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UM BREVE ESTUDO DE CASO DO TRONO DO REI DE BAMUM E A REPATRIAÇÃO

DE OBRAS DE ARTE SOB A PERSPECTIVA DA MEMÓRIA SOCIAL

Amanda Lagemann Moura


Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Memória Social da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
amandalagemann@edu.unirio.br

Francisco Ramos de Farias


Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Memória
Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
francisco.farias@unirio.br

Resumo:

Ao analisar a exibição de objetos artísticos de diferentes regiões do mundo em museus


europeus e sua relação com questões de proveniência, propriedade cultural e repatriação, é
evidente que muitos visitantes não questionam a origem ou a legitimidade desses objetos. Esse
artigo visa provocar a ponderação sobre o significado cultural, a preservação do patrimônio e os
princípios éticos nas interações interculturais relacionadas à objetos musealizados e sua relação
com a memória social.

Palavras chave: Museu, colonialismo, memória social

Abstract:

When analyzing the display of artistic objects from different regions of the world in European
museums and their relationship to issues of source, cultural property and repatriation, it is clear that
many visitors do not question the origin or legitimacy of those objects. This article is intended to
provoke consideration about cultural meaning, heritage preservation and ethical principles in
intercultural interactions related to museum objects and their relationship with social memory.

key words: Museum, colonialism, social memory

Introdução

Ao percorrer os espaços expositivos das preeminentes instituições museológicas


europeias, emerge uma proeminente exibição de objetos artísticos oriundos de virtualmente todas
as regiões do globo terrestre. A título de exemplo, é possível constatar, no interior do Louvre,
elementos iconográficos do antigo Egito, esculturas pertencentes à tradição escultural grega e uma
variada compilação de artefatos provenientes de diversas nações africanas. A considerável maioria
dos visitantes, contudo, não se debruça sobre a indagação de se tais objetos e artefatos em
apresentação foram obtidos mediante procedimentos consensuais em consonância com os
contextos de origem, ou se, por outro lado, não representam elementos de considerável magnitude
para as sociedades de procedência. Igualmente relevante é a ausência de indagação quanto à
eventual reivindicação por parte dos legítimos proprietários destes acervos.
Empregando um exercício de pensamento, imagina-se um hipotético cenário em que o
Brasil passasse a ser submetido à dominação de outra nação, culminando no saqueio do
emblemático monumento do Cristo Redentor. Tal cenário conjectural é proposto a fim de estimular a
reflexão acerca das implicações que se sucederiam. Este exercício destina-se a suscitar a

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ponderação sobre a concepção de significado cultural, bem como os embates concernentes à
propriedade cultural, à preservação do patrimônio e aos princípios de reciprocidade e ética nas
interações interculturais.
Diante do exposto, a reflexão proposta visa a incitar a percepção acerca da relevância de
um exame crítico sobre a proveniência e posse de objetos artísticos e culturais em contexto
museológico, suscitando uma apreciação mais aprofundada quanto aos princípios que regem as
relações culturais entre nações e comunidades.
No mês de junho deste ano, o rei africano e líder do povo Bamum, reino localizado no
oeste camaronês, Nabil Mbombo Njoya, se sentou no trono de seu povo, peça que foi tirada da
África pelos alemães em 1908, para ser dada como presente ao Kaiser Wilhelm II, durante visita ao
Museu Etnológico de Berlim. Os camaroneses presentes no local comemoraram o feito que
simbolizou a insatisfação de diversos governos africanos, que vêm reivindicando seus objetos ou
artefatos de grande significado cultural, uma vez roubados de seus territórios por colonizadores e
imperialistas, e hoje exibidos em museus pelo mundo.
O trono é descrito pelo museu como “o auge da arte do povo bamum do final do século
19”. Camarões foi invadido, ocupado e integrou o Império Alemão. Nabil esteve no museu para um
evento público na companhia do embaixador de Camarões, Victor Ndoki, e de membros do povo
bamum e da direção da instituição. Ao entrar na sala, o monarca se dirigiu ao objeto e sentou-se no
trono Mandu Yenu. Em novembro de 2022, o rei Sehm Mbinglo 1°, outro monarca de Camarões,
visitou a Alemanha e solicitou a devolução de artefatos roubados do seu povo. Para justificar,
afirmou que os objetos possuem profundo significado espiritual e tradicional.
O Museu Etnológico (Ethnologisches Museum) é um museu integrado às Coleções Estatais
de Berlim, na Alemanha. Embora tenha sido Inaugurado em 1886, seu acervo começou a ser
organizado em 1794, e em 1880 já contava com mais de 40 mil objetos. Hoje seu acervo é de cerca
de 500 mil itens, entre objetos, fotografias e documentos de caráter etnológico e etnográfico de
várias regiões, com ênfase nas culturas pré-industriais extra-europeias.

Segundo sua autodescrição no site oficial do museu:

Como um produto da apropriação europeia e da colonização do mundo, os


museus etnológicos na Europa tradicionalmente refletiam uma atitude que
separava os europeus do "outro exótico" percebido. O Ethnologisches
Museum no Staatliche Museen zu Berlin investiga criticamente o legado e as
ramificações do colonialismo, bem como o papel e o ponto de vista da
Europa. As parcerias com as 'comunidades de origem' na África, Ásia,
Oceania e América visam abrir a abordagem unilateral e eurocêntrica e
permitir a reflexão sobre a própria posição sem, no entanto, refutar o
contexto europeu.

Ao navegar pela aba “sobre nós” do site do museu, observa-se uma constante
reafirmação de uma cultura institucional que reconhece as mazelas do colonialismo e imperialismo,
e busca hoje garantir um trabalho transcultural e colaborativo na seleção e conservação de seu
acervo. Além de colaborar com uma comunidade internacional de museus e acadêmicos, o museu
também busca estabelecer canais de comunicação e intercâmbio com representantes dos países
de origem dos objetos de seu acervo.

As lentes pelas quais os objetos do museu foram vistos até agora são
dominadas por uma perspectiva ocidental e principalmente acadêmica. Isso é
reflexo e resultado de relações desiguais de poder; os museus
historicamente adquiriram grandes porções de suas coleções em contextos
coloniais e com a ajuda de estruturas coloniais, e submeteram esses
artefatos aos sistemas ocidentais de conhecimento.

É por meio desses esforços colaborativos que dizem poder expandir sua interpretação
das coleções históricas do museu para abranger novas perspectivas. Os objetos do museu

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oferecem um material catalisador para reativar as relações e os diálogos entre o museu e as
respectivas comunidades de origem dos objetos.
Ao longo de períodos históricos extensos, tem sido observada a prática do
desapossamento de artefatos culturais pertencentes a povos indígenas e comunidades inteiras,
constituindo um mercado da arte amplo e vigoroso, tal prática, muitas vezes associada a períodos
de colonialismo, exploração e interações culturais desequilibradas. Esses artefatos, que possuem
um valor inestimável para as comunidades de origem, têm sido alvo de colecionadores, museus e
negociantes de arte, resultando em uma indústria que operava com relativa impunidade.
Contudo, o desenvolvimento dos museus e instituições culturais, bem como a crescente
conscientização sobre questões de repatriação e restituição de patrimônio cultural, vêm
impulsionando mudanças nesse cenário. A crescente sensibilidade à importância da preservação e
proteção da diversidade cultural tem sido acompanhada por uma revisão crítica do papel dos
museus na conservação de artefatos de origem questionável.
As políticas internacionais também têm tido um papel crucial na transformação desse
panorama. Convenções e acordos internacionais têm sido estabelecidos para reforçar a proteção
do patrimônio cultural e promover a devolução de artefatos culturais a seus contextos de origem. A
Convenção da UNESCO de 1970 sobre as medidas a serem adotadas para proibir e impedir a
importação, exportação e transferência de propriedade ilícita de bens culturais, é um exemplo
desse esforço global.
Nos últimos anos, podemos notar um aumento da pressão por parte das comunidades de
origem e de ativistas culturais para que artefatos desapossados injustamente sejam repatriados,
devolvendo-lhes sua integridade cultural e respeitando seus direitos de propriedade intelectual e
cultural. A repatriação desses objetos se faz necessária pois é a revitalização da história, da
cultura e da identidade de países que foram vítimas de pilhagem, em consequência do
imperialismo, ou de campanhas militares realizadas ao longo dos séculos.
Contudo, é importante reconhecer que apesar desses progressos, o desafio de reverter
completamente essa prática secular persiste.
Podemos observar outros casos de repatriação de objetos como os mármores de Elgin,
reivindicados pela Grécia, seu país de origem, hoje se encontram no British Museum, em uma
reportagem o jornal New York Times diz que apesar de existir diálogo, um desfecho iminente é
improvável, uma vez que a então ministra da cultura da inglaterra, Michelle Donelan, declarou que a
devolução pode ser um “perigoso caminho a se percorrer” pois a repatriação poderia abrir
precedente para que outras obras sejam reivindicadas.

A problemática do desapossamento de artefatos culturais e a Memória social

Para além da origem dos artefatos em si, obtida muitas vezes através de práticas de
pilhagem, um cenário intrinsecamente problemático, é imprescindível considerar a importância
dessas peças enquanto portadoras de memória para suas culturas de origem. Nesse contexto,
uma análise pode ser efetuada à luz de conceitos referentes à memória social. Uma abordagem
inicial é a exploração das discrepâncias entre as percepções de memória presentes nas culturas
europeias e nas africanas tradicionais. Em particular, a distinção entre os paradigmas de
memória cíclica e linear surge como relevante.
A memória desses artefatos reverbera não apenas em sua materialidade, mas também
no significado cultural, histórico e simbólico que encerram. Nesse sentido, a noção de memória
social, intrincada com o compartilhamento coletivo e a identidade cultural, torna-se um veículo
crucial para examinar a conexão entre essas peças e suas comunidades de origem. Contudo,
essa análise deve ser ponderada à luz das distintas concepções de memória presentes em
tradições culturais europeias e africanas.
As culturas europeias frequentemente enquadram a memória dentro de um contexto
linear, em que a progressão do tempo resulta em uma narrativa histórica contínua e
unidirecional. Por outro lado, as culturas africanas tradicionais frequentemente aderem a uma
compreensão cíclica da memória, na qual o tempo é concebido como recorrente e marcado por
ritmos naturais e espirituais. Essa abordagem cíclica influencia profundamente a maneira pela

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qual a memória é concebida e vivenciada nas sociedades africanas, assim como o valor
atribuído aos objetos que transcendem o tempo.
Desse modo, a reflexão sobre a memória associada a artefatos culturais exige a
consideração das diferentes perspectivas de memória europeias e africanas. Ao relacionar essas
distintas concepções com os objetos em questão, é possível aprofundar a compreensão das
nuances subjacentes à relevância cultural e histórica dessas peças, bem como dos desafios
inerentes à repatriação e à reconciliação das memórias individuais e coletivas.

Pois bem, em termos muito simplificados, poderíamos explicitar


pelo menos duas grandes tendências de concepção do tempo: a linear e a
cíclica. Enquanto a concepção de tempo linear está diretamente associada à
noção de história, que, no Ocidente moderno, vai ser objeto de todo um
aparato técnico e metodológico específico diretamente relacionado à idéia
moderna de ciência, por outro lado a concepção cíclica de tempo está mais
diretamente associada ao contexto mítico religioso. No caso da concepção
linear, os registros escritos e, especialmente, as noções de documento e de
monumento desempenham papel central. No caso da concepção cíclica,
predominam as narrativas orais, e a memória social é construída por meio de
festas, narrativas míticas, cerimônias e rituais.
(Abreu, 2007 p. 264)

Desta forma, podemos considerar que a memória das culturas africanas tradicionais é
cíclica, depende das narrativas orais, festas, cerimoniais e rituais. Pois bem, observemos que o
trono do Reino Bamum em questão trata-se de um objeto ritual, de um povo tradicional do
Camarões, onde objetos como este tem forte representação simbólica para seu grupo, e, a partir
do momento que é extirpado de sua comunidade e musealizado, o objeto passa a ter um novo
sentido, o que antes era símbolo de poder em sua cultura originária, agora é um objeto de mera
observação de uma sociedade que não o vê com o mesmo valor simbólico. O mesmo podemos
pensar de artefatos históricos, não só ritualísticos, que quando saqueados, a sociedade
originária perde o direito de apresentar ao seu povo tal peça, pois se encontra em poder de
outrem contra sua vontade.
A perda de objetos de natureza ritualística e histórica acarreta, de modo intrínseco, a
concomitante perda de uma fração substancial da memória inerente à cultura que tais artefatos
representam. Nesse contexto, emerge uma compreensão fundamentada de que a subtração
ilícita de um objeto de tal índole, por meio de atos de saqueamento, equivale à subtração
simultânea de um segmento importante da memória do grupo cultural associado. Em um cenário
histórico marcado pelo colonialismo, atitudes dessa natureza, aliadas a outras formas de
atrocidades, eram, de fato, sancionadas e legitimadas dentro do âmbito cultural europeu.
Contudo, ainda que tenha transcorrido um intervalo significativo de tempo desde os processos
de descolonização, os artefatos resultantes de tais ações não foram restituídos aos seus locais
de origem, mesmo quando devidamente identificados como produtos de pilhagem e objeto de
reivindicação por parte dos povos indígenas que os consideram parte integrante de sua herança
cultural. Surge, então, a indagação: por qual motivo?
Esse fenômeno demanda uma análise que abarca implicações éticas, legais e culturais.
A despeito da evolução nos parâmetros normativos internacionais e da emergência de vozes
proponentes da restituição, à devolução de tais artefatos frequentemente defronta-se com
desafios complexos, fomentados por sistemas jurídicos divergentes, entendimentos variados
sobre a propriedade cultural e a consolidação de coleções que conferem prestígio a museus e
instituições detentoras. Nesse ínterim, instaura-se um conflito entre o princípio da justiça
histórica e os interesses institucionais de manutenção dessas relíquias. Ademais, a persistência
desse status quo aponta para uma permanente lacuna no que concerne à compreensão integral
do impacto da apropriação indevida sobre os grupos marginalizados, bem como à necessidade
de reconsideração e correção das injustiças perpetradas durante os períodos de colonialismo.
Através de Halbwachs (1968) podemos entender como relacionar as peças a memória de seus
povos originários.

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Qualquer princípio que invoquemos para fundamentar o direito de
propriedade, ele somente adquire algum valor se a memória coletiva intervir para
garantir-lhe a aplicação. Como se poderia saber, por exemplo, que fui o primeiro a
ocupar certa parcela do solo, ou que arei a terra, ou que determinado bem é
produto de meu trabalho, se não nos reportaremos a um estado de coisas antigo,
e se não estivesse convencionado que a situação não mudaria e quem poderia
opor o fato sobre o qual fundamento meus direitos às pretensões de outros, se o
grupo não conservasse a lembrança dele? Porém, a memória que garante a
permanência dessa situação apóia-se ela própria, sobre a permanência do
espaço ou, pelo menos, sobre a permanência da atitude adotada pelo grupo
frente a essa porção do espaço. É preciso considerar aqui, como um conjunto, as
coisas, e os signos ou símbolos que a sociedade a ela relacionou, e que, desde
que direcione sua atenção para o mundo exterior, estão sempre presentes em seu
pensamento. Não que esses indícios sejam exteriores às coisas, e não que
tenham com elas apenas uma relação arbitrária e artificial.
(Halbwachs, 1968, p, 144)

A complexa resolução desse dilema, portanto, demanda não somente um exame acurado
dos meandros históricos e socioculturais, mas também a promoção de uma consciência
ampliada sobre as questões de patrimônio e a revitalização de diálogos interculturais que
permitam a avaliação ponderada das demandas e direitos das comunidades originárias em
relação aos seus objetos culturais.
Conforme reportagem conduzida pelo jornalista Mark Horton e publicada na revista
Galileu em 2018, é apresentada a argumentação de museus que sustentam que as nações de
origem dos artefatos culturais subtraídos carecem das condições necessárias para recebê-los de
volta. Tal justificativa se baseia na premissa de que esses países não possuem
estabelecimentos museológicos e instituições devidamente qualificadas para conferir o
tratamento museológico adequado às peças em questão, incluindo, por exemplo, a
implementação de medidas de climatização e outras prerrogativas museográficas.
Essa perspectiva evidencia uma dimensão complexa subjacente ao debate sobre a
repatriação de artefatos culturais, na qual as alegações dos museus ganham centralidade. Os
argumentos delineados por tais instituições ressaltam a importância de um ambiente
museológico propício para a conservação apropriada desses objetos, considerando fatores
ambientais como a umidade, temperatura e exposição à luz, os quais podem desempenhar um
papel crítico na preservação a longo prazo das peças.
Contudo, essa justificação também alimenta um debate intrincado sobre as
desigualdades estruturais e as disparidades de recursos entre nações, bem como sobre a
responsabilidade compartilhada na conservação do patrimônio cultural global. A proposição de
que os países de origem carecem das capacidades infra estruturais para manter os objetos
culturais perpetua um dilema de difícil resolução, ao desafiar a autonomia dessas nações e
levantar questões sobre o papel das instituições museológicas no auxílio ao desenvolvimento e
capacitação dos colegas menos favorecidos.
Portanto, a argumentação citada abaixo ressalta a complexidade subjacente à
repatriação de artefatos culturais e convida a uma análise atenta das relações entre as
instituições museológicas, a conservação do patrimônio cultural e o imperativo de uma justa
colaboração internacional no tocante ao tratamento e preservação de objetos de significância
cultural e histórica.

“A justificativa frequente é que, ao chegar ao Ocidente, os objetos foram


preservados para a posteridade – e se fossem deixados na África,
simplesmente teriam apodrecido. Este é um argumento especioso,
enraizado em atitudes racistas que de alguma forma os povos indígenas e
locais não podem ser confiáveis ​para cuidar da sua própria herança
cultural. É também um produto corrosivo do colonialismo.”
Mark Horton - Revista Galileu 2018

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No âmbito dessa fundamentação, emergem dois aspectos de significativa relevância que
convocam a devida análise. Primeiramente, destaca-se a dicotomia que se delineia entre os
conceitos de memória histórica, tal como discutido por Halbwachs (1968), e a memória étnica,
conforme delineada por Gourhan (1964). Essa dualidade convoca uma reflexão que incide sobre
o conflito entre a conservação da narrativa histórica compartilhada, que é um anseio das
instituições mantenedoras dos artefatos, visando preservar um segmento da história humana, e
a salvaguarda das identidades étnicas e culturais distintas. Esse conflito intrínseco emerge como
um enigma central que perpassa a problemática da repatriação de artefatos culturais.
A memória histórica, em consonância com as postulações de Halbwachs, está
intrinsecamente entrelaçada com a atuação das instituições que detêm tais peças. Seu intento
primordial reside em documentar e preservar uma parte integral da narrativa histórica da
humanidade. Em contrapartida, a memória étnica, conforme descrita por Gourhan, emerge como
uma faceta que anseia pela reintegração das peças aos seus contextos de origem. Para as
comunidades culturais e étnicas que almejam a repatriação, esses artefatos desempenham um
papel vital na construção de suas identidades culturais, uma vez que, frequentemente
destituídas de registros escritos contemporâneos à produção desses artefatos, encontram na
materialidade das peças um meio crucial de narrar sua história e consagrar sua identidade.
Assim, esse elo entre memória histórica e memória étnica, ao ser explorado, alinha-se à
investigação da relação complexa entre as instituições museológicas, os grupos culturais
detentores dos artefatos e as implicações subjacentes à repatriação. Esta conjuntura intrincada é
permeada por dilemas concernentes à justiça histórica, às responsabilidades culturais
compartilhadas e à preservação do patrimônio global, conferindo uma rica gama de perspectivas
a serem contempladas e compreendidas.
A segunda consideração de relevo remete a uma perspectiva de caráter social. No
âmbito da colonização, várias nações africanas, incluindo Camarões, foram submetidas a
processos de exploração por nações europeias durante extensos períodos. Subsequentemente,
esses territórios foram abandonados com aquilo que não correspondia aos interesses europeus.
Ao longo desses anos de dominação europeia, ainda que tenham sido estabelecidas instituições
museológicas, essas foram, por assim dizer, deixadas à deriva. Considerando a notável pobreza
e os desafios socioeconômicos presentes nos países descolonizados recentemente, direcionar
investimentos para museus e instituições culturais apresentava-se como um empreendimento de
menor prioridade diante das complexas questões de desenvolvimento e melhoria das condições
sociais.
Esse cenário, portanto, reflete uma intricada dinâmica entre a herança colonial, os
resíduos institucionais e a urgência de abordar problemas sociais inerentes às nações
recentemente emancipadas. A questão do investimento em museus e instituições culturais é
permeada por desafios de alocação de recursos limitados, que necessitam ser dirigidos para
diversas áreas de necessidade social imediata.

A contextualização dessas duas questões, a saber, o conflito entre memória histórica e


memória étnica, bem como as dificuldades sociais agravadas pela história colonial e seus
desdobramentos, provoca uma ponderação crítica sobre as interseções entre patrimônio cultural,
desenvolvimento social e o papel das instituições museológicas no presente contexto global.

Hoje em dia, muitos museus no continente africano estão quase


abandonados, sem controle climático, equipe mal treinada e pouca
segurança. Existem inúmeros casos de roubos ou coleções perdidas. Não
é de admirar que os museus do Ocidente estejam relutantes em devolver
as coleções. Se as obras forem devolvidas, o Ocidente precisa assumir
alguma responsabilidade e investir nos museus africanos e seus
funcionários. Houve algumas tentativas de fazer isso, mas a tarefa é
enorme. Não é o suficiente enviar a arte e os objetos contenciosos para
um futuro incerto. Deve haver um plano para reconstruir a infraestrutura
dos museus em ruínas na África, com parcerias e apoio monetário. s de

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memória não foi priorizado.”
Mark Horton (2018)

Contudo, emerge uma tendência em que determinadas instituições estão delineando um


novo percurso, caracterizado por uma abordagem inovadora que contempla investimentos e
parcerias colaborativas com as instituições das nações de origem dos artefatos culturais,
objetivando efetivar a restituição desses itens. Evidencia-se, por exemplo, tal iniciativa com relação
a peças de procedência nigeriana que atualmente repousam no acervo do Museu de Cambridge,
assim como na devolução de um número substancial de mais de mil artefatos por parte da
Alemanha à Nigéria.
Nesse contexto, delineia-se uma perspectiva de interação colaborativa entre as partes
envolvidas, estabelecendo um paradigma renovado para a preservação e retorno dos objetos
culturais. Essa abordagem transpõe as barreiras de conflito de interesses e de memórias, e
assimila uma orientação mais cooperativa e congruente com o objetivo conjunto de preservar o
patrimônio cultural. Através dessas iniciativas, a restauração da integridade histórica e cultural dos
objetos se realiza em consonância com o fomento da relação intercultural e da cooperação mútua.
Desse modo, observa-se uma mudança de paradigma em relação à repatriação de
artefatos culturais, em que o embate cede espaço a uma abordagem que preza pela colaboração
mútua, reforçando o entendimento compartilhado sobre a importância da preservação cultural e da
reconciliação das memórias. Tal perspectiva inaugura uma nova era de parcerias construtivas, que
busca a resolução de desafios históricos e a promoção de um ambiente global mais solidário na
preservação do patrimônio cultural.

Bibliografia e Referências

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