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A Mãe, a criança e o irresistível ato de crescer – Por Rhodys R.

Sigrist

Para tratar o assunto da Mãe, e ressalto o maiúsculo da Mãe para que


não se perca a grandeza do que está sendo proposto, enfatizo a potencialidade
arquetípica que se manifesta na cultura e no indivíduo. E ao referir a Mãe como
grandeza, discuto sobre uma imagem que atua como força criativa direcionada
para fora. O sentido da Mãe é para a luz, dar a luz e à luz.
James Hillman (1982) apontou em seu artigo que ao evocar a Mãe,
caímos na díade Mãe-criança. Essa dualidade nos leva invariavelmente ao
lugar da existência. Disse Hillman: “Mãe e criança não são somente cada um o
que são, mas eles são como são porque eles estão entrelaçados em um
conjunto que afeta a natureza de cada um.”. Juntas, Mãe e criança se tramam,
estão coligadas em um laço que faz com que crie uma percepção de
continuidade, de que uma pertence e tem a outra para si. Eis a questão: A Mãe
é um problema para a noção de desenvolvimento?
A primeira forma seria suspender essa noção de problema, o que coloca
a Mãe diretamente no inconsciente. Se não há problema, não há angústias,
dúvidas, nada de errado e consequentemente não há o que fazer. O colo que
recebe com carinho e tranquiliza qualquer demanda é sempre muito sedutora
ao cansado herói. O herói é a primeira tentativa de conquistar a própria força,
interrogar os limites, abrir horizontes, (re)conhecer inimigos. O herói é uma
identidade inquestionável, literal, algo que na diluição de uma Mãe-criança
acolhe a angustia do não-ser (da Mãe). Não qualquer tipo de herói, mas um
herói hercúleo em que toda e qualquer demanda deve ser superada e vencida.
A segunda forma seria encarar a Mãe como o principal problema de
tudo, o que acaba desenvolvendo o problema para o oposicionismo. Usando as
palavras de Hillman (1977), esses “ismos” são molduras ideológicas que
mantém nossa mente enclausurada em uma forma geralmente inconsciente.
Se opor à Mãe como uma criança rebelde em busca de emancipação é manter
o problema da Mãe intacto, inviolado, calado. O-posição ainda é uma
posicionamento em relação a. É um vincular-se às avessas.
Ao desenvolver a dinâmica de tentar a todo custo afastar-se da natureza
materna, tudo que vem da própria natureza também torna-se perigoso.
Contrapor-se ao problema não é respondê-lo, e sim escondê-lo, colocar preto
em cima do branco, tirar de vista e deixa-lo crescer nas sombras. É onde a
Mãe ganha forças pelo negativo. A chamada Mãe-Narcisista, por exemplo, é
uma forma da Mãe imaginar a importância de sua continuidade da sua própria
psique. A Mãe se estende – renovando sua função através da fantasia da
criança. Não seria essa uma tentativa de a Mãe tentar curar sua própria
natureza ferida? E como disse Chagas (2007) “Não são as nossas feridas que
traçam nossos destinos, compõem nossa personalidade?”.
A alma preserva a totalidade. Tudo aquilo que um dia foi na noção
contemporânea de temporalidade, na alma é. A noção de posições trazida pela
Melanie Klein (1948) dá a fluência necessária para esse jogo de luz e sombra,
de que o desenvolvimento psíquico não é fásico, ele vai e volta como se
precisasse olhar novamente para o criador, o criativo, a criatura e a criação.
Sair de uma fase não quer dizer abandoná-la como a noção freudiana enfatizou
sobre o desenvolvimento da libido. A libido circula, vai para onde há prazer,
não fica presa em uma só preferência, mas perambula entre possibilidades. Se
no início tudo era esquizo (desenvolverei melhor essa concepção mais adiante
no texto), a possibilidade de a alma separar uma mesma coisa em duas ou
mais continua existindo no logos e no pathos.
A Mãe não é uma pessoa; é uma imagem. E toda imagem que toma
para si a concepção de sujeito acaba se tornando um complexo. A Mãe como
imagem se perpetua no coletivo, em padrões de conduta cheios de vitalidade
que nutrem o imaginário humano. O tema “Mãe” sempre volta. Por que?
Hillman (1982) traz “que o tema (Mãe) seja tão gasto indica que ele se tornou
inconsciente outra vez, posto suavemente em um sulco, um sepulcro.”. Toda
figura que é grande demais tende a criar sombras maiores.
A psicanálise de Freud (1915) trouxe a noção de inconsciente como um
tops constituído de recalques, negativo in natura. O inconsciente era apenas
uma sombra do consciente. A própria noção de transferência para Freud (1915)
era sempre um fator negativo, que apenas conteúdos negativos recaíam no
setting. Ferenczi (2011) apresentou outra perspectiva, percebeu que conteúdos
positivos também fazem parte do processo transferencial. O aconchego do
negativo é que ele se torna o receptáculo dos males, dá coberta para aliviar a
tarefa de olhar para os cortes formadores do caráter do sujeito.
O escuro é confortável. Desligamos as luzes ao dormir, fechamos os
olhos ao sentir sono. Espaço de descanso, calmaria da visão, quarto da trégua.
O escuro é a cama dos olhos. Não mais ausência de luz, mas lugar do
repouso. Encerra-se a narrativa das luzes e a sombra ganha sua própria
maneira de imaginar. Sem positivos e negativos, a escuridão deixa de ganhar
as cores do dia e passa a pintar com sua própria essência.

II

Mater é a raiz etimológica de matéria e de mãe. Ao materializar uma


questão ela é encaminhada para o lugar da Mãe. A matéria é o lugar do
aprendizado, do aprender a andar. Não à toa as disciplinas escolares são
“matérias”; a educação precisa ter limites, divisões. A matéria está junta com a
educação. Todavia, a alma tem sua parcela de impaciência, que não aceita
orientações. É ávida para trilhar no desconhecido. Há um poema de Jean
Shinoda Bolen que nos leva para essa perspectiva de alma:

Eu transito entre dois mundos


Eu desci nos infernos de mim mesma
Li o inconsciente
Porque conheci as dores mais profundas
E sobrevivi
Eu posso conhecer as dores dos outros
Viajei na escuridão e nas sombras
Conheci o fundo do medo
Acendi a luz do amor
E voltei pra aquecer a terra
Eu sou Perséfone

A alma vista por baixo e é essa ligação com as profundezas que faz com
que Perséfone cresça. Não à toa Hermes é um dos deuses que se apaixona
pela menina; já havia nela uma semente de Hermes, uma possibilidade de
transitar entre consciente e inconsciente. Perséfone hermética, a que liga
Deméter, sua mãe superprotetora, com Hades. Para que a menina (Coré)
cresça, deve sair da perspectiva de Zeus, pai de Perséfone, que a protege de
todos os deuses e encarar Hades, a loucura, o escuro, o rapto. É por esse
rapto, pela perspectiva da existência de forças irresistíveis e amedrontadoras
que o lugar da Mãe que protege, cuida, evita, fecha e mantém, desaparece.
Deméter exige sua filha de volta, mas agora a menina não pertence
apenas a Mãe. Deméter quer a filha de volta para si, mas percebe que ela
agora também pertence a Hades. A criança não está mais em um único
domínio. Cresceu invertida ao poder da Mãe. Deméter, deusa da agricultura,
faz crescer para cima, em direção à luz, tem uma filha que foi para baixo.
Agora o destino de Perséfone faz com que ela não tenha mais um lugar fixo,
uma morada eterna; a rainha precisa transitar. Deméter transformou os climas
férteis em invernais - e, porque não, infernais – pela filha. O amadurecimento
de Perséfone não é o mesmo de Deméter. Compará-las seria cair novamente
no materialismo de causalidades dependentes. Cada figura se desenvolveu a
sua própria forma, em mundos diferentes. Deméter congelou a natureza,
Perséfone olhou para Hades após tanto relutar. Deméter teve a ajuda de
Hécate e Hélio para descobrir o paradeiro da filha. Hécate, a deusa tripla, faz a
Mãe olhar para outras direções, e Hélio ilumina os caminhos. Coré cresce e se
transforma em Perséfone longe dos olhos da Mãe. A Mãe ganha outras formas
de ver. É a poética dos olhos como “as águas que sonham”, parafraseando
Bachelard. Nos ínferos acaba o sonho da Mãe e a menina começa a sonhar
por si mesma.
Ao dizer que “Deméter não pertence apenas a Mãe”, o paradoxo do
pertencimento é criado. Não é mais a Mãe que a tem, ela tem a Mãe. Sua
presença para a Mãe é poderosa o suficiente para que Deméter sinta que ela
pertence a filha, e pela filha é levada a olhar para baixo, ter sentido para baixo.
Perséfone vai parar no mundo dos mortos, torna-se ínfera, infernal. Coré, a
menina, é quem desce, e ao descer, conhece que o mundo das sombras tem
vida própria, não sendo mero resultado dos restos de cima, tem sua própria
forma de ser agir, pensar, sentir, existir. Perséfone não rejeitou Hades, e foi o
que fez com que ela não fosse levada de volta intacta à Mãe. Perséfone
saboreou o mistério (havia comido seis sementes de romã), e agora uma
porção do mistério, de Hades também a pertencia.
Ao trazer o mito da criança perdida sob a perspectiva da Mãe, do rapto
pelo inconsciente sob a perspectiva da criança e a força visceral e frenética da
paixão sob a perspectiva de Hades, direcionamentos diferentes são apontados.
Para a Mãe, as coisas funcionam assim, para o desejo mais obscuro, de outra
forma. Resenhando o poema de Jean Shinoda Bolen, só é possível conhecer
as dores dos outros se antes – e não depois – for feita a própria jornada para o
próprio inferno, tomar a própria perspectiva do medo. É pelo reconhecimento
que surge Eros.
Hades não é apenas o deus do submundo, a ele também pertencem os
segredos, o deus que nunca se apresenta por completo. Nosso maior
preconceito enquanto cultura contra Hades é que o mundo dos mortos foi se
tornando cada vez mais distante de nós. Não entramos em contato com a
morte, na civilização atual não caçamos mais o que comemos, criamos para
matar, e a morte passa a ocupar esse lugar.

III

Culturalmente, existe a noção de serem as ações da mãe as principais


propiciadoras do desenvolvimento da criança. Não só desenvolvimento,
também criação, educação, concepção, evolução. A Mãe aqui torna-se ou boa
ou má dependendo do que faz, seus passos são assustadores visto que
qualquer deslize acarretará em um erro fatal; uma tarefa que aos poucos vai
consumindo a mulher, que identificada com a necessidade absoluta da boa
maternagem, sacrifica-se. Especificamente aqui há uma questão que acabaria
voltando para a necessidade de achar (ou até mesmo transformar) culpados ao
invés de perceber perspectivas, fontes diversas de desenvolvimento. É
necessário tentar entender o que atrai tanto tais soluções mágicas ao redor
dessa imago materna. A teoria de Melanie Klein (1948) procura imaginar a
relação mãe-bebe como uma relação mágica, entre tipos antagônicos de seios.
Inicialmente o bebê é esquizo, não integra ações diferentes no mesmo objeto,
tudo é magicamente dicotômico. A noção paranoide vem da onipotência do
bebê. Só quando a criança percebe que tudo era a mesma coisa, que estão
integradas, ela percebe a real insuficiência humana. Aquilo que preciso pode
não ter nada hoje. Nas palavras de Hillman (1982):

Então, a psicologia encontra uma mãe “nunca suficiente”. Se ela está


sempre presente, então diz-se que ela promove fraqueza, mimo e
dependência. Se ela nutre com afeição calorosa e proximidade, então
chamam-na de sufocante e devoradora. Se ela deseja muito para sua criança,
fantasiando o futuro da criança a partir das reservas do próprio espírito, então
ela está dominando a vida da criança com seus objetivos. Se ela é previdente,
intuitiva e desprendida, então sua sabedoria profética é a de uma bruxa. Se ela
se deleita na vida e nos prazeres dos sentidos, então ou ela está seduzindo
suas crianças ou ela está privando suas crianças de suas vidas ao viver de
modo tão voluptuoso a sua própria vida. Qualquer que seja o estilo da
maternidade, ela parece amaldiçoada (pg. 4).

Nunca é suficiente. Na psicologia, qualquer tentativa da Mãe pode


acarretar em uma conduta reativa da criança. O risco que caímos ao entrar
nessa perspectiva é a de “adultizar” a criança e infantilizar o adulto. Qualquer
que seja a tentativa, será frustrante e frustrada em algum nível. E o problema é
que ao condenar as frustrações, elas acabam perdendo sua porção
significativa de possibilidade e a noção de prazer fica condenada. A
experiência da maternagem que procura suprir toda e qualquer falta revela o
temor da perda, que perder significa morrer literalmente. A primeira descida ao
Hades é sempre uma jornada individual. Enquanto Perséfone era intocada por
qualquer deus, o panteão sofria. Depois de seu rapto, os deuses começaram a
interagir, as forças passam a se reorganizar, não mais pela Mãe ou pela filha,
mas por ambas.
Revisão técnica: Samantha Buglione

Referências bibliográficas:

BACHELARD, Gaston (1942) – A Água e os Sonhos – Ensaio sobre a


imaginação da matéria

CHAGAS, Lunalva A. Fiuza (2007) - O Pequeno Príncipe e a Relação Analítica

FERENCZI, Sándor (2011) - Elasticidade da técnica psicanalítica. In:


DUPONT, J. (Ed.). Obras completas de Sándor Ferenczi: psicanálise
IV. São Paulo: M. Fontes.

FREUD, Sigmund (1915a/2004). O Recalque. In S. Freud, Obras Psicológicas


de Sigmund Freud, Vol. 1: Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente. Rio de
Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1915).

FREUD, Sigmund (1915) Observações sobre o amor transferencial (Novas


recomendações sobre a técnica da psicanálise III). Obras Completas. Rio de
Janeiro: Imago, 1976

HILLMAN, James (1982) – A Má Mãe – Uma Abordagem Arquetípica

HILLMAN, James (1977) – O Sonho e o Mundo das Trevas

KLEIN, Melanie (1948). The development of a child. In M.


Klein, Contributions to psycho–analysis. London: Hogart Press. (Trabalho
original publicado em 1921)

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