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Sigrist
II
A alma vista por baixo e é essa ligação com as profundezas que faz com
que Perséfone cresça. Não à toa Hermes é um dos deuses que se apaixona
pela menina; já havia nela uma semente de Hermes, uma possibilidade de
transitar entre consciente e inconsciente. Perséfone hermética, a que liga
Deméter, sua mãe superprotetora, com Hades. Para que a menina (Coré)
cresça, deve sair da perspectiva de Zeus, pai de Perséfone, que a protege de
todos os deuses e encarar Hades, a loucura, o escuro, o rapto. É por esse
rapto, pela perspectiva da existência de forças irresistíveis e amedrontadoras
que o lugar da Mãe que protege, cuida, evita, fecha e mantém, desaparece.
Deméter exige sua filha de volta, mas agora a menina não pertence
apenas a Mãe. Deméter quer a filha de volta para si, mas percebe que ela
agora também pertence a Hades. A criança não está mais em um único
domínio. Cresceu invertida ao poder da Mãe. Deméter, deusa da agricultura,
faz crescer para cima, em direção à luz, tem uma filha que foi para baixo.
Agora o destino de Perséfone faz com que ela não tenha mais um lugar fixo,
uma morada eterna; a rainha precisa transitar. Deméter transformou os climas
férteis em invernais - e, porque não, infernais – pela filha. O amadurecimento
de Perséfone não é o mesmo de Deméter. Compará-las seria cair novamente
no materialismo de causalidades dependentes. Cada figura se desenvolveu a
sua própria forma, em mundos diferentes. Deméter congelou a natureza,
Perséfone olhou para Hades após tanto relutar. Deméter teve a ajuda de
Hécate e Hélio para descobrir o paradeiro da filha. Hécate, a deusa tripla, faz a
Mãe olhar para outras direções, e Hélio ilumina os caminhos. Coré cresce e se
transforma em Perséfone longe dos olhos da Mãe. A Mãe ganha outras formas
de ver. É a poética dos olhos como “as águas que sonham”, parafraseando
Bachelard. Nos ínferos acaba o sonho da Mãe e a menina começa a sonhar
por si mesma.
Ao dizer que “Deméter não pertence apenas a Mãe”, o paradoxo do
pertencimento é criado. Não é mais a Mãe que a tem, ela tem a Mãe. Sua
presença para a Mãe é poderosa o suficiente para que Deméter sinta que ela
pertence a filha, e pela filha é levada a olhar para baixo, ter sentido para baixo.
Perséfone vai parar no mundo dos mortos, torna-se ínfera, infernal. Coré, a
menina, é quem desce, e ao descer, conhece que o mundo das sombras tem
vida própria, não sendo mero resultado dos restos de cima, tem sua própria
forma de ser agir, pensar, sentir, existir. Perséfone não rejeitou Hades, e foi o
que fez com que ela não fosse levada de volta intacta à Mãe. Perséfone
saboreou o mistério (havia comido seis sementes de romã), e agora uma
porção do mistério, de Hades também a pertencia.
Ao trazer o mito da criança perdida sob a perspectiva da Mãe, do rapto
pelo inconsciente sob a perspectiva da criança e a força visceral e frenética da
paixão sob a perspectiva de Hades, direcionamentos diferentes são apontados.
Para a Mãe, as coisas funcionam assim, para o desejo mais obscuro, de outra
forma. Resenhando o poema de Jean Shinoda Bolen, só é possível conhecer
as dores dos outros se antes – e não depois – for feita a própria jornada para o
próprio inferno, tomar a própria perspectiva do medo. É pelo reconhecimento
que surge Eros.
Hades não é apenas o deus do submundo, a ele também pertencem os
segredos, o deus que nunca se apresenta por completo. Nosso maior
preconceito enquanto cultura contra Hades é que o mundo dos mortos foi se
tornando cada vez mais distante de nós. Não entramos em contato com a
morte, na civilização atual não caçamos mais o que comemos, criamos para
matar, e a morte passa a ocupar esse lugar.
III
Referências bibliográficas: