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14/03/2024, 17:03 Epistemologia Decolonial: Uma ferramenta política para ensinar histórias outras | HH Magazine
C
omo muitos outros povos da América, Ásia, África e Oceania, o Brasil foi colonizado por povos de
origem europeia. Colonizadores que, além das ações de exploração econômica, exploraram e
destruíram os saberes e fazeres de milhares de povos. Constituíram sistemas jurídicos, políticos,
ideológicos, religiosos e culturais que justificaram todas as atrocidades cometidas e impregnaram de
inúmeros desqualificativos o que era próprio dos povos originários – os então declarados bárbaros,
incivilizados, pagãos, incultos.
Apesar de todas as tentativas de domínio total de corpos e mentes, as resistências sempre foram
oferecidas de múltiplas formas. Mesmo com as independências políticas, a colonização epistêmica se
manteve em muitos espaços e povos, quer pelo predomínio das formas de pensar e produzir
conhecimentos pautados na racionalidade técnica instrumental, quer pelo desprezo e desqualificação,
até mesmo internamente, dos saberes milenares.
A História escolar foi/é, em grande parte, ensinada nos princípios epistemológicos do colonizador branco,
masculino, racional, cristão e heteronormativo europeu. Fazemos um ensino de história que invisibiliza os
conhecimentos e saberes dos povos indígenas, afro-brasileiros, quilombolas, ciganos, camponeses,
ribeirinhos, etc. Nessa esteira, a escola de modo geral e particularmente o ensino de História tem
contribuído para uma sociedade calcada em práticas preconceituosas e discriminatórias quando, em boa
parte das aulas, não problematiza o currículo eurocentrado, branco e racista, masculino, cristão. Em
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síntese, a colonialidade continua operando para a “inferioridade de grupos humanos não europeus do
ponto de vista da divisão racial do trabalho, do salário, da produção cultural e dos conhecimentos”
(OLIVEIRA 2012, p. 54).
O pensamento decolonial – pelo qual faço a opção – vem buscando romper com as colonialidades vividas
pelos povos não europeus. Esta abordagem epistêmica vem sendo desenvolvida principalmente por
estudiosos latino-americanos da decolonialidade, especialmente o Grupo Modernidade/Colonialidade,
dentre os quais destacamos Aníbal Quijano (2014), Catherine Walsh (2017), Edgard Lander (2005),
Enrique Dussel (2016), Maria Lugones (2014), Nelson Maldonado-Torres (2007), Ramon Grosfoguel
(2011), Santiago Castro Gomez (2005), Walter Mignolo (2010), bem como pelos brasileiros Claudia
Miranda (2017), Luis Fernandes Oliveira (2012), Maria Antonieta Martinez Antonacci (2015), Nilma Lino
Gomez (2018) e outros. No conjunto de autores da decolonialidade percebe-se uma abertura de
possibilidades outras para a produção de conhecimentos, especialmente os histórico-educacionais; para
formas múltiplas de ser; para a valorização de saberes e fazeres diversos e valorização das experiências
vividas.
Nesse emaranhado de vozes destaca-se que a decolonização dos saberes, poderes, seres e natureza se
constitui para: a) buscar a desconstrução das metanarrativas sobre a modernização, racionalização e
progresso procurando restaurar as vozes, as experiências, as identidades, as histórias dos subalternos e a
importância das comunidades periféricas, as memórias coletivas, articular o sensível e o conceitual; b)
desfazer a cultura do silêncio, as contradições opressor-oprimido rearticulando-as para superação das
marcas profundas da colonialidade inscrita na memória social dos povos colonizados; c) o pensamento
atuar como um semeador que semeia ideias e premissas prenhes de indignação e esperança num mundo
onde a vida seja a fonte, centro e fim da cultura de cuidado com o outro; d) romper com a invisibilidade
dos ditos conhecimentos populares, leigos, plebeus, camponeses, ou indígenas parando de tratá-los como
crenças, opiniões, magia, idolatria, entendimentos intuitivos ou subjetivos; e) romper com dicotomização
que coloca de um lado a ciência, a filosofia e a teologia e, de outro, como menores e desqualificados, todos
os conhecimentos que não seguem a racionalidade e cientificidade; f) pautar-se numa epistemologia que
abrange todos os saberes estabelecendo as condições da sua produção e validação sem hierarquização; g)
não desqualificar nenhum saber, embora considerando diferenças entre eles incluindo-os num repertório
alargado de “ciências” ou de saberes científicos; h) definir-se por pensamentos de fronteira como
resposta crítica aos fundamentalismos exige um pensamento mais amplo que o cânone ocidental
(incluindo o cânone ocidental de esquerda) e assim estabelecer um diálogo crítico entre os diversos
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Como esta perspectiva vem se efetivando? Com a opção pelo caminho que tem como meta o rompimento
com as linhas abissais (SANTOS, 2010) que dividem as sociedades, especialmente a brasileira – e, por
extensão, a educação brasileira, e, particularmente, o ensino de história. Para tanto, precisamos
decolonizar os saberes, para: AVANÇAR na conquista de direitos sociais; ROMPER com as verticalizações
históricas; BUSCAR novas epistemologias que nos desafiem a produzir conhecimentos históricos outros
com outras metodologias, com outras perguntas; PENSAR A DIVERSIDADE de histórias, da educação;
FAZER da educação espaço de lutas pela não separação dos sujeitos conforme a sua condição social;
INCORPORAR novas perspectivas teórico-metodológicas; DIALOGAR com outros espaços de produção
de conhecimentos como países do eixo Sul, países latinos, universidades para além do eixo Sul-Sudeste
brasileiro; FAZER pesquisas de forma a dialogar com os sujeitos e não sobre os sujeitos que fazem e
fizeram outras formas de educação e ensino de História; CONTINUAR aprendendo outras pedagogias,
especialmente a da esperança. Mas, acima de tudo – como nos ensinou o mestre Paulo Freire – manter a
pedagogia da indignação, na qual estar no mundo…
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14/03/2024, 17:03 Epistemologia Decolonial: Uma ferramenta política para ensinar histórias outras | HH Magazine
“
[…] significa estar com ele e com os outros, agindo, falando,
pesando, refletindo, meditando, buscando, inteligindo, comunicando o
inteligido, sonhando e refletindo-se sempre a um amanhã,
comparando, valorando, decidindo, transgredindo princípios,
encarando-os, rompendo, optando, crendo ou fechados às crenças. O
que não é possível é estar no mundo, com o mundo e os outros,
indiferentes a uma certa compreensão de porque fazemos o que
fazemos, de a favor de que e de quem fazemos, de contra que e contra
quem fazemos o que fazemos. O que não é possível é estar no mundo,
com o mundo e com os outros, sem estar tocados por uma certa
compreensão de nossa própria presença no mundo. Vale dizer, sem
uma certa inteligência da História e de nosso papel nela (FREIRE,
2000, p.125).
”
Como instrumento de luta em prol do empoderamento de grupos sociais subalternizados numa
perspectiva decolonial, busco concepções de memórias e de ensinos de história que vão à
contracorrente, que caminham por outros tempos-espaços e outras concepções de poder, de ser, de
conhecimento e de natureza que, talvez, nos ofereça chaves de compreensão e atuação na busca de
conquistas sociais outras na possibilidade efetiva de maior justiça social, política, cognitiva e econômica.
Para não encerrar o debate, penso que as proposições decoloniais podem colaborar para a divulgação de
conhecimentos libertadores e contra-hegemônicos nos ambientes acadêmicos, nas salas de aula da
Educação Básica, na formação de professores, ou em espaços educativos não formais junto com os
movimentos sociais, podendo contribuir para em prol de uma sociedade com mais justiça, empatia,
tolerância, amorosidade e solidariedade.
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REFERÊNCIAS
ANTONACCI, Maria Antonieta Martinez. Memórias ancoradas em corpos negros. 2ª ed. São Paulo:
EDUC. 2015.
CASTRO-GÓMEZ, Santiago. La Hybris del Punto Cero: ciência, raza e ilustración em la Nueva Granada
(1750-1816). Bogotá: Editorial Pontificia Universidad Javeriana, 2005.
FREIRE, Paulo Reglus. Pedagogia da Indignação: Cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Unesp,
2000.
GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro e a intelectualidade negra descolonizando os currículos. In:
BERNARDINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES, Nelson; GROSFOGUEL, Ramón (Orgs.).
Decolonialidade e pensamento afrodiáspórico. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018, p.223-246.
(Coleção cultura negra e identidade).
GROSFOGUEL, Ramón. Racismo epistémico, islamofobia epistémica y ciencias sociales coloniales. Tabula
Rasa. Bogotá – Colômbia, n.14, v. 1, p. 341-355, 2011. Disponível em:
<https://tinyurl.com/y9ma3lhp>. Acesso em: ago. 2018.
LANDER, Edgardo et al. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-
americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.
OLIVEIRA, Luiz Fernandes. História da África e dos africanos na escola: desafios políticos,
epistemológicos e identitários para a formação dos professores de História. Rio de Janeiro: Imperial
Novo Milênio, 2012.
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QUIJANO, Aníbal (Ed.). Des/colonialidad y bien vivir: un nuevo debate en America Latina. Lima: Editorial
Universitaria, 2014.
SANTOS, Boaventura de Souza. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de
saberes. In SANTOS, Boaventura de Souza; MENESES, Maria Paula. (Orgs.). Epistemologias do Sul. São
Paulo: Cortez, 2010, p. 23-71.
WALSH, Catherine. Pedagogías decoloniales: prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir. Tomo
II. Quito, Ecuador: Ediciones Abya-Yala, 2017.
Crédito da imagem: Estudante durante aula de artes em escola do Rio de Janeiro, outubro de 1961.
Arquivo Nacional. Fundo Correio da Manhã.
SOBRE O AUTOR
SOBRE A COLUNA
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A Associação Brasileira de Ensino de História – ABEH constitui-se, extraoficialmente, em
2006 no VII Encontro Nacional de Pesquisadores do Ensino de História (UFMG), com o
objetivo de congregar professores pesquisadores que têm como campo de pesquisas o Ensino
de História, no entrecruzamento de duas áreas de conhecimento: Educação e História. O
registro do estatuto da ABEH ocorre em 14 de janeiro de 2009, data de fundação oficial da
referida Associação.
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10 comments
Responder (https://hhmagazine.com.br/epistemologia-decolonial-uma-ferramenta-politica-para-ensinar-
Raissa
historias-outras/ ?replytocom=332#respond)
13 dezembro, 2020 at 04:47 (https://hhmagazine.com.br/epistemologia-decolonial-uma-ferramenta-politica-
para-ensinar-historias-outras/#comment-332)
Obrigada por este texto e estas informações, foi enriquecedor, salvou minha madrugada de crise de
ansiedade
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FABIANA ROCHA NASCIMENTO
historias-outras/ ?replytocom=333#respond)
14 dezembro, 2020 at 22:42 (https://hhmagazine.com.br/epistemologia-decolonial-uma-ferramenta-politica-
para-ensinar-historias-outras/#comment-333)
Responder (https://hhmagazine.com.br/epistemologia-decolonial-uma-ferramenta-politica-para-ensinar-
Elzéber Paiz Flôres
historias-outras/ ?replytocom=542#respond)
9 julho, 2021 at 17:09 (https://hhmagazine.com.br/epistemologia-decolonial-uma-ferramenta-politica-para-
ensinar-historias-outras/#comment-542)
Responder (https://hhmagazine.com.br/epistemologia-decolonial-uma-ferramenta-politica-para-ensinar-
Everton
historias-outras/ ?replytocom=632#respond)
19 outubro, 2021 at 15:18 (https://hhmagazine.com.br/epistemologia-decolonial-uma-ferramenta-politica-
para-ensinar-historias-outras/#comment-632)
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Aline
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6 novembro, 2021 at 22:47 (https://hhmagazine.com.br/epistemologia-decolonial-uma-ferramenta-politica-
para-ensinar-historias-outras/#comment-649)
Parabéns pelo texto, rico e completo. Irá me ajudar para meus estudos sobre o tema em questão.
Responder (https://hhmagazine.com.br/epistemologia-decolonial-uma-ferramenta-politica-para-ensinar-
Renata Ribeiro
historias-outras/ ?replytocom=709#respond)
25 fevereiro, 2022 at 15:16 (https://hhmagazine.com.br/epistemologia-decolonial-uma-ferramenta-politica-
para-ensinar-historias-outras/#comment-709)
Nas universidades brasileiras,estamos anos luz quando se trata das universides portuguesas. É vergonhoso
o boicote as pesquisas contrahegemônicas que buscam criar outras discussões e narrativas do sul como
protagonistas milieneares de saberes e fazeres . A colonialidade epistemica é feroz e o monitoramento do
que se escreve é reaql
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Jacob Cupata
historias-outras/ ?replytocom=711#respond)
17 março, 2022 at 20:52 (https://hhmagazine.com.br/epistemologia-decolonial-uma-ferramenta-politica-
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Responder
Rosinalda(https://hhmagazine.com.br/epistemologia-decolonial-uma-ferramenta-politica-para-ensinar-
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Eleonora Seligmann (https://www.frameurbano.com.br)
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17 outubro, 2023 at 11:13 (https://hhmagazine.com.br/epistemologia-decolonial-uma-ferramenta-politica-
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Eleonora Seligmann (https://www.frameurbano.com.br)
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17 outubro, 2023 at 11:14 (https://hhmagazine.com.br/epistemologia-decolonial-uma-ferramenta-politica-
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