianças em
Conflitos Armados, também ratificado e promulgado pelo Brasil, tem como
intuito fortalecer o rol de medidas protetivas no que tange às violações sobre as
quais discorre. Exige que os membros das forças armadas que ainda não
atingiram 18 anos, não participem diretamente dos conflitos. Além disso, essas
pessoas também não podem ser alvo de recrutamento obrigatório em suas
forças armadas. Ademais, se acaso o Estado-Parte permitir tal recrutamento,
deverá estabelecer garantias que assegurem, além da sua voluntariedade, a
necessidade de consentimento dos representantes legais, bem como de que a
pessoa se encontra em plenas condições de prestar o serviço militar. O
Protocolo apenas prevê como mecanismo de monitoramento o sistema de
relatórios.
Mais recente, o Terceiro Protocolo à Convenção sobre os Direitos da
Criança garante às crianças e seus representantes a possibilidade de
recorrerem ao Comitê de Direitos das Crianças da ONU, por meio de petições
individuais, sempre que não tiverem seus direitos garantidos pelas justiças de
seus países, ou seja, sempre que após a provocação das jurisdições
domésticas restarem esgotadas as instâncias internas sem qualquer resultado
prático positivo. Na apreciação das petições, o Comitê deverá seguir o princípio
do superior interesse da criança. Ainda, salvo autorização expressa dos
interessados, as identidades das pessoas envolvidas serão sigilosas. Foi
adotado pela ONU em 19 de dezembro de 2011 e assinado pelo Brasil em
fev/2012. Ainda não foi ratificado!

20. Como a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência


define “pessoas com deficiência”?
A Convenção define “pessoas com deficiência” como aquelas que têm
impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial, as quais, em
interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e
efetiva na sociedade com as demais pessoas.

21. O que significa discriminação por motivo de deficiência?

134
Significa qualquer diferenciação, exclusão ou restrição baseada em
deficiência, com o propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o
reconhecimento, o desfrute ou o exercício, em igualdade de oportunidades com
as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais
nos âmbitos político, econômico, social, cultural, civil ou qualquer outro.
Abrange todas as formas de discriminação, inclusive a recusa de adaptação
razoável.

22. A Convenção traz alguns conceitos novos. Explique o que é


“adaptação razoável” e “desenho universal”.
“Adaptação razoável” significa as modificações e os ajustes necessários e
adequados que não acarretem ônus desproporcional ou indevido, quando
requeridos em cada caso, a fim de assegurar que as pessoas com deficiência
possam gozar ou exercer, em igualdade de oportunidades com as demais
pessoas, todos os direitos humanos e liberdades fundamentais;
“Desenho universal” significa a concepção de produtos, ambientes,
programas e serviços a serem usados, na maior medida possível, por todas as
pessoas, sem necessidade de adaptação ou projeto específico. O “desenho
universal” não excluirá as ajudas técnicas para grupos específicos de pessoas
com deficiência, quando necessárias.

23. Quais os princípios diretivos trazidos pela Convenção?


Os princípios diretivos da Convenção são:
i. Respeito pela dignidade inerente, a autonomia individual, inclusive a
liberdade de fazer as próprias escolhas, e a independência das pessoas;
ii. Não discriminação (com destaque à garantia de que as pessoas com
deficiência não sejam excluídas do sistema educacional geral sob alegação de
deficiência e à proibição de discriminação contra pessoas com deficiência na
provisão de seguro de saúde e seguro de vida);
iii. Plena e efetiva participação e inclusão na sociedade;
iv. Respeito pela diferença e pela aceitação das pessoas com deficiência
como parte da diversidade humana e da humanidade;
v. Igualdade de oportunidades (com destaque ao dever estatal de empregar
pessoas com deficiência no setor público);
vi. Acessibilidade;
vii. Igualdade entre o homem e a mulher;
viii. Respeito pelo desenvolvimento das capacidades das crianças com
deficiência e pelo direito das crianças com deficiência de preservar sua
identidade.

24. E quais são as principais obrigações assumidas pelos Estados?


- Adotar todas as medidas legislativas, administrativas e de qualquer outra
natureza, necessárias para a realização dos direitos reconhecidos, bem como
eliminar os dispositivos e práticas, que constituírem discriminação contra
pessoas com deficiência;
- O Estado deve abster-se de participar em qualquer ato ou prática
incompatível com a Convenção e assegurar que as autoridades públicas e
instituições atuem em conformidade com seu texto, além de tomar todas as
medidas apropriadas para eliminar a discriminação baseada em deficiência, por
parte de qualquer pessoa, organização ou empresa privada;

135
- Ações afirmativas, a fim de promover a igualdade e eliminar a
discriminação, e garantir que a adaptação razoável seja oferecida.

25. Quais os mecanismos de monitoramento previstos no corpo do


tratado?
O órgão responsável pelo monitoramento é o Comitê sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência.
Os mecanismos previstos na Convenção são os relatórios periódicos.
OBSERVAÇÃO: A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência foi aprovada nos termos do art. 5º, § 3º, da Constituição Federal,
tendo força normativa de emenda constitucional.

26. Quais são os seus protocolos facultativos?


A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência conta com
apenas um protocolo facultativo, que cria um sistema de denúncias pessoais
de violação das disposições da Convenção, dirigidas ao Comitê sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência. Ainda, “caso se justifique e o Estado-
Parte consinta, a investigação poderá incluir uma visita ao território desse
Estado”. Foi ratificado pelo Brasil.

PONTO 18
Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os
Trabalhadores Migrantes e dos membros de suas Famílias. Convenção
Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o
Desaparecimento Forçado.

1. Quando o Brasil ratificou a Convenção Internacional sobre a Proteção


dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das
suas famílias?
Tal Convenção foi adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas por
meio da Resolução nº 45/158, de 18 de dezembro de 1990, em Nova Iorque.
Entrou em vigor internacional em 1º de julho de 2003. No Brasil, em 15 de
dezembro de 2010 o Poder Executivo submeteu a apreciação de seu texto ao
Congresso Nacional por meio da Mensagem de Acordos, convênios, tratados e
atos internacionais de nº 696/2010. Entretanto, tal ato ainda está em
tramitação, significando que o Brasil ainda não ratificou o referido Tratado.
Insta salientar a relevância de tal Convenção em virtude da amplitude do
fenômeno da migração na era de globalização, sendo o objetivo do
mencionado instrumento o estabelecimento de normas para uniformizar
princípios fundamentais relativos ao tratamento dos trabalhadores migrantes e
de suas famílias, por meio de uma proteção internacional adequada,
especialmente tendo em vista sua situação de vulnerabilidade e seu
afastamento do Estado de Origem.
No início do ano de 2009, cerca de 40 países haviam ratificado a
Convenção. Entretanto, a maior parte dos signatários coincide com os países
de origem dos trabalhadores migrantes, já que as potências ocidentais
industrializadas, locais de acolhimento dos trabalhadores, rejeitam a
Convenção por ela tratar juridicamente de forma equivalente trabalhadores
migrantes legais e ilegais.

136
Adendo: Em 2012 este em São Paulo A relatora da ONU para Formas de
Escravidão Contemporânea, a advogada armênia Gulnara Shahinian, defendeu
em sua passagem pelo país que o governo brasileiro ratifique a Convenção
sobre a Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes e Membros de Sua
Família. Trata-se do acordo da ONU (Organização das Nações Unidas) que
garante direitos de trabalhadores migrantes e suas famílias. Durante audiência
pública nesta sexta-feira (9) na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo
(Alesp), ela elogiou a experiência brasileira no combate ao trabalho escravo,
mas defendeu que o país precisa assinar o tratado para assegurar dignidade
aos trabalhadores estrangeiros.
O Brasil é o único país membro do Mercosul (Mercado Comum do Sul) que
não é signatário do acordo, em vigor desde 2003. Gulnara e representantes da
sociedade civil apontaram a necessidade de ampliar a proteção às vítimas do
trabalho escravo, principalmente àquelas que vêm de outros países. “É preciso
de mais ajuda ao imigrante, porque eles ainda estão muito isolados”, pontuou.
Pelo menos 300 mil latinos-americanos vivem hoje na cidade de São
Paulo, segundo levantamento do CAMI. Recentemente, no Paraná, 71
paraguaios foram encontrados sujeitos à escravidão contemporânea.

2. A Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de todos os


Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas famílias é aplicável
aos refugiados e apátridas?
Em regra a Convenção não se aplica a tais indivíduos, conforme expressa
previsão do art. 3º, que elenca um rol de indivíduos aos quais tal Tratado é
inaplicável. Frise-se que o inciso IV expressamente prevê que a Convenção
poderá ser aplicável aos refugiados e apátridas caso a legislação nacional
preveja nesse sentido ou outros instrumentos que o país tenha ratificado.
Vejamos: “Artigo 3º A presente Convenção não se aplica: d) Aos refugiados e
apátridas, salvo disposição em contrário da legislação nacional pertinente do
Estado Parte interessado ou de instrumentos internacionais em vigor para esse
Estado”.

3. Quais são os meios de proteção previstos na referida Convenção?


Mister salientar que a Convenção, em sua parte VII, institui no art. 72 o
Comitê para a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e
Membros de suas Famílias, composto por 14 peritos de alta autoridade moral,
imparcialidade, e reconhecida competência no domínio abrangido pela
Convenção, para exercerem suas funções a título pessoal. Como todos em
todos os tratados, há a previsão de relatórios periódicos que devem ser
apresentados ao Comitê pelos Estados Partes de cinco em cinco anos ou
sempre que o Comitê solicitar. O art. 76 ainda prevê a possibilidade dos
Estados Parte reconhecerem a competência do Comitê para avaliar
comunicações interestatais e comunicações individuais.

4. A Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas


contra o Desaparecimento forçado já foi ratificada pelo Brasil? E a
interamericana? Relacione tais Convenções ao caso Gomes Lund,
julgado pela Corte Interamericana no ano de 2010.

137
A Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o
Desaparecimento forçado foi assinada em 6 de fevereiro de 2007, aprovada
pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo n
º 661, publicado em 1º de setembro de 2010 e ratificada em 29 de
novembro de 2010. No que tange à Convenção Interamericana sobre o
Desaparecimento Forçado, embora esta tenha sido aprovada pelo Congresso
Nacional, ainda não foi ratificada pelo Brasil.
Tais Convenções mostram-se de extrema importância especialmente para
os países do cone sul que vivenciaram sangrento período ditatorial e ainda
passam por um momento de transição democrática (justiça de transição), já
que ressaltam a necessidade de prevenir o desaparecimento forçado e
combater a impunidade nesses casos, afirmando o direito à verdade das
vítimas sobre as circunstâncias do desaparecimento forçado e o destino da
pessoa desaparecida, bem como o direito à liberdade de buscar, receber e
difundir informação com esse fim. Assim, A doutrina denomina de Justiça de
Transição um conjunto de Mecanismos judiciais ou extrajudiciais utilizados por
uma sociedade como um ritual de passagem à ordem democrática após graves
violações de direitos humanos por regimes autoritários e ditatoriais, de forma
que se assegura a responsabilidade dos violadores de direitos humanos, o
resguardo da justiça e a busca da reconciliação.
O caso Gomes Lund (ou “Guerrilha do Araguaia”), destaca-se dentre os
julgados pela Corte Interamericana em razão de ter o Estado Brasileiro figurado
no banco dos réus do sistema interamericano. É mais um caso sobre a
apreciação das Leis de Anistia editadas pelos países alvo de ditaduras
recentes. Trata-se de Ação movida pela Comissão pelo desaparecimento
forçado de mais de 60 pessoas que lutaram contra a ditadura militar brasileira,
em geral membros do Partido Comunista do Brasil, na região do Araguaia
(Tocantins), durante o início da década de 70 do século XX. O destino e os
eventuais restos mortais dos guerrilheiros jamais foram encontrados pelo
exército.
Além de outros pontos, a Corte declarou o Estado responsável pela
violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à
integridade física e à liberdade pessoal (pelo desaparecimento forçado), às
garantias judiciais e de proteção judicial. A Corte enfatizou o direito à justiça e à
verdade, exigindo punições penais aos violadores de direitos humanos.
Outrossim, apesar de o STF ter reconhecido meses antes do julgamento pela
Corte a compatibilidade das leis de anistia com a Constituição, a Corte
Interamericana, em diálogo definitivo de Convencionalidade reiterou sua
jurisprudência no sentido da invalidade da lei de anistia brasileira, sendo tal
incompatível com a Convenção Americana de Direitos Humanos, ainda que se
trate de lei de anistia bilateral.
Insta esclarecer que a Convenção Internacional sobre o Desaparecimento
Forçado de Pessoas traz em seu bojo um mandado de criminalização ao
determinar que os Estados tomem as medidas necessárias para assegurar que
o desaparecimento forçado constitua crime em conformidade com o direito
penal, providência que ainda não foi adotada pelo Brasil. Contudo, tal não
impede o enquadramento de práticas violatórias de direitos humanos em outros
tipos penais presentes no ordenamento jurídico interno, como ocorreu no caso
Gomes Lund, em que a conduta dos perpetradores das violações puderam ser

138
enquadradas, por ex, como crime de sequestro, previsto no art. 146 do Código
Penal.
Adendo: tramita na Câmara dos Deputados um PL para tipificar a conduta
de desaparecimento forçado e acrescentá-lo ao rol de crimes hediondos. É o
PL 6.240/13, que visa acrescentar o art. 149-A ao Código Penal e inciso ao art.
1º da Lei 8.072/90.

5. Relacione os conhecidos “três casos hondurenhos” com o delito de


desaparecimento forçado.
Os três casos hondurenhos são: Velásquez Rodriguez vs Honduras, Fairén
Garbi e Solis Vs Honduras e Godínez Cruz Vs. Honduras. Estes foram os
primeiros casos julgados pela Corte Interamericana e versam exatamente
sobre as discussões envolvendo o delito de desaparecimento forçado de
pessoas por agentes da ditadura militar de Honduras nos anos 80 do século
passado. Nestes casos, a Corte Interamericana firmou sua jurisprudência no
sentido de que, nos casos envolvendo o delito de desaparecimento forçado, o
ônus de provas que o indivíduo não está desaparecido é do Estado.

6. Discorra sobre alguns pontos de seu interesse previstos na Convenção


Internacional sobre o desaparecimento forçado.
A Convenção define o delito de desaparecimento forçado no art. 2º.
Vejamos: “Para os efeitos desta Convenção, entende-se por “desaparecimento
forçado” a prisão, a detenção, o seqüestro ou qualquer outra forma de privação
de liberdade que seja perpetrada por agentes do Estado ou por pessoas ou
grupos de pessoas agindo com a autorização, apoio ou aquiescência do
Estado, e a subseqüente recusa em admitir a privação de liberdade ou a
ocultação do destino ou do paradeiro da pessoa desaparecida, privando-a
assim da proteção da lei.”
Por sua vez, o art. 5º da Convenção determina que “a prática generalizada
ou sistemática de desaparecimento forçado constitui crime contra a
humanidade, tal como define o direito internacional aplicável, o qual está sujeito
às condições nele previstas.” A matéria foi tratada da mesma maneira pelo
Estatuto de Roma (criador do TPI).
Prevê ainda tal Tratado um mandado de criminalização do delito de
desaparecimento forçado, devendo o Estado puni-lo com penas apropriadas,
que levem em conta sua gravidade.
Com relação à prescrição penal, o Estado deve tomar medidas necessárias
para assegurar que o prazo seja de longa duração e proporcional à seriedade
desse crime e que sua contagem se inicie no momento em que cessar o
desaparecimento forçado, considerando-se a sua natureza permanente. Foi
neste sentido que o Corte decidiu no caso Gomes Lund ao não acolher a
exceção preliminar arguida pelo Estado Brasileiro no sentido de que a Corte
Interamericana seria incompetente para julgar o caso em razão de os fatos
ocorridos na Guerrilha do Araguaia terem ocorrido antes da aceitação da Corte
Interamericana pelo Brasil (Cláusula Ratione Temporis), o que só ocorreu no
ano de 1998. De acordo com a Corte, como os corpos das vítimas do caso
Gomes Lund continuam desaparecidos e os responsáveis pelos
desaparecimentos não foram responsabilizados, não há que se falar em
incompetência da corte. Foi utilizada pela Corte a lógica do caso Nicholas
Blake Vs. Guatemala, em que este reconheceu que o assassinato do jornalista

139
americano Nicholas Blake não havia sido investigado de maneira adequada, o
que inviabilizou a responsabilização dos violadores de direitos humanos. Essas
obrigações de investigar e responsabilizar os autores de tais violações
possuiriam o caráter permanente.
Retornando à Convenção, o art. 13 prevê que, para fins de extradição entre
os Estados partes, o crime de desaparecimento forçado não pode ser
considerado crime político, um delito conexo a crime político, nem um crime de
motivação política.
No que tange aos mecanismos de monitoramento, a Convenção prevê
como Treaty Body (órgão de tratado) o Comitê Contra Desaparecimentos
Forçados, que admitirá relatórios, o recebimento de comunicações individuais e
interestatais. Além disso, é possível a submissão ao Comitê, em regime de
urgência, de pedido de busca e localização de uma pessoa desaparecida por
seus familiares ou por seus representantes legais, advogado ou qualquer
pessoa por eles autorizada, bem como por qualquer outra pessoa detentora de
interesse legítimo.

PONTO 19
Convenção Relativa à proteção do patrimônio mundial, cultural e natural –
“Declaração de Estocolmo”. Convenção sobre a diversidade biológica
(1992).

Obs.: Material consultado para a elaboração das perguntas: “Manual de Direito


Ambiental” do Romeu Thomé (Juspodivm), artigo de uma procuradora federal
do Mato Grosso (www.agu.gov.br/page/download/index/id/19787242) e material
produzido por um grupo de estudos para o MPF.

1) Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e


Natural

1. Qual o conceito de patrimônio mundial?


O conceito de patrimônio mundial representado por bens existentes na
natureza, como montanhas, formações rochosas, cavernas e paisagens não
construídas pelo homem, conjuntamente com os bens criados pela criatividade
humana e que ganharam significativa valoração histórica, foi desenvolvido no
Direito Internacional, mas sem ligação direta com o meio ambiente.
No magistério de Cançado Trindade, a noção de patrimônio comum da
humanidade está associada ao conceito de interesse comum da humanidade
(common concern of mankind) constituído dos seguintes elementos:
concentração em questões fundamentais a toda a humanidade, consoante a
noção de commonness, afetando toda a humanidade, desprovidas de
conotações proprietárias; engajamento necessário dos países e das
sociedades; dimensão temporal de longo prazo, abrangendo gerações
presentes e futuras; ênfase no elemento da proteção, com base em
considerações de ordem pública, transcendendo a reciprocidade; atenção
primária nas causas dos problemas, tanto para prevenção quanto para dar
respostas aos efeitos consequentes; partilha equitativa das responsabilidades
como princípio subsidiário instrumental na aplicação do próprio princípio de
interesse comum da humanidade.

140
O conceito unificador de Patrimônio Mundial, com suas qualificações
natural e cultural, foi criação da Convenção relativa à Proteção do Patrimônio
Mundial, Cultural e Natural de 1972, sob a égide da UNESCO. Esse
instrumento normativo tem por objetivo definir e proteger os bens pertencentes
ao patrimônio mundial, composto de bens naturais e culturais, conhecido como
Patrimônio Cultural da Humanidade.
O interesse comum da humanidade sobre os bens desse patrimônio é o
“traço comum” entre eles, ou seja, é o elemento que unifica ambas as
categorias sob o mesmo signo.
Ao subscrever a Convenção, o Brasil assumiu um compromisso
internacional de proteção e salvaguarda dos bens integrantes do patrimônio
cultural nacional. Os bens protegidos são aqueles de excepcional valor
universal, que devem ser preservados para as atuais e futuras gerações.

2. Qual o conceito de patrimônio cultural?


O artigo 1º da Convenção relativa à Proteção do Patrimônio Mundial,
Cultural e Natural considera como patrimônio cultural os monumentos (obras
arquitetônicas, elementos ou estrutura de natureza arqueológica, entre outros
grupos de elementos com valor universal excepcional do ponto de vista
histórico, artístico ou científico), os conjuntos (grupos de construções isoladas
ou reunidas com valor universal excepcional do ponto de vista histórico,
artístico ou científico) e os lugares notáveis (obras do homem ou obras
conjugadas do homem e da natureza, bem como as zonas, inclusive lugares
arqueológicos, com valor universal excepcional, do ponto de vista histórico,
estético, etnológico ou antropológico).
A Convenção reconhece a valorização das obras criadas pelo homem em
qualquer tempo, sejam antigas ou modernas, pois a qualificação decorre da
importância da proteção e conservação dessas obras para as gerações futuras.

3. Qual o conceito de patrimônio natural?


De acordo com o artigo 2º da Convenção, são considerados como
patrimônio natural: os monumentos naturais constituídos por formações físicas
e biológicas ou por grupos de tais formações, que tenham valor excepcional do
ponto de vista estético ou científico; as áreas que constituem hábitat de animais
e vegetais ameaçados e que tenham valor universal excepcional, do ponto de
vista da ciência ou da conservação; os lugares notáveis de excepcional beleza
natural.

4. Quais as idéias que permeiam a Convenção?


A Convenção em foco dispõe em seu preâmbulo que o desaparecimento
do patrimônio cultural e natural constitui um empobrecimento nefasto do
patrimônio de toda a humanidade. Neste sentido, os interesses comuns da
humanidade na proteção de bens culturais decorrem da ideia de sobrevivência,
de tradicionalismo, de romantismo, de enriquecimento espiritual, científico e
histórico, de fonte de prazer e contemplação, entre outros elementos.

5. Qual o conceito de meio ambiente cultural?


É dessa integração de cultura e natureza que surge a noção de meio
ambiente cultural ou patrimônio ambiental cultural. Como é cediço, o meio
ambiente não está limitado à natureza e ao equilíbrio ecológico, pois abrange

141
elementos criados pelo ser humano, de maneira que toda a riqueza que
compõe o patrimônio ambiental transcende a matéria natural e incorpora
também um ambiente cultural, revelado pelo patrimônio cultural.
Importante destacar que as discussões e os acordos firmados durante a
Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento,
realizada no Rio de Janeiro em 1992 (ECO92), foram o ponto de partida para
dar uma nova dinâmica ao conceito de patrimônio cultural, fazendo a interface
com o meio ambiente.
Desde então, o tema passou a ser objeto de estudo do direito ambiental e,
além das fronteiras do direito interno, do Direito Internacional do Meio
Ambiente. Isto se deve principalmente às políticas destinadas a garantir os
direitos dos povos indígenas e das populações tradicionais sobre recursos
genéticos, que foram adotadas na Convenção sobre Diversidade Biológica
durante a ECO92, idealizadas a partir do reconhecimento da estreita relação
entre a preservação dos recursos naturais e os conhecimentos, costumes e
tradições dessas populações.

6. Como a Convenção regula as medidas para proteger o patrimônio


mundial, cultural e natural?
A Convenção estabelece um sistema de cooperação e assistência
internacional, destinado a envidar esforços para preservar e identificar o
patrimônio mundial, cultural e natural. A cooperação está prevista no Tratado
Constitutivo da UNESCO, cujo preâmbulo estabelece a cooperação entre as
nações para educação, ciência e cultura como formas de alcançar a paz
internacional e o bem-estar geral da humanidade.
A cooperação e prestação de assistência internacional realizam-se tanto na
qualificação ou delimitação do patrimônio cultural, por meio da inscrição do
bem cultural na Lista do Patrimônio Mundial ou na Lista do Patrimônio Mundial
em Perigo, assim como nas ações desenvolvidas nos planos técnico (estudos,
pesquisas e assistência técnica), educativo (atividades de formação e
informação) e financeiro (concessão de empréstimos e financiamentos).
No âmbito da cooperação técnica, a assistência é desenvolvida conforme
as necessidades do Estado beneficiado, podendo ser preparatória, por meio da
elaboração de lista indicativa ou de atividades preparatórias para a inscrição do
bem cultural na Lista do Patrimônio Mundial, ou de emergência, para
conservação de bens inscritos ou que poderão ser inscritos, diante da
ocorrência de graves danos ou de fenômenos súbitos e inesperados, tais como
fenômenos da natureza, ou de acompanhamento, por meio do sistema de
monitoramento do estado de conservação dos bens culturais inscritos na Lista
do Patrimônio Mundial.

7. Como os Estados-partes devem colaborar?


Compete aos Estados-partes apresentar, na medida do possível,
inventários dos bens situados em seu território e que possam ser incluídos na
Lista do Patrimônio Mundial.
A técnica de arrolamento ou inventário dos bens culturais para inclusão em
lista indicativa é semelhante ao processo de tombamento, instituto jurídico
adotado na legislação brasileira, regulamentado pelo Decreto-lei nº 25 de 1937,
pelo qual se faz a proteção do patrimônio histórico e artístico, através da

142
imposição de limitações administrativas à propriedade privada ou pública, por
meio da inscrição do bem no livro do tombo.

8. Em que consiste a Lista do Patrimônio Mundial?


A Lista do Patrimônio Mundial é elaborada pelo Comitê do Patrimônio
Mundial com o propósito de arrolar, divulgar e proteger os bens culturais e
naturais de valor universal excepcional que representam o patrimônio cultural e
natural da humanidade, conforme previsto no artigo 11, parágrafo 4 da
Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural.

9. Qual a função do Comitê do Patrimônio Mundial?


Cabe ao Comitê do Patrimônio Mundial formular e atualizar as listas de
bens integrantes do Patrimônio Mundial e receber e estudar os pedidos de
assistência internacional formulados pelos Estados-partes.
Além disso, o Comitê é responsável pela elaboração dos instrumentos
normativos que definem os critérios de inclusão ou exclusão de um bem
cultural na Lista do Patrimônio Mundial previstos nas Orientações Técnicas
para Aplicação da Convenção do Patrimônio Mundial. Entende-se por valor
universal excepcional a importância cultural ou natural tão excepcional que
transcende as fronteiras nacionais e se reveste de caráter inestimável para as
gerações atuais e futuras de toda a humanidade.
Para ser considerado de valor universal excepcional, um bem deve atender
aos critérios de autenticidade e/ou integridade, assim como ser beneficiado de
um sistema de proteção e gestão adequado para sua salvaguarda
proporcionado pelo Estado interessado em promover sua inscrição na Lista do
Patrimônio Mundial.

10. Quais os critérios adotados para que um determinado bem seja


inserido na Lista?
Em linhas gerais, a autenticidade é avaliada pelas características originais
e subsequentes do patrimônio cultural, com base no grau de credibilidade ou
veracidade atribuído às fontes de informação relativas a esse valor, enquanto a
integridade é examinada pela apreciação de conjunto e do caráter intacto do
patrimônio natural ou cultural, a partir dos elementos ou características que
exprimem a importância desse bem.

11. Após a inscrição de um bem na Lista, como funciona o regime jurídico


a que ele fica submetido?
Na inclusão de um bem na Lista do Patrimônio Mundial, o Comitê faz a
distinção de bens do patrimônio cultural ou do patrimônio natural, ou ainda
pertencentes a ambas categorias.
Atualmente15, a lista contempla 1031 bens, sendo 802 culturais, 197
naturais e 32 mistos, distribuídos por 163 Estados-partes da Convenção.
A inscrição de um bem na Lista do Patrimônio Mundial submete-o a um
regime jurídico internacional, que estabelece duplicidade de direitos e deveres,
ou seja, obrigações que incumbem aos Estados-partes onde os bens estão
situados, tais como tomar medidas jurídicas, científicas, técnicas,
administrativas e financeiras para proteção, conservação e revalorização do

15
http://whc.unesco.org/en/list/ - Consultado em 14/1/2015.

143
patrimônio, e aquelas imputadas à comunidade internacional, com destaque
para o dever de assistência financeira.
Para este fim, foi instituído um Fundo do Patrimônio Mundial (World
Heritage Fund – WHF), constituído por fundos pagos regularmente pelos
Estados-partes, com vistas a dar efetividade à atuação da UNESCO, no intento
conservacionista do patrimônio cultural. Como leciona Mazzuoli, a UNESCO
faz parte do rol de organizações internacionais que exerce um papel mais
diferenciado do que o habitual, ligado aos deveres de prevenção e proteção do
meio ambiente.
O regime diferenciado de gestão do Patrimônio Mundial é baseado em uma
relação de trust, segundo a qual a gestão dos bens é atribuída aos Estados e
organizações internacionais, que, no papel de tutores, assumem a missão de
depositários dos interesses comuns da humanidade, zelando pela conservação
dos bens a serem transferidos às futuras gerações.

12. Qual a conseqüência em caso de descumprimento das obrigações


impostas pela Convenção aos Estados-partes?
O descumprimento das obrigações impostas pela Convenção aos Estados-
partes implica na ruptura do pacto de compromissos mútuos firmado entre os
Estados e a comunidade internacional, constituído de obrigações assumidas
pelos Estados para proteção dos bens culturais e benefícios oferecidos pela
comunidade internacional em contrapartida à proteção nacional, com base no
regime de cooperação internacional.

13. Como se dá a exclusão de um bem da Lista?


A exclusão do bem cultural da Lista do Patrimônio Mundial decorre da
perda de suas características ou de suas qualidades intrínsecas, seja pela
cessação das condições que legitimaram sua inscrição ou pela inexecução das
medidas protetoras impostas pela Convenção aos Estados-partes.

14. Quais os bens brasileiros inscritos na Lista?


Atualmente16, há 19 bens brasileiros inscritos na Lista do Patrimônio
Mundial, dos quais 7 são naturais e 12 culturais.
Os bens naturais correspondem às seguintes áreas de preservação
permanente:
i. Complexo de Áreas Protegidas da Amazônia Central/AM,
ii. Parque Nacional do Iguaçu/PR,
iii. Complexo de Áreas Protegidas do Pantanal - MS/MT,
iv. Costa do Descobrimento BA/ES,
v. Reserva Mata Atlântica SP/PR,
vi. Áreas Protegidas do Cerrado/GO;
vii. e Ilhas Atlânticas/PE.
Já os bens culturais podem ser inscritos em três classes:
i. monumentos,
ii. conjuntos ou sítios culturais,
iii. e lugares notáveis (também denominados sítios mistos ou paisagens
culturais).
Na classe dos monumentos, estão inscritos os seguintes bens culturais
brasileiros:
16
http://whc.unesco.org/en/statesparties/br - Consultado em 14/1/2015.

144
i. Ruínas de São Miguel das Missões/RS
ii. e o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas do
Campo/MG.
Os conjuntos ou sítios culturais brasileiros são compostos dos centros
históricos das cidades de:
i. Ouro Preto/MG,
ii. Olinda/PE,
iii. Salvador/BA,
iv. São Luiz do Maranhão/MA,
v. Diamantina/MG,
vi. Goiás/GO e
vii. São Cristóvão/SE,
viii. sítio arqueológico do Parque Nacional Serra da Capivara/PI;
ix. sítio arqueológico do Plano Piloto de Brasília/DF, primeiro núcleo urbano
construído no século XX incluído na Lista do Patrimônio Mundial;
x. por último, a cidade do Rio de Janeiro tornou-se a primeira do mundo a
receber o título de Patrimônio Mundial como paisagem cultural urbana.
Em setembro de 2009, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional – IPHAN entregou a UNESCO o dossiê completo da candidatura da
cidade, justificando seu valor universal excepcional pela interação da sua
beleza natural com a intervenção humana. Por ocasião da 36ª Sessão do
Comitê do Patrimônio Mundial, em São Petersburgo, na Rússia, iniciada em 24
de junho de 2012, o comitê técnico da candidatura defendeu as paisagens
cariocas entre a montanha e o mar. Na apresentação, o Rio de Janeiro foi
mostrado como uma cidade onde a paisagem urbana se funde com uma
natureza exuberante que dá origem a uma cultura de rua, com grandes
espaços abertos, parques públicos, jardins e orla que são parte da vida
cotidiana dos cariocas. A candidatura foi aprovada pelo Comitê em 1º de julho
de 2012.

2) Declaração de Estocolmo

15. Qual foi o objetivo da Conferência de Estocolmo sobre o Meio


Ambiente? Pensando no contexto geopolítico da época, é possível falar
em cisão entre os países desenvolvidos e os países em
desenvolvimento?
A Conferência de Estocolmo Sobre o Meio Ambiente, realizada em 1972,
pretendeu marcar a inserção dos Estados no âmbito de um debate global sobre
o ambiente no mundo. Concluiu-se que era preciso redefinir o próprio conceito
de desenvolvimento.
De acordo com Baracho Junior: “o fato de maior notoriedade desde a fase
preparatória do encontro foi, contudo, uma cisão entre os países desenvolvidos
(do Norte) e os países em desenvolvimento (do Sul e do leste europeu). Os
primeiros pretendiam que os compromissos com a conservação, recuperação e
melhoria do meio ambiente fossem assumidos de forma equânime por todos os
Estados, independentemente do grau de desenvolvimento econômico. Os
países em desenvolvimento, em posição contrária, sustentavam que suas
condições econômicas e necessidades deveriam ser consideradas quando da

145
assunção de responsabilidades para com a conservação, recuperação e
melhoria da qualidade ambiental.

16. Qual a importância da Declaração de Estocolmo?


Ao final da Conferência foi firmada a “Declaração sobre o Meio Ambiente”,
cujos princípios constituem um prolongamento da Declaração Universal dos
Direitos do Homem, influenciando na elaboração do capítulo especialmente
dedicado à proteção do meio ambiente na CF de 88.
A Declaração destaca o ser humano como resultado e artífice do meio que
o circunda, proclama que a defesa e a melhoria do meio ambiente para as
gerações presentes e futuras converteu-se num objetivo imperioso para a
humanidade e deverá ser perseguido e, ainda, sugere que cidadão e
comunidade, empresas e instituições em todos os planos aceitem as
responsabilidades que lhes incumbem e que todos eles atuem efetivamente
para a preservação ambiental.
Surgia a noção de desenvolvimento socioeconômico em harmonia com a
preservação do meio ambiente, mais tarde batizada de “desenvolvimento
sustentável”. Em Estocolmo chegou-se ao consenso sobre a necessidade
urgente de reação global ao problema da deterioração ambiental.
De acordo com José Afonso da Silva: “A Declaração de Estocolmo abriu
caminho para que as Constituições supervenientes reconhecessem o meio
ambiente ecologicamente equilibrado, como um direito fundamental entre os
direitos sociais do Homem, com sua característica de direitos a serem
realizados e direitos a não serem perturbados. O que é importante –
escrevemos de outra feita – é que se tenha a consciência de que o direito à
vida, como matriz de todos os demais direitos fundamentais do Homem, é que
há de orientar todas as formas de atuação no campo da tutela do meio
ambiente”.

17. E qual a importância da Conferência de Estocolmo?


A Conferência de Estocolmo destaca-se como marco das discussões sobre
meio ambiente, uma vez que insere a temática ambiental na agenda política
internacional, além de resultar na criação do Programa da Nações Unidas para
o Meio Ambiente – PNUMA, agência do Sistema das Nações Unidas (ONU)
responsável por promover a conservação do meio ambiente e o uso eficiente
de recursos no contexto do desenvolvimento sustentável. As discussões
desenvolvidas na Suécia estimularam, ainda, a criação de órgãos ambientais
em uma série de países, como no Brasil, que em 1973 instituiu a Secretaria
Especial do Meio Ambiente (SEMA) por meio do Decreto 73.030/73. Com a
ampliação dos debates relacionados à proteção do meio ambiente, ganharam
força os movimentos organizados pela sociedade civil e a atuação das
organizações não-governamentais de defesa do meio ambiente.
Após a Conferência de Estocolmo houve outros importantes encontros
internacionais sobre o meio ambiente, como a Convenção de Basileia sobre o
Controle de Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e seu
Depósito.
Em 1979 e 1980 o PNUMA, realizou, com a colaboração das Comissões
Econômicas Regionais das Nações Unidas, uma importante série de
seminários sobre estilos alternativos de desenvolvimento. Os debates
refletiram-se no Relatório Brundtland (1987), conduzindo finalmente à

146
convocação da Conferência do Rio de Janeiro em 1992, que em seu próprio
título reconhece meio ambiente e desenvolvimento como dois lados da mesma
moeda.

18. Qual a importância da Conferência das Nações Unidas para o Meio


Ambiente e Desenvolvimento – CNUMAD (ECO 92)?
Também conhecida como Estocolmo + 20, Rio 92 ou ECO 92, a
Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento –
CNUMAD realizada no Rio de Janeiro em 1992, além de reafirmar a
Declaração de Estocolmo de 1972, pretendeu aperfeiçoar os mecanismos de
proteção ambiental internacional, contribuindo para que as preocupações
ambientais passassem a compor um dos principais tópicos nos debates
internacionais atuais.
Com representantes de 175 países e ONGs, a Conferência do Rio
estabeleceu como objetivo precípuo estabelecer uma aliança mundial mediante
a criação de novos níveis de cooperação entre os Estados e os setores-chaves
da sociedade. O ponto central dos debates, todavia, girou em torno da ideia de
incentivar o desenvolvimento econômico-social em harmonia com a
preservação do meio ambiente. Consagrou-se a partir de então a expressão
“desenvolvimento sustentável”.
Definiu-se que todos os países são responsáveis pela conservação,
proteção e recuperação da saúde e da integridade do ecossistema do planeta,
na medida em que tenham contribuído em graus variados para a degradação.
Logo, a responsabilidade ambiental entre os Estados é comum, mas
diferenciada, cabendo aos países desenvolvidos maior responsabilidade na
busca internacional do desenvolvimento sustentável, tendo em vista as
pressões que suas sociedades exercem no meio ambiente.
Importantes documentos foram elaborados ao final do evento, como a
Convenção sobre a Diversidade Biológica, a Convenção sobre Mudanças
do Clima (que originou o Protocolo de Kyoto, 5 anos mais tarde) e a
Declaração de Princípios sobre o uso das Florestas, todos com temas e ações
bem específicas. Outros 2 documentos, de caráter mais amplo, também foram
aprovados: Declaração do Rio e Agenda 21.

3) Convenção sobre Diversidade Biológica

19. Do que trata a Convenção sobre Diversidade Biológica?


A Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) é um tratado da
Organização das Nações Unidas e um dos mais importantes instrumentos
internacionais relacionados ao meio ambiente.
A Convenção foi estabelecida durante a notória ECO-92 – a Conferência
das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD),
realizada no Rio de Janeiro em junho de 1992 – e é hoje o principal fórum
mundial para questões relacionadas ao tema.
Mais de 160 países já assinaram o acordo, que entrou em vigor em
dezembro de 1993.
A Convenção está estruturada sobre três bases principais – a conservação
da diversidade biológica, o uso sustentável da biodiversidade e a repartição
justa e equitativa dos benefícios provenientes da utilização dos recursos

147
genéticos – e se refere à biodiversidade em três níveis: ecossistemas, espécies
e recursos genéticos.
A Convenção abarca tudo o que se refere direta ou indiretamente à
biodiversidade – e ela funciona, assim, como uma espécie de arcabouço legal
e político para diversas outras convenções e acordos ambientais mais
específicos, como o Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança; o Tratado
Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e a Agricultura;
as Diretrizes de Bonn; as Diretrizes para o Turismo Sustentável e a
Biodiversidade; os Princípios de Addis Abeba para a Utilização Sustentável da
Biodiversidade; as Diretrizes para a Prevenção, Controle e Erradicação das
Espécies Exóticas Invasoras; e os Princípios e Diretrizes da Abordagem
Ecossistêmica para a Gestão da Biodiversidade.
A Convenção também deu início à negociação de um Regime Internacional
sobre Acesso aos Recursos Genéticos e Repartição dos Benefícios resultantes
desse acesso; estabeleceu programas de trabalho temáticos; e levou a
diversas iniciativas transversais.

20. Qual o conceito de diversidade biológica?


A CF/88 determina que o Poder Público e a coletividade têm que preservar
a diversidade e a integridade do patrimônio genético do país e fiscalizar as
entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético (art.
225,§ 1º, II).
No âmbito internacional, a Convenção da Diversidade Biológica - CDB
define diversidade biológica como sendo "a variabilidade de organismos vivos
de todas as origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas
terrestres, marinhos e outros ecossistemas aquáticos e os complexos
ecológicos de que fazem parte; compreendendo ainda a diversidade dentro de
espécies, entre espécies e de ecossistemas" (art. 2º), noção esta que possui
um valor intrínseco, cuja proteção independe de qualquer valoração econômica
ou utilização pelo homem, e da soberania dos Estados sobre seus próprios
recursos biológicos, pertencendo aos governos nacionais a autoridade para
determinar o acesso aos recursos genéticos.

21. Quais os objetivos da Convenção sobre a diversidade biológica?


Os objetivos da CDB são:
i. a conservação da diversidade biológica,
ii. a utilização sustentável de seus componentes e
iii. a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização dos
recursos genéticos, mediante, inclusive, o acesso adequado aos
recursos genéticos e a transferência adequada de tecnologias
pertinentes, levando em conta todos os direitos sobre tais recursos e
tecnologias, e mediante financiamento adequado.
A conservação da diversidade biológica deixou de ser encarada apenas em
termos de proteção das espécies ou dos ecossistemas ameaçados, adquirindo
uma nova abordagem a partir da conciliação entre a necessidade de
conservação e a preocupação do desenvolvimento, baseada em considerações
de igualdade e partilha de responsabilidades.
Reconhece-se assim que a conservação da diversidade biológica é uma
preocupação comum da Humanidade e parte integrante do processo do
desenvolvimento econômico e social.

148
22. Como a Convenção regula as relações entre os países?
A Convenção promove uma nova forma de parceria entre os países, onde a
cooperação científica e técnica, o acesso aos recursos financeiros e genéticos,
e a transferência de tecnologias limpas constituem as bases principais (arts. 15
e 16).
Pela primeira vez, no contexto da conservação da diversidade biológica,
um instrumento legal internacional declara os direitos e as obrigações das suas
Partes Contratantes relativamente à cooperação científica, técnica e
tecnológica.
Com base na CDB foi elaborada a Política Nacional da Biodiversidade -
PNB (Decreto 4.339/02), que estabelece um programa de ação relativo à
biodiversidade.

23. Em que consiste a Biotecnologia?


Neste cenário surge a Biotecnologia para garantir o equilíbrio ambiental
planetário, contribuindo não só para capacitar os ecossistemas a reagirem
melhor às alterações sobre o meio ambiente causadas por fatores naturais e
sociais (considerando que, sob a perspectiva ecológica, quanto menor a
variabilidade de um ecossistema, maior a sua fragilidade), como também para
a própria sobrevivência da humanidade a partir do aproveitamento de recursos
genéticos na alimentação, a agricultura, na criação de animais e a medicina,
etc. Este é o elo entre a diversidade biológica e a biotecnologia.
Ademais a CDB definiu Biotecnologia como sendo "qualquer aplicação
tecnológica que utilize sistemas biológicos, organismos vivos, ou seus
derivados, para fabricar ou modificar produtos ou processos para utilização
específica" (art. 2º). Assim, fica evidente que a biotecnologia trata (em sua
maior abrangência) do patrimônio genético.

24. O que é Biossegurança?


Biossegurança é o conjunto de estudos e procedimentos que visam a
evitar ou controlar os riscos provocados pelo uso de agentes químicos, agentes
físicos e agentes biológicos à biodiversidade.

25. O que é Biopirataria?


A biopirataria é a exploração, manipulação, exportação
e/ou comercialização internacional de recursos biológicos que contrariam as
normas da Convenção sobre Diversidade Biológica, de 1992.
Não diz respeito apenas ao contrabando de diversas espécies naturais da
flora e da fauna, mas, principalmente, à apropriação e monopolização dos
conhecimentos das populações tradicionais no âmbito do uso dos recursos
naturais.
Estas populações estão perdendo o controle sobre esses recursos. Um
caso de biopirataria foi o contrabando de sementes da seringueira, pelo inglês
Henry Wickham. Essas sementes foram levadas para a Malásia, e após
algumas décadas este país passou a ser o principal exportador de látex do
mundo.

26. O que é patrimônio genético?

149
Patrimônio genético é a informação de origem genética, contida em
amostras do todo ou de parte de espécime vegetal, fúngico, microbiano ou
animal, na forma de moléculas e substâncias provenientes do metabolismo
destes seres vivos e de extratos obtidos destes organismos vivos ou mortos,
encontrados em condições in situ, inclusive domesticados, ou mantidos em
coleções ex situ, desde que coletados em condições in situ no território
nacional, na plataforma continental ou na zona econômica exclusiva; ACESSO
AO PATRIMÔNIO GENÉTICO é a obtenção de amostra de componente do
patrimônio genético para fins de pesquisa científica, desenvolvimento
tecnológico ou bioprospecção, visando a sua aplicação industrial ou de outra
natureza; ACESSO À TECNOLOGIA E TRANSFERÊNCIA DE TECNOLOGIA é
a ação que tenha por objetivo o acesso, o desenvolvimento e a transferência
de tecnologia para a conservação e a utilização da diversidade biológica ou
tecnologia desenvolvida a partir de amostra de componente do patrimônio
genético ou do conhecimento tradicional associado; BIOPROSPECÇÃO é a
atividade exploratória que visa identificar componente do patrimônio genético e
informação sobre conhecimento tradicional associado, com potencial de uso
comercial.

27. Como o Brasil regulamentou a questão do patrimônio genético?


A fim de regulamentar a CF e a CDB no que tange à tutela da
biodiversidade, do patrimônio genético e do conhecimento tradicional
associado e assuntos correlatos, foi editada a MP 2.186-16/01, convertida em
Lei (Lei nº 13.123, de 20 de maio de 2015), que dispõe sobre o acesso ao
patrimônio genético, à proteção e ao acesso ao conhecimento tradicional
associado, a repartição de benefícios e o acesso à tecnologia e transferência
de tecnologia para sua conservação e utilização (esta Lei não se aplica ao
patrimônio genético humano que, por sua vez, é regulado pela Lei 11.105/05).
Obs.: o material consultado trazia bastante coisa sobre a MP (que foi
convertida em lei esse ano), mas optei por deixar de fora, já que acredito que
esse tema não será cobrado na prova e a lei não está prevista no edital.

PONTO 20
Carta Africana de Direitos Humanos e dos povos. Declaração das Nações
Unidas sobre os direitos dos povos indígenas.

1. Aponte peculiaridades relevantes da Carta Africana de Direitos


Humanos.
A proteção dos direitos do homem no continente africano decorre de
circunstâncias históricas específicas, relacionadas com a descolonização e o
direito à autodeterminação dos povos, que dominaram os trabalhos da
Organização de Unidade Africana, desde 1963 (data da sua criação) até ao
final da década de 70.
A carta veio trazer ao direito internacional dos direitos do homem a
consagração de uma relação dialética entre direitos e deveres, por um lado, e a
enunciação tanto de direitos do homem como de direitos dos povos, por outro.
As tradições históricas e os valores da civilização africana influenciaram os
Estados autores da Carta, a qual traduz, pelo menos no plano dos princípios,
uma especificidade africana do significado dos direitos do homem.

150
Uma outra inovação que merece relevo, consubstancia-se na ausência de
distinção entre direitos civis e políticos, por um lado, e direitos sociais e
econômicos por outro. A Carta não distingue a natureza dos direitos, atribui-
lhes igual força jurídica e submete-os todos à “jurisdição”, ou melhor, ao
controlo da Comissão Africana dos Direitos do Homem. Assim, em teoria, a
Comissão poderá ser chamada a apreciar a atividade dos Estados em matéria
de ações destinadas a assegurar o exercício dos direitos económicos e sociais.
Neste contexto, na Carta de Banjul, a indistinção entre os direitos civis e
políticos de natureza perceptiva e os direitos económicos e sociais de natureza
programática, tanto no que se refere à sistemática, como no respeitante à
sujeição à competência da Comissão, revela-se assim muito inovadora. Esta
identidade de regimes parece implicar que os Estados partes pretendem
assegurar de imediato o exercício de todos os direitos previstos na Carta e, em
última análise, sujeitam os Estados à respectiva apreciação pela Comissão. Os
seus autores quiseram claramente ultrapassar a dialética marxista, que rejeita
os direitos da “primeira geração”, para impor uma relação de interdependência
e igualdade entre todos os direitos.
A enunciação dos deveres revela-se também uma das originalidades da
Carta de Banjul. A referência aos deveres tinha já surgido num instrumento
jurídico não vinculativo – a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do
Homem de 1948 – mas a Carta Africana revela-se o único tratado relativo a
direitos do homem que consagra, de forma desenvolvida, a noção de deveres
individuais não só em relação ao próximo, mas também em função da
comunidade, na linha da tradição africana.
Este entendimento constitui uma “ruptura” com a concepção ocidental dos
direitos do homem, que considera à luz da doutrina positivista, a dialética
direito-dever essencialmente baseada no direito como um conjunto de
prerrogativas, que originam por reciprocidade um feixe de deveres ou
obrigações. A “autonomização” dos deveres altera a natureza deste conceito,
embora não seja possível afirmar que a Carta estabelece uma relação
hierárquica entre direitos e deveres, nem tão pouco uma precedência dos
direitos sobre os deveres. Determina apenas – com alguma imprecisão – o
conteúdo dos deveres, bem como os seus beneficiários. Com efeito, a Carta
impõe várias obrigações ao indivíduo em relação à comunidade, as quais não
decorrem de um “direito subjetivo”, no sentido kelseniano, pois constituem
verdadeiras obrigações autônomas, sem paralelo em outros instrumentos de
direito internacional de direitos do homem.
Porém, a Carta não passa imune a críticas.
A definição imprecisa dos direitos e a sua enunciação de forma ambígua e
insuficiente, bem como a ausência de limitações específicas, ou melhor, a
formulação de limitações que protegem o Estado, em detrimento do indivíduo,
reduzem o conteúdo dos direitos, por vezes abaixo do nível mínimo exigido
pelo direito internacional dos direitos do homem.
É certo, que no artigo 27.º, n.º 2, surge, incluída no capítulo dos deveres, o
que se poderá designar de “cláusula geral de limitação”, aplicável
genericamente a todos os direitos. Assim, os direitos e liberdades exercem-se
no “respeito dos direitos de outrem, da segurança coletiva, da moral e do
interesse comum”. Para além de uma objecção de natureza sistemática – a sua
inclusão no capítulo dos deveres – a imprecisão dos conceitos, deixa ao
Estado uma larguíssima margem de apreciação, dado que será sempre

151
possível encontrar um fim legítimo para justificar uma ingerência nos direitos e
liberdades dos indivíduos.
A generalidade dos direitos refere-se às cláusulas de limitações, as quais
se revelam imprecisas, remetendo em alguns casos os limites dos direitos para
a “lei”, sem que se defina o que se entende por lei. Ora, em regimes de partido
único, afigura-se que a lei não tende a proteger os direitos e liberdades dos
cidadãos, mas sim o poder do Estado e das autoridades públicas. A ausência
de cláusulas limitativas do tipo europeu, como sejam as limitações necessárias
a uma “sociedade democrática” não se encontram nas disposições da Carta de
Banjul.
Ao contrário das Convenções europeia e americana, a Carta de Banjul
omite uma cláusula derrogatória de certos direitos em situações de exceção,
facto que pode levantar problemas de ordem prática, mas pode também ser
interpretado no sentido de um reforço de proteção dos direitos, que serão todos
inderrogáveis, mesmo em casos excepcionais.
A ausência de uma cláusula de reservas constituiu também uma deficiência
técnica da Carta Africana. Assim, ao aceitar implicitamente o regime das
reservas previsto na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, ou seja
ao deixar ao critério dos Estados, através de objecções às reservas, a
apreciação da sua compatibilidade com o objecto e o fim da Carta, os seus
autores optaram implicitamente por uma solução que nos parece pouco
compatível com a efectiva protecção dos direitos nela enunciados.
Na realidade, apenas a Zâmbia e o Egito formularam reservas, sendo a
primeira relativa à liberdade de circulação, restringindo-a a locais públicos. As
reservas egípcias referem-se à liberdade religiosa e aos direitos das mulheres,
as quais estarão sujeitas à lei islâmica, ponto que reascende a discussão do
multiculturalismo.

2. Qual a relação entre o direito à propriedade e a identidade cultura dos povos


indígenas?
O caso Comunidade indígena Yakye Axa vs Paraguai foi submetido à Corte
Interamericana de Direitos Humanos, destacando-se a violação ao direito à
propriedade ancestral (decorrente de seus antepassados) e comunitária da
terra estaria a resultar vulnerabilidades alimentícias, médicas e sanitárias da
comunidade e de seus membros, com a ameaça a sua sobrevivência e a sua
integridade.
Os argumentos centrais da sentença ativeram-se a uma concepção lata do
direito à vida, que não se limita apenas à proteção contra a privação arbitrária,
mas demanda medidas positivas para o pleno gozo de uma vida digna, bem
como ao direito à identidade cultural.
A respeito do direito à identidade cultural, aludiu a Corte à necessidade de
adotar uma interpretação evolutiva e dinâmica, tal como acena a jurisprudência
da Corte Europeia, no sentido de fazer da Convenção um instrumento vivo,
capaz de acompanhar as evoluções temporais e as condições de vida atual. Ao
demarcar os delineamentos do direito à identidade cultural, afirmou a Corte
sobre o significado especial da propriedade coletiva das terras ancestrais para
os povos indígenas, inclusive para preservar sua identidade cultural e transmiti-
la para as gerações futuras. A cultura dos membros da comunidade indígena
corresponde a uma forma de vida particular de ser, ver e atuar no mundo,
construída a partir de sua relação com as suas terras tradicionais. A terra,

152
assim, é um elemento de cosmovisão, de sua religiosidade e de sua identidade
cultural, pois a terra é estritamente relacionada com suas tradições e
expressões orais, costumes, línguas, artes e rituais, sobretudo sua relação com
a natureza, arte culinária e direito consuetudinário.
Em virtude da relação com a natureza, os membros indígenas transmitem
de geração para geração este patrimônio cultural imaterial que é por eles
recriado constantemente.
Destarte, concluiu a Corte que a identidade cultural é componente
agregado ao próprio direito à vida lato senso. Violada a identidade cultural,
viola-se a própria vida.
Em outro caso relativo ao tema (Xakmok Kasek vs Paraguai), a Corte
ressaltou que a não garantia do direito a propriedade violaria o direito à
identidade cultural. Os conceitos tradicionais de propriedade privada e posse
não se aplicam às comunidades indígenas, pelo significado coletivo de terra,
em que a relação de pertença não se centra no indivíduo, mas no grupo e na
coletividade.

3. Quais são os principais pontos da Declaração das Nações Unidas


sobre os direitos dos povos indígenas?
O preâmbulo da Declaração reafirma que todas as doutrinas, políticas e
práticas baseadas na superioridade de determinados povos ou indivíduos, ou
que a defendem alegando razões de origem nacional ou diferenças raciais,
religiosas, étnicas ou culturais, são racistas, cientificamente falsas,
juridicamente inválidas, moralmente condenáveis e socialmente injustas.
Reconhece a necessidade urgente de respeitar e promover os direitos
intrínsecos dos povos indígenas, que derivam de suas estruturas políticas,
econômicas e sociais e de suas culturas, de suas tradições espirituais, de sua
história e de sua concepção da vida, especialmente os direitos às suas terras,
territórios e recursos,
Enfatiza a contribuição da desmilitarização das terras e territórios dos
povos indígenas para a paz, o progresso e o desenvolvimento econômico e
social, a compreensão e as relações de amizade entre as nações e os povos
do mundo.
O diploma é expresso no art. 8.1: “Os povos e pessoas indígenas têm
direito a não sofrer assimilação forçada ou a destruição de sua cultura”.
Também podem ser ressaltados os seguintes pontos:
• Auto-determinação: os povos indígenas têm o direito de determinar
livremente seu status político e perseguir livremente seu desenvolvimento
econômico, social e cultural, incluindo sistemas próprios de educação, saúde,
financiamento e resolução de conflitos, entre outros. Este foi um dos principais
pontos de discórdia entre os países; os contrários a ele alegavam que isso
poderia levar à fundação de “nações” indígenas dentro de um território
nacional.
• Direito ao consentimento livre, prévio e informado: da mesma forma que a
Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Declaração
da ONU garante o direito de povos indígenas serem adequadamente
consultados antes da adoção de medidas legislativas ou administrativas de
qualquer natureza, incluindo obras de infra-estrutura, mineração ou uso de
recursos hídricos.

153
• Direito a reparação pelo furto de suas propriedades: a declaração exige
dos Estados nacionais que reparem os povos indígenas com relação a
qualquer propriedade cultural, intelectual, religiosa ou espiritual subtraída sem
consentimento prévio informado ou em violação a suas normas tradicionais.
Isso pode incluir a restituição ou repatriação de objetos cerimoniais sagrados.
• Direito a manter suas culturas: esse direito inclui entre outros o direito de
manter seus nomes tradicionais para lugares e pessoas e de entender e fazer-
se entender em procedimentos políticos, administrativos ou judiciais inclusive
através de tradução.
• Direito a comunicação: os povos indígenas têm direito de manter seus
próprios meios de comunicação em suas línguas, bem como ter acesso a todos
os meios de comunicação não-indígenas, garantindo que a programação da
mídia pública incorpore e reflita a diversidade cultural dos povos indígenas.
Verifica-se, assim, que o respeito à cultura e às tradições é nota marcante
da precitada declaração, preocupada com a identidade cultural dos povos
indígenas.

PONTO 21
Sistema Regional Interamericano de Proteção de Direitos Humanos.
Organização dos Estados Americanos (OEA): declarações, tratados,
resoluções, relatórios, informes, pareceres, jurisprudência (contenciosa e
consultiva da Corte Interamericana de Direitos Humanos), normas de
organização e funcionamento dos órgãos de supervisão, fiscalização e
controle.

1. Quais as vantagens do sistema regional sobre o sistema internacional


de proteção dos direitos humanos?
Podemos apontar as seguintes vantagens:
- consenso público facilitado pelo menor número de Estados envolvidos;
- maior atenção às particularidades e aos valores históricos de cada povo,
resultando em uma melhor aceitação;
- maior poder de pressão sobre os Estados que violarem os direitos
humanos, em razão da proximidade geográfica.

2. A Organização dos Estados Americanos é o mais antigo organismo


regional do mundo. A sua origem remonta à Primeira Conferência
Internacional Americana, realizada em Washington, D.C., de outubro de
1889 a abril de 1890. Foi fundada em 1948 com a assinatura, em Bogotá,
Colômbia, da Carta da OEA que entrou em vigor em dezembro de
1951. Hoje, a OEA congrega os 35 Estados independentes das Américas e
constitui o principal fórum governamental político, jurídico e social do
Hemisfério. Sobre a OEA, fale de sua estrutura, competência,
funcionamento e principais documentos produzidos. (questão retirada
dos pontos da DPE/MS)
Os fins da OEA são realizados pelos seguintes órgãos integrantes de sua
estrutura:
i. Assembleia Geral - AG,
ii. Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores,
iii. Conselhos (Permanente e Interamericano de Desenvolvimento
Integral),

154
iv. Comissão Jurídica Interamericana,
v. Comissão Interamericana de Direitos Humanos,
vi. Secretaria Geral,
vii. Conferências Especializadas,
viii. Organismos Especializados,
ix. outras entidades que vierem a ser estabelecidas pela AG.
Atualmente, a OEA possui dois órgãos voltados para a promoção de
direitos humanos: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e o
Conselho Interamericano para o Desenvolvimento Integral.
A OEA utiliza uma estratégia quádrupla para implementar eficazmente seus
objetivos essenciais. Os quatro pilares da Organização (democracia, direitos
humanos, segurança e desenvolvimento) se apoiam mutuamente e estão
transversalmente interligados por meio de uma estrutura que inclui diálogo
político, inclusividade, cooperação, instrumentos jurídicos e mecanismos de
acompanhamento, que fornecem à OEA as ferramentas para realizar
eficazmente seu trabalho no hemisfério e maximizar os resultados.
Importante passo no desenvolvimento do sistema interamericano de
proteção dos direitos humanos foi a aprovação do texto da Convenção
Americana de Direitos Humanos – Pacto San José da Costa Rica, 1969, que só
entrou em vigor em 1978. Com a entrada em vigor da CADH, a Comissão
passou a ter papel dúplice: em primeiro lugar, continuou a ser um órgão
principal da OEA, encarregado de zelar pelos direitos humanos, processando
petições individuais; em segundo lugar, passou também a ser órgão da CADH,
analisando petições individuais e interpondo ações de responsabilidade
internacional contra um Estado perante a Corte.
Além da CADH, o sistema interamericano conta com diversos instrumentos
internacionais que protegem direitos específicos: Protocolo Adicional à
Convenção Americana de Direitos Humanos em matéria de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador), Convenção
Interamericana para Punir o Crime de Tortura, Protocolo Adicional à Convenção
Americana de Direitos Humanos, relativo à Abolição da Pena de Morte,
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a
Mulher (Convenção Belém do Pará), Convenção Interamericana sobre
Desaparecimento Forçado (o Brasil apresentou ratificação/depósito em
03/2014, não há dados sobre decreto executivo), Convenção Interamericana
para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas
Portadoras de Deficiência. Em 2013, foram adotadas, ainda, a Convenção
Interamericana contra o Racismo, Discriminação Racial e Formas Correlatas de
Intolerância e a Convenção Interamericana contra Toda Forma de
Discriminação e Intolerância, somente assinadas pelo Brasil, pendente
ratificação.
Obs.: No que diz respeito à atuação específica da OEA, destaca-se a
valorização do trabalho dos defensores públicos na promoção de direitos
humanos (Res. 2656/11, Res. 2714/12, Res. 2801/13 e Res. 2821/14).
Também sobre sua atuação específica, a OEA criou, ao longo dos anos,
Relatorias Especiais sobre o tema de direitos humanos, vinculadas à Comissão
IDH. A mais importante destas Relatorias é a da Liberdade de Expressão, com
independência funcional e estrutura própria.

155
3. Uma das funções da Comissão Interamericana de Proteção dos
Direitos Humanos é examinar comunicações encaminhadas por
indivíduos, grupos de indivíduos ou ONGs que contenham denúncia de
violação a direito consagrado pela Convenção, por Estado que dela seja
parte, ou, se dela não fizer, que ao menos o seja da DADH. Dito isso,
aponte quais os requisitos de admissibilidade das referidas
comunicações.
São requisitos de admissão das petições individuais:
>> esgotamento dos recursos na jurisdição interna; (caráter subsidiário da
jurisdição internacional)
>> apresentação dentro de 6 meses, a partir da data em que o prejudicado
seja notificado de decisão definitiva;
>> que não haja litispendência/coisa julgada internacional;
>> no caso de entidade reconhecida, deve haver dados de identificação de
seu representante legal ou da(s) pessoa(s) envolvidas.
Ressalta-se, que há relativização quanto ao esgotamento e o prazo de 6
meses (art. 46, CADH):
>> se ausente, na legislação interna, o devido processo legal para tratar do
direito violado;
>> não tiver sido permitido ao prejudicado o acesso aos recursos da
jurisdição interna para tutela de seus direitos;
>> demora injustificada.
Ademais, a Corte decidiu na OC 11/90 pela dispensa do requisito de
esgotamento dos recursos internos no caso de o Estado não ter possibilitado
assistência jurídica suficiente, ou os advogados não tenham prestado em razão
de algum temor generalizado em entrar com a medida, uma vez que não foi
permitido o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou a possibilidade de
esgotá-los (art. 46. 2. “b” da CADH).

4. O que é o princípio do “estoppell”?


O princípio do estoppell, também conhecido pelo brocado venire contra
factum proprium, se trata da proibição ao comportamento contraditório das
partes. Assim, as partes envolvidas em um litígio internacional não podem
alegar ou negar fato ou direito em desacordo com sua conduta anterior. Por
exemplo, o Estado-réu deve alegar o não esgotamento dos recursos internos
perante a Comissão IDH.

5. Uma vez recebida a denúncia pela Comissão IDH, qual o procedimento


adotado?
Recebida uma petição, a Comissão solicita informações ao Estado
envolvido, fixando prazo razoável (art. 48). Em seguida, prestadas as
informações, verifica se subsistem motivos, caso contrário, manda arquivar o
expediente (art. 48.1, b) – se for arquivado, não há recurso disponível à parte.
Também pode declarar inadmissível ou improcedente petição com base em
provas ou informação superveniente.
Não sendo arquivado, procede-se a um exame do assunto, com o
conhecimento das partes (se necessário, procederá a uma investigação) e
coloca-se à disposição para solução amistosa. Daí surgem dois caminhos:
pode ocorrer a solução amistosa, ocasião em que é expedido um informe
encaminhado ao peticionário e aos Estados envolvidos. Ou, se não ocorrer a

156
solução dentro do prazo previsto, será redigido o relatório do art. 50. Este
relatório não é publicado e é encaminhado aos Estados interessados (Primeiro
Informe ou Primeiro Relatório). Se decorridos três meses da remessa não
houver solução pode ser submetido à Corte, se o Estado reconheceu sua
jurisdição e Comissão entender como conveniente para a proteção de DH. Na
prática, este prazo é prorrogado com anuência da Comissão e do Estado. Se
for prorrogado, não poderá alegar depois decadência do direito da Comissão
em propor a ação. Caso o Estado não reconheça a jurisdição da Corte e não
cumpra o Primeiro Informe, será emitida pela Comissão sua opinião e
conclusões, com recomendações pertinentes fixando prazo ao Estado
(Segundo Informe). Este Informe é público, uma vez descumprido, consta no
relatório anual para a Assembleia Geral, constando as deliberações
descumpridas, para que a OEA tome medidas de convencer o Estado.

6. Os relatórios expedidos pela Comissão IDH são vinculantes?


Até o julgamento do caso “Loayza Tomayo vs. Peru” o entendimento da
Comissão IDH era no sentido de que seus relatórios possuíam apenas caráter
diretivo. Entretanto, atualmente, o entendimento que prevalece é de que o 1º
relatório expedido não é vinculante, mas o 2º sim. Prestigia-se, com isso, o
princípio da boa-fé consagrado no art. 31.1 da Convenção de Viena sobre o
Direito dos Tratados.

7. O que ocorre se um Estado, que não se submete à jurisdição da Corte


IDH, descumpre o 2º informe expedido pela Comissão IDH?
Em que pese o caráter vinculante do informe expedido pela Comissão IDH,
não há sanção possível de ser aplicada por ela. A única alternativa é
encaminhar o caso para a Assembleia Geral da OEA, o que André de Carvalho
Ramos entende ser de pouca relevância prática. Primeiro, porque depende da
votação pelos próprios membros da OEA. Segundo, porque não há outra
sanção prevista senão a suspensão da OEA em caso de ruptura com o regime
democrático. Ramos aponta que uma solução seria a criação de um órgão
equivalente ao Comitê de Ministros Europeu, o qual delibera e sua decisão tem
que ser respeitada, sob pena máxima de expulsão do Conselho da Europa.

8. É possível a adoção de medidas cautelares pela Comissão IDH? Como


o Estado brasileiro se posiciona sobre o tema?
Não há previsão expressa acerca da adoção de medidas cautelares por
parte da Comissão IDH na CADH, mas sim no Regulamento da Comissão. Tais
medidas são previstas para casos de extrema gravidade e urgência, para evitar
danos irreparáveis. Além da previsão no regulamento, são costume
internacional, tendo sido reconhecidas pela Corte IDH, pela AG-OEA e Cortes
nacionais.
O Estado brasileiro, todavia, não reconhece o efeito vinculante das
referidas medidas, conforme se observa, por exemplo, do caso Comunidades
Indígenas da Bacia do Rio Xingu x Brasil - “Caso Belo Monte”.

9. O que é “actio popularis”? Há previsão delas no sistema


interamericano de proteção dos direitos humanos?
A “Actio popularis”, prevista no art. 45 da CADH, nada mais é que o
sistema de comunicação interestatal no qual um Estado-parte pode denunciar à

157
Comissão violação a direitos humanos por outro Estado-parte. Suas hipóteses
são raríssimas de acontecer, haja vista o receio dos Estados em sofrerem
retaliação por parte do denunciado. Ademais, é requisito para comunicação que
ambos os Estados envolvidos tenham ratificado a cláusula 45 da CADH.

10. Como é a tramitação de um processo submetido à Corte pela


Comissão IDH?
Após o recebimento do informe enviado pela Comissão IDH, a Corte
notifica a vítima para apresentar petição inicial no prazo de 02 meses. Em
seguida, abre-se o prazo para o Estado Réu contestar. Se houver exceções
preliminares há 30 dias para “réplica” (e se necessário marca-se uma audiência
para tais exceções serem resolvidas). A Comissão também pode apresentar
suas observações sobre a matéria discutida.
Ao fim do contraditório, a Corte decide sobre as exceções preliminares,
podendo arquivar o caso ou determinar o prosseguimento (há casos em que a
Corte prefere adotar sentença única, aparecendo as exceções preliminares em
conjunto com a análise probatória e demais alegações).
É admitida a participação de amici curiae (até 15 dias posteriores à
celebração de audiência de coleta de testemunhas ou, se não as houver, até
15 dias da resolução que outorga prazo para envio de resoluções finais).
Tudo feito, a Corte:
a) em caso de solução amistosa, homologará ou não o acordo entre
as vítimas e o Estado réu, fiscalizado pela Corte,
a) em caso de desistência por parte das vítimas, após ouvida a
opinião de todos intervenientes no processo, decidirá sobre sua
procedência e seus efeitos jurídicos;
b) em caso de reconhecimento do pedido (total ou parcial), pelo qual
o Estado réu acata as pretensões das vítimas, decidirá sobre os efeitos
do reconhecimento.
c) Prolatará sentença, determinando toda e qualquer conduta de
reparação e garantia do direito violado, abrangendo obrigações de dar,
fazer, não fazer.
Ressalta-se que há o dever de o Estado cumprir integralmente a sentença
da Corte (art. 68.1, CADH). Para indenização compensatória, esta será
executada de acordo com o processo interno de execução da sentença contra
o Estado (art. 68.2, CADH).
No caso de não cumprimento sponte propria das decisões da Corte IDH,
pode ser incluído no relatório que vai à Assembleia Geral da OEA. Além disso,
a Corte exige que o Estado apresente relatórios periódicos da sentença.
A sentença da Corte é definitiva e inapelável. Em caso de divergência
sobre o sentido ou alcance da sentença, cabe à parte (vítima ou Estado) ou
mesmo a Comissão interpor recurso ou pedido de interpretação, cujo prazo é
de 90 dias, a partir da notificação da sentença. Ademais, a Corte pode, por
iniciativa própria ou a pedido de uma das partes, apresentado no mês seguinte
à notificação, retificar erros notórios, de edição ou de cálculo.

11. Como ocorre a distribuição do ônus da prova nos processos em


trâmite perante a Corte IDH?
Diferentemente do que ocorre no processo penal brasileiro, nos processos
em trâmite perante a Corte IDH o ônus da prova é distribuído de acordo com a

158
capacidade de cada uma das partes. Assim, o ônus é de quem possuir
melhores condições de obter a prova, ou seja, o Estado normalmente é
intimado a apresentar as provas.

12. O art. 63 da CADH prevê a possibilidade da Corte Interamericana


adotar, de ofício ou a requerimento dos envolvidos, nos casos que já
estejam submetidos ao seu conhecimento, ou a pedido da Comissão IDH
nos demais casos, medida provisórias. Referidas medidas já foram
adotadas contra o Estado brasileiro em diversas situações, apresente-as.
A Corte IDH já determinou medidas provisórias em 06 casos envolvendo o
Estado brasileiro, todos eles envolvendo a situação precária das pessoas
privadas de liberdade.
O primeiro destes casos, de 2002, é o da Penitenciária Urso Branco, em
Porto Velho/RO. O objetivo da Comissão era evitar que continuasse a morrer
internos na unidade prisional. Passados 08 anos, após diversas resoluções, a
Corte revogou em 2011 as medidas provisórias, reconhecendo que o cenário
de gravidade e urgência não mais permanecia. Destacou-se na ocasião a
celebração de pacto entre as vítimas e o estado de Rondônia.
O segundo e o terceiro casos referem-se ao Estado de São Paulo, sendo
um relativo ao Complexo do Tatuapé da FEBEM (2005) e outro da Penitenciária
Dr. Sebastião Martins Silveira de Araraquara (2006). Em relação ao caso da
FEBEM, as medidas foram revogadas em 2008, após a desativação do
complexo e a construção de novas unidades de internação. Já em relação ao
caso de Araraquara, as medidas também foram revogadas em 2008, após a
transferência de presos e reforma da penitenciária.
O quarto caso, de 2011, refere-se à Unidade de Internação Socioeducativa
de Cariacica/ES. A última resolução da Corte sobre o caso foi em 2014,
ocasião em que se concluiu que não houve a erradicação completa da situação
de risco dos beneficiários das medidas provisórias, vez que persistem os
relatos de agressão, ameaça, uso abusivo de algemas etc.
Os últimos dois casos foram encaminhados à Corte em 2014 e referem-se
ao Complexo Penitenciário de Curado/PE e Complexo Penitenciário de
Pedrinha/MA. Em ambos os casos, as medidas provisórias ainda estão em
andamento.

13. Comente sobre o caráter tutelar das medidas provisórias


determinadas pela Corte IDH.
Segundo a jurisprudência da Corte IDH, as medidas provisórias por ela
determinadas possuem um caráter tutelar, mais que cautelar. As medidas
provisórias que, ordinariamente, visam a proteger a eficácia da função
jurisdicional ou o não perecimento do direito, vão além no caso de Direito
Internacional dos Direitos Humanos, vez que buscam acima de tudo
tutelar/salvaguardar os direitos fundamentais da pessoa humana.

14. Além da função contenciosa, a Corte IDH exerce função consultiva.


Quais são os legitimados para solicitá-la?
As opiniões consultivas podem ser solicitadas por:
 Estados-membros da OEA, mesmo se não tiverem reconhecido a
jurisdição obrigatória da Corte IDH,

159
 Comissão IDH em relação a qualquer dispositivo da Convenção ou
tratado de DH incidente nos Estados Americanos – pertinência
temática universal,
 Outros órgãos da OEA com pertinência restrita a temas de DH de sua
atuação.
Além disso, cumpre consignar que, na OC 1/82, a Corte decidiu que é
competente para emitir pareceres consultivos sobre todo tratado de DH
aplicável aos Estados americanos, ou seja, qualquer tratado que possa
proteger as pessoas da região americana (assim, inclusive os da ONU, por
exemplo). A Corte também afirmou que as OC não tem a força vinculante das
sentenças.

15. Nos procedimentos contenciosos em trâmite perante à Corte IDH é


admissível a figura do juiz ad hoc?
O art. 55 da CADH prevê a possibilidade de nomeação de juiz ad hoc pelos
Estados-partes envolvidos no litígio. Entretanto, tal possibilidade fica restrita às
ações movidas entre Estados-partes, e não quando a denúncia partir de
particular. Nesse sentido a OC 20/2009 e a lição de Thimotie Heemann: “De
forma unânime, a Corte Interamericana de Direitos Humanos exarou parecer
no sentido de que a possibilidade do Estado indicar um juiz ad hoc para
compor os quadros do Tribunal de San José quando não houver no mesmo um
juiz de sua nacionalidade se restringe aos casos contenciosos interestatais
(Estado versus Estado), não sendo possível a sua aplicação em favor dos
Estados nos casos originados de petições individuais sob pena de
comprometimento da imparcialidade do julgamento e da paridades de armas no
processo internacional de direitos humanos perante o tribunal interamericano.

16. A Corte IDH pode decidir com fundamento em tratados que não sejam
regionais americanos? Exemplifique.
Sim. A Corte pode se valer de outros tratados para fundamentar suas
decisões, desde que elas sejam passíveis de aplicação no continente
americano. Nesse sentido, a Corte já aplicou, por exemplo, a Convenção da
ONU sobre Direitos das Pessoas com Deficiência no caso Furlán x Argentina.
Este caso foi o primeiro em que houve a atuação de defensor público
interamericano.

17. A Corte IDH já reconheceu alguma vez a preliminar de esgotamento de


recursos internos?
Apenas 04 vezes a Corte IDH não adentrou no mérito da questão levada a
seu conhecimento. No caso Cayara x Peru, não adentrou ao mérito em razão
da caducidade do prazo para apresentação da demanda à Comissão. No caso
Maqueda x Argentina, em razão da desistência da ação. No caso Alfonso
Martin del Campo Dodd x México, pela ausência de competência ratione
temporis. E, no caso Brewer Carrias x Venezuela (2014), que ora nos interessa,
em razão da ausência de esgotamento de recursos internos.
No caso Brewer Carías, o jurista foi denunciado pela prática do crime de
“Conspiração para mudar violentamente a Constituição”, pois teria ajudado o
movimento golpista venezuelano. Carías foi citado, a defesa alegou diversas
irregularidades e nulidades no processo, as quais não foram acolhidas. Ele
viajou para fora do país e foi decretada sua prisão preventiva. Sustentou-se

160
que as solicitações de nulidade só poderiam ser apresentadas se o acusado
comparecesse à audiência preliminar. Em razão disso, o caso foi levado à
Comissão IDH, onde a Estado Venezuelano arguiu a preliminar da falta de
esgotamento de recursos.
A preliminar apresentada foi acolhida pela Corte IDH, a qual adotou a teoria
da etapa temprana. Decidiu-se que não é possível analisar o impacto negativo
que uma decisão pode ter se ocorre em etapas tempranas, quando as decisões
podem ser analisadas e corrigidas por meio de recursos ou ações previstas no
ordenamento jurídico interno.

18. Uma das exceções ao requisito do esgotamento dos recursos interno


refere-se às situações em que não é assegurada a duração razoável do
processo. Há uma demora injustificada para solução do conflito. Sobre o
tema, quais os elementos apontados pela Corte IDH para auferir se houve
ou não razoabilidade no procedimento interno?
Segundo o entendimento da Corte IDH existem 04 elementos para aferir a
razoabilidade do prazo: complexidade do assunto, atividade processual do
interessado, conduta das autoridades judiciais e o efeito gerado na situação
jurídica da pessoa envolvida no processo. Estes critérios foram adotados nos
seguintes casos: Garibaldi x Brasil, Genie Lacayo x Nicarágua, Tibi x Equador,
Acosta x Equador, Valle Jaramillo e outros x Colombia e Kawas Fernandes x
Honduras.

19. Explique o que é a cláusula “ratione temporis” e sua aplicabilidade


nos procedimentos perante à Corte IDH.
A cláusula ratione temporis consiste na regra pela qual a Corte IDH só
pode julgar determinado Estado por fatos ocorridos após a aceitação da sua
jurisdição. Entretanto, tal regra não é absoluta. No caso Gomes Lund x Brasil,
por exemplo, o desaparecimento das vítimas teria ocorrido anos antes da
adesão do Brasil à CADH, contudo a Corte reconheceu sua competência para
processar o feito, pois tratar-se ia de violação de caráter permanente. No
mesmo sentido, o caso Blake x Guatemala, em que a corte reconheceu o
caráter permanente do dever de investigar e punir.

PONTO 22
Comissão Interamericana de Direitos Humanos: relatórios de casos,
medidas cautelares, relatórios anuais e relatoria para a liberdade de
expressão.

1. O que é a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e quais são


suas principais características?
A Comissão interamericana de direitos humanos é uma das entidades de
proteção e promoção dos direitos humanos na América.
A CIDH é um dos órgãos principais da Organização dos Estados
Americanos, porém autônomo, pois seus membros (7 membros) atuam com
independência e imparcialidade, não representando o Estado de origem.

2. Considerando que EUA e Canadá não são signatários da CADH,


indaga-se: tais Estados estão submetidas às atribuições da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos?

161
Para responder a pergunto é imprescindível traçar o histórico do órgão.
A Comissão foi criada no bojo dos Estados que compõe a OEA em
Santiago 1959, tendo efetivamente iniciado seus trabalhos em 1960 (com a
aprovação de seu Estatuto pelo Conselho da OEA). Após alguns anos, em
1967, com o Protocolo de Buenos Aires, que emendou a Carta da OEA, a
Comissão se tornou órgão principal da OEA de defesa dos DH.
Em 1969, com a CADH, a Comissão passou a ser também órgão
fiscalizador.
Veja, portanto, que a Comissão é órgão da OEA e da Convenção
Americana de DH.
Em que pese não terem assinado a CADH, EUA e Canadá são signatários
da Carta da OEA (Bogotá 1948), razão pela qual estão submetidos ao poder
fiscalizatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, de acordo com
o estabelecido na Carta da OEA.
Atenção: O sistema de petições individuais também é previsto no
Sistema da OEA (portanto EUA e Canadá também se submetem a ele).
Pode-se dizer que o processamento das petições é o mesmo daquele existente
no Sistema da Convenção Americana, com uma única diferença: a Comissão
não pode enviar suas conclusões à Corte Interamericana, pois este órgão
é exclusivo da CADH.

3. Como ocorre a eleição dos membros da Comissão Interamericana de


Direitos Humanos?
Os membros da Comissão serão eleitos a titulo pessoal, pela Assembleia
Geral da OEA, de uma lista de candidatos propostos pelos Governadores dos
Estados-membros. Cada Governo pode propor até três candidatos, nacionais
do Estado que os proponha ou de qualquer outro Estado – membro. Se o
Estado optar por utilizar a prerrogativa de apresentar três candidatos,
obrigatoriamente um deles deverá ser nacional de Estado diferente do
proponente.

4. Qual a missão da Comissão Interamericana de DH?


Zelar pela promoção e defesa de direitos humanos no continente
americano, bem com estimular a consciência dos direitos humanos,
incumbindo-lhe a averiguação do respeito e garantia desses direitos.

5. Cite alguns instrumentos de ação da Comissão.


Para o cumprimento de sua missão principal a Comissão poderá
apresentar recomendações aos Estados-partes; criar relatorias especiais;
conduzir investigações “in loco”; preparar relatórios; analisar petições
individuais de qualquer pessoa ou grupo, vítimas ou não; analisar
comunicações interestaduais se os Estados envolvidos assinaram protocolo
facultativo (necessária observância da reciprocidade); levar petições
individuais à Corte IDH;

6. Quais são os pressupostos de admissibilidade da comunicação


(individual ou interestatal) apresentada à Comissão?
Segundo o artigo 46 da CADH, é necessário:
1- Esgotamento dos recursos da jurisdição interna;

162
2- Apresentação dentro do prazo de seis meses, a partir da notificação da
decisão definitiva interna;
3- ausência de litispendência internacional; e
4- vedação ao anonimato.
Os requisitos 1 e 2 são dispensados quando no âmbito interno inexistir
devido processo legal para proteção dos DH violados, houver demora
injustificada ou obstrução de acesso à justiça.
Obs.: Tem legitimidade para apresentação da petição individual não só a
vítima, mas também qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou, ainda, entidade
não governamental legalmente reconhecida.

7. Defensoria Pública tem legitimidade para atuar perante os sistemas


internacionais de proteção dos direitos humanos?
“Sim. A LC 80/94 prevê como uma das funções institucionais da Defensoria
a de ‘representar aos sistemas internacionais de proteção dos direitos
humanos, postulando perante seus órgãos’. Trata-se de uma legitimidade que
sequer foi conferida ao Ministério Público pelas suas LCs 75/93 (MPU) e
8625/93 (Lei Orgânica Nacional)”.
Pergunta e resposta de Caio Paiva, extraída do site
http://www.conjur.com.br

8. Perante quais sistemas internacionais de proteção dos direitos


humanos a Defensoria Pública pode atuar?
“A Defensoria pode atuar tanto no sistema interamericano quanto no
sistema global de proteção dos direitos humanos. Cite-se como exemplo do
primeiro a denúncia oferecida contra o Brasil, na Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, pelas Defensorias Públicas da União e do Estado de São
Paulo, em relação à manutenção do crime de desacato no Código Penal
brasileiro. Outro exemplo, mais recente, é encontrado na denúncia apresentada
pela DPU contra o Brasil na Comissão Interamericana por graves violações a
direitos humanos no Hospital Federal de Bonsucesso (no Rio de Janeiro/RJ).
Quanto à atuação perante o sistema global de proteção dos direitos
humanos, a Defensoria tem legitimidade para peticionar e levar casos ao
conhecimento dos Comitês da ONU (os denominados treaty bodies). Exemplo
recente dessa possibilidade ocorreu com o ofício enviado ao Comitê dos
Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU pelas Defensorias Públicas de
São Paulo e da União, no qual expõem a falta de acessibilidade e segurança
nas prisões brasileiras para acomodar pessoas com deficiência”.
Segundo o artigo 53, VII, da LC SP 988, compete aos Núcleos
Especializados coordenar o acionamento de Cortes Internacionais.
Pergunta e resposta de Caio Paiva, extraída do site
http://www.conjur.com.br

9. Quais são as fases do processo perante a Comissão?


(i) admissibilidade- verifica-se o preenche os requisitos previstos na
CADH;
(ii) conciliação- admitida a petição e esgotada a investigação, a Comissão
esforça-se para a solução amigável (atua como órgão político), art. 48, f, da
Convenção. Alcançado esse acordo, a Comissão elabora relatório sobre o

163
caso, que será remetido ao peticionário, aos Estados e ao Secretário-Geral da
OEA, para publicação (relatório de solução amistosa).
(iii) informe preliminar ou fase do 1º Informe: frustrada a conciliação, a
Comissão delibera e elabora um relatório com suas conclusões e encaminha
ao Estado, que tem o prazo de 3 (três) meses para cumprir às recomendações.
Esse relatório é confidencial-restrito as partes.
(iv) acionamento da Corte ou informe definitivo (ou Segundo Informe).
No caso de descumprimento do 1º informe, podem ocorrer duas situações
alternativamente:
a) Acionamento da Corte se o Estado anuiu com a cláusula facultativa que
reconhece sua competência;
b) Na hipótese de Estado infrator não reconhecer a jurisdição da Corte, a
Comissão elabora um segundo informe (vinculante e público), cujo teor
contemplará providências que o Estado violador deverá cumprir no prazo
estipulado. Após o decurso desse prazo, a Comissão agrega a informação
sobre o cumprimento das medidas e publica suas conclusões.
Atenção: André de Carvalho Ramos explica que a Corte Interamericana de
Direitos Humanos manifestou inicialmente entendimento favorável à tese de
que os informes da Comissão Interamericana não vinculariam. Contudo,
posteriormente o Egrégio Tribunal modificou seu posicionamento e atualmente
entende que o Segundo Informe da Comissão, enviado após a primeira
manifestação do Estado sobre o cumprimento das recomendações, tem
natureza vinculante. (Ramos, 2001, p. 83-85). Isso porque, se os Estados
aceitaram a competência da Comissão, devem cumprir suas determinações por
obediência ao princípio da boa-fé.

10. Há recurso em face da decisão da Comissão que determina o


arquivamento da denúncia?
Caso a Comissão arquive a demanda, não há recurso. Assim, ela tem
importante papel de dar inicio -ou não- à ação de responsabilidade
internacional e, caso decida não iniciar, é a Comissão, em termos práticos, o
interprete definitivo da Convenção.

11. Como se faz o acompanhamento cujo mérito fora decidido unicamente


pela CIDH?
A CIDH publica o relatório definitivo de mérito com recomendações ao
Estado em questão, direcionadas para que a violação de direitos humanos
identificada seja devidamente reparada. A CIDH acompanha a implementação
destas recomendações até seu cumprimento total, solicitando informações
periódicas ao Estado e aos peticionários acerca das recomendações feitas.
Estes dados são analisados e a CIDH emite sua opinião sobre este
cumprimento em seu relatório anual - público e apresentado perante a
Assembleia Geral da OEA.

12. Quais os direitos tuteláveis via medida cautelar?


As medidas cautelares podem abarcar qualquer dos direitos previstos na
Convenção Americana de Direitos Humanos.
O mecanismo de medidas cautelares encontra-se previsto no artigo 25 do
Regulamento da CIDH. Conforme o que estabelece o Regulamento, em
situações de gravidade ou urgência, a Comissão poderá, por iniciativa própria

164
ou a pedido da parte, requerer que o Estado adote medidas cautelares para
prevenir danos irreparáveis às pessoas ou ao objeto do processo com base em
uma petição ou caso pendente, assim como, à pessoas que se encontrem sob
sua jurisdição, independentemente de qualquer petição ou caso pendente.
Estas medidas poderão ser de natureza coletiva com o fim de prevenir um
dano irreparável às pessoas em razão de vínculo com uma organização, grupo
ou comunidade de pessoas determinadas ou determináveis.

13. De que tratavam as medidas cautelares no caso Manoel Mattos?


Concedidas em setembro de 2002, estas medidas solicitavam ao Estado
brasileiro que protegesse a vida e a integridade de Manoel Bezerra de Mattos
(vereador e advogado), Rosemary Souto (promotora de justiça) e Luiz da Silva
(testemunha), que denunciavam a atuação de grupos de extermínio na fronteira
da Paraíba e Pernambuco. Em 2009, Manoel Mattos foi assassinado, tendo
sido as mencionadas medidas ampliadas no ano seguinte para incluir a
proteção de outras setes pessoas, dentre estas familiares, que passaram a
também receber ameaças.

14. Qual a relação entre medidas cautelares e o IDC previsto no CF/88?


Em sua decisão, no Incidente de Deslocamento de Competência nº 2,
relativo à investigação da morte do defensor de direitos humanos Manoel
Mattos, o STJ expressamente mencionou como um dos fatores que
justificariam a modificação da competência, o fato do Brasil poder ser
responsabilizado internacionalmente em razão da impunidade dos autores do
crime.

15. Quais foram mais recentes cautelares outorgadas contra o Brasil?


Ainda estão em vigor?
Em 2015 e 2014, a CIDH não outorgou medidas em relação ao Brasil. Em
2013, tivemos duas: Presídio Central de Porto Alegre (PCPA) e Complexo
Penitenciário de Pedrinhas. A primeira ainda encontra-se em vigor, enquanto
que a segunda, em razão do descumprimento das medidas impostas pelo
Estado brasileiro, se tornaram medidas provisórias no âmbito da Corte
Interamericana.

16. Explique a controvérsia em torno das cautelares de Belo Monte?


Em 2011, a CIDH outorgou medidas cautelares em favor dos indígenas
da Bacia do Xingu, no Pará, pelos riscos que corriam com a construção da
hidrelétrica de Belo Monte.
A CIDH determinou a suspensão das obras, para que houvesse consulta
prévia à população e planejamento de medidas para proteção dos indígenas.
Todavia, o Governo Federal lançou uma ofensiva sem precedentes contra a
decisão da CIDH, acusando-a de interferências indevidas e injustificáveis nos
assuntos internos do país. O Brasil chegou a retirar a candidatura de membro
da CIDH e a chamar para esclarecimentos o embaixador brasileiro junto à
OEA, em retaliação.
A reação foi eficaz, e a CIDH foi desautorizada publicamente pelo
Secretário-Geral da OEA, acabando por revisar as medidas. A principal
modificação foi a retirada da recomendação de suspensão das obras.

165
17. Qual a relação entre a CIDH e a Lei 11.340/06?
A lei 11.340/06 foi uma das medidas adotadas pelo Brasil após relatório
definitivo de mérito publicado pela CIDH em 2001, em caso que apurava a
violação de Direitos Humanos sofridas por Maria da Penha. Além da edição da
lei, que visa a coibir a violência doméstica contra a mulher, o Brasil também
cumpriu com a obrigação de responsabilizar internamente o autor do crime (ex-
marido da vítima), que foi preso em 2002.

18. Em que consiste a Relatoria Para a Liberdade de Expressão?


A Organização dos Estados Americanos criou Relatorias Especiais sobre
temas de Direitos Humanos, sendo a mais importante dessas é a Relatoria
para a Liberdade de Expressão.
A Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão foi criada em 1997,
tendo como características sua permanência, independência funcional e
estrutura própria.
A criação da Relatoria para a Liberdade de Expressão visa incentivar a
plena liberdade de expressão e informação nas Américas, direito essencial ao
fortalecimento da democracia em Estados de passado ditatorial, a exemplo do
Brasil.

19. Quais são as funções da Relatoria Para a Liberdade de Expressão?


a) Elaborar relatório anual sobre a situação da liberdade de expressão nas
Américas e apresentá-lo à Comissão para apreciação e futura inclusão no
Relatório anual da Comissão IDH à Assembleia Geral da OEA;
b) Preparar relatórios temáticos;
c) Obter informações e realizar atividades de promoção e capacitação
sobre a temática;
d) Acionar imediatamente a Comissão a respeito de situações urgentes
para que estude a adoção de medidas cautelares ou solicite a adoção à Corte
Interamericana de Direitos Humanos; e
e) Remeter informação à Comissão para instruir casos individuais
relacionados com a liberdade de expressão.

20. Cite um caso julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos


em que houve o assessoramento da relatoria para a liberdade de
expressão junto à Comissão Americana de Direitos Humanos.
No caso “A última tentação de cristo vs. Chile” a Relatoria para a Liberdade
de Expressão assessorou a Comissão IDH na apresentação de petição
individual junto a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Tratou-se de censura à exibição do filme “A ultima Tentação de Cristo” no
Chile, fundada na Constituição do Chile. A Corte IDH determinou que, mesmo
diante de norma constitucional, deve o Estado cumprir a Convenção Americana
de Direitos Humanos, devendo, alterar a Constituição, o que posteriormente foi
feito pelo chile. A Corte decidiu que a censura previa ao filme em questão
violou os direitos à liberdade de expressão e liberdade de consciência
consagrados nos artigos 12 e 13 da CADH, em detrimento da sociedade
Chilena.

166
21. É possível afirmar que o crime de desacato previsto no art. 331 do CP
brasileiro viola a convenção americana de direitos humanos no que diz
respeito ao direito à liberdade de expressão?
A Relatoria da Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos já concluiu em parecer que leis nacionais que estabelecem
crimes de desacato são contrárias ao art. 13 da Convenção Americana de
Direitos Humanos. Segundo o parecer, as leis que punem a manifestação
ofensiva dirigida a funcionários públicos atentam contra a liberdade de
expressão e informação. Logo, a leis nacionais que estabelecem crimes de
desacato são anticonvencionais e, por isso, deve ser dada prevalência a CADH
por possuir status supralegal.
Atenção: em março de 2015, o Núcleo de Situação Carcerária e o Núcleo
de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de SP encaminharam
à CIDH um pedido de concessão de medida cautelar coletiva para que o
Brasil deixe de aplicar a norma que tipifica criminalmente o desacato, por violar
a CADH.
A DPESP já havia acionado a CIDH em agosto de 2012 para contestar uma
condenação criminal pelo mesmo delito.

22. Em que consiste os relatórios anuais elaborados pela relatoria da


liberdade de expressão?
A Relatoria Especial tem atribuição de elaborar um relatório anual que
descreve as atuações do ano imediatamente anterior; sistematiza as boas
práticas e os maiores desafios em cada um dos Estados das Américas; elabora
relatórios teóricos sobre assuntos inovadores ou problemáticos em relação aos
quais não existem padrões suficientes ou adequados; difundi a doutrina e a
jurisprudência regional e de outras latitudes sobre a matéria; e, por fim, formula
uma série de recomendações aos Estados.

23. O que é o procedimento bifásico no âmbito da Convenção Americana


de Direitos Humanos?
A CADH consagrou um procedimento bifásico de promoção dos direitos
protegidos, eis que há uma etapa, indispensável, perante a Comissão
Americana de Direitos Humanos e uma eventual segunda etapa perante a
Corte Interamericana de Direitos Humanos.

PONTO 23
Corte Interamericana de Direitos Humanos.

1. Qual é a natureza jurídica da CIDH?


Trata-se de tribunal internacional supranacional, capaz de condenar os
Estados-partes na Convenção Americana por violação de direitos humanos.

2. A corte pertence à OEA?


A corte não pertence à OEA, mas à Convenção Americana, tendo a
natureza de órgão judiciário internacional.
Trata-se da segunda e única corte instituída em contextos regionais (a
primeira foi a Europeia).

3. Quando “nasceu” a CIDH e quando começou a funcionar?

167
Seu nascimento se deu em 1978, quando da entrada em vigor da CADH,
mas o seu funcionamento somente ocorreu, de forma efetiva, em 1980, quando
emitiu sua primeira opinião consultiva e, sete anos mais tarde, quando deu sua
primeira sentença.

4. Qual é a sua composição?


A Corte Interamericana é composta, nos termos do artigo 52 (1), da CADH,
de 7 juízes, nacionais (sempre de nacionalidades diferentes) dos Estados-
membros da OEA. Atenção! Pode haver juiz na Corte Interamericana
nacional de pais-membro da OEA que não é parte na Convenção
Americana (ex. Juiz Thomas Buergenthal dos EUA que foi juiz no período
de 1979 a 1991).
Os membros são eleitos, a título pessoal, dentre juristas da mais alta
autoridade moral, de reconhecida competência em matéria de direitos humanos
e que reúnam as condições requeridas para o exercício das mais elevadas
funções judiciais, de acordo com a lei do Estado do qual sejam nacionais, ou
do Estado que os propuser como candidatos.
A CADH proíbe que participem da composição da Corte juízes da mesma
nacionalidade.

5. Como se dá a eleição? Qual é o prazo do mandato?


A eleição faz-se por votação secreta pelo voto da maioria absoluta dos
Estados-partes na CADH.
A votação tem lugar na Assembleia Geral da OEA, sendo realizada a partir
de uma lista de candidatos propostos por esses mesmos Estados (partes na
OEA).
Cada Estado-parte da OEA pode indicar até 3 (três) candidatos. Quando
um Estado propõe o número máximo de juízes permitido (3), pelo menos um
deles “deverá ser nacional do Estado diferente do proponente”.
Exemplo: Se o Brasil propõe uma lista de três candidatos, ao menos um
deles deverá ser de outro país que não o próprio Brasil.
Por sua vez, o mandato é de 6 (seis) anos, podendo ser reeleitos
apenas uma vez.

6. O que é o juiz ad hoc?


No caso de um dos juízes chamados a conhecer do caso ser de
nacionalidade de um dos Estados-partes, faculta-se ao outro Estado oferecer
um juiz ad hoc (oitavo juiz), nos termos do artigo 55,§2º.
Frise-se que esse juiz ad hoc, de acordo com o novo Regulamento da
Corte e em atenção à sua Opinião Consultiva nº 20/09, só é possível nas
causas entre Estados, ou seja, nas demandas interestatais.
7. Qual é o quorum para as deliberações da Corte?
Dos sete juízes da Corte, devem votar no mesmo sentido um mínimo de
cinco juízes para que se julgue procedente ou improcedente determinado
pedido formulado na ação.

7. Qual é o quorum para as deliberações da Corte?


Dos sete juízes da Corte, devem votar no mesmo sentido um mínimo de
cinco juízes para que se julgue procedente ou improcedente determinado
pedido formulado na ação.

168
8. O que é jus standi? Quem o possui no contexto da CADH?
Somente os Estados-partes na CADH e a COMISSAO INTERAMERICANA
(CIDH) têm direito de submeter um caso (jus standi) à decisão da Corte.

9. Quais são as competências da Corte?


A Corte detém competência consultiva (referente à interpretação das
disposições da Convenção, bem como das disposições de tratados
concernentes à proteção dos direitos humanos nos Estados Americanos).
De outro lado, a Corte possui competência contenciosa, de caráter
jurisdicional, própria para o julgamento de casos concretos, quando se alega
que um dos Estados-partes na Convenção violou algum de seus preceitos.
A competência contenciosa da Corte Interamericana é limitada aos
Estados-partes da CADH que reconheçam expressamente sua jurisdição.
Isto significa que um Estado-parte na CADH não pode ser demandado perante
a Corte se ele próprio não aceitar a sua competência contenciosa.

10. O que é cláusula “Raul Fernandes”?


A cláusula “Raul Fernandes” nada mais é que a chamada cláusula
facultativa da jurisdição obrigatória, que permite que o Estado-parte manifeste
se aceita ou não a competência contenciosa da Corte Interamericana em
todos os casos relativos às soluções de controvérsias que se apresentem
sobre a interpretação ou aplicação da Convenção.

11. A declaração de aceite pode ser feita por quais formas?


A declaração de aceite pode ser feita:
a) Incondicionalmente-> a declaração incondicional não demanda aceite de
qualquer outro Estado;
b) Sob condição de reciprocidade -> requer o aval de um Estado
contraparte.
c) Por prazo determinado -> Não requer o aval.
d) Para casos específicos-> Não requer o aval.

12. Uma vez aceita a competência contenciosa o Estado pode dela se


desengajar? Existe exceção?
Uma vez aceita a competência contenciosa o Estado não poderá mais dela
se desengajar, em outras palavras, aceita a competência jurisdicional da Corte
os Estados se comprometem a cumprir tudo aquilo que por ela vier a ser
decidido, tanto em relação à interpretação quanto relativamente à aplicação da
Convenção.
A exceção ocorre se o Estado-parte denunciar a Convenção como um todo
(sendo certo que mesmo a denúncia da Convenção não desonera o Estado da
responsabilização que lhe cabe relativamente às violações de direitos humanos
cometidas anteriormente, à égide de quando era parte no instrumento
internacional).

13. Pode ocorrer reservas ao art. 62, 1, da CADH? A jurisdição obrigatória


da Corte é uma “cláusula pétrea” da CADH?
Valerio de Oliveira Mazzuoli diz “(...) não pode ocorrer reservas ao disposto
no art. 62,1 da CADH feitas no sentido de impedir que um Estado adira

169
futuramente à competência contenciosa da Corte Interamericana. Eventuais
reservas a esse dispositivo são flagrantemente contrárias ao objeto e ao
escopo da CADH.”
Segundo Cançado Trindade, a jurisdição obrigatória da Corte é uma das
cláusulas pétreas da proteção internacional dos direitos humanos e não
comporta limitações outras que as expressamente previstas no artigo 62 da
Convenção.
Exemplo: Caso Hilaire Vs. Trinidad e Tobago (2001) – Trinindad e Tobago
foi o único Estado que, no momento de sua aceitação à CADH, estabeleceu
condições desta natureza para a aceitação da competência da Corte.
Como reiteradamente tem declarado a própria Corte, a sua competência
“não pode estar condicionada a fatos distintos de suas próprias atuações”, uma
vez que “os instrumentos de aceitação da cláusula facultativa da jurisdição
obrigatória (Art.62.1 da CADH) pressupõem a admissão, pelos Estados que a
representam, do direito da Corte resolver qualquer controvérsia relativa à sua
jurisdição.”17

14. Quando o Brasil declarou seu reconhecimento à competência


contenciosa da Corte? Houve alguma peculiaridade?
O Brasil aderiu à competência da Corte em 1998, por meio do Decreto
Legislativo nº 89 de 3/12/1998.
Neste decreto legislativo o Brasil deixou consignado que o aceite do Estado
à jurisdição contenciosa da Corte só poderá valer a partir da data de sua
promulgação (‘cláusula temporal’).
O governo, pelo Decreto Presidencial 4463/2002 reconheceu “como
obrigatória, de pleno direito e por prazo indeterminado, a competência da Corte
Interamericana de Direitos Humanos em todos os casos relativos à
interpretação da CADH, sob reserva de reciprocidade e para fatos
posteriores à 10/12/1998” (Art. 1º).
Perceba-se que o Brasil se utilizou da faculdade autorizada pelo artigo 62.2
da CADH, para reconhecer a competência da Corte sob reserva de
reciprocidade. Portanto foi condicional o reconhecimento do Brasil.

15. É possível a responsabilização contra o Brasil por fatos ocorridos


antes de 10/12/1998?
Segundo V.O.Mazzuoli, é possível iniciar, na Corte, processo de
responsabilização contra o Brasil por fatos ocorridos antes de 10 de dezembro
de 1998, no caso de as violações de direitos humanos persistirem após
essa data, conforme precedentes da CIDH.
A partir do momento em que um Estado reconhece a competência da Corte
relativamente à interpretação ou aplicação da Convenção, seja por declaração
ou por convenção especial, poderá ele ser demandado perante ela em todos os
casos de violação de direitos humanos ocorridos sob sua jurisdição.
O reconhecimento estatal da competência da contenciosa da Corte
opera irretroativamente, tendo efeitos ex nunc (ou pro futuro).
Nos casos daqueles atos estatais, violadores de direitos humanos,
que tiveram início antes desse reconhecimento e se prolongaram depois
dele, a Corte Interamericana será competente para examinar as ações ou
17
Neste sentido: Caso Baena Ricardo Vs. Panamá (2003); Caso Ivcher Bronstein Vs. Peru
(1999); Caso do Tribunal Constitucional Vs. Peru (1999)

170
omissões que tenham ocorrido a partir do referido reconhecimento, bem
como seus respectivos efeitos. ( Caso da Comunidade Moiwana Vs.
Suriname – 2005).

16. Cabe recurso da sentença da Corte Interamericana de Direitos


Humanos?
Segundo o artigo 67 da CADH, a sentença da Corte será definitiva e
inapelável. Em caso de divergência sobre o sentido ou o alcance da
sentença, a Corte interpretá-la-á, a pedido de qualquer das partes, desde
que o pedido seja apresentado dento de 90 (noventa) dias a partir da data
da notificação da sentença (espécie de “embargos de declaração”)
Os Estados não devem se utilizar do mecanismo de interpretação das
sentenças como um meio de impugnação as avessas, e sim como forma de
aclarar o seu sentido ou o seu alcance, quando sobre tais temas nascer
alguma divergência.
Não se pode também pedir a modificação ou a anulação da sentença
respectiva por meio da demanda de interpretação (Caso Massacre da
Rochela Vs. Colômbia - 2008).

17. Como se dá a reparação no âmbito das sentenças da CIDH?


A decisão da Corte Interamericana sobre a existência de uma violação de
determinado direito ou liberdade protegidos pela Convenção Americana é
definitiva e não se encontra limitada por quaisquer leis ou atos normativos de
direito interno.
Quando a Corte decidir ter havido, por parte do Estado, violação de um
direito ou liberdade protegido pela Convenção, determinará imediatamente
“que se assegure ao prejudicado o gozo dos seus direitos ou liberdade
violados”
O art. 63.1 da CADH segue a máxima de que todo violação a um direito
comporta o dever de repará-lo adequadamente (Caso do Tribunal
Constitucional Vs. Peru).
O art. 63.1 distingue duas situações, uma quanto ao futuro e outra
quanto ao passado, quais sejam:
a) a obrigação do Estado responsável por uma violação de direitos
humanos assegurar à vítima o gozo de seu direito ou liberdade violados
(obrigação relativa ao futuro) desde a prolação da determinação da Corte;
b) a reparação pelo Estado das conseqüências da medida ou situação que
haja configurado a violação desses direitos, bem como o pagamento de uma
justa indenização à parte lesada (obrigação relativa ao passado).
Frise-se que o dever de indenizar é UMA das modalidades de se
REPARAR à vítima todo o mal causado pela violação do seu direito, mas
não é a única, podendo haver uma gama de outras maneiras de se proceder
tal reparação.
Daí se entender que o sistema interamericano de direitos humanos é
um sistema reparador.
EXEMPLOS DE REPARAÇÕES FIXADAS PELA CORTE:
a) Obrigação de restituição na íntegra (v.g. a soltura de um preso no Caso
Loaysa Tamayo)18;
18
No julgamento sobre o caso Loayza Tomayo Vs. Peru (1998), a Corte pela primeira vez
pronunciou-se sobre o conceito de “PROJETO DE VIDA”, vinculado à satisfação como

171
b) condenação por danos materiais (inclusive com lucros cessantes) e
morais;
c) a obrigação de construir posto médico e escolar (Caso
ALOBOETOE);
d) obrigação de editar determinada norma interna ou de modificar
dispositivo existente ( Caso Suárez Rosero);
e) obrigação de investigar e punir os responsáveis pelas violações ( Caso
Velásquez Rodriguez);
f) obrigação de tornar nulo um processo judicial (Caso Cesti Hurtado)
Deve-se distinguir, portanto, o dever de reparação do dever de indenização
previstos no art. 63.1 da CADH, pois enquanto reparação geralmente induz
uma obrigação de fazer ou não fazer, a indenização se volta ao pagamento de
uma quantia certa relativa à obrigação de ressarcimento dos danos, sejam eles
de conteúdo moral ou material.

18. A Corte pode ordenar medidas provisórias? Em que situações?


Em caso de extrema gravidade e urgência, e quando for necessário para
evitar danos irreparáveis às pessoas, poderá a Corte ordenar medidas
provisórias de proteção nos assuntos que estiver conhecendo, nos termos do
artigo 63. 2, da CADH.
A Corte Interamericana tem sustentado que as medidas provisórias
previstas no art. 63, 2, da CADH podem proteger os membros de uma
coletividade ou pessoas ligadas a essa coletividade, bastando que tais
pessoas, ainda que inominadas, sejam ao menos identificáveis e
determináveis.
Tal entendimento reflete as obrigações erga omnes que os Estados-partes
na Convenção têm de proteger todas as pessoas sujeitas à sua jurisdição.
Em última análise, as medidas provisórias – solicitadas pela Comissão ou
adotadas de ofício pela Corte – têm servido, no sistema interamericano, como
meio bastante eficaz para salvaguardar uma situação de perigo de lesão
irreparável ao direito das pessoas, implementando no contexto regional
interamericano uma espécie de defesa preordenada das vítimas e de todos
aqueles potenciais destinatários de certos atos do Estado que, se levados às
últimas consequências, podem aniquilar a garantia dos direitos básicos das
pessoas, protegidos pela CADH.

19. Processamento do Estado perante a Corte.


Caso o Estado se recuse a acatar as conclusões estabelecidas pela
COMISSÃO Interamericana, no seu primeiro informe (informe preliminar), esta
poderá acioná-lo perante a Corte Interamericana, caso o Estado tenha
reconhecido sua jurisdição obrigatória.
Este acionamento da Comissão se faz por meio de ação judicial.
O rito vem expresso no REGULAMENTO DA CORTE:
a) a ação é proposta perante a Secretaria da Corte (em San José), por
meio da protocolização da inicial nos idiomas de trabalho do tribunal (espanhol,
inglês, português ou francês).
modalidade de reparação, entre outras medidas de reparação ordenadas. A Corte
ponderou que uma reclamação de dano ao projeto de vida não se referia à relação da pessoa
em questão com o seu patrimônio, mas sim à sua ‘auto-realização plena’ como ser humano. A
Corte concluiu que as circunstâncias da detenção da vítima no caso concreto tinham
causado um dano a seu projeto de vida”

172
b) proposta a ação, poderá o Presidente da Corte examinar
preliminarmente a demanda, verificando se foram ou não cumpridos todos os
requisitos necessários à sua propositura.
c) a esta fase de exame preliminar da demanda segue-se a citação do
Estado réu, bem como a intimação da Comissão Interamericana, quando esta
não for autora da ação (caso em que atuará como custos legis);
d) abre-se, então, o contraditório, em que o Estado réu poderá apresentar
exceções preliminares no prazo de dois meses seguintes à sua citação.
e) depois de citado o demandado, a Corte poderá aceitar ou não a
desistência do Estado demandante;
f) nada obsta que as partes cheguem a uma solução amigável da disputa,
levando ao conhecimento da Corte a solução, caso em que a Corte poderá
homologar;
g) o demandado, no prazo improrrogável de 4 meses, seguintes à
notificação , terá o direito de apresentar contestação, juntando documentos;
h) as exceções preliminares só poderão ser opostas na contestação da
demanda, que não terão efeito suspensivo;
i) depois deste iter o Presidente da Corte fixara a data de abertura do
procedimento oral e fixará as audiências necessárias (art. 45);
j) Encerrada a fase probatória (com os debates, perguntas etc.) a Corte
passa à deliberação , proferindo sentença de mérito;
k) A notificação da sentença é feita pela Secretaria da Corte.

20. Eficácia interna das sentenças proferidas pela CIDH.


Qual é a diferença entre sentença estrangeira de sentença
internacional?
Por sentença estrangeira deve-se entender aquela proferida por um
tribunal afeto à soberania de um determinado Estado, e não a emanada de um
tribunal internacional que tem jurisdição sobre os seus próprios Estados-partes.
Por sua vez, sentenças internacionais são proferidas por tribunais
internacionais que não se vinculam à soberania de nenhum Estado, tendo,
pelo contrario, jurisdição sobre o próprio Estado.
É necessário, para que tenham eficácia, que as sentenças da CIDH
sejam homologadas perante o STJ?
Tais sentenças não precisam ser homologadas pelo STJ. Não se trata,
nesse caso, de sentença inter alios estranha ao país. Sendo parte, cabe
cumpri-la, como faria com decisão de seu Poder Judiciário.
Em suma, as sentenças da CIDH proferidas contra o Brasil, pelo teor do
art. 68§1º, da CADH, têm eficácia imediata na nossa ordem jurídica, devendo
ser cumpridas de plano (sponte sua).

21. O problema da execução das sentenças da CIDH no Brasil.


O sistema interamericano de direitos humanos, infelizmente, ainda não
dispõe de um sistema eficaz de execução das sentenças da CIDH no
ordenamento interno dos Estados por ela condenados.
A primeira condenação do Brasil por violação de direitos humanos
protegidos pela CADH deu-se relativamente ao Caso Damião Ximenes Lopes.
Na sentença de 4/7/2006, a Corte Interamericana determinou, entre outras
coisas, a obrigação do Estado brasileiro de investigar os responsáveis pela
morte da vítima e de realizar programas de capacitação para os profissionais

173
de atendimento psiquiátrico, e o pagamento de indenização por danos
materiais e imateriais à família da vítima.
O grande problema que existe relativamente ao cumprimento integral das
obrigações impostas aos Estados pela Corte Interamericana não está na parte
indenizatória da sentença, mas na dificuldade de executar internamente os
deveres de investigar e punir os responsáveis pelas violações de direitos
humanos.
Frise-se que se o Estado deixa de observar o comando do art. 68,§1º, da
CADH (que ordena aos Estados acatarem, sponte sua, as decisões da Corte),
está incorrendo em nova violação do Pacto de San José, fazendo operar no
sistema interamericano a possibilidade de novo procedimento contencioso
contra esse mesmo Estado.
Caso o Estado não cumpra sponte sua a sentença da Corte, cabe à vítima
deflagrar ação judicial a fim de garantir o efetivo cumprimento da sentença,
uma vez que elas também valem como título executivo no Brasil, tendo
aplicação imediata, devendo tão somente obedecer aos procedimentos
internos relativos à execução de sentença desfavorável ao Estado.
André de Carvalho Ramos sustenta que em caso de descumprimento
pelo Estado da decisão internacional, deve-se excluir do procedimento de
execução das sentenças da Corte a conhecida ordem dos precatórios,
prevista no art.100 da CF. Defende, outrossim, que a condenação possui
caráter alimentar.

22. Eficácia da sentença para terceiros Estados.


A sentença da CIDH pode gerar efeitos para Estados que não sejam
partes da sentença?
No que tange ao efeito condenatório propriamente dito, por certo que a
sentença para o terceiro Estado, vale como res inter alios acta.
Porém no que tange a vários outros efeitos, como (especialmente) o
relativo à interpretação que fez a Corte da Convenção Americana, pode-se
afirmar que os terceiros Estados têm o dever de abster-se de aplicar ou
interpretar o seu Direito interno em desacordo com a interpretação acolhida
pela Corte de San José.
Assim, pode-se dizer que a sentença da Corte Interamericana vincula
indiretamente (com caráter erga omnes) todos os terceiros Estados, valendo
como res interpretata a ser seguido no direito interno.
Destaque-se que além das sentenças proferidas nos casos contenciosos,
também as opiniões consultivas da CIDH deveriam ter eficácia interpretativa
erga omnes, vinculando terceiros Estados à interpretação que realiza a Corte
sobre o alcance e o conteúdo de um dispositivo convencional.
Quando incorporar tais decisões encontram limites?
Não se deve simplesmente incorporar de forma acrítica tais decisões
internacionais, mas adotá-las de acordo com o espírito ampliativo dos
direitos e garantias já consagrados no Direito interno, em homenagem ao
princípio pro homine (art. 29, b, da CADH).
Assim, não há dúvida que é dever dos órgãos do Estado (não somente os
juízes, mas todos os seus agentes) conhecer e seguir as decisões ou
recomendações da Corte de San José já proferidas, especialmente no que
tange à interpretação da Convenção Americana.

174
Em suma, deve-se analisar, à luz do princípio pro homine, qual das
decisões (interna ou da CIDH) será mais benéfica ao ser humano em um
dado caso concreto.

PONTO 24
Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. Convenção
Americana de Direitos Humanos. Protocolo adicional à Convenção
Americana sobre Direitos Humanos em matéria de direitos econômicos,
sociais e culturais – “Protocolo de San Salvador”.

1. Quando se deu a adesão do Brasil à DADDH? Foi o primeiro


documento regional de proteção dos Direitos Humanos? Como ela se
insere no processo de construção de um sistema regional de direitos
humanos na realidade histórica latino-americana?
A Declaração Americana foi adotada na IX Conferência Internacional dos
Estados Americanos, realizada em Bogotá em 1948, na qual foi criada a OEA
(a própria Carta da OEA traz alguns dispositivos atinentes aos direitos
humanos). De modo similar ao sistema universal de Direitos Humanos, o
sistema regional no âmbito da OEA iniciou-se em 1948 por meio de uma
Declaração. A ela se seguiu uma Convenção de Direitos Humanos, que tratava
essencialmente de direitos civis e políticos (CADH), sendo posteriormente
aditada por meio de um Protocolo Adicional (Protocolo de San Salvador), cuja
matéria circunscreveu-se aos direitos econômicos, sociais e culturais. De forma
análoga ao Sistema da ONU, foram posteriormente sendo elaboradas
convenções sobre temas particulares, para melhor proteção dos grupos sociais
vulneráveis.
Não foi, entretanto, a DADDH o primeiro documento regional de direitos
humanos, podendo-se mencionar como anteriores o Tratado da União, Liga e
Confederação Perpétua entre Colômbia, Peru, México e a então República
Centro-Americana, de 1826, que tinha como uma de suas disposições o
comprometimento com a luta pela abolição da escravidão. Do início do século
XX até a II Guerra foram produzidas diversas resoluções sobre direitos
humanos no âmbito de conferências, sobretudo refletindo a preocupação com
os efeitos da guerra sobre os direitos fundamentais. A formação da DADH tem
origem em 1945, na Conferência Interamericana sobre os Problemas da
Guerra e da Paz.
Carlos Weis chama atenção para o fato de que a realidade histórica latino-
americana, do ponto de vista do comportamento de sua elite, reporta antes
violações que respeito aos direitos fundamentais. Nesse sentido, Fábio Konder
Comparato: “os direitos humanos nunca fizeram parte do nosso patrimônio
cultural, mas sempre existiram como um elemento estranho, se não
estrangeiro, na vida de nossas instituições sociais”. O autor faz um
contraponto: enquanto as características essenciais dos direitos humanos
dizem respeito (i) a serem comuns a todas as pessoas e (ii) a se vincularem à
condição humana, independentemente de graça estatal, a formação cultural
latino-americana é marcada pela (i) escravidão e pelo (ii) oficialismo.
Não obstante, não é possível desconsiderar a existência de um processo
dialético na formação de um direito internacional dos direitos humanos no
âmbito regional, com a DADDH como importante ponto de partida.

175
2. Quais as possíveis críticas que se fazem ao preâmbulo da DADDH?
Em seu preâmbulo19 a DADDH traz mais deveres do que direitos. É claro
que sempre existe o dever coletivo de respeito aos direitos. A todo direito
fundamental corresponde um dever coletivo. No entanto, caso se entenda esse
conceito sob a ótica do direito privado, pode-se partir para a equivocada noção
de que somente são titulares dos direitos aqueles que cumprem seus deveres
(“direitos humanos para humanos direitos”).
“A leitura do texto revela que os ditos deveres dizem respeito a uma
condição ao exercício dos direitos humanos, no sentido evidente de que a toto
direito de uma pessoa corresponde um dever coletivo de seu respeito, cuja
menção é, ademais, reduntante – se o obrigado da norma for o mesmo que o
titular do direito correpondente – ou incorreta – se não o for. Na realidade, a
concepção liberal clássica é a de que os direitos humanos se põem contra a
ingerência do Estado e de terceiros na órbita individual, surgindo igualmente a
obrigação estatal de garantir a ordem pública. Quanto aos direitos econômicos,
sociais e culturais, embora dependentes da solidariedade social para sua
efetivação, na grande maioria geram evidentes obrigações estatais, decorrendo
que é o Estado quem se situa no pólo passivo da relação jurídica. Como
consequência, a ideia de deveres correlatos mostra-se intrinsecamente
equivocada, traduzindo impropriamente para o âmbito público uma situação
típica do direito privado, de reciprociade entre as partes na relação jurídica”.
Por sua vez, a DADH traz um dispositivo acerca da correlação entre
deveres e direitos, sendo os primeiros genericamente entendidos no sentido de
que toda pessoa tem deveres para coma família, a comunidade e a
humanidade.

3. Aponte algumas diferenças de conteúdo da DADDH em relação à


DUDH.
A DADDH não prevê proibição da pena de morte, da tortura, da escravidão
e da servidão (estava em sua redação originária, mas foi retirada). Trata
apenas do caráter privado da propriedade, enquanto a DUDH fala também de
seu caráter social. Traz de forma mais detalhada os direitos sociais e vincula
sua realização ao “nível de recursos públicos e da coletividade”

4. Como o direito de propriedade é previsto na CADH?


De acordo com o que prevê o art. 21.1, a propriedade pode ter seu gozo
condicionado ao interesse social. No art. 21.3 dispõe que tanto a usura como
qualquer outra forma de exploração do homem pelo homem devem ser
19
Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos e, como são dotados pela
natureza de razão e consciência, devem proceder fraternalmente uns para com os outros.
O cumprimento do dever de cada um é exigência do direito de todos. Direitos e deveres
integram-se correlativamente em toda a atividade social e política do homem. Se os direitos
exaltam a liberdade individual, os deveres exprimem a dignidade dessa liberdade.
Os deveres de ordem jurídica dependem da existência anterior de outros de ordem moral,
que apóiam os primeiros conceitualmente e os fundamentam.
É dever do homem servir o espírito com todas as suas faculdades e todos os seus recursos,
porque o espírito é a finalidade suprema da existência humana e a sua máxima categoria.
É dever do homem exercer, manter e estimular a cultura por todos os meios ao seu alcance,
porque a cultura é a mais elevada expressão social e histórica do espírito.
E, visto que a moral e as boas maneiras constituem a mais nobre manifestação da cultura, é
dever de todo homem acatar-lhes os princípios.

176
reprimidas pela lei. Carlos Weis chama atenção para o fato de que “a proibição
à exploração capitalista no mesmo artigo que consagra seu fundamento último
é um contrassenso” a priori, mas que na verdade o dispositivo não quis dizer
respeito à exploração tal como consagrada pelo marxismo, mas sim como uma
ressalva moral, “indicando que o acúmulo de bens, embora legítimo, não pode
se dar por meio do tratamento de outras pessoas como se fossem objetos, a
serviço do objetivo pessoal de outro indivíduo”.

5. A DADDH tem força vinculante?


Foi conferida força vinculante à DADDH especialmente após a reforma da
Carta da OEA. Em 1959, com a criação da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, cujo Estatuto prevê que em suas atividades deve se ater
aos termos da Declaração, a DADDH adquire um caráter normativo. Prevê o
art. 150 da Carta da OEA (alterado em 1967): “Ainda que não entre em vigor a
Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos a que se refere o Capítulo
XVIII, a atual Comissão Interamericana de Direitos Humanos velará pela
observância de tais direitos”. Obs: A força vinculante da DADDH pode decorrer
ainda da sua natureza de costume internacional.
A Corte Interamericana reconheceu a força vinculante da DADDH na
Opinião Consultiva nº 10, de 1989. A competência da Corte só ocorre se o
Estado tiver ratificado a CADH e reconhecido a sua competência contenciosa.
Nessa opinião consultiva a Corte afirmou a força obrigatória da DADDH para
todos os países que compõem o sistema da OEA. Em razão disso, a Comissão
pode analisar a violação a DH de todos os países da OEA com base na
Declaração, ainda que não tenha ratificado a CADH ou a competência da
Corte.
Obs. EUA: não ratificou a CADH, mas está obrigado a observar a
Declaração. A ideia da Corte com essa OC foi forçar os Estados a ratificarem a
Convenção.
Todos os Estados da OEA, portanto, se sujeitam à DADDH e à fiscalização
pela Comissão.
A própria CADH prevê em seu art. 29, d que “Nenhuma disposição da
presente Convenção pode ser interpretada no sentido de (...) excluir ou limitar o
efeito que possam prouzir a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do
Homem e outros atos internacionais da mesma natureza”. Thomas Buergenthal
entende que, com esse dispositivo, a Convenção reconhece a existência e os
efeitos normativos da DADDH.
Cumpre salientar que, no processo de elaboração da DADDH, Brasil e
Uruguai defenderam a proposição de conferir ao documento força jurídica
vinculante, inclusive com a criação de uma jurisdição internacional, o que só foi
alcançado posteriormente com o advento da CADH.

6. Quando e como foi a adesão do BR à Convenção Americana de Direitos


Humanos (CADH)?
A elaboração da CADH remonta a 1959, mas sua edição foi ameaçada pelo
surgimento dos Pactos Internacionais da ONU em 1966. Entrou em vigor em
1978 (depósito do 11º instrumento de ratificação).
O Brasil aderiu à CADH em 9/7/1992, depositando a carta em 25/12/92,
promulgando do Dec. 678/92 – entra em vigor (internacional) na data de
depósito do instrumento de ratificação. Quando do depósito, o BR fez

177
declaração interpretativa de que os art. 43 e 48, alínea d não incluem o direito
automático de visitas e inspeções in loco da Comissão Interamericana,
que dependerão de anuência expressa do Estado.
Cabe ressaltar que a CADH somente entrou em vigor já no final dos anos
de chumbo em que países como Brasil, Argentina, Uruguai e Chile foram
submetidos a ditaduras militares. Em razão disso, embora preveja que “os
direitos de cada pessoa são limitados pelos direitos dos demais, pela
segurança de todos e pelas justas exigências do bem comum, numa
sociedade democrática”, tal previsão não ensejou costrangimento jurídico
àqueles regimes autoritários. Segundo Carlos Weis, ainda não se tornou
possível verificar se o funcionamento dos recentes mecanismos de
implementação do Sistema Regional terão força de se sobrepor aos
antidemocratas de plantão.

7. Como é feita a divisão estrutural da CADH?


A CADH é composta por 82 artigos, divididos em três partes: Parte I –
sobre os deveres dos Estados e Direitos Protegidos, Parte II – sobre os meios
de proteção e Parte III – sobre disposições gerais e transitórias. Apesar de
remeter aos direitos humanos em geral, trata apenas dos direitos civis e
políticos.

8. Quais são as obrigações dos Estados neste contexto?


O primeiro dos deveres dos Estados é a obrigação de respeitar os direitos
e as liberdades reconhecidos na Convenção e de garantir seu livre e pleno
exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição (art. 1º). O segundo
destes deveres é adotar disposições de direito interno (medidas legislativas
ou de outra natureza) que forem necessárias para tornar efetivos direitos e
liberdades (art. 2º).
Com base nesses deveres a Corte vem responsabilizando os Estados não
só pela violação de direitos humanos materiais, mas também pelo
descumprimento do direito de garantia, notadamente quando o Estado falha
gravemente quanto à tomada de medidas legislativas, administrativas ou
judiciais para dar eficácia aos direitos previstos. Rompe-se, com isso, a lógica
tradicional da classificação dos direitos humanos, segundo a qual os direitos
civis e políticos ensejam abstenção estatal. “Na realidade, o que se vê é o texto
americano filiar-se ao pensamento atual, segundo o qual o importante é
garantir a observância máxima de todos os direitos humanos, pouco importanto
a natureza jurídica ou a classificação de tais medidas”.

9. A partir de que momento foi tutelado o direito à vida na CADH? É


possível a pena de morte?
O direito à vida é tutelado desde o momento da concepção (art. 4º), o que
vem sendo utilizado como argumento para manutenção da criminalização do
aborto. Diferentemente da DADDH, que não proíbe pena de morte, tortura e
escravidão, a CADH dispõe que nos países em que a pena de morte não tiver
sido abolida, esta poderá ser imposta apenas para delitos mais graves, após
sentença final de tribunal competente e em conformidade com a lei que
estabeleça tal pena, promulgada antes de o delito ter sido cometido.

178
A pena de morte não poderá ter sua aplicação estendida aos delitos aos
quais não se aplique atualmente (no momento de assinatura da Convenção) e,
nos Estados Partes que a tenham abolido, não poderá ser restabelecida.
Em nenhum caso poderá ser aplicada a delitos políticos ou comuns a
eles conexos. Também não deve ser imposta a pena de morte a pessoa, que,
no cometimento do delito, for menor de 18 anos, maior de 70, nem poderá ser
aplicada a mulher grávida. Além disso, toda pessoa condenada à morte tem
direito a solicitar anistia, indulto ou comutação da pena, os quais podem ser
concedidos em todos os casos. Enquanto tal pedido estiver pendente de
decisão perante a autoridade competente, a pena de morte não poderá ser
executada.
Existe um Protocolo Adicional à Convenção Americana referente à abolição
da pena de morte, o qual proscreve a pena de morte em qualquer hipótese,
mas abre possibilidade de o Estado-parte, no momento de ratificação ou
adesão, declarar que se reserva o direito de aplicá-la em tempo de guerra, de
acordo com o direito internaciona, por delitos sumamente graves de caráter
militar. Esse Protocolo foi ratificado pelo Brasil, com essa reserva, em 1996.

10. Permite-se relativizar a vedação do trabalho forçado segundo a


CADH?
O art. 6º da Convenção veda a submissão de qualquer pessoa à
escravidão ou à servidão, que são proibidas em todas suas formas, assim
como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres. Ademais, ninguém deve ser
constrangido a executar trabalho forçado ou obrigatório. Porém, em países em
que se prevê pena privativa de liberdade acompanhada de trabalho obrigatório,
não se afasta o cumprimento desta pena, determinada por juiz ou tribunal
competente, desde que não afete a dignidade, nem a capacidade física e
intelectual do recluso.
A convenção explicita o que não se considera trabalho forçado ou
obrigatório: (i) serviço militar ou qualquer serviço nacional estabelecido em seu
lugar, nos lugares em que se admite escusa de consciência, (ii) serviço exigido
em caso de perigo ou calamidade que ameacem a existência ou bem-estar da
comunidade, (iii) trabalho ou serviço que faça parte das obrigações cívicas
normais.

11. A CADH trata em seus dispositivos a respeito da assistência jurídica?


A garantia da assistência jurídica é prevista expressamente apenas no
âmbito criminal. No seu art. 8.2, e, a CADH trata do “’direito irrenunciável de ser
assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não,
segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio nem
nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei’. Embora o Pacto não
estabeleça a existência de órgão estatal de assistência jurídica, avança em
relação ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que fala tão-
somente em defensor ex officio e gratuito (art. 14, 3, d)”.

12. Aponte julgamentos do STF pautados em dispositivos da CADH.


O STF analisou o art. 7º da CADH que estabelece que ninguém deve ser
detido por dívidas, salvo mandados de autoridade judiciária competente
expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar. Neste
julgamento do Supremo, decidiu-se que a previsão constitucional que permitia

179
a prisão do depositário infiel exigiria regulamentação infraconstitucional e as
normas estritamente legais sobre o tema foram derrogadas quando da
subscrição do Pacto San José (norma de caráter supralegal) – súmula
vinculante nº 25.
O art. 13, CADH, que contempla a liberdade de pensamento e expressão,
foi um fundamento utilizado pelo STF para declarar não recepcionada pela
CF/88 a exigência de diploma de jornalismo para o exercício da profissão
(Opinião Consultiva 5/85).
Na recente concessão da medida cautelar na ADPF 347, acerca do Estado
de Coisas Inconstitucional no que diz respeito à situação carcerária no país, o
Min. Edson Fachin reconheceu a aplicabilidade imediata dos arts. 9.3 do Pacto
dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos
Humanos, determinando a todos os juízes e tribunais que passem a realizar
audiências de custódia, no prazo máximo de 90 dias, de modo a viabilizar o
comparecimento do preso perante a autoridade judiciária em até 24 horas
contadas do momento da prisão
Obs.: o duplo grau de jurisdição previsto no art. 8º do Pacto não foi
reconhecido pelo STF, nos casos de competência criminal originária dos
Tribunais cujas decisões não podem ser questionadas por recursos de
cognição ampla. Ademais, na AP 470 afastou a garantia do duplo grau
impedindo o desmembramento de processos de acusados não detentores de
foro por prerrogativa de função, em contrariedade com o precedente da Corte
Interamericana do Caso Barreto Leiva

13. O que é princípio do ‘non-refoulement’, previsto na CADH?


A Convenção estipula em seu art. 22, 8 que ninguém pode ser expulso do
território do Estado do qual for nacional nem ser privado do direito de nele
entrar. Em nenhum caso o estrangeiro pode ser expulso ou entregue a outro
país, seja ou não de origem, onde seu direito à vida ou à liberdade pessoal
esteja em risco de violação em virtude de sua raça, nacionalidade, religião,
condição social ou suas opiniões políticas, consagrando o non-refoulement
– não devolução para locais em que sejam ameaçados. Não obstante,
segundo André de Carvalho Ramos, “o princípio da proibição do rechaço,
entretanto, não poderá ser invocado se o refugiado for considerado, por
motivos sérios, um perigo à segurança do país, ou se for condenado
definitivamente por um crime ou delito particularmente grave, constitua ameaça
para a comunidade do país no qual ele se encontre”.
O princípio do non-refoulement está previsto também no art. 7º da Lei
9474/97 (Estatuto dos Refugiados).

14. Como são tratados os direitos econômicos, sociais e culturais na


CADH?
O art. 26 versa sobre estes direitos, ressaltando o compromisso dos
Estados Partes de adotar providências, tanto no âmbito interno, como mediante
cooperação internacional, para alcançar progressivamente a plena efetividade
dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação,
ciência e cultura, constantes na Carta da OEA, na medida dos recursos
disponíveis, por via legislativa ou outros meios apropriados. A CADH deu
ênfase à implementação dos direitos civis e políticos, apenas mencionando

180
vago compromisso com o desenvolvimento progressivo dos DESC,
posteriormente, regulados do Protocolo de San Salvador.

15. É possível a suspensão de direitos nela previstos?


O art. 27 permite a suspensão das obrigações assumidas, em caso de
guerra, perigo público ou outra emergência que ameace a independência
ou segurança do Estado e desde que tais disposições não sejam
incompatíveis com as demais obrigações impostas pelo Direito
Internacional e não encerrem discriminação.
O Estado que fizer uso desse direito deve comunicar os demais Estados
Partes, por meio do Secretário Geral da OEA, sobre quais disposições foram
suspensas, motivo e data de encerramento.
Não podem ser suspensos direitos de/a: reconhecimento à personalidade
jurídica, vida, integridade pessoal, escravidão e servidão, legalidade e
retroatividade, liberdade de consciência e religião, proteção da família, nome,
criança, nacionalidade e políticos. Também não se permite a suspensão das
garantias indispensáveis para a proteção de tais direitos.
Obs.: Além dessa previsão geral de suspensão, são direitos que trazem
restrições cabíveis, ínsitas à norma ou aquelas previstas em lei: a) liberdade de
consciência e religião (art. 12); b) direito de reunião (art. 15); c) liberdade de
associação (art. 16); d) direito à propriedade privada (art. 21); e) circular e
escolher residência (art. 22), entre outros.

16. O que é cláusula federal?


O art. 28 disciplina que, quando o Estado Parte for constituído como
federal, o governo nacional deve cumprir todas as disposições da Convenção.
Não se exonera o Estado Federal de cumprir a obrigação em todo seu
território, isto porque é o Estado como um todo que possui personalidade
jurídica de Direito Internacional, não podendo alegar óbice de direito interno
para se eximir de sua responsabilidade (Opinião Consultiva 16/99).

17. O que é o princípio da norma mais favorável ao indivíduo?


O art. 29, que traz as normas de interpretação, consagra este princípio,
prevendo que, entre duas ou mais normas (independentemente de serem
nacionais ou internacionais), cabe ao intérprete adotar a norma mais
favorável/protetiva ao indivíduo.

18. Qual a diferença da CADH em relação ao Pacto de Direitos Civis e


Políticos no que diz respeito à vedação da prisão civil?
Enquanto o PIDCP prevê a proibição da prisão por descumprimento de
obrigação contratual (prisão civil) sem trazer NENHUMA exceção, a CADH traz
a exceção do devedor de alimentos. A partir disso, questiona-se se a aplicação
do princípio da norma mais favorável nessa hipótese ensejaria a
inconvencionalidade da previsão no ordenamento interno acerca da prisão do
devedor de alimentos. A dificuldade em se sustentar esse argumento se dá
pela natureza jurídica da obrigação de alimentar, pois não seria espécie de
obrigação contratual.

19. Quando houve adesão do Brasil ao Protocolo de San Salvador?

181
O Protocolo entrou em vigor em 1999. Foi ratificado pelo Brasil em 2006,
sem qualquer reserva ou declaração.

20. Como é prevista a efetivação dos DESC no Protocolo?


O Protocolo, já em seu preâmbulo, ressalta a estreita relação existente
entre os direitos econômicos, sociais e culturais e os direitos civis e políticos,
uma vez que as diferentes categorias de direitos constituem um todo
indissolúvel que protege a dignidade humana. No art. 1º, o Protocolo
estabelece a obrigação de adotar medidas necessárias, de ordem interna ou
por meio de cooperação entre os Estados, até o máximo dos recursos
disponíveis e levando em conta o grau de desenvolvimento do Estado, a fim de
conseguir, progressivamente e de acordo com a legislação interna, a plena
efetividade dos direitos nele reconhecidos. O art. 2º fala ainda da obrigação de
os Estados Partes adotarem as medidas legislativas ou de outra natureza que
forem necessárias para tornar efetivos estes direitos (nos mesmos termos que
a CADH em seus primeiros dispositivos). “Disso decorre que os signatários do
Tratado não podem quedar-se inertes, pois progressividade de implementação
dos direitos econômicos, sociais e culturais não equivale a dizer que se trate de
quimeras, ou que o Estado possa, livremente, decidir quanto ao tempo e modo
pelo qual vai dar efeito às disposições com as quais se comprometeu”.
Inclusive, em diversos momentos o Protocolo pormenoriza quais são as
obrigações jurídicas precisas dos Estados no campo dos direitos econômicos,
sociais e culturais, o que acaba por facilitar a sua exigibilidade, sobretudo pela
via judicial. Segundo Carlos Weis, “o documento inova ao direcionar a própria
organização das ações estatais nesse campo [saúde], que devem ser
prioritariamente dirigidas à população socialmente vulnerável, a permitir o
ingresso com ações de natureza coletiva para exigir o cumprimento da norma
ou frear políticas sanitárias equivocadas”.

21. O Protocolo traz a possibilidade de restrição dos direitos nele


previstos?
Em seu art. 5º o Protocolo prevê que “os Estados-Partes só poderão
estabelecer restrições e limitações ao gozo e exercício dos direitos
estabelecidos neste Protocolo mediante leis promulgadas com o objetivo de
preservar o bem-estar geral dentro de uma sociedade democrática, na medida
em que não contrariem o propósito e razão dos mesmos”. A despeito da
utilização de expressões vagas como “bem-estar geral” e “sociedade
democrática”, referido dispositivo pode servir como fundamento para impedir
que uma legislação interna, promulgada em desrespeito às regras de
democracia política prevaleça sobre o Tratado.

22. É possível restringir o direito de greve e de organização sindical?


O próprio art. 8º, que regulamenta os direitos sindicais, prevê a
possibilidade de limitações e restrições de tais direitos, desde que (i) previstas
somente em lei; (ii) somente aquelas próprias a uma sociedade democrática e
necessárias para salvaguardar a ordem pública, proteger a saúde ou a moral
pública e os direitos ou liberdades dos demais. Prevê, inclusive, a limitação
desse direito no âmbito das Forças Armadas e da Polícia e de outros serviços
públicos essenciais.

182
23. Quais são as diretrizes fixadas para a implementação do ensino, a
garantir o direito de educação?
Além de prever medidas de implementação, o Protocolo vincula ao direito
de educação o desenvolvimento da personalidade humana, o fortalecimento
do respeito pelos direitos humanos, pelo pluralismo ideológico, pelas
liberdades fundamentais, pela justiça e pela paz.
O art. 13 do Protocolo assegura o direito à educação. Para alcançar este
direito, os Estados reconhecem que: (i) o ensino de primeiro grau deve ser
obrigatório e acessível a todos gratuitamente; (ii) o ensino de segundo grau,
em suas diferentes formas, inclusive o ensino técnico e profissional de segundo
grau, deve ser generalizado e tornar-se acessível a todos, pelos meios que
forem apropriados e, especialmente, pela implantação progressiva do ensino
gratuito; (iii) o ensino superior deve tornar-se igualmente acessível a todos, de
acordo com a capacidade de cada um, pelos meios que forem apropriados e,
especialmente, pela implantação progressiva do ensino gratuito.
Atente-se também para promoção ou intensificação, na medida do possível,
do ensino básico para as pessoas que não tiverem recebido ou terminado o
ciclo completo de instrução do 1º grau e para o estabelecimento de programas
de ensino diferenciado, para pessoas com deficiência, com a finalidade de
proporcionar instrução e a formação destas pessoas.

24. Quais são os grupos vulneráveis especialmente tutelados?


A partir do art. 16, o Protocolo passa a apresentar os direitos garantidos em
seu âmbito a grupos vulneráveis. O art. 16 cuida do direito das crianças e das
medidas de proteção que sua condição de menor requer. No art. 17, lembra-se
das pessoas idosas, com especial proteção na velhice. Por fim, o art. 18 trata
da proteção das pessoas com deficiência, para que recebam atenção especial,
com finalidade de permitir que alcance máximo desenvolvimento de sua
personalidade.

25. Quais são os meios de proteção encampados no Protocolo? Quais


são os direitos tutelados que permitem o acesso à Comissão, quando
violados?
O art. 19 do Protocolo cuida dos meios de proteção. São os relatórios
periódicos e, em certos casos, a possibilidade de petição das vítimas à
Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Se os direitos sindicais
(excetuado o direito de greve) e o direito à educação forem violados por ação
imputável a Estado Parte do Protocolo é possível a utilização do sistema de
petições individuais (regulado pelos art. 44 a 51 e 61 a 69 da CADH).
Obs.: Sem prejuízo disso, a Comissão pode formular observações e
recomendações que considerar pertinentes sobre a situação dos DESC nos
Estados Partes, podendo incluí-las no Relatório Anual à Assembleia Geral
ou num relatório especial, conforme considerar mais apropriado

Bibliografia:
Pontos DPE-SP
WEIS, Carlos. Direitos humanos contemporâneos. 2.ed. São Paulo: Malheiros,
2012. – trechos entre aspas

183
PONTO 25
Convenção Interamericana para prevenir e punir a tortura. Protocolo à
Convenção Americana sobre direitos humanos relativo à abolição da pena
de morte. Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a
violência contra mulher. Convenção Interamericana sobre o
desaparecimento forçado de pessoas. Convenção Interamericana sobre a
eliminação de todas as formas de discriminação contra pessoas
portadoras de deficiência.

1. A convenção interamericana para prevenir e punir a tortura já integra o


ordenamento jurídico nacional?
A convenção foi adotada pela Assembleia Geral da OEA em Cartagena das
Índias, na Colômbia, em 9 de dezembro de 1985. Foi assinada pelo Brasil em
24 de janeiro de 1986; foi aprovada pelo Congresso Nacional por meio do
Decreto Legislativo n. 5, de 31 de maio de 1989, e foi ratificada em 20 de julho
de 1989. Finalmente, foi promulgada pelo Decreto n. 98.386, de 9 de dezembro
de 1989.

2. O que é tortura, de acordo com a convenção?


Todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou
sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio
de intimidação, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou
com qualquer outro fim. Entender-se-á também como tortura a aplicação, sobre
uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a
diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou
angústia psíquica. Exclui-se expressamente do conceito de tortura, entretanto,
as penas ou sofrimentos físicos ou mentais que sejam unicamente
consequência de medidas legais ou inerentes a elas, contanto que não incluam
a realização dos atos ou aplicação dos métodos mencionados na definição de
tortura.

3. Há previsão acerca do direito das vítimas no referido tratado?


Nos arts. 8º e 9º, a Convenção determina a adoção de medidas com foco
na pessoa vítima de tortura. Nesse sentido, os Estados devem assegurar que
qualquer pessoa que denunciar ter sido submetida a tortura terá o direito de
que o caso seja examinado de maneira imparcial. Se houver denúncia ou razão
fundada para supor que ato de tortura tenha sido cometido no âmbito de sua
jurisdição, o Estado deve garantir que suas autoridades procederão de ofício e
imediatamente à realização de uma investigação sobre o caso, iniciando, se for
cabível, o respectivo processo penal. Esgotado o procedimento jurídico interno
do Estado, inclusive em âmbito recursal, o caso poderá ser submetido a
instâncias internacionais, cuja competência tenha sido aceita por esse Estado.
Os Estados se comprometem ainda a estabelecer, em suas legislações
nacionais, normas que garantam compensação adequada para as vítimas do
delito de tortura

4. Há alguma eficácia jurídica em declaração obtida comprovadamente


mediante tortura?
O art. 10 determina que nenhuma declaração que se comprove haver sido
obtida mediante tortura poderá ser admitida como prova em um processo,

184
salvo em processo instaurado contra a pessoa ou pessoas acusadas de haver
obtido prova mediante atos de tortura – mas unicamente como prova de que,
por esse meio, o acusado obteve tal declaração.

5. A cláusula “aut dedere aut judicare” – ou entrega ou julga – tem


previsão no tratado?
Sim, há previsão expressa a respeito. E mais, os arts. 11, 13 e 14 versam
sobre a extradição. Os Estados Partes da Convenção devem tomar as medidas
necessárias para conceder a extradição de toda pessoa acusada de delito de
tortura ou condenada por esse delito, em conformidade com suas legislações
nacionais sobre extradição e suas obrigações internacionais na matéria.
Ademais, os delitos de tortura devem ser considerados incluídos entre os
delitos que são motivo de extradição em todo tratado de extradição celebrado
entre Estados Partes e os Estados se comprometem a incluir o delito de tortura
como caso de extradição em todo tratado de extradição que celebrarem entre
si no futuro. Caso receba de outro Estado Parte, com o qual não tiver tratado,
uma solicitação de extradição, todo Estado que sujeitar a extradição à
existência de um tratado poderá considerar a Convenção como a base jurídica
necessária para a extradição referente ao delito de tortura

6. Há mandado de criminalização expresso no tratado?


Sim. Os arts. 6º e 7º versam sobre medidas a serem tomadas pelos
Estados Partes da Convenção, para prevenir e punir a tortura no âmbito de sua
jurisdição. Nesse sentido, devem assegurar que todos os atos de tortura e as
tentativas de praticar atos dessa natureza sejam considerados delitos penais,
estabelecendo penas severas para sua punição, que levem em conta sua
gravidade, constituindo mais um mandado internacional de criminalização.
Obrigam-se também a tomar medidas efetivas para prevenir e punir outros
tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, no âmbito de sua
jurisdição. Ademais, devem tomar medidas para que, no treinamento de polícia
e de outros funcionários públicos responsáveis pela custódia de pessoas
privadas de liberdade, provisória ou definitivamente, e nos interrogatórios,
detenções ou prisões, ressalte-se de maneira especial a proibição do emprego
da tortura, bem como de evitar outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos
ou degradantes.

7. Há diferença entre a lei nacional sobre a tortura e o tratado?


Sim. Primeiro, a lei nacional é mais ampla em relação ao sujeito ativo, pois
não é necessário que haja envolvimento, mesmo que indireto, de agente do
Estado. No tratado, há necessidade de que o ato de tortura advenha de
servidor público ou, ao menos, que estes, podendo impedi-la, não o façam (ou
ainda, que haja instigação/induzimento por parte de servidores). Ou seja, sem
esse fator, de tortura não se trata, de acordo com a convenção. Além disso, o
conceito de tortura no tratado é bem mais amplo do que na lei brasileira
(entender-se-á por tortura [no tratado] todo ato pelo qual são infligidos
intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com
fins de investigação criminal, como meio de intimidação, como castigo pessoal,
como medida preventiva, como pena ou com qualquer outro fim. Entender-se-á
também como tortura a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a
anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou

185
mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica], o que atraiu a
crítica de Carlos Weis, no sentido de ser o conceito da convenção amplo
demais.

8. Protocolo à Convenção Americana sobre direitos humanos relativo à


abolição da pena de morte. Discorra a respeito.
Foi assinado pelo Brasil em 7 de junho de 1994. O Congresso Nacional o
aprovou por meio do Decreto Legislativo n. 56, de 19 de abril de 1995, e o
instrumento de ratificação foi depositado em 13 de agosto de 1996. Apôs-se
reserva, entretanto, para assegurar ao Estado brasileiro o direito de aplicar a
pena de morte em tempo de guerra, de acordo com o Direito Internacional, por
delitos sumamente graves de caráter militar. Finalmente, o Protocolo foi
promulgado por meio do Decreto n. 2.754, de 27 de agosto de 1998.
O Protocolo é composto, além do seu preâmbulo, por apenas quatro
artigos. No primeiro deles, fica estabelecido que os Estados Partes não podem
aplicar em seu território a pena de morte a nenhuma pessoa submetida a sua
jurisdição.
No art. 2º, determina-se que não se admitirá reserva alguma ao Protocolo.
Entretanto, os Estados podem declarar, no momento de ratificação ou adesão,
que se reservam o direito de aplicar a pena de morte em tempo de guerra, de
acordo com o Direito Internacional, por delitos sumamente graves de caráter
militar, o que foi feito pelo Brasil

9. Aproveitando o gancho, discorra a respeito da pena de morte no direito


internacional dos direitos humanos.
Conforme registra André de Carvalho Ramos, há três fases da regulação
jurídica internacional da pena de morte: “A primeira fase é a da convivência
tutelada, na qual a pena de morte era tolerada, porém com estrito regramento”,
o qual abrangia, segundo o autor, limites como o da natureza do crime,
vedação da ampliação, devido processo legal penal e vedações circunstancias.
“A segunda fase do regramento internacional da pena de morte é a do
banimento com exceções. (...) A terceira – e tão esperada – fase do regramento
jurídico da pena de morte no plano internacional é a do banimento em qualquer
circunstância”. Podemos dizer que o Brasil se encontra, atualmente, na
“segunda fase” da regulação internacional da pena de morte, eis que, embora
tenha aderido ao bloco normativo internacional de repressão à pena de morte
(Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o seu Segundo Protocolo
Facultativo; Convenção Americana de Direitos Humanos e o seu Protocolo
Adicional), reservou-se no direito de aplicar a pena capital no caso de guerra
declarada, nos termos do art. 5º, XLVII, a, da CF.
Indicativo, ainda, do rumo à “terceira fase” da regulação internacional da
pena de morte, é o fato de os Tribunais Penais Internacionais ad hoc para a ex-
Yugoslávia (1993) e para Ruanda (1994) não terem aplicado a pena capital,
que tampouco está prevista no Estatuto de Roma (de 1998) do Tribunal Penal
Internacional.
Para os países que, a exemplo do Brasil, estão parados na “segunda fase”
da regulação internacional da pena de morte (recordemos: banimento da pena
capital com exceções), o Direito Internacional dos Direitos Humanos impõe
uma condicionante intransponível, qual seja, a de que o sujeito tenha praticado
um “crime grave” (neste sentido, o art. 6.2 do PIDCP e o art. 4.1 da CADH). E o

186
que pode ser considerado um crime de natureza “grave”? No âmbito da
proteção global dos direitos humanos, o Comitê de Direitos Humanos da ONU
já estabeleceu que crimes graves são aqueles que “impliquem em perdas de
vidas humanas”. A jurisprudência do sistema global é seguida pelo sistema
regional americano, o que pode ser visto no próprio precedente formado no
Caso Hilarie vs. Trinidad e Tobago, em que, mesmo diante de um crime contra
a vida (homicídio doloso), a Corte Interamericana censurou a aplicação da
pena de morte (muito embora, advirta-se, a principal faceta da decisão
relaciona-se à “obrigatoriedade” da pena capital).
No Caso Hilaire e outros vs. Trinidad e Tobago, a importância da decisão
da Corte Interamericana está no “repúdio à aplicação obrigatória da pena de
morte sem individualização penal e possibilidade de indulto, graça ou anistia.

10. Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência


contra mulher. Qual o caso mais emblemático da Corte IDH envolvendo o
tratado?
Trata-se do caso González e Outras (“Campo Algodonero”) Vs. México. As
jovens Laura Berenice Ramos Monárrez (17 anos), Cláudia Ivette González (20
anos) e Esmeralda Herrera Monreal (15 anos) desapareceram,
respectivamente, nos dias 25/09/2001, 10/10/2001 e 29/10/2001, em Ciudad
Juárez, no México. Devidamente cientificado, os únicos expedientes adotados
pelo Estado consistiram em elaborar os registros de desaparecimento, os
cartazes de busca e a tomada de declarações dos familiares, além de ter
procedido com envio de ofício à Polícia Judiciária. Não há prova de que as
autoridades tenham efetivamente feito circular os cartazes de busca nem
tampouco que efetuaram uma investigação mais profunda sobre o caso.
Consta nos autos, porém, a informação de que funcionários do Estado teriam
se comportado de forma indiferente e até mesmo discriminatória diante do
contexto evidenciado, eis que haviam feito comentários sobre a vida censurável
e o comportamento sexual das vítimas, deduzindo poderiam não estar
“desaparecidas”, mas sim em companhia de seus namorados ou outros
parceiros. No dia 06/06/2011, as vítimas foram encontradas numa plantação de
algodão (daí, pois, o título do Caso: “Campo Algodonero”; em português:
“Campo Algodoeiro”), com gravíssimas marcas de estupro e violência sexual
cometidas com extrema crueldade.

11. Que decidiu a Corte IDH?


A Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu que os
homicídios praticados decorreram de violência de gênero, tratando-se, pois, de
“feminicídio”, e concluiu que “é preocupante o fato de que alguns destes crimes
parecem apresentar altos graus de violência, incluindo sexual, e que em geral
foram influenciados, tal como aceita o Estado, por uma cultura de
discriminação contra a mulher, a qual, segundo diversas fontes probatórias,
incidiu tanto nos motivos como na modalidade dos crimes, bem como na
resposta das autoridades. Nesse sentido, cabe destacar as respostas
ineficientes e as atitudes indiferentes documentadas em relação à investigação
destes crimes, que parecem haver permitido que se tenha perpetuado a
violência contra a mulher em Ciudad Juárez”. A Corte Interamericana declarou
o México responsável pela violação de inúmeros direitos humanos, tais como:
(a) obrigação geral de garantia prevista no art. 1.1 e à obrigação de adotar as

187
disposições do direito interno contempladas no artigo 2 (ambos da CADH), bem
como às obrigações contempladas no art. 7.b e 7.c da Convenção de Belém do
Pará, em detrimento das vítimas; (b) obrigação de investigar e,
consequentemente, de garantir o direito à vida, à integridade pessoal e à
liberdade pessoal das vítimas, acarretando com isso, também, violação aos
direitos de acesso à justiça e à proteção judicial previstos nos artigos 8.1 e 25.1
da Convenção Americana e artigos 1.1 e 2 da mesma, e também artigos 7.b e
7.c da Convenção de Belém do Pará; (c) o dever de não discriminação; (d) os
direitos da criança – Esmeralda e Laura eram adolescentes; dentre outros.
Decidiu a Corte, também, que em memória das vítimas de homicídio por razões
de gênero, o Estado deveria erigir um monumento em Ciudad Juárez, na
plantação de algodão onde foram encontradas as vítimas, a ser revelado na
mesma cerimônia na qual reconheça publicamente sua responsabilidade
internacional, como forma de dignificá-las e como recordação do contexto de
violência que padeceram e que o Estado se compromete a evitar no futuro.

12. Quais são os pontos relevantes sobre o caso?


Foi a primeira vez, conforme anota André de Carvalho Ramos, que a Corte
Interamericana analisou a situação de violência estrutural de gênero; o Caso
Campo Algodonero representa, também, segundo Lucas Lixinski, “a primeira
vez em que um tribunal internacional reconheceu a existência de feminicídio
como crime”.
Ademais, em termos procedimentais, o México alegou a incompetência da
Corte Interamericana para analisar violações a respeito da Convenção de
Belém do Pará, aduzindo que a competência da Corte deve ser estabelecida
por “declaração especial” ou por “convenção especial”, ao que a Corte
respondeu que “a declaração especial para aceitar a competência contenciosa
da Corte segundo a Convenção Americana, levando em consideração o artigo
62 da mesma, permite que o Tribunal conheça tanto de violações à Convenção
como de outros instrumentos interamericanos que lhe concedem competência”,
ou seja, a Corte Interamericana possui competência para analisar violações de
outros tratados que compõem o sistema interamericano, a exemplo, pois, da
Convenção de Belém do Pará.
Por fim, importa destacar que Corte já estabeleceu que “nem toda violação
de um direito humano cometida em prejuízo de uma mulher leva
necessariamente a uma violação das disposições da Convenção de Belém do
Pará” (Caso Peroso e outros Vs. Venezuela).

13. E a Comissão IDH? Algum caso de repercussão?


Sim, o famoso caso Maria da Penha, que foi analisado somente pela
Comissão IDH.
Acerca do mérito, a Comissão reconheceu que o Poder Judiciário brasileiro
não chegou a proferir uma sentença definitiva sobre o caso depois de
dezessete anos da data dos fatos, cenário que se aproximaria da possível
impunidade definitiva pela ocorrência da prescrição, dificultando,
consequentemente, a vítima a obter o ressarcimento. Salientou ainda, a
Comissão, que as decisões judiciais internas neste caso “apresentaram uma
ineficácia, negligência ou omissão por parte das autoridades judiciais”,
configurando, pois, uma demora injustificada no julgamento do acusado, a
demonstrar, então, que o Estado não foi capaz de organizar sua estrutura para

188
garantir esses direitos. E conclui a Comissão, ao final, advertindo que a
tolerância do Brasil diante da violência contra a mulher não é exclusiva deste
caso, e sim uma pauta sistemática, tratando-se “de uma tolerância de todo o
sistema, que não faz senão perpetuar as raízes e fatores psicológicos, sociais
e históricos que mantêm e alimentam a violência contra a mulher”, ensejando,
pois, a consideração de que o Estado violou não apenas a obrigação de
processar e condenar, como também a de prevenir essas práticas degradantes
(art. 7 da Convenção de Belém do Pará c/c artigos 8 e 25 da CADH e sua
relação com o art. 1.1, também da CADH).
A decisão da Comissão resultou na criação da Lei 11343/2006,
denominada de Lei Maria da Penha

14. Qual a definição de violência contra a mulher no tratado?


Qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou
sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como
no privado.
A violência contra a mulher abrange a violência física, sexual ou
psicológica, quer tenha ocorrido no âmbito da família ou unidade doméstica ou
em qualquer outra relação interpessoal, em que o agressor conviva ou haja
convivido no mesmo domicílio que a mulher e que compreende, entre outros,
estupro, violação, maus-tratos e abuso sexual; quer no âmbito da comunidade
e seja perpetrada por qualquer pessoa

15. Qual o conceito de desaparecimento forçado na convenção


interamericana contra o desparecimento forçado de pessoas?
Trata-se da privação de liberdade de uma ou mais pessoas, seja de que
forma for, praticada por agentes do Estado ou por pessoas ou grupo de
pessoas que atuem com autorização, apoio ou consentimento do Estado,
seguida de falta de informação ou da recusa a reconhecer a privação de
liberdade ou a informar sobre o paradeiro da pessoa, impedindo assim o
acesso aos recursos legais e garantias processuais pertinentes.
Nota-se, então, que (i) há necessidade de o ato ser praticado pelo Estado
ou, ao menos, haver o seu apoio/consentimento e (ii) a simples falta de
informação já caracteriza o desaparecimento forçado, algo muito comum em
nosso país.
A convenção foi ratificada pelo Brasil em 2013 e o Congresso Nacional a
aprovou pelo rito do decreto legislativo sem a super maioria do art. 5 §3.

16. Como é tratada a prescrição do crime no tratado?


Há previsão de mandado de criminalização expresso da conduta de
desaparecimento forçado, bem como determina a sua imprescritibilidade penal,
salvo se o direito interno não autorizar. Em tal caso, deve o Estado utilizar o
maior prazo prescricional penal autorizado pelo direito doméstico.

17. Há alguma circunstância em que esteja autorizada a prática do


desaparecimento forçado?
Não. Há previsão expressa de sua vedação absoluta.

18. O Brasil tipificou a conduta de desaparecimento forçado? As figuras


típicas do abuso de autoridade e sequestro, p. ex., suprem a omissão?

189
Não. Até o presente momento inexiste a tipificação, embora existam
projetos de lei em tramitação (p. ex. PL 6240/2013) para criar o tipo. Destaque-
se que a combinação de tipos penais diversos para punir a conduta de
desaparecimento forçado não atende à convenção ora sob foco, conforme já
decidiu a Corte IDH no caso Palomino vs. Peru. Ademais, importa notar que a
Corte IDH qualifica o desaparecimento forçado como crime contra a
humanidade, com a característica do “jus cogens”, sendo conduta pluriofensiva
(por violar ao mesmo tempo diversos bens jurídicos) e de execução
permanente.

19. Qual o conceito de deficiência de acordo com a convenção


interamericana para a eliminação de todas as formas de discriminação
contra as pessoas portadoras de deficiência?
Restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou
transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades
essenciais da vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e
social.

20. É possível a aplicação de medidas afirmativas de acordo com a


convenção?
Sim. A discriminação é conceituada, na convenção, como toda
diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, antecedente de
deficiência, consequência de deficiência anterior ou percepção de deficiência
presente ou passada, que tenha o efeito ou propósito de impedir ou anular o
reconhecimento, gozo ou exercício por parte das pessoas portadoras de
deficiência de seus direitos humanos e suas liberdades fundamentais.
No entanto, a convenção diz que não constitui discriminação a diferenciação
ou preferência adotada pelo Estado para promover a integração social ou o
desenvolvimento pessoal dessas pessoas, desde que a diferenciação ou
preferência não limite em si mesma o seu direito à igualdade e que as pessoas
com deficiência não sejam obrigadas a aceitar tal diferenciação ou preferência.

21. A convenção admite a interdição?


Sim. Há previsão expressa de que não constituirá discriminação a previsão,
pela legislação interna, de declaração de interdição, quando for necessária e
apropriada para o bem-estar da pessoa com deficiência. O estatuto da pessoa
com deficiência, aparentemente, pode vir a entrar em choque com essa
previsão, embora haja previsão na lei da possibilidade de curatela da pessoa
com deficiência (sem usar o termo interdição).

PONTO 26
Reflexos do Direito Internacional dos Direitos Humanos no direito
brasileiro. Programa Nacional de Direitos Humanos I, II e III. Programa
Estadual de Direitos Humanos do Estado de São Paulo. Comissão
Nacional da Verdade: histórico, atribuições, legislação, audiências
públicas e relatórios.

Programa Nacional de Direitos Humanos I, II e III. Programa Estadual de


Direitos Humanos do Estado de São Paulo.

190
1. Discorra sobre a origem, natureza e evolução do conselho de defesa
dos direitos da pessoa humana.
O Conselho de Defesa dos Direitos Humanos é o nome dado no Brasil para
as instituições nacionais de direitos humanos, conceito extraído de diversos
documentos da ONU. Essas instituições nacionais são órgãos públicos
independentes dirigidos à proteção dos direitos humanos, mediante notícias de
violações, investigação e recomendação de ações concretas para proteção dos
direitos. As instituições nacionais foram discutidas, pela primeira vez, pelo
Conselho Econômico e Social da ONU, em 1946. Posteriormente, durante a
conferência mundial de direitos humanos em Viena (1993), houve a expressa
recomendação para que os Estados criassem uma instituição nacional de
direitos humanos (à época, o Brasil já havia instituído o seu conselho de
defesa). O Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana é órgão
colegiado, criado pela lei 4.319/64, sancionada poucos dias antes do golpe
militar (31/03/1964). É composto por doze membros, cujo presidente é o
Secretário de Direitos Humanos. Suas duas principais atribuições são a de
receber notícias sobre violações de direitos humanos e investiga-las, bem
como promover estudos e recomendar ações temáticas para capacitação e
efetivação dos direitos humanos.
Ocorre que recentemente (junho/2014), a lei 4.319/64 foi revogada pela lei
nº 12.986/14 que transformou o Conselho de Defesa em Conselho Nacional
de Direitos Humanos, a fim de adimplir aos Princípios de Paris, mediante
instituição de um órgão estatal independente e autônomo para a proteção e
promoção dos direitos humanos, com possibilidade de credenciamento junto ao
Alto Comissariado das Nações Unidas.

2. Quais as críticas imputadas ao conselho de defesa dos direitos da


pessoa humana?
A principal crítica que se fazia ao conselho de defesa dos direitos da
pessoa humana era a ausência de independência e autonomia do órgão, uma
vez que o seu presidente era o próprio Secretário de Direitos Humanos, órgão
da Administração Direta Federal.

3. O que são os Princípios de Paris e qual sua relação com o conselho de


defesa brasileiro?
Em 1991 foi realizado em Paris o primeiro encontro internacional de
instituições nacionais para promoção e proteção dos direitos humanos. Na
ocasião foi publicada uma resolução pela Comissão de Direitos Humanos
(atual Conselho de Direitos Humanos da ONU), a qual foi atualizada em 1993,
estabelecendo princípios que deveriam reger as instituições nacionais. Tais
princípios, ficaram conhecidos como Princípios de Paris.
Os princípios de Paris determinam que a instituição nacional de direitos
humanos deve ser:
 órgão público, de alcance nacional
 com previsão na Constituição ou em lei
 dotado de independência e orçamento próprio, não podendo ser
comandado pelo governo.
 com representação pluralista
 para atuar na prevenção e também nos casos de violação de direitos
humanos.

191
Se o órgão cumprir todos os requisitos acima, simultaneamente, poderá se
credenciar junto ao Alto Comissariado da ONU, no Comitê Internacional de
Coordenação das Instituições Nacionais de Direitos Humanos, mediante
aprovação do Subcomitê de credenciamento, com o intuito de promover o
intercâmbio de experiências, capacitação e aprofundamento da proteção de
direitos humanos nos Estados.
A relação dos Princípios de Paris com o conselho de defesa brasileiro, até
há pouco existente é a de que a instituição brasileira não cumpria
simultaneamente os requisitos previstos na resolução da ONU para ser
equiparada a uma instituição nacional, especialmente porque não havia
independência, uma vez que o presidente do conselho era o próprio Secretário
de Direitos Humanos, ligado à administração direta federal.

4. O que são os Programas Nacionais de Direitos Humanos? Qual a


origem? Qual a natureza jurídica?
É verdade comum que os direitos humanos não se concretizaram para
todos os brasileiros do século XXI.
Diante de tais discrepâncias, que não afetam apenas o Brasil, criou-se a
recomendação internacional de elaborar programas nacionais de direitos
humanos, como um primeiro passo para a concretização de tais direitos.
Trata-se de uma plano de ação nacional de promoção e proteção de
direitos humanos, rompendo com o anterior paradigma de universalização
progressiva, sujeita a reserva do possível. Os programas possuem natureza
jurídica de políticas públicas.
A origem do programa nacional encontra-se assentada na Declaração e
Programa de Ação da Conferência Mundial de Direitos Humanos de Viena de
1993, organizada pela ONU (item 71)
71. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos recomenda que cada
Estado pondere a oportunidade da elaboração de um plano de ação nacional
que identifique os passos através dos quais esse Estado poderia melhorar a
promoção e a proteção dos Direitos Humanos.
Em suma, os programas buscam criam um espaço de discussão e
elaboração de uma política pública específica voltada aos direitos humanos.

5. Qual a competência para elaboração dos programas nacionais? Qual a


sua missão? Há participação da sociedade civil? O PNDH possui força
vinculante?
No Brasil, a competência administrativa comum para realizar políticas
públicas de implementação de direitos humanos é comum a todos os entes
federados (art. 23, X, CF). Consequentemente, é possível termos programas
de direitos humanos em âmbito federal, estadual e municipal.
A missão dos programas em nível nacional, estadual e municipal é mapear
os problemas referentes aos direitos humanos e, simultaneamente, estipular e
coordenar os esforços para a superação das deficiências e implementação dos
direitos.
Quanto à questão da participação da sociedade civil, verifica-se que esta é
elementar ao próprio programa que pressupõe a oitiva da opinião pública tanto
no processo de mapeamento das deficiências quanto no de apontamento de
mecanismos de implementação. Ressalta-se que todos os PNDH no Brasil, até

192
hoje (são 3) contaram com ampla participação da sociedade civil (consultas e
debates)
Os programas de direitos humanos não possuem força vinculante, pois
advêm de mero decreto regulamentar (dar fiel execução às leis e às normas
constitucionais), editado à luz do art. 84, IV, da CF. Contudo, serve como
orientação para as ações governamentais, podendo o legislador ou
administrador ser questionado por condutas incompatíveis com os termos do
PNDH.

6. Quais as peculiaridades do PNDH-3 que o diferem dos programas


antecessores. Cite os seus eixos orientadores e explica a forma de
implementação das ações estratégicas.
Inicialmente, cumpre ressaltar que o PNDH-1 (1996) teve como foco a
proteção de direitos civis, especialmente no tocante à impunidade e à violência
policial.
O PNDH-2 (2002), por sua vez, concentrou-se nos direitos sociais, acerca
da desigualdades e carência do mínimo existencial para grande parte da
população brasileira.
O PNDH-3 (2009) rompe com o critério de continuidade dos planos
anteriores e adota seis eixos orientadores20:
1. Interação democrática (Estado x Sociedade Civil)  instrumento de
fortalecimento da democracia participativa (uma das características do Estado
Constitucional Democrático); criação de um Conselho Nacional de Direitos
Humanos (instituição nacional brasileira, a ser credenciada junto ao Alto
Comissariado da ONU – Comitê Internacional de Coordenação das Instituições
Nacionais de Direitos Humanos.
2. Desenvolvimento e Direitos Humanos  efetivação do modelo de
desenvolvimento sustentável, caracterizado pela inclusão social e econômica,
desenvolvimento ambientalmente equilibrado e tecnologicamente responsável,
cultural e religiosamente diverso, participativo e não discriminatório.
3. Universalizar direitos em um contexto de desigualdade  fomento a
aquisição da cidadania plena (Defensoria Pública como importante instrumento
de emancipação do cidadão).
4. Segurança pública, acesso à justiça e combate a violência 
a. Democratização e modernização do sistema de segurança pública;
b. Combate a violência institucionalizada, com ênfase na erradicação da
tortura e redução da letalidade policial e carcerária;
c. Modernização da política de execução penal, priorizando aplicação de
penas e medidas alternativas à prisão.
d. Promoção de um sistema de justiça mais acessível, ágil e efetivo
(acesso à justiça propriamente dito – 3ª onda renovatória; Cappelletti)
5. Educação e cultura em Direitos Humanos  fortalecimento de uma
cultura em direitos (serviço público, escolas, família e demais instituições
formadoras da personalidade dos cidadãos).
6. Direito a memória e verdade 
20
OBS. Técnica mnemônica para os eixos orientadores: INTER-DESENVOLVIMENTO
UNIVERSAL DE SEGURANÇA, EDUCAÇÃO E MEMÓRIA.
Para maior aprofundamento ler o resumo no Dropbox https://www.dropbox.com/home/Material
%20complementar/Direitos%20Humanos%20artigos%20variados?preview=PNDH+3.docx

193
a. Reconhecimento da memória e da verdade como direito humano da
cidadania e dever do estado;
b. Preservação da memória histórica e a construção pública da verdade;
c. Modernização da legislação relacionada com a promoção do direito à
memória e à verdade.
Quanto à implementação do PNDH-3, verifica-se que cada ação
estratégica incumbe a um ou mais de um órgão governamental, o que evita que
o programa seja visto como mera carta de intenções. Inclusive, foi criado um
Comitê de Acompanhamento e Monitoramento do PNDH-3, presidido pelo
Secretário de Direitos Humanos e estabelecida a possibilidade de criação de
subcomitês temáticos.

7. Quais as polêmicas que se desenvolveram em torno do PNDH-3?


O PNDH-3 inovou em sua forma redacional, aproximando seus enunciados
da linguagem adotada pelos movimentos de direitos humanos no Brasil e pela
sociedade civil, em geral. Assim, a técnica de escrita empregada no programa
causou a impressão de afastamento da abstratividade própria de
recomendações, favorecendo a interpretação de implementações iminentes.
Essa sensação gerou ampla reação negativa na mídia e inclusive de alguns
juristas mais conservadores21.
Os temas que mais geraram polêmica foram:
- descriminalização do aborto
- laicização do Estado (proibição de símbolos religiosos em repartições
públicas)
- responsabilidade social dos meios de comunicação (protestos contra
ranking de emissoras comprometidas (ou não) com os direitos humanos),
penas de perda de concessão do serviço público.
- conflitos sociais no campo (na reforma agrária o inconformismo foi em
relação a exigência de mediação com os ocupantes antes do pronunciamento
judicial nas ordens de reintegração de posse).
- repressão política na ditadura militar.
Diante das críticas, o governo voltou atrás e determinou a eliminação de
duas ações estratégicas no PNDH-3 (abolição de símbolos religiosos e ranking
das emissoras de comunicação) e nas demais críticas, alterou os enunciados,
neutralizando seus efeitos.
Esse recuo do governo federal evidencia a polêmica em torno dos direitos
humanos, demonstrando que ainda resta um longo caminho até se atingir uma
sociedade justa e plural.

7. Qual a relação entre o PNDH-3 e o Conselho de Defesa dos Direitos da


Pessoa Humana?
O PNDH-3 assumiu o compromisso do Estado e da sociedade civil (eixo
interação democrática) de instituir um Conselho Nacional de Direitos Humanos
(em substituição ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana),
obedecendo os Princípios de Paris, para fins de credenciamento junto ao Alto
Comissariado das Nações Unidas.

21
Ives Gandra tem vários vídeos no youtube criticando severamente o PNDH-3.

194
8. Quais são os principais aspectos inovadores trazidos pela lei nº
12.986/2014? É possível afirmar que ela cumpre os princípios de Paris?
A lei nº 12.986/14 seguiu a orientação do PNDH-3 e criou, em substituição
ao até então vigente Conselho de Defesa de Direitos Humanos, o Conselho
Nacional de Direitos Humanos.
Com a nova estruturação dada pela recente lei, o Conselho se tornou mais
democrático, pois ampliou a participação civil (dos 22 membros, 11 são
representantes da sociedade civil), além de se tornar mais forte
institucionalmente, ante a sua desvinculação da administração direta (o
secretário de direitos humanos, nomeia um secretário especial de direitos
humanos para compor o conselho nacional). Também há expressa disposição
legal acerca de dotação orçamentária própria, o que reforça a independência
do órgão. Assim, vislumbra-se que o Conselho Nacional cumpre
simultaneamente os Princípios de Paris e poderá se credenciar junto ao Alto
Comissariado da ONU (Comitê Internacional de Cooperação de Instituições
Nacionais de Direitos Humanos), na qualidade de instituição nacional de
direitos humanos.

9. Fale sobre o programa estadual de direitos humanos.


 PEDH: o primeiro Programa Estadual de Direitos Humanos (PEDH) foi
adotado no Estado de São Paulo, pelo Decreto n. 42.209, de 15 de setembro
de 1997. A Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania foi designada para
coordenar as iniciativas governamentais ligadas ao PEDH, bem como presidir
um Comitê de monitoramento da implementação. Baseia-se em 5 princípios:
1. garantia dos direitos humanos de todas as pessoas;
2. os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais são
indissociáveis;
3. as violações dos direitos humanos têm muitas causas, de ordem
internacional, política, econômica, social, cultural e psicológica;
4. o estudo e pesquisa da natureza e das causas das violações de direitos
humanos são indispensáveis para a formulação e implementação de políticas e
programas de combate à violência e discriminação e de proteção e promoção
dos direitos humanos; e finalmente
5. a proteção dos direitos humanos e a consolidação da democracia
dependem da cooperação de todos – governo e sociedade civil - tanto na fase
de formulação quanto na fase de implementação, e monitoramento e avaliação
das políticas e programas de direitos humanos.

Comissão Nacional da Verdade: histórico, atribuições, legislação,


audiências públicas e relatórios.

1. Qual a definição e os antecedentes históricos da comissão nacional da


verdade?
A Comissão Nacional da Verdade foi criada pela lei nº 12.528/11 para
apurar as graves violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 05 de
outubro de 1988.
Pode ser apontado como precedente internacional a condenação que o
Brasil sofreu na Corte IDH no ano de 2010, por ocasião do julgamento do caso
Gomes Lund e Outros x Brasil.

195
Na oportunidade, a corte decidiu que o povo brasileiro tinha direito à
verdade e à memória histórica referente ao período ditatorial, declarando a
incompatibilidade da lei de anistia com as disposições da CADH,
especialmente por não permitir a investigação e responsabilização civil e
criminal dos agentes públicos responsáveis pelas graves violações de direitos
humanos.
É de ressaltar que a incompatibilidade das leis de anistia com a CADH é
jurisprudência firme na Corte IDH, podendo ser citados os seguintes
precedentes: Barrios Altos x Peru (2001), Almonacid Arellano x Chile (2006), La
Cantuta x Peru (2006) e Gomes Lund e outros x Brasil (2010).
É verdade que a comissão nacional da verdade não é a primeira criada em
âmbito nacional que objetiva reparar os abusos cometidos durante o período
ditatorial. Antes, já existiu a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos
Políticos, bem como a Comissão de Anistia. Contudo, pode-se afirmar sem
dúvidas que a CNV é o mecanismo mais abrangente e efetivo até hoje criado
em solo brasileiro, a fim de reconstruir a verdade histórica de período que
abrange toda a ditadura militar.

2. O que distingue a Comissão Nacional de Verdade da Comissão


Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos? E a Comissão de Anistia,
no que consiste?
Tanto a comissão de mortos e desaparecidos políticos, como a comissão
de anistia são antecedentes históricos da comissão nacional da verdade.
A comissão de anistia era vinculada ao Ministério da Justiça, portanto, não
era um organismo independente, tal como a comissão nacional da verdade. Foi
instalada em 2001, por meio de Medida Provisória, com a missão de analisar
os pedidos de indenização formulado por pessoas que foram impedidas de
exercer atividades econômicas por motivação exclusivamente política entre
1946 e 1988. Percebe-se que tanto a sua estrutura (órgão vinculado à
administração direta) quanto a sua missão (concessão de indenização) são
bem menos abrangentes quando comparadas com a CNV.
Já a comissão especial sobre mortos e desaparecidos (CEMDP) foi
instituída por lei (L. 9.140/95). Trata-se da primeira vez que o Estado reconhece
as responsabilidades pelos atos ilícitos praticados durante o regime militar.
Com essa lei, surgiu para as famílias a possibilidade de pleitearem os
atestados de óbitos de seus entes desaparecidos, que por força da lei, foram
considerados mortos. Além da certidão de óbito, as famílias também teriam
direito a indenização. A crítica que se faz a essa comissão é a de que não
procurou identificar e responsabilizar os agentes estatais envolvidos nos crimes
praticados durante o período de exceção. Como produto dos trabalhos da
CEMDP foi publicado o livro Direito à Memória e à Verdade, que consistiu em
importante passo dado para a reconstrução da história da ditadura brasileira.
Contudo, percebe-se que a CNV foi dotada de maior amplitude e
independência buscando recontar a história do país, dar soluções a casos
emblemáticos, apontar os responsáveis pelos crimes cometidos contra a
humanidade e proferir conclusões e recomendações institucionais e
normativas.

3. Como se dá o processo de audiência públicas na Comissão Nacional


da Verdade?

196
As audiências públicas da CNV podem ser temáticas, como a realizada na
Universidade de Brasília sobre o caso Anísio Teixeira, que está sendo
investigado pela Comissão da própria universidade ou ainda com relatos de
episódios específicos investigados pelo colegiado, como aconteceu no Paraná,
onde houve audiência específica sobre a chacina no Parque Nacional de Foz
do Iguaçú. Foram percorridas tanto cidades de interior, como Três Passos (RS)
e Porto Franco (MA), como as maiores metrópoles brasileiras (Rio de Janeiro e
São Paulo).
As audiências públicas da CNV são realizadas em parceria com entidades
da sociedade civil e outras comissões da verdade.

4. Como foi dividido o relatório final da Comissão?


O relatório final da Comissão Nacional da Verdade foi entregue nesta
quarta-feira (10) em cerimônia oficial no Palácio do Planalto à presidenta Dilma
Rousseff. Dividido em três volumes, o relatório é o resultado de dois anos e
sete meses de trabalho da Comissão Nacional da Verdade, criada pela lei
12528/2011.
Ao longo de sua existência, os membros da CNV colheram 1121
depoimentos, 132 deles de agentes públicos, realizou 80 audiências e sessões
públicas pelo país, percorrendo o Brasil de norte a sul, visitando 20 unidades
da federação (somadas audiências, diligências e depoimentos).
A CNV realizou centenas de diligências investigativas, entre elas dezenas
de perícias e identificou um desaparecido: Epaminondas Gomes de Oliveira,
um camponês que militava no Partido Comunista e morreu numa dependência
do Exército em Brasília, cidade onde foi enterrado longe da família.
Para tornar mais acurados os relatos de graves violações de direitos
humanos, a CNV percorreu, entre novembro de 2013 e outubro de 2014,
acompanhada de peritos e vítimas da repressão, sete unidades militares e
locais utilizados pelas Forças Armadas no passado para a prática de torturas e
outras graves violações de direitos humanos.
Esses sete locais visitados estão listados no primeiro de oito relatórios
preliminares de pesquisa publicados pela CNV entre fevereiro e agosto de
2014.
A CNV visitou ainda a Casa Azul, um centro clandestino de tortura que o
Exército manteve dentro de uma unidade do DNER (atualmente a área é do
DNIT), em Marabá. Os relatórios e estas diligências, além de servirem como
prestação de contas do trabalho da CNV em diversos temas, ajudaram, e
muito, a divulgar o papel da comissão para toda a sociedade.
O relatório final é dividido em três volumes:

VOLUME I – As atividades da CNV, as graves violações de direitos


humanos, conclusões e recomendações.
O primeiro volume do relatório enumera as atividades realizadas pela CNV
na busca pela verdade, descreve os fatos examinados e apresenta as
conclusões e recomendações dos membros da CNV para que os fatos ali
descritos não voltem a se repetir. O volume é assinado coletivamente pelos
seis membros do colegiado: José Carlos Dias, José Paulo Cavalcanti Filho,
Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro, Pedro Dallari e Rosa Cardoso.

197
O volume I se divide em cinco partes e 18 capítulos. A primeira parte
contém dois capítulos que tratam da criação da comissão e das atividades da
CNV.
Em seguida, na parte II, em mais quatro capítulos, o relatório final aborda
as estruturas do Estado empregadas e as graves violações de direitos
humanos. É nesta parte do relatório que são contextualizadas as graves
violações, apresentadas as estruturas repressivas e seus procedimentos, a
atuação da repressão no exterior e as alianças repressivas no cone sul e a
Operação Condor.
Na parte III, o volume I do relatório traz os métodos e práticas de graves
violações de direitos humanos. Em seis capítulos elas são conceituadas e
explica-se como cada uma delas foi aplicada no Brasil no período ditatorial. Na
apresentação do volume, os membros da CNV alertam: “Evitamos
aproximações de caráter analítico, convencidos de que a apresentação da
realidade fática, por si, na sua absoluta crueza, se impõe como instrumento
hábil para a efetivação do direito à memória e à verdade histórica”.
O relatório, na sua quarta parte, em cinco capítulos, trata de casos
emblemáticos, da Guerrilha do Araguaia, das instituições e locais associados
com as graves violações. É nesta parte que a CNV dedica um capítulo
exclusivamente sobre a autoria das graves violações de direitos humanos,
indicando nomes de mais de 300 agentes públicos e pessoas a serviço do
Estado envolvidas em graves violações de direitos humanos. Neste capítulo
também é analisado o papel do poder judiciário na ditadura.
A quinta parte do volume I traz as conclusões dos seis membros da CNV
sobre o que foi apurado e as recomendações do colegiado para que não se
repitam as graves violações de direitos humanos em nosso país.

VOLUME II – Textos Temáticos.


O segundo volume do relatório final da Comissão Nacional da Verdade
reúne um conjunto de nove textos produzidos sob a responsabilidade de alguns
membros da CNV. Parte desses textos têm origem nas atividades
desenvolvidas em grupos de trabalho constituídos no âmbito da Comissão,
integrando vítimas, familiares, pesquisadores e interessados nos temas
investigados pelos GTs.
Neste bloco, o relatório trata, portanto, de graves violações de direitos
humanos em segmentos, grupos ou movimentos sociais. Sete textos mostram
como militares, trabalhadores organizados, camponeses, igrejas cristãs,
indígenas, homossexuais e a universidade foram afetados pela ditadura e a
repressão e qual papel esses grupos tiveram na resistência.
É no volume II do relatório que é abordada também a relação da sociedade
civil com a ditadura. Um capítulo analisa o apoio civil à ditadura, notadamente
de empresários. Outro, a resistência de outros setores da sociedade às graves
violações de direitos humanos.

Volume III – Mortos e Desaparecidos Políticos.


O terceiro volume é integralmente dedicado às vítimas. Nele, 434 mortos e
desaparecidos políticos têm reveladas sua vida e as circunstâncias de sua
morte, “tragédia humana que não pode ser justificada por motivação de
nenhuma ordem”, como afirma a apresentação do relatório final da CNV.

198
“Os relatos que se apresentam nesse volume, de autoria do conjunto dos
conselheiros, ao mesmo tempo que expõem cenários de horror pouco
conhecidos por milhões de brasileiros, reverenciam as vítimas de crimes
cometidos pelo Estado brasileiro e por suas Forças Armadas, que, no curso da
ditadura, levaram a violação sistemática dos direitos humanos à condição de
política estatal”, afirmam os membros da CNV no relatório.

5. Quais as principais conclusões da Comissão Nacional da Verdade?


A Comissão chegou às seguintes conclusões:
Comprovação das graves violações de direitos humanos: A comissão
pode concluir com certeza pela prática de sistemáticas detenções ilegais e
arbitrárias de tortura, cometimento de execuções, desaparecimentos forçados e
ocultação de cadáveres por agentes do Estado brasileiro. A CNV confirmou 434
mortes e desaparecimentos (191 mortos, 210 desaparecidos e 33
desaparecidos com a localização dos restos mortais). Os números não
correspondem ao total de mortes.
Comprovação do caráter generalizado e sistemático das graves
violações de direitos humanos: durante os 21 anos de ditadura militar, a
repressão e eliminação de opositores políticos se converteu em política de
Estado, operacionalizada através de cadeias de comando. A CNV refuta,
integralmente, a explicação até hoje dada pelas forças armadas de que as
graves violações de direitos humanos se constituíram em alguns poucos atos
isolados, gerados pelo voluntarismo de alguns poucos militares.
Ocorrência de crimes contra a humanidade: os crimes contra a
humanidade são identificados como atos desumanos, em um contexto de
ataque contra a população civil, de forma generalizada e sistematizada, com o
conhecimento da abrangência desses ataques por parte de seus autores.
Nesse ínterim, durante os trabalhos a comissão concluiu que os inúmeros
desaparecimentos forçados, tortura e assassinatos estão revestidos dos
elementos contextuais acima destacados e constituíram crimes contra a
humanidade.
Persistência do quadro de graves violações de direitos humanos: A
CNV concluiu que o cenário de graves violações de direitos humanos persiste
até os dias atuais. Embora não ocorra mais em contexto de repressão política,
a prática de detenções ilegais e arbitrárias, tortura, execuções,
desaparecimentos forçados e mesmo ocultação de cadáveres não é estranha à
realidade brasileira contemporânea.

6. A finalização dos trabalhos da comissão preenche todos os requisitos


da condenação do Brasil no caso da Guerrilha do Araguaia?
O caso da Guerrilha do Araguaia (Gomes Lund e outros x Brasil) foi levado
à Corte IDH, por intermédio da CIDH, em razão da ineficiência/negligência do
Estado brasileiro em investigar os inúmeros desaparecimentos forçados
(estima-se que foram 80 as pessoas desaparecidas) de militantes do PC do B
que organizaram uma base de resistência ao governo militar, próximo a região
do Araguaia.
Em 2010, sobreveio sentença condenando o Brasil pela violação de direitos
humanos, impondo uma série de medidas a serem tomadas, as quais
destacam-se:

199
- investigação penal dos fatos, com respectiva responsabilização de seus
autores.
- localização dos restos mortais das vítimas, a serem entregues aos
familiares.
- oferecimento de tratamento médico e psicológico para as vítimas
- realização de ato público de reconhecimento de responsabilidade
internacional.
- tipificação do crime de desaparecimento forçado
- reconstrução da memória história do fato denominado Guerrilha do
Araguaia.
Assim, verifica-se que a CNV foi um importante passo dado pelo governo
brasileiro para adimplir às determinações da Corte IDH, contudo, não esgotou
todos os requisitos da condenação. Em verdade, todas as recomendações
feitas pela CNV reafirmam o que já havia sido estabelecido internacionalmente,
mas o Estado brasileiro ainda não providenciou a investigação penal dos
responsáveis, as diligências para localização e entrega de restos mortais 22,
realização de ato público de reconhecimento internacional e tipificação do
crime de desaparecimento forçado (lembrar do caso Amarildo, e da não
ratificação da Convenção Americana sobre desaparecimento forçado).

7. O que é e quais os componentes da chamada Justiça de Transição?


A justiça de transição lança o delicado desafio de como romper com o
passado autoritário e viabilizar o ritual de passagem à ordem democrática.
Apresenta os seguintes componentes: o direito a verdade, o direito a justiça, o
direito a reparação e o direito a reformas institucionais.
Constata-se na experiência de transição brasileira, um processo ainda
inacabado. Até hoje apenas foi assegurado o direito a reparação, por meio de
indenizações pagas às vítimas e familiares e também o direito à verdade,
efetivado com a recente entrega do relatório final dos trabalhos da Comissão
Nacional de Verdade. Contudo, o direito à justiça (que compreende a
investigação e responsabilização civil e criminal dos autores dos crimes), bem
como o direito à reforma das instituições públicas (desmilitarização das polícias
estaduais, tipificação do delito de desaparecimento forçado, introdução de
formação humanitária nos cursos de preparação e atualização de policiais e
agentes do sistema penitenciário) ainda não foram providenciados pelo Estado
brasileiro. A implementação dos mecanismos da justiça de transição é condição
para romper com a injustiça permanente e continuada que compromete e
debilita a construção democrática.

8. Quais as recomendações da Comissão Nacional da Verdade?


[1] Reconhecimento, pelas Forças Armadas, de sua responsabilidade
institucional pela ocorrência de graves violações de direitos humanos
durante a ditadura militar (1964 a 1985)- deve recair a responsabilidade
individual sobre os agentes públicos que atuarem ilicitamente e além disse o
reconhecimento da responsabilidade institucional das forças armadas por esse
quadro terrível. A simples não negação da ocorrência das violações não é

22
A CNV realizou exumação no caso Epaminondas, mas não conseguiu localizar os restos
mortais de todas as vítimas, recomendando, inclusive, que essa atividade não fosse
interrompida.

200
suficiente. O reconhecimento deve ser claro e direto, constituindo elemento
essencial à reconciliação nacional.
[2] Determinação, pelos órgãos competentes, da responsabilidade
jurídica – criminal, civil e administrativa – dos agentes públicos que
deram causa às graves violações de direitos humanos ocorridas no
período investigado pela CNV, afastando-se, em relação a esses agentes,
a aplicação dos dispositivos concessivos de anistia inscritos nos artigos
da Lei no 6.683. A extensão da anistia a agentes públicos que participaram de
crimes contra a humanidade é incompatível com o direito brasileiro e com a
ordem jurídica internacional. Crimes contra a humanidade são imprescritíveis e
não passíveis de anistia.
[3] Proposição, pela administração pública, de medidas administrativas e
judiciais de regresso contra agentes públicos autores de atos que geraram
a condenação do Estado em decorrência da prática de graves violações de
direitos humanos.
[4] Proibição da realização de eventos oficiais em comemoração ao
golpe militar de 1964.
[5] Reformulação dos concursos de ingresso e dos processos de
avaliação contínua nas Forças Armadas e na área de segurança pública, de
modo a valorizar o conhecimento sobre os preceitos inerentes à democracia
e aos direitos humanos.
[6]Modificação do conteúdo curricular das academias militares e
policiais, para promoção da democracia e dos direitos humanos.
[7]Retificação da anotação da causa de morte no assento de óbito de
pessoas mortas em decorrência de graves violações de direitos humanos
[8] Retificação de informações na Rede de Integração Nacional de
Informações de Segurança Pública, Justiça e Fiscalização (Rede Infoseg)
e, de forma geral, nos registros públicos.
[9]Criação de mecanismos de prevenção e combate à tortura
[10]Desvinculação dos institutos médicos legais, bem como dos
órgãos de perícia criminal, das secretarias de segurança pública e das
polícias civis.
[11] Fortalecimento das Defensorias Públicas: durante os trabalhos, a
comissão percebeu que as dificuldades de acesso dos presos à Justiça facilitou
que fossem vítimas de abusos. Esse quadro subsiste até os dias de hoje, razão
pela qual recomenda-se o fortalecimento das defensoras públicas. O contato
pessoal do defensor público com o preso nos distritos policiais e no sistema
prisional é a melhor garantia para o exercício pleno do direito de defesa e para
a prevenção de abusos, torturas e maus-tratos.
[12] Dignificação do sistema prisional e do tratamento dado ao preso:
Abolir procedimentos vexatórios pelos quais passam crianças, idosos,
mulheres e homens ao visitarem seus familiares encarcerados. É inconcebível
obrigar essas pessoas a ficarem totalmente nuas e terem seus órgãos genitais
inspecionados. A abolição dessa prática deve ser proibida em todo território
nacional.
[13] Instituição legal de ouvidorias externas no sistema penitenciário e
nos órgãos a ele relacionados.
[14] Fortalecimento de Conselhos da Comunidade para
acompanhamento
dos estabelecimentos penais.

201
[15] Garantia de atendimento médico e psicossocial permanente às
vítimas de graves violações de direitos humanos.
[16] Promoção dos valores democráticos e dos direitos humanos na
educação.
[17] Apoio à instituição e ao funcionamento de órgão de proteção e
promoção dos direitos humanos.
[18] Revogação da Lei de Segurança Nacional.
[19] Aperfeiçoamento da legislação brasileira para tipificação das
figuras penais correspondentes aos crimes contra a humanidade e ao
crime de desaparecimento forçado.
[20] Desmilitarização das polícias militares estaduais: a vinculação das
polícias militares às forças armadas, emanou da legislação proveniente da
ditadura militar. Deve haver a unificação das forças de segurança estaduais,
extirpando o seu funcionamento a partir de atributos militares, o que é
incompatível com o exercício da segurança pública em um Estado
Constitucional Democrático, cujo foco deve ser o cidadão. (lembrar que essa
recomendação já havia sido feita em 2012 ao Brasil, por ocasião do 2º ciclo da
RPU, a qual o Brasil respondeu dizendo que não iria cumprir).
[21] Extinção da Justiça Militar estadual: ao desvincular as polícias
estaduais das forças armadas, deve ser abolida a justiça militar em âmbito
estadual, fazendo persistir apenas no âmbito federal, para julgamento dos
crimes praticados por integrantes das forças armadas.
[22] Exclusão de civis da jurisdição da Justiça Militar federal.
[23] Supressão, na legislação, de referências discriminatórias das
homossexualidades.
[24] Alteração da legislação processual penal para eliminação da
figura
do auto de resistência à prisão: essa medida visa abolir que as lesões e
mortes decorrentes de operações policiais sejam registradas como autos de
resistência ou resistência seguida de morte, que servem para ocultar as
torturas e execuções sumárias realizadas pelas polícias e especialmente pelos
batalhões de operação especial (Bope, Rota).
[25] Introdução da audiência de custódia, para prevenção da prática
da tortura e de prisão ilegal.
[26] Estabelecimento de órgão permanente com atribuição de dar
seguimento às ações e recomendações da CNV.
[27] Prosseguimento das atividades voltadas à localização,
identificação e entrega aos familiares ou pessoas legitimadas, para
sepultamento digno, dos restos mortais dos desaparecidos políticos.
[28] Preservação da memória das graves violações de direitos
humanos.
[29] Prosseguimento e fortalecimento da política de localização e
abertura dos arquivos da ditadura militar.

PONTO 27
Direitos Humanos em espécie e grupos vulneráveis. Direitos Humanos
das minorias e de vítimas de injustiças históricas: Mulher, Negro, Criança
e Adolescente, Idoso, Pessoa com Deficiência, Pessoas em situação de
rua, Povos Indígenas, LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis,

202
transexuais e transgêneros), Quilombolas, Sem-teto, Sem-terra,
Imigrantes e Refugiados.

1. Estabeleça a evolução da igualdade, sob o aspecto dos grupos sociais


vulneráveis.
Durante o período do Absolutismo, era necessário evitar os excessos, o
abuso e o arbítrio do poder. Nesse sentido, os direitos humanos surgem como
reação e resposta aos excessos do regime absolutista, na tentativa de impor
controle e limites a abusiva atuação do Estado. A não atuação do Estado
significava liberdade. Era nesse cenário que se introduzia a concepção formal
de igualdade, como um dos elementos a demarcar o Estado de direito liberal.
Contudo, essa universalização na atribuição e no eventual gozo dos direitos de
liberdade não vale para os direitos sociais, diante dos quais os indivíduos são
iguais só genericamente, mas não especificamente. Torna-se necessário
repensar o valor da igualdade, a fim de que as especificidades e as diferenças
sejam observadas e respeitadas. Somente mediante essa nova perspectiva é
possível transitar-se da igualdade formal para a igualdade material ou
substantiva.
Essa nova perspectiva concretizou-se com o processo de multiplicação dos
direitos humanos. Esse processo envolveu não apenas o aumento dos bens
merecedores de tutela, mediante a previsão dos direitos a prestação, como
também envolveu a extensão da titularidade de direitos. A partir da extensão da
titularidade de direitos, há o alargamento do próprio conceito de sujeito de
direito, que passou a abranger, alem do individuo, as entidades de classe, as
organizações sindicais, os grupos vulneráveis e a própria humanidade. Esse
processo implicou ainda a especificação do sujeito de direito, tendo em vista
que, ao lado do sujeito genérico e abstrato, delineia-se o sujeito de direito
concreto, visto em sua especificidade e na concretude de suas diversas
relações. Isto é, do ente abstrato, genérico, destituído de cor, sexo, idade,
classe social, dentre outros critérios, emerge o sujeito de direito concreto,
historicamente situado, com especificidades e particularidades relativas a
gênero, idade, etnia, raça, etc.
Consolida-se, gradativamente, um aparato normativo especial de proteção
endereçado a proteção de pessoas ou grupo de pessoas particularmente
vulneráveis, que merecem proteção especial. Os sistemas normativos
internacional e nacional passam a reconhecer direitos endereçados às
crianças, aos idosos, às mulheres, às pessoas com deficiência, às pessoas
vítimas de discriminação racial, dentre outros.

2. No âmbito internacional, quais foram as normativas que surgiram como


forma de proteção da igualdade material?
Na esfera internacional, uma primeira vertente de instrumentos nasceu com
a vocação de proporcionar uma proteção geral, genérica e abstrata, refletindo o
próprio temor da diferença (que na era Hitler foi justificativa para o extermínio e
a destruição). Esses instrumentos que tratavam o sujeito de direito com
abstração e generalidade foram: a Declaração Universal de 1948 e pelos
Pactos da ONU de Direitos civis e políticos e de Direitos econômicos, sociais e
culturais de 1966.
No processo de especificação do sujeito de direito no âmbito internacional
foram elaboradas a convenção internacional sobre a eliminação de todas as

203
formas de discriminação racial, a convenção internacional sobre a eliminação
de todas as formas de discriminação contra a mulher, a convenção sobre os
direitos da criança, dentre outros. Esse segundo momento, de proteção
especial, teve como objetivo assegurar que o individuo tivesse suas
particularidades nas relações sociais devidamente garantidas.

3. No Direito Brasileiro, como foi o processo de especificação do sujeito


de direito?
No âmbito interno, o processo de especificação do sujeito de direito
ocorreu fundamentalmente com a Constituição de 1988, que, por exemplo, traz
capítulos específicos dedicados a criança, ao adolescente, ao idoso, aos
índios, bem como dispositivos específicos voltados às mulheres, à população
negra, às pessoas com deficiência, entre outros. Consolida-se o valor da
igualdade material, com respeito à diferença e à diversidade. Essa nova
concepção, ainda tão recente, apresenta duas vertentes básicas, que visam à
implementação do direito à igualdade. São elas: o combate à discriminação e a
promoção da igualdade. Na ótica contemporânea, a concretização do direito à
igualdade implica a implementação dessas duas estratégias, que não podem
ser dissociadas.

4. O que se entende por discriminação? A constituição federal trata desse


tema?
Discriminação significa toda distinção, exclusão, restrição ou preferência
que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo
ou exercício, em igualdade de condições, dos direitos humanos e liberdades
fundamentais, nos campos político, econômico, social, cultural e civil. Logo,
discriminação significa sempre desigualdade, ou seja, há discriminação quando
somos tratados igualmente, em situações diferentes; e diferentemente, em
situações iguais.
A CF, em seu artigo 5, XLI e XLII, estabelece que a “lei punirá qualquer
discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”,
acrescentando que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e
imprescritível, sujeito a pena de reclusão, nos termos da lei”. Para dar
cumprimento ao referido dispositivo surgiu a lei 7.716/89, que definiu os crimes
resultantes de preconceito de raça ou cor; objeto posteriormente ampliado pela
lei 9.459/77, abarcando etnia, religião ou procedência nacional.

5. Qual é o papel da Defensoria Pública na defesa dos grupos sociais


vulneráveis?
A defensoria pública é uma instituição essencial a função jurisdicional do
Estado, incumbindo-lhe a missão de garantir o acesso à justiça, orientando e
defendendo os necessitados. Estes são todos aqueles socialmente vulneráveis,
coexistindo a figura dos necessitados econômicos, que não possuem recursos
para litigar em juízo sem prejuízo do sustento próprio e de sua família, bem
como, de necessitados organizacionais ou jurídicos, que se caracterizam pela
carência de recursos jurídicos, ou seja, grupos essencialmente vulneráveis,
como consumidores, idosos, crianças e adolescentes, entre outros.
A Constituição Federal assegura como direito individual e coletivo de toda
pessoa o acesso à ordem jurídica justa, acesso esse que é garantido pela
Defensoria Pública. Assim, onde houver necessitados jurídicos ou econômicos

204
a Defensoria intervirá, por meio de proteção individual ou coletiva. Quanto à
defesa coletiva dos necessitados, a Defensoria se pauta em instrumentos
normativos como a lei da ação civil pública (lei 7.437/85), na lei complementar
80/94, que organiza a defensoria publica federal e estabelece normas gerais às
dos estados.

6. Como defender a universalidade dos direitos humanos diante da


existência de direitos humanos específicos para grupos vulneráveis?
A universalidade dos direitos sociais pode ser entendida no contexto
mais amplo da dignidade humana, a que toda pessoa tem direito. Desta forma,
ainda que aqueles direitos digam respeito somente a certos grupos sociais,
isso se deve ao fato de se almejar a garantia efetiva, e para todas as pessoas,
de um nível de vida condizente com aquele princípio moral universal. Em
consequência, a promoção dos direitos econômicos, sociais e culturais, com a
adoção de políticas voltadas a determinados setores da sociedade - atualmente
denominados "grupos vulneráveis" - é condição necessária para o respeito
pleno da universalidade dos direitos humanos, os quais não se realizam
integralmente sem a adoção das medidas previstas nos documentos que
compõem o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Não há mais como
pensar em respeito aos direitos humanos sem que o Estado tome as
providências que lhe compete, em vista a assegurar a elevação das condições
de vida ao que se convencionou chamar de padrão mínimo de dignidade
humana.

7. Quais são as dimensões da igualdade?


Há duas dimensões da igualdade. A primeira dimensão consiste na
proibição de discriminação indevida e, por isso, é denominada vedação da
discriminação negativa. A segunda dimensão trata do dever de impor uma
determinada discriminação para a obtenção da igualdade efetiva, e por isso é
denominada “discriminação positiva” (ou “ação afirmativa”).
Na segunda dimensão, concretiza-se a igualdade por meio de normas que
favoreçam aqueles que estejam em situações de indevida desvantagem social
(os vulneráveis) ou imponham um ônus maior aos que estejam numa situação
de exagerada vantagem social.
Atende-se a igualdade quando, por exemplo, a CF/88 prevê o IGF, que exige
dos que tenham exagerada vantagem uma contribuição adicional ao Estado.
No caso dos vulneráveis ou dos que estejam em indevida desvantagem social,
atende-se a igualdade quando o há previsão de vagas destinadas aos
deficientes em concurso público, que possuem imensas desvantagens sociais
em relação aos demais.
Obs.: existem várias categorias e classificações na doutrina e na jurisprudência
brasileira acerca da igualdade que é importante mencionar, uma vez que é
comum em prova oral o examinador usar termos diferentes para o mesmo
instituto jurídico e confundir o candidato.
a) Igualdade liberal ou formal: igualdade perante a lei;
b) Igualdade social ou material: busca a igualdade material com a
distribuição adequada dos bens em toda sociedade. Recentemente a igualdade
material deixou de ser apenas uma igualdade socioeconômica para ser
também uma igualdade de reconhecimento de identidades próprias. (igualdade
orientada pelos critérios de gênero, orientação sexual, idade, raça, etnia, entre

205
outros critérios). A lógica do reconhecimento da identidade é a constatação de
que, mesmo em condições materiais dignas, há grupos cujo fator de identidade
os leva a situações de vulnerabilidade, como, no caso do gênero, a situação de
violência doméstica que atinge também as mulheres de classes abastadas.
c) Igualdade perante a lei: de aplicação da lei, dirigida ao Poder Executivo
e Judiciário;
d) Igualdade na lei: dirigida ao legislador;
e) Igualdade geral: mesmo que igualdade formal;
f) Igualdade específica: mesmo que igualdade material;
g) Igualdade de direito ou de jure: mesmo que igualdade formal;
h) Igualdade de fato: material;
i) “discrimination against” é aquela que almeja diferenciar com finalidade
preconceituosa ou estigmatizante;
j) discrimination between” é aquela que visa diferenciar para igualar.
k) Justiça distributiva (John Rawls): atividade de superação das
desigualdades fáticas entre os indivíduos, por meio de uma intervenção estatal
de realocação dos bens e oportunidades existentes na sociedade em benefício
da coletividade.

8. O tratamento diferenciado, aceito pela Constituição brasileira, exige o


cumprimento de terminados requisitos para ser legítimo, diga quais são
eles.
Podemos resumir esses requisitos, baseados na lição de Bandeira de
Mello, aos seguintes:
1) existência de vínculo de pertinência lógica entre o elemento de
diferenciação (discrímen) escolhido pela lei e a situação objetiva analisada;
2) a diferenciação atende aos objetivos do Estado Democrático de Direito;
e
3) a diferenciação realizada pela lei atende ao princípio da
proporcionalidade.

9. O Estado possui dois instrumentos para promover a igualdade e


eliminar a discriminação injusta: o instrumento repressivo e o elemento
promocional. No que consistem esses instrumentos?
Através da repressão o estado desestimulará a discriminação,
criminalizando as condutas de racismo, preconceito, punindo com rigor a ações
de discriminação e atos atentatórios aos direitos e liberdades fundamentais.
Exemplo: Constituição de 1988- a lei punirá qualquer discriminação atentatória
dos direitos e liberdades fundamentais (art. 5º, XLI) e ainda a prática do
racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão,
nos termos da lei (art. 5º, XLII).
O instrumento promocional busca assegurar a inclusão social dos grupos
vulneráveis ou inferiorizados. Esse instrumento abriu porta, não só no Brasil,
mas em outros Estados, para a implementação de ações afirmativas ou
políticas de discriminação positiva.

10. No que consistem as ações afirmativas?


Para assegurar a igualdade não basta apenas proibir a discriminação,
mediante legislação repressiva. São essenciais as estratégias promocionais

206
capazes de estimular a inserção e inclusão desses grupos socialmente
vulneráveis nos espaços sociais. Neste ínterim, situam-se as ações afirmativas.
Essas ações constituem medidas especiais e temporárias que, buscando
remediar um passado discriminatório, objetivam acelerar o processo de
igualdade, com o alcance da igualdade substantiva por parte de grupos
vulneráveis, como as minorias étnicas e raciais, as mulheres, dentre outros.
São políticas compensatórias adotadas para aliviar e remediar as condições
discriminatórias que cumprem uma finalidade pública decisiva ao projeto
democrático, que é a de assegurar a diversidade e a pluralidade social. Por
meio delas, transita-se da igualdade formal para a igualdade material e
substantiva.

11. Dê exemplos de ações afirmativas previstas no âmbito interno.


A CF de 1988 estabelece importantes dispositivos que demarcam a busca
da igualdade material, como a proteção do mercado de trabalho da mulher,
mediante incentivos específicos; a reserva de percentual de cargos e empregos
públicos para pessoas portadoras de deficiência; a “lei das cotas”, que reserva
percentual mínimo pra candidatura de mulheres nas eleições municipais, além
da lei que regulamenta as eleições em âmbito nacional também estabelece
percentuais como forma de ação afirmativa. Adicione-se também o programa
nacional de direitos humanos, que faz expressão alusão às políticas
compensatórias e o programa nacional de ações afirmativas, adotado em 2002.

12. Quais instrumentos internacionais, ratificados pelo Brasil, preveem


discriminação positiva?
No plano jurídico internacional, a adoção das ações afirmativas está
prevista pelas convenções internacionais sobre a eliminação de todas as
formas de discriminação racial e sobre a eliminação de todas as formas de
discriminação contra a mulher, ambas ratificadas pelo Brasil. Com efeito, a
convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial
prevê a possibilidade de discriminação positiva mediante a adoção de medidas
especiais de proteção ou incentivo a grupos ou indivíduos, com vistas a
promover sua ascensão na sociedade, até um nível de equiparação com os
demais.
A convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação
contra a mulher também permite a discriminação positiva , pela qual os estados
podem adotar medidas especiais temporárias, com vistas a acelerar o processo
de equalização de status entre homens e mulheres. Tais medidas cessarão
quando alcançado o seu objetivo. São, portanto, medidas compensatórias para
remediar as desvantagens históricas, aliviando o passado discriminatório
sofrido por esse grupo social.

13. Quais tratados incorporados pelo Brasil incentivam a implantação de


políticas afirmativas?
• a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
Racial dispõe, no art. 1º, parágrafo 4º, que são legítimas as medidas especiais
tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos
grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que
possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo
ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que tais

207
medidas não conduzam, em consequência, à manutenção de direitos
separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido
alcançados os seus objetivos.
• a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra a Mulher permite que os Estados imponham medidas especiais de
caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem e
a mulher (art. 4.1). São medidas de compensação à situação histórica de
desigualdade entre os gêneros, em prejuízo da mulher.
• A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência dispõe, no seu art. 5º, item 4, que as medidas específicas que
forem necessárias para acelerar ou alcançar a efetiva igualdade das pessoas
com deficiência não serão consideradas discriminatórias. No art. 27, alínea h,
prevê o dever do Estado de promover o emprego de pessoas com deficiência
no setor privado, mediante políticas e medidas apropriadas, que poderão incluir
programas de ação afirmativa, incentivos e outras medidas.

14. O que significa Sistema Especial de Direitos Humanos?


O sistema especial de direitos humanos consiste em uma série de
convenções internacionais elaboradas em prol de grupos de indivíduos que,
por peculiaridades específicas, se encontram em estado de vulnerabilidade,
seja ele provisório ou permanente. O estado de vulnerabilidade é medido de
acordo com as circunstâncias em que este grupo se encontre, como
discriminação de cor, raça e etnia, alcançadas por construções históricas;
discriminação e vulnerabilidade em razão de condições físicas, como a mulher,
os deficientes, os idosos, as crianças; estado de vulnerabilidade em razão de
situação premente de tortura, como os presos, entre outros.

Mulher
 Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação contra a Mulher (1979)- ONU

15. Como a Convenção define a discriminação contra a mulher?


A Convenção define a discriminação contra a mulher como “Toda distinção,
exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado
prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher,
independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e
da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos
político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo”.

16. Quais as principais medidas a serem adotadas pelos Estados?


As principais medidas a serem adotadas pelos Estados são:
i. adoção de política destinada a eliminar a discriminação contra a mulher;
ii. medidas apropriadas para assegurar o pleno desenvolvimento e o progresso
da mulher, para garantir-lhe o exercício e o gozo dos direitos humanos e
liberdades fundamentais em igualdade de condições com o homem;
iii. medidas especiais de caráter temporário, para acelerar a igualdade de fato
entre homens e mulheres, que deverão cessar quando os objetivos de
igualdade de oportunidade e tratamento forem alcançadas (ações afirmativas);
iv. medidas apropriadas para alterar os padrões socioculturais de conduta;

208
v. medidas para suprimir todas as formas de tráfico de mulheres e exploração
da prostituição da mulher.

17. Quais os principais direitos garantidos pela Convenção Internacional


sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher
(1979)?
Os principais direitos previstos pela Convenção são:
i. direitos civis e políticos: direito de votar e ser elegível, participação na
formulação de políticas públicas governamentais, no exercício de cargos
públicos, na participação em organizações e associações não governamentais
que se ocupam da vida pública e política do país e na oportunidade de
representar seu governo no plano internacional e de participar no trabalho das
organizações internacionais;
ii. educação: mesmas condições de orientação em matéria de carreiras e
capacitação profissional, acesso aos estudos e obtenção de diplomas nas
instituições de ensino, em todos os níveis de educação e em todos os tipos de
capacitação profissional, eliminação da estereotipação dos papeis masculinos
e femininos, dentre outros;
iii. emprego: direito às mesmas oportunidades de emprego, aos mesmos
critérios de seleção, direito à promoção e estabilidade no emprego, o direito a
igual remuneração, o direito à igualdade de tratamento com respeito à
avaliação da qualidade do trabalho, direito à seguridade social, férias pagas,
proteção à saúde e à segurança nas condições de trabalho, proibição de
demissão por motivo de gravidez ou de licença-maternidade ou de estado civil,
direito à licença-maternidade com salário pago ou benefícios sociais
comparáveis, sem perda do emprego anterior, antiguidade ou benefícios
sociais;
iv. acesso a serviços médicos, com assistência apropriada em relação à
gravidez, ao parto e ao período pós-parto;
v. outras esferas da vida econômica e social: direito a obter empréstimos
bancários, hipotecas e outras formas de crédito financeiro, direito de participar
em atividades de recreação, esportes e em todos os aspectos da vida cultural;
vi. reconhecimento de igual capacidade jurídica em matérias civis e das
mesmas oportunidades para o seu exercício.

18. Quais os mecanismos de monitoramento previstos no corpo do


tratado?
O órgão responsável pelo monitoramento é o Comitê sobre a Eliminação
da Discriminação contra a Mulher.
Os mecanismos previstos na Convenção são apenas os relatórios
periódicos.

19. Quais são os seus protocolos facultativos?


A Convenção da Mulher conta com apenas 1 protocolo facultativo –
1999: protocolo com a previsão dos seguintes mecanismos de monitoramento:
i. petição individual;
ii. PROCEDIMENTO DE INVESTIGAÇÃO IN LOCO (quando da assinatura
do Protocolo, os Estados podem não reconhecer a competência do Comitê
para tais investigações).

209
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
Conta a Mulher (“Convenção de Belém do Pará) – Interamericana

20. Como esta Convenção define violência contra a mulher?


Qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou
sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como
no privado. A violência contra a mulher abrange a violência física, sexual ou
psicológica, quer tenha ocorrido no âmbito da família ou unidade doméstica ou
em qualquer outra relação interpessoal, em que o agressor conviva ou haja
convivido no mesmo domicílio que a mulher e compreende, entre outros,
estupro, violação, maus-tratos e abuso sexual; que no âmbito da comunidade e
seja perpetrada por qualquer pessoa.

21. Quais são os direitos protegidos?


 Direito de toda mulher ser livre de violência, tanto na esfera pública
quanto privada, o que inclui o direito de ser livre d toda forma de
discriminação e o direito de ser valorizada e educada livre de padrões
esteriotipados de comportamento e práticas sociais e culturais baseadas
em conceitos de inferioridade ou subordinação.
 Direito de reconhecimento, gozo, exercício e proteção de todos os
direitos humanos e às liberdades consagradas pelos instrumentos
regionais e internacionais sobre direitos humanos, os quais
compreendem: o direito a que se respeite sua vida e sua integridade
física, psíquica e moral; o direito à liberdade e à segurança pessoais; o
direito a não ser submetida a torturas; o direito à liberdade e à
segurança pessoais; o direito a não ser submetida a torturas; o direito a
que se respeite a dignidade inerente a sua pessoa e que se proteja sua
família; o direito à igualdade de proteção perante a lei e da lei; o direito a
um recurso simples e rápido diante de tribunais competentes, que a
ampare contra atos que violem seus direitos; o direito à liberdade d
associação; o direito à liberdade de professar a religião e as próprias
crenças, de acordo com a lei; e o direito de ter igualdade de acesso às
funções públicas de seu país e a participar nos assuntos públicos,
incluindo a tomada de decisões.

22. Quais são os mecanismos de proteção?


 Informes à Comissão Interamericana de Mulheres.
 Pedido de opinião consultiva sobre interpretação da Convenção à Corte
Interamericana de Direitos Humanos.
 Petição de qualquer pessoa, grupo, entidade não governamental
legalmente reconhecida em um ou mais Estados-membros da
Organização, à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
 Caso cabível, a Comissão pode processar o Estado infrator perante a
Corte.

23. Aborde o tratamento das 100 regras de Brasília sobre o gênero


enquanto causa de vulnerabilidade, à luz do critério da
interseccionalidade.

210
Pessoa em situação de vulnerabilidade – conceito na regra 3 (100 regras
de Brasília).
(3) Consideram-se em condição de vulnerabilidade aquelas pessoas que,
por razão da sua idade, género, estado físico ou mental, ou por circunstâncias
sociais, económicas, étnicas e/ou culturais, encontram especiais dificuldades
em exercitar com plenitude perante o sistema de justiça os direitos
reconhecidos pelo ordenamento jurídico.
Pessoa em situação de vulnerabilidade é aquele que, por alguma causa
(situações exemplificativas), encontra-se com especias dificuldades em
exercitar com plenitude perante o sistema de justiça os seus direitos.
No item 17 a 20, há as regras específicas quando a causa de
vulnerabilidade é ditada em razão do gênero.
(17) A discriminação que a mulher sofre em determinados âmbitos
pressupõe um obstáculo no acesso à justiça, que se vê agravado naqueles
casos nos quais concorra alguma outra causa de vulnerabilidade.
A questão de gênero tem um tema interessante que é a multiplicidade de
fatores de opressão. Ex.: Mulher que é negra, em situação de hipossuficiência
financeira, dependente química, privada de liberdade.
Múltiplos fatores de opressão vão gerando dificuldade de compreensão da
própria causa de vulnerabilidade. Mas as causas não podem ser analisadas
como causas superpostas, mas questões que se influenciam de várias formas
diferentes.
A superposição de causas, cada qual com sua política, não olha a
vulnerabilidade de maneira global. Deve haver integração com o todo. Eventual
causa não pode gerar a exclusão de demais.
A tese da interseccionalidade propõe um olhar especial, mas não
excludente sobre as causas de vulnerabilidade.

Negro

CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE A ELIMINAÇÃO DE TODAS AS


FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO RACIAL – 1966 - ONU

24. O que é discriminação racial nos termos da Convenção?


A Convenção define a discriminação racial como:
i. qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça,
cor, descendência ou origem nacional ou étnica;
ii. que tem por objetivo ou efeito anular ou restringir o reconhecimento,
gozo ou exercício num mesmo plano (em igualdade de condição), de direitos
humanos e liberdades fundamentais;
iii. no domínio político econômico, social, cultural ou em qualquer outro
domínio de sua vida.
Ficam excluídas dessas proibições as chamadas ações afirmativas que,
na verdade, devem ser promovidas em prol de grupos sociais ou étnicos ou de
indivíduos que necessitem da proteção para proporcionar a eles igual gozo ou
exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais. Tais medidas devem
perdurar somente enquanto perdurar a situação de desigualdade.

25. Quais os mecanismos de monitoramento previstos no corpo do


tratado?

211
O órgão responsável pelo monitoramento é o Comitê para a Eliminação
da Discriminação Racial.
Os mecanismos previstos na Convenção são:
i. relatórios periódicos;
ii. comunicação interestatal;
iii. petições individuais.

26. Quais são os seus protocolos facultativos?


A Convenção contra a Discriminação não tem protocolos facultativos.

27. Qual a situação desse tratado no Brasil?


A situação é a seguinte: a Convenção (1966) já passou por todo o trâmite
legislativo necessário à validade interna do tratado. Promulgação do decreto
executivo em 1969.

28. Em que momento surgiram as ações afirmativas para proteção dos


afrodescendentes?
O Brasil apresentou documento oficial na Conferência das nações unidas
contra o racismo, em Durban, no ano de 2001, defendendo a adoção de
medidas afirmativas para a população afrodescendente, nas áreas da
educação e trabalho. O documento propôs a adoção de ações afirmativas para
garantir o maior acesso de afrodescendentes as universidades públicas. A
conferência de Durban, em suas recomendações, endossa a importância dos
Estados em adotarem ações afirmativas.
Foi após essa conferência que o debate de cotas para afrodescendentes
em universidades foi acentuado. Em 2002, foi lançado o programa diversidade
na universidade, que autorizou o Ministério da Educação a apoiar ações
afirmativas. Neste contexto foram adotados programas de cotas para
afrodescendentes em universidades. Entre outras medidas, surge o Estatuto da
igualdade racial (lei 12.288/10), que tem por objetivo garantir a população
negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa de direitos étnicos
e o combate a discriminação, estabelecendo a possibilidade de ações
afirmativas para o provimento de cargos da administração publica federal e
estadual, entre outras medidas.

29. A política de cotas foi objeto de controle concentrado de


constitucionalidade no STF?
O partido Democratas (DEM) ajuizou arguição de descumprimento de
preceito fundamental (ADPF 186) questionando atos da Universidade de
Brasília, que determinaram a reserva de vagas oferecidas pela universidade,
alegando que a política de cotas feriria vários preceitos fundamentais, como a
dignidade da pessoa humana, o repudio ao racismo, a igualdade, entre outros,
alem de dispositivos que estabelecem o direito universal a educação. Por
unanimidade, os ministros do STF julgaram improcedente a ADPF,
considerando a política de cotas constitucional.
Os ministros seguiram o voto do relator do caso, ministro Ricardo
Lewandowski. Ele afirmou que as políticas de ação afirmativa adotadas pela
UnB estabelecem um ambiente acadêmico plural e diversificado, e têm o
objetivo de superar distorções sociais historicamente consolidadas. Além disso,
segundo ele, os meios empregados e os fins perseguidos pela UnB são

212
marcados pela proporcionalidade, razoabilidade e as políticas são transitórias,
com a revisão periódica de seus resultados. “No caso da Universidade de
Brasília, a reserva de 20% de suas vagas para estudante negros e ‘de um
pequeno número delas’ para índios de todos os Estados brasileiros pelo prazo
de 10 anos constitui, a meu ver, providência adequada e proporcional ao
atingimento dos mencionados desideratos.
A política de ação afirmativa adotada pela Universidade de Brasília
não se mostra desproporcional ou irrazoável, afigurando-se também sob
esse ângulo compatível com os valores e princípios da Constituição”,
afirmou o ministro.

Criança e adolescente
Ver ponto 2 de ECA.

Idoso

30. Há princípios internacionais acerca da proteção da pessoa idosa?


Sim, foi criado documento internacional denominado Princípios das Nações
Unidas em prol das Pessoas Idosas. Estes princípios estão divididos em cinco
seções, relacionadas a seguir.
• Independência - inclui o acesso à alimentação, à água, à habitação, ao
vestuário e aos cuidados de saúde adequados. Direitos básicos a que se
acrescentam a oportunidade de trabalho remunerado e o acesso à educação e
à formação.

• Participação - entende-se que as pessoas idosas deveriam participar


ativamente na formulação e na aplicação das políticas que afetem diretamente
o seu bem-estar e poder partilhar os seus conhecimentos e capacidades com
as gerações mais novas, bem como formar movimentos ou associações.

• Cuidados - A seção intitulada Cuidados afirma que as pessoas idosas


deveriam beneficiar-se dos cuidados da família, ter acesso aos serviços de
saúde, gozar os direitos humanos e liberdades fundamentais, quando residam
em lares ou instituições onde lhes prestem cuidados ou tratamento.

• Auto-realização - No que se refere à auto-realização, os "Princípios" afirmam


que as pessoas de idade deveriam poder aproveitar as oportunidades de
desenvolver plenamente o seu potencial, mediante o acesso aos recursos
educativos, culturais, espirituais e recreativos da sociedade.

• Dignidade - Por fim, a seção intitulada Dignidade afirma que as pessoas


idosas deveriam poder viver com dignidade e segurança, e libertas da
exploração e maus tratos físicos ou mentais; ser tratadas dignamente,
independentemente da idade, do sexo, da raça ou da origem étnica, da
deficiência, da situação econômica ou qualquer outra condição, e ser
valorizadas independentemente da sua contribuição econômica.

31. Quais são os marcos nacionais de proteção a pessoa idoso?

213
Dentre várias previsões, como marco legislativo nacional, destacam-se a
Constituição de 1988, a Lei Orgânica da Assistência Social (lei 8742) e o
Estatuto do Idoso (lei 10741).

Pessoas com deficiência

CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA –


2007 - ONU

32. Como a Convenção define “pessoas com deficiência”? Quais os


princípios diretivos trazidos pela Convenção? E as principais obrigações
assumidas pelos Estados?
A Convenção define “pessoas com deficiência” como aquelas que têm
impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial, as quais, em
interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e
efetiva na sociedade com as demais pessoas.
Os princípios diretivos da Convenção são:
i. respeito pela dignidade inerente, a autonomia individual, inclusive a
liberdade de fazer as próprias escolhas, e a independência das pessoa;
ii. não discriminação;
iii. plena e efetiva participação e inclusão na sociedade;
iv. respeito pela diferença e pela aceitação das pessoas com deficiência
como parte da diversidade humana e da humanidade;
v. igualdade de oportunidades;
vi. acessibilidade;
vii. igualdade entre o homem e a mulher;
viii. respeito pelo desenvolvimento das capacidades das crianças com
deficiência e pelo direito das crianças com deficiência de preservar sua
identidade.
As principais obrigações assumidas pelos Estados são:
i. adotar todas as medidas legislativas, administrativas e de qualquer outra
natureza, necessárias para a realização dos direitos reconhecidos, bem como
eliminar os dispositivos e práticas, que constituírem discriminação contra
pessoas com deficiência;
ii. o Estado deve abster-se de participar em qualquer ato ou prática
incompatível com a Convenção e assegurar que as autoridades públicas e
instituições atuem em conformidade com seu texto, além de tomar todas as
medidas apropriadas para eliminar a discriminação baseada em deficiência, por
parte de qualquer pessoa, organização ou empresa privada.

33. Quais os mecanismos de monitoramento previstos no corpo do


tratado?
O órgão responsável pelo monitoramento é o Comitê sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência.
Os mecanismos previstos na Convenção são os relatórios periódicos.

34. Quais são os seus protocolos facultativos?


A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência conta com
apenas 1 protocolo facultativo – 2006, que traz a previsão:
i. das petições individuais;

214
ii. INVESTIGAÇÕES IN LOCO, com prévia anuência do Estado, em caso
de graves e sistemáticas violações.

35. Qual a situação desses tratados (Convenção contra Tortura e


protocolo) no Brasil?
A situação é a seguinte:
i. a Convenção (2006) já passou por todo o trâmite legislativo necessário à
validade interna do tratado. Promulgação do decreto executivo em 2008;
ii. o Protocolo Facultativo (2006) também já passou por todo o trâmite
legislativo necessário à validade interna do tratado Promulgação do decreto
executivo também em 2008.
Ambos foram recepcionados pelo direito brasileiro como norma
constitucional, seguindo-se o art. 5º, § 3º, CF – Dec. 6949/09.

Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de


Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência

36. Qual o objetivo da referida Convenção? Como ela define deficiência e


discriminação contra pessoas com deficiência?
O objetivo é prevenir e eliminar todas as formas de discriminação contra as
pessoas com deficiência e propiciar sua plena integração à sociedade.
Na referida convenção, deficiência é conceituada como restrição física,
mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a
capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária,
causada ou agravada pelo ambiente econômico e social.
A discriminação contra pessoas com deficiência é conceituada como toda
diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, antecedente de
deficiência consequência de deficiência anterior ou percepção de deficiência
presente ou passada, que tenha o efeito ou propósito de impedir ou anular o
reconhecimento, gozo ou exercício por parte das pessoas portadoras de
deficiência de seus direitos humanos e suas liberdades fundamentais. Não
constitui discriminação a diferenciação ou preferência adotada pelo Estado
para promover a integração social ou o desenvolvimento pessoal dessas
pessoas, desde que a diferenciação ou preferência não limite em si mesma o
seu direito à igualdade e que as pessoas com deficiência não sejam obrigadas
a aceitar tal diferenciação ou preferência. Ademais, também não constituirá
discriminação a previsão, na legislação interna, de declaração de interdição,
quando for necessária e apropriada para o bem-estar da pessoa com
deficiência.

37. Quais são os mecanismos de monitoramento?


 Relatórios periódicos ao Secretário-Geral da OEA.
 Comissão para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra pessoas portadoras de deficiência é encarregada de examinar o
progresso registrado na aplicação da Convenção e de trocar
experiências entre os Estados, produzindo relatórios.

Pessoas em situação de rua

215
38. Quais previsões acerca de pessoas em situação de rua são
encontradas no Plano Nacional de Direitos Humanos?
É previsto do dever de o Estado integrar políticas sociais e de geração de
emprego e renda para o combate à pobreza urbana, em especial de catadores
de materiais recicláveis e população em situação de rua, atribuindo como
responsáveis: Ministério do Trabalho e Emprego; Ministério do Meio Ambiente;
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Ministério das
Cidades; Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República.
Objetivando promover a mobilização nacional com intuito de reduzir o
número de pessoas sem registro civil de nascimento e documentação básica, o
documento prevê realização de mutirões para emissão de registro civil de
nascimento e documentação básica, com foco nas regiões de difícil acesso e
no atendimento às populações específicas como os povos indígenas,
quilombolas, ciganos, pessoas em situação de rua, institucionalizadas e às
trabalhadoras rurais.
Dispõe sobre a necessidade de garantir que nos programas habitacionais
do governo sejam priorizadas as populações de baixa renda, a população em
situação de rua e grupos sociais em situação de vulnerabilidade no espaço
urbano e rural, considerando os princípios da moradia digna, do desenho
universal e os critérios de acessibilidade nos projetos.
Além disso, a necessidade de estabelecer que a garantia da qualidade de
abrigos e albergues, bem como seu caráter inclusivo e de resgate da cidadania
à população em situação de rua, estejam entre os critérios de concessão de
recursos para novas construções e manutenção dos existentes.
Não se olvida em estabelecer expansão dos serviços básicos de saúde e
atendimento domiciliar, com apoio diferenciado a tal população.
Menciona a necessidade de apoiar a implementação de espaços
essenciais para higiene pessoal e centros de referência para a população em
situação de rua e a criação programas de formação, qualificação e inserção
profissional e de geração de emprego e renda. Aduz, também, que deve ser
estabelecida políticas contra violência a essa população.

39. Pessoas em situação de rua possuem direito a auxílio moradia?


Defensoria Pública sugere à Prefeitura de São Paulo inclusão de
pessoas em situação de rua no auxílio moradia
Veículo: DPE/SP
Data: 28/10/2015
Para tentar contornar o déficit de vagas na rede de proteção e assistência
às pessoas em situação de rua na Capital paulista, a Defensoria Pública
encaminhou à Secretaria Municipal de Habitação três recomendações de
alteração da Portaria nº 131/2015 da Pasta, que estabeleceu alternativas de
atendimento habitacional provisório, por meio de auxílio aluguel, verba de apoio
habitacional e verba de auxílio mudança.
O documento foi enviado pelo Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da
Defensoria Pública e sugere que a portaria inclua as pessoas em situação de
rua entre as hipóteses de concessão do benefício, já que essa população se
enquadra no critério de situação de extrema vulnerabilidade previsto na norma.
As recomendações são assinadas pelos Defensores Públicos Daniela Skromov
de Albuquerque, Rafael Lessa Vieira de Sá Menezes e Raul Carvalho Nin
Ferreira e pela Estagiária Renata Palmeiro Pereira.

216
A Defensoria recomenda também atendimento habitacional imediato e
prioritário às pessoas em situação de rua que atendam a algum dos critérios já
previstos na portaria, bem como atendimento às 2.000 pessoas que estariam
em condições de receber o atendimento habitacional e constam de uma lista
mencionada por um representante da Secretaria de Habitação em audiência
pública promovida no dia 5/8 pela Defensoria Pública.
16 mil pessoas nas ruas de São Paulo
Na audiência pública, a Secretaria Municipal de Assistência e
Desenvolvimento Social informou que há quase 16 mil pessoas em situação de
rua na Capital – das quais ao menos 2.326 são mulheres –, mas apenas 10 mil
vagas na rede de proteção e assistência (centros de acolhida e estadia) e
1.782 vagas em núcleos de convivência (assistência durante o dia).
Cerca de 1.500 pessoas em condições de abrigamento, que possuem
alguma renda e estão há longo tempo sendo acompanhadas pela rede, já
estariam aptas a receber atendimento habitacional por meio da Portaria nº
131/SEHAB/2015. Assim, ao mesmo tempo seriam liberadas mais vagas nos
equipamentos de assistência social para pessoas em situações mais delicadas.
Atendimento à população em situação de rua
A Defensoria Pública deu início na última sexta (23/10) a uma nova série de
atendimentos itinerantes à população de rua em diversos locais de São Paulo.
A primeira parada foi no Pateo do Colégio, no centro da cidade. De acordo com
o Defensor Rafael Lessa, a maior parte das demandas atendidas diziam
respeito a problemas com assistência social e pendências criminais, além de
um bom número de casos relacionados a consumo.
Os próximos atendimentos in loco serão realizados nos dias 27/11/2015
(Tenda Bresser), 29/1/2016 (Canindé) e 26/2/2016 (Arsenal da Esperança).
Além desse trabalho, a Defensoria mantém atendimento especializado em
pessoas em situação de rua no prédio onde realiza o atendimento inicial, na
Rua Boa Vista, nº 200.
Guarulhos
Em Guarulhos, a Unidade da Defensoria, a Ouvidoria-Geral e o Núcleo de
Cidadania e Direitos Humanos se reuniram com as equipes de assistência
social do município para estabelecer um fluxo de atendimento às pessoas em
situação de rua, em diálogo que também envolveu a Defensoria Pública da
União. O objetivo é aproximar essa população à Defensoria Pública e
possibilitar o encaminhamento direto dessas pessoas à instituição por meio da
rede de atendimento municipal.

40. Como se caracteriza a população em situação de rua?


A população em situação de rua é um grupo social heterogêneo, despojada
de local para moradia convencional regular, com vínculos familiares rompidos,
em situação de extrema pobreza e vulnerabilidade social.
Desemprego e desestruturação familiar, associado a uso de drogas, são as
principais razões para as pessoas estarem nesta situação.
De acordo com o último censo realizado em São Paulo há mais de 15 mil
pessoas em situação de rua
Definição da FIPE: “população em situação de rua é o conjunto de pessoas
que por contingência temporária, ou de forma permanente, pernoita nos
logradouros da cidade – praças, calçadas, marquises, jardins, baixos de
viaduto – em locais abandonados, terrenos baldios, mocós, cemitérios e

217
carcaça de veículos. Também são considerados moradores de rua aqueles que
pernoitam em albergues públicos”.
Cerca de 30% desta população trabalha com catação de material reciclável
(pela política nacional de resíduos sólidos há imposição ao poder público de
promoção das cooperativas de apoio aos catadores de materiais recicláveis).
Lei n. 8.742/93, dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá
outras providências (LOAS - Lei Orgânica da Assistência Social). Pela reforma
da lei feita em 2011 entende-se a população em situação de rua como alvo da
assistência social (art. 23, LOAS, com redação dada pela Lei nº 12.435, de
201132)
Art. 23. Entendem-se por serviços socioassistenciais as atividades
continuadas que visem à melhoria de vida da população e cujas ações,
voltadas para as necessidades básicas, observem os objetivos, princípios e
diretrizes estabelecidos nesta Lei.
§ 1o O regulamento instituirá os serviços socioassistenciais.
§ 2o Na organização dos serviços da assistência social serão criados
programas de amparo, entre outros:
I - às crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social, em
cumprimento ao disposto no art. 227 da Constituição Federal e na Lei no 8.069,
de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente);
II - às pessoas que vivem em situação de rua.

Decreto n. 7.053 de2009, Institui a Política Nacional para a População em


Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e
Monitoramento, e dá outras providências.
O Decreto estabelece diretrizes nacionais a serem seguidas pelos Estados
e municípios para implementação de direitos da população em situação de rua.
Na prática, os direitos são absurdamente violados: trabalho; educação;
saúde; assistência; habitação; segurança.
Não há políticas de habitação acessíveis para as pessoas em situação de
rua, o que existe são as casas de albergue, hoje chamadas de centro de
acolhida.
Censo da população em situação de rua em São Paulo: são 15.905 em
situação de rua, sendo 8.570 acolhidos.
A própria Prefeitura estabelece que o fornecimento de apenas 10.000
vagas (há defasagem).
Muitas pessoas em situação de rua não usam os centros de acolhida em
razão das regras rígidas (horário de entrada, p.ex.).
Além da quebra de vínculos familiares, uma das razões para as pessoas
estarem em situação de rua é a existência de problemas de saúde mental, e
nesses aparelhos de assistência social não existe diálogo com o sistema de
saúde.
Na área de trabalho e educação existem pouquíssimos programas voltados
à população em situação de rua.
Uma boa alternativa aos centros de acolhida é a criação de repúblicas, no
entanto não há esse tipo de equipamento.
Município de São Paulo: Lei 12.316/1997 e Decreto 40.232/2001. As
medidas de política pública devem ser integradas e no âmbito municipal foram
criadas Secretarias de Direitos Humanos que têm por função justamente a
integração da assistência social, com saúde, habitação, trabalho e etc.

218
A Defensoria Pública do Estado de São Paulo tem atendimento jurídico
específico à população em situação de rua, que acontece no centro de São
Paulo, e também têm sido realizados atendimentos itinerantes.

41. Quais são as problemáticas referentes às mulheres em situação de


rua?
- gravidez e direitos sexuais e reprodutivos; uso de drogas e o direito ao
acesso a serviços de saúde e assistenciais de qualidade.
As crianças que nascem de mulheres em situação de rua que fazem uso
problemático de drogas são automaticamente encaminhadas para acolhimento
institucional, Vara de Infância e Juventude e adoção.
Recentemente a Nota Técnica do Ministério da Saúde (Nota Técnica 001 -
SAS e SGEP de 16/09/2015) veio a regulamentar isto, estabelecendo
parâmetros mínimos a serem observados:
Barreiras para acesso a serviços públicos de saúde (por falta de
informação, de documentação, de endereço convencional, etc); papel dos
Consultórios de Rua, das UBS e dos CAPS;
Direitos: Acompanhamento da gestação (pré-natal); vinculação ao local do
parto; direito ao parto humanizado; Convivência Familiar (artigo 7º do ECA33);
atenção à mulher no puerpério; articulações intersetoriais (assistência social
e/ou habitação); em caso de escolha negativa da mulher em ficar com a
criança, deve ser procurada a família extensa;
Impossibilidade de imposição de abstinência ou de acesso a serviços
assistenciais como condição para acesso a serviços de saúde. A
vulnerabilidade não pode ser justificativa para a restrição de direitos
fundamentais.

Povos indígenas

42. Uma pessoa indígena praticou um crime doloso contra a vida e será
submetida a julgamento pelo Tribunal do Júri do local do fato. Analise, ao
menos, uma das decorrências da aplicação da tese do devido processo
intercultural a este caso hipotético, à luz das 100 Regras de Brasília e do
movimento constitucional da América Latina.
Numa população indígena ou quilombola, para garantir a regra de que o
julgamento é por iguais, deve-se garantir o acesso de pessoas da comunidade
de onde veio aquele que foi julgada no conselho de sentença. Pode-se
sustentar que jamais podem estar cadastrados no Tribunal pessoas não
indígenas ou não quilombolas.
Por outro lado, não pode escolher a dedo, para não violar o princípio do juiz
natural.
Assim, possível sustentar violação do devido processo intercultural, sendo
julgado por pessoas que não compõe o grupo. com a noção de povos
originários. Há respaldo na interculturalidade e proteção de direitos humanos.
Movimento constitucional da América Latina tem relação direta com a
proteção dos direitos indígenas. Possui três fases:

1) A primeira fase é o direito dos indígenas protegidos em sede


constitucional na qualidade de direitos coletivos. Inaugura esta fase a
CRFB 88, no art. 231.

219
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer
respeitar todos os seus bens.

2) A segunda fase é inaugurada com a Convenção 169, OIT, que dá outro


contorno mais ampliado do direito dos povos originários. Fala-se não só
de índios, mas também, por exemplo, quilombolas. Essa convenção é
de leitura obrigatória. Sempre sobre a ótica de que povos indígenas são
pessoas em situação de vulnerabilidade.
Aplica-se a povos tribais ou indígenas. A consciência do povo é
fundamental. O critério é de autodeterminação.
Ver as regras da questão do direito à consulta prévia. Essa noção se reflete
em toda a política. Esses povos devem ser chamados para definir de que modo
querem a intervenção do Estado nos seus territórios.
A convenção diferencia a noção de terra e de território. A noção de terra
liga-se À apropriação, ao passo que a noção de território liga-se à questão de
pertencimento. A questão de pertencimento liga-se a identidade do sujeito. Ex.:
Tirar indígenas dos territórios pode implicar em suicídios coletivos, pois
perderam a identidade.
O direito de consulta prévia foi reivindicado no caso Belo Monte, em que a
Comissão reconhece que o Estado não fez a consulta prévia.
O Brasil está nesta fase, pois ratificou a Convenção 169, OIT.

3) A terceira fase é a fase da constituição da Bolívia e do Equador, que


quebra a noção de que é um povo, uma nação e um Estado. Para essas
constituições, há Estados plurinacionais. É um Estado composto por
diversas nações, que reconhece que há vários povos. No Equador, há
Tribunais indígenas

43. Como identificar um indivíduo como sendo pertencente a população


indígena?
Deve ser basear em
 Autorreconhecimento – tido como critério dominante (Convenção
OIT 169), e
 Heterorreconhecimento – reconhecido pela comunidade indígena.

Lei 6001, art. 3º Para os efeitos de lei, ficam estabelecidas as definições a


seguir discriminadas:
I - Índio ou Silvícola - É todo indivíduo de origem e ascendência pré-
colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo
étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional;
Obs.: Não utilizar o termo silvícola.

44. Quais são os princípios apontados pela doutrina constantes na CF/88


acerca dos povos indígenas?
 Princípio do reconhecimento e proteção do Estado à organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições das comunidades indígenas;
 Princípio do reconhecimento dos direitos originários dos indígenas sobre
as terras que tradicionalmente ocupam e proteção de sua posse

220
permanente em usufruto exclusivo pra os índios (terras dos índios são
bens da União)
 Princípio da proteção da identidade (direito à alteridade), que consiste
no direito à diferença, não podendo ser aceito ato comissivo ou omissivo
de assimilação;
 princípio da máxima proteção aos índios (in dubio pro indio e
progressividade nos direitos aos índios).

Peculiaridades da CF/88 sobre direitos indígenas:


 Competência legislativa: União.
 Competência judiciária sobre direitos indígenas (coletivos): Justiça
Federal.
 Ensino: língua portuguesa, além de utilização de línguas maternas
e processos próprios de aprendizagem.

45. É necessária a tutela estatal individual e coletiva dos índios?


O Estatuto do Índio categorizou os indígena entre capazes para exercício
de seus direitos e não integrados. Estes deveriam ser tutelados pela União, por
meio da Funai. O CC 2002 não repetiu o CC 1916 que tratava o indígena como
relativamente incapaz, mas disse que a questão seria regulada por legislação
especial. Contudo, melhor entendimento é que o referido regime tutelar não foi
recepcionado na CF/88, além de colidir com a Convenção 169, da OIT. A CF
diz que os índios são partes legítimas ara ingressar em juízo na defesa de seus
direitos e interesses, devendo o MP intervir em todos os atos. A Convenção
mencionada não permite o impedimento de exercício pelos indígenas de todos
os direitos reconhecidos para os membros da sociedade. Assim, a prática de
atos da vida civil pelo índio independe de manifestação da Funai, que, todavia,
poderia intervir em casos relacionados aos direitos públicos, visando proteger
as comunidades indígenas. No entanto, o tema é muito debatido.

46. O que são as chamadas “terras tradicionalmente ocupadas pelos


índios”?
Segundo o § 1º do art. 231 da CF/88 são terras tradicionalmente ocupadas
pelos índios:
• as que eles habitam em caráter permanente;
• as utilizadas para suas atividades produtivas;
• as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a
seu bem-estar;
• e as necessárias a sua reprodução física e cultural (segundo seus usos,
costumes e tradições).
Vale ressaltar que se a terra já foi habitada pelos índios, porém quando
foi editada a CF/88 o aldeamento já estava extinto, ela não será considerada
terra indígena. Confira:
Súmula 650-STF: Os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não
alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas
em passado remoto.
Segundo critério construído pelo STF, somente são consideradas “terras
tradicionalmente ocupadas pelos índios” aquelas que eles habitavam na data
da promulgação da CF/88 (marco temporal) e, complementarmente, se

221
houver a efetiva relação dos índios com a terra (marco da tradicionalidade da
ocupação).
Assim, se, em 05/10/1988, a área em questão não era ocupada por índios,
isso significa que ela não terá a natureza indígena de que trata o art. 231 da
CF/88.

47. O que é renitente esbulho?


Como regra, vimos acima que, se os índios não estavam na posse da área
em 05/10/1988, ela não será considerada terra indígena (art. 231 da CF/88).
Existe, contudo, uma exceção a essa regra. Trata-se do chamado renitente
esbulho, expressão cunhada pelo ex-Ministro Carlos Britto no Pet 3388, julgado
em 19/03/2009 (Caso “Raposa Serra do Sol”).
Explicando melhor: se, na época da promulgação da CF/88, os índios não
ocupavam a terra porque dela haviam sido expulsos em virtude de conflito
possessório, considera-se que eles foram vítimas de esbulho e, assim, essa
área será considerada terra indígena para os fins do art. 231.
Nas palavras do Min. Teori Zavascki, “o renitente esbulho se caracteriza
pelo efetivo conflito possessório, iniciado no passado e persistente até o marco
demarcatório temporal da data da promulgação da Constituição de 1988,
materializado por circunstâncias de fato ou por controvérsia possessória
judicializada”.

TERRAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS PELOS ÍNDIOS

REGRA EXCEÇÃO OBSERVAÇÃO


Somente são consideradas Mesmo que, em 05/10/1988, Se os índios habitaram
“terras tradicionalmente os índios não ocupassem naquela localidade e optaram
ocupadas pelos índios” mais a terra, esta poderá ser por sair ou se foram dela
aquelas que eles habitavam considerada ser considerada expulsos muitos anos antes
na data da promulgação da “terra tradicionalmente de entrar em vigor a CF/88 (e
CF/88 (marco temporal) e, ocupada pelo índio” se tais desistiram de lutar), não se
complementarmente, se povos foram expulsos configura o chamado
houver a efetiva relação dos (esbulhados) do local e “renitente esbulho”.
índios com a terra (marco da mesmo assim continuaram Assim, renitente esbulho não
tradicionalidade da lutando por aquela área, de se confunde com ocupação
ocupação). forma que a situação de passada ou com
esbulho foi insistente desocupação forçada no
(renitente). passado.

48. Qual é a proteção conferida às terras tradicionalmente ocupadas por


índios?
A CF/88 garante aos índios os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, exercendo sobre elas o usufruto exclusivo das
riquezas do solo, dos rios e dos lagos.
Essas terras são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas são
imprescritíveis.
Para que os índios possam exercer seus direitos compete à União fazer a
demarcação dessas terras.

222
49. O que acontece se já havia pessoas morando nas terras demarcadas?
E se essas pessoas possuíam títulos de propriedade registrados em
cartório?
Os não índios devem ser retirados do local, salvo se integrarem as
comunidades indígenas locais e os próprios índios permitirem a sua presença
(ex.: um não índio que é casado com uma índia e já more no local, fazendo
parte da comunidade).
O que se está querendo dizer aqui é que os não índios não possuem o
direito subjetivo de permanecer no local mesmo que provem que lá moravam
de boa-fé ou mesmo que apresentem documentos de propriedade dos imóveis
localizados na área.
A CF/88 determinou que são nulos os atos que reconheçam direitos de
ocupação, domínio (propriedade) ou a posse relacionados com imóveis
localizados dentro de terras indígenas. Logo, se um não índio possuir uma
escritura pública registrada no cartório de registro de imóveis afirmando que ele é
proprietário de um lote existente dentro de uma terra indígena, esse registro é nulo
e extinto, não produzindo efeitos jurídicos.

50. Os não índios que forem retirados das terras demarcadas deverão ser
indenizados?
NÃO. Em regra, os não índios que forem retirados das terras demarcadas
não têm direito à indenização. Isso porque eles estavam ocupando terras que
pertenciam à União. Logo, mesmo que tivessem supostos títulos de
propriedade, estes seriam nulos porque foram expedidos em contrariedade
com o art. 20, XI e art. 231 da CF/88.
Exceção: tais pessoas poderão ser indenizadas pelas benfeitorias que
realizaram no local, desde que fique provado que a ocupação era de boa-fé.
Se estiverem de má-fé, não terão direito nem mesmo à indenização pelas
benfeitorias.

51. Se uma terra indígena foi demarcada antes da CF/88, é possível que
agora ela seja “remarcada”, ampliando-se a área anteriormente já
reconhecida?
NÃO. Tanto o STF como o STJ condenam essa prática.
STF:
Segundo já decidiu o STF, é vedada a remarcação de terras indígenas
demarcadas em período anterior à CF/1988, tendo em conta o princípio da
segurança jurídica.
A União poderá até ampliar a terra indígena, mas isso não deverá ser feito
por meio de demarcação (art. 231 da CF/88), salvo se ficar demonstrado que,
no processo originário de demarcação, houve algum vício de ilegalidade e,
ainda assim, desde que respeitado o prazo decadencial de 5 anos (art. 54 da
Lei nº 9.754/99).
No caso concreto, essa remarcação não seria possível porque, ainda que
tivesse havido alguma ilegalidade, como afirma o Ministério da Justiça, já teria
se passado o prazo decadencial para rever esse ato.
STF. 2ª Turma. RMS 29542/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em
30/9/2014 (Info 761).

223
STJ:
O STJ decidiu que a alegação de que a demarcação da terra indígena
não observou os parâmetros estabelecidos pela CF/1988 não justifica a
remarcação ampliativa de áreas originariamente demarcadas em período
anterior à sua promulgação.
Desde o julgamento da Pet 3.388-RR (Caso Raposa Serra do Sol), a
jurisprudência passou a entender que é vedada a ampliação de terra indígena
já demarcada, salvo em caso de vício de ilegalidade do ato de demarcação e,
ainda assim, desde que respeitado o prazo decadencial.
É inegável que a CF/88 mudou o enfoque atribuído à questão indígena e
trouxe novas regras mais favoráveis a tais povos, permitindo a demarcação das
terras com critérios mais elásticos, a partir da evolução de uma perspectiva
integracionista para a de preservação cultural do grupamento étnico. Isso,
contudo, não é motivo suficiente para se promover a revisão administrativa das
demarcações de terras indígenas já realizadas, especialmente nos casos em
que se passou o prazo decadencial.
STJ. 1ª Seção. MS 21.572-AL, Rel. Min. Sérgio Kukina, julgado em
10/6/2015 (Info 564).

52. Qual o grande diploma internacional sobre povos indígenas? O que


ele dispõe?
Trata-se da Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais.
Grande foco se dá na igualdade, combate à discriminação e autonomia.
Povo indígena é definido por dois critérios:
a) condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores
da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus
próprios costumes ou tradições ou por legislação especial;
b) considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que
habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da
conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras
estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas
próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas.
A Convenção exige que os Estados adotem medidas especiais para
salvaguardar os povos indígenas, que devem considerar os desejos dos
mesmos.
A participação e consulta dos povos pelos Estados é deveras relevante. A
lógica é do empoderamento dos povos indígenas, retirando-se um cunho
paternalista e assumindo que indígenas possuem o direito de escolha.
É possível aos povos indígenas a conservação de seus costumes, desde
que não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais. Em caso de
necessidade, há necessária observância de compatibilização com os
costumes.
Se compatíveis, devem ser respeitados os métodos que os povos recorrem
tradicionalmente para a repressão de delitos cometidos pelos seus membros.
A Convenção estabelece proibição de exercício de serviços obrigatórios,
mas os membros podem assumir as obrigações correspondentes, podendo
optar.
A Convenção menciona a preservação e respeito ao território indígena,
proclamando o direito de propriedade e posse das terras que tradicionalmente
ocupam. Possuem o direito de participarem da utilização, administração e

224
conservação dos recursos da terra, mediante consulta prévia, participação de
benefícios e indenizações.
A convenção menciona, ainda, sobre direito ao trabalho, seguridade social,
saúde, educação (desenvolvido em cooperação com povos e ressalvados
direitos de modos de criação e mantença do idioma).
Menciona medidas para o fim de discriminação da sociedade não indígena.
A Convenção veda a utilização da expressão “povos” no sentido atribuído
do termo no Direito Internacional, para evitar que os povos indígenas
reclamassem o direito à autodeterminação dos povos, não sendo possível o
direito de secessão pela Convenção.

LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros)


Como o tema é deveras abrangente, deu-se atenção à atuação da DPESP
acerca do assunto.

53. Há algum documento internacional sobre direitos de grupos LGBT?


Existe documento denominado Princípios de Yogyakarta, que não e trata
de tratado ou convenção internacional, mas produzido por integrantes do
Painel Internacional de Especialistas em Legislação Internacional de Direitos
Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero.
Dispõe que todas as pessoas têm o direito de desfrutar de todos os direitos
humanos livres de discriminação por sua orientação sexual ou identidade de
gênero
Acerca do direito à privacidade, inclui-se a opção de revelar ou não
informações relativas à sua orientação sexual ou identidade de gênero, assim
como decisões e escolhas relativas a seu próprio corpo e a relações sexuais
consensuais e outras relações pessoais.
Afirma que nenhuma pessoa deve ser forçada a submeter-se a qualquer
forma de tratamento, procedimento ou teste, físico ou psicológico, ou ser confi
nada em instalações médicas com base na sua orientação sexual ou
identidade de gênero. A despeito de quaisquer classificações contrárias, a
orientação sexual e identidade de gênero de uma pessoa não são, em si
próprias, doenças médicas a serem tratadas, curadas ou eliminadas.
Menciona que toda pessoa tem o direito de constituir uma família,
independente de sua orientação sexual ou identidade de gênero. As famílias
existem em diversas formas. Nenhuma família pode ser sujeita à discriminação
com base na orientação sexual ou identidade de gênero de qualquer de seus
membros.
Além de dispor de grande rol de direitos, menciona vários deveres e
recomendações aos Estados.

54. Tema muito atual é a igualdade na orientação sexual e o direito à


busca da felicidade. Esse direito está expresso na Constituição federal?
Não. Esse direito não está expresso na CF, mas pode ser extraído do art.
5º, §2º (os direitos expressos não excluem outros decorrentes do regime, dos
princípios e dos tratados de direitos humanos), bem como do princípio da
dignidade humana (art. 1º, III) e da proibição de toda forma de discriminação
(objetivo fundamental da República). Além disso, a orientação sexual advém da
liberdade de cada um e faz parte das decisões abarcadas pela privacidade,

225
não podendo o Estado abrigar preconceitos e punir com base nessa opção
íntima, negando direitos que somente outra orientação sexual pode exercer.
Para o Ministro Celso de Mello, há um direito constitucional implícito à
“busca da felicidade”, que decorre da dignidade da pessoa humana, devendo
ser eliminados os entraves odiosos à sua consecução. Por isso, no campo da
orientação sexual, a união homoafetiva é tida como equiparada à entidade
familiar, devendo ser adotadas, a favor de parceiros homossexuais, as mesmas
regras incidentes sobre as uniões heterossexuais, em especial no Direito
Previdenciário e no campo das relações sociais e familiares (RE 477.554-AgR,
Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 16-8-2011, Segunda Turma, DJE de
26-8-2011.) Esse direito à homoafetividade não pode gerar prejuízos ao seu
titular.

55. É possível veicular outdoor com conteúdo que condene a


homossexualidade?
Em uma ação civil pública proposta pela Defensoria Pública de SP, o
Tribunal de Justiça paulista determinou que uma entidade religiosa de Ribeirão
Preto não poderá publicar outdoors com conteúdo que condenem a
homossexualidade. O acórdão da 4ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP
confirmou a decisão que já havia sido concedida pelo Juiz da 6ª Vara Cível da
cidade.
A ação foi proposta em 2011, após a divulgação de um outdoor com
citações bíblicas, dias antes da realização da 7ª Parada do Orgulho LGBTT de
Ribeirão Preto. Entre elas, dava-se destaque ao trecho do livro de Levítico: “se
também um homem se deitar com outro homem, como se fosse mulher, ambos
praticaram coisa abominável...”.
De acordo com a decisão do Juiz Aleksander Coronado Braido da Silva, 6ª
Vara Cível de Ribeirão Preto, "a Constituição Federal protege a conduta do réu
[Casa de Oração de Ribeirão Preto] de expor suas opiniões pessoais, mas, ao
mesmo tempo, também protege a intimidade, honra e imagem das pessoas
quando violadas". O magistrado levou em consideração a proximidade da
realização da Parada LGBTT, determinando uma multa de R$ 10.000,00 para
cada ato de descumprimento.
Para os Defensores Públicos Victor Hugo Victor Hugo Albernaz Junior e
Aluísio Iunes Monti Ruggeri Ré, responsáveis pela ação, “expressões usadas,
tais como ‘praticam coisa abominável’, ‘paixões vergonhosas’, ‘relações
vergonhosas’, ‘recebem em si mesmos o castigo que merecem por causa de
seus erros’, remetem os reais e atuais personagens desta mensagem a
situação de inferiorização de suas pessoas, como se fossem de segunda
categoria ou pior, degradando-os como seres humanos, desrespeitando-lhes a
condição humana em que se inserem a partir de suas orientações sexuais e de
suas identidades de gênero". A ação civil pública foi proposta perante a Casa
de Oração de Ribeirão Preto e a empresa Nóbile Painéis.

56. Para onde encaminhar uma adolescente transexual em atendimento


socioeducativo?
Veículo: DPESP
Data: 9/10/2015
Uma adolescente transexual que cumpre medida socioeducativa na
Fundação Casa teve garantido o direito a ser transferida a uma unidade

226
feminina da instituição, após o Tribunal de Justiça paulista (TJSP) atender no
dia 2/10 a um pedido feito pela Defensoria Pública de SP.
Proferida pela Câmara Especial do TJSP em recurso de agravo de
instrumento formulado pela Defensora Pública Lígia Cintra de Lima Trindade, a
decisão também determina que a jovem seja tratada por seu nome social e
prenomes femininos, garante que ela mantenha os cabelos longos, possa vestir
roupas femininas e seja revistada por mulheres.
A Defensoria Pública argumentou que ela não se identifica com o sexo
biológico (masculino), possui todas as características femininas e se comporta
como mulher, fazendo com que sua presença em uma unidade masculina da
Fundação Casa lhe cause constrangimento, sofrimento e humilhação.
No recurso, a Defensoria também afirma que, conforme o princípio
constitucional da dignidade humana e com os Princípios de Yogyakarta – que
orientam a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em
relação a orientação sexual e identidade de gênero – a jovem tem direito a ser
reconhecida como mulher e, assim, receber o mesmo tratamento a elas
destinado.
Os direitos fundamentais à vida privada e à intimidade, previstos na
Constituição, também são apontados como base para o pedido, por
englobarem a identidade de gênero.
Além disso, a manutenção da garota em unidade masculina viola a Lei
Estadual nº 10.498, que dispõe sobre a obrigatoriedade de notificação
compulsória de maus-tratos em crianças e adolescentes; e a Resolução
Conjunta nº 01 dos Conselhos Nacionais de Combate à Discriminação e de
Política Criminal e Penitenciária, que garante às pessoas transexuais ou
travestis presas o direito a serem chamadas por nome social e tratamento às
mulheres transexuais compatível com o concedido às demais mulheres. A
Defensoria Pública argumentou que essa disposição se aplica ao caso pois,
conforme o Sinase (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo),
adolescentes não podem receber tratamentos mais severos que os adultos.
Decisão
A Desembargadora relatora do caso, Lidia Conceição, escreveu em sua
decisão que “os direitos fundamentais à individualidade e à intimidade, sob a
ótica da dignidade da pessoa humana”, garantem proteção à orientação sexual
e à identidade de gênero da jovem, lembrando o artigo 124, inciso V, do
Estatuto da Criança e do Adolescente, que garante tratamento com respeito
aos adolescentes privados de liberdade.
De acordo com a decisão, a manutenção da garota em unidade masculina
“implica clara violação à intimidade e à liberdade de expressar-se com sua
identidade e dignidade, garantia que não se reduz à autorização de
higienização e repouso isoladamente, pois permanece em cumprimento de
medida socioeducativa em regime de internação em que submetida a todas as
demais atividades cotidianas em ambiente exclusivamente masculino, com o
qual não se identifica por possuir autoimagem feminina. Neste caso, portanto,
de rigor a sua transferência a uma unidade feminina da Fundação Casa”.

57. É possível vedar a utilização de banheiros e uniformes de estudantes


conforme a identidade de gênero?
Veículo: DPESP
Data: 13/8/2015

227
A Defensoria Pública de SP enviou, nesta terça-feira (11/8) um ofício ao
Prefeito de Sorocaba solicitando o veto ao Projeto de Lei nº 126/2015,
aprovado pela Câmara Municipal da cidade, que veda a utilização de banheiros
e uniformes nas escolas conforme a identidade de gênero dos estudantes.
No documento, a Defensora Pública Vanessa Alves Vieira, Coordenadora
do Núcleo de Combate a Discriminação, Racismo e Preconceito da Defensoria,
aponta que o projeto de lei traz uma definição equivocada do que seja
identidade de gênero, ao considerar “o conceito pessoal, individual, psíquico e
subjetivo, divergente do sexo biológico”. No entanto, segundo Vanessa, o
conceito deve identificar a percepção que a pessoa tem sobre si mesmo. “Ou
seja, todas as pessoas possuem identidade de gênero, que pode ou não
corresponder ao sexo atribuído ao nascimento e inclui o senso pessoal do
corpo e outras expressões, como vestimenta, modo de falar e maneirismos”.
De acordo com o ofício enviado, a lei manifesta desconhecimento acerca
das novas compreensões sobre identidade de gênero e viola os principais
documentos internacionais de promoção e igualdade que utilizam esta
temática, como a Convenção para eliminar todas as formas de discriminação
contra a mulher, o Pacto internacional dos direitos econômicos, sociais e
culturais, e a Campanha pela igualdade de direitos da população LGBT da
ONU.
O projeto de lei também é contrário ao que dispõe a Lei Estadual nº
10.948/2001, o Decreto Estadual nº 55.588/2010, e a Resolução nº 12 de 2015.
As normativas preveem punição a qualquer manifestação discriminatória
praticada contra cidadão homossexual, bissexual ou transgênero, falam da
necessidade de ações efetivas do Estado no sentido de assegurar o pleno
exercício da cidadania, e falam sobre a possibilidade de utilização de banheiros
conforme a identidade de gênero. “Impedir que pessoas transexuais ou
travestis utilizem o banheiro de acordo com sua identidade de gênero não
condiz com o dever de potencializar o pleno exercício da cidadania dessas
pessoas que, historicamente, são excluídas, precoce e preconceituosamente,
do convício familiar e comunitário, e colocadas às margens das principais
políticas públicas”, afirma Vanessa.
A Defensora Pública também aponta, no ofício, que vetar o Projeto de Lei
nº 126/2015 proporcionará um sistema escolar inclusivo, evitando que sejam
reforçados preconceitos, desigualdades e discriminações, promovendo um
ambiente democrático, acolhedor e seguro para todos os estudantes. “A
diversidade e a proteção integral da dignidade humana devem ser respeitadas,
impedindo que esta parcela da população fique ainda mais suscetível às
discriminações e às vulnerabilidades psicológica e social. (...) [Vetar o projeto
de lei] incentiva que escolas, ao notarem a presença de estudantes travestis e
transexuais, trabalhem o assunto com os estudantes, professores e
funcionários, ensinando que todos são cidadãos e que a sociedade é plural e
diversa, conscientizando-as sobre a necessidade de respeito à diferença.”

58. É possível a alteração de nome social em documentos de


identificação, independentemente de realização de cirurgia para mudança
de sexo?
Veículo: DPESP
Data: 16/7/2015

228
A transexual Maria Helena não precisará mais passar por constrangimentos
quando for procurar por atendimento médico. Após atuação extrajudicial da
Defensoria Pública de SP, a administradora de seu plano de saúde incluiu na
carteirinha de identificação o seu nome social.
Como ainda não realizou a cirurgia para mudança de sexo, Maria Helena
estava sofrendo constrangimentos ao agendar e realizar consultas médicas,
uma vez que seu documento ainda constava seu nome de registro, que não
condiz com sua identidade de gênero.
No ofício enviado à administradora do plano de saúde, a Defensora Pública
Vanessa Alves Vieira, coordenadora do Núcleo de Combate a Discriminação,
Racismo e Preconceito da Defensoria Pública de SP, explicou que a identidade
de gênero é a percepção que a pessoa tem de si mesma como sendo do
gênero feminino ou masculino, independentemente do sexo biológico, e isso
deve ser considerado no tratamento dispensado às pessoas transexuais.
"As pessoas travestis e transexuais adotam um nome pelo qual querem ser
chamadas e reconhecidas em suas relações sociais, o nome social, visto que
seu nome de registro não reflete sua identidade de gênero. Devem, assim, ser
tratadas por esse nome e de acordo com o gênero com o qual se apresentam,
tanto na forma verbal, como na escrita", apontou Vanessa.
Na resposta enviada pela administradora do plano de saúde de Maria
Helena, foi informado que as medidas para inserção do nome social foram
tomadas, e que a nova identificação foi enviada à beneficiária.
O plano de saúde ainda informou que todos os colaboradores são
treinados para a realização adequada do atendimento, “de maneira que não
exponha o paciente a situações constrangedoras”.

Veículo: DPE/SP
Data: 26/11/2015
Aos 24 anos, a jovem Marcela* poderá finalmente se ver livre de uma
companhia incômoda que sempre a seguiu aonde quer que fosse. Nascida com
o sexo masculino mas reconhecida desde criança como pertencente ao gênero
feminino, ela não terá mais que explicar quem é o tal de “Marcos”* que aparece
em seus documentos, toda vez em que precisar apresentá-los para fazer
coisas cotidianas como uma compra ou solicitar um serviço bancário.
“É uma carta de alforria. É um direito de todo cidadão poder ir e vir sem
passar por constrangimentos e humilhação. A sensação que tenho é de
dignidade”, diz Marcela. Uma sentença de 19/10, em ação judicial movida pela
Defensoria Pública de SP, garantiu o direito à alteração no registro civil de
Marcela. Em vez de “Marcos”, documentos como certidão de nascimento e
carteira de identidade passarão a mostrar o nome “Marcela”. No lugar do sexo
“masculino”, o “feminino”.
Documentos condizentes com a aparência de Marcela são o passo que
faltava para garantir uma existência digna a quem sempre viveu e foi
reconhecida socialmente como mulher. Uma vida com dignidade – um dos
princípios da Constituição Federal – pressupõe a garantia dos direitos da
personalidade, entre os quais a preservação da imagem e a ter um nome com
o qual a pessoa se identifique e que não lhe provoque constrangimento,
argumentaram os Defensores Públicos Julio Grostein, Raphael Bruno Aragão
Pereira de Oliveira e Natalia Nissia Nogueira Seco.
Constrangimentos

229
Graduada em Marketing, a assistente administrativa de escola de
computação gráfica esbarrou em Marcos ao tentar realizar o sonho de construir
uma carreira em instituição bancária. Há cerca de quatro anos, foi aprovada
entre 50 candidatos que concorriam a uma vaga em banco. Chamada para
entrevista, teve que explicar por que o nome de batismo não batia com a
pessoa. O entrevistador disse que seria “muito complicado” contratá-la,
alegando que haveria dificuldades na confecção de registros e contratos.
Terminou por pedir que ela assinasse um documento desistindo da vaga.
Na formatura do curso de Marketing, passou por um grande
constrangimento entre várias pessoas, quando ouviu de uma fotógrafa que
devia haver algum problema em seu diploma, pois ali constava o nome
“Marcos”. O nome masculino também levou Marcela a ser chamada de
“fraudadora”, em uma das diversas vezes em que apresentou o documento e
foi detida ao tentar pagar pelas compras em alguma loja.
Infância e família
As companhias femininas e brincadeiras com boneca e casinha,
tradicionalmente identificadas como de meninas, eram desde a infância a
preferência da jovem, que sempre contou com o apoio da família. “Sempre
foram bem compreensivos. Isso ajudou que minha mente não ficasse tão
confusa, como acontece com a maioria das pessoas nessa situação”, diz
Marcela, que foi “rebatizada” com esse nome pelo próprio pai. Ele e a mãe
faziam questão de explicar a situação aos professores da filha na escola,
buscando evitar constrangimentos à filha.
Na adolescência, uma alteração nos níveis hormonais provocou o
desenvolvimento das mamas e fez o corpo de Marcela tomar formas ainda
mais femininas, enquanto o rosto nunca desenvolveu barba. Ela tem cabelos
longos, voz e comportamento comumente identificados como femininos – seus
irmãos mais novos nem sequer sabem que nasceu com o sexo biológico
masculino.
Cirurgia
Marcela não pensa em se submeter à cirurgia de transgenitalização, pois a
considera uma mutilação e está satisfeita com seu corpo. O fato de não ter sido
operada não impediu que a Juíza Ediliz Claro de Vicente Reginato, da 4ª Vara
da Família e Sucessões do Foro de Santo Amaro, reconhecesse que ela,
apesar do sexo biológico, identifica-se com o gênero feminino. A Magistrada
ressaltou também que a transexualidade não depende da cirurgia de mudança
de sexo.
Um relatório elaborado pela Psicóloga Marília Marra de Almeida e pela
Assistente Social Melina Machado Miranda, que atuam na Defensoria Pública,
ajudou a embasar a ação judicial. O documento atesta que Marcela vive desde
a infância uma patente inadequação entre o sexo biológico e sua identidade de
gênero. As impressões são reforçadas por laudos judiciais psicológico e
psiquiátrico.
Direito
“Não há como ser cidadão completo para o exercício pleno de suas
capacidades se lhe é negado o reconhecimento social enquanto pessoa do
sexo feminino, de acordo com a identidade de gênero”, argumentou a
Defensoria Pública na ação, ressaltando que a identidade de uma pessoa é
uma construção social e cultural derivada da autonomia do ser humano livre,
pensante e capaz de determinar suas próprias escolhas.

230
A Defensoria aponta que a Lei de Registros Públicos (lei nº 6.015/73) prevê
que não devem ser registrados prenomes capazes de expor seus portadores
ao ridículo e possibilita o pedido de mudança do registro. O nome, segundo a
ação, existe para permitir uma plena e exata identificação de uma pessoa na
sociedade, não para causar-lhe constrangimento. Também faz parte dos
direitos da personalidade, que devem ser garantidos para preservar a
dignidade da pessoa.
A ação da Defensoria Pública de SP afirma, ainda, que a instituição possui
uma tese (nº 5) segundo a qual a cirurgia de transgenitalização não é condição
para que seja proposta ação para mudança de registro civil. Essa ideia também
se relaciona à garantia do princípio da dignidade da pessoa humana.
Planos
Os novos documentos de Marcela ainda não saíram. Para isso, ela precisa
esperar a Justiça expedir a certidão de trânsito em julgado da decisão (ou seja,
de que a sentença não pode ser alterada mais). Até lá, ela terá que ter
paciência. “Eu fico ansiosa só de pensar, em ter mais um ou dois meses pela
frente.”
Assim que passar por essa fase, Marcela pretende continuar a estudar,
oficializar o casamento com o homem com quem vive há cinco anos, constituir
uma família e tocar a vida. “Fazer tudo sem constrangimento. Continuar a vida
no mesmo ritmo em que estou, só que mais tranquila, com menos peso na
consciência”, diz.
* nomes fictícios

59. É possível a aplicação da lei Maria da Penha e favor de transexual que


não passou por cirurgia de mudança de sexo?
Veículo: DPE/SP
Data: 20/10/2015
Atendendo a um mandado de segurança impetrado pela Defensoria
Pública de SP, o Tribunal de Justiça paulista determinou que fossem aplicadas
medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha em favor de uma
transexual que não passou por cirurgia de mudança de sexo. A vítima vinha
sendo ameaçada por seu ex-companheiro, e a medida impede que o homem
se aproxime ou entre em contato com ela, seus familiares e as testemunhas do
caso. Luisa e Otávio (nomes fictícios) mantiveram um relacionamento amoroso
por um ano. O casal morou junto por um mês e se separou devido à conduta
agressiva do companheiro. Os episódios de violência se intensificaram com o
término do relacionamento. Otávio ameaçava a ex-companheira via
mensagens de celular e desferia xingamentos a ela em locais públicos. Luisa,
temendo por sua vida, procurou uma Delegacia de Polícia, que lavrou um
boletim de ocorrência e solicitou à Vara Central de Violência Doméstica e
Familiar Contra a Mulher da Capital que fossem aplicadas medidas protetivas
previstas em lei. O juízo de primeira instância, porém, indeferiu o pedido sob
fundamento de que a vítima pertence biologicamente ao sexo masculino, não
sendo, portanto, aplicável a Lei Maria da Penha.
Após tomar ciência da decisão de primeira instância, a Defensora Pública
Mariana Melo Bianco entrou em contato com a transexual, que confirmou a
permanência das ameaças e agressões e disse que gostaria da intervenção da
Defensoria Pública. Diante do relato, a Defensora Públicaimpetrou um

231
mandado de segurança junto ao Tribunal de Justiça pleiteando que a decisão
de primeira instância fosse revista e as medidas protetivas aplicadas.
A Defensora Pública argumentou que não aplicar a Lei Maria da Penha
reflete preconceito e discriminação e que sexo refere-se às características
biológicas de homens e mulheres; já o gênero não tem vinculação com a
fisiologia do corpo de cada ser humano. “A própria Lei Maria da Penha se
mostra plenamente aplicável às mulheres transexuais, uma vez que configura
violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão
baseada no gênero, independentemente de sua orientação sexual que lhe
cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou
patrimonial”, afirmou. Além disso, Mariana Melo Bianco esclarece que “fica
evidente a configuração de todos os requisitos necessários para a aplicação da
Lei Maria da Penha: relação íntima de afeto entre as partes e desempenho pela
vítima de papel de inferioridade e submissão no relacionamento, sendo este o
motivo da violência”, apontou.
A 9ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça, por maioria de
votos e com parecer favorável do Ministério Público, concedeu a segurança e
determinou a aplicação das medidas protetivas a Luisa. No seu voto, a
Desembargadora Ely Amioka, relatora dos autos, acolheu os argumentos da
Defensoria Pública e apontou que “ a Lei nº 11.340/06 [Lei Maria da Penha]
não visa apenas a proteção da mulher, mas sim à mulher que sofre violência de
gênero, e é como gênero feminino que a impetrante [Luisa] se apresenta social
e psicologicamente. [...] É, portanto, na condição de mulher, ex-namorada de
[Otávio], que a impetrante vem sendo ameaçada por este, inconformado com o
término da relação”.

Quilombolas

60. Possível requerer judicialmente a construção de acesso à


comunidade quilombola?
A Defensoria Pública de SP obteve, em 21/7, uma decisão liminar que
reconhece a necessidade de construção de um caminho de acesso entre a
comunidade quilombola de Bombas e a cidade de Iporanga (cerca de 360 km
da Capital), e determina que a Procuradoria do Estado de São Paulo
apresente, em 15 dias, as informações com as providências preliminares
necessárias para que isso aconteça, bem como um calendário para a
implementação da medida. A decisão foi concedida em uma ação civil pública
proposta em março de 2014 pela unidade de Registro da Defensoria Pública.
Saiba mais sobre a ação aqui.
Segundo consta no processo, cerca de 85 pessoas vivem na comunidade,
que não conta com água encanada, esgotamento sanitário, energia elétrica ou
telefone. Além disso, a comunidade só é acessível por meio de trilha
extremamente sinuosa e irregular, que não permite a circulação de veículos
automotores. De acordo com Defensor Público Andrew Toshio Hayama,
responsável pela ação, a comunidade vive uma situação de isolamento.
“Isolamento, hoje, não significa, como outrora, refúgio e proteção para os
quilombolas, mas abandono e invisibilidade. A palavra de ordem é
reconhecimento, pois há toda uma história a resgatar e dignidade a reafirmar”.
No dia 18/7, o Juiz João Luiz Calabrese, da Vara Única de Eldorado
Paulista, junto com o Defensor Público e o Procurador do Estado Rodrigo

232
Lerkovicz, fizeram uma inspeção judicial no local e percorreram a trilha a pé,
por 4 horas, até chegar à comunidade. No relatório, o Magistrado constatou os
problemas da trilha. “A trilha é de dificílima transposição, a comunidade não
tem atendimento médico, a educação é absolutamente precária e insuficiente
(sendo certo que há violação ao postulado da obrigatoriedade do ensino
fundamental de índole constitucional). Não há serviço de energia, água, esgoto,
etc. Por qualquer prisma que se analise a situação, é patente que a omissão do
estado constitui uma afronta aos direitos fundamentais da pessoa humana. (...)
Na presente situação, não há como a comunidade (já devidamente
reconhecida como remanescente de quilombo) se desenvolver, estando fadada
a uma inaceitável e vergonhosa miséria.”
Na decisão, o Juíz também determinou a abertura de uma mesa de
negociação, com a participação da comunidade quilombola para
monitoramento do cumprimento da decisão e definição do melhor traçado da
estrada.
Novos andamentos
Após a propositura da ação civil pública, foi realizada uma audiência
pública entre todos os envolvidos, ocasião em que houve o reconhecimento da
comunidade quilombola pelo Fundação Instituto de Terras do Estado de São
Paulo (Itesp). A comunidade também aceitou que seja considerado, para fins
de demarcação, o território proposto pela Fundação Terra.
Dessa forma, em 18/11/14 foi publicado o Relatório Técnico Científico
reconhecendo a comunidade e o território.
Além disso, a Fundação Florestal também reconheceu e autorizou,
espontaneamente, a realização da prática de roça coivara (própria de
comunidades quilombolas), que também era um dos pedidos feitos na ação
civil pública proposta de Defensoria.

61. Como se dá a proteção às comunidades quilombolas na legislação


interna?
Dentre vários outros dispositivos, destacam-se, na CF/88, atenção aos
artigos 68 do ADCT e 215 e 216 da Constituição da República, que
determinam a regularização territorial das comunidades quilombolas e protege
suas culturas.
O decreto nº 4887 de 20 de novembro de 2003 regulamenta o
procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e
titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos
quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias.
A Instrução Normativa n.º 49 do INCRA regulamenta o procedimento
para a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação, desintrusão,
titulação e registro das terras ocupadas por remanescentes das comunidades
dos quilombos de que tratam o Art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias da Constituição Federal de 1988 e o Decreto nº 4.887, de 20 de
novembro de 2003.
A Portaria n.º 98 da Fundação Cultural Palmares institui o Cadastro
Geral de Remanescentes das Comunidades dos Quilombos da Fundação
Cultural Palmares e o regulamenta.

Sem-teto

233
62. Como se caracteriza a condição de pessoa sem-teto?
Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais das Nações Unidas,
definiu como famílias sem-teto aquelas famílias sem abrigo que carecem de
habitação. Eles carregam suas poucas posses com eles, dormindo nas ruas,
ou em outros espaços, numa base mais ou menos aleatória.
Comissão Econômica e de Conferência Estatística Europeia definiu como
falta de moradia e pessoas desabrigadas em dois grandes grupos:
1.sem abrigo primário. Esta categoria inclui as pessoas que vivem nas ruas
sem abrigo que se classifica no âmbito da zona de habitação;
2.sem abrigo secundário. Esta categoria pode incluir pessoas sem local de
residência habitual que se deslocam freqüentemente entre os vários tipos de
acomodações (incluindo moradias, abrigos e instituições para os alojamentos
de sem teto ou outros). Esta categoria inclui pessoas que vivem em residências
particulares, mas relatam "endereços não usuais" nos censos.

63. Qual o grande direito violado quanto aos sem-teto?


A existência de pessoas desabrigadas é o sintoma mais visível e severo do
desrespeito ao direito à moradia adequada. A ONU estimava que, em 2005,
aproximadamente 100 milhões de pessoas ao redor do mundo não tinham um
lugar para viver. E mais de um bilhão estavam abrigados de forma inadequada.
Não existe uma causa única que leve à situação de rua. As razões são
diversas e multifacetadas, incluindo a falta de moradia financeiramente
acessível, especulação imobiliária para fins de investimento e migração urbana
não-planejada. A esses fatores somam-se a destruição e o deslocamento
causados por conflitos e desastres naturais.
A incapacidade dos sistemas legais de proteger as pessoas contra a falta
de moradia e terra é agravada pela tendência de criminalização e violência
contra a população nessa situação.
Além disso, remoções e despejos forçados muitas vezes obrigam
indivíduos e famílias a se mudarem para a rua.
Os países devem ter políticas habitacionais destinadas à população mais
pobre, priorizando a reforma agrária, a edição de leis que protejam o direito das
mulheres à moradia, a criação de abrigos em centros urbanos e o
desenvolvimento rural integrado para reduzir a migração involuntária.

64. Como o Estado, ao julgar ação de reintegração de posse de


assentamentos, em entendendo necessária a concessão do pedido, pode
fazer com que não se produza sem-tetos?
Deve-se procurar assegurar que remoção de pessoas a ser feita no Brasil
atenda a requisitos mínimos, como esgotamento de vias conciliatórias para
resolução do conflito, prévio atendimento habitacional ou reassentamento das
famílias, entre outras. A Defensoria também pede que seja feita uma
regulamentação normativa dos procedimentos judiciais e policiais relativos a
despejos em conflitos fundiários, nos moldes do Comentário Geral nº 7 do
Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU.

Sem-terra

234
65. Como vem atuando a Defensoria Pública do Estado de São Paulo
acerca dos Sem-terra?
Defensores de Franca, em São Paulo, obtêm decisão em favor do
Movimento Sem-Terra (MST)
Vide notícia: http://www.apadep.org.br/noticias/defensores-de-franca-em-
sao-paulo-obtem-decisao-favoravel-em-favor-movimento-sem-terra-mst/
3 DE FEVEREIRO DE 2014
Os defensores públicos Caio Jesus Granduque, Antônio Machado Neto,
André Cadurin Castro, Mário Eduardo Bernardes Spexoto e Leandro Silvestre
Rodrigues e Silva, da unidade de Franca da Defensoria Pública do Estado de
São Paulo, conseguiram, por meio de agravo de instrumento, a suspensão de
uma liminar de reintegração de posse deferida pelo Juízo da Fazenda Pública
de Franca em ação reintegratória movida pelo Município de Restinga em face
de 22 famílias pertencentes ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-
Terra (MST).
O caso teve início em 2012, quando uma fazendeira de Restinga acionou a
Justiça pedindo a reintegração de posse de área anteriormente ocupada por
integrantes do MST, que saíram do local cumprindo decisão liminar da Justiça.
O processo, que ainda está em andamento, conta com apelação por parte da
Defensoria Pública e da Advocacia Geral da União, que reclama a propriedade
da terra em questão para a União.
Cumprindo a decisão liminar nesta ação mais antiga, os Sem-Terra
migraram para outra área, desta vez pertencente ao município de Restinga, lá
se encontrando desde outubro de 2013. Alguns meses depois, a prefeitura local
moveu ação de reintegração de posse e conseguiu liminar para que a saída
das famílias ocorresse de maneira imediata. Contudo, os defensores públicos
de Franca interpuseram recurso contra esta decisão e o Tribunal de Justiça
suspendeu a reintegração de posse pelo menos até o julgamento final do
agravo de instrumento interposto.
Além desse processo, a Defensoria Pública com atuação em Franca entrou
também com uma Ação Civil Pública em face do município de Restinga com o
objetivo de obrigar a prefeitura local a restabelecer o fornecimento de água aos
Sem-Terra, suspenso após a volta do prefeito local, cassado e reconduzido ao
cargo em dezembro de 2013. Nesta ação, os defensores destacam que o
fornecimento de água à população civil deve ser mantido até mesmo em
situações de guerra, conforme Protocolo II Adicional às Convenções de
Genebra de 1949.
“É infrequente a Justiça proferir decisões nas ações de reintegração de
posse em favor do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra”, avalia o
defensor público Antônio Machado Neto. “Estamos esperançosos em relação
ao julgamento do agravo de instrumento, porque confiamos na fundamentação
do recurso e porque esperamos que a Justiça não se esqueça que ´gado a
gente marca, tange, ferra, engorda e mata. Mas com gente é diferente´”.
finaliza.

66. O que pretende o Movimento Sem-Terra?


Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é um movimento
político-social brasileiro que busca a reforma agrária. Teve origem na oposição
ao modelo de reforma agrária imposto pelo regime militar, principalmente nos
anos 1970, que priorizava a Colonização de terras devolutas em regiões

235
remotas, com objetivo de exportação de excedentes populacionais e integração
estratégica. Contrariamente a este modelo, o MST busca fundamentalmente a
redistribuição das terras improdutivas.

REFUGIADOS

67. Há previsão de proteção aos refugiados em Declarações e Convenção


esparsas?
Sim, veja a Declaração universal dos direitos humanos – art. 14:
Artigo XIV 1. Todo ser humano, vítima de perseguição, tem o direito de
procurar e de gozar asilo em outros países. 2. Este direito não pode ser
invocado em caso de perseguição legitimamente motivada por crimes de direito
comum ou por atos contrários aos objetivos e princípios das Nações Unidas.
Trata-se de regra extraconvencional, mas com ius cogens, tratada como
costume internacional.
Essa pessoa não será devolvida, sob pena de responsabilização
internacional.
Na CADH, no artigo 22, 7:
Artigo 22 - Direito de circulação e de residência
7. Toda pessoa tem o direito de buscar e receber asilo em território
estrangeiro, em caso de perseguição por delitos políticos ou comuns
conexos com delitos políticos, de acordo com a legislação de cada
Estado e com as Convenções internacionais.
8. Em nenhum caso o estrangeiro pode ser expulso ou entregue a
outro país, seja ou não de origem, onde seu direito à vida ou à liberdade
pessoal esteja em risco de violação em virtude de sua raça,
nacionalidade, religião, condição social ou de suas opiniões políticas.
9. É proibida a expulsão coletiva de estrangeiros.

Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados e Protocolo sobre o


Estatuto dos Refugiados e Protocolo Facultativo

68. Como se define refugiado segundo a Convenção?


A pessoa que, temendo ser perseguida, por motivo de raça, religião,
nacionalidade, grupo social, ou opiniões políticas, encontra-se fora do país e de
sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-
se da proteção desse país, se não tem nacionalidade.
No Brasil, o mecanismo do refúgio é regido pela Lei 9.474 de 1997, que
estabelece o procedimento para a determinação, cessação e perda da
condição de refugiado, os direitos e deveres dos solicitantes de refúgio e
refugiados e as soluções duradouras para aquela população. A Lei Brasileira de
Refúgio considera como refugiado todo indivíduo que sai do seu país de origem
devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião,
nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas imputadas, ou devido a uma
situação de grave e generalizada violação de direitos humanos no seu país de
origem. Considera-se que uma pessoa é perseguida quando seus direitos
humanos tenham sido gravemente violados ou estão em risco de sê-lo. Isso
pode acontecer, por exemplo, quando a vida, liberdade ou integridade física da
pessoa corria sério risco no seu país. Todos os pedidos de refúgio no Brasil são

236
decididos pelo Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), órgão
vinculado ao Ministério da Justiça e composto por representantes do Ministério
da Justiça, do Ministério das Relações Exteriores, do Ministério do Trabalho, do
Ministério da Saúde, do Ministério da Educação, do Departamento de Polícia
Federal e de organizações da sociedade civil dedicadas a atividades de
assistência, integração local e proteção aos refugiados no Brasil. O ACNUR e a
Defensoria Pública da União têm assento no CONARE com direito a voz,
porém sem direito a voto.

69. Quais são os direitos do refugiados?


 Direito de receber dos Estados Partes tratamento ao menos tão
favorável quanto o que é proporcionado aos nacionais no que concerne
à liberdade de praticar a sua religião e no que concerne à liberdade de
instrução religiosa dos seus filhos;
 Direito de associação, quanto a associações sem fins políticos e
lucrativos e sindicatos profissionais;
 Direito de propugnar em juízo, assegurando-se o livre e fácil acesso aos
Tribunais, com o mesmo tratamento recebido por um nacional, incluindo-
se aí a assistência judiciária e a isenção de cautio judicatum solvi;
 Direito de receber tratamento dispensado ao estrangeiro no exercício de
empregos remunerados;
 Direito a receber tratamento concedido ao nacional em caso de
racionamento de produtos de que há escassez;
 Direito de receber tratamento concedido ao nacional em matéria de
assistência e de socorros públicos;
 Direito a receber tratamento concedido ao nacional em matéria de
assistência e de socorro públicos;
 Direito a receber tratamento concedido ao nacional em matéria de
oferecimento de ensino primário. Quanto aos graus de ensino superiores
ao primário, os Estados devem dar aos refugiados tratamento tão
favorável quanto possível, e em todo caso não menos favorável do que
aquele que é dado aos estrangeiros em geral, nas mesmas
circunstâncias;
 Direito de receber tratamento dado aos nacionais quanto à legislação do
trabalho (remuneração, jornada, idade mínima, aprendizado e formação
profissional, trabalho de mulheres e dos adolescentes e gozo das
vantagens proporcionadas pelas convenções coletivas);
 Direito de receber o mesmo tratamento dado aos nacionais quanto à
previdência social (acidentes de trabalho, moléstias profissionais,
maternidade, doença, invalidez, velhice, morte, desemprego, encargos
de família, demais riscos);
 Direito de receber do Estado assistência administrativa para o exercício
de direitos que normalmente exigem assistência estrangeira;
 Direito de receber do Estado contratante documento de identidade,
quando não possua documento de viagem válido, e documentos de
viagem para viajar para fora do território;
 Direito à liberdade de movimento para a escolha de residência e para a
circulação no território livremente, com as reservas aplicáveis aos
estrangeiros;

237
 Direito de não ser submetido a emolumentos alfandegários, taxas e
impostos além do que cobrados dos seus nacionais em situações
análogas;
 Direito de não ser submetido a sanções, caso o refugiado se apresente
sem demora às autoridades e exponha razões aceitáveis para sua
entrada ou presença irregulares; direito de que apenas restrições
necessárias podem ser impostas ao seu deslocamento;
 Direito de não ser expulso, salvo por motivos de segurança nacional ou
ordem pública, mediante decisão judicial proferida em atendimento ao
devido processo legal.
 Não devolução - Os solicitantes de refúgio não podem ser devolvidos ou
expulsos para um país onde a sua vida ou integridade física estejam em
risco. A proteção contra a devolução impõe, inclusive, o dever das
autoridades brasileiras de garantirem que qualquer estrangeiro terá
acesso ao mecanismo de refúgio, sobretudo nos controles migratórios
nas fronteiras, portos e aeroportos.
 Não penalização pela entrada irregular - Enquanto o pedido de refúgio
estiver sendo analisado, os solicitantes de refúgio têm o direito de não
serem investigados ou multados pelo ingresso irregular no território
brasileiro.

70. Qual a situação jurídica do refugiado?


O estatuto pessoal do refugiado é regido pela lei do seu país de domicílio
ou, na falta de domicílio, pela lei do país de sua residência. Os direitos que
tenha adquirido anteriormente que decorram do estatuto pessoal,
especialmente os que resulta do casamento, devem ser respeitados pelo
Estado Contratante ressalvado, se for o caso, o cumprimento das formalidades
previstas pela legislação do Estado. Quanto à aquisição de propriedade móvel
ou imóvel e a outros direitos a ela referentes, ao aluguel e aos outros contratos
relativos a propriedade móvel ou imóvel, os Estados Contratantes devem
conceder ao refugiado um tratamento tão favorável quanto possível, não
menos favorável do que é concedido nas mesmas circunstâncias aos
estrangeiros em geral. Quanto à propriedade industrial e à propriedade literária,
artística e científica, o refugiado deve se beneficiar, no país que tenha sua
residência habitual da proteção que é conferida aos nacionais do referido país
e, no território de outros Estados Contratantes, deve se beneficiar da proteção
dada aos nacionais no qual tem sua residência habitual.

71. Como se dá a atuação da Defensoria Pública de São Paulo na defesa


dos Refugiados?
A DPESP, em novembro de 2014, firmou acordo com a ACNUR (Alto
Comissariado das Nações Unidas para a Defesa dos Refugiados). O
acordo prevê a concentração de esforços das instituições para identificar, entre
a população sob o mandato do ACNUR, os que carecem de assistência
judiciária, a fim de que suas diferentes necessidades de proteção sejam
atendidas conforme a legislação brasileira. Há, ainda, previsão da participação
de Defensores Públicos no Comitê Estadual para refugiados.
A DPESP promove diversos seminários sobre o tema. Numa delas,
apresentou-se o examinador de Constiucional Leonardo Scofano, em
janeiro de 2015. O palestrante traçou um panorama da presença dos

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refugiados no Brasil, cujo número vem aumentando consideravelmente. Se
em 2010 o país acolhia 4.357 refugiados, em 2014 encerrou o ano com 7.289
estrangeiros nesta condição, de 81 nacionalidades.
A maior parte dos refugiados que hoje vivem no país são provenientes de
países que vivem conflitos armados, como a Síria, que hoje aparece no topo
da lista de nações com mais refugiados no país, respondendo por 20% (1.524)
do total de estrangeiros que se refugiam no Brasil. Em segundo lugar aparece
a Colômbia, com 1.218 refugiados. A grande maioria dos pedidos de refúgio,
em torno de 90%, ainda se refere a homens.
Estes 7.289 refugiados estão distribuídos por todo o país, mas dois dados
em especial chamam a atenção. O primeiro é que, entre as regiões, o Sul é
que concentra o maior porcentual de refugiados do Brasil, 35% do total.
Contudo, é ao Estado de São Paulo que se dirige a maior parcela de
solicitações de refúgio, 26% do total. “Esse quadro indica que, muito em breve,
a a questão dos refugiados se refletirá não apenas na Defensoria Pública da
União como também nas Defensorias estaduais”, afirmou Peixoto.
Peixoto também lembrou as diferenças entre os conceitos de asilo, mais
característico da América Latina, e de refugiado, que nasceu no Hemisfério
Norte. O primeiro é muito usado nos casos de cidadãos afetados por golpes de
Estado, ditaduras e outros acontecimentos políticos, com diversos tratados
internacionais regionais tratando do tema. Já o conceito de refúgio nasceu de
tratados e protocolos firmados entre as décadas de 50 e 60 para amparar as
vítimas da 2ª Guerra Mundial e ganhou abrangência global. No asilo, a
perseguição é contínua e individualizada. No refúgio, generalizada. Além disso,
o refúgio se baseia no direito internacional e os Estados envolvidos são
obrigados a concedê-lo.
No Brasil, explicou o Defensor, o conceito de refugiado é fundamentado em
temores de perseguição por diversas naturezas (étnica, religião, nacionalidade,
participação de grupo social ou grupos políticos). Posteriormente, passou a ser
considerado refugiado qualquer pessoa que tenha tido algum direito humano
violado. Quando encaminhado ao país, o pedido de refúgio é solicitado a um
comitê formado por diversos ministérios, uma organização não governamental
(Caritas) e pela ACNUR (Agência da ONU para refugiados). A DPU integra esta
comissão desde 2012, com voz, porém sem direito a voto. A Defensoria
também participa do procedimento de solicitação de refúgio e das entrevistas
com os refugiados. São Paulo foi o primeiro Estado a instituir, em 2007, o
comitê estadual de refugiados. “A Defensoria Pública ainda não integra este
comitê, mas é muito importante passar a compor o grupo”, disse.
O Defensor abordou ainda a situação dos apátridas, que não têm
nacionalidade, lembrando que durante a Segunda Guerra Mundial o Estado
Nazista suprimiu diversas nacionalidades e mencionando o caso de pessoas
que não nascem em nenhum país, mas em zonas internacionais. Peixoto
explicou que o Brasil adotou a convenção dos apátridas e que, nos casos
em que o comitê de refugiados não reconhece o apátrida como um refugiado,
ele conta com a convenção dos apátridas. Ele falou ainda da parceria firmada
recentemente pela Defensoria Pública de São Paulo com a ACNUR, visando à
análise de possíveis medidas administrativas que contribuam com os
refugiados.
Ver: http://www.apadep.org.br/noticias/seminario-enadep-defensor-
trata-da-defesa-dos-direitos-de-refugiados-e-apatridas/

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72. Como se dá a solicitação de refúgio no Brasil?
Para solicitar refúgio no Brasil, é preciso estar presente no território
nacional. A qualquer momento após a sua chegada no Brasil, o estrangeiro que
se considera vítima de perseguição em seu país de origem deve procurar uma
Delegacia da Polícia Federal ou autoridade migratória na fronteira e solicitar
expressamente o refúgio para adquirir a proteção do governo brasileiro. O
estrangeiro que solicita refúgio no Brasil não pode ser deportado para fronteira
de território onde sua vida ou liberdade estejam ameaçadas.

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