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Presidente da República

Dilma Vana Rousseff


Ministro da Educação
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Universidade Federal do Ceará
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Conselho Editorial
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Profa Ângela Maria Mota Rossas de Gutiérrez
Prof. Gil de Aquino Farias
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Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação B­ rasileira
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Kelma Socorro Alves Lopes de Matos
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Conselho Editorial
Dra Ana Maria Iório Dias (UFC) Dr. Justino de Sousa Júnior (UFC)
Dra Ângela Arruda (UFRJ) Dra Kelma Socorro Alves Lopes de Matos (UFC)
Dra Ângela T. Sousa (UFC) Dra Lia Machado Fiuza Fialho (UECE)
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Dra Antônia Dilamar Araújo (UECE) Dra Maria de Fátima V. da Costa (UFC)
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Dra Carla Viana Coscarelli (UFMG) Dra Maria Izabel Pedrosa (UFPE)
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Dra Eliane dos S. Cavalleiro (UNB) Dra Marly Amarilha (UFRN)
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Dr. José Levi Furtado Sampaio (UFC) Dra Valeska Fortes de Oliveira (UFSM)
Dr. Juarez Dayrell (UFMG) Dra Veriana de Fátima R. Colaço (UFC)
Dr. Júlio Cesar R. de Araújo (UFC) Dr. Wagner Bandeira Andriola (UFC)
Gledson Ribeiro de Oliveira
Jeannette Filomeno Pouchain Ramos
Bruno Okoudowa
Organizadores

ALINE NEVES RODRIGUES ALVES


BAS´ILELE MALOMALO
BRUNO OKOUDOWA
DENISE ROCHA
FÁBIO BAQUEIRO FIGUEIREDO
FAUSTO ANTONIO
GLEDSON RIBEIRO DE OLIVEIRA
ISAAC BRUNO OLIVEIRA ARAÚJO
IVAN MAIA DE MELLO
IZABEL CRISTINA DOS SANTOS TEIXEIRA
JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS
JOÃO B. A. FIGUEIREDO
JOSÉ ANTÔNIO SOUZA DE DEUS
LUÍS TOMÁS DOMINGOS
NILMA LINO GOMES
RAMON SOUZA CAPELLE DE ANDRADE
RODRIGO ORDINE
SURA SUBUHANA
VERA RODRIGUES

Fortaleza
2013
Cá e Acolá: Experiências e Debates Multiculturais
© 2013 Gledson Ribeiro de Oliveira, Jeannette Filomeno Pouchain Ramos e Bruno
Okoudowa (Organizadores)
Impresso no Brasil / Printed in Brazil
Efetuado depósito legal na Biblioteca Nacional
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Edições UFC
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Normalização Bibliográfica
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Projeto Gráfico e Capa
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Revisão de Texto
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação


Universidade Federal do Ceará – Edições UFC

Cá e acolá: experiências e debates multiculturais / Gledson Ri-


beiro de Oliveira, Jeannette Filomeno Pouchain Ramos e
Bruno Okoudowa [organizadores] et al ... – Fortaleza: Edi-
ções UFC, 2013.

339p. : il.
Isbn: 978-85-7282-607-5

1. Educação multicultural  2. Multiculturalismo – ­Brasil 


3. Educação pós-colonial  4. Políticas afirmativas

CDD: 370.5
SOBRE OS AUTORES

Aline Neves Rodrigues Alves – Mestranda em Educação pela


Faculdade de Educação (FaE/UFMG). Graduada em Geografia
pelo Instituto de Geociências – IGC/UFMG. Integrante do Núcleo
de Estudos e Pesquisas sobre Relações Raciais e Ações Afirmativas
­(NERA-CNPQ).
E-mail: alineves2005@yahoo.com.br

Bas´Ilele Malomalo – Doutor em Sociologia pela Universidade


Estadual Paulista (UNESP). Professor Adjunto do Instituto de Hu-
manidades e Letras da UNILAB e membro do Grupo de Pesquisa
ORITÁ: Espaços, Identidades, Memórias e Pensamento Complexo
(UNILAB). Pesquisador do NUPE, Núcleo Negra da UNESP para
Pesquisa e Extensão e do Centro de Estudo de Línguas e Culturas
Africanas e da Diáspora Negra.
E-mail: basilele@unilab.edu.br

Bruno Okoudowa – Doutor em Linguística pela Universidade de


São Paulo. Professor Adjunto do Instituto de Humanidades e Letras
da UNILAB e membro dos Grupos de Pesquisa Estudos de Línguas
Africanas (GELA-USP), Oritas. Desenvolvimento e Cooperação In-
ternacional do CNPQ. Coordenador do Projeto de Extensão: La fran-
cophonie à l’Unilab.
E-mail: okbruno@unilab.edu.br

Denise Rocha – Doutora em Literatura e Vida Social e Gradua-


ção em Letras pela UNESP, campus de Assis (São Paulo). Profes-
sora Visitante do Instituto de Humanidades e Letras da UNILAB.
Bacharelado em História na Ruprecht-KarlsUniversität Heidelberg
(Alemanha). Contato: denise@unilab.edu.br

Fábio Baqueiro Figueiredo – Doutor em Estudos Étnicos e Afri-


canos pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor Adjun-
to do Instituto de Humanidades e Letras da UNILAB e membro do
Grupo de Pesquisa África: história e identidades (UFBA). Contato: 
E-mail: fabiobaq@unilab.edu.br

Carlindo Fausto Antonio (Nome: literário Fausto Antonio) –


Doutor em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de
Campinas. Professor Adjunto do Instituto de Humanidades e Letras
da UNILAB; membro do NEAB- Núcleo de Estudos Africanos e Afro-
-Brasileiros e atua, no âmbito da UNILAB, na linha de pesquisa”África
no Brasil: produção e circulação de saberes”.
E-mail: fausto_escritor@unilab.edu.br

Gledson Ribeiro de Oliveira – Doutor em Sociologia pela Uni-


versidade Federal do Ceará, professor Adjunto do Instituto de Hu-
manidades e Letras da UNILAB, vice-coordenador do Grupo de
Pesquisa Núcleo de Estudos de Religião, Cultura e Política (UFC)
e membro do Grupo de Pesquisa História, Literatura e Cultura dos
Espaços Lusófonos (UNILAB).
E-mail: gledson@unilab.edu.br

Isaac Bruno Oliveira Araújo – Discente do curso do Bacharela-


do em Humanidades da UNILAB. Bolsista de BICT-FUNCAP.
E-mail: isaacaraujooficial@gmail.com

Ivan Maia de Mello – Doutor em Educação pelo Programa de


Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Uni-
versidade Federal da Bahia (2012). Professor Adjunto de Filosofia
do Instituto de Humanidades e Letras da UNILAB. Coordenador de
Arte e Cultura da UNILAB e membro dos Grupos de Pesquisa Filoso-
fia e Linguagens Artísticas Modernas e Contemporâneas (UNILAB),
Spinoza e Nietzsche (UFRJ), Epistemologia do educar e práticas Pe-
dagógicas (UFBA).
E-mail: ivan.maia@unilab.edu.br
Izabel Cristina dos Santos Teixeira – Doutora em Literatura
pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora
Adjunto do Instituto de Humanidades e Letras da UNILAB. Projeto
de Pesquisa (CNPq-UNILAB): Sustentabilidade e Meio Ambiente:
Representações na Literatura Moçambicana Contemporânea.
E-mail: izabel.cristina@unilab.edu.br.

Jeannette Filomeno Pouchain Ramos – Doutora em Educação


Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professora Vi-
sitante do Instituto de Humanidades e Letras da UNILAB.
E-mails:ramosjeannette@yahoo.com.br
ramosjeannette@unilab.edu.br

João B. A. Figueiredo – Doutor em Ciências (Ecologia) pela Uni-


versidade Federal de São Carlos (UFSCar). Pós-Doutor em Educação
pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor As-
sociado da Universidade Federal do Ceará (UFC).
E-mails: joaofigueiredo@hotmail.com; joaofigueiredoufc@gmail.com

José Antônio Souza de Deus – Doutor em Geografia pela Univer-


sidade Federal do Rio de Janeiro. Professor Associado da Graduação
e Pós-Graduação do Instituto de Geociências da UFMG. Integrante
do Laboratório de Geografia Agrária e Agricultura Familiar – Institu-
to de Geociências – IGC/UFMG.
E-mail: jantoniosdeus@uol.com.br

Luís Tomás Domingos – Doutor em Anthropologie et Sociolo-


gie du Politique. – Université de Paris VIII- França. Professor Ad-
junto do Instituto de Humanidades e Letras da UNILAB e membro
dos Grupos de Pesquisa Políticas Públicas, Diversidade Cultural e
Inclusão Social (UNILAB), Baobah –Grupo de pesquisa em Educa-
ção, Religião e Laicidade (UFPB), Cotidiano, cidadania e educação
(UEPB).
E-mail: luis.tomas@unilab.edu.br.
Nilma Lino Gomes – Doutora em Antropologia Social pela Uni-
versidade de São Paulo e pós-doutora em Sociologia pela Universida-
de de Coimbra; Reitora Pró-Tempore da Universidade da Integração
Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB). Professora
do Programa de Pós-Graduação Conhecimento e Inclusão Social da
FAE/UFMG. Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre
Relações Étnico-Raciais e Ações Afirmativas (NERA/CNPQ).
E-mail: nilma@unilab.edu.br

Ramon Souza Capelle de Andrade – Doutor em Filosofia pela


Universidade Estadual de Campinas. Professor Adjunto do Insti-
tuto de Humanidades e Letras da UNILAB e membro dos Grupos
de Pesquisa Guerra e Justiça (UNILAB), CLE – Auto-organização
(UNICAMP), Acadêmico de Estudos Cognitivos (UNESP), Lógica e
Epistemologia (UNICAMP).
E-mail: ramon.capelle@unilab.edu.br

Rodrigo Ordine – Doutor em Letras (Estudos de Literatura) pela


Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Pro-
fessor Adjunto do Instituto de Humanidades e Letras da UNILAB
e membro dos Grupos de Pesquisa  ORITÁ: Espaços, Identidades,
Memórias e Pensamento Complexo (UNILAB) e Literatura, Política
e Cultura: as relações entre Portugal, Brasil e África (PUC-Rio). 
E-mail: ordine@unilab.edu.br

Sura Subuhana – Discente do curso de Licenciatura em Letras da


UNILAB. Bolsista de PIBIC- UNILAB.
E-mail: subuhana.sura@gmail.com

Vera Rodrigues – Doutora em Antropologia Social pela Universi-


dade de São Paulo. Professora Adjunto do Instituto de Humanida-
des e Letras da UNILAB e membro dos Grupos de Pesquisa Oritá:
espaços, identidades, memória e pensamento complexo (UNILAB),
Guerra e Justiça (UNILAB). Ex-Bolsista International Fellowship
Program Ford Fundation.
E-mail: vera.rodrigues@unilab.edu.br
SUMÁRIO

DIÁLOGOS MULTICULTURAIS: POSSIBILIDADES E LIMITES DA RUPTURA POLÍTICA E


EPISTEMOLÓGICA
Gledson Ribeiro de Oliveira
Jeannette Filomeno Pouchain Ramos
Bruno Okoudowa........................................................................13

1
Colonização e Descolonização do Saber

COMUNIDADES QUILOMBOLAS: UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO


DO LUGAR COM O USO DE MAPAS MENTAIS
Aline Neves Rodrigues Alves
José Antônio Souza de Deus
Nilma Lino Gomes......................................................................27

DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NA ÁFRICA: MOÇAMBIQUE E SUA BUSCA


POR ALTERIDADE
Luís Tomás Domingos............................................................... 58

A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO BRASIL COLONIALIZADO (1549-1890):


SUBALTERNIZAÇÃO OU LIBERTAÇÃO/DESCOLONIALIZAÇÃO?
Jeannette Filomeno Pouchain Ramos....................................... 87
João B. A. Figueiredo................................................................. 87

2
Religião, Política e Igualdade Racial

ÁFRICA, RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS E IGREJAS EVANGÉLICAS:


APONTAMENTOS
Gledson Ribeiro de Oliveira
Isaac Bruno Oliveira Araújo.................................................... 115
DESAFIOS DA DEMOCRACIA E DO DESENVOLVIMENTO NA ÁFRICA: UM OLHAR
SOBRE A REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO A PARTIR DA DIÁSPORA NEGRA
BRASILEIRA
Bas´Ilele Malomalo..................................................................134

BRASIL, “UM PAÍS DE TODOS”? DA POLÍTICA PÚBLICA UNIVERSAL


À POLÍTICA PÚBLICA PELA IGUALDADE RACIAL.
Vera Rodrigues.........................................................................158

VOZES DA ÁFRICA — CONTEÚDOS E CONTINENTES: RAÍZES INTELECTUAIS


DO NACIONALISMO AFRICANO DAS INDEPENDÊNCIAS
Fábio Baqueiro Figueiredo.......................................................178

3
Literatura, Língua e Filosofia

MEMÓRIA E REALIDADE TRAUMÁTICA: UMA ANÁLISE


DE SÔBOLOS RIOS QUE VÃO
Rodrigo Ordine........................................................................ 205

O LUGAR DE HABITAR E SUA RECONFIGURAÇÃO AMBIENTAL:


O CASO DE “BALADA DO AMOR AO VENTO”, DE PAULINA CHIZIANE
Izabel Cristina dos Santos Teixeira
Sura Subuhana......................................................................... 224

UM GUARDIÃO DA MEMÓRIA AFRICANA EM SALVADOR:


JUBIABÁ (1935), DE JORGE AMADO (1912-2001)
Denise Rocha............................................................................ 242

OS RECURSOS CINEMATOGRÁFICOS NO CONTO “QUANDO O MALANDRO VACILA”,


DE MÁRCIO BARBOSA
Fausto Antonio..........................................................................272
OS DESAFIOS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO PARA OS ALUNOS DE PAÍSES
LUSÓFONOS DOS CONTINENTES AFRICANO E ASIÁTICO NA UNILAB:
COMPREENDENDO A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA PARA ALÉM DO BRASIL
Bruno Okoudowa..................................................................... 283

UM OLHAR FILOSÓFICO PARA A POESIA AFRO-BRASILEIRA


Ivan Maia de Mello.................................................................. 295

TEORIA GERAL DOS SISTEMAS E IDENTIDADE PESSOAL:


UMA APROXIMAÇÃO COM O PENSAMENTO AFRICANO
Ramon Souza Capelle de Andrade...........................................310
DIÁLOGOS MULTICULTURAIS: POSSIBILIDADES E LIMITES DA RUPTURA
POLÍTICA E EPISTEMOLÓGICA

Gledson Ribeiro de Oliveira


Jeannette Filomeno Pouchain Ramos
Bruno Okoudowa

Preciso ser um outro


para ser eu mesmo
Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta
Sou pólen sem insecto
Sou areia sustentando
o sexo das árvores
Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro
No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço
(Mia Couto, 1977).

Na “modernidade tardia”, as informações, mercadorias,


símbolos, signos, imagens e pessoas deslocam-se em fluxos
globais sem precedentes formando uma economia-mundo
que potencializa o processo de compressão espaço-tempo, a
formação de um sistema interestatal de controle, a acumula-
ção por meio da financeirização econômica e entretece uma
rede de interdependência sociocultural pela qual são inter-
cambiados etnias, línguas, tradições culturais e religiões.
Como parte de variados sistemas mundiais de interação entre
sociedades e Estados que, nem sempre, são harmoniosas ou
simétricas, porque ocidentalizada e pautada por trocas mer-
cantis, os encontros socioculturais decorrentes dessas intera-
ções estimulam a desterritorializações e bricolagens culturais
para além das fronteiras nacionais.

d  13
O deslocamento ou dissolução dessas fronteiras nacio-
nais através de diásporas complexas tem como uma de suas
expressões flagrantes os fluxos migratórios globais pelos quais
pessoas e grupos passam de uma comunidade de pertenci-
mento para outro lugar, sem começo nem fim (IANNI, 1999;
HALL, 2011). Esse movimento de idas e vindas nem sempre se
materializou a partir da vontade subjetiva, mas, muitas vezes
do contexto histórico-social, podendo ser compulsória, como
foi o caso do tráfico de negros africanos para a América, Eu-
ropa e Ásia e, como ainda hoje, no caso do tráfico de pessoas
e órgãos.
Stuart Hall (2011), que cresceu na Jamaica e vive na In-
glaterra, tem contribuído significativamente para a compre-
ensão desse fenômeno. Para Hall, o estudo da diáspora deve
ser relacional e não estático, como também deve fomentar
uma análise tanto de aspectos sociais como simbólicos, ou
seja, em sua complexidade e totalidade. Dessa forma, ele re-
jeita o pensar reducionista que trata apenas do que é visível
aos olhos. Nessa perspectiva, não há uma identidade cultural.
As identidades culturais são múltiplas, pois, na modernidade,
as comunidades são transnacionais (2011, p.26).
A concepção fechada de tribo, de diáspora e de pátria
sugere uma identidade cultural “com um núcleo imutável e
atemporal, ligando ao passado o futuro e o presente numa
linha ininterrupta. Esse cordão umbilical que se chama ‘tra-
dição’”. (HALL, 2011, p.29). A identidade é uma questão
histórica, portanto, não está restrita a um movimento de
continuidade, mas também de rupturas, como é o caso da
diáspora africana. Tanto os aspectos “autênticos da origem”,
como genético, hereditário e do Eu interior (p.28), bem
como os diferentes elementos culturais africanos, asiáticos e
europeu, em fusão na fornalha colonial, resultaram em cul-

14  d GLEDSON RIBEIRO DE OLIVEIRA • JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • BRUNO OKOUDOWA
turas híbridas, múltiplas. Pode-se afirmar que, nas zonas de
contato coloniais, a copresença espacial e temporal de su-
jeitos antes isolados geográfica e historicamente forjaram e
forjam, na dialética do hibridismo cultural, uma identidade-
-como-diferença, isto é, um processo em que a diferenciação
cultural tem como ponto de partida não o que é idêntico no
interior do grupo, mas a constituição de uma operação em
que se nega, negocia-se e se deslocam as fronteiras entre o
Eu e o Outro.
Tratando dos paradigmas dos estudos culturais, Hall
(2011, p. 123) sintetiza que o que importa são as rupturas
significativas “em que as velhas correntes de pensamento
são rompidas, velhas constelações deslocadas, e elementos
novos e velhos são reagrupados ao redor de uma nova gama
de premissas e temas”. Não necessariamente é o cá dos para-
digmas culturalistas nem o acolá dos estruturalistas, mas, é no
confronto entre os dois grupos que despontam outras possibi-
lidades de análises. Nesse sentido, as pesquisas reunidas nesta
coletânea pressupõem uma diversidade cultural, paradigmáti-
ca e cognitiva na apreensão da realidade que apontam o desafio
da ruptura política e epistemológica do pensamento único e da
formação de intelectuais orgânicos “comprometidos com um
trabalho intelectual radical que gera mudanças sociais e eco-
nômicas” (p.14).
A partir de outras lentes do cá e do acolá, Catherine
Walsh (2008), ao tratar sobre as insurgências na refundação
do Estado na América do Sul, destaca que é fundamental ana-
lisar as relações culturais cunhadas nas possibilidades de in-
ter, pluri e multiculturalidade, pois a diversidade cultural na
transição para o século XXI tem se materializado de diferentes
formas no hemisfério norte e no sul. Para a autora, o multicul-
turalismo emerge no ocidente como uma possibilidade de re-

DIÁLOGOS MULTICULTURAIS: POSSIBILIDADES E LIMITES DA RUPTURA POLÍTICA E EPISTEMOLÓGICA d  15


conhecer a diversidade, no entanto, não desenvolve políticas
públicas de promoção e reparação das desigualdades histó-
ricas, socioeconômicas. Segundo Walsh (2008), são coleções
de culturas singulares sem relações entre elas. A pluralidade
se caracteriza como sendo o reconhecimento da diversidade
cultural e a coexistência e convivência num mesmo território/
nação, sem relações equitativas (WALSH, 2008, p.140). A al-
ternativa que desponta como desafio é a interculturalidade,
que se apresenta como a existência de várias culturas que se
relacionam de forma harmoniosa, no entanto, esta pressupõe
políticas reparadoras e afirmativas na promoção da igualdade
social e jurídica, respeitando a diversidade cultural. Esta, por-
tanto, para Walsh, não existe ainda; é um desafio! O mesmo
desafio que em epígrafe, Mia Couto expressa: “existo onde me
desconheço”.
Para além desta trimembração, há ainda o transcultural
ou transnacional que, em consonância com o movimento de
globalização (DREIFUSS, 2004), emerge de diferentes luga-
res criando redes infindáveis, que se transversalisam perpas-
sando culturas que influenciam e são influenciadas, rompen-
do com as fictícias fronteiras nacionais.
Dessa forma, este livro trata dos encontros entre o cá e o
acolá reunindo pesquisas sobre universos culturais distintos e
interdependentes. O “Cá” é o Brasil que por si, já é multicultu-
ral. São muitos brasis numa única nação, numa única repúbli-
ca de dimensões continentais. Essa diversidade está represen-
tada não apenas nos artigos que compõem esta publicação,
mas no próprio coletivo de pesquisadores que se reuniram
em tal empreitada. Estes explicitam os fluxos multiculturais
entre cá e acolá. Do Brasil, Congo, Gabão ou Moçambique,
os autores compõem rico painel histórico, político, cultural,
educacional, linguístico, literário, filosófico e religioso. A di-

16  d GLEDSON RIBEIRO DE OLIVEIRA • JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • BRUNO OKOUDOWA
versidade de olhares e objetos indica, igualmente, diferentes
domínios do conhecimento e trajetórias de vida. Em aborda-
gens interdisciplinares, os autores se utilizam de instrumen-
tos conceituais e metodológicos de variadas searas do saber
na construção de seus objetos.
“Acolá” refere-se tanto aos falantes da língua portugue-
sa da outra margem do Atlântico como de Timor-Leste. No
que diz respeito ao continente africano, trata-se de um espaço
formado por 54 países de línguas, etnias e culturas diferentes.
A divisão da maioria desses países resultou de um processo
de invasão regularizada pelo tratado de Berlim de 1884-1885.
Essa divisão foi feita sem considerar as línguas e culturas
nativas africanas. As consequências disso são sofridas pelos
africanos até hoje. Igualmente o Timor-Leste está transpas-
sado pela empresa colonial capitaneada por Portugal e pela
ocupação militar da Indonésia. As trocas multiculturais nos
continentes africano, asiático e americano foram envolvidos
na mesma história, pelo continente europeu, através do tráfi-
co negreiro, da busca por temperos na Índia e pela exploração
de riquezas via colonização.
No que diz respeito à relação Brasil-África, há ainda
muitos passos a serem dados para que um diálogo multicul-
tural contemple o continente africano como um todo. Dos
54 países africanos, apenas cinco formam os Países Africa-
nos de Língua Oficial Portuguesa- PALOP’s, sendo três no
continente: Angola, Guiné Bissau e Moçambique; e dois
formados por ilhas: Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. A
invenção da África explicita desafios linguísticos, sociais,
econômicos, cultural, entre outros. Quanto ao continente
asiático, a ‘lusofonia’ nele é representada por três espaços:
Goa, na Índia, Macau, na China e Timor-Leste, que é um
país recém-independente.

DIÁLOGOS MULTICULTURAIS: POSSIBILIDADES E LIMITES DA RUPTURA POLÍTICA E EPISTEMOLÓGICA d  17


Não obstante, a noção de lusofonia apele para a unida-
de cultural e linguística, as diferentes perspectivas políticas e
históricas nas ditas “comunidades lusófonas” têm desvelado,
peremptoriamente, a fragilidade e artificialidade do discurso
lusófono acerca de uma ‘herança’ ou ‘identidade comum’ a
ser celebrada. Com efeito, o reconhecimento à diferença e a
afirmação da herança local têm gestado uma memória e sen-
timento de pertença na qual é valorizada, menos a unicidade,
que a pluralidade cultural.
A cooperação solidária Sul-Sul pressupõe uma integra-
ção que começa pelo interesse compartilhado entre os povos
em vistas do estabelecimento de um diálogo que passa pelo
conhecimento e valorização cultural e multicultural. Dialogar
para se conhecer melhor, analisar os problemas comuns para,
se possível, encontrar soluções comuns e para aprender com a
experiência do outro, do diverso, pois “Preciso ser um outro,
para ser eu mesmo” (COUTO, s.d, p.13).
Inserida no circuito da cooperação Sul-Sul, a UNILAB
tem como um dos seus objetivos institucionais e pedagógicos
o estímulo e adensamento da produção, parceria e trocas de
saberes entre os países da ‘comunidade lusófona’, principal-
mente com os da África Negra. A UNILAB, portanto, é uma
possibilidade nessa caminhada de diálogos multiculturais, no
sentido em que se trata de uma Universidade de Integração
Internacional da Lusofonia Afro-brasileira. Isso envolve todos
os países onde a língua portuguesa é falada.
Como ensina Paulo Freire (2004) o diálogo é uma exi-
gência existencial e do lugar de encontro, pois não é no silên-
cio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na
ação-reflexão. Adverte ainda que a autossuficiência e os “gue-
tos” de homens puros é incompatível com o diálogo quando
se está fechado à contribuição do Outro. O diálogo, portanto,

18  d GLEDSON RIBEIRO DE OLIVEIRA • JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • BRUNO OKOUDOWA
poderá possibilitar a conscientização, a superação, o sentir-
-se e saber-se tão sujeito quanto os outros; da caminhada que
ainda está por vir a ser e da busca do saber e ser mais.
Em cadência com o dito acima, este livro socializa as
experiências de pesquisa que têm por objeto a diáspora afro-
-brasileira, a África Negra e além, a citar, Timor-Leste e Por-
tugal, em seus diferentes lapsos temporais.
Abrindo a primeira seção desta coletânea, Colonização
e descolonização do saber, Aline N. Rodrigues Alves, José
Antônio S. de Deus e Nilma Lino Gomes propõem um estu-
do da comunidade quilombola de Barro Preto, Minas Gerais.
Explorando a história do movimento negro e quilombola no
Brasil, os autores refazem o percurso das lutas pelo reconhe-
cimento social e acesso à terra dos remanescentes das comu-
nidades dos quilombos. A noção de lugar, como subjetivação
do espaço pelo qual se apreende os significados e relações de
pertencimento da comunidade, é compreendida metodologi-
camente por meio de “mapas mentais” elaborados por estu-
dantes do ensino fundamental que vivem na comunidade de
Barro Preto. Nestes, as representações das crianças sobre seu
lugar de pertença, a relação com seus parentes e o senso de
identidade quilombola ganham contornos reais por meio de
traços pueris. No segundo texto, Luís Tomás Domingos anali-
sa os efeitos “ambíguos” da educação formal em Moçambique.
Ao contrário da educação ocidental, centrada no domínio de
técnicas e conteúdos, a educação africana valoriza a harmo-
nia e a compatibilização global de todas as disciplinas face ao
Universo, tendo por fundamento gnoseológico a “dinâmica da
alteridade”. Sua problematização busca compreender os desa-
fios educacionais, em um contexto de África Negra, que con-
jugue as contribuições da educação europeia e a cultura an-
cestral africana na construção de uma educação pós-colonial.

DIÁLOGOS MULTICULTURAIS: POSSIBILIDADES E LIMITES DA RUPTURA POLÍTICA E EPISTEMOLÓGICA d  19


Como conclui, a concepção de um novo projeto educacional
em África deve “descobrir, reanimar e fortalecer o seu poten-
cial criativo e revelar o potencial que está escondido em cada
cultura (Africana, Europeia e outros) para o desenvolvimento
integral do homem, o ser humano”.
Por sua vez, Jeannette Ramos e João Figueiredo nave-
gam pela história da educação portuguesa e brasileira, iden-
tificando os processos que constituíram o modelo de instru-
ção colonizante, elitista e desigual. Explicitam que o projeto
educacional português, por um lado, dava instrução às classes
subalternas com o objetivo de formar súditos alfabetizados
e tementes a Deus e, por outro, oferecia a educação média e
superior para os futuros gestores de Estado e da burocracia
sacerdotal. Na Terra de Santa Cruz-Brasil, os padres jesuítas
acrescentaram ao projeto educacional português o extermí-
nio, a dominação e a “negação da cosmovisão indígena e afri-
cana”, estabelecendo as bases do modelo desigual da educa-
ção brasileira que foi perpetuado por todo o período imperial,
e que alcançou os primeiros anos de república sem profundas
mudanças estruturais.
Na seção seguinte, intitulada Religião, Política e Igual-
dade Racial, Gledson Ribeiro de Oliveira e Isaac Bruno Araú-
jo examinam as relações conflituosas das igrejas evangélicas
com as religiões afro-brasileiras e o lugar em que o continen-
te africano ocupa nas representações religiosas. Analisando
três casos recentes, o capítulo aponta que é de livre curso a
condenação pública das religiões e cultura afro-brasileira por
parte das igrejas evangélicas, principalmente as igrejas neo-
pentecostais. Infere, também, que há uma continuidade entre
o passado e o presente das missões evangélicas que difundem
uma visão empobrecida e salvacionista, no campo evangéli-
co, do continente africano. No texto seguinte, Bas´Ilele Ma-

20  d GLEDSON RIBEIRO DE OLIVEIRA • JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • BRUNO OKOUDOWA
lomalo discorre sobre os desafios a serem transpostos em
África para alcançar um desenvolvimento socioeconômico
sustentável. Estudando o caso da República Democrática do
Congo, reconstrói, na longa duração, a dinâmica histórica
de dominação, exploração e autoritarismo que levou o país
a figurar entre as mais desiguais do globo, ponderando que a
resposta aos dilemas da sociedade congolesa passa por uma
educação voltada à complexidade e solidariedade, sustenta-
bilidade ambiental e comprometimento social dos dirigentes
políticos.
Vera Rodrigues toma as políticas públicas de igualda-
de racial dos períodos Collor, Fernando Henrique Cardoso e
Lula, e as trajetórias de lutas dos movimentos negros como
materiais de sua reflexão sobre as conquistas e recuos na pro-
moção das políticas de igualdade racial no Brasil. Compreen-
de que as desigualdades por motivo de “cor” e “procedência”
só podem ser superadas com a igualdade de acesso aos bens
públicos “como um direito inerente ao exercício pleno da ci-
dadania.” Já Fábio Baqueiro Figueiredo, traça um panorama
de dois grandes pólos simbólicos, África e Terceiro Mundo,
situando as raízes do novo discurso africano de emancipa-
ção à virada do século XIX para o XX, num inventário que
vem se estabelecendo como uma espécie de “contracânone”
da modernidade. Para o autor, as raízes intelectuais do na-
cionalismo africano das independências revela uma longa e
multiforme tradição pan-africana que combinam-se com a
emergência do Terceiro Mundo, como categoria de identifi-
cação coletiva que mudou o panorama do campo nacionalis-
ta, e dão forma ao complexo e conflituoso campo da política
africana a partir da década de 1960.
Iniciando a terceira seção, Literatura, Língua e Filo-
sofia, Rodrigo Ordine faz emergir de Sôbolos rios que vão,

DIÁLOGOS MULTICULTURAIS: POSSIBILIDADES E LIMITES DA RUPTURA POLÍTICA E EPISTEMOLÓGICA d  21


do português António Lobo Antunes, temas frequentes nos
romances desse médico psiquiatra que atuou na guerra co-
lonial em Angola: a experiência traumática, o esquecimen-
to e a memória. Considerando-o uma intricada narrativa de
construção romanesca e autobiográfica hibridizada, faz uma
reflexão sobre as variações estéticas narradas a partir da per-
sonagem “senhor Antunes da cama onze” que, tal como o
autor, está transpassado, talvez, pelo seu maior momento de
dor, a descoberta de um câncer. O texto de Izabel Cristina e
Sura ­Subuhana convida o leitor a percorrer o livro da escritora
moçambicana Paulina Chiziane, Balada do Amor ao Vento.
O tempestivo amor entre as personagens Sarnau e Mwando é
o fio pelo qual os autores urdem os fluxos, com suas trocas e
negociações culturais em um contexto colonial, com os fixos,
representados pela aldeia Mambone, o povoado de além-mar
Vilanculos e a cidade de Lourenço Marques (Maputo), em in-
terface com o meio ambiente.
O texto de Denise Rocha trata dos valores, da religio-
sidade e da riqueza da cultura africana retratadas por meio
do pai de santo Jubiabá, personagem ficcional do romance
homônimo de Jorge Amado. Este era o último remanescente
da geração de escravos e o patriarca de negros e mulatos, aos
quais narra a ancestralidade africana e a saga de Zumbi dos
Palmares, ao mesmo tempo em que denuncia a perseguição
policial ao candomblé, nos anos 1920 e 1930, em Salvador.
Numa análise literária do ser negro diaspórico e desvelando
as relações encruzilhadas com os recursos jornalísticos e ci-
nematográficos, Fausto Antônio, discute e revela, a partir do
conto “Quando o Malandro Vacila”, de Márcio Barbosa, publi-
cado na Coletânea Cadernos Negros (volume 10, 1987), os tra-
ços indispensáveis para a construção de personagens negros
com história, problemática e uma cosmogonia referenciada

22  d GLEDSON RIBEIRO DE OLIVEIRA • JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • BRUNO OKOUDOWA
nos sistemas culturais negro-africanos radicados no Brasil.
As variações linguísticas apreendidas pela experiência de en-
sino da língua portuguesa aos alunos de Angola, Cabo Verde,
Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste e Brasil, do
curso de agronomia da UNILAB, é o tema do estudo de Bruno
Okoudowa. No processo de apreensão do português, explica,
o “discente ou falante estrangeiro quando não encontra o som
do português na sua língua materna, a tendência natural é
substituí-lo por um som semelhante que exista na sua língua”.
O ensaio de Ivan Maia parte da noção de “estética da
existência” de Foucault para traçar uma cartografia da produ-
ção poética afro-brasileira em autores como Solano Trindade
e Oliveira Silveira. Maia considera a negritude poeticamente
enunciada como uma ação coletiva que expressa valores es-
téticos que remetem a um modo de ser transformado que,
construindo o domínio de si, resiste às relações de poder e
controle. Finalizando essa coletânea, Ramon Souza Capelle de
Andrade oferece uma caracterização de identidade pessoal à
luz da Teoria Geral dos Sistemas ao traçar como hipótese que
a identidade pessoal constitui uma propriedade emergente de
um sistema (ou feixe) de hábitos. A identidade pessoal ou sis-
têmica poderia ser concebida, da perspectiva que o autor de-
fende, como emergindo de um conjunto próprio, e individual,
de hábitos inscritos na estrutura ou sistema psicocomporta-
mental de um agente.
Acreditamos que esta coletânea permitirá ao leitor tran-
sitar pelos diferentes tons teóricos e caminhos de investigação
percorridos pelos autores, além de contribuir para o debate,
em vários campos do saber, das múltiplas interfaces entre o
continente negro, a diáspora afro-brasileira, a cultura lusita-
na e o Timor-Leste, numa perspectiva de ruptura política e
epistemológica.

DIÁLOGOS MULTICULTURAIS: POSSIBILIDADES E LIMITES DA RUPTURA POLÍTICA E EPISTEMOLÓGICA d  23


Referências Bibliográficas

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24  d GLEDSON RIBEIRO DE OLIVEIRA • JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • BRUNO OKOUDOWA
1
Colonização
e Descolonização do Saber
COMUNIDADES QUILOMBOLAS: UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO
LUGAR COM O USO DE MAPAS MENTAIS

Aline Neves Rodrigues Alves


José Antônio Souza de Deus
Nilma Lino Gomes

Introdução

O grande número de comunidades quilombolas oficial-


mente reconhecidas, no Brasil, traz consigo a necessidade de
investigarmos a evolução do próprio conceito de quilombo no
país, suas referências nos estudos, ressemantizações e discus-
sões teóricas com ele envolvidas. Atualmente, observa-se que
tais leituras buscam repensar as comunidades quilombolas
no presente, não mais a partir de uma estrutura escravista ou
calcada no imaginário de fuga. Essa relativização do conceito
ocorre também enquanto condições operacionais e conjuntu-
rais, ou seja, meios de atendimento ao artigo 68 da Constitui-
ção Federal do Brasil de 1988, que prevê o direito à proprie-
dade das terras ocupadas por remanescentes de quilombos.
Interessa-nos ainda observar, no interior das comuni-
dades quilombolas, os processos educativos vividos por seus
membros dentro e fora da escola, considerando suas carac-
terísticas socioculturais, uma vez que, a convocação à escola
para o respeito à diversidade étnica e à pluralidade cultural
desse país é algo também contemplado no aspecto legal, tanto
na Constituição Brasileira quanto na própria Lei de Diretrizes
e Bases da Educação (LDB) e suas alterações.
A pesquisa tem primeiramente a intenção de se contra-
por a uma tendência presente no imaginário social brasileiro
de que as comunidades de quilombos situam-se num passado
remoto, e que por isso, não há necessidade de serem reconhe-

d  27
cidas como portadoras de direitos específicos por sua história
e legado social. Visa também contribuir teoricamente, ainda
que com certas limitações, com as discussões a respeito da
Educação sobre o direito à diferença, notadamente o direito
a uma identidade étnico-racial, que pode ser encontrada em
comunidades quilombolas, rurais e urbanas em todo o país.
Além disso, insere-se nas recentes reflexões sobre a categoria:
Lugar da Geografia Humanístico Cultural num diálogo possí-
vel a partir do uso de mapas mentais.
Para isso, o presente trabalho de pesquisa envolveu as
ações cotidianas e a história de uma comunidade quilombola
rural denominada Barro Preto, situada no município de San-
ta Maria de Itabira, no estado de Minas Gerais, em articula-
ção com as práticas educativas de âmbito escolar. Para tal, os
princi­pais sujeitos acompanhados e entrevistados foram um
grupo de crianças, estudantes do quinto ano do Ensino Funda-
mental de uma escola pública municipal localizada no interior
dessa comunidade. A escolha destas crianças deve-se ao fato
de estarem cursando o último ano escolar ofertado dentro da
comunidade e por isso, terem passado maior tempo de estudos
naquela escola. Além das crianças-estudantes, o trabalho in-
cluiu entrevistas com moradores, professores, diretora e técni-
cos da Secretaria Municipal de Educação dessa escola, buscan-
do-se uma compreensão do histórico da comunidade e outras
ações ligadas ao seu reconhecimento enquanto quilombolas.
Assim, o estudo teve por objetivo compreender a vivên-
cia de crianças da comunidade de Barro Preto e suas inter-re-
lações com a educação escolar e com os processos educativos
mais gerais, levando-se em consideração o lugar de vivência,
as relações étnico-raciais e a questão quilombola.
A investigação foi realizada por meio de estudo de caso,
com observação e intervenção em campo, entrevistas, produ-

28  d ALINE NEVES RODRIGUES ALVES • JOSÉ ANTÔNIO SOUZA DE DEUS • NILMA LINO GOMES
ção de mapas mentais, oficinas com crianças e uma oficina
com moradores adultos. Para Cláudia Rosa Acevedo, a pro-
pósito, o estudo de caso “caracteriza-se pela análise em pro-
fundidade de um objeto ou um grupo de objetos, que podem
ser indivíduos ou organizações” e, enquanto método preocu-
pa-se “com planejamento, as técnicas de coleta de dados e as
abordagens de análise dos dados” (ACEVEDO, 2007, p.56).
Como forma de aproximação das crianças e tentativa
de compreender como concebem o seu “estar no quilombo”
do ponto de vista geográfico e espacial, os mapas mentais
foram os principais procedimentos metodológicos adotados.
Esses foram construídos por um grupo de dezessete estu-
dantes da escola da comunidade. Por mapas, entende-se a
metodologia de investigação nos debates sobre percepção
ambiental, percepção de paisagens e nos trabalhos de antro-
pólogos, em que se procura visualizar, nas imagens mentais
traçadas pelos homens, traços ligados à cultura, conforme
Nogueira (2002).

Quilombos no Brasil: Ressignificações, Pressões Sociais, Avanços


Políticos e Educacionais

O processo de aquilombamento existiu onde houve es-


cravidão dos africanos e seus descendentes, recebeu nomes
distintos de acordo com a região onde viveram. Como exem-
plos têm-se marroons na Jamaica, na Guiana Francesa, na
Guiana Inglesa e nos Estados Unidos da América do Norte,
pelenques em Cuba e na Colômbia, ou cimarrónes em muitos
países de colonização espanhola.
Segundo Kabengele Munanga e Nilma Lino Gomes
(2006), a palavra kilombo é originária da língua banto Um-
bundo, falada pelo povo Ovimbundo e que se refere a um tipo

COMUNIDADES QUILOMBOLAS:
UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO LUGAR COM O USO DE MAPAS MENTAIS d  29
de instituição sociopolítica militar conhecida na África Cen-
tral, já a sua conceituação, atualmente, é passível de várias
interpretações. Algumas são interpretações que remontam
à sua primitiva concepção, ainda no século XVIII, e que se
transformaram social e politicamente, de acordo com as mu-
danças sofridas por essas mesmas comunidades, suas reali-
dades rurais e urbanas, e há outras ligadas à ressignificação e
ressemantização do conceito.
O processo de ressignificação e ressemantização de-
corre das mudanças, tendências e interferências dos estudos
realizados pelo campo teórico, sobretudo da antropologia, na
arena jurídica, pelas instituições governamentais e pelo movi-
mento social negro e quilombola brasileiros, principalmente
após a promulgação da Constituição da República Federa-
tiva do Brasil de 1988, na qual consta o Art. 68, do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que versa:
“aos remanescentes de comunidades quilombos que estejam
ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva,
devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
No século XVIII, o conceito clássico e que perduraria
até a década de 1970, foi definido pelo Conselho Ultramarino
em 1740 ao dirigir-se à Coroa Portuguesa: “toda habitação de
negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada,
ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pi-
lões nele”. Tal definição, ao tornar-se jurídica, marginalizava
e penalizava os grupos quilombolas que eram identificados,
então, de forma depreciativa (CARRIL, 2006, p.53).
Uma análise desse conceito é encontrada em Almeida
(1999), que, entre suas reflexões, nos apresenta uma crítica à
visão de senso comum da época em que apontava as comuni-
dades quilombolas como grupos que estariam fora do mundo
do trabalho. De acordo com Schimitt (2002), paralelamente

30  d ALINE NEVES RODRIGUES ALVES • JOSÉ ANTÔNIO SOUZA DE DEUS • NILMA LINO GOMES
ao aparelho de perseguição aos fugitivos, existiu também uma
rede de informações que ia das senzalas a muitos comercian-
tes. Estes tinham interesse na manutenção dos grupos, pois
eram lucrativas as trocas de produtos agrícolas dos quilombos
por outros, repassados a eles pelos comerciantes por não exis-
tirem no interior dos quilombos.
No século XIX, principalmente nos finais do período
escravista, foi formado um grande número de quilombos no
Brasil que conseguiam sobreviver durante a escravidão, sen-
do que obtinham mais êxito aqueles que mantiveram relações
de reciprocidade com brancos pobres, indígenas e outros seg-
mentos populacionais. Portanto, os quilombolas mantinham
laços de solidariedade e convivência com seu entorno. Os
quilombos não correspondiam exclusiva ou essencialmente,
portanto, a refúgios de escravos fugidos, mas sua gestação
vinculava-se ao esforço dos negros escravizados em resgatar
sua liberdade e dignidade.
Além disso, as diferentes formas de ocupação de terras,
praticamente negadas com o sistema de Sesmarias e Lei de
Terras de 1850 no Brasil, foram, aos poucos, ganhando sen-
tido a partir da necessidade de designação da realidade qui-
lombola, sobretudo, para efeito de medidas legais, jurídicas
ou definição de direitos sociais, econômicos, políticos para
esses grupos e seus descendentes. As novas definições com-
preenderiam as estratégias de sobrevivência e outras relações
sociais criadas para além da fuga. Afinal, poderíamos encon-
trar terras doadas, compradas ou mesmo sua existência a par-
tir da apropriação de grandes propriedades que entraram em
decadência (LITTLE, 2002, p.6).
Temos assim, comunidades negras rurais, terras de
pretos, terras de santo ou santíssimo e/ou mocambos, qui-
lombos contemporâneos, comunidades quilombolas e rema-

COMUNIDADES QUILOMBOLAS:
UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO LUGAR COM O USO DE MAPAS MENTAIS d  31
nescentes de quilombos. Ou seja, é possível vislumbrarmos
vários critérios para denominar a luta desses grupos, ao indi-
car que o conceito elaborado anteriormente à abolição formal
da escravatura, além de ampliado, foi também ressignificado1.
Constatam-se, ainda nessa luta, os atributos simbólicos, como
o caso do quilombo de Palmares e o líder Zumbi.
Sobre esses territórios2 étnicos, entendemos os “espa-
ços” cujas referências de uma possível origem comum estão
grafadas pelas construções materiais ligadas à identidade e ao
pertencimento territorial (ANJOS, 2007), e em que são va-
lorizadas as tradições culturais a partir de “normas de per-
tencimento explícitas, consciência de sua identidade étnica”
(MOURA, 2007, p.10).
Vale ressaltar ainda que a identidade desses grupos
étnicos pressupõe experiências coletivas compartilhadas por
meio de uma trajetória comum. Portanto, o quilombo não se
define pelo tamanho da comunidade ou número de membros.
(O’DWYER, 1995). Além disso, a constituição da identidade é
algo transitório, no tempo e no espaço, e se transforma duran-
te toda uma vida, aí consideradas as mudanças de seu contex-
to sociopolítico-econômico e cultural (HALL, 2003).
1 É nessa perspectiva que nos aproximamos dos seguintes autores: Alfredo Wag-
ner Berno de Almeida (1999); José Maurício Arruti (2006), Kabengele Munanga
e Nilma Lino Gomes (2006); Lourdes Carril (2006); Paul Elliott Little (2002)
ou ainda, para reflexões acerca da atualidade da luta quilombola no campo das
lutas jurídicas: Carlos Hasenbalg (1992), Luiz Fernando Linhares (2002) e Lílian
Cristina Gomes (2009).
2 As atuais leituras dessa autora sobre território, como categoria geográfica,

concentram-se no entendimento de que este, à priori, é um espaço que existe antes


mesmo da intenção humana de apoderar-se dele, mas que tomado por um ator,
concreta ou abstratamente, é territorializado. Assim, o território seria um espaço
onde se projeta trabalho, energia e informação (RAFESTTIN, 1993). Leitura seme-
lhante e complementar se encontra em Milton Santos (2000) e Lefebvre (1978),
que ao conceberem o território como não somente como uma base que sustenta
trocas materiais e espirituais, mas onde se encontra a identidade e o “sentimento
de pertencer àquilo que nos pertence”, ou seja, o território visualizado como espaço
vivido (SANTOS, 2000, p.96).

32  d ALINE NEVES RODRIGUES ALVES • JOSÉ ANTÔNIO SOUZA DE DEUS • NILMA LINO GOMES
Hoje, as comunidades quilombolas urbanas ou rurais,
longe de serem reproduções do passado, realizam em seus ter-
ritórios um movimento de respeito ao passado e desenvolvi-
mento contemporâneo de busca do direito à terra, à cultura e
educação de qualidade. Portanto, não é mais possível ostentar-
mos uma visão estática e cristalizada no passado sobre os qui-
lombos ou calcada no binômio isolamento e segregação, salvo
no imaginário social. Segundo Carril (2003), os atuais estudos
sobre a formação quilombola têm sido realizados sob a pers-
pectiva aberta pelos estudos antropológicos, assim, não aban-
donam a problemática cultural nem a influência marxista.
Há autores que identificam uma visão de inversão ao
tratamento da questão quilombola, haja vista que, se no perí-
odo colonial, os quilombolas foram tratados como criminosos,
após a Constituição de 1988, na República, esses atores sociais
tornaram-se público-alvo de políticas de reparação aos danos
historicamente sofridos. Almeida (2002) relembra que isso
ocorre com limitações/restrições dada a dificuldade destes su-
jeitos terem efetivamente acesso aos direitos que lhes cabem.
O movimento social negro e quilombola denuncia o atual tra-
tamento recebido por vários outros coletivos sociais, pois ain-
da são, muitas vezes, taxados por alguns como “baderneiros” e
“aproveitadores” ao lutarem pela reparação aos danos sofridos
no passado e sua justa correção no tempo presente.
Hoje, os quilombolas lutam também contra os interes-
ses do mercado econômico que explora suas terras em busca
de recursos naturais e mercadorias, planeja implantar proje-
tos hidrelétricos e viários, realiza compra de terras e implanta
unidades de conservação. Obviamente a temática quilombola
se tornou cara ao país por transitar nas esferas das questões
raciais e de distribuição de terras. As terras brasileiras, desde
sua origem com o sistema de sesmarias, são um bem possuído

COMUNIDADES QUILOMBOLAS:
UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO LUGAR COM O USO DE MAPAS MENTAIS d  33
por poucos e, com a abolição da escravatura, em 1888, fazen-
deiros e políticos latifundiários se organizaram para impedir
que negros pudessem se tornar donos de terras.
Segundo Carlos Hasenbalg (1992), as tensões provo-
cadas pelo regime autoritário produziram a necessi-
dade da sociedade, através dos movimentos sociais,
articularem-se e refletirem sobre números temas, entre
eles a questão racial e da terra. Esses temas foram
suprimidos por mais de duas décadas e incorporados
à agenda nacional através do movimento social negro.
(ALVES, 2012, p.27).

Nesse sentido, aproximamo-nos também da atual


conjuntura de políticas públicas de ações afirmativas3 volta-
das para esses povos, que incorporam as leituras de âmbito
territorial, cultural e educacional. A construção de políticas
afirmativas para populações quilombolas é tributária do mo-
vimento social negro, notadamente o movimento quilombola,
e pressupõe a ideia de cidadania que ganhou corpus na luta
social que se inicia na década de 1970 e culmina em 1988, com
a vigência do Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucio-
nais Transitórias4.
3 Joaquim Barbosa Gomes apresenta um conceito bastante abrangente, que de-
fine as ações afirmativas como: “um conjunto de políticas públicas e privadas de
caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate
à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir
os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a
concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como
educação e emprego. Diferentemente das políticas governamentais antidiscrimi-
natórias  baseadas em lei de conteúdo meramente proibitivo, que se singularizam
por oferecerem às respectivas vítimas tão somente instrumentos jurídicos de
caráter reparatório e de intervenção ex post facto, as ações afirmativas têm na-
tureza multifacetária e visam evitar que a discriminação se verifique nas formas
usualmente conhecidas – isto é, formalmente, por meio de normas de aplicação
geral ou específica, ou através de mecanismos informais, difusos, estruturais, en-
raizados nas prática culturais e no imaginário coletivo” (GOMES 2001, p.40 e 41).
4 Art. 68 – Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam

ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado


emitir-lhes os títulos respectivos.

34  d ALINE NEVES RODRIGUES ALVES • JOSÉ ANTÔNIO SOUZA DE DEUS • NILMA LINO GOMES
E ainda é importante refletir a respeito da ideia redu-
cionista de comunidades vulneráveis, caracterizadas por sua
condição rural, que impede o reconhecimento de sua identi-
dade específica e, consequentemente, induz a opção política
por ações assistencialistas em detrimento das políticas de di-
versidade (MIRANDA, 2011).
Entre as várias políticas de diversidade voltadas às comu-
nidades quilombolas no Brasil, destacamos a Educacional, em
que, a partir do século XXI, as organizações governamentais,
não governamentais e sociais (entidades do movimento negro)
interessadas em debater e criar condições de enfrentamento
aos problemas raciais no Brasil, visualizaram na “3ª Conferên-
cia Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xe-
nofobia e as Formas Correlatas de Intolerância”, ocorrida em
Durban (África do Sul), a oportunidade de verem seus esforços
e reivindicações contemplados, especialmente aquelas vincula-
das ao reconhecimento de responsabilidade pelo governo bra-
sileiro em criar condições estratégicas de políticas de superação
do racismo, notadamente no âmbito escolar, em que os prejuí-
zos de ações discriminatórios e racistas se manifestam em fra-
cassos escolares das crianças negras, de acordo com pesquisas.
Destacamos aqui pressões sociais, notadamente do mo-
vimento social negro, em prol de melhores condições de acesso
da comunidade negra ao ensino público de qualidade, valoriza-
ção e reconhecimento das contribuições do negro na História
do Brasil, a introdução nos currículos escolares da História da
África e cultura afro-brasileira, a participação dos pesquisado-
res e militantes negros na elaboração dos currículos, e a sanção
no ano de 2003, da Lei no 10.639/03 (alterada para 11.645/08,
que dá a mesma orientação quanto à temática indígena)
A fim de regulamentar essa alteração da Lei de Diretri-
zes e Bases (LDB), o Conselho Nacional de Educação (CNE)

COMUNIDADES QUILOMBOLAS:
UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO LUGAR COM O USO DE MAPAS MENTAIS d  35
aprovou o Parecer CNE/CP 03/2003 que instituiu as Diretri-
zes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais
e o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileiras e Africanas a
serem implantadas pelos estabelecimentos de ensino público
e privado em todo país. Esse parecer é ratificado pela resolu-
ção CNE/CP 01/2004, a qual explicita os deveres dos sistemas
de ensino na implementação da Lei.
Esse conjunto de medidas legais, assim como as reivin-
dicações e propostas do Movimento Negro e Quilombola ao
longo do Século XX, pode ser considerado como instrumento
de implementação de políticas de ações afirmativas respon-
sáveis por reconhecer e valorizar a diversidade cultural no
âmbito da educação. Essas medidas têm, na escola, o lugar
de formação cidadã e a responsabilidade em reparar a pro-
dução e reprodução de imaginários coletivos de supremacia
e subordinação de um grupo étnico-racial em relação a outro.
Ou seja, visam transformar positivamente a ordem cultural,
pedagógica e psicológica alicerçadas no mito da democracia
racial que atinge particularmente os negros.
Ainda levando em consideração a realidade histórica e
política que envolve a questão quilombola, ou seja, seu his-
tórico de reivindicações, lutas e ações compreendidas pelos
movimentos sociais que não dissociam a necessidade de pos-
suírem uma escola com qualidade, em territórios étnicos, e
atendendo às suas especificidades, é que temos a recente in-
clusão da educação escolar quilombola como modalidade da
educação básica por meio do parecer do Conselho Nacional de
Educação/Câmara de Educação Básica(CNE/CEB) 16/2012 e
da Resolução CNE/CEB 08/2012 que instituem as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola.
Estas terão por objetivo orientar os sistemas de ensino para
que eles possam colocar em prática a Educação Escolar Qui-

36  d ALINE NEVES RODRIGUES ALVES • JOSÉ ANTÔNIO SOUZA DE DEUS • NILMA LINO GOMES
lombola mantendo um diálogo com a realidade sociocultural
e política das comunidades e do movimento quilombola.

Quilombo Barro Preto: o Reconhecimento Enquanto Mobilização


Coletiva

A comunidade de Barro Preto é reconhecida enquanto


comunidade remanescente de quilombo no ano de 2006 pela
Fundação Cultural Palmares (FCP). O processo de auto-de-
claração dessa comunidade é baseado no Decreto Lei no 4.887
de 2003, que “regulamenta o procedimento para a identifi-
cação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação
das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos
quilombos”. E embora o decreto apresente um novo caráter
fundiário e dê ênfase à cultura, memória, história e territo-
rialidade, até o presente momento, a comunidade ainda não
conseguiu a titulação definitiva de suas terras.
Estas terras se encontram delimitadas por cercas de
arame colocadas por fazendeiros vizinhos que limitam/cer-
ceiam as possibilidades de permanência de muitos moradores
no interior da comunidade, já que não podem construir novas
moradias no quilombo, situação recorrente entre os diferen-
tes problemas territoriais das comunidades já reconhecidas
no Brasil.
O processo de reconhecimento e titulação de terras
pelos organismos brasileiros, além de moroso e burocrático,
tende a enfraquecer a luta das comunidades que buscam o di-
reito coletivo de suas terras, daí a necessidade de se articula-
rem e manterem diálogo com entidades estaduais e nacionais
do próprio movimento quilombola. Em Barro Preto vislum-
bramos ações coletivas que envolveram atividades empreen-
didas primeiramente pelo contato de uma moradora junto à

COMUNIDADES QUILOMBOLAS:
UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO LUGAR COM O USO DE MAPAS MENTAIS d  37
Pastoral Afro de Itabira, entidade filiada à Igreja Católica de
município vizinho, e posteriormente, novas ações pessoais de
moradores e líderes comunitários que conseguiram mobilizar
a escola em prol da necessidade de serem reconhecidos, e,
portanto, respeitados, por sua identidade étnica.
Destacamos dessa nova rede social em Barro Preto, o
envolvimento da escola e seu corpo docente, e também, ges-
tores da Secretaria Municipal de Educação, que buscaram
implantar, a partir de recursos públicos e acompanhamento
pedagógico específico, a Lei no 10.639/20035 e suas Diretri-
zes Curriculares para Educação das Relações Étnico-Raciais
na escola da comunidade no período de 2003 a 2008. E como
consequência dos novos conhecimentos a respeito da luta qui-
lombola, temos a reforma da escola local, a construção de uma
quadra de esportes, calçamento da rua principal e a criação da
Associação dos Quilombos Unidos de Barro Preto e Indaiá6,
cuja importância está em representar a comunidade nos as-
suntos político-jurídicos referentes ao reconhecimento e titu-
lação das terras. Nesse movimento, temos ainda a iniciativa
de moradores, com apoio da comunidade escolar, de criação
do Museu do Negro no interior da comunidade e que constitui
motivo de orgulho para a comunidade quanto a suas origens.
Toda essa articulação, ao envolver a escola, traz consigo
uma importante mobilização juntamente com os estudantes,
no sentido de desenvolver o espírito crítico e de valorização
da cultura local. O grupo de crianças, cuja faixa etária oscila
5 A Lei no 10.639/03 torna obrigatório o Ensino de História da África e Cultura
Afro-Brasileira nas escolas públicas e privadas de todo o país.
6 Indaiá é uma comunidade quilombola localizada no município vizinho de Antônio

Dias e distanciada cerca de sete quilômetros de Barro Preto. De acordo com Maria
Aparecida S. Tubaldini (2009), as duas comunidades possuem laços de parentesco.
De Indaiá, partiram famílias que contribuíram para a origem de Barro Preto. Vale
ressaltar que ambas possuem uma área de uso comum localizada em Indaiá, daí
a justificativa de criarem uma única Associação.

38  d ALINE NEVES RODRIGUES ALVES • JOSÉ ANTÔNIO SOUZA DE DEUS • NILMA LINO GOMES
entre dez e onze anos, além de presenciar as manifestações
políticas no interior da comunidade, participou das ações cul-
turais com apresentações nos municípios vizinhos, e também
recebeu, na comunidade e no museu, a visita de outras esco-
las da rede de ensino do município. E, para compreendermos
suas experiências com o lugar de vivência, é que apresenta-
mos na sequência, a discussão conceitual sobre a categoria de
análise: Lugar, no campo da Geografia Cultural.

O Lugar na Geografia Humanística Cultural

A discussão do conceito de lugar dentro da perspectiva


humanística ganhou força na ciência geográfica principalmen-
te a partir da década de 1970. Porém, como nos lembra Amo-
rim, a geografia humanística possui marcos fundamentais no-
tadamente já firmados no final do século XIX com a evolução
dos estudos de percepção ambiental (AMORIM, 1999, p.140).
Apresentamos a seguir uma caracterização desse importante
conceito da Geografia Humana:
Segundo Tuan (1980) a percepção se dá através dos
sentidos (mecanismos biológicos), entretanto a cultura
influencia a forma de perceber, construir uma visão
de mundo e de ter atitudes em relação ao ambiente.
Descreve como as características culturais dos dife-
rentes grupos humanos interferem no modo de per-
ceber o ambiente, porém combinadas a elas, destaca
o importante papel da sensibilidade biológica humana
nesse processo perceptivo. Os seres humanos atribuem
significado e organizam o espaço de acordo com os
símbolos que constroem a partir de sua ­percepção
(KOZEL, 2010).

Assim, a categoria lugar é fundamentalmente uma


concepção ligada a valores subjetivos que podem estar ain-

COMUNIDADES QUILOMBOLAS:
UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO LUGAR COM O USO DE MAPAS MENTAIS d  39
da referenciados por aspectos localizacionais, classificatórios
ou determinando a presença de fenômenos, porém, nesta
nova abordagem, conferindo-lhe significados (KOZEL, 2001,
p.152). É relevante assinalar que o lugar poderá ser um bairro,
um povoado, um terreiro, uma casa, uma rua e outros.
[...] o lugar é uma unidade entre outras unidades ligadas
pela rede de circulação; o lugar, no entanto tem mais
substância do que nos sugere a palavra localização; ele
é uma entidade única, um conjunto “especial” que tem
história e significados. O lugar encarna as experiências
e as aspirações das pessoas. O lugar não é só um fato
a ser explicado na ampla estrutura do espaço, ele é a
realidade concreta a ser esclarecida e compreendia
sob a perspectiva das pessoas que lhes dão significados
(TUAN, apud HOLZER, 1999, p.70).

A experiência, por sua vez, implica na capacidade do ser


humano aprender a partir da própria vivência, atuando sobre
o dado e criando a partir dele – dado este não conhecido em
sua essência. O que significa que experienciar seja vencer os
perigos (TUAN, 1983, p.10)
Dessa forma, em Tuan o lugar é afetivamente recortado
e emerge da experiência, sendo um “mundo ordenado e signi-
ficado”. Antes, porém, existe o espaço que, sendo amplo e vul-
nerável, provoca medo e ansiedade e é desprovido de valores e
significação afetiva. Portanto, o espaço pode ser transformado
em lugar nas experiências cotidianas, enfim, torna-se lugar no
contato do eu com outros sujeitos (TUAN, 1983, p.61-65)
Nesta perspectiva, não se pode deixar de apresentar
dois conceitos dos estudos em percepção. Da relação dos ho-
mens entre si e com o meio físico, emergem as categorias con-
ceituais: topofilia e topofobia. O primeiro foi discutido inicial-
mente por Bachelard, e em seguida, por Tuan em 1979, e diz
respeito ao sentimento e afeição das pessoas para com o lugar.

40  d ALINE NEVES RODRIGUES ALVES • JOSÉ ANTÔNIO SOUZA DE DEUS • NILMA LINO GOMES
Assim, relacionada à categoria lugar, a Topofilia seria:
o elo afetivo entre a pessoa e o lugar ou ambiente físico. A
palavra topofilia é um neologismo, útil quando pode ser defi-
nida em sentido amplo, incluindo todos os laços afetivos dos
seres humanos com o meio ambiente material. Estes diferem
profundamente em intensidade, sutileza e modo de expres-
são. Outro conceito importante seria: topofobia, que inver-
samente ao primeiro, decorre da ideia de paisagem do medo
(TUAN, 1980)
Com a geografia humanístico-cultural contemporânea
há assim o privilégio da subjetividade, das experiências, dos
simbolismos que por sua vez reduzem/relativizam a tendên-
cia homogeneizante que muitas teorias geográficas produzi-
ram sobre o espaço e sobre fenômenos sociais, tais como as
comunidades quilombolas e seu movimento de luta por terra
e reconhecimento de suas identidades.

O Uso de Mapas Mentais

A metodologia de interpretação do lugar que utiliza-


remos corresponde à abordagem da “cartografia cultural”
ou mapas mentais, que são representações do vivido, uma
expressão de nossa história com os lugares experienciados.
Ou seja, revelam como o lugar é vivido e compreendido pelas
pessoas. Enfim, é uma representação que se faz integrada, ao
englobar várias representações que colaboram para a inter-
pretação da realidade ao redor dos sujeitos.
O conceito de mundo vivido discutido pela fenomeno-
logia é importante no entendimento dos mapas mentais, pois
corresponde a uma análise que permite ir além das represen-
tações espaciais assumindo também caráter sociocultural em
suas interpretações.

COMUNIDADES QUILOMBOLAS:
UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO LUGAR COM O USO DE MAPAS MENTAIS d  41
Na elaboração dos mapas mentais, a ideia principal é
representada/posicionada no centro de uma folha de papel
em branco, utilizada na horizontal para proporcionar maior
visibilidade. E vale ressaltar que, embora utilizemos a ima-
gem enquanto representação do espaço desde a pré-história,
foi a partir da década de 60 (do século XX) que houve a bus-
ca por novas perspectivas de comunicação e preocupação em
desvendar essa imagem.
Os mapas mentais, portanto, são imagens construí­das
por “sujeitos históricos reais, reproduzindo lugares ­reais vivi-
dos, produzidos e construídos materialmente”. E que portan-
to, devem ser lidos como produtos em movimento, ou seja, não
estáticos e não apenas cartográficos7 (KOZEL E ­NOGUEIRA,
1999, p.240)
Nos mapas mentais, a imagem é apenas uma faceta da
representação. Em Kozel (2007) temos que essa representa-
ção é indissociável de tudo que envolve o sujeito e a lingua-
gem. Esta linguagem uma vez referendada por signos, que são
construções sociais e refletem o espaço vivido representado
em todas as suas nuances. E ancorando-se na sociolinguística
é que Kozel nos apresenta um referencial teórico-metodológi-
co para interpretação ou decodificação desses signos constru-
ídos socialmente.
A autora parte do pressuposto que o objeto de análi-
se é uma forma de linguagem e encontra em Mikhail Bakhtin
(1986) o referencial para análise dos signos (mapas mentais)
como enunciados. Assim, os mapas mentais enquanto cons-
truções sígnicas que requerem interpretação/decodificação
7 Ressaltamos que os mapas mentais são imagens que os homens constroem dos
lugares, paisagens e regiões. Assim houve na geografia uma tentativa de se trazer
para o campo das técnicas cartográficas estas representações, que na verdade
devem ser tratadas enquanto fatos cartográficos com significações subjetivas.
(AMORIM, 1999, p.141).

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estão inseridos em contextos sociais, espaciais e históricos co-
letivos, apresentando singularidades e particularidades (KO-
ZEL, 2007, p.114-115).
O método bakhtiniano estuda a linguagem e o homem
numa interação ou encontro dialógico. O ser humano é visto
aí como ser social, portanto, esta teoria leva em consideração
expressões ou interações entre a linguagem e a importância do
ser humano como elemento de expressão da sociedade. E é as-
sim que o signo, produzido dentro de um contexto que lhe dá
sentido, poderá ser decodificado como forma de ­linguagem.
Kozel (2007), em sua metodologia, entende que o ser hu-
mano utiliza signos para representar a realidade, de modo que
a construção destes não ocorre de maneira vazia, mas a partir
da consciência que geralmente coincide com a orientação se-
mântico-ideológica de sua realidade. O que, numa perspectiva
sociológica, significa dizer que os signos, quando retirados do
contexto real vivido transformam-se, apenas, em sinais.
Assim, a codificação dos signos que formam a imagem
à medida que compartilham valores, significados com comu-
nidades e redes de relações tornam-se uma representação não
apenas individual, mas coletiva, referendando um signo social
em comum (KOZEL, 2007).
Os aspectos de interpretação dos mapas mentais foram
realizados de forma qualitativa a partir da metodologia pro-
posta por Kozel (2007), que adaptada8, assim define os se-
guintes aspectos a serem avaliados:

1. Interpretação quanto à forma de representação dos ele-


mentos na imagem;
2. Interpretação quanto à distribuição dos elementos na imagem;
8A adaptação refere-se ao fato de cruzarmos informações contidas nos mapas
mentais com dados obtidos em campo, ou seja, entrevistas e oficinas.

COMUNIDADES QUILOMBOLAS:
UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO LUGAR COM O USO DE MAPAS MENTAIS d  43
3. Interpretação quanto à especificidade dos ícones;
yyRepresentação dos elementos da paisagem natural
yyRepresentação dos elementos da paisagem construída
yyRepresentação dos elementos móveis
yyRepresentação dos elementos humanos
4. Apresentação de outros aspectos ou particularidades.

Em termos práticos, propusemos, aos estudantes do


quinto ano da escola, a elaboração de dois desenhos da comu-
nidade e a participação deles em duas oficinas. As oficinas9, ao
precederem a confecção dos mapas mentais (desenhos, para
os estudantes), tiveram como objetivo criar um primeiro diá-
logo para tornarem-se um meio de estimular a memória dos
estudantes sobre suas experiências com o lugar em que vivem,
isto de maneira mais lúdica. Assim, ampliaram as possibilida-
des de interpretação dos mapas mentais.

Discussão dos Resultados

Entre as interpretações realizadas pela pesquisa elege-


mos algumas imagens que seguem abaixo agrupadas a partir
de seus aspectos ou particularidades, bem como informações
adicionais. Elas demonstram resultados da decodificação dos
mapas mentais, ou seja, da experiência das crianças quilom-
bolas com seu lugar de vivência:

9 A primeira oficina O Auto Retrato e a Identidade, foi realizada na escola da co-


munidade e nos apresenta notadamente a forte ligação entre os estudantes, quer
por algum parentesco ou por estarem juntos desde as séries iniciais, bem como
os traços fenotípicos, marco identitário, em autorretrato registrado em papel do
tipo craft. Já na segunda oficina Contação de História, foi possível conhecermos
a comunidade em caminhadas com as crianças, assim como um intenso diálogo
que apresentava hábitos e costumes comunitários.

44  d ALINE NEVES RODRIGUES ALVES • JOSÉ ANTÔNIO SOUZA DE DEUS • NILMA LINO GOMES
A. Questão da água:

Andréia, 11 anos

Atualmente a população de Barro Preto é de aproxima-


damente 600 habitantes distribuídos em cerca de 150 casas.
Dentre os problemas territoriais, destacamos as dificuldades
no acesso e abastecimento de água dentro da comunidade. À
direita da imagem temos o principal reservatório de água cap-
tada em terras que já foram da comunidade.

B. Relações com o plantio:

Rosiane, 10 anos

COMUNIDADES QUILOMBOLAS:
UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO LUGAR COM O USO DE MAPAS MENTAIS d  45
A economia local se caracteriza por trabalhos sazonais
nas fazendas do entorno e trabalhos de capina em empresas
locais de recuperação e recomposição vegetal de áreas degra-
dadas. Já o trabalho de cultivo em áreas próprias da comuni-
dade, ou seja, na roça, sofreu retração motivada pelo confina-
mento territorial. Anteriormente, as práticas de cultivo eram
desenvolvidas nas serras, todo o entorno da comunidade.

C. Relações de vizinhança:

Brenda, 11 anos

Os fortes laços de parentesco existentes dentro da co-


munidade e as informações constantes nos mapas mentais
sobre o pertencimento territorial demonstram uma trajetória
histórica de Barro Preto que surgiu em meados do século XIX,
e onde por muito tempo, se realizavam casamentos apenas
entre os membros das famílias pertencentes à comunidade.

46  d ALINE NEVES RODRIGUES ALVES • JOSÉ ANTÔNIO SOUZA DE DEUS • NILMA LINO GOMES
D. Relações com o urbano:

Eliel, 10 anos

Barro Preto embora com características rurais, é um


povoado situado na Região Metropolitana de Belo Horizonte-
-MG e sofre influências dessa grande capital. Equipamentos
característicos do urbano, embora recentes, se apresentam aí,
como elementos da paisagem construída.

E. Relações com os limites:

Luana, 10 anos

COMUNIDADES QUILOMBOLAS:
UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO LUGAR COM O USO DE MAPAS MENTAIS d  47
As fronteiras criadas a partir de porteiras não parecem
sugerir limitação na circulação das pessoas. Porém, ganham
dimensões de limites no uso dos espaços, isto devido ao con-
finamento territorial que a comunidade sofre pela ação siste-
mática de cerceamento dos fazendeiros do entorno.

F. Relações com o lazer:

Luis, 11 anos

A quadra de esportes, conquistada por meio de ações


populares da comunidade durante o processo de reconheci-
mento enquanto remanescentes de quilombolas, foi constan-
temente retratada nos mapas mentais, quer em termos de sua
escala de representação quanto por meio da intensidade de
cores com que foi representada nos “desenhos” (mapas).

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G. Relações com os projetos educacionais:

Izadora, 11 anos.

A escrita “Barro Preto Resgata sua História e tem Or-


gulho de sua Cor”, neste mapa mental é também a frase-título
de um dos primeiros projetos realizados na escola, num mo-
mento em que estudante, provavelmente, esteve envolvida
com as atividades escolares de valorização da cultura local.
A julgar pela data, ela estava no primeiro/segundo ano do
Ensino Fundamental.

Conclusões

A função dos mapas mentais, de acordo com Oliveira


(2002) está em tornar visíveis as construções do mundo real
ou da imaginação de seu autor, mas não diz respeito a lugares
imaginários; e, portanto, foi possível, através deles, nos apro-
ximarmos do lugar, “a dimensão mais concreta do espaço, da
qual ninguém pode desligar-se, por ser o espaço das relações
imediatas”. (KOZEL, 2001, p.154). Percebemos inclusive, nes-
sa dinâmica de trabalho, um evolução/atualização do conceito

COMUNIDADES QUILOMBOLAS:
UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO LUGAR COM O USO DE MAPAS MENTAIS d  49
de comunidade quilombola, direta ou indiretamente, a partir
do resultado dos mapas mentais que engloba: a valorização
de elementos materiais e simbólicos resultantes da autodecla-
ração; pertencimento territorial com consciência dos limites/
restrições ao domínio e usufruto desse território; afirmação
das relações de parentesco; as referências de identidade; e por
fim, a constatação de que os sujeitos investigados não se en-
contram isolados ou alheios às inovações que ocorrem no seu
entorno. E mesmo as ausências significaram aqui, de alguma
forma, um dado importante da realidade experimentada pelas
crianças de Barro Preto.
Vale ressaltar que a própria ação coletiva entre comuni-
dade, entidades do movimento negro e poder público que re-
sultaram no reconhecimento da comunidade de Barro ­Preto,
é representada por seus elementos materiais e simbólicos, e
em alguns casos perceptíveis na análise dos mapas mentais.
Entre as melhorias advindas do reconhecimento do povoado
como comunidade quilombola, temos a captação e distribui-
ção da água, que, além de ser uma questão conflitiva discutida
entre a comunidade, fazendeiros e poder público, mostrou-se
como uma experiência que gerou satisfação entre as crianças
que a retrataram registrando em seus desenhos com frequên­
cia as caixas de água sobre as casas da comunidade, além de
expressarem/ documentarem também a sua satisfação em ob-
terem um local de lazer, a quadra esportiva da comunidade.
Outras questões políticas foram apresentadas, tal qual
o atual confinamento territorial experimentado pelos ha-
bitantes de Barro Preto e suas consequências na vida deles.
Partimos da constatação de que o reservatório de água da co-
munidade situa-se em terras hoje não mais sob domínio dos
quilombolas e, além disso, a presença de cercas e porteiras
arbitrariamente instaladas pelos fazendeiros da vizinhança e,

50  d ALINE NEVES RODRIGUES ALVES • JOSÉ ANTÔNIO SOUZA DE DEUS • NILMA LINO GOMES
por consequência, a dificuldade de se manter a reprodução de
roças em áreas para além desses limites, as quais eram terras
ocupadas por seus antepassados, foram retratados pelos estu-
dantes. Portanto são perceptíveis as noções que eles possuem
da potencialidades e limites de seu território, como também,
de pertencimento ao Lugar, ou seja, “o fato e o sentimento de
pertencer àquilo que nos pertence”, a identidade. (SANTOS,
2001, p.96).
Outra importante vivência apresentada pelas crianças
é o fato de identificarem os moradores do lugar integrantes
de uma família extensa, corroborando com a ideia de que as
comunidades quilombolas no Brasil “[...] são comunidades
negras rurais habitadas por descendentes de escravos que
mantêm laços de parentesco” vivendo de “[...] culturas de sub-
sistência em terra doada/comprada/secularmente ocupada”
(MOURA, 2007, p.10). No caso de Barro Preto, as terras foram
compradas por ex-escravos das fazendas do atual entorno da
comunidade e trazidos do Rio de Janeiro – RJ (diferentemen-
te, portanto, da ideia generalizada de fuga de escravos, recor-
rente no imaginário social brasileiro sobre os quilombos).
A luta quilombola e do próprio movimento negro local,
em busca da construção de uma escola que seja realmente di-
ferenciada para suas crianças e adultos, ou seja, que respeite
as diferenças étnicas sem, contudo, hierarquizá-las, foi expli-
citamente verificada no conteúdo de apenas um mapa mental,
na inscrição “Barro Preto Resgata sua História e tem Orgulho
de sua Cor”. Esta escrita na parte central do mapa diz respeito
ao nome do primeiro projeto pedagógico realizado na escola e
remete a uma leitura de consciência da identidade étnica, des-
pertada por projetos que buscaram quebrar o silêncio produ-
zido socialmente pelo racismo ao trazer a afirmação positiva,
e ruptura com as experiências de muitos adultos quilombolas,

COMUNIDADES QUILOMBOLAS:
UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO LUGAR COM O USO DE MAPAS MENTAIS d  51
que ser negro é sim um motivo de orgulho. Assim, percebemos
também que uma proposta antirracista na escola só encontra
sentido quando o racismo é desmistificado, pois o silêncio re-
força e perpetua as suas conseqüências (GOMES, 2005, p.51).
Embora se trate de um trabalho que para ser eficaz é de dura-
ção prolongada, e ademais, não pontual, localizado.
Percebemos ainda que essas comunidades não se encon-
tram imobilizadas em relação ao que se passa ao seu redor,
e, nessa perspectiva, gostaríamos de enfatizar o contato dessa
comunidade rural com o urbano e seus aparatos. Portanto, não
é difícil para Barro Preto conceber em seu interior a valori-
zação das tradições culturais dos antepassados, as normas de
pertencimento, acompanhadas simultaneamente da vontade
de ter acesso a novas tecnologias e outros valores sociocultu-
rais, que em nossa ótica, devem ser vistos como “processos que
não devem ser negados, eles existem, e ao contrário, devem
ser compreendidos enquanto direitos” (ALVES, 2012, p.56).
Portanto, diferentemente do imaginário social para o qual os
quilombolas estariam “congelados” no tempo (em um passa-
do remoto e isolados), eles se atualizam culturalmente e com
essas novas experiências adquiridas, lutam em busca de con-
cretização de direitos, dentre eles, territoriais e educacionais.
Já o importante dado que nos coube traduzir em “pro-
dução de ausências” liga-se à seguinte constatação: embora a
escola tenha profunda importância no processo de reconhe-
cimento da comunidade, ela atualmente não desenvolve um
trabalho que sustente práticas e ações determinantes/ signi-
ficativas para as crianças em que o processo educativo formal
dê sentido aos conteúdos, à aprendizagem, ao conhecimento,
extrapolando os muros institucionais. Nos mapas mentais
elaborados pelos estudantes há poucos registros da existên-
cia da escola no território quilombola. Contraditoriamente, a

52  d ALINE NEVES RODRIGUES ALVES • JOSÉ ANTÔNIO SOUZA DE DEUS • NILMA LINO GOMES
estrutura escolar foi reformada e, diferentemente das cons-
truções comunitárias locais, ela tem um imenso muro de cor
laranja, possui o único telefone público de Barro Preto, com-
porta o museu criado pelos moradores e está localizada na rua
principal da comunidade.
Outra constatação que emergiu do trabalho sobre as au-
sências nos resultados dos mapas mentais situa-se no plano
das relações humanas, salvo aquelas estabelecidas entre as
próprias crianças. Curiosamente, há poucos adultos em suas
imagens (representações nos mapas mentais). Pelas investi-
gações da pesquisa, percebemos que possivelmente essa re-
presentação tenha relação com o próprio distanciamento das
crianças da comunidade com o atual mundo adulto. ­Sabe-se
que os adultos (assim como os jovens) estão imersos no ­mundo
do trabalho, e mesmo da escola (nas séries ­sequenciais do En-
sino Médio), e por isso ficam fora da comunidade, durante os
dias da semana. No seu cotidiano, os cuidados das crianças
ficam a cargo dos mais velhos e da escola e, portanto, são pou-
cos os adultos que permanecem cotidianamente no interior
das casas, e talvez, por isso, nos mapas mentais eles são repre-
sentados apenas nas janelas das casas.
Tais resultados nos aproximam, em certa medida, do
conceito de comunidade quilombola elaborado para o aten-
dimento do Artigo 68 da ADCT, em que se busca conjugar a
referência da identidade ao uso territorial tentando, portanto,
superar as ideias clássicas a respeito do tema. Pelo Decreto
Lei no 4.887 do ano de 2003, temos:
remanescentes das comunidades dos quilombos os gru-
pos étnicos raciais, segundo critérios de auto-atribuição,
com trajetória histórica própria, dotados de relações
territoriais específicas, com presunção de ancestralidade
negra relacionada com formas de resistência à opressão
histórica sofrida. (BRASIL, 2003).

COMUNIDADES QUILOMBOLAS:
UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO LUGAR COM O USO DE MAPAS MENTAIS d  53
Concluímos assim que os elementos que configuram, na
atualidade, uma comunidade quilombola e a rede de comuni-
cação que a mesma experimenta em busca de direitos geram
ou intensificam outros elementos simbólicos e materialmen-
te construídos, que podem ser assimilados pelas crianças em
diferentes graus. E nessa pesquisa eles foram reproduzidos e
puderam ser passíveis de decodificação (não sem o auxílio de
uma pesquisa que busca revisar conceitos e com o auxílio de
diálogos oportunamente estabelecidos in loco entre o pesqui-
sador e os sujeitos da pesquisa).
Portanto, o significado de comunidade quilombola, em-
bora não seja objetivo da pesquisa, pôde ser verificado e anali-
sado pelos mapas mentais, sendo possível inclusive nos aproxi-
marmos do lugar de vivência experimentado pelas crianças. É
válido procurarmos resgatar, por fim, os postulados do ­grande
geógrafo sino-americado Yi-Fu Tuan quando ele demarca que:
[...] muitos lugares, altamente significantes para certos
indivíduos e grupos, têm pouca notoriedade visual para
seus visitantes. São conhecidos emocionalmente, e não
através do olho crítico ou da mente. (TUAN, 1983).

Daí os mapas mentais terem atraído o interesse, princi-


palmente, de educadores, psicólogos, antropólogos, urbanis-
tas, e evidentemente, também de geógrafos.

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COMUNIDADES QUILOMBOLAS:
UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO LUGAR COM O USO DE MAPAS MENTAIS d  57
DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NA ÁFRICA:
MOÇAMBIQUE E SUA BUSCA POR ALTERIDADE

Luís Tomás Domingos

Introdução

Conforme as nossas pesquisas de campo efetuadas em


Moçambique, constatamos que o impacto da educação dita
formal, com fundamentos ocidentais, tem desempenhado um
papel ambíguo nas culturas africanas.
A história humana foi marcada por choques de culturas
no processo de educação e hoje se acentua a crise epistemoló-
gica e paradigmática sobre a educação. Isto ocorre no contex-
to onde as sociedades ditas modernas se preocupam cada vez
mais em ampliar o acesso à educação com o pretexto de dimi-
nuir os índices da exclusão social. No entanto, a persistência
de diversos questionamentos é frequente: que tipo de educa-
ção se pretende instituir nas nossas sociedades multiculturais
onde as identidades culturais são diversas? Até quando as lín-
guas dos colonizadores – assumidas como línguas oficiais dos
países africanos após as independências – serão consideradas
como parâmetros para mensurar o “nível de alfabetização”
de povos que não as praticam, mas leem e escrevem em suas
línguas maternas? Como ensinar na África, tendo em vista a
característica da oralidade das sociedades africanas? Como
explicar os conceitos da educação, da ancestralidade, sabedo-
ria, conhecimentos e religiosidade africanos nas sociedades
ocidentais e vice-versa? Como integrar as tradições culturais
africanas, suas línguas, ritos etc. nas escolas oficiais da África?
É possível um povo se apropriar da técnica moderna e suas
formas especificas de organização sem renegar a sua cultura

58  d
tradicional? Uma cultura não europeia, diante do processo de
globalização, pode se modernizar sem nada alterar da sua for-
ma de ver e construir a sua própria história, cultura e valores?
Enfim, o setor da educação formal está habilitado, capacitado
e preparado para responder a estes múltiplos desafios? Nós
consideramos essas e outras preocupações como desafios da
educação em Moçambique e na África em geral.
Na sociedade moderna, onde sistemas educativos for-
mais tendem a privilegiar o acesso, muitas vezes, ao conheci-
mento escolar, em detrimento de outras formas de saberes e
aprendizagem, é essencial conceber a educação do ser huma-
no de uma maneira integral.
O conhecimento de outras culturas, outras formas de
educação, interfaces de saberes, o confronto através do diálo-
go e de trocas de argumentos, é um dos meios indispensáveis
para enfrentar os desafios da educação.
Esta perspectiva deve inspirar e orientar as reformas
educativas, tanto na elaboração de programas quanto na defi-
nição de novas políticas pedagógicas que respeitem as diver-
sidades socioculturais. A nossa reflexão tem como objetivo
ultrapassar a visão puramente instrumental da educação for-
mal, considerada hoje como a via obrigatória para obtenção
de algo (diplomas, ascensão e status social, aquisição de capa-
cidades diversas com fins econômicos etc).
No mundo da educação tradicional africana, diversos
elementos do Cosmos estão em função do homem. O homem
está no centro do universo. E é nesta dinâmica que o negro
africano se organiza e vive a totalidade das realidades visí-
veis e invisíveis. E a razão da existência do homem na cultu-
ra africana se realiza no seu equilíbrio consigo mesmo, com
a sociedade, a natureza e o universo. Trata-se de um esforço
permanente de integração das energias do Cosmos no circuito

DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NA ÁFRICA: MOÇAMBIQUE E SUA BUSCA POR ALTERIDADE d  59


da força vital do ser humano e a sua participação integral e to-
tal no universo (DOMINGOS, 2005). Neste contexto tudo está
interligado numa dimensão participativa e solidária. E a edu-
cação do munthu, ser humano, se desenvolve acompanhada
por etapas de vida e rituais precisos e necessários, conforme
os preceitos de cada tradição cultural africana.
Dentro das diversidades culturais étnicas, existe uma
unidade cultural. No mundo africano, ao lado do visível e apa-
rente das coisas, há sempre um aspecto invisível e enigmático.
A concepção da educação tradicional se fundamenta na força
vital, no principio da vida e na interação dessa em diferen-
tes etapas da vida humana: nascimento, iniciação, casamento
e morte. É neste contexto que a educação na cultura africa-
na participa de uma forma dinâmica, marcante, pertinente e
contribui para compreensão da dimensão simbólica e esotéri-
ca do homem: o mistério humano. Enfim,
a educação tradicional Africana visava a integração
harmoniosa do individuo no grupo social, conforme
o seu status que lhe consignava, seu sexo, sua posição
de nascimento, função da família (PREVOST e LAYE,
1968, p.115).

A escola é uma grande família onde se faz a aprendiza-


gem da vida. Ela é uma casa aberta sobre o mundo onde as
crianças ricas ou pobres se juntam e partilham todos os seus
sentidos da felicidade. “Todos os dias os ouvidos vão à escola”,
(Provérbio Bambara/Mali). E “cada dia a orelha ouve o que
não tinha ainda entendido”. (Provérbio Malinké).
No processo da educação tradicional africana, as pesso-
as idosas são consideradas como os detentores privilegiados
da sabedoria da ancestralidade e são considerados como au-
tênticas bibliotecas vivas nas quais as prateleiras estão ligadas
entre si por um laço invisível. “Na África, velho que morre é

60  d LUÍS TOMÁS DOMINGOS


uma biblioteca que se queima e perde.” (Provérbio Africano)
E as fichas imateriais do catálogo de tradição oral são máxi-
mas, provérbios, contos, lendas mitos etc. que constituem ora
um esboço a ser desenvolvido, ora um ponto de partida para
narrativas didáticas antigas ou improvisadas.
A filosofia de educação africana está confirmada por ca-
nais de transmissão práticos e na dimensão iniciática.
As oficinas artesanais, por exemplo, eram verdadeiras
escolas tradicionais, onde se ensinava não apenas uma
tecnologia, mas todo um conjunto de conhecimentos
científicos e culturais ligados ao oficio. O aprendiz de
ferreiro, por exemplo, que trabalhava silenciosamente
ao lado de seu mestre, tinha acesso, através do sim-
bolismo dos instrumentos da forja, a uma explicação
particular do mundo e do papel do homem no univer-
so, papel fundado na ideia  de responsabilidade e de
interdependência de todas as coisas. Ele recebia, além
disso, um conjunto de conhecimentos concretos sobre
geologia, mineralogia, botânica, e toda uma educação
do comportamento. As escolas artesanais tradicionais
ferreiros, tecelões, sapateiros, trabalhadores da madei-
ra, narradores..., reunidas em torno dos mestres, eram,
assim, lugares de transmissão de toda uma cultura.
(HAMPATE BA, 1981).

A educação tradicional africana não tem o mesmo sis-


tema do ensino europeu. Tradicionalmente, a própria vida era
educação. O jovem era educado desde criança a aprender a ou-
vir e aprofundar os conhecimentos que vinha recebendo desde
sua iniciação, na adolescência. Muitas vezes os jovens realiza-
vam longas viagens iniciáticas e as investigações e extensão do
aprendizado dependiam da destreza, da memória e, sobretudo,
do caráter do jovem. Se o jovem era cortês, simpático e serviçal,
os velhos lhes contavam segredos que não contariam aos ou-
tros, pois diz o proverbio africano: “O segredo do velho não se

DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NA ÁFRICA: MOÇAMBIQUE E SUA BUSCA POR ALTERIDADE d  61


compra com dinheiro, mas com boas maneiras.” Assim a edu-
cação dura toda a vida da pessoa. Como dizia Hampathe Ba:
Pode-se dizer que o oficio, ou a atividade tradicional
[na África], esculpe o ser do homem. Toda a diferença
entre a educação moderna e a tradição oral encontra-
-se aí. Aquilo que se aprende na escola ocidental, por
mais útil que seja, nem sempre é válido, enquanto o
conhecimento herdado na tradição oral se encarna na
totalidade do ser. Os instrumentos ou as ferramentas
de oficio materializam as Palavras sagradas, o contato
do aprendiz com o oficio obriga a viver a Palavra a cada
gesto. (HAMPATE BA, 1972, p.199).

A educação africana tem seus valores positivos e seus


limites: a ausência da escrita, o excesso de culto à memória e
introversão exagerada, a sua insuficiência de fazer face a uma
extensão na transmissão e mobilidade de conhecimentos, as
dificuldades dos métodos de aprendizagem e assimilação de
conhecimentos; o limite do processo de transmissão da ora-
lidade diante das exigências cientificas da cultura contempo-
rânea, pós-modernidade marcada pelo processo de globaliza-
ção. Como observa M’Bokolo (2009, p.48):
Ao lado destas dificuldades técnicas, [...], há problemas
de fundo muito mais árduos que poderíamos esque-
maticamente formular desta maneira: de qual (ais)
historia(s) as tradições orais são elas “fontes”? Será de
resto necessário só as considerar como “fontes”? Só nos
falam do passado ou também – e talvez – do presente?
Um dos numerosos exemplos que mostram a imperio-
sa necessidade do rigor e da delicadeza com as quais
é necessário manipular estas fontes é das narrativas
de origem tão abundantes em todas as áreas culturais
e políticas Africanas. A identidade e a posição social
das pessoas participando na cadeia de transmissão do
testemunho são tão importantes como o conteúdo do
próprio testemunho.

62  d LUÍS TOMÁS DOMINGOS


A filosofia da educação africana sempre foi vista com re-
servas e excluída dos fundamentos da educação ocidental, da
educação considerada “universal”. Todo o pensamento filosó-
fico e intelectual africano era considerado primitivo. O termo
“primitivo’ foi, ao longo de tempo, associado a “selvagem” e/
ou “bárbaro”. Em relação aos povos europeus, ditos “civili-
zados”, as populações (não europeias) colonizadas passavam
pelo processo de evolução. Esses povos não europeus, por con-
seguinte, eram primitivos, selvagens, animistas, praticavam a
magia, etc. (MORGAN, 1877; TYLOR, 1871; FRAZER, 1890).
Essas ideias evolucionistas foram advogadas socialmente por
Spencer através da doutrina “Darwinismo social” e todas suas
consequências nefastas para a humanidade. E,
[...] ao longo da história colonial a Europa voluntaria-
mente considerou os africanos do sul do Saara como
pagãos, selvagens, homens primitivos, naturais vivendo
no estado original da espécie humana (JAHN, 196, p.17).

Na antiguidade grega se designava por bárbaro tudo


o que não fazia parte da cultura helênica. No Renascimento
(séculos XVII e XVIII), se consideravam os naturais ou selva-
gens, opondo deste modo a animalidade à humanidade. O ter-
mo primitivo triunfou no século XIX, enquanto na época atual
se opta preferencialmente pelo termo subdesenvolvido. Essas
conotações pejorativas e etnocêntricas foram compartilhadas
por muitos autores e intelectuais da época posterior. Como
exemplo, podemos citar o Conde de Gobineau (1963, p.369)
que resume as características da “raça” negra na sua famosa
obra Essai sur l’inégalité des races humaines:
A variedade melaniana é a mais humilde e sem movi-
mento embaixo da escala. O caráter de animalidade
emprenhada na forma da sua bacia lhe impõe o seu
destino, desde o instante da sua concepção. Ele não será

DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NA ÁFRICA: MOÇAMBIQUE E SUA BUSCA POR ALTERIDADE d  63


jamais do ciclo intelectual o mais restrito. É, portanto,
um bruto puro e simples, que este negro com fronte
estreita e fugitiva, que traz na parte do meio do seu
crânio, os índices de certas energias grosseiramente
potentes (poderosos). Se estas faculdades pensantes são
medíocres ou mesmo nulas, ele possui no seu desejo, e
na sua vontade, uma intensidade, muitas vezes terrível.
Vários dos seus sentidos são desenvolvidos com o rigor
desconhecido às outras raças: o gosto e principalmente
o odor.

Ideias que serão retomadas e expressas nos mesmos


termos pelo filosofo alemão Hegel, que em sua obra La Raison
dans l’Histoire: Introduction à la Philosophie de l’Histoire,
nos descreve o horror que sente frente ao estudo da natureza
que é a desses povos, que jamais ascenderão à “história” e à
“consciência de si”. Ele prefere falar de “sociedades sem escri-
ta”, o conceito que oferece oposição à historia:
A África longe de ter a história, ficou fechada, sem o
contato com o resto do mundo, é o país de ouro, fechado
sobre ele mesmo, o país da infância que para além do
dia da história consciente é envolvido na cor da noite.
(HEGEL, 1965, p.39).

A África, ao longo dos séculos, foi considerada despro-


vida de história, conforme os princípios da filosofia da histó-
ria e da historiografia ocidental. Por conseguinte, a África é
uma criação do ocidente. Ao longo de séculos, a relação entre
a Europa e a África foi uma relação de poder, de domina-
ção, de graus variados de exploração, e de complexidade de
hegemonia, sobretudo, pelo não reconhecimento do sistema
da educação do outro. Sobre este aspecto, Mudimbe (1988),
apresenta: “a invenção da África: gnosis, filosofia e a ordem
de conhecimento.” Aliás, como constata M’Bokolo (2009,
p.45-46):

64  d LUÍS TOMÁS DOMINGOS


As fontes escritas de todas as origens- egípcias, gregas,
latinas, chinesas, árabes, européias... – de que certos
historiadores tinham feito a condição sine qua non
da produção de obras históricas, se revelam também
difíceis de explorar, ou até enganadoras. A fascinação
exercida pelos mirabila [sic.] – a respeito dos quais as
fontes da Antiguidade clássica oferecem o primeiro
exemplo conhecido – prolongou-se através dos escri-
tos árabes e europeus, até o fim do século XIX e talvez
mesmo até os princípios do século XX. Qual é a historia
que semelhantes fontes permitem estudar? Trata-se
da história da África ou antes a história da percepção
da África pelos outros, percepção da qual sabemos que
não cessou de reproduzir preconceitos e estereótipos ao
mesmo tempo que ia criando novos?

Se o contato entre Europa e África tivesse sido feito


num contexto “igualitário”, e se existissem objetivos e proje-
tos comuns, provavelmente os preconceitos e a hostilidade la-
tente poderiam ser apaziguados e relativizados, dando lugar a
uma cooperação sincera e humana. Nessa perspectiva, a nos-
sa proposta de educação se prioriza na descoberta progressi-
va do Outro como o ser humano. E esta educação exige duas
vias complementares. Num primeiro momento, a descoberta
progressiva do Outro, através de imersão prolongada na sua
cultura. Num segundo momento, e ao longo de toda vida, a
participação em projetos comuns, que parece ser um método
eficaz para resolver conflitos latentes.
A tentativa de estabelecer concordâncias dos conceitos
de escola e educação na África com as categorias culturais oci-
dentais arrisca deixar de fora a essência da educação na visão
do mundo africano. Numa série de estudos, Foucault resta-
beleceu uma espécie de “genealogia do sujeito moderno.” Ele
aborda um novo tipo de poder, que designa de “poder disci-
plinar”, que se desdobra ao longo do século XIX, chegando ao

DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NA ÁFRICA: MOÇAMBIQUE E SUA BUSCA POR ALTERIDADE d  65


seu desenvolvimento culminante no século XX. O poder disci-
plinar se preocupa em primeiro lugar, com a regulação, a vigi-
lância e o governo da espécie humana ou de populações intei-
ras e, em segundo lugar, do indivíduo e do corpo. Seus locais
são aquelas novas instituições educativas ou reeducativas que
se desenvolveram ao longo do século XIX e que “policiam” e
disciplinam as populações modernas- oficinas, quartéis, esco-
las, prisões, hospitais, e assim por diante (FOUCAULT, 1975).
O objetivo destas instituições ditas educativas consiste
em produzir “um ser humano que possa ser tratado como um
corpo dócil” e obediente (DREYFUS e RABINOW, 1982, p.135).
Para o Africano, a educação não é apenas tornar dócil,
obediente e obter aquisições de diplomas, ter o “domínio”
técnico e cientifico sobre a natureza, promover o desenvolvi-
mento da “razão” face à realidade contingente etc. A educação
Africana se fundamenta no Ser Humano. Numa perspectiva
dinâmica de encontrar uma harmonia, o equilíbrio, justiça,
uma coerência, uma compatibilidade global de todas as dis-
ciplinas face ao Universo (KAGAME, 1976). É na educação
que se integra Ujamaa, o desenvolvimento e a fraternidade
entre os homens (NYERERE, 1968). É com a educação que
o munhtu, ser humano, diante da força vital, encontra uma
harmonia consigo mesmo, com a sociedade e com o universo
(TEMPELS, 1965).
Uma abordagem epistemológica do pensamento africa-
no: na confiança em si surge a partir da confiança do conhe-
cimento de si mesmo” (KI-ZERBO, 1978). E a alteridade bem
compreendida é a referência crítica ao passado e a importân-
cia insubstituível de pesquisa que se apoia na sabedoria an-
cestral africana.
A pesquisa faz parte integrante do desenvolvimento,
como uma das dimensões do direito ao desenvolvimento, mas

66  d LUÍS TOMÁS DOMINGOS


também como a etapa estrutural de toda mudança positiva.
Sem a pesquisa endógena, não há desenvolvimento endóge-
no. Não há progresso material, sem a reflexão teórica, sem
a ciência e consciência prática. Neste sentido, a educação se
torna um fator primordial, no sentido pleno do termo. Cabe à
educação fornecer a bússola e os mapas que permitam nave-
gar através de um mundo complexo, constantemente agitado
e em transformação permanente. Nessa visão de educação,
uma resposta puramente quantitativa à necessidade insaciá-
vel – uma abordagem escolar cada vez mais pesada – já não é
possível nem mesmo adequada.
A escola [ocidental] sozinha não engloba toda a dimen-
são integral da educação do homem. A escola é apenas
um dos meios (oportunidades) dentro de tantos outros,
certamente organizada, mas não talvez a melhor, sobre-
tudo na África (KI-ZERBO, 1978, p.642).

Não basta que cada homem acumule, no começo da


vida, uma determinada quantidade de conhecimentos da qual
possa abastecer-se indefinidamente. É necessário, desde o
início, e em todas as fases de vida explorar, enriquecer todas
as dimensões da existência da vida humana e se adaptar a um
mundo de mudanças.
Uma abordagem sistemática sobre a escola, educação
no mundo, na África, e em Moçambique passa, necessaria-
mente, pela integração sociocultural entre as teorias e as prá-
ticas pedagógico-educativas, que possam responder ao desen-
volvimento integral e harmonioso do ser humano.

O Impacto da Educação Colonial na África

A análise da educação colonial permite compreender


a difícil tarefa de ruptura e/ou continuidade com o passado

DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NA ÁFRICA: MOÇAMBIQUE E SUA BUSCA POR ALTERIDADE d  67


que foi preciso empreender após a independência das antigas
colônias europeias na África. No período colonial, os coloni-
zadores europeus tinham acesso ao ensino. As crianças e os
jovens africanos negros, para frequentar a escola, deveriam
ser assimilados, ou seja, eles tinham que pertencer às famílias
que comprovadamente possuíssem hábitos europeus “cultura
civilizada”: saber ler e escrever a língua portuguesa, deixar de
falar “dialetos” (as línguas africanas), ser batizado cristão, não
ter práticas culturais africanas (“primitivas” e “selvagens”) e
mostrar “bom comportamento”. Assim, em torno de 0,3% da
população africana era considerada assimilada ou “evoluída”
e aos demais, 99,7%, estava vedado o acesso às escolas. O afri-
cano seduzido pelas “vantagens” da civilização ocidental, se
adaptou a novas formas de existência com objetivo supremo
de se tornar, senão um europeu, ao menos proprietário par-
cial ou da parte inteira de seus bens, desses instrumentos e
desse prestígio que se fundamenta à sua vista a superioridade
do branco. Segundo Fanon (1991, p.91):
O que eles [colonizados] exigem não é o status do colono,
mas o lugar do colono. Os colonizados, na sua imensa
maioria, querem a fazenda do colono. Para eles não
se trata de entrar em competição com o colono. Eles
querem o lugar do colono.

Como conta o escritor africano Kane (1961, p.44-45):


Ha quase cem anos, o nosso avô, e ao mesmo tempo
todos os habitantes deste país, foram acordados numa
manhã pelo clamor que subia no rio. Ele [o avô] pegou
o seu fuzil e seguido pela elite se precipitou sobre os
novos que chegaram. O seu coração era intrépido e
apegado mais ao preço de liberdade do que à vida. O
Nosso avô, assim como a sua elite foram derrotados.
Por quê? Como? Só os novos que chegaram sabem. E
é preciso lhes perguntar, é preciso ir aprender na casa

68  d LUÍS TOMÁS DOMINGOS


deles a arte de vencer sem ter razão. De mais a mais,
o combate ainda não terminou. A escola estrangeira
é a forma nova de guerra que nos fazem os novos que
vieram, e é preciso enviar a nossa elite, e esperando
lhes expulsar do nosso país. E é bom que a nossa elite a
proceda. Se há um risco, basta uma elite melhor e bem
preparada para fazer face, porque está apegada a ela
mesma. Se é bom disparar; é preciso que a elite seja a
primeira a fazer. (Grifo nosso).

Um dos grandes projetos do governo Colonial na África


era de assimilar os povos colonizados à civilização europeia
pela educação. Como se situavam os Africanos face ao sistema
educacional colonial? Foi na ambiguidade de comportamento
frustrante, de ser e/ou não ser africano, que muitos profes-
sores e alunos africanos se encontravam na época. Este era o
dilema de muitos africanos. Eis o testemunho de Laye (1953,
p.84-85) que expressa o sentimento dos alunos que frequen-
tavam a escola colonial:
Nós procurávamos não chamar a atenção, ou chamar
a atenção o menos possível do professor. Pois nós
tínhamos o medo constante de sermos enviados ao
quadro-negro. Esse quadro era o terrível pesadelo: o
seu reflexo sombrio refletia muito pouco o nosso saber,
e este saber era muitas vezes muito pequeno e até não
o havia, ele era frágil, e o saber vazio circulava em nós.
Para evitar receber a palmatória e ter nota alta e enfim
ter o diploma, o certificado de estudo, então era preciso
repetir decorado o que o professor dizia.

Eram poucos africanos que conseguiam estudar e ob-


ter os tais diplomas. Aprendiam a se comportar como colonos
europeus. Tornavam-se assimilados, evoluídos (les évolués), e
a eles eram oferecidos os postos de trabalho mais insignifican-
tes. Eram então considerados africanos civilizados e tinham
direito de ter alguns privilégios do sistema colonial.

DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NA ÁFRICA: MOÇAMBIQUE E SUA BUSCA POR ALTERIDADE d  69


No caso de Moçambique, o país herdou um legado colo-
nial pesado em quase 500 anos de dominação: o colonialismo
apenas conseguiu converter 7% de população indígena para o
mundo da leitura e escrita. E é importante lembrar que, todo
africano colonizado era considerado indígena. Uma minoria
de africanos que tivera o privilégio de ter acesso à escola na
época colonial, recebera uma educação que era a negação dos
valores culturais de tradição africana, acusada de primitiva,
obscurantista, supersticiosa etc. A educação colonial era, por
conseguinte, o veiculo de dominação, de manutenção do sis-
tema colonial português.
As políticas governamentais para educação moçam-
bicana definidas em 1929-1930 eram fundamentadas numa
base de discriminação racial e religiosa. A legislação de 1929
proibia o uso de línguas vernáculas (línguas maternas locais)
para o ensino, impondo a obrigatoriedade da língua portu-
guesa. E regulamentava a construção de escola e seus anexos,
formação de professores para as escolas indígenas (africanas),
impunha limites de idade de acesso às escolas primarias e in-
ternatos para a população indígena. Somente era permitida a
religião cristã, de preferência católica.
O uso da língua portuguesa como um meio de imposi-
ção e dominação ideológica e transmissão de valores cultu-
rais coloniais foi sempre uma regra fundamental no sistema
educacional. Assim, reforçando os decretos de 1929, – que
regulamentavam o exercício das missões religiosas e diversas
confissões e nacionalidades e das escolas de ensino primário
(diplomas legislativos n° 167 e 168/1969)-, o Estatuto missio-
nário (art. 16) reafirmava que nas escolas missionárias para
indígenas, o ensino de língua portuguesa era compulsório.
(FERREIRA, 1967, p.7). A praticada educação separada entre
o ensino primário para a população indígena – criada pelo di-

70  d LUÍS TOMÁS DOMINGOS


ploma legislativo n°238/1930 –, e para os cidadãos foi oficial-
mente introduzida em 1941, quando a educação para indíge-
nas foi entregue à responsabilidade da Igreja católica. (RAUL,
1995). Para os europeus, os não negros (indianos e mulatos)
e negros com o estatuto de assimilados, a escola tinha planos
e programas semelhantes aos lecionados em Portugal. Para a
população africana, considerada indígena, estava reservada a
educação rudimentar. A partir de 1956 foi instituído o ensino
de adaptação.
Esta realidade ilustra o papel desempenhado pela edu-
cação na África de maneira geral e na realidade moçambica-
na, em particular, e por um processo de assimilação de uma
ordem social colonial. As categorizações étnicas, raciais e re-
ligiosas foram incentivadas pelo sistema de educação colonial
dentro do preceito de dominação “dividir para reinar”.
A educação colonial, por outro lado, criava o desenvol-
vimento de competência, o alargamento do universo cultural
e uma abertura para novas visões e valores. Nesta dinâmica
contraditória, permitia aos jovens africanos desenvolver a
consciência crítica, analisar o mundo que os rodeava e con-
sequentemente compreender melhor a realidade social e po-
lítica. Reforçava a tomada de consciência da fronteira entre
o pertencimento e o não pertencimento, entre o colonizador
e o colonizado, o dominante e o dominado. Os estudantes se
conscientizavam diante de uma sociedade colonial onde a re-
ligião, a língua e a educação padronizavam as diferenças. O
cristianismo e o colonialismo eram aliados e impuseram no-
vos valores morais e culturais às sociedades africanas provo-
cando choques de culturas e crises de identidades.
Alguns moçambicanos, face ao processo de discrimina-
ção, aprenderam a construir as suas estratégias de resistên-
cias, negociações e sobrevivências em relação ao sistema colo-

DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NA ÁFRICA: MOÇAMBIQUE E SUA BUSCA POR ALTERIDADE d  71


nial racista. E outros se resignaram, assumindo formalmente
o estatuto de assimilados à cidadania portuguesa alegando ser:
[...] para evitar o trabalho forçado, o serviço militar
para nativos e uma total ausência de direitos civis [...]
bem como para assegurar pelo menos um futuro menos
degradante para os seus filhos (HONWANA, 1985, p.72).

Depois da Independência de Moçambique, em 1975, o


povo foi convidado a lutar contra a miséria, o analfabetismo,
o subdesenvolvimento, a superstição, a ignorância etc. O povo
observa que a vida é uma luta permanente. Nesta conjuntura,
a guerra não é uma batalha, mas uma sucessão de combates
locais nos quais, de maneira real, nenhum deles é decisivo ou
determinante. Por outro lado, observa-se que os jovens países
africanos abordam com uma facilidade perigosa os conceitos
da nação para etnia, de Estado para tribo e o discurso da uni-
dade nacional prevalece, aparentemente, como sendo politi-
camente correto e recomendável.
Estas foram algumas das formas alternativas de sobre-
vivência, uma alteridade, mantendo a sua identidade africana
“camuflada” num processo transcultural e trans-étnico resul-
tante do processo de construção e reconstrução de identidade
que caracteriza, geralmente, as sociedades africanas.

O Papel Ambíguo de Educação na Formação de Identidades

Para além da ambivalência de identidades criada pela


educação colonial através do processo da assimilação, o con-
ceito de identidade acabou por se ampliar num campo mais
vasto, ultrapassando as fronteiras da etnia ou da região geo-
gráfica, resultando num sistema de múltiplas identidades. A
identidade cultural é dinâmica e híbrida. Como confirma Hall
(2006, p.409):

72  d LUÍS TOMÁS DOMINGOS


Acho que a identidade cultural não é fixa, é sempre
hibrida. Mas é justamente por resultar de formações
históricas especificas, de histórias e repertório culturais
de enunciação muito específicos, que ela pode constituir
um “posicionamento”, ao qual nós podemos chamar
provisoriamente de identidade. Isto não é qualquer
coisa, Portanto cada uma dessas histórias de identidade
está inscrita nas posições que assumimos e com as quais
nos identificamos. Temos que viver esse conjunto de po-
sições de identidade com todas as suas especificidades.

Se considerarmos a “etnicidade” ou o “tribalismo” e o na-


cionalismo, como conceitos em movimento, concluiremos que
a natureza da consciência sobre mutações ocorre de acordo com
o contexto histórico. A elaboração de um conceito mais lato de
identidade, dentro de novas fronteiras, construídas nas áreas
sociais e reforçadas pelo contexto sociocultural do colonialis-
mo português em Moçambique vai estimular, de certa forma, a
consciência de construção de uma identidade nacional.
A consciência nacional emergente em Moçambique foi
imaginada, inventada e criada no seio das fronteiras coloniais.
E as identidades inicialmente construídas foram depois “re-
-imaginadas” para poderem se ajustar a uma causa nacional,
que mais tarde veio a se transformar numa oposição política
ao desenvolvimento do projeto nacionalista português.
Com abolição do indigenato em 1961, novos caminhos
se abriram para outra educação. As reformas subsequentes
trouxeram oportunidades, sobretudo, para o ensino primário.
O acesso a outros níveis sociais mantinha ainda barreiras que
tinham por objetivo evitar o crescimento de uma elite africana
que podia vir a construir uma possível oposição política face
ao colonialismo português. Assim, nas décadas de 1960-1970
algumas congregações das igrejas católica e protestante, entre
outras a Missão Suíça, centralizaram suas ações no ensino se-

DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NA ÁFRICA: MOÇAMBIQUE E SUA BUSCA POR ALTERIDADE d  73


cundário e superior, através de uma política de concessões e
distribuição de bolsas de estudo, investindo ainda em um es-
forço adicional na formação ideológica e escolar dos pastores
e seus colaboradores.
No período das lutas de libertação, muitos países africa-
nos lançaram campanhas contra o analfabetismo. Em Moçam-
bique, esta iniciativa começou nas zonas libertadas, durante o
processo da luta de Libertação Nacional. A alfabetização para
os africanos não era apenas o aprendizado da técnica de ler e
escrever, mas sim um instrumento de mobilização, o processo
de tomada de consciência da realidade de dominação em que
viviam. A alfabetização foi e ainda é o instrumento de mobi-
lização para a busca coletiva de soluções para os problemas
socioculturais e políticos etc.
O processo de alfabetização incentivou a necessidade de
resgate das raízes africanas, ou seja, a tomada de consciência
de pertencer a uma identidade cultural africana dentro das
suas diversidades. As diferentes ditas “tribos” e “etnias” que
eram rivais tomavam a consciência dos seus aspectos cultu-
rais semelhantes e tinham o mesmo inimigo, o regime de do-
minação colonial.
As relações de parentesco africanas desempenham fun-
ções na lógica social de solidariedade entre as comunidades e
etnias. A solidariedade entre as comunidades é atribuída às
relações de parentesco nuclear e da família alargada. A hos-
pitalidade e solidariedade são baseadas na reciprocidade. As
trocas comerciais, econômicas se fundamentam na responsa-
bilidade social. E as relações sociais dentro e fora da comu-
nidade são definidas e fundamentadas na justiça, equidade e
equilíbrio. Nesta constante procura do equilíbrio, os confli-
tos sociais não estão ausentes. A dinâmica de relações sociais
africanas contribui para criação de bases para o humanismo

74  d LUÍS TOMÁS DOMINGOS


e, de acordo com Julius Nyerere, é “uma atitude da mente”
e é o fundamento do “socialismo africano” baseado na ideia
de Ujamaa ou “familiaridade”. A família estendida não está
definida, apenas, pelo sangue nem pela linhagem. A tradição
cultural africana considera que todos os homens constituem
uma única irmandade – onde cada homem é membro inte-
grante da família humana estendida. Este constitui o funda-
mento dos valores da hospitalidade e solidariedade africana,
Ujamaa, o humanismo africano. (NYERERE, 1987, p.512-5)

A Educação na Fase Pós-Colonial

Depois da independência, por volta dos anos 1960,


muitos africanos pensavam que a vida ia mudar drasticamen-
te, agora sob o controle de um governo nacional e as escolas
iriam passar para as mãos deles próprios, onde poderiam tra-
çar o seu destino. Mas o processo de mudança é lento, requer
tempo e reformas profundas das mentalidades influenciadas
pelo regime colonial secular. As consequências da educação
colonial ainda constituem os desafios para as elites africanas
na construção de identidades nacionais e africanas.
Mas nem todo processo de subdesenvolvimento, de po-
breza que assola o continente e alguns países africanos, se ex-
plica pelo mecanismo de colonização. Outros fatores adversos
intervêm: falta de iniciativa local, ambições individuais e pu-
ramente econômicas, a ganância do poder gerando conflitos
armados, muitas vezes equacionados pelas mãos invisíveis ex-
ternas com a conivência das internas e vice-versa, corrupção
etc. A independência é, porém, um processo de construção
permanente.
A experiência dolorosa do povo moçambicano durante
o regime colonial teve, de certa maneira, um impacto deter-

DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NA ÁFRICA: MOÇAMBIQUE E SUA BUSCA POR ALTERIDADE d  75


minante nas decisões tomadas sobre a educação após a In-
dependência (1975). Muitas dessas diretivas educacionais,
fruto de circunstância, foram assessoradas pelos especialistas
e consultores que desconheciam o país e a cultura africana.
As orientações básicas educacionais e os pressupostos teóri-
cos da então dita doutrina do “socialismo cientifico”, se torna-
ram autênticas aventuras pedagógicas educacionais inseridas
nos projetos utópicos e experimentais. Os autores militavam
pela formação de uma identidade do “homem novo” com nova
mentalidade nacional moçambicana. Afinal, qual era o funda-
mento desta educação que menosprezava as tradições africa-
nas? As respostas são enigmáticas.
Hoje, certas correntes de intelectuais não-africanos
persistem em negar a importância e o interesse do desenvol-
vimento do ensino universitário na África em proveito da edu-
cação de base. Outros defendem a criação do ensino técnico
elementar (agrícola incluso) sob pretexto discutível da África
ser muito pobre para que se possa defender a existência de
universidades, já que o continente é de cultura essencialmen-
te agrícola (BELONCLE, 1989).
Ora, a educação universitária, através de ensino, pes-
quisa cientifica e extensão revela, cada vez mais, as condições
de desenvolvimento na África. A articulação entre os diversos
saberes tradicionais e os conhecimentos modernos permite
aprofundar e compreender o mundo africano sob as suas di-
ferentes vertentes. O sistema universitário contribui com o
despertar da curiosidade intelectual, estimula o sentido crí-
tico e permite compreender os fatos, mediante a aquisição
de relativa autonomia e capacidade de distanciamento e de
discernimento.
Todavia, é também necessário imergir no conhecimen-
to da Filosofia, Sabedoria e Ancestralidade da cultura Africa-

76  d LUÍS TOMÁS DOMINGOS


na para compreender o mundo africano. Kagame, Ogotemme-
li, Tempels, formularam de uma forma sistemática a filosofia
africana, dos Ruandeses, dos Dogons, dos Bantos. Eles con-
cordam nos seus princípios fundamentais, embora sejam po-
vos de regiões aparentemente bem distantes uns dos outros.
Entretanto, têm um denominador comum que nos permite
interpretar a unidade da cultura africana dentro da sua diver-
sidade, no tempo e no espaço. Para Mbiti (1990, p.5), a filoso-
fia e religiões africanas estão relacionadas com o homem no
tempo passado, sobretudo, no presente. Deus aparece dentro
de uma figura como uma explicação do contato do homem
com o tempo. E a doutrina filosófica é o resultado do evento
histórico ou circunstâncias, em que se produzem ideias e con-
ceitos em função das necessidades de resposta(s) às experiên-
cias vividas no tempo e espaço especifico.
Por conseguinte:
Como se trata de filosofia africana e não uma variedade
da filosofia europeia, é evidentemente perigoso fazer
correspondência no vocabulário filosófico europeu. Ao
querer estabelecer a correspondência muito precisa
com as nossa próprias categorias ocidentais, se arrisca
de deixar escapar o que é precisamente essencial em
relação ao pensamento africano (JAHN, 1961, p.25).

Desde que haja consciência, a imagem do mundo que era


objeto de crença, de intuição e de experiência vivida, se transfor-
ma em filosofia. Como dizia Friedell (apud JAHN, 1961, p.25):
Tudo é filosofia. A tarefa do homem é de pesquisar a
ideia que se encontra escondida em cada fato, perse-
guir em cada fato o pensamento na qual é, apenas uma
forma simples.

A educação de base universal e eficaz, por consequente,


constitui ainda uma prioridade para muitos estados africanos,

DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NA ÁFRICA: MOÇAMBIQUE E SUA BUSCA POR ALTERIDADE d  77


diante do fraco índice de escolaridade, levando em considera-
ção a elevada taxa de analfabetismo existente na população
adulta, no mundo rural em particular.
A educação de base é uma exigência primordial de
desen­volvimento. Mas educação de base e alfabetização, sem a
intervenção das universidades e das pesquisas científicas que
garantem as orientações ou as adaptações necessárias, não te-
rão resultados necessários e esperados. Para serem eficazes
e eficientes, eles deverão sofrer algumas modificações no to-
cante à sua estrutura, ao seu funcionamento, ao seu conteúdo
e às suas finalidades dentro da perspectiva da emancipação
sociocultural, psicológica dos beneficiários e das expectativas
sociais que estão nelas. No conteúdo da educação não se pode
esquecer “o conceito da cultura sobre o conceito do homem”,
sobretudo na sua interpretação (GEERTZ, 1978).
Os universitários e pesquisadores são também respon-
sáveis pela perspectiva de integração da educação na socie-
dade e cultura africanas. Isto passa pelo processo de “africa-
nização” dos programas e desenvolvimento de um método
pedagógico que privilegie a cultura de um “espírito novo”,
espírito de observação apto à criação, para uma libertação de
imaginação e de uma curiosidade das crianças, passando pela
necessidade de introdução das línguas africanas, (KI-ZERBO,
1978, p.642). E é essencial que cada criança, esteja onde es-
tiver, possa ter acesso, de forma adequada, às metodologias
científicas e aos conhecimentos tradicionais africanos de
modo a se tornar, para toda a vida, amiga da ciência e da sua
própria cultura.
Várias instituições de ensino superior e centros de pes-
quisas cientificas na África, estão ainda sob tutela econômica
de países europeus e as suas prioridades de ensino e pesquisas
seguem, frequentemente, orientações estrangeiras. Alguns e

78  d LUÍS TOMÁS DOMINGOS


consideráveis teóricos da educação nunca foram educadores
nem sequer professores na África.
Cabe aos universitários e aos pesquisadores africanos
assumir o “papel-chave” do projeto “original” para as ciências
e técnicas, trabalhando em correlação a “educação formal” e
a “educação não-formal” a partir da consideração sistemática
das necessidades e aspirações reais das massas e as exigências
do mundo contemporâneo.
A educação para a democracia está profundamente re-
lacionada ao respeito dos Direitos Humanos: valorização da
cultura de cada povo, desenvolvimento do ensino técnico, da
formação profissional etc.
A educação passa pela tomada de consciência da neces-
sidade inelutável de uma neoeducação africana que se instala
progressivamente nos que tomam as decisões políticas. No
caso de Moçambique, o atual sistema de educação está orga-
nizado em três níveis principais: primário, secundário e uni-
versitário. A taxa de analfabetismo, nos anos 1970 era de 93%.
Em 1975, diminuiu para 72% e, em 1980, para 62%, de acordo
com as estatísticas do governo moçambicano. De 100 alunos
que iniciam a primeira séria, a proporção de crianças que co-
meçam a estudar na idade correta, de 6 anos, é de 43% para os
homens e de 35% para as mulheres. Esses dados revelam que
o país se encontra em desvantagem relativamente à média
regional, e mostram que, apesar da oportunidade de ingres-
sar no sistema educacional ter aumentado significativamente
nos últimos anos, a progressão e a permanência escolar ainda
são muito baixas e compromete a obtenção dos objetivos de
desenvolvimento país. É importante salientar que, em 1997,
depois do conflito armado entre Renamo e Frelimo, cerca de
15% dos homens e 28% das mulheres de 10 a 14 anos não ti-
nham nenhum grau de escolaridade. E, por consequência de

DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NA ÁFRICA: MOÇAMBIQUE E SUA BUSCA POR ALTERIDADE d  79


diversos fatores: a guerra civil, Aids, minas antipessoais ter-
restres, entre outros fatores, as crianças órfãs apresentavam
taxas de matricula menores que as não órfãs. O aparecimento
de fatores imponderáveis como a epidemia de AIDS represen-
ta outro desafio: a educação é chamada a desempenhar função
preponderante na sociedade moçambicana, não só na prote-
ção dos seus dirigentes e pessoal especializado contra os ví-
rus, mas também a se estruturar para servir simultaneamente
como palco de batalha contra a propagação do vírus.
A educação, por conseguinte, torna-se o meio através
do qual se faz a gestão dos seus impactos e a prevenção da epi-
demia. Conforme estudo sobre o impacto da epidemia (MO-
ZAMBIQUE, 2000), o setor da educação pública teria que se
ajustar para compensar a perda de cerca de 17% do seu pes-
soal, compreendendo professores e gestores, e acomodar um
número elevado de órfãos, devido ao HIV/SIDA, no período
2000-2010.
Isso ocorre em um momento em que o setor se prepara
para alargar cada vez mais o acesso à educação, visando dimi-
nuir os índices de exclusão. Perguntamos: será que o setor da
educação em Moçambique está preparado para responder a
esses múltiplos desafios?
Destaque-se ainda que, sobretudo nas famílias mais
pobres, as crianças deixam de frequentar a escola para com-
plementar o orçamento familiar pelo trabalho doméstico e in-
fantil. Nas primeiras séries do sistema escolar, a língua tem
sido um dos fatores que inviabilizam a progressão escolar,
porque a maioria das crianças que ingressam na escola pela
primeira vez só falam as línguas africanas locais, não sabem
falar português, a língua oficial de ensino. (NGUNGA, 2000).
A elevada taxa de analfabetismo e a baixa frequência escolar
são mencionadas como consequência do fator linguístico. Nas

80  d LUÍS TOMÁS DOMINGOS


áreas onde a maioria da população não fala a língua portu-
guesa, a escola é percebida como algo fora da cultura local,
como uma instituição “estranha” que veicula valores e conhe-
cimentos numa língua estrangeira, e estranha ao ambiente da
família e comunidade tradicional africana. Por outro lado, em
certas regiões, observa-se certo preconceito linguístico: mes-
mo sendo africanos, valorizam a língua portuguesa, oficial.
Paradoxalmente há forte presença da “identidade afri-
cana” expressa pelos falantes das línguas africanas. Estas ati-
tudes estão presentes nas diferentes manifestações sociocul-
turais: música, dança, canções, artes etc. E o moçambicano
que aprende português, como língua oficial, cultiva também
as línguas locais africanas num nacionalismo evidente (SAM-
BO, 2002). Há evidências da inclusão no vocabulário da língua
portuguesa de algumas palavras africanas, criando “o portu-
guês de Moçambique”. Por exemplo: machimbombo (ônibus);
machamba (roça) etc. Muitas palavras portuguesas foram e
estão sendo africanizadas, alias, “moçambicanalizadas”. É um
processo da “inculturação” e/ou “interculturação” das duas
línguas, das duas culturas: portuguesa e ­moçambicana.
O não reconhecimento de complexidade cultural e da
pluralidade linguística foi um equívoco do sistema educacio-
nal ocidental na África e em Moçambique, em particular. Tal
desconhecimento promove um cenário de exclusão mútua en-
tre os europeus e africanos.

Conclusão

A educação na África, e Moçambique poderia ser re-


pensada na perspectiva de ensinar para combater a pobreza,
a alienação, a submissão, para que diversas formas de domi-
nação e de neocolonização possam ser evitadas.

DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NA ÁFRICA: MOÇAMBIQUE E SUA BUSCA POR ALTERIDADE d  81


Para haver um verdadeiro desenvolvimento da escola e
educação na África deve-se passar necessariamente pela dinâ-
mica de alteridade. Nesta perspectiva, o intelectual africano
poderia conservar algumas práticas educativas da sua tradi-
ção ancestral, sobretudo as que ainda são válidas e necessá-
rias no mundo contemporâneo em processo de globalização e,
servi-las para a construção do presente da África. Não se trata
de lamentar o paraíso perdido, este não existe.
A finalidade não é preservar a África tradicional, nem
sequer fazer um “europeu negro”; trata-se de criar o Africano
“moderno”. Em outras palavras: trata-se de integrar elemen-
tos da cultura ocidental e das outras culturas não africanas
e os conhecimentos tradicionais africanos na perspectiva de
responder às exigências da vida contemporânea que passam
pela tomada de consciência sistemática e de renovação dinâ-
mica e constante, conforme a necessidade da própria tradição
Africana. Como dizia Jahn (1961, p.14):
... que não seja somente uma reiteração formal e uma
copia passada, mas o surgimento de qualquer coisa de
verdadeiramente nova. Portanto, esta ‘ qualquer coisa
de novo’ existe já.

No âmbito de educação, nós chamaríamos a educação


neoafricana. Esta educação se apresenta de maneira partici-
pativa, dinâmica e integrada, e no centro está munthu, o ser
humano na sua totalidade. E a ciência não é o fim em si mes-
ma, mas sim, um instrumento, um meio para participar, ao
lado dos povos europeus e africanos na luta pelo desenvolvi-
mento integral do munhtu, do ser humano, o Homem. A re-
jeição de maneira global de paradigmas da educação tradicio-
nal africana é como rejeitar a própria ciência ou, em última
análise, é a negação do próprio homem. Em outras palavras,
a ciência da educação impõe uma responsabilidade ao edu-

82  d LUÍS TOMÁS DOMINGOS


cador, pedagogo, que estudou na “escola colonial”, a escola
que ensina a “vencer sem ter razão”. (KANE, op.cit.). Diante
dos desafios existentes, o pesquisador da educação na África
deve possuir os conhecimentos através de imersão prolonga-
da na cultura tradicional africana, ter acesso a interpretação
dos seus símbolos para poder agir de forma prudente, com
um olhar sem complexos. Trata-se de uma alteridade, em que
a educação africana na sua Ancestralidade, Filosofia e Reli-
giosidade, seja tomada em consideração, reconhecida na sua
integra como parte do patrimônio da humanidade. Todo o
desenvolvimento é autodesenvolvimento (do indivíduo a si
próprio) que se caracteriza pela descoberta de cada um da
sua própria potência, sua riqueza, antes de ir à procura no
Outro. Isso passa pelo respeito à educação e cultura do Ou-
tro. Uma nova concepção ampliada da educação na África
deve fazer com que todos os povos, os europeus, africanos
etc., possam descobrir, reanimar e fortalecer o seu potencial
criativo e revelar o potencial que está escondido em cada cul-
tura (Africana, Europeia e outros) para o desenvolvimento
integral do homem, o ser humano.

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86  d LUÍS TOMÁS DOMINGOS


A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO BRASIL COLONIALIZADO (1549-1890):
SUBALTERNIZAÇÃO OU LIBERTAÇÃO/DESCOLONIALIZAÇÃO?

Jeannette Filomeno Pouchain Ramos


João B. A. Figueiredo

Introdução
Não há uma educação universal, boa em si. Ela é uma
forma irresistível, imposta sobre os outros para cum-
prir fins determinados de fora. Se não podemos nos
libertar totalmente do seu poder, o conhecimento dele
pode atenuar seus efeitos.
Se cada sociedade considerada em determinado
momento histórico do seu desenvolvimento, impõe
um tipo de educação, é necessário que conheçamos
esta sociedade e seu momento histórico se queremos
desnudar o seu sistema de Educação. Especialmente
quando é preciso reverter o processo em que se está
mergulhado. (RODRIGUES, 2001, p.78).

Em nossa partida, para a viagem que aqui nos propo-


mos, optamos por utilizar como nossa caravela, para singrar
estes mares bravios, algumas leituras referentes à educação
escolar no Brasil, em que percebemos este setor como alvo da
disputa entre projetos educativos antagônicos, desde a coloni-
zação do Brasil pelos portugueses até os dias atuais, em dife-
rentes cenários e fenômenos (RIBEIRO, 2001; ROMANELLI,
2000; WEREBE, 1997; VIEIRA, 2000, 2002; RAMOS, 2009).
Os caminhos e tendências da educação escolar básica no con-
texto da realidade social, política e econômica brasileira, bem
como suas especificidades e consequências na consolidação
da colonização portuguesa que impõe um padrão, se consti-
tuem como objeto deste estudo.
As primeiras tentativas para se ter um projeto educativo
no Brasil foram feitas pelos Jesuítas, em consonância com as

d  87
diretrizes da coroa portuguesa. Mas em que se fundamentava
o seu projeto educativo? O que ele promovia? A emancipação
do homem ou a formação para submissão? Houve processos
de resistência ao padrão educativo colonial português?
Este artigo intenta desvelar o cenário educativo mo-
derno e suas pretensões colonializantes (QUIJANO, 1991;
FIGUEIREDO, 2010; LANDER, 2005; WALSH, 2008), pre-
sentes, embora de modo sutil e invisibilizado, nos primeiros
passos que prenunciam e consolidam, posteriormente, um
projeto educativo no Brasil, o que se materializa fortemente
por meio das reformas e políticas implementadas de 1549 a
1890. Neste interstício, desvela-se a educação para a submis-
são (1549-1890) com a chegada e a expulsão dos jesuítas, a
Independência Monárquica em 1822, sinalizando os feitos
de regulamentação da educação escolar e a Proclamação da
República (1889). Destacamos, porém, que este trajeto não
se dá de forma incólume, sem oposições. Desde sua origem,
encontramos muitos(as) que se posicionam favoravelmente
a uma proposta educativa descolonializante, libertadora, na
linguagem de Paulo Freire (1983).
Nessa viagem, nossa nau favorece e estimula um passeio
relevante pela pesquisa documental e bibliográfica, com base
em autores como Romanelli (2000), Werebe (1997), Saviani
(2004), Walsh (2008), Figueiredo (2012) e Ribeiro (2001), o
que nos permite analisar não só o contexto nacional, mas tam-
bém o de Portugal, por compreendermos que a história do Bra-
sil, “[...] com interpretação consequente de organização social,
deve começar antes do descobrimento” (DUARTE, 1939, p.11).
Em outras palavras, os fundamentos desse modelo edu-
cacional colonializante, opressor, foram instituídos bem antes
de acontecerem em nossa pátria. Este navegar também possi-
bilita a releitura da literatura e dos documentos com o intuito

88  d JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • JOÃO B. A. FIGUEIREDO


de repensar e reformular os problemas atuais da educação es-
colar e desvelar as contradições mediante a colonialização do
saber, do poder e do ser desde a colônia portuguesa.
A partir do pressuposto acima, da releitura do Estado e
da organização educacional em Portugal, iniciamos este artigo.
Em seguida, discorremos sobre o projeto educacional de colo-
nialização dos jesuítas, como podemos afirmar fundamentados
em Quijano (1991), e as resistências a estes processos subalter-
nizantes (AZIBEIRO, 2002; FIGUEIREDO, 2009). Neste con-
texto, a análise da educação básica, de cunho eminentemente
propedêutico, apresenta elementos importantes para a com-
preensão deste paradigma educacional moderno e sua reper-
cussão na atualidade, bem como o desvelar das contradições e
possibilidades para a descolonização do saber nacional.

Contexto Social e Educacional de Portugal


Todo ato educativo deve objetivar, em primeiro lugar,
formar o cidadão, dando-lhe a capacidade de se tornar
governante, isto é, de ser uma pessoa capaz de pensar,
estudar, dirigir e controlar quem dirige. (GRAMSCI).

Navegar em águas calmas, em um navio a velas, gera


estagnação e muitos conflitos. Neste movimento da história
portuguesa, que dá origem a uma história colonializante para
o Brasil, vamos nos deparar com momentos distintos, alguns
dos quais potencializam as contradições de um povo europeu
que se diferencia de outros povos europeus, como, por exem-
plo, da Espanha, sua aliada nestas primeiras grandes navega-
ções que frutificaram nas primeiras grandes invasões maríti-
mas. Assim é que podemos reler esta história com o devido
cuidado e criticidade descolonializante.
Dito isto, lembramos que a formação histórica do Esta-
do Português é permeada por uma formação fundamentada

A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO BRASIL COLONIALIZADO (1549-1890):


SUBALTERNIZAÇÃO OU LIBERTAÇÃO/DESCOLONIALIZAÇÃO? d  89
na família que vai constituir a base do povo brasileiro. Por sua
vez, a formação deste povo era e continuará a ser eminente-
mente particularista, comunal, municipalista, impregnada e
convicta do espírito de facção, já que se embasa na dimensão
privada, a família. Cada município constituía um núcleo his-
tórico e político próprio e singular e, assim, Portugal se divi-
dia em frações comunais e díspares. Segundo Duarte (1938),
naquele país nunca houvera uma totalidade, de forma que o
absolutismo pudesse imperar, nunca houve uma integração
territorial soberana e única, tal como ocorreu com muitos
outros países. A relação deste tipo social com o Estado, con-
siderado como organização diferenciada para atender inte-
resses coletivos e reparar as desigualdades sociais históricas
(CHAUI, 2000), é hostil e refratária.
Neste permanente duelo entre o público/Estado e o pri-
vado/família, a Igreja Católica encontrou brechas para se im-
por como um poder concorrente e, por vezes, superposto ao
poder político. O poder, a autoridade e o prestígio da Igreja ad-
vêm da Idade Média e, em Portugal e no Brasil, ela se prolon-
ga até a Idade Moderna e a Contemporânea, inclusive na área
educacional. Constatamos mesmo que este poder da “religião”
possibilitou maior poder de invasão cultural, de colonialização
do saber, do poder, do ser, da natureza (WALSH, 2008).
À época da invasão e colonização do Brasil pela Coroa
Portuguesa, na Europa, o debate educacional refletia o movi-
mento social entre a Reforma Protestante, a Contra Reforma
da Igreja Católica, a utopia e a revolução. Porém, em certa me-
dida havia uma lógica comum que permeava este conflito eu-
rocêntrico1: a manutenção de uma lógica civilizatória colonia-

1 Salientamos que, segundo Lander (2005, p.34), esta lógica eurocêntrica estrutura
e organiza tempo e espaço para toda a humanidade, desde sua percepção única
válida e referência superior e universal para todos os demais. Define um marco zero

90  d JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • JOÃO B. A. FIGUEIREDO


lizante, opressora, mantenedora de um estado de exploração
e ordenamento social que homogeneíza e hierarquiza as rela-
ções, de tal modo que se mantém o padrão de favorecimento
de um pequeno segmento social elitista e elitizante.
A educação, para os reformistas, tinha como objetivo
central instruir a fim de que cada um pudesse ler e interpre-
tar pessoalmente a Bíblia, portanto, sem a mediação do Clero,
nas escolas comunais,
[...] instruídos e doutrinados com diligência e gratui-
tamente, [...], para que cada criança, segundo suas
capacidades, possa tornar-se cada vez mais hábil no seu
ofício ou atividade [...] (MANACORDA, 2002, p.195).

Além de exprimir exigências populares como uma escola


gratuita, o projeto de instrução e a função social desta escola pro-
põem conhecimentos que possibilitariam a formação de gestores
(De Corrigendis studiis apud MANACORDA, 2002, p.199).
Salientamos que a educação escolar em Portugal era
uma prerrogativa da Igreja Católica, que instituiu a Contra
Reforma, caracterizada como uma defesa intransigente desta,
no enfrentamento à expansão do Protestantismo, e culmina
envolvendo, entre as estratégias de resistência à inovação, a
condenação das iniciativas alheias à extensão da educação às
classes populares e a proibição de livros. Neste movimento, a
intensa e multiforme atividade educativa católica se reorgani-
za por meio do Ratio Studiorum (1586-99), que regulamen-
tou rigorosamente todo o sistema escolástico:
[...] a organização em classes, os horários, os programas e
a disciplina. Eram previstos seis anos de “studia inferio-
da história e da geografia instituindo o próprio mapa mundi de conformidade com
sua centralidade. Neste projeto colonializante, as demais formas de epistemes, de
valores, de modos de ser e viver se caracterizam como inferiores e subalternas por
sua própria condição de ser arcaica ou primitiva ao se comparar com este padrão
civilizatório, epistemológico, social.

A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO BRASIL COLONIALIZADO (1549-1890):


SUBALTERNIZAÇÃO OU LIBERTAÇÃO/DESCOLONIALIZAÇÃO? d  91
ra”, dividido em cinco cursos (três de gramática, um de
humanidades ou poesia, um de retórica); um triênio de
“studia superiora” de filosofia (lógica, física e ética), um
ano de metafísica, matemática superior, psicologia e fi-
siologia. Após uma “repetitio generalis” e um período de
prática de magistério, passava-se ao estudo da teologia,
que durava quatro anos. (MANACORDA, 2002, p.202).

Este projeto educativo da Igreja Católica impõe, na


perspectiva de manutenção do status quo, uma regulamen-
tação rígida da organização do trabalho na escola e dos con-
teúdos escolares e retroalimentou a colonização em curso de
modo bastante retrógrado.
Decerto, a matriz da colonização portuguesa pode ser
pensada em quatro dimensões que se retroalimentam na con-
solidação do modelo civilizatório colonializante com estrutu-
ras, instituições, racionalidades etc., são eles: o poder, o ser,
o saber e a mãe natureza/o conviver. Ao destacar o eixo da
colonialização do saber, Walsh sintetiza:
[...] el posicionamiento del eurocentrismo como la pers-
pectiva única del conocimiento, la que descarta la exis-
tencia y viabilidad de otras racionalidades epistémicas
y otros conocimientos que no sean los de los hombres
blancos europeos o europeizados. Esta colonialidad
del saber es particularmente evidente en el sistema
educativo (desde la escuela hasta la universidad) donde
se eleva el conocimiento y la ciencia europeos como
el marco científico-académico-intelectual. (WALSH,
2008, p.137).

Do pensamento único eurocêntrico a projetos educa-


tivos distintos, por vezes complementares ou contraditórios,
Manacorda (2002) nos ensina, mediante sua máxima, que
nenhuma batalha pedagógica pode ser dissociada da batalha
política e social. Exemplo disto é a formação social, política e
educacional do povo português que expressa desafios como a

92  d JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • JOÃO B. A. FIGUEIREDO


reinvenção da relação promíscua entre a esfera privada e a es-
fera política – pública, dos interesses coletivos versus provei-
tos particulares e a educação popular e a educação burguesa.
No âmbito educacional, a Contra-Reforma instituída
restringe ainda mais os avanços sociais, como o direito de ins-
trução das mulheres, a universalização da educação na pers-
pectiva de formação de governantes e não somente governa-
dos, bem como a dimensão científica mediante um padrão de
pensar, sentir e querer. Por outro lado, nela fica mais evidente
a intencionalidade colonializante que se manifesta de modo
mais sutil na Reforma.
Aqui, aportamos para reconhecer que foi este o contex-
to que envolveu os elementos fundantes do projeto educativo
brasileiro, nosso objeto de estudo a seguir, em busca de trilhar
na compreensão de alguns processos históricos em volta da
invenção da escola brasileira, marcada com intensidade por
conflitos e contradições.

Educação para a Submissão ou Libertação (1549-1890)?


A estrutura social do Brasil – Colônia já foi caracterizada
como sendo organizada à base de relações predominan-
temente de submissão. Submissão externa em relação
à metrópole, submissão interna da maioria negra ou
mestiça (escrava ou semiescrava) pela minoria ‘branca’
colonizadores).[...]. A opressão era tão intensa, blo-
queando as manifestações de descontentamento, que
aparentemente parecia ser aceita como necessária ou,
pelo menos, como inevitável. (RIBEIRO, 2001, p.38).

Enquanto na Europa os conflitos políticos e educacio-


nais estavam expressos nos movimentos da Reforma e Con-
tra-Reforma, Portugal e Espanha se conservaram católicos,
diferenciando-se em ideias e processos dos demais países e
dos continentes em decurso de ocupação. Uma educação para

A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO BRASIL COLONIALIZADO (1549-1890):


SUBALTERNIZAÇÃO OU LIBERTAÇÃO/DESCOLONIALIZAÇÃO? d  93
submissão reflete o projeto educativo português no Brasil-
-Colônia, pautado na exploração, bem como no Brasil monár-
quico “quase” (in)dependente, o que influencia a educação na
República, numa urdidura sutil que garante a perpetuação do
padrão colonial, agora ainda mais colonializante.
Ao considerar esta terra como colônia de exploração, o
projeto educativo, a ocupação produtiva, os elementos huma-
nos e os recursos materiais foram transplantados de fora para
dentro, pelo invasor-opressor português. Esta dependência do
Exterior 2 perpassa a história do Brasil e da educação escolar.
A importação do modelo educacional dos Jesuítas para
a Colônia, por meio da chegada da Companhia de Jesus, em
1549, atendia tanto aos interesses da Metrópole, quanto aos
da Igreja Católica. No cenário conflituoso da Europa, esta úl-
tima tinha como objetivo o recrutamento de fiéis/servidores,
a restauração do dogma e da autoridade. Atende também aos
interesses da Coroa, ao atuar junto aos gentios com a esco-
larização e catequese destes, com a finalidade de integração
ao projeto do explorador na formação do estado brasileiro,
por meio da “anulação” de toda diferenciação étnica, cultural,
portanto, da sua identidade, ao serem incorporados à socieda-
de, ao mercado, evidentemente numa perspectiva subalterna.
A escolarização3, segundo este projeto educativo, passa a
ser um instrumento de imposição do modelo educacional, social
2 Como nos reforça Walsh (2008), ao destacar que desde sua “formação” os Esta-
dos nacionais sul-americanos, possuem em sua estrutura de base a pretensão de
políticas homogeneizantes que garantem a manutenção da ordem de dominação,
seja econômica, política, social, cultural, ordem que alimenta os interesses do
capital e do mercado global.
3 Movimento similar é retratado na publicação da UNESCO (2010, p.639), África

desde 1935, sobre a relação entre a língua, a evolução social e o Instituto Africano
Internacional – IAI, organismo internacional, com o seu plano colonializante de
escolarização, com a elaboração de manuais escolares africanos destinados a iniciar
os estudantes no estudo da civilização e do pensamento ocidentais, cuja influência
seria decisiva na formação de futuros chefes.

94  d JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • JOÃO B. A. FIGUEIREDO


e cultural, em consonância com a matriz colonial determinado
externamente, mediante extermínio, dominação, integração,
negação da cosmovisão indígena e africana4, homogeneização
cultural, entre outros. Segundo Romanelli (2000, p.36):
Foi ela, a educação dada pelos jesuítas, transformada em
educação de classe, com características que tão bem dis-
tinguiam a aristocracia rural brasileira, que atravessou
todo o período colonial e imperial e atingiu o período
republicano, sem ter sofrido, em suas bases, qualquer
modificação estrutural, mesmo quando a demanda
social da educação começou a aumentar, atingindo
as camadas mais baixas da população e obrigando a
sociedade a ampliar sua oferta escolar. [...] esse tipo de
educação, veio a transformar-se no símbolo da própria
classe, distintivo desta, almejado por todo aquele que
procurava adquirir status.

Ao abordar os índios adultos, no entanto, os jesuítas en-


frentaram uma grande resistência, por serem estes defensores
da sua cultura tradicional. Desde então, retomaram os proces-
sos de catequese e escolarização junto às crianças, consideradas
como campo fértil, onde tudo o que é cultivado surte resultado.
O projeto educativo jesuítico era pautado por uma edu-
cação religiosa uniforme, neutra e conservadora, que concen-
trava esforços na formação intelectual, no desenvolvimento
de atividades literárias e acadêmicas, em outras palavras, na
formação do homem branco erudito e na domesticação dos
índios. Este modelo refletia a organização social e política do
Estado Português, que pretendia manter a dualidade do ensi-
no, o status quo do ciclo de navegação e do período áureo do
imperialismo português ao ocupar e povoar as suas colônias.
4 Segundo a tradição africana, Nascimento (1981, p.40) cita que os eventos “[...]
são integrais: não há a pretensão de rigidamente separar a política da vida social,
a luta econômica da vida cotidiana popular, ou o ensino e a educação da alegria, da
música e do culto”. É preciso liberar a mente da dualidade da existência marginal.

A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO BRASIL COLONIALIZADO (1549-1890):


SUBALTERNIZAÇÃO OU LIBERTAÇÃO/DESCOLONIALIZAÇÃO? d  95
Além disso, as atividades de produção, exploração e ad-
ministração na época não exigiam nem o preparo de mão de
obra especializada nem o ensino qualificado, sendo o último
deixado à margem, sem qualquer utilidade prática, a não ser
para a garantia do domínio político da Colônia e da submis-
são, pela reafirmação do dogma e da autoridade junto aos na-
tivos, minando assim toda forma de busca pela emancipação
do homem nativo aqui presente. Como podemos deduzir, a
educação jesuítica no Brasil promovia e alimentava a divisão
social, como cita Romanelli (2000, p.35):
Os padres acabaram ministrando, em princípio, educa-
ção elementar para a população índia e branca em geral
(salvo as mulheres), educação média para os homens de
classe dominante, parte da qual continuou nos colégios
preparando-se para o ingresso na classe sacerdotal, e
educação superior religiosa só para esta última.

Além desta divisão social, a Ratio Studiorum regula-


mentava rigidamente a organização do trabalho escolar. Este
papel dominador e conservador da Igreja, associado a uma
postura excludente, potencialmente colonializante, de algum
modo, se cumpliciaram com o Estado colonial, o que possibi-
litou que culturas inteiras fossem dizimadas do mapa do Bra-
sil. Comunidades indígenas foram destruídas, sendo suas tra-
dições esmagadas e seus saberes ancestrais substituídos por
informações e conhecimentos alienados dos jesuítas.
Faz-se necessário registrar o fato de que, no âmbito da
educação formal, não havia nas sociedades indígenas, uma
instituição responsável por esse processo: toda a comunidade,
em geral, é responsável por fazer com que as crianças se tor-
nem membros sociais plenos. Isto habitualmente com todos
os povos tradicionais, em todas as épocas, sempre mantiveram
suas formas de transmissão do conhecimento e da cultura, seja

96  d JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • JOÃO B. A. FIGUEIREDO


por via oral, a citar, por meio dos contos, fábulas, lendas..., ou
por outros meios, como o desenho, a escrita etc., perpetuando
a herança cultural ancestral de geração para geração.
Entre os procedimentos que possibilitaram a esses po-
vos a produção de ricos acervos de informações e reflexões
sobre a natureza, a vida social e os mistérios da existência hu-
mana, a praxiologia se constituía como critério de verdade,
por meio de vários mecanismos, a citar: a observação, a expe-
rimentação, o estabelecimento de relações com a casualidade,
a formulação de princípios, a definição de métodos adequa-
dos, entre outros (Parecer CEB/CNE no 19/1999).
De volta ao navio, destacamos que enquanto o projeto
conservador se efetivava na Colônia, na Europa “[...] o livre
exame, o espírito de análise e de crítica, paixão pela pesquisa
e o gosto da aventura intelectual [...]” (ALMEIDA, TEIXEIRA,
2000, p.39) eram incentivados. Nesta mesma obra ainda se
afirma que este projeto teria ampliado o horizonte mental de
nosso povo, considerando que o Iluminismo, pautado numa
razão dita científica, possibilitaria um contraponto aos dog-
mas religiosos. Será que isto teria sido um efetivo avanço ou
apenas outra face escura desse projeto colonializante? Afinal,
a lógica eurocêntrica, colonializadora, excludente, opresso-
ra, focada no mercado e na homogeneização social e cultu-
ral também ali se evidenciava. A real mudança seria no modo
como o modelo se organizaria e nos meios que utilizaria para
alimentar ou contrapor estes procedimentos hierarquizantes.
Em nossa viagem, percebemos que o sistema educacio-
nal dos jesuítas atuou durante 210 anos e promoveu a educa-
ção religiosa por via de um modelo elitista e de cunho acade-
micista, sob anuência do governo português. Sua decadência
resulta do excesso de ambição pelo poder e pelas riquezas e da
manipulação dos governos como instrumentos políticos para

A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO BRASIL COLONIALIZADO (1549-1890):


SUBALTERNIZAÇÃO OU LIBERTAÇÃO/DESCOLONIALIZAÇÃO? d  97
atender aos interesses da Comapanhia de Jesus. Isto tudo
passa a concorrer e ameaçar os interesses da Coroa Portugue-
sa (HAIDAR e TANURI, 2004).
Deste modo, o Marquês de Pombal, influenciado tam-
bém pelo enciclopedismo, expulsou os jesuítas do Brasil e
de Portugal, em 1759, por um Alvará que é, segundo Castelo
(1970, p.28),
[...] uma síntese das ideias iluministas de Pombal,
não um iluminismo revolucionário, anti religioso, anti
histórico, mas reformista, humanista, em que procura
laicizar a estrutura da sociedade portuguesa, mantendo,
porém, a religião.

Esta expulsão já havia ocorrido na França, Espanha,


Nápoles e Sicília. A Companhia de Jesus chegou a ser extin-
ta em 1773 e restabelecida em 1814. Determinou-se, então, o
fechamento dos colégios jesuítas sob a alegação de que este
método distanciava os estudantes do mundo, tornando-o ine-
ficaz para a vida prática. Foram introduzidas as Aulas Régias
– aulas avulsas a serem mantidas pela Coroa por meio do sub-
sídio literário (1772). Seria uma ampliação do modo como se
exploraria os nativos brasileiros? Seria esta outra maneira de
continuar a colonializar, agora de forma mais sutil e mais per-
versa, pois que nem sempre perceptível?
Segundo seus defensores, o novo projeto educativo pre-
tendia modernizar e liberar da estreiteza do obscurantismo.
Ao expulsar os jesuítas, a Colônia viveu novos tempos de des-
mantelo e falta de organização educacional, ao não substituir
o sistema educacional destes por um novo. Em vez de um sis-
tema único, passaram a existir escolas leigas e confessionais
que seguiam os mesmos preceitos da ordem anterior.
O ensino médio, por exemplo, quase “desapareceu
como sistema e se resumia, de maneira, irregular, às aulas

98  d JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • JOÃO B. A. FIGUEIREDO


régias que só tiveram vantagem, em relação ao dogmatismo
jesuítico, por introduzir novas matérias, como as línguas vi-
vas, matemática, física, ciências naturais, etc.” (WEREBE,
1997, p.27). Estas transformações que ocorreram no ensino
médio não atingiram o ensino fundamental que manteve a
Ratio Studiorum. Seria um gradativo processo de ampliação
do mercado de consumidores/produtores no novo cenário
mundial?
A aproximação histórica com Portugal promoveu cres-
cente intercâmbio que levou inúmeros jovens brasileiros a es-
tudar em universidades na Europa, e delas trouxeram ideias
liberais e revolucionárias, na perspectiva de mudanças sociais
e econômicas. Concomitantemente, havia aí um reforço na re-
lação entre o Estado, a elite mediadora local e o povo subalter-
nizado e oprimido. Constatamos a lógica do dividir e dominar
dos romanos, bem como a ideia de compartilhar poder para
melhor continuar os procedimentos exploratórios numa con-
dição mais viável para os novos tempos globais.
Afunilando nosso trajeto náutico, constatamos também
que o modelo educacional para a submissão é igualmente re-
tratado na História do Ensino no Ceará (CASTELO, 1970),
sendo as primeiras escolas fundadas no início de 1700 em
Aquiraz e Viçosa. Estas promoviam o ensino público, tanto
em relação à educação primária como secundária. A última
somente para os que se destinavam ao sacerdócio, ou seja, a
perpetuação dos processos colonializantes.
As terras cearenses eram habitadas por indígenas de
tribos diferentes, que foram dizimados ou “domesticados”
por meio da catequese cristã, transformando-os em pacíficas
e quietas nações de tapuias. Estes processos foram marcados
pela resistência indígena à invasão de suas terras e à submis-
são imposta ao seu povo. Exemplar é a leitura feita pelo padre

A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO BRASIL COLONIALIZADO (1549-1890):


SUBALTERNIZAÇÃO OU LIBERTAÇÃO/DESCOLONIALIZAÇÃO? d  99
Antônio Vieira (apud CASTELO, 1970, p.20), acerca de como
reconhecem a resistência dos indígenas:
[...] que a fereza natural destes brutos, entraram um dia
de repente na aldeia e pela Igreja os chamados Tocarijus,
e estando o Padre Francisco Pinto ao pé do altar para
dizer a missa, sem lhe poderem valer os poucos índios
cristãos, que o assistiam, com frechas e partazanas,
que usavam paus mui agudos e pesados, lhe deram três
feridas mortais pelos peitos, e pela cabeça, e no mesmo
altar, onde estava para oferecer a Deus o sacrifício do
corpo e sangue do seu filho, ofereceu e consagrou o de
seu próprio corpo e sangue, começando aquela ação
sacerdotal e consumando-a o sacrifício.

Desvela-se a mentalidade colonial, de educador para ben-


feitor, este é o caminho desenhado pelo autor para justificar as
ações dos jesuítas no Ceará e os “índios”, “selvagens”, passam
a ser domados, obedientes e vassalos. Para estes “educadores”,
índio bom é o que obedece e se submete à lógica eurocêntrica.
Mas, continuemos nosso embarque. Com a expulsão da
Companhia de Jesus, as escolas da aldeia passaram a ser mi-
nistradas por “mestres” sem experiência, nem moral suficien-
tes, tanto que um dos diretores da Vila da Parangaba informa
que: “[...] retirara da escola e vendera quarenta e um meninos,
índios, de ambos os sexos” (CASTELO, 1970, p.23). Sem sis-
tema nem método, a evolução do ensino, no período de 1759 a
1772, permaneceu sob critério dos interesses locais e reprodu-
zindo este corpus colonializante, que implica em:
[...] oprimir, subalternizar, explorar, desumanizar, coi-
sificar, tornar o indivíduo não humano, torná-lo coisa
de uso, que serve a um propósito alheio a ele mesmo
(FIGUEIREDO, 2012, p.70).

No início do século XIX, com a vinda da Família Real,


apresentam-se grandes mudanças na estrutura social e um

100  d JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • JOÃO B. A. FIGUEIREDO


tanto na organização educacional, pois este passa de colô-
nia de extração de recursos naturais para a sede do Governo
português. Registram-se, neste período, o rápido processo
de urbanização e modernização. Na disputa interna de cultu-
ras e projetos educativos distintos, ou melhor, de contrários,
portugueses e indígenas se confrontaram, se chocaram e, em
algumas situações, se fundiram. Neste conflito, coube ao por-
tuguês invasor a posição predominante e o papel de padrão
para o país que se formava, por exemplo, a língua, a forma e o
modelo organizacional civil, político e educacional.
No âmbito educacional, foram criadas diversas institui-
ções de formação, em diferentes ramos e níveis, inclusive no
nível técnico, e inaugurou-se o ensino superior no Brasil, que
deveria atender às necessidades urgentes da conjuntura local.
A educação passou assim, a ter uma utilidade prática, ao for-
mar quadros técnicos para a administração do Estado e aten-
der a demanda da aristocracia local. A ruptura com a tradição
da escola jesuítica, porém, não fora total, pois a formação li-
terária se manteve como eixo central, mesmo nos cursos de
formação técnica e científica, bem como na organização dos
níveis escolares.
Deste modo, além da propriedade de terra e do número
de escravos, os graus de bacharéis mestres passam a ser ins-
trumento de ascensão social no período colonial. Este projeto
educativo dos jesuítas foi consolidado enquanto educação de
classe, da elite, e tornou-se símbolo dela. Foi o coroamento de
um exitoso projeto de colonialização do saber que se desdobra
na colonialização do poder e do ser.
Do outro lado do barco, constatamos que, após a derro-
ta de Napoleão na Europa, a Corte Portuguesa exigiu o retor-
no de D. João VI a Lisboa e este deixou seu filho, Pedro, como
príncipe regente do Brasil. Havia a necessidade de garantir

A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO BRASIL COLONIALIZADO (1549-1890):


SUBALTERNIZAÇÃO OU LIBERTAÇÃO/DESCOLONIALIZAÇÃO? d  101
uma hegemonia política lusitana e o monopólio de explora-
ção sobre o Brasil, no ambiente colonializante em franco de-
senvolvimento. Assim, em 1822, Pedro tomou medidas para
declarar o Brasil independente como uma monarquia consti-
tucional e coroando a si mesmo como D. Pedro I.
No movimento pela Independência, Ramos (2009) re-
gistra que este processo incidiu na formação de dois grupos,
um de direita, representado pela classe dominante e parte da
classe média, e outro de esquerda, constituído por intelectu-
ais da classe média, sob a influência de ideais revolucionários
franceses. Mas o grupo dominante da direita mantém o País à
imagem e semelhança do projeto original português. A mes-
ma oligarquia local permanece no poder, agora sob a alcunha
de Império.
Com a Proclamação da Independência do Brasil, outro
projeto educativo nacional poderia ter sido implementado na
Constituição de 1824, caso efetivamente houvesse interesse de
potencializar um amplo e real processo de libertação para o
país. O texto inicial propunha um sistema nacional de educação
com escolas primárias em cada termo, ginásios em cada comar-
ca e universidades nos mais apropriados locais (art. 250).
Em 1827, a Lei das Escolas de Primeiras Letras poderia
ter estabelecido a escola pública nacional, mas isso não acon-
teceu, pois o que vigorou foi a ideia da distribuição, por todo
o território nacional, apenas das escolas de primeiras letras,
limitadas tanto na abrangência quanto no conteúdo.
Em 1831, D. Pedro I abdicou de seu trono e é decretado
o Ato Adicional de 1834 que restabelece a descentralização,
concedendo mais autonomia às províncias ao situar “as esco-
las primárias e secundárias sob a responsabilidade das pro-
víncias, renunciando, assim, a um projeto de escola púbica
nacional” (SAVIANI, 2004, p.17). Decorre daí uma instabili-

102  d JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • JOÃO B. A. FIGUEIREDO


dade da política educacional, insuficiência de recursos, bem
como o compartilhamento do controle por uma elite regional,
no que de pior carregava, associado a uma globalização de co-
nhecimentos ditos humanistas, de caráter enciclopedista, dis-
sociado da realidade local, que impera ainda hoje nos estados
e municípios.
Entre as leis aprovadas, no que diz respeito à educação,
há de se mencionar a independência também relativa ao mé-
todo e à organização do ensino. A influência dos jesuítas se
mantém, embora associada ao método inglês lancasteriano5,
que é adotado para resolver um problema interno de falta de
professores.
Em 1879, a Reforma Leôncio de Carvalho é difundida e
poucas consequências são observadas. Outro projeto educati-
vo, de 1882, apresentado e bem debatido, embora não imple-
mentado, foi o projeto Rodolfo Dantas, que deu origem a um
parecer de Rui Barbosa. Este parecer foi na verdade:
[...] um plano global de educação, abrangendo todos os
níveis e ramos de ensino, todos os aspectos relativos à
administração escolar, aos programas e à didática das
várias disciplinas, à formação dos professores, ao finan-
ciamento do ensino, à psicologia dos alunos, à avaliação
do sistema e do rendimento escolar, à construção esco-
lar etc. Preconizava ainda um Museu Pedagógico (que
reuniria a documentação educacional e as estatísticas
escolares) e de um ministério próprio consagrado à
educação. (WEREBE, 1997, p.35-36).

Apesar de reconhecermos um idealismo romântico de


Rui Barbosa, permeado pela concepção ingênua de que pela
educação se poderia reformar a sociedade, para nós merece
5 Este método propõe a seleção de monitores entre os alunos mais avançados para tra-

balhar diretamente com seus colegas, reforçando o ensinado pelos mestres momentos
antes. Além desta seleção, vale registrar o papel do inspetor de ensino, que deve
vigiar os monitores e apontar ao mestre os que devem ser premiados ou corrigidos.

A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO BRASIL COLONIALIZADO (1549-1890):


SUBALTERNIZAÇÃO OU LIBERTAÇÃO/DESCOLONIALIZAÇÃO? d  103
destaque neste parecer a sinalização da necessidade de um
projeto educativo nacional, respaldado numa legislação espe-
cífica para o setor educacional, e, portanto, pressupõe a for-
mação de um sistema nacional de educação6.
Quanto à instrução secundária, esta não fora objeto de
grandes transformações, ao continuar focada em uma peque-
na parcela da elite, na preparação para os cursos superiores
em escolas particulares, enquanto o ensino público passou a
se organizar em liceus e colégios, plasmando o sistema edu-
cacional francês, que havia adotado o sistema de estudos se-
riados desenvolvidos em cursos regulares de curta duração,
em contraposição às aulas avulsas7, que continuavam e pro-
liferaram em razão da ausência da quantidade necessária de
docentes, bem como dos parcos recursos disponíveis.
A formação livresca e precária no ensino secundário
também incidiu no ensino superior, que não possibilitava a
leitura concreta da realidade, embora contraditoriamente en-
volvesse o gosto pela palavra ao mesmo tempo em que limita-
va a ação. Este:
[..] tipo de formação do ensino superior recebida, que
oferece uma interpretação da realidade, fruto desta pers-
pectiva de privilégios a serem conservados ou quando
muito uma interpretação da realidade segundo mode-

6 A origem do sistema educacional no Brasil remonta ao início do século XX, com


o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (AZANHA, 2004), que propõe a
elaboração de um plano sobre a organização do ensino. Nesta transição do Século
XX-XXI, a pauta central das conferências nacionais de educação retoma o debate
sobre o Sistema Articulado de Educação Brasileira, ou seja, a “[...] unidade de vários
elementos intencionalmente reunidos de modo a formar um conjunto coerente e
operante” (SAVIANI, 2009). No entanto, há a perpetuação da matriz colonial de
quatro obstáculos que inviabilizam a consolidação deste, são eles: político, eco-
nômico, legal e financeiro (SAVIANI, 2009, RAMOS, 2013).
7 Em 1854, havia no Brasil 20 liceus, 148 aulas avulsas e 3713 alunos, enquanto, na

Europa, a Revolução Francesa pregava a universalização e a gratuidade do ensino


elementar (HAIDAR, TANURI, 2004). Em 1822, registrava-se no Ceará uma po-
pulação estimada de 200.000 habitantes e somente 27 escolas (CASTELO, 1970).

104  d JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • JOÃO B. A. FIGUEIREDO


los importados, os mais avançados, mas resultado de
situações distintas e, por isso, inoperantes. (­RIBEIRO,
2001, p.55).

É a reafirmação do modelo colonializante, portanto,


conveniente à formação da elite e participante do poder que
não expõe o seu projeto político a jogo. Em contraparte par-
cial a este modelo, a formação humana com base na ciência
moderna, que promove o gosto pelos fatos científicos, conti-
nuava sendo vivenciada em inúmeros países na Europa desde
a Reforma Protestante.
Enquanto os dilemas educacionais na Europa estavam
ao sabor da conciliação entre a formação clássica e a ciência,
Ribeiro (2001, p.61) assinala que a realidade brasileira “en-
frentava um dilema anterior – conciliar a formação humana e
o preparo para o ensino superior”.
O controle indireto do ensino secundário pelo Governo
imperial ficou explícito na centralização do ensino superior
(Ato Adicional de 1834), que, além de dar direção à leitura
da realidade, também estabelece os exames de admissão e os
cursos preparatórios do ensino superior.
A não-organização do sistema educacional brasileiro, por
meio da centralização do sistema de avaliação e da “descentra-
lização da educação primária e secundária”, atendia aos inte-
resses alheios, ou seja, da iniciativa privada, que expandia a sua
rede de atendimento, gozando de toda a liberdade (ver em RA-
MOS, 2009, p.53) e perpetuando a educação para a submissão.

Considerações Finais
Tales reconocimientos hacen interculturalizar y des-
colonizar la lógica y racionalidade dominantes, abri-
éndolas a modos otros de concebir y vivir, modos que
encuentran sus fundamentos en el pensamiento, los

A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO BRASIL COLONIALIZADO (1549-1890):


SUBALTERNIZAÇÃO OU LIBERTAÇÃO/DESCOLONIALIZAÇÃO? d  105
principios y las prácticas de los pueblos ancestrales.
Desde la filosofía o cosmovisión indígena, la Pachama-
ma o madre naturaleza es un ser vivo “con inteligencia,
sentimientos, espiritualidad”, y los seres humanos son
elementos de ella. La naturaleza, tanto en el concepto
del «buen vivir» como en el «bien estar colectivo» de
los afrodescendientes (conceptos similares pero no
iguales por sus mismas diferencias históricas), forma
parte de visiones ancestrales enraizadas en la armonía
integral, una armonía que la sociedade occidentalizada
y el sistema de capitalismo “ahora neoliberal” ha hecho
no solo perder, sino destruir. (WALSH, 2008, p.146).

Estamos próximos do porto que nos aguarda o desem-


barque. Após uma releitura descolonializante da realidade da
educação escolar luso-brasileira, percebemos que nossa he-
rança colonial traz muitas mazelas, tais como a extinção de
muitos povos, de milhares de línguas, tradições e de muitos
princípios educacionais dos povos indígenas e dos africanos
escravizados, bem como a negação de suas culturas. Decerto,
[...] a linguagem cria e unifica uma consciência nacional,
em que as fronteiras culturais correspondem muitas
vezes mais poderosas e fundamentadas do que as fron-
teiras políticas e geográficas. (PARADISO, 2009, p.34).

Isto demonstra a gravidade desta atitude de subalter-


nização e tentativa de opressão e negação dos processos de
resistência.
Durante todo o Império, a educação escolar permaneceu
desorganizada, desde a expulsão dos jesuítas até a política de
centralização do ensino superior, que atende a camada privi-
legiada, só se tem agravado os problemas educacionais. O en-
sino primário e secundário foi jogado (descentralizado) para
as províncias e, com isto, se apresenta um desenvolvimento
educacional diferenciado, conforme as disposições políticas,

106  d JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • JOÃO B. A. FIGUEIREDO


sociais e econômicas locais. O ensino médio era meramente
propedêutico, a ponto de transformar-se em simples ilustra-
ção e preparação para funções nas quais a retórica tem papel
mais importante do que a vida, a ação, além de fomentado
basicamente pela iniciativa privada, em sua ampla maioria.
A proclamação da chamada Independência no Brasil se
concretiza na dimensão formal da política e na relação com
Portugal. Porém, no setor educacional, a dependência é regis-
trada numa formação precária de intelectuais que continuam
transplantando modelos educativos, seja da França, Inglaterra
e Alemanha, como forma de resolver os problemas nacionais.
Para uma reorganização e sustentabilidade de um pro-
jeto educativo nacional seria necessário, além do reconheci-
mento da educação como prioridade e compromisso nacional,
a aplicação de recursos financeiros que os viabilizassem. Con-
tudo, tal como em outros momentos históricos, o Brasil conti-
nua afirmando o déficit econômico, a falta de recursos, como
fator de restrição das possibilidades do poder central desenhar
um projeto educativo libertador, descolonializante para a Na-
ção. Fica explícita, portanto, uma vontade política excludente
e uma formação educacional subalternizante e opressora.
Em síntese, concluindo esta viagem marítima entre
Portugal e nosso país, podemos enfatizar que o Brasil, du-
rante séculos, esteve absolutamente submisso politicamente
à Metrópole portuguesa e, consequentemente, à Igreja, cujos
objetivos eram a exploração das riquezas naturais e o recru-
tamento de fiéis ou de servidores. A República prometia uma
revolução que foi abortada8 na sua essência e a mudança no
8 Do ponto de vista cultural e pedagógico, a República foi uma revolução que
abortou e que, contentando-se com a mudança de regime não teve o pensamento
ou a decisão de realizar uma transformação radical no sistema de ensino para
provocar a revolução intelectual das elites culturais e políticas, necessárias às novas
instituições democráticas (AZEVEDO apud ROMANELLI, 2000, 43).

A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO BRASIL COLONIALIZADO (1549-1890):


SUBALTERNIZAÇÃO OU LIBERTAÇÃO/DESCOLONIALIZAÇÃO? d  107
regime político possibilitou a permanência da elite no poder e
a submissão do projeto educativo aos interesses do “invasor”
português. Para invisibilizar o problema, o caminho escolhido
foi o da dimensão instrumental-legal, através de reformas e
políticas que refletem a ineficácia e a intencionalidade subal-
ternizante em prejuízo da população.
Como prognóstico, podemos apontar para o aprofun-
damento da crise da educação escolar brasileira, da formação
do jovem e da sociedade como um todo, no entanto, este não
será o fim da escola. Assim como os povos da África, no pós-
-independência, é preciso que o povo brasileiro se descubra
diferente e tome consciência de tudo o que lhe caracteriza e os
diferencia dos europeus, dos demais povos (CANÊDO, 1992,
p.7). Somente assim, neste reconhecimento do valor e da ri-
queza das diferenças, poderemos avançar na direção desse
mundo melhor que desejamos.
É preciso descolonializar a lógica e a racionalidade
dominantes e conceber outras formas de poder, saber, ser e
conviver. Dentre os caminhos possíveis para a educação liber-
tadora, desvela-se a necessidade de refundar o Estado, numa
perspectiva intercultural critica e descolonializante, com o re-
conhecimento, socialização e implementação dos fundamen-
tos epistêmicos, princípios e práticas dos povos ancestrais na
escolarização básica. Afinal, como dizia Paulo Freire, é na ex-
periência da conscientização que se supera a submissão, ou
seja, o medo da libertação.

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2
Religião, Política
e Igualdade Racial
ÁFRICA, RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS E IGREJAS EVANGÉLICAS:
APONTAMENTOS1

Gledson Ribeiro de Oliveira


Isaac Bruno Oliveira Araújo

Sem Preconceito de Ter Preconceito

Nos últimos anos pastores e membros de igrejas neo-


pentecostais2 voltaram aos noticiários por seu envolvimento
conflituoso com as religiões afro-brasileiras e seus símbolos
culturais. Ao tornarem públicas posições e condutas classifica-
das pelos movimentos negros e ativistas de direitos humanos
como preconceituosas e discriminatórias, desencadeou-se, de
parte a parte, críticas, indignação e atos de solidariedade por
todo o país.
Em uma dessas situações, quatorze estudantes de uma
escola estadual em Manaus, Amazonas, se recusaram a par-
1 Este texto faz parte do projeto de pesquisa “Transnacionalização religiosa: igrejas

neopentecostais brasileiras em Angola” contemplado pelo edital BICT/FUNCAP


2013-2014.
2 As tipologias criadas para distinguir os vários pentecostalismos no Brasil tentam

dar conta da circularidade de suas práticas e crenças ao longo do tempo. Essa


circularidade de práticas e crenças cria um fio tênue de separação entre elas. Por
exemplo, se as características da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), tipifi-
cada como neopentecostal são – para além da gestão empresarial e da teologia da
prosperidade – a guerra espiritual, o exorcismo, o transe e a manipulação mágica,
algumas desses elementos já eram praticados pela Assembleia de Deus no Brasil
e pela Igreja do Evangelho Quadrangular. Essa última, quando ainda chamada de
“Prece Poderosa”, já realizava sessões de curas, oferecia “óleos e bênção a dinhei-
ro” ainda nos anos 1950, portanto, antes da IURD. Em comum a todas elas está o
desenvolvimento dos dons do Espírito Santo. Para efeito didático pode-se dividir
o campo religioso evangélico brasileiro em protestantismo histórico (luteranos e
anglicanos, batistas, presbiterianos e congregacionais) e pentecostal que é subdi-
vidido no pentecostalismo clássico (Assembleia de Deus e Congregação Cristã),
deuteropentecostalismo (Brasil Para Cristo, Igreja Quadrangular, Deus é Amor),
e neopentecostalismo (IURD, Igreja Internacional da Graça de Deus, Igreja Apos-
tólica Renascer em Cristo, Igreja Mundial do Poder de Deus, Sara Nossa Terra,
Catedral do Avivamento etc.).

d  115
ticipar de uma feira sobre a cultura africana. Como contra-
proposta à atividade, os estudantes decidiram realizar uma
apresentação sobre as missões evangélicas na África. Para os
professores, a atividade fugia ao objetivo da feira, a ­saber, o
estudo da cultura africana através de obras selecionadas da
literatura brasileira. Não obstante, os estudantes ergueram
uma tenda à porta da escola para falar do trabalho missio-
nário no continente. A atitude foi entendida como um ato
de intolerância étnico-religiosa pelos professores. Já os es-
tudantes alegaram discriminação por serem evangélicos.
Um dos argumentos apresentados em reunião com os repre-
sentantes do Conselho de Direitos Humanos, do Movimento
Religioso de Matriz Africanas, da Comissão de Diversidade
Sexual, da Ordem dos Advogados do Brasil e da Marcha
Mundial de Mulheres era de que na obra de Jorge Amado,
Jubiabá, uma das personagens possuía amizade com um
“pai de santo” e que, além disso, havia citação de práticas
homoafetivas. Já a obra Casa Grande & Senzala, de Gilberto
Freyre, foi considerada insidiosa aos princípios evangélicos.
Diante da repercussão, e retirando do foco a resistência em
apresentar um trabalho sobre a cultura africana, um pastor,
em defesa dos pais e dos estudantes, argumentou que a lite-
ratura indicada pelo professor continha “homossexualismo
no meio.” (EVANGÉLICOS, 2012a).
Em Olinda, Pernambuco, ocorreu uma tentativa de in-
vasão do terreiro Pai Jairo de Iemanjá Sabá. Segundo o baba-
lorixá, que presenciou a ação, membros de uma igreja evan-
gélica gritavam em frente ao terreiro “Sai daí, satanás”. Com
seu filho à frente da entrada, e buscando filmar e impedir a
invasão, ele ouviu de um dos que forçavam o portão que eles
tomassem cuidado, pois “era evangélico, mas era também um
ex-matador.” (EVANGÉLICOS..., 2012b).

116  d GLEDSON RIBEIRO DE OLIVEIRA • ISAAC BRUNO OLIVEIRA ARAÚJO


Recentemente o líder da Igreja Assembleia de Deus Ca-
tedral do Avivamento e Deputado Federal pelo Partido Social
Cristão em São Paulo, pastor Marcos Feliciano, escreveu em
uma mídia social: “africanos descendem de ancestral amaldi-
çoado por Noé. Isso é fato.” Replicado na internet e repercu-
tindo nos meios de comunicação, o deputado explicou duran-
te uma pregação no Rio de Janeiro o sentido bíblico de sua
afirmação: argumentou que, de acordo com a Bíblia, um dos
motivos pelos quais a África é um continente pobre, com fome
e pestes é a maldição de Noé sobre seu filho Cão3 relatado no
capítulo 9 versículos 18-27 do livro de Gênesis. Cão, após ver
seu pai bêbado e nu, teve sua família e sua descendência amal-
diçoadas com a “servidão”, enredo que justificara simbolica-
mente a violência do tráfico negreiro e a escravização de afri-
canos ao longo da era moderna.
Estes três casos, separados no tempo por apenas alguns
meses, sugerem que não há somente uma luta concorrencial
por espaço e visibilidade no campo religioso brasileiro, mas
um enfrentamento, encabeçado pelo pentecostalismo, contra
o candomblé e a umbanda. Especificamente a busca de esta-
belecer o monopólio legítimo, isto é, socialmente reconheci-
do, sobre a oferta de práticas mágicas e de transe4, parece mo-
3 Mantenho aqui a grafia Cão, e não Cam, em acordo com a tradução da Bíblia por

João Ferreira de Almeida, largamente usada no meio evangélico.


4 Diferenciando o êxtase do transe, Marion Aubrée (1985), explica que o primeiro

é a saída de si e o segundo a descida de uma divindade ou espírito. Enquanto o


êxtase é a plena memória do evento, o transe é a perda da consciência, a impossi-
bilidade de acesso à memória. O êxtase surge com a fixidez, o silêncio e a solidão
enquanto o transe beneficia-se da polifonia de sons e palavras. Seguindo Gilbert
Rouget, Aubrée diferencia o transe de possessão do de inspiração. No transe de
possessão, a exemplo da cerimônia xangô, o possuído muda de personalidade,
transformando-se na divindade. Já no transe de inspiração, caracterizado pela
glossolalia, o pentecostal conserva sua personalidade, mas ele está investido da
divindade que dominando-o, faz dele o seu porta-voz. É tempestivo lembrar que os
conceitos de êxtase, transe e possessão não fazem parte do léxico pentecostal em
nenhum tempo. Na linguagem própria do pentecostal diz-se “derramar o espírito”,

ÁFRICA, RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS E IGREJAS EVANGÉLICAS: APONTAMENTOS d  117


tivar as ações contra as religiões afro-brasileiras, bem como é
o mote das pregações que buscam atrair novos fiéis interes-
sados nessas experiências em um contexto cristão (SILVA,
2007; MARIANO, 1999).
Em particular, o neopentecostalismo abominou e, ao
mesmo tempo, retrabalhou à sua maneira a manipulação má-
gica e pessoal que há muito compõe o sistema de crenças bra-
sileiro do qual são agentes os curandeiros, adivinhos, videntes,
feiticeiros, santos milagreiros etc. Partindo-se do princípio de
que o mundo é permeado de seres divinos e malignos que pro-
vocam graça ou infortúnio e podem ser suprimidos através de
orações e sessões de descarrego, é o equilíbrio na oferta de
serviços mágicos – transes, dons, curas etc. – e dos serviços
religiosos – sacramentos e salvação – que garante a eficácia
da mensagem que carreia fiéis das religiões afro-brasileiras,
principalmente, para as igrejas neopentecostais.5 (ORO,
2001; MONTERO, 1986).
Se o protestantismo histórico aportou no Brasil para
converter principalmente católicos, o pentecostalismo tem
hoje como um de seus principais alvos as religiões afro-brasi-
leiras. A mensagem direcionada a conversão de fieis católicos
tem demonstrado, desde o evento conhecido como o “Chute
na Santa”, em 1995, menor eficácia simbólica que a mensa-

“receber o Espírito Santo”, “cheio do Espírito”, “plenos do Espírito” ou “possuído


pelo Espírito” ao invés do termo “possessão”. Para os pentecostais transe, êxtase
e possessão são palavras carregadas de conotação negativa porque ligadas ao
espiritismo e às religiões afro-brasileiros.
5 O que distingue a religião da magia é que a primeira é um serviço a Deus e a

segunda uma coação sobre Deus, isto é, a religião é “por favor”, respeito, prece,
culto e doutrina; a magia é coerção do sagrado, implicando a subordinação dos
deuses e a conjuração dos espíritos. (PIERUCCI, 2001). Se o monoteísmo judaico e a
teologia calvinista na Europa seiscentista e setecentista – e depois o protestantismo
estadunidense – buscaram expurgar a magia da religião através da racionalização
ético-ascética do cotidiano, nos países de forte religiosidade popular, como no caso
do Brasil, a magia permaneceu como fundamento inexterminável. (WEBER, 2009).

118  d GLEDSON RIBEIRO DE OLIVEIRA • ISAAC BRUNO OLIVEIRA ARAÚJO


gem de enfrentamento à umbanda e ao candomblé, o que não
significa o esmorecimento do trânsito religioso de católicos
para os bancos de igrejas evangélicas. Demograficamente ma-
joritário e culturalmente hegemônico, o catolicismo possui
condições estruturais e massa de adeptos que lhe permitem
gozar de alguma imunidade. Se não lhe coloca a salvo das
ações proselitistas próprias do mercado religioso, impede que
suas igrejas sejam alvos de ações diretas como aquelas obser-
vadas contra as religiões afro-brasileiras. A constituição em
unidades autônomas e os tênues laços de solidariedade entre
os terreiros contribuem para essa situação levando babalori-
xás e ialorixás a buscarem se organizar na defesa de seus di-
reitos constitucionais movendo ações legais contra pastores e
suas igrejas (PRANDI, 2004).6
Direta ou indiretamente, essa situação tem repercu-
tido nas amostras dos Censos de 2000 e 2010 que indicam
uma constante perda de adeptos por parte das religiões afro-
-brasileiras. No Censo de 2000, 0,26% da população brasi-
leira disse pertencer à umbanda, 0,08% ao candomblé. Já no
último Censo, 0,21% afirmou ser umbandista, 0,09% que era
do candomblé, e 0,01% disse pertencer a alguma religiosidade
afro-brasileira não determinada.
Em um contexto diferente daquele empregado por Flo-
restan Fernandes (2007), pode-se dizer que, em relação às re-
ligiões afro-brasileiras, não existe um preconceito de não ter
preconceito.7 A prática, classificada como intolerância étnico-
6 Igualmente mediúnicos os adeptos do espiritismo apresentaram crescimento de

1,38% em 2000 para 2,02% no Censo de 2010.


7 Em seu contexto original, Florestan escreve que, a despeito de o preconceito de

cor ser considerado ultrajante para quem sofre e degradante para quem pratica,
continua intocável no cotidiano desde que se mantenha o decoro no seu exercí-
cio. Essa “ambiguidade axiológica”, em parte produzida por um ethos católico de
comportamento, aponta para um dilema racial brasileiro no qual o preconceito
de cor, mesmo não institucionalizado como foi nos Estados Unidos e na África do

ÁFRICA, RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS E IGREJAS EVANGÉLICAS: APONTAMENTOS d  119


-religiosa, se realiza tanto na esfera da intimidade como pu-
blicamente. Não há decoro ou dissimulação quanto ao que se
pensa sobre as religiões afro-brasileiras. Pelo contrário, sua
condenação é francamente aberta como parte da propaganda
religiosa das igrejas pentecostais e neopentecostais. Pode-se
inferir, a partir da somatória de casos arrolados nos últimos
anos, que, no pentecostalismo, tem livre curso e aceitação a
condenação pública das religiões afro-brasileiras.
Ora, na alquimia religiosa que transforma as relações
sociais em relações transcendentes não é relevante a “lei dos
homens”, mas sim a livre interpretação e revelação da lei
“extraída” das Escrituras. O evangélico, pentecostal ou pro-
testante, tem seu pensamento, percepção e conduta de vida
transpassada pela sua condição, segundo a linguagem nativa,
de “salvo”. O salvo, ou o convertido, é o indivíduo que por bus-
ca pessoal ou por fruto da propaganda salvacionista deixou
sua religião de origem para escolher outra religião na qual o
messias cristão é o princípio-eixo de sua vida8. Converter-se
é, ao mesmo tempo, uma experiência confessional em que se
afirma publicamente o desejo de pertencer e seguir o deus
da comunidade moral – igreja – e uma experiência vazia de
conhecimento, pois ainda não se sabe totalmente no que se
deve crer. É uma resposta a uma crise emocional desencade-

Sul, continua a pautar as relações sociais atravessando todo o espectro social. Seu
resultado tem sido uma forma historicamente gestada e elaborada de dissimulação
da discriminação que teve no mito da democracia racial, com sua defesa da mesti-
çagem, o seu principal expoente teórico (Cf. FERNANDES, 2007).
8 No campo evangélico, a transmissão familiar da filiação religiosa também sofre

perturbações externas como em outras religiões. Hoje não é mais incomum ver
filhos de pais evangélicos “desviados”, ou seja, que deixaram suas igrejas de
origem para transitar em outras religiões e crenças, para tornarem-se agnósticos
ou, raramente, para negarem qualquer profissão de fé. A fase em que as rupturas
começam a surgir é ao final da adolescência e começo da vida social adulta,
momento em que estímulos externos a família e a igreja influenciam a conduta de
vida do fiel e abalam suas convicções religiosas.

120  d GLEDSON RIBEIRO DE OLIVEIRA • ISAAC BRUNO OLIVEIRA ARAÚJO


ada por eventos cotidianos que podem estar relacionados a
infortúnios – morte, desemprego, doença etc.-, ou a questões
existenciais – o ser-no-mundo sem sentido, situações em que
os esquemas de interpretação disponíveis não mais traduzem
adequadamente a experiência vivida.
Inicialmente, o salvo não tem a dimensão do significa-
do de sua decisão, pois não sabe ainda nominar o que está
sentindo. É necessário adotar uma nova conduta e uma nova
linguagem sobre o mundo que estejam adequadas a sua nova
expectativa de vida. Quem inicia o neófito à mistagogia do uni-
verso evangélico são os pastores, bispos ou missionários, e os
próprios membros da igreja. Nesse processo de socialização
ele aprende a exprimir corretamente o léxico que o identifica
como salvo, pois adotar um novo vocabulário é uma das mais
importantes formas de diferenciação entre o ser evangélico e
o ser de outra religião. No modelo proposto por Rubem Alves
(1982, p.71) eles são de quatro tipos: o vocabulário jurídico-
-penal, em que o pecado é proibido; o da impureza, em que
o pecado é uma nódoa na vida do fiel; o medicinal, em que o
pecado é doença que deve ser tratada e curada pelo “sangue de
Jesus”; e o sentido político-comercial, no qual o pecador é um
ser que vendeu sua alma ao diabo exigindo um preço por sua
salvação que foi pago com a morte e ressurreição do Cristo.
Acrescento à lista um quinto sentido: o sentido “guerreiro”,
no qual o deus do monoteísmo judaico-cristão é o “Senhor dos
exércitos”, o “Leão da tribo de Judá” que guia seu povo na “ba-
talha espiritual” contra o diabo e seus demônios.
Ainda com Rubem Alves, a conversão deve ser encarna-
da na conduta social. Deve-se assumir que a consciência in-
dividual é sempre a consciência do pecador e que há limites
entre o permitido e o não permitido: não se deve beber, fumar,
jogar, ir a festas “mundanas”, cultuar imagens, consultar adi-

ÁFRICA, RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS E IGREJAS EVANGÉLICAS: APONTAMENTOS d  121


vinhos, ir a terreiros... É essa nova conduta e linguagem, com
seu vocabulário centrado no pecado, na batalha espiritual e na
redenção, que estrutura o agir e as representações evangélicas.
Se for possível falar de um habitus evangélico, ele se estrutura,
precisamente, a partir da experiência de conversão.
No caso do pentecostalismo, a linguagem de guerra em
cadência com a atitude guerreira desencadeia as situações
de enfrentamento contra os terreiros e as cerimônias públi-
cas afro-brasileiras. Pode-se dizer, seguindo Weber (2008,
p.109), que a santificação ascética exige uma ecclesia mili-
tans. Na batalha espiritual afronta-se o “inimigo” em todos
os lugares e momentos. Afirmando que está em curso uma
batalha pela salvação da sociedade, diz-se e age-se sem consi-
derar as suscetibilidades de ordem social e jurídica, conduta
que também tem criado impasses entre o governo federal e as
igrejas evangélicas no tocante aos direitos de religião na esfe-
ra pública e às políticas afirmativas homoafetivas presentes
no Plano Nacional de Direitos Humanos.9
É possível afirmar que as representações acerca das re-
ligiões afro-brasileiras não são uma particularidade apenas do

9 Em reunião com o Ministro Chefe da Secretaria Geral da Presidência da República,

representantes da Ordem dos Pastores Batistas do Brasil entregaram um manifesto


em que se colocam contrários às políticas afirmativas homoafetivas presentes no
Plano Nacional de Direitos Humanos: “MANIFESTAMOS nossa posição contrária
à redefinição da família incentivada no PNDH que se distancia frontalmente
dos preceitos bíblicos e do que é estabelecido na própria Constituição Federal.
Assim, CONCLAMAMOS os representantes do povo no Congresso Nacional que
se posicionem a favor da manutenção dos ideais expressos em nossa Constituição
Federal, rejeitando qualquer dispositivo que subverta a constituição da família
conforme preceitua a referida Constituição e a Bíblia; as demais instâncias da
República, cidadãos e líderes de instituições sociais, que se unam em defender a
manutenção saudável da família que, ao longo da história, tem sido o esteio de
nossa sociedade; aos Pastores Batistas que continuem ensinando claramente os
preceitos bíblicos sobre a família, garantindo, assim, o esclarecimento do povo
de Deus que vive nesta Nação, bem como suas Igrejas e comunidades de modo a
demonstrar a sociedade os benefícios que a família, biblicamente constituída, vem
trazendo ao longo da história”. (BATISTA..., 2013).

122  d GLEDSON RIBEIRO DE OLIVEIRA • ISAAC BRUNO OLIVEIRA ARAÚJO


pentecostalismo. Na longa duração histórica, a igreja católica
apropriou-se de ritos e elementos das religiões afro-indígenas
que a estimulou a criar pastorais específicas e retrabalhá-los
no contexto da catolicidade. No campo evangélico, a relação
das várias igrejas com a religiosidade brasileira – catolicismo,
a umbanda, o candomblé e as religiões indígenas... – foi de
confronto e rejeição-apropriação. As igrejas do protestantis-
mo histórico, por exemplo, não fizeram concessões de ordem
religiosa, como fizera o catolicismo. Pelo contrário perma-
neceram como críticos das tradições e costumes brasileiros,
concebendo o catolicismo como uma heresia e idolatria a ser
combatido. Já o candomblé e a umbanda foram considera-
dos demoníacos muito antes que os primeiros pentecostais
aportassem no Brasil. Por sua vez, ao mesmo tempo em que
confrontou o catolicismo e as religiões afro-brasileiras, o neo-
pentecostalismo incorporou alguns rituais católicos e abraçou
o magismo, típico do sincretismo brasileiro, ao oferecer ben-
ção, milagres, curas e prodígios a seus adeptos credencian-
do-se como religião a serviço da consumação das demandas
religiosas do aqui e agora. Além disso, incorporando à sua lin-
guagem ritual expressões que remetem diretamente ao imagi-
nário religioso brasileiro – “encosto”, “olho grande”, “sessão
espiritual”, “descarrego”.. – conseguiu alcançar as camadas
populares e além.
Indiferentemente se protestantes ou pentecostais, a re-
ligiosidade brasileira permanece, em geral, alvo de crítica e
reprovação. Para pastores e teólogos, a experiência religiosa
brasileira é “sincrética”, “pluralista”, “secularista”, “superfi-
cial”, cheia de “crendices populares” e “mágica”; que concebe
um deus “tolerante, informal e em última análise, superficial”
(ROCHA et al., 2004). A resposta dada pela ética social evan-
gélica à religiosidade brasileira também permanece inaltera-

ÁFRICA, RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS E IGREJAS EVANGÉLICAS: APONTAMENTOS d  123


da ao longo do tempo: converta-se o indivíduo e a sociedade
se transformará (ALVES, 1982).
Paradoxalmente, pelo Censo de 2010, as igrejas pente-
costais e neopentecostais congregam mais membros negros e
pardos.10 Igualmente, o pentecostalismo é a religião que mais
cresce na África lusófona. A Assembleia de Deus, Igreja Univer-
sal do Reino de Deus e a Igreja Mundial do Poder de Deus, por
exemplo, têm alcançado êxito nos países de língua portuguesa
e junto aos imigrantes de países anglófonos. Não obstante, no
meio evangélico, ser negro não tem gerado uma relação de per-
tença com o continente africano. O que parece ser óbvio. A as-
cendência africana de milhões de brasileiros não significa que
se faça ideia de qual povo da África corresponde a sua origem,
como escreve Antônio Risério (2007). Menos óbvio é dizer que
entre os evangélicos negros ou não, ela é desconsiderada ou ne-
gada em nome de outro lugar-tempo de referência onde tudo
começou: Israel. Aliás, a defesa da política militar israelense na
Palestina é causa mansa, e seu pavilhão nacional um ornamen-
to presente em algumas igrejas do pentecostalismo.
Há uma tendência de que o evangélico negro – ou par-
do – perceba o continente africano como um lugar distante

10 Há 25.370.484 evangélicos pentecostais no Brasil, representando 13,30% da


população. As demais igrejas do protestantismo histórico somam 6.095.089 mem-
bros (3,19%). Nas igrejas pentecostais, 1,12% declaram-se negras, 6,50% pardas,
e 5,49% da cor branca. O percentual de negros no protestantismo histórico é de
apenas 0,28%, o de pardos 1,60% e o de brancos é 2,08%. Levando apenas em
consideração o item “cor preta”, as igrejas pentecostais possuem uma pequena
vantagem em relação às igrejas protestantes históricas no número de adeptos
negros (1,88%). Entre as igrejas pentecostais, 5,49% declararam-se brancos. Só
com a união dos percentuais de negros (1,12%) e “pardos” (6,50%) é que as igrejas
pentecostais se tornam a “religião mais negra” do país (7,62%). Também, entre
as igrejas pentecostais, a Assembleia de Deus permanece com o maior percentual
(6,46%). A maior igreja protestante é a batista, com 1,95%. O catolicismo segue
perdendo adeptos. No Censo de 2000 os católicos somavam 73,77% decaindo para
64,63% no Censo de 2010. Novamente o item “sem religião” registrou um aumento
de 7,28% para 8,4%. Fonte: Censo Demográfico, 2010.

124  d GLEDSON RIBEIRO DE OLIVEIRA • ISAAC BRUNO OLIVEIRA ARAÚJO


a ser salvo de si mesmo. Se a religião implica na mobilização
de uma memória que reconstrói no tempo um sentimento de
pertença, o continente africano não faz parte desse circuito
de memória a não ser como território a ser cristianizado ou
um lugar de cativeiro, como invocado na celebrada história
do Êxodo do Egito. Escrevendo de outra maneira, a pauta
dos movimentos negros tem dificuldade em alcançar o meio
evangélico – ao contrário do que ocorre no catolicismo – pelo
fato de que a única ação afirmativa que importa manifestar é
a do messias como “salvador”.11 Transculturais, protestantes
e pentecostais proclamam um deus que age em um mundo,
segundo eles, sem fronteiras socioculturais que impeçam o
proselitismo. É exatamente essa percepção sobre a cultura-
-mundo, inerente às religiões monoteístas, que impulsionam
as missões evangélicas em África.

África e as Representações Religiosas

Há, nos três casos mencionados no início deste texto,


outra unidade de pensamento que chama atenção: o lugar
em que a África figura nas representações religiosas. Dois
dos três casos descritos cristalizam a África como um lugar
amaldiçoado com uma cultura, que antes de ser conhecida
ou celebrada, deve ser transformada através da ação missio-
nária e da pregação salvacionista. De que forma é possível
compreender a lógica de produção e de reprodução dessas
práticas e representações em relação à África no campo
evangélico? Um caminho metodológico a ser seguido é a atu-
11Apesar da pouca visibilidade o chamado Movimento Negro Evangélico tem
realizado um debate sobre a questão racial no interior das igrejas. As poucas
informações sobre o movimento dificultam uma análise de suas propostas e
atuação, uma faceta do campo evangélico ainda ignorada pelos pesquisadores em
sociologia das religiões.

ÁFRICA, RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS E IGREJAS EVANGÉLICAS: APONTAMENTOS d  125


ação de missionários evangélicos que atuaram e atuam no
continente africano.
A fase contemporânea das missões protestantes se ini-
ciou ainda no século XVIII liderada pela Sociedade Missioná-
ria de Londres. Começando pelo sul do continente, a interiori-
zação do trabalho missionário foi capitaneada por anglicanos,
metodistas, presbiterianos e batistas alcançando durante o
século seguinte os territórios subsaarianos, a costa atlântica e
o Magrebe.12 No campo missionário, foi francamente admiti-
da a afinidade eletiva entre missões e imperialismo europeu.
Os lemas de dois dos mais iminentes representantes e inspi-
radores do trabalho missionário em África, Robert Moffat –
“a Bíblia e o arado” – e de seu cunhado, David Livingstone
– “Comércio e cristianismo” –, são um exemplo da cadência
entre o processo de evangelização e a expansão capitalista.
Segundo eles, só era possível criar um ambiente propício à
pregação do evangelho com a modernização das sociedades
africanas (TUCKER, 2010). A situação colonial estava domi-
nada pela presença branca e seus dispositivos civilizatórios.
O modelo de administração colonial determinava a eficiência,
ou não, das negociações de conflitos e de assimilação que não
raramente desconsideravam as singularidades políticas e so-
cioculturais nos espaços colonizados. Junto à administração
colonial figurava à testa as missões protestantes ou católicas
12Os pentecostais iniciam seus trabalhos na África ainda nos anos 1920. Uma das
primeiras igrejas foi a Igreja do Espírito Santo, no Quênia, fundada por Jakobo
Buluku e Daniel Sande em 1927. Seus fundadores estabeleceram o batismo pelo
Espírito Santo, o dom de falar em línguas e a livre confissão dos pecados como
condições necessárias para a salvação e a comunhão religiosa. Particularmente,
em Angola, uma das mais antigas igrejas pentecostais, a Assembleia de Deus, é
fruto do trabalho missionário português que aportou em Luanda nos anos 1950.
Tão importante na construção do pentecostalismo em Angola foi – e ainda é – a
influência da República do Congo. A alta incidência de igrejas neopentecostais na
região é fruto do circuito de emigração de congoleses para Luanda e do regresso
de angolanos do Congo para seu país.

126  d GLEDSON RIBEIRO DE OLIVEIRA • ISAAC BRUNO OLIVEIRA ARAÚJO


com suas escolas, hospitais e campos agrícolas, estes últimos
transformados de uma economia de subsistência em verda-
deiras empresas agrícolas e artesanais nos quais o trabalho
oscilou entre o compulsório e o “mal pago” como ocorrido no
Congo belga e países lusófonos (M’BOKOLO, 2007).13
Na primeira década do século XX reafirmou-se a neces-
sidade de se levar o evangelho à África no aclamado e lamen-
tado Congresso Mundial de Missões Protestantes de Edim-
burgo (1910), Escócia. Para além das divergências entre os
delegados alemães e os delegados estadunidenses a respeito
da permanência ou não da América Latina como uma frontei-
ra a ser missionada, porque católica, ficou decidido pela con-
tinuidade e estímulo às missões junto aos africanos, asiáticos
e orientais, que, diziam, não conheciam em sua maioria o cris-
tianismo.14 Aliados do trabalho de evangelização, os serviços
sociais continuaram como estratégia de inserção e conversão,
não somente no continente africano, mas em todas as fron-
teiras missionárias do globo. Nestes locais, é o equilíbrio na

13 Particularmente, nos “países lusófonos”, a presença de missões protestantes


foi considerada pelas autoridades coloniais uma luta entre a “cultura da pátria”
e o “estrangeirismo”. Em Angola, os batistas iniciaram seus trabalhos ainda em
1878, com a Sociedade Missionária Batista, em São Salvador (antiga Mbanza
Kongo), seguidos pelos congregacionalistas e metodistas. O modelo de missões
foi o mesmo para toda a África Negra: possuíam prensas para confeccionar litera-
turas religiosas em língua kimbundo, hospitais e escolas de ensino pré-primário e
primário que visavam o controle da educação e do trabalho, atividades condenadas
pela administração ultramarina e que levaram vários missionários ao exílio ou à
clandestinidade. Não à toa a Revolução dos Cravos de 1974 foi percebida como
uma oportunidade para a conquista de espaço e visibilidade pelos missionários
em territórios lusófonos.
14 Aclamado por nele terem sido desenhados os primeiros contornos do diálogo

ecumênico entre as igrejas protestantes. Lamentado devido à mudança de atitude


em relação ao catolicismo latino-americano. De maioria cristã, mesmo que católica,
a América Latina já conhecia o evangelho, sendo o alvo missionário deslocado
para outros continentes. Essa resolução resultou no Congresso da Ação Cristão
do Panamá (1916) capitaneado pelos estadunidenses. A única exceção apoiada em
Edimburgo foi dada às sociedades missionárias que trabalhavam evangelizando
os povos indígenas do continente americano.

ÁFRICA, RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS E IGREJAS EVANGÉLICAS: APONTAMENTOS d  127


oferta dos serviços sociais e dos serviços religiosos à medida
de aproximação e assimilação aos povos nativos.
As visões registradas nos relatos de missionários sobre
a África Negra colonial são similares. Etnocêntricos, eles des-
crevem um continente rico em recursos naturais, com condi-
ções precárias de vida e de trabalho, atormentado pela ação
colonizadora, dominado pela poligamia, pelo infanticídio de
irmãos gêmeos, carente de valores cristãos e imersos na su-
perstição “tribal” de feiticeiros (TUCKER, 2010, p.169-203).
Um enredo substantivamente similar pode ser encontrado nos
relatos atuais dos missionários que trabalham na África. Para
estes, os povos africanos permanecem envolvidos pela magia
e pelo culto aos mortos, sendo responsabilidade do cristão
derrotar os espíritos e destruir o poder da feitiçaria. Mesmo
que, para isso, como escreve o missionário Wilbur O’Donovan
em seu livro O Cristianismo Bíblico da Perspectiva Africana,
tenha que se criar rituais paralelos àqueles praticados pelos
feiticeiros e estimular a queima de amuletos e fetiches após a
conversão de nativos. O renascimento cultural da África pós-
-colonial trouxe consigo o retorno às religiões ancestrais e às
práticas mágicas no interior do cristianismo. O cristianismo
africano criou sua própria configuração religiosa de base sin-
crética, associando teologia cristã com a tradição africana. O
sincretismo, muitas vezes consentido por missionários libe-
rais, é considerado como o símbolo do declínio da influência
das chamadas missões verdadeiramente cristãs.
Nos relatos de campo, os feiticeiros permanecem os
principais antagonistas ao trabalho missionário. Rivais de ofí-
cio, ambos buscam legitimar sua atuação junto à comunidade
nativa. Os primeiros, através dos sacrifícios, práticas mági-
cas e ritos ancestrais, busca perpetuar sua posição de chefe
espiritual da comunidade. Os segundos, ao invocar um deus

128  d GLEDSON RIBEIRO DE OLIVEIRA • ISAAC BRUNO OLIVEIRA ARAÚJO


superior aos deuses ancestrais e amuletos, procuram desesta-
bilizar a credibilidade do chefe espiritual local. Em momentos
rituais, a presença de um missionário é sinal de infortúnio,
principalmente quando não alcança o êxito desejado. Não
à toa a conversão de feiticeiros é um evento celebrado, tor-
nando-se rapidamente emblema do progresso do trabalho de
evangelização. Seu efeito de propaganda é similar àquele em
que um pai de santo se converte a uma igreja evangélica.
Nas últimas quatro décadas, tem sido dada especial
atenção a forma de comunicação dos missionários com os po-
vos nativos. A sofisticação no trato do tema é um diferencial
em relação àquela geração que nos setecentos deu início ao
processo de evangelização protestante no continente. A cha-
mada “Antropologia Missionária”, de matriz evangélica é dis-
ciplina recente que, em última instância, visa dar um verniz
“científico” ao trabalho no campo missionário. A disciplina
tem por objetivo, segundo Ronaldo Lidório (2011b), aplicar às
pesquisas e ações missionárias a fortuna academicamente acu-
mulada desde Taylor e Morgan passando pelos antropólogos
contemporâneos. Teologicamente orientada, seu fundamento
é a interculturalidade, isto é, a compreensão de que o trabalho
missionário acontece em um contexto em que há um conta-
to entre atores de diferentes culturas que exige o prévio co-
nhecimento lingüístico e sociocultural em todos os processos
de interação. Trata-se de traduzir a partir de um padrão dito
“étnico-teológico” a experiência vivida no campo em acordo
com “valores bíblicos supraculturais”. Isso significa afirmar
que os valores extraídos da Bíblia podem ser compreendidos
e aceitos por qualquer cultura humana, bastando que haja a
contextualização linguística e cultural desses mesmos valores
à realidade missionada. Se para o povo Kokomba da região de
Koni, nordeste de Gana, o ser criador de tudo é Uwumbor, ele

ÁFRICA, RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS E IGREJAS EVANGÉLICAS: APONTAMENTOS d  129


pode ser traduzido pela experiência vivida como Javé, porque
são teologicamente equivalentes (LIDÓRIO, 2011a).
Ora, toda tradução se realiza segundo um código cultu-
ral dominante. Na interface com os povos africanos, os mis-
sionários tornam-se tradutores arbitrários da cultura nativa,
organizando e difundindo ideias, imagens e pensamentos
em cadência com a sua condição religiosa e etnocêntrica. É
certo que, no processo de negociação de significados cultu-
rais, há margem para apropriações e releituras nativas que
são características do cristianismo africano. Contudo, e há
muito tempo, a visão missionária tem contribuído, em seus
termos, na forja de representações empobrecidas e trágicas
sobre a África15. As representações são uma forma singular de
conhecimento e de construção do mundo social que variam
segundo a posição social e os interesses dos agentes no campo
evangélico. Segundo Bourdieu (2004), as representações são
um produto do habitus – a internalização da exterioridade -,
isto é, um sistema de determinações adquiridas pelo qual se
realiza a produção e percepção das práticas religiosas – agir
religioso – e de apreciação, apropriação e classificação dessas
mesmas práticas – representações religiosas.
A elaboração, transmissão e internalização de uma vi-
são empobrecida e trágica sobre o continente africano se dão
por diferentes instituições e meios de difusão. Os seminários,
cursos de formação, cartas e diários de campo, além dos teste-
munhos sobre o trabalho missionário, figuram como os prin-
15 A compreensão de que a passagem de Isaías 14: 12-14, que não menciona o nome

“satanás”, se refere à queda do diabo na Terra continua vívida no meio pentecostal.


Teria sido o continente africano o lugar em que o ele fora lançado ao ser expulso dos
céus. “Como caíste do céu, ó estrela da manhã, filho da alva! Como foste lançado
por terra, tu que debilitavas as nações! Tu dizias no teu coração: Eu subirei ao
céu; acima das estrelas de Deus exaltarei o meu trono e no monte da congregação
me assentarei, nas extremidades do Norte; subirei acima das mais altas nuvens, e
serei semelhante ao Altíssimo.”

130  d GLEDSON RIBEIRO DE OLIVEIRA • ISAAC BRUNO OLIVEIRA ARAÚJO


cipais reprodutores dessas representações sobre a África no
campo evangélico. Na esfera da ação religiosa, as missões e
seus agentes de campo constróem um circuito de produção-
-reprodução de sentidos transpassados por uma leitura sal-
vacionista e altruísta que permanece, em nível simbólico e
prático, no marco colonial. Isso significa dizer que há uma
continuidade na longa duração histórica entre os fazeres e in-
terpretações que sustentam e direcionam o trabalho missio-
nário de ontem e de hoje.
Dois dos casos que se referem à África no início des-
te texto podem ser compreendidos como desdobramentos de
um aprendizado historicamente socializado e internalizado
que não perdeu pulsão ao longo do tempo. Uma rápida olha-
dela nas listas de discussões dos sites das agências missioná-
rias brasileiras reforça o argumento aqui urdido. A produção e
reprodução dessas ideias, imagens e pensamentos continuam
alimentando a verve de voluntários e de aspirantes à fronteira
missionária africana.

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DESAFIOS DA DEMOCRACIA E DO DESENVOLVIMENTO NA ÁFRICA: UM
OLHAR SOBRE A REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO A PARTIR DA
DIÁSPORA NEGRA BRASILEIRA

Bas´Ilele Malomalo

Exílio
A toda diáspora africana exilada e migrante
No meu país
Só os pássaros cantam
[...]
Eu sinto a morte, o cheiro da pobreza
Vergonha que carrego na terra do exílio
Vergonha de um exilado
Sem país
[...]
(Bas´Ilele Malomalo).

Introdução

O texto que apresento neste livro foi discutido pela pri-


meira vez na I Conferência Internacional do Centro de Es-
tudos das Culturas e Línguas Africanas e da Diáspora Negra
(CLADIN) e do NUPE – Grupo de Estudo, Pesquisa do Negro
da Universidade Estadual Paulista (UNESP) promovida pela
Faculdade de Ciências e Letras, pelo Departamento de Antro-
pologia Política e Filosofia, pelo Programa de Pós-Graduação
em Sociologia e Centro de Referência Afro da mesma uni-
versidade, nos dias 15, 16 e 17 de maio de 2007. As reflexões
decorrentes dele situam-se no contexto dos acontecimentos
que ocorreram na África e na República Democrática do Con-
go (RD Congo) até 2007. A minha comunicação fez parte do
seminário temático do CLADIN: “Lugar político e estado da
cultura africana e afro-diaspórica no século XXI”.

134  d
Sugiro, portanto, o seguinte tema para nossa reflexão:
“Desafios da democracia e do desenvolvimento na África: um
olhar sobre a República Democrática do Congo a partir da di-
áspora negra brasileira”. A minha intenção não é abordar a
realidade social, cultural, política e econômica do continen-
te africano na sua generalidade, que pode ser encontrada no
relatório 2006 da União Africana (UA), mas destacar uma de
suas realidades, tendo a RD Congo como um caso particular
por dois motivos. Primeiro: foi nesse país que nasci e comecei
a alimentar a minha consciência crítica sobre a negritude/afri-
canidade. Segundo: o advento da III República, nessa parte da
África, é um belo exemplo para discutirmos – nós, intelectuais
africanos, negros da diáspora, africanistas e simpatizantes da
nossa luta – sobre o nosso futuro e o dos nossos filhos.
Desenvolverei esta reflexão a partir dos instrumentos
teóricos que fazem parte da minha realidade intelectual na
atualidade, qual seja os estudos do desenvolvimento, espe-
cificamente a sociologia do desenvolvimento e das relações
raciais e do multiculturalismo. Articularei o meu discurso a
partir de três pontos: 1) o campo dos estudos do desenvolvi-
mento: dos velhos aos novos temas; 2) o paradoxo do subde-
senvolvimento africano: o caso da RD Congo; 3) os desafios
da democracia e do desenvolvimento na África a partir da Re-
pública Democrática do Congo. Finalizo o meu texto com uma
nota de esperança para o Congo, tendo por pano de fundo a
epígrafe de um poema de minha autoria intitulado de “Exílio”.

O Campo dos Estudos do Desenvolvimento: dos Velhos aos Novos Temas

Os estudos do desenvolvimento são um campo multi-


disciplinar que faz uso dos conceitos da sociologia, da antro-
pologia, da economia e da ciência política para pensar a reali-

DESAFIOS DA DEMOCRACIA E DO DESENVOLVIMENTO NA ÁFRICA:


UM OLHAR SOBRE A REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO A PARTIR DA DIÁSPORA NEGRA BRASILEIRA d  135
dade social. Nasceram após a Segunda Guerra mundial, num
contexto histórico que Gunnar Myrdal caracterizou de Guerra
Fria, da descolonização e de aspiração dos países em desen-
volvimento em ocupar um melhor lugar na ordem política e
econômica mundial e as condições de vida mais digna para o
conjunto de suas populações (FORSTER, 2007).
Na atualidade existem duas correntes desse campo do
conhecimento. O pensamento dominante do desenvolvimen-
to que tem a economia como o núcleo duro. Essa primeira
abordagem tende a pecar pelo seu economicismo. As gran-
des instituições financeiras, tais como FMI, Banco Mundial,
são as defensoras dessa linha de pensamento. De outro lado,
existe o pensamento crítico do desenvolvimento, conhecido
também como o pensamento alternativo (FAVREAU, 2004;
MÉSZÁROS, 2002, 2003, 2004).
Perante a crise atual, a primeira corrente considera que
não há outra saída. A própria lei do mercado irá corrigindo
as desigualdades sociais criadas pelo próprio mercado. Os
defensores do pensamento alternativo pensam o contrário.
Estes fazem parte da nova sociologia econômica, da teoria da
economia social e solidária, do desenvolvimento humano, do
desenvolvimento local, do desenvolvimento econômico co-
munitário ou do desenvolvimento sustentável. Para eles, é
preciso introduzir um novo olhar sobre o conceito econômi-
co. (GENDRON, 2004). A economia, o mercado e suas tran-
sações são vistos como construções sociais. Nessa ordem de
raciocínio, a superação das desigualdades sociais contempo-
râneas, da pobreza e da agressão ao meio ambiente causadas
pela manipulação política do sistema econômico capitalista só
é possível definindo-se novas leis, normas e regras na forma
de se pensar e construir a economia e sociedade. Em outras
palavras, isto significa que o desenvolvimento é um conceito

136  d BAS´ILELE MALOMALO


que vai para além do simples crescimento econômico: diz res-
peito à qualidade de vida das populações e do seu meio am-
biente (FAVREAU, 2004; GENDRON, 2004).
Fundamento minha reflexão sobre o novo paradigma do
desenvolvimento que nasceu nos anos de 1990. O seu surgi-
mento tem muito a ver com a gênese das ciências do desenvol-
vimento que, conforme Forster (2007), tinham por velho tema
o Sul. Buscava entender a situação de subdesenvolvimento em
que se encontravam a maioria dos países da Ásia, da América
Latina e da África após suas independências. Se de um lado as
teorias do subdesenvolvimento e da dependência nos ajuda-
ram a entender, nos anos de 1960 a 1980, as relações de assi-
metria e de dominação existentes nas relações diplomáticas,
econômicas e nas cooperações internacionais entre o centro e
a periferia, do outro lado, somente a partir dos anos 1990 é
que o novo paradigma do desenvolvimento vai nos possibilitar
apreender a complexidade da lógica de dominação dos impé-
rios ocidentais em relação aos países do Sul no contexto da
globalização (MÉSZÁROS, 2004; COMELIAU, 2007). Pode-se
perceber que essa reflexão se alicerça sobretudo nas aborda-
gens que têm usado o método genético-estrutural ou sistêmico
(BOURDIEU, 1979; COMELIAU, 2004).
Pode-se afirmar que as mudanças trazidas pela globa-
lização tanto no Norte quanto no Sul fizeram emergir novos
temas para a agenda dos estudos de desenvolvimento. Fors-
ter (2007) qualifica esses temas de “problemas globais”. Es-
tes afetam, portanto, toda a humanidade e dizem respeito ao
acesso aos recursos e a repartição da riqueza ligada às ques-
tões das desigualdades sociais, da pobreza e da distribuição
de poder nas instâncias locais e globais, do comércio equita-
tivo e da ética nos negócios, das necessidades de construção
de sociedades multiculturais que valorizem as diferenças, de

DESAFIOS DA DEMOCRACIA E DO DESENVOLVIMENTO NA ÁFRICA:


UM OLHAR SOBRE A REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO A PARTIR DA DIÁSPORA NEGRA BRASILEIRA d  137
elaboração de uma política regional e internacional que aten-
da os direitos dos trabalhadores migrantes; a problemática da
preservação do meio ambiente e, por fim, a questão da segu-
rança que foi definida durante a última década a partir de três
dimensões: a da segurança humana, a prevenção dos conflitos
e a luta contra o “terrorismo”. Todos esses temas, na perspec-
tiva deste trabalho, constituem os desafios da democracia e do
desenvolvimento.
O tratamento adequado desses novos temas dos estu-
dos do desenvolvimento exige um novo olhar teórico sobre
um desenvolvimento que vai além do econômico. O desen-
volvimento como conceito científico é ao mesmo tempo um
projeto social, cultural, político e econômico cuja constru-
ção implica nas negociações entre vários agentes sociais: o
Estado, o Mercado e a Sociedade civil (LÉVESQUE, 2002).
Trata-se de uma teoria e prática que dizem respeito à susten-
tabilidade das populações locais, do (seu) meio ambiente e do
planeta. A avaliação crítica do desenvolvimento, nesse sen-
tido, conforme Comeliau (2007), passa pelas considerações
das competências técnicas e éticas presentes nos projetos de
desenvolvimento. Além disso, os ativistas e intelectuais que
lidam com o novo paradigma do desenvolvimento acreditam
que a discussão em torno desse assunto requer também uma
nova cultura, uma nova ética baseada em valores como de-
mocracia, autonomia, cooperação, solidariedade e justiça nas
transações econômicas, políticas e culturais que acontecem
em vários níveis