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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Izabel de Madureira Marques

A importância de ser Ernest Jones: Uma Leitura Psicanalítica sobre a Invisibilidade de


um Homem Notável

Doutorado em Psicologia Clínica

São Paulo
2018
Izabel de Madureira Marques

A importância de ser Ernest Jones: Uma Leitura Psicanalítica sobre a Invisibilidade de um


Homem Notável

Doutorado em Psicologia Clínica

Tese apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para a obtenção do
título de Doutora em Psicologia Clínica, sob a
orientação do Prof. Dr. Renato Mezan.

São Paulo
2018
Banca Examinadora

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O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico - Brasil. Processo nº 140027/2016-5.
Ao CNPq, meus agradecimentos. Agradeço também ao FUNDASP pelo apoio
recebido.
AGRADECIMENTOS

Meus agradecimentos vão para todos aqueles que me inspiraram nesse trabalho e
o ajudaram a tomar forma.
Em primeiro lugar, e eu sei que é algo estranho e inusitado, mas agradeço a mim
mesma. Fui uma boa parceira de trabalho: paciente com os momentos de impasse, resiliente
para enfrentar as dificuldades, dedicada para muitas, mas muitas, horas de estudo, pesquisa, e
escrita. Consegui abstrair o sambinha insuportável (desafinado e fora de ritmo) que tocava em
um bar vizinho da minha casa, que religiosamente coincidia com todos meus dias de estudo e
produção. (Brinquei várias vezes, com amigos e familiares, que eu deveria descrever essa
―provação‖ em algum espaço de minha tese – e estou cumprindo aqui. Todos sabemos como é
difícil se concentrar com poluição sonora, e tive esse ―adicional de dificuldade‖ durante todos
os meus quatro anos de Doutorado. - Algumas vezes trabalhei no silêncio da biblioteca, mas
claro que isso tinha a desvantagem de eu ter que levar comigo uma verdadeira mala de livros,
textos e anotações. - Se o presente trabalho tem mérito, deve-se destacar então que foi feito
com um esforço adicional de fazer a voz de Jones falar mais alto que a do cantor que
esgoelava - e assassinava - os maiores sambas da música brasileira).
Descansei quando não conseguia mais me concentrar – pois sabia que descansada
produziria depois muito melhor -, dormi em cima dos livros algumas vezes, mas sempre
procurei respeitar meu ritmo, mais ou menos constante, para não fazer nada sob o desespero
dos prazos urgentes (definitivamente não sou daquelas pessoas que gostam ou precisam de
pressão para trabalhar: prefiro o trabalho constante e tranquilo, o estudo de todo dia; uma
investigação calma como a de um detetive que não tem pressa para encontrar o que procura e
se diverte muitíssimo com o desvelar de cada pequena pista).
Um dos desafios deste tipo de trabalho – bastante trabalhoso, me permitam a
redundância – é o de nunca perder de vista o motivo de tanto esforço: o desejo. Ninguém é,
afinal de contas, obrigado a fazer uma tese, ou uma dissertação, e por mais que haja
benefícios e vantagens com a obtenção de um título imponente, não há graça nenhuma fazer
um trabalho que não te implique profundamente, que não te inspire, que não te faça ficar
pensando nele – mesmo quando estirada ao sol da praia. Um trabalho trabalhoso assim
sempre tem muito de autoral, e necessariamente diz respeito a questões profundas que nós nos
colocamos, quase como num teste projetivo. Por que afinal de contas me interesso tanto por
esse psicanalista galês, que morreu há décadas? É difícil dizer, mas tenho minhas hipóteses. E
é evidente que não vou revelá-las aqui – isso é assunto para o divã de meu analista.
Nenhuma etapa deste trabalho foi fácil. Definir o escopo da pesquisa foi o desafio
inaugural e que, confesso, me deixou apreensiva nos primeiros dias. Estudar Ernest Jones é
andar por um terreno inexplorado, quase virginal: tudo é novo, essencialmente novo. E essa
natureza do trabalho, se por um lado é uma de suas maiores qualidades, por outra é uma
responsabilidade grande e uma espécie de ―solidão‖ intimidadora.
Mas claro que tive ajuda. ―Nenhum homem é uma ilha...‖
A ajuda começou em meados de 2010, quando eu cursava mestrado, e veio do
meu então orientador, amigo, mestre e pessoa que admiro e de quem gosto profundamente:
Prof. Dr. Gilberto Safra. Estávamos com alguma dificuldade para encontrar bibliografia para
minha dissertação – um tema um tanto inédito, também, o que me colocava numa posição de
―caça‖ de diálogos com outros autores –, quando em meus estudos encontrei, em uma
minúscula nota de rodapé (escrita em alemão), uma indicação de um texto de Ernest Jones.
Procurei o texto de muitas maneiras, e somente a partir de uma sugestão do Gilberto
finalmente o encontrei. O prazer desta descoberta, daria origem, anos depois, ao presente
estudo que o leitor tem em mãos.
Agradeço também ao meu atual orientador, Prof. Dr. Renato Mezan, pelas
carinhosas orientações e apontamentos. Obrigada pela atenção comigo e amizade, pela leitura
cuidadosa da primeira versão do trabalho e pelas anotações, pelas conversas, me fazendo
sentir que eu estava no caminho certo – e também me fazendo sentir segura com o respaldo de
uma referência na Historiografia Psicanalítica no Brasil, como ele é. Ele certamente estava
sendo gentil ao dizer que ―iria aprender sobre Jones comigo‖, já que não tinha muita
familiaridade com a obra do galês, mas ouvir algo assim é uma honra e um incentivo e tanto.
Agradeço também às contribuições e ao encorajamento das professoras Drª Isabel
Cristina Gomes e Drª Marlise Aparecida Bassani no Exame de Qualificação, pelos
apontamentos pertinentes, pelas leituras cuidadosas e pelos elogios tão gratificantes.
Obrigada à minha mãe, Maria de Fátima Siqueira de Madureira Marques,
psicanalista e tradutora, que me ajudou em todas as etapas do trabalho, desde ao ouvir meus
impasses iniciais, me amparar nas crises (que foram muitas), até revisar minhas traduções do
inglês, passando por leituras críticas de alguns capítulos.
Obrigada à minha irmã Helena de Madureira Marques, por retirar tantas vezes
livros das bibliotecas da USP a meu pedido; obrigada pela dica do ―Forrest Gump‖ (o leitor a
descobrirá no capítulo VIII), uma dica muito boa para a compreensão de uma frase-chave que
eu vinha estudando. Obrigada também pela reclamação de que eu estudava demais e ―amava
tanto esse Ernest Jones‖ que deveria colocar um pôster dele seminu na parede do meu quarto,
como as adolescentes fazem com seus ídolos. Obrigada por, com essa reclamação, me apontar
que eu estava ficando monotemática e exagerando ao colocar Jones em quase toda conversa.
(OBS: Não segui o conselho e não tenho pôster nenhum de Jones no meu quarto, deixo claro.
E em todas as fotos que pesquisei do galês ele estava, a propósito, devida e elegantemente
vestido.)
Obrigada, de forma geral, a todos os amigos, colegas, professores, pelas dicas,
pelo encorajamento e pelo suporte emocional, tão fundamental em todas as etapas de um
trabalho desafiador.
Obrigada ao Dr. Robert Hinshelwood, por tão gentilmente me conceder uma
entrevista sobre Ernest Jones (aqui reproduzida na íntegra - em Anexos -, com sua
autorização).
Agradeço, evidentemente, a Ernest Jones, por deixar uma obra e legado tão
expressivos e me apontar um campo de estudos um tanto novo e bastante inexplorado –
campo que pretendo seguir por todos os anos que tenho à minha frente.
Obrigada a Sigmund Freud - e nem é necessário explicar o motivo do
agradecimento.
Obrigada às Bibliotecas da Universidade de São Paulo (USP-SP), da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e em especial da Sociedade Brasileira de
Psicanálise de São Paulo (SBP-SP), pelo acesso aos tantos livros e artigos que utilizei; meu
muito obrigada também pela gentileza das bibliotecárias a quem pedi auxílio: Tatiane Borba,
Vera Sevestre, Bianca Santos. Obrigada à British Psychoanalytical Society / Institute of
Psychoanalysis Library em Londres e ao meu amigo S. M., o bibliotecário-chefe.
E obrigada ao CNPq e ao FUNDASP pela bolsa de estudos.

Obrigada!
RESUMO

MARQUES, I. M. A importância de ser Ernest Jones: uma leitura psicanalítica sobre a


invisibilidade de um homem notável. 2018. 286 f. Tese (Doutorado em Psicologia Clínica) -
Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 2018.

Ernest Jones (1879-1958), psicanalista galês e discípulo de Freud, produziu uma quantidade
significativa de artigos e livros de Psicanálise ao longo da vida e, no entanto, ao menos no
Brasil sua vida e obra são bastante desconhecidas. O objetivo do presente trabalho é investigar
a questão da invisibilidade - e do tema correlato importância/desimportância – deste autor, a
partir da leitura psicanalítica da sua biografia e da seleção de textos específicos de sua extensa
obra. Um estudo sobre Jones se justifica plenamente, portanto, tendo em vista o ineditismo de
sua obra e legado e a importância deste personagem na História da Psicanálise. A discussão
da pesquisa se dá pela análise de textos e documentos que guardam entre si senão uma
continuidade teórica organizada, ao menos uma linha coerente, uma certa repetição ou
similitude de conteúdos ou ideias-chave que nos auxiliam a compreendê-lo. Com o auxílio e
inspiração, entre outros, dos autores Brenda Maddox, Veszy-Wagner e Adam Phillips – que
estudaram a vida e/ou a obra do psicanalista galês -, teceremos uma análise de alguns dos
temas aos quais Jones se dedicou em seus múltiplos (e extremamente ecléticos) estudos: a
questão da religião, da genialidade, do embate edípico entre pai e filho. A discussão dos
textos selecionados do autor e sua interface com dados biográficos – além de contextualização
histórica – revelam um personagem que guarda extrema coerência entre sua história pessoal
(biografia), sua produção em psicanálise e seu papel como embaixador do movimento
psicanalítico internacional. Estudar essa correlação foi o trajeto desta tese, que contou com o
apoio financeiro do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
– Brasil).

Palavras-chave: Ernest Jones. Sigmund Freud. Psicanálise. História da Psicanálise.


ABSTRACT

MARQUES, I. M. The importance of being Ernest Jones: a psychoanalytic view about the
invisibility of a remarkable man. 2018. 286 f. Doctoral Thesis of the Postgraduate Studies
Program in Clinical Psychology, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo,
2018.

Ernest Jones (1879-1958), Welsh psychoanalyst and Freud‘s disciple, has produced a
significant number of papers and books on Psychoanalysis throughout his life, and yet, at least
in Brazil, his life and work are quite unknown. The aim of the thesis is to investigate the issue
of invisibility - and the related theme importance / importance - of this author, based on the
psychoanalytic reading of his biography and the selection of specific texts of his extensive
work. A study on Jones is fully justified, therefore, in view of the novelty of his work and
legacy and the importance of this character in the History of Psychoanalysis. The discussion
of the research is given by the analysis of texts and documents that keep between themselves
but an organized theoretical continuity, at least a coherent line, a repetition or similitude of
contents or key ideas that help us to understand it. With the help and inspiration of authors
such as Brenda Maddox, Veszy-Wagner, and Adam Phillips - who have studied the life and /
or work of the Welsh psychoanalyst - we will examine some of the themes to which Jones has
devoted himself in his many (and extremely eclectic) studies: the question of religion, of
genius, of the Oedipal battle between father and son. The discussion of the author‘s selected
texts and its interface with biographical data - besides historical contextualization - reveal a
character that maintains coherence between his personal history (biography), his production
on psychoanalysis and his role as ambassador of the international psychoanalytic movement.
Studying this correlation was the course of the thesis, which had the financial support of
CNPq (National Council for Scientific and Technological Development - Brazil).

Keywords: Ernest Jones. Sigmund Freud. Psychoanalysis. History of Psychoanalysis.


SUMÁRIO

I INTRODUÇÃO ……………………………………………...…………………….. 10
I.1 Por que estudar Ernest Jones? - O “tesouro perdido” …………….……………. 11
I.2 Sobre o método ……………………...……………………………………………... 13
II QUEM FOI ERNEST JONES? – UMA BREVE BIOGRAFIA …………….….. 23
III UM BREVE CONTEXTO HISTÓRICO ………………………………………. 71
IV O PAI, O FILHO, O AVÔ E O NETO ……………………………………..…….. 87
V “EM NOME DO PAI, DO FILHO...” …………………………………………... 94
V.1 O Complexo de Deus …………………………………………………………….. 94
V.2 Complexo de inferioridade - e sua relação com a religião ……………………. 128
V.3 Fanatismo e idolatria …………………………………………………………... 142
VI XEQUE-MATE: MORTE AO REI …………………………………………….. 149
VII A DESIMPORTÂNCIA DE SER ERNEST JONES …………………………. 183
VII.1 João-ninguém? ……………………………………………………………………. 183
VII.2 O nome do pai …………………………………………………………………... 196
VII.3 “Ser ou não ser” …………………………………………………………………. 204
VIII “ORIGINAL IS AS ORIGINAL DOES” ……………………………………... 221
IX CONSIDERAÇÕES FINAIS …………………...……………………………….. 249
REFERÊNCIAS ………………………...………………………………………... 260
ANEXOS………………………...……………………………………….................270
10

I INTRODUÇÃO

―A finalidade da psicanálise é tornar a pessoa mais ela


própria‖ (Ernest Jones, entrevista a Evans, s/d., p. 154 ).

Quando Anna Freud, no auge dos seus 18 anos, foi passar férias na Inglaterra pela
primeira vez, quem a esperava no desembarque era um homem jovem que levava um buquê
de flores de boas vindas. Esse homem era Ernest Jones.
Apesar de lisonjeada e impressionada, Anna não pôde deixar de pensar que o
interesse de Jones era muito maior em seu pai no que nela própria... (Freud, A., 1979)
Ernest Jones é conhecido no Brasil como o biógrafo de Freud. Sem sombra de
dúvida, sua obra mais divulgada é ―Vida e obra de Sigmund Freud‖ (1970) e esse livro já foi
traduzido em diversos idiomas.
Jones, no entanto, deixou uma vasta obra em Psicanálise, que, ao menos no Brasil,
ainda é pouco conhecida e divulgada. E mais: sua importância na história da Psicanálise não
se resume às contribuições de seus textos conceituais e à sua prática clínica:
Fundador da psicanálise na Grã-Bretanha, criador do Comitê Secreto, artífice do
debate sobre a antropologia, organizador e presidente da International
Psychoanalytical Association (IPA) durante dois períodos cruciais (1920-1924 e
1934-1949), excelente negociador durante as Grandes Controvérsias, pioneiro de
historiografia psicanalítica e da tradução inglesa da obra freudiana (por James
Strachey), Ernest Jones teve um papel considerável na história política do
freudismo. (...) A despeito de sua personalidade difícil, de sua linguagem crua, das
complicações de sua vida amorosa, e que valeram a hostilidade das ligas puritanas, e
da maneira direta com que falava do erotismo ou dos defeitos do corpo, Jones era
um homem insinuante e principalmente um trabalhador infatigável, preocupado em
dominar todos os campos do saber. Tinha paixão pela ‗causa analítica‘ e queria
defendê-la à sua maneira, se necessário contra o próprio Freud, o que explica seu
apoio às inovações kleinianas e sua ambivalência em relação à análise leiga. 1

Para além de suas contribuições teóricas, Jones é uma figura no mínimo


interessante. Além de trazer profundas contradições e polêmicas em sua vida profissional e
pessoal, se interessava por uma gama enorme de assuntos, e ao longo de sua produção teórica
escreveu uma série de artigos curiosos, inéditos, pitorescos, brilhantes. O seu ecletismo o
motivou a escrever sobre temas muito variados e era praticante da patinação no gelo.2
Além das polêmicas sexuais, do comportamento por vezes promíscuo e sedutor,
Jones era uma figura ambivalente, que conseguia reunir profundas qualidades e aspectos

1
ROUDINESCO, E. Dicionário de Psicanalise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 415.
2
Dufresne e Genosko (1995) chegaram a escrever um artigo sobre o interesse de Jones pela patinação artística.
No artigo sugerem que o livro de Jones sobre patinação ―The Elements of Figure Skating‖ (1931) deveria fazer
parte da literatura psicanalítica.
11

bastante duvidosos ou difíceis. Dá pistas de uma personalidade bastante complexa e plena de


tendências contrárias, e apenas essa característica já justificaria seu estudo.
E, no entanto, mesmo com tantos interesses, Ernest Jones é bastante desconhecido
entre nós... como compreendê-lo?

I.1 Por que estudar Ernest Jones? - O “tesouro perdido”

O interesse por Ernest Jones, vida e obra, nasce de minha trajetória pessoal,
profissional e acadêmica. Cabe, portanto, contá-la, brevemente.
Coordenei, por mais de 10 anos, o Projeto Oldnet (www.oldnet.com.br) na
organização social Associação Cidade Escola Aprendiz, em São Paulo.
O Projeto Oldnet propõe o encontro intergeracional entre adolescentes e idosos
através do ensino-aprendizagem de tecnologia. Um dos projetos mais antigos e bem sucedidos
do Aprendiz, o Oldnet nasceu a partir da constatação de que os idosos são um grupo
especialmente isolado da convivência comunitária - e que praticamente todos os seus vínculos
se resumem à família ou a outros idosos, em nichos fechados. Os adolescentes, por sua vez,
embora circulem mais pelas diferentes formas de convívio, raramente têm contato com os
mais velhos. Duas gerações tão diferentes raramente se encontram.
No Oldnet eles podem se encontrar, e os frutos do trabalho foram – e são -
imensos. Pude testemunhar, ao longo dos anos, o efeito transformador desse encontro para
ambos os lados, e sistematizei esse trabalho em minha dissertação de mestrado ―Adolescentes
e idosos: uma leitura psicanalítica do encontro intergeracional no Oldnet‖ (PUC-SP, 2012)
defendida em outubro de 2012, sob orientação do Prof. Dr. Gilberto Safra. Posteriormente a
dissertação foi publicada como livro, pela Editora Escuta, sob o título ―O fim e o começo:
uma leitura psicanalítica do encontro intergeracional entre adolescentes e idosos‖ 3
Foi durante meu trabalho de pesquisa sobre gerações que descobri Ernest Jones.
Em um texto que eu vinha estudando havia uma nota de rodapé com uma indicação abreviada
e em alemão de um artigo de Jones acerca da relação entre avós e netos - e não havia mais
nenhuma informação adicional. Depois de procurar com muito afinco, recorri ao Prof.
Gilberto, que me indicou procurar na biblioteca da Sociedade Brasileira de Psicanálise.
Na biblioteca não havia muitos materiais referentes a Jones indexados, mas eu não
pretendia desistir, e pedi para que as bibliotecárias me ajudassem. Eu precisava muitíssimo de

3
MARQUES, Izabel de Madureira. O fim e o começo – Uma leitura psicanalítica do encontro intergeracional
entre adolescentes e idosos. São Paulo: Editora Escuta, 2016.
12

seu artigo sobre o avôs e os netos... Uma das funcionárias então me trouxe uma pilha de
livros; percorri as páginas daqueles livros com a emoção de uma arqueóloga que encontra um
tesouro perdido! Eram livros antigos, alguns um pouco amarelados, e com um conteúdo de
riqueza inimaginável. Vi Jones e o folclore, Jones e a religião, Jones e a sexualidade
feminina... e Jones e a relação entre avós e netos! Havia encontrado. Realmente foi
emocionante para mim... depois de xerocá-lo e levá-lo para minha casa como um tesouro
recém-descoberto (e é mesmo), pude ter o prazer de ler Jones.
Posso afirmar, sem dúvidas, que ali, naquele pequeno artigo, estava praticamente
a viga-mestra teórica de minha dissertação. O que eu já testemunhava na prática – na
observação e nos encontros com idosos e adolescentes – estava ali, belamente descrito, na
teoria de Jones. Era o respaldo conceitual de que eu precisava.
Meu interesse em Ernest Jones nasceu, portanto, de um sentimento de gratidão.
Eu e o Prof. Gilberto estávamos em busca de bibliografia para a minha dissertação – e na
realidade a dificuldade de encontrá-la se tornou a melhor qualidade e ao mesmo tempo a
principal dificuldade do trabalho. Por um lado, o fato de existir pouquíssima bibliografia em
Psicanálise sobre a relação entre avós e netos, ou paralelos entre o envelhecimento e a
adolescência, tornou meu trabalho bastante inédito; por outro, dificultava o respaldo teórico
da dissertação, e eu corria o risco de me tornar excessivamente ―solitária‖.
Foram na realidade dois pequenos escritos de Jones (―The phantasy of the reversal
of generations‖ e ―The significance of the grandfather for the fate of the individual‖, ambos
de 1913) que serviram como alicerce teórico-conceitual de meu trabalho (que também contou
com a sustentação de Abraham, Winnicott e Ferenczi – além do mestre Freud, claro). Pedi
então que se fizesse a indexação daqueles artigos de Jones à equipe da biblioteca 4 e toda esta
―saga‖ me deu mostras do quanto acessar Jones pode ser um desafio.
E foram aquelas páginas antigas que me deram os conceitos e a linha de
pensamento para estruturar a minha dissertação. Encontrei, em textos de 1913, uma sintonia
entre o que eu pensava e um autor remoto e um tanto quanto misterioso, nós dois separados
por tantos anos e muitos quilômetros.
Em julho de 2013 estive em Londres e, tendo já decidido o assunto da minha tese
de doutorado, visitei o Institute of Psychoanalysis Library. Pedi ao Bibliotecário-chefe que

4
Os livros estavam indexados, mas não com a discriminação em artigos/capítulos (que são aliás a maioria da sua
obra); o desafio de busca em Jones é ainda maior porque, como eu descobriria mais tarde, alguns de seus livros
são compilações de artigos publicados anteriormente em revistas e estes não guardam relação entre si, e ainda:
em cada edição de um livro há uma lista de artigos um pouco diversa da anterior - há acréscimos, mudanças,
revisões-: Jones dificulta bastante o trabalho do pesquisador. A bibliotecária me ensinaria recentemente que a
isto se chama ―indexação analítica‖.
13

me ajudasse na tarefa de encontrar obras do psicanalista Ernest Jones publicadas na Inglaterra.


Enquanto trabalhava na pesquisa, fiquei curiosa para perguntar a ele como Ernest Jones era
visto no país, quão importante era para eles, o quão bem conhecido era: minha hipótese, que
no fim se confirmou, era que Jones tem mais visibilidade na Inglaterra do que no Brasil. Ele
me respondeu simplesmente apontando para um retrato de grandes psicanalistas na entrada da
Biblioteca: Ernest Jones era um deles. Ele acrescentou ainda que Jones era de grande
importância para a história da psicanálise no mundo de língua inglesa e que a pesquisa sobre
ele era "mais do que justificada." Essa é, portanto, minha motivação pessoal para estudar
Jones na presente tese de doutorado: a gratidão por ele e o prazer da descoberta de um
―tesouro perdido‖.
Além da motivação pessoal – que, acredito, é o fio condutor de todo trabalho
árduo em pesquisa – a justificativa da presente tese se revela facilmente, pela novidade de um
estudo sobre Jones no Brasil – que, embora não pretenda esgotá-lo, almeja trazê-lo dos baús
às prateleiras, do pó à luz do dia, da invisibilidade a um princípio de visibilidade.

I.2 Sobre o método

Apenas algumas décadas após sua morte pouco se fala sobre Ernest Jones5 no
meio psicanalítico. Geralmente seu nome é lembrado em textos sobre história da psicanálise,
e muito associado à biografia de Freud ou, no máximo, ao seu papel fundamental como
presidente da IPA - ou então como um representante da psicanálise na Inglaterra. Observei
que pouco ou nada se sabe – ou se estuda, se comenta- sobre quem foi esse homem, esse
clínico, algumas de suas ideias-contribuições para a psicanálise (teoria e prática), suas
relações pessoais com Freud e colegas, afetos e desafetos, posicionamentos pessoais,
polêmicas.6
Tal panorama é no mínimo curioso, afinal Jones tem feitos absolutamente
notáveis em sua vida pessoal e profissional, e contribuições de importância na história da
Psicanálise. Por que, afinal, poucos conhecem Ernest Jones?

5
Ao menos, como se fala de outros psicanalistas da primeira geração.
6
É difícil encontrar Jones até em uma busca simples no Google. Os termos ―Ernest Jones‖ nos levam a
instrutores de golfe, joalherias, empresários. É curioso: essa mesma dificuldade que passei como pesquisadora
foi apontada em uma resenha escrita para o The Sunday Times (Seymour, M. ―Doctor in trouble‖ [Resenha de
―Freud‘s Wizard, de Brenda Maddox] The Sunday Times, 31.12.2006), que abre seu texto comentando esses
―desencontros‖ na internet e como essa falta de reconhecimento é estranha, visto tantas conquistas do galês
(concordo inteiramente com a autora). Maddox (2006) também menciona o fato de que Jones é obscurecido por
ter um nome muito comum – o mesmo, por exemplo, de uma importante joalheria britânica.
14

Nas faculdades de Psicologia das duas principais universidades brasileiras (USP e


PUC) não há sequer uma dissertação de mestrado ou tese de doutorado sobre Jones, que
contenha seu nome no título. Pesquisas em bancos de dados de artigos científicos apontam
alguns artigos com ―Ernest Jones‖ entre as palavras chave, mas em pequeno número.7 De sua
extensa obra, há poucas traduzidas para o português 8e publicadas no Brasil, e ainda assim os
livros estão fora de catálogo - e só podem ser adquiridos em sebos.
Das obras (em português ou não) disponíveis nas bibliotecas, chama a atenção um
fato curioso: ao menos da USP, seus livros estão ―espalhados‖ em diferentes faculdades, e não
apenas na de Psicologia. Pude encontrar obras de Jones nas bibliotecas das faculdades de
Letras, Medicina, Psicologia, Educação e até do Museu de Arqueologia (USP-SP). Por que
será que ocorre essa ―pulverização‖? (Serão seus escritos de tão difícil categorização?)
Outro ponto que merece ser citado aqui é a reação de colegas e amigos (mesmo
aqueles do meio psicanalítico) quando, curiosos sobre meu tema no Doutorado, eu respondia
com o nome de Jones. ―Ernest Jones? Mas quem é ele?‖ ―Exatamente! É isso que gostaria de
apresentar em meu trabalho.‖ – costumava responder. Outras vezes os colegas rapidamente o
identificavam como: ―ah, o biógrafo de Freud!‖
O processo metodológico neste trabalho está intimamente relacionado ao seu
conteúdo e à próprio definição de seu objetivo geral. Convém, portanto, descrever o processo
e as etapas que percorri para chegar ao foco último do trabalho, revelando as descobertas de
cada fase.

7
Apenas como ilustração, em consulta feita em 27.11.17 obtive os seguintes resultados, em português: SCielo:
1; BIREME: 4; Periódicos CAPES: 4. Cruzando-se os dados entre esses bancos, temos 8 resultados, sendo que a
maioria dos textos trabalha a questão do mesmo aspecto: a sexualidade feminina. (Um dos artigos, curiosamente,
é sobre Urbanismo (Cidades) faz uso de um texto antropológico de Jones). No banco da biblioteca da Sociedade
Brasileira de Psicanálise de São Paulo temos uma boa quantidade de material de autoria de Jones, hoje indexado
analiticamente (isto é, não apenas os livros, mas também artigos que os compõem); entre os artigos há somente
dois de autoria de Jones traduzidos para o português (consultar ―Referências‖). Quanto à produção brasileira,
pude encontrar nessa biblioteca apenas 5 artigos que incluíram o psicanalista galês em suas reflexões.
8
De sua autoria, foram publicadas no Brasil apenas as seguintes obras:
JONES, E. Vida e obra de Sigmund Freud. Vol I e II. Rio de Janeiro, Zahar, 1970. (Também publicado pela Ed.
Imago)
Idem. Hamlet e o complexo de Édipo. Rio de Janeiro, Zahar, 1970.
JONES, E. Psicanálise da religião cristã. Rio de Janeiro: Guanabara, 1934. 227 p.
Idem. Da psico-análise. São Paulo: Nacional, 1930.
Também há outra edição deste livro em português, mas editada em Portugal:
Idem. Que é a Psicanálise? Lisboa: Editora Dom Quixote, 1977 (tradução do original ―What is psychoanalysis?‖
de 1949).
Além destas, também foi publicada uma entrevista e apenas dois de seus numerosos artigos foram traduzidos
para o português:
EVANS, R. Entrevistas com Carl G. Jung e as reações de Ernest Jones. Rio de Janeiro: Eldorado, s.d., 199 p.
JONES, E. O desenvolvimento inicial da sexualidade feminina. Revista de Psicanálise, v. 3, n. 3, p. 481-94,
Porto Alegre: SPPA, 1996.
Idem. Traços do caráter anal-erótico. Trad. Monica Seincman. In: BERLINCK, M. Obsessiva neurose. São
Paulo: Escuta, 2005.
15

Como Ernest Jones era um autor um tanto desconhecido, inclusive por mim,
inicialmente o método do presente trabalho se deu em duas etapas.
Na primeira, tratou-se de conhecer Ernest Jones, e para tal fiz um trabalho de
leitura e pesquisa tanto de obras de sua autoria (inicialmente sem a pretensão de categorizá-lo)
como de sua biografia e de textos de autores que o estudaram.9 A leitura do material se deu
por associação livre – por ordem de interesse, por menções do próprio Jones sobre outros
trabalhos seus (e que assim demandavam outras leituras); por trabalhos de Jones reconhecidos
como relevantes, notáveis ou polêmicos, etc.; por artigos, resenhas que contivessem ―Ernest
Jones‖ nas palavras chave. (Deve-se salientar, também, que obviamente nem todos os
trabalhos estudados/consultados sobre o autor ou de sua autoria fizeram parte da tese.) Em
especial cito a notável obra de Lilla Veszy-Wagner (1968), que em seu trabalho sobre Jones
apontou vários textos relevantes da obra do galês e fez interessantes comentários sobre eles –
comentários de que faremos amplo uso em nossa discussão e que me inspiraram não apenas
na seleção dos textos como em traçar a linha de coerência da tese.10
Na realidade, a leitura inicial ―espontânea‖ acabou por mimetizar o próprio estilo
de produção de Jones: uma escrita constante, mas descontínua; isto é, seus trabalhos, escritos
em profusão, não pareciam trazer um corpo teórico coeso e organizado, e não pude perceber
uma sequência coerente nem no conteúdo nem na forma. Tal característica de seus trabalhos
suscitou questionamentos (e desafios) profundos, o que acabou por culminar na escolha da
próxima etapa de pesquisa e produção. O segundo passo metodológico se tornou claro à
medida em que, já tendo entrado em contato com seus trabalhos e com leituras destes autores
que o estudaram – e portanto tendo sido de certa forma apresentada a ele (direta e
indiretamente) -, levantei as seguintes questões e pontos de atenção:

- Jones produziu muito, em quantidade e em qualidade. Por que sua obra é um tanto
desconhecida?

- A obra de Jones não apresenta um todo sistematizado, e estudá-la traz inúmeras


dificuldades. (A saber: falta de ordenação cronológica de conceitos, amplitude de áreas de

9
Felizmente percebi que se no Brasil há poucos estudos sobre Jones, a situação é melhor no âmbito
internacional, e foi gratificante encontrar autores com o mesmo interesse que eu com quem aprender e dialogar.
10
Tal texto tem um interesse especial porque, além de oferecer uma apresentação e análise da personalidade de
Jones e comentários sobre várias de suas obras (por vezes relacionando a primeira com o segundo), dá ao leitor
um testemunho de alguém que conviveu com Jones rotineiramente (a autora era sua assistente de pesquisa), o
que confere ao escrito um cunho intimista e pessoal.
16

interesse; variedade de formatos de produção – artigos, livros, cartas, relatórios, obituários,


resenhas, biografias, etc. -; ecletismo de temas abordados, inclusive fora do campo da
Psicanálise – trabalhos sobre Antropologia, Folclore, Neurologia, etc.; dificuldade de acesso
aos materiais, uma vez que há pouca produção de Jones editada no Brasil, falta de trabalhos
acadêmicos sobre o tema, etc.)

- À medida em que estudava sobre o homem Jones (através de trabalhos de contemporâneos


seus, de estudiosos e biógrafos de Jones e de sua própria autobiografia, incompleta), tornava-
se mais e mais claro que sua personalidade continha traços da mesma complexidade de sua
obra, isto é, trata-se de um personagem polêmico, que ao mesmo tempo em que apresentava
profundas virtudes e foi o autor de gestos grandiosos, também cometeu deslizes e envolveu-se
em polêmicas de várias ordens. Parecia trazer traços de passionalidade e ceticismo, de
diplomacia mas por vezes não tinha tato algum, de generosidade mas autoritarismo, um
trabalhador incansável mas que não resumia sua vida ao trabalho, praticando por exemplo a
patinação artística com a frequência e o esmero de um atleta. Como isto é possível?

-A questão da invisibilidade tem muita sinergia com o tema da importância, da relevância


deste personagem. Por vezes procurei ―sondar‖ qual a importância de Ernest Jones na
Psicanálise – seja a importância do homem (seus gestos notáveis, como por exemplo o de
literalmente salvar Freud e muitos outros das garras de Hitler), seja a importância do
psicanalista (clínico e teórico, de grande profusão tanto de pacientes como de escritos); qual o
reconhecimento por parte de seus contemporâneos ou de contemporâneos nossos. O que me
foi revelado é que também aí havia um nó, uma questão-chave permeada de conflito e
contradição, pares de opostos: Jones parecia oscilar entre a importância e a desimportância,
entre ter sido crucial na História da Psicanálise e ser um ilustre desconhecido, relevante e ao
mesmo tempo escondido, à sombra de Freud.

-Tais dificuldades e descobertas da primeira etapa metodológica e a árdua tarefa de delimitar


o foco da pesquisa diante de uma infinidade de possibilidades (não facilmente ‗organizáveis‘)
acabou por desvelar em si a pergunta-chave da tese: Quem é esse homem/personagem, tão
desconhecido e polêmico, de obra tão abundante, eclética, inacessível e dispersa, que ao
mesmo tempo em que é pouco conhecido em nosso meio mas tem seu nome tão marcado na
História da Psicanálise? E mais: estaria na sua própria obra e personalidade a chave para a
compreensão de sua invisibilidade?
17

Minha busca inicial, a de simplesmente conhecer Jones – de quem sabia tão


pouco, de forma geral – passou a ser investigar justamente a invisibilidade de Jones, isto é,
quis conhecer Jones instigada pela sua inacessibilidade misteriosa, atraída pelo desconhecido,
escondido... e ao conhecê-lo ficou claro que o tema de meu trabalho era justamente investigar
as facetas de sua invisibilidade. Por um lado havia a dificuldade de encontrar seus textos e,
uma vez encontrando os possíveis (que não são a totalidade de sua obra), a impossibilidade de
ordená-los de forma coerente, de formar um todo coerente e contínuo; de outro, ao investigar
a sua personalidade, a dificuldade de delineá-la, tamanhas as contradições que a permeiam - e
ainda, ao enveredar pelo relacionamento Jones-Freud, me deparar com uma relação cheia de
meandros e facetas, oscilações, quase intangível.
Um olhar mais atento sobre alguns dos temas que interessavam a Jones – como
percebia pelas leituras do galês e aprendia com as indicações de outros autores, além de cartas
(um material precioso para o pesquisador) -, fui muito aos poucos me dando conta que era
possível traçar algum diálogo entre estes temas, e mais: que tais questões mantinham uma
relação com o tema da invisibilidade, importância, desimportância, originalidade,
criatividade, autoria. Depois de muitas e muitas leituras – e a descoberta de autores
fundamentais, que citarei em seguida – o que se colocou em primeiro plano foi que a minha
dificuldade tinha coerência com seus dados biográficos, alguns de seus textos e textos de
outros autores que analisaram Jones. A própria dificuldade da pesquisa revelou o seu
objetivo!
O objetivo da presente pesquisa é, portanto, investigar a questão da invisibilidade
de Ernest Jones - e dos temas ―em pares‖ correlatos: importância/desimportância,
visibilidade/invisibilidade, pai-filho, imitação-originalidade, etc - a partir de sua biografia, da
seleção de textos específicos de sua extensa obra, cartas trocadas com Freud e – nossa
sustentação teórica – autores que estudaram Jones antes de mim.
Como dito, entre os estudiosos de Jones, especialmente a obra de Veszy-Wagner
(1968) teve um papel em minha seleção dos escritos. Sentia em seu texto uma ressonância
com traços que muito aos poucos fui observando (por exemplo, a questão da modéstia em
Jones, ou a dispersão de sua obra, ou certa repetição do tema do pai) – além de aprender
outros aspectos que eu ainda não conhecia -, e assim, auxiliada e inspirada pela autora,
destaquei como temas de interesse em Jones a questão da genialidade, da religião, do embate
edípico entre filho e pai (e avô), da relação entre sucesso e fracasso (selecionados dentre os
muitos outros temas nos quais Jones se debruçou). Outra autora de importância foi a biógrafa
Brenda Maddox, que com um trabalho de cuidadosa precisão histórica me trouxe elementos
18

mais do que suficientes para conhecer Jones em profundidade, e trago muito de seu trabalho
aqui.
Os textos de Jones selecionados são:

JONES, E. The phantasy of the reversal of generations. 1913. In: ______. Papers
on psycho-analysis. London: Bailliére, Tindall & Cox, 1938a, p. 525-530.

_____. The significance of the grandfather for the fate of the individual. 1913. In:
_____. Papers on psycho-analysis. London: Bailliére, Tindall & Cox, 1938b, p.
519-524.

_____. God complex: the belief that one is God, and the resulting character traits.
1913. In: JONES, E. Psycho-myth, psycho-history: essays in applied
psychoanalysis. New York: Hillstone, 1974. 383 p.

_____. The psychology of religion. 1926. In: JONES, E. Psycho-myth, psycho-


history: essays in applied psychoanalysis. New York: Hillstone, 1974. 383 p.11

_____. The inferiority complex of the Welsh. 1929. In: JONES, E. Psycho-myth,
psycho-history: essays in applied psychoanalysis. New York: Hillstone, 1974. 383
p.

_____. The problem of Paul Morphy – A contribution to the psychology of chess.


1930. In: JONES, E. Psycho-myth, psycho-history: essays in applied
psychoanalysis. New York: Hillstone, 1974. 383 p.

_____. Free associations: memories of a psycho-analyst. London: The Hogarth


Press, 1959. 264 p.

11
Uma versão modificada e ampliada desse texto seria republicada anos mais tarde como parte integrante do
livro Psychoanalysis today, N. York, Int. Univ. Press. 1944. Também temos acesso a esse material ampliado em
castelhano (―El Psicoanálisis de Hoy, Buenos Aires: Ed. Paidós, 1952).
Aqui trabalhamos com a versão menor, acima citada, publicada no ―Psycho-myth, psycho-history: essays in
applied psychoanalysis.‖, bem como sua edição em português: (Psicanálise da religião cristã. Rio de Janeiro:
Guanabara, 1934. 227 p.)
19

Como já mencionado, além de textos de Jones farei uso de autores que o


estudaram e/ou o conheceram – psicanalistas e pesquisadores tanto de sua época quanto
contemporâneos nossos. Estudaremos portanto cartas e registros de Freud, Anna Freud,
Ferenczi, Jung, bem como os textos de Brenda Maddox (biógrafa de Jones), Lilla Veszy-
Wagner (amiga e assistente de pesquisa de Jones), Adam Phillips; - especialmente com estes
três últimos estabeleço um intenso diálogo - , e ainda Riccardo Steiner, Claude Girard, Renato
Mezan, entre outros.
Com relação às cartas Jones-Freud, além de buscar as que mais me interessavam
para os temas que estava estudando e de procurar os originais daquelas mencionadas direta ou
indiretamente pela biógrafa Maddox, fiz também questão de acompanhar o trajeto de Adam
Phillips, que escreveu uma resenha crítica sobre a edição da correspondência completa entre
os psicanalistas. (Riccardo Steiner, outro autor de referência, contribuiu com a Introdução a
esta edição). Como veremos, estabeleço um diálogo com Phillips ao longo do trabalho (foi
Phillips que me inspirou no título da tese, inclusive) pelo simples fato de que o autor centra
seu texto justamente em apontar a ―desimportância‖ de Jones (!) – e é evidente que descobrir
esta resenha foi um ―achado‖ fundamental na construção de minhas reflexões então ainda em
estágio inicial.
É interessante notar, a respeito de Phillips, que mesmo buscando as fontes
primárias de suas análises – isto é, as referidas cartas Freud-Jones -, minha leitura sobre Jones
é diversa da do autor. (Confesso que discordar de Phillips foi muitas vezes um fator de
motivação extra na escrita. Afinal, quando discordamos de um pensador – ainda mais quando
se trata de um autor conceituado e experiente, como ele é – nosso desafio de argumentação
aumenta em muitos níveis. Espero ter conseguido meu intuito – mas é o leitor que deve
julgar). Outras vezes caminho ao lado de Phillips e, mesmo tendo ressalvas quanto ao seu
estilo de escrita implacável e um tanto mordaz, também concordei com o autor algumas
vezes.
(Tenho portanto uma dívida de gratidão com este polêmico e agridoce
companheiro de trajeto, bem como com a excelente biógrafa Maddox, a inteligente Veszy-
Wagner - e, evidentemente, o brilhante Jones. Li e estudei tanto estes autores, e de tal modo
mergulhada e interessada, que se houver qualquer ideia na presente tese que se alinhe muito
ao pensamento de algum destes autores, isso se deve ao fato de que os estudei tanto que devo
tê-los incorporado (ou ―introjetado‖, se quisermos utilizar um termo psicanalítico) sem
intenção de fazê-lo; tal como acontece quando assimilamos Freud, ou Winnicott, após muitos
anos de estudo, e depois de devidamente ―canibalizados‖ construímos nossas ideias a partir de
20

suas escolas.12 Sempre faço questão, a propósito, em dar os créditos para pessoas e pensadores
de valor, por esta razão faço abundantes, constantes referências a todos eles no trabalho; e
desde já expresso e reitero meu reconhecimento às reflexões destes autores, que me deram o
suporte sobre o qual teci minhas contribuições – uma destas contribuições foi tê-los feito
conversar entre si, em torno de Jones!).13
Um último comentário aqui, sobre uma dificuldade no processo. Um dos
primeiros estudos sobre Jones com que entrei em contato – já indicado no primeiro encontro
com meu orientador – foi a obra de Claude Girard (1972). Girard escreveu um livro
volumoso, de letras miúdas e coladas umas às outras, intitulado simplesmente, ―Ernest Jones:
sua vida, sua obra‖. Como se trata de uma tese em Psicanálise, sinto-me à vontade para trazer
uma reação mais subjetiva aqui: minha resposta imediata, ao manusear o livro pela primeira
vez, foi de um profundo desestímulo. Além do fato de o pesado exemplar estar no belo idioma
francês (com o qual, admito, tenho dificuldade), o que me ocorreu é que não haveria nada de
novo, de meu, de fresco, que pudesse ser feito, produzido ou pensado sobre este psicanalista
galês – uma vez que Girard já esgotou toda sua vida e obra em infindáveis linhas
intimidadoras. Tentei no início começar do começo, linha a linha, mas minha leitura avançava
a passos de tartaruga e com desânimo crescente. Decidi, então, interromper este ciclo
improdutivo e retomar meu entusiasmo inicial, simplesmente deixando Girard de lado,
intencionalmente, para que eu mesma estudasse Jones e elaborasse minhas reflexões sem seu
guia imponente ―Vida e obra‖. Vez ou outra, em meio a minhas (outras) leituras, a
curiosidade me fazia passar os olhos em um ou outro capítulo, talvez enxergar um trecho ou
dois que me serviam, mas se a onda de desânimo ameaçava voltar, rapidamente tratava de
retornar aos meus estudos não-girardianos. Assim, propositalmente deixei Girard como um
peso de papel (literalmente) em minha mesa de trabalho e decidi me aproximar dele

12
Young-Bruehl (1998), citada por Griffin (2009, p. 1170), diz que ao escrever uma biografia ela se torna
―mentalmente grávida‖ do biografado. O termo é interessante, e parece contemplar não só a escrita de uma
biografia, mas toda atividade de pesquisa e estudo, de modo geral.
A propósito, foram tantos estudos e consultas que peço a ajuda do leitor caso localize a falta ou engano de
alguma referência, de qualquer autor, no presente trabalho, para que eu possa incluí-la ou corrigí-la. O processo
de assimilação de tudo que aprendi em quatro anos de estudo intenso foi tão denso, que, por mais
―obsessivamente‖ cuidadoso que tenha sido meu levantamento de referências bibliográficas, admito, com toda
humildade, não estar imune – como ninguém está - de erros, falhas, lapsos, esquecimentos.
13
Ao escrevê-lo me vem a imagem de uma conversa em volta da fogueira; Jones sendo o fogo que une os
amigos à sua volta: entre eles estou eu (que fiz o convite para o luau e apresento os convidados um ao outro), ao
meu lado estão Maddox, Veszy-Wagner, Phillips. Todos conversam entre si e outros convidados vão aparecendo
e saindo ao longo da festa. (E o fogo de Jones, é preciso lembrar, continuará ardendo mesmo depois que o festivo
encontro - essa tese -, terminar).
21

novamente com a tese praticamente finalizada 14. Para minha grata surpresa, quando este dia
chegou não só pude ler algumas passagens interessantes, como percebi que nossos trabalhos
tem naturezas diferentes e ambos de nós – Girard e eu – podemos coexistir, cada um com sua
abordagem sobre Jones. Certamente existirão pontos de encontro, mas o sabor de ler algo
assemelhado ao seu próprio pensamento depois de ter feito sua própria trajetória faz uma
grande diferença, e penso portanto que essa ―decisão metodológica‖ (puramente motivada por
―evitação de emoções de desprazer‖) foi sábia e produtiva. Este é o motivo porque não estudei
Girard – ou, para ser mais exata, porque o estudei pouco, especialmente ao final do trabalho.
Não tenho aqui a pretensão de desvendar Jones em todos os suas múltiplos
aspectos (de personalidade ou de obra), de detalhar sua produção científica, delinear sua
concepção completa de psicanálise ou de apresentar a versão definitiva de sua obra ou
história, mas tão somente de trazer à luz facetas deste personagem notável para compreender
os temas da invisibilidade, importância, desimportância, com auxílio de outros autores – e do
próprio Jones.
É preciso reiterar (mais uma vez) que a gama de interesse de Jones era tão vasta e
sua produção tão profícua que há, seguramente, material suficiente para a produção de várias
teses. Meu intuito aqui não foi, portanto, o esgotar e classificar sua contribuição teórica – esse
seria o objetivo de uma vida inteira dedicada a este propósito. Antes disso, o desafio foi o de
delimitar, precisar, delinear o objeto da tese, de modo a não me perder na imensidão de
possibilidades e conseguir tecer considerações sobre um material selecionado,
propositalmente limitado, escolhido a dedo.
Não duvido se outro pesquisador, dispondo do mesmíssimo material, optasse por
elencar características ―jonesianas‖ diferentes das aqui descritas – e, como estudiosos de
Psicanálise, bem sabemos que esse fenômeno é conhecido e faz parte da subjetividade
humana. (São muitos ―Jones‖ possíveis, e o esforço de qualquer trabalho de tese é justamente
o de delimitar o escopo de interesse.)
Um pesquisador mais teórico, interessado sobretudo nos conceitos psicanalíticos,
talvez fundasse todo o seu trabalho na escandalosa divergência entre Jones e Freud sobre a
sexualidade feminina e explorasse todos os aspectos e subaspectos do conceito de Afanise (ou
de Racionalização, ou de Simbolismo, outras importantes contribuições teóricas de Jones).
Outro pesquisador talvez se encantasse pelo embate Jones-Jung e teceria toda uma tese

14
De maneira nenhuma quero desmerecer o trabalho de Girard aqui. Se estou me fazendo entender, não se trata
de desvalorização de sua obra, mas exatamente do contrário.
22

comparando os dois homens, tanto em termos de concepção teórica como em diferenças de


personalidade.
A relação entre Ernest Jones, Anna Freud e Melanie Klein - um tema em si
relevante, interligado à relação não muito fácil entre Jones e Freud e à posição de Jones no
debate/embate entre as duas analistas - renderia outra tese inteira. A relação de Jones com o
judaísmo, ou as múltiplas facetas de sua personalidade; ou seu conservadorismo e sua
inovação caminhando lado a lado – para cada tema, uma tese diferente.
E ainda: um pesquisador-psicanalista muito ortodoxo talvez julgasse Jones tão
condenável por seus escândalos sexuais ou supostas falhas de caráter que talvez interrompesse
a tese, decepcionado e chocado, e mudaria de tema!
Se o presente trabalho me auxiliar a trazer luz ao que julgo ser um personagem
excepcional – ou se, pelo menos, o leitor por vezes exclamar em pensamento ―Que figura
interessante esse Jones!‖ – certamente terei cumprido meus objetivos.
23

II QUEM FOI ERNEST JONES? – UMA BREVE BIOGRAFIA15

Alfred Ernest Jones nasceu no País de Gales em 1º de janeiro de 1879 em uma


cidade industrial originalmente chamada Rhosfelyn, e em 1852 rebatizada como Gower Road,
perto da cidade de Swansea.
Com o nome ―Gower Road‖ a cidade era frequentemente confundida com uma
rua da cidade vizinha, o que aborrecia o pai de Ernest, Thomas Jones, agrimensor de minas de
carvão. Assim, Thomas solicitou às autoridades uma mudança de nome – e o conseguiu. Após
a sua intervenção, em 1886, a cidade passou a se chamar ―Gowerton‖16 (um nome híbrido,
anglicizado).
O pai e a mãe de Jones – Thomas Jones e Mary Ann Lewis, ambos galeses - se
conheceram na igreja batista que frequentavam. O pai Thomas subiu na carreira rapidamente,
e logo se tornaria secretário geral de uma grande companhia de aço e o casal vivia em boas
condições, não só financeiras mas também culturais.

15
Este capítulo não teria sido possível sem o primoroso trabalho de Brenda Maddox (2006), biógrafa de Jones, a
quem expresso meus sinceros agradecimentos e meu reconhecimento. Além de sintetizar aqui sua extensa obra
(de quase 300 páginas), fiz uso também - obviamente – de passagens da própria autobiografia de Jones, ―Free
Associations‖ (1959), da correspondência entre Jones e Freud (1993) – muitas delas mencionadas pela própria
biógrafa - entre outros documentos específicos. Embora o capítulo como um todo seja baseado no trabalho de
Maddox, coloquei a indicação das páginas do livro dessa autora naquelas passagens que julgo mais revelantes ou
que merecem consulta. (Caso colocasse em cada parágrafo o texto ficaria excessivamente marcado com notas,
prejudicando a leitura). De qualquer modo o relato da história de Jones aqui exposto acompanha o trajeto da obra
de Maddox, que teve acesso – como eu não tive - a muitos documentos originais (fonte primária. Exemplos:
certidões de Jones, registros escolares, relatórios de hospitais onde Jones trabalhou, etc etc.) Sempre que a
autora, porém, fez referência a textos acessíveis do Brasil, procurei o original dos referidos documentos – é o
caso por exemplo das cartas Jones-Freud, que a autora cita em várias passagens (e que aqui também citamos,
mas a partir do original). Referências a dados biográficos de Jones ao longo da tese da mesma forma seguem a
obra de Maddox (2006) e de Jones (1959). (Embora obviamente muitas passagens biográficas se repitam em
Maddox e na autobiografia de Jones, demos preferência às informações de Maddox por serem baseadas em
documentação histórica e percorrerem todos os anos de vida do galês: a autobiografia de Jones é incompleta e
termina quando o autor está relatando fatos de 1918. Utilizaremos a autobiografia como material de análise em
seus aspectos mais subjetivos; os factuais ficam por conta de Maddox, além de eventuais análises da autora que
julgarmos pertinentes).
Um último comentário: salta aos olhos o fato de que Maddox, com uma pesquisa tão cuidadosa, não tenha
utilizado como referência bibliográfica o trabalho de Lilla Veszy-Wagner, que foi assistente de pesquisa de
Jones - e portanto teve o privilégio de não apenas ter muita familiaridade com sua obra (o que pode nos oferecer
um bom panorama e um norte) mas também com sua personalidade e história de vida. No entanto, ainda que
Maddox não tenha consultado Veszy-Wagner, as análises de ambas autoras tem muita sinergia – bem como com
muitas das minhas – o que demonstra que certos traços de Jones (vida e obra) de fato ―saltam aos olhos‖ para
aqueles que o estudam.
16
Em sua autobiografia Jones conta esta passagem e acrescenta que essa conversão que o pai fez da sua cidade
para um nome híbrido (anglicizado) teve a marca de um ressentimento infantil em relação à fantasia do pai
profanando a mãe. (Jones, 1959, p. 12) Maddox o cita na p. 205.
24

Embora ambos fossem galeses autênticos, a mãe de Jones era mais ―celta‖ que o
pai, que preferiu, nas palavras do próprio Ernest, ―adotar uma visão inglesa da vida‖ 17.
Assim como o pai, a cidade em que viviam também trazia uma dualidade, já que
nunca havia sido absorvida por completo por nenhum dos distritos vizinhos. Gowerton
aparecia no mapa como parte do distrito de Glamorgan, mas ao mesmo tempo pertencia à
diocese do distrito de Caermarthen. Anos depois Ernest ganharia uma bolsa de estudos de um
distrito, e depois de outro; e o seu próprio nascimento estaria registrado em ambos.
Ernest foi o primeiro e único filho (homem) do casal – tinha duas irmãs mais
novas: Elizabeth (a do meio) e Sybil, a caçula. Sua mãe queria dar a ele um nome celta, mas
seu pai preferia um nome que fizesse referência à Inglaterra. Assim, escolheu para ele o nome
do filho da Rainha Vitória, segundo na linha do trono: Alfred Ernest. O primeiro nome
―Alfred‖, no entanto, nunca teria sido usado para chamá-lo.
Ernest não foi batizado. Quando tinha nove anos, seu pai Thomas mudou de igreja
e passou a frequentar a Igreja inglesa (Gowerton tinha então sua própria igreja anglicana), e
essa mudança permitiu que Ernest ―escapasse‖ do batismo e da crisma: na escola justificava
sua ausência nas aulas preparatórias de religião anglicana afirmando que seus pais eram
batistas e não concordariam. Por essa manobra, Ernest nunca participaria de nenhuma
cerimônia religiosa – e sempre se orgulharia disso.18
A mãe de Jones, Mary Ann, era mais seguidora da religião do que o pai e gostaria
que Ernest fosse um religioso, mas Jones rejeitou a ideia e ainda pequeno, ao acompanhar a
atuação do médico da família no parto de sua irmã, decidiu ser médico também. Segundo
Jones sua mãe valorizava o status social, e por isso não achou tão ruim a opção profissional
do filho: ―Quando rejeitei, e de forma bastante decisiva, sua sugestão de que eu entrasse na
Igreja e anunciei minha intenção de me tornar um médico, ela refletiu que eram as duas
pessoas que tinham entrada em todos os lugares.‖ 19

17
―Meus pais eram ambos de descendência galesa pura. Minha mãe era totalmente galesa, mas meu pai conhecia
pouco da língua e adotou uma visão inglesa da vida‖.
―My parents were both of pure Welsh descent. My mother was in every way Welsh, but my father knew little of
the language and took a decidedly English view of life.‖ (1959, p. 12)
18
―Como resultado de tudo isso, nunca participei de nenhuma cerimônia religiosa ao nascer, na puberdade ou no
casamento e com certeza não haverá nenhuma cerimônia quando eu morrer.‖ ―As a result of all this I have never
passed through any religious ceremony, at birth, puberty, or marriage, and it is certain there will not be one when
I die.‖ (Jones, 1959, p. 24)
19
―When I rejected, and quite decisively, her suggestion that I enter the Church and announced my intention of
becoming a doctor, she reflected that those were the two people who had entrée everywhere.‖ (Jones, 1959, p.
27)
25

Naquela época, aprender celta nas escolas era contra indicado e era comum
associar a linguagem celta com a ―imoralidade galesa‖. O inglês, por outro lado, era a língua
do comércio – e poderia abrir portas, razão pelo qual era a mais prestigiada.20
Jones tinha baixa estatura (teria 1,62m, já adulto) – e tudo indica que sofreria na
escola por conta disso -, mas tinha uma língua afiada.
Como conta em sua autobiografia (1959), Ernest teve suas primeiras relações
sexuais ainda na infância, com 6 ou 7 anos – o que, segundo afirma, era prática comum na
região em que vivia. Depois dessa fase só voltaria a ter relações novamente com 24 anos de
idade.
Aos 9 anos foi estudar em uma escola em Swansea, a cidade vizinha, e ia de trem.
Almoçava duas vezes por semana na casa das avós – e era muito ligado ao seu avô materno
(costumava ajuda-lo, bêbado, a voltar para casa). Era considerado um aluno brilhante, embora
falasse demais. Praticava tênis e patinação, e estudou italiano sozinho aos 10 anos de idade.
Também sozinho aprendeu patinação artística – e costumava praticar no rio Towy congelado.
Aos 13 anos ganhou uma bolsa de estudos em uma renomada escola pública
galesa, o que lhe deu independência financeira. A escola, uma das melhores da Grã-Bretanha,
era voltada a aprovar estudantes na Oxford e em Cambridge. Celta não era ensinado e a
escola, rígida, estava totalmente voltada para a Inglaterra. A todo momento os professores,
ingleses, faziam questão de lembrar os galeses (a maioria dos alunos), de sua ―inferioridade
de nascença‖.21
Logo chegou o momento de escolher uma profissão. Ernest retomou o sonho de
infância: ser médico, mas a escola tinha outros planos para ele: como era muito bom em
matemática, gostaria que o jovem aluno continuasse estudando por mais um tempo para tentar
uma bolsa em Cambridge. Mas não era o que Ernest queria. Contrariou a expectativa da
escola e passou entre os primeiros lugares em Medicina em Cardiff, iniciando seus estudos
médicos com apenas 16 anos. (Por essa atitude a escola o acusaria de deslealdade).
Ernest ganharia então mais uma bolsa de estudos. Dos 16 aos 18 anos viveu em
alojamentos de Cardiff. Nessa época – que considerou a mais formativa de sua vida – leu de
Darwin a T. H. Huxley. Simpatizava com os racionalistas, e os admirava sobretudo quando
atacavam a religião. Dedicava-se a muitos estudos para além da Medicina: Socialismo, Ética,

20
Ainda assim, o casal Thomas e Mary Ann contratou uma babá galesa para cuidar de Jones, e esta o ensinou
duas palavras em celta: uma para designar o pênis em estado flácido, e outro, ereto. Jones (1959) e Maddox
(2006)
21
―eles nunca nos deixam esquecer sua opinião sobre nossa inferioridade de nascença.‖ ―they never let us forget
their opinion of our native inferiority‖ (Jones, 1959, p. 45)
26

Teoria da mente. Era ótimo orador e tinha talento para discursar, e, segundo conta em sua
autobiografia, era popular e cheio de amigos, e sua precocidade emocional o permitiu sentir-
se entre iguais - mesmo tendo apenas 16 anos.
Nesta época Ernest integrou um grupo que organizou um protesto contra um
professor e este, segundo Jones, por represália atestou que o aluno galês não frequentava suas
aulas. Este seria o seu primeiro conflito com autoridades – recorrente em sua biografia.
Embora Ernest tivesse outra versão da história – teria faltado alguns dias por estar doente – o
conflito rendeu uma discussão com seu pai e uma suspensão provisória da bolsa de estudos.
(Jones, 1959, p. 52-53)
Jones completou a primeira parte do curso de Medicina aos 19 anos. Para
comemorar, seu o pai o levou para sua primeira viagem ao exterior: visitaram a Suíça e a
Itália.
Com o fim da bolsa de estudos (e portanto novamente dependente
financeiramente de seu pai), Jones então se mudou para Londres para começar sua formação
clínica na University College Hospital (UCH); pretendia arrumar um emprego por lá assim
que se formasse.
Maddox (2006) nos conta que a UCH era parceira da University College London
(UCL), uma universidade que havia sido apelidada como ―Instituto dos sem-Deus‖ (por
aceitar, em suas origens, católicos, judeus e outros não anglicanos). O ambiente altamente
intelectual do bairro, com museus, hospitais e bibliotecas, agradou muito ao estudioso Jones,
que nessa época já se considerava um ateu, estudava Huxley, Darwin (Jones se considerava
um ―Darwinista‖), Filosofia, Sociologia.
Mas nem tudo eram estudos e seriedade. Ernest e o amigo com quem dividia
alojamento se divertiam muito em Londres, cometiam algumas contravenções e algumas
vezes, por brincadeiras e farras, Jones chegou a dormir na cadeia.
Aos 21 anos Jones era residente de um médico reconhecido e decidiu se
especializar em Neurologia: se interessava pela mente e gostaria de entender como se
originavam os impulsos humanos. (Para Jones, era até difícil entender como alguém poderia
querer seguir qualquer outra especialidade médica, já que o cérebro é quem está no comando
do corpo inteiro!) Com apenas 22 anos publicou um artigo na renomada revista médica The
Lancet.
Jones trabalhava muito, tinha ambições e ansiava por assumir responsabilidades.
Todos os dias dedicava várias horas na enfermaria e estudava muito – especialmente
Medicina francesa - incluindo Charcot e hipnotismo. Era um aluno exemplar e tomava notas
27

muito detalhadas de tudo o que seu mentor, o renomado doutor John Rose Bradford, dizia. O
título de seu caderno era ―Fragmentos da vida de John Rose Bradford‖.22
O mesmo Dr. Bradford sugeriria que Jones escrevesse e apresentasse um artigo
para a comunidade científica – o que foi prontamente aceito. Em sua biografia, o galês
descreve a euforia desta primeira conquista comparando o conhecimento médico a um
edifício e esta sua apresentação de artigo a uma pedrinha na construção: ―Embora fosse uma
pedra minúscula, ainda era um acréscimo no edifício do conhecimento médico – e era o
objetivo da minha vida acrescentar algo de permanente neste edifício, por pequeno que
fosse.‖23
Mas ao lado de tantas qualidades e uma força de trabalho incansável Jones trazia
traços de personalidade que não agradavam a todos e muitas vezes acabava ferindo as pessoas
com seu modo insensível de falar. O próprio admite, em sua autobiografia, não ter sido das
pessoas mais fáceis:

Eu não tinha ‗papas na língua‘. E um jovem tão pleno de certezas não vê motivo
para refrear suas palavras quando seus esforços virtuosos encontram oposição. Esse
é o diagnóstico que faço de mim mesmo naqueles anos e não devo criticar alguém
que se expresse em termos mais duros - usando palavras como dogmático, sem tato,
presunçoso ou insensível. 24

O jovem ―difícil‖ mantinha suas conexões com o País de Gales. Integrou e foi
vice-presidente da ―Glamorgan Society‖, uma espécie de ―clube‖ de jovens provincianos
longe de casa e perdidos em Londres, para suporte mútuo; mais tarde este passaria a se
chamar ―The Welsh Club‖ [Clube Galês]:

Só sabe quem já passou por isso: o que significa para homens jovens - e mulheres
jovens, até onde se sabe - deixar seus lares de origem e buscar novos em uma
―colmeia-humana‖ como Londres: rodeado por inúmeros seres humanos, logo se
sente o gosto amargo da solidão que nasce da percepção de que, entre todos esses
milhares, nem um único olho brilha com a sua aproximação, nem uma única mão é
dada para um aperto de mãos em sinal de amizade, nem uma única voz lhe dá
saudações amigáveis…
Esse anseio gera desânimo e solidão; não ter ninguém em quem confiar... hesitante
ou tímido demais para se misturar com estranhos, [o jovem provinciano] torna-se
cansado e desanimado, e, então, com o passar dos dias, por puro desespero, ou ele
procura companhias fatais para o seu bem-estar [―más-companhias‖?] , ou se torna

22
Maddox, 2006, p. 28. Seria esse caderno o primeiro rascunho de biografia de um mestre admirado?
23
―Though a very minute pebble, it was still an addition to the edifice of medical knowledge – the edifice to
which it was my life‘s aim to add something permanent, however little.‖ (Jones, 1959, p. 97)
24
―I had a tongue. And a young man may be so filled with righteousness that he can see no reason for
restraining his tongue when his virtuous endeavours meet with opposition. That is my diagnosis of myself in
those years, and I should not cavil if someone couched it in harsher terms – using such words as opinionated,
tactless, conceited, or inconsiderate.‖ (Jones, 1959, p. 96)
28

um átomo entre milhares - abandonado, despercebido e sem que ninguém pense


nele. A monotonia cruel de tudo isso - o efeito de esmagamento de alma pelo anseio
insatisfeito da companhia de alguém ‗de casa‘ - pode, em certa medida passar, pode
ser amortecido pelo tempo ou pelas circunstâncias, mas nunca desaparece
totalmente, e é para satisfazer esse anseio que sociedades como a Sociedade
Glamorgan é [sic] criada.25

Algum tempo depois Jones voltaria seus interesses para outros assuntos e, como
conta em sua autobiografia, quase ―deixou de ser galês‖ (anos mais tarde, porém, seu interesse
na cultura celta voltaria com força).26
Aos 21 anos de idade, Ernest se formou médico e esta seria uma fase de muito
êxito profissional. Conquistando honra de excelência em seu exame de Bacharelado em
Medicina (MB); também ganharia uma bolsa de estudos e duas medalhas de ouro. Em 1903,
aos 24 anos, trabalharia como médico em tempo integral em um hospital infantil; publicou em
uma nova revista e teve sua primeira experiência em edição. Algum tempo depois estudaria
para ser Doutor em Medicina (MD) e conquistaria uma terceira medalha de ouro.
Apenas um ano após começar a trabalhar no hospital infantil foi demitido por
―faltar demais‖. Em sua autobiografia a versão dos fatos é um pouco diferente: afirma que um
dia faltou para visitar uma namorada que estava sendo operada de apendicite, e com a
permissão de um superior.
Tentou uma vaga em outro hospital, mas não foi aceito. Tentou em outro e
novamente não passou. Tudo indica que todas as suas referências e medalhas não eram
suficientes para compensar sua fama de pessoa difícil – que havia se espalhado entre a
comunidade médica.
A única conquista de Jones nessa fase foi – além de se formar doutor e ganhar
mais uma medalha – se tornar membro do prestigiado Royal College of Physicians,27

25
―Nobody knows but those who have gone through it, what it means for young men – and young women as far
that goes – to leave their native homes and seek new ones in such a human-hive as London is: surrounded by
countless human beings they soon taste the bitterness of that loneliness that is born of the knowledge that among
all these thousands not a single eye brightens at their approach, not a single hand is held out to meet theirs in the
grasp of friendship, or a single voice gives them friendly greetings… This longing breeds heart-sickness and
loneliness; having no one to confide in, too diffident or too shy to mix with strangers, [the young provincial]
becomes weary and discouraged, and then, as the day pass by, out of sheer desperation, he either seeks
companionship that is fatal to his well being, or becomes an atom amongst thousands – uncared for, unthought
of, and unnoticed. The cruel monotony of all this – the soul-crushing effect of the unsatisfied hunger for the
companionship of someone from home – may to some extent pass away, may become deadened by time or
circumstances, but it never passes entirely away, and it is to satisfy this craving that such societies as that of the
Glamorgan Society is [sic] brought into existence.‖ (Maddox, 2006, p. 25)
26
Jones, 1959, p. 73.
27
Anos mais tarde, em 1942, Jones seria eleito, mais do que um membro, um ―fellow‖ da Royal College of
Physicians (Maddox, 2006, p. 249).
29

organização fundada em 1518 por Henry VIII com o objetivo de ―proteger o povo dos
charlatães‖.
Mas isso não pagava as contas no fim do mês: precisava de um emprego. Nessa
que foi uma de suas fases mais difíceis profissionalmente, Jones se candidatou para 13
empregos e foi aceito em apenas quatro, de meio período. Conseguiu se manter acumulando
vários empregos de tempo parcial: treinava estudantes para exames (tinha alunos em grande
quantidade), dava palestras, escrevia circulares para a imprensa médica. Em paralelo,
continuava se candidatando em vagas de hospitais de segunda linha – sem sucesso. O máximo
que conseguiu foi uma tarde por semana em um hospital e tempos depois conseguiu o cargo
de assistente em outro.
Ernest tinha nessa época um grande amigo, chamado Wilfred Trotter, um
cirurgião sete anos mais velho que ele, também simpatizante do pensamento de Darwin e
interessado pelos estudos humanos e sociais. (Anos depois, inclusive, Trotter publicaria um
trabalho sobre o ―instinto gregário‖ ou ―instinto de rebanho‖ e Freud citaria - e elogiaria - o
autor em ―Psicologia das Massas e análise do eu‖, de 1921).
No início de 1905, Trotter convidaria Jones para morarem juntos e ali dividirem
consultório. Os dois ganhavam pouco e contavam com a ajuda da irmã de Jones, Elizabeth,
para cuidar da casa; a caçula Sybil também moraria um tempo com eles. Assinavam várias
revistas e Jones publicaria um artigo (E então o galês não pararia mais de escrever e publicar
papers, ao longo de toda a vida).
Foi Trotter a primeira pessoa a mencionar Freud para Jones. Este já sabia da
crítica de ―Estudos sobre a Histeria‖(1893-1895) publicada na revista Brain e então começou
a ler o Caso Dora. De imediato se identificou com Freud: conta, em sua autobiografia, que em
suas consultas também fazia questão de ouvir com toda a atenção o que os pacientes diziam:

O primeiro de seus escritos com o qual me deparei foi o caso Dora, publicado no
Monatsschrift für Psychiatrie. Meu alemão não era bom o suficiente para
acompanhar bem, mas fiquei profundamente impressionado por haver em Viena um
homem que de fato escutava com atenção cada palavra que seus pacientes diziam a
ele. Eu estava tentando fazer o mesmo, mas nunca ouvi falar de ninguém mais que o
fizesse.28

28
―The first of his writings I came across was the Dora analysis, published in the Monatsschrift für Psychiatrie.
My German was not good enough to follow it closely, but I came away with a deep impression of there being a
man in Vienna who actually listened with attention to every word his patients said to him. I was trying to do so
myself, but I had never heard of anyone else doing so.‖ (Jones, 1959, p. 159-60)
30

A recém chegada revista americana ―Journal of Abnormal Psychology‖, em 1906,


trazia em seu primeiro número um artigo sobre Psicanálise (seria o primeiro artigo em inglês
sobre o tema, explicando o método freudiano), e este lançamento também contribuiria para
aumentar o interesse pela figura de Freud. O autor do artigo era o neurologista americano
James Putnam, professor da Harvard Medical School.29
Nessa época Jones começou a praticar psicanálise – conta que sua primeira
paciente foi a irmã de um colega (1959, p. 162) - e já vinha aprendendo alemão – havia
contratado, junto com Trotter, um professor particular.
Em 1905 Ernest começou a trabalhar como médico de crianças com deficiência
mental na London County Council‘s Education Department (LCC), nessa época estava
interessado em estudar o desenvolvimento da fala e seus aspectos cerebrais.
Nesse departamento Jones protagonizaria um dos maiores escândalos de toda a
sua vida: em março de 1906 foi acusado de ter sido ―indecente‖ durante um teste de
linguagem aplicado em crianças com deficiência mental. Com a acusação – do pai de uma das
crianças, que prestou queixa – justificou-se a visita de dois policiais ao seu consultório. (As
crianças disseram que Jones havia feito uma pergunta imprópria no teste e que agiu de modo
indecente). Segundo a polícia, haviam examinado a toalha de mesa do local onde Jones fizera
o teste com as crianças e esta continha manchas.
Jones dormiu na cadeia e telefonou para seu pai, pedindo ajuda. Jones alegava
inocência e no dia seguinte seria solto sob fiança. Como Maddox salienta, até nossos dias não
foi explicado, no caso do escândalo, nem qual foi a ―pergunta indecorosa‖ que Jones teria
feito às crianças e nem qual o teor das manchas na toalha.30

29
Maddox, 2006, p. 73.
30
Mesmo para biógrafos experientes, o escândalo policial de Jones é muito difícil de ser analisado por ser um
tanto inconclusivo. Brenda Maddox, biógrafa de Jones que levantou meticulosamente arquivos policiais da
época, checou dados e confrontou informações conflitantes, concluiu que o caso é de fato ―muito mal contado‖.
Em suas palavras: ―Ele era culpado? Hoje a questão poderia ser rapidamente respondida por um teste de DNA.
Na falta da toalha verde, tudo o que pode ser avaliado são relatos da imprensa contemporânea e os registros do
LCC [London County Council's Education Department]. Mesmo assim, a partir da perspectiva de um século
posterior atento para a realidade dos padres pedófilos e outros abusadores de jovens vulneráveis, deve-se dizer
que a evidência contra Jones parece condenatória. Agora as palavras de crianças são levadas a sério, ao passo
que as gerações passadas as descartavam rotineiramente como uma invenção pouco confiável, se não maliciosa.
Freud em 1897 abandonou a teoria da sedução como uma causa direta da neurose depois de decidir que o que
seus pacientes lhe diziam era produto de suas próprias fantasias sexuais. O grande número de crianças que se
queixaram do comportamento de Jones no mesmo dia depõe contra ele. Da mesma forma [depõe contra ele] o
seu relato enganoso e impreciso sobre o episódio em sua autobiografia. Em Free Associations, publicado em
1959, ele escreveu que as acusações contra ele haviam sido feitas por ‗duas crianças pequenas‘. De fato, havia
quatro alunos que o acusaram no mesmo dia, e não eram pequenos. A mais nova (...) tinha doze anos; as demais
estavam na adolescência. (...) Não resta dúvida também de que em 1906 Jones estava no ponto mais baixo de sua
vida. Poderia ele ter sido tão depravado a ponto de perder o autodomínio e convidar as alunas a tocar seus
genitais túrgidos? Por outro lado, se Jones tivesse simplesmente perguntado aos alunos sobre seu conhecimento
do corpo ou da reprodução, a questão, na puritana Inglaterra eduardiana, teria sido chocante por si só. Não se
31

Na corte, o juiz decidiu absolver Jones concluindo que não se pode levar a sério
depoimentos de crianças com deficiência mental.
No mesmo ano Jones foi apresentado, por um ex-aluno, a Louise (Loe) Kann, uma
jovem holandesa-judia oriunda de uma família de posses. Em pouco tempo estavam morando
juntos – e, mesmo não sendo verdade, Jones a apresentava (inclusive para seus pais) como sua
esposa.
Anos depois, em 1910, Jones contaria a Freud, em carta, que Loe havia sido sua
31
paciente.
Em 1907, no 1º Congresso Internacional de Psiquiatria e Neurologia em
Amsterdam, Jones conheceu o psiquiatra suíço Carl Jung, na época diretor assistente do
sanatório Burghölzli em Zurique.
Jung já utilizava as teorias de Freud há anos, - e, como sabemos, os dois
começariam com uma relação muito estreita, mas que mais tarde culminaria em um
rompimento bastante traumático. Na clínica tratava a esquizofrenia e realizava testes de
associação de palavras com os pacientes.
Ao conhecer Jones, Jung ficou encantado em saber que o galês também praticava
psicanálise (não fazia ideia de que os preceitos freudianos já haviam alcançado a Grã-
Bretanha) e rapidamente escreve a Freud contando a boa nova. 32 Jones no entanto ainda não
apresentaria um trabalho psicanalítico no referido congresso: ao invés disso apresentou um
artigo sobre Neurologia.
No Congresso também estava Otto Gross, psiquiatra e neurologista da Áustria que
acompanhava Freud e praticava o método catártico.

falava sobre sexo.‖ (Maddox, 2006, p. 46) ―Was he guilty? Today the question could be swiftly answered by a
DNA test. Lacking the green tablecloth, all that can be assessed are contemporary press reports and the records
of the LCC [London County Council‘s Education Department]. Even so, from the perspective of a later century
awake to the reality of paedophile priests and other abusers of vulnerable young people, it must be said that the
evidence against Jones looks damning. Children‘s words are now taken seriously, whereas past generations
routinely dismissed them as untrustworthy, if not malicious fabrication. Freud himself in 1897 abandoned the
seduction theory as a direct cause of neurosis after deciding that what his patients were telling him were products
of their own sexual fantasies. The sheer number of children who complained of Jones‘s behaviour on the same
day tells against him. So too does his misleading and inaccurate account of the episode in his autobiography. In
Free Associations, published in 1959, he wrote that the charges against him had been made by ‗two small
children‘. There were in fact four pupils who accused him on the same day, and they were not small. The
youngest (…) was twelve; the rest in their teens. (…) There is little doubt also that in 1906 Jones was at the
lowest ebb of his life. Could he have been so demoralized as to lose self-restraint and invite the schoolgirls to
touch his swollen genitals? On the other hand, if Jones had simply been asking pupils about their knowledge of
the body or of reproduction, the question, in puritanical Edwardian England, would have been shocking in itself.
Sex was not talked about.‖ (Maddox, 2006, p. 46)
31
Carta de 28.06.1910 in Freud-Jones correspondence, p. 63. Citada por Maddox, 2006, p. 98.
32
Maddox, 2006, p. 56. Deteremos-nos nesta carta citada por Maddox mais adiante.
32

De volta a Londres após o Congresso, Jones – agora um pouco melhor


profissionalmente após a absolvição no escândalo, trabalhando em um hospital de Neurologia
– organizou uma viagem de um mês para Munique, para fazer um curso na renomada clínica
Kraepelin.
Após deixar Munique Jones passou por Zurique e reencontrou Jung, onde
conversaram muito. Em visita ao Burghölzli acabou conhecendo também Abraham Brill, de
Nova Iorque.
Jones ficaria muito impressionado – e teria simpatizado – muito mais com Gross
do que com Jung.33 Embora tivesse achado o suíço inteligente e vibrante, achava-o um tanto
confuso e ―esotérico‖:

Naquela época eu poderia melhor descrever Jung como uma personalidade animada.
Ele tinha um cérebro ativo, inquieto e rápido (...) Com toda a sua inteligência e
erudição, porém, Jung carecia de clareza e estabilidade em seu pensamento (...) Sua
compreensão dos princípios filosóficos era tão duvidosa que não era de admirar que
eles mais tarde degenerassem em obscurantismo místico.34

Jones conta em sua autobiografia que em Munique passou horas conversando


sobre Psicanálise com Otto Gross – e descreve como se encantou pelo seu brilhantismo
excêntrico; afirmou ainda que o considera seu primeiro instrutor em psicanálise:

Ele era o mais próximo do ideal romântico de gênio que eu já conheci, e também
ilustrou a suposta similitude do gênio com a loucura, pois ele sofria de uma forma
inconfundível de insanidade que diante dos meus olhos culminou em assassinato,
manicômio e suicídio. Ele foi meu primeiro instrutor na técnica da psicanálise. Foi,
em muitos aspectos, uma demonstração pouco ortodoxa.35 36

33
Anos mais tarde Jones escreveria em carta a Freud que ―naquele outono eu estava em Munique e ali aprendi
mais com Gross do que jamais aprendi com Jung.‖ (―in that autumn I was in Munich and learnt there more from
Gross than I ever learnt from Jung.‖) Carta de 18.05.1914, de Jones a Freud, p. 281 in The Complete
Correspondence of Sigmund Freud and Ernest Jones (1908-1939), edição de Paskauskas, NY, Harvard
University Press, 1993. Citada por Maddox, 2006, p. 55. No texto faremos referência como Freud-Jones
correspondence.
34
―At that time I could best describe Jung as a breezy personality. He had a restless active and quick brain (…)
With all his intelligence and learning, however, Jung lacked both clarity and stability in his thinking (…) His
grasp of philosophical principles was so insecure that it was little wonder that they later degenerated into
mystical obscurantism.‖ (1959 p. 165)
35
―Pouco ortodoxo‖ parece um belo eufemismo para descrever o austríaco. Gross havia sido assistente de
Kraepelin mas foi demitido por seu comportamento na clínica. Por duas vezes foi paciente na clínica Burghölzli,
roubava medicamentos e um dia fugiu, pulando o muro. Jones nos conta, em sua autobiografia, que Gross ainda
chegou a escrever uma carta a Jung – diretor-assistente da referida clínica – pedindo que lhe enviasse dinheiro
para pagar o hotel onde estava hospedado após fugir da clínica e também para comprar passagens de trem. Gross
depois se suicidaria. (Jones, 1959, p. 174)
36
―He was the nearest approach to the romantic ideal of a genius I have ever met, and he also illustrated the
supposed resemblance of genius to madness, for he was suffering from as unmistakable form of insanity that
before my very eyes culminated in murder, asylum, and suicide. He was my first instructor in the technique of
psycho-analysis. It was in many ways as unorthodox demonstration.‖ (Jones, 1959, p. 173.) É um pouco difícil
33

Conhecendo pouco a pouco tantos seguidores de Freud, Jones fez uma sugestão a
Jung: e se reuníssemos todos eles em um encontro internacional? Jung já ouvira proposta
semelhante de Ferenczi e de Fülöp Stein, e então começou a organizar o que seria o 1º
Congresso Internacional de Psicanálise.37
De volta a Londres, no início de 1908, Jones continuaria trabalhando no hospital
de neurologia e também voltaria a trabalhar no London County Council‘s (LCC).
Havia uma garota com paralisia no braço e o superior do hospital – sabendo dos
estudos de Jones em psicanálise – o desafiou a encontrar na menina ―bases sexuais‖ que
explicassem sua paralisia. Jones entrevistou a menina (tomando o cuidando de deixar a porta
aberta, com enfermeiras circulando) e encontrou: logo antes da paralisia se manifestar, a
menina havia repelido as tentativas de sedução de um menino com quem costumava brincar.
A paralisia apareceu logo em seguida.
Após a entrevista, porém, a menina contou para outras crianças que um médico
havia falado sobre sexo com ela. A notícia chegou até um dos pais, que notificou o comitê do
hospital.
Jones foi demitido.
Tentando começar uma vida nova em outro lugar – ao menos por um tempo, para
então voltar a Londres, com reputação renovada -, Jones decidiu se mudar para o Canadá.
Havia ouvido falar que um professor canadense de psiquiatria estava à procura de um diretor
para uma nova clínica em Toronto, e resolveu seguir por este caminho, junto de Loe.
Antes de se mudar para o Canadá, no entanto, Jones passaria seis meses pela
Europa, entre estudos e pesquisas, e nesse período algo muito importante aconteceria em sua
vida: finalmente conheceria Sigmund Freud pessoalmente.
Em abril de 1908 aconteceu o que seria o 1º Congresso Internacional de
Psicanálise, em Salzburgo, na Áustria, na época batizado de ―Meeting/Congress for Freudian

compreender, pelas leituras de Maddox e de Jones, se Jones teve essas longas conversas com Gross na sua
primeira ou segunda visita a Munique. (Segundo Maddox é na primeira, segundo Jones, na segunda. Este tipo de
dificuldade, é preciso mencionar, acontecerá outras vezes)
37
Jung assim descreve para Freud a sugestão de Jones: ―De comum acordo com meus amigos de Budapest, o Dr
Jones aventou a hipótese de um congresso dos seguidores de Freud. (...) Calcula o Dr Jones que pelo menos 2
pessoas iriam da Inglaterra e certamente haveria vários da Suíça.‖ (Carta de 30.11.1907 in Correspondência
Freud-Jung, p. 135) Outro trecho citado por Maddox, 2006, p. 56. Em sua autobiografia, porém, Jones atribui –
quem sabe por modéstia – grande parte da responsabilidade pela criação da IPA a Ferenczi. (Jones, 1959, p.
214).
34

Psychology‖ (―Zusammenkunft für Freudsche Psychologie‖),38 com a presença de mais de 40


freudianos de várias partes do mundo. Ao ser apresentado a Freud as impressões de Jones não
poderiam ser melhores:

Minha primeira impressão de Freud foi a de um homem não afetado e


despretensioso. (...) Tivemos uma longa conversa, sobre como me deparei com a
psicanálise e coisas do gênero, e mais tarde à noite, fiquei sabendo que ele disse a
Jung que me achou ‗muito inteligente‘; de modo que nossa primeira impressão um
do outro, como todas as subsequentes, foi favorável.
Mas foi no dia seguinte que eu tive a noção extraordinária de seus poderes
intelectuais. Seu artigo era o primeiro na programação e tratou sobre a análise de um
caso clássico - bem conhecido mais tarde como "o homem dos ratos". Proferido sem
anotações, começou às oito horas e às onze ele se propôs a encerrá-lo. No entanto
todos nós estávamos tão encantados com a sua fascinante exposição que suplicamos
para que ele continuasse, e ele fez isso por mais uma hora. Eu nunca havia ficado tão
absorto à passagem do tempo. Como é sabido, Freud não era um orador e todas as
técnicas de retórica eram alheias a ele. Ele falou como em uma conversa, mas sua
conversa normal era tão distinta a ponto de ser digna de uma gravação literária. Sua
facilidade de expressão, sua magistral ordenação de um material complexo, sua
lucidez perspicaz e sua intensa seriedade faziam com que uma palestra dele - e eu
deveria ouvir muitas – fosse, intelectual e artisticamente, um banquete.39

Na programação, Jones seria o segundo a se apresentar, e expôs aquele que seria


um dos principais trabalhos de sua carreira – justamente o primeiro psicanalítico – no qual
introduzia o conceito de ―Racionalização‖ (1908) 40, o único trabalho do Congresso que não
havia sido escrito em alemão (mesmo assim, segundo Jones conta em sua autobiografia, sua
apresentação foi bem compreendida pelos ouvintes).
O primeiro encontro entre freudianos de várias partes do mundo gerou como
desdobramento um periódico, o Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische
Forschungen (Anuário de Pesquisas Psicanalíticas e Psicopatológicas), do qual Jung seria o
editor.
38
Para Jung Jones manifestou ser radicalmente contra esse nome, por achar que não honrava a ―objetividade do
trabalho científico‖. Seu protesto foi em vão e esse foi o nome adotado. (Jones, 1959, p. 165)
39
―My first impression of Freud was that of a unaffected and unassuming man. (…) We then had a long talk
together, of how I had come across psycho-analysis and the like, and later on in the evening, so I heard, he told
Jung he found me ‗very clever‘; so our first impression of each other, like all subsequent ones, had been
favourable. But it was the next day that I was to get the tremendous impression of his intellectual powers. His
paper was the first on the programme and dealt with the analysis of a classical case – well known later as ‗the
man with the rats‘. Delivered without any notes, it began at eight o‘clock and at eleven he offered to bring it to a
close. We had all been so enthralled, however, at his fascinating exposition that we begged him to go on, and he
did so for another hour. I had never before been so oblivious of the passage of time. As is well known, Freud was
no orator and all arts of rhetoric were alien to him. He spoke as in a conversation, but then his ordinary
conversation was so distinctive as to be worthy of a literary recording. His ease of expression, his masterly
ordering of complex material, his perspicuous lucidity, and his intense earnestness made a lecture by him – and I
was to hear many – both an intellectual and an artistic feast.‖ (1959, p. 166)
40
Quando nos conta essa passagem e resume (provavelmente para o leitor leigo) o que é o conceito de
Racionalização, Maddox faz o seguinte comentário: ―Sua audiência de Salzburgo pode não ter avaliado o quão
bem essa descrição cabia ao próprio Jones.‖ His Salzburg audience cannot have appreciated how well this
description fitted Jones himself.‖ (2006, p. 61) É pena que a autora não elabore um pouco mais essa afirmação.
35

Após o congresso Jones e Brill seguiram para Viena, onde Freud os convidou para
almoçar. Conheceram a família do mestre e conversaram sobre os interesses de expansão da
Psicanálise na América. Freud então deu ao austríaco-americano Brill os direitos para traduzir
seus escritos para o inglês e os três colegas debateram sobre como traduzir alguns termos
técnicos freudianos (o desafio de traduzir Freud, como bem sabemos, persiste até nossos
dias).41 Na mesma visita o mestre os convidou para participar da ―Sociedade Psicológica das
Quartas-feiras‖, encontros em seu consultório para debater seus pensamentos – e que se
tornaria mais tarde a Sociedade Psicanalítica de Viena. (Nesta ocasião Jones conheceria
Adler, Stekel e outros, e teceria comentários negativos de todos eles em sua autobiografia.
1959, p. 169)
Após deixar Viena Jones envia a primeira carta ao mestre agradecendo pela
hospitalidade:

Caro Professor Freud,


Começo com [:] outra vez [,] agradecendo calorosamente o grande prazer que me
deu sua amável recepção em Viena. Falo apenas da questão pessoal, pois só o
trabalho e não as palavras podem agradecer pelo que lhe devo (...) e que espero fazer
depois. Minha estadia em Viena, ainda que breve, será sempre inesquecível para
mim. 42

Em seguida Jones e Brill seguem para Budapeste, a convite de Ferenczi, e de lá


Jones segue para Munique, onde mais uma vez quer se aproximar de Kraepelin. A pedido de
Gross, Jones tratou sua mulher, Frieda. (Conta-se que a moça teve um flerte com Jones.43 Na
mesma época Gross teve um surto e acabou pulando o muro da clínica onde estava internado
em Zurique, como vimos).
Em setembro de 1908, após esses meses de viagens pela Europa e uma rápida
visita à sua família no País de Gales, Jones finalmente se muda para Toronto. Loe chegaria
depois, junto da irmã mais velha de Jones (Elizabeth), que ajudaria a cuidar da casa.
Acumulando várias funções, Jones é logo reconhecido pelo seu trabalho: trabalha com
anatomia e fisiologia na Universidade de Toronto, revisa e resume artigos para seis revistas de

41
A tradução de Brill da ―Interpretação dos sonhos‖ sairia em 1913, mas não agradou. (Maddox, 2006, p. 150)
42
―Dear Professor Freud, I begin with [:] again [,] with warmly thanking you for the great pleasure your kind
reception of me in Wien gave me. I speak only of the personal question, for only work and not words can thank
you for what I owe to you (…) and that I hope later to do. My stay in Wien, short as it was, will always be a
most memorable one to me.‖ (Carta de 13.05.1908 in Freud-Jones correspondence, p. 1) Outro trecho citado por
Maddox, 2006, p. 63-4. Infelizmente a resposta de Freud a esta carta se perdeu e não consta da edição de
Paskauskas (1993).
43
Maddox, 2006, p. 64.
36

neurologia, contribui para o Bulletin of the Ontario Hospitals for the Insane, e se torna diretor
de uma clínica psiquiátrica.44
O reconhecimento de Jones por parte dos canadenses não é, no entanto, recíproco.
Embora de modo geral Jones achasse agradável viver no Canadá, não se identificava com os
canadenses.45 Além disso, não estava trabalhando em sua especialidade, a Neurologia, e por
não encontrar nenhuma sociedade canadense na área fazia questão de uma vez por mês ir até
Detroit, nos EUA, para os encontros da Sociedade de Neurologia de Detroit. Sua produção
científica em Neurologia era abundante, e publicava com regularidade em revistas
especializadas.
Apenas seis meses após sua chegada, Jones recebe a notícia de que sua mãe, Mary
Ann, estava morrendo de hemorragia cerebral; conta em sua biografia que sofreu um luto
―normal‖, não muito doloroso.46
Jones faz contatos no EUA e comunica os colegas americanos de sua chegada; no
fim de 1908, viaja a Boston a convite do amigo Morton Prince, neurologista formado em
Harvard e editor do Journal of Abnormal Psychology (como bem nos lembramos, o periódico
que publicou o primeiro artigo psicanalítico de Jones, sobre a Racionalização). Jones
inclusive atua como editor assistente da revista recém-lançada e insiste - sem sucesso - para
sua mudança de nome (não o agrada a ideia de uma ―Psicologia anormal‖).
Prince propõe que Jones (e Brill) produzam para o periódico explicando a teoria
freudiana. Jones consulta o mestre por carta e Freud o encoraja, achando a estratégia uma boa
ideia para levar suas ideias para o Novo Mundo - melhor ainda do que traduzir seus escritos.47
Prince, no entanto, mantém certa reserva em relação às teorias freudianas e
pessoalmente não tinha uma boa relação com Freud. Uma nota de rodapé do editor em uma
carta trocada entre Jones e Freud em 1908 nos explica os motivos:

As relações de Prince com Freud não eram boas. Freud se recusou a contribuir para
a edição inaugural do Journal of Abnormal Psychology de Prince em 1906. Além
disso, Prince foi acusado por Freud e por Jung de ser desinteressado: ele não tinha
comparecido ao congresso de Salzburgo e nem apresentado o seu trabalho; as
negociações para fundir o jornal de Prince com o plano de Freud e de Jung para uma

44
Maddox, 2006, p. 69.
45
Jones achava-os ―desprezíveis‖, como dirá a Freud em carta. Carta de 10.12.1908 in Freud-Jones
correspondence, p. 11. Citado por Maddox, 2006, p. 69.
46
Maddox acrescenta o seguinte comentário ao nos contar sobre a morte da mãe de Jones: ―A morte de sua mãe
pode ter ajudado a levar Jones para uma nova relação de dependência e adoração que ele estava prestes a criar
com Freud.‖ (2006, p. 75) ―His mother‘s death may have helped steer Jones into new dependent, adoring relation
he was about to form with Freud.‖ (2006, p. 75)
47
Carta de 20.11.1908 in Freud-Jones correspondence, p. 9. Citado por Maddox, 2006, p. 72.
37

revista psicanalítica tinham falhado; e ele era especialmente puritano sobre a questão
sexual. 48

De fato Prince é tão pudico que chega a pedir que Jones ―suavize‖ o teor sexual de
um de seus artigos da revista - antes já havia dito a Karl Abraham que não poderia publicar o
termo ―homossexual‖. Mesmo antes do pedido, Jones diz a Freud que vai propositalmente
―intercalar‖ a publicação de artigos em neurologia e em psicanálise, como estratégia de
―diluir‖ o famigerado teor sexual.49
(Um ano mais tarde Jones e Freud teriam problemas com as opiniões de Prince
sobre a psicanálise. Em 1910 Prince publicaria um artigo no seu Journal combatendo as ideias
freudianas; Jones em seguida publicará um ―artigo-resposta‖, defendendo o mestre e sua
criação. Como nos conta Maddox, Prince então aconselharia Putnam a se afastar de Jones:
―Jones está irremediavelmente perdido, seu julgamento desapareceu. Jung idem. Vocês estão
criando um culto e não uma Ciência‖50)
Durante o período em Boston Jones conhece James Putnam (que, como bem
lembramos, foi o autor do primeiro artigo sobre psicanálise na língua inglesa). Assim como
Prince, Putnam também mantinha algumas reservas em relação a Freud. 51, mas Jones
consegue, em certa medida, ―dobrá-lo‖ e se tornam muito amigos – mesmo com uma
significativa diferença de idade: na época Jones tinha 29 e Putnam, 62 anos.
Nessa época Freud é convidado para se apresentar na Clark University, em
Worcester, Massachusetts – e aceita. Como sabemos, tais conferências de Freud foram um
marco histórico e trouxeram os preceitos freudianos para a América. Na mesma ocasião Jones
declara a Freud que planeja ―devotar sua vida à psicanálise‖.52
Após as conferências de Freud, Jones se aproxima de Adolf Meyer, editor do
Psychological Bulletin, e se oferece para escrever artigos sobre a teoria freudiana – o que é
aceito.
Maddox nos conta que nessa época Jones acaba ―exagerando‖ nos detalhes
sexuais em um artigo psicanalítico publicado pelo American Journal of Insanity e, não

48
―Prince‘s relations with Freud were not good. Freud has refused to contribute to the inaugural issue of Prince‘s
Journal of Abnormal Psychology in 1906. Moreover, Prince was accused by Freud and Jung of being
nonpartisan: he had failed to attend the Salzburg congress and present his paper; negotiations had broken down
to amalgamate Prince‘s Journal with Freud‘s and Jung‘s plan for a psychoanalytic journal; and he was especially
prudish on the sexual issue.‖ (Nota 10 do editor na carta de 08.11.1908, in Freud-Jones correspondence, p. 8).
49
Maddox, 2006, p. 73 e 74 e Conferir cartas de 07.02.1909 e 22.02.1909 in Freud-Jones correspondence, p. 15-
19.
50
―Jones is hopelessly lost, his judgement is gone. Jung ditto. You are raising a cult not a science.‖ Maddox,
2006, p. 92-3.
51
Maddox, 2006, p. 73.
52
Idem, Ibidem, p. 78.
38

contente, o republica em outro periódico do qual era coeditor (Ontario Hospitals Bulletin) – o
que faz com que seja demitido do cargo.
Esta não seria a única ―censura‖ que Jones sofreria. Como havia combinado com
Meyer, editor do Psychological Bulletin, escreveria um artigo sobre a teoria freudiana, mas o
que não imaginava é que após receber o material Meyer excluiria alguns parágrafos que
julgava ―impróprios‖. Jones ficou contrariadíssimo, mas afinal acabou aceitando a edição por
compreender que o periódico chegava a bibliotecas rurais - e que era portanto necessário
evitar chocar os leitores mais puritanos.53
O excesso de peso nos aspectos sexuais nos escritos de Jones (ao menos para os
padrões americanos) também lhe custaria uma oportunidade em Harvard. O amigo Putnam,
que o admirava profundamente (a admiração era recíproca, aliás) e via em Jones o melhor
expositor em inglês dos conceitos freudianos, havia conseguido um horário em Harvard para
o galês, mas a resposta do diretor do laboratório de psicologia da faculdade foi bem clara:
―Entre os homens mais jovens que eu conheço quase ninguém parece se colocar em evidência
tão bem como o Dr. Jones. A única objeção que me incomoda é a sua inclinação para colocar
mais ênfase em fatores sexuais do que seria desejável (...)‖ 54
Em 1910 aconteceria em Nuremberg, Alemanha, o 2º Congresso da Associação
Psicanalítica International, mas Jones não pôde ir por estar comprometido com uma série de
palestras no Canadá. Ao menos duas novidades marcaram o Congresso: agora havia uma
Associação Internacional de Psicanálise (IPA) – da qual Jung era o presidente – e uma nova
publicação (oficial da referida Associação) havia sido criada: a Zentralblatt für
Psychoanalyse.
Um grupo de psicanalistas vienenses protestou contra a presidência de Jung –
entendiam que a Associação deveria ser presidida por um vienense, mas Freud justificou a
escolha afirmando que Zurique estava no coração da Europa – e portanto era mais estratégica
que Viena – e Jung não era judeu, o que lhe dava a vantagem de angariar mais adeptos pelo
mundo.55
Nos Estados Unidos também estavam se organizando. Como ainda havia poucos
psicanalistas no país, a associação que criaram incluía também psicólogos, além de médicos.

53
Idem, Ibidem, p. 82.
54
―among younger men I know hardly anyone who seems to fill the bill so well as Dr Jones. The only objection
which troubles me is his inclination to put more emphasis on sexual factors than would be desirable (…)‖
(Maddox, 2006, p. 82).
55
Maddox, 2006, p. 83.
39

O presidente era Morton Prince; Putnam e Jones eram os administradores e seu periódico
oficial era o Journal of Abnormal Psychology, editado por Prince e coeditado por Jones.
A carreira de Jones no Canadá estava definitivamente em ascensão: havia sido
promovido a ―associado em psiquiatria‖ na Universidade de Toronto e no ano seguinte se
tornaria professor associado.
Sua produção também era abundante e fecunda. Nessa época (1910) lança um de
seus trabalhos mais conhecidos, uma interpretação psicanalítica de Hamlet: ―The Oedipus-
Complex as an Explanation of Hamlet‘s Mystery: A Study in Motive‖ (1910), com grande
repercussão. (Jones republicaria esse ensaio outras vezes, sempre ampliando a versão
anterior.) Maddox destaca que o trabalho chegou a ter influência direta sobre o filme Hamlet,
de Laurence Olivier - diretor e protagonista-, de 1948. (Olivier traz a mesma interpretação
edípica de Jones)56
Outro trabalho importante de Jones foi publicado na mesma época: ―On the
Nightmare‖ (1910), no qual interpreta figuras assombrosas. (A obra de Jones chamaria a
atenção de ninguém menos que Sylvia Plath que, em 1956, presenteia o marido com o livro) 57
Jones afirmaria, em sua autobiografia, que os anos em que passou no Canadá foram os mais
produtivos de sua vida (em termos de escrita de artigos e livros) e atribui várias razões para
isso: o fato de estar infeliz em sua vida pessoal (o trabalho serviria com um refúgio), a
inspiração de novas ideias e também mais tempo livre, o que o permitia passar um bom tempo
nas ótimas bibliotecas do Canadá. (Jones, 1959, p. 192-3)
Nessa mesma época a irmã de Jones, Elizabeth, se casa com Wilfred Trotter: seu
grande amigo se torna seu cunhado.
Até início de 1911 a carreira de Jones parecia florescer no Canadá (publicações
com boa repercussão, a psicanálise se firmando no Novo Mundo, sua carreira em ascensão),
mas logo surgiria um evento um tanto desagradável: uma ex-paciente acusou Jones de ter
feito sexo com ela – e reportou o ocorrido para o diretor da Universidade. (O diretor não dá
ouvidos à mulher e confia na inocência de Jones.) Além disso, a paciente tentou dar-lhe uns
tiros, mas felizmente foi impedida e levada a um sanatório.
Jones contratou um segurança armado para protegê-lo. Para prevenir um
escândalo, também tratou de comprar o silêncio da moça pagando o equivalente a 500 dólares
– o que correspondia a cerca de um ano do seu salário. (Jones conta o episódio em uma carta
ao amigo Putnam.)

56
Idem, Ibidem, p. 88.
57
Idem, Ibidem, p. 89.
40

Em carta, Jones conta a história também ao mestre Freud, aproveitando também


para descrever a péssima imagem que ele – Jones – tem no Canadá (é tido como um
―depravado‖ pelos puritanos do Novo Mundo) e comenta que já gastou muito dinheiro com o
episódio (mas Maddox salienta o fato de que ele omite, porém, a parte em que suborna a moça
para que ela não manche sua reputação):58

Tenho muitas notícias para dar ao senhor, como as suas, em parte boas, em parte
ruins. Deixe-me dar cabo das ruins primeiro, que são pessoais, e que vou tentar
contar brevemente. O clima para a Ψα aqui é muito insalubre, devido principalmente
a um inacreditável e crescente moralismo, uma total ignorância e uma má
compreensão de seus escritos e talvez em parte a algum ciúme que desperto em
certos círculos. Os rumores estúpidos sobre meu método de tratamento continuam se
espalhando. Eu recomendo a masturbação (uma velha história sobre a qual lhe falei),
mando os homens jovens para as prostitutas e recomendo a devassidão às mulheres
jovens. Duas destas últimas ficaram grávidas em consequência disso - eram três em
maio passado, mas parece que uma desapareceu! Estimulo sensações sexuais
mostrando cartões postais obscenos para os pacientes!! Etc., etc. Mas o mais
irritante é um problema que vem acontecendo há mais de um mês. Uma histérica
grave que vi apenas algumas vezes em setembro passado foi a uma médica (Gordon)
*, e depois de muito pressionada declarou que eu tinha tido relações sexuais com ela
"para lhe fazer bem". Infelizmente, a Drª. Gordon se interessou muito pelas outras
histórias e, sendo secretária da Liga da Pureza local, foi com a carga toda ao
Presidente da Universidade e pediu a ele para me demitir, para que eu não
pervertesse e depravasse mais a juventude de Toronto. (...) A paciente tentou me dar
um tiro, mas lhe tiraram o revólver e ela foi mandada para um sanatório particular.
Isso assustou minha esposa (...) e ela insistiu que nós e a casa fôssemos protegidos
por detetives. (...) muito provavelmente [a paciente] será deportada do país por ter
um ‗caráter indesejável‘, descrição com a qual concordo plenamente. Foi, portanto,
um período inquietante e também dispendioso para mim (até agora me custou mais
de mil dólares).
*Emma Leila (nascida Skinner) Gordon (1859-1949), uma das primeiras mulheres
médicas do Canadá, era muito religiosa, tinha opiniões estritas sobre o consumo de
álcool e a vida promíscua e era membro da Women's Christian Temperance Union.
Ao contar a James Jackson Putnam sobre esse incidente (...) em relação a sua
paciente, Jones acrescenta: ‗Fui insensato e paguei à mulher um suborno de US$ 500
para evitar um escândalo.‘ 59

58
Maddox, 2006, p. 90-91. Esse episódio é descrito em detalhes pela biógrafa –inclusive com citação destas
cartas ―reveladoras‖ – mas não encontrei um relato do episódio na autobiografia de Jones. (1959)
59
―I have a good deal of news to give, like yours, partly good, partly bad. Let me finish with the latter first,
which is personal, and which I will try to put shortly. The atmosphere is very unhealthy here for Ψα, owing
chiefly to an increadibly developed prudery, a total ignorance of and misunderstanding of your writings, and
perhaps partly to some jealousy of me in certain circles. Stupid rumors keep spreading about my mode of
treatment. I recommend masturbation (an old story I told you about), I send young men to prostitutes, and advise
debauchery to young women. Two of the latter have become pregnant in consequence – they were three last
May, but one seems to have disappeared! I stimulate sexual feeling by showing patients obscene postcards!! Etc.
etc. But most annoying is some trouble that has been going on for over a month. A severe hysteric whom I saw
only a couple of times last September went to a woman doctor (Gordon)*, and after much pressing declared that
I had had sexual relations with her ‗to do her good‘. Unfortunately Dr. Gordon had greatly interested herself in
the other stories, being the secretary of the local Purity League, so she went with the full batch to the President of
the University and asked him to dismiss me, so that I should no longer pervert and deprave the youth of Toronto.
(…) The patient attempted to shoot me, but her revolver was taken away, and she was sent to a private
sanatorium. That alarmed my wife (…) and she has insisted on the house and myself being guarded by
detectives. (…) in all probability she will be deported from the country as an ‗undesirable character‘, with which
41

Nessa época a Sociedade Britânica de Pesquisa Psíquica (British Society for


Psychical Research - SPR) convida Freud para se tornar um membro, mas Jones – que não
simpatiza com a Sociedade – escreve a Freud advertindo-o da má reputação desta
instituição.60
Enquanto Jones está às voltas com isso, Brill toma a dianteira e funda, em
fevereiro de 1911, a Sociedade Psicanalítica de Nova Iorque: ―Ele [Jones] não ficou nada
satisfeito quando Brill correu na frente dele (...) ‗sem dizer uma palavra a Putnam e a mim‘",
Jones reclamou com raiva a Freud‖.61 Alguns meses depois o galês funda, junto com o amigo
Putnam, a Associação Psicanalítica Americana.
A companheira de Jones, Loe, está deprimida e não suporta mais viver no Canadá,
o que pressiona Jones para voltar para a Inglaterra. Loe sofria de cálculos renais, e pelas fortes
dores acabou ficando dependente de morfina; mas teria que suportar Toronto um pouco mais:
Jones finalmente recebe o prometido cargo de professor associado na universidade e um posto
na enfermaria de neurologia do Hospital Geral de Toronto.62
Freud e Jones se encontrariam novamente no 3° Congresso da IPA em Weimar, na
Alemanha. Nessa época o clima era de disputas e dissenções no meio psicanalítico: Jung
estava se desviando do pensamento de Freud e em Viena tanto Adler quanto Stekel haviam
saído da Sociedade Psicanalítica.
Jones aproveita o encontro com Freud para se abrir sobre os problemas
emocionais e de saúde de Loe – depois também saberíamos que ela estaria ―anestesiada‖

description of her I quite agree. It has therefore been an anxious and also expensive time for me (so far it has cost
me over a thousand dollars.
*Emma Leila (née Skinner) Gordon (1859-1949), one of Canada‘s first female medical doctors, was very
religious, held strict views on alcohol consumption and loose living, and was a member of the Women‘s
Christian Temperance Union. In telling James Jackson Putnam about this incident (…) Regarding his patient,
Jones adds, ‗I foolishly paid the woman $500 blackmail to prevent a scandal‘‖ [In: HALE, N. James Jackson
Putnam and Psychoanalysis: Letters between Putnam and Sigmund Freud, Ernest Jones, William James, Sándor
Ferenczi, and Morton Prince, 1877-1917. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1971]‖ Carta de
08.02.1911 in Freud-Jones correspondence, p. 87-88.
60
Maddox, 2006, p. 92.
61
―He was not pleased when Brill raced ahead of him (...) ‗without saying a word to Putnam and myself‘, Jones
angrily complained to Freud‖ Maddox, 2006, p. 94. Carta de 22.05.1911 in Freud-Jones correspondence, p. 102.
É interessante notar, a respeito de Brill, que a biógrafa de Jones vai apontar uma rivalidade entre os dois (2006,
p. 56), como se vê inclusive nesse ocorrido. Em sua autobiografia, porém, Jones tece muitos elogios ao colega e
afirma que essa fundação de sociedades foi feita de comum acordo (?): ―Então, Brill e eu nos juntamos e
chegamos a esse acordo. Ele deveria fundar a Sociedade Psicanalítica de Nova York (...) e eu deveria organizar a
Associação Psicanalítica Americana.‖ ―So Brill and I put our heads together and came to this agreement. He
was to found a New York Psychoanalytical Society (...) and I was to organize an American Psychoanalytical
Association.‖ (Jones, 1959, p. 235).
62
Ao contar essa passagem, Maddox também comenta que a clínica que seria fundada e para qual Jones foi
convidado a ser o diretor – motivo de sua vinda para o Canadá – não seria mais construída. Na realidade, viria a
ser fundada anos após a morte de Jones, em 1966. (Maddox, 2006, p. 94-95)
42

sexualmente -, ao que Freud responde que a indicação seria psicanálise – e que ele mesmo
pode atendê-la. Loe aceita.63
Nessa época Jones começa a ter um caso com a empregada, uma jovem chamada
Lina. Contaria sobre esse affair para Freud um tempo depois, quando o caso já teria
terminado, agradecendo à psicanálise por tê-lo ajudado a se ―controlar‖: ―Uma das coisas
pelas quais sou mais grato à psicanálise é por ter me ajudado a ser capaz de controlar muitas
tendências erradas em mim mesmo.‖ 64
De fato, Jones não apenas controlou os seus impulsos, mas de certa forma
―dominou a América‖: segundo palavras do próprio Freud: ―O senhor conquistou a América
65
em apenas um ou dois anos.‖ E o mestre esperava que ele agora também conquistasse a
Inglaterra.
Quatro anos após chegar em Toronto, Jones providencia sua mudança de volta
para Londres.
Nessa fase, no universo psicanalítico, a dissenção de Jung já era uma realidade.
Como presidente da Associação, havia cancelado (por compromissos seus) o 4º Congresso da
IPA, que se daria em setembro daquele ano de 1912.
Jones escreve em carta a Freud que seria uma boa ideia montar um pequeno grupo
de integrantes ―completamente‖ analisados pelo mestre, e que pudessem assim representar a
teoria ―pura‖, sem a contaminação de ―complexos‖ (o que também funcionaria como uma
prevenção para outras dissenções) 66. Em sua autobiografia Jones nos conta que para esta ideia
se inspirou em um sonho romântico de infância: Carlos Magno e seus paladinos. 67 Freud acha
a ideia excelente e aceita prontamente: era o Comitê Secreto.
O pequeno grupo de ―eleitos‖ seria formado pelos integrantes - ao redor de Freud:
Jones, Abraham, Ferenczi, Hanns Sachs e Otto Rank.
Se a relação entre Jung e Freud ia de mal a pior, aquela entre Jones e Freud não
poderia estar melhor. Freud estava reconhecido pelas contribuições de Jones à ―Causa‖ e

63
Maddox, 2006, p. 96.
64
―One of the things for which I am most grateful to psycho-analysis for is that by the aid of it I have been able
to get control of various wrong tendencies in myself‖ (Carta de 30.01.1912 in Freud-Jones correspondence, p.
130. Citado por Maddox, 2006, p. 98).
65
―You have, as it were, conquered America in no more than one or two years‖ (Carta de 09.08.1911 in Freud-
Jones correspondence, p. 112) Citada por Maddox, 2006, p. 99.
66
Carta de 30.07.1912 in Freud-Jones correspondence, p. 146. Citada por Maddox, 2006, p. 101.
67
1959, p. 227.
43

Jones dedica seu primeiro livro, ―Papers on Psycho-Analysis‖ (lançado em 1912) ao mestre:
―Dedicado ao Professor Freud como um símbolo da gratidão do autor‖68
Freud responde com uma carta de agradecimento comovida: ―Meu caro Jones, Eu
fiquei tão profundamente emocionado com sua última carta anunciando a dedicatória do seu
livro (...)‖ 69
E se despede com: ―Yours in love Freud‖
Mas se Jones estava sempre ao seu lado com lealdade absoluta, o mesmo não
ocorria com outros psicanalistas do movimento. Como vimos, Stekel havia deixado a
Associação Psicanalítica International – e Freud preferiu, conforme Jones conta em sua
autobiografia, deixa-lo ir junto com o periódico (Zentralblatt). A ideia era criar um novo
periódico, a ser editado por Ferenczi, Rank e Jones. Esta seria a publicação oficial da
Associação Psicanalítica International: Internazionale Zeitschrift für ärtzliche Psychoanalyse
[Revista Internacional de Psicanálise Médica] – ou simplesmente Zeitschrift. 70
Loe começa a se analisar com Freud, em Viena, e Freud escreveria a Jones
contando sobre seu tratamento. Uma informação que aparece na análise de Loe, no entanto,
deixa Freud numa situação complicada: Loe está apaixonada por outro homem – filho de um
paciente de Freud -, curiosamente também chamado Jones (Herbert Jones). Freud não
comenta sobre este fato com o galês.
No fim de 1912 é lançado o primeiro livro de Jones, ―Papers on Psycho-
Analysis‖, - uma coletânea de artigos seus já publicados em revistas - com enorme sucesso e
repercussão; chegou a ser ter quatro reedições (com versões revisadas e/ou ampliadas). 71
Maddox nos lembra que nessa época ainda não havia tradução para o inglês das obras
freudianas ―Interpretação dos sonhos‖ (1900) e ―Psicopatologia da Vida cotidiana (1901)‖ o

68
―Dedicated to Professor Freud as a token of the author‘s gratitude‖ (1938, s/p) Citada por Maddox, 2006, p.
106.
69
―My dear Jones, I have been so deeply emotioned by your last letter annoucing the dedication of your book
(…)‖ (Carta de 08.11.1912 in Freud-Jones correspondence, p. 171-172) Citada por Maddox, 2006, p. 102.
70
Jones (1959) nos conta que na reunião (convocada por Jung) a ser realizada em Munique para essa tomada de
decisão – isto é, o que fazer com a saída de Stekel e a ―perda‖ do periódico – participariam Freud, Jung, Riklin,
Abraham, Ferenczi e Jones. Nessa época Jones estava na Itália e Jung mandou a ele um cartão com a data errada
da reunião (dois dias depois do dia em que de fato aconteceria). Jones só não perdeu o encontro porque Loe
estava em Viena nessa época (se analisando com Freud) e o avisou da data correta. Em sua autobiografia Jones
conta o episódio e não deixa o ―ato-falho‖ do suíço passar despercebido: ―Quando eu apareci a tempo [da
reunião] acho que vi Jung estremecer um pouco. Ao falar com Freud sobre isso depois eu comentei não haver
dúvidas de que fosse um lapso inconsciente.‖ (―When I turned up on time I thought I saw Jung start a little. In
speaking to Freud about it afterwards I remarked that it was no doubt an unconscious slip‖). O mestre, no
entanto, (injustamente, ao que tudo indica) defendeu Jung: ―Freud retrucou que um gentleman não teria esse tipo
de inconsciente‖ (―Freud retorted that a gentleman wouldn‘t have that sort of unconscious.‖) (1959, p. 221)
Maddox cita o episódio – com algumas diferenças - na p. 103-4.
71
Primeira edição em 1912; segunda edição em 1918; terceira em 1923, quarta em 1938 e quinta em 1948.
44

que talvez explicasse a avidez dos leitores pelo que seria o primeiro livro em inglês sobre
Psicanálise.72
O Comitê Secreto tem sua primeira reunião em maio de 1913. Freud presenteia
cada integrante com um anel com uma inscrição grega; agora todos deveriam se analisar ―por
completo‖. Quem fica a cargo de analisar Jones é Ferenczi. 73
Jones tem com Ferenczi uma análise rápida, mas intensa, de 2 horas diárias por 2
meses. Nas palavras de Jones, esta seria a primeira ―análise didática‖ da história:

Quando retornei a Viena em maio, planejava voltar a clinicar em Londres, mas,


como resultado de uma conversa com Freud, decidi usar a oportunidade de estar
com tempo livre e fazer uma análise didática com Ferenczi, em Budapeste. Fui o
primeiro psicanalista a fazer isso. Naquela época era uma ideia revolucionária, mas
desde então se tornou parte do procedimento normal para o estudo do assunto.
Minha análise, como o resto da minha vida, foi intensa. Eu passava uma hora em
análise, duas vezes ao dia, durante o verão e o outono e me beneficiei muito com
isso. Levou a uma harmonia interior muito maior comigo mesmo, me deu uma
compreensão inestimável e pelo modo mais direto dos caminhos da mente
inconsciente e foi altamente instrutivo se comparado com o conhecimento mais
intelectual que eu tinha antes disso.74

No trabalho analítico Jones percebe (e com dificuldade aceita) que perdeu Loe
para outro homem.
Os dois – analista e paciente – rapidamente estabelecem transferência e
contratransferência positiva. Ferenczi se afeiçoa muito a Jones e compartilha o andamento de
sua análise com Freud, por cartas. No fim do tratamento Ferenczi (1913) conta a Freud como
sente saudades dele: ―Jones deixou-me há quatro dias. Ele me faz muita falta. Tornamo-nos
amigos íntimos; aprendi a amá-lo e estimá-lo; foi um prazer ter um aluno assim tão
inteligente, fino e distinto.‖75
Jones havia tentado manter o cargo de professor associado na Universidade de
Toronto indo e vindo do Canadá, mas a universidade não permitiu; assim teve que pedir
demissão. (Maddox nos conta que o pedido de demissão de Jones teria deixado as autoridades

72
Maddox, 2006, p. 106.
73
Idem, Ibidem, p. 108.
74
―When I returned to Vienna in May, I was planning to set up again in practice in London, but as the result of a
talk with Freud I decided to make use of the opportunity of not being tied by time and to undertake a didactic
analysis with Ferenczi in Budapest. I was the first psycho-analyst to do this. At that time it was a revolutionary
idea, but it has since become part of the normal procedure for studying the subject. My analysis, like the rest of
my life, was intensive. I spent an hour twice a day on it during that summer and autumm, and derived very great
benefit from it. It led to a much greater inner harmony with myself, and gave me an irreplaceable insight of most
direct kind into the ways of the unconscious mind which it was highly instructive to compare with the more
intellectual knowledge of them I had previously had.‖ (1959, p. 199)
75
Falzeder, 1994, v. I, 2, p. 230. Carta de 05.08.1913. Citada por Maddox, 2006, p. 109.
45

da universidade aliviadas, já que Jones não teria boa reputação por lá. Um documento de um
historiador da medicina canadense traria a informação de que para seus colegas Jones era
considerado um ―pária‖).76
Finalmente de volta a Londres, Jones se estabeleceu em uma rua desvalorizada, o
que não lhe dava as condições ideais para atender pacientes. Um velho amigo teria inclusive
dito a Jones, - conforme nos conta Maddox (2006) -, que tanto a associação da sua figura com
as ideias freudianas quanto os acontecimentos de seu passado o denegriam na cidade. 77
Um ex-aluno de Jones, no entanto, o procura querendo ser seu paciente: é David
Eder, o mesmo que anos antes o havia apresentado para sua então ex-companheira Loe Kann.
Eder havia se tornado psicanalista e já havia inclusive apresentado um artigo sobre um caso
tratado pelo método de Freud. 78 Jones começa a analisar Eder. Mais tarde, em outubro de
1913, fundariam juntos e com outros colegas a Sociedade Psicanalítica de Londres.
No ―Movimento‖ a situação era de fortes mudanças: em 1914 Jung deixa a
presidência da IPA e sai da associação. O Comitê decidiria que Jones seria o próximo
presidente.
Nessa época Loe e Jones estavam separados; Loe estava com Jones II 79 e se
casariam no verão de 1914. O casamento teve como testemunhas Otto Rank, Ferenczi e
ninguém menos do que Freud.
Jones estava com Lina – moravam juntos em Londres; Jones e Loe mantinham
uma relação amigável.
Jones estava com um bom número de pacientes e comentou com Freud que ―já
podia se casar‖. Freud, no entanto, pediu-lhe que esperasse e pensasse bem.80 Afinal, tudo
indicava que as intenções de casamento de Jones não eram exatamente com Lina, a ex-
empregada: Loe havia comentado com Freud que Jones estaria de olho em Anna Freud, filha
de Freud de apenas 18 anos na época. Havia mais motivos de preocupação para o mestre
porque Anna havia decidido passar umas férias na Inglaterra após fazer seus exames
acadêmicos, em julho – Jones a receberia para levá-la para passear. Freud teria advertido a

76
Maddox, 2006, p. 110. É interessante observar que em nossos dias Dr Hinshelwood também mencionou a má
fama de Jones no Canadá – segundo Phyllis Grosskurth, biógrafo de Melanie Klein. O britânico também nos
conta que a fama de Jones é de ter sido ―mulherengo‖ [―womaniser‖] e o galês inclusive ganhou o divertido
apelido de ―Erogenous Jones.‖ (Conferir Anexos)
77
Idem, Ibidem, loc. cit.
78
Idem, Ibidem, p. 111.
79
Herbert Jones. Tanto Jones quanto Freud se refeririam a ele como ―Jones II‖ em suas cartas. (Freud-Jones
correspondence, 1993)
80
Carta de 16.01.1914 in Freud-Jones correspondence, p. 256. Citada por Maddox, 2006, p. 113.
46

filha antes de embarcar: ―Sei agora das fontes mais fidedignas [isto é, Loe] que o Doutor
Jones alimenta sérias intenções de a cortejar.‖81
Freud não achava que Jones fosse um marido adequado para Anna. A biógrafa de
Anna Freud, Elisabeth Young-Bruehl (1992), assim descreve o episódio:

Jones também aproveitou a oportunidade da visita dela [Anna Freud] para cortejá-la
– nada, no entanto, conseguindo. Suas atenções tampouco o tornaram mais caro a
Sigmund Freud, que suspeitava tanto dos motivos de Jones quanto se preocupava
com os sintomas abafados, mas não resolvidos, da filha. (...) Freud sugeriu à filha
que Ernest Jones, apesar de suas muitas virtudes, não seria um bom marido. Jones
era demasiado velho para ela e necessitava, segundo Freud, de uma mulher
independente, com mais experiência, e não de uma jovem requintada. (1992, p. 54)

Da mesma forma, Freud escreve a Jones alertando-o para ―não mexer com sua
82
filha‖ e também desabafa com Ferenczi, escrevendo que espera não ―perder sua filha por um
ato de vingança‖ (por parte de Jones).83 O referido ―ato de vingança‖ seria temido por Freud
pelo fato de haver sido testemunha do casamento de Loe com Jones II. 84
A ―revanche‖, porém, não aconteceu: ―À medida que ficava evidente que Anna
não se interessava pelo Doutor Jones e que este só queria ser bonzinho, Freud foi se
acalmando‖ 85
Jones foi um gentleman ao receber Anna na Inglaterra e escritos dela no futuro
indicariam que, talvez, a moça é que estivesse um tanto encantada por ele:

Conheci Ernest Jones pela primeira vez em 1908 como convidado na mesa de jantar
de minha casa em Viena. Ele era, então, um rapaz bonito e simpático e eu, uma
garota em idade escolar, bastante impressionada com ele. (...) Então, aos dezoito
anos, passei minhas primeiras férias na Inglaterra (...) Quando meu barco do
continente ancorou, ali estava Ernest Jones na plataforma, com um buquê de flores
nas mãos para me receber. Naturalmente, fiquei lisonjeada e impressionada, embora

81
Carta de 16.07.1914, de S. Freud a Anna Freud, citada por Young-Bruehl, 1992, p. 54. Citada na passagem em
que Maddox nos conta esse ocorrido (2006, p. 114).
82
―Agradeço muito o senhor pela gentileza com minha filhinha (...) Ela não espera ser tratada como uma mulher,
estando ainda distante dos anseios sexuais e bastante refratária aos homens. Há um combinado explícito entre
mim e ela, de que ela não deve pensar em casamento e nem em seus preparativos até que esteja dois ou três anos
mais velha. Não creio que ela romperá o acordo.‖ ―I thank you very much for your kindness with my little
daughter. (…) She does not claim to be treated as a woman, being still far away from sexual longings and rather
refusing man. There is an outspoken understanding between me and her that she should not consider marriage or
the preliminaries before she gets 2 or 3 years older. I don‘t think she will break the treaty.‖ (Carta de 22.07.1914
in Freud-Jones correspondence, p. 294) Citada por Maddox, 2006, p. 115.
83
―tampouco quero perder minha filha por um claro ato de vingança‖ (―tampouco quiero perder a mi hija por um
claro acto de venganza‖) (Falzeder, 2001, v. II. 1, p. 44, carta de 17.07.1914) Citada por Maddox, 2006, p. 114.
84
Maddox, 2006, p. 114.
85
Young-Bruehl, 1992, p. 54.
47

não sem uma suspeita secreta de que seu interesse estivesse mais voltado para meu
pai do que para mim. 86

Com o advento da 1ª Guerra Mundial foi necessário providenciar o retorno de


Anna a Viena rapidamente. Sua viagem de volta só foi possível com a ajuda de Loe e Jones II,
que articularam junto à embaixada austríaca um trajeto alternativo. 87 (Em 1918, assim que a
paz foi declarada, Jones levaria para Anna a bagagem que havia deixado para trás.)
A turbulência política também adiaria o cargo de presidência da IPA para Jones e
o Congresso que aconteceria em Dresden é cancelado.
A Guerra colocaria também os psicanalistas em divisão política, e Jones pela
primeira vez estava do lado ―inimigo‖ em relação a Freud, pois apoiava os ingleses. No
entanto isso não mudaria sua relação de lealdade nem com Freud nem com a ―Causa‖. Mas
tudo estava mais difícil: as cartas não chegavam ou chegavam com muita demora; os
periódicos iriam ser descontinuados (Imago, Zeitschrift e Jahbuch); Freud estava pessimista
com o porvir do movimento e previa mais colegas o abandonando.88
Por outro lado, Maddox nos conta que a Guerra havia aberto um novo campo para
a psicanálise: o tratamento das chamadas ―neuroses ou choques de guerra‖ (―shell shock‖),
atualmente chamado stress pós-traumático. Casos desse tipo encheram os consultórios e
Jones, com muitos pacientes, ganhava um bom dinheiro. Pôde, inclusive, ter a generosidade
de se oferecer para ajudar financeiramente o colega Otto Rank, que estava passando por
dificuldades.89
90
Jones se oferece para servir na Guerra mas é recusado pelo seu ―físico‖ . Em
seguida se oferecerá novamente para trabalhar em um hospital para ―shell-shock‖ (trauma
pós-guerra) e é novamente recusado – o motivo era sua demissão de outro hospital no
passado...

86
―I met Ernest Jones for the first time in 1908 as a guest at the dinner table of my home in Vienna. He was,
then, a good-looking, personable young man and I, a school girl, quite impressed by him. (…) Then, at age
eighteen, I spent my first holiday in England (…) When my boat from the continent docked, there was Ernest
Jones on the landing stage, with a bouquet of flowers in his hands to welcome me. Naturally, I was flattered and
impressed, though not without a lurking suspicion that his interest was directed more to my father than to
myself‖ (Freud, Anna, 1979, p. 347)

Anos depois Jones admitiria que sim, uma vez tinha pensado em se casar com Anna Freud – mas que Anna o
fazia ―tomar consciência dos meus defeitos‖. (Carta a Kitty, conferir Maddox, 2006, p. 154)
87
Maddox, 2006, p. 114-115.
88
Idem, Ibidem, p. 118.
89
Idem, Ibidem, p. 119.
90
É o que Jones diz em sua autobiografia (1959); Maddox afirma (2006) que o motivo da recusa foi artrite.
48

Com dinheiro no bolso e uma vida agradável, Jones compra uma fazenda em
Sussex e batiza-a de ―The Plat‖; costuma emprestá-la para uma paciente: Joan Riviere.
Joan havia procurado Jones para fazer psicanálise após sofrer um colapso nervoso
depois que seu pai faleceu – e chegou a ficar em um sanatório. Joan acabou se apaixonando
pelo analista e costumava lhe enviar cartas arrebatadas.
Na realidade Joan não seria a única paciente de Jones a se apaixonar por ele: o
mesmo aconteceria com uma mulher chamada Ethel Vaughan-Sawyer; também Edith Eder, a
esposa de David Eder (ex-aluno e ex-paciente de Jones, com quem fundaria a Sociedade de
Londres), se encantaria por Jones e em uma carta demonstra o quanto gostaria de ser sua
amante.91
Maddox (2006) analisa o que havia de comum entre todas as cartas apaixonadas
dessas mulheres que já se deitaram no divã de Jones:

O que esta correspondência revela é uma qualidade que não aparece em suas
pretensiosas cartas a Freud – a compaixão e a compreensão por seus pacientes,
principalmente mulheres, que Jones tinha ao trabalhar com suas mentes e corações.
Com suas observações penetrantes, ele rapidamente as fazia sentir que as
compreendia mais do que elas compreendiam a si mesmas e que elas podiam contar
com ele e que ele estava à disposição delas.92

Quanto a Jones, sua vida amorosa estava passando por mudanças. No início de
1917, após três anos de relacionamento, termina com Lina. Estava apaixonado por outra
mulher: uma jovem musicista galesa chamada Morfydd Owen.
Morfydd havia estudado música em Cardiff e se apresentava com sucesso
cantando, tocando piano; compunha suas próprias músicas. Era religiosa e profundamente
conectada às raízes galesas.
Jones a pediu em casamento – no terceiro encontro.
(Joan Riviere recebeu muito mal a notícia: já estava irritada por Jones tê-la
rejeitado e agora ele iria se casar com outra mulher. Subitamente interrompeu a análise e
deixou Londres por um semestre. Tempos depois, mais calma, retomaria sua análise com
Jones).

91
Maddox, 2006, p. 127.
92
―What such correspondence reveals is a quality that does not come through in his cocky letters to Freud – the
sympathy and insight that his patients, women particularly, felt that Jones had into the workings of theirs minds
and hearts. With his penetrating observations, he swiftly made them feel that he understood them better than they
understood themselves, and that they could rely on him to pull them through.‖ (2006, p. 126)
49

Em fevereiro de 1917 Jones e Morfydd se casam– apenas um mês e meio após se


conhecerem.
Também rapidamente – em setembro de 1918, um ano e meio após o casamento,
Morfydd morre de apendicite, aos 27 anos de idade.93
Jones ficou inconsolável. Cancelou seus pacientes por quase um mês e foi
amparado por amigos. Em sua autobiografia Jones descreve de modo pungente a dor que
sentiu e como a experiência teria provocado seu ―melhor lado‖. Os dois últimos parágrafos de
autobiografia (incompleta) concluem o que compreendeu – a partir da dor – ser sua meta de
vida: ajudar o próximo:

Depois de três semanas retomei o trabalho – afinal, não havia mais nada a ser feito.
Os pacientes naturalmente expressaram seu ressentimento pela interrupção,
encontrando sempre uma oportunidade de atingir minha ferida ainda
insuportavelmente aberta; o tratamento psicanalítico não revela os aspectos mais
encantadores da natureza humana. Mas eu estava respondendo com resignação. Já
que não poderia mais haver felicidade para mim, nada mais importava pessoalmente,
então eu podia dedicar todas as minhas energias a ajudar as outras pessoas. Havia
certo alívio nesse pensamento: nada mais poderia me ferir – pensei eu, então – e
poderia valer a pena viver a vida sendo útil aos outros.94

Com o fim da Guerra finalmente se reestabelece a comunicação entre Áustria e


Inglaterra. O 5º Congresso da IPA seria em Budapeste, Hungria – cidade efervescente na
psicanálise e com muito sucesso no tratamento de casos de neuroses de guerra. O novo
presidente da Associação seria o húngaro Ferenczi. 95
No entanto não poderia ser Budapeste o novo centro para a Psicanálise, uma vez
que as condições não estavam favoráveis por lá (com a revolução bolchevique). O melhor
seria ouvir os apelos de Jones, que por carta já havia sugerido a Freud lançar um periódico
oficial em inglês – tornando-a, assim, uma língua oficial do movimento. (Afinal, o
movimento precisaria ter um caráter internacional)96

93
A biógrafa de Jones, Brenda Maddox (2006), vê algo de inconclusivo na morte de Morfydd. O corpo da moça
não passou por autópsia e não fica muito claro o motivo da demora para operar. A questão fica em aberto.
94
―After three weeks I had resumed work – after all, there was nothing else to be done. Patients naturally
expressed their resentment at the interruption by finding opportunities to flick my still unbearably raw wound;
psycho-analytic treatment does not bring out the most charming aspects of human nature. But I was responding
with resignation. Since there could be no further happiness for me, nothing more mattered personally, so I could
devote the whole of my energies to helping other people. There was some relief in that thought: nothing more
could hurt me – so I then thought – and life would be well worth living through being useful to others.‖ (1959, p.
257) Citado em Maddox, 2006, p. 143.
95
Maddox, 2006, p. 145.
96
―Com tantos homens que não sabem alemão será necessário agora ter uma revista em inglês.‖ (―With the many
men who do not know German it will be necessary now to have a Journal in English.‖ (Carta de 31.12.1918 in
Freud-Jones correspondence, p. 327) Citado por Maddox, 2006, p. 146 e novamente: ―É essencial termos uma
50

Em Londres as condições eram boas para a psicanálise: também por lá o


tratamento das neuroses de guerra havia dado visibilidade para a Causa, havia uma sociedade
psicanalítica e muitos pacientes nos consultórios. Quanto a Jones, estava trabalhando com
mais produtividade do que nunca, não só atendendo a muitos pacientes mas também
escrevendo e publicando artigos. Funda, em fevereiro de 1919 a Sociedade Psicanalítica
Britânica (British Psycho-Analytical Society ou BPS) – da qual é presidente - mais ampla que
a anterior97 (abrange toda a Grã-Bretanha) e filiada à IPA. É também cheia de regras: cada
novo membro precisa ser indicado; membros novos precisam ficar como membros associados
por um ano e apresentar trabalhos, etc etc. 98
Mesmo não estando muito bem de saúde (sofria de neurite), nessa época Jones
viaja levando consigo as malas que Anna Freud havia deixado para trás em 1914 - e aproveita
para visitar velhos amigos – como os colegas do Comitê. Acompanhado de Rank e Hanns
Sachs vai a Zurique para o encontro da nova Sociedade Psicanalítica Suíça – que quer se filiar
à IPA. Jones faz pouco dos suíços e os chama de idiotas (―these stupid and confused Swiss‖)
em uma carta a Freud.99
De volta a Londres, Jones tratou de empenhar esforços para lançar o International
Journal of Psycho-Analysis, e para tal procurou meios de financiamento. Também montou
uma editora e livraria para vender livros sobre psicanálise. 100
Com tanto trabalho a fazer, Jones precisava de uma secretária. Ter uma esposa
também não seria má ideia. Pensando em ambas necessidades, o colega Hanns Sachs indica a
irmã de sua mulher, uma jovem chamada Katharine (Kitty) Jokl, judia da República Checa.
Kitty de fato era muito qualificada, bilíngue e diplomada em Economia. Quando a conheceu,
em Zurique, Jones a pediu em casamento – apenas 3 dias após o primeiro encontro. Ela aceita
e seria sua esposa e companheira por toda a sua vida, inclusive ajudando e secretariando seu
trabalho junto à Causa.101

revista oficial em inglês, aqui ou na América.‖ (―It is essential that we have an official journal in English, here or
in America‖ (Carta de 09.01.1919 in Freud-Jones correspondence, p. 328)
97
Na realidade este é o novo nome da antiga Sociedade Psicanalítica de Londres, fundada com Eder em 1913 e
desmanchada por conta de alguns membros ―dissidentes‖. (O co-fundador Eder foi um deles, já que estava
simpatizando ―demais‖ com as ideias de Jung.) (Maddox, 2006, p. 147) Anos depois, em 1923, Eder volta a
Londres depois de um tempo na Palestina e se surpreende com a nova Sociedade Britânica fundada por Jones –
Jones não o avisou por carta, mesmo Eder tendo sido o co-fundador da Sociedade de Londres – o que o deixou
aborrecido e irritado, como deixa claro em uma carta a Jones. (Conferir Maddox, 2006, p. 168).
98
É interessante: ao relatá-lo, Maddox ironicamente compara a fundação da Sociedade Britânica com a de uma
nova igreja. (2006, p. 147)
99
Carta de 25.03.1919 in Freud-Jones correspondence, p. 338. Citado por Maddox, 2006, p. 149.
100
Maddox, 2006, p. 151.
101
Kitty Jones, na ocasião do centenário de Ernest Jones, em 1979, contaria essa história, publicada no
International Journal: ―Nós nos conhecemos por intermédio de Hanns Sachs, que naquela época estava se
51

Depois de Zurique Jones segue para Viena, visitar o mestre. Lá também


reencontra seu ex-analista Ferenczi – que não encontrava há cinco anos. Freud sugere que
Ferenczi transfira a presidência da IPA para Jones – e este concorda. Outros frutos
importantes do encontro entre os amigos são a inclusão do alemão Max Eitingon no Comitê e
a concordância de Freud em ajudar a financiar o Journal na Inglaterra.
Jones e Kitty se casam em outubro de 1919, em Zurique, e vão passar a lua de mel
em Lugano. Novamente Joan Riviere – agora uma analista didata que já tem seus próprios
pacientes - fica arrasada e escreve a Jones que ele é mesmo ―irresistível para as mulheres‖.102
Nessa época acontecem algumas mortes importantes: Freud perde a filha Sophie,
de gripe; também falece o patrocinador dos trabalhos de Freud, von Freund, e o pai de Ernest
Jones, Thomas Jones, morre de câncer.
A morte do pai de Jones coincide com a primeira gravidez de Kitty, de uma
menina (Gwenith), que nasce em outubro de 1920.
Com a herança de seu pai, Jones doa uma boa soma para a ―Causa‖, para ajudar
nas publicações inglesas. Jones também envia parte desse dinheiro para Otto Rank, que está
em dificuldades financeiras e se dedica muito para o lançamento do Journal.
O 6º Congresso da IPA, em setembro de 1920, aconteceria em Haia, na Holanda –
com Jones na presidência. O Congresso receberia uma austríaca ex-paciente de Ferenczi e por

tratando de tuberculose na Suíça, onde eu estava, então, me diplomando em Economia, uma área vinculada à
Faculdade de Direito de Viena, que não era aberta para mulheres. Ernest Jones estava em férias na Suíça e estava
a caminho de Viena para encontrar Freud pela primeira vez desde a Guerra. Sachs, que era amigo da minha
família, tinha organizado um encontro em um dos maravilhosos cafés ao ar livre dali; Sachs, E. J., minha mãe e
eu. Na verdade, Sachs não estava lá, mas E.J. veio com uma mão estendida para me cumprimentar; ele usava um
terno branco porque era um outono muito quente. Conversamos, jantamos com várias pessoas naquela noite e
combinamos de nos encontrar novamente no dia seguinte. Naquele dia ganhei um grande cesto de flores, eram
ervilhas-de-cheiro [Lathyrus odoratus, um tipo de flor] , "uma flor inglesa" como dizia o cartão anexo. No dia
seguinte, um domingo, nos encontramos novamente e E.J. me pediu para dar uma volta. Nos bosques de Dolder
ele me perguntou se havia uma parte da Suíça que eu não conhecia e que gostaria de conhecer. Eu disse: 'Ah, o
Sul de Lugano. Quero muito ir para lá‘. Então ele me perguntou se eu iria com ele e acrescentou: "Quero dizer,
como minha esposa, é claro." Portanto, esta pergunta decisiva surgiu depois de três dias; foi seguida por 36 anos
de um casamento feliz.‖ (Jones, 1979, p. 271) ―We met through Hanns Sachs who at that time was curing his
tuberculosis in Switzerland where I was then taking a University degree in Economics, a subject adhering to the
Law Faculty in Vienna which was not open to women. Ernest Jones was on holiday in Switzerland and on the
way to Vienna to meet Freud for the first time since the War. Sachs, who was a friend of my family, had
arranged a rendez-vous in one of the charming garden cafés there; Sachs, E. J., my mother and myself. Actually
Sachs was not there, but E.J. came with an outstretched hand to meet me; he wore a white suit because it was a
very hot autumn. We talked, had dinner with a large company that night and arranged to meet again the next day.
I had a big basket of flowers on that day, they were sweet peas, 'an English flower' as the attached card said. On
the next day, a Sunday, we met again and E.J. asked me to come for a walk. In the Dolder woods he asked me
whether there was a part of Switzerland I didn't know and wanted to see. I said: 'Oh, the South Lugano. I long to
go there.' Then he asked me whether I would come with him and added: 'I mean as my wife of course.' So this
decisive question came after three days; it was followed by 36 years of happy marriage.‖ (Jones, K. 1979, p.
271) Citada por Maddox, 2006, p. 153.
102
Maddox, 2006, p. 156.
52

ele recomendada por fazer ―excelentes observações sobre crianças‖.103 Seu nome era Melanie
Klein.
Nessa época um importante passo foi dado na expansão das ideias freudianas no
mundo anglo-saxão: um escritor e intelectual inglês bastante influente chamado James
Strachey – que frequentava um grupo do qual fazia parte, por exemplo, a escritora Virginia
Wolf – se ofereceu para traduzir Freud, com o apoio de sua esposa, Alix Sargant-Florence.
Para se preparar para a (árdua) tarefa, Jones indicou que ele se analisasse com Freud.104 Alix
faria o mesmo.
Em julho de 1920 sai a primeira edição do International Journal of Psycho-
Analysis. Freud se irrita com Jones pelo fato de a publicação estar cheia de erros, e os colegas
colaboradores também estavam desgostosos com o galês pelo seu jeito autoritário de
trabalhar. Jones não acatou as críticas e se achava ―democrático até demais‖. 105
Depois de tanto tempo, o Comitê secreto pode voltar a se reunir, desta vez com o
novo membro: Max Eitingon. O primeiro encontro ―ao vivo‖ depois da guerra se daria em
setembro de 1921. O grupo tinha circulares internas (Rundbriefe), mas com o tempo essas
circulares começaram a se prestar mais à desunião com que à coesão do grupo, alimentando
fofocas, conchavos e hostilidades uns aos outros.
Nessa fase Jones se preocupa com um interesse de Freud: a telepatia. Na
Inglaterra esses assuntos eram muito mal vistos – e o cético Jones pessoalmente também não
os aprovava. Jones e Ferenczi então trataram de demover Freud da ideia de apresentar seu
trabalho ―Psicanálise e telepatia‖ (1921) no próximo Congresso da IPA.
Em sua vida pessoal e profissional, Jones está muito realizado, e Kitty está
novamente grávida – de um menino (Mervyn), que nasceria em fevereiro de 1922.
Maddox (2006) assim resume e analisa suas conquistas:

Ele era um homem mudado. Com sua vida privada em ordem, ele estava pronto para
liderar o movimento de Freud. Nenhum convite era necessário. Ele foi, ao mesmo
tempo, presidente da Associação Psicanalítica International, editor de sua revista e
editora de língua inglesa e editor associado de suas publicações em língua alemã.
Não menos importante, foi presidente da Sociedade Psicanalítica Britânica, com

103
―Colaborará com a Dra. [Melanie] Klein (não médica), que fez há pouco umas observações excelentes sobre
crianças, depois de passar vários anos sendo instruída por mim.‖ (―Colaborará con la Dra. [Melanie] Klein (no
médica), que hizo hace poco unas observaciones excelentes en niños, después de llevar varios años siendo
instruída por mí.‖) Falzeder, 2001, V. II.2, p. 223-224. Citada em Maddox, 2006, p. 162.
104
Maddox, 2006, p. 160.
105
Carta de 12.11.1920 in Freud-Jones correspondence, p. 398. Citada por Maddox, 2006, p. 162.
Quem o conheceu pessoalmente, como sua assistente de pesquisa, afirma que Jones realmente combinava
opostos em sua personalidade: ―Por un lado, su actitud combativa y a veces beligerante; por el otro, su bondad y
generosidad.‖ (Veszy-Wagner, 1968, p. 13)
53

poder absoluto sobre quem poderia e quem não poderia ser um psicanalista no Reino
Unido. As rédeas estavam em suas mãos.106

O poder de Jones nessa época quase assemelha-se a de um rei – ao menos mora


em uma casa ―da realeza‖. Jones, Kitty e os filhos haviam se mudado recentemente para uma
casa elegante concedida pela Coroa inglesa. Maddox (2006) nos conta como ter uma ―casa de
rei‖ o divertia: ―Ele se preocupava com as contas - queixando-se, por exemplo, para
"Kittinka", como ele a chamava, de ter que pintar a frente da casa e suas grades sob as ordens
do ‗Rei George‘ (ele obviamente estava satisfeito por ter um contrato de arrendamento da
Coroa) (...) Ele era um homem feliz.‖ 107
A única coisa que incomoda o galês nessa época é seu próprio nome, ―Jones‖:
nessa fase vai tomar a decisão de mudar seu sobrenome, por ser ―comum demais‖.
Consultando o mestre sobre a decisão, e este não foi favorável – Jones desiste da mudança.108
Como um missionário, Jones se esforça por explicar e defender a Psicanálise em
Londres, escrevendo artigos e dando palestras – além de atender seus pacientes. Em 1923 sai
mais uma coletânea de artigos seus: o Essays in Applied Psycho-Analysis.
Nessa época a relação de Jones com Joan Riviere ia de mal a pior. Além do
trabalho analítico Joan e Jones mantinham contato fora do consultório por pelo menos duas
ligações: como vimos, Jones costumava emprestar sua fazenda The Plat para Joan e também
ela, como psicanalista, era membro da Sociedade Britânica - e se oferecia para contribuir
inclusive com trabalhos de tradução.
Após cinco anos, Joan encerrou de vez sua análise com Jones e seguiu pra Viena
se analisar com Freud. Jones mandou por cartas a descrição da paciente construindo uma
imagem ruim de Joan - caso que chamou de ―seu pior fracasso‖ como psicanalista.109
No entanto, após conhecer a paciente Freud tem uma impressão diferente e diz a
Jones que está aliviado por pelo menos o galês não ter feito sexo com ela – como imaginava.

106
―He was a changed man. His private life in order, he was ready to lead Freud‘s movement. No invitation was
necessary. He was, at one and the same time, president of the International Psychoanalytic Association, editor of
its English-language journal and publishing house, and associate editor of its German-language publications. Not
least, he was president of the British Psycho-Analytical Society, with absolute power over who could and who
could not be a psychoanalyst in the United Kingdom. The reins were in his hands.‖ (Maddox, 2006, p. 163-164)
107
―He worried about bills – complaining, for instance, to ‗Kittinka‘, as he called her, about having to paint the
front of the house and its railings under orders from ‗King George‘ (he was obviously pleased to have a Crown
lease) (…) He was a happy man.‖ (Maddox, 2006, p. 167)
108
Maddox, 2006, p. 1 e novamente em p. 166-167. Em outra passagem a autora comentaria que era uma
característica da cultura galesa a escassez de sobrenomes, e para distinguir uma pessoa da outra eram usados
numerais. (2006, p. 13)
109
Maddox, 2006, p. 170.
54

Jones responde que a partir de agora o mestre pode ficar tranquilo porque já superou esse tipo
de ―tendência‖.
Ao que tudo indica Jones também parece ter sido pouco hábil na condução dos
trabalhos de Joan junto à Sociedade. Maddox nos conta que ela havia se oferecido para revisar
as traduções do Journal, mas Jones estava hesitante para aceitar pelo fato de que ela não era
―muito fácil de lidar‖ – Rickman, outro candidato para a tarefa, era mais tranquilo para
conviver (mas este, por sua vez, tinha erros de gramática...) – e principalmente pelo fato de
Joan ser uma analista leiga, o que poderia ser um ―tapa na cara‖ dos americanos 110. Além
disso, Jones acha que ela pede muito reconhecimento (pelas traduções) e que vai colocar
―muito peso‖ no título (cargo), se o ganhar.
Freud discorda: não só pensa que ela é perfeita para a função como acha que Joan
tem todo o direito que receber os créditos e o reconhecimento adequado por isso. Na verdade,
Freud a esse ponto acha que o principal problema com as publicações – erros, demoras,
problemas de edição – se devem a Jones, que não sabe trabalhar em equipe nem delegar nada:

Mas isso é apenas parte de uma questão maior. Ao conversar sobre o assunto da
lentidão da Press com Rank ontem tive a convicção de que alguma mudança é
inevitável. A falha não está na incapacidade de Hiller (...) Outra roda na maquinaria
parece estar errada e eu penso que é a sua posição no meio dela e o cerimonial, que
prescreve sua interferência pessoal em cada pequeno passo do processo 111 [grifo
meu].112

O 7º Congresso da IPA seria em Berlim, em setembro de 1922. A Alemanha nessa


época era o centro psicanalítico da Europa, e o país parecia vibrar com as ideias freudianas.
Mesmo com o êxito do Congresso e a efervescência da psicanálise e da
Associação, Freud passa todo o ano de 1922 desgostoso com Jones. As reprimendas acima
citadas continuam, com críticas a Jones por seu jeito rígido, inábil ao tratar com pessoas e
pela sua postura no Comitê Secreto. Chega ao ponto de dizer que se decepcionou com ele pois
é menos sincero e confiável do que pensava e que deseja que no ano seguinte – 1923 –
possam recuperar a amizade:
110
Os psicanalistas americanos se posicionavam contra a análise leiga, isto é, a psicanálise exercida por não-
médicos. Os europeus pensavam de modo oposto. (Maddox, 2006, p. 169-170)
111
No fim da carta Freud talvez ache que tenha ―pesado a mão‖ com Jones e se desculpa: ―Perdoe minha
intromissão nos seus negócios, mas eles são nossos e meus também.‖ ―Pardon my meddling with your affairs but
they are our and mine too‖ (Carta de 06.04.1922 in Freud-Jones correspondence, p. 469) Outro trecho citado por
Maddox, 2006, p. 169.
112
―But that is only part of a bigger question. On talking over the subject of the Press‘ slowness with Rank
yesterday I gained the conviction that some reform is unavoidable. The fault dos not lie in Hiller‘s disabilities
(…) Another wheel in the machinery seems to be wrong and I imagine it is your position in the middle of it and
the ceremonial, that prescribes your personal interference in every little step of the process.‖ (Carta de
06.04.1922 in Freud-Jones correspondence, p. 468) (grifo meu) Outro trecho citado por Maddox, 2006, p. 169.
55

Este último ano trouxe uma decepção que não é fácil de suportar. Eu tive que
descobrir que o senhor tinha menos controle de seus humores e paixões, que o
senhor era menos consistente, sincero e confiável do que eu tinha o direito de
esperar do senhor e que foi exigido por sua posição distinta. E embora o senhor
mesmo tivesse proposto o comitê, não se absteve de pôr em perigo sua união por
suscetibilidades injustas. (...)
Desejando uma completa restauração da fé e da amizade em 1923.
Carinhosamente, Freud.113

Jones se desculpa e diz que agradece a reprimenda, mas que Freud só pode estar
equivocado ao chamá-lo de pouco confiável.114
De fato, em 1923 as relações no Comitê estão beirando o insuportável, todos
brigando por interesses e por dinheiro, uns contra os outros. Em determinado momento todos
parecem se voltar contra Jones, principalmente por suas dificuldades de lidar com o colega
Rank. Este e Ferenczi inclusive gostariam de ver Jones fora do grupo. (Ferenczi também
achava que Jones precisava voltar para a análise, pois era muito neurótico.)
Brill então fez um comentário maldoso contando a Ferenczi que Jones havia
chamado Rank de ―judeu fraudulento‖ – pelo que o galês foi rapidamente taxado de
antissemita. Na verdade o que Jones havia dito era que Rank ―tinha uma maneira oriental de
conduzir os negócios‖. A expressão ―swindling Jew‖ (―judeu fraudulento‖), portanto, jamais
foi dita por Jones, e sim adicionada por Brill – que reconheceria a adição maldosa meses
depois.115 Por conta desse episódio, Ferenczi – que era judeu –mal falava com Jones (na
realidade, bem nos lembramos que Jones era o único integrante não judeu do Comitê); Jones
se desculpa pelo mal-entendido.
O Comitê ainda funcionaria com muitos conflitos internos por mais algum tempo,
e logo todos estavam contra Rank – que havia lançado um livro sobre trauma do nascimento
e, portanto, se afastando demais das ideias do mestre. 116 Em 1924 Rank deixaria o grupo e iria
para os EUA.
Freud não estava bem: diagnosticado com câncer, não compareceria ao 8º
Congresso da IPA, em Salzburgo, Áustria, em 1924. Jones passa a presidência a Karl
Abraham.
113
―This last year brought a disappointment not easy to bear. I had to find out that you had less control of your
moods and passions, were less consistent, sincere and reliable than I had a right to expect of you and than was
required by your conspicuous position. And although you yourself had proposed the committee you did not
refrain from endangering its intimacy by unjust susceptibilities. (…) Wishing for a complete restoration of faith
and friendship in 1923. Affectionately yours Freud‖ (Carta de 07.01.1923 in Freud-Jones correspondence, p.
507-508) Citada por Maddox, 2006, p. 174.
114
Carta de 14.01.1923 in Freud-Jones correspondence, p. 509. Citada por Maddox, 2006, p. 175.
115
Maddox, 2006, p. 176.
116
Maddox, 2006, p. 176.
56

No mesmo ano Jones trabalha arduamente na tradução de termos freudianos, no


projeto do ―Glossário‖, trabalho de muitas mãos (Jones, Strachey, Alix e Joan Riviere
integrariam o ―Comitê do Glossário‖, mas muitos outros também colaboraram, como Brill e
Ferenczi) publicado como um suplemento do Journal. Também, é claro, acompanha e revisa
o trabalho de tradução dos Strachey da obra de Freud.
Em 1924 Jones cria um instituto, simplesmente chamado: Instituto de Psicanálise
(The Institute of Psycho-Analysis) – incorporando a Press (editora), e com projeto de também
ter uma clínica e ministrar cursos. Jones seria o presidente e John Rickman secretário.
Com dois filhos pequenos, Jones compra uma pequena casa na região onde nasceu
no País de Gales (Gower) para passar as férias. Nessa época costuma observar as crianças e
divide suas observações com o mestre, por cartas.
Foi Alix Strachey quem comenta com Jones que em Berlim uma psicanalista
chamada Melanie Klein vinha realizando um trabalho psicanalítico pioneiro com crianças.
Alix havia ficado impressionada com Klein quando a assistiu apresentar um trabalho e, a
pedido do marido James, fez um resumo das principais contribuições kleinianas para
apresentar na BPS. Jones ouve a exposição de Alix e fica fascinado (inclusive porque as
ideias de Klein poderiam ajudar nas dificuldades que ele como pai e sua mulher Kitty estavam
tendo com os filhos).
Sabendo que suas ideias haviam sido tão bem recebidas em Londres (ela não tinha
a mesma receptividade em Berlim, onde vivia), a própria Melanie Klein manifestou seu
interesse para Alix Strachey em vir para a Inglaterra para dar palestras para a Sociedade
Britânica. Alix não teve muito trabalho para convencer Jones. Segundo análise de Maddox
(2006), Londres naquela época não poderia ser terreno mais fértil para se falar sobre crianças:

Jones foi facilmente persuadido [a receber Klein]. Londres era terreno fértil para
análise infantil. Na Sociedade Psicanalítica Britânica (a maior dessas sociedades do
mundo), havia mais interesse nos problemas da infância como evidenciado por J. M
Barrie, Lewis Caroll e muitos outros escritores, ou um número inusualmente grande
de mulheres analistas. Estes incluíam Susan Isaacs, Barbara Low, Sylvia Payne e
Joan Riviere. Seus números atestam a melhoria do status das mulheres na Grã-
Bretanha. Em 1918 elas haviam conseguido o voto (...) e estavam entrando na
política e defendendo a contracepção.117

117
―Jones was easily persuaded [a receber Klein]. London was fertile ground for child analysis. In the British
Psycho-Analytical Society (the largest such society in the world), there was more interest in the problems of
childhood as evidenced by J. M Barrie, Lewis Caroll and many other writers, or an unusually large number of
women analysts. These included Susan Isaacs, Barbara Low, Sylvia Payne and Joan Riviere. Their numbers
testify to the improved status of women in Britain. In 1918 they had achieved the vote (…) and were entering
politics and advocating contraception.‖ (Maddox, 2006, p. 181)
57

Então, em 1925 Melanie Klein dá um ciclo de palestras na Sociedade Britânica


(BPS). Mais tarde Jones escreveria entusiasmado para Freud:

Melanie Klein acaba de dar um curso de seis palestras em inglês para nossa
Sociedade sobre 'Frühanalyse' [‗Análise precoce‘]. Ela causou uma impressão
extraordinariamente profunda em todos nós e ganhou os maiores elogios tanto por
sua personalidade quanto por seu trabalho. Eu próprio desde o início apoiei suas
opiniões sobre a análise precoce e, embora não tenha experiência direta de análise
do jogo, estou inclinado a considerar seu desenvolvimento como extremamente
valioso.118

Quando Viena torceu o nariz para Klein, Jones manteve sua posição:

Eu soube que o trabalho de Melanie Klein encontrou uma oposição considerável em


Viena e também em Berlim, embora mais no início do que posteriormente.
Considero o fato como nada mais que uma resistência contra a aceitação da
realidade de suas conclusões a respeito da vida infantil. A análise profilática da
criança parece-me ser o resultado lógico da psicanálise.119

Klein tinha interesse em se estabelecer em Londres de vez, e isso era ótimo para
Jones, não apenas pelo fortalecimento da Psicanálise inglesa mas inclusive porque as técnicas
inovadoras da psicanalista poderiam ajudar seus filhos, Gwenith e Mervyn (Jones pensava,
junto a Kitty, em colocar seus filhos para iniciar um trabalho psicanalítico com Klein). 120
Melanie chegou em Londres – e seria para ficar - em setembro de 1926 e
começou a atender os filhos de Jones; algum tempo depois também começaria a atender Kitty.
Klein agradece muito, em carta, todo o apoio caloroso de Jones para recebê-la121 e
compartilha com ele os avanços de Kitty na análise.

118
―Melanie Klein has just given a course of six lectures in English before our Society on ‗Frühanalyse‘ [‗Early
analysis´]. She made an extraordinarily deep impression on all of us and won the highest praise both by her
personality and her work. I myself have from the beginning supported her views about early analysis and
although I have no direct experience of play analysis I am inclined to account her development of it as
exceedingly valuable.‖ (Carta de 17.07.1925 in Freud-Jones correspondence, p. 577-8) Citado por Maddox,
2006, p. 182.
119
―I knew that Melanie Klein‘s work has met with considerable opposition in Vienna and also in berlin, though
more at first than later. I regard the fact as indicating nothing but resistance against accepting the reality of her
conclusions concerning infantile life. Prophylactic child analysis appears to me to be the logical outcome of
psycho-analysis.‖ (Carta de 31.07.1925 in Freud-Jones correspondence, p. 579) Citado por Maddox, 2006, p.
183. Maddox nos conta sobre essa fase turbulenta e sobre essas cartas e comenta, insinuando uma suposta
―independência total‖ do galês nesse período: ―Jones já não estava ouvindo a voz de seu mestre‖ ―Jones was no
longer listening to his master‘s voice.‖ (2006, p. 183). Não estou completamente de acordo com esta
interpretação da biógrafa, já que Jones conseguiu, como estamos vendo, um delicado equilíbrio entre acolher
Klein e sua teoria e ao mesmo não romper com o mestre (mesmo com discordâncias). A voz de Klein era ouvida
por Jones e também (e sempre) a voz de Freud, e o galês buscava nessa época uma mediação e um equilíbrio (e,
mesmo com conflitos com o mestre, não foi um dissidente). Essa, penso, é uma das maiores conquistas de Jones
para o movimento psicanalítico.
120
Ao relatá-lo, Maddox (2006) fala em ―dupla vantagem‖ (―double advantage‖) (p. 185)
121
Maddox, 2006, p. 185. É interessante, a propósito, o modo como a biógrafa escolhe as palavras para descrever
a recepção de Klein (e da psicanálise de crianças) por Jones, utilizando uma imagem religiosa: ―para um
58

A antipatia que Viena demonstrava pelas ideias de Klein logo se consolidou como
uma aberta disputa e rivalidade, personalizadas na figura de Anna Freud. A filha do mestre,
que também estudava psicanálise para crianças, tinha uma visão totalmente diversa da de
Klein, e discordava abertamente dos seus pensamentos. O lançamento do livro de estreia de
Anna, ―Introdução à técnica de análise infantil‖ (1928) marca o início de um conflito entre
Viena e Londres que durará alguns anos.
Freud, evidentemente, toma o partido de sua filha e Jones, por sua vez, pela
primeira vez na história, se posiciona no lado oposto ao do mestre: apoia as ideias de Melanie
Klein.
No primeiro Simpósio de Londres, em 1927, houve uma discussão acalorada
sobre as divergências dos ingleses sobre o livro de Anna. Jones inclusive recusou trazer uma
edição em inglês do livro de Anna para a sua International Psychoanalytical Library, enquanto
por outro lado publicou as discussões do Simpósio no Journal. Como represália, o editor do
Zeitschrift em Viena recusou traduzir o Simpósio londrino para o alemão.122
Nessa época a relação de Jones com o mestre está muito delicada. Em carta, Jones
menciona para Freud que seus filhos estão em tratamento psicanalítico – mas Maddox
enfatiza: mas Jones não comenta com quem – , diplomaticamente agradecendo o mestre por
ter criado tão valioso método (a psicanálise). Por outro lado, não deixa de alfinetar Anna
Freud de uma forma que deixaria Freud contrariadíssimo:

É uma dor para mim não poder concordar com algumas das tendências no livro de
Anna, e não posso deixar de pensar que elas devem ser devidas a algumas
resistências imperfeitamente analisadas; na verdade é possível provar isso em
detalhes. É uma pena que ela tenha publicado o livro tão cedo – [são] suas primeiras
palestras, mas espero que ela possa se mostrar tão receptiva quanto seu pai a
[ganhar] uma maior experiência (grifo meu). 123

Como sabemos, foi o próprio Freud que analisou sua filha Anna,124 e a insinuação
de que ela teria ideias equivocadas (isto é, diferentes das de Melanie Klein) pelo fato de ter
feito uma análise insuficiente ou falha deixa Freud muito irritado, devolvendo para Jones o

verdadeiro crente como ele era, a análise infantil parecia não mais problemática do que o batismo seria para um
pai cristão‖ (2006, p. 189) ―to a true believer such as he was, child analysis seemed no more problematic than
baptism would be for a Christian parent.‖ (2006, p. 189)
122
Maddox, 2006, p. 189.
123
―It is a pain to me that I cannot agree with some of the tendencies in Anna‘s book, and I cannot help thinking
that they must be due to some imperfectly analyzed resistances; in fact it is possible to prove this in detail. It is a
pity she published the book so soon – her first lectures, but I hope she may prove as amenable as her father to
further experience.‖ (Carta de 16.05.1927 in Freud-Jones correspondence, p. 617-8) (grifo meu) Citado por
Maddox, 2006, p. 189-190.
124
Não se sabe, porém, se Jones também sabia disso. A própria biógrafa Maddox (2006, p. 193) levanta a
questão mas não a responde – decerto não há documentos que indiquem que sim ou que não.
59

fato de que ele mesmo fez uma análise muito breve e incompleta. O mestre também andava
contrariado125 com Jones por outras atitudes e escolhas administrativas (de congressos e
publicações) e então simplesmente pergunta a Jones, sem rodeios:

O senhor está perseguindo um determinado objetivo ou está cedendo à sua


inclinação de ser desagradável? Além disso, há mais uma coisa. Em Londres, o
senhor está organizando uma campanha contra a análise infantil de Anna, acusando-
a de não ter sido analisada profundamente o suficiente, uma reprimenda que repete
em uma carta para mim. Eu tenho que dizer ao senhor que tal crítica é tão perigosa
quanto inadmissível. Efetivamente alguém já foi analisado o suficiente? Posso
assegurar ao senhor que Anna foi analisada por mais tempo e mais profundamente
do que, por exemplo, o senhor mesmo. 126

A irritação de Freud ultrapassa Jones e atinge todos os britânicos, que abertamente


se colocam simpáticos às ideias de Melanie Klein e críticos às de Anna Freud.
Nessa época a filha de Jones, Gwenith, de apenas sete anos, morre de pneumonia
(Jones fica inconsolável). Cerca de um ano depois da tragédia, Kitty engravida novamente – e
é outra menina: Nesta May.
Jones acompanha os encontros do Comitê da Associação Médica Britânica
[British Medical Association – BMA] e segue de perto a discussão sobre análise leiga.
Naquela época a Associação de médicos estava atacando as ideias freudianas, enxergando
possíveis perigos na ênfase sexual e os seus efeitos (maléficos) na educação das crianças. A
fim de combater essa prevenção, Jones apresenta e defende a psicanálise nas reuniões,
relatando casos clínicos e as evidências exitosas dos tratamentos
Nesse mesmo período Jones escreve um livro chamado simplesmente ―Psycho-
Analysis‖ (1928), explicando, com muito didatismo, os fundamentos da teoria freudiana e
suas aplicações em outras áreas do conhecimento (como a Religião, por exemplo). (A obra
seria reeditada com um adendo em 1949, sob o nome de ―What is Psycho-analysis?‖)
O esforço de Jones junto à classe médica não foi em vão: o relatório da BMA
concluiu que o Comitê não tinha nada contra (nem a favor) a prática psicanalítica. Determinou

125
Freud está tão desgostoso com Jones nessa época que, em uma carta a Max Eitingon, chega a dizer que ele é
um ―galês desonesto‖ – apesar de não ser mal-intencionado. (Carta de 27.11.1927, de S. Freud a M. Eitingon,
citada por Young-Bruehl, 1992, p. 152-153). Citado por Maddox, 2006, p. 195.
126
―Are you pursuing a particular aim or are you yielding to your inclination to make yourself unpleasant? In
addition there is something else. In London you are organizing a campaign against Anna‘s child analysis,
accusing her of not having been analyzed deeply enough, a reproach that you repeat in a letter to me. I had to
point out to you that such a criticism is just as dangerous as it is impermissible. Is anyone actually analyzed
enough? I can assure you that Anna has been analyzed longer and more thoroughly than, for example, you
yourself.‖ (Carta de 23.09.1927 in Freud-Jones correspondence, p. 623-624) Citado por Maddox, 2006, p. 192.
60

ainda que o termo ―psicanálise‖ só poderia ser utilizado para as técnicas de Freud (de nenhum
outro teórico) e que apenas membros da IPA poderiam exercê-la.127
Na Sociedade Britânica, Jones e Glover determinaram que o ingresso de membros
leigos (não-médicos) era permitido, mas com a condição de não praticarem a Psicanálise de
modo independente e de contarem com um psicanalista médico como ―consultor‖. King
(1998) descreve a importância dessas conquistas:

Jones conseguiu para a psicanálise na Inglaterra o reconhecimento médico de sua


diferenciação em relação a outras formas de psicoterapia. Era a primeira vez que
uma associação nacional oficial da profissão médica de qualquer país tinha
reconhecido a distinção entre ‗psicanalistas‘ e pseudo-analistas‘, bem como as
qualificações estabelecidas pelos membros da Associação Internacional de
Psicanálise. 128

Em carta de junho de 1929, Freud reconheceria os méritos de Jones por garantir


que a classe médica não virasse as costas para a psicanálise.129
Como uma comemoração aos 50 anos de Jones, no 11º Congresso da IPA, em
Oxford, Inglaterra, Freud (1929) mostrou – apesar de toda a fase turbulenta com o galês –
toda sua consideração pelo que Jones havia feito pela Causa:

(...) Ernest Jones nunca descansou. Primeiro em seu cargo de professor em Toronto,
depois como médico em Londres, como fundador e professor de uma sociedade,
como diretor de uma editora, redator-chefe de um periódico e diretor de um instituto
de formação, trabalhou incansavelmente pela psicanálise, tornando, através de
palestras, suas descobertas correntes conhecidas geralmente, defendendo-a contra os
ataques e as incompreensões de seus oponentes através de críticas brilhantes e
severas, mas justas, mantendo sua difícil posição na Inglaterra contra as exigências
da ‗profession‘(profissão) com tato e moderação, e, juntamente com todas essas
atividades externamente dirigidas, realizando, em leal cooperação com o
desenvolvimento da psicanálise no Continente, a obra científica da qual, entre outros
trabalhos, seus Papers on Psycho-Analysis e Essays in Applied Psycho-Analysis dão
testemunho. Agora, na plenitude da vida, ele não apenas é, indiscutivelmente, a
principal figura entre os analistas de fala inglesa, mas também é reconhecido como
um dos representantes de proa da psicanálise em geral – um sustentáculo para seus
amigos e, tanto quanto sempre foi, uma esperança para o futuro de nossa ciência. 130

127
Maddox, 2006, p. 201.
128
King, 1998, p. 41.
129
―O senhor não ficará surpreso ao ler em breve que eu também apontei publicamente sua extraordinária
capacidade de trabalho e como estamos em dívida com o senhor.‖ (―You will not be surprised to read shortly that
I have also pointed out publicly your extraordinary capacity for work and how indebted we are to you.‖) (Carta
de 02.06.1929 in Freud-Jones correspondence, p. 660) Citado por Maddox, 2006, p. 202.
130
Freud, 1929, v. XXI, p. 285-286 apud Maddox, 2006, p. 201-202. Roazen (1974) nos conta que, além dessa
demonstração de valorização de Jones por parte do mestre em seu 50º aniversário, Freud ―confirmou a opinião
que tinha Jones de sua própria importância na psicanálise, quando, em 1913, cumprimentou-o por haver
enfrentado publicamente Janet‖ (1974, p. 390-1)
61

Ao reconhecimento de Freud, nessa época, se somava o reconhecimento geral: no


início da década de 30 Jones parecia estar no auge. Maddox assim resume suas conquistas:

Com seus múltiplos papéis como editor, escritor e diplomata psicanalítico, a


reputação de Jones cresceu, especialmente através de seus livros, Papers on Psycho-
Analysis e Essays in Psycho-Analysis, e foi muito solicitado como palestrante. Em
Nova York, pronunciou o discurso inaugural no Instituto Psiquiátrico da
Universidade de Columbia. (...) Em Paris, falou em francês na Sorbonne sobre ‗La
Jalousie‘.
Seu pequeno livro Psycho-Analysis, escrito em 1928 (...) foi impresso três vezes em
três meses, e em 1932 estava em sua sexta [edição], bem como havia sido traduzido
em várias línguas. (...) Em 1932 Jones foi convidado por um programa de rádio da
BBC. 131

Além de todas essas demandas, Jones cuidava da Sociedade Britânica, de sua


clínica e seu instituto. E, no tempo livre, praticava, com muita habilidade, tanto xadrez quanto
patinação artística: era excelente enxadrista e tinha um grande talento para a patinação
artística, tendo inclusive ganho uma medalha de bronze pela Associação de Patinação no Gelo
(National Ice Skating Association). Os conhecimentos de Jones sobre patinação artística
também o levaram a escrever um livro didático sobre a técnica, ―The Elements of Figure
Skating‖ (1931).
A prática da patinação artística dava a Jones oportunidade de conviver com a alta
sociedade - incluindo membros da realeza- , que se encontrava nos clubes de patinação. Entre
os frequentadores, Jones acabou fazendo amizade com Sir Samuel Hoare, Secretário de
Estado da Índia.
Em 1932 havia Psicanálise no mundo todo, mas a crise financeira (Grande
Depressão) diminuía o número de pacientes nos consultórios, inclusive de Freud. O
Congresso daquele ano teve de ser cancelado porque ninguém tinha condições financeiras
para viajar. A Verlag – editora psicanalítica alemã – estava falindo e a solução que Jones
encontrou para salvá-la foi incorporando-a à IPA (e cobrando uma taxa dos seus membros).
Nessa época as atenções se voltam para Ferenczi, que estava se mostrando um
dissidente, com ideias estranhas que o afastavam do mestre. Além disso, ouvia-se dizer que o
húngaro beijava suas pacientes, e Freud obviamente não aprovava a prática. Em 1930 as
divergências chegam a tal ponto que Ferenczi recusa a presidência da IPA. Escreve então um
131
―With his multiple roles as editor, writer and psychoanalytic diplomat, Jones‘s reputation grew, particularly
through his books, Papers on Psycho-Analysis and Essays in Applied Psycho-Analysis, and he was much in
demand as a speaker. In New York he delivered the inaugural address at Columbia University‘s Psychiatric
Institute (…) In Paris, he spoke, in French, at the Sorbonne on ‗La Jalousie‘. His short book Psycho-Analysis,
written in 1928 (…) went into three printings within three months, and by 1932 was in its sixth, as well as having
been translated into several languages. (…) In 1932 Jones was invited to broadcast on the BBC.‖ (2006, p. 203)
62

artigo – um texto de referência até nossos dias,132 o apresenta a Freud e deseja expô-lo no
próximo Congresso. Mesmo Freud discordando veementemente do artigo, Ferenczi o
apresenta. Quanto à presidência, volta a ser de Ernest Jones.
A situação política em 1933 não poderia ser pior. O nazismo tomava conta da
Alemanha e isso obviamente também teria efeitos nocivos para a psicanálise – cuja maioria de
praticantes, era, a propósito, composta por judeus; nessa época a psicanálise assiste a um
grande fluxo de migração de analistas para outros países.
Ernest Jones assume um papel da maior importância para ajudar e organizar o
embarque de psicanalistas, sempre em interlocução com Anna Freud. (Mesmo com o clima
difícil entre Anna Freud e Melanie Klein, e Jones se posicionando a favor de Klein, o bom
relacionamento entre eles se manteve e Anna auxiliou Jones na recepção de imigrantes). Para
tanto chegava a fazer uso de suas economias pessoais e com elas financiou a vinda da viúva
de Karl Abraham e sua filha para Londres.
Nessa época turbulenta acontece um nascimento e uma morte: Kitty dá à luz ao
quarto e último filho do casal, Lewis, e Ferenczi falece, aos 59 anos de idade.
Por mais que a Inglaterra recebesse bem os refugiados, um clima de insegurança
financeira pairava no ar; em outras palavras, os ingleses tinham receio de perder seus
empregos com a forte imigração. Além da Inglaterra, os EUA também eram um país muito
cobiçado para imigração.
Em 1934 o 13º Congresso acontece em Lucerna, Suíça. Max Eitingon sugere a
Jones que todo analista refugiado ganhe acesso direto à IPA – com o que Jones concorda; e o
congresso decide que a IPA organize um escritório de emigração, registrando todo o fluxo
migratório.
No ano seguinte Melanie Klein teria um motivo de forte preocupação e
contrariedade: os austríacos (isto é, os ―aliados‖ de Anna Freud) também começariam a
planejar a migração para a Inglaterra, - e em grande número. Klein fica desgostosa com Jones
por sua receptividade aos vienenses e o acusa de estar ―ameaçando a Sociedade Britânica‖
com a chegada dos psicanalistas ―rivais‖. Embora grato pelos esforços de Jones, Freud tinha a

132
FERENCZI, S. Confusão de línguas entre os adultos e a criança. 1933. In: Obras completas. Psicanálise IV.
São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 97-106. Essa fase de divergências com Ferenczi é assim resumida por
Maddox: ―Freud estava disposto a interpretar qualquer desacordo entre ele e um seguidor próximo como a
rebelião do filho contra o pai; ele agora interpretava o que parecia ser uma crescente hostilidade de Ferenczi
como um desejo de morte contra si mesmo.‖ (Maddox, 2006, p. 210-211) ―Freud was disposed to interpret any
disagreement between himself and a close follower as the son‘s rebellion against the father; he now interpreted
what seemed Ferenczi‘s growing hostility as a death wish against himself.‖ (Maddox, 2006, p. 210-211)
63

mesma preocupação, e não conseguia imaginar analistas com visões teóricas tão divergentes
trabalhando lado a lado.
Em um gesto de pacificação e mediação, Jones então organiza palestras de
intercâmbio para debater as divergências conceituais das escolas de Viena e de Londres: são
as chamadas ―Exchange lectures‖. (Na sua vez de palestrar, Jones apresentaria uma visão
sobre o desenvolvimento da sexualidade feminina bastante alinhada com a de Klein.)
Alguns anos mais tarde, em 1937, Jones levaria sua filha Nesta May para se
analisar com Donald Winnicott - que apresenta (por carta) para Freud como ―nosso único
analista (homem) de crianças‖.133
Em 1935 uma psicanalista judia de esquerda, Edith Jacobson, foi presa por
atender comunistas, e Jones era da opinião que a IPA poderia tentar soltá-la. Na Alemanha, o
então presidente da Sociedade Psicanalítica Alemã, Felix Boehm, tinha receio de que os
nazistas usassem essa traição como razão para destruir a Sociedade, e então pede que Jones vá
até Berlim resolver a situação.
Chegando na Alemanha Jones se dá conta de que há também outras questões. A
Sociedade alemã precisa se proteger dos nazistas, e se pergunta se deve sair da IPA, se deve
expulsar seus membros judeus. Diante do difícil impasse, Jones toma uma decisão:
recomenda a saída voluntária dos membros judeus da entidade, ao mesmo tempo em que se
articula para levantar fundos para os custos das emigrações. Assim, a seu ver, a Psicanálise
estaria a salvo na Alemanha nazista.
Nessa época em que ajuda tantas pessoas a fugir da situação política hostil, Jones
também apoia o filho de Freud, o arquiteto Ernst (que mora em Londres), contratando-o para
uma reforma em sua casa na fazenda, The Plat.
Em 1936 o clima era celebração pelos 80 anos de Freud, ocasião em que são
inauguradas novas instalações para a Verlag (editora psicanalítica alemã), o Instituto
Psicanalítico de Viena e sua clínica. Jones vai até Viena para a celebração e faz o discurso de
abertura.

133
―Minhas notícias pessoais são boas. As crianças estão crescendo e estamos todos com boa saúde. Nesta May,
que tem um temperamento vienense apaixonado, tem um ciúme patológico de seu irmãozinho e está sendo
analisada pelo Dr. Winnicott - nosso único homem analista [de criança]. Nota de rodapé (3) do editor: Donald
W. Winnicott [1896-1971], importante pediatra britânico, psiquiatra infantil e psicanalista. Nessa época era um
defensor de Melanie Klein‖ (Carta de 23.02.1937 in Freud-Jones correspondence, p. 755-756) Citado por
Maddox, 2006, p. 223. ―My personal news is good. The children thrive and we are all in good health. Nesta May,
who has a passionate Viennese temperament, has a pathological jealousy of her little brother and is being
analysed by Dr. Winnicott – our only man [child] analyst. Nota de rodapé (3) do editor: Donald W. Winnicott
[1896-1971], leading British paediatrician, child psychiatrist and psychoanalyst. At this time he was an advocate
of Melanie Klein‖. Carta de 23.02.1937 in Freud-Jones correspondence, p. 755-756. Citada por Maddox, 2006,
p. 223.
64

No ano seguinte Freud escreveria a Jones que a situação em Viena estava terrível
– e o quanto ele gostaria de vir morar em Londres: ―Gostaria de viver na Inglaterra como
Ernst [filho de Freud]‖ 134
Jones começa então a providenciar tudo para a migração do mestre: trâmites
burocráticos, permissão para trabalhar, etc. Anna Freud pede que ele também ajude um
número de pessoas (entre psicanalistas e parentes) que igualmente desejavam vir morar em
Londres. Jones então aciona seus contatos da Royal Society135 e faz uso de sua amizade com
Sir Samuel Hoare (da patinação artística) para conseguir trazer esses migrantes.
Nessa época a ―madrinha-patrocinadora‖ de Freud era a princesa Marie Bonaparte
– esposa do príncipe da Grécia, George, e descendente do irmão de Napoleão. A psicanalista
Bonaparte havia sido paciente de Freud e prestou grande ajuda nessa época de ―resgate‖ de
Freud, não apenas viabilizando financeiramente os trâmites necessários mas literalmente
―salvando‖ muitos documentos valiosos:

Para ajudar com a partida, a princesa voltou a Viena no final de março e ficou três
semanas, separando os papéis de Freud com Anna e reunindo uma grande soma em
schillings austríacos para atender às várias demandas nazistas de pagamentos
evitando o confisco dos papéis e da coleção de antiguidades de Freud. (...) Também
se atribui à princesa o resgate de muitos dos papéis que Freud queria jogar fora ou
que ele e Anna pensavam que os nazistas poderiam usar para incriminá-los.
Bonaparte, com um olho no futuro, apanhou de volta as coisas dos cestos de lixo em
que Freud as jogara.136

134
―I should like to live in England like Ernst [filho de Freud]‖ (Carta de 02.03.1937 in Freud-Jones
correspondence, p. 757. Citada por Maddox , 2006, p. 229). Voltaremos a discutir essa carta mais adiante.
135
Real Sociedade de Londres para o Progresso do Conhecimento Natural (The Royal Society of London for the
Improvement of Natural Knowledge), fundada em 1660, é uma instituição de grande prestígio no meio científico.
Podem ser membros dessa Sociedade apenas cientistas proeminentes que tenham contribuições notáveis; tais
membros (eleitos) ganham o título honorífico de Fellow of the Royal Society (sigla FRS). Freud foi eleito
membro em 1938. Por sua idade avançada e saúde frágil, um grupo de cientistas da Royal Society foi até sua
residência levar o livro de títulos e colher sua assinatura. (Freud também era, desde 1935, Fellow da Real
Sociedade de Medicina - Royal Society of Medicine). Fonte: <https://blogs.royalsociety.org/history-of-
science/2011/05/06/freud-signs-the-charter-book>. Um dado interessante, a esse respeito: a biógrafa de Jones
suspeita que o galês tenha tido alguma participação nesta nomeação de Freud para o título, já que seu grande
amigo Wilfred Trotter era um Fellow e talvez tenha sido influente na eleição do pai da Psicanálise, a pedido de
Jones. Maddox (2006) desconfia: ―Ele [Jones] omitiu que seu amigo íntimo e cunhado Wilfred Trotter era
membro da Royal Society (...) e, como membro do conselho da sociedade, deve ter sido influente para assegurar
a eleição de Freud. Que a Royal Society tenha aceitado a psicanálise como uma ciência é discutível. Nenhum
psicanalista antes de Freud havia sido eleito um FRS, e nenhum outro foi eleito desde então.‖ (Maddox, 2006, p.
227) ―He [Jones] omitted to say that his close friend and brother-in-law Wilfred Trotter was a member of the
Royal Society (...) and, as a member of the society´s council, must have been influential in securing Freud‘s
election. That the Royal Society had accepted psychoanalysis as a science is doubtful. No psychoanalyst before
Freud had been made an FRS, and none has been since.‖ (Maddox, 2006, p. 227)
136
―To help with the departure, the Princess returned to Vienna at the end of March and stayed three weeks,
sorting out Freud‘s papers with Anna and mustering a large sum in Austrian schillings to meet the various Nazi
demands for payments to avoid confiscation of the papers and Freud‘s collection of antiquities. (…) The Princess
is also credited with rescuing many of the papers that Freud wished to throw away or that he and Anna thought
the Nazis might use to incriminate them. Bonaparte, with an eye to the future, snatched things back from the
wastebaskets into which Freud had thrown them.‖ (Maddox, 2006, p. 232-233)
65

Depois de tudo encaminhado Freud finalmente se mudou para Londres, em


segurança; junto com ele viriam mais 17 pessoas.
Além de atender seus pacientes no consultório, Jones não poupava esforços para
cuidar dos trâmites para a vinda de pessoas que pediam para imigrar para a Inglaterra e dava
preferência para aquelas que poderiam se harmonizar com a Sociedade Britânica. 137
Obviamente a chegada de vienenses na Sociedade Britânica agravou em muito a
disputa teórica Anna Freud - Melanie Klein. Os recém chegados logo mostravam ―de que lado
estavam‖; e Jones abertamente se colocava pró-Klein – ainda que buscasse sempre promover
o diálogo entre os ―inimigos‖. Porém, mesmo com todo seu esforço conciliatório, Jones era
considerado uma pessoa difícil. Nas palavras de Maddox: ―Jones sempre foi visto como
estando do lado 'Melanieser'. Um imperioso presidente, ele era detestado, e às vezes temido,
por sua maneira autocrática. Ele gostava de desafiar opiniões, dizendo: 'É isso que você pensa
ou o que você acha que deveria pensar?‘‖138
Em 1938 o 50º Congresso aconteceria em Paris, e Jones foi sido reeleito
presidente da IPA. Nessa época, com poucos pacientes e com a ameaça da guerra Jones e
família se mudam para o The Plat.
Quando a Guerra começa, Jones escreve aquela que seria a última carta a Freud,
agradecendo, de modo muito emotivo e singelo, tudo o que mestre fez por ele.
Freud estava muito doente, próximo da morte, e Jones vai então visitá-lo para uma
despedida. Assim Jones descreve esses últimos momentos junto ao seu mestre:

No dia 19 de setembro fui convocado para expressar o meu adeus a ele e chamei-o
pelo seu nome enquanto dormitava. Abriu os olhos, reconheceu-me e me acenou
com a sua mão; em seguida deixou-a cair com um gesto altamente expressivo e que
encerrava uma infinita riqueza de significados: saudações, adeus, resignação. O
gesto dizia da maneira mais simples: ‗O resto é silêncio‘. Não houve necessidade de
que trocássemos uma só palavra. 139

Freud então pediria ao seu médico uma maneira de abreviar seu sofrimento – e o
médico assim o fez, administrando algumas doses de morfina.

137
Maddox, 2006, p. 237.
138
―Jones was always seen to be on the side of the ‗Melanieser‘. An imperious chairman, he was disliked, and
sometimes feared, for his autocratic manner. He liked to challenge opinions, saying, ‗Is that what you think or
what you think you ought to think?‘‖ (Maddox, 2006, p. 238) Até mesmo o tom didático de Jones poderia ser
alvo de críticas. Mezan (2014, p. 221) nos conta que Jung chegou a pedir para Jones moderar o tom
―professoral‖ demais, quase pedante. Roazen (1974) nos conta que Jones era capaz de ―rasgar em pedacinhos o
trabalho de outra pessoa.‖ (p. 384)
139
Jones, 1970, Vol II, p. 778. Citado por Maddox, 2006, p. 243.
66

O mestre faleceu dia 23 de setembro de 1939, aos 83 anos de idade, e Jones fez
uma bela oração no funeral:

(...) o que nos outros se expressa como sentimento religioso nele se expressou como
uma convicção transcendente do valor da vida e do amor. (...) Ele viveu uma vida
plena, tendo experimentado e sentido seu apogeu, assim como suas profundezas;
aqueceu ambas as mãos no fogo da vida e a vida não lhe deixou nada por oferecer.
Morreu cercado de todo cuidado amoroso (...) Não perdeu nada com a morte, então
na verdade não podemos chorar por ele. Mas e por nós mesmos? Um mundo sem
Freud! Um mundo sem aquela personalidade brilhante, sem aquele maravilhoso e
afável sorriso; sem aqueles sábios e enérgicos comentários sobre as coisas grandes e
pequenas da vida, sem aquela 'Grosszügigkeit' [Generosidade] da prontidão imediata
para ajudar. (...) Um grande espírito passou pelo mundo. Como a vida pode
conservar seu sentido para aqueles para quem ele era o centro da vida?140

Após a morte de Freud, Jones continua como presidente da Sociedade Britânica


mas passa o cargo de editor do Journal para James Strachey.
Em 1942 as diferenças entre as correntes de pensamento de Anna Freud e Melanie
Klein estavam quase inconciliáveis. Jones procurava agir com diplomacia, uma vez que havia
recebido ambas as analistas em Londres, mas o risco de rompimentos era iminente.
Nessa época acontecem as chamadas ―Controversial Discussions‖, encontros para
debater as duas vertentes teóricas em conflito. Jones atua como mediador, mas delega um
tanto da organização para Glover e outros colegas, passando agora mais tempo em sua
fazenda. As ―Controversial Discussions‖ aconteceriam até 1944, em um total de 11 encontros.
Além da polarização Anna Freud-Melanie Klein, também surge o chamado Grupo
independente (com pensamentos diferentes de ambas as analistas), do qual fariam parte, entre
outros, Donald Winnicott e John Bowlby. Com o passar do tempo e dos debates, os grupos
continuavam discordando profundamente, mas ao menos as divergências teóricas não levaram
a rompimentos ou expulsões, e podiam coexistir dentro da Sociedade Britânica. 141

140
―(…) what in others express itself as religious feeling did so in him as a transcendent belief in the value of
life, and in the value of love. (…). He had lived a full life, had experienced and felt its heights as well as its
depths; he had warmed both hands at the fire of life and life had nothing left to offer. He died surrounded by
every loving care (…) He has lost nothing through death, so we cannot truly mourn for his sake. But what of
ourselves? A world without Freud! A world without that vivid personality, without that entrancing and benign
smile; without those wise and trenchant comments on the great and small thing of life, that ‗Grosszügigkeit‘ in
instant readiness to help. (…) A great spirit has passed from the world. How can life keep its meaning for those
to whom he was the center of life?‖ (Jones, 1940, p. 1-2) Citada em Maddox, 2006, p. 244. A biógrafa fará o
seguinte comentário, a respeito dessa oração: ―Era uma questão auto-endereçada. Tendo dedicado trinta e um
anos de sua vida a servir a Freud e, não menos importante, desenvolvido suas próprias idéias em correspondência
com ele, o que ele faria agora?‖ ("It was a self-addressed question. Having devoted thirty-one years of his life to
serving Freud and, not least, to developing his own ideas in correspondence with him, what was he to do now?‖)
(2006, p. 244)
141
Maddox, 2006, p. 247-248. A autora resume: ―O resultado mais evidente das ‗Controversial Discussions‘ foi
que nem Klein nem Anna Freud foram expulsas. Cada um tinha seu lugar firme dentro da Sociedade Britânica,
com seus próprios profissionais e candidatos. Uma separação (...) foi evitada.‖ ―The most evidente result of the
67

Maddox nos conta que uma das estratégias de Jones para mediar a oposição Anna-
Klein era fazer um jogo duplo, e falava mal de uma para a outra: ―Quando as reuniões
estavam prestes a começar, a tática de Jones era dizer a cada uma das adversárias que ele
estava do seu lado.‖142
Jones ainda está trabalhando com migrantes e trâmites de refúgio quando vários
eventos desafortunados e quase concomitantes pedem sua atenção: seu filho Mervyn é preso
na guerra, sua ex-companheira Loe Kann morre e ele próprio, aos 65 anos, sofre um ataque
cardíaco, que o deixa acamado por seis semanas.
Nessa fase da vida Jones teria uma forte reconexão com suas raízes galesas:
contrata uma professora de celta para sua filha Nesta e se filia ao Partido Nacionalista Galês.
Em 1945 Jones tem uma má surpresa. Ocorre o lançamento de um livro sobre
David Eder – aquele que havia sido seu aluno, seu paciente, e junto ao qual fundou a
Sociedade de Londres (que mais tarde daria origem à Sociedade Britânica) – intitulado
―David Eder: Memoirs of a Modern Pioneer‖ (1945), com prefácio de ninguém menos do que
Sigmund Freud.
Jones então lê no referido prefácio escrito por seu mestre, a inacreditável
afirmação de que David Eder havia sido o primeiro, e por um tempo o único a praticar
psicanálise na Inglaterra. Jones então escreve a Anna Freud contando o episódio e afirmando
que o mestre havia cometido uma enorme injustiça com ele, que tinha a honra de ser a
primeira pessoa na Inglaterra a praticar o método freudiano.143 No Journal, Jones faz uma
correção dos fatos com o artigo ―Reminiscent notes on the Early History of Psycho-Analysis
in English-Speaking Countries‖ (1945):

O Editor do JOURNAL me pediu para escrever algumas recordações sobre a


introdução da psicanálise nos países de língua inglesa. O pedido foi feito por ocasião
da publicação de um prefácio do falecido Professor Freud ao volume em memória
de D. D. Eder, no qual ele comenta que o Dr. Eder foi o primeiro médico a praticar a
psicanálise na Inglaterra, afirmação que é bastante incorreta. Considerando que se
até mesmo uma memória com capacidade tão rara como a do Dr. Freud poderia errar

Controversial Discussions was that neither Klein nor Anna Freud had been expelled. Each had her firm place
within the British Society, with her own practitioners and candidates. A split (…) had been avoided.‖ (Maddox,
2006, p. 251)
142
―As the meetings were about to begin, Jones‘s tactic was to tell each of the adversaries that he was on her
side.‖ (Maddox, 2006, p. 247). E ainda: ―[Ele] administrava a neutralidade. Ele tinha pouca escolha, tendo
trazido Melanie Klein e Anna Freud para a Inglaterra‖ ([he] managed neutrality. He had little choice, having
brought both Melanie Klein and Anna Freud to England.‖) (Maddox, 2006, p. 247)
143
Maddox, 2006, p. 253-254. Em outra passagem, ao nos contar sobre outro episódio em que Eder foi
reconhecido como um dos primeiros psicanalistas na Inglaterra (e o desgosto de Jones com isso), a autora
comenta: ―A questão da primazia era um ponto dolorido para Jones.‖ ―The question of primacy was a sore point
with Jones‖ (2006, p. 168)
68

em um caso tão simples, poderia não ser fácil conhecer os fatos reais, então o Editor
sugeriu que seria interessante traçar um esboço desses primeiros acontecimentos
antes que a lembrança deles morra e sua história fique incompleta ou efetivamente
falsa. 144

Estando afastado (desde 1944) da presidência da Sociedade Britânica, nessa época


Jones avança na escrita de sua autobiografia.
Em 1946 a então presidente da Sociedade Britânica, Sylvia Payne, faz um
discurso de homenagem a Jones apresentando um retrato do galês (encomendado a um artista
renomado). A partir de então haveria na Sociedade uma palestra anual em seu nome.
Para Sylvia, Jones teria um valor inestimável: ―Na minha opinião, não é frequente
que um cientista eminente possa olhar para trás, para a parte mais ativa da sua vida, com tanta
satisfação como Ernest Jones deve ser capaz de fazer.‖145
Jones agradece muito pelo reconhecimento em um discurso de despedida.146
Em 1948 é lançado o filme ―Hamlet‖, de Laurence Olivier, ator e diretor que
havia conhecido Jones em 1937. A interpretação da obra abordada no filme é diretamente
147
referenciada ao trabalho de Jones sobre a obra shakespeariana. Nessa época Jones lança
mais uma edição do ensaio, agora como livro, e também a pequena obra ―O que é a
Psicanálise?‖ (1949).
No ano seguinte aconteceria em Zurique o 16º Congresso da IPA. Lá estava
Jacques Lacan, membro da Sociedade Francesa de Psicanálise – que logo fundaria uma nova
escola. Este seria o último Congresso de Jones na presidência, totalizando seis edições na
função. Na despedida da presidência, Jones foi ovacionado e ganhou o título de presidente
honorário.
Na mesma época a família Freud pede a Jones que escreva aquela que se tornaria
sua obra mais conhecida: a biografia do mestre.
Em um trabalho incansável, Jones entrevista Martha, a viúva de Freud, lê cartas,
recolhe e organiza uma quantidade inenarrável de material, sempre com a ajuda de Kitty.
144
―The Editor of the JOURNAL has asked me to record some memories of the introduction of psycho-
analysis into English-speaking countries. The occasion of the request was the publication of a preface by the late
Professor Freud to the M. D. Eder Memorial volume in which he remarks that Dr. Eder was the first doctor to
practice psycho-analysis in England, a statement which is quite incorrect. Reflecting that if even Professor
Freud's unusual powers of recollection could err on such a simple point it could not be easy to establish the true
facts, the Editor suggested that it would be of interest to have on record an outline of these early events before
the memory of them pass away and the history of them be either defective or actually falsified.‖ (1945, p. 8 apud
Maddox, 2006, p. 254).
145
―In my opinion it is not often that an eminent scientist can look back over the most active part of his life with
as much satisfaction as Ernest Jones should be able to do. ― (Payne, 1946, p. 6) Citado por Maddox, 2006, p.
256.
146
―A Valedictory address‖, 1946 . Citado por Maddox, 2006, p. 256.
147
Maddox, 2006, p 257.
69

Chega a reescrever grande parte do primeiro volume da obra após acessar as cartas do casal
(Freud e Martha), num esforço de entregar a obra mais completa possível.
Quando finalmente lança o primeiro volume, o sucesso é imediato: as críticas são
excelentes e Jones ganha notoriedade, é chamado para entrevistas. 148
O Volume I logo estaria na lista de best-sellers da New York Times, e a 1ª edição
(de 10 mil exemplares) foi vendida em duas semanas.
O reconhecimento de Jones também chegaria à academia: em 1954 ganha o título
de Doutor honorário de Ciência pela University of Wales e uma fundação lhe oferece dois mil
dólares para pesquisa.
Dois anos depois do primeiro volume, Jones lança o segundo (em 1955), e mais
dois anos depois, o terceiro.
No entanto, quem definitivamente não aprovou a obra foram os familiares de
muitos dos citados por Jones na biografia, em especial aqueles que tiveram sua imagem
distorcida ou, ao seu ver, injustiçada: a viúva de Brill, por exemplo, amigos de Ferenczi (a
quem Jones havia pintado como um louco), seguidores de Otto Rank.149 Houve também uma
resenha com uma crítica negativa sobre a obra, afirmando que Jones aproximava a psicanálise
―mais de um culto do que de uma ciência‖.150
Mesmo assim, foram dias de glória para Jones:

Seguiram-se agitadas duas semanas de viagem de Boston a Filadélfia e então para


Chicago, para palestras, aparições na televisão, coquetéis, banquetes e a concessão
de uma série de bolsas honorárias. A Associação Psicanalítica Americana tornou-o
presidente honorário. Deu muitas entrevistas para o jornal (...) Na Filadélfia, Jones
foi igualmente espirituoso durante uma entrevista com o Inquirer, que o descreveu
reverentemente como ‗o psicanalista mais famoso do mundo‘. 151

Em 1956, de volta a Londres, Jones dá uma palestra para comemorar o centenário


de Freud.

148
Nas palavras de Maddox (2006): ―Mesmo antes do lançamento do primeiro volume da biografia, Jones era
uma pequena celebridade, começando a atrair entrevistas na imprensa.‖
―Even before the first volume of the biography came out, Jones was a minor celebrity, beginning to attract
interviews in the press. [Time, The Observer]‖ (Maddox, 2006, p. 267)
149
Maddox diz que as críticas a Jones sugeririam que ele havia taxado como loucos todos aqueles que
discordaram do mestre. (2006, p. 272.) Erich Fromm (1978) é da mesma opinião, como veremos.
150
Maddox, 2006, p. 272.
151
―There followed a hectic two weeks of travel from Boston to Philadelphia to Chicago, for lectures, television
appearances, cocktail parties, banquets and the awarding of a slew of honorary fellowships. The American
Psychoanalytic Association made him honorary president. He gave many newspaper interviews (…) In
Philadelphia, Jones was equally spirited during an interview with the Inquirer, which described him reverentially
as ‗the world most renowned psychoanalyst‘‖ (Maddox, 2006, p. 274-275).
70

Em junho de 1957 Jones sofre um segundo ataque cardíaco, mas ainda assim
comparece à 20ª edição do Congresso da IPA, em Paris - e, como já era habitual, abre os
trabalhos.
Em 1958, aos 79 anos de idade, Jones teria câncer no fígado e, da mesma forma
que Freud, também pediria ao seu médico uma abreviação do sofrimento.
Ernest Jones morre no dia 11 de fevereiro de 1958 após tomar um comprimido,
deixando inacabada a sua autobiografia.
Seu corpo foi cremado em Golders Green, em Londres, o mesmo crematório onde
estão as cinzas de Freud. Depois, porém, suas cinzas foram levadas para a sepultura da Igreja
de St Cadoc em Cheriton, País de Gales - onde sua filha Gwenith foi enterrada. Anos mais
tarde as cinzas de Kitty se juntaria a eles. ―Na placa pendurada nas grades da Igreja de St
Cadoc para informar os visitantes da importância da sepultura que se encontra no seu
cemitério, está gravado o nome de Freud - juntamente com, mas abaixo, o de seu discípulo e
biógrafo Dr. Ernest Jones‖.152

152
―On the plaque hanging on the railings of the Church of St Cadoc to inform visitors of the importance grave
that lies in its cemetery, Freud‘s name is engraved – coupled with, but below, that of his disciple and biographer
Dr Ernest Jones‖ (Maddox, 2006, p. 283)

O ultimo trecho da biografia de Maddox termina com uma anedota interessante: a autora nos conta que corria o
boato em Gales que Freud havia vivido ali os últimos anos de sua vida – embora não haja nenhum documento
que o comprove. A anedota sugere uma confusão-fusão entre a figura de Jones e de Freud. (Maddox, 2006, p.
283)
71

III UM BREVE CONTEXTO HISTÓRICO

―O passado tem uma importância especial para o


biógrafo assim como para o psicanalista, visto
compartilharem ambos do interesse pela reconstrução da
história em busca de uma melhor compreensão do ser
humano.‖ (Roazen, 1974, p. 93)

Uma das características de nosso personagem principal é, como vimos em sua


biografia resumida, a preocupação não apenas com a produção teórica em Psicanálise (com
seus incontáveis papers, publicados ao longo de toda a vida) e prática (sua atuação como
psicanalista em consultório), mas também e sobretudo com as estratégias para a propagação
dos fundamentos psicanalíticos, e fez parte deste empenho o recurso da sistematização
histórica da Psicanálise.
De fato, podemos considerar a biografia que Jones escreveu uma obra de
referência para historiadores da Psicanálise. A primeira biografia oficial do mestre 153 serviu
de referência para todas as biografias e estudos posteriores sobre Freud e sobre a criação da
Psicanálise e, ainda que tenha sido questionada por alguns 154 (desde questionamentos sobre a
acurácia das informações ali apresentadas quanto pelo viés supostamente tendencioso adotado
por Jones), foi inegavelmente o ponto de partida da sistematização das origens e progressos
psicanalíticos. Paul Roazen (1974) enfatiza: ―as obras de Jones conseguiram não somente
suplantar todos os relatos anteriores da vida de Freud, mas também apresentar uma história do
movimento psicanalítico‖ 155

153
Na realidade a biografia escrita por Jones não foi exatamente a primeira: em 1924 Fritz Wittels, discípulo de
Freud que integrava a Sociedade Psicoanalítica de Viena, publicou ―Sigmund Freud: His Personality, his
Teaching and his School‖, mas Freud não a aprovou e viu muitos erros na obra. Depois da sua morte outras duas
biografias seriam lançadas, uma de autoria de Emil Ludwig, um escritor alemão, e outra da jornalista Helen
Puner, mas a família de Freud ficou insatisfeita com ambas versões, e assim convidou Jones para a tarefa.
(Maddox, 2006, p. 259). Pode-se dizer, portanto, que a obra de Jones se não é a primeira escrita sobre o mestre,
é a primeira biografia autorizada e aprovada pela família Freud e, nesse sentido, ―oficial‖.
154
Como exemplo, temos Roudinesco (2016), uma autora que abertamente questiona a precisão da produção
histórica de Jones. Em seu recente ―Sigmund Freud na sua época e em nosso tempo‖, afirma: ―Várias biografias
foram escritas sobre Freud (...) passando pelo monumental edifício em três volumes de Ernest Jones, questionado
a partir de 1970 por Henri F. Ellenberger e os trabalhos de historiografia científica, aos quais me vinculo‖
(Roudinesco, 2016, p. 10). Maddox autora usaria uma expressão idiomática: ―The jury is still out on Ernest
Jones, but it ought not to be‖ que poderia ser traduzido como ―Ainda não se tem um veredicto final sobre E.J,
mas não deveria ser assim‖, para em seguida defender que a biografia de Jones ainda hoje é um trabalho
monumental – mas que foram detectados erros. (2006, p. 282.)
Rodrigué (1996) também é crítico da biografia de Jones, que enxerga como ―mausoléu para a veneração das
gerações futuras.‖ O autor também vai dizer que ―não admira‖ Jones e sugere que aceitar a sua biografia é
questão de não ter outra alternativa: ―Qual é o maior biógrafo de Freud? Ernest Jones, que jeito!‖ (1996, p. 15).
Ao mesmo tempo, o autor vai reconhecer que Jones teria sido o primeiro a promover um ―retorno a Freud‖.
(1996, p. 19)
155
Roazen, 1974, p. 9.
72

Neste sentido pode-se afirmar que Ernest Jones inaugurou de certa forma a
historiografia psicanalítica (é o que disse Roudinesco, por exemplo, em seu ―Dicionário‖, de
1998)156, e para tanto fez uso de seu dom da oratória e da escrita, de estilo didático e da
habilidade para organizar ideias - e sempre com forte entusiasmo.

A psicanálise e seu movimento devem, portanto, a Jones os primórdios de seu


registro como construto cultural e a sistematização coerente de sua historicidade, e apenas a
compreensão dos diversos movimentos que compuseram “o” Movimento pode nos dar a
dimensão de seu impacto e do valor de seu legado.
Nada mais coerente, portanto, que em nosso presente trabalho nos inspiremos em
Jones e façamos também aqui um breve resgate histórico do movimento psicanalítico. Tal
compreensão dará ao leitor uma contextualização do momento em que Jones aparece em cena
no movimento psicanalítico – e também do momento em que, no fim da vida, o deixa.
Também permitirá ao leitor uma visão geral dos jogos de força de cada época da história, as
disputas travada entre ―escolas‖, bem como os impactos de certas escolhas, de parcerias, de
dissensões.
Penso que o capítulo anterior, em que seguimos os rastros de Jones, já nos
ofereceu um bom panorama da história do movimento psicanalítico – afinal o galês esteve à
frente da Causa durante toda a vida – ; mas aqui, por mais que corramos o risco de alguma
repetição, nos propomos a desviar um pouco o foco de Jones e buscar um olhar de sobrevoo
mais amplo (nunca imparcial, porém).
Antes de iniciarmos nessa jornada, aqui bastante abreviada até para não
perdermos o foco de nosso estudo – a figura de Jones – é importante fazer uma ressalva: é
dificílimo sistematizar a História da Psicanálise e é da mesma forma um trabalho hercúleo
reconhecer e entrelaçar a História na Psicanálise, e isto por um sem número de motivos: há
muitos vieses possíveis; há uma quantidade de informação gigantesca; há movimentos dentro
da Psicanálise que ocorreram em paralelo, no mesmo país ou em países diferentes; não há
relações inequívocas de causalidade entre os fatos – ou como os fatos nos foram contados –;
há muitas pessoas envolvidas (alguns mais proeminentes que outros); há diferentes escolas
(ou abordagens em psicanálise, e cada uma delas contaria a ―história‖ a partir de seu ponto de
vista); as próprias diferenças e semelhanças entre as escolas não são óbvias e uma
discriminação precisa demandaria entrarmos nos próprios fundamentos epistemológicos e

156
Maddox fará um comentário interessante: os numerosos obituários que Jones escreveu ao longo da vida – e
escreveria muitos (de Ferenczi, Rank, Abraham, etc) lhe dão o privilégio de dar o ―último julgamento‖ sobre
muitos dos psicanalistas daquela geração – integrando, portanto, a História da Psicanálise. (2006, p. 249)
73

teóricos da Psicanálise... e, por fim, mas não menos importante, a História da psicanálise
obviamente não está descolada da própria História Geral, a história do mundo, da cultura, dos
movimentos políticos, das Guerras. Além dessa lista de dificuldades, vale lembrar que não há
apenas uma maneira de sistematizar uma história, e cada uma delas implica em seus próprios
desafios - e cada escolha é uma perda.
Portanto, desde já recomendo ao leitor particularmente interessado em História da
Psicanálise e nas correlações entre o momento histórico mundial e os movimentos
psicanalíticos que não se contente com este breve capítulo contextualizador e procure as obras
bastante aprofundadas (cada uma com seu viés particular) de Renato Mezan,157 Elisabeth
Roudinesco,158 Paul Roazen.159 E também que tenha o interesse de ler Pearl King,160 Daniel
Kupermann em seu interessante ―Transferências cruzadas : uma História da Psicanálise e suas
Instituições‖ (1996), o excelente texto de Christian Dunker161, todas as biografias já escritas
do mestre - um tanto diversas entre si, como a primeira oficial, de nosso Jones,162 e a de Peter
Gay163 ou de Roudinesco164 -; e, além e antes de tudo, ler o próprio Freud em ―Contribuição à
história do movimento psicanalítico‖ (1914) e ―Autobiografia‖ (1925), textos seminais da
historiografia psicanalítica, além do didático artigo de Jones ―Recent advances in Psycho-
Analysis‖, de 1920.165

157
MEZAN, R. O tronco e os ramos: Estudos de história da psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
158
ROUDINESCO, E. Dicionário de Psicanalise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
159
ROAZEN, P. Freud e seus discípulos. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974.
160
KING, P.; STEINER, R. (Orgs.). As controvérsias Freud-Klein, 1941-45. Rio de Janeiro: Imago, 1998.
161
DUNKER, C. I. L. - Aspectos Históricos da Psicanálise Pós-Freudiana In: História da Psicologia - Rumos e
Percursos. Rio de Janeiro: Nau, 2006, v.1, p. 387-412.
162
JONES, E. Vida e obra de Sigmund Freud. Vol I e II. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.
163
GAY, P. Freud: uma vida para o nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
164
ROUDINESCO, E. Sigmund Freud na sua época e em nosso tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.
165
Devo assinalar também, a fim de justificar as escolhas feitas no presente trabalho, que dentre todas as fontes
consultadas aquela com a qual tenho menor afinidade é a de Elisabeth Roudinesco. Embora suas obras tragam
uma quantidade imensa de informações de interesse e de referência, noto, não apenas em sua obra mais recente
(a biografia de Freud), mas em geral em seus textos, um modo de escrita um tanto determinista, ou assim me
parece, pela escolha das palavras e um tom narrativo de ―verdade única e inquestionável‖ que, aliás, contradizem
em cheio a noção de historicidade que a própria autora defende. Em suma, não enxergo na postura intelectual
adotada por Roudinesco a humilde certeza que todo pesquisador tem – ou deveria ter – de que sua análise ou
produção é necessariamente parcial, autoral e apenas e tão somente uma versão, uma interpretação (entre
muitas possíveis) de fatos ou supostos fatos apurados. Sei tratar-se de uma crítica pesada, e ainda mais a uma
historiadora que goza de tanto prestígio em nosso meio, mas como meu compromisso é menos em não ferir
sensibilidades do que com a qualidade da pesquisa e a transparência de minhas escolhas bibliográficas (escolhas
subjetivas, evidentemente, como todas são), acato e me preparo desde já para possíveis réplicas ofendidas de
simpatizantes da autora. Justifico e ilustro minha posição citando alguns exemplos. Com frequência Roudinesco
(2016) dispara frases repletas de adjetivos e julgamentos com tal ―familiaridade‖ com os citados que dão a
impressão ao leitor de que ela os conheceu pessoalmente: ―Eduard Hirschmann, psicobiógrafo empedernido, e,
finalmente, Isidor Sadger e seu sobrinho Fritz Wittels, ambos fanaticamente freudianos e misóginos‖ (p. 102) ou
―Katharina [era] pouco instruída e deveras estúpida‖ (p. 136) ou ainda ―[Freud] não tinha nenhum charme‖ (p.
122). Outras vezes a autora peca, a meu ver, por um excesso de ficcionalidade que aproxima certos trechos de
um romance, e não de uma obra histórica: sobre os encontros da Sociedade das Quartas-feiras, por exemplo,
descreve: ―Durante uma curta pausa, tomavam café preto e comiam deliciosos amanteigados.‖ (2016, p.136)
74

Neste breve capítulo de contextualização histórica fiz uso de referências


bibliográficas diversas – incluindo bastante do que já aprendemos há pouco com Maddox
(2006) -, a fim de garantir vozes múltiplas em uma história que afinal também foi escrita a
muitas mãos - e nos lembrando também que a forma de contar uma história necessariamente a
modifica. Ou seja, cada um conta a história de um modo diferente: a história Roudinesco não
é a mesma que conta Mezan, ou o próprio Freud, ou ainda nosso Jones. 166 (Adotamos, no
entanto, em grande medida o olhar de R. Mezan)
Já sabemos que os estudos de Freud sobre o inconsciente – e a criação da
psicanálise - tiveram origem em estudos sobre hipnose, método catártico e quadros histéricos.

Como Roudinesco sabia que eram de fato deliciosos – ou que eram amanteigados – não se sabe, e certamente, se
a intenção é de criar uma ambientação imaginária e transportar o leitor para o início do século XX, há outras
formas mais sutis de fazê-lo, e não com afirmações que podem confundir um leitor mais ingênuo e fazê-lo crer
piamente nessa exata refeição como fato histórico – afinal uma historiadora assim escreveu. (E, caso esta cena
tenha mesmo ocorrido, seria interessante a indicação de uma referência bibliográfica, que fosse o diário de um
dos que comeram os biscoitos) A propósito, as características atestações da autora – muitas vezes contundentes e
nem sempre acompanhadas de justificativa ou exemplos ilustrativos -, também me parecem ferir a postura
epistemológica e metodológica do historiador ou pesquisador – ainda mais em Psicanálise. Em seu ―Dicionário
de Psicanálise‖ (1998), por exemplo, no verbete ―Ernest Jones‖ a autora afirma com segurança: ―Freud não
gostava dele.‖ (1998, p. 415) A esse respeito podemos lembrar que temos à disposição centenas de documentos
históricos, tais como cartas trocadas entre os dois psicanalistas, e a análise desse vasto material pode de fato nos
sugerir hostilidades entre Freud e Jones (assim como também há sinais de amizade, confiança e afeto), mas nesse
caso se poderia escrever algo como: ―A análise das cartas nos sugere rivalidades‖, ou ainda ―Em tais e tais cartas
vemos Freud atacar Jones‖ ou até mesmo ―Tudo indica que Freud não gostava dele‖ ou até se quisermos ―Penso
que Freud não gostava de Jones‖, o que é bem diferente de dar uma declaração inequívoca a respeito dos
sentimentos de um homem que, aliás, nem está mais presente para confirmá-lo ou refutá-lo. Assim Roudinesco
afirma categórica ―Freud não gostava dele‖, como se o que se passasse no coração do pai da Psicanálise fosse
um fato histórico tão objetivo e comprovado quanto Freud ser formado em Medicina ou ter nascido no mês de
maio, ou que seu pai se chamava Jacob e sua esposa, Martha. Também considero a autora bastante temerária em
algumas de suas afirmações, quando diz em uma entrevista (2014), por exemplo, que ela desconstrói o
Complexo de Édipo (!): ―[No livro ―Sigmund Freud na sua época e em nosso tempo‖] Eu desfaço o complexo
de Édipo. (...) A psicologia edipiana não se sustenta. O complexo de Édipo como psicologia de família não
funciona. (...) E ele não foi capaz de escrever sobre a metapsicologia.‖ (http://www.ihu.unisinos.br/170-noticias-
2014/535710-nova-biografia-de-freud-escrita-pela-historiadora-elisabeth-roudinesco-e-lancada-na-franca). É
evidente que todo pesquisador (de qualquer área do conhecimento) tem o pleno direito de discordar ou concordar
com qualquer teoria ou conceito (até mesmo questionar o Complexo de Édipo!), mas deve fazê-lo demonstrando
argumentos - e não desqualificando o criticado. O que me incomoda na fala da autora é a escolha das palavras,
como por exemplo ao dizer que Freud ―não foi capaz‖ de escrever sobre isto ou aquilo – convenhamos que é
bem diferente de concluir que ele simplesmente ―não escreveu‖ (ou escreveu pouco) sobre um tema. A suposta
―capacidade‖ de Freud ou de qualquer autor não está nem deveria estar em questão, motivo pelo qual penso
tratar-se de uma postura intelectualmente pedante: a autora se coloca na posição de ―corrigir‖ Freud e também de
afirmar que ele não era ―capaz‖ de fazer algo que supostamente deveria ter feito. Na contracapa de seu trabalho
mais recente, a biografia de Freud (2016), há uma citação da crítica feita pelo El País: ―volume com ares de
biografia definitiva‖. Embora obviamente esta tenha sido considerada uma crítica elogiosa (caso contrário não
estaria na contracapa), é justamente esse ―ar de biografia definitiva‖ ao qual me mantenho reticente, uma vez que
por definição nenhuma obra é ―definitiva‖, especialmente se adotarmos uma perspectiva histórica da produção
do conhecimento. Por todas estas características de seu trabalho – e espero ter justificado minha posição – não
fiz uso expressivo, na presente tese, de obras de Roudinesco, e há poucas citações dessa autora.
166
É importante enfatizar, pois, a parcialidade inerente a qualquer narrativa. Caso o leitor não se identifique co m
a breve contextualização histórica aqui apresentada, ou com o viés adotado, ou com a ênfase em um ou outro
aspecto, deve se lembrar que necessariamente a seleção de informações e modo de ordená-las traduz sempre a
subjetividade do autor, e por isso essa história deve ser complementada por outras histórias, e contada e
recontada mais uma e outra vez.
75

Então surgiria a técnica de associação livre e a evolução de sua teoria o levaria a


avançar para além da teoria da sedução167; um marco importante nesses primórdios da
Psicanálise é a publicação de ―A Interpretação dos sonhos‖, em 1900. Do interesse despertado
pelo novo campo de estudos nasce a ―Sociedade Psicológica das Quartas-feiras‖ (que daria
origem mais tarde à ―Sociedade Psicanalítica de Viena‖), criada em 1902. Mezan divide a
cronologia da Psicanálise em quatro períodos, e assim descreve o inicial:

Durante esse período, Freud escreve os textos quer servem ainda hoje de
fundamento para a disciplina, nas quatro vertentes que a compõem (metapsicologia,
teoria do desenvolvimento, psicopatologia e teoria do processo analítico), e reúne à
sua volta o grupo de discípulos que forma o núcleo do movimento analítico,
consolidado com a fundação em 1911 da Associação Psicanalítica Internacional
(IPA) (p. 48-9).

Como vimos, por sugestão de Jones, em 1912 forma-se um grupo mais seleto em
torno do mestre: é o ―Comitê‖. Criado com o intuito de garantir a ―pureza‖ dos pensamentos e
técnicas psicanalíticos tal como Freud concebeu, o Comitê funcionou por anos mas sempre
com uma série de problemas internos - pelo excesso de intrigas, rivalidades e diferenças entre
os seletos participantes.
Como já estudamos, nessa época a maioria dos discípulos mais próximos de Freud
era composta de judeus (em realidade todos, com exceção de Jung e do nosso Jones). Com o
forte antissemitismo vigente na Europa no início do século, Freud se preocupava em não
tornar a Psicanálise uma disciplina restrita e identificada a este grupo, - e também nesse
sentido a internacionalização era fundamental. Para tanto, planejava montar uma Associação
Internacional de Psicanálise, da qual o suíço e cristão Jung seria o presidente. Aos poucos,
porém, ocorrem conflitos e dissenções, como já vimos (em Maddox), primeiro de Adler,
depois Stekel e Jung.
Mezan (2014) nos conta que com a disseminação e aprofundamento da
Psicanálise tanto geográfica quanto conceitualmente – além de sua crescente organização e
institucionalização (em vários países eram criados associações, sociedades psicanalíticas) –
era inevitável que aos poucos a figura de Freud começasse a ser questionada ou, ao menos,
que suas ideias não fossem mais consenso absoluto: ―a opinião de Freud já não é aceita
unanimamente‖168, o que possibilitaria em seguida o surgimento das diferentes escolas
psicanalíticas.

167
Mezan, 2014, p. 100-109 e p. 477 e seguintes.
168
Mezan, 2014, p. 51.
76

Politicamente o período também era de embates violentos: logo tem início a


Primeira Guerra Mundial. Daniel Kupermann (1996) assim relaciona o clima bélico vivido na
Europa e as hostilidades e dissensões dentro do movimento psicanalítico:

No início do ano de 1914, os ânimos da Mitteleuropa andavam exaltados.


Movimentos de independência nacional numa região que ainda hoje ocupa a atenção
mundial, a Sérvia e a Croácia, criavam um estado de tensão direta com o Império
Austro-Húngaro. (...) Nessa época, Freud redigia um texto de tom francamente
beligerante, que veio a ser apelidado de ‗bomba‘. Um texto onde termos como
deserção, inimigos, adversários, armas, resistência e oposição aparecem
repetidamente. Trata-se de A História do Movimento Psicanalítico. A ‗bomba‘ tinha
como alvos principais Adler e Jung, então recentes dissensões do movimento
psicanalítico. A psicanálise vivia ‗tempos de guerra‘ (p. 19).

Ainda assim Freud (1925) nos conta que o movimento psicanalítico sobrevive à
Guerra, e mesmo psicanalistas de lados opostos no ―campo de batalha‖ estavam unidos pela
Causa. O próprio Freud comemora:

O primeiro encontro após a guerra sucedeu em 1920, em Haia, terreno neutro. Foi
tocante ver a hospitalidade com que os holandeses acolheram os famintos e
empobrecidos cidadãos da Europa Central, e creio ter sido a primeira ocasião em
que, num mundo devastado, ingleses e alemães sentavam-se à mesma mesa, em
razão de interesses científicos. (1925, p. 140)

Ao fim da Guerra tudo muda politicamente e o grande império Austro-Húngaro deixa


de existir. Diz Dunker:
Após a primeira guerra mundial observa-se o fim de antigos impérios, como o Austro
Húngaro, onde Freud se formara. A revolução russa de 1917 e a ascensão republicana
na Alemanha, contribuem para fazer declinar antigos laços aristocráticos e fermentar
um novo tipo de nacionalismo. Particularmente nos anos 30 este contexto fez a
psicanálise aparecer, de modo substancial, em diversos lugares. A situação de relativa
centralização em torno da figura de Freud, que vigorava até a primeira guerra, cede
lugar para a formação de tradições psicanalíticas locais. Budapest, Londres, Zurique
além de Viena e Berlim, tornam-se pontos de referência para uma comunidade de
analistas que ultrapassa o laço pessoal e direto com a figura do fundador. Trata-se
agora de pequenos grupos às voltas com sua inserção junto à comunidade médico-
psiquiátrica, universitária, artística e educacional. Pequenos grupos à procura de sua
auto legitimação e reconhecimento no quadro de um movimento psicanalítico cada
vez mais extenso e impessoal. Há uma crescente internacionalização da psicanálise.
(2006, p. 1-2)

Bem lembramos, com Maddox, que do lado dos Aliados vivia Ernest Jones. Ainda
que a Inglaterra também tenha tido perdas durante o conflito, o galês nessa época gozava de
uma vida confortável. O conflito mundial, como vimos no capítulo anterior, trouxe um novo
campo para a Psicanálise: as chamadas ―neuroses de guerra‖- que lotam os consultórios.
77

A Inglaterra passa a se tornar um importante centro para o Movimento e, por


iniciativa de Jones, nasce a Sociedade Psicanalítica Britânica, fundada em 1919 (como uma
expansão da sociedade anterior, a Sociedade de Londres, fundada em 1913 e extinta por
divergências internas), e em seguida o International Journal of Psycho-Analysis, o primeiro
periódico psicanalítico na língua inglesa. (Consultar Mezan, 2014, Maddox, 2006)
Antes ainda, nos anos em que viveu no Canadá (de 1908 a 1912), Jones havia se
empenhado em disseminar a Psicanálise pelo Novo Mundo e em 1911 fundou a Associação
Psicanalítica Americana. (No mesmo ano, meses antes, Brill havia fundado a Sociedade
Psicanalítica de Nova Iorque.) Em 1909 Freud já havia deixado as marcas da nova disciplina
nos EUA com suas célebres ―Cinco lições de psicanálise‖ na Clark University (Worcester,
Massachussetts) e sentiu-se bem-recebido pelos americanos:

Naquela época eu tinha apenas 53 anos de idade; senti-me jovem e saudável, a


viagem ao Novo Mundo beneficiou meu amor-próprio. Na Europa eu me sentia
como que desprezado, mas ali os melhores indivíduos me receberam como um igual.
Quando subi à cátedra em Worcester, para dar as ‗Cinco lições de psicanálise‘, foi
como a realização de um inverossímil devaneio. A psicanálise não era mais um
produto do delírio, tornara-se uma parcela valiosa da realidade. Desde nossa visita
ela não perdeu terreno na América, tornou-se bastante popular entre os leigos e é
reconhecida como importante elemento da instrução médica por muitos psiquiatras.
(1925, p. 138)

Na segunda fase de Mezan (de 1918 a 1939) o estudo da nova disciplina fundada
por Freud vai então se propagando e ganha adeptos em diversos países. A Psicanálise vai se
internacionalizando e ganhando cada vez mais fiéis freudianos mundo afora, o que possibilita
o nascimento de diferentes vieses interpretativos da obra freudiana. 169 Os países de
efervescência nessa fase são a Alemanha, Áustria, Hungria e Inglaterra; outros países só
sentiriam seus efeitos depois.170
O autor nos recorda que nos anos 20 e 30 o clima na Europa era de ebulição
cultural, artística e intelectual. Como sabemos, são desta fase vários dos textos clássicos de
muitas áreas do conhecimento, tais como as obras de Max Weber, Thomas Mann, Kafka,
Malinowski.

169
Segundo o autor passaremos a ter então o ―Freud kleiniano‖, o ―Freud húngaro‖, e assim por diante (Mezan,
2014, p. 51).
170
Conferir Mezan, 2014, p. 245.
78

O movimento psicanalítico na Inglaterra nos anos 20 contou com um motivo extra


de ―efervescência‖, além da cultural: em 1926, como bem lembramos, Londres recebe
Melanie Klein, que vem para se estabelecer de vez na cidade (com apoio e entusiasmo de
Ernest Jones – ver Maddox, 2006). Desde que entrou em contato com as ideias de Klein pela
primeira vez, Jones havia demonstrado afinidade com seu pensamento e encorajou-a a seguir
colaborando para a Sociedade Britânica (à qual Klein se filiou em 1927). Esta forasteira daria
início anos mais tarde a divergências e conflitos de uma ordem tão profunda e de duração tão
longa nos solos ingleses que Pearl King e Riccardo Steiner dedicaram um pesado volume para
relatá-los: trata-se da obra de referência ―As Controvérsias Freud-Klein: 1941-1945‖ (1998)
As raízes de tais divergências dos anos 40 tiveram origem, porém, muitos anos
antes. Entre as décadas de 20 e 30 Klein apresentou à comunidade psicanalítica sua teoria de
psicanálise precoce (análise infantil) e recebeu em Londres a acolhida e apoio que não
encontrou em solo alemão – quando apresentou as mesmas ideias. (Em 1919, após se analisar
com Ferenczi, Klein havia sido membro da Sociedade Húngara; e depois se mudaria para
Berlim, se analisando com Abraham e entrando também para a Sociedade de lá.) 171
A FEBRAPSI – Federação Brasileira de Psicanálise organizou uma breve
biografia de Melanie Klein e assim descreveu o interjogo entre momento histórico mundial
daquela época e os movimentos dentro da comunidade psicanalítica:

em julho [de 1919], ela [Klein] apresentou à Sociedade Húngara de Psicanálise seu
primeiro artigo, ―Der Familienroman in statu nascendi‖, relato da análise de uma
criança, depois do qual foi admitida como membro. (...) A Sociedade de Psicanálise
de Budapeste, considerada por Freud o principal centro de psicanálise da época,
seria dizimada pouco tempo depois por razões políticas. A queda do Império Austro-
Húngaro foi seguida por um regime comunista de duração breve que, por sua vez,
deu lugar a um regime branco, o Terror Branco, francamente antissemita, o que teve
como consequência a expulsão dos psicanalistas judeus da Sociedade e sua
dissolução. Assim, em 1919, Melanie Klein saiu de Budapeste (...) Em 1921,
Melanie Klein mudou-se para Berlim, também um importante centro tanto de
atividade como de formação psicanalítica. Em 1922, aos 40 anos, tornou-se membro
associado da Sociedade Psicanalítica daquela cidade. Em 1924, iniciou sua segunda
análise, com Karl Abraham, como Ferenczi, um destacado discípulo de Freud. A
morte precoce de Abraham (1925) privaria Melanie de seu analista e protetor,
encorajando seus detratores a se declararem abertamente, mostrando desprezo pela
ascendência polonesa, ênfase na falta de estudos universitários e ironia perante uma
mulher que se pretendia mestra e, além disso, analista de crianças. Sem Abraham,
ela ficaria exposta às críticas dos membros mais conservadores da Sociedade de
Berlim, contrários, sobretudo, às suas ideias relativas ao atendimento de crianças,
originais e ousadas. Tais ideias contrariavam o pensamento de Sigmund Freud e de
sua filha Anna, a qual também se dedicava à psicanálise infantil. Enquanto Anna via
a psicanálise numa perspectiva pedagógica, Melanie Klein mostrava-se determinada

171
King, 1998, p. 17 e Maddox, 2006.
79

a explorar o inconsciente infantil. Para isso, introduziu uma modificação técnica


essencial, substituindo a palavra pelo brincar, garantindo a maior proximidade
possível entre a psicanálise de adultos e de crianças. Na época, o assassinato de
Hermine von Hug-Hellmuth, por um sobrinho que havia sido seu paciente, também
serviu para reforçar a oposição à psicanálise de crianças.
Numa postura diferente da adotada pelos alemães, os ingleses receberam a proposta
de trabalho de Melanie Klein com respeito, curiosidade e entusiasmo. Ainda no ano
de 1925, avisado de suas qualidades por James Strachey, o célebre tradutor e editor
de texto da Standard Edition das Obras de Freud e um dos animadores do famoso
grupo londrino de Bloomsbury, Ernest Jones a convidou a proferir palestras em
Londres. Para essa cidade mudou-se no ano seguinte e ali viveu até o fim de sua
vida, desenvolveu-se plenamente no âmbito profissional e fundou uma escola
frutífera até os dias atuais.172

Antes, porém, de fundar tal escola frutífera, Klein protagonizou, junto a Anna
Freud - e aliados de ambas - um dos embates mais marcantes da história da Psicanálise.
Segundo a obra organizada por King (1998), a psicanálise que se praticava e
estudava na Inglaterra dos anos 20 (após a Primeira Guerra Mundial) era muito semelhante
àquela de Viena, e nessa época ainda não se conseguia identificar divergências teóricas
gritantes. Isto de dava principalmente pelo fato de que muitos psicanalistas em formação na
Sociedade Britânica viajavam para a Áustria ou para a Alemanha para se analisar com os
grandes nomes da primeira geração (―análise didática‖): Freud, obviamente em primeiríssimo
lugar, e também Abraham em Berlim ou Ferenczi na Hungria. Deste modo, considerando que
a análise pessoal é parte fundamental da formação de psicanalistas, as linhas tanto teóricas
quanto práticas não diferiam muito nesses países e a ―herança‖ vienense era transmitida e
ensinada aos ingleses, pelo processo psicanalítico.
Desde o início, porém, algumas diferenças locais já se faziam notar. King (1998)
nos lembra que:
(...) enquanto a maioria dos membros da Sociedade de Viena tinha raízes judaicas,
nesse período apenas dois membros da Sociedade Britânica, Barbara Low e David
Eder, eram judeus; os outros provinham de origens cristãs, escocesas, inglesas ou
galesas, com uma forte inclinação para o agnosticismo e o humanismo. As
implicações dessas diferentes origens devem, entretanto, ter influído de algum modo
nas controvérsias que surgiriam mais tarde.173

E mais: ―Além da tarefa de traduzir e aplicar as ideias de Freud e de seus colegas


do continente ao trabalho com pacientes, os primeiros psicanalistas ingleses estavam
desenvolvendo interesses pessoais dentro da psicanálise.‖174

172
Fonte: <http://www.febrapsi.org/publicacoes/biografias/melanie-klein>.
173
King, 1998, p. 42.
174
Idem, Ibidem, loc. cit.
80

É nesse contexto, que como já vimos (Maddox, 2006), que em 1926 a austríaca
Melanie Klein chega a Londres trazendo suas ideias sobre técnicas de psicanálise infantil – o
mesmo campo de estudos de Anna Freud.
Como vimos no capítulo anterior, Freud assumiu o partido da filha e ficou
bastante contrariado com a receptividade que Klein estava tendo em Londres, em especial
com as críticas abertas que esta apresentou sobre o primeiro livro de Anna Freud, ―Introdução
à Técnica de Análise de Crianças‖, publicado em 1927. Esse seria o início de uma rivalidade
entre as duas psicanalistas de crianças e de divergências teóricas importantes entre Viena e
Londres.
Essa é a época que antecede a Segunda Guerra Mundial. Logo Hitler toma o poder
e, como já vimos, a psicanálise é associada ao judaísmo. Pouco a pouco a situação política se
complica e afeta o movimento psicanalítico em grandes proporções. Psicanalistas judeus
precisam fugir da Alemanha e imigram para a Inglaterra; também os de Viena escolheriam a
Inglaterra, sobretudo – ou os EUA – para migrar, e sem dúvida a chegada destes estrangeiros
com concepções teóricas divergentes da escola inglesa – sobretudo em relação às ideias de
Klein – vai gerar mais tensão na Sociedade Britânica. (Ver King, 1998)
Como vimos (Maddox, 2006), nessa época Jones promove as ―Exchange
Lectures‖, conferências de intercâmbio entre Viena e Londres, para tentar debater as
discordâncias conceituais. A pressão do nazismo, porém, se mostrava mais gritante e
preocupante do que quaisquer divergências teóricas, e King (1998) pondera:

É difícil avaliar o quanto de esclarecimento e compreensão mútua foi conseguido


durante essas assim chamadas ‗Exchange Lectures‖ (Conferências de intercâmbio).
Fatos mais sérios exigiam a atenção dos psicanalistas, fatos esses que representavam
uma ameaça maior para os analistas do que essas divergências. Referiam-se ao
antissemitismo na Alemanha e ao possível perigo para a Áustria e, portanto, para a
Sociedade de Viena. 175

Em 1938 a invasão nazista em Viena torna a situação incontornável. Como já


sabemos, Jones - auxiliado por Maria Bonaparte e outros contatos estratégicos – consegue
então providenciar a mudança de Freud e sua família para Londres, em plena segurança – bem
como de vários outros analistas vienenses. (Maddox, 2006)
A chegada deste grupo de estrangeiros provoca uma polaridade na Sociedade
Britânica: duas concepções radicalmente diferentes – a de Anna Freud e a Sociedade de

175
King, 1998, p. 51.
81

Viena, de um lado; e Melanie Klein e a Sociedade Britânica, do outro – conviviam agora lado
a lado, no mesmo país, na mesma cidade, na mesma Sociedade.
Mas o maior conflito ainda estava por vir, de escala mundial, promovendo uma
verdadeira reviravolta no movimento psicanalítico. Mezan sintetiza o fim desta segunda fase:

(...) em 1939, morre Freud e começa a Segunda Guerra Mundial. Em consequência


das perseguições fascistas, desmantela-se a psicanálise na Alemanha, na Áustria e na
Hungria; sua língua predominante deixa de ser o alemão e, com a emigração para a
Inglaterra e para as Américas, passa a ser o inglês. Dos primeiros discípulos de
Freud, apenas Jones sobrevive à guerra; quando esta termina, a geografia da
psicanálise experimentou profundas mudanças, e tem início um novo período. (p.
51)

Como já vimos, aos poucos as afinidades teóricas de psicanalistas pró-


Klein/Londres ou pró Anna Freud/Viena foram dividindo os psicanalistas em grupos
separados e também nasceria um grupo que não tomaria partido nem de uma e nem de outra
autora, o chamado Middle Group, ou ―Grupo Independente‖ (ou ainda ―Grupo do Meio‖),
formado por psicanalistas como Donald Winnicott, John Bolwby, Michael Balint e outros.
(Ver Maddox, 2006, King, 1998)

Em setembro de 1939 a Grã-Bretanha declara guerra à Alemanha, e alguns


analistas deixam Londres – entre eles Melanie Klein176, que retornaria dois anos depois.
Sylvia Payne, - psicanalista inglesa do Grupo Independente que assumiria a presidência da
Sociedade Britânica após Jones deixar o cargo em 1944- assim definiu aqueles dias:

Antes que a Sociedade Britânica tivesse tempo de assimilar e de integrar os colegas


vindos de Viena, ela teve que se confrontar com a dispersão de seus próprios
membros, devido ao ataque de Londres. Penso que somente realizamos o pleno
significado deste fato quando os membros começaram a voltar a Londres, no verão
de 1941. A retirada dos membros representava não apenas o fechamento de suas
clínicas particulares, promovendo ansiedade quanto ao aspecto econômico, como
também a completa interrupção de contatos pessoais, o que levava a aumentar a
importância das diferenças de pontos de vista científicos e pessoais que já
existiam. 177

E King (1998) nos conta que as diferenças e incômodos não eram apenas de
ordem científica. Naqueles dias muitos membros da Sociedade Britânica estavam desgostosos
com o modelo de gestão não muito democrático de Jones e Glover, que estavam à frente dos
encontros. Questões de mandato, por exemplo quanto tempo se pode permanecer no poder,

176
King, 1998, p. 55
177
Apud King, 1998, p. 56-57.
82

também eram motivos de queixas. Assim, às tensões da Guerra mundial se somavam guerras
na micropolítica da psicanálise inglesa – e segundo o autor nesta disputa estavam em jogo a
rejeição aos vienenses ―intrusos‖, divergências teóricas, e a distribuição do poder:

(...) isso significava que o poder permaneceria nas mãos de poucas pessoas, mesmo
que sua designação tivesse que ser confirmada a cada ano. Esta situação levou a um
crescente ressentimento, pois os analistas que tinham experimentado o exercício da
autoridade nas Forças Armadas ressentiam-se da autoridade de dirigentes que
ocupavam múltiplos cargos há muito tempo, sem reeleição (...) (1998, p. 58)

É nessa época que as ―Grandes Controvérsias‖ acontecem: uma série de debates


na tentativa de conciliar as divergências que polarizavam a Sociedade Britânica. Ainda
segundo King (1998) no fim destes encontros científicos houve um ―acordo de cavalheiros‖: o
de que sempre haveria, nos comitês da Sociedade, representantes dos três grupos teóricos
(pró-Klein, pró-Anna Freud e Grupo independente).178
Em paralelo, na França, Lacan vai ganhando terreno e na década de 50 faz seu
seminário. A tradição psicanalítica neste país terá influências bastante diversas da inglesa em
todos os aspectos- culturais, sociais, políticos; segundo Mezan (2014, p. 37-8), o próprio
início da psicanálise na França é bastante característico: quem se interessou inicialmente pela
psicanálise na França foram os artistas - em especial os da corrente do surrealismo -,
escritores e filósofos, sendo que o desafio principal da nova disciplina seria enfrentar a forte
tradição psiquiátrica do país (de Pinel, Esquirol).
Segundo o mesmo autor, a década de 40 inaugura a terceira fase do movimento
psicanalítico, a chamada ―era das escolas‖: ―(...) pode-se dizer que se organizam quatro
grandes correntes: a psicologia do ego, a tendência kleiniana, a escola das ‗relações de objeto‘
e o lacanismo, que seguem trajetórias próprias, como que desdobrando as potencialidades
contidas em seus respectivos focos teóricos e clínicos.‖ 179
Aos poucos ocorre uma consolidação de cada escola psicanalítica e sua
―distribuição‖ pelos diferentes países: ―Na escala macroscópica, os fenômenos mais
importantes deste período parecem ser o surgimento de uma psicanálise sólida na França, a
difusão do kleinismo na América do Sul, e a predominância americana no seio da Associação
Internacional.‖ 180

178
Ver King, 1998, p.874 .
179
Mezan, 2014, p. 52.
180
Mezan, 2014, p. 52.
83

Um comentário importante antes de prosseguirmos. Como vimos (conferir


Capítulo I. 2 – Sobre o método), os textos de Jones selecionados para o presente trabalho
foram escritos em épocas muito diferentes, como que ―distribuídos‖ ao longo de todos esses
anos de História (História esta muito brevemente resumida aqui e necessariamente
incompleta). Embora esta escolha não tenha sido exatamente intencional (isto é, não se
buscou selecionar um texto de cada década ou algo assim), observamos a posteriori que há,
nesta seleção, textos de praticamente todas as fases da vida e atuação de Jones: vários textos
de 1913 (época em que, como vimos aqui, Jones acabava de retornar do Canadá, onde havia
escrito como nunca – talvez, como ele mesmo interpreta, devido à infelicidade na vida pessoal
e diversas inspirações de um país novo, virginalmente pronto para ser desbravado e
descoberto – e com boas bibliotecas!); também há textos das décadas de 20 e 30, em que a
Psicanálise vivia um momento chave, de grande efervescência, um salto rumo à franca
internacionalização, quando Jones já estava estabelecido em Londres e havia fundado
sociedades, o Journal, e um instituto; uma fase em que Freud já não era uma voz única na
Psicanálise: dissenções já haviam acontecido e pensamentos divergentes já não poderiam ser
evitados... além disso, é nessa época que Melanie Klein surge no horizonte inglês e se muda
de vez para Londres – o que causará conflitos, inclusive entre Jones e Freud. Por fim, temos
um texto selecionado do fim da vida do galês, sua última obra (incompleta) e profundamente
reveladora: sua autobiografia, cuja escrita avançava pela década de 40 e que foi publicada
postumamente, em 1959, com epílogo escrito por seu filho, Mervyn Jones - escritor
profissional. O fato de não havermos selecionado os textos pela cronologia 181 e observarmos
depois essa distribuição razoável pela linha do tempo nos dá uma agradável sensação de
coerência e indícios ou traços de uma obra que, embora seguramente influenciada e
influenciadora pelos/dos acontecimentos e jogos de forças de cada fase (no mundo e na
Psicanálise), também mantém viva uma linha tênue interna, demonstra algo que une os
diferentes textos e os aproxima, revelando um mesmo autor em diferentes contextos e
influências.
Feita essa observação, retomemos a parte derradeira de nosso capítulo histórico.
Quanto à chegada da Psicanálise no Brasil, Mezan nos conta que já em 1899 o
psiquiatra Juliano Moreira fará menção ao método de Freud, mas é só a partir dos anos 20 que
de fato a psicanálise ganhará um impulso no país, com Durval Marcondes: ―Ele se põe em
correspondência com Freud, funda uma Revista Brasileira de Psicanálise (...) organiza em São

181
Este não foi o critério adotado, e sim seu conteúdo – que, como veremos, guardam uma coerência entre si.
84

Paulo a Sociedade Brasileira de Psicanálise (igualmente em 1926) e busca trazer para a cidade
um analista didata‖ (2014, p. 499)s
(Silvia Alexim Nunes (1988), que estudou o surgimento da Psicanálise no Brasil,
fará o interessante apontamento de que nos primórdios, os princípios freudianos foram um
tanto distorcidos e como que anexados ao pensamento psiquiátrico – assim servindo aos seus
objetivos, muitos deles ligados à eugenia.182 Segundo a autora, os conceitos psicanalíticos
eram então muitas vezes utilizados de modo descontextualizado e a serviço de uma ―correção
adaptativa‖.)
Aos poucos a psicanálise vai então sendo praticada e estudada no Brasil, e
ganhando novos adeptos. Segundo Mezan, a partir dos anos 40 muitos psicanalistas
brasileiros sofrerão as influências de Melanie Klein, e a predominância da escola inglesa de
psicanálise vai perdurar até a década de 70. Para o autor, colaboraram para esta influência o
fato de muitos psicanalistas latino-americanos viajarem para Londres para se formar (a partir
de 1945) e, mais tarde, também a publicação da biografia de Freud (escrita por Jones) e da
Standard Edition. Em 1970 a doutrina lacaniana chegaria ao Brasil através dos psicanalistas
argentinos (Mezan, 2014, p. 500).
A partir de meados da década de 80 tem início, segundo a divisão proposta por
Mezan, a quarta fase, que dura até hoje. Tal período se caracteriza pela dispersão, por autores
que estabelecem diálogos com outros autores (como André Green), por contornos mais
indefinidos, de difícil precisão.183
E há muitas outras histórias.
Há a história da psicanálise na Argentina, e uma imbricada história da Psicanálise
na França; passando por muitos autores, controvérsias, fusões, debates, rivalidades... Há o
surgimento de mentes inovadoras, teorias interessantíssimas; não podemos deixar de citar o
olhar para o corpo que propõe Willhelm Reich; também mencionar aqueles que, na Sociedade
Britânica propuseram um novo olhar para a psicanálise: do Grupo independente (embora no
início se posicionasse pró-Klein) surgiria por exemplo o gênio de Donald Winnicott, que com
originalidade enfatiza o papel do ambiente na constituição do psiquismo; a chegada do
pensamento inovador de Bion, as concepções de Balint; surgiria André Green, que propõe
uma teoria que alia três autores (Lacan, Winnicott e Bion)... Surgem as correntes de
psicossomática, e os estudos de psicose, autismo, e psicanálise de bebês ou nas instituições

182
―O que está implícito nesse discurso é a tentativa de adaptar a sexualidade e domesticar as paixões em nome
de um projeto de aperfeiçoamento racial.‖ (Nunes, 1988, p. 83)
183
Mezan, 2014, p. 53-5
85

(não nessa ordem) – e são tantas histórias, e histórias dentro de histórias, que devemos, apenas
por disciplina, nos conter e parar por aqui.
E o fazemos não por já termos esgotarmos o tema – muito longe disso – mas
porque, como já assinalamos, se nos alongarmos perderemos o foco de nosso protagonista,
que nasceu em 1879 no país de Gales e morreu em Londres em 1958, na época em que as
escolas psicanalíticas se firmavam e que a ―Vida e obra de Sigmund Freud‖ vendia muito
bem; Lacan na França, a Sociedade Britânica conseguindo tolerar sem expulsões ou
rompimentos a coexistência do pensamento kleiniano e o de Anna Freud - e também de
alguns psicanalistas ―independentes‖.
Jones morreu no ano184 em que os EUA fundariam a NASA, e nasceria Michael
Jackson; no Brasil João Gilberto lançaria ―Chega de saudade‖; o Brasil ganharia sua primeira
Copa Mundial, o filme ―A ponte do Rio Kwai‖ ganharia sete Oscar; o Papa Pio XII morreria e
seria substituído por Dom João XXIII; a música italiana era moda e ―Volare‖ desbancava até
mesmo Elvis Presley na Billboard, ganhando também o Grammy de melhor canção; em Cuba
Fidel Castro e Che Guevara atacavam Havana; e, após décadas de negociação, finalmente a
autora de ―Mary Poppins‖ concedia os direitos para Walt Disney transformá-lo em filme.185
E assim a história continua, do mundo e da psicanálise, até a tarde em que termino
de escrever o presente trabalho e mais outros tantos dias e noites, até o preciso momento de
agora, em que o leitor encontra essas linhas.
*
Um comentário final, porém, antes de encerrarmos o capítulo.
Deve-se observar, com Kupermann (1996), que durante toda a sua história a
Psicanálise enfrentou resistências. Diz o autor: ―A ideia freudiana é a de que, em contato com
a ‗coisa‘ psicanalítica, tanto os psicanalistas-teorizadores quanto os pacientes estão sujeitos às
186
limitações provocadas pelas resistências suscitadas pela própria psicanálise.‖ (Talvez seja
por isso que o autor colocará a citação, na abertura de seu capítulo: ―Provocar oposição e
despertar rancor é o destino inevitável da psicanálise. S. Freud‖ 187)

184
Fonte do que aconteceu no mundo em 1958:
<http://globoesporte.globo.com/Esportes/Noticias/Times/Selecao_Brasileira/0,,MUL590881-15071,00-
O+QUE+ACONTECIA+NO+MUNDO+EM.html> e <https://en.wikipedia.org/wiki/Billboard_year-
end_top_50_singles_of_1958>.
185
Entre 1958 e 1959, na realidade. Fonte: ―Cronologia: Vida e obra de P. L. Travers.‖ In: TRAVERS, P. L.
Mary Poppins. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.
186
Kupermann, 1996, p. 23.
187
Kupermann, 1996, p. 17.
86

E mais: as próprias instituições psicanalíticas tem também suas resistências. Não


apenas a já sabida impermeabilidade a pensamentos de ―escolas‖ diferentes – que muitas
vezes se organizam quase como guetos fechados – mas Mezan nos recorda inclusive da
resistência aos estudos de História da Psicanálise, uma vez que por definição este tipo de
produção não coaduna com dogmatismos ou correntes únicas de pensamento, mas ao invés
disso as coloca lado a lado e segue as pistas de sua construção. O autor nos diz que:

são consideráveis as forças emocionais que se opõem à mera ideia de uma história
da teoria psicanalítica: a investigação minuciosa e precisa quanto às origens das
várias correntes do pensamento psicanalítico tende a ser encarada como uma ameaça
de relativização dos postulados em volta dos quais se aglutinam as instituições. Daí
a relutância – para dizer o mínimo – em admitir que possam existir outras espécies
do gênero, cuja origem merece ser pesquisada e não difamada. (Mezan, 1988, p. 20-
21)188

188
Também Phillips (1998), ao analisar as cartas Freud-Jones, vai tecer um comentário interessante sobre a
importância do estudo da história para a psicanálise de nossos dias: ‘Os leitores‘, escreveu Freud a Jones, ‗não
devem ser induzidos a esquecer o momento histórico‘ de nenhum elemento da teoria psicanalítica; e essa
correspondência, bem ou mal, certamente adensa a trama, fazendo-nos recém-desconfiados da suspeita chamada
psicanálise. O que ela oferece é uma espécie de livro de referências para as confusões e conflitos da psicanálise
contemporânea na qual, embora não haja mais ‗heresias‘ e ‗apóstatas‘, para empregar o vocabulário de
Freud/Jones, as pessoas ainda defendem ideias como se elas fossem pais. (A criança, devemos lembrar, sempre
defende o mau pai com mais ferocidade que o bom.)‖ (Phillips, 1998, p. 165-6)
87

IV O PAI, O FILHO, O AVÔ E O NETO189

Em 1913 Jones apresenta um trabalho muito interessante, porém ainda


infelizmente pouco conhecido no Brasil: trata-se do artigo ―The phantasy of the reversal of
generations‖. Inicialmente lido em Nova Iorque diante da Sociedade Psiquiátrica, Ward‘s
Island (em 08 de fevereiro de 1913), será parte integrante de seu livro-coletânea Papers on
Psycho-Analysis, alguns anos mais tarde (segunda edição, de 1918).190
Com seu costumeiro estilo didático,191 Jones traz uma série de exemplos clínicos e
cotidianos de crianças que demonstram acreditar que, à medida que crescem, o oposto
aconteceria com seus pais, até ocorrer uma completa inversão e a criança tornar-se o pai/a
mãe e os pais voltarem a ser crianças.
Há muitas possibilidades de análise desta fantasia e Jones levanta algumas
hipóteses bastante interessantes.
A primeira interpretação, bastante sustentada por uma observação empírica e
concreta, demonstra que, à medida que a criança cresce e se torna mais alta, os adultos
parecem menores – isto é, seu tamanho é relativizado. Soma-se a isso o fato de que pessoas
―muito crescidas‖, isto é, idosas, geralmente andam encurvadas - e por isso parecem
realmente menores.
A segunda abordagem de Jones ao fenômeno é mais profunda e compreende que
na gênese desta fantasia de inversão estão os impulsos de amor e de ódio da criança –
dirigidos ao seu pai e à sua mãe.
O amor da criança pelos seus pais se manifesta pelo desejo de nutri-los, acarinhá-
los e cuidar deles; trata-se, portanto, de um impulso materno (ou paterno) da criança em
relação aos genitores: a fantasia torna-se, portanto, a de que os pais da criança seriam seus
filhos. O fenômeno descrito por Jones é facilmente observável cotidianamente: de fato
testemunhamos com frequência crianças pequenas alimentando seus pais, fazendo carinho,
―ninando-os‖, etc.

189
Este capítulo, com modificações, acréscimos e supressões também foi parte integrante de minha dissertação
de mestrado, posteriormente publicada como livro (Marques, 2016). Já naquele trabalho chamei a atenção para a
fantasia de inversão de gerações na teoria de Jones.
190
Utilizamos aqui a 4ª edição do referido livro, de 1938.
191
Na opinião de Vesky-Wagner o dom de didatismo de Jones foi desenvolvido ao longo dos vários anos em que
atuou como tutor de estudantes. (1968, p. 29-30). Antonio Imbasciati (1983) também salienta o estilo didático e
claro de Jones, aliados à sua tolerância e capacidade de mediação que impediu que Klein fosse expulsa da
Sociedade Britânica. (1983).
88

Jones chama a atenção ao fato de que tal tendência materna/paterna é despertada


em um estágio do desenvolvimento anterior ao impulso de se unir a uma pessoa do sexo
oposto - e de ter filhos com ela: ―Que este impulso está em jogo é demonstrado não apenas
pela observação direta da criança que exibe a fantasia de ‗inversão‘, mas é apoiado pelo fato
de que na maioria dos indivíduos o instinto parental é despertado antes do instinto de se
associar com um membro do sexo oposto (o impulso sexual, no sentido popular).‖ 192
Ao afirmá-lo, o autor nos traz uma contribuição importante: no curso do
desenvolvimento, as tendências maternais ou paternais aparecem muito antes da genitalidade
ser alcançada. Ainda que pareça paradoxal, podemos concluir a partir de Jones que a
maternagem é uma das formas de expressão do amor infantil filial. 193
Também na hostilidade pode-se enxergar a força da fantasia de ―inversão de
gerações‖. Neste caso, a fantasia teria uma função de retaliação, colocando a criança em uma
posição de poder sobre as figuras paternas. Uma criança citada por ele certa vez disse à mãe:
―Quando eu for grande e você for pequena eu vou te bater da mesma forma que você me bate
agora‖.194
Alguns anos antes, em 1910, Freud já havia mencionado tal fantasia em seu
trabalho ―Um tipo especial de escolha de objeto feita pelo homem‖: trata-se do desejo
inconsciente da criança ser pai de seu pai:

Quando o menino ouve que ‗deve‘ a vida aos pais, que a mãe lhe ‗deu a vida‘,
conjugam-se nele impulsos ternos e que anseiam por grandeza e independência, para
dar origem ao desejo de restituir aos pais esse presente, de recompensá-los com um
de igual valor. [...] Ele forma então a fantasia de salvar o pai de um perigo mortal
[...] Ocasionalmente, também a fantasia de salvação relativa ao pai tem um sentido
carinhoso. Quer então expressar o desejo de ter o pai como filho. (1910, p. 344-346)

192
―That this impulse is in play is not only shown by direct observation of the child who exhibits the ‗reversal‘
phantasy, but is supported by the fact that in most individuals the parental instinct is awakened before the instinct
to combine with a member of the opposite sex (the sexual impulse in the popular sense).‖ (Jones, 1913, p. 34)
193
Este conceito foi bastante discutido em minha dissertação de mestrado ―Adolescentes e idosos: uma leitura
psicanalítica do encontro intergeracional no Oldnet‖ (PUC-SP, 2012), posteriormente publicada como livro
(MARQUES, Izabel de Madureira. O fim e o começo – Uma leitura psicanalítica do encontro intergeracional
entre adolescentes e idosos. São Paulo: Editora Escuta, 2016.) Como relatei no início deste trabalho, o Projeto
Oldnet, que coordenei por mais de uma década, propõe o encontro intergeracional entre adolescentes e idosos
através do ensino de tecnologia. Cada adolescente - com média de idade de 15 anos – ministra aulas para o seu
próprio aluno idoso – em média com 75 anos. Em minha dissertação demonstrei como a situação proposta pelo
projeto Oldnet evoca a fantasia de inversão de gerações descrita por Jones (1913). Ao envelhecer o idoso
assumiria a posição infantil: enquanto o adolescente cresce, o idoso encolhe (ou ―decresce‖). Ao ser professor, o
adolescente assume o lugar do pai, da mãe, do genitor que cuida, protege, ensina, orienta; o idoso segue,
―engatinha‖, é um iniciante. À posição de aluno que o idoso assume no projeto (que demanda orientação, tutoria,
cuidados), somam-se os próprios movimentos regressivos comuns no envelhecimento, facilitando como que uma
―realização‖ da fantasia de inversão geracional – para ambas gerações.
194
―When I am a big girl and you are a little girl I shall whip you just as you whip me now.‖ (Jones, 1913, p.
525) Um pequeno artigo contemporâneo menciona essa inversão de gerações – bem como discorre sobre a
rivalidade entre elas – mas não cita o artigo de Jones (POLAND, 2009)
89

Também Ferenczi – muitos anos mais tarde, em 1932, em seu importante texto
―Confusão de línguas entre os adultos e a criança‖ observaria que a criança em seu
desenvolvimento normal tem uma fantasia lúdica com seus pais, a fantasia de assumir um
papel maternal em relação aos adultos. Em casos onde o desenvolvimento sadio não pôde
ocorrer, a criança pode efetivamente cumprir esse papel compensatoriamente. (Ferenczi alerta
que uma criança que não teve cuidados adequados dos pais pode desenvolver uma maturidade
prematura e artificial, como o clássico sonho do ―bebê sábio‖ demonstra.195 Passa-se algo
como: ―Se não há ninguém preparado para cuidar de mim, eu mesmo o farei. Para isso basta
que eu cresça antes do tempo. Desta forma, além de cuidar de mim, cuido também de meus
pais e assim os fortaleço‖.)
É preciso portanto diferenciar a fantasia normal da criança de ser pai ou mãe de
seus pais (inclusive como uma forma de amor) de uma prematuridade defensiva e
compensatória, fruto de falhas ambientais. Aqui estamos trabalhando na esfera da ―fantasia
lúdica‖ de que fala Ferenczi, uma fantasia inconsciente de inversão que faria parte do
desenvolvimento normal e sadio.
Embora Freud – anos antes – e Ferenczi – anos depois – tenham apontado para
essa questão, é Ernest Jones quem irá se debruçar especificamente sobre essa fantasia e isolá-
la como fenômeno a ser estudado, dedicando seu artigo a ela.
Esse interesse de Jones sobre as relações geracionais – em última instância,
evidentemente, em torno do Édipo – se repetirá em um segundo artigo, também de 1913,
voltado sobre a relação inconsciente entre avós e netos. Trata-se do ―The significance of the
grandfather for the fate of the individual‖, publicado na Zeitschrift.
De fato pode-se afirmar que Jones foi um dos poucos autores em Psicanálise que
se dedicaram a compreender o papel dos avós no psiquismo infantil. O lugar do pai e da mãe
– e suas ambivalências edípicas – já haviam sido bastante explorados pelos analistas, mas não
os avós.
Ernest Jones afirma que os pais tendem a transferir os ideais de ego (imagos
paternas) para os filhos do mesmo sexo. Uma vez que a idealização do pai e da mãe jamais

195
Ferenczi (1992) identificou entre vários pacientes um sonho recorrente: um bebê recém-nascido ou ainda no
berço começa a dar palestras sobre vários assuntos, demonstrando grande sapiência e erudição. Na realidade tal
sonho denuncia a prematuridade erigida como defesa contra faltas importantes, necessidades básicas não
atendidas que impossibilitaram o desenvolvimento normal da criança. Diz o autor: ―Uma mãe que se queixa
continuamente de seus padecimentos pode transformar seu filho pequeno num auxiliar para cuidar dela, ou seja,
fazer dele um verdadeiro substituto materno, sem levar em conta os interesses próprios da criança‖ (1992, p.
105).
90

são totalmente suplantadas, ocorre uma transferência de ideais através das gerações; o filho
recebendo os ideais do avô, a filha recebendo os ideais da avó.
Em muitas culturas – como a nossa - há o hábito (em alguns casos, uma regra) de
dar o nome dos avós aos netos. Em certas tribos, existe a crença de que o avô ou avó
reencarnou no neto(a). Ao pesquisar a raiz etimológica da palavra ―neto‖ em alemão
(―Enkel‖) Jones descobriu que originalmente ―neto‖ significa ―pequeno avô‖. (!)
Não raro os sentimentos ambivalentes de um homem pelo seu pai são transferidos
para seu filho homem; a idealização, bem como o amor, o ódio e o medo de uma figura
masculina podem ser herdados pelo filho (o neto), como reminiscências de conflitos da
geração anterior.
Dessa forma, se o pai teme seu próprio pai, possivelmente temerá seu filho: o
neto, incorporando a imagem do avô, desperta e evoca no pai os mesmos sentimentos. Na
realidade o pai tem ao menos dois ―motivos‖ para temer seu próprio filho: primeiro, por este
ser a ―reencarnação psíquica‖ do avô (seu próprio pai); em segundo, porque o pai sabe
(consciente ou inconscientemente), e por experiência própria, que o conflito edípico faz com
que os filhos odeiem seus pais (como ele mesmo odiou o seu). Existe assim uma interessante
conexão entre o avô e o neto, que Jones descreve utilizando uma imagem da Mitologia grega:

Nós temos aqui, sem dúvida, a razão mais profunda para a identificação constante
do neto com o avô: ambos são igualmente temidos pelo pai, que tem razão de temer
a retaliação de ambos por seus desejos culpados contra eles. Há muitos exemplos
dessa situação na mitologia. Assim, Zeus chegou a realizar sobre o seu pai Cronos a
mesma ferida da castração - que este último tinha efetuado em seu próprio pai,
Urano; assim Urano é vingado por sua reencarnação, Zeus. 196

O avô é vingado pelo neto, e assim se estabelece uma aliança fortíssima entre eles.
Karl Abraham, como Jones, foi outro dos poucos autores a estudar o papel dos
avós na psique da criança. No mesmo ano (1913), Abraham escreve um artigo sobre o tema e
nos conta que, em suas observações clínicas, verificou que em muitos pacientes a ligação
excessiva com os avós relacionava-se com um violento repúdio às figuras paternas. O autor
também classificará três maneiras que o a fantasia neurótica encontra para neutralizar o poder
do pai ou da mãe: eliminá-los (desejos de morte dos pais), negar os pais (fantasia de ter outros

196
―We doubtless have here the deepest reason for the constant identification of grandson with grandfather; both
are equally feared by the father, who has reason to dread their retaliation for his guilty wishes against them.
There are many examples of this situation in mythology. Thus, Zeus did actually carry out on his father Cronos
the very injury of castration that the latter had effected on his own father, Uranos; so Uranos is avenged by his
re-incarnation, Zeus.‖ (Jones, 1913, p. 530)
91

pais, estes sim verdadeiros) e, por fim, diminuir o poder do pai ou da mãe, como ao colocar
uma figura ainda mais poderosa acima dele. O autor nos conta que um menino, em seus
devaneios, criava uma história em que ocupavam o lugar do príncipe; seu pai ocupava lugar
do rei, e seu avô, um lugar divino – um ancião com super poderes. A fé religiosa, para este
autor, então está relacionada com esta questão: ―A fé na onipotência divina ou na
predestinação consola o neurótico. Dá-lhe a sensação de que nem mesmo o pai, de quem ele
se sente inteiramente dependente, por causa de sua fixação inconsciente, é onipotente, mas
que ele, por sua vez, está sujeito a um poder mais alto.‖197 O pai, portanto, passa a ter alguém
acima dele, a quem deve respeito e submissão.
Para o autor alemão esta noção de que há alguém acima dos próprios pais é
confirmada por pelo menos três elementos culturais: a linguagem, a fé religiosa e o culto aos
antepassados. No campo da linguagem, observa-se que em muitos idiomas ―avô‖ é designado
como ―grande pai‖: Grandfather, Grossvater, Grandpère: o avô é sempre maior que o pai.
Nos outros campos, pode-se interpretar tanto o culto aos antepassados (existente em
praticamente todas as culturas) quanto a fé em uma divindade poderosa como um
―deslocamento da autoridade paterna‖ (Abraham, 1913).
Jones cita o trabalho de Abraham em seu ―The significance of the grandfather for
the fate of the individual‖ (1913) e corrobora que os avós podem assumir, para os netos, um
lugar de poder que substitui o poder paterno/materno. Especialmente na fase em que as
crianças estão às voltas com os devaneios do ―O romance familiar dos neuróticos‖ (Freud,
1909), os pais são descartados, seu poder e autoridade são questionados e podem ser
substituídos pelos avós. Os avós, desta forma, assumem o lugar dos ideais paternos e
maternos. Em suas palavras:

É provável que o interesse, a admiração e as fantasias que se reúnem em torno da


figura do avô sejam sempre derivadas de uma atitude mental assumida
anteriormente em relação ao pai, mas há alguns pontos importantes em que essa
figura é distinta de outras repetições da imagem pai. (...) Mais particularmente, no
momento em que o menino começa a tecer o que Freud denomina seu "romance
familiar" e está empenhado em se livrar do pai real, substituindo-o em sua
imaginação por uma figura mais satisfatória (de onde, no segundo grande período de
repressão - a saber, a puberdade - surge a ideia de Deus), o avô pode se apresentar
como um substituto aceitável. Nota de rodapé: Existem muitos exemplos da
equivalência "Deus-avô" que substitui a mais usual de "Deus-Pai". Assim, os
Estonianos chamaram seu Deus Pikker 'Wanna Essa', que significa 'Pai Velho'. Os

197
“La fe en la omnipotência divina o en la predestinación consuela ao neurótico. Le ofrece la sensación de que
ni siquiera el padre, de quien se siente enteramente dependiente, en razón de su fijación inconsciente, es
omnipotente, aino que éste, a su vez, está sometido a um poder más alto.‖ (Abraham, 1913, p. 44-5)
92

índios americanos chamaram seu Todo-Poderoso de ‗Avô‘. O Nórdico Thor também


tem o nome A tli – isto é, Avô.198

Outro interessante fenômeno – entre outros - que Jones irá destacar em seu artigo
sobre avós é a relação de rivalidade que pode existir entre o neto e seu avô materno: em
virtude do Édipo da mãe em relação ao seu próprio pai (o avô do menino), o garoto pode
sentir no avô materno um adversário talvez ainda mais poderoso que seu pai. (O autor salienta
que também Rank apontou para esta questão. Rank traz a imagem de um avô tirânico que
mantém sua filha presa – assim não pode se casar -, a partir de seus estudos de mitologia.)
(Jones, 1913, p. 521)
Ferenczi, em seu ―O complexo do avô‖, aponta ainda um aspecto ambíguo da
figura do avô, que se por um lado domina o pai, por outro é um ―pai vencido‖, baqueado pela
idade, pelas doenças, enfraquecido e pouco potente. O avô, por este viés, pode ser alvo de
desprezo do neto.
Em termos competitivos o avô está, nesse sentido, em desvantagem. A esse
respeito Abraham (1913) conta o caso de um paciente que, quando menino, pensava em seu
próprio avô como um deus destronado, aposentado, já retirado do mundo. Esse pensamento o
confortava: ―Ao comparar o avô destronado com o pai, ainda jovem e na posse de seu poder,
o menino se consolava secretamente com o pensamento de que seu pai também não dominaria
sempre, mas que algum dia seria deposto do mesmo modo que o avô‖. 199
Embora não tenha se dedicado especialmente aos sentidos psíquicos da relação
entre avós e netos, Freud nos oferece uma interessante interpretação do lugar que a avó pode
ocupar na solução do conflito edípico do menino. Em ―Análise da fobia de um garoto de cinco
anos‖ (1909), se descreve uma cena em que o pequeno Hans está brincando com seus filhos
imaginários (e rapidamente nos lembramos da ―fantasia de inversão de gerações‖ de Jones). O
pai de Hans então se aproxima e pergunta ao menino quem é a mãe destas crianças. O menino
responde com uma solução estratégica, dizendo que a mãe de seus filhos imaginários é a
198
―It is probable that the interest, the admiration, and the phantasies that gather round the figure of the
grandfather are always derived from an attitude of mind earlier taken up in respect to the father, but there are
some important points in which that figure is distinguished from other repetitions of the father-image. (…) More
particularly at the time when the boy is beginning to weave what Freud terms his ‗family romance‘ and is
engaged in getting rid of the real father by replacing him in his imagination by a more satisfactory figure
(whence in the second great period of repression – viz., puberty – the ideia of God largely arises), the
grandfather may present himself as an acceptable substitute. Nota de rodapé: There are many examples of the
equivalency ‗God-Grandfather‘ replacing the more usual one of ‗God-Father‘. Thus, the Esthonians called their
God Pikker ‗Wanna Essa‘, which means ‗Old Father‘. The American Indians called their Almighty
‗Grandfather‘. The Norse Thor has also the name A tli – i. e., Grandfather.‖ (Jones, 1913, p. 519-20)
199
―Al comparar al abuelo destronado con el padre, todavia joven y en posesión de su poder, el niño se
consolaba secretamente con el pensamiento de que tampoco su padre dominaria siempre, sino que algún dia sería
depuesto del mismo modo que el abuelo‖. (1913, p. 44)
93

própria mãe dele (agora tornada edipianamente sua esposa); e ainda: para que o pai não fique
sozinho sem mulher, o pequeno Hans o oferece a mãe dele (a avó de Hans). Isto é: cada um se
casa com sua própria mãe e o conflito então é anulado.
Freud comenta ao final da passagem: ―Tudo termina bem. O pequeno Édipo
achou uma solução mais feliz do que a prescrita pelo destino. Em vez de eliminar seu pai,
concede-lhe a mesma felicidade que pede para si; torna-o seu avô e o casa também com a
própria mãe.‖ (1909, p. 229)
Os avós, nesse sentido, são como uma solução mágica para o conflito edípico:
escapa-se de um embate direto com os pais e encontra-se, na geração mais velha, um enlace
perfeito e estratégico.
Esses dois pequenos artigos de Jones são significativos para nossa compreensão
dos seus demais trabalhos aqui selecionados. A sucessão geracional, o colocar-se como filho,
ou pai, destronar ou ser destronado, serão questões vitais em Jones e da mesma forma
relevantes para compreender a tônica de sua relação com o mestre Freud.
Veremos de que forma isso acontece nos próximos capítulos.
94

V “EM NOME DO PAI, DO FILHO...”

V.1 O Complexo de Deus

O adolescente Ernest refletia muito sobre Religião e, anos depois, já idoso,


retomaria sua história na escrita de sua autobiografia. Assim o autor resume esta questão
íntima: ―minha preocupação durante a adolescência primeiramente com religião e em seguida
com filosofia, com toda sua intelectualização e generalização, fundamentalmente procediam
de uma preocupação com a salvação da minha alma, isto é, expiação com o Pai.‖ 200
Em seguida Jones dirá que felizmente essa fase não durou muito e mais tarde pôde
encontrar outras soluções para esta questão sem mais recorrer a ―seres sobrenaturais‖ e
imagens de outro mundo.
Como vimos em sua biografia, Jones era ateu – enfaticamente ateu, por assim
dizer – e no entanto a Religião continuou sendo um de seus grandes interesses ―intelectuais‖:
irá dedicar muitos de seus trabalhos (entre artigos e livros) a esse tema e seus correlatos. No
entanto, dentre tantas produções salta aos olhos um trabalho particularmente emblemático e
significativo em sua obra e que de algum modo traz em si sinergias relevantes com outros
trabalhos e questionamentos do autor. Trata-se do trabalho ―God complex: the belief that one
is God, and the resulting character traits‖, de 1913.
Inicialmente publicado (neste mesmo ano) em alemão na Zeitschrift,201 anos mais
tarde seria um dos capítulos da obra ―Essays in Applied Psycho-Analysis‖, primeira edição
publicada em 1923.
No Brasil este trabalho aparece como um dos capítulos do livro –raro –
―Psicanálise da Religião Cristã‖, de 1934, da Editora Guanabara e traduzido diretamente do
alemão como ―O Complexo do Homem-Deus: A crença de ser Deus e os característicos disto
resultantes‖ (1934)202

200
―my preoccupation during my teens with first religion and then philosophy, with all its intellectualising and
generalising, ultimately proceeded from concern about the salvation of my soul, i. e. atonement with the Father.‖
(Jones, 1959, p. 153).
201
Sob o título ―Der Gottmensch-Komplex; der Glaube, Gott zu sein, und die daraus folgenden
Charactermerkmale‖
202
Minha escolha prioritária foi a de utilizar para leitura, estudo e referência, a edição em inglês, publicada no
Essays (1974). Trechos citados em português são traduções livres minhas. (A edição brasileira, de 1934, traz um
português antigo, com ortografia ultrapassada e alguns trechos de difícil compreensão. Ainda assim a
utilizaremos quando possível.)
95

Em seu texto Jones nos lembra da associação entre as figuras de pai e de Deus:
―Deus‖ seria a representação idealizada e projetada do pai, a quem o filho imita e por quem
sente devoção, admiração, respeito. A imitação é uma faceta da identificação – e aqui entra o
sentido psicanalítico da expressão ―à imagem e semelhança‖ com que Deus modelou seu
filho, o homem.
O filho, ―modelado à imagem e semelhança‖ do pai, o imita, o idealiza, e carrega
dentro de si uma parcela de sua paternidade/divindade (Deus está no filho, assim como o pai
está no filho – aqui nos lembramos da fantasia de inversão de gerações, também de Jones,
uma fantasia decorrente do Édipo e intimamente relacionada a ele, mas bastante específica e
original).
Este ―representante do pai/Deus‖ (o filho, o devoto) pode ser visto também em
outras instâncias, como no governo. É relativamente comum na História a situação em que um
representante do rei ou embaixador de confiança, ao viajar a um país estrangeiro, acabe por
aproveitar a oportunidade e se torne um líder de poder equivalente ou ainda maior que o
―representado‖. Nas religiões, da mesma forma, os profetas – representantes da divindade –
por vezes ganham ares de Deus e podem se atribuir (ou ser atribuída) importância quase
equivalente. (Jones, 1913)
Tal complexo, derivado do complexo paterno mas específico o suficiente para ser
estudado por si, pode ser encontrado em certa medida em todos os seres humanos – mais
especialmente os homens, afirma Jones – mas que é devidamente reprimido e tem
manifestações conscientes suavizadas.203 Jones salienta o fato de que a sua observação clínica
demonstra que as manifestações do ―Complexo de Deus‖ não são as que o senso comum
poderia supor – como por exemplo a fantasia de ―ser o criador de tudo‖. Na realidade, o
complexo se manifesta por basicamente quatro aspectos – segundo Jones, indissociáveis:
1) o narcisismo;
2) o autoerotismo;
3) o exibicionismo e
4) a sede pelo conhecimento (curiosidade intelectual).

203
Para ilustrar o complexo, Jones didática e bem-humoradamente utiliza uma piada: conta-se que um visitante
certa vez foi ver um paciente no hospício – e este sofria de um imenso Complexo de Deus. O visitante comenta
que está com dificuldades em seus estudos em Teologia e o paciente logo adverte: ―Nunca falo de trabalho‖.
(1974, p. 245)
96

No entanto, é preciso atentar para uma versão caracteriologicamente negativa de


tal complexo: ao invés de uma vaidade exacerbada e traços de auto engrandecimento, muitas
pessoas manifestam, por formação reativa, uma excessiva modéstia.
Interessante é notar que este trabalho de Jones nos é significativo tanto pelo seu
conteúdo como por sua forma.
Jones parece tentar aqui a criação de um conceito próprio, delineando com muita
didática, exemplos numerosos e casos clínicos bastante emblemáticos, mas desde o início
adverte que este é um derivado do complexo paterno – já tão descrito por Freud, mas que lhe
parece tão bem delineado que merece ser estudado em especial. (É de fato bastante difícil
encontrar textos de Jones que não façam referência a Freud!)
Os termos ―tentativa‖, ―inferência‖ aparecem no texto algumas vezes dando-lhe
um tom de timidez, inibição ou humildade intelectual, como se fosse audacioso ou precipitado
demais defender seu próprio conceito.
De fato já a ―humildade‖ jonesiana na defesa de ideias próprias aparece em outros
trabalhos de sua autoria, quase podemos afirmar tratar-se de um estilo de escrita ou de
apresentação pessoal.204 (O modo por vezes hesitante de apresentar as ideias, parece pedir
licença ao mestre Freud para ―também‖ propor algo no campo da Psicanálise...).
No mesmo artigo, em uma nota de rodapé, Jones se ―justifica‖, em tom de pedido
de desculpas, pelo fato de a caracterização de seu ―Complexo de Deus‖ ser tão identificável
em qualquer ser humano, e menciona o romance clássico da literatura inglesa, ―O egoísta‖, do
novelista George Meredith - Meredith foi acusado de ter exposto ao mundo, neste romance,
suas próprias fraquezas escondidas. Jones se compara com Meredith no presente artigo mas se
exime de ser o único a expor ―suas fraquezas‖ (ou seu próprio ―Complexo de Deus‖): afirma
que, com a publicação deste artigo corre o risco de receber a mesma acusação, uma vez que
204
Podemos talvez entender como outro traço de ―modéstia intelectual‖ o fato de Jones não ter organizado sua
obra de uma maneira mais clara, com um sentido de continuidade. Esta característica de Jones também se
relaciona com sua multiplicidade de interesses e certa ―dispersão‖ ou ecletismo acentuados. Veszy-Wagner nos
conta que ele de fato logo se ―cansava‖ de um tema para adentrar outro; chegou inclusive a deixar trabalhos
incompletos (como teve acesso a eles, a autora comenta que eram trabalhos em certa medida autobiográficos e os
descreve brevemente). Em suas palavras: ―Infelizmente, ele nunca tentou desenvolver uma estrutura sistemática
dentro da qual poderia localizar suas contribuições. Este aspecto de seu trabalho – como cachos de ideias que
não formam um todo coerente - parece ter sua origem em duas tendências antagônicas: a inclinação de Jones
pela ordem e precisão, ao lado do perfeccionismo e sua impetuosidade, sua impaciência e uma auto valoração
um tanto hesitante.‖ (Veszy-Wagner, 1968, p. 37-38) A autora também menciona que Jones não tinha nem
coesão entre as diferentes edições de um mesmo livro, já que incluía e retirava artgos outros a cada edição (eu
notei esta característicaem meus estudos e, devo, dizer, este é um fator muito desafiante para um trabalho de
pesquisa).―Por desgracia, nunca intentó desarrollar uma estrutura sistemática dentro de la que pudiera ubicar sus
contribuiciones. (...) Este aspecto de su obra – como racimos de ideas que no formaban um todo coerente -,
parece tener su origen en dos tendências antagónicas: la inclinación de Jones por el orden y la precisión, lindante
con el perfeccionismo, y su impetuosidade, su impaciência y una auto-valoración algo vacilante.‖ (Veszy-
Wagner, 1968, p. 37-38)
97

tal complexo é muito facilmente verificável... E acrescenta: de fato, esse lugar ingrato (de
quem ―revela ao mundo‖ suas próprias fraquezas recônditas e, no limite, de toda a
humanidade) é característico de ―qualquer um que tente fazer alguma contribuição no campo
do conhecimento psicanalítico‖.205(1974, p. 256)
Em seguida Jones discorre sobre a modéstia excessiva: sendo um traço de caráter
mais aceito socialmente do que a vaidade exacerbada, de fato torna-se mais frequente do que
esta última, e em alguns casos chega a se manifestar como auto anulação. Jones exemplifica
que há casos em que o sujeito chega a evitar a palavra ―eu‖ e evita tomar uma posição
proeminente.
É muito interessante observar que esse mesmíssimo traço é apresentado pelo
próprio Ernest Jones em seus escritos. Jones assim abre, por exemplo, seu texto ―The origins
and structure of the superego‖: ―É desejável afirmar claramente desde o início que este artigo
é de caráter peculiarmente provisório. (...) minhas próprias opiniões sobre isso são o reverso
de maduras.‖ 206
Mesmo quando tem opiniões que sim, parecem estar bastante amadurecidas, Jones
procura apresentá-las de uma maneira modesta, sempre buscando uma conciliação
(apaziguamento?) com as ideias freudianas – ainda que tenha em relação a elas alguma
discordância. Há um de seus trabalhos em que isso fica bastante visível: trata-se do ―O
desenvolvimento inicial da sexualidade feminina‖, de 1927. Neste texto, sem dúvida um dos
mais importantes de sua obra por apresentar um conceito original e autoral – o conceito de
―afanise‖ - Jones questiona a tese falocêntrica de Freud e propõe um raciocínio um tanto
novo207- mas ainda assim, mantém o tom respeitoso e de deferência, como podemos ver no
trecho: ―É ainda provável que, como pode ser inferido das colocações de Freud na passagem
do complexo de Édipo feminino, a privação, em si, pode ser uma causa ligada à gênese da
culpa. Levar essa discussão adiante aprofundar-nos-ia muito na estrutura do superego e
afastar-nos-ia do presente tema, mas eu gostaria de, apenas, mencionar uma ideia que tive...‖
(1927 p. 485)
A aparente humildade – e/ou diplomacia - na forma de escrever de Jones é
também visível quando é convidado a apresentar o trabalho de algum colega com ideias

205
Seria esse receio de se revelar demais o que levaria Jones a manter suas contribuições tão, digamos,
―escondidas‖?
206
―It is desirable to state clearly at the outset that this paper is of a peculiarly tentative character. (...) my own
opinions about it are the very reverse of mature.‖ (1973, p. 33)
207
Essa contribuição original de Jones – o conceito de Afanise – é tão profunda e complexa, e foi tão polêmica –
sendo alvo de numerosas críticas e também de elogios, que sem dúvida merece um trabalho inteiro dedicado à
questão.
98

polêmicas ou muito ―diferentes‖ das vigentes, como no caso do psicanalista escocês William
Ronald Dodds Fairbairn. No prefácio de ―Psychoanalytic Studies of the Personality‖ (1952),
por exemplo, Jones reconhece a originalidade do que é apresentado pelo autor e afirma que as
suas ideias são instigantes para o debate psicanalítico, mas deixa claro que não cabe a ele
julgar as posições ali defendidas:208 ―Não cabe a mim prever a avaliação que será feita do
conteúdo do livro, mas posso me permitir expressar a firme opinião de que, com certeza, se
mostrará extremamente estimulante para o pensamento.‖209
É interessante: a leitura tanto dos escritos de Jones quanto de estudiosos da
História da Psicanálise nos apontam para uma oscilação entre dois pólos: uma espécie de
balanço entre uma modéstia (por vezes exagerada) de Jones e uma ambição ou auto
engrandecimento. Veszy-Wagner (1968) observou que Jones ―resistia a chamar atenção sobre
si mesmo‖210 e evitava citar sua participação nos fatos que contava; ao mesmo tempo a autora
afirma, contundente: ―Jones era um homem ambicioso‖.211
A modéstia de Jones ora aparece da forma já descrita, ora como um excessivo
sentimento de reconhecimento: é digno de nota que no prefácio de sua própria autobiografia,
Free Associations (1959), Jones escreve que é um sentimento de gratidão que o motiva a
contar sua história:

Qualquer pessoa reflexiva que se veja escrevendo uma autobiografia deve ter algum
interesse no seu motivo para fazê-lo; uma imposição de si mesmo sobre o público
parece exigir alguma explicação apologética, mesmo que isso seja em si mesmo
mais uma imposição. Ao colocar a pergunta para mim mesmo o mais sinceramente
que pude, a resposta inesperada veio: 'Gratidão pela vida.' Nos momentos em que eu
não desfrutei da vida tanto quanto a oportunidade oferecia, foi por causa de
limitações reconhecíveis e deficiências da minha parte.212

208
Voltaremos à questão de Jones posicionar-se (ou não) com clareza acerca de suas opiniões mais adiante.
209
―It is not for me to forestall the judgment that will be passed on the contents of the book, but I may be
allowed to express the firm opinion that it will surely prove extremely stimulating to thought.‖ (1952, Preface, p.
v)

Conheci um pouco sobre Fairbairn e este prefácio de Jones no interessante artigo de ARAUJO, T. W. Rupturas y
continuidades: una discusión sobre la vida, obra y legado de Ronald Fairbairn. J. psicanal. vol.47 no.87 São
Paulo dez. 2014 (http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352014000200010)
210
―se resistia a llamar la atencíón para sí mismo‖ (1968, p. 66) e (1968, p. 22) Como o conheceu pessoalmente,
a autora nos dá também um depoimento valioso: afirma que Jones vivia submetendo seus dotes intelectuais a
autocrítica e ―evidentemente, no se consideraba um prodígio‖ (1968, p. 22)
211
―Jones era un hombre ambicioso.‖ (1968, p. 11). A biógrafa de Jones, Brenda Maddox, também afirma:
―Jones é frequentemente acusado de exagerar sua própria importância‖ (―Jones is often accused of exaggerating
his own importance‖) (2006, p. 83)
212
―Any reflective person who contemplates writing an autobiography must take some interest in his motive for
so doing; an infliction of oneself on the public seems to call for some apologetic explanation, even if this is itself
one more imposition. On putting the question to myself as sincerely as I could, the rather unexpected answer
99

E Veszy-Wagner (1968) nos lembra, citando esse prefácio, que a mesma gratidão
estará presente em relação a Freud. De fato, Jones expressa gratidão ao mestre de maneira
contundente e repetida e o fará ao longo de todos os anos em que durou o relacionamento (e a
troca de correspondência) entre ambos. Em sua derradeira carta ao mestre, quando Freud já
estava doente - e faleceria pouco tempo depois – Jones sintetiza todo o seu amor e
reconhecimento profundos – e vale a pena reproduzi-la na íntegra:

Caro professor,
Este momento crítico parece apropriado para eu expressar mais uma vez minha
devoção pessoal ao senhor, minha gratidão por tudo o que o senhor trouxe à minha
vida e minha intensa compaixão pelo sofrimento que o senhor está passando.
Quando a Inglaterra lutou pela última vez contra a Alemanha, há vinte e cinco anos,
estávamos em lados opostos da linha, mas mesmo assim encontramos uma maneira
de comunicar nossa amizade um com o outro. Agora estamos próximos um do outro
e unidos em nossas simpatias militares. Ninguém pode dizer se veremos o fim desta
guerra, mas em qualquer caso, foi uma vida muito interessante e nós dois fizemos
uma contribuição para a existência humana - mesmo que em medida muito
diferente.
Com meus calorosos e melhores cumprimentos,
Sempre afetuosamente seu,
Ernest Jones.213

É interessante notarmos aqui o modo como Jones encerra sua última carta a
Freud: reconhecendo o valor inestimável do mestre para a humanidade, mas também
enxergando o próprio valor – e estabelecendo, com humildade, uma diferença na proporção
entre os dois. Isto nos lembra a colocação de Veszy-Wagner sobre a coexistência de uma
gratidão que Jones expressa nessa abertura da autobiografia, a gratidão a Freud e a
valorização de si: ―É difícil imaginar uma integração mais perfeita entre a capacidade de
desfrutar da própria importância e o sentimento de gratidão para com aqueles que nunca
tentaram sufocá-la.‖214 (Esse tema é tão relevante para nós que voltaremos a ele em nossas
Considerações Finais).

came: ‗Gratitude for life.‘ Where I have not enjoyed life as fully as the opportunity offered, that has been
because of recognizable limitations and deficiencies on my own part.‖ (1959, p. 9)
213
―Dear Professor, This critical moment seems an appropriate one for me to express once more my personal
devotion to you, my gratitude for all you have brought into my life and my intense sympathy for the suffering
you are enduring. When England last fought Germany, twenty-five years ago, we were on opposite sides of the
line, but even then we found a way to communicate our friendship to each other. Now we are near to each other
and united in our military sympathies. No one can say if we shall see the end of this war, but in any case, it has
been a very interesting life and we have both made a contribution to human existence – even if in very different
measure. With my warmest and dearest regards, Yours always affectionately, Ernest Jones.‖ (1993, p. 770. Carta
de 03.09.1939. Citada por Maddox, 2006, p. 242-243).
214
―Resulta difícil imaginar integración más perfecta entre la capacidade para disfrutar de la própria importancia
y el sentimento de gratitud hacia quienes nunca intentaron sofocarla.‖ (Veszy-Wagner, 1968, p. 23)
100

Mesmo no início de sua correspondência, logo após conhecer o mestre, Jones já


demonstrava gratidão e uma espécie de respeito filial, expresso tanto pelo modo de tratamento
excessivamente respeitoso como pelas constantes ―consultas‖ sobre pacientes e teorias
psicanalíticas. (Bem nos lembramos que Jones era 23 anos mais jovem que Freud. Quando se
conheceram, em abril de 1908, Jones tinha 29 anos e Freud completaria 52 no mês seguinte, e
não é difícil perceber uma relação paternal-filial entre os dois. Voltaremos a este importante
tema mais adiante.)
Pois bem: é exatamente esse modesto em exagero o sujeito-tema dos estudos de
Jones em ―Complexo de Deus‖! E Jones continua descrevendo-o: Outro traço que o sujeito
com ―Complexo de Deus‖ pode apresentar é uma tendência a se distanciar dos demais - algo
como uma disposição antissocial – e costuma se cercar de uma aura de mistério. Pessoas
assim muitas vezes moram no campo, afastadas da convivência social intensa das cidades e
prezam imensamente sua privacidade. Tais traços seriam reflexos de um misto de
autoerotismo e uma formação reativa ao exibicionismo: ao mesmo tempo que tais pessoas se
mostram inacessíveis, ―difíceis‖, indisponíveis, na realidade (psíquica) tal caracteriologia
mascara desejos intensos de se revelar, se expor, se exibir: ―O outro traço de mistério,
mencionado acima em conjunto com o de inacessibilidade, pode ser considerado como o
correlato mental disso; assim, a tendência geral de distanciamento se manifesta, pelo lado
físico, pelo desejo de ser inacessível e pelo lado mental o de ser misterioso.‖ 215
Um artigo de Araújo (2014) nos revela que, muitos anos mais tarde, em 1952,
Ernest Jones escreveria o prefácio de um trabalho do já citado psicanalista escocês Fairbairn ,
- considerado um personagem ―misterioso‖ - salientando os bônus e ônus do isolamento.
Fairbairn era um homem que vivia recluso, e tal posicionamento lhe traria privilégios e
dificuldades - segundo Jones mais privilégios do que dificuldades:

A posição do Dr. Fairbairn no campo da psicanálise é especial e de grande interesse.


Viver a milhas de distância dos seus colegas mais próximos, com os quais ele quase
não se encontra, tem grandes vantagens e algumas desvantagens. A principal
vantagem é que, ao não ser submetido a distrações ou interferências, ele se tornou
capaz de se concentrar inteiramente nas suas próprias ideias à medida que elas se
desenvolviam de sua experiência cotidiana de trabalho. Essa é uma situação que
conduz à originalidade, e a originalidade do Dr. Fairbairn é indiscutível. Por outro
lado, abrir mão do valor das discussões com os colegas de trabalho requer poderes
de autocrítica muito especiais, porque esses colegas são capazes de apontar para os

215
―The other trait of mystery, mentioned above in conjunction with that of inaccessibility, may be regarded as
the mental correlate of this; thus the broad tendency of aloofness displays itself by the desires, on the physical
side of being inaccessible, on the mental side of being mysterious.‖ (1974, p. 251)
101

aspectos negligenciados pelo trabalhador solitário ou de atenuar o risco de adotar um


curso de pensamento unilateral.216

Não apenas fica claro no trecho que Jones enxerga mais vantagens do que
desvantagens no isolamento (―Viver à distância (...) tem grandes vantagens e algumas
desvantagens‖), como nos provoca para um exercício de balanço ponderado: se por um lado o
isolamento pode cativar a criatividade/originalidade, por outro lado a falta de trocas e debates
(e possíveis críticas) poderia levar o autor à unilateralidade?
Pensemos o equivalente para nosso autor de interesse aqui – não Fairbairn (talvez
um candidato a diagnóstico de ―Complexo de Deus‖...), mas Jones.
Nos seus primeiros movimentos de aproximação à psicanálise, Jones vivia
também em uma espécie de ―isolamento‖: estava praticamente sozinho em Londres estudando
e praticando a psicanálise. Sabemos disso por Jung, que conhece o galês há pouco tempo e
assim descreve a situação para o mestre, no fim de 1907:

O Dr. Jones, de Londres, que é um jovem talentoso e ativo ao extremo, esteve


comigo durante os últimos 5 dias, principalmente para conversar sobre as pesquisas
do senhor. Devido a seu „splendid isolation‟ em Londres, ainda não se aprofundou
muito nos problemas do senhor mas está convencido da necessidade teórica de seus
pontos de vista. Ele há de ser um firme sustentáculo de nossa causa, pois além dos
dons intelectuais que possui está cheio de entusiasmo. [Nota de rodapé do editor:
‗esplêndido isolamento‘, em inglês no original; já aplicada (1896) no Império
Britânico, a frase fora usada por Freud para definir sua situação (Carta de
07/05/1900, a Fliess, Origins, p. 318) [grifo meu].217

Jung aqui faz uso da mesma expressão utilizada pelo próprio Freud para descrever
seu período de isolamento depois de seu afastamento de Breuer e da publicação de
―Interpretação dos sonhos‖ (1900), o que nos evoca uma situação de recolhimento ao mesmo
tempo penosa e vantajosa. Freud (1914) havia descrito:

Apenas o silêncio que houve após minhas palestras, o vazio que se formou ao redor
de minha pessoa (...) Compreendi que a partir de então eu estava entre aqueles que
‗incomodaram o sono do mundo‘, na expressão de Hebbel, e que não poderia contar

216
―Dr. Fairbairn‘s position in the field of psycho-analysis is a special one and one of great interest. Living
hundreds of miles from his nearest colleagues, whom he seldom meets, has great advantages, and also some
disadvantages. The main advantage is that, being subject to no distraction or interference, he has been able to
concentrate entirely on his own ideas as they develop from his daily working experience. This is a situation that
conduces to originality, and Dr. Fairbairn‘s originality is indisputable. On the other hand, it requires very special
powers of self-criticism to dispense with the value of discussion with co-workers, who in the nature of things
must be able to point out considerations overlooked by a lonely worker or to modify the risk of any one-sided
train of thought.‖ (1952, p. v) Consultar Araújo (2014).
217
Carta de 30.11.1907, de Jung a Freud, p.135. In: A correspondência completa de Sigmund Freud e Carl G.
Jung. Edição de McGuire. Rio de Janeiro: Imago, 1993. No texto faremos referência como Correspondência
Freud-Jung. Citada por Maddox, 2006, p. 56.
102

com objetividade nem tolerância. (...) Enquanto isso, arranjei-me em minha ilha
solitária da melhor maneira possível, como havia feito Robinson. Quando olho para
aqueles anos solitários a partir das atribulações e confusões do presente, parece-me
que foram um belo tempo heroico; a splendid isolation [esplêndida isolação] não
deixava de ter seus atrativos e vantagens (1914, v. 11, p. 264-246).

Nessa época também Jones, afinal, estava literalmente em sua ―ilha solitária‖ – a
Inglaterra -, e algo interessante ocorre nesse seu ―recolhimento‖: a sua primeira (e talvez mais
original?) produção em Psicanálise.
Sabemos que Jones é pouco conhecido por sua obra autoral, mas ainda que tenha
desenvolvido diversos pensamentos criativos e originais ao longo da vida, parece estar
associado – ao menos para aqueles poucos que sabem que o trabalho é de sua autoria – ao
conceito de Racionalização (1908).218
Como sabemos, o conceito de ―Racionalização‖219 foi introduzido no meio
psicanalítico por Ernest Jones no Primeiro Congresso Psicanalítico Internacional, realizado
em 1908. O conceito foi descrito no artigo ―Rationalisation in Everyday Life‖ (1908),
publicado pelo Journal of Abnormal Psychology. Nessa época, como reiteramos, Jones ainda
estava no princípio de sua aproximação com a Psicanálise, tinha ainda pouca experiência
clínica, nem ao menos conhecia pessoalmente o mestre e no entanto já se aventurava a
apresentar um trabalho autoral no primeiro Congresso Internacional, se expondo diante de
uma plateia altamente qualificada.
No artigo, Jones ilustra o mecanismo de racionalização na vida cotidiana 220
(segundo o autor, processo pelo qual o sujeito tece elucubrações que procuram ―explicar‖
algum fenômeno interno ou ação, de modo a ocultar sua real motivação; necessariamente a
explicação dada é falsa, uma vez que a motivação é de ordem inconsciente e portanto está
inacessível para o indivíduo).
O conceito é tão importante que foi reconhecido e elogiado por Freud, alguns anos
mais tarde, em seu trabalho ―Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia (Dementia
paranoides) relatado em autobiografia (O caso Schreber)‖ (1911). Descrevendo os traços de

218
A propósito, salta aos olhos o fato de que um artigo de importância como esse – isto é, que introduz um
conceito original – seja de difícil acesso no Brasil e não tenha ainda sido traduzido para o português.
219
Maddox nos conta que o Oxford English Dictionary registra o primeiro uso do termo ―Racionalização‖ no
ano de 1846, mas Jones foi o primeiro a utilizá-lo no sentido contemporâneo – que usamos até hoje. (Maddox,
2006, p. 61).
220
O Vocabulário de Psicanálise assim define o conceito jonesiano de Racionalização: ―Processo pelo qual o
sujeito procura apresentar uma explicação coerente do ponto de vista lógico, ou aceitável do ponto de vista
moral, para uma atitude, uma ação, uma ideia, um sentimento, etc., cujos motivos verdadeiros não percebe; fala-
se mais especialmente da racionalização de um sintoma, de uma compulsão defensiva, de uma formação reativa.
A racionalização intervém também no delírio, resultando numa sistematização mais ou menos acentuada.‖
(Laplanche & Pontalis, 1992, p. 423)
103

megalomania de Schreber, Freud (1911) diz: ―O desencadeamento da mania de grandeza é


atribuído a um processo que podemos chamar de ―racionalização‖, na feliz expressão utilizada
por Ernest Jones.‖ (1911, v. 10, p. 65)
A partir de então, em seus escritos subsequentes, Freud passaria a incorporar o
termo em suas reflexões, já sem aspas e sem mais fazer referência a Jones.
É curioso: um dos conceitos mais originais e autorais de Jones (e que chegou a ser
incorporado à teoria e glossário psicanalíticos) foi justamente seu primeiro, seu artigo de
estreia, contrariando a ideia mais usual de que um autor desenvolve aos poucos seu
pensamento próprio e ganha maturidade e diferenciação ao longo dos anos, elaborando um
conceito inédito apenas depois de uma longa e sólida trajetória. Com Jones parece ter havido
o contrário.221 Como compreendê-lo?
Se seguirmos o raciocínio do próprio Jones – exposto no prefácio de Fairbairn -
temos uma hipótese de que a proximidade excessiva de Freud – e seus discípulos – teria dado
oportunidades de troca em abundância para Jones, mas por outro lado não teria favorecido ou
estimulado sua afirmação como autor original.
Importante: não estamos afirmando de modo conclusivo que Jones ―deixou de ser
original‖ definitivamente pela proximidade intensa com o mestre, mas que é possível – e é
apenas uma hipótese – que sua originalidade não tenha sido tão bem delineada e defendida
(por ele próprio) e tão bem reconhecida em seu meio, por seu pares, nessa troca intensa e tão
constante na comunidade psicanalítica. Deste modo, poderíamos falar na situação (paradoxal)
de uma certa invisibilidade de quem aparece demais, um entre muitos, um desconhecido na
multidão? Com uma participação intensa na comunidade psicanalítica – Jones sempre fez
questão de participar de todo tipo de sociedade, clube, grupo, desde os primeiros anos como
médico, como vimos – e com um diálogo tão amplo com tantos assuntos de interesse, com
tantos grupos, países (circulando entre médicos e psicanalistas; entre britânicos, americanos e
vienenses), teríamos então uma espécie de ―autor comunitário‖, que na sua própria obra deixa

221
Pode-se argumentar aqui que Jones criaria o conceito original de Afanise muitos anos depois, já com
maturidade pessoal, profissional, clínica, sendo este considerado por vários autores (estudiosos de Jones) sua
principal contribuição à Psicanálise. No entanto, tal conceito não ―vingou‖ na comunidade psicanalítica, e só
recebeu críticas negativas por parte de Freud – e não chegou a ser adotado por colegas. Portanto, podemos dizer
que o conceito não só pelo qual é mais conhecido como também reconhecido (e aprovado) pela comunidade
psicanalítica (sobretudo por Freud, que o felicita pela construção e passa a adotá-la, incorporando-a em suas
reflexões) é o conceito de Racionalização - que inclusive utilizamos até hoje-, e é simplesmente sua
primeiríssima produção em Psicanálise.
104

entrar tantas influências – de colegas, de áreas do conhecimento – que ao final não


localizamos onde ele está? 222
Dois pontos devem ser salientados aqui. O primeiro é que o próprio Freud - em
um momento tenso de seu relacionamento com Jones – chegou a afirmar categórico, em uma
carta a Max Eitingon, que o discípulo galês não havia produzido nada de relevante além do
conceito de Racionalização: ―Desde o seu primeiro trabalho sobre racionalização, ele não teve
mais nenhuma ideia original, e sua aplicação das minhas ideias se manteve no nível de um
aluno de escola.‖223
O próprio Jones – não se sabe com qual nível de humilhação – escreveu a seguinte
afirmação, na biografia do mestre Freud: ―[Freud] mantinha a opinião de que Jung e Otto
Gross eram as únicas duas mentes originais dentre os seus seguidores.‖ 224
Essa falta de reconhecimento pela obra e mérito de Jones não parece ser uma
exceção. Nosso segundo ponto traz justamente exemplos que ilustram a falta de
reconhecimento da obra ou autoria de Jones em nossos dias. Temos dois exemplos bastante
significativos.
O primeiro é a maneira com que um livro de referência de todos os pesquisadores
em Psicanálise – o ―Vocabulário de Psicanálise‖ (1992) – apresenta o conceito de
Racionalização, de Jones. Embora dê os créditos a ele pelo conceito225 o que nos surpreende é
a ausência da referência bibliográfica completa do referido artigo ao final da descrição do
verbete. (Isto é, ainda que o nome do trabalho tenha sido citado, não há informação sobre

222
Muitos autores que leram ou estudaram a biografia de Jones se fazem esta pergunta, direta ou indiretamente.
Griffin (2009), por exemplo, que fez uma (ótima) resenha sobre a biografia de Jones afirma ter sentido falta, na
obra de Maddox, de um melhor delineamento da personalidade de Jones, e que a autora deveria ter mostrado
mais de sua ―psicologia‖ por trás da sombra de Freud (o autor reconhece, no entanto, que Maddox ―convida‖ a
uma análise se Jones chegou ou não a se tornar ―ele mesmo‖ – ―his own man‖ –, se chegou a se emancipar,
tendo sua vida tão unida a de Freud. O autor também observa – isso também me saltou aos olhos, devo dizer –
que no próprio título da biografia Jones é retratado como ―feiticeiro‖ de outro homem, Freud – ―Freud‘s wizard‖
é o título -, o que tira o foco dele mesmo!). A meu ver, tal crítica (de falta de delineamento do perfil de Jones)
não se sustenta, uma vez que a dualidade que a biografia traz – e que faz tanto o leitor quanto o estudioso se
perguntar ―onde está Jones?‖ ou ―quem é Ernest Jones?‖ – é, como estamos estudando, justamente uma
característica de sua biografia e de seu relacionamento com Freud. Nesse sentido, justamente por gerar esse
efeito de ―embaçamento‖ penso que a biografia retrata com fidelidade a psicologia de Ernest Jones.
223
―Since his first work about rationalization, he has not had any original ideas, and his application of my ideas
has stayed on a schoolboy level.‖ (Carta de 02/06/1925, de S. Freud a M. Eitingon. Citado por Young-Bruehl,
1988, p. 172.) A autora Maddox (2006, p. 201) analisou esta carta ao descrever como Freud oscilava de
tratamento e opiniões em relação a Jones (às vezes tece muitos elogios, outras vezes o deprecia - como neste
caso). E ainda: embora não seja nosso intuito discutir essa ideia aqui, não podemos deixar de mencionar que esta
carta de Freud continua com uma interessante análise da ―psicologia‖ de Jones: segundo Freud, ele (Freud) seria
uma ―parte do superego de Jones‖. (2006, p. 201) Esta é uma ideia interessante e que merecia mais detalhes –
além de nos debruçarmos sobre o conceito de superego. Por enquanto nos parece suficiente saber que Freud se
coloca como uma figura paterna e desmerece as invenções do ―menino‖ Jones.
224
Menção a este ponto em Maddox, 2006, p. 53.
225
―Este termo foi introduzido no uso psicanalítico corrente por E. Jones, no seu artigo A racionalização na vida
cotidiana (Racionalization in everyday life, 1908)‖ (1992, p. 423)
105

onde foi publicado, o que não apenas desestimula o leitor comum a buscá-lo como dificulta o
trabalho do pesquisador). Em seu lugar – e como referência única ao final da explicação do
verbete – está o ―Caso Schreber‖, de Freud (1911) – que, como vimos, foi escrito alguns anos
depois do artigo de Jones e é onde Freud o felicita pelo conceito e passa a adotá-lo em sua
própria obra.226
Outro exemplo é o modo como a Associação Psicológica Americana [American
Psychological Association – APA] sintetiza o trabalho de Jones: ―[O artigo] ilustra a
aplicação do princípio freudiano de racionalização na vida cotidiana.‖ 227
Aqui a autoria do conceito passa de Jones para Freud inteiramente, e Jones apenas
viria a ―ilustrá-lo‖ em seu artigo.
O problema de ―transferência de autoria‖, talvez resida, no entanto, no próprio
modo como Jones coloca e apresenta suas ideias. No referido artigo, por exemplo, embora
tenha cunhado em realidade dois conceitos psicanalíticos novos – ―racionalizações‖ e
―evasões‖, salientando que a linha que separa ambos fenômenos é tênue – inclusive
colocando-os entre parênteses e usando a primeira pessoa228, em outro momento mais adiante
é o próprio Jones que assim ―resumirá‖ seu artigo: ―O meu objetivo nestas poucas
observações foi ilustrar a partir de lados diferentes como o princípio do Professor Freud pode
ser sustentado e indicar um vasto campo que ainda permanece por ser posto em prática.‖ 229

226
Tive o interesse de pesquisar se o mesmo ocorreria em outros verbetes do ―Vocabulário‖ (1992) – isto é, uma
ausência de referências bibliográficas de outros autores que não Freud – mesmo que tenham feito contribuições
para o conceito (ou sejam seus autores). O que pude atestar é que, embora de fato as referências a Freud
representem a maioria, textos de outros autores são indicados quando relevantes para a compreensão do verbete.
Um exemplo é o termo ―Masoquismo‖, (p. 274). A introdução ao verbete é muito semelhante à de
Racionalização (isto é, atribuindo a outro autor que não Freud a criação do conceito): ―Foi Kraft-Ebing quem
primeiro descreveu de forma muito completa a perversão sexual...‖ Lá está, portanto, nas referências, onde
encontrar a discussão do trabalho deste autor. Outro exemplo é o que acontece no termo ―Complexo de
castração‖ (p. 72). Dificilmente imaginaríamos outro autor nas referências deste conceito além de Freud, mas lá
está também August Stärcke, que fez um trabalho de releitura do conceito. Talvez não seja necessário mencionar
a discrepância aqui, já que no caso de Jones trata-se de um autor que introduz um conceito, enquanto outro
(Stärcke) faz releituras a partir de um conceito clássico freudiano – e mesmo assim a referência bibliográfica
completa deste psiquiatra e psicanalista holandês (pouquíssimo conhecido, aliás, muito menos que Jones), está
lá.
227
―Illustrates the application of Freud's principle of rationalization in every-day life.‖ (Fonte:
<http://psycnet.apa.org/?fa=search.searchResults&type=easy&db=PA&term=rationalization%20jones&_ga=1.4
2853605.1924427957.1483543267>)
228
Jones assim batiza os novos conceitos, após explicar o que seriam ambos os fenômenos: ―O primeiro desses
chamaria ‗evasões‘, e as últimas ‗racionalizações; no entanto, nenhuma linha exata divide os dois.‖ ―The former
of these I would term ‗evasions,‘ the later ‗rationalisations‘; there is however no sharp line dividing the two.‖
(1938, p. 7)
229
―My aim in these few remarks has been to illustrate from what diverse sides Professor Freud‘s principle may
be supported and to indicate a vast field there yet remains for it to be applied over.‖ (1938, p. 9)
106

De fato o ―princípio freudiano‖ a que se refere Jones é o da existência de


fenômenos alheios à consciência do indivíduo, mas ele mesmo parece minimizar sua
contribuição teórica descrevendo seus novos conceitos recém cunhados como uma
―ilustração‖ de um princípio pré-existente, de Freud. (O que a APA faz, portanto, é apenas
atribuir totalmente a Freud uma ideia que o próprio Jones já havia atribuído parcialmente ao
mestre.) Se pensarmos bem, a propósito, toda e qualquer produção psicanalítica, mesmo a
mais original, estaria relacionada a este ―princípio freudiano‖, isto é, o da existência de
fenômenos alheios à consciência do indivíduo, mas nem por isso são apresentadas (em geral),
pelos seus autores, como ―ilustrações‖ de um princípio de Freud.
E por mais que Freud já estivesse atento ao fenômeno, é Jones quem o estrutura –
tanto é que o próprio mestre irá reconhecê-lo. (Por que será que Jones parece estar – mesmo
quando lança uma ideia original – mesclado com Freud? É algo, no mínimo, intrigante).
Pois bem: segundo Jones, em seu ―Complexo de Deus‖ (1913), aquele que sofre
do referido complexo tem, entre outras características, a tendência ao isolamento, o ―não se
misturar‖ aos demais – se quisermos, utilizando o próprio posicionamento de Jones no
prefácio de Fairbairn, talvez para melhor desenvolver seu espírito criativo – como se a
participação em uma comunidade ―diminuísse‖ ou borrasse a genialidade. Este é o raciocínio
de Jones: ―Qualquer influência que exercem é feita de forma bastante indireta, estimulando
mais admiradores ativos. Seu ideal é ser ―o homem por trás do trono‖, dirigindo assuntos de
cima, sendo invisíveis para a multidão230. (...) Assim podem alcançar, como fez Nietzsche, a
verdadeira grandeza.‖ 231
Jones faz o paralelo com reis e rainhas – bem como altos escalões do governo,
papas, etc -: pessoas ―importantes‖ seriam necessariamente indisponíveis, de aparição rara, de
comunicação apenas indireta com os demais (através de inúmeros intermediários). 232

230
Não é difícil comparar que o próprio Jones teve, na História da Psicanálise, uma influência deste gênero, isto
é, bastante indireta e se posicionando ―por detrás do trono‖ de Freud. Como vimos em sua biografia (Capítulo
II), embora Jones liderasse uma série de instituições psicanalíticas importantíssimas – revistas, institutos,
congressos – tratava-se quase que de uma liderança por procuração, como se Jones fosse um representante de
Freud. Voltaremos a este ponto mais adiante.
231
―Any influence they exert is done so quite indirectly, by means of stimulating more active admirers. Their
ideal is to be ‗the man behind the throne‘, directing affairs from above while being invisible to the crowd. (…) In
this they may achieve, as Nietzsche did, true grandeur.‖ (1974, p. 253-254)
232
É impossível aqui não evocar a associação com o filme clássico ―Mágico de Oz‖, no qual o suposto grande
Mágico (na realidade, um farsante) colocava tantas barreiras e intermediários para aqueles que queriam conhecê-
lo que chegava a ser ridículo: nas cenas finais, o falsário se esconde atrás de uma projeção de luzes e cores, e
fogos, efeitos pirotécnicos que impressionam e distraem os interlocutores da sua real condição – uma
incapacidade total de fazer ―mágicas‖ e um – supomos aqui... – gigantesco complexo de inferioridade!
107

E Jones continua: a suposição inconsciente do sujeito que se identifica com Deus


e que portanto torna rara, difícil ou ―especial‖ a sua aparição é a de que, caso aparecesse
normalmente (e diretamente, sem intermediários) perante os outros ―mortais‖, sua luz,
brilhantismo, qualidades exageradas ―cegariam‖ seus interlocutores, fazendo-os fenecer de
maravilhamento. (A isso Jones acrescenta que o medo reprimido, de fato, é o de castrar o
outro).
Jones conta que o rei Luís da Bavaria, - completamente insano - em determinado
momento da vida mudou seu nome formalmente para ―O Rei-Sol‖ e recusava-se a encontrar
com quem quer que fosse se não houvesse, entre Sua Majestade e seu interlocutor, uma tela
protetora (para proteger o interlocutor, é claro). Quando saía em público, era necessário que o
anunciassem antes, para que os demais pudessem se proteger de sua ―presença magnífica‖233
A associação com o caso Schreber (1911) é inevitável, e Jones o cita em seu
artigo. De fato Freud já havia mencionado, em 1911, que os delírios de ―raios divinos‖ de
Schreber têm forte conexão com o complexo paterno: ―Schreber tem uma relação toda
peculiar com o Sol. (...) [e] nos facilita a interpretação desse seu mito solar. Ele identifica o
Sol diretamente com Deus (...) Não sou responsável pela monotonia das soluções
psicanalíticas, quando afirmo que o Sol não é outra coisa do que um símbolo sublimado do
pai. (...)‖ (Freud, 1911, v. 10, p. 71-72 )
Em seu ―Pós-escrito‖ (1911, v.10, p. 104), Freud relaciona a simbologia do Sol
com a mitologia, a antropologia e as religiões – e Jones em ―God Complex‖ (1913) faz o
mesmo.
E Jones prossegue: o apreço exagerado pela própria privacidade – traço que
também relata como característico do ―Complexo de Deus‖ – se refere a um intenso e
narcísico autoerotismo, uma auto importância desmedida, bem como uma formação reativa ao
exibicionismo.
No entanto, quando em situações em que a reserva é anulada (como na companhia
de amigos íntimos ou em uma sessão de psicanálise) o sujeito aqui descrito pode falar
exageradamente e sem censura, em detalhes.
E como sempre devemos considerar os pares de opostos, em contraponto às
intensas tendências exibicionistas também estão presentes traços fortes de curiosidade: Jones
descreve aqui o apreço pelas fofocas, mas especialmente um interesse pela Psicologia: uma
vez que o sujeito se considera dotado de uma alta capacidade de observação, torna-se

233
“magnificent presence‖. (Jones, 1913, p. 250)
108

frequentemente um ―juiz da natureza humana‖, considerando-se capaz de perscrutar


profundamente o que se passa no psiquismo de todos à sua volta.
A participação na vida pública é penosa para o sujeito aqui descrito. Misturar-se
com ―plebeus‖ parece ferir a sua dignidade, bem como participar de qualquer movimento:
―Seguir, participar, ou até mesmo liderar, um movimento geral, seja social ou científico, lhes
é repugnante‖ 234
Agora coloquemos esta descrição lado a lado com o comentário que Lilla Veszy-
Wagner (1968), - sua assistente de pesquisa-, escreveu sobre ele:

A sutil acuidade propagandista, combinada com uma tenacidade admirável, e a


capacidade de trabalhar incansavelmente fez dele um excelente missionário do
―movimento‖. [Nota de rodapé: Jones desgostava profundamente do termo
“movimento”, pois acreditava se tratar de um termo que transformava a “causa”
(tal como Freud chamava) em algo parecido com um movimento religioso] [grifo
meu].235

É interessante: sabemos do papel fundamental que Jones exerceu na defesa e


consolidação da ―causa‖ psicanalítica, mas talvez o que não seja tão bem conhecido é que
Jones tinha profundas reservas em relação ao termo ―movimento‖ – e aliás também à
expressão ―discípulo‖: ―Jones detestava o termo "discípulo" porque sentia que soava como
religião.‖ E ainda: ―Jones desconfiava de toda forma de adoração. (...) Talvez seja por isso
que Jones controlava severamente em si mesmo todos os traços dessas emoções em relação às
figuras paternas e mesmo em seu vínculo com Freud.‖ 236
Em realidade nem é preciso ficarmos apenas com o testemunho de Lilla: o próprio
Jones admitia explicitamente a sua antipatia. Batiza um dos capítulos de sua autobiografia
(1959) de ―The Psycho-analytical ‗Movement‘‖ e assim justifica o uso de aspas no termo
―Movimento‖:

Pode-se notar que eu coloquei uma palavra do título deste capítulo entre aspas - para
atacá-la publicamente, por assim dizer. Foi [um termo] muito recomendado em
Viena, e por alguns anos até publicaram um periódico com esse título - para minha
total desaprovação. A palavra ‗movimento‘ se aplica adequadamente a atividades

234
―To follow, to participate, or even to lead, in a general movement, whether social or scientific, is repugnant to
them‖ (Jones, 1974, p. 253)
235
―La sutil agudeza del propagandista, sumada a una admirable tenacidade, y la capacidad para trabajar sin
descanso hizo de él um excelente misionero del ‗movimiento‘. [Nota de rodapé: A Jones le disgustaba
profundamente el término „movimiento‟, pues creia que se trataba de um concepto que transformaba la „causa‟
(tal como denominaba Freud) em algo así como um movimento religioso.]‖ (1968, p. 11) [grifo meu]
236
―A Jones aborrecia el término ‗discípulo‘ porque sentía que sonaba a religión.‖ (1968, p. 36) e ―Jones
desconfíaba de toda forma de adoración.(...) Quizás a ello se deba que Jones controlara severamente em sí
mismo todo rastro de essas emociones em relación com figuras paternas e incluso em su vinculación com Freud‖
(1968, p. 54)
109

tais como as do Movimento Tractariano, do Movimento Cartista e de outros mil,


caracterizados pelo ardente desejo de propagar ou fazer entrar em vigor crenças que
sejam consideradas extremamente preciosas; é semelhante ao que hoje em dia se
chama ‗propaganda‘.
Foi esse elemento que deu origem à crítica geral das nossas atividades que se
pretendem científicas [as psicanalíticas], a de que elas compartilhariam da natureza
de um movimento religioso, e surgiram paralelos divertidos. Freud seria,
naturalmente, o Papa237 da nova seita, ou ainda um Personagem mais elevado, a
quem todos deveriam obediência; seus escritos seriam o texto sagrado, crença no
qual era obrigatória para os supostos infalibilistas238 que passaram pela necessária
conversão, e não faltariam os hereges que foram expulsos da igreja. Era uma bela
caricatura a se fazer, mas o elemento mínimo de verdade nisso foi feito para
substituir a realidade, que era bem diferente.239

Mais interessante é verificar que o motivo de sua aversão a ambos os termos era o
mesmo: a alusão a uma possível devoção religiosa.
Colocando a posição de Jones ao lado de sua descrição do ―Complexo de Deus‖, é
impossível não enxergar uma coerência. A repulsa de Jones não está em participar,
evidentemente, do ―movimento‖ psicanalítico - que inclusive deve a ele muitas conquistas e
avanços pela expansão internacional – mas especificamente pelo termo ―movimento‖ (e
―discípulo‖), que parecia a ele fazer referência à devoção religiosa, dogmática. O ateu Jones
parece querer evitar a todo custo uma posição de devoção acrítica, fé e obediência cega ao
―movimento‖ (seria Jones ateu e independente demais – e talvez narcísico demais - para
seguir qualquer ―outro‖ Deus?- senão ele próprio?).
É notório que Jones por vezes deixa escapar, em seus escritos, convicções
pessoais, e transparece, seja na descrição de algum caso clínico, seja no detalhamento de
algum conceito, o que pensa sobre outros assuntos – às vezes polêmicos.
Um caso exemplar é o que ocorre no artigo em questão, ―God complex‖: na
aparentemente inofensiva caracterização do sujeito com ―Complexo de Deus‖, Jones dá

237
Steiner (1993) , que analisou as cartas Freud-Jones, comenta que Freud às vezes se chamava de ―Máximo
Pontíficie‖, e que o mestre de fato às vezes atuava com ordens e comandos e por vezes até encarnava ―Catão, o
Censor‖ com Jones.
238
Infalibilista: aquele que é partidário da infalibilidade do Papa. (Fonte: Dicionário Priberam).
239
―It may have been noticed that I put one word of the title to this chapter in inverted commas – to pillory it, so
to speak. It was one much favoured in Vienna, and they even for some years published a periodical with that title
– to my considerable disapproval. The word ‗movement‘ is properly applied to activities, such as those of the
Tractarian Movement, the Chartist Movement, and so many thousand others, characterized by the ardent desire
to promulgate, or bring into force, beliefs that are accounted exceedingly precious; it is akin to what nowadays is
called ‗propaganda‘. It was this element that gave rise to the general criticism of our would-be scientific
activities that they partook rather of the nature of a religious movement, and amusing parallels were drawn.
Freud was of course the Pope of the new sect, if not a still higher Personage, to whom all owed obeisance; his
writings were the sacred text, credence in which was obligatory on the supposed infallibilists who had undergone
the necessary conversion, and there were not lacking the heretics who were expelled from the church. It was a
pretty caricature to make, but the minute element of truth in it was made to serve in place of the reality, whic h
was far different.‖ (1959, p. 205)
110

alfinetadas elegantes nos psicólogos que buscam ―atalhos‖ para compreender a mente humana
(fazendo uso de métodos tais como escala Binet-Simon, ou grafologia, por exemplo):

Ele [o sujeito com Complexo de Deus] tem um interesse particular em


qualquer método que prometa um "atalho" para o conhecimento das mentes
de outras pessoas e é capaz de aplicar métodos como a escala Binet-Simon, o
fenômeno psico-galvânico, reações de associação de palavras ou grafologia
de forma mecânica e literal, sempre esperando encontrar uma que dê
resultados automáticos. Quanto mais incomum é o método, mais o atrai,
dando-lhe a sensação de possuir uma chave acessível apenas aos eleitos. Por
esta razão, ele é capaz de mostrar um grande interesse pelas várias formas de
leitura do pensamento, quiromancia, adivinhação e até astrologia, bem como
pelo ocultismo e pelo misticismo em todos os seus ramos. Este tópico se
conecta com o da religião, por um lado, e as várias manifestações da
240.
onisciência, por outro, que serão discutidas.

É preciso atentar para o contexto histórico em que o artigo foi escrito (o ano era
1913) e compreender que as alfinetadas de Jones, ―disfarçadas‖ ou ―diluídas‘ em uma

240
“he takes a particular interest in any methods that promise a ‗short-cut‘ to the knowledge of other people's
minds, and is apt to apply such methods as the Binet- Simon scale, the psycho-galvanic phenomenon, word-
association reactions, or graphology in a mechanical and literal manner, always hoping to find one that will give
automatic results. 1 The more unusual the method the more it attracts him, giving him the feeling of possessing a
key that is accessible only to the elect. For this reason he is apt to display great interest in the various forms of
thought- reading, cheiromancy, divination, and even astrology, as well as in occultism and mysticism in all their
branches. This topic connects itself with that of religion on the one hand, and the various manifestations of
omniscience on the other, both of which will presently be discussed.‖. (Jones, 1974, p. 255)

A esse respeito, é impossível não pensarmos em Jung. Maddox (2006, p. 70) nos conta que Jung se tornou
membro honorário da Sociedade Americana de Pesquisa Psíquica (SPR) pelos seus ―serviços como ocultista‖
(1907). Jung comenta o fato com Freud em uma carta e afirma: ―Devido a meus serviços como ocultista fui
eleito ‗Honorary Fellow of the American Society for Psychical Research‘. Voltei a me envolver, nessa
qualidade, com estudiosos amadores de fantasmas. [No original ―dabbling in spookery again‖] (Carta de
02.11.1907. Citado em Correspondência Freud-Jung, p. 130) Já conhecemos as diferenças entre Jones e Jung e
de que forma Jones, em seu ceticismo, criticava o ―ocultismo‖ de Jung. ―God Complex‖ (1913) foi publicado
apenas alguns anos depois que Jung ganhou esse título. Talvez nem seja necessário mencionar que tal sociedade
contava com a antipatia de Jones. (2006, p. 70) Andrew Paskauskas (1993), editor da compilação da
correspondência Freud-Jones, assinala em uma nota que ―God Complex‖ é um ―artigo dirigido em grande parte a
Jung‖ (p. 161, nota 3 de carta de 18.09.1912) A partir desta sua indicação, procurei referências e de fato, em uma
carta de 29.12.1912 Jones diz ironicamente a Freud que no referido artigo vai escrever ―coisas doces‖
indiretamente a Jung. (―some sweet things‖) (1993, p. 189) (Devo mencionar: é muito gratificante, em um
trabalho de pesquisa, encontrar uma informação que corrobora nossa própria interpretação. Nossa associação
com Jung se deu logo na primeira leitura do artigo, e somente ao final da pesquisa acessamos esta carta em Jones
admite a ―indireta‖.)
E Jones não dialogaria (indiretamente) apenas com Jung, mas também com Klein. Já mencionamos que Jones
costumava fazer modificações, ampliações, etc a cada vez que um trabalho seu era republicado, e em um desses
acréscimos ao referido artigo Jones coloca um ―Potscript‖ mencionando a relação entre o Complexo de Deus que
acaba de descrever e a ―fase maníaca‖ de Melanie Klein.
Por fim, mostrando como um artigo de Jones pode suscitar muitas interpretações, Roazen (1974) afima que há,
em ―Complexo de Deus‖, características que Jones atribuiria a Freud, ―se bem que ao analisar Freud não se
tivesse atrevido a usar esse termo‖ (1974, p. 394).
111

descrição de tipo caracteriológico podem estar sendo endereçadas a colegas que enveredaram
por caminhos ―místicos‖ (como Jung); nesse sentido o texto acaba por criticar todos aqueles
que afastam a psicanálise de um campo sério de pesquisa. De uma só vez, Jones critica três
searas: o a Psicologia afeita a escalas e ―atalhos‖ para conhecer os processos mentais, as
crenças e práticas místicas, e a Religião – segundo o autor, todas interligadas em torno da
crença de onisciência.
E Jones prossegue no artigo: uma característica daquele que sofre de ―Complexo
de Deus‖ é a tendência a rejeitar todo conhecimento novo - pois se já é onisciente! – e o autor
descreve duas formas de não-aceitação de uma ideia nova, típica do complexo estudado.
A primeira forma consiste em
modificar a nova ideia, refraseá-la em seus próprios termos, e depois entregá-
la como inteiramente sua; as diferenças entre a sua descrição e aquela dada
pelo descobridor da nova ideia, naturalmente, continuam a ser de vital
importância. Quando as modificações feitas são consideráveis, elas são sempre
da natureza de enfraquecer a ideia original e, neste caso, o autor delas
geralmente adere à nova conclusão. Às vezes, a resistência à nova ideia é
indicada pelas modificações sendo simplesmente mudanças na nomenclatura,
ou mesmo na ortografia (!), e depois reações da pessoa mostram que ela nunca
aceitou seriamente a nova ideia, de modo que sua antiga aversão a ela ficará,
cedo ou tarde, novamente, evidente. O segundo modo, estreitamente aliado ao
primeiro e muitas vezes combinado com ele, é desvalorizar a nova ideia,
descrevendo-a de forma a colocar toda a ênfase nas ligações entre ela e as
[ideias] mais antigas, colocando em segundo plano o que quer que seja
essencialmente novo nela, e depois alegando que eles sempre estiveram
241
familiarizados com isso..

É interessante assistir Jones criticando (en passant..) o movimento psicanalítico


através desta descrição de resistências: chega a dar ―nome aos bois‖ e afirma que essa
disposição (de resistência a novas ideias) é bastante comum, seja como tendência humana
natural, seja no movimento psicanalítico (e em seu artigo o autor curiosamente usa o termo
exato ―movimento‖, de que tanto desgosta).
De fato, Jones se mostraria anos mais tarde um entusiasta acolhedor de novas
ideias, como a simpatia pelas de Melanie Klein. O prefácio que escreveu para ―Os progressos
da Psicanálise‖ (1982), em 1952, mostra como Jones recebeu bem as proposições kleinianas e

241
The first is to modify the new idea, re-phrase it in their own terms, and then give it out as entirely their own;
the differences between their description and that given by the discoverer of the new idea they naturally maintain
to be of vital importance. When the modifications made are considerable they are always of the nature of a
weakening of the original idea, and in this case the author of them usually adheres to the new conclusion.
Sometimes the resistance to the new idea is indicated by the modifications being simply changes in
nomenclature, or even in spelling (!), and then later reactions of the person show that he has never seriously
accepted the new idea, so that his old repugnance to it will sooner or later be again evident. The second mode,
closely allied to the first and often combined with it, is to devalue the new idea by describing it in such a way as
to lay all the stress on the links between it and older ones, thus putting into the background whatever is
essentially new in it, and then claiming that they had always been familiar with it
112

empreendeu esforços para que ela não fosse expulsa da Sociedade. (Imbasciati, 1983). No
entanto, não podemos deixar de observar que a aceitação de Klein por Jones está calcada em
uma forte identificação de suas ideias com as dele: ―Arriscarei apenas um comentário
pessoal. Como se sabe, desde o princípio considerei a obra de Melanie Klein com a maior
simpatia, especialmente porque muitas das suas conclusões coincidiram com as que eu
próprio alcancei‖ (1982, p. 8)
A valorização de Jones das ideias ―novas‖ de Klein reside, por assim dizer, na sua
não-novidade, ou ao menos certo sentimento de familiaridade, sendo que assume
explicitamente que simpatiza com a obra da austríaca porque a identifica com sua própria.
Jones se ressentiria quando não foi reconhecido pela originalidade de suas ideias
em uma revista na França. O autor cita o incidente em uma nota de rodapé de ―God Complex‖
(a nota se refere exatamente à descrição que acaba de fazer sobre as duas formas de
resistência a novas ideias):

Um belo exemplo disso aconteceu recentemente. Escrevi um artigo sobre a teoria


freudiana das neuroses, tratando principalmente, é claro, da importância dos
conflitos infantis, perversões sexuais reprimidas, etc. Um resumo muito distorcido
do artigo apareceu em uma revista francesa, concluindo com a certeza de que ‗desde
os trabalhos de Janet todas essas ideias são correntes na França‘.242

Nesta reclamação ressentida não fica claro se o que aborrece Jones é o não-
reconhecimento da revista francesa da teoria freudiana – que ele, Jones, representa, defende e
protege– ou se é a própria diferenciação autoral de Freud (as suas próprias ideias) que ele
quer ver reconhecida. O que incomoda Jones? Perceber que na França a teoria freudiana (a
quem Jones defende com unhas e dentes) foi relegada a uma ideia ―familiar‖ ou testemunhar o
desdém da revista pelas contribuições jonesianas à teoria das neuroses, considerando-as
reedições de algo ―já muito conhecido‖?
Outra característica típica das personalidades acometidas pelo ―Complexo de
Deus‖, segundo Jones, é um grande interesse pela linguagem.
Veszy-Wagner nos lembra que o próprio Jones era um grande interessado no tema
da linguagem. Segundo a autora, a ―dupla lealdade‖ de Jones entre galeses e ingleses tinha
relação com seu talento para aprender idiomas, e além disso ― ele admirava Freud como
mestre da prosa alemã e enfatizava em particular a sua originalidade, elegância e dignidade,

242
―A beautiful instance of this performance occurred recently. I had written a paper on Freud‘s theory of the
neuroses, dealing principally, of course, with the importance of infantile conflicts, repressed sexual perversions,
etc. A very distorted abstract of it appeared in a French journal, finishing with the assurance that ‗since Janet‘s
works all these ideas had long been current in France.‘‖ (1974, p. 257)
113

qualidades que também caracterizam Jones como escritor. Ele argumentou que muito do sabor
original é perdido em traduções‖243 ―A autora também nos recorda que, no início de sua
carreira, o jovem médico Ernest fazia experimentos com palavras com crianças e cita vários
trabalhos escritos do galês sobre o tema. (Não nos esqueçamos também que anos mais tarde,
já como psicanalista, dedicou-se a um estudo sólido sobre a simbolização).244
Assim como a autora, Girard (1972) nos lembra que o galês fazia parte do
Conselho de Estudos de Filologia Comparada da Universidade de Londres e o autor apresenta
praticamente um resumo de como a linguagem é um tema central em Jones, (o autor conecta
inclusive a própria questão dos nomes– como vimos em passagens da sua biografia - com a
questão das línguas):
Essa atração de linguagem encontrada em Jones muito antes de sua descoberta de
psicanálise será traduzida de maneiras diferentes em seu trabalho, particularmente
neste período. Ao ler a biografia, existem muitos indícios dos primeiros interesses de
Jones em línguas e nos mecanismos da linguagem; ele mesmo ficou satisfeito em
enfatizar suas motivações emocionais e as fontes infantis e culturais. Além disso, ele
lembra a importância de certos fatos de linguagem na organização de suas fantasias
mais fundamentais; o bilinguismo, a mudança que seu pai fez do seu local de
nascimento, o desejo de modificar seu nome, a escolha de seu nome e o nome de seus
filhos, a curiosidade insaciável pela descoberta de línguas estrangeiras, a paixão pelos
segredos da linguagem codificada - são as formas de expressão de sua fantasia
original que ele gosta de revelar. Se os conflitos originais encontraram nele uma
expressão privilegiada em problemas denominacionais ou no investimento de certos
aspectos predominantes da linguagem, é sobre as origens culturais e infantis da
linguagem, funções primitivas, transformações das palavras, decodificação do
segredo dos símbolos, criação de novos termos, que ele dedicará parte de seus
245
esforços.

243
―Admiraba a Freud como um maestro de la prosa alemana y destacaba em particular su originalidade,
elegância y dignidade, cualidades que caracterizan también a Jones como escritor. Este sostenía que gran parte
del sabor original se perde em las traducciones‖ (Veszy-Wagner, 1968, p. 72)
244
JONES, E. The theory of symbolism. British Journal of Psychology, 9: 181-229, London, 1916.
245
Cet attrait du langage que l‘on retrouve chez Jones bien antérieurement à sa découverte de la psychanalyse va
se traduire de différentes façons dans son oeuvre, particulièrement dans cette période–ci. A la lecture de as
biographie, on relève de nonbreux índices dês intérêts precoces de Jones pour lês langues. Et les mécanismes du
langage; lui-même s‘est plu à en souligner lês motivations affectives et les sources infatiles et culturelles. Bien
plus, il rélève l‘importance de certains faits de langage dans l‘organisation de ses fantasmes les plus
fontamentaux; bilinguisme, transformation par le père du non de son lieu de naissance, désire de modifier son
prope nom, choix de son nom et du nom de ses enfans, curiosité insatiable pour la découverte des langues
étrangères, passion pour les secrets du langage codé, sont les formes d‘expression de son fantasme originel qu‘il
se plait à dévoiler. Si les conflits originels trouvent chez lui une expression privilégiée dans des problèmes de
dénomination ou dans l‘investissement de certains aspects prévalents du langage, c‘est aux origines culturelles et
infantiles du langage, à ces fonctions primitives, aux transformations des mots 2, au décryptage du secrete des
symbolis, à la création de nouveaux termes qu‘il vouera une partie de ses efforts. (Girard, 1972, p. 244)

O autor tecerá ainda várias outras reflexes interessantes sobre a ligação de Jones com a Linguagem: inclui aí seu
esforços de tradução e disseminação, enriquecimento da linguagem psicanalítica, e é até o coloca como um
―intérprete‖ de Freud. O autor também traz a leitura de que a evolução de Jones se assemelha à evolução de uma
língua. Esse tema, no entanto, é bastante denso, e não devemos nos alongar aqui. (Um trabalho relacionando a
114

De fato, esse trefegar por línguas foram cruciais para Jones em seus caminhos de
internacionalização (dele mesmo, saindo de uma pequena cidade de Gales para Londres, e,
mais tarde, internacionalizando a Psicanálise). Jones parecia assim um expert em ampliar as
possibilidades, em levar o provinciano ao internacional, em navegar por diferentes mundos,
alargar horizontes - e estabelecer pontes. 246
Esta análise, na realidade, se origina de uma reflexão do próprio Jones. Em sua
autobiografia o galês nos diz que um desejo inconsciente de unir os seus pais (e seu contrário
– de separá-los) daria a ele uma tendência a duplas lealdades: se sentia fiel às duas comarcas
de Gales (lembremos que sua cidade pertencia de certa forma a duas regiões) e também a dois
países: Inglaterra e País de Gales. 247
A esse respeito Maddox analisa: ―Esta facilidade para girar entre contrários -
Glamorgan e Caermarthen, [Igrejas] Batista e Anglicana, indústria e selva, Inglaterra e País de
Gales, e não menos importante, pai e mãe - o serviu bem quando ele se tornou um mago no
comando das tribos guerreiras da psicanálise‖.248
Voltemos agora ao artigo ―God complex (1913). Segundo Jones, um dos traços
marcantes desta personalidade, é a oscilação entre a tolerância e a intolerância: diante da
necessidade de realizar julgamentos, tanto o sujeito pode ser irascível como pode cair na
complacência excessiva.
Tal sujeito também tem um alto interesse pela religião, ―tanto pelo lado teológico
como histórico e psicológico; isso às vezes decai em um interesse pelo misticismo.‖249 No

vida e obra de Jones com a questão da Linguagem daria um belo tema de estudos). (Consultar Girard, 1972,
páginas 244, 245, 254 e 389).

246
Isso não significava, porém, esquecer-se das suas origens. Maddox (2006) afirma: ―Apesar de sua crescente
experiência no mundo, Jones sempre foi orgulhoso de suas origens e manteve vivas suas ligações com Gales‖
(―Despite his increasing worldliness, Jones was always proud of his ancestry and kept alive his Welsh links.‖)
(2006, p. 25)
247
Jones, 1959, p. 13.
248
―This facilities for swivelling between contraries – Glamorgan and Caermarthen; Baptist and Anglican;
industry and wilderness; England and Wales; and not least, father and mother – served him well as he rose to
become commanding wizard over the warring tribes of psychoanalysis.‖ (Maddox, 2006, p. 14) (O próprio Jones
(1959) também acrescentaria, a esse respeito, sua aproximação entre Psicanálise e Medicina.) A autora irá
comentar em seguida, porém, que esta característica seria considerada por seus críticos como duplicidade (duplas
lealdades, como o próprio Jones assinala).
249
“both from the theological and historical side and from the psychological; this sometimes degenerates into na
interest in mysticism.‖ (1974, p. 260)
115

entanto, tal interesse é meramente intelectual, já que ―Como regra são ateus, e naturalmente o
são porque não podem tolerar a existência de nenhum outro Deus.‖ 250
É interessante como Jones tem tranquilidade de salientar esta característica do
sujeito com ―complexo de Deus‖ sendo ele próprio um ateu convicto – e tendo, também ele
um especial interesse (puramente intelectual) pela religião de modo geral.
A relação do complexo cunhado por Jones e o complexo mais amplamente
conhecido – o de Édipo – fica bastante evidente, uma vez que a associação entre a imagem de
Deus e do pai – ou, se preferirmos, do Pai com maiúscula e do pai com minúscula - é bem
conhecida em Psicanálise. (Já vimos, em Freud (1911), de que forma o Deus-Sol de Schreber
tinha um sentido paterno.)
O próprio Jones evoca o paralelo no artigo e enfatiza que no complexo de Deus o
medo da castração é vivido de duas formas: anseio/desejo de castração contra o pai
(autoridades) e medo de ser castrado pelas gerações mais novas. Esta última forma é, em
geral, mais proeminente e se manifesta por um sentimento forte de ciúmes e competitividade
com rivais mais jovens:

A ideia da castração sempre tem, para nosso sujeito típico [com complexo de Deus]
uma importância muito especial, tanto na forma de desejos de castração contra o pai
(autoridades) como no medo da castração (talião) por parte da geração mais jovem.
A última é, como regra, a mais pronunciada das duas, e, naturalmente, leva a um
medo e inveja dos rivais mais jovens, esta sendo em alguns casos extremamente
intensa.251

Aqui é inevitável evocarmos a coerência interna de Jones em nosso conjunto


selecionado de trabalhos: este pequeno parágrafo, em que Jones coloca o medo duplo de
castração (da geração mais velha e da mais nova) foi elaborado e trabalhado com
profundidade – como já vimos - no artigo ―The significance of the grandfather for the fate of
the individual‖, publicado no mesmo ano que o ―Complexo de Deus‖ (1913).
O sujeito é, nesse sentido, ameaçado pelas duas gerações que o envolvem: o seu
próprio pai e seu próprio filho – segundo o raciocínio de Jones, o neto assumindo a função de
―reencarnação psíquica do avô‖.

250
―As a rule they are atheists, and naturally so because they cannot suffer the existence of any other God.‖
(1974, p. 260)
251
―The ideia of castration always plays with our type a part of quite special importance, both in the form of
castration-wishes against the father (authorities) and of fear of castration (talion) on the part of the younger
generation. The latter is as rule the more pronounced of the two, and naturaly leads to a fear and jealousy of
younger rivals, this being in some cases remarkably intense.‖ (1974, p. 261)
116

Este sujeito ateu, interessado em religião (apenas ―intelectualmente‖)252 e com


traços que oscilam entre o auto engrandecimento e a modéstia excessiva (como uma formação
reativa) também apresenta como característica, segundo Jones, um intenso desejo de ser
amado. Porém, ―Isso raramente é mostrado diretamente, ou, no máximo, por um desejo de
elogio e admiração e não de amor. É comumente substituído por seu oposto, uma aparente
indiferença pela opinião dos outros, e a necessidade reprimida muitas vezes se trai das
seguintes maneiras: como um interesse teórico na ação da sugestão de multidão, pela crença
intensa na importância da opinião pública, ao ser flexível em ceder à convenção em ações,
apesar de uma rejeição desta em palavras.‖253
Sobre esse ―dar importância à opinião pública‖ e procurar agir conforme as
convenções – apesar de negá-lo - , cabe aqui nos lembrarmos de alguns aspectos biográficos
de Jones. Como nos contou Maddox, nos primórdios da Psicanálise - pouco tempo após
conhecer o mestre pessoalmente em 1908 -, Jones foi a Harvard como ―representante‖ (ou
talvez pudéssemos dizer ―procurador‖) de Freud e de sua recém-elaborada teoria, mas estando
lá se deparou com uma América puritana. Maddox nos conta que em uma convenção
organizada por Jones em Harvard, um grupo ínfimo de 16 pessoas compareceu – das quais
nenhuma havia lido ―A interpretação dos Sonhos‖, na época ainda sem tradução para o inglês.
254

Durante sua estadia Jones conheceu Morton Prince, editor do Journal of


Abnormal Psychology, que viu em Jones a representação da vanguarda em psicologia, mas
era, ao mesmo tempo, crítico em relação aos postulados de Freud e pincipalmente se
preocupava com a aceitação de seu Journal por parte dos leitores. Para garantir essa aceitação
e a imagem da revista, como já vimos, Prince chegaria a pedir a Jones255 que moderasse a
carga de sexualidade em seus artigos: além de afastar leitores, essa fixação nos temas sexuais
poderia manchar a reputação de Jones nos EUA.
Mas mesmo antes do pedido de Prince Jones já estava cuidadoso nesse sentido.
Como também vimos na biografia de Maddox, o galês voluntariamente – e estrategicamente –

252
Teríamos aqui, - para continuar fazendo uso das contribuições de Jones – uma típica racionalização?
253
“This is rarely shown directly, or at most by a desire for praise and admiration rather than for love. It is com-
monly replaced by its opposite, an apparent indifference to and independence of the opinion of others, and the
repressed need often betrays itself in such ways as a theoretical interest in the action of crowd suggestion, intense
belief in the importance of public opinion, pliant yielding to convention in deeds in spite of a rejection of this in
words.‖ (1974, p. 260-1)
254
Maddox, 2006, p. 72.
255
Em março de 1909 - conferir Maddox (2006, p. 72-3), que nos conta todo o episódio.
117

procura ―diluir‖ conteúdos mais polêmicos (de teor sexual, psicanalítico) entre outros sobre
temas variados – e trata também de pintar uma boa imagem de Prince para o mestre:

Prince não é puritano sobre ideias relacionadas a sexo. Seu problema principal é
mais ou menos filosófico (...) O senhor vê que os problemas aqui são peculiares à
raça anglo-saxônica, e é preciso conhecer bem os tipos de correntes e preconceitos
para combatê-los com mais sucesso. Estou certo de que é importante apontar
primeiro para as pessoas reconhecidas, e não popularizar muito cedo. Há tanta
vulgarização e exploração de tudo aqui, que se tem uma arma forte ao insistir no
lado científico exato do assunto, e é isso que quero fazer. Também eu quero ser
amplamente reconhecido em neurologia e psicologia ou outros campos, de modo
que a influência será maior e mais prontamente ouvida. (...) Um homem que
escreve sempre sobre a mesma coisa está sujeito a ser considerado um maníaco,
porque para o americano superficial todo assunto é facilmente exaustivo, a não ser
para maníacos; e se o assunto é sexual, ele é simplesmente tachado como um
neurastênico sexual. Por isso eu devo diluir meus artigos sexuais entre outros
assuntos alternadamente. (...) [grifo meu].256

O problema dessas colocações é que Prince era, sim – ao que tudo indica –
bastante puritano, mas Jones, provavelmente para conseguir ganhar em ―todas as frentes‖,
poupava a reputação do amigo editor perante Freud. Como nos lembramos, um ano mais tarde
Prince faria pesadas críticas à Psicanálise em sua revista, e Jones escreveria um artigo
contradizendo-o (em seguida Prince concluiria que a Psicanálise seria mais um ato religioso
do que científico). Pela resposta de Freud, vemos que o mestre não aprovava esse excesso de
moderação diplomática do galês (ao querer ―disfarçar‖ a ênfase da sexualidade na Psicanálise
para os americanos). Para Freud, aliás, o confronto ou choque frente ao puritanismo era algo
inevitável e mesmo inerente às inovações psicanalíticas, e portanto não deveria ser evitado,
mas, pelo contrário, algo a ser perseguido:

O senhor está realizando um grande trabalho, aceite meus agradecimentos por isso e
deixe-me expressar a esperança de que o progresso de nossa causa coincida com seu
benefício pessoal. No entanto, ao ler suas descrições - como de costume – bem
características das principais personalidades da Psicopatologia Americana, não pude
deixar de duvidar de suas opiniões num ponto e de um só homem. O senhor escreve,
Morton Prince é um homem respeitável e simpático, muito inclinado para nossas

256
―Prince is not prudish on sex ideas. His main trouble is a more or less philosophic one (…) You see the
problems here are peculiar to the Anglo-Saxon race, and one must know nicely the kinds of currents and
prejudices in order to combat them most successfully. I am sure it is important to aim first at the recognized
people, and not to popularize too soon. There is so much vulgarization and exploitation of everything here, that
one has a strong weapon in insisting on the exact scientific side of the subject, and that is what I mean to do.
Also I want to be generally recognized in neurology and psychology or other fields, so that one‘s influence will
be greater and one will be more readily listened to. (...) A man who writes always on the same thing is apt to be
regarded here as a crank, because to the superficial American every subject is easily exhausted except for cranks,
and if the subject is sexual he is simply tabooed as a sexual neurasthenic. Hence I shall dilute my sex articles
with articles on other subjects alternately. (…)‖ (Carta de 07.02.1909 in Freud-Jones correspondence, p. 14-15.
Citada por Maddox, 2006, p. 73).
118

teorias e o senhor parece ter um apego em relação a ele. Agora me disseram em


Salzburgo que ele proclama que minhas ideias são em grande parte tomadas de Janet
e de fato são idênticas às dele, eu sei de Brill e também de Abraham, que ele recusou
papéis enviados a ele por demanda dele por conter muita matéria sexual – o senhor
diz que ele não é puritano (...) Agora o senhor consegue conciliar as palavras e os
atos deste homem, o julgamento que devo moldar dele e a impressão que ele lhe
deu? Pode ser melhor manter-se longe dele e estar preparado para suas más
intenções veladas por seu discurso amigável.
Quanto à sua diplomacia, sei que o senhor está perfeitamente preparado para isso e o
fará magistralmente. Mas receio que seja fácil exagerar desta maneira. (...) a
resistência não pode ser evitada, deve vir mais cedo ou mais tarde, e é melhor
provocá-la lenta e intencionalmente.257

A diplomacia de Jones era, portanto, tão cuidadosa que lhe garantia uma ―boa
imagem‖ diante de todos os lados: justificava sua produção quase ―escondida‖, disfarçada de
artigos psicanalíticos para Freud – garantindo sua lealdade - e ao mesmo tempo não chocava
Prince, editor do Journal que poderia publicar todos os seus artigos – além de tentar com que
Freud não ficasse contra seu editor.
Também nos lembramos que talvez já tenha sido essa característica de ―duplas
lealdades‖ (a expressão é do próprio Jones, em sua autobiografia258) que havia despertado
desconfiança tanto em Freud quanto em Jung anos antes, quando Jones fazia visitas
formativas à clínica Kraepelin: ―De volta ao Velho Mundo, o rei e o príncipe herdeiro da
psicanálise viram Jones como um enigma. Ele estava do lado da psicanálise ou do de
Kraepelin e da psiquiatria clínica?‖ 259
Assim vemos que esse desejo de ser aceito, de agradar e a preocupação com a
opinião pública, - que, por um lado podem ter sido estratégicos para a disseminação da
psicanálise na América, mas por outro nem sempre agradavam Freud–, fato é que é inegável
a semelhança de um traço ou tendência de Jones com sua própria descrição, nesse aspecto, do
sujeito com ―Complexo de Deus‖.

257
―You are performing big work, accept my thanks for it and let me express the hope that the progress of our
cause will coincide with your personal advantage. Yet in reading your – as usual – highly characteristics
descriptions of the leading persons in American Psychopathology I could not refrain from doubting your views
in one point and regarding one man. You write, Morton Prince is an upright sympathetic man, very much leaning
to our theories and you seem to get yourself into a sort of attachment towards him. Now I have been told in
Salzburg that he proclaims my views are mostly taken from Janet and in fact identical with them, I know from
Brill and the same from Abraham, that he declined papers sent him on his demand on the account of their
containing too much of sexual matter – you say he is not prudish (…) Now can you reconcile the words and the
deeds of this man, the judgment I must shape of him and the impression he gave you? It might be better to keep
from him and to be prepared to his bad intentions veiled by his friendly speaking. As for your diplomacy I know
you are excellently fitted for it and will do it masterly. But I am afraid it is easy to do too much in this way. (…)
the resistance cannot be avoided, it must come sooner or later, and it is best to provoke it slowly and
designedly.‖ (Carta de 22.02.1909 in Freud-Jones correspondence, p. 18-19. Citada por Maddox, 2006, p. 74).
258
Jones, 1959, p. 13.
259
―Back in the Old World, the king and crown prince of psychoanalysis saw Jones as an enigma. Was he on the
side of psychoanalysis or on that of Kraepelin and clinical psychiatry?‖ (Maddox, 2006, p. 74)
119

Vários autores também enxergaram afinidades entre esta obra e seu autor.
Winnicott, no obituário que escreveu para Jones, cita ―O complexo de Deus‖ como um dos
textos que ―denunciaria‖ traços do próprio autor: ―talvez seja apenas no artigo ‗O Complexo
de Deus‘ que se pode perceber um pouco dela [de agudeza da sua personalidade], que
indubitavelmente afetava os contatos sociais de Jones (...) À medida que envelhecia, parece
mais capaz de desvencilhar-se dessa característica.‖ 260
O caráter em certa medida ―autobiográfico‖ do ―Complexo de Deus‖ também foi
notado por Girard (1972):
[Sobre o Complexo de Deus] Ele freqüentemente se refere a isso como
uma manifestação particularmente conflituosa do narcisismo. Em sua
autobiografia, ele não escondeu suas dificuldades pessoais,
conseqüências de seus desejos de onipotência e suas falhas; os traços
deste caráter referem-se à descrição do seu próprio caráter, como certos
detalhes como a atitude em relação ao tempo, o interesse pela
topografia261 ou o prazer de fazer previsões. Muitas dessas observações
clínicas serão de fato agrupadas na descrição do caráter anal, onde o
sentimento de onipotência desempenha um papel prevalente.262

Veszy-Wagner também assinalou as relações entre o ―Complexo de Deus‖


descrito por Jones e ele mesmo. Afirma que uma frase do artigo revela toda a ―raiva edípica
não digerida‖263 do galês e que: ―Neste trabalho, Jones sugeriu que, em geral, essas figuras

260
WINNICOTT, D. W. ―Ernest Jones.‖ In: WINNICOTT, D. W. Explorações psicanalíticas. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1994, p. 308. Agradeço a Griffin (2009) pela menção a este trecho de Winnicott, que me fez
voltar a ler este obituário de Jones. É muito interessante como se dão os caminhos (cheios de idas e vindas) de
uma pesquisa: já havia estudado o obituário escrito por Winnicott para escrever meu projeto de Doutorado (ainda
no processo seletivo da universidade!), mas naquela ocasião o que me saltou aos olhos foi o modo como o inglês
destacou as várias qualidades e feitos notáveis do galês. Eu não conhecia ainda o artigo ―God Complex‖ e por
isso devo ter prosseguido a leitura sem me deter neste trecho. É através de outra leitura (ou releitura) de Griffin
que retorno agora a Winnicott, feliz com a descoberta de que o psicanalista inglês citou o artigo que estamos
estudando para descrever Jones na ocasião de sua morte. E então, talvez caiba nesse momento explicitar que foi
uma escolha não me aprofundar na visão de Winnicott sobre Jones no presente trabalho, bem como a de Lacan
(em meu projeto inicial havia a visão de vários psicanalistas sobre Jones: ―Jones segundo Freud‖,"Jones segundo
Lacan‖, ―Jones segundo Winnicott‖, etc. Abdiquei temporariamente deste caminho justamente por pensar que
merecem um trabalho especialmente dedicado ao tema, o que ainda pretendo fazer, em uma próxima ocasião.
261
Esse detalhe é interessante, e confesso não ter notado: Jones dá longas e detalhadas descrições topográficas
(do lugar onde nasceu) em sua autobiografia. O apreço por topografia também é, segundo o autor, característico
daqueles com ―Complexo de Deus‖.
262
―Il y fait fréquemment allusion, comme à une manifestation particulièrement conflictuelle du narcissisme. Il
n'a d'ailleurs pas caché, dans son autobiographie, ses difficultés personnelles, conséquences de ses désirs de
toute-puissance, et ses échecs; des traits de ce caractère renvoient à la description de son propre caractére, tels
certains détails comme l'attitude envers le temps, l'intérêt pour la topographie ou le plaisir de faire des
prédictions. Nombre de ces observations cliniques seront en fait regroupées dans la description du caractère anal,
où le sentiment de toute-puissance joue un rôle prévalent.‖ (Girard, 1972, p. 296)
263
Infelizmente a autora não aponta qual é esta frase em que julga estar essa ―revelação‖.
120

paternas são ateias, já que não podem suportar a existência de nenhum outro Deus. Aqui
também cabe se perguntar se a posição antirreligiosa de Jones não teria origem, e até que
ponto, em uma poderosa defesa contra possíveis desejos semelhantes‖.
E ainda: ―O próprio Jones tinha uma ou duas das características que denunciou em
"O Complexo de Deus", uma vez que não apenas era ateu, mas também pontual, orgulhoso de
sua memória e excelente orador do jantar.‖ 264
Segundo nossas análises, a afinidade de Jones com o ―Complexo de Deus‖ vai
muito além de ―uma ou duas características‖, mas é um complexo central para compreender a
maneira como se posicionou perante Freud e, de modo geral, em sua história pessoal e na
História da Psicanálise. Veremos ao longo deste estudo como isso se revela.
Ao detalhar em seu artigo o processo de identificação com uma divindade, Jones
em seu artigo explica que há tipos muito diferentes de ―Deuses‖ e a personalidade do sujeito
com esse complexo irá variar de acordo com o ―tipo‖ de Deus com o qual se identifica.
Já podemos ver aqui, apenas nessa pequena consideração, traços de seu próprio
ateísmo e, por que não, as tendências à insubordinação que ele mesmo apresenta em sua
personalidade. Isto porque quando o pressuposto de um Deus único é relativizado – como faz
Jones – já está clara a sua posição ―cientificamente neutra‖ (ou ateia) e o relativismo da
autoridade total. Ao lermos o artigo de Jones, imediatamente associamos o ―Deus‖ de que fala
com ―O‖ Deus (único, onipotente, onisciente e onipresente – ao menos foi assim que li
inicialmente), mas ao final do texto Jones faz questão de desconstrui-lo nos lembrando de que
essa ideia é a do Deus cristão – e que há muitos outros Deuses, em diversas culturas. E
podemos então seguir adiante na reflexão: se não há um Deus único, nenhum ―poder
absoluto‖ é inquestionável. Novamente Jones tira da frente a devoção cega e desautoriza até
mesmo o maior de todos os poderosos: Jones lembra que há muitos poderosos.
Não é nosso intuito neste momento nos aprofundarmos sobre outra obra de Jones,
―Hamlet e Édipo‖, mas cabe apenas mencionar pontualmente que também naquele texto Jones
trabalhará sobre a questão do poder paterno (e até mesmo faz uma discussão sobre a figura do

264
―En este trabajo Jones sugirió que, por lo general, tales figuras paternas son ateas, pues no pueden soportar la
existência de ningún outro Dios.Aquí también cabe preguntarse si la posición antirreligiosa de Jones no tenía
origen y, en tal caso en qué medida, en una poderosa defensa contra posibles deseos similares (...)‖ (1968, p. 54)
e ―Jones mismo poseía una o dos de las características que denunció en ―The God Complex‖, puesto que no sólo
era ateo, sino también pontual, orgulloso de su memoria y excelente orador de sobremesa.‖ (1968, p. 58)
121

avô, resgatando seus dois artigos de 1913)265 Sobre o referido artigo do ―Complexo de Deus‖
e suas conexões com estes outros trabalhos de Jones, Veszy-Wagner comenta:

Em termos mais específicos, este ensaio ["Complexo de Deus"] refere-se à fantasia


infantil e narcisista de importância no adulto, em particular o homem de certa idade
que ocupa a posição de seu pai ou está muito próximo disso. Jones mostrou uma
brilhante intuição psicológica, mas também demonstrou uma animosidade inegável
em seu trabalho em Hamlet. Dois outros ensaios são dedicados a este mesmo tema:
"O significado do avô para o destino do indivíduo" e "A fantasia da reversão das
gerações". Polônio aparece aqui como uma fofoqueiro intrometido, um bobo senil
(...).266

(A autora levanta a hipótese de que o personagem Polônio é quem teria inspirado


Jones a escrever ―O complexo de Deus‖, talvez como uma projeção, mas não sigo por esta
interpretação – ainda que seja coerente. Pela minha leitura, a tônica do texto ―Complexo de
Deus‖ é de um caráter muito mais autobiográfico, expondo as questões de onipotência e
inferioridade, autoconfiança ou auto importância do próprio autor, bem como revela a relação
de Jones com a Religião. Sem dúvida o artigo tem relação com os textos de Jones sobre os
avós; porém, pela conexão que eu sugiro, o avô seria o equivalente de Deus, como o próprio
Jones coloca, aliás (com Abraham) – e não de Polônio como propõe Veszy-Wagner.267 Como
já vimos, o artigo ―Complexo de Deus‖ tem ainda mais um viés, que é a crítica indireta –
assumida e intencional - de Jones para o ―místico‖ Jung. É muito interessante como uma obra
pode ser polissêmica e suscitar várias análises – não necessariamente excludentes entre si.
Esse traço da obra de Jones, vale mencionar, reflete sua profundidade: apenas ensaios ricos
permitem essa gama tão variada de associações e hipóteses de interpretação.)
Jones prossegue em seu artigo: a identificação com o Deus cristão traz em seus fundamentos a
concepção de um ―Filho de Deus‖ (Cristo); um complexo assim configurado teria três grandes
características típicas: ―a revolução contra o pai, a fantasia de salvação e o masoquismo, ou
268
seja, uma situação edípica em que o filho-herói é um salvador que sofre.‖ (Aqui Jones

265
Teceremos considerações sobre esta obra (―Hamlet e Édipo‖) mais adiante, mas com um enfoque sobre a
questão da autoria. A análise aprofundada da obra jonesiana sobre Hamlet merece, a nosso ver, um estudo
inteiro a ele dedicado, tamanha a riqueza de associações, análises e interpretações que se abrem.
266
―En términos más específicos, este ensayo [―Complexo de Deus‖] se refiere a la fantasia infantil y narcisista
de importância en el adulto, en particular el hombre de certa edad que ocupa la posición de su padre o está muy
cerca de ella. Jones hizo gala de una brillante intuición psicológica, pero también demostró una innegable
animosidad em sus trabajos sobre Hamlet. Otros dos ensayos están dedicados a esse mismo tema: ‗The
significance of the grandfather for the fate of the individual‘ e ‗The phantasy of the reversal of generations‘.
Polonio aparece aquí como un chismoso entrometido, un tonto senil (...)‖ (Veszy-Wagner, 1968, p. 56)
267
A autora também lembra do avô pela característica de ser ―uma figura paterna que tem o anseio de ser
amado‖, e resgata a ideia de Jones de um avô tirânico hostil em relação à filha e principalmente ao neto.
268
“The three chief characteristics are: revolution against the father, saving phantasies, and masochism, or in
other words, an Oedipus situation in which the hero-son is a suffering savior.‖ (1974, p. 263)
122

destaca que a mãe teria um papel importante, e retoma um texto de Freud sobre o assunto.) E
continua: as fantasias de salvação envolveriam a ideia de defender/proteger – uma pessoa ou
toda a humanidade– de um ―pai mau‖. E tais traços: ―revelam-se na peculiaridade de extrema
humildade e altruísmo, especialmente marcante em homens que originalmente eram
extraordinariamente viris e agressivos‖ 269
Ora, o próprio Jones era considerado um homem com traços agressivos
(intolerância, insubordinação, língua afiada) e estamos observando de que forma manifestava
repetidas demonstrações tanto de humildade quanto de altruísmo. E quanto à fantasia de
salvação, Jones dará tanta ênfase a ela em sua caracterização do Complexo de Deus que a cita
na verdade duas vezes: antes mesmo de mencionar essa característica envolvendo o Deus
cristão o autor já teria dito que, de forma geral, o sujeito com o Complexo teria um ―desejo de
proteger‖: ―O ressentimento com o qual esses homens observam a crescente proeminência de
rivais mais novos forma um contraste curioso com outra característica de caráter, ou seja, seu
desejo de proteger. Eles gostam de ajudar, de atuar como patrono ou guardião, e assim por
diante. Tudo isso, no entanto, acontece apenas sob a estrita condição de que a pessoa a ser
protegida exponha sua posição indefesa e apele a eles como os fracos para os fortes; eles
acham tal apelo muitas vezes irresistível.‖270
Especificamente as ―fantasias de salvação‖ fazem especial sentido aqui. Bem nos
lembramos que Jones esteve às voltas com o papel de ―salvador‖ em uma situação de guerra
mundial. 271
Quando Jones recebeu Anna Freud em férias na Inglaterra, as condições adversas
pela Guerra complicaram o retorno da moça para casa. Bem nos lembramos, como nos contou
Maddox, que foi apenas com a providencial ajuda da ex-mulher de Jones, Loe, e de seu
marido, Jones II – que o retorno de Anna foi possível.272
O caso é relatado pela própria Anna Freud, em um texto-homenagem cheio de
gratidão e carinho:

269
―reveal themselves in the trait of extreme humility and altruism, especially striking in men who originally
were unusually virile and agressive‖ (1974, p. 263)
270
“The resentment with which these men observe the growing prominence of younger rivals forms a curious
contrast to another character-trait, namely their desire to protect. They are fond of helping, of acting as patron or
guardian, and so on. All this, however, happens only under the strict condition that the person to be protected
acknowledges his helpless position and appeals to them as the weak to the strong; such an appeal they often find
irresistible.‖ (1974, p. 262)
271
Na primeira (guerra), foi sua ex-companheira Loe quem não poupou esforços para viabilizar a volta de Anna
Freud para casa; na segunda, o próprio Jones empenhou-se pessoalmente, e com esforço notável, para salvar
Freud, seus familiares e tantas outras pessoas, como já vimos.
272
Maddox, 2006, p. 116.
123

aos dezoito anos, passei minhas primeiras férias na Inglaterra (...) Quando meu
barco do continente ancorou, ali estava Ernest Jones na plataforma, com um buquê
de flores nas mãos para me receber. (...) Infelizmente, este foi o verão de 1914 e
depois de pouco tempo a diversão foi interrompida pelo início da Primeira Guerra
Mundial. Em seu lugar vieram as dúvidas e preocupações sobre como, se e quando
voltaria para casa. Foi apenas graças aos esforços de Loe Jones, ex-esposa de Ernest
Jones e grande amiga minha, que fui colocada na lista de pessoas, mulheres e
crianças selecionadas, e outras pessoas que foram autorizadas a partir com o
Embaixador Austríaco.273

O segundo caso, ocorrido na Segunda Guerra Mundial, foi mais emblemático não
só porque envolveu um esforço descomunal e pessoal de Jones como também por ter gerado
vários ―salvamentos‖ (e não só de Freud). Lembramos da carta que Freud escreve a Jones:

Nossa situação política parece ficar cada vez mais sombria. A invasão dos nazistas
provavelmente não pode mais ser impedida; as consequências são desastrosas para a
[Psica]análise também. A única esperança que resta é que não se viva para vê-lo por
si mesmo. (...) Gostaria de viver na Inglaterra como Ernst [filho de Freud], e viajar
para Roma, como o senhor.274

Maddox nos conta que dois anos antes, em 1935, Jones havia ajudado o filho de
Freud, Ernst Freud – um arquiteto -, a se mudar e se estabelecer em Londres 275 e depois
começou a empenhar todos os esforços para a mudança de Freud: fez de tudo para ―pegar os
papéis necessários para Freud e sua comitiva - não só para entrar na Grã-Bretanha, mas
também para trabalhar. (...) Com pessoas em pânico e deprimidas em Viena, Anna Freud

273
―... at age eighteen, I spent my first holiday in England (...) When my boat from the continent docked, there
was Ernest Jones on the landing stage, with a bouquet of flowers in his hands to welcome me. (…)
Unfortunately, this was the summer of 1914 and presently enjoyment was cut short by the outbreak of the First
World War. Its place was taken by the doubts and worries how, whether, and when to reach home again. It was
only due to the efforts of Loe Jones, Ernest Jones‘s former wife and a firm friend of mine, that I was put on the
list of selected persons, women and children and some others, who were permitted to leave with the Austrian
Ambassador.‖ (1979, p. 347-8)
274
―Our political situation seems to become more and more gloomy. The invasion of the Nazis can probably not
be checked; the consequences are disastrous for analysis as well. The only hope remaining is that one will not
live to see it oneself. (…) I should like to live in England like Ernst, and travel to Rome, like you.‖ (Carta de
02.03.1937 in Freud-Jones correspondence, p. 757) Citada por Maddox (2006, p. 229)
275
Jones inclusive contratou Ernst para projetar a reforma de sua fazenda, The Plat, em Sussex. Jones ficou
felicíssimo com a reforma e escreveu a Freud elogiando o trabalho de seu filho: ―Embora seja uma coisa
pequena [a reforma], é surpreendentemente complicada e isso me dá oportunidade para a mais alta admiração de
sua extraordinária engenhosidade e magistral eficiência. É um deleite raro encontrar um padrão tão alto de
capacidade em qualquer trabalho.‖ (―Although is a small matter it is surprisingly complicated and that gives me
an opportunity for the highest admiration of his extraordinary ingenuity and masterly efficiency. It is a rare treat
to come across such a high standard of capacity in any work‖) (carta de 27.06.1935 in Freud-Jones
correspondence, p. 745) Freud não poderia ficar mais orgulhoso: ‖Seu reconhecimento pela capacidade de
trabalho de Ernst é um bálsamo para meu coração de pai.‖ (―Your recognition of Ernst‘s capacity for work is
balm to my paternal heart.‖) (Carta de 7.07.1935 in Freud-Jones correspondence, p. 745. Citada por Maddox,
2006, p. 226).
124

começou a despejar para Jones nomes de analistas, candidatos e até mesmo parentes para vir
para a Inglaterra com eles.‖ 276
E há mais: Maddox nos conta que quando finalmente Freud chegou a Londres, em
segurança, Jones também se adiantou em defender a honra do mestre. Havia boatos de que
Freud não gozava de liberdade, e também que estaria doente, morrendo; Jones não permitiu
que os rumores continuassem e tratou de escrever uma carta ao The Times, que a publicou na
íntegra (―Professor Freud‖ era o título):277

AO EDITOR DO THE TIMES:

Senhor,

Para tranquilizar os muitos amigos do Professor Freud neste país, que poderiam
muito bem ficar com uma ideia alarmista de sua condição a partir da descrição que o
Comandante Locker-Lampson fez dele na House of Commons ontem, eu gostaria de
dizer que é um exagero falar do Professor Freud ‗como um moribundo que foi
privado de liberdade‘. Tendo-o visitado há poucos dias, posso atestar que ele estava
com uma saúde bastante boa para sua idade e ainda trabalhando. Quanto à sua
privação de liberdade, ele não está sob nenhuma detenção policial ou vigilância,
embora tenha, naturalmente, como outros judeus, de cumprir várias formalidades se
quiser deixar o país.

Sinceramente,

ERNEST JONES.
81, Harley Street, W.1, April 13.278

Este ―salvamento de reputação‖ de Jones em relação a Freud é aliás algo


recorrente em sua biografia e em sua atuação no Movimento. Roazen (1974) diz: ―No culto a
Freud, Jones empenhava-se ao máximo, em suprimir, no que se publicava a respeito de Freud,
tudo que pudesse ser apresentado sob uma luz desfavorável.‖ 279

276
“get the necessary papers for Freud and his entourage – not only to enter Britain, but also to work. (...) With
people panickly and depressed in Vienna, Anna Freud began to shower Jones with names of analysts, of training
candidates and even theirs relatives to come to Englan with them.‖ (Maddox, 2006, p. 230)
277
Toda esta passagem é relatada, e com mais detalhes, por Maddox, 2006, p. 230-232.
278
―TO THE EDITOR OF THE TIMES:
Sir,
To reassure the many friends of Professor Freud in this country who might well get an alarmist idea of his
condition from the description Commander Locker-Lampson gave of it in the House of Commons yesterday, I
would like to say that it is an exaggeration to speak of Professor Freud " as a dying man who has been deprived
of liberty." Having visited him not many days ago I can testify that he was in fairly good health for his age and
still at work. As for his being deprived of liberty, he is under no police detention or surveillance, though he
would, of course, like other Jews, have to fulfil various formalities if he wished to leave the country.
Yours faithfull,
ERNEST JONES.
81, Harley Street, W.1, April 13.‖ (The Times, 14 de abril de 1938)
279
(Roazen, 1974, p. 394). O autor também nos conta que quando Isidor Sadger escreveu um livro sobre Freud
que não agradou Jones, o galês ―enfureceu-se de tal forma com algumas interpretações nele contidas que
125

Jones aqui evidencia de modo claro não apenas fantasias de salvação, como de
fato põe em prática não uma, mas várias ―salvações‖: da guerra e da desonra. (E não só a
Freud, mas a familiares e tantos e tantos outros analistas vienenses).
Aqui também nos recordamos do conceito de ―fantasia de inversão de gerações‖,
que Jones sistematizou em 1913. Lembramos que, pela sua observação clínica e estudos pode
atestar que os filhos manifestam pelos pais um amor paternal, isto é, o amor filial se
manifesta, se expressa, pela fantasia de cuidar, proteger e acolher os pais (ou, na sua faceta da
hostilidade, castigando-o, advertindo-o, recriminando-o) – exatamente como seus próprios
pais fariam. A relação de Jones com Freud aqui assume claramente a inversão que Jones
descreve: como um filho-pai de seu pai-mestre, Jones o protege, o salva, cuida para que tenha
um abrigo, trabalho e até mesmo uma reputação intocada.
Também pude notar que essa inversão não passou despercebida pela biógrafa
Maddox. Para descrevê-lo, porém, a autora faz uma maliciosa sugestão de um coito entre
Jones e Freud – e com Jones ficando por cima (!): após comentar sobre um caso clínico de
Jones em que a esposa do paciente sempre ―ficava por cima e fazia todo o trabalho‖, a
biógrafa emenda: ―Em suas relações com Freud, o próprio Jones frequentemente assumiu a
posição de cima: Freud agora estava se dirigindo a ele com quase afeto filial (...) Assim, Jones
não hesitou em repreender Freud por ter ficado lisonjeado com uma oferta da British Society
for Psychical Research‖. 280 (Esta Sociedade, como bem lembramos, não tinha boa reputação
e Jones lembra Freud disso).
Preferimos pensar em um quadro de inversão de papéis parentais (retomando a
fantasia cunhada por Jones) do que a imagem de um coito em que Jones assume o papel ativo,
mas de qualquer modo compreendemos tratar-se de uma imagem diferente para a intuição do
fenômeno semelhante, isto é, Jones dirigindo as ações e os próximos passos – como um
progenitor faria - sendo protetor, paternal e ou até repressor.281 É interessante observar que os

recomendou, numa carta dirigida a Ferdern, a internação de Sadger (que era judeu) num campo de concentração,
se fosse necessário, para ter a certeza de que o livro jamais seria publicado.‖ (1974, p. 394). Maddox (2006)
também nos conta essa passagem.
280
―In his relations with Freud, Jones himself often took the upper position: Freud was now adressing him with
almost filial affection (…) Thus Jones did not hesitate to rebuke Freud for having flattered by an offer from the
British Society for Psychical Research.‖ (Maddox, 2006, p. 92)
281
Coloco em questão o tom ―filial‖ que Maddox enxerga no tratamento carinhoso de Freud, porém. Embora
Jones assuma uma posição parental em relação a Freud, isso não significa que Freud se infantilize. Embora em
algumas cartas Freud seja de fato mais afetuoso que em outras, não pude perceber um posicionamento de Freud
abaixo ou submisso a Jones (pedindo ajuda, orientação, com excessivo respeito, etc – mas sim o contrário). Isto
é: pela minha leitura, Jones era parental em relação a Freud, mas sem deixar de ser filho. (A própria biógrafa, em
outra passagem, enxerga como Jones tratou Freud como pai na ocasião dolorosa da perda de sua filha pequena:
―Nunca Jones tratou tanto Freud como um pai do que quando descreveu os detalhes das últimas horas da sua
126

traços de Jones como protetor – e não exatamente como um filho obediente e seguidor do
mestre (como talvez outros discípulos fariam) - se mostrarão também em relação à própria
Psicanálise. O modo como Jones toma para si a tarefa de liderar o ―movimento‖ – ou, como
preferia dizer, a ―causa‖ – era uma posição bastante específica, que não é exatamente a de um
filho (um ―discípulo‖); tampouco a de um pai (a Psicanálise já tinha um pai); e muito menos
de um opositor, mas sim o de um filho parental. 282
Parental, mas ainda assim filho: a forma como Jones se refere a Freud ao longo da
sua extensíssima troca de cartas é sempre como a de um filho respeitoso em relação a um pai
amado – e é digno de nota que este respeito filial não parece diminuir à medida que o tempo
passa e o próprio Jones ganha mais idade e maturidade. Até o fim de seus dias Jones chamará
Freud de ―Professor‖ e manterá uma postura de admiração e respeito.283
Adam Phillips, analisando as cartas sobre traduções (que são abundantes na
correspondência entre os psicanalistas) vai comentar rapidamente: ―O protecionismo de Jones
284
é apaziguador‖ O autor se refere à tendência de Jones de insistir com o mestre sobre a
importância de traduções fiéis de sua obra, e para convencer Freud disso (que não dava tanto
valor para as traduções quanto o galês) dizia que alguns termos mal traduzidos não faziam
―jus‖ ao conceito que tinham do Pai da Psicanálise.
Nas cartas, a propósito, é possível detectar vários outros aspectos de relação filial-
paternal - e cheios de meandros. Riccardo Steiner (1993), na introdução à compilação
completa das correspondências (Paskauskas,1993) analisa:

Às vezes iremos testemunhar um verdadeiro dilúvio de respostas transferenciais e


contratransferenciais tanto em Freud quanto em Jones, em um momento baseados no
sentimento de afeto paterno e proteção por parte de Freud e admiração e devoção
filial por parte de Jones, e em outro na necessidade de Freud de manter a distância
ou a necessidade meio confessa de Jones de posse; ou seja, de exclusividade em seu
relacionamento com Freud, bem como sua competitividade e rivalidade muitas
vezes ferozes com seus colegas e menos manifestamente em relação ao próprio
Freud.285

filha.‖ (2006, p. 197) ―Never did Jones treat Freud more like a father than when he poured out the details of his
daughter‘s last hours‖ (2006, p. 197)
282
Trabalhei sobre o tema do ―filho parental‖ no capítulo ―Parentalidade invertida‖ em coautoria com a Profª Drª
Ceneide Cerveny, da PUC-SP (Cerveny; Marques, 2015), da área de Família e Ciclos da vida. Até mesmo
outros campos do conhecimento, que não a Psicanálise, já identificaram uma situação psíquica/familiar em que
um dos filhos assume para si o cuidado dos pais na velhice, adotando a posição de ―pai do pai‖, isto é, a
parentalidade invertida.
283
Steiner (1993) também salientou a diferença de forma de tratamento entre Freud e Jones nas cartas – é uma
diferença bem evidente.
284
Phillips, 1998, p. 167. Outra resenha da London Review of Books (sobre a biografia de Maddox) nos lembra
que Jones era conhecido como ―Freud's Rottweiler‖ (Turner, 2006).
285
―At times, then, we shall bear witness to a veritable deluge of transference and countertransference responses
in both Freud and Jones, based at one moment on feeling of paternal affection and protectiveness in Freud and
127

O que talvez tenha escapado a Steiner, mas não escapou ao próprio Jones, é a
presença de mais uma faceta significativa nesta relação: a fantasia de inversão de gerações
que citamos há pouco, sendo Jones aquele que assumiria – dentre todos os outros ―filhos‖ – a
posição de cuidar de seu pai, mestre, mentor. Na biografia de Freud Jones chega a comparar o
lugar de um ―Freud-filho‖ a uma posição feminina, que requer cuidados e proteção: ―Sentia
eu nele [em Freud] vagamente um aspecto algo feminino, nas suas maneiras e nos seus
movimentos – que talvez me tenha levado a uma atitude de ajuda ou mesmo de proteção,
antes que a mais característica atitude filial de muitos analistas [grifo meu]‖.286
Veszy-Wagner (1968) é quem mencionou este trecho e, (pelo que entendi de suas
colocações), viu nele mostras do quanto o galês tinha uma profunda compreensão emocional
de Freud; tenho porém uma leitura diversa: ao afirmar que Freud tinha características
―femininas‖, vemos mais revelada a intenção paternal de Jones do que propriamente as
emoções de Freud (que, segundo compreendo da autora, Jones teria supostamente a
sensibilidade de ―captar‖). Penso ao contrário que esta afirmação de Jones tem o efeito de
posicioná-lo acima de Freud, promovendo justamente uma inversão de papéis: se o mestre
ensina o discípulo, o pai tutora o filho, e o homem cuida da mulher que precisa ser protegida,
Jones propõe então que o discípulo passe a ensinar o mestre; que o filho tutore o pai; e
transforma Freud em ―mulher‖ para assim, como homem, cuidar dele. Voltaremos a esse
ponto mais adiante.
E provavelmente também por tendências protetoras, mesmo quando discordava de
Freud, Jones o fazia de forma moderada. A mesma Veszy-Wagner (1968) sintetiza:

Jones tinha um dom especial para prestar homenagem ao gênio de Freud, mesmo
quando refutava algum dos seus princípios. Ele observou com pesar que havia
questões sobre as quais ele foi obrigado a exprimir o seu desacordo com Freud: a
telepatia, a atitude perante a análise leiga e seu próprio apoio ao trabalho de Melanie
Klein (1953, vol 3, p 129), mas não mencionou três outros problemas, isto é, a
primeira teoria da ansiedade, o complexo de Édipo feminino e a pulsão de morte.287

admiration and filial devotion in Jones, and the next on Freud‘s need to keep the distance or on Jones‘s half
confessed need for possession, that is, for exclusivity in his relationship with Freud, as well as his often fierce
competitiveness and rivalry towards his colleagues and less manifestly toward Freud himself.‖ (Steiner, 1993, p.
xxv)
286
1970, Vol II, p. 396.
287
―Jones tenía un don particular para rendir tributo al gênio de Freud, incluso cuando refutaba alguno de sus
principios. Senãló con pesar que había cuestiones acerca de las cuales se veía obligado a manifestar su
desacuerdo con Freud: la telepatia, la actitud frente al análisis profano, y su próprio apoyo a la obra de Melanie
Klein (1953, vol. 3, pág. 129), pero no mencionó otros tres problemas, esto es, la primera teoria de la ansiedad,
el complejo edípico feminino y el instinto de muerte.‖ (1968, p. 66)
128

Não só Jones evita explicitar de modo assertivo todas as questões de discordância


teórica – possivelmente para não aborrecer Freud – como chega ao ponto de abandonar
interesses próprios para proteger o mestre: A mesma autora nos conta, por exemplo, que
Jones porventura planejava escrever sobre fobias de viagem, mas deixaria esta ideia de lado
provavelmente por consideração a Freud – que sofria deste medo. 288
Sobre este ponto, a propósito – a proteção de Jones em relação a uma fobia de
Freud – ao escrever a biografia do mestre o galês cita en passant este medo de viajar, mas se
apressa em eximí-lo de qualquer patologia, em uma nota de rodapé: ―A rigor, o estado de
Freud não pode ser chamado de fobia, já que a ansiedade era suportável e assim não precisava
de medidas protetoras secundárias, isto é, evitação de viajar.‖ 289
Como um pai que minimiza as dificuldades de um filho e aumenta as suas
qualidades, Jones a um só tempo engrandece o mestre e coloca-se acima dele, paternalmente,
como seu protetor e guardião.
O artigo ―Complexo de Deus‖ traz ainda outros aspectos caracteriológicos, mas
optamos aqui por resumir apenas aqueles traços importantes para nossa discussão (nosso
esforço de resumir passagens do artigo não devem desestimular o leitor, porém, a lê-lo no
original e na íntegra – é um belo trabalho). Veremos, nos próximos capítulos, como a questão
da paternidade é bem marcada em sua obra selecionada, como derivações do ―Complexo de
Deus‖ e da questão edípica na sucessão geracional.

V.2 Complexo de inferioridade - e sua relação com a religião

Ainda que Jones detestasse o termo ―movimento‖ (psicanalítico) porque lhe


parecia transformar a ―causa‖ em algo religioso (e não gostava do termo ―discípulo‖ pelo
mesmo motivo) a Religião - de tanto desagrado ao ateu Jones - foi um dos temas sobre o qual
mais se debruçou.

A autora também vai acrescentar que mesmo em uma das mais fortes discordâncias teóricas – a questão da
sexualidade feminina – Jones foi cauteloso e escreveu: ―Esta concepção me parece estar mais consonante com os
fatos observados.‖ (1968, p. 66-67), bem como nos conta que Jones nunca colocava por escrito detalhes relativos
a discordâncias (1968, p. 36) ―al resumir sus propias ideas, casi diametralmente opuestas a las de Freud, afirmo
cautelosamente: ‗Esta concepción me parece estar más consonante com los hechos observables‘ (‗Early Female
Sexuality‘)‖ (1968, p. 66-7) Aqui, porém, podemos analisar estas evidências não apenas como um protecionismo
de Jones em relação ao mestre – ―cuidando‖ dele mesmo ao discordar de suas ideias-, mas também pelo
importante aspecto da modéstia e hesitação em afirmar ideias próprias, como na humildade excessiva (e
narcisista) do ―Complexo de Deus‖.
288
Veszy-Wagner, 1968, p. 49
289
1970, Vol I, p. 308, nota de rodapé.
129

Chama a atenção o fato de que sua estreia na Psicanálise como teórico, escritor,
produtor de conhecimento (mesmo antes de acumular experiência clínica) foi um artigo em
que defendia a ideia de que as crenças religiosas seriam manifestações de um mecanismo de
defesa cunhado por ele de ―Racionalização‖.
Seu artigo ―Racionalização na vida cotidiana‖ (1908), responsável por expor uma
de suas mais conhecidas contribuições à psicanálise desconstrói a fé através de um afiado,
implacável olhar psicanalítico. Girard (1972) descreve:

As referências à religião são muito abundantes na obra de Jones, e vários trabalhos


importantes são dedicados a ela (...) Sua entrada na [Psic]análise se deu também sob
este signo: a descrição da racionalização na vida diária é também a denúncia de
"evasivas", falsas explicações para uso da opinião pública, de que são exemplos a
escolha da forma de crença religiosa, ou racionalizações de processos primitivos
irracionais que são a ‗explicação da missa e da comunhão com a Santa Ceia, apesar
da origem teofágica indubitável de uma e de outra.‘ Reatribui um objetivo para a
psicanálise, o que também será sua ambição. ‗Estudos futuros devem procurar
revelar o segredo da formação de opiniões e crenças, e a nos indicar os métodos para
submetê-las ao nosso controle.‘290

Também Veszy-Wagner observa esse volume de obras sobre Religião em Jones,


mas de modo geral em negativo, isto é, combatendo-a (como no artigo sobre Racionalização):
―A posição antirreligiosa de Jones aparece em muitas de suas obras. Na opinião dele, o
cristianismo constitui uma sublimação dos desejos edipianos e também uma defesa contra
eles.‖ 291
Em outras palavras, o pensamento de Jones era o de que as crenças religiosas
traduzem questões irracionais que deveriam ser ―superadas‖ – e o seriam, caso fossem
submetidas a controle consciente. Desta forma, a ―cura‖ para a fé seria a Psicanálise.
Como vimos em ―Complexo de Deus‖, Jones colocava no mesmo balaio da
religião todas as formas de crendices e misticismos, e procurava a todo custo proteger a
Psicanálise de ser confundida – ou de enveredar por – esses caminhos mais do que duvidosos.

290
―Les références à la religion sont très abondantes dans l'ouvre de Jones, et plusieurs travaux importants lui
sont consacrés, (...) Son entrée dans l‘analyse se fit d'ailleurs sous ce signe: la description de la rationalisation de
la vie quotidienne est aussi la dénounciation des ‗évasions‘, fausses explications à l'usage de l'opinion publique,
dont les exemples sont le choix de la forme de la croyance religieuse, ou les rationalisations de processus
primitifs irrationnels que sont l' ‗explication de la messe et de la communion par la Cène, cela malgré
l'incontestable origine théophagique de l'une et de l'autre.‘ Déjà il assigne un but à la psychanalyse, qui sera aussi
son ambition: ‗Les études futures devront s'attacher à nous révéler le secret de la formation des opinions et des
croyances, et à nous indiquer les méthodes succeptibles de les soumettre à notre contrôle.‘‖ (1972, p. 277)
291
―La posición antirreligiosa de Jones aparece em muchos de sus trabajos. Em su opinión, el cristianismo
constituye uma sublimación de los desos edípicos, y también uma defensa contra ellos.‖ (Veszy-Wagner, 1968,
p. 52)
130

Já vimos na biografia de Jones292 que quando Freud, em 1911, recebe o convite da


Sociedade Britânica de Pesquisa Psíquica (British Society for Psychical Research - SPR) para
se tornar um membro, Jones desaconselha o mestre alertando-o sobre a má reputação da
sociedade (um tanto quanto ―paranormal‖) no meio científico:

O senhor me pergunta sobre a Sociedade de Pesquisa Psíquica. Lamento dizer que,


apesar dos bons nomes na mesma, a sociedade não tem boa fama nos círculos
científicos. O senhor vai se lembrar que eles fizeram algum trabalho de valor na
década de oitenta sobre hipnotismo, escrita automática etc., mas nos últimos 15 anos
têm circunscrito a sua atenção para ‗caça-fantasmas‘, mediunidade e telepatia (...) O
senhor aceitou se tornar um membro? Não parece que suas pesquisas dêem um
grande apoio ao espiritismo. 293

Jones sempre teve clara antipatia pela SPR e seus estudos ―místicos‖, e com seu
294
ceticismo característico reagia com repulsa a todos esses temas ―sobrenaturais‖. (Também
nos lembramos que em 1907 a SPR americana daria o título de membro honorário a Jung por
seus ―serviços como ocultista‖ - e mais facilmente compreendemos, então, as inúmeras
diferenças entre os dois).
Já vimos como, no início de sua carreira em psicanálise, em 1909, Jones
intercalava, como uma estratégia diplomática, a publicação de artigos de Neurologia e de
Psicanálise, a fim de não chocar o puritano leitor americano e ir ganhando terreno aos poucos
nos países anglófonos (lembremos que nessa época Jones vivia no Canadá). No entanto, como
um exemplo de que prudência e ousadia (ou imprudência) podem coexistir em uma mesma

292
Maddox, 2006.
293
―You ask me of the Society of Psychical Research. I am sorry to say that in spite of the good names in it, the
society is not of good repute in scientific circles. You will remember that they did some valuable work in the
eighties on hypnotism, automatic writing etc., but for the past 15 years they have confined their attention to
―spook-hunting‖, mediumism, and telepathy (…) Did you accept the corresp. membership? It does not seem that
your researches lend much support to spiritism‖ (Carta de 17.03.1911 in Freud-Jones correspondence, p. 97-98.
Citada por Maddox, 2006, p. 92).
294
A propósito, Maddox nos lembra que no início do século XX havia uma linha tênue entre o ―natural‖ e o
―paranormal‖, e muitas vezes fenômenos de ambas naturezas eram estudados em conjunto. Em suas palavras:
―Entre os fundadores da SPR (que ainda existe) estavam físicos sérios do século XIX tais como J. J. Thomson e
Oliver Lodge, que acreditavam haver alguma conexão entre as ondas eletromagnéticas e as ondas de
pensamento. Acreditava-se que o meio de propagação (até que a teoria da relatividade de Einstein tornasse este
conceito obsoleto) seria o éter, uma substância elástica que permearia todo o espaço e através do qual as ondas
eletromagnéticas seriam conduzidas. Telepatia - transferência elétrica de pensamento - era, portanto, plausível.
Alexander Graham Bell até considerava que a sua invenção, o telefone, poderia ser uma maneira de se
comunicar com os mortos.‖ ―Among the founders of the SPR (which still exists) were sober nineteenth-century
physicists such as J. J. Thomson and Oliver Lodge, who believed there must be some connection between
electromagnetic waves and thought waves. The propagating medium (until Einstein‘s theory of relativity made
the concept obsolete) was thought to be the ether, an elastic substance permeating all space and through which
electromagnetic waves were carried. Telepathy – electrical thought-transference – was therefore plausible.
Alexander Graham Bell even considered that his invention the telephone might be a way of communicating with
the dead.‖ (2006, p. 57)
131

personalidade, Jones na ―vez‖ de escrever algo psicanalítico acaba exagerando e publica um


artigo que simplesmente blasfema/dessacraliza a religião cristã.
Maddox295 nos conta que em seu artigo Em ―Psycho-Analytic Notes on a Case of
Hypomania‖, de 1909 (publicado no American Journal of Insanity) o autor descreve o caso de
uma paciente que associa experencialmente o rito sagrado da Comunhão com o sexo oral:

Quando falava de práticas religiosas, especialmente da Sagrada Comunhão, a


paciente parou de falar e, lenta e reverentemente, realizou uma pantomima perfeita
de toda a cerimônia. Isso culminou no ato de pegar um copo d‘ água, que ela
colocou sobre uma Bíblia, e, gradualmente, foi erguendo-o até os lábios;
beatificamente chupou a borda, enquanto girava o copo lentamente. Durante a última
parte da performance ela teve um orgasmo completo e exaustivo. Eu apontei para o
copo e perguntei-lhe se aquele era o cálice da comunhão; Ela respondeu: 'Você
chama de cálice? Isso tem outro nome‘, e mais tarde comentou:" Este é o Caminho,
a Verdade e a Vida.‘296

Não contente com a descrição longa e detalhada da cena, Jones republicou o


artigo (originalmente publicado em 1909 no American Journal of Insanity) meses depois no
Ontario Hospitals Bulletin – do qual era coeditor. A repercussão foi tão negativa que Jones
acabou sendo demitido do cargo. A biógrafa comenta, sobre o episódio: ―Esta republicação
talvez demonstre que Jones não sabia quando parar. Estaria ele espalhando a palavra de
Freud? Ou teria assumido outro risco, beirando um jogo sexual com uma paciente?‖ 297
Poderíamos acrescentar: ou estaria simplesmente se divertindo em descontruir a
religião e o sentimento de devoção religiosa, escolhendo a dedo contar um caso que
simbolizasse essa destituição? (Afinal, o que melhor do que a sexualidade para dessacralizar
os ritos religiosos, desfazer crenças, fazer heresia, blasfêmia?)
E por falar em blasfêmia, é interessante encontrar, na autobiografia de Jones, uma
passagem em que o galês analisa os desafios de ser um pioneiro. Segundo sua análise, todo
pioneiro nas ciências precisaria vencer poderosos obstáculos tanto internos quanto externos e
um desses embates se dá, a seu ver, com a ideia de Divindade: “[Dentre os obstáculos] Os
mais formidáveis – isto é, o maior impedimento para o progresso científico - sempre foram

295
2006, p. 80-81.
296
―When speaking of religious observances, particularly of holy communion, she broke off, and slowly and
reverentially went through a perfect pantomime of the whole ceremony. This culminated in her taking a glass of
water, which she had placed on a Bible, and gradually raising it to her lips where she beatifically sucked the rim,
slowly revolving the glass as she did so. During the latter part of the performance a complete and exhausting
sexual orgasm took place. I pointed to the glass, and asked her if it was the communion cup; she answered: ‗Do
you call it a cup? It has another name,‘ and later remarked: ‗This is the Way, the Truth and the Life.‘‖ (Jones,
1909, p. 214. Citado por Maddox, p. 80).
297
―This republication perhaps shows that Jones did not know when enough was enough. Was he spreading the
word of Freud? Or had he taken another risk, verging on a sexual game, with a patient?‖ (2006, p. 81)
132

aqueles que se conectaram com a ideia da Divindade, de modo que cada passo significava
deslocar essa ideia para mais longe, e para os contemporâneos só poderia aparecer em termos
de blasfêmia.‖ 298
O ataque – ou ao menos a relativização ou o escrutínio – dos sentimentos
religiosos tem forte marca na vida e obra de Jones e em relação a isto podemos considerar
pelo menos dois aspectos psicanalíticos fundamentais: a destituição de um poder absoluto
acima de si e a relação da devoção religiosa com sentimentos de inferioridade.
Jones nos conta299 que em 1929 o editor da revista galesa ―The Welsh Outlook‖
pediu a ele – o ―galês psicanalista‖ – que escrevesse algumas linhas sobre o ―complexo de
inferioridade do povo galês‖. Jones aceitou o desafio e abriu o artigo (publicado não apenas
na revista galesa mas também em seu ―Essays‖, de 1974) lembrando o leitor – e certamente se
gabando – de ser este o primeiro artigo psicanalítico a ser publicado por uma revista do País
de Gales. Pioneiro, portanto, nessa façanha, após se exibir pelo ineditismo Jones tece algumas
considerações sobre o que considera ser uma característica do povo desta nacionalidade – o
que, obviamente, o inclui.
Em primeiro lugar Jones afirma concordar com o editor da revista de que se trata
de um traço do galês – embora se deva assumir com reservas um traço generalista de qualquer
povo ou nação.
Em seguida inicia sua interpretação do sentimento de inferioridade explicando
psicanaliticamente que tal sentimento sempre se origina de causas internas, e pouco tem
correlação com fracassos ou defeitos no plano da realidade. Descreve:

O que se entende pela expressão 'complexo de inferioridade'? (...) que a pessoa em


questão tende indevidamente a comparar-se desfavoravelmente com outras pessoas,
a desprezar-se, a ser oprimido por um sentimento de inferioridade. Estes sentimentos
vem de dentro e têm pouco ou nada a ver com qualquer inferioridade real, mesmo
quando eles parecem estar conectados com ela. 300

E continua, afirmando que a sensação de inferioridade (independente de que


―explicação‖ o sujeito dê para si mesmo) reside sempre em uma raiz moral, isto é, a ideia de

298
“The most formidable of them – i. e. the greatest impediment to scientific progress – have always been those
that had become connected with the idea of the Divinity, so that each step onward signified displacing this idea
to a greater distance and to contemporaries could only appear in terms of blasphemy.‖ (Jones, 1959, p. 206)
299
Jones o conta no próprio artigo (―The inferiority complexo f the Welsh‖, publicado nos Essays, 1974)
300
―Now what is meant by the expression. ‗inferiority complex‘? (...) that the person concerned has an undue
tendency to compare himself unfavourably with other people, to despise himself, to be oppressed by a sense of
inferiority. These feeling arise from within and have little or nothing to do with any actual inferiority even when
they appear to be connected with this.‖ (1974, p. 129, vol 1)
133

ter feito algo de errado ou de condenável: ―Talvez a coisa mais interessante que a psicanálise
descobriu sobre esses sentimentos peculiares é que, qualquer que seja a forma em que se
mostram, seja em referência a questões físicas, intelectuais ou outras, sempre procedem de
uma fonte: de um sentimento de inferioridade moral. [grifo no original] Assim, inferioridade
significa culpa [grifo meu]‖. 301
O passo seguinte no raciocínio de Jones é a correlação com a religiosidade:

Infortúnio e sofrimento muitas vezes têm o efeito de evocar um sentimento de


inferioridade, mas não da maneira simples que se poderia imaginar. Não é que o
homem derrotado se sinta inferior por ter sido derrotado, mas se sentirá inferior se
pensa que a derrota foi culpa sua, por exemplo, se pensa que seus infortúnios são
uma visita do Todo-Poderoso como uma expressão de Sua ira contra seus pecados.
Segue-se que as pessoas de mentalidade religiosa são mais propensas a sofrer deste
modo do que outras, pois interpretam o infortúnio em termos morais. (...) Seria de
esperar, portanto, que um povo de mentalidade religiosa cuja história seja de derrota
e sofrimento seja mais propenso que outros a desenvolver um sentimento nacional
de inferioridade.302

Aí estaria, portanto, a chave de seu artigo: a compreensão do sentimento de


inferioridade de uma nação específica (como os galeses) teria correlação com a força da
devoção religiosa daquele povo: quanto mais religioso, maior o sentimento de inferioridade.
Alguns anos antes, em 1926, Jones já havia estabelecido uma relação entre o
sentimento de inferioridade e o sentimento religioso, em seu ―Psicologia da religião‖ (1926).
Segundo o autor seriam cinco os aspectos do ―problema da religião‖ (estamos tomando
apenas trechos aqui, Jones discorre um pouco sobre cada item):

1) ― (...) relação com o sobrenatural‖


2) ―O esforço para lidar com os vários problemas em torno da morte‖
3) ―A busca e conservação de valores‖
4) ―Uma associação constante com os ideais de ética e moralidade‖

301
―Perhaps the most interesting thing psycho-analysis has discovered about these particular feeling is that,
whatever the form may be in which they show themselves whether in reference to physical, intellectual, or any
other matters, they always proceed from one source, and that is from a sense of moral [grifo no original]
inferiority. (…) thus inferiority means guiltiness [grifo meu]‖ (1974, p. 130-131, vol 1)
302
―Misfortune and suffering often have the effect of evoking a sense of inferiority, but not in the simple way
one might imagine. It is not that the defeated man feels inferior because he has been defeated, but he will feel
inferior if he thinks that the defeat has been his fault, for instance, if he thinks that his misfortunes are a visitation
from the Almighty as an expression of His wrath at his sins. It follows that religiously minded persons are more
prone to suffer in this way than others, for they interpret misfortune in moral terms. (…) One would expect,
therefore, that a religiously minded people whose history is one of defeat and suffering will be more prone than
others to develop a national sense of inferiority‖ (1974, p. 131, vol 1)
134

5) ―A conexão entre religião e o senso de inadequação para lidar com as


303
dificuldades da vida

Em seu estudo, Jones fará considerações sobre os aspectos, e faz menção a vários
outros estudiosos (inclusive Freud, claro). O autor acaba por sintetizar em uma frase as bases
psíquicas para o sentimento religioso: ―A vida religiosa representa uma dramatização dos
sentimentos, do medo e da saudade, que se originam da relação da criança com seus pais,
projetada no cosmos.‖ (1934, p. 15)
Para a nossa discussão, é especialmente relevante o quinto aspecto, aquele no qual
Jones fala de um ―sentimento de inadequação em face das dificuldades da vida‖, pois nos
remete diretamente a uma sensação de insignificância diante dos demais.
Em síntese, o que Jones coloca é que apenas porque o indivíduo – psiquicamente,
a criança, diante dos pais – se sente inferior, que busca o pai (Deus) em seu auxílio: ―É, pois,
psicologicamente compreensível que todos os sentimentos de inferioridade, seja qual for o
domínio em que apareçam sempre podem ser mitigados, tratando-se seu ponto de partida com
meios religiosos; estar reconciliado com o pai significa o mesmo que alcançar sua assistência‖
(1934, p. 18)
É interessante notar aqui, que o esforço de Jones de destituir e/ou relativizar um
ente Todo-Poderoso pela força interpretativa da Psicanálise – ‗decupando‘ todos os seus
elementos - perpassa portanto várias esferas: a questão geracional (a relação entre avós e
netos e a fantasia de inversão de gerações), a identificação com Deus (Complexo de Deus) e
agora, a equivalência entre devoção religiosa e o sentimento de inferioridade.
Podemos afirmar que, de alguma forma, o tema do complexo de
inferioridade/superioridade e sua relação com o complexo paterno parece ser um fio condutor
entre as obras de Jones aqui selecionadas: de um lado o pai, o Deus, e o avô e neto (ambos
contra o pai) – e, do outro, o filho, o devoto e todos os povos religiosos (e seu sentimento de
inferioridade).
Esse eixo temático nas reflexões de Jones também irá se revelar na forma como
ele se posicionava em relação ao judaísmo.

303
―(1) (…) relation to the supernatural (…) (2) The effort to cope with the various problems surrounding death
(...) (3) The pursuit and conservation of values (…) (4) A constant association with the ideals of ethics and
morality (5) The connection between religion and the sense of inadequacy in coping with the difficulties of life‖
(1974, p. 191-2.)
135

Como vimos em seu ―The inferiority complex of the Welsh‖ (1929), Jones acaba
por concluir que o sentimento de inferioridade de alguns povos não tem correlação com seus
infortúnios, e sim com o sentimento religioso que atribui uma culpa própria (moral) a essas
desventuras. Para Jones, esses povos são, sobretudo, galeses e judeus: ―Existem poucas
nações a quem essas observações se aplicam mais impressionantemente do que os galeses e os
judeus, dois povos que têm muito em comum em sua psicologia, bem como notáveis
diferenças.‖ 304
De fato, não apenas em sua obra mas também em sua vida Jones dá algumas
mostras de identificação entre o povo galês – si mesmo – e o povo judaico.
Sabemos que a questão étnica e religiosa foi significativa no primeiro contato
entre Freud e Jones e a receptividade a Jones na comunidade psicanalítica foi de certa forma
marcada – para o bem ou para o mau - por sua origem galesa e não judia (o próprio o aponta
em sua autobiografia).
Na época em que Jones e Freud se conhecem, em 1908, o ―príncipe-herdeiro‖ de
Freud era Carl Jung, e a escolha deste posto para o discípulo levava em conta não apenas a
afeição pessoal do mestre por ele, mas o fato de Jung ser cristão: como já vimos, Freud estava
nessa época bastante preocupado pelo fato de a Psicanálise estar predominantemente nas
mãos de um círculo judaico. 305
Assim como Jung, Jones também não era judeu, e a sua origem galesa poderia
significar uma possibilidade de expansão da Psicanálise no mundo anglo-saxão, além de uma
garantia de que a Psicanálise não seria uma área do conhecimento restrita a um grupo seleto
(judaico). Em carta a Jung, Freud afirma (sobre Jones): ―Seu inglês306 me interessa devido à

304
―There are few nations to whom these remarks apply more strikingly than the Welsh and the Jews, two
peoples who have a great deal in common in their psychology as well as notable differences. (1974, p. 131)
305
Maddox, 2006, p. 51-53. Os seguintes trechos da biografia deixam isso bastante claro: ―Freud já havia
decidido que o médico suíço e alto seria seu (...) 'filho e herdeiro'. Agradava particularmente a Freud o fato de
que Jung era cristão. Freud estava infeliz porque esta "Causa" estava predominantemente nas mãos dos judeus.‖
(2006, p. 53) Após conhecer Jones, temos então que ―Freud não precisava ser convencido nem dos méritos nem
de uma convocação de Jones. Ele já havia percebido a utilidade potencial de Jones e disse a Jung que "Seu inglês
me agrada por causa de sua nacionalidade.‘‖ (2006, p. 56) e mais tarde: ―Quer Jones percebesse ou não, a partir
desse momento ele era o suplente de Jung como o ‗não-judeu‘ de Freud.‖ (2006, p. 63) ―Freud had already
decided on the tall Swiss doctor as his (…) ‗son and heir‘. Particularly pleasing to Freud was that Jung was a
Christian. Freud was unhappy that this ‗Cause‘ was predominantly in the hands of Jews. (…) (2006, p. 53)
―Freud needed no persuading of the merits either of a convocation of Jones. He had already perceived Jones‘s
potential usefulness, and told Jung that ‗Your Englishman appeals to me because of his nationality.‘‖ ―Whether
Jones realized it or not, from that moment on he was Jung‘s understudy as Freud‘s Gentile.‖ (2006, p. 63)
Steiner concorda com a ideia de Jones como substituto de Jung, pois comenta que Freud chega a confundir um
com outro (1993, p. xlv)
306
O ―inglês‖ a que Freud se refere é Ernest Jones – na realidade galês.
136

nacionalidade dele; acredito que os ingleses, familiarizando-se com nossas ideias, não mais as
abandonarão.‖ 307
Anos mais tarde, o próprio Jones reconheceria que sua condição de ―estrangeiro‖
poderia favorecê-lo em certa medida: na escrita da biografia de Freud, afirma que o fato de
não ser ―um deles‖ garantiria – supostamente – uma ―isenção‖ e objetividade: ―Talvez a
ocorrência de ser eu o único estrangeiro nesse círculo tenha-me dado a oportunidade de
exercitar algum grau de maior objetividade do que aconteceria com os outros‖ 308
Mezan (2014) nos explica os meandros desse cenário:

havia rivalidades religiosas: o grupo inicial, formado por residentes em Viena,


ressentia-se do apreço que Freud demonstrava pelos ‗estrangeiros‘, e essa situação
era ainda mais complicada pela circunstância de, à exceção de Jung e de Jones,
serem judeus todos os discípulos do mestre. Por estranho que isso possa parecer aos
nossos olhos, esse fato é da maior relevância para captar o essencial das disputas que
logo irromperiam entre os primeiros psicanalistas.
Já falamos do antissemitismo vigente na Europa Central naquela época, e sabemos
que isso não era pura fantasia defensiva: apenas algumas décadas depois, o nazismo
aniquilaria fisicamente milhões de judeus pelo simples fato de o serem. No início do
século XX, esta consequência era ainda impensável, mas Freud temia que, se a
psicanálise ficasse estigmatizada como Judensache – coisa de judeus -, a oposição a
ela acabaria por se tornar insuperável, e todo o seu trabalho teria sido em vão.309

Talvez as supostas vantagens de um não judeu na comunidade psicanalítica


expliquem o entusiasmo de Jung ao contar para Freud que havia conhecido um ―galês muito
inteligente‖ na Conferência de Amsterdam, em setembro de 1907: ―Passo agora a uma grande
surpresa: no contingente inglês havia um jovem de Londres, o Dr. Jones (um celta do País de
Gales!), que conhece muito bem suas obras e já pratica a psicanálise. Provavelmente irá
visitá-lo mais tarde. Ele é muito inteligente e poderia prestar uma valiosa ajuda.‖ 310
A resposta de Freud foi: ―O celta que o surpreendeu decerto não será o único;
saberemos da existência de partidários inesperados antes que o ano se encerre, e outros se
incorporarão à sua florescente escola.‖311
Em outra troca de cartas ficará claro que Freud mantinha uma espécie de
desconfiança pelo ―estrangeirismo‖ de Jones: ―Sendo um celta, é inevitável que ele não seja
inteiramente acessível a nós, o homem teutônico e o mediterrâneo.‖ 312

307
Carta de 08.12.1907 in Correspondência Freud-Jung, p. 136. Citada por Maddox, 2006, p. 56.
308
1970, vol I, p. 32.
309
Mezan, 2014, p. 217-218.
310
Carta de 11.09.1907 in Correspondência Freud-Jung, p. 121. Citada por Maddox, 2006, p. 51.
311
Carta de 19.12.1907 in Correspondência Freud-Jung, p. 123. Citada por Steiner, 1993.
312
Carta de 18.07.1908 in Correspondência Freud-Jung, p. 193. Citado por Maddox, 2006, p. 7.
137

Tudo indica que Freud não estava lá muito aberto a outros estrangeiros – já tinha
seu príncipe cristão- Jung - ao seu lado e nele confiava a garantia de expandir a Psicanálise
para o mundo não judaico.313
Já vimos como, do ponto de vista teórico, Jones teceu uma equivalência entre
galeses e judeus – unidos pelo sentimento de inferioridade. 314
Em sua vida pessoal e na relação com Freud essa equivalência ―racial‖ também irá
se fazer notar, o que de certa forma fazia com que Jones se sentisse ―em casa‖ entre os judeus.
Na biografia do mestre Jones comenta: ―Éramos todos livres-pensadores, e por isso não havia
barreiras religiosas entre nós. Não me lembro tampouco de ter encontrado qualquer tipo de
dificuldade por ser o único não judeu do círculo. Vindo, também eu, de uma raça oprimida,
era para mim fácil identificar-me com a visão judaica, que vários anos de intimidade me
habilitaram a absorver em alto grau.‖315 (Grifo meu) 316
De fato, ―durante toda a sua vida adulta, acreditou na semelhança entre os galeses
e os judeus, e convenceu-se de que era um judeu honorário - ou, na piada que gostava de fazer

313
Veszy-Wagner (1968) interpreta: ―Pelo menos em um nível inconsciente, Jones deve ter confiado [na ideia]
de substituir Jung na afeição de Freud após o afastamento daquele. Curiosamente, as coisas não aconteceram
assim: em vez disso, isto serviu para acentuar a desconfiança de Freud (sempre imperceptivelmente presente)
com relação à amizade dos não-judeus e, temporariamente, levou-o a prestar mais atenção nos detratores de
Jones dentro de seu círculo, mas as coisas não chegaram ao ponto de arrefecer a amizade profundamente
enraizada que os unia.‖ (1968, p. 16) ―Por lo menos en un nível inconsciente, Jones debe haber confiado em
reemplazar a Jung en el afecto de Freud después del alejamiento de aquél. Por extraño que parezca, las cosas no
sucedieron así: antes bien, ello sirvió para acentuar la desconfianza de Freud (simpre imperceptiblemente
presente) com respecto a la amistad de los no judíos y, temporariamente, lo llevó a prestar más atención a los
detractores de Jones dentro de su círculo, aunque las cosas no llegaron al punto de enfriar la amistad
profundamente arraigada que los unía.‖ (1968, p. 16)
314
O interesse de Jones pelo complexo de inferioridade aparece também em trabalhos menores. No minúsculo
artigo (de uma página apenas) ―Inverse (Phallic) Inferiority‖ de 1930 (International Journal of Psycho-
Analysis, 11:232-233), Jones traz casos de pacientes seus que manifestavam complexo de inferioridade –
segundo o galês, um complexo ―invertido‖, uma vez que geralmente associamos inferioridade a traços diminutos
ou insuficientes – e há casos (como de seus pacientes) em que a inferioridade era associada a características de
grandeza ou excesso. Um de seus pacientes tinha, por exemplo, um peitoral peludo demais. (É interessante: o
tamanho diminuto do próprio artigo parece ser coerente com seu conteúdo: Jones, com um artigo em miniatura,
discorre sobre a inferioridade fálica!) A esse propósito – tamanhos diminutos - tudo indica que o próprio Jones
sofreu bullying na infância e adolescência por sua baixa estatura (A biógrafa Maddox também o deduz, a partir
do relato de Jones em sua autobiografia). Medindo não mais do que 1,62m já adulto, Jones conta em sua
autobiografia que sua escola o preparou para sua carreira em psicologia e psiquiatria ensinando-o ―the depths of
cruelty and of obscenity to which human beings can descend.‖(1959, p.49) ―as profundezas da crueldade e da
obscenidade a que os seres humanos podem descer.‖
315
1970, Vol II, p. 503. Veszy-Wagner (1968) faz uma alusão a este trecho em seu texto.
316
Esse pertencimento a uma ―raça oprimida‖, ou, segundo o próprio autor, que sofre com complexo de
inferioridade, demonstra o caráter quase explicitamente autobiográfico do artigo com que estamos trabalhando.
Veszy-Wagner (1968) comenta sobre essa identificação de Jones com um ―povo oprimido‖ e chega a afirmar:
―Seu trabalho ‗The inferiority complex of the Welsh‘ é de índole ainda mais pessoal.‖ ―Su trabajo ‗The
inferiotity complex of the Welsh‘ es de índole aun más personal.‖ (1968, p. 74)
138

sobre si mesmo, um Shabbes-Goy: um não judeu que faz o trabalho que judeus não podem
fazer no Sabbath.‖ 317
Para Veszy-Wagner (1968), o esforço de Jones para acolher refugiados se
relaciona não só com um sentimento de obrigação com a Causa, mas também com sua atitude
humanitária e ―filosemita‖. Podemos compreender assim o ―salvamento‖ não apenas de Freud
mas de muitos analistas de origem judaica na ocasião da Segunda Guerra como um
coroamento não apenas da atitude de proteção paternal característica de Jones como também
de sua simpatia pela comunidade judaica.318
A biógrafa Maddox319 vai dedicar parte de um capítulo para nos revelar vários
aspectos de como Jones se identificava com a comunidade judaica: Jones havia se casado,
como vimos, com uma judia, Kitty, e parecia se orgulhar de ter filhos meio-judeus. Contando
as novidades de sua filha Gwenith (um nome galês), salienta: ―A criança (...) tem um
maravilhoso sorriso judaico.‖ 320
Não é difícil aqui interpretarmos tal esforço de Jones como o desejo não apenas de
pertencimento como, principalmente, a tentativa de identificação com o mestre, com o qual
mantinha forte idealização paterna. ―Vejam como sou parecido com papai, sou judeu como
ele e também tenho filhos judeus‖.
A identificação de Jones com os judeus tinha um caráter duplo, uma vez que ao
mesmo tempo percebia similitudes nas fragilidades dos dois povos – galeses e judeus, como o
complexo de inferioridade – mas também enxergava pontos em comum nas suas qualidades.
Em sua autobiografia, Free associations (1959), Jones chega a comentar que sua ―mente
celta‖ tem afinidade com a comunidade judaica e mantém com ela uma camaradagem
inclusive contra ―outros‖ povos – como os anglo-saxões:

Quaisquer outras características que os judeus possam ter, boas ou não, ninguém que
os conheça bem pode negar que são pessoalmente interessantes. (...) Minha mente
celta, um pouco impaciente com a placidez, a complacência e a lentidão da
imaginação anglo-saxã, respondeu bem a essas qualidades e esta foi talvez a
principal razão pela qual eu apreciei a sociedade judaica.321

317
―all his adult life he believed in the similarity between the Welsh and the Jews, and convinced himself that he
was an honorary Jew – or, in the joke he like to make about himself, a Shabbes-Goy: a Gentile who does the
work Jews are not allowed to perform on the Sabbath.‖ (Maddox, 2006, p. 3)
318
Veszy-Wagner, 1968, p. 76-77.
319
Capítulo 12, ―Name-calling‖ (2006, p. 165)
320
―The child (...) has a wonderful Jewish smile‖ (Carta de 21.05.1921 in Freud-Jones correspondence, p. 425.
Citado por Maddox, 2006, p. 165).
321
―whatever other qualities Jews may possess, likable or the reverse, no one who knows them well can deny
that are personally interesting. (…) My Celtic mind, a little impatient of Anglo-Saxon placidity, complacency,
and slowness of imagination, responded gratefully to these qualities, and it was perhaps the chief reason why I
enjoyed Jewish society‖. (1959, p. 211)
139

Em nossos dias, Adam Phillips (1993) teceu um comentário um tanto ácido sobre
este artigo de Jones: ―Aparentemente convencido da desimportância322 de ser Ernest - ele
escreveu um artigo famoso, "The Inferiority Complex of the Welsh", no qual os comparou de
forma não promissora com os judeus‖ 323
Aqui temos a impressão que o próprio Phillips também está convencido de uma
suposta ―desimportância‖ de Ernest Jones,324 e vai tecer não somente este mas vários
comentários críticos ao galês e destacar situações de desvantagem e desvalorização.
Embora não compartilhemos do que parece ser uma antipatia do autor pelo
psicanalista galês, está claro que a questão da própria valoração, da própria importância, era
de fato crucial em Jones – como estamos vendo ao longo da pesquisa -, e a questão de sentir-
se inferior, desimportante ou sem valor será recorrente na história deste personagem. Muitos
autores o notaram, além de Phillips: Griffin (2009), por exemplo, que escreveu uma resenha
crítica da biografia de Maddox, dá seu depoimento de leitura: ―Uma linha sugerindo os
sentimentos de inferioridade de Jones corre através de ‗Freud‘s Wizard‘ [a biografia descrita
por Maddox].‖ 325
No ano de 1912 Jones envia ao mestre sua obra sobre pesadelos (―On the
Nightmare‖) e, diante da resposta desencorajadora de Freud (o mestre admite não ter gostado
do trabalho), o galês responde: ―A saber, eu raramente me sinto satisfeito com meu
trabalho.‖326
Em seguida dirá que, embora esta então seja uma tendência (de não gostar do
próprio trabalho), ele gostou desta sua obra em particular e faz questão de comentar que as
palavras negativas do mestre o deixam triste, mas não o desencorajam, porque ele tem “uma
enorme autoconfiança”. É interessante aqui observar como uma afirmação enfática pode
levar à interpretação do seu contrário, e ao lermos a carta fica muito evidente o esforço de
Jones de convencer não só o mestre mas talvez também a si mesmo de que ele é seguro de si,
valoriza o próprio trabalho e está certo disso – mesmo que o mestre não tenha gostado. (No
entanto, logo adiante perguntará ao mestre como pode melhorar o seu livro, se o mestre tiver a
―bondade‖ de fazer comentários mais específicos ele ficaria muito grato, etc etc)

322
Na tradução em português da Companhia das Letras temos ―insignificância‖. (Phillips, 1998, p. 163)
323
―Apparently convinced of the unimportance of being Ernest – he wrote a famous paper, ‗The Inferiority
Complex of the Welsh‘, in which he compared them unpromisingly with the Jews‖ (Phillips, 1993, p. 9)
324
Este é inclusive o nome de seu texto, ao qual voltaremos mais adiante.
325
―A thread postulating Jones‘s feelings of inferiority runs through Freud‘s Wizard.‖ (Griffin, 2009, p. 1176)
326
―Namely I rarely feel satisfied with my work‖ (Carta de 30.01.1912 in Correspondência Freud-Jones, p. 130.
(Outro trecho desta carta foi citada por Maddox, 2006, p. 98).
140

Nem sempre, portanto, - por mais que se esforçasse -, Jones agradava Freud. A
identificação dos galeses com os judeus e o esforço de pertencimento de Jones neste último
grupo também nem sempre era eficaz para ter a ‗aceitação do pai‘. Maddox327 nos conta que
no auge da época turbulenta em que Anna Freud e Melanie Klein se digladiavam – e Jones,
por um lado, tentava apaziguar a situação mas por outro manifestava simpatia pelo
pensamento kleiniano – Freud não poderia estar mais desgostoso com o galês. Possesso,
atacou a sua origem étnica em uma carta a Max Eitingon - lembremos que nessa época
Melanie Klein representava a escola de Londres e Anna, a de Viena. Todos os britânicos –
ingleses, galeses - eram portanto, para Freud, todos aqueles que estavam diretamente atacando
sua rebenta. Freud dispara: ―Não acredito que Jones seja conscientemente mal-intencionado;
mas é uma pessoa desagradável, que quer dominar, irritar e agitar, e para tal sua
desonestidade galesa lhe cai bem (‗o Mentiroso de Gales‘)‖ 328
A biógrafa de Jones comentaria, a esse respeito, que tanto Jones quanto Freud não
estariam a salvo de fazer ataques de natureza ―racial‖. (Jones havia interpretado o complexo
de inferioridade dos galeses em seu artigo; Freud agora atacava Jones lembrando de sua
―raça‖.329) Jones estava ciente dessa ―desconfiança racial‖ de Freud e a explicita com todas as
letras em sua autobiografia.330 Jones afinal sabia que era uma pessoa de fora, um galês em um
grupo de psicanalistas de origem judaica - e inclusive não poupa os judeus de uma boa dose
de crítica: segundo o autor, o ―problema dos judeus‖ é se considerarem o ―povo escolhido de
Deus‖ e de projetaram uma espécie de ―superioridade intelectual‖.331 (Poderíamos pensar,
com Jones, que ele estaria identificando toda a comunidade judaica com um grande
―Complexo de Deus‖ comunitário?)
Na realidade Jones fará algo semelhante – isto é, estabelecer os limites de um
pequeno grupo ―seleto‖, escolhido a dedo, superior aos demais - ,em sua atuação de liderança
e organização do movimento psicanalítico: o ―Comitê secreto‖.
Jones era tão cuidadoso em garantir a lealdade de ideias dos discípulos em relação
ao mestre que em uma carta de 1911 chega a enviar para Freud uma pequena lista
classificando aqueles que tinham entendido bem as teorias freudianas (e eram fiéis a ela) e
citando os que não - e em ordem:

327
2006, Capítulo 14.
328
Carta de 27.11.1927, de S. Freud a M. Eitingon. Citada por Young-Bruehl, 1992, p. 152-3. Maddox (2006)
cita esta carta na p. 195.
329
Maddox, 2006, p. 195.
330
1959, p. 213-214.
331
1959, p. 210.
141

Concluí dos últimos escritos de Stekel que ele foi contaminado por Adler. Quanto
mais eu penso em Adler, mais obviamente unilaterais seus pensamentos se tornam
para mim. Como o senhor diz, uma tal falta de julgamento deve refletir fatores
pessoais fortes. Seria útil saber quem o senhor considera compreender melhor seus
pensamentos. Será que a seguinte ordem está muito errada? Jung, Ferenczi, Rank,
Maeder, Riklin. 332

Interessante é notar que o próprio Jones não está na lista, possivelmente porque
ele se consideraria tão aderido a Freud e a suas teorias que nem deve estar submetido à
avaliação: estaria acima de qualquer suspeita, ao lado do mestre, colado a suas ideias; juntos
ambos julgariam os demais. (Os criticados na carta, Adler e Stekel, também não aparecem na
listinha – talvez por não terem entendido nada da teoria freudiana, segundo Jones, e nem
mereçam fazer parte da classificação, nem mesmo no último lugar).333
Por outro lado, podemos interpretar a ausência de Jones em sua própria lista de
―psicanalistas que entenderam a teoria freudiana‖ como um traço de humildade – Jones talvez
preferisse não arriscar se incluir na própria lista que criou; deixaria que outros (e
principalmente o mestre) julgassem o seu próprio ―grau de aptidão‖ para a psicanálise
freudiana.
Seja por um motivo ou por outro – isto é, soberba (juiz julgador ao lado do rei) ou
modéstia excessiva (servo que não ousa se incluir na lista dos eleitos)– fato é que a ausência
de Jones na lista é notada pelo mestre - que faz questão de incluí-lo, e em lugar de honra.
Gentilmente Freud responde:

332
―I gathered from Stekel‘s last writings that he had been infected by Adler. The more I think of Adler, the
more obviously one-sided his views become to me. As you say, such a lack of judgment must be constellated by
strong personal factors. It would be valuable to know who you consider best understand your views. Would the
following order be far wrong? Jung, Ferenczi, Rank, Maeder, Riklin.‖ (carta de 17.03.1911 in Freud-Jones
correspondence, p.97) Outros trechos desta carta foi citado por Maddox, 2006, p. 92-93
333
Jones parece adotar com facilidade o posto de juiz, emitindo sentenças sobre as capacidades dos colegas e
seus potenciais de lealdade ou deslealdade. A referida carta termina com mais um julgamento (e uma previsão),
o de Morton Prince (editor do Journal of Abnormal Psychology): Jones afirma, categórico, ter certeza que Prince
jamais entenderá a Psicanálise. Sobre essa carta Maddox salientará a frase corrosiva de Jones: ―[Prince is] the pet
of Boston‖ (2006, p.93) (Carta de 17.03.1911 in Freud-Jones correspondence, p. 98) Esta é a mesma carta, a
propósito, em que Jones adverte o mestre sobre a má reputação da SPR- Society of Psychical Research.
Phillips também notou essa tendência julgadora de Jones ao analisar sua correspondência com o mestre e
observou, corretamente, que às vezes Freud retrucava as ―maledicências‖ de Jones em relação aos outros
corrigindo e apontando os defeitos do próprio Jones: ―Nessas cartas, Jones frequentemente parece estar enviando
pessoas ao diretor da escola com uma anotação ruim (‗Putnam é incorrigível (...)‘ E o diretor pode ser bastante
rigoroso: ‗Também fiquei triste ao saber que você arrumou novas dificuldades com uma mulher‘‖ (Phillips,
1998,p. 173)
142

―Sobre a lista dos que melhor entenderam meus pensamentos, como pode estar
completa sem a sua própria pessoa em primeiríssimo lugar?‖334

V.3 Fanatismo e idolatria

Traçando um paralelo com seu primeiro artigo psicanalítico (e curiosamente um


dos mais autorais), a ―Racionalização‖, talvez não seja muito arriscado dizer que Jones parece
trazer, ao longo de sua obra, traços de sua própria racionalização como mecanismo de defesa
contra tendências de subserviência, fanatismo ―beato‖ (pela Psicanálise) e subordinação
exageradamente humilde diante do Mestre (Deus, Pai, Rei) . Isto é: sua aversão à religião e
esforço de escrutinar os impulsos inconscientes por detrás da devoção religiosa (com uma
cortante interpretação psicanalítica) poderiam ser interpretados, a julgar por algumas de suas
características e relacionamento com Freud, como traços defensivos contra suas próprias
tendências de devoção.
Vários autores corroboram esta leitura enxergando traços ―religiosos‖ ou ao
menos uma admiração excessiva em Jones– sendo que um deles é o próprio Freud: ―Ele é um
fanático‖335
Bem lembramos, quando estudamos a sua biografia, que Jones foi taxado como
um ―devoto‖ em pelo menos duas ocasiões: a primeira vez, por Prince, que teve esta reação
após Jones defender Freud e a psicanálise em um artigo-resposta aos ataques do americano; e,
anos mais tarde, por críticos (como Hampshire) da biografia que Jones escreveu de Freud.
Maddox nos conta, a esse respeito: ―[Jones] não gostou de Hampshire ‗tomá-lo por crédulo‘ e
por achar que a psicanálise era mais um culto do que uma ciência. Em sua crítica, intitulada
‗Freud: o nascimento de um credo‘, Hampshire disse que nas páginas de Jones ele não pode
detectar ‗nenhuma sugestão de que a teoria freudiana seja uma entre uma série de possíveis
teorias‘‖ 336
O que o crítico Hampshire está colocando é, então, que Jones não relativiza nem
Freud nem a sua criação – a Psicanálise. Em nossos dias, também Dr Hinshelwood aponta

334
―As for the list of best understanding my views, can it be complete without including your own person very
far in the front?‖ (carta de 14.05.1911 in Freud-Jones correspondence, p.101) Outros trechos desta carta foi
citado por Maddox, 2006, p. 92-3
335
Carta de 03.05.1908 in Correspondência Freud-Jung, p. 175. Citada em Maddox, 2006, p.63.
336
―[Jones] did not like Hampshire taking him to task for gullibility, nor his finding psychoanalysis more a cult
than a science. In his review, headlined ‗Freud: the Birth of a Creed‘, Hampshire said that in Jones‘s pages he
could detect ‗no suggestion that Freudian theory is one among a set of possible theories‘.‖ Maddox, 2006, p. 272.
143

que, embora a biografia escrita por Jones tenha valor pelo fato de ser pessoal, ―outras
biografias já foram escritas, que idealizam menos Freud‖.337

Outro autor que escreveu uma crítica mordaz a Jones foi o psicanalista alemão
Erich Fromm (1978), que o acusava de idolatria e adoração à Freud, bem como de taxar de
loucos todos os que ousassem discordar do mestre (como Rank e Ferenczi, por exemplo). Em
seu capítulo ―Psicanálise: Ciência ou Linha partidária?‖ parte da obra ―O Dogma de Cristo e
outros ensaios sobre Religião, Psicologia e Cultura‖ (1978) - no qual trabalhava justamente
sobre a questão do dogmatismo e da religião-, Fromm alfineta:

A psicanálise freudiana é um tratamento para a cura da neurose e uma teoria


científica sobre a natureza do homem - e todos sabem disso. O que se sabe menos é
que ela constitui também um ―movimento‖, com uma organização internacional de
linhas rigorosamente hierárquicas, regras estritas para a inscrição e que por muitos
anos foi dirigida por um comitê secreto, constituído de Freud e mais seis outros.
Esse movimento revelou, ocasionalmente e através de alguns de seus representantes,
um fanatismo habitualmente só encontrado nas burocracias religiosas e políticas. (...)
Desejo, primeiramente, demonstrar algumas expressões mais drásticas e infelizes
desse espírito de ‗linha partidária‘, em relação à biografia que Ernest Jones escreveu
de Freud. Isso me parece indicado por duas razões: primeiro, o fanatismo partidário
de Jones levou-o a grotescos ataques póstumos a homens que discordaram de Freud;
e, segundo, muitos comentaristas do livro aceitaram seus dados sem crítica ou
indagação.
A ‗revisão‘ que Jones faz da história introduz na ciência um método que até então só
esperávamos encontrar na ‗história‘ stalinista. Os stalinistas chamam aos que
discordaram e se rebelaram de ‗traidores‘ e ‗espiões‘ do capitalismo. O Dr. Jones faz
o mesmo no âmbito psiquiátrico, afirmando que Rank e Ferenczi, os dois homens
mais ligados a Freud e que mais tarde discordaram dele sob certos aspectos, foram
psicóticos durante muitos anos. A sugestão é de que somente sua insanidade lhes
explica o crime de discordarem de Freud e, no caso de Ferenczi, de que as queixas
contra o tratamento áspero e intolerante que lhe deu Freud são provas, ipso facto, de
psicose. (...) Jones supõe, aparentemente, que somente uma mente enferma pode
acusar Freud de autoritarismo e hostilidade.(...) Surge, agora, uma indagação: como
pôde a Psicanálise, uma teoria e uma terapêutica, transformar-se num movimento
fanático desse tipo?338

Lilla Veszy-Wagner (1968) também enxerga uma profunda admiração de Jones


pelo mestre:339 ―O próprio Jones aceitava sem reservas a grandeza de Freud. Em 1910 já o

337
―other biographies have since been written which are less idealising of Freud.‖ Consultar Anexos.
338
Fromm, 1978, p. 105-111.
339
No entanto, Veszy-Wagner discordará de um perfil jonesiano propriamente ―adulador‖ – como a autora
menciona ser o pensamento de Erich Fromm. (Winnicott (1968) diria o mesmo: que Jones não idealizava Freud.)
Além de caracterizar Jones como um psicanalista que não tolerava que a Psicanálise fosse como um ―culto‖ (p.
55) - e que conseguiu um equilíbrio na relação com o mestre, sendo inclusive capaz de criticá-lo (p. 55) -,
também afirmará, sobre a relação de Jones com os gênios (tema que interessou muito o galês ao longo de toda a
vida), que justamente pelo fato de ser, ele mesmo, muito criativo, não teria motivos para idolatrá-los (Freud
inclusive): ―Jones sentia uma profunda admiração pela criatividade, o traço que talvez mais tenha apreciado no
gênio, especialmente em Freud (...) Como a originalidade era precisamente um dos seus traços mais notáveis, sua
144

havia aclamado como ‗o Darwin da mente‘, e em 1918 declarou que a coisa mais importante
que Freud nos ensinou foi enfrentar novas verdades e defender a verdade acima de qualquer
340
outra consideração.‖ A mesma autora também colocará em destaque o fato de que Jones
prestava ―homenagem ao gênio de Freud‖, mesmo quando discordava de alguns de seus
conceitos.341. (Como estamos estudando, Jones não levou seu posicionamento pró-Klein a um
nível que levasse a ameaçar a interlocução com o mestre).
Por fim, Adam Phillips (1998), que analisou a correspondência completa entre
Jones e Freud, conclui: ―É provável que Jones tenha feito mais que ninguém nos primeiros
anos da psicanálise para promover e apoiar a obra de Freud. E sua visão manifesta de Freud
nessas cartas é constantemente admiradora, por vezes cativante e ocasionalmente idólatra (‗o
que tornou minha vida digna de ser vivida, minha relação com você e sua obra‖).‖ 342
De fato, são abundantes as evidências da extrema afeição, admiração e respeito de
Jones em relação a Freud, seja em suas cartas ao mestre, seja em suas atitudes (como vimos,
por exemplo, em seu gesto de ―salvar‖ Freud da guerra), seja em seus escritos.
Em sua autobiografia Jones afirmará, convicto, que depois que descobriu (quando
criança) que seu pai não era onisciente, teve uma reação dupla de triunfo e de ressentimento
(inclusive consigo mesmo, por ter sido enganado) e que, depois desse episódio, isso nunca

avaliação de pessoas dotadas de gênio nunca foi aduladora.‖ (Veszy-Wagner, 1968, p. 44) ―Jones sentía
profunda admiración por la creatividad, el rasgo que quizá más apreciaba em el gênio, sobre todo em Freud (...)
Puesto que la originalidade era precisamente uno de sus rasgos más notables, su evaluación de las personas
dotadas de gênio nunca se hizo aduladora‖ (Veszy-Wagner, 1968, p. 44) Coloco esta sua análise em questão,
porém. Pela minha leitura, Jones parecia combinar, por um lado, traços de fanatismo (adulação) e, por outro, um
forte esforço de destituição (dos gênios). (Discutirei estas ideias mais adiante.) Isto não invalida, obviamente, a
originalidade de Jones que a autora aponta – e com a qual estou de acordo – mas também tenho ressalvas sobre a
conexão imediata e direta que ela estabelece entre estes traços jonesianos (isto é, como se ―quem fosse original
necessariamente jamais adulasse os outros‖). O psiquismo humano não tem uma lógica cartesiana e
testemunhamos até no cotidiano diversos exemplos de pessoas com forte criatividade que estabelecem relações
sadomasoquistas, de servilidade, adulação, etc com outrem.
340
―Jones mismo aceptaba sin reservas la grandeza de Freud. En 1910 ya lo había aclamado como ‗el Darwin de
la mente‘, y el 1918 afirmó que lo más importante que Freud nos ha enseñado es a enfrentar las nuevas verdades
y defender la verdade por encima de cualquier otra consideración.‖ (1968, p. 59) A autora também fará a
interessante colocação que o ―ethos subjetivo de la biografia de Jones sólo puede comprenderse a través de
ciertos passajes de ‗The God Complex‘‖. Não é nosso intuito aqui nos alongarmos nesse comentário, - até
porque a biografia de Freud não é um de nossos textos de análise – mas é importante dizer que a autora em
seguida irá desfilar características da biografia de Freud escrita por Jones, deixando portanto uma ambiguidade
grande no texto: ao dizer ―biografia de Jones‖ não fica claro se está mencionando sua autobiografia ou aquela
que escreveu sobre o mestre (entendemos como sendo a do mestre, já que o nome deste tópico em seu texto é
―Freud e sua biografia‖ e além disso a autora costuma usar o termo ―autobiografia‖ para se referir àquela de
Jones). De qualquer modo, a ambiguidade não passou despercebida em minha leitura e a própria autora a seguir
nos contará que Jones considerava a biografia de Freud como parte de sua própria (!) – e que ela mesma
enxerga um valor autobiográfico na biografia de Freud. - Então, nesse sentido (se há tanto fusionamento), tanto
faz considerarmos uma ou outra. (1968, p. 60) (Maddox também dirá que, como Jones colocou muito de si na
biografia de Freud – e por isso não há tanto problema em sua autobiografia estar incompleta). (2006, p. 282)
341
1968, p. 66.
342
Phillips, 1998, p. 166-167. (Ainda assim o autor localizou algumas cartas em que Jones discorda de Freud,
e/ou se opõe a ele).
145

mais aconteceria novamente: mesmo diante de homens muito admirados, como Freud, ele
sempre manteria a independência.343 Novamente temos aqui uma afirmação que parece
colocar em evidência o seu contrário, pois chama a atenção do leitor que Jones faça questão
de tecer este comentário. Talvez ciente de que sua autobiografia tornava visível uma espécie
de adoração ao mestre - que desejava não ter -, é como se o galês quisesse de antemão
prevenir o leitor que aquilo que está percebendo na leitura (essa adoração) não é verdade, o
leitor se enganou - e que ele tem como ―prová-lo‖.
Veszy-Wagner, que conheceu Jones pessoalmente, chega a ponderar se uma
característica que o galês ―diagnosticou‖ em Freud porventura não diria respeito a ele mesmo:

Jones afirmou a respeito de Freud: ‗Pode-se imaginar se sua independência


pronunciada não se desenvolveu, em parte, como uma reação a certas propensões
iniciais‘. Jones pensava que, neste caso, a reação de Freud foi dirigida contra sua
credulidade e sugestionabilidade. Pode-se perguntar se Jones não percebeu isso com
tanta clareza porque este conflito, devido a uma semelhança interna, existia também
em seu próprio caráter. Jones sempre teve que lutar para afirmar sua independência,
e suspeito que sua bondade encantadora, bem como o seu otimismo, que acredito
que faltava em Freud, deve tê-lo feito cair em muitas armadilhas durante sua vida.344

As citações a Freud são numerosas em seus textos, e Jones frequentemente parte


de alguma reflexão ou texto freudiano para encadear seus pensamentos a partir dali. Inclusive
a frase de abertura de seu artigo psicanalítico de estreia, ―Rationalisation in Everyday Life‖
(1908) é uma ode ao mestre:

Um dos resultados mais brilhantes das pesquisas do Professor Freud e um dos


pontos cardeais de sua teoria psicológica foi a demonstração de que uma série de
processos mentais deve sua origem a causas desconhecidas e insuspeitas pelo
indivíduo. Na minha opinião esta ideia aparentemente simples é uma das com maior
significado de longo alcance tanto para a psicologia como para as ciências.345

343
Jones, 1959, p. 158-159.
344
―Jones afirmó com respecto a Freud: ‗Cabría preguntarse si su pronunciada independência no se había
desarrollado, em parte, como uma reacción frente a ciertas propensiones tempranas.‘ Jones pensaba que, em este
caso, la reacción de Freud estaba dirigida contra su credulidade y la sugestionabilidad. Uno se pregunta si Jones
no percibió esto com tanta claridade porque esse conflito debido a uma similitude interna existía también em su
próprio carácter. Jones siempre tuvo que luchar para afirmar su independência, y sospecho que su encantadora
amabilidade, así como su optimismo, que creo faltaba em Freud, deben haberlo hecho caer em muchas trampas
durante su vida.‖ (Veszy-Wagner,1968, p. 13-14) A mesma autora comentaria que ―Jones sabia que tinha que
controlar seu mercurial entusiasmo por Freud, que era um problema para ele durante toda a vida.‖ (―Jones sabía
que debía controlar seu mercurial entusiasmo por Freud, lo cual constituyó para él um problema durante toda su
vida‖) e que talvez não tivesse elaborado tão bem sua ―tendência ao culto do herói‖, o que, segundo a autora, a
própria associação referente ao Comitê Secreto (Carlos Magno e seus paladinos) – entre outros exemplos que dá
no texto - revela. (1968, p. 62)
345
―One of the most brilliant results of Professor Freud's researches, and one of the cardinal points of his
psychological theory, has been the demonstration that a number of mental processes owe their origin to causes
unknown to and unsuspected by the individual.(…) In my opinion this apparently simple idea is one of most far-
reaching significance both to psychology and to the sciences‖ (1938, p. 1)
146

A dedicatória da biografia de Freud não fica atrás. Mesmo homenageando a filha


de Freud, o aposto dado ao pai é digno de nota:346 ―A Anna Freud, Digna Filha de um Genitor
Imortal‖ (1970, Vol I, s/p).
Em uma carta ao mestre Jones chega a admitir a devoção que sente e taxa de
invejosos os comentários alheios: ―Quão bem o senhor sabe ligar as pessoas ao senhor com
laços de carinho e gratidão; muitos inimigos observaram com inveja a devoção que o senhor
inspira em seus seguidores, e a observação deles é bastante correta.‖347
Seria Jones um ―religioso‖ – ao menos em relação a Freud?348 Ainda que
possamos concluir afirmativamente, Jones parecia não ter consciência deste traço e segundo
Veszy-Wagner (1968) defendia um ateísmo como que pautado em motivações puramente
racionais: ―Até o fim de seus dias, Jones sustentava com firmeza que nem sua aversão à
religião e à superstição nem o seu ateísmo poderiam ser interpretados do ponto de vista
psicanalítico, porque tinham origem em fontes racionais.‖ 349
Ora, sabemos que, para um psicanalista, a rigor nada – nenhum evento, traço de
personalidade, obra cultural, enfim, nada – estaria supostamente ―fora‖ do campo

346
A propósito, como já vimos, sua própria obra ―Papers on Psychoanalisys‖(1938) é ―Dedicada ao Professor
Freud como um símbolo da gratidão do autor‖ (―Dedicated to Professor Freud as a token of the author‘s
gratitude‖) Citada por Maddox, 2006, p. 106.
347
―How well you understand to bind men to you with ties of affection and gratitude; many an enemy has
remarked with envy on the devotion you inspire in your followers, and their observation is quite correct.‖ Carta
de 30.01.1912 in Freud-Jones correspondence, p. 130. Outro trecho desta carta foi citado por Maddox, 2006, p.
98.
348
Se é que Jones idolatrava Freud, ao menos temos a segurança de afirmar que não foi o único. É muito
interessante encontrar uma carta que Jung enviou a Freud – ainda na época em que estavam em paz um com o
outro – na qual o suíço vai confessar ao mestre que simplesmente o venera (!): ―dá-se que a maneira como o
venero tem algo do caráter de um embevecimento ‗religioso‘. Se bem que a coisa realmente não me aflija, ainda
a considero repulsiva e ridícula devido a seu inegável fundo erótico.‖ Carta de 28.10.1907 in Correspondência
Freud-Jung, p. 129. Freud aparenta não ter gostado muito dessa ―adoração‖ e escreve: ―uma transferência de
base religiosa, a meu ver, seria absolutamente funesta e só poderia terminar em apostasia (...) Farei o possível
para lhe mostrar que não estou talhado para ser um objeto de adoração.‖ Carta de 15.11.1907 in
Correspondência Freud-Jung, p. 132. Perguntamo-nos então se essa aparente aversão a Freud a ser ―adorado‖
pode nos dar pistas para a compreensão de seu tom por vezes impaciente com Jones. (Adam Phillips, a propósito,
escreveu nos anos 90 um curioso – e difícil, denso - artigo sobre a relação do próprio Freud com a idolatria, a
religião e as crenças. Pelo que pude compreender com uma rápida leitura, o autor salienta a contradição de Freud
ser, por um lado, um judeu – e segundo o autor ser portanto necessariamente avesso a idolatrias – e, por outro,
colecionar ídolos em seu consultório - e mais: ídolos de diferentes culturas, o que abalaria o ―monoteísmo
judaico‖-, bem como ter um encanto especial por Moisés e, afinal, uma inabalável ―crença‖ na psicanálise. (!)
Consultar Phillips, 1990)
349
―Hasta el fin de sus días, Jones sostuvo firmemente que ni su aversión a la religión y la superstición ni su
ateísmo podían interpretarse desde el punto de vista psicoanalítico, porque tenían su origen en fuentes
racionales.‖ (Veszy-Wagner, 1968, p. 27) Na continuação de seu texto a autora vai sugerir que o ateísmo de
Jones parecia ser de uma natureza ―pura, sublimada e racional‖ (1968, p. 54): ao que parece Veszy-Wagner
(1968) aderiu à tese de Jones que seu ateísmo não poderia ser ―analisado psicanaliticamente‖... o que penso ser,
como já exposto, bastante discutível.
147

psicanalítico, ou em outras palavras a ―salvo‖ de uma interpretação pelo método psicanalítico,


e isto pela própria natureza do seu ―objeto de estudo‖: o inconsciente. O próprio fato de Jones
tentar salvaguardar seu ateísmo e aversão à religião e à superstição de interpretações
psicanalíticas já nos dá uma forte pista de mecanismos defensivos de racionalização –
conceito aliás por ele mesmo cunhado!
É interessante observar, a esse propósito, que em seu artigo ―Rationalisation in
everyday life‖ (1908) Jones dá exemplos de motivos e justificativas que pessoas religiosas
dão para explicar sua fé – as racionalizações – mas aqui parece que vemos Jones se
justificando – ou racionalizando – para explicar todos os motivos ―reais‖ (supostamente não
―interpretáveis‖ psicanaliticamente) de seu ateísmo.
Veszy-Wagner (1968) cita os exemplos religiosos no artigo sobre Racionalização
e tece ao menos duas hipóteses para compreender a postura ateia de Jones:

Jones parece ter superado com êxito seu conflito edipiano com o pai, mas seu
violento ateísmo pode ter sido, ao menos em parte, um subproduto deste conflito.
Originalmente batista, o pai de Jones se converteu mais tarde para a religião
anglicana e, no fim, se tornou ateu (...) [Além disso] a desilusão precoce de Freud e
de Jones em relação à ‗onisciência‘ da babá ignorante foi muito brusca, ao invés de
ser gradual como havia sido a desilusão com a onisciência dos pais, cujas origens e
capacidade sociointelectual eram semelhantes aos dos seus filhos. Na verdade, isso
contribuiu em grande medida para que eles se tornassem ateus militantes que
atacavam as crenças religiosas como representantes inconscientes de uma figura
materna precoce cruel e perversa (...) A babá causou em Jones um medo do 'fogo
ardente'; e o Pen-y-ceffyl350 (uma imagem galesa de pesadelo) encheu-o de
ceticismo em relação à babá; daí vem sua atitude de écrasez l‟infame.351 352

350
Literalmente: ―Cabeça de cavalo‖ em galês.
351
Essa expressão, ―écrasez l‟infame” (―esmaguemos os infames‖) foi utilizada por Voltaire - que era um deísta,
não um ateu –contra as autoridades religiosas assinando as suas cartas com a frase: "écrasez l‘infame‖. A
―infame‖ seria a Igreja. [Deísta é o adepto do deísmo, sistema dos que creem em Deus, mas rejeitam a revelação.
Revelação: Conjunto de verdades sobrenaturais manifestadas por Deus ao homem através da inspiração e
iluminação ou pelo ensino oral, comunicado aos patriarcas, profetas, apóstolos e santos.] (Fonte:
http://rationallyspeaking.blogspot.com.br/2008/04/ecrasez-linfame.html e Michaelis)
352
―Jones parece haber superado exitosamente su conflicto edípico con el padre, pero su violento ateísmo puede
haber sido, al menos en parte, un subproducto de dicho conflito. Originalmente bautista, el padre de Jones se
convertió más tarde a la religión anglicana y por último se hizo ateo (...) [Además] la temprana desilusión de
Freud y Jones con respecto a la ‗omnisapiencia‘ de la niñera ignorante fue muy brusca, en lugar de ser gradual
como lo había sido su desengano con respecto a la omnisciência de los padres, cuyos orígenes y capacidade
sociointelectual eran similares a los de sus hijos. De hecho, ello contribuyó en gran medida a que se convirtieran
en ateos militantes que atacaban los credos religiosos como representantes inconscientes de una temprana figura
materna cruel y perversa (...) La niñera inspiró a Jones un temor al ‗fuego ardiente‘, y el Pen-y-ceffyl (una
imagen galesa de pesadilla) lo llenó de esceptismo con respecto a su niñera; de ahí su actitud de écrasez
l‟infame.‖ (1968, p. 26-28) Mais adiante em seu texto Veszy-Wagner vai concluir que tem quatro (e não duas)
hipóteses para compreender o ateísmo de Jones: a reação à babá; o clima social, emocional e intelectual de sua
época; o seu vínculo com Freud e, por último, seu conflito infantil com o pai. Cabe destacar, porém, que para
Veszy-Wagner, Jones seria ateu como Freud por compartilhar muitas de suas ideias (por identificação, por assim
dizer – embora a autora não nomeie assim), já que o mestre era ateu. Nossa leitura caminha em outro sentido;
como estamos discutindo neste capítulo.
148

Esse ateísmo (reativo?) de Jones se manifesta em outro traço significativo: a


aversão a figuras de autoridade. Não é apenas com um Deus-poderoso que Jones irá se
confrontar: já vimos, em seus dados biográficos, como Jones, especialmente quando jovem,
teve problemas com superiores. 353
Da mesma forma, Jones mostraria traços de antipatia pela monarquia 354 e pela
subserviência que demandam. Recém instalado em Toronto, Jones descreveu a Freud todo seu
menosprezo pelos canadenses- segundo ele uma ―raça desprezível‖ –por vários motivos,
incluindo o respeito servil aos monarcas e a religiosidade extrema: ―Eles são uma raça
desprezível (...) muito rudes, muito burros e muito limitados e beatos. São ingênuos, infantis
(...) Eles estão horrorizados comigo porque eu não sei a data de aniversário do rei, pois levam
a sua lealdade - como todo o resto – muito a sério‖ 355
Este comentário é interessante por vir de quem veio: é justamente a lealdade
extrema (levada muito a sério!) ao mestre Freud,356 - aqui tão criticada – que seria a marca
registrada de Jones desde o dia em que se conheceram, em 1908, até a sua morte.

353
Jones, 1959 e Maddox, 2006.
354
A assistente de pesquisa de Jones, Veszy-Wagner, comenta que ele tinha muito interesse em temas políticos e
sociais e sentia ―ódio contra a opressão‖. A autora tecerá interpretações sobre os seus textos políticos e levanta
hipóteses para compreender as motivações de Jones por trás destas produções. (1968, p. 70 et seq)
355
―They are a despicable race (...) very rude, very stupid and very narrow and pious. They are naive, childish
(…) They are horror-struck with me because I don‘t know the date of the King‘s birthday, for they take their
loyalty like everything else in dead seriousness‖ (Carta de 10.12.1908 in Freud-Jones correspondence, p. 11.
Citada por Maddox, 2006, p. 69).
356
É o próprio Jones que associa a organização dos discípulos com uma estrutura monárquica, como nos
lembramos de sua imagem do ―Carlos Magno e os paladinos‖ em relação ao Comitê Secreto.
149

VI XEQUE-MATE: MORTE AO REI

De acordo com Veszy-Wagner, Jones começou a se interessar pelo tema da


genialidade ainda em 1910, e vários dos seus trabalhos serão dedicados ao tema – como por
exemplo no estudo sobre o pintor italiano renascentista Andrea Del Sarto (―The influence of
Andrea Del Sarto‘s wife on his art‖ (1913)357 -; segundo a autora, a apreciação do galês pela
questão da genialidade poderá ser vista também nos textos que escreveu em homenagem ao
gênio de Freud.358
Em 1930 Jones apresenta na Sociedade Psicanalítica Britânica (e publicaria no
ano seguinte no International Journal) um estudo sobre o gênio enxadrista Paul Morphy:
―The problem of Paul Morphy – A contribution to the psychology of chess‖.
O xadrez era um jogo que Jones apreciava especialmente, - e ele mesmo era um
excelente jogador -, também se dedicava ao estudo da história do xadrez359
Em seu escrito Jones nos conta a notável história de um gênio. Acompanhemos
com ele esta história (aqui obviamente resumida, mas com nível de detalhamento suficiente
para nossa posterior discussão): Paul Morphy nasceu em New Orleans em 1837 e aos 10 anos
de idade seu pai o ensinou a jogar xadrez. Em pouco tempo (Jones fala entre um ano ou dois)
Paul já havia derrotado ―seu irmão mais velho (...), seu pai, seu avô materno e o irmão de seu
pai, na época ―rei do xadrez‖ de New Orleans.‖360 e chegou a jogar contra dois campeões de
renome internacional. Nos oito anos seguintes Paul jogou muito pouco, uma vez que estava
dedicado aos estudos e encontrava poucos adversários à sua altura: ―provavelmente a verdade
é que nesses anos ele não encontrou ninguém a quem ele não ‗fizesse o roque‘ [uma jogada
especial no xadrez], consequentemente ninguém com quem ele pudesse aprender alguma
coisa.361

357
No referido trabalho, Jones se pergunta as razões pelas quais um gênio como Del Sarto, mesmo com todo o
brilhantismo e talento, não foi considerado um artista de ―primeira linha‖. É impossível não perceber uma
similitude deste questionamento com o que estamos propondo no presente trabalho, sobre o próprio Jones.
358
1968, p. 45. É interessante: embora a autora reconheça o interesse de Jones pelo tema da genialidade, fará um
resumo em poucos linhas e um breve comentário sobre o artigo tema de nosso capítulo ao discorrer sobre o
interesse do galês pelos temas políticos e sociais (O sub item de seu texto se chama ―Critérios sociais e
políticos‖, p. 80). Assim, a autora considera que este artigo sobre o enxadrista traduz o interesse de Jones pela
guerra. É notável como, mais uma vez, um trabalho de Jones pode ser analisado sob vários prismas – este
certamente é um deles.
359
Maddox, 2006, p. 206. Como um exemplo para descrever o interesse do biografado no jogo, a autora nessa
passagem menciona e resume em poucas linhas o artigo de Jones.
360
“he proved himself the superior of his elder brother Edward, his father, his mother‘s father, and his father‘s
brother who was at that time the chess king of New Orleans.‖ (Jones, 1974, p. 165)
361
―is probably true that in these years he never met anyone to whom he could not give a rook, consequently no
one from whose play he could learn anything.‖ (1974, Vol 1, p.166)
150

Aos 20 anos de idade, Morphy venceu com facilidade o primeiro lugar no Torneio
Internacional de Xadrez em Nova Iorque, e jogou 100 jogos com grandes jogadores nova-
iorquinos, perdendo apenas 5 partidas. No ano seguinte Morphy viaja para Londres e Paris e
―não só derrotou todos os campeões que ele poderia convencer a conhecê-lo, (...) mas também
deu várias exposições surpreendentes de jogo simultâneo com olhos vendados contra oito
jogadores escolhidos, ganhando a grande maioria dos jogos .”‖362. Voltando da Europa,
―lançou um desafio de jogar contra qualquer um no mundo. Ao não receber resposta, declarou
sua carreira como jogador de xadrez - que tinha durado apenas dezoito meses,
compreendendo apenas seis meses de jogo público - finalmente e definitivamente encerrada.
Depois de sua aposentadoria extraordinariamente prematura, ele assumiu a prática
do Direito, a profissão de seu pai, mas, apesar de ter muita habilidade no trabalho, não foi
bem sucedido na prática. Gradualmente recaiu em um estado de isolamento e introversão que
culminaram em uma evidente paranoia. Com a idade de 47, morreu de repente de "congestão
cerebral", presumivelmente apoplexia, de que também havia morrido seu pai.‖363
Em seu artigo Jones tece um estudo profundo da relação entre a biografia de
Morphy, sua genialidade como enxadrista e suas afecções psíquicas, costurando todo o
trabalho com seu próprio conhecimento sobre o xadrez e, evidentemente, sua familiaridade
com os mecanismos do psiquismo humano. Sua tese central se apoia fortemente no conceito
de sublimação: ―É impossível acreditar que não haja uma conexão íntima entre a neurose, que
diz respeito necessariamente ao núcleo da personalidade, e os magníficos efeitos da
sublimação, que tornaram o nome de Morphy imortal.‖ 364
Mas sublimação de quê? Do que fala a genialidade de Morphy no xadrez e quais
as relações dessa brilhante sublimação com a doença psíquica após o fim de sua carreira? E

362
“He not only defeated every champion he could induce to meet him, (…) but also gave several astounding
exhibitions of simultaneous blindfold play against eight picked players, winning the large majority of the
games.‖ (1974, p. 166)

363
“On his return to New Orleans he issued a challenge to play anyone in the world at odds. On receiving no
response to this he declared his career as a chess-player—which had lasted barely eighteen months, comprising
actually only six months of public play—finally and definitely closed. After his extraordinarily premature
retirement he took up the practice of law, his father‘s profession, but although he possessed much skill in the
work be was unsuccessful in practice. He gradually relapsed into a state of seclusion and introversion which
culminated in unmistakable paranoia. At the age of forty-seven he died suddenly of ‗congestion of the brain‘,
presumably apoplexy, as his father had before him.‖ (1974, p. 166-7).

364
―It [is] impossible to believe that there was not some intimate connection between the neurosis, which is
necessarily concerned with the kernel of the personality, and the superb efforts of sublimation which have made
Morphy‘s name immortal.‖ (1974, Vol 1, p. 167)
151

ainda: que sentidos essa interrupção brusca da carreira teve para Morphy, e como podemos
compreendê-la?
Como um pesquisador nato, com pendores de antropólogo, Jones vai buscar ao
menos duas histórias para sua compreensão psicanalítica de Morphy: a história do xadrez e a
história do enxadrista. A história de um homem em relação à própria história do Homem, a
365
cultura entremeando os sentidos do psiquismo individual. À maneira de Freud, busca
pistas e associações relacionadas a cada traço da história de seu ―analisando‖ bem como da
História coletiva, colhendo as informações importantes para o desvelamento de sentidos
profundos que expliquem ou descrevam a neurose e a paranoia que acometeram esse jovem
gênio.
Em suas buscas, Jones encontra um dado fundamental: o xadrez ―é um substituto
em jogo para a arte da guerra e, na verdade, foi a recreação favorita dos maiores líderes
366
militares‖ . O autor assinala que as partidas, tal como as batalhas de um exército,
demandam extrema capacidade de estratégia, tática e planejamento, aptidão para antecipar os
movimentos do adversário e ponderar riscos.
Poderíamos contra argumentar que a competição (nesse sentido, a ―batalha‖)
estaria presente em qualquer tipo de jogo, e o xadrez nada teria de específico. Seria de fato
verdade se não fosse uma peculiaridade importantíssima – e Jones responde: o xadrez é
especialmente ―bélico‖ porque o objetivo do jogo de xadrez é capturar o rei – ou, em sentidos
psicanalíticos, matar o pai: ―Mais do que isso, é claro que o motivo inconsciente que atua nos
jogadores não é o mero amor pela belicosidade característico de todos os jogos competitivos,
mas uma mais pesada: o assassinato do pai.‖ 367
Jones então busca na história do xadrez informações relevantes que confirmam
tais sentidos inconscientes, como por exemplo as diferentes versões do nome do jogo ao
longo do tempo. Segundo as pesquisas do autor o xadrez é originário da Índia, dali passando à
Pérsia; árabes levariam mais tarde o jogo à Europa. Seu primeiro nome, do qual todos os
outros derivam, era Chaturanga, a mesma palavra hindu para ―exército‖. Após algumas
modificações foi reduzida para Schah na Pérsia, palavra, que, segundo Jones, evidencia que

365
A respeito desse artigo, inclusive, a biógrafa de Jones vai resumir: ―Como de costume, Jones discerniu um
significado edípico mais amplo na história de um homem infeliz.‖ (2006, p. 206) ―As usual, Jones discerned a
wider Oedipal meaning in the story of one unhappy man.‖ (2006, p. 206)
Acrescentaria: Jones não apenas enxergou o Édipo em um homem, mas cruzou sua história individual com a
própria história do xadrez.
366
“that it is a play-substitute for the art of war and indeed it has been a favourite recreation of same of the
greatest military leaders‖ (1974, p. 167-8)
367
“More than that, it is plain that the unconscious motive actuating the players is not the mere love of pugnacity
characteristic of all competitive games, but the grimmer one of father-murder. (1974, p. 166)
152

―the unconscious must have been at work‖ ―o inconsciente deve ter atuado‖, já que Shah em
persa significa Rei. Portanto ―xadrez‖ significaria jogo real, jogo dos reis. A expressão
―xeque-mate‖ (Originalmente Shah-mat, em alemão Schachmatt, em francês échec et mate e
no inglês checkmate) significa literalmente ―o rei está morto‖. Segundo alguns estudiosos do
xadrez o sentido do termo não seria exatamente de morte do rei, ―‘Shah-mat‘ significaria que
‗o rei está paralisado, indefeso e derrotado‘. Novamente, do ponto de vista do rei, isso faz
pouca diferença.‖368 369
E os sentidos inconscientes do jogo não param por aí. Jones prossegue analisando
o papel de uma figura que foi introduzida no xadrez ao longo dos anos. No início tratava-se de
um conselheiro, o firz (termo Persa; em turco vizier). Uma peça caracteristicamente fraca em
termos de ação, já que seu papel não era combativo, mas de defesa, foi, com o passar do
tempo, mudando de gênero: tornou-se mulher. Assim, segundo Jones nos conta, nasceu a
figura da Rainha.
O autor não demora a fazer a associação: ―o psicanalista não se surpreende
quando ele examina o efeito da mudança [de gênero da peça]: ao atacar o pai a mais poderosa
assistência vem da mãe (= rainha).‖ 370
Os aspectos da relação pai-filho no jogo de xadrez são analisados ainda por outra
característica do jogo: sua natureza extremamente matemática – poderíamos talvez dizer
quase obsessiva. O requinte intelectual dos movimentos táticos, o valor da exatidão culminam
no desfecho trágico, quase cruel, do xeque-mate. Para Jones a dualidade entre a sensação de
maestria esmagadora de um lado, e a de derrota inescapável do outro dá ao jogo uma
característica anal-sádica. Tal natureza faria alusão à relação pai-filho tanto nos aspectos da
homossexualidade quanto da rivalidade.
Os sentidos inconscientes evocados pelo xadrez são de tal ordem que representam
uma tensão considerável nos jogadores. Jones chega a nos lembrar que a rigor todo tipo de
jogo frequentemente passa por situações de comportamento ―não esportivo‖, ou seja,
jogadores que fracassam em seus esforços de sublimação e deixam ―vazar‖ impulsos mais

368
‗Shah-mat‘ means ‗the king is paralysed, helpless and defeated‘. Again from the point of view of the king it
makes very little difference. (1974, p. 169)

369
Tive a curiosidade de realizar eu mesma uma breve pesquisa etimológica pelo universo do xadrez e confirmei
as ideias de Jones. Em português ―Xeque‖ alude a ―xeique‖, a figura do rei árabe, Shah em árabe é o nosso xá,
soberano. Em alemão desmembrei Schachmatt e atestei que Schach é traduzido por xadrez, mas tem semelhança
inegável com Scheich (xeique). Matt, no alemão, por sua vez, é traduzido por ―aborrecido‖. (Fonte: Michaelis e
Google translator).
370
―it will not surprise the psycho-analyst when he learns the effect of the change: it is that in attacking the father
the most potent assistance is afforded by the mother (= queen).‖ (1974, Vol 1, p.169)
153

regredidos da personalidade durante os jogos, mas no caso específico do xadrez a sublimação


é exigida em grau muito mais elevado.371 (Jones aqui não se alonga nos motivos do xadrez ser
mais exigente em termos de capacidade sublimatória, mas podemos supor, pelo seu raciocínio
analítico, que há pelo menos dois motivos para tal: por um lado a natureza edípica profunda
do xadrez e por outro a sua característica anal, controlada, mental, exata, purista, oposta aos
arroubos dos instintos regredidos).
Jones também nos conta, em suas pesquisas históricas, que muitas autoridades
religiosas puniam o jogo com a excomunhão, alguns reis impuseram multas e penalidades
para quem o jogasse. Poderíamos talvez arriscar dizer que os reis/autoridades não queriam ser
derrotados, nem ao menos simbolicamente, pelo ―xeque-mate‖ do xadrez...?
Após trafegar pela história do xadrez e desvelar seus simbolismos inconscientes,
Jones já tem elementos suficientes para desfilar suas interessantíssimas interpretações
psicanalíticas sobre a carreira – e o fim da carreira, culminando em colapso psíquico – de Paul
Morphy.
Há detalhes – que não são detalhes – da vida e carreira de Morphy que não podem
passar despercebidos, debrucemo-nos sobre eles, com Jones.
O autor nos diz que o estilo de jogo de Morphy reunia maestria em diversos
aspectos, mas para Jones o que mais saltava aos olhos – além da paciência, memória,
resistência ao cansaço, dentre outras tantas qualidades – era a sua inabalável confiança: ―Ele
sabia, como se fosse um simples fato da natureza, que ele era compelido a vencer, e ele
372
silenciosamente agia de acordo‖ . Jones acrescenta o comentário, inclusive, de que tal
confiança inabalável poderia ser facilmente tida como megalomania se não fosse o fato de que

371
É muito interessante observar como Jones trabalha a relação do inconsciente com o jogo. Impossível não nos
lembrarmos aqui de Melanie Klein e de Winnicott, com a importância que ambos deram à brincadeira (jogo) na
vida psíquica da criança. Melanie Klein inovou e contribuiu enormemente à Psicanálise ao considerar o brincar
como via de acesso aos conteúdos inconscientes (tal como a associação livre, o sonho, os sintomas, etc) ―Ao
interpretar não apenas as palavras das crianças mas também suas atividades com seus brinquedos, apliquei este
princípio básico à mente da criança, cujo brincar e atividades variadas – na verdade, todo o seu comportamento –
são meios de expressar o que o adulto expressa predominantemente através de palavras‖ (Klein, 1991). KLEIN,
Melanie. Inveja e gratidão e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1991.398 p. Winnicott diria, em Brincar e
a Realidade (1975) (WINNICOTT, D. O brincar e a realidade. Rio de janeiro: Imago, 1975), que ao brincar a
criança lida com a zona intermediária da experiência: entre o mundo subjetivo e o ambiente externo, real.
Brincar seria portanto uma atividade de exercício criativo e de elaboração psíquica, carregada de conflitos e
angústias. Jones, embora ainda atrelando o jogo de Morphy à sublimação (sendo, portanto, rigorosamente
freudiano em sua interpretação), dá ênfase à tensão que o jogo pode provocar na medida em que evoca impulsos
regredidos, primitivos, da psique – discurso que nos faz lembrar – em associação livre... – de Klein e de
Winnicott. Pela grande complexidade, as interfaces teóricas entre Jones e Klein ou Winnicott são, no entanto,
tema de um próximo estudo – o assunto pede um trabalho exclusivo. (Fonte consultada:
https://psicologado.com/abordagens/psicanalise/o-brincar-nas-perspectivas-freudiana-kleiniana-e-
winnicottiana)
372
“He knew, as though it was a simple fact of nature, that he was bound to win, and he quietly acted on this
knowledge‖ (1974, p. 176)
154

ela era plenamente justificada... Tal postura dava aos jogos do gênio uma característica de
ousadia e audácia: fazia movimentos que aos olhos dos expectadores pareciam
arriscadíssimos, mas eram, na realidade, fruto de cálculo e predição – e que na imensa maioria
das vezes o levava à vitória. O interessante é que essa autoconfiança do enxadrista era
acompanhada de uma postura modesta e consciente: Jones nos conta que Morphy sabia
reconhecer quando não havia jogado tão bem e tinha um modo gentil no trato com as pessoas.
Além disso, deve-se acrescentar que parecia desapegado em relação a dinheiro (na
verdade o assunto o incomodava, e já veremos os motivos): certa vez, após vencer o
adversário Löwenthal, presenteou-o com uma soma. Em outra ocasião, recusou uma oferta de
dinheiro para participar de um torneio por não querer viajar como ―jogador profissional‖.
Jones interpreta a capacidade técnica e confiança de Morphy como representantes
diretos de sua corrente libidinal e pode ser considerada a melhor solução possível para seus
conflitos psíquicos. Nesse sentido, qualquer ameaça a esse equilíbrio (expressão de sua
personalidade) colocaria toda a sua sanidade em risco – o que de fato aconteceu, na ocasião de
seu ―colapso‖ que sucedeu o fim de sua carreira.
De que forma isto aconteceu? Vejamos com mais vagar os passos que levaram
Morphy a encerrar suas atividades como enxadrista e, algum tempo depois, a desenvolver
séria paranoia.
Jones nos conta que Morphy fazia questão de algumas condições para jogar – três,
mais especificamente, e essas condições apontam para as bases nas quais seu equilíbrio
psíquico estava assentado. Lembramos como não apenas qualquer jogo traz profundas
mobilizações psíquicas, evocando tensões, conflitos e descargas emocionais (aspecto que M.
Klein usaria para interpretar as fantasias da criança, fazendo dos jogos e brincadeiras o
material manifesto para interpretações de conteúdos latentes) mas especialmente o xadrez traz
uma fonte de tensão psíquica particularmente forte: afinal é o jogo de morte ao rei (pai).
Nesse sentido, jogar xadrez teria o efeito, segundo Jones, de reviver o conflito
edípico em registro metafórico, simbólico, e Morphy se protegia dos riscos psíquicos dessa
‗encenação‘ colocando algumas regras para a guerra imaginária. Dito de outra forma, o ato de
jogar xadrez representaria a superação do pai de uma maneira socialmente aceitável.
Segundo a análise de Jones, as três condições sine qua non para Morphy jogar
xadrez eram:
1) em primeiro lugar, era necessário que o embate fosse recebido
amigavelmente;
2) em segundo que o jogo se realizasse por motivos respeitáveis;
155

3) finalmente, era necessário que o jogo de xadrez fosse considerado uma


atividade séria entre adultos (e não uma brincadeira de crianças).

Somente quando essas três condições estivessem garantidas, Morphy poderia


usufruir livremente de seus recursos – capacidades e dons notáveis de técnica, concentração,
estratégia – bem como de sua inabalável autoconfiança para vencer um a um a maioria
absoluta de seus adversários. Isso significa, em termos psicanalíticos, que a derrota do pai
simbólico estaria, assim, ―disfarçada‖ o suficiente para manter não apenas seu sucesso na
atividade mas principalmente seu equilíbrio mental. Nas palavras de Jones:

Podemos considerar que essa notável combinação de capacidade e confiança


não poderia ocorrer, a menos que fosse um representante direto do fluxo
principal da libido e oferecia a melhor solução possível para quaisquer
conflitos nas tendências mais profundas da personalidade. Segue-se que
qualquer coisa que interfira com uma expressão tão indispensável da
personalidade seria possivelmente pôr em perigo sua integridade, e, de fato,
os eventos provaram. Nosso conhecimento da motivação inconsciente do
jogo de xadrez nos diz que o que é representado só poderia ser o desejo de
superar o pai de maneira aceitável. Para Morphy, as condições necessárias
para a sua aceitabilidade eram essencialmente três: que o ato em questão
fosse recebido de maneira amigável; que deve ser atribuído a motivos dignos;
e que deve ser considerado uma atividade séria e adulta. Devemos ver que
cada uma dessas condições foi grosseiramente violada em sua visita fatídica à
Europa e devemos tentar traçar as conseqüências mentais disso. Não há
dúvida de que a odisseia crescente de Morphy nos reinos mais altos do xadrez
começou apenas um ano após a morte inesperadamente repentina de seu pai,
o que foi um grande choque para ele, e podemos imaginar que seu brilhante
esforço de sublimação foi, como Hamlet de Shakespeare e Traumdeutung de
Freud, uma reação a este evento crítico.373

373
“We may take it that this remarkable combination of capacity and confidence could not occur unless it was a
direct representative of the main stream of the libido and was providing the best possible solution of any
conflicts in the deepest trends of the personality. It follows that anything interfering with such an indispensable
expression of the personality would be Likely gravely to endanger its integrity, and so indeed events proved. Our
knowledge of the unconscious motivation of chess-playing tells us that what it represented could only have been
the wish to overcome the father in an acceptable way. For Morphy the conditions necessary for its acceptability
were essentially three: that the act in question should be received in a friendly manner; that it should be ascribed
to worthy motives; and that it should be regarded as a serious and grown-up activity. We shall see that each of
these conditions was grossly violated on his fateful visit to Europe and shall try to trace the mental consequences
of this. It is no doubt significant that Morphy‘s soaring odyssey into the higher realms of chess began just a year
after the—unexpectedly sudden—death of his father,4 which had been a great shock to him, and we may surmise
that his brilliant effort of sublimation was, like Shakespeare‘s Hamlet and Freud‘s Traumdeutung, a reaction to
this critical event.‖ (1974, p. 179-80)
156

Veremos logo mais como Jones destaca o papel destas três condições no
equilíbrio psíquico do enxadrista e como são de fato pontos-chave de sua interpretação do
colapso mental.
Jones nos conta que ao longo de sua (breve) carreira, Morphy teve a oportunidade
de jogar partidas contra os maiores campeões da época, de diferentes países. Dos principais,
destacam-se seis, quatro dos quais se tornaram seus amigos e admiradores. 374 Dois deles, no
entanto, apresentaram a Morphy um problema psicológico de tal ordem que foram decisivos
para o seu colapso: são eles o inglês Staunton e o alemão Harrwitz.
Staunton era, na época, um jogador de grande fama e prestígio, e além de ser
jogador também era um sistematizador das técnicas do xadrez: escreveu um manual sobre o
jogo e foi um dos primeiros editores na área. Nessa época a Inglaterra era o centro de
referência em xadrez no mundo e por todas essas razões Staunton era o adversário mais
almejado por Morphy: jogar com ele foi a principal motivação para a viagem do jovem gênio
à Europa.
Na realidade, a relação de Morphy com Staunton vinha de anos antes - ainda que
uma relação não presencial, mas indireta, subjetiva - : conta-se que, quando Morphy tinha 15
anos de idade ganhou de presente um livro com os jogos do primeiro Torneio Internacional de
1851, do qual Staunton era o secretário. O então menino Morphy escreveu na primeira página
algo como: ―De H. Staunton, autor dos manuais ―Handbook of Chess‖, Chess-Player‘s
Companion e etc (e de alguns jogos extremamente ruins)‖ 375 (Grifo meu)
O jovem já parecia provocar aquele que, anos depois, seria seu mais desejado
adversário... um ―chamado à briga‖ de um menino diante de uma figura renomada de
autoridade.
A interpretação de Jones é a de que Staunton seria a imago paterna de Morphy, e
que derrotá-lo no xadrez teria o estatuto psíquico de vencer o pai. Aqui devemos acrescentar a
prévia interpretação de Jones sobre o próprio sentido psíquico – e histórico – do jogo de
xadrez, como o de um jogo simbólico de derrota do Rei/Pai; e então nos damos conta do peso
psíquico desta possível partida Morphy-Staunton para o primeiro: seria quase como derrotar o
pai duplamente (através de jogo de xadrez e contra um adversário que representa a imago
paterna).

374
Os quatro eram: o húngaro Johann Löwenthal, o americano Paulsen, o francês St Amant e o alemão
Anderssen. (Jones, 1930)

375
―By H. Staunton, Esq., author of the Handbook of Chess, Chess-Player‘s Companion, etc. (and some devilish
bad games)‖ (1974, Vol 1, p. 183)
157

O que aconteceu a seguir foi um desfecho ruim. O inglês Staunton, ao ouvir falar
do jovem americano Morphy e de boatos de que um campeão europeu talvez fosse aos EUA
jogar com ele, publicou comentários maldosos sobre o jovem gênio em sua coluna semanal de
xadrez. Nesses comentários, insinuava que o xadrez de Morphy era apenas um passatempo
juvenil e que era um meio que o garoto havia encontrado para fazer fortuna. (Jones salienta
que Morphy era extremamente sensível a ambas insinuações, e já veremos os motivos). Ainda
assim os amigos de Morphy convidaram Staunton para uma partida nos EUA – que Staunton
recusou. Mostrou-se, no entanto, disponível para jogar contra Morphy caso esse viesse ao seu
encontro em Londres.
Morphy foi. Assim que chegou à Europa, e no exato momento em que foi
apresentado a Staunton convidou-o para um jogo, mas o inglês respondeu que tinha outro
compromisso. Durante um período de meses na Europa Morphy tentou muitas vezes agendar
uma partida, sem sucesso. Staunton alegava problemas de agenda, outras prioridades,
respondia com evasivas. Em paralelo, continuava tecendo comentários maldosos sobre
Morphy em sua coluna semanal. Em resposta, o jovem chegou a escreveu uma carta a
Staunton afirmando: ―Permita-me repetir o que eu invariavelmente declaro em toda
comunidade de xadrez na qual tive a honra de entrar: eu não sou um jogador profissional – eu
nunca quis usar quaisquer habilidades que eu tenha como uma maneira de ganhar
dinheiro.‖376
Frustrado e sem realizar seu sonho de jogar contra um despeitado Staunton,
Morphy já não era mais o mesmo: pouco tempo depois desenvolveria uma repulsa pelo xadrez
e declararia ao mundo o encerramento definitivo de sua breve carreira. Era carta fora do
baralho – ou melhor dizendo, peça fora do tabuleiro.377

376
―Permit me to repeat what I have invariably declared in every chess community I have had the honour of
entering, that I am not a professional player – that I never wished to make any skill I possess the means of
pecuniary advancement.‖ (EDGE, F. M. Exploits and Triumphs of Paul Morphy, 1859 apud Jones (1930). 1974,
Vol I, p. 184)
377
Estamos resumindo aqui o artigo de Jones e, na medida do possível, procurando facilitar a sua compreensão
para o leitor, mas é sempre interessante ouví-lo em suas próprias palavras:
―Morphy‘s relations with these four men contrast sadly with his experiences of the two who will next concern us.
Of these the more important was Staunton, and to explain his significance for Morphy a word must be said about
the position he occupied. He was a man with a greater prestige than his tournament record would lead one to
suppose. It is true that by his victory over St. Amant, Horwitz and Harrwitz in the ‗forties he could claim to be
considered the leading player in the world, but he was not able to sustain this position, being beaten, for instance,
in the London tournament of 1851 and the Birmingham one of 1858. He was, however, a great analyst; and the
standard text-book that he wrote, together with his position as one of the first chess editors, made him
the doyen of the English, if not of the European, chess world. In the middle of the last century England was
easily paramount in chess, and perhaps this contributed to the reasons that made Morphy select Staunton as the
antagonist he most wanted to meet; it was the wish to play against Staunton that was his main motive in crossing
the Atlantic. In psycho-analytical language we may say that Staunton was the supreme father imago and that
158

Antes de voltar para os EUA, no entanto, Morphy foi para Paris, onde convidou o
grande campeão alemão Harrwitz para uma partida. O alemão concordou. (Este seria o
segundo adversário de Morphy que, segundo Jones, contribuiria diretamente para seu colapso
psíquico) No grande dia, durante a importante partida, ao perceber que Morphy
inevitavelmente o venceria, Harrwitz simplesmente se levantou e saiu andando, abandonando
o jogo. (Podemos concluir, portanto, que ambos adversários recusaram-se a jogar com
Morphy de algum modo: um se recusando em absoluto (Staunton) e outro abandonando a
partida no meio, prevendo uma derrota humilhante (Harrwitz))
Façamos uma pequena pausa aqui. Antes de prosseguir com a apresentação do
trabalho de Jones, devo mencionar que em meus estudos tive o interesse de verificar a
importância (histórica, técnica) de Morphy – sua genialidade – entre os enxadristas de nossos
dias. É como se estivesse à procura de uma ―segunda opinião‖, contemporânea, sobre aquele
que pareceu ser um ídolo pessoal de Jones: seria Morphy um ideal de ego do também
enxadrista Jones, encantado como parecia ser pelos ―gênios‖?
Para minha grata surpresa, encontrei em um livro técnico sobre xadrez um parecer
absolutamente deslumbrado de um estudioso contemporâneo de enxadristas notáveis, Neil

Morphy made the overcoming of him the test case of his capacity to play chess, and unconsciously of much else
besides. A piece of evidence is extant which goes to show that this choice of father imago was far from being a
recent one. At the age of fifteen Morphy had been presented with a copy of the games played at the first
International Tournament of 1851, of which Staunton was the secretary. He took it on himself, to write on the
title page: ‗By H. Staunton, Esq., author of the Handbook of Chess, Chess-Player‘s Companion, etc. (and some
devilish bad games)‘. After Morphy‘s victory at the New York tournament some enthusiasts mooted the
possibility of a European champion coming to America to play him. On hearing of this Staunton published a
deprecatory paragraph in his weekly chess column and remarked that ‗the best players in Europe are not chess
professionals but have other and more serious avocations‘. To hint that Morphy‘s chess was either a juvenile
pastime or else a means of making money were innuendoes that must have wounded him to the quick, for there
is ample evidence that he was morbidly sensitive to either suggestion. His New Orleans friends nevertheless
issued a challenge to Staunton to come to America, which he not unnaturally refused, dropping, however, a
broad hint that Morphy would find him at his disposal were he to come to Europe. Morphy crossed four months
later and on being introduced to Staunton at once asked him for a game. Staunton pleaded an engagement and
followed this by a course of such ungentlemanly behaviour as to be explicable only on the score of neurotic
apprehension; it was in fact said of him that he suffered from what was called ‗nervous irritability‘. For three
months, during his stay in England and after, Morphy endeavoured in the most dignified manner to arrange a
match, to which Staunton responded by a series of evasions, postponements, broken promises and pretexts that
his brain ‗was overtaxed by more important pursuits ‗—not that the latter prevented him from participating in the
Birmingham Tournament in the very same month. Foiled in his hopes Morphy laid the whole matter before Lord
Lyttelton, the President of the British Chess Association, who made a sympathetic reply, and the matter rested at
that. During this time, however, Staunton kept up in his chess column a steady fire of criticism of the man he
avoided meeting, depreciating his play, hinting that he was a monetary adventurer, and soon. One sentence
maybe quoted from Morphy‘s final letter to him: ‗Permit me to repeat what I have invariably declared in every
chess community I have had the honor of entering, that I am not a professional player—that I never wished to
make any skill I possess the means of pecuniary advancement ‗.5 The whole episode led to an acrimonious
wrangle in the chess world in which the large majority supported Morphy, and subsequent opinion almost
unanimously regards Staunton‘s behaviour as totally unworthy of him. The effect on Morphy was immediate,
and it showed itself in a strong revulsion against chess.‖ (1974, p 182-4)
159

McDonald. Em sua obra ―Gigantes do xadrez agressivo‖ 378, Mc Donald descreve o momento
decisivo em que Harrwitz abandona a partida com Morphy e como se sente absolutamente
sem defesas diante do brilho do jovem gênio:

Um belo fim de partida. (...) Raramente ocorre uma mistura tão perfeita de tática e
estratégia em uma mesma partida. É difícil imaginar como os grandes enxadristas
modernos como Topalov ou Kasparov poderiam melhorar os lances de Morphy.
O destino do match havia mudado completamente. Morphy havia ganho duas
partidas seguidas, jogando o melhor xadrez posicional já visto até aquele momento.
Depois disso, nosso gigante adicionou as partidas cinco e seis à sua lista, empatou a
sétima, embora tenha ficado muito perto de uma vitória, e venceu a oitava. Portanto,
o placar foi 5-2 com um empate. Apesar de as regras determinarem que o vencedor
seria o primeiro a obter sete vitórias, Harrwitz abandonou o match pois sabia que
não possuía nenhuma resposta para o sublime jogo do americano.379

De fato, fica evidente como a superioridade do jovem gênio é percebida por


Harrwitz e este, pressentindo o desfecho, prefere abandonar a partida do que sentir a
humilhação da derrota – tal como Staunton se recusaria a jogar, algum tempo depois.
Segundo Jones o estado psíquico de Morphy piorou depois desse episódio em que
Harrwitz abandona o jogo, e nessa época apenas um pequeno evento agradável parece ter
adiado o colapso: a vitória de Morphy sobre Anderssen- um exímio jogador alemão que se
tornaria seu amigo.
Anderssen era um homem muitos anos mais velho que Morphy, e de aparência
exatamente oposta. Jones nos conta que Morphy era muito jovem, magro, tinha apenas 1,62m
de altura, com pés e mãos pequenos e feições delicadas. Anderssen era ―quarentão‖,
corpulento e pesado. Por estas características da dupla, a famosa vitória de Morphy contra
Anderssen faz Jones comparar o enxadrista genial com um jovem astuto que vence um
gigante:

Deve ter sido uma cena memorável testemunhar esse jovem magro vencendo o
imenso, corpulento teutão380 de quarenta, não no sentido tradicional de um jovem
herói derrotando um gigante por ter uma imaginação mais audaciosa – porque nesse
quesito eles eram igualmente dotados e igualmente insuperáveis – mas por uma
profundidade de entendimento mais madura.381 O interesse dessa observação para

378
Interessante o uso do mesmo termo com que Jones descreve Morphy em seu trabalho, ―gigante‖, sendo que
era franzino e jovem. Veremos mais adiante uma possível associação para o uso da imagem do gigante, no
trabalho de Jones.
379
MCDONALD, Neil. Gigantes do xadrez agressivo. Penso Editora, 2012, p. 88. O livro destaca a genialidade
de cinco jogadores considerados de estilo ―agressivo‖; são chamados de ―gigantes‖ pelo autor. Nosso herói
Morphy está na lista dos cinco, na capa.
380
―Teutão‖ é o antigo povo da Germânia que habitava as margens do Mar Báltico (Dicionário Michaelis).
381
Aqui Jones parece fazer referência a um conto de fadas dos irmãos Grimm, ―O Alfaiate Valente‖, de 1812,
(GRIMM, J. e W. Contos maravilhosos infantis e domésticos (1812-1815). Tomos I e II. São Paulo: Cosac
Naify, 2015) que conta a história de um humilde alfaiate que, certo dia, consegue matar sete moscas de uma só
160

nosso intento é a indicação que isso dá de que na cabeça de Morphy o xadrez deve
ter significado uma atividade completamente adulta, e seu sucesso nela [era
encarado] como uma ocupação séria de um homem ao invés de uma ambição de
rebeldia de um menino.382

E acrescenta: ―Devo dizer mais adiante que ter sido abalado nessa questão foi um
dos fatores que levaram à sua catástrofe mental.‖ 383
Quando, depois de todas essas intempéries em seu período na Europa– jogar
contra Harrwitz e assisti-lo abandonando a partida, depois vencer o corpulento alemão
Anderssen – que se tornaria seu amigo e, afinal, não conseguir jogar contra seu mais almejado
adversário, Staunton, por sua recusa aberta e hostil, o jovem Morphy voltou para casa.
Encontrou os EUA aos seus pés: honrando-o, adulando-o, parabenizando-o e
comemorando suas vitórias em grande estilo. Nesses dias de glória Morphy jogou contra
duquesas e princesas – e as deixava vencer, educadamente - , compareceu a festas e banquetes
em sua homenagem, ganhou um busto de um famoso escultor, uma coroa de louros de prata,
recebeu de presente um tabuleiro de xadrez com casas feitas de madrepérola e ébano, um
relógio de ouro cujos numerais eram pequenas peças de xadrez... e ainda assim, mesmo com
toda a pompa e circunstância, mostrava-se sensível toda vez que alguém apenas insinuasse
que ele era um jogador profissional - isto é, que jogava como forma de ganhar dinheiro.
Pouco tempo depois desta fase de fama, sucesso e adulação, Morphy anunciou o
fim de sua carreira como enxadrista.
Quis se dedicar ao Direito – uma carreira ―séria‖ -, a mesma de seu pai, mas sua
fama como enxadrista prevenia as pessoas de leva-lo a sério na área, e Morphy fracassou em
seu novo caminho profissional. Poucos anos depois sobreveio a Guerra Civil, e Morphy se viu
diante de uma guerra real – em contraste à ―guerra simulada‖ de seus jogos de xadrez. (Aqui
Jones acrescenta uma nota de rodapé e adiciona a contribuição de alguns colegas –
presumivelmente da Sociedade Psicanalítica Britânica - diante da qual foi apresentado este
trabalho: Segundo os colegas Dr Bryan e Miss Sean este fato – ou seja, o advento da guerra

vez. Famoso na cidade por ―matar sete de uma vez‖, o alfaiate acaba chamando a atenção de um gigante, que o
desafia para um embate. O alfaiate vence o gigante – e muitas outras provações ao longo da história – apenas
pela astúcia, e não pela força. O conto foi adaptado pela Disney em 1938 no curta metragem ―O pequeno
Alfaiate valente‖, com Mickey no papel do alfaiate – e, devo acrescentar, é um desenho animado encantador.
382
―It must have been a memorable scene to witness this slim youth overpowering the huge, burly Teuton of
forty, not in the traditional fashion of the young hero overcoming a giant by more audacious imagination – for in
this quality they were equally matched and equally unsurpassable – but by a more mature depth of
understanding. The interest of this observation for our purpose is the indication it gives that in Morphy‘s mind
chess must have signified a fully adult activity, and success in it the serious occupation of a man rather than the
rebellious ambition of a boy.‖ (Jones, 1974, Vol 1, p. 175-176)
383
―I shall submit later that being shaken in this matter was one of the factors that led to his mental catastrophe.‖
(Jones, 1974, Vol 1, p. 176)
161

real - pode ter sido o estopim do colapso de Morphy – Jones afirma concordar com a
hipótese.)
Com o passar dos anos, Jones nos conta que a saúde psíquica de Morphy piorou
consideravelmente. Sua aversão ao xadrez era tanta que nem mesmo chegava perto dos
lugares onde havia antes vencido partidas, e aos poucos começou a apresentar sintomas de
paranoia: fantasiava que todos estavam tentando prejudica-lo, seja roubando-o, envenenando-
o, planejando matá-lo. Chegou ao ponto de alimentar-se exclusivamente com comida ofertada
por sua mãe ou por sua irmã caçula, as únicas nas quais confiava. Começou a zanzar pela
varanda de casa recitando versos e mantinha rotinas diárias rígidas. Em isolamento, só via sua
mãe e se irritava com a chegada de visitas.
Tudo relacionado ao passado como enxadrista o contrariava profundamente. Certa
vez, quando convidado a colaborar para um estudo biográfico sobre famosos (personalidades
notáveis naquela região dos EUA), Morphy se irritou e respondeu que não havia nada a
contribuir, já que de notável ele não tinha nada: havia recebido uma herança de seu pai e
nunca havia seguido uma profissão.
Aos 47 anos Morphy faleceu do que chamaram à época de ―congestão cerebral‖,
aparentemente apoplexia (mesma causa da morte de seu pai).
Após expor a vida de seu ―analisando‖, Jones inicia suas reflexões psicanalíticas
sobre o caso e invoca, como é seu costume, o mestre Freud. Cita a interpretação do professor
sobre um fenômeno em que o indivíduo ―fracassa no triunfo‖, isto é, sofre uma espécie de
falência/crise/colapso psíquico ao, justamente, – o que parece paradoxal – realizar um desejo
há muito almejado.
Certamente Jones está aqui fazendo referência às reflexões freudianas de 1916, do
trabalho ―Alguns tipos de caráter encontrados na prática clínica‖ (Freud, 1916), no qual Freud
dedica um tópico inteiro ao fenômeno: ―Os que fracassam no triunfo‖. Neste trabalho, Freud
vai analisar alguns casos – reais ou ficcionais (como a personalgem Lady Macbeth, da obra de
Shakespeare) – em que o sucesso, a realização de um desejo trará profundo sofrimento – e não
sentimento de realização, como se poderia supor:

O trabalho psicanalítico nos legou a tese de que as pessoas adoecem neuroticamente


devido à frustração. Referimo-nos à frustração da satisfação dos desejos libidinais, e
um longo rodeio se faz preciso para compreender essa tese. Pois o surgimento da
neurose requer um conflito entre os desejos libidinais de uma pessoa e a parte do seu
ser que denominamos seu Eu, que é expressão de seus instintos de autoconservação
e que inclui os ideais que tem de seu próprio ser. Um tal conflito patológico surge
apenas quando a libido quer se lançar por vias e metas há muito superadas e
condenadas por seu Eu, que então as proibiu para sempre, e isso a libido faz somente
162

quando lhe é tirada a possibilidade de uma satisfação ideal, adequada ao Eu. Assim,
a privação, a frustração de uma real satisfação, torna-se a primeira condição para o
surgimento da neurose, embora não seja absolutamente a única.
Tanto maior será a surpresa, mesmo a confusão, quando o médico descobre que às
vezes as pessoas adoecem justamente quando veio a se realizar um desejo
profundamente arraigado e há muito nutrido. É como se elas não aguentassem a sua
felicidade. 384

Embora Freud teça algumas considerações sobre os casos neste trabalho,


considero exemplar um outro trabalho de sua autoria muitos anos depois (1936), posterior
portanto até mesmo ao trabalho de Jones, mas que, penso, nos ajudará a compreender o
fenômeno descrito com maestria. Trata-se do texto ―Um distúrbio de memória na Acrópole‖
(1936), uma carta aberta ao escritor Romain Rolland. Recordemo-nos aqui brevemente deste
escrito -fundamental para nossa discussão.385
Na carta a seu amigo Rolland, Freud conta que quando era mais jovem havia
viajado de férias com seu irmão. Foram para Trieste, cidade ao nordeste da Itália, e de lá
planejavam seguir para Corfu, uma ilha grega. No entanto, ainda em Trieste um conhecido os
aconselhou que ao invés disso fossem para Atenas, capital da Grécia, pois seria muito mais
agradável do que Corfu.
Após receberem o conselho, Freud e o irmão subitamente ficaram de mau humor-
embora não soubessem a razão – e concordaram que a ida para Atenas parecia muito difícil e
trabalhosa... No entanto, ainda que indecisos e desmotivados, acabaram afinal comprando as
passagens para Atenas - também sem que compreendessem o motivo da decisão.
Quando chegaram a Atenas e Freud estava admirando a paisagem da Acrópole,
um pensamento lhe invadiu: ―Então tudo isso existe mesmo, como aprendemos na escola!‖
Era como se na idade escolar Freud tivesse experimentado uma dúvida, uma incredulidade
sobre a real existência da Acrópole.
Este pensamento o ajudou a entender o desânimo antes da ida: era como se Atenas
fosse tão maravilhosa, e seria uma experiência tão bonita vê-la com seus próprios olhos, que
de algum modo seria impossível acessá-la: seria, por assim dizer, ―bom demais para ser
verdade‖. A sensação de impossiibilidade de alcançar algo tão belo os contrariava.
Mas de fato Freud fica instigado ao perceber que um sentimento de prazer, de
realização, pudesse gerar uma sensação de incredulidade ou rechaço – o que seria apenas
compreensível para experiências de desprazer:

384
Freud, 1916, v. 12, p. 260-261.
385
Tal discussão sobre a carta aberta de Freud a Romain Rolland também integrou a minha dissertação de
mestrado, posteriormente publicada como livro (Marques, 2016). Utilizamos aqui passagens comuns, mas com
modificações pertinentes.
163

Uma incredulidade assim é evidentemente uma tentativa de rejeitar uma parcela da


realidade, mas há algo de estranho nisso. Não nos surpreenderíamos em absoluto se
essa tentativa fosse dirigida a uma parcela da realidade que ameaçasse com
desprazer; nosso mecanismo psíquico está, digamos, regulado para isso. Mas por
que tal incredulidade em relação a algo que, pelo contrário, promete um enorme
prazer? Uma conduta realmente paradoxal! Mas me recordo que já lidei antes com o
caso de pessoas que, como formulei então, ‗fracassam no triunfo‘. Normalmente se
fracassa com a frustração, a não realização de uma necessidade ou desejo; mas
nessas pessoas dá-se o contrário, adoecem, até mesmo sucumbem, pelo fato de lhes
ter sido realizado um desejo extremamente forte. (...) O indivíduo não se permite a
felicidade. 386

Mas quais seriam os sentidos psíquicos dessa impossibilidade (da felicidade,


prazer, realização)? Freud avança em suas reflexões fazendo um paralelo entre o sentimento
de vitória que ele e o irmão sentiram em Atenas e o triunfo do imperador Napoleão:

Quando pela primeira vez vemos o mar, cruzamos o oceano, experimentamos como
realidades países e cidades que foram, durante muito tempo, inatingíveis e distantes
objetos de desejo, sentimo-nos como um herói que levou a cabo inacreditáveis
façanhas. Naquele momento, na Acrópole, eu poderia ter perguntado a meu irmão:
‗Você se lembra que em nossa infância fazíamos diariamente o mesmo caminho, da
rua... até a escola, e todo domingo íamos ao Prater ou a um dos lugares do campo
que já conhecíamos bastante? E agora estamos em Atenas, bem na Acrópole!
Realmente fomos longe!‘. E, se podemos comparar um evento assim pequeno com
algo maior, não sucedeu que Napoleão, ao ser coroado imperador em Notre Dame,
voltou-se para um de seus irmãos (...) e comentou: ‗Que diria notre père [nosso pai],
se estivesse aqui hoje?‘.387

A ida a Atenas significava portanto a realização de um feito heróico, de


conquistas tão sonhadas, tão desejadas, que pareciam inatingíveis. Os sentimentos de
contrariedade, mau humor e desânimo antes da ida – que acometeram Freud e seu irmão –
estão relacionadas intimamente com o que Freud aponta como uma comparação com o
imperador: um triunfo endereçado ao pai.
Freud conclui:

Deve ser que um sentimento de culpa se acha ligado à satisfação de haver ido tão
longe; há algo errado nisso, algo proibido desde sempre. Tem relação com a crítica
da criança ao pai, com o menosprezo que toma o lugar da superestimação infantil
inicial de sua pessoa. É como se o essencial no êxito fosse chegar mais longe que o
pai, e querer superá-lo ainda fosse interditado. (...) O que perturbou nossa fruição
da viagem a Atenas, portanto, foi um impulso de piedade [pelo pai] [grifo meu]. 388

386
Freud, 1936, v. 18, p. 441-442.
387
Idem, Ibidem, p. 448.
388
Freud, 1936, v. 18, p. 448-449.
164

O sentimento de triunfo pelas conquistas alcançadas evoca, portanto, o conflito


edípico: o sucesso funcionaria quase como uma ―provocação‖ (ou humilhação, retaliação,
demonstração de poder) perante o pai: sou mais capaz que você! A culpa superegoica
decorrente de tal triunfo/realização de um sonho edípico (de superação do pai) ―tingiria‖ a
experiência de êxito com um amargo desprazer.
Já em seu trabalho anterior, de 1916, Freud concluiria que o cerne deste
sofrimento (fruto do sucesso) reside no conflito edípico: ―O trabalho psicanalítico propõe que
as forças da consciência que levam a adoecer com o sucesso em vez da frustração, como em
geral acontece, acham-se intimamente ligadas ao complexo de Édipo, à relação com o pai e à
mãe, como talvez a nossa própria consciência de culpa.‖ 389
Tendo resgatado esses textos freudianos, e compreendido sua descrição da culpa
edípica provocada pelo sucesso, já podemos retornar ao caso de Morphy: teria então o
enxadrista sucumbido por não ―aguentar a felicidade‖, como diz Freud? Após derrotar um a
um de seus adversários e ser considerado o maior jogador do mundo, receber todas as
homenagens possíveis com apenas 21 anos de idade, teria Morphy realizado a fantasia edípica
de derrotar o pai e portanto recebido ―castigo‖ equivalente (sob a forma de paranoia)?
Conforme Jones resume, segundo Freud a impossibilidade de usufruir do sucesso
reside no fato de que só é possível regozijar-se da vitória sobre o pai no campo imaginário, e
não no real. Isto é: uma vez que o sucesso e a fama aludem a uma derrota edipiana no plano
da realidade, essa situação é a que provoca uma culpa inimaginável, podendo levar ao
colapso psíquico.
É neste momento do trabalho de Jones em que há uma reviravolta. Embora cite
Freud e o fenômeno de ―fracassar no triunfo‖, desconfia que esta interpretação do caso de
Morphy não seja a única possível, e se coloca a pergunta: ―Teria o desarranjo mental de
Morphy sido causado pelo seu sucesso ou por seu fracasso e desapontamento? (...) Dito em
linguagem mais psicológica, teria Morphy se apavorado com sua própria presunção quando
esta recebeu os holofotes da publicidade? (...) Eu não penso que a explicação completa esteja
aí.‖ 390

389
Idem, 1916, v. 12, p. 283.
390
―Was Morphy‘s mental derangement brought on by his very success or by his failure and disappointment?
(...) Couched in more psychologycal language, was Morphy affrighted at his own presumptuousness when the
light of publicity was thrown on it? (...) I do not think the full explanation can lie here.‖ (Jones, 1974, Vol 1, p.
190-191)
165

Jones então defende a ideia de que o suposto sucesso de Morphy seria apenas
aparente: sua história demonstra como de fato falhou em seu objetivo principal. Mas qual foi
seu fracasso?
Bem lembramos que Staunton representava sua ―arqui-imago‖ paterna e ele não
conseguiu derrotá-lo (na verdade, aquele nem se dignou a dar-lhe essa oportunidade). E ainda:
este símbolo máximo de imago paterna demonstrava por ele uma declarada hostilidade, o que
parecia embasar as fantasias inconscientes de derrota do pai. Inacessível e hostil: assim se
mostrou, na realidade, o pai simbólico de Morphy no xadrez – justamente o jogo de morte ao
rei.
A cordialidade habitual de Morphy, não apenas com cada um de seus adversários,
mas como um traço de sua personalidade, desta vez não funcionou, e pela primeira vez o
jovem gênio se viu diante de uma imago autoritária e hostil.
É preciso lembrar ainda que o rápido sucesso de Morphy se deu apenas um ano
após a morte real de seu pai – e isso faz Jones supor que teria utilizado o xadrez como um
brilhante recurso de sublimação (defesa contra um evento doloroso).
Voltemos ao colapso de Morphy. Segundo Jones, a chave para compreendê-la
reside naquelas três condições de jogo que Morphy colocava, como maneira (segundo a
interpretação de Jones) de garantir seu equilíbrio psíquico. Pois bem: a recusa hostil de
Staunton conseguiu, de uma só vez, abalar cada uma das três condições necessárias para
Morphy jogar xadrez – ou, em outras palavras, derrotar o pai de modo aceitável, garantindo a
sua saúde mental:
1) a primeira condição era a de que o combate fosse recebido amistosamente.
Não apenas o combate não foi aceito – por Staunton – como este declarou
aberta hostilidade a Morphy;
2) a segunda condição era a de que o jogo estivesse associado a motivos
respeitáveis, e bem lembramos que Staunton fez questão de acusar
explicitamente Morphy de ter intuitos mercenários, jogar para ganhar
dinheiro (um motivo nada louvável);
3) por fim, a terceira condição era a de que o jogo de xadrez fosse
considerado uma atividade de adultos, e Staunton deixou claro seu desdém
pelo fato de Morphy ser ainda muito jovem e alegou ter ―mais o que fazer‖
(como um adulto) do que perder tempo com bobagens (jogar contra uma
criança).
166

Abalado em seus três pilares fundamentais, teria ocorrido algo como uma falência
dos ―disfarces‖ do jogo, uma perda da função simbólica sobre um combate real. Isto é, sem
essas três condições garantidas o caráter infantil, edípico e hostil do combate estaria
deflagrado, fazendo o jogo aproximar-se perigosamente das ―reais intenções‖ do jogador de
xadrez: derrotar o pai. Nas palavras de Jones:

Diante dessas acusações Morphy fraquejou, sucumbiu e abandonou o mau caminho


de sua carreira no xadrez. Foi como se o pai tivesse descoberto suas más intenções e
estivesse, por sua vez, adotando agora uma hostilidade similar contra ele. O que
parecia ser uma expressão inocente e louvável de sua personalidade estava agora se
manifestando como o mais infantil e desprezível dos desejos, impulsos inconscientes
de cometer uma agressão sexual contra o pai e ao mesmo tempo mutilá-lo
completamente: em resumo, dar o ―mate‖ nele, tanto no sentido inglês como no
sentido persa da palavra. Obediente aos desejos de seu pai real ele agora estava
comprometido com a profissão adulta do Direito e havia descartado aquilo que lhe
disseram ser uma ocupação de crianças, o xadrez. Mas era tarde demais: seus
‗pecados‖ o perseguiam. 391

No último parágrafo do estudo Jones ainda faz uma contribuição clínica,


relacionando o colapso de Morphy com a ansiedade tão comum entre pacientes em trabalho
psicanalítico ao se verem ―despidos‖ das sublimações que erigiram como defesa. Uma bela
forma de encerrar o trabalho!
E assim Jones conclui seu escrito sobre o jovem gênio enxadrista Paul Morphy,
optando por sua própria interpretação do caso (diga-se de passagem, que nos pareceu
notavelmente acurada), ainda que considere, antes de se posicionar, as interpretações que
quiçá Freud faria.
Ao contrário de Freud, que interpretaria que Morphy fracassou no triunfo, Jones
enxerga que Morphy fracassou no fracasso.
Em síntese, em seu interessante trabalho, Jones revela ao mesmo tempo a
psicologia do gênio, a questão edípica, o papel revelador dos jogos (enquanto função
simbólica e elaboração de conflitos inconscientes profundos, como Klein desenvolveria como
técnica na psicanálise de crianças), de que forma a História com H maiúsculo (a História do
Homem, a herança cultural) se revela na história de um homem (ou, dito de outra forma, a

391
―In the face of this accusations Morphy‘s heart failed him, he succumbed and abandoned the wicked path of
his chess career. It was as if the father had unmasked his evil intentions and was now adopting a similarly hostile
attitude towards him in turn. What had appeared to be an innocent and laudable expression of his personality was
now being shewn to be actuated by the most childish and ignoble of wishes, the unconscious impulses to commit
a sexual assault on the father and at the same time to maim him utterly: in short, to ‗mate‘ him in both the
English and the Persian senses of that word. Obedient to his actual father‘s wishes he now engaged in the grown-
up profession of law and discarded what he had been told was the childish pre-occupation of chess. But it was
too late: his ‗sins‘ pursued him.‖ (Jones, 1974, Vol 1, p. 193-194)
167

natureza cultural do inconsciente, se podemos dizer assim) e mais: considera as reflexões de


Freud para uma primeira leitura do colapso de Morphy mas prefere enveredar por outro
caminho, talvez oposto. Se Freud talvez interpretasse que Morphy foi um dos que ―fracassou
no sucesso‖, Jones escolhe interpretar como a história de alguém que ―fracassou no fracasso‖,
já que não só não conseguiu atingir seu principal alvo – o homem que simbolizava a imago
paterna, Staunton – como viu a falência de toda sua estrutura psíquica diante de uma suposta
―realização‖ do que temia no registro da fantasia.
Nesse momento devo me permitir contar ao leitor os caminhos de meus estudos e
como o fator surpresa operou para a caracterização do caminho teórico do artigo – e, se
podemos arriscar, da própria psicologia de Jones. É muito interessante como este processo se
deu: estava já no fim da leitura do trabalho de Jones e, após a descrição detalhada dos
acontecimentos que levariam Morphy ao colapso psíquico, Jones inicia suas reflexões
teóricas-interpretativas sobre o caso.
Cita – como costuma sempre citar – Freud e uma explicação que muito
provavelmente o mestre faria: tratar-se-ia de mais um caso daqueles que ―fracassam no
triunfo‖. Isto é: Morphy, não suportando ―matar o pai‖ com tanto sucesso, e sem ser
impedido, repetidas vezes (em cada partida de xadrez vitoriosa), contra adversários dos mais
poderosos (―pais‖ com mais ou menos poder e capacidade), sucumbiria: não é possível, afinal,
realizar a fantasia edípica sem esperar uma punição equivalente: essa punição tomaria a forma
de colapso.
Nesse momento interrompi minha leitura. ―Interessante‖, – pensei- ―a forma como
Jones se vale da teoria freudiana para tecer suas próprias interpretações sobre um caso que o
interessa – e a aplica, a meu ver, com coerência e maestria‖. De fato é uma interpretação
rigorosa e tradicionalmente psicanalítica, e Jones se situaria assim como a imagem que já
tantas vezes me ocorrera: ―o melhor aluno da classe‖. Isto é, aquele que entende toda a
matéria, absorve tudo o que o professor transmite e então reproduz e aplica, fiel e exatamente,
a teoria aprendida nas mais diferentes situações, demonstrando o aprendizado profundo e a
versatilidade de usos da teoria do mestre. A inteligência e perspicácia então se mostram tanto
no professor como no aluno: o professor ao criar a teoria, o aluno por compreendê-la e, ao
torná-la sua, fazer uso dela em suas produções.
Já intuindo que o trabalho de Jones – que se aproximava do fim – seguiria por
essa linha de interpretação, fiz uma pausa em minha leitura e me dediquei algum tempo a
outras leituras sobre Jones. Quando voltei para finalmente terminar a leitura do artigo sobre
168

Morphy – já não esperando ler nada de diferente das análises já encaminhadas – me


surpreendi.
Ao final do trabalho, Jones dá uma reviravolta em suas reflexões e recusa a
interpretação que talvez Freud faria. Afirma: ―Eu não penso que a explicação completa esteja
aí.‖ 392
Por desconfiar de que a explicação do ―fracasso no triunfo‖ não fosse a mais
cabível (ou mais completa, ou complexa) para o caso em questão, Jones opta por um caminho
diferente: embora não chegue a usar esses termos defende a ideia de que Morphy fracassou no
fracasso. Isto é, como vimos, foram aquelas três condições para seu equilíbrio psíquico que
não foram atendidas – de uma só vez – na recusa hostil de Staunton de jogar com ele.
Jones, para minha total surpresa, considera a teoria do mestre para em seguida
refutá-la: chega a cogitar seguir por esse caminho teórico mas se desvia, escolhendo ao final
sua própria (autoral?) interpretação da doença psíquica de seu ―paciente‖. (Diga-se de
passagem, o que me pareceu uma interpretação profunda, extremamente sagaz, perspicaz,
essencialmente psicanalítica).
Sem abrir fogo contra o mestre diretamente, Jones faz uso de seu método (o
raciocínio clínico psicanalítico) mas rejeitando a explicação que Freud daria.
A associação com o poema ―Cântico Negro‖ foi inevitável:

―Cântico Negro (José Régio)393

‗Vem por aqui‘ — dizem-me alguns com os olhos doces


Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: ‗vem por aqui!‘
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

392
―I do not think the full explanation can lie here.‖ (Jones, 1974, Vol 1, p.190-191)
393
Fonte: <http://www.releituras.com/jregio_cantico.asp>.
169

Não, não vou por aí! Só vou por onde


Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: ‗vem por aqui!‘?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: ‗vem por aqui‘!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!‖
170

394
Estaria Jones propondo uma partida de xadrez com Freud? Freud seria o rei a
ser deposto, a figura paterna a ser desafiada?
Jones apresenta o personagem (Morphy), nos leva a raciocinar psicanaliticamente
pelas bases de Freud (somos levados pelas suas mãos), e interpretamos, assim, o que é
aparente/manifesto como diferente/oposto do que está oculto: isto é, Morphy fracassou, mas
teria fracassado pelo sucesso (aí a inversão: um manifesto que oculta um latente invertido)
Em outras palavras, não se trata se um fracasso simples, há um sentido oposto: é na verdade o
sucesso que o incomoda Morphy.
Mas Jones então nos dará uma rasteira: não irei por esse caminho interpretativo. E
se Morphy tiver de fato fracassado em seu fracasso? Mas não da maneira que pensamos,
porque não se trata de um fracasso óbvio (há motivos ocultos a serem descobertos e
revelados, mas estes não residem no ―sucesso‖, e sim nas três condições –insatisfeitas por
Staunton- do disfarce das intenções edípicas que o jogo de xadrez apresenta.)
O fracasso que Jones analisa é o fracasso latente ao fracasso aparente (isto é,
falências das três condições levando ao colapso psíquico). Sua tese é então a de que o
processo de sublimação tem uma função defensiva, e que os impulsos de Morphy no jogo
eram de uma natureza mista (entre impulsos parricidas e libidinais homossexuais):395 o
―colapso da sublimação‖ levou ao colapso do enxadrista.
Jones quase faz uso da teoria freudiana para distrair o leitor, ao fazê-lo acreditar
que a teoria freudiana facilmente explicaria o caso de Morphy – mas ao final, recusa a teoria
de Freud e apresenta sua própria interpretação.
De fato muitos pontos da análise de Jones neste trabalho são interessantes aqui,
tanto na forma (que, como vimos, dá uma rasteira no leitor, contrariando expectativas), quanto
no conteúdo (a novidade de interpretar ‗um fracasso como fracasso‘).
Em primeiro lugar, salta aos olhos o interesse de Jones pelos gênios: pessoas com
alguma capacidade extraordinária, que se destacam dos demais e deixam marcas na História.
Não à toa seria Jones conhecido internacionalmente como ―o biógrafo de Freud‖, isto é,
podemos afirmar sem medo de errar que Jones dedicou sua vida ao estudo de um gênio –
Freud – e de sua criação, a Psicanálise. No fim de sua vida sintetizou toda essa dedicação e

394
A imagem de Jones jogando xadrez com Freud é de Decio Gurfinkel, em conversa sobre o artigo em questão.
395
Jones irá falar em um impulso parricida ―envolto‖ ou ―coberto‖ de impulsos homossexuais, e que estes
últimos seriam sublimados. É pena que esta interessante imagem de ―envelopagem‖ (de um impulso sobre o
outro) seja apenas mencionada en pasant ao final do artigo, e que Jones não o desenvolva – seria muito
interessante entendermos este fenômeno um pouco melhor.
171

interesse supremos em uma obra de três volumes, entrando com profundidade da vida e obra
do mestre, gênio e mestre de sua mais profunda admiração.
Muito antes de dedicar-se à biografia de Freud, no entanto, Jones já dá mostras de
ter um fascínio especial pela genialidade, como no presente estudo sobre o enxadrista Paul
Morphy.
Vimos também, em ―O Complexo de Deus‖, como Jones se interessa
profundamente pelas figuras tomadas pelo complexo paterno e pelos sonhos e fantasias
megalomaníacos. Sujeitos que acreditam ser Deus, que se identificam com autoridades
máximas como reis e imperadores, ou que, como vimos – em um sintoma aparentemente
surpreendente – são modestas em exagero (segundo Jones, apenas uma apresentação ―às
avessas‖ dos delírios de grandeza, ou, em outras palavras, uma formação reativa).
Todas essas figuras – Deus, o gênio, ou ainda o Imperador, o Rei,– podem ser
interpretados de certa forma, em nosso olhar sobre Jones e alguns de seus interesses
principais, como ―variações sobre o mesmo tema‖. Cabe então perguntar: Na leitura da vida e
do fracasso de Morphy (fracasso profissional mas sobretudo fracasso psíquico, no fim da
vida), Jones estaria de certa forma nos dando pistas de estar ele mesmo às voltas com seu
complexo paterno – ou, para sermos mais explícitos, com seu pai-Freud?
A questão do sucesso e do fracasso sempre preocupou Jones em sua vida pessoal e
profissional. Bem nos lembramos (já o vimos no capítulo sobre o ―O complexo de Deus‖) de
como oscilava entre momentos de exagerada humildade (o que é um sintoma de delírio de
grandeza, de acordo com o próprio!) e de auto engrandecimento.
Em sua autobiografia, Jones abre o capítulo sobre sua relação com o movimento
psicanalítico com a afirmação categórica: ―Uma vez que eu tive uma participação
proeminente, do começo ao fim, naquilo que vem sendo chamado de movimento
psicanalítico, é bom destacá-lo em uma consideração especial. Tem sido de longe a coisa mais
importante da minha vida – sem a qual esse livro não teria razão de ser – e, penso eu, deve
também ter um lugar não- insignificante na história da ciência.‖ 396
O ―it‖ da língua inglesa deixa a frase com um caráter ambivalente, podendo levar
tanto à interpretação de que o movimento psicanalítico teria um papel importante na história
da ciência como a participação de Jones neste movimento tendo essa importância histórica –

396
―Since I played a prominent part, from start to finish, in what has been called the psycho-analytical
movement, it is well to single it out for special consideration. It has been by far the most important thing of my
life – without it this book would have had no justification – and, so I think, it will also have a not insignificant
place in the history of science.‖ (Jones, 1959, p. 201)
172

ou, ainda, seu próprio livro (autobiografia). De qualquer modo, a primeira frase do parágrafo
já deixa clara a intenção de Jones de dar importância a si mesmo – essa é a ênfase.
A oposição sucesso-fracasso, o ser ou não significante (‗para a história da
ciência‘), deixar ou não um legado, ser, afinal, importante ou desimportante, parece ser de
tanto relevo para Jones que este chega a estruturar sua própria biografia sob as égides desta
dualidade, organizando-a em capítulos chamados:

―6. Sucesso

7. Fracasso‖397

Mas afinal, qual dos dois mais caracterizaria Jones?


Teria afinal Jones, tal como Morphy, ―fracassado no fracasso‖ ou, como seria a
interpretação freudiana, ―fracassado no triunfo‖? Em outras palavras: teria Jones anulado ou
diminuído sua própria importância justamente por não conseguir duelar com Freud-Staunton?
Seria a imago paterna tão poderosa que o inibia, fazendo-o recolher suas peças de xadrez e
abdicando, ou desistindo de vez de jogar seu jogo e ―fazer frente‖ ao mestre/pai? (Fracassar
no fracasso?) (E ainda: talvez esse jogo nem tenha acontecido não porque Jones desistisse da
partida mesmo antes que ela começasse, mas que a recusa de jogar tenha vindo do próprio
Freud que, como vimos, parecia em muitos momentos não levar Jones a sério. Assim como
Staunton não queria perder tempo com um menino, também Freud por vezes dá mostras de
não considerar a obra de Jones digna de nota, e, como nos lembramos, em uma ocasião chega
a se referir ao galês como um ―aluno de escola‖ [no original ―schoolboy]).
Ou pelo contrário, seria a realização de seus sonhos de grandeza e megalomania –
alcançados em parte pela visibilidade de algumas de suas obras (tal como seu estudo sobre
Hamlet (1910), que teve repercussão, ou a coletânea Papers on Psycho-Analysis, de 1912, o
primeiro livro sobre psicanálise em inglês, que foi editado simplesmente cinco vezes) ou por
sua liderança em praticamente todos os ramos do movimento psicanalítico (como presidente
em tantas edições junto à IPA, como editor do Journal, como fundador da Sociedade
Britânica), que provocariam em Jones a culpa edípica de ter alcançado ―tudo‖, ―conquistado a
América‖, fazendo frente a um pai (ao menos no registro da fantasia) supostamente
enfraquecido e cego diante de tanto brilho? (Fracasso no triunfo?)
Lilla Veszy-Wagner também enxerga sonhos megalomaníacos em Jones, e
interpreta:

397
(Jones, 1959, Sumário)
173

Como Freud, Jones era um filho favorito e, como não experimentava sentimentos de
culpa muito fortes, também não tinha a necessidade intrapsíquica de afogar seus
devaneios ‗megalómanos‘ mais ou menos inocentes. Assim, fantasiava que no futuro
o analista ou o psicólogo médico, assim como o sacerdote do passado, constituiriam
uma fonte de sabedoria prática e uma influência estabilizadora no mundo caótico,
que a comunidade consultaria antes de embarcar em qualquer empreendimento
político ou social de importância. Embora fosse sem dúvida um sonho muito
ambicioso, em sua velhice tornou-se realidade, pelo menos em parte, se levarmos
em conta a influência que Jones exerceu no movimento psicanalítico.398

(Não estou de acordo com a autora sobre os supostos ―sentimentos de culpa


fracos‖ de Jones, que coloco em questão. O próprio galês vai afirmar, em carta a Freud, que
sempre sofreu de um terrível complexo de culpa relacionado a problemas com figuras de
autoridade e que, com a Psicanálise, estava conseguindo se livrar dela).399
O próprio Jones reconhece em si o que chamou de ―complexo de onipotência‖.
Em sua autobiografia, afirma que seus êxitos precoces na vida teriam contribuído para a
formação de um auto engrandecimento de qualidade quase ―onírica‖– o que, admite, não lhe
fez muito bem:

Acho que o maior prazer que obtive desse sucesso foi a alegria que gerou na minha
família; minha mãe estava obviamente encantada e meu pai rompeu sua reserva no
esforço de expressar sua satisfação. Mas isso presumivelmente atendia ao meu
"complexo de onipotência", que estava começando a ser mais forte do que seria bom
para mim. Não há dúvida de que esse tipo de sucesso é recebido pela mente
inconsciente como um sinal de que a sorte está a seu favor, de que você é ‗correto‘ e
de que não há necessidade de autocrítica, com seu sentimento de culpa nas esferas
da religião e do sexo, isso necessariamente coloca uma tensão considerável em meu
equilíbrio e harmonia mental induzindo um balanço no sentido oposto.

E mais adiante retoma a autoanálise tecendo uma relação entre sentimentos de


inferioridade e de onipotência:

O desmame prematuro e a saúde frágil foram combinados com fatores internos para
induzir um profundo sentimento de insegurança e inferioridade, contra o qual a força
vital (porque eu sempre tive uma vitalidade incomum) reagiu construindo uma
defesa no extremo oposto, uma crença injustificada na onipotência dos meus desejos

398
―Al igual que Freud, Jones fue um hijo predilecto y, puesto que no experimentaba sentimentos de culpa
demasiado intensos, tampoco tenía necesidad intrapsíquica de ahogar sus ensoñaciones ‗megalomaníacas‘ más o
menos inocentes. Así, fantaseaba que en el futuro el analista o el psicólogo médico, ao igual que el sacerdote de
la antegüedad, constituirían una fuente de sabiduría práctica y una influencia estabilizadora en el mundo caótico,
al que la comunidad consultaría antes de embarcarse en cualquier empresa política o social de envergadura.
Aunque se trataba, sin duda, de un sueño muy ambicioso, em su vejez se hizo realidad, por lo menos en parte, si
tenemos en cuenta la influencia que Jones ejerció dentro del movimento psicoanalítico.‖ (Veszy-Wagner, 1968,
p. 23-24)
399
Carta de 30.01.1912 in Correspondência Freud-Jones, p. 130. Citada por Maddox, 2006, p. 98.
174

que me tranquilizavam com a promessa certa de eu deveria conseguir o que quisesse


- desde que eu quisesse bastante.400

Em seu texto Veszy-Wagner resgata esse complexo (por Jones mesmo


confessado) e complementa: ―Devemos salientar que, embora Jones não tenha dito
expressamente, sua vitória adolescente contra um pai aparentemente fraco, que precedeu seu
sucesso acadêmico, exerceu mais influência sobre seu sentimento posterior de culpa do que
seus fracassos.‖401 (Estaria aí exatamente o fenômeno que Freud descreveu como ―fracasso no
triunfo‖: Jones então seria acometido por uma culpa desmedida como consequência de ter
alcançado ―sucesso demais‖ na juventude, o que humilharia, ao menos no registro da fantasia,
seu pai.) Mas afinal, quanto sucesso é necessário, ou qual seria o ―limite‖ do sucesso
―permitido‖ para que não se converta em fracasso? Isto é, como aliar os êxitos com o
sentimento de culpa edípico? (Questão que, como vimos, levou ao ―fracasso no fracsso‖ para
Paul Morphy diante da arqui-imago paterna de um Staunton hostil?)
Podemos pensar que talvez a saída psíquica para o conflito de manter sonhos
megalomaníacos de auto-engrandecimento e de sucesso exagerado (e o potencial ―rebote‖ de
culpa decorrente) seja o caminho do equilíbrio, da moderação: o ―dosar‖ o sucesso e fracasso,
auto-importância e humildade para quem sabe assim não bater de frente com ―nenhum‖ pai
(nem seu pai real, nem Freud, o pai simbólico).
É o que o próprio Jones parece concluir: encerrando o capítulo ―Sucesso‖ de sua
autobiografia, consegue, ao menos no registro da escrita, combinar fracasso e sucesso sem
tanta oposição, compreendendo afinal (após discorrer sobre seus fracassos, em um capítulo, e
seus sucessos, em outro) que tanto o sucesso quanto o fracasso compõem a vida e tal oposição
fixa não deve balizá-la:

Assim terminei este período da minha vida com uma combinação de grande sucesso
e pequenas frustrações em circunstâncias que tornaram mais fácil atribuir o primeiro

400
―I think the greatest pleasure I got from this success was the elation it generated in my family; my mother was
of course delighted and my father broke through his reserve in the endeavor to express his satisfaction. But it
presumably catered to my ‗omnipotence complex‘, which was beginning to be stronger than was good for me.
There is no doubt that success of this kind is taken by the unconscious mind as a sign that fortune is pleased with
one, that one is ‗all right‘, and that there is no need for further self-criticism, with its sense of guilt in the spheres
of religion and sex, it necessarily put a considerable strain on my mental balance and harmony by inducing a
swing in the opposite direction.‖ (1959, p. 105) e ―The premature weaning and early ill-health had combined
with internal factors to induce a deep feeling of insecurity and inferiority, against which life force (for I must
have had somewhere na unusual amount of vitality) had reacted by building up a defence of the opposite
extreme, na unwarranted belief in the omnipotence of my wishes which lulled me with the fatal promise that I
should get whatever I wanted – provided I wanted it hard enough.‖ (1959, p. 115)
401
―Debemos señalar que, aunque Jones no lo dice expressamente, su victoria adolescente frente a un padre
aparentemente débil, que precedió a sus éxitos académicos, ejerció más influencia sobre su sentimiento posterior
de culpa que sus fracassos‖ (1968, p. 21)
175

aos meus próprios méritos e o último aos deméritos dos outros. Eu deveria aprender
que a vida não deve ser dividida em compartimentos tão simples assim, e que a
questão de estimar o mérito e o demérito é um assunto muito mais delicado. Deus
sabe que há bastante injustiça no mundo, mas parte da arte da vida consiste em
aprender a aceitar esse fato inalterável como parte do jogo em vez de explorá-lo para
proteger o seu amour propre [amor próprio].402

É muito interessante observar como os próprios movimentos inconscientes


operam em uma atividade de pesquisa – como essa. Pesquisava a obra de Shakespeare, ―Júlio
César‖, a fim de compreender os meandros do sentimento de ameaça que Freud explicita (em
carta a Jung) em relação a Jones – como veremos no próximo capítulo – quando me deparei
com um aspecto da trama muito relevante para a presente discussão sobre Jones, Paul Morphy
e os jogos de xadrez (isto é, jogos de ―morte ao rei‖).
No início da peça, um adivinho alerta César sobre os perigos dos ‗idos de
março‘,403 aviso que o general ignora. Esta cena nos lembra claramente a de Édipo-Rei:
segundo o clássico grego (e clássico da psicanálise), Laio, o rei de Tebas, havia sido avisado
pelo Oráculo de Delfos que uma maldição iria acontecer: seu próprio filho o mataria - e este
filho se casaria com sua mulher (sua própria mãe)404. Em ambos os casos os adivinhos foram
certeiros: tanto o general quanto o rei – tanto César quanto Laio – foram traídos e mortos.
Ambos, portanto, deveriam temer possíveis conspiradores disfarçados em sua lealdade – no
caso de um, Brutus; no caso do outro, Édipo.
É preciso admitir: de fato, quando se assume um posto de poder, a posição
assumida é potencialmente perigosa. Súditos, filhos, amigos, passam a desejar (ou ao menos
existe o risco de que desejem) tomar o seu lugar, tirá-lo da posição privilegiada, desautorá-lo:
―Rei morto, rei posto‖. Algumas cenas mais tarde, na peça de Shakespeare, ficamos sabendo
que Marco António ofereceu a César a coroa de Roma três vezes, e em todas as vezes César
recusou a oferta. Após a última recusa, César chegou a desmaiar. 405

402
―So I ended this period of my life with a combination of great success and minor frustrations in circumstances
which made it easy to attribute the former to my own merits and the latter to the demerits of others. I was to
learn that life is not to be divided off into compartments as simply as that, and that the matter of estimating merit
and demerit is a far more delicate affair. Heaven knows there is enough injustice in the world, but part of the art
of life consists in learning to accept that unalterable fact as part of the game instead of exploiting it to protect
one‘s amour propre.‖ (1959, p. 113)
403
―Cuidado com os idos de março‖ (―Soothsayer: Beware the ides of March.‖), Julius Caesar, 2005, p. 340.
―Idos de março: O décimo quinto dia de março.‖ (Glossário de SHAKESPEARE, W. Júlio César. Adaptação de
Diana Stewart, São Paulo: Melhoramentos, 1981)
404
Resumo de Édipo-rei em FERRARI, Juliana Spinelli. "Complexo de Édipo"; Brasil Escola. Disponível em
<http://brasilescola.uol.com.br/psicologia/complexo-edipo.htm>. Acesso em 17 de dezembro de 2017.
405
Para minimizar a dificuldade de ler Shakespeare no original, usamos e recomendamos a seguinte versão
traduzida em português: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/cesar.html
176

É muito interessante: advertido pelo adivinho de que um perigo o rondava, César


não dá ouvidos (ao menos ouvidos ―conscientes‖), mas quando chega o momento de assumir
a coroa, o medo o faz vacilar, recusar a oferta repetidas vezes. Não se trata de uma recusa
simples, inequívoca - já que também existia – supomos - o desejo de tomar o poder. O
conflito psíquico, a luta de forças entre o desejo e o medo é denunciada pelo desmaio na
ocasião da terceira oferta.
A cena que alude ao desmaio de César nos lembra muito o trecho de Freud em sua
carta a Romain Rolland sobre sua experiência na Acrópole, quando faz referência a Napoleão.
Acima de toda a importância do evento em si, o significado último do coroamento para
Napoleão estava no sentimento de triunfo sobre seu pai. Um imperador derrubando o outro:
eis a sucessão dos reinados e a sucessão das gerações no psiquismo humano (o filho depondo
o pai). Nesse sentido, se Napoleão conseguiu usufruir de seu triunfo e regozijou-se perante a
ideia de sobrepujar o próprio pai, César não teve a mesma condição: a culpa edípica parece ter
interferido na sua escolha de aceitar ser coroado. Na realidade - podemos inferir - não apenas
culpa, mas também o medo de ser deposto – e então nos lembramos da brilhante sequência
geracional que Jones revela em seu artigo ―The significance of the grandfather for the fate of
the individual‖ (1913): um homem teme não apenas seu próprio pai (pelo Édipo) como
também teme seu próprio filho (mais uma vez pelo Édipo: o ódio que sentiu pelo seu próprio
pai certamente virá, para si, por parte de seu filho). César assim, inferimos, espremido entre as
duas gerações (aliadas, segundo Jones, justamente por esta razão): avô e neto, seu pai e seu
filho, se mostra incapaz de aceitar o posto de poder paterno (o coroamento) por medo da
retaliação decorrente tanto de seu pai, como da vingança de seus filhos/súditos; e o conflito
entre desejo, culpa e medo o derrubaram, literalmente, em um desmaio.406
E ainda: mesmo reis ou governantes ―bons‖ temem ser depostos. Não é preciso
haver motivos concretos, justificáveis de vingança (basta a triangulação edípica...): e Brutus,
inclusive, é muito próximo de César.407 Brutus acaba decidindo se juntar a Cassius na

406
É muito interessante, ao reler o artigo do enxadristra, encontrar uma brevíssima menção: em uma das tantas
homenagens que recebeu nos EUA, voltando da Europa, em uma solenidade alguém discursou que ―Morphy era
maior que César‖ (Jones, 1974, p. 186.)
407
É fato histórico que Brutus era filho adotivo de César (consultar por exemplo
https://www.terra.com.br/noticias/educacao/voce-sabia/roma-antiga-saiba-como-julio-cesar-foi-
assassinado,cec96996723c4410VgnCLD2000000dc6eb0aRCRD.html), mas na tragédia de Shakespeare não
encontrei esse vínculo filial. Em minhas pesquisas, durante a escrita do presente trabalho, fiquei intrigada com
essa divergência (isto é, Brutus retratado como ―amigo‖ de César, em Shakespeare; e como ―filho adotivo‖ na
História factual.) E então, como um ―presente‖ inacreditável do inconsciente, passei por uma situação que
merece ser relatada: abandonei provisoriamente este questionamento (sobre a natureza do laço entre Brutus e
César) e, vários dias depois, me debrucei sobre outro trecho da tese (sobre o estudo jonesiano sobre Hamlet).
Relendo Jones, então me deparo com o seguinte trecho, em que o autor compara Hamlet com outra obra
177

conspiração contra César como um ato de impedimento, de ―prevenção‖ de que César viesse a
fazer algo de ruim ao povo romano, caso fosse coroado. É como se o poder, em si, ainda que
bem utilizado (um bom monarca) provocasse desejos de deposição, simplesmente pela
questão paterna. Mesmo um bom soberano deve, assim, temer seus filhos/súditos: uma vez no
trono, se está passível de deposição. No fim da vida, com mais de 70 anos de idade, Freud vai
fazer uma afirmação importante em uma carta a Jones: conclui que, de todas as oposições
psíquicas (pares de opostos) a mais significativa de todas é aquela entre velho e jovem: ―Em
poucos dias terei setenta e dois anos. (...) "Jovem" e "velho" agora me parecem os opostos
mais significativos que a alma humana pode abrigar, e um entendimento entre os
representantes de um e outro grupo é impossível.‖408 409
Podemos evocar muitos pontos de associação a partir dessa assertiva. Bem nos
lembramos da diferença de idade de mais de 20 anos entre Freud e Jones, e do fato de que,
nessa idade avançada (e debilitado pelo câncer), Freud assistia a uma inversão: enquanto ele,
já renomado, reconhecido pela obra de uma vida aos poucos se ―retirava‖ de suas atividades
(e, podemos dizer, da própria vida), Jones se encontrava no auge da potência (como homem e
profissional): aos quase 50 anos, com a esposa grávida (após se recuperar do luto da filha de

shakespeariana (justamente Júlio César!): ―Em Júlio César supõe-se não existirem relações de sangue entre os
dois homens, o ‗filho‘ e o ‗pai‘. Mas uma confirmação sumamente significativa da interpretação que adotamos é
a circunstância de que Shakespeare, ao compor a sua tragédia, suprimiu inteiramente o fato histórico de Brutus
ser filho, embora, ilegítimo, de César (...) Até a famosa exclamação de César agonizante, E tu, mi fili, Brute!,
aparece em Shakespeare apenas em sua forma atenuada: E tu, Brute!‖ (Jones, E. ―Hamlet e o Complexo de
Édipo, 1970, p. 123) Isto é, obtive do próprio Jones a confirmação de meus questionamentos: há de fato uma
diferença entre a natureza do vínculo entre Brutus e César na tragédia e na História. Na leitura de Shakespeare
não há indicações de laços filiais entre eles (ainda que Jones, com muito boa vontade, enxergue uma ou outra
insinuação bastante indireta, vaga e sutil). De qualquer modo, esta supressão na tragédia (do laço filial) não afeta
em absoluto a interpretação edípica, triangular, do assassinato do general: um ―governado‖ ou ―súdito‖ (seja
amigo ou filho adotivo) como Brutus terá, em relação a Júlio César, uma posição filial – e desejará, portanto, a
deposição do ‗pai‘(seja um pai real, adotivo ou simbólico). Ainda Jones: ―A investigação psicanalítica
demonstrou que um governante, seja ele rei, imperador, presidente, é para a mente inconsciente um típico
símbolo paterno e, na vida real, tende a atrair para si a atitude ambivalente característica dos sentimentos do filho
em relação ao pai.‖ (1970, p. 120)
408
Em minha dissertação de mestrado (publicada em livro: MARQUES, 2016) fruto de anos de experiência em
um projeto de interação entre duas gerações, pude demonstrar como entre velhos e jovens há muito mais pontos
de contato do que se pode imaginar. Freud, no entanto, aqui nos lembra indiretamente da importante oposição
edípica, e nesse sentido ―velhos‖ e ―jovens‖ de fato estão de lados opostos da ―trincheira‖.
409
―in a few days I shall be seventy-two years old. (…) ‗Young‘ and ‗old‘ now seem to me the most significant
opposites that the human soul can harbor, and an understanding between the representatives of either group is
impossible.‖ (Carta de 03.05.1928 in Freud-Jones correspondence, p. 646. Citada por Maddox, 2006, p. 198).
178

sete anos, morta por pneumonia)410 promovia encontros de alto nível na Sociedade
Britânica.411
Quando se conheceram, nos idos 1908, a situação era bem diferente: Freud estava
no auge dos seus 50 anos, e já experimentava o sabor do reconhecimento, enquanto Jones era
um jovem de 29 anos ainda em seus primeiros contatos com a Psicanálise, um total
desconhecido, estrangeiro, apenas com uma extrema boa-vontade e interesse como
credenciais – além de estar estudando com afinco a produção de Freud e tentando melhorar
seu alemão. Nas palavras de Steiner (1993): ―Deixando de lado o contraste entre o gênio de
Freud, o ‗conquistador‘ do inconsciente e a engenhosidade de Jones, que se tornaria o mais
astuto e institucionalmente bem sucedido ‗empreendedor‘, pelo menos no que diz respeito à
primeira geração dos seguidores de Freud, nós não devemos ignorar os mais de vinte anos que
os separavam.‖412
Impossível não nos lembrarmos da descrição do embate entre o jovem, magro e
baixo Paul Morphy e o seu adversário Anderssen, já se aproximando da meia idade, que
acabamos de estudar:

Deve ter sido uma cena memorável testemunhar esse jovem magro vencendo o
imenso, corpulento teutão de quarenta, não no sentido tradicional de um jovem herói
derrotando um gigante por ter uma imaginação mais audaciosa – porque nesse
quesito eles eram igualmente dotados e igualmente insuperáveis – mas por uma
profundidade de entendimento mais madura. O interesse dessa observação para
nosso intento é a indicação que isso dá de que na cabeça de Morphy o xadrez deve
ter significado uma atividade completamente adulta, e seu sucesso nela como uma
ocupação séria de um homem ao invés de uma ambição de rebeldia de um
menino.413

410
A propósito, na ocasião trágica da morte da filha de Jones, Maddox cita a carta acima (sobre as oposições
entre ―velho‖ e ―jovem‖) e nos conta que Freud o consola evocando sua juventude: ―Você e sua esposa são,
naturalmente, jovens o suficiente para recuperar o gosto pela vida.‖ (―You and your wife are of course young
enough to regain your feeling for life.‖) (Carta de 11.03.1928 in Freud-Jones correspondence, p. 643. Citada por
Maddox, 2006, p. 198).
411
Na biografia do mestre, Jones nos conta que Freud era especialmente sensível em relação à idade e não
gostava de ser considerado idoso: ―Em 13 de setembro os três amigos, com a minha partida e de Brill, visitaram
as Cataratas do Niágara, que Freud achou maiores e mais espetaculares do que havia imaginado. Mas na Caverna
dos Ventos sentiu-se ferido nos seus sentimentos quando o guia, empurrando os outros para trás, exclamou:
‗Deixem passar primeiramente o velho.‘ Era sempre sensível a tais alusões à sua idade.‖ (Jones, 1970, Vol II, p.
411-2)
412
―Setting aside the contrast between the genius of Freud, the ‗conquistador‘ of the unconscious, and the
ingenuity of Jones, who was to become its most astute and institutionally sucessful ‗entrepreneur‘, at least as
regards the first generation of Freud‘s followers, we must not overlook the more than twenty years that separated
them.‖ (Steiner, 1993, p. xxiii)
413
―It must have been a memorable scene to witness this slim youth overpowering the huge, burly Teuton of
forty, not in the traditional fashion of the young hero overcoming a giant by more audacious imagination – for in
this quality they were equally matched and equally unsurpassable – but by a more mature depth of
understanding. The interest of this observation for our purpose is the indication it gives that in Morphy‘s mind
chess must have signified a fully adult activity, and success in it the serious occupation of a man rather than the
rebellious ambition of a boy.‖ (Jones, 1974, p.175-176)
179

Teria o teutão Freud se sentido ameaçado414 pelo jovem magro, inteligente e


baixinho Jones? 415
Tempos depois, quando já trocavam cartas com frequência e abundância e suas
vidas já estavam irreversivelmente entrelaçadas, uma afirmação de Freud vai demonstrar que
tinha plena consciência dos significados psíquicos – para si mesmo – desta diferença de idade
com Jones – e, de maneira geral, com todos os seus jovens seguidores. Maddox nos conta que
no ano de 1912 a relação entre Freud e Jung ia de mal a pior e, no auge do ressentimento,
Jung vai acusar Freud de tratar todos os seus alunos como pacientes ou como filhos.416 E a
autora prossegue; a reclamação parece ser pertinente417 uma vez que em uma carta a Ferenczi
o próprio Freud chega a afirmar (ou admitir, podemos dizer) com todas as letras que tem com
Jones uma relação de pai e filho. (Na época Freud era o analista de Loe Kann, então
companheira de Jones, e o mestre também a inclui na ―prole‖): ―Estou agora completamente
satisfeito com meus filhos adotivos [Loe e Jones]‖ 418
Muitos anos antes o próprio Jones, em uma carta a Freud no início de sua relação
(1909), vai admitir (em um franco trabalho de autoanálise – hábito aliás comum em suas
cartas) que suas atitudes perante o movimento psicanalítico se devem a um forte ―father
complex‖. A biógrafa de Jones o revela se confessando– aproveitando para se desculpar pela
avidez de sua ambição:

Em poucas palavras, minhas resistências 419 não surgiram de objeções a suas teorias,
mas em parte de um absurdo egoísmo ciumento e em parte das influências de um
forte "complexo paterno". O senhor tem razão em supor que em algum momento eu
tenha tido a expectativa de desempenhar um papel mais importante no movimento
na Inglaterra e na América do que seria possível; ele [o movimento] tem de ser, e

414
A partir de colocações de Riccardo Steiner (1993), voltaremos a explorar o tema do sentimento de ameaça de
Freud em relação a Jones logo adiante.
415
É curioso: segundo os textos de referência, Paul Morphy e Jones teriam exatamente a mesma (baixa) estatura:
1,62m..
416
Em carta extremamente ácida a Freud, Jung (1912) diz: ―sua técnica de tratar os discípulos como pacientes é
uma asneira. Desse modo o senhor produz ou filhos servis ou fedelhos imprudentes (...) O senhor anda por aí
farejando todas as ações sintomáticas que ocorrem na sua vizinhança, reduzindo, assim, cada um ao nível de
filhos e filhas, que admitem envergonhados a existência de seus erros. Enquanto isso o senhor permanece ao
alto, como o pai, em situação privilegiada. Por puro servilismo, ninguém se atreve a puxar o profeta pela barba‖
(Carta de 18.12.1912 in Correspondência Freud-Jung, p. 524. Citada por Maddox, 2006, p. 106).
417
Freud se referia a Jung, durante um tempo, como seu ―filho e herdeiro‖ (Jones, 1970, v. II, p. 390). Ferenczi
também se colocava nessa posição filial perante o mestre (ainda que um filho desobediente): ―Me sinto como o
filho rebelde, que só tem travessuras para contar.‖ (―Me siento como el hijo díscolo, que sólo tiene travessuras
para contar.‖) (Carta de 02/02/1916, de Falzeder, 1994, v. II. 1, p. 158).
418
―I am now altogether satisfied with my adopted children [Loe e Jones]‖ (Falzeder, v. I. 2, 1994, p. 45. Citada
por Maddox, 2006, p. 106.
419
Jones aqui certamente se refere a resistências que teve em relação a Brill, a quem tratou com aberta
hostilidade – em virtude de, provavelmente, impulsos de rivalidade – e Freud o repreenderia por isso.
180

deve ser, dirigido pelo senhor, e fico feliz de ser útil no que estiver ao meu alcance,
seguindo as suas diretrizes.420

Vemos, nessa troca de cartas, uma clara disputa de território. Freud parece sentir
Jones como um ambicioso insaciável, querendo garantir para si a ―colonização‖ de países
anglófonos em Psicanálise, mas muito rapidamente alerta Jones: eu e somente eu dirijo este
movimento, você atua representando a mim e a ―Causa‖. Um lembrete de quem é o pai e
quem é o filho se torna necessário, diante de um filho muito afoito – e, o que é pior, que vive
em um país distante e fala outro idioma - e é portanto mais difícil de controlar.
A resposta de Jones ao chamado do ―pai‖ é de servilidade: ―sim, mil perdões,
assim o farei, estou aqui para servi-lo...‖. Como trabalhei em minha dissertação de mestrado
(publicada em 2016), a associação entre os pares pai-filho e velho-jovem está nos próprios
fundamentos da teoria edípica de Freud: ―Em ―Lapsos de língua‖ (1901), Freud interpreta o
lapso de um homem que, ao saudar um idoso, ao invés de usar um termo honroso acaba
chamando-o de ―velho burro‖. Diz Freud: ―Existem poderosas puniçoes internas para
qualquer falta de respeito pelos de mais idade (ou seja, reduzindo isto a termos da infância: do
respeito pelo pai)‖ 421
Aqui vemos como o respeito aos mais velhos é associado imediatamente ao
respeito filial e poderíamos mesmo compreender que a figura do idoso assume o mesmo
estatuto do pai, ―nos termos da infância‖, como assinala Freud. Como a rigor os ―termos da
infância‖ são os termos do próprio psiquismo, em qualquer idade (de fato o infantil está na
própria constituição da organização da sexualidade), pode-se compreender que em qualquer
etapa do desenvolvimento humano a figura do pai – do velho – demanda respeito. A
reverência social aos de mais idade seria, assim, uma transferência da reverência ao pai, e
transgredi-la é sinônimo de falha grave, merecendo punição (externa ou interna). O lapso
―velho burro‖ no lugar de um termo carinhoso para ―velho‖ delata o autor do ato-falho em sua
posição de desafio e ridicularização do poder paterno.‖ 422
O embate entre as gerações seria, por assim dizer, o próprio conflito edípico
representado pelos segmentos etários; os ―velhos‖ representando o pai, os ―jovens‖

420
―Shortly put, my resistances have sprung not from any objections to your theories, but partly from an absurd
jealous egotism and partly from the influences of a strong ―Father complex‖. You are right in surmising that I
had at one time hoped to play a more important part in the movement in England and America than I now see is
possible; it must, and should, be directed by you, and I am content to be of any service in my power along the
lines you advise.‖ (Carta de 18.12.1909 in Freud-Jones correspondence, p. 34. Citada por Maddox, 2006, p. 79).
421
Freud, 1901, v. VI, p. 110-111
422
Marques, 2016, p. 83-84.
181

representando o filho.423 É evidente o medo edípico que se reedita no filho (Jones diria: não à
toa a aliança entre avô e neto, ambos ―inimigos‖ da geração intermediária, o pai).
Segundo Veszy-Wagner (1968) o grande receio de Freud é que Jones seja ousado
demais e chegue a fundar uma nova escola:

Jones ajudou ativamente muitos analistas de origem judaica, apesar de que, durante
muito tempo foi objeto de uma desconfiança superficialmente racionalizada, e
basicamente irracional, que levou inclusive Freud a duvidar durante um tempo. O
pretexto era que Jones se mostrava autoritário e intolerante; talvez tenha dado essa
impressão devido ao seu exigente rigor ou ao seu formalismo em certas questões, ou
então, como ele mesmo chegou a pensar, que não levava muito em consideração a
sensibilidade alheia. Mas um fator adicional foi, sem dúvida, a desconfiança
implícita, mas intensa, que o círculo de Freud (após a deserção de Jung, Adler e
Stekel), tinha de que uma personalidade tão original e enérgica – sobretudo alguém
que não era judeu – podia sentir-se facilmente tentada a romper com eles e fundar
outra “nova escola‖ [grifo meu].424

423
Já vimos que o tema foi explorado belissimamente por Jones em seus dois artigos . ―The phantasy of the
reversal of generations‖ e ―The significance of the grandfather for the fate of the individual‖, ambos de 1913.

424
―Jones ayudó activamente a muchos analistas de orígen judio, a pesar de ló cual durante mucho tiempo fue
objeto de uma desconfianza superficialmente racionalizada, y basicamente irracional, que llevó incluso Freud a
dudar durante un tiempo. El pretexto era que Jones se mostraba autoritário e intolerante; quizás haya dado esa
impresión debido a su exigente rigor o a su formalismo em ciertas cuestiones, o bien, como él mismo llegó a
pensarlo, a que no tomaba demasiado em cuenta la sensibilidad ajena. Mas um factor adicional fue, sin duda, la
desconfianza implícita, pero intensa, que el círculo de Freud (luego de la defección de Jung, Adler e Stekel),
abrigaba en el sentido de uma personalidad tan original y enérgica – sobre todo alguien que no era judio –
podia sentirse facilmente tentada de romper com ellos y fundar otra “nueva escuela”.” (Veszy-Wagner, 1968,
p. 16-17) [grifo meu] E, se não chegou a fundar exatamente sua nova escola (uma ―jonesiana‖), seguramente
Jones foi um suporte da maior importância para a escola de Klein, e a biografia do galês nos mostra um dado
importante. Maddox, ao nos contar sobre a crescente contrariedade de Freud com as ideias ―londrinas‖, traz a
citação de uma carta de Freud a Max Eitingon: ―Foi para Eitingon que Freud confiou sua suspeita de que Jones
preferia Klein por raiva de Anna tê-lo recusado como pretendente. Além disso, Freud agora suspeitava que Jones
favorecesse a cisão kleiniana por ambição ‗de se tornar independente da Europa e estabelecer seu próprio
domínio anglo-americano, algo que ele não pode fazer muito bem antes da minha morte, e ele acredita ter
encontrado uma boa oportunidade na contradição parcial entre Anna e a Sra. Klein.‘‖ (Maddox, 2006, p. 194) ―It
was to Eitingon that Freud confided his suspicion that Jones favoured Klein out of anger with Anna for having
refused him as a suitor. Moreover, Freud now suspected Jones of fostering the Kleinian schism out of ambition
‗to become independent from Europe and to establish his own Anglo-American realm, something which he
cannot very well do before my demise, and he believes he was found a good opportunity in the partial
contradiction between Anna and Mrs Klein.‘‖ (Maddox, 2006, p. 194) Steiner (1993) analisa as cartas Jones-
Freud e comenta que Jones por vezes usa termos que insinuam uma maior independência de Viena: ―Nós da
Inglaterra..‖ ou ―Nossos pontos de vista em Londres...‖ (Steiner, 1993, p. xl). Phillips (1998), que da mesma
forma analisou esta correspondência, também menciona que, com a chegada da vanguarda psicanalítica em
Londres – Melanie Klein – Jones ―evidentemente estava ao mesmo tempo confuso e instigado pela possibilidade
de uma cisão com Freud e o grupo de Viena.‖ (1998, p. 176)

Na opinião de nosso contemporâneo britânico Dr. Hinshelwood, o galês, por mais que representasse o ―risco‖
(ou o desejo?) de fundar uma nova escola, - como estamos vendo - de fato não o fez. Em suas palavras: ―Jones
nunca criou uma nova direção de qualquer tipo na psicanálise.‖ (―Jones never founded a new direction of any
kind in psychoanalysis‖.) (Ver Anexos) Coloco em suspenso essa afirmação tão contundente, porém: lembremos
que a escola kleiniana nasceu sob o forte impulsionamento de Jones...

Winnicott, em seu obituário para o galês, apontou que Jones, embora não fosse afeito a criar termos novos,
―farejava‖ originalidade e gostava de apoiar ideias novas, como as de Melanie Klein. (1958, p. 307)
182

Como no ―Cântico negro‖, o perigo é que Jones finalmente dissesse:

―Não sei por onde vou,


Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!‖

Em outras palavras, o receio é de que o filho supere o pai, o derrote, o abandone,


não mais o obedeça e escape ao seu domínio, crescendo, desenvolvendo suas próprias ideias e
fundando, talvez, seu próprio reinado – isto, tornando-se, ele mesmo, ―pai‖ de suas próprias
teorias, tendo em seguida, quem sabe, seus próprios filhos-seguidores – o que deslocaria o
poder de Freud.
E assim o franzino e jovem Jones-Morphy se vê às voltas com o conflito de
assumir, ou não, um jogo de xadrez, de ―morte ao rei‖, com o gigante monarca Freud-
Staunton: fracasso no fracasso ou fracasso no sucesso?
183

VII A DESIMPORTÂNCIA DE SER ERNEST JONES

VII.1 João-ninguém?

Em 1895 Oscar Wilde montou no teatro do St James, em Londres, uma peça


teatral chamada ―The importance of being Earnest‖. Segundo nos ensinam Corsino e Ramos
(2011), a tradução deste título para o português é uma tarefa complicada, já que se trata de um
trocadilho entre um adjetivo e um nome próprio masculino: em inglês ―Ernest‖ é um nome
masculino, enquanto ―earnest‖ é adjetivo (sério, importante), e ambos possuem o mesmo som.
Para que a brincadeira do trocadilho se mantenha, a tradução do nome da peça também deve
providenciar um trocadilho semelhante.

O poeta brasileiro Guilherme de Almeida (1890-1969) conseguiu solucionar o


desafio e adotou o nome próprio ―Prudente‖ (também adjetivo em português). O nome da
peça então foi traduzido como: ―A importância de ser prudente‖, mantendo o jogo de
palavras original. (Corsino & Ramos, 2011)
Mas a peça e seu jogo de palavras parecem não ter passado despercebidos por um
psicanalista britânico chamado Adam Philips. Um século depois da estreia de Wilde, Philips
escreveu uma resenha aparentemente brincando com o nome da peça de Wilde e um traço de
Ernest Jones: ―The unimportance of being Ernest‖ (―A desimportância de ser Ernest‖) (1993),
publicado pela London Review of Books. 425
A resenha de Philips (1993) analisa a correspondência completa entre Freud e
Jones (Paskauskas, 1993) ao longo de 31 anos (a troca de cartas mais longa da vida do mestre)

425
Phillips não menciona a peça de Oscar Wilde explicitamente em seu texto, mas em meus estudos, ao longo de
quatro anos, acabei me deparando com o nome dessa peça – quase idêntico ao título do texto de Phillips, o que
me fez deduzir (com alguma segurança, visto o grau de semelhança) em uma alusão intencional do autor.
Procurei exaustivamente me recordar como encontrei essa peça de teatro para contar a associação no presente
trabalho – se fruto de algum sonho, associação ou leitura, mas não fui capaz de me recordar. (Se algum leitor
encontrar em algum lugar essa associação explícita entre Phillips e a peça de Oscar Wilde, ficarei grata se me
informar e faço a inclusão). Fazendo o exercício, porém, de procurar no Google pelo título do artigo de Phillips
―The unimportance of being Ernest‖ automaticamente o site de pesquisas sugere ―The importance of being
Earnest‖, justamente o nome da peça de Oscar Wilde. Isto é: trata-se de uma associação bastante clara e não tão
difícil de encontrar. É possível, portanto, ainda que não possa afirmar com certeza, que esta busca simples no
Google tenha me sugerido a associação entre os títulos. É possível também (é a hipótese mais forte para mim)
que em uma época em que eu procurava uma citação de Oscar Wilde tenha me deparado com o nome dessa peça.
Como o próprio autor informa nos Agradecimentos do livro, esse mesmo texto (―The unimportance of being
Ernest‖) foi republicado (e traduzido em português), com pequenas modificações, sob outro título: ―Freud e
Jones‖, capítulo integrante de seu livro ―O flerte‖, de 1998 (e também foi publicado em 1994 na Nouvelle Revue
de Psychanalyse, não pude localizar com qual título). Como alguns trechos desta edição brasileira tem problemas
de tradução, em algumas passagens optamos por fazer uso do texto original em inglês, de 1993 - com tradução
livre.
184

e considera que Jones traz uma série de características que o colocam em uma situação de
―desimportância‖. 426
Traços de personalidade de Jones, que segundo Phillips trazem ao mesmo tempo
uma pompa e um tom servil e ridículo (talvez justamente pela pompa), seriam risíveis: algo
como uma personalidade fadada a não ser levada a sério. Em suas ácidas palavras:

Ernest Jones entrou para a história psicanalítica como o criado 427 um tanto
pretensioso (...) Jones sempre pareceu uma figura pomposa e ridícula naquele
"círculo secreto" dos primeiros analistas; Jones a Piada, o homem sem nenhum
senso de humor. Quem além de Ernest Jones poderia ter definido ‗cunnilingus‘ no
Glossário de seus artigos psicanalíticos como "aposição da boca à vulva"? 428

426
Tem sido, pois, em diálogo – ou seria embate? - com Philips que estamos elaborando muitas de nossas
reflexões. Para tanto, fiz questão de acessar os originais das cartas que o autor menciona. Infelizmente Phillips
teve a péssima prática, devo criticar aqui, de não dar nenhuma referência bibliográfica em seu texto: nem quando
parafraseia Freud ou Jones ou até mesmo quando faz citações literais, entre aspas. (e, como vimos, não faz
referência à peça de Oscar Wilde, o que parece ser uma alusão evidente de seu título). A única referência
indicada, é claro, é a da obra resenhada - a edição completa da correspondência entre Freud e Jones editada por
Paskauskas, 1993. Esta compilação, no entanto, tem cerca de 830 páginas e 671 cartas, e encontrar uma citação
sem referência nenhuma de data ou número da carta complica muitíssimo o trabalho do pesquisador. Como uma
dificuldade extra, o Índice Remissivo da compilação de cartas é um tanto incompleto, e muitas das palavras-
chave que poderiam nos ajudar não constam da lista. No entanto, ainda assim consegui encontrar as cartas que
Phillips mencionou (aquelas relevantes para nossa discussão) contando com muita paciência e através da
pesquisa de outros autores (felizmente, como muitas das cartas citadas são relevantes na história de Jones e da
Psicanálise, também foram mencionadas por outros autores, como Maddox – que, ao contrário, oferece amplas e
detalhadas referências de todos os documentos que consultou, possibilitando nosso acesso a eles. A propósito:
nos casos em que uma carta é citada por mais de um autor, escolhi um de referência para mencionar aqui.) Penso
ser importante este tipo de crítica, já que entendo que qualquer produção em pesquisa é também um diálogo
aberto com pesquisas e produções que vieram antes e com as que virão depois das nossas, e portanto só abrindo
as chaves para outros pesquisadores acessarem o mesmo material podemos de fato criar uma comunidade de
produção de conhecimento.
427
Em uma passagem, a biógrafa de Jones também o associa a um lugar de servo, mas no negativo: nos diz que,
em uma discordância teórica entre Jones e Freud – a respeito do Lamarckismo (Freud simpatiza com a ideia; o
galês não), Jones não teria sido nada servil ao defender sua opinião: ―Qualquer pensamento de que Jones era um
seguidor servil e bajulador de Freud desaparece à luz de seus esforços persistentes para dissuadir Freud..‖ (2006,
p. 207) (―Any thought that Jones was a sycophantic follower of Freud disappears in the light of his persistent
efforts to dissuade Freud‖.) Interessante é notar, porém, que se a autora sentiu necessidade de ―defender‖ Jones
dessa ideia de servilidade, é porque certamente essa imagem existe e ronda o imaginário do leitor. (!)
428
―Ernest Jones has gone down in psychoanalytic history as the rather priggish servant (…) Jones has always
seemed rather a pompous, ridiculous figure in that ‗secret ring‘ of early analysts; Jones the Joke, the man with no
sense of humour. Who other than Ernest Jones could have defined cunnilingus in the Glossary of his
psychoanalytic papers as ‗apposition of the mouth to the vulva‘?‖ (1993, p. 9)

Gostaria de fazer dois comentários aqui. O primeiro é que em minhas pesquisas acabei encontrando a que se
refere a alusão de Phillips a um ―Jones sem nenhum humor‖ (sem nenhuma ajuda do autor, que, como já
dissemos, não colocou referências em seu texto...). Encontrei a resposta no próprio Jones: em seu ―Valedictory
Address‖ (1946), palestra de despedida e agradecimento à homenagem que recebeu da Sociedade Britânica
(inclusive com um retrato seu), o galês comenta que, assim que o retrato foi exibido, um jornal comentou que era
a imagem ―de um homem sem nenhum senso de humor‖ – ideia com a qual Jones discorda.

O segundo comentário é sobre esse ―ridículo‖ a que se refere Phillips sobre a descrição que Jones dá para a
prática de cunilíngua. Uma carta de um leitor, enviada ao London Review of Books (onde Phillips publicou seu
texto), vai esclarecer que Jones escreveu essa definição muito provavelmente se baseando na descrição de
Havelock Ellis, em sua obra Sexual Selection in Man. (Carta de John Lavagnino, Brandeis University,
Massachusetts, Vol 15, Num 18, 23 setembro 1993, London Review of Books)
185

Além disso, segundo a leitura de Phillips, Jones mantinha uma relação


sadomasoquista com Freud, na qual a gratidão exagerada não é vista com bons olhos pelo
mestre:

A causa era de Freud: Jones simplesmente fizera os arranjos. Jones pode ser mais do
que o homem sério no duplo ato dessas cartas e na torturada história da psicanálise,
mas o que a correspondência revela é o sadomasoquismo de sua relação com Freud.
(...) ‗Para mim está claro que devo minha carreira, minha subsistência, (...) tudo,
enfim – a você (...) O excesso da gratidão de Jones não era inteiramente do gosto de
Freud; na cumplicidade dessas cartas - a serena discrição de Freud sustentando e
sendo sustentada pelos apelos clamorosos de Jones - Freud está mais do que
disposto a lembrar Jones da sua personalidade abjeta.429

As palavras de Phillips são pesadas, e parecem revelar a antipatia do autor por


Jones. Nossos estudos sobre o galês, porém, nos fazem discordar tanto que Jones teria uma
―personalidade abjeta‖ quanto que Freud o tratava de modo a sugeri-la.430 Ao mesmo tempo
tais colocações são coerentes para nossa discussão e não de todo discrepantes com as
preocupações do próprio Jones sobre sua importância ou valor.
De fato, a história de vida e a trajetória de Jones na Psicanálise mostram um
homem às voltas, por várias vezes, com a questão dos complexos de
inferioridade/superioridade, com os pares de opostos auto engrandecimento e humildade, ser
ou não ser ―importante‖.
Esses dois pólos irão aparecer em Jones de modo oscilante, quase pendular: por
vezes em sonhos megalomaníacos e, em outros momentos – em especial em relação ao mestre
– em uma modesta servilidade um tanto quanto exagerada.
De qualquer modo, seja em um extremo ou no outro, o próprio Jones identificará
em si mesmo a ―importância de se dar importância‖ e abre sua autobiografia nos contando
que, como nasceu no dia 1º de janeiro, passou um bom tempo acreditando que as sirenes das
fábricas perto de sua casa, juntamente com os sons comemorativos de Ano Novo eram para
ele431 – e ao mesmo tempo salienta que o começo de seu livro autobiográfico acaba por

429
―The cause was Freud‘s: Jones had simply made the arrangements. Jones may be more than the straight man
in the double-act of these letters, and in the tortured history of psychoanalysis, but what the correspondence does
reveal is the sado-masochism of his relationship with Freud. (…)The excess of Jones‘s gratitude was not entirely
to Freud‘s liking; in the complicity of these letters – Freud‘s composed reticence sustaining and sustained by
Jones‘s clamorous appeals – Freud is more than willing to remind Jones of his abject self.‖ (1993, p. 9)
430
Embora com fases críticas em que Freud irá tecer várias críticas a Jones, as palavras de Phillips tem um tom
de exagero. Mesmo com todas as dificuldades na relação e traços de personalidade que Freud criticaria no galês,
nunca romperam a amizade.
431
Comentando também sobre o ―dar-se importância‖ em Jones, Veszy-Wagner (1968) nos conta que o galês
passaria toda a vida apreciando muito festejar seu aniversário: ―Em sua autobiografia, Jones menciona a solene
186

revelar, de acordo com as próprias bases da psicanálise, a ―chave‖ de compreensão de seu ser
e de sua história:432

É experiência comum dos psicanalistas que um paciente insinue na primeira hora do


tratamento, e muitas vezes na primeira frase, os segredos mais importantes de sua
vida (...) Se eu estivesse na posição de tal paciente, as frases de abertura deste livro
poderiam servir para um uso semelhante. Eu sei que a história essencial da minha
vida está escondida nessas frases 433(...)
Uma das minhas primeiras lições tem a ver com meu aniversário. O ressoar de
sirene de fábrica à meia-noite, que sempre me despertara do sono para ouvir,
juntamente com o júbilo geral do Ano Novo, me pareciam ser um reconhecimento
apropriado do evento [meu aniversário]; e ainda me lembro da minha vergonha aos
quatro ou cinco anos ao saber que o mundo em sua saudação estava preocupado com
pensamentos que transcendiam minha personalidade auto importante. Um eco
posterior disso veio uns dez anos mais tarde, quando eu observei que a data do meu
aniversário me faria um dos "primeiros homens" do século XX (...) Ai de mim, pelo
narcisismo da infância! Afortunados são aqueles que podem substituí-lo por motivos
mais sólidos de autossatisfação. Por ser o filho predileto, como eu achava que era
(...) [tenho] muito a superar, mas ainda assim isso fornece fontes profundas de
confiança que ajudam no trabalho.434

sensação da própria importância que experimentou na infância quando se comemorava seu aniversário, devido às
sirenes que soavam na fábrica de seu pai para celebrar a chegada do ano novo, e que ele tomava como uma
homenagem ao aniversário de seu nascimento. A alegre solenidade não desapareceu à medida que os anos
passavam. Desfrutou plenamente das festividades que fizeram para ele no dia em que completou cinquenta anos
e depois de completar setenta ou setenta e cinco anos, não via motivo algum para não aproveitar do mesmo
modo o dia em que completaria oitenta. Infelizmente, ele morreu quase um ano antes desse aniversário, que
certamente pensava chegar a celebrar.‖ (Veszy-Wagner, 1968, p. 24) ―En su autobiografia, Jones meciona la
solemne sensación de la propia importância que había experimentado en su niñez cuando se festejaba su
compleaños, debido a las sirenas que sonaban en la fábrica de su padre para celebrar la llegada del nuevo año, y
que él tomaba como un homenaje al aniversario de su nacimiento. La alegre solemnidad no se desvaneció con el
correr de los años. Disfrutó plenamente de los festejos que se le hicieron el día que cumplió cincuenta años y
después de cumplir setenta o setenta y cinco, no veia motivo alguno para no gozar del mismo modo el día en que
cumpliera ochenta. Por desgracia, murió casi un año antes de esse aniversario, que sin duda pensaba llegar a
celebrar.‖ (Veszy-Wagner, 1968, p. 24)
432
Esta é sorte do pesquisador que estuda um psicanalista que escreveu uma autobiografia! O exercício de
autoanálise permeia a obra de Jones .
433
Na realidade a frase inicial – a tal que ―revelaria‖ o autor‖ se referem à data de nascimento e ao fato de ser o
único e primeiro filho (homem). (1959, p. 11) O que vem a seguir é um desenvolvimento dessa abertura.
434
―It is the common experience of psycho-analysts that a patient intimates in the first hour of the treatment, and
often in the very first sentence, the most important secrets of his life (…) Were I in the position of such patient,
the opening sentences of this book could be out to a similar use. I know that the essential story of my life lies
hidden in those sentences (..) One of my first lessons concerned my birthday. The blasts on the factory hooters at
midnight, which I was always roused from sleep to hear, together with the general jubilation of New Year‘s Day,
seemed to me to be an appropriate recognition of the event; and I still recollect my shamefacedness at the age of
four or five on learning that the world in its greeting was concerned with thoughts transcending my self-
important personality. An after-echo of this came some ten years later when I observed that the date of my
coming of age would make me one of the ‗first men‘ of the twentieth century (…) Alas for the narcissism of
childhood! Fortunate are those who can replace it by more solid grounds for self-satisfaction. To be the favourite
child, as I felt I was (…) gives one much to overcome, and yet provides deep sources of confidence that help one
in the task.‖ (1959, p. 11-12)
Girard (1972) também estuda com atenção esse trecho da autobiografia de Jones e comenta que, de fato, esses
sonhos megalomaníacos (que dizem muito da personalidade de Jones) acabaram em certa medida sendo
reforçados por seus sucessos no Movimento psicanalítico: ―Seus sucessos reforçaram a megalomania infantil,
especialmente porque ele foi o primeiro [filho] e o favorito, uma reafirmação que encontramos ao longo de seu
trabalho: ele também foi um fundador em muitas circunstâncias, e se ele não foi o primeiro aluno de Freud,
187

O interesse de Jones sobre a questão do ―próprio valor‖ (de um povo, de um


homem) também aparecerá em sua obra – como vimos, por exemplo, em seu ―The inferiority
complex of the Welsh‖ (1929), em ―God Complex‖ (1913) e sobretudo em sua relação com
Freud. Perante o ―professor‖, porém, não aparece o auto engrandecimento de quem se julga o
motivo de sons de sirene e da celebração do mundo em euforia pelo seu aniversário, mas
exatamente o contrário – e, poderíamos supor, na mesma proporção (inversa) do exagero da
megalomania infantil. Em numerosas cartas Jones revela uma modéstia excessiva e por vezes
uma autodiminuição em favor do admirado, amado (idealizado?) Freud: ―Sua carta me deu a
maior alegria possível e agradeço-lhe de todo o coração. Será sempre guardada como uma
recordação preciosa do que mais fez minha vida valer a pena, meu relacionamento com o
senhor e seu trabalho.‖ 435
Quando os filhos de Jones começaram um tratamento psicanalítico e logo
apresentaram melhora, Jones enviou uma carta emocionada a Freud:

Caro professor,
Uma vez que a gratidão que lhe devo por muitos anos é grande demais para ser
adequadamente expressa,436 tenho que de tempos em tempos mostrá-la tanto em
palavras como em ações. E estou escrevendo hoje para expressar mais uma vez um
pouco dela, a dívida recente não sendo de modo algum a menor. Diz respeito aos

conseguiu ocupar o primeiro lugar no cenário internacional e assumir a liderança após Freud no palco da
história.‖ (Girard, 1972, p. 47)

―Ses succès vinrent renforcer sa mégalomanie infantile, d‘autant qu‘il était le premier et le préféré, réaffrimation
que l‘on retrouve tout au long de son ouvre: il fut d‘ailleurs un fondateur en de nombreuses circonstances, et s‘il
ne fut pas l‘uu des premiers élèves de Freud, il sut se mettre au premier rang sur le plan international et prendre
sur la scène de l‘histoirede premier rôle après Freud.‖ (Girard, 1972, p. 47)
435
―Your letter gave me the greatest possible pleasure and I thank you for it with all my heart. It will always be
kept as a treasured memento of what has made my life most worth living, my relationship to you and your
work.‖ (Carta de 21.01.1929 in Freud-Jones correspondence, p. 658) Também citada por Maddox (outro
trecho), 2006, p. 207. Phillips também menciona essa carta (Phillips, 1998, p. 166-167.)
436
Estes são excertos bastante emblemáticos de cartas de Jones a Freud, que evidenciam sua extrema gratidão ao
mestre, mas traços dessa modéstia e idealização são visíveis, de fato, ao longo de toda a correspondência, nos 31
anos em que transcorreram. Vemos, por exemplo, que Jones costuma abrir suas cartas com agradecimentos (seja
pela resposta de Freud, seja pelo envio de algum material, seja por tão belas notícias, etc) e que costuma ser
enfático nos votos de melhoras (quando há doenças na família, por exemplo), expressões de carinho, despedidas
calorosas ―With all my good wishes and profound respect, Your Always devotedly, Ernest Jones‖ –carta de
20.10.1928 in Freud-Jones correspondence, p. 651. Freud, por sua vez, é bem mais discreto no tratamento e não
retribui toda essa gratidão com a mesma expressividade. (―Cordially, Freud.‖ Carta de 17.06.1928 in Freud-
Jones correspondence, p. 647) Veszy-Wagner também enxergou uma diferença significativa no modo como os
dois amigos se referiam um ao outro, (1968, p. 61), além de Adam Phillips (1993), Riccardo Steiner (1993) e
certamente isto não passou despercebido a outros autores – já que é algo bem evidente. O mesmo Steiner (1993)
também dirá que vários fatores colocavam Freud e Jones numa espécie de ―distância segura‖: a diferença de
idade, de origens culturais, língua, etc (além da óbvia distância geográfica). Para o autor, o tom de ―negócios‖ de
muitas cartas parece prevenir irrupções ―catastróficas‖ que aconteceram com outros seguidores de Freud mais
próximos do mestre.
188

meus filhos. Desde setembro eles têm (...) sido analisados (...). As mudanças já
apresentadas já são tão marcantes e tão importantes que me enchem de gratidão para
com aquele que as tornou possíveis, a saber, o senhor mesmo. 437

Em outra carta, Jones resume: Freud é ―tudo‖ para ele: ―Para mim, é claro que
devo a minha carreira, meu sustento, minha posição e minha capacidade de felicidade no
casamento - em resumo tudo – ao senhor e ao trabalho que o senhor fez.‖ 438
Quando se dedicou a escrever a biografia de Freud, Jones se esforçou por garantir
ao leitor que trataria o mestre com a devida isenção de idealizações, mas é muito interessante
que o próprio modo como escreve a passagem denuncia a profunda admiração – ou mesmo
idealização, que supostamente pretenderia evitar:

incomensuravelmente grandes como eram o meu respeito e admiração tanto pela


personalidade quanto pelas realizações de Freud, as minhas próprias propensões ao
culto do herói já se haviam exaurido antes de eu encontrá-lo. E a extraordinária
integridade pessoal de Freud – um traço relevante da sua personalidade – impunha-
se de tal maneira aos que lhe eram próximos que mal posso imaginar uma
profanação maior do respeito que se devia ter para com ele do que apresentar um
retrato idealizado de alguém distanciado dos problemas humanos. O seu conceito de
grandeza, na verdade, centra-se amplamente na honestidade e na coragem com que
lutou e superou as suas próprias dificuldades internas e os conflitos emocionais
através de meios que tem sido de valor inestimável para os outros.439

Isto é, num pensamento no mínimo paradoxal, Jones defende na biografia a


apresentação de Freud da maneira mais ―humana‖ possível – supostamente não idealizada,
portanto – uma vez que a absoluta grandeza e genialidade do mestre e a ―incomensurável‖
admiração de Jones por ele não o permitiriam fazer o contrário (!). Em outras palavras, até
mesmo quando defende traços humanos em Freud, Jones coloca o mestre como o ―mais
humano dos humanos‖, deixando escapar, portanto, traços de sua adoração – que parece tentar
aqui, racionalmente, disfarçar.
As hipóteses para esta invisibilidade de Jones – isto é, sua falta de notoriedade ou
reconhecimento enquanto ele mesmo, e não apenas como biógrafo de Freud ou articulador
político do movimento psicanalítico – passam por várias facetas, não apenas de sua

437
―Dear Professor, Though the gratitude I owe you for many years is too great to be adequately expressed, I
have from time to time indicated it in both words and actions. And I am writing today to express once more
some of it, the recent debt being by no means the least. It concerns my children. Since September they have (…)
been analyzed (…). The changes already brought about are already so striking and so important as to fill me with
thankfulness towards the one who made them possible, namely yourself.‖ (Carta de 16.05.1927 in Freud-Jones
correspondence, p. 617) Outro trecho da carta é citado por Maddox, 2006, p. 189.
438
―To me it is clear that I owe my career, my livelihood, my position, and my capacity of happiness in marriage
– in short everything – to you and the work you have done.‖ (Carta de 07.05.1920 in Freud-Jones
correspondence, p. 378. Citado por Phillips, 1998, p. 164).
439
Jones, 1970, vol I, p. 32. Citado por Maddox, 2006, p. 263.
189

personalidade e da sua relação com Freud, mas também por uma preocupação com uma tarefa
que, embora fosse da maior importância para a História da ―Causa‖, não o favorecia
exatamente em nível autoral: as traduções, - e é Adam Phillips (1993) que vai levantar e
analisar esta questão.
Sabemos do trabalho significativo de Jones em levar a Psicanálise para a língua
inglesa, e para tanto dispendia muita energia nos trâmites e na supervisão de traduções. De
fato, na correspondência que trocou com Freud essa sua preocupação aparece de maneira
recorrente: muitas cartas tratam desse assunto.
Traduções são, por definição, um trabalho não-autoral, um esforço de levar ideias
e pensamentos de outrem para que mais pessoas possam acessá-la. A grande dedicação de
Jones foi, portanto, de levar o pensamento freudiano – e não exatamente o seu próprio – para
um patamar internacional, quase como se fosse um ―procurador‖ de trabalhos do mestre.
A esse respeito Maddox comenta:

Freud (...) disse a ele [a Jones] que estava perdendo tempo em traduções, em vez de
[fazer] contribuições para a teoria psicanalítica. Jones discordava. Sua própria
convicção pela palavra escrita e sua admiração pela prosa clara de Freud era
suprema. De fato, ele declarou a Freud que, se pudesse publicar uma coleção de
obras de Freud em inglês, sentiria que sua vida tinha valido a pena.440

Phillips destaca, em sua análise das cartas entre Jones e Freud, como as traduções
são um ponto chave para estudarmos os meandros da relação entre os dois e nos conta que
estas (as traduções) preocupavam tanto Jones que chegavam ao ponto de aborrecer o principal
interessado. Freud claramente dava menos valor e importância a esse trabalho que Jones, e em
uma carta chega a afirmar que tanta ênfase nesse assunto estava deixando-o ―cansado‖. 441
Também parte do próprio Freud a visão clara de que empenhar-se em traduções é
uma tarefa menor – mais periférica ou medíocre, poderíamos pensar – do que dedicar-se à
efetiva produção de conhecimento. O mestre chega a dar uma ―chamada‖ em Jones por esta
escolha do galês em dedicar tanto tempo a isso - na visão de Freud, equivocada: ―Se o senhor
dá tanta importância para as traduções de meus livros, não posso deixar de ceder ao senhor,

440
―Freud (...) told him he was wasting time on translations rather than contributions to psychoanalytic theory.
Jones disagreed. His own faith in the written world and his admiration for Freud‘s clear prose was supreme.
Indeed, he declared to Freud that if he could bring out a collection of Freud‘s works in English he would feel his
life had been worthwhile.‖ Maddox, 2006, p. 172.
441
―Agora eu estou ficando cansado desse negócio de tradução.‖ ―Now I am getting sick of this translating
business.‖ (Carta de 12.05.1922 in Freud-Jones correspondence, p. 475. Citado por Phillips, 1998, p. 169).
190

mas continuo lamentando a quantidade de trabalho que significa para o senhor e que poderia
ser mais bem gasto em pesquisa original.‖ 442
A respeito desta carta, inclusive, Phillips acrescentará que o ―desdém‖ de Freud
em relação à excessiva dedicação de Jones às traduções dá ―a entender que aqueles que
podem, fazem; os que não podem, traduzem (editam revistas e organizam conferências). (...)
donde se depreendia que ninguém com alguma originalidade deveria levar isso tão a sério.‖443
E Freud repetirá, um pouco mais enfático, meses depois: ―É evidente que o senhor
está sacrificando seu trabalho pessoal pela organização e propaganda.‖ 444
Em realidade esta não será a única vez em que Freud ―cobrará‖ originalidade de
Jones – ou, em outras palavras, produção original em Psicanálise -, julgando que o galês
ocupava tempo demais com outras coisas, a seu ver de menor importância.
Em 1916, quando Jones trabalhava incessantemente atendendo pacientes e
passava seus finais de semana em sua fazenda – The Plat – em Sussex, Freud escreve uma
carta a Ferenczi reclamando que Jones não está produzindo trabalho autoral: ―Cordial como
sempre, [Jones] tem onze sessões de análise, não trabalha em nada original, lê muito,
comprou um carrinho e um chalé a 90 km de Londres para os fins de semana.‖ 445
Freud aqui está contando para Ferenczi notícias que o próprio Jones havia dado ao
mestre, por carta. Jones, no entanto, não estaria exatamente orgulhoso com essa inatividade de
trabalhos próprios:

No momento eu não estou fazendo nenhum trabalho original, pela primeira vez em
14 anos, e me sinto um pouco envergonhado. Mas estou ocupado lendo, escrevendo
resenhas, etc, e também tenho 11 sessões de análise por dia. É tanto trabalho
sedentário que me sinto cansado, o que é ruim para o meu reumatismo, por isso
estou desenvolvendo o lado mais hedonista da vida. [Em seguida Jones conta o que
está fazendo de ‗hedonista‘: comprou uma motocicleta com sidecar e costuma ir pra
sua fazenda no interior nas tardes de sábado.]446

442
―If you lay so great stress on the translations of my books I cannot but give in to you, but I continue to regret
the amount of work it means for you and could be spent better on original research.‖ (Carta de 19.05.1921 in
Freud-Jones correspondence, p. 424. Citada por Phillips, 1998, p. 169).
443
Phillips, 1998, p. 168-169.
444
―It is evident you are sacrificing your personal work to organization and propaganda‖ (Carta de 27.07.1921 in
Freud-Jones correspondence, p. 435)
445
―Cordial como siempre, [Jones] tiene once sesiones de análisis, no trabaja en nada original, lee mucho, se ha
comprado un cochecito y un chalé a 90km de Londres para los fines de semana.‖ (Carta de 13.07.1916 in
Falzeder, 2001, v. II.1, p. 184. Citada por Maddox, 2006, p. 123).
Ao citar essa passagem biográfica e esta carta, a autora sugere que o tom irônico de Freud teria relação com seu
incômodo pelo fato de que, naqueles dias de guerra, enquanto ele - Freud - não tinha quase nenhum paciente,
Jones atendia uma dezena de pacientes por dia na Inglaterra. (2006, p. 123.)
446
―At present I am doing no original work, for the first time in 14 years, and I feel rather ashamed. But I am
busy reading, writing reviews, etc., and also have 11 analyses a day. So much sedentary work I feel tiring and
bad for my rheumatism, so I have been developing the hedonic side of life more.‖ (Carta de 30.05.1916 in
Freud-Jones correspondence, p. 318. Citada por Maddox, 2006, p. 123).
191

Freud aqui claramente convida e cobra Jones a produzir material original, mas
então nos deparamos com uma dificuldade. Lendo estas trocas de cartas – e testemunhando
essa ‗cobrança‖ de Freud – poderíamos facilmente imaginar, caso não conhecêssemos
minimamente Jones e sua trajetória, que este seria um ―discípulo‖ de Freud que se dedicou
exclusivamente aos arranjos políticos e administrativos da ―Causa‖ e à supervisão das
traduções da obra freudiana para o inglês (como aliás é geralmente conhecido), e que pouco
ou nada produziu de artigos, livros, resenhas, obras teóricas ou clínicas em Psicanálise.
Isso parece lógico, mas não é o que de fato ocorreu. Devemos mais uma vez nos
lembrar que Jones produziu - e produziu muito – material em Psicanálise. Não estamos
lidando, portanto, com um mero organizador ou ―burocrata‖, como o crítico Phillips o chama:

‗Você realmente assumiu a causa como se fosse sua‘, lhe escreve Freud em 1926,
após os primeiros vinte anos de colaboração dos dois, ‗pois conseguiu tudo o que se
poderia fazer com ela: uma sociedade, um periódico e um instituto‘. Mas como
Freud sabia, ao oferecer a Jones esse tipo de elogio, esse é o ‗tudo‘ de um burocrata
ambicioso. A causa era de Freud: Jones apenas fizera os arranjos.447

Como estamos estudando, isto está longe de ser verdadeiro, uma vez que Jones
fez muito mais do que ―simples arranjos‖ e não se dedicou apenas a funções, por assim dizer,
administrativas: era um escritor contumaz e pesquisador incansável, cuja obra completa não
foi compilada e organizada na íntegra nem mesmo por sua biógrafa Brenda Maddox.448
Por que será que tanta produção não é tão visível – ou ao menos reconhecida?
Embora abundante, talvez apenas uma pequena parte de sua obra pudesse ser considerada, de
fato, original?
Veremos mais adiante como Freud muitas vezes desqualificava a originalidade
das ideias de Jones – isto é, não o julgava um pensador original em suas contribuições
―científicas‖ – e talvez aí esteja uma importante chave de compreensão do fenômeno. De
qualquer modo, interessante é observar que o próprio Jones parecia não valorizar o seu
trabalho, em muitos momentos - ao menos diante do mestre.

447
Philips, 1998, p. 164.
448
Nas Referências Bibliográficas, em que organiza a obra de Jones por data de publicação, Maddox (2006)
(uma das principais ―especialistas em Jones‖ da atualidade, se podemos chamá-la assim) omite uma série de
escritos jonesianos, justificando somar uma quantidade exagerada: ―Nota: Muitos dos trabalhos mais curtos de
Jones, como obituários e resenhas de livros, foram omitidos por razões de espaço.‖ (―Note: Many of Jones‘s
shorter works, such as obituaries and book reviews, have been omitted for reasons of space.‖) (Maddox, 2006, p.
315)
192

Em 1911, por exemplo, Jones em sua incansável disposição para o trabalho,


escreveu diversos artigos, de neurologia e de Psicanálise, e em um período curto apresentou
cinco deles. Em uma carta a Freud Jones conta sobre os artigos, mas já avisa que, com
exceção de um - que ―espera que o interesse‖ - nenhum deles tem qualquer valor: ―Tive uma
terrível sobrecarga de trabalho de diferentes tipos nas últimas semanas. Na próxima semana
tenho cinco artigos para ler [apresentar], um sobre neurologia orgânica, o resto sobre
diferentes aspectos da Ψα. Nenhum deles tem nenhuma importância, exceto um sobre a
Patologia de Angústia, que espero possa lhe interessar [grifo meu]‖.449
Uma característica importante de Jones – ao lado de traços de personalidade e de
um modelo de relacionamento com o mestre (que segundo Phillips era do tipo
―sadomasoquista‖, como vimos) – e em somatória à sua escolha de dedicar muito tempo e
esforço aos trâmites de tradução, está a maneira como apresentava suas ideias e organizava -
ou melhor, não organizava - sua vasta produção. Jones escrevia muito, mas sua obra apresenta
uma característica sui generis de dispersão, de ―embaçamento‖. A esse respeito Veszy-
Wagner reflete:

Sua própria obra é relegada a segundo plano pela importância que ele mesmo
atribuiu às doutrinas freudianas e pela esmagadora personalidade do fundador da
psicanálise. Levando em conta a personalidade forte de Jones em outros sentidos (de
maneira nenhuma desprovido da vaidade legítima de um criador original ou das
ambições de um líder nato), isto nos coloca diante de um non sequitur450
psicológico. Pensadores menos importantes que ele poderiam enfatizar a paternidade
[autoria] de novas ideias, fossem estas um reflexo das ideias e liderança de Freud, ou
concebidas à sua sombra. O leitor psicanalítico associa determinadas ideias a cada
um dos discípulos de Freud - da primeira ou da segunda geração-, mas quando se
trata de Jones, é inevitável ter que recorrer primeiro a um campo bastante grande
sem ser capaz de determinar com certeza quais das ideias defendidas pertencem a
Jones e quais são apenas divulgações dos ensinamentos de Freud, embora mais
sucintas e auto evidentes do que as originais [grifo meu].

E ainda: ―(...) Jones nunca atribuía importância a suas contribuições pessoais


(...).‖451

449
―I have had a dreadful pressure of work of different kinds in the past few weeks. Next week I have five papers
to read, one on organic neurology, the rest on different aspects of Ψα. None of them is of any note, except one on
the Pathology of Angst, which I hope may interest you [grifo meu]‖ (Carta de 30.04.1911 in Freud-Jones
correspondence, p. 99).
450
Non sequitur é uma expressão latina que significa ―falácia lógica‖, isto é: uma conclusão que não decorre das
premissas.
451
―Su própria obra queda relegada a un segundo plano por la importancia que él mismo atribuyó a las
doctrinas freudianas y por la abrumadora personalidad del creador del psicoanálisis. Teniendo en cuenta la
fuerte personalidad de Jones en otros sentidos (de ningún modo carente de la legítima vanidad del creador
original o de las ambiciones del líder innato), esto nos enfrenta con um non sequitur psicológico. Pensadores
menos importantes que él podrían poner el acento en la paternidade de nuevas ideias, fueran éstas um reflejo de
las ideas y el liderazgo de Freud, o concebidas a su sombra. El lector psicoanalítico asocia determinadas ideas
193

Este non sequitur, essa falácia lógica psicológica, como chamou a autora, é
justamente uma das chaves deste estudo: a tentativa de compreender um personagem de tão
forte personalidade (não sem vaidades e liderança, e para quem era cara a questão da auto
importância, da autoria e do pioneirismo) que dispersa sua própria obra em uma produção
extensa mas não coesa, que expõe seus pensamentos com a modéstia de quem defende uma
ideia como se não fosse própria, e que, afinal, dedica a maior parte de sua vida à propagação
de ideias de outro homem - seu mestre.
Soma-se a isso a falta de reconhecimento de Jones por parte de Freud - fator que,
segundo a mesma autora foi decisivo para o não reconhecimento por parte da comunidade
psicanalítica, de modo geral:

Freud aceitou a maioria das ideias de Jones, mas raramente reconheceu a sua
paternidade [autoria] de tais ideias e, aparentemente, era orgulhoso demais para
destacar a sua importância própria, de modo que o movimento analítico nunca o
valorizou plenamente. Talvez seja esta uma das razões pelas quais a biografia de
Freud escrita por Jones foi aclamada quase unanimemente como o auge de sua
carreira literária, enquanto se negligenciava o valor de suas contribuições científicas
[grifo meu]. 452

(De fato, em nossos estudos encontramos poucos elogios de Freud a trabalhos de


Jones e os identificamos em duas ocasiões: a primeira é a parabenização explícita de Freud ao
trabalho de Jones sobre Hamlet – o mestre teria achado o artigo ―excelente‖453; a segunda se
dá de modo bastante indireto, que só é perceptível para quem já conhece a obra de Jones: logo
após a morte de seu pai, Jones comunica a Freud que sua esposa está grávida. O mestre o
felicita e faz o comentário: ―O avô tem que renascer no neto, como você sabe.‖ 454)

con cada uno de los discípulos de Freud de la primera o la segunda generación pero, cuando se trata de Jones, es
inevitable tener que recorrer primero a un campo bastante grande sin poder determinar a ciencia cierta cuáles de
las ideas propugnadas pertenecen a Jones y cuáles son sólo divulgaciones de las enseñanzas de Freud, aunque
más sucintas y autoevidentes que las originales [grifo meu]‖ (1968, p. 35-36) e ainda: ―(...) Jones nunca atribuía
importância a sus contribuciones personales (...).‖ (1968, p. 39)
452
―Freud aceptó la mayoria de las ideas de Jones, pero a éste rara vez se le reconoció la paternidade de tales
ideas y, al parecer, era demasiado orgulloso como para destacar su própria importancia, por lo cual el
movimiento analítico nunca apreció plenamente su valor. Quizá sea ésta una de las razones por las que la
biografia de Freud escrita por Jones há sido casi unánimamente aclamada como la culminación de su carrera
literaria, al tempo que se pasaba por alto el valor de sus contribuciones científicas.‖ (Veszy-Wagner, 1968, p. 36)
453
―De fato o seu artigo sobre Hamlet é excelente‖ ―Indeed your Hamlet article is excellent‖ (Carta de
10.03.1910 in Freud-Jones correspondence, p. 47) O fato de Freud gostar do artigo, porém, seguramente tem
relação com o fato de julgar-se de certa forma coautor deste trabalho, como veremos mais adiante.
454
The grandfather has to be reborn in the grandchild as you know.‖ (Carta de 08.03.1920 in Freud-Jones
correspondence, p. 372) Freud é simpático ao tecer esse comentário porque conecta as duas notícias – a morte do
avô (o pai de Jones) e o nascimento de um filho (o neto), mostrando recapitular (e adotar a ideia) que ―o neto é a
reencarnação psíquica do avô‖, simplesmente a tese central do artigo de Jones de 1913, com que já trabalhamos
aqui. É, portanto, um modo (sutil) de valorizar o artigo jonesiano. Aparentemente Maddox não estudou o
referido artigo de Jones, porque ao contar sobre o episódio na biografia, comenta que esta frase na carta de Freud
é ―sábia‖. (2006, p. 157) Diríamos então para Maddox: certamente o comentário é sábio e foi dito no momento
194

E há um ponto adicional. Roazen (1974), ao comentar sobre os escritos


psicanalíticos de Jones, nos diz que ―não constitui depreciação‖ afirmar que aqueles tinham
por objetivo majoritariamente disseminar o pensamento freudiano. (1974, p. 392), inclusive
porque esta havia sido uma necessidade expressa por Freud (isto é, propagar suas ideias). O
autor também comenta que muitos dos estudos de Jones se basearam em apontamentos de
Freud – por exemplo seu estudo sobre Hamlet, a partir de uma nota de rodapé de Freud – e, o
que é importante para nós, que Jones notou ―várias vezes, que Freud, por indiscrição,
estragara suas oportunidades de produzir um trabalho original.‖ O autor nos conta que Jones
trabalhava em um livro sobre Napoleão e comentou suas ideias com o mestre. Freud, em
seguida, transmitiu as ideias de Jones a outro autor (Ludwig Jekels) e este, nas palavras de
Jones, ―apoderou-se avidamente delas e escreveu um excelente ensaio sobre o assunto.‖ 455
A percepção de uma falta de reconhecimento ou valorização do autor é também
compartilhada por outros estudiosos, nos apontando que a invisibilidade de Jones não parece,
ao que tudo indica, ser um fenômeno propriamente pontual (específico e exclusivo do nosso
país, ou desta metrópole em particular). Para tomarmos outro exemplo internacional - além da
citação de Veszy-Wagner acima -, bem nos lembramos como a Associação Psicológica
Americana [American Psychological Association – APA] transferiu a Freud, por completo, a
autoria do conceito de Racionalização (cunhado por Jones). Em nossos dias, Dr. Robert
Hinshelwood, que gentilmente me concedeu uma entrevista (anexada, na íntegra, em Anexos),
também é da opinião que as contribuições teóricas de Jones seriam muito mais ―limitadas‖
que a de outros pensadores, e por isso sua importância residiria muito mais em suas
habilidades organizacionais e políticas. (Conferir Anexos). Embora seja precipitado e até
mesmo temerário afirmarmos que essa é uma desvalorização de escala mundial (uma pesquisa
internacional in loco seria necessária), temos indicativos, como estamos estudando, de que o
próprio modo como Jones se posicionava - diante da sua própria obra e também diante da
obra do mestre – ajudou a construir uma imagem do galês distante daquela de um autor ou
pensador com concepções psicanalíticas próprios.

mais pertinente possível - mas esta ideia é de Jones. O que é importante para nós é perceber que, ainda de modo
indireto, Freud demonstrou ter lido o artigo e incorporado o conceito - embora não sabemos se o fez
publicamente…).
455
(Roazen, 1974, p. 393-4). Roazen também comenta, mais adiante em seu texto, que uma vez Freud teria dito
a Jones que ―‘a maneira mais simples de aprender psicanálise era acreditar que tudo o que ele havia escrito era
verdade e, depois de a ter compreendido, criticá-la da maneira que quisesse...‘ Contudo, talvez venha a ser muito
difícil emergir desse estado de fé inicial, já que podem ser encontrados, em Jones, trechos que repetem Freud,
quase palavra por palavra. ‗Sob muitos aspectos, eu divergia inteiramente de Freud...‘, pensava Jones;
examinando-se, porém, o que produziu, esses aspectos são insignificantes. A única exceção foi o apoio dado por
Jones a Melanie Klein, inimiga de Freud.‖ (Roazen, 1974, p. 397)
195

A questão da originalidade – afinal, o que é ser original? – é muito importante


para nossas reflexões e compreensão de Ernest Jones - e voltaremos a este ponto mais adiante.
De fato, o que vai se tornando mais e mais evidente é que o próprio Jones, pela
sua história e escolhas, de algum modo parece ter colaborado para a construção de sua
invisibilidade, se colocando nos bastidores, representando e difundindo as ideias de Freud e
liderando um movimento ao mestre devotado. Talvez – ou provavelmente - caso Jones tivesse
se afirmado como autor (dono de suas próprias ideias, muitas delas divergentes das de Freud)
e investido muito mais esforços em se promover como um pensador com contornos bem
definidos, as diferenças com Freud não tardariam a gerar um conflito ou até um possível
rompimento – como aliás ocorreu com a maioria dos discípulos que ousaram se diferenciar. O
preço da não diferenciação (ou quem sabe até mesmo seu benefício secundário?) foi certa
invisibilidade, a inacessibilidade e/ou dispersão de sua obra, ou a não valorização e
reconhecimento de sua produção ou de seu nome.
Esta marginalidade ou ―esquecimento‖ da obra jonesiana, por mais que possa ser
compreendido sob diversos aspectos - e seguramente não ser fruto de uma causa única e
definida -, ainda assim se relaciona intimamente com o foco de nosso trabalho, isto é, a
história e biografia de Jones, as questões que tomavam sua atenção, sua produção e sobre
como atuou - ou não atuou - como autor original.
Além disso, ao estudarmos a História da Psicanálise e suas micro (ou macro)
políticas, fica claro que era de interesse e vantagem para o ―Movimento‖ a existência de uma
figura que, por um lado, servisse como um ―embaixador‖ das ideias freudianas pelo mundo –
em especial pelos países anglófonos - e, por outro lado, fosse um discípulo de Freud dotado
de habilidades de diplomacia e mediação, que pudesse assim arrefecer conflitos internos
potencialmente prejudiciais à coesão das instituições psicanalíticas.
Nesse sentido, é como se o Movimento funcionasse como se ―já tivesse
pensadores originais suficientes‖, e o que de fato fosse necessário era um bom organizador
com habilidades de estratégia e acesso internacional, e que, se por um lado tivesse dons de
liderança, por outro não tivesse arroubos de originalidade, - exatamente como o perfil de
Jones oferecia (ainda na hipótese de que ninguém fosse consciente disso...). E aí então estaria
a importância de Jones: nesse sentido sua chegada ao cenário de Viena não poderia ser mais
oportuna.
196

VII.2 O nome do pai

Ernest Jones dava mostras de não gostar do seu próprio nome – e tal fato é de
extrema relevância.
Há algumas passagens biográficas significativas sobre a sua relação com seu
nome, e trazê-las aqui pode nos ajudar a compreender traços não apenas de sua personalidade,
mas de sua relação com Freud e da coerência do tema - com que viemos trabalhando-, com
nossa seleção de trabalhos psicanalíticos de sua autoria.
Ao nascer, os pais de Jones divergiram sobre a escolha do nome. A mãe gostaria
de chamá-lo Myrddin, mas o pai se opôs e optou por chamá-lo do mesmo nome do segundo
filho da Rainha Victoria: Alfred Ernest (Duque de Edimburgo). Em sua autobiografia Jones
diz que essa foi uma decisão ―difícil de perdoar‖ e que quando cresceu descartou pelo menos
a primeira (Alfred) dessas ―denominações reais indesejáveis‖.456
A associação de seu próprio nome (na verdade, seus dois nomes próprios) com a
realeza não poderia ser mais incômoda para alguém que justamente sempre teve um olhar
bastante crítico sobre a monarquia e que chegou a analisar psicanaliticamente uma figura real:
Louis Bonaparte, irmão de Napoleão (―The case of Louis Bonaparte, King of Holland‖ (1913)
e a própria psicologia da Monarquia (―The Psychology of Constitutional Monarchy‖ (1936).
(Como veremos, Jones tem questões em relação a autoridades, e a figura de um rei,
imperador, monarca, terá marcas em sua história pessoal e em seu trabalho.) Esse incômodo
com o próprio nome – associado inicialmente a um nome da maior importância, pois se trata
afinal da realeza – viria a atingir seu ponto máximo quando Jones tinha alcançado maturidade
pessoal e profissional, com pouco mais de 40 anos. Nesta fase da vida Jones vai associar seu
sobrenome com uma certa invisibilidade ou desimportância, e uma passagem biográfica
significativa irá disparar esta ―crise‖ identitária – essencial para compreendermos a relação de
Jones com sua própria imagem.
Como já vimos em sua biografia, em 1922 Jones toma uma decisão importante:
mudar seu nome (sobrenome).
A justificativa de Jones para a mudança era a ―tarefa penosa‖ de diferenciar-se de
milhões de outras pessoas chamadas ―Jones‖ (um sobrenome muito comum) e ele não gostaria

456
Jones, 1959, p. 12. Essa aversão à realeza é de natureza ambivalente, porém. Veszy-Wagner nos conta uma
passagem em que Jones se confundiu e assinou simplesmente ―Ernest‖ em um trabalho endereçado a Freud – e
sabe-se que, na Grã-Bretanha, apenas membros da realeza podem fazê-lo (assinar somente o primeiro nome). A
autora nos conta que o próprio Jones revelaria esse lapso e interpretaria que o ato falho se deveu ao desejo de
estar em ―pé de igualdade com Freud‖- e a autora complementa: e também, talvez, pertencer à ―nobreza‖. (1968,
p. 63-64)
197

de passar esse fardo, que viveu na pele durante toda a vida, para seus filhos (nessa época
Jones acabava de ser pai pela segunda vez, de um menino). É quase como se a mudança de
nome, ao mesmo tempo em que o diferenciasse automática - e magicamente - dos demais, dos
―comuns‖, também presenteasse seu filho com uma ―diferenciação inata‖.
O plano era ampliar o nome para Beddoe-Jones, incorporando o nome de seu pai,
Thomas – que havia herdado de sua mãe (avó paterna de Ernest). (Uma alteração curiosa,
ambivalente no mínimo segundo o próprio, já que ao mesmo tempo em que honra o pai
Thomas com o acréscimo, por outro lado resgata a herança materna de seu pai, escapando da
linhagem paterna: prefere incorporar o nome da avó paterna – e não do avô paterno. Jones,
como um bom psicanalista, não deixa de se autoanalisar nesse movimento tão emblemático e
edipiano e analisa esta ambivalência em sua autobiografia).
Antes, no entanto, de realizar esta importante mudança,- que segundo Jones
também o ajudaria a se diferenciar de outros psicanalistas homônimos da época, - consulta o
mestre Freud através de uma carta:

A reflexão sobre a questão de nomes levou-me a uma conclusão que pode trazer um
pouco de dificuldade para os meus amigos, mas que eu acho que devo seguir
adiante, a menos que o senhor me envie uma objeção imediata. É amplificar o meu
próprio nome para Ernest Beddoe-Jones457, inserindo, assim, um nome herdado por
meu pai de sua mãe (analiticamente, ao mesmo tempo uma afirmação e um repúdio
dele). Parece-me um pouco injusto expor os filhos à tarefa penosa de distinguir-se
gradualmente de outro meio milhão de pessoas chamadas Jones (existem agora até
três psicanalistas chamados Dr. Ernest Jones). Alguns nomes como Jones e Smith
perderam a função principal de um nome, que é separá-los de outras pessoas, e por
isso é muito usual nesse caso dar esse passo que proponho.458

457
No original da compilação de cartas Freud-Jones correspondence, editada por Paskauskas (1993), a grafia
está ―Beddow‖, mas entendemos seguramente como um erro, já que na própria autobiografia de Jones o nome é
grafado ―Beddoe‖. O filho de Jones, Mervyn Jones, inclusive escreveu uma carta ao London Review of Books na
qual corrige a grafia erroneamente citada em um texto como ―Beddow‖ (1993). Portanto, tendo a certeza não só
pela autobiografia de Jones quanto pela reiteração de Mervyn Jones, tomamos aqui a liberdade de corrigir a
grafia da carta editada por Paskauskas (1993). (Maddox menciona que nos arquivos da BPAS (British
Psychoanalitycal Society) também consta a grafia ―Beddow‖ (2006, p. 303) – seguramente incorreta,
acrescentamos.)
458
―Reflection on the matter of names has led me to a conclusion which may give a little trouble to my friends,
but which I think I shall act on, unless you send me a hasty protest. It is to amplify my own name to Ernest
Beddoe-Jones, thus inserting one inherited by my father from his mother (analytically at the same time an
affirmation and a repudiation of him). It seems to me a little unfair to expose one‘s children to the irksome task
of gradually distinguishing themselves from the other half a million people called Jones (there are now even
three psycho-analysts called Dr Ernest Jones). Some names like Jones and Smith have lost the first function of a
name, that is to separate them from other people, and so it is very customary here to take such a step as I
propose.‖ (Carta de 16.03.1922 in Freud-Jones correspondence, p. 463)
Toda esta passagem biográfica (e troca de cartas) é citada por Maddox (2006, p. 1), que aliás colocou tanta
ênfase no ocorrido da mudança de nome (de fato é muito relevante em uma biografia) que vai nos relatar essa
passagem duas vezes: abre seu livro com a questão, ainda na Introdução (isto é, mesmo antes de qualquer
informação, Jones é ―apresentado‖ ao leitor como alguém que quer mudar de nome); e depois, no corpo do
trabalho (em que segue a ordem cronológica dos fatos), a autora retomará a passagem quando aconteceu, em
1922. (O nome do capítulo é, inclusive, ―Name-calling‖.*) Esta passagem da biografia jonesiana, a propósito, é
198

É interessante observar Jones consultando o ―pai da psicanálise‖ sobre seus


planos de diferenciação: devo ou não devo mudar (afirmar) meu nome/minha identidade?
Consigo me distinguir dos outros ou me perco na multidão? Devo ser como meu pai ou me
diferenciar dele? (Adicionar mais um nome de meu pai ao meu? Mostrar de quem sou filho?
Ou mostrar que não sou idêntico a ele, também o repudio – prefiro o nome de minha avó-
resgatando a linhagem feminina?) Mesmo na seara da Psicanálise, não sou o único ―Ernest
Jones‖: saberão quem sou?
Freud faz uma objeção imediata. Em resposta à carta-consulta, diz que justamente
uma mudança de nome é que fará com que Jones se torne um completo desconhecido! Afinal,
precisaria ser reapresentado... Além disso – em um dos raros momentos em que Freud
reconhece e valoriza explicitamente o trabalho do galês – afirma que não é uma atitude muito
prudente fazer a alteração do nome tendo em vista que Jones já construiu uma obra como
autor, e já é reconhecido por isso. Freud chega a equiparar a mudança de nome de Jones com
a mudança repentina de um termo teórico freudiano:

Eu só sei que o senhor vai continuar sendo Dr. Ernest Jones para nós. Qual seria o
efeito para estranhos eu não posso imaginar. Talvez seja semelhante a se eu tivesse
tentado evitar a ambiguidade do termo ‗sexual‘ e empregado uma nova palavra,
digamos: ‗hiero-afrodítico' em vez disso. Todo leitor se perguntaria: Agora que
diabo ele quer dizer com essa nova composição Grega, eu nunca ouvi falar disso, -
ah, quer dizer algo sexual, entendo. Então as pessoas vão perguntar: Quem é
Beddoe-Jones?459 Provavelmente não vou confundi-lo com ‗meio milhão de outros
Jones‘, mas eu não sei nada sobre ele. Ah, é o autor do ‗Papers of Psycho-analysis‘ e
presidente da Inter. Ψα Association. Agora eu sei, é uma pena que ele não tenha se
apresentado com este nome desde o início. Agora talvez ele não precise mais dele.460

tão relevante que muitos autores que estudaram o galês apontaram para a questão – e não poderia ser diferente.
*Aparentemente a autora faz uma brincadeira entre a questão da nomeação (―call a name‖) e um xingamento
(―name-calling‖). Inferimos, então, que Maddox insinua que para Jones seu próprio nome é um ―insulto‖... uma
segunda hipótese (que não exclui a primeira) é a relação com os ―xingamentos‖ que Jones receberá,
especialmente de Freud – a autora coloca nesse mesmo capítulo, já que ocorreram na mesma época, a tentativa
de Jones de uma mudança de nome e a fase difícil com Freud (daí o ―xingamento‖...). São hipóteses de
interpretação, um falante nativo de inglês poderia nos dar mais detalhes sobre os sentidos desse interessante
título.
459
No original da edição de Paskauskas (1993) novamente aparece a grafia incorreta ―Beddow‖, que corrigimos
aqui. Na carta de Freud está em minúscula a palavra ―papers‖, mas colocamos na tradução em maiúscula e com
aspas por seguramente designar um livro de Ernest Jones: ―Papers on Psychoanalisys‖ (1912).
460
―I only know that you will continue to be Dr. Ernest Jones to us. What the effect with strangers may be I
cannot imagine. Perhaps it will be similar as if I had tried to avoid the ambiguity of the term ‗sexual‘ and
employed a new word, say: ‗hiero-aphroditic‘ instead. Every reader would have put the question: Now what the
deuce does he mean by that new Greek composition, I have never heard of it, - oh, it means something like
sexual, I see. So people will ask: Who is Beddoe-Jones? I am not likely to confound him with ‗half a million of
other Jones‘, but I know nothing of him. Oh, it is the author of the papers on Psychoanalysis and president of the
Inter. Ψα Association. Now I know, it is a pity he did not introduce himself by this name from the very
beginning. Now perhaps he did not need it.‖ (Carta de 23.03.1922 in Freud-Jones correspondence, p. 464.
Citada por Maddox, 2006, p. 1).
199

Jones considera tanto a opinião de Freud que desiste da mudança de nome – e


461
decide continuar ―aguentando as agruras de se chamar Jones‖. (Ainda assim, mesmo sem
adotá-lo para si, Ernest Jones acrescentaria o ―Beddoe‖ no sobrenome de seus filhos).
Os sentidos dessa desistência podem ser muitos, e podemos tão somente levantar
possibilidades de interpretação. A questão da diferenciação, traduzida pela mudança de nome
(afirmação identitária) tem um caráter bastante ambivalente aqui, uma vez que, como Freud
bem pontuou em sua carta-resposta, mudar de nome poderia, por um lado, chamar a atenção
para esse ―Jones-diferente‖ mas, por outro (e justamente por isso), representar um total
desconhecido, um elemento novo, estranho, que ainda precisa ser apresentado aos leitores (já
acostumados com o antigo e conhecido E. Jones e seus trabalhos). Afinal, conforme
interpretação do próprio Jones, adicionar um novo nome ao antigo pode representar
incorporar o pai ou justamente repudiá-lo: ao tentar afirmar-se, Jones poderia justamente cair
no esquecimento e perder o legado que já vinha construindo.
Não é sem importância o fato de Freud, tendo a evidente importância psíquica que
tinha para Jones, ser contrário a um movimento voltado à autoafirmação e diferenciação. Da
mesma maneira não é sem importância o fato de Jones imediatamente acatar a opinião do
mestre e desistir de uma decisão que já parecia tomada e definitiva.
Talvez tivesse pesado para Jones nessa decisão o ―lembrete‖ de Freud que ele já
tinha uma trajetória própria, autoral, e já era reconhecido por seu trabalho – de fato seu
―Papers on Psycho-analysis‖ (1912) tinha vendido muito bem e na época desta troca de cartas
já caminhava para a 3ª edição. 462
Talvez o peso das palavras de Freud estivesse em saber que, para o mestre, o galês
seria ―sempre Ernest Jones‖. Isto é: não adianta o que se faça, mudando o nome ou não, as
mudanças na realidade não afetariam a dinâmica de relacionamento Jones-Freud (seguidor-
mestre? Pai-filho?) que já estava estabelecida e que convinha a ambos, em uma
complementariedade, digamos, mutuamente funcional.
Phillips (1998) analisa esta troca de cartas sobre a mudança de nome de Jones
(lembrando o leitor também do irônico fato que Loe Kann teria substituído Jones por outro
Jones...) e relaciona o fato com a pergunta que o galês parece se fazer: ―Jones estava
certamente preocupado, em mais de um sentido, sobre como chamar seu self potente: ‗Jones‘

461
―to assimilate the prinpricks involved in being called Jones or E. Jones.‖ (Carta de 01.04.1922 in Freud-Jones
correspondence, p. 465. Citada por Maddox, 2006, p. 167).
462
Maddox, 2006, p. 167.
200

parecia singularmente sem futuro. Considerando que ‗a psicanálise é Freud‘, como ele escreve
em uma das cartas, quem é, então, Jones (...)?‖463
É interessante notar, a esse respeito, que a problemática de Jones com o nome
excessivamente ―comum‖ foi acompanhada por minha própria dificuldade nas pesquisas para
o presente trabalho. Bem me lembro dos desafios de encontrar tantos e tantos outros ―Ernest
Jones‖, que são de joalherias a instrutores de golfe – e todos os estudiosos de Jones
certamente passaram por essa experiência. Recordamos também que o próprio galês apontou
que naquela época havia três psicanalistas chamados Ernest Jones e, se pensarmos bem, a
própria questão da autoria – que já é um tanto complexa em sua história – ganha um adicional
de dificuldade. (Confesso ter me perguntado algumas vezes se os artigos considerados de sua
autoria não teriam sido escritos por esses psicanalistas homônimos!... Estaria eu estudando o
Ernest Jones ―certo‖?!)
Em sua autobiografia Jones analisou com atenção essa sua questão pessoal com os
nomes e teceu interessantes relações entre o nome familiar e seu ―peso psíquico‖, a sensação
de ser um ―incapaz‖ e o questionamento de seu valor próprio – relacionado ao nome e ao
legado familiar. É também do próprio Jones a relação entre esse questionamento do valor
próprio e o sentido de exclusão e/ou ―deficiência‖ em algumas etnias ―marcadas‖ – como é o
caso, a seu ver, de judeus e galeses (como ele próprio). Incluir o nome de sua avó paterna,
Beddoe, traria uma ―compensação‖ a essas supostas deficiências e desvantagens. Em suas
palavras:

Alguns dos atributos dos Beddoe parecem pertencer a genes dominantes, pois eles
têm se manifestado precisamente ao longo das gerações, e eu me senti justificado em
dar o nome para cada um dos meus filhos. Fiz isso em um esforço inútil para
diminuir a desvantagem que minha ascendência patronímica tinha colocado em
mim. É estatisticamente comprovado que as chances de alguém alcançar distinção
na vida são difíceis se ele tem que compartilhar seu sobrenome com centenas de
milhares de seus contemporâneos. Entre as muitas desvantagens que o Galês
compartilha com os Judeus, tais como o seu apego antiquado ao Antigo Testamento,
não menos importante foi a aquisição de sobrenomes em circunstâncias infelizes; e
pode-se prever um momento em que, se esses atributos cumprem suas funções, uma
extensa renomeação terá que acontecer. Para voltar ao tema: Eu sempre imaginei
que, se meu pai e eu herdamos um Q.I. maior do que o de nossos parentes
provavelmente ele veio, através de sua mãe, a partir da linhagem Beddoe. Uma vez

463
Phillips, 1998, p. 165. Na opinião do autor, a propósito, o tom da resposta de Freud (ao ser contra a mudança
de nome) é sarcástico e zombeteiro ―Eu só sei que você continuará a ser Ernest Jones para nós‖, mas não tive a
mesma impressão. O autor também citará um episódio em que Jones mencionaria, anos depois dessa passagem,
que o nome ―Freud‖ também não é tão raro. E o autor acrescenta numa alfinetada- ele sim inegavelmente
zombeteiro em relação a Jones: ―[O nome Freud é] Mais raro, contudo, que Jones.‖ (!) (Phillips, 1998, p. 165)
201

eu cheguei a flertar com a ideia de colocar um hífen no nome com meu sobrenome,
mas Freud me dissuadiu pelo fato de isso ser confuso [grifo meu]. 464

É interessante Jones tentando justificar sua tentativa de mudança de nome fazendo


um paralelo entre os povos – galeses e judeus; como se, tanto na escala individual quanto
étnica houvesse uma desvantagem herdada que pudesse ser ―corrigida‖ por uma renomeação.
Mais interessante ainda é perceber, ao investigarmos a ―linhagem Jones‖ (a
herança ―João-ninguém‖, que então poderia ser engrandecida ou compensada pela inteligência
―genética‖ da linhagem Beddoe), que a questão dos nomes aparece em todas as gerações
imediatas a Jones (tanto no pai quanto no filho).
Lembramos que Thomas Jones, pai de Ernest, pessoalmente se incomodava muito
com o fato do povoado onde moravam, Gower Road, ser constantemente confundido com
uma rua, Gower Street, da cidade próxima Swansea. As confusões constantes atrasavam as
entregas pelo correio e prejudicavam os negócios de Thomas, então um dia ele simplesmente
enviou um requerimento para os Correios e para a Companhia Ferroviária pedindo a mudança
de nome do povoado para Gowerton. O pedido foi atendido e o povoado mudou de nome. 465
―Ser confundido com outro‖ foi, afinal a mesmíssima preocupação do filho,
Ernest Jones, em sua ideia de modificar seu nome tão ―comum‖. A preocupação de ambos
era, afinal, deixar claro uma identidade própria, distinguir-se dos demais (pessoas ou cidades),
afirmar uma diferenciação.
Como vimos, embora Jones tenha desistido da mudança por conselho direto de
Freud (pois provavelmente atestou que uma mudança o deixaria ainda mais ―desconhecido‖),
fez questão de garantir a ―benção‖ da linhagem de ―QI alto‖ para seus filhos, acrescentando o
sobrenome a cada um deles.
Nem todos os filhos de Jones, no entanto, viram com bons olhos essa
―compensação‖. Mervyn Jones, o primeiro filho homem de Ernest, quando adulto seria

464
―Some of the Beddoe attributes appear to belong to dominant genes, for they have faithfully manifested
themselves down the generations, and I have felt justified in giving the name to each of my sons. I did so in a
vain endeavor to lessen the handicap my patronymic ancestry had laid on me. It is statistically demonstrable that
the odds are heavy against anyone achieving distinction in life if he has to share his surname with hundreds of
thousands of his contemporaries. Among the many handicaps that the Welsh share with the Jews, such as their
outworn attachment to the Old Testament, not the least was the acquisition of surnames in unfortunate
circumstances; and one can foresee a time when, if these attributes are to fulfill their proper function, an
extensive re-naming will have to take place. To get back to the immediate theme: I have always fancied that if
my father and I inherited an I. Q. higher than that of our relatives it probably came, via his mother, from the
Beddoe stock. At one time I even toyed with the idea of hyphenating the name with my surname, but Freud
dissuaded me on the ground of its being confusing.‖ (1959, p. 18-9) (Grifo meu) Parte do trecho citado por
Maddox, 2006, p.1.
465
Jones, 1959, p. 36
202

reconhecido como escritor profissional, tendo publicado vários romances466, e fez sua carreira
usando o nome ―comum‖ de Jones, mesmo tendo, também, o ―Beddoe‖.
No ano de 1993 um ex-colega de escola de Mervyn, tendo lido a resenha de Adam
Phillips467 no The London Review of Books (LRB), escreve para a seção ―Cartas‖ da revista
dizendo que estudou com Mervyn e que se lembra dele como um jovem brilhante; e eram
muito amigos, por isso gostaria muito de saber por onde ele andaria agora. Ele também se
lembra que o pai do amigo – Ernest Jones – havia decidido mudar de nome, acrescentando o
―Beddoe‖, mas que mesmo depois de desistir por conselho de Freud, deu esse sobrenome aos
seus filhos. Se não estava enganado, o seu velho amigo se chamava, portanto, ‗Mervyn
Beddow-Jones‘... Mervyn lê a carta publicada no LRB e a responde, dizendo que fica feliz de
ser lembrado e corrige a grafia ―Beddow‖ - o correto é ―Beddoe‖ – e diz que não, mesmo
sendo a vontade de seu pai, nunca fez uso desse sobrenome adicionado: ―É verdade que meu
pai, Ernest Jones, queria que eu adotasse o sobrenome Beddoe-Jones (não Beddow-Jones);
mas nunca gostei da ideia, e após deixar a escola me mantive firme no nome Mervyn Jones.‖
468

O nome deste amigo de Mervyn que o procurou – é importante citar – é Freddy


469
Hurdis... Jones! Na carta, cita que justamente por serem os amigos ambos ―Jones‖, na
época da escola Mervyn tentou convencê-lo a se converter ao nacionalismo galês.
Ao se despedir, na carta, Mervyn afirma mais uma vez seu nome – ―você já deve
ter ouvido falar de mim‖: ―Eu me tornei um escritor, e Hurdis-Jones talvez tenha ouvido falar
de mim, uma vez que já publiquei 30 livros, em sua maioria romances. (...) Se o meu velho
amigo deseja entrar em contato comigo pode escrever aos cuidados de meu editor‖ 470
É digno de nota que a associação entre o nome e a identificação com a
descendência galesa – que Ernest Jones deixa evidente – também se manifesta no filho,
Mervyn: ao encontrar, na infância, um amigo ―Jones‖ como ele, tenta inclui-lo na identidade
galesa, quase como se o nome ―Jones‖ fosse sinônimo de ―Galês‖!

466
Além de sua autobiografia, ―Chances‖: JONES, Mervyn. Chances: an autobiography. London; New York:
Verso Books, 1987.
467
É uma inacreditável coincidência, mas se trata do mesmo texto de Phillips (1993) com que estamos
trabalhando aqui.
468
―It‘s true that my father, Ernest Jones, wanted me to adopt the surname of Beddoe-Jones (not Beddow-Jones);
but I never liked the idea and after leaving school I stuck to my name of Mervyn Jones.‖ (1993, Letters, London
Review of Books)
469
1993, Letters, London Review of Books.
470
―I became a writer and Hurdis-Jones may perhaps have heard of me, as I‘ve published 30 books, mostly
novels. (…)If my old friend wishes to get in touch with me, he could write c/o my publisher‖ (1993, Letters,
London Review of Books)
203

Talvez essa identificação e nacionalismo tão fortes em Mervyn o tenham levado a


rejeitar o ―Beddoe‖ e preferido o ―Jones‖: para ele, ser um Jones não é sinônimo de ser um
―João-ninguém‖, mas sim um autêntico galês. O ―Jones‖ em seu nome também desmistificou
a sina que o pai havia profetizado (‗as chances são difíceis para quem tem um nome tão
comum‘...): Mervyn se orgulha de ter feito um nome como romancista – mesmo sendo (ou
justamente por ser) um ―Jones‖.
De fato, o nacionalismo de Mervyn (ao tentar ―converter‖ o amigo de escola
Jones) parece ter relações com o nacionalismo de seu pai - visível pela escolha dos primeiros
471
nomes de seus filhos mais velhos, de inspiração galesa. Jones inclusive fazia questão de, a
cada nascimento de um (a) filho (a), escrever a Freud contando o nome escolhido e em alguns
casos explicava o significado do nome em celta.
E por falar em sentidos de nome, os do nome do próprio Ernest Jones podem ser
analisados por um viés muito interessante. Primeiro nome: Ernest (mesma pronúncia de
―earnest‖, importante, sério - como no trocadilho da peça de Oscar Wilde) e sobrenome: Jones
(Um possível sinônimo para ―João-ninguém‖: segundo o próprio, ―qualquer um é Jones‖ – até
mesmo o marido da primeira mulher, Loe, Herbert Jones, chamado de ―Jones II‖).

471
(Gwenith, Mervyn, Nesta May, Lewis Ernest) A propósito da escolha do nome de sua primeira filha, Jones
diz que precisa ser celta para ―combinar‖ com Jones: ―Seu nome provavelmente será Gwenyth; tinha que ser
galês para acompanhar o Jones.‖ (―Her name will probably be Gwenyth; it had to be Welsh to go with Jones.‖)
(Carta de 17.10.1920 in Freud-Jones correspondence, p. 394) Em sua autobiografia Ernest Jones nos conta que,
ao nascer, sua mãe queria lhe dar o nome galês Myrddin, mas seu pai não concordou. Por lealdade à mãe e para
―compensá-la‖ pela frustração, ao ter seu próprio filho, Jones o batizou com a versão anglicizada Mervyn. (1959,
p. 12) Está aí mais um importante camada de sentido das nomeações geração após geração, aqui claramente de
cunho edípico: o filho como o ―ideal galês‖ do pai – e vice-versa.
Girard (1972) faz ainda outra interessante análise dessa temática, nos mostrando como a questão dos nomes em
Jones também se relaciona com seu desejo de unir os pais (questão edípica) e com sua fantasia de onipotência:
―Seu nome vem como um exemplo de um dos primeiros desentendimentos [entre os pais] de que ele se sentiu
responsável: sua mãe queria chamá-lo de Myrddin, seu pai preferia Alfred Ernest, o nome do segundo filho da
Rainha Victoria; ele próprio escolheu ser chamado Ernest, e até mesmo planeja adicionar o nome de família de
sua avó paterna, uma linhagem da qual se orgulhava. Ele anulou o ato paterno e, nomeando-se de acordo com
seu desejo, pôde satisfazer sua onipotência, depois conciliou os dois desejos paternos e maternos quando ele teve
que nomear seu primeiro filho, chamando-o de Mervyn, nome derivado anglicizado de Myrrddin.‖ (Girard,
1972, p. 48)

―Désir d‘union qui est profondément lié à la culpabilité son nom vient en exemple d‘un des premiers désaccords
don‘t il se sentit responsible: sa mere voulait l‘appeler Myrddin, son pêre prefer Alfred Ernest, nom du second
fils de la Reine Victoria; lui-même choisit plus tard de se nommer Ernest, et envisage meme d‘ajouter le nom de
famille de sa grand-mère paternelle, lignée don‘t il était fier. Il annula ainsi l‘acte paternal et en se nommant lui-
même selon so désir, il put satisfaire sa toute-puissance, il concilia ultérieurement les deux désirs paternal et
maternel lorsqu‘il eut à nommer son premier fils, en l‘appelant Mervyn, nom derive anglicisé de Myrrddin.‖
(Girard, 1972, p. 48)
204

Se fossemos portanto ―traduzir‖ seu nome com esses sentidos, seria: ―O


importante João-ninguém‖ ou então ―O ilustre desconhecido‖ ou ainda ―O famoso quem?‖
(expressões brasileiras afins): o primeiro nome trazendo importância; o sobrenome,
desimportância.
É interessante saber, pela autobiografia de Jones, que ele se identificava com seu
primeiro nome, Ernest, justamente por essa semelhança fonética com o adjetivo de ―zeloso‖,
―importante‖ ou ―sério‖: ―o nome Ernest parece corresponder bem ao meu temperamento
sério.‖ 472
O ―ridículo‖ a que se refere Philips talvez tenha a ver com essa pompa: afinal de
contas só é risível aquele que se dá muita importância - aquele que é frugal e despretensioso
não desperta o sarcasmo do humor. Já apenas aquele que se tem em alta conta pode cair no
caricato... E talvez seja de toda essa ―seriedade‖ de Jones que o autor vai zombar: ―um dos
prazeres da Complete Correspondence é a espirituosidade de Freud, que é nutrida pelo fato de
Jones ser fiel a seu (primeiro) nome‖. 473

VII.3 “Ser ou não ser”

Um dos trabalhos considerados mais importantes da obra de Jones nasceu a partir


de uma nota de rodapé de Freud.474

472
―the name Ernest seems to accord well with my serious temperament.‖ (1959, p. 12)
473
Essa tradução torna a ideia de Phillips um pouco difícil de entender, mas consultando a resenha no original,
nos parece que Phillips quer expressar o contraste entre o humor de Freud, de um lado, com a seriedade (o
aspecto ―Earnest‖ de ―Ernest‖) de Jones, de outro: ―one of the pleasures of this book is Freud‘s wit, which
thrives on Jones being true to his (first) name‖ (1993, p. 10)
474
Encontramos essa nota de rodapé na obra Interpretação dos Sonhos (1900-1901). Na realidade, o trecho foi
colocado como nota de rodapé na primeira edição (1900) mas incluído no corpo do texto de 1914 em diante.
Reproduzo o trecho na íntegra: ―Outra das grandes criações da poesia trágica, o Hamlet de Shakespeare, tem
suas raízes no mesmo solo que Oedipus Rex. Mas o tratamento modificado do mesmo material revela toda a
diferença na vida mental dessas duas épocas da civilização largamente separadas: o avanço secular da repressão
na vida emocional da espécie humana. No Oedipus, a fantasia anelante da criança, subjacente a ela, é posta a
descoberto e realizada, como se fosse num sonho. Em Hamlet ela permanece reprimida; e – do mesmo modo que
no caso de uma neurose – só sabemos de sua existência através de suas consequências inibidoras. O que é
bastante estranho, o efeito esmagador produzido pela tragédia mais moderna tornou-se compatível com o fato de
que as pessoas permaneceram completamente não esclarecidas quanto ao caráter do herói. A peça é estruturada
sobre as hesitações de Hamlet em levar a efeito a tarefa de vingança que lhe é atribuída; mas seu texto não
oferece quaisquer razões ou motivos para essas hesitações e uma imensa variedade de tentativas de interpretá-las
deixou de produzir qualquer resultado. De acordo com o conceito originado por Goethe e ainda hoje
predominante, Hamlet representa o tipo de homem cujo poder de ação direta é paralisado por um
desenvolvimento excessivo de seu intelecto. (Ele está ‗sob o pálido reflexo do pensamento‘.) De acordo com
outro conceito, o dramaturgo tentou retratar um caráter patologicamente irresoluto, que poderia ser classificado
como neurastênico. O enredo do drama nos mostra, contudo, que Hamlet está longe de ser representado como
uma pessoa incapaz de adotar qualquer ação. Vemo-lo agindo assim em duas ocasiões: primeiro, num súbito
205

Trata-se do ensaio ―The Oedipus-Complex as an Explanation of Hamlet‘s


Mystery: A Study in Motive‖, publicado em janeiro de 1910 no American Journal of
Psychology; ensaio shakespeariano-freudiano que procura, fazendo uso de uma série de
referências literárias, interpretar o clássico pelo viés da Psicanálise, mais especificamente pelo
Complexo de Édipo.
Publicado também em alemão no mesmo ano na Schriften 475, o ensaio teve uma
grande repercussão e foi apresentado em três versões 476. Maddox nos conta que o texto

rompante de cólera, quando trespassa com a espada o espreitador que se encontra atrás da tapeçaria, e, em
segundo, de forma premeditada e mesmo ardilosa, quando, com toda a rudeza de um príncipe da Renascença,
envia os dois cortesãos à morte que fora planejada para ele próprio. O que é, então, que o inibe de cumprir a
tarefa imposta pelo fantasma do pai? A resposta, mais uma vez, é que é a natureza peculiar da tarefa. Hamlet é
capaz de fazer qualquer coisa – salvo vingar-se do homem que eliminou o seu pai e ocupou o lugar deste com
sua mãe, o homem que lhe mostra os desejos reprimidos de sua própria infância realizados. Desse modo, o ódio
que deveria impeli-lo à vingança é nele substituído por auto recriminações, por escrúpulos de consciência, que o
fazem lembrar que ele próprio, literalmente, não é melhor que o pecador que deve punir. Aqui traduzi em termos
conscientes o que se destinava a permanecer inconsciente na mente de Hamlet; e se alguém estiver inclinado a
chamá-lo de histérico, só posso aceitar o fato que está implícito pela minha interpretação. O desagrado pela
sexualidade expresso por Hamlet em sua conversa com Ofélia ajusta-se muito bem a isto: o mesmo desagrado
que iria apossar-se da mente do poeta em escala cada vez maior durante os anos que se seguiram, e que alcançou
sua máxima expressão em Timon de Atenas. Pois, naturalmente, só pode ser a própria mente do poeta que se nos
defronta em Hamlet. Observo num livro sobre Shakespeare, de Georg Brandes (1896) uma declaração de que
Hamlet foi escrito logo após a morte do pai de Shakespeare (em 1601), isto é, sob o impacto imediato de sua
aflição e, como muito bem poderemos presumir, enquanto seus sentimentos de infância sobre o pai tinham sido
recentemente revividos. É sabido, também, que o próprio filho de Shakespeare, que morreu com pouca idade,
trazia o nome de ‗Hamnet‘, que é idêntico a ‗Hamlet‘. Da mesma forma que Hamlet trata da relação entre um
filho e seus pais, assim Macbeth (escrito aproximadamente no mesmo período) se reporta ao tema da falta de
filhos. Mas, do mesmo modo que todos os sintomas neuróticos, e por isso mesmo, os sonhos, são passíveis de ser
‗super-interpretados‘ e realmente necessitam sê-lo, se se quiser que sejam inteiramente compreendidos, assim,
todos os escritos genuinamente criativos são o produto de mais um motivo único e de mais de um único impulso
na mente do poeta, e estão abertos a mais de uma interpretação isolada. Naquilo que escrevi, apenas tentei
interpretar a camada mais profunda dos impulsos na mente do criativo escritor.‖ (FREUD. Interpretação dos
Sonhos. Vol. IV. 1900, p. 280-282). O referido trecho traz as relevantes notas de rodapé: ―[Nota de rodapé
acrescentada em 1919:] As indicações acima de uma explanação psicanalítica de Hamlet foram desde então
ampliadas por literatura do assunto. (Ver Jones, 1910a [e, numa forma mais completa, 1949].) – [Acrescentado
em 1930:] Incidentalmente, nesse meio tempo, deixei de crer que o autor das obras de Shakespeare fosse o
homem de Stratford. [Ver Freud, 1930e.] – [Acrescentado em 1919:] Outras tentativas de uma análise de
Macbeth serão encontradas num trabalho meu [Freud, 1916d] e em um de Jekels (1917) – [A primeira parte
desta nota de rodapé foi incluída de forma diferente na edição de 1911, mas omitida a partir de 1914: Os
conceitos sobre o problema de Hamlet contidos no trecho acima foram desde então confirmados e apoiados com
novos argumentos num extenso estudo do Dr. Ernest Jones, de Toronto (1910a). Ressaltou também ele a relação
entre o material em Hamlet e os mitos nascimento dos heróis examinados por Rank (1909). – Freud ainda
examinou Hamlet num esboço publicado postumamente e que trata das ‗Personagens Psicopáticas no palco‘
(1942b), escrito provavelmente em 1905 ou 1906.]‖ (FREUD. Interpretação dos Sonhos. Vol. IV. 1900, p. 282).
475
(―Das Problem des Hamlet und der Oedipus-Komplex‖). Schriften é uma série de publicações em Psicanálise
―Schriften zur angewandten Seelenkunde‖ (―Escritos sobre Psicologia Aplicada‖). Essa série contaria com duas
publicações de Freud em psicologia aplicada (―Gradiva‖ e ―Leonardo DaVinci‖) e duas de Jones (―Hamlet‖ e,
em 1912, seu trabalho sobre Pesadelos). Jung, Abraham e Rank, entre outros autores, também teriam seus
estudos de psicologia aplicada publicados na série alemã. Jones também menciona a criação desta série em sua
autobiografia (1959, p. 222)
(Fonte: <https://translate.google.com.br/translate?hl=pt-
BR&sl=de&u=https://zentralbuchhandlung.de/itm/schriften-zur-angewandten-seelenkunde-aq-55876-
3806.html&prev=search> e <http://www.scielo.br/pdf/pusp/v27n1/1678-5177-pusp-27-01-00104.pdf>)
476
Em 1910, em 1923 e em 1949 – esta última a mais completa.
206

chegou por exemplo às mãos de ninguém menos que James Joyce 477 e a leitura jonesiana do
clássico ressoou tanto a ponto de deixar seu rastro em ―Ulysses‖. 478
É curioso que Maddox, ao contá-lo, atribui quase que uma autoria dupla, tanto a
Jones como a Freud, - colocando o último entre parênteses. Em outro trecho de sua obra
biográfica, Maddox fará isso uma outra vez, de maneira mais explícita, tecendo um
comentário sobre a visão de ―Jones-Freud‖ 479- desta vez fundindo os dois.
A dubiedade da autoria não escapa a Freud. O mestre chega a reconhecer o
trabalho de Jones em sua ―Autobiografia‖ (1925), mas deixando claro, evidentemente, que a
ideia partiu dele: ―(...) bastava um passo para esclarecer a tragédia do caráter que é Hamlet,
que havia trezentos anos era admirada sem que se chegasse a determinar seu sentido e
penetrar os motivos do poeta. (...) Minhas indicações para a análise desse drama vieram a ser
desenvolvidas de modo aprofundado por Ernest Jones.‖ 480
O trabalho é, de fato, um estudo aprofundado e interessantíssimo sobre a obra, e
Jones trafega com maestria nos principais conceitos psicanalíticos (essencialmente o
Complexo de Édipo) para traduzir os sentidos ―latentes‖ da narrativa literária. Sem dúvida um
trabalho de excelência e profundidade, mas em que medida autoral?
Maddox avalia:

Toronto soltou a imaginação de Jones. Seu ensaio sobre Hamlet foi a primeira, e
sem dúvida continua a ser a melhor interpretação freudiana de uma obra de
literatura. Talvez seja uma distinção duvidosa, uma vez que a teoria edipiana se
encaixa à peça como uma luva 481. Hamlet não podia matar o rei, seu tio, por ter feito
o que ele mesmo desejava fazer: matar seu pai e casar-se com sua mãe482

É interessante observar, a esse respeito, que embora Jones tenha desenvolvido seu
trabalho a partir da nota de rodapé de Freud – como um filho que segue os caminhos abertos

477
Maddox, 2006, p. 87.
478
―na cena na Biblioteca Nacional da Irlanda onde Stephen Dedalus debate Hamlet à luz das relações de
Shakespeare com seu filho Hamnet. (...) Stephen segue o diagnóstico de Jones (e de Freud) ao apontar que
Shakespeare escreveu Hamlet nos meses que se seguiram à morte de seu pai ―in the scene in the National Library
of Ireland where Stephen Dedalus debates Hamlet in the light of Shakespeare‘s relations with his son Hamnet.
(…) Stephen follows Jones‘s diagnosis (and Freud‘s) in making the point that Shakespeare wrote Hamlet in the
months that followed his father‘s death.‖ (Maddox, 2006, p. 87-88)
479
―‖Hamlet... pela visão de Jones-Freud…‖ (―Hamlet‘s (...) by Jones-Freud lights...‖) Maddox, 2006, p. 87.
480
Freud, 1925, v. 16, p. 152-153
481
Aqui Maddox felicita e ofende Jones ao mesmo tempo. Elogia-o pelo brilhante trabalho em Hamlet mas
acrescenta, em seguida, que fazer esse trabalho é facílimo... como se dissesse que ―qualquer um faria‖. E então
temos um ―brilhante João-Ninguém‖!
482
―Toronto unleashed Jones‘s imagination. His essay on Hamlet was the first, and arguably remains the best,
Freudian interpretation of a work of literature. A dubious distinction perhaps, yet the Oedipal theory fits the play
like a glove. Hamlet could not kill the king, his uncle, for having done what he wished to do himself: kill his
father and marry his mother.‖ (Maddox, 2006, p. 86)
207

pelo pai –, ―pai e filho‖ entrariam em conflito e discordariam em relação, especificamente, à


autoria de Hamlet.
Freud divagava, em sua ―Autobiografia‖ (1925), acerca da obra de Shakespeare e
de sua relação com o Complexo de Édipo quando coloca a frase: ―Shakespeare escreveu
483
Hamlet pouco depois da morte de seu pai.‖ Anos depois, em 1935, acrescentou a essa
afirmação a seguinte nota: ―Essa é uma construção que desejo explicitamente retirar. Não
mais acredito que William Shakespeare, o ator de Stratford, seja o autor das obras que há
muito tempo lhe são atribuídas. Desde a publicação do livro ‗Shakespeare‟ identified, de J. T
Looney [1920], estou praticamente convencido de que sob esse pseudônimo se esconde
Edward de Vere, conde de Oxford.‖ 484
Segundo Freud, esse conde também teria sofrido um trauma como de Hamlet,
tendo perdido ―um pai amado e admirado quando ainda era menino e repudiou completamente
a mãe, que contraiu um novo casamento logo depois da morte do marido.‖ 485
A edição brasileira de ―Autobiografia‖ (1925) da Companhia das Letras, com a
tradução de Paulo César de Souza (que estou utilizando no presente trabalho, sempre que
possível – nem toda a obra foi publicada até o momento) traz a seguinte contribuição – no
mínimo curiosa: ―Sobre essa extravagante opinião, rejeitada pelos especialistas, ver a nota de
James Strachey, em que descreve a reação de Freud quando ele lhe pediu que a
reconsiderasse, e as biografias assinadas por Ernest Jones e Peter Gay, ambas editadas em
português; acrescentemos que a palavra looney, sobrenome daquele autor, significa
‗maluco‘.‖ 486
De fato, maluco ou não, Freud sustenta sua crença de que Shakespeare não é o
verdadeiro autor de Hamlet, e a essa crença Jones irá se opor. A nota de Strachey demonstra
que de fato Freud está muito seguro de sua tese (a de que Shakespeare é um pseudônimo de
outro autor) mas que se os ―ingleses fazem tanta questão‖, pode-se tirar a ênfase deste ponto.
Em sua resposta, Freud aproveita claramente a oportunidade para criticar os ingleses (e
novamente lembramos de sua postura perante a ―raça britânica‖, origem que a princípio atraiu
Jones aos olhos do mestre mas que seria a mesma razão de certa desconfiança perante o
discípulo):

483
1925, v. 16, p 152-153
484
Freud, 1925, v. 16, p. 153
485
Freud, 1940 [1938], v. XXIII, p. 221
486
Freud, 1925, v. 16, p. 153
208

Quando, em 1935, o tradutor inglês recebeu a minuta dessa nota de rodapé adicional,
ficou tão atônito que escreveu a Freud pedindo-lhe que a reconsiderasse – não com
base na verdade ou, de outra forma, na teoria, mas no efeito que a nota
provavelmente iria exercer sobre o leitor inglês médio, particularmente em vista do
desastroso nome do autor do livro mencionado. A resposta de Freud foi muito
indulgente, como a demonstrará um excerto de uma tradução de sua carta. Esta traz
a data de 29 de agosto de 1935. ‗... No tocante à nota de Shakespeare- Oxford, sua
proposta me coloca na posição inusitada de mostrar-me um oportunista. Não posso
compreender a atitude inglesa quanto a esta questão. Edward de Vere por certo foi
um inglês tão autêntico quanto Will Shakespeare. Mas visto que o assunto se acha
tão afastado do interesse analítico, e visto que você dá tanta importância a que eu me
mostre reticente, estou pronto a eliminar a nota, ou apenas inserir uma frase como
―Por motivos particulares não desejo mais dar ênfase a esse ponto‖. Você mesmo
resolva isso. Por outro lado, gostaria que a nota fosse mantida na íntegra na edição
norte-americana. A mesma espécie de defesa narcísica não precisa ser temida ali...487

É digno de nota que ambos divirjam exatamente no tema da autoria, e acerca de


uma obra e de um (suposto?) autor que interessam sobremaneira a ambos. Girard (1972) é
quem nos aponta que a verdadeira discussão, que subjaz a esta, é quem é o autor da leitura
psicanalítica de Hamlet (uma vez que um concebeu toda a teoria de sustentação e ―indicou‖ a
obra apontando os caminhos – Freud-, mas foi o outro que tomou para si a tarefa e o fez,
desenvolvendo a ideia com maestria, - Jones).
O autor francês diz:

Esta é a interpretação deste drama a que Freud aderiu e sobre a qual ele parabeniza
Jones, mas em relação à qual ele manteve um sentimento de paternidade, pois a
tragédia de Hamlet lhe parecia, com a de Édipo, essencial na evolução pessoal
profunda que levou à descoberta da psicanálise (...) No entanto, há um ponto sobre o
qual eles divergem mais tarde, é sobre o autor de Hamlet; não o caráter revelado
pela interpretação que Jones deu sobre as projeções de conflitos inconscientes de
Shakespeare em seu trabalho, mas a própria identidade do criador. O mistério em
torno da identidade de Shakespeare estimula a imaginação de Freud e tece essas
teses que Jones reprova. Jones ou Freud? Também se pode perguntar sobre isso a
respeito desta obra [grifo meu].488 489

É pois complicado precisar, neste trabalho e mais uma vez , a diferenciação entre
Freud e Jones. Essa ambivalência de Jones em relação a Freud – isto é, o delicado limiar entre
fusão e diferenciação - pode ser encontrada nas considerações de Conrad Stein, que em 1968
dedicou um artigo a comentar a obra jonesiana ―Hamlet e o Édipo‖. Segundo o autor, se por
487
Idem, Ibidem, vol XX, p. 80
488
―Telle est l'interprétation de ce drame à laquelle Freud adhéra et dont il félicita Jones, mais pour laquelle il
conserva le sentiment d'une paternité, tant la tragédie d‘Hamlet lui paraissait, avec celle d‘Oedipe, essentielle
dans l'évolution personnelle profonde qui le conduisit à la découverte de la psychanalyse. (...) Il y a pourtant un
point sur lequel ils divergeront plus tard, c'est à propos de l'auteur d'Hamlet; non le personnage révélé par
l'interprétation que donna Jones des projections des conflicts inconscients de Shakespeare dans son ouvre, mais
l'identité même de ce créateur. Le mystère autour de l'identité de Shakespeare excitait l'imagination de Freud et
il adhéra à des thèses que Jones réprouvait. Jones ou Freud? pourrait-on se demander aussi à propos de cette
oeuvre [grifo meu]‖ (Girard, 1972, p. 277)
489
Meu agradecimento a Mathias Guerineau pela revisão de várias traduções do francês.
209

um lado pode-se dizer que Jones se mantém freudiano em seu estudo de Hamlet, por outro
lado imprimiria nele uma marca pessoal, ao promover, por exemplo, o diálogo da
interpretação psicanalítica com outras ciências humanas: por não apenas interpretar o
personagem Hamlet mas também seu autor – Shakespeare -, Jones consegue oferecer um
ensaio que não é apenas psicanalítico, mas também literário.
Talvez sem se dar conta – até porque o objetivo de seu artigo não é analisar a
fundo os meandros da diferenciação de Jones (Stein está preocupado com a questão da
Psicanálise aplicada) – o autor faz afirmações um tanto dúbias sobre a autoria da obra (o que
na realidade apenas corrobora ser esse um tema chave para a compreensão de nosso galês):

(...) Hamlet e Édipo (...) não é mais que a produção menor 490 de um militante que se
propôs apresentar ao público, desenvolvendo, de uma maneira o menos hermética
possível, uma ‗teoria psicanalítica de Hamlet‘, conforme os pontos de vista de
Freud. Ao leitor, que não teria presente na lembrança as páginas que Freud dedicava
periodicamente a Hamlet, seria preciso se reportar ao prefácio de Jean Starobinski,
que as reproduz, para se convencer que o desenvolvimento está fiel ao modelo,
segundo as aparências. Mas desde que sua ‗teoria psicanalítica‘ é aquela de Hamlet
e também aquela de Shakespeare, este livro pertence não só à psicanálise, mas
também à crítica literária ou à história da literatura, disciplinas distintas da
psicanálise. A obra toma aqui a dimensão de um estudo original que o autor não
deixou de basear em uma sólida documentação histórica. Ernest Jones, parece,
portanto, ter contribuído para justificar a ideia de Freud, segundo a qual a
psicanálise leva aos outros domínios do saber bem mais do que deles recebe [grifos
meus]491

Stein apresenta aqui argumentos interessantes: afirma que Jones, como um


ativista, desenvolve as ideias de Freud, mas ao mesmo tempo diz que a obra é fiel ao modelo
freudiano aparentemente. Apenas aparentemente? Em seguida esclarece: o livro de Jones vai
muito além da psicanálise, dialoga com outras áreas do conhecimento e nesse sentido se torna
uma produção original. E Stein encerra: ao fazer conversar a psicanálise com outras
disciplinas – e ser portanto original em seu estudo – Jones cumpre e justifica fielmente a
ideia... de Freud, que pensa que a psicanálise tem muito a contribuir com as outras áreas do
saber. É quase como se déssemos uma volta completa: em sua obra sobre Hamlet Jones é

490
―Menor‖, segundo o autor, em relação à produção ―maior‖ de Jones, a saber, a biografia do mestre. Conrad
Stein, a propósito, valoriza de tal maneira a obra biográfica de Jones que abre seu artigo com uma afirmação
contundente: ―Se eu tivesse que conservar em minha biblioteca uma única obra dedicada à psicanálise, além das
obras completas de Freud e sua correspondência, minha escolha seria, sem hesitação, Sigmund Freud, Life and
Work de Ernest Jones, único escrito pós-freudiano quase indispensável.‖ (1968, p. 194) É interessante, mais uma
vez, atestar como a obra pela qual Jones é mais conhecido – e valorizado – é sobre o legado de Freud.
491
Stein, 1968, p. 194-195. Embora, mais adiante, Stein sugerirá que Jones é um ―gênio mais medíocre‖ (que
Freud) porque só explanou as ideias prévias do mestre, mas a tradução é um pouco dúbia. (Versão consultada
para este trecho: MEZAN, R., C; O psicanalista e seu ofício. São Paulo: Escuta, 1988).
210

rigorosamente freudiano, mas ainda assim original... e é original sendo rigorosamente


freudiano.
O próprio Freud mantém essa dubiedade ao comentar brevemente sobre o ensaio
de Jones, em nota acrescentada às suas reflexões: ―Os conceitos sobre o problema de Hamlet
contidos no trecho acima foram desde então confirmados e apoiados com novos argumentos
num extenso estudo do Dr. Ernest Jones, de Toronto (1910a) [grifos meus]‖492 Em outras
palavras, Freud afirma aqui que Jones seguiu seu modelo à risca, mas ao mesmo tempo
enriqueceu o estudo com material novo – sem por isso deixar de ser freudiano. Sem dúvida,
por esta razão – isto é, uma “inovação” que se mantém na tradição (o que parece um
contrassenso, mas de fato é o que se mostra condizente com o limiar por onde trefega Jones) -,
Freud parece se considerar coautor da obra do discípulo.
A obra jonesiana sobre Hamlet não é, porém, o único trabalho do galês que não
parece tão diferenciado aos olhos do mestre. Phillips (1998) enxerga que a questão das
traduções também se revela na leitura que Freud fará da obra ―On the Nightmare‖, publicado
em 1910. Na troca de cartas sobre o assunto, o mestre irá notar a ―facilidade‖ de interpretação
que o trabalho de Jones propõe e chega a compará-lo com seus esforços relacionados à
tradução– que tanto o apraz e por tanto tempo o ocupa: nesse sentido a obra de Jones nada
mais seria, portanto, do que uma simples explanação ou aplicação da teoria de Freud.
Novamente então vemos Jones se preocupando mais com a tradução (seja da língua, seja da
teoria, através de explicações ou ilustrações e exemplos) e didática – de propagação da teoria
psicanalítica, fortalecendo o ―Movimento‖ – do que com a delimitação de uma proposição
autoral nítida e própria.
Após ler ―On the nightmare‖ (1910), Freud critica o trabalho (para o próprio
Jones, em carta) com toda a franqueza: ―Para começar por essas trivialidades desagradáveis,
não tive a satisfação com seu ―Sobre o Pesadelo‖ [―On the nightmare‖] que me deram quase
todas as suas contribuições para a ciência. É uma enorme quantidade de coisas, mas menos
robustas do que eu esperava e em alguns lugares apenas uma tradução dos fatos conhecidos
para o dialeto da Ψα‖ 493
Após analisar esta – entre outras – troca de cartas sobre os temas de tradução e
originalidade, Phillips (1998) conclui, mordaz:

492
Freud. Interpretação dos Sonhos. Vol. IV. 1900, p. 282.
493
―To begin by those disagreeable trifles, I got no[t] the satisfaction from your nightmare [―On the nightmare‖],
that almost all your contributions to science had given me. It is a tremendous amount of stuff, but less proof than
I had expected and in some places only a translation of the known facts into the Ψα dialect.‖ (Carta de
14.01.1912 in Freud-Jones correspondence, p. 125. Citado por Phillips, 1998, p. 169).
211

A tradução, paradoxalmente – ou sadicamente -, torna-se, entre outras coisas, a vara


utilizada por Freud para bater em Jones.‖ E, após citar esta carta em que Freud
desfaz do ―Nightmare‖ de Jones, o autor arremata: ―Obviamente, na visão de Freud,
havia coisas mais interessantes a fazer. (...) O que desponta na correspondência é sua
percepção de que a dedicação de Jones à tarefa, muitas vezes, é mais um sintoma
que uma virtude, e dos confusos sentimentos de humilhação de Jones [grifo meu]. 494

Segundo o autor, Jones, como o melhor aluno da classe, realiza apenas aplicações
da teoria psicanalítica – seja em uma obra clássica de literatura, como Hamlet, seja
interpretando pesadelos. O faz com maestria, sem dúvida, mas parece não alcançar, ao menos
de modo explícito – e talvez nem pretendê-lo – o desenvolvimento de um pensamento
próprio, destacado e diferenciado de Freud. (A avaliação de Phillips, portanto, é diferente da
de Stein, que enxergou onde está a originalidade de Jones em ―Hamlet e Édipo‖, por exemplo)
A propósito é preciso mencionar aqui, quase como um adendo, que não é
necessário exatamente ser o líder de uma ―nova escola‖ para ser reconhecido por conceitos
autorais. O caso de Jung é bastante emblemático porque, não apenas a teoria de Jung se
diferencia consideravelmente da de Freud (e da própria Psicanálise), mas houve de fato uma
ruptura (traumática e bem demarcada). Já Ferenczi, por exemplo, conseguiu produzir uma
obra e um construto teórico o qual reconhecemos em nossos dias mesmo sem um rompimento
―escolar‖ (isto é, sem fundar propriamente uma nova escola). Abraham também tem
contribuições originais e não criou propriamente uma doutrina em torno de si; anos mais tarde
André Green faria um diálogo teórico com outros psicanalistas propondo ideias muito
originais - mas não há, contudo, uma ―escola greeniana‖. Mesmo Lacan, que fez
importantíssimas contribuições conceituais à Psicanálise e chegou a criar uma nova escola,
ainda assim teve grande parte de sua obra marcada pelo ―retorno a Freud”, e diz-se que ele
mesmo se considerava mais freudiano do que lacaniano.
Veszy-Wagner assinala que não se pode, de modo algum, compreender a não
existência de uma ―escola jonesiana de psicanálise‖ como uma falta de valor de suas ideias, -
posição com a qual concordo enfaticamente:

Embora vários analistas da primeira geração criassem ‗escolas de grande coesão‘,


Jones tinha apenas alguns seguidores e simpatizantes pessoais entre aqueles que
estudavam com ele. Sendo ele mesmo um espírito livre, nunca impôs doutrinas a
seus discípulos (...) 495 Por que suas concepções nunca expressaram essas tendências
populares e latentes dentro do interesse psicanalítico que tendem a atrair novos

494
Phillips, 1998, p. 169.
495
Ao ler a autora, confesso ter me surpreendido com a expressão utilizada: ―discípulos de Jones‖. De fato nunca
tive notícias de um ―discípulo de Jones‖.
212

discípulos? Críticos desrespeitosos podem arriscar a opinião de que talvez suas


ideias não fossem tão valiosas como se supunha. Não concordo: é chegado o
momento de que se renove o interesse pelas ideias de Jones e seus valores.496

Como estamos estudando, é possível que parte desta não-valorização viesse do


próprio Jones. O galês talvez pensasse que depois de Freud, não houvesse mais nada a ser
feito. Tudo de mais inovador já estava ali, e restava a ele propagá-lo e aplicar esta genial
teoria a tantos e tantos objetos de análise (sejam pacientes, personagens históricos, obras
literárias, sonhos, pesadelos, mitos, folclores, etc) Quando alguém está tão próximo – e tão
fiel – de alguém da estatura de Freud, que tanto produz e com tanto brilhantismo e ineditismo,
o que mais restará por fazer?
Em sua autobiografia Jones nos conta que seu pai, Thomas, tinha uma máxima:
―Há muito lugar no topo‖ 497
Em sua juventude (antes de conhecer Freud), o entusiasmado Jones se
deslumbrava com grandes personalidades da psicologia médica, e chegou a imaginar que ele
mesmo poderia ser – por que não?- grande e pioneiro como eles:

A essa altura eu estava começando a saber quem era quem no mundo da psicologia
médica e a gradualmente conhecê-los pessoalmente. Pelo que eu sabia - pois o sol de
Freud ainda não havia nascido no meu horizonte -, havia apenas três: Janet na
França, Boris Sidis e Morton Prince na América. (...) Então, se eu avaliasse o
cenário, realmente havia apenas Janet abrindo novos caminhos, e senti que eu havia
considerado suas limitações. Meu pai evidentemente tinha razão: sempre há lugar no
topo. Com meu entusiasmo genuíno, minha nova perspectiva cética e alguma
disciplina mental dada pelo meu rigoroso treinamento médico, parecia que eu
poderia ser em certa medida pioneiro. Então veio Freud, e eu logo descobri que eu
tinha que ir para a escola novamente.498

Neste trecho fica bastante claro que a ―luz‖ de Freud recolocou os sonhos de
pioneirismo de Jones em perspectiva, e ele imediatamente ―se colocou no seu lugar‖.

496
―Aunque varios de los analistas de la primera generación crearon ‗escuelas de gran cohesión‘, Jones sólo tuvo
unos pocos adeptos y simpatizantes personales entre quienes estudiaron con él. Siendo él mismo um espíritu
libre, nunca impuso doctrinas a sus discípulos (...) Por qué sus concepciones nunca expresaron essas tendências
populares y latentes dentro del interés psicoanalitico que tienden a atraer nuevos discípulos? Los críticos
irreverentes podrían aventurar la opinión de que quizá sus ideas no eran tan valiosas como se suponía. No puedo
estar de acordo: ya ha llegado el momento de que se renueve el interés por las ideas de Jones y sus valores.‖
(Veszy-Wagner, 1968, p. 36-37)
497
―There is plenty of room at the top.‖ (Jones, 1959, p. 42)
498
―By this time I was getting to know who was who in the world of medical psychology and gradually to meet
them personally. So far as I could see, for the sun of Freud had not yet risen above my horizon, there were only
three: Janet in France, Boris Sidis and Morton Prince in America. (…) So if I surveyed the scene there was really
only Janet who had broken new ground, and I felt I had measured his limitations. My father had evidently been
right: there is always room at the top. With my genuine enthusiasm, fresh skeptical outlook, and some mental
discipline from my strict medical training, it looked as if I might be somewhat of a pioneer. Then came Freud,
and I soon found I had to go to school again.‖ (Jones, 1959, p. 159)
213

De fato, precisamos colocar em contexto o efeito de ―maravilhamento‖ de Jones


(e de tantos outros seguidores) diante da genialidade de Freud. As portas que a psicanálise
abriu foram sem dúvida inéditas, até então impensadas, e o caráter ―inaugural‖ do pensamento
psicanalítico é de fato definitivo e irreprodutível.
Jones demonstra partir desta premissa quando, por exemplo, coloca a frase (em
destaque no trecho) – bastante forte (e irrefutável) na biografia do mestre:

Freud resolveu enfrentar a sua tarefa mais heroica – uma psicanálise de seu próprio
inconsciente. É difícil para nós, atualmente, imaginar quão momentosa foi a
experiência, considerando-se que essa dificuldade é o destino inerente à maioria das
façanhas de caráter pioneiro. Ainda assim, a singularidade da proeza apresenta sua
feição permanente. Uma vez realizada, torna-se realizada para sempre. E por isso
mais ninguém poderá ser o primeiro a explorar tais profundidades.499

Poderíamos talvez inferir que o deslumbre de Jones diante do ineditismo, da


originalidade de Freud (traduzidos inclusive nesta frase de tanto peso e força) funcionariam
para ele próprio como um inibidor de suas próprias contribuições originais? (Uma vez que
está feito, está feito. O original é Freud, cabe a mim apenas reconhecê-lo, admirá-lo, proteger
e disseminar o seu legado. Afinal, quem sou eu diante de um gênio tão magistral?)500
Freud afinal estaria para sempre associado à Psicanálise como seu criador e
pioneiro, e Jones se dedicava a propagá-lo (tanto o homem quanto suas ideias), colocando-se
como intermediário, veículo, propagandista.
Interessante observar é que Jones parecia por vezes confundir seu valor pessoal
com este papel de ―representante‖, como se sua potência estivesse confundida com a potência
do mestre. Phillips nos lembra que em 1920 Jones escreveu um artigo sintetizando muitos
trabalhos de Freud (―Recent Advances in Psychoanalysis‖) e apresentou-o para a Sociedade
Psicológica Britânica,501 sentindo-se pessoalmente muito orgulhoso não só pelo feito –

499
Jones, 1970, Vol 1, p. 322. No original em inglês a frase é ainda mais sonora: ―Once is done it is done
forever. For no one can be the first to explore those depths‖ (JONES, E. The Life and Work of Sigmund Freud.
Vol 1: 1856-1900, New York: Basic Books, 1953, p. 319)
500
Maddox nos conta que a ex-companheira de Jones, Loe, escreveu certa vez uma carta a Freud comentando
que seus discípulos achavam que estavam sendo originais – quando ele, Freud, já havia inventado aquilo muito
tempo antes (2006, p. 159)
501
Phillips, 1998.
Esclarecendo: a sociedade para a qual Jones apresentou o trabalho é a British Psychological Society (ou BPS);
não confundir com a British Psycho-Analytical Society, fundada pelo próprio galês em 1919. A Sociedade
Psicológica Britânica foi fundada em 1901 por docentes da Universidade College, em Londres, e era voltada
para a pesquisa em Psicologia. Anos depois seriam criadas três seções especializadas dentro da sociedade:
Medicina, Educação e Indústria. Jones apresentou seu artigo na seção ―Medicina‖. A confusão entre estas duas
Sociedades Britânicas se dá não apenas pelos nomes quase iguais, mas também por ambas serem conhecidas pela
214

sintetizar os trabalhos de Freud não é tarefa fácil – como também pela qualificação do público
e excelente repercussão. Jones então escreve ao mestre orgulhoso de si e sentindo-se
fortalecido pela força de Freud:

[O artigo apresentado] Provou ser muito bem sucedido, e posso dizer que produziu
exatamente o efeito que eu pretendia, ou seja, aumentar o respeito pela seriedade,
solidez e complexidade de nossa ciência. Foi também por várias razões um sucesso
pessoal especialmente grande, e me fez pensar na sua declaração: um homem é forte
desde que represente uma ideia forte. [grifo meu]‖502
Jones representa a ideia forte de Freud, e assim se sente fortalecido quase que por
―procuração‖.
Para Phillips, que analisa esta troca de cartas, a correspondência entre Freud e
Jones como um todo giraria em torno de duas questões (relacionadas entre si): ―qual a
autoridade de Freud (e da psicanálise) e quem pode melhor representar – isto é, traduzir – sua
obra?‖ 503
É evidente que a resposta é: Jones: ―A tradução da psicanálise – divulgá-la e ao
mesmo tempo vertê-la para o inglês – iria ser a missão de Jones.‖ 504
Já vimos, na primeira parte do presente capítulo, como Jones mantinha uma
preocupação em não se misturar à multidão - um temor de não ser reconhecido em meio a
tantos anônimos. Este receio o fez cogitar modificar seu sobrenome para se tornar diferente de
tantos e tantos ―Jones‖, um nome segundo ele tão comum e corriqueiro que nem chegava a
cumprir sua função de nomear: ―Alguns nomes como Jones e Smith perderam a função
principal de um nome, que é separá-los de outras pessoas‖505

mesma sigla: BPS. Fonte: <http://www.bps.org.uk/system/files/Public%20files/HOPC/bps_timeline.pdf> e


<http://origins.bps.org.uk/#>.
502
―It proved to be very successful indeed, and I can say it produced exactly the effect I intended, namely of
heightening their respect for the seriousness, solidity and complexity of our science. It was also for various
reasons a specially great personal success, and made me think of your saying: a man is strong so long as he
represents a strong idea [grifo meu]‖ (Carta de 25.01.1920 in Freud-Jones correspondence, p. 365) Mencionado
por Phillips, 1998, p. 168. Sobre essa passagem, Phillips comenta que Freud perceberia que a psicanálise havia
―ironizado‖ a concepção de ―ideia forte‖ e ―homem forte‖, mas não explica muito bem o que significaria essa
ironia - dizendo apenas que Freud atenta para perigo de se chegar a conclusões a partir de pistas insuficientes. O
trecho é: ―Após fazer uma palestra bem-sucedida sobre psicanálise na Sociedade Psicológica Britânica, em 1920,
Jones escreve a Freud que seu sucesso ‗me fez pensar em sua frase: um homem é forte enquanto representar uma
ideia forte.‘ Mas Freud percebeu que a psicanálise havia ironizado a ideia toda da ideia forte e do homem forte,
embora ainda os promovesse como ideais. Ou seja, Freud (...) era um adepto crítico de suas próprias ideias
aparentemente fortes. Criticando algumas ideias de Jones, fala do ‗perigo inerente ao nosso método de concluir a
partir de pistas frágeis, explorando sinais insignificantes.‘‖ (Phillips, 1998, p. 168)
503
Phillips, 1998, p. 168.
504
Idem, Ibidem, p. 163.
505
―Some names like Jones and Smith have lost the first function of a name, that is to separate them from other
people‖ (Carta de 16.03.1922 in Freud-Jones correspondence, p. 463. Citada por Maddox (2006, p. 1).
215

Jones temia, ao que tudo indica, ser um ―João-ninguém‖ e procuraria portanto ser
reconhecido como ele mesmo, destacado das outras pessoas. Ao mesmo tempo, admitia não
ter características de um pioneiro: como vimos, embora o desejasse muito, acabou por se
―conformar‖ com sua condição (de ―não pioneiro‖) ao se deparar com o pioneirismo de
Freud...
Há também outro aspecto da obra de Jones que se relaciona com a ideia de ―João-
ninguém‖: trata-se da maneira como Jones escolheu se colocar e produzir seus trabalhos no
auge do movimento psicanalítico.
Embora Jones tenha por vezes colocado de forma clara seus posicionamentos –
como por exemplo, admitindo estar do lado de Melanie Klein, mesmo diante do mestre -, ou
ainda tentando dissuadi-lo de enveredar sobre o tema da telepatia, apenas para citar alguns
exemplos, ainda assim não o fez de modo disruptivo: fica evidente, em sua história um
esforço de manter as relações – em especial as com o mestre - no âmbito do razoável, do
negociável, do moderado. A diplomacia, traço marcante de sua personalidade, poderia ser
interpretada como uma virtude, responsável por diversas conquistas tanto pessoais quanto
profissionais, e excelentes para o movimento psicanalítico – como vimos – mas, por outro
lado, alguns de seus movimentos dúbios e políticos, na intenção talvez de ―tentar agradar‖
todos os lados (parecendo, como diz a canção, ―não ter opinião‖), acabou por gerar, por parte
de colegas e especialmente por Freud, uma desconfiança.
Bem lembramos que no período de 1907 a 1909 várias atitudes de Jones que
tentavam ―agradar Deus e o Diabo‖ não foram bem vistas pelos seus colegas psicanalistas.
Jones estava com um pé na Psicanálise e outro na Neurologia/Psiquiatria, visíveis tanto por
suas incursões pela clínica de Kraepelin em Munique como pelo fato de intencionalmente
―intercalar‖ a produção de artigos de Neurologia e Psicanálise a fim de não chocar os
puritanos do Novo Mundo. A propósito, naquela carta (que já conhecemos) em que Jones diz
a Freud que pretende alternar os temas dos artigos, uma frase não nos passou despercebido:

Também eu quero ser amplamente reconhecido em neurologia e psicologia ou


outros campos, de modo que a influência será maior e mais prontamente ouvida.
(...) Por isso eu devo diluir meus artigos sexuais entre outros assuntos
alternadamente. (...) [grifo meu].506

506
―Also I want to be generally recognized in neurology and psychology or other fields, so that one‘s influence
will be greater and one will be more readily listened to. (...) Hence I shall dilute my sex articles with articles on
other subjects alternately. (…)‖ (Carta de 07.02.1909 in Freud-Jones correspondence, p. 14-15. Citada por
Maddox, 2006, p. 73).
216

Nesse momento, em que já me encaminho para a parte final da pesquisa, é


inevitável não lembrar de uma observação feita no início: a de que os escritos de Jones estão
―espalhados‖ em bibliotecas brasileiras de diferentes faculdades: de Letras, Medicina,
Psicologia, Educação e até Museu de Arqueologia (USP-SP). É realmente digno de nota
saber, por uma carta de Jones, que essa pulverização foi, pelo menos em um momento de sua
vida, intencional – e, o que é mais curioso, justamente como estratégia para aumentar o seu
reconhecimento. Jones pensava que ficar com um ―pé em cada canoa‖ fosse uma boa maneira
de destacar-se, quando, ao que tudo indica, o que ocorreu foi exatamente o contrário.
A julgar por sua autobiografia, fica claro que, com a maturidade, Jones acabou
percebendo que sua dispersão de interesses de certa forma prejudicou a realização de todos os
seus sonhos e ambições. O galês nos conta que, durante a Guerra, embora continuasse
escrevendo artigos psicanalíticos, não conseguia manter o foco nessa atividade, e acabou
voltando muito de seus estudos para Política e temas militares. Jones comenta ainda que o
mestre, ao contrário, foi capaz de trabalhar exclusivamente para a Psicanálise:

Embora eu tenha feito uma boa quantidade de trabalho científico durante os quatro
anos da guerra, me faltou a força de vontade necessária - ou então eu tinha muita
consciência social - para dedicar minha atenção inteiramente a isso, o que naquelas
circunstâncias sem dúvida teria sido a coisa mais útil a fazer. Foi o que Freud fez.
Ele olhava o jornal, colocava-o de lado com a condenação 'scheusslich' (horrível) e
continuava seu trabalho. Da minha parte, isso me distraía muito. Eu acompanhava os
eventos diários nos mínimos detalhes, verificava os cálculos e as estimativas de
Hillaire Belloc e outros escritores militares de todas as formas que eu podia, e me
interessava profundamente pelas questões militares e políticas. Fiquei assim
estimulado para ler todos os tipos de livros sobre estratégia, teoria da guerra e
sobretudo a história dos vários países europeus envolvidos. Certamente adquiri
dessa maneira uma grande quantidade de informações interessantes, que eu gosto de
ter, mas estou certo de que deveria ter alcançado mais na vida se não fosse
fascinado por uma grande variedade de aspectos. Só se vive uma vez, é verdade, e
ser profundamente interessado por todas as coisas que a vida oferece é uma boa
maneira de viver, mesmo que limite um pouco a extensão da contribuição pessoal
para o bem comum [grifos meus]. 507

507
―Although I accomplished a good deal of scientific work during the four years of the war, I either lacked the
necessary strength of mind or else had too much of a social conscience to devote my attention entirely to it,
which the circumstances would doubtless have been the most useful thing to do. That was what Freud did. He
would glance through the newspaper, toss it aside with the condemnation ‗scheusslich‘ (horrible) and go on with
his work. But for my part I found it too distracting. I followed daily events in meticulous detail, checked the
calculations and estimates of Hillaire Belloc and other military writers in every way I could, and took a profound
interest in both the military and the political issues. I was thus impelled to read all manner of books on strategy,
the theory of war, and above all the history of the various European countries involved. I certainly acquired in
this way a vast amount of interesting information, which I have been glad to possess, but I am sure I should have
achieved more in life had I not been fascinated by such a large variety of its aspects. One lives but once, it is
true, and to be deeply interest in all life offers is a good way of living, even if it somewhat limits the extent of
one‘s personal contribution to the common weal.‖ (Jones, 1959, p. 248-249) A amiga e assistente de pesquisa de
Jones, Veszy-Wagner, discorda do galês: ―Nenhum leitor de Jones concordaria com sua afirmação de que ele
teria alcançado muito mais na vida se não tivesse sido atraído por uma variedade tão grande de aspectos. ―(1968,
217

Às voltas com a ideia de ―João-ninguém‖ (questão que, pelo que temos visto,
tomava a atenção de Jones), tive o interesse de buscar a letra da célebre música homônima de
Noel Rosa. Para minha (grata) surpresa, encontrei o seguinte trecho, que nos dá material para
uma importante reflexão:

Esse João nunca se expôs ao perigo


Nunca teve um inimigo
Nunca teve opinião508

Rosa descreve, portanto, o ―João-ninguém‖ como aquele que fica em cima do


muro e não se coloca, não se posiciona – e logo não tem inimigos, já que agrada todos os
lados.

p. 30) ―Ningún lector de Jones estaria de acuerdo con su afirmación de que habría logrado mucho más en la vida
de no haberse sentido atraído por una variedad tan grande de sus aspectos.‖ (1968, p. 30) Sou obrigada a
discordar da autora: eu sou uma leitora que enxerga coerência nesta auto avaliação de Jones. Como estamos
estudando, a dispersão de seus interesses, embora confira à sua obra uma erudição das mais interessantes, além
de aplicações a áreas diversas, de algum modo parece ter contribuído para uma dificuldade do leitor em
caracterizar ou localizar sua autoria (que, como vimos, tem como estilo exatamente esse ecletismo!) Por outro
lado, está claro que essa abertura de Jones a outros campos, no qual também atuou como divulgador da
Psicanálise (como vimos, por exemplo, defendendo-a entre os médicos), trouxe inegáveis benefícios à Causa: ―A
psicanálise tem uma grande dívida com Jones, uma vez que seus pacientes e árduos esforços são em grande parte
responsáveis por abrir uma brecha nas defesas hostis de outras profissões e levá-la a ocupar o lugar legítimo
entre a medicina e as demais ciências.‖ (Veszy-Wagner, 1968, p. 33) A autora também enfatiza suas habilidades
de mediação. ―El psicoanálisis tiene com Jones uma imensa deuda, pues a sus pacientes y árduos esfuerzos se
debe em gran parte que pudiera abrir uma brecha em las defensas hostiles de otras profesiones y llegara a ocupar
el lugar que le corresponde entre la medicina y las demás ciências.‖ (Veszy-Wagner, 1968, p. 33) Em outras
palavras, é como se Jones houvesse em certa medida ―sacrifícado‖ seu contorno autoral em nome de uma causa
maior, a propagação da Psicanálise. (O resumo do livro de Girard diz algo na mesma direção: o foco de Jones na
biografia de Freud teria ―eclipsado‖ o restante de seu trabalho. (1970, contracapa)

Em seu Discurso Fúnebre para Jones, Winnicott (1998) vai apontar que mesmo sendo ambicioso, ansioso por
reconhecimento e tendo tido muitas conquistas (―Não era apenas em seu trabalho que Jones situava-se no topo‖),
o galês pagou o preço pela absoluta lealdade a Freud ficando muitas décadas na obscuridade: ―Certamente,
quando consideramos o fato da ambição pessoal, temos de admirar Ernest Jones não menos pelo fato de ele
haver-se não apenas contentado, mas de ter sentido orgulho em trabalhar com outro homem que sentia ser, em
todos os respeitos, maior que ele próprio.‖ (Winnicott, 1998, p. 310) Em outro trecho, o autor inglês se pergunta:
―Fica-se pensando o que teria acontecido se Jones não houvesse descoberto a obra de Freud. É possível que
tivesse explorado a sua capacidade intelectual e perdido contato com as questões comuns do sentimento?‖ É
interessante que Winnicott, embora não o cite, parece ter se baseado em um depoimento do próprio Jones em sua
autobiografia, em que afirma que, caso Freud não tivesse existido, ele (Jones) teria ido longe em seus estudos de
psicologia médica e social, mas que não teria alcançado as ―profundezas‖ da mente humana: ―Não duvido que eu
tivesse ido longe nos campos da psicologia médica e social, se Freud nunca tivesse vivido, mas não vejo nenhum
motivo para se pensar que eu deveria ter atingido a chave que abriu o caminho para a exploração das profundas
camadas inconscientes da mente‖ (―I do not doubt that I should have gone far in the fields of medical and social
psychology had Freud never lived, but I see no reason at all for supposing I should ever have hit on the key that
opened the way to the exploration of the deep unconscious layers of the mind‖ (Jones, 1959, p. 161) (Winnicott,
1998, p. 302)
508
(―João Ninguém‖ (1935), Noel Rosa, p. 59). Ver: CHEDIAK, Almir (Ed.). SongBook Noel Rosa 2. São
Paulo: Lumiar Editora, 2009, p. 59.
218

Mas será que aquele que não se posiciona com clareza de fato consegue ―não ter
inimigos‖?
A julgar pelos documentos aqui estudados, a diplomacia jonesiana exagerada, que
parecia querer garantir boas relações com todos os lados, poderia ser interpretada por seus
colegas como hipocrisia e esperteza oportunista. Seria Jones um traidor? Ao estudar a
biografia de Jones, Maddox509 já havia nos relatado que essas dualidades jonesianas e uma
crescente desconfiança fizeram Jung considerar Jones ―um enigma‖:

Jones é um enigma para mim. A dificuldade em compreendê-lo é tamanha que já cai


no domínio do fantástico. Há nele mais do que o olhar divisa, ou absolutamente
nada? Seja como for, está longe de ser simples; um mentiroso intelectual (sem que
haja nisso um julgamento moral!) trabalhando em muitas facetas pelas vicissitudes
do destino e das circunstâncias. E o resultado qual é? Por um lado muita adulação,
por outro muito oportunismo?510

E retomando o relato de Maddox, na ocasião Freud responde com mais tolerância


e atribui a dificuldade de compreendê-lo à diferença ―racial‖: ―Pensava que o senhor
conhecesse Jones melhor do que eu. (...) inclino-me a pensar que ele mente para os outros,
não para nós. Acho das mais interessantes a mistura racial em nosso grupo, sendo um celta, é
inevitável que ele não seja inteiramente acessível a nós, os homens teutônico e o
mediterrâneo.‖ 511
Mas a desconfiança permanece no ar – em realidade parece até aumentar - e
alguns meses depois é o próprio Freud que escreveria a Jung ―estranhando‖ Jones: ―De Jones,
e sobre ele, recebi notícias muito estranhas e me acho mais ou menos na mesma situação que
o senhor quando ele esteve em Kraepelin512.‖

509
2006, p. 66. Este enigma certamente foi o que inspirou a autora no subtítulo de sua obra biográfica: ―Freud‘s
Wizard: The enigma of Ernest Jones.‖ (2006)
510
Carta de 12.07.1908 in Correspondência Freud-Jung, p. 192. Citada por Maddox, 2006, p. 66. (onde a autora
relata toda esse fase de desconfiança de Jung e Freud em relação a Jones)
511
Carta de 18.07.1908 in Correspondência Freud-Jung, p. 193. Citada por Maddox, 2006, p. 66.
512
Carta de 24.02.1909 in Correspondência Freud-Jung, p. 230. As ―notícias estranhas‖ a que Freud se refere
são, provavelmente, as que o próprio Jones deu a ele, em carta já citada aqui, de 07.02.1909, em que descreve as
suas manobras para não chocar os americanos. Jones também diria em outra carta (carta de 10.12.1908 in Freud-
Jones correspondence, p. 12, citada em Maddox, 2006, p. 69) que estava vivendo em um ―harém‖: com sua
companheira Loe, suas duas irmãs e duas empregadas. Outra questão sobre a sexualidade de Jones diz respeito
ao fato de que, nessa época, tanto Freud quanto Jung sabiam do flerte de Jones com Frieda Gross, esposa de Otto
Gross. (Carta de 03.05.1908 in Correspondência Freud-Jung, p. 175. Citada em Maddox, 2006, p. 63) Todas
essas informações, ao que parece, contribuiriam para uma crescente desconfiança em relação ao galês, conforme
a biógrafa Maddox (2006).
219

Jung responde:

Ainda não posso imaginar quais são as notícias sobre Jones. De qualquer modo ele é
bem esperto. Mas na verdade ainda não o entendo. Há pouco me enviou uma carta
judiciosa e interessante. Demonstra grande afeição por mim, bem como pela minha
família. Por certo ele anda muito nervoso com a ênfase dada à sexualidade em nossa
propaganda, ponto que desempenha grande papel em nossas relações com Brill. Ele
não é por natureza um profeta, nem um arauto da verdade, mas sim um conciliador
com desvios ocasionais de consciência que podem desconcertar os amigos. Não sei
se será pior do que isso; custa-me acreditar na hipótese, embora conheça muito mais
o interior da África que a sexualidade dele. 513

Aqui está, portanto, a relação com o ―João-ninguém‖ de Noel Rosa: alguém que,
por não ter uma opinião clara, fazer acordos com todos – e portanto ―não ter inimigos‖ – não
consegue ser totalmente compreendido, ou notado – ou reconhecido. É quase como se
disséssemos, então, que se por um lado o ―eterno conciliador‖ não tem inimigos, também não
se pode dizer também que tenha amigos – afinal não se pode gostar ou confiar plenamente em
quem não mostra seu rosto – ou tem vários.
E há mais. É de esperar que todo aquele que apresente ideias muito inovadoras,
diferenciadas, autorais, deva encontrar, em algum momento, inimigos – ou pelo menos vozes
discordantes. Afirmar-se é, afinal, também um tanto perigoso; mesclar-se e não diferenciar-se
traz lá suas vantagens.
Essa dificuldade em identificar uma ―voz própria‖ em Jones (―Nunca teve
opinião...‖) também é visível em sua obra514, não apenas pela e dispersão e ecletismo de temas
e formatos de produção, mas sobretudo pela característica de estar, de maneira geral, tão
referenciada à do mestre que, como vimos, é muito difícil precisar onde Jones se destaca de
Freud.
Mesmo suas grandes divergências – que não foram poucas e nem sem importância
(lembremo-nos por exemplo que Jones discordou ―apenas‖ do modo como Freud
compreendia a sexualidade feminina!) - não foram defendidas de modo a constituir um
conflito digno de nota, ou respeitável o suficiente, talvez, para ser ouvido - ou para abalar os
conceitos freudianos.

513
Carta de 07.03.1909 in Correspondência Freud-Jung, p. 234. Citada por Maddox, 2006, p. 74.
514
E também em traços de personalidade. Nas primeiras trocas de carta com Freud, Jones crava o mestre de
perguntas – dúvidas teóricas, pedidos de conselhos, sempre demonstrando respeito e admiração quase caninos - ,
ao que Freud comenta (após responder as questões do ―aluno‖): ―Sinto falta de mais notícias sobre sua própria
posição e ações‖ ―I miss more news about your own position and doings‖ (carta de 20.11.1908 in Freud-Jones
correspondence, p. 9) Outro trecho citado em Maddox, 2006, p. 72.
220

A chegada de Klein na cena psicanalítica talvez tenha tido, portanto um papel


providencial para Jones. Tudo aquilo com que o galês já se debatia, seus interesses sobre o
desenvolvimento precoce, sobre o papel do feminino no psiquismo, Klein trazia com a
audácia de quem fala sem amarras e sem compromisso de agradar ninguém. Lembramo-nos
da admiração de Jones por Klein não tanto por sua teoria (já que ela não seria ―novidade‖ para
ele, por pensarem de modo parecido), mas por sua ousadia e coragem. Também é a ousadia e
a audácia que Jones vai admirar em Paul Morphy, seu ―ideal de ego‖ no xadrez – e talvez
representante ideal de si mesmo que teria a coragem de desafiar o Freud-teutão-quarentão...
mas não o fez?
221

VIII “ORIGINAL IS AS ORIGINAL DOES”

―Uma das tarefas mais difíceis na avaliação da obra de


Jones é determinar a extensão da sua originalidade e
estabelecer quais são as ideias que a ciência da
psicanálise devem a ele exclusivamente (...) Um dos
elementos mais desconcertantes na avaliação do
trabalho de Jones é o problema psicológico mais
profundo de sua amizade com Freud e a natureza de sua
lealdade a ele.‖ 515

Por se tratar de um trabalho em Psicanálise, e pela admiração declarada ao seu


método, penso que a associação livre da autora também deva ser considerada como parte da
investigação. Da mesma forma que a associação livre, os sonhos relacionados ao trabalho –
como expressão ―via mestra‖ do inconsciente, como o mestre nos ensinou –podem dar pistas
sobre o fenômeno estudado e oferecer mais insumos para minhas reflexões.
Pois bem: após semanas de intenso mergulho na vida e obra de Jones, entre
estudos, leituras e a escrita do presente trabalho, tive uma noite o seguinte sonho:
―Em uma sala aconchegante conversavam nada mais nada menos do que Sigmund
Freud, Sándor Ferenczi, Carl Jung e Karl Abraham. O recinto estava enevoado pela fumaça
dos charutos e o clima era de debate amistoso, agradável, sobre – evidentemente –
Psicanálise.
A copeira surge da cozinha trazendo uma bandeja repleta de itens para o chá:
xícaras, bule, docinhos. Serve, um a um, os comensais, que agradecem com um aceno e
retomam rapidamente a conversa intelectual.
A copeira era Ernest Jones.
Está trajado com um uniforme elegante: vestido, avental, touca de cabelo. Entra e
sai da cozinha com boa disposição e cuida para que todos estejam bem servidos, atende às
solicitações com um sorriso no rosto e parece satisfeito em exercer sua função.‖

515
―Uma de las tareas más difíciles en la evaluación de la obra de Jones es determinar el grado de su
originalidade y estabelecer cuáles son las ideas que la ciência del psicoanálisis le debe exclusivamente.‖ (Veszy-
Wagner, 1968, p. 35) ―Uno de los elementos más desconcertantes en una evaluación de la obra de Jones es el
problema psicológico más profundo de su amistad con Freud y de la naturaleza de su lealtad para con él. (Veszy-
Wagner, 1968, p. 61) O termo ―exclusivamente‖, utilizado aqui por Veszy-Wagner, merece um breve
comentário. Tomando-se como ponto de partida o fato de que o desenvolvimento das ciências se dá em
contextos históricos, sociais, culturais específicos, qualquer inovação, se por um lado rompe com algo anterior, a
esse algo também faz referência, num fluxo incessante de continuidades e rupturas. Nesse sentido, é complicado
outorgarmos a qualquer pensador, ou cientista, artista, filósofo, uma originalidade exclusiva, como se suas
contribuições tivessem se originado dos céus e alheias à historicidade. A esse respeito comenta Mezan: ―Eis por
que é necessário insistir: há história, ou seja, irrupção do novo e do inédito, ruptura e transformação, em função
das quais certa continuidade – cujo estatuto necessita determinação – se estabelece e se preserva.‖ (2014, p. 29)
222

Ao acordar, as associações/interpretações que tive foram:

-Jones é servil: cuida para garantir condições ideais para o florescimento da


Psicanálise, mas não participa dela como os outros (os outros estão na sala, no sofá - ele fica
na cozinha);
- No entanto Jones é feliz assim: por traços de sua personalidade e/ou neurose, se
adaptou a esse lugar (de fato o procurou ou construiu esse lugar para si);
- Quem está na sala não respeita quem está na cozinha: os outros não ―levam
Jones a sério‖;
- A função de Jones tem importância, ainda que seja uma importância ―não
explícita‖: só pode haver uma conversa amistosa em um chá da tarde se, de fato, houver chá
quentinho, biscoitos, se todos forem servidos, se houver condições propícias para tanto. Em
outras palavras, o papel de Jones na Psicanálise se dá nos bastidores (ou na cozinha):
aparentemente de menor importância, é crucial na medida em que cria condições favoráveis
para os debates (sua capacidade diplomática os promovem), a criação de grupos, comitês,
sociedades que fortalecem a ―Causa‖ e a abertura de caminhos entre diferentes opiniões, entre
Medicina e Psicanálise, o diálogo entre nações, as traduções. O ―chá com bolo‖, o mise en
place cria uma situação propícia para que ―os outros‖ – Freud, em primeiríssimo lugar, e seus
seguidores – passem seu tempo se ocupando de fazer Psicanálise (produção teórica, clínica,
debates, seminários, etc); ou na linguagem do sonho: que conversem, que comam os bolinhos,
tomem o chá, sirvam-se de mais açúcar, façam uso dos recursos disponibilizados.

Não fui a única, devo dizer, a associar Jones com uma figura um pouco à margem
e que ―presta cuidados‖ aos ―verdadeiros‖ pensadores de um centro de produção de
conhecimento em Psicanálise. O próprio Phillips (1993) pintou Jones como uma ―babá‖:

O primeiro capítulo da autobiografia (...) de Ernest Jones termina com um parágrafo


bem-humorado sobre a criada galesa que também atuou como babá durante a
infância de Jones: ‗Uma das minhas lembranças desta babá foi que ela me ensinou
duas palavras para designar o órgão masculino, um para ele em estado flácido, o
outro ereto. Foi uma opulência de vocabulário que eu não encontrei desde então.‘
(...) Ernest Jones entrou para a história psicanalítica como o criado um tanto
pretensioso que também atuou como babá tanto de Freud quanto do ‗movimento‘
psicanalítico‘‖.516

516
―The first chapter of Ernest Jones‘s (…) ends with a bemusing paragraph about the Welsh ‗servant who acted
also as a nurse‘ during Jones‘s early childhood: ‗One of my memories of this nurse was that she taught me two
words to designate the male organ, one for it in a flaccid state, the other in an erect. It was an opulence of
223

Mas não terá Jones-a-copeira também vontade de se servir, sentar no sofá e


colaborar com a conversa em torno do chá? Não terá o Jones-babá – para Phillips ao mesmo
tempo servil e pedante - também anseios de autoria, de grandeza e de pertencimento?
De fato a história de Jones nos mostra como a necessidade de pertencimento
sempre esteve presente, de alguma forma. Bem nos lembramos do profundo e pungente
sentimento de exclusão, marginalidade e isolamento revelada no estatuto da Sociedade
Glamorgan517 que Jones integrou na juventude, em que defende a criação de sociedades para
atender ao ―anseio insatisfeito da companhia de alguém ‗de casa‘‖. 518
Anos mais tarde, entre os psicanalistas, talvez sentisse o mesmo desenraizamento,
uma vez que os ―outros‖ mantinham por ele sentimentos de reserva, desconfiança ou aberta
rejeição/ridicularização.
Não poderíamos entender esse anseio por pertencimento de Jones por trás da
criação, anos e anos mais tarde, do Comitê Secreto? Um grupo pequeno, seleto, quase
religioso, que se reunia em segredo, um círculo de iguais (contra os ―outros‖?) (E também nos
lembramos que no afã de ―pertencer‖, os membros chegaram a se atacar, competir uns com os
outros, o que acabou por enfraquecer o Comitê)
Mesmo com a criação do Comitê, no entanto, o ―estrangeirismo‖ de Jones
perdurava. Bem nos lembramos que Jones era o único não-judeu entre os membros do grupo
seleto, e certamente essa era uma característica potencialmente excludente – que Jones tentava
atenuar: Maddox nos conta que o esforço de Jones em ser aceito chegava ao ponto de
identificar-se fortemente com os judeus e acreditar ser ele mesmo um ―judeu honorário‖. A
biógrafa também nos conta que na primeira circular que Jones escreveu aos demais membros
do Comitê secreto dizia: ―Somos todos bons judeus.‖ 519
Mas era um esforço em vão: Jones parece nunca ter sido considerado ―um deles‖.
Isto é, mesmo com todo o empenho para sentir-se pertencendo a um grupo, Jones parecia
sempre ser recebido ou compreendido como alguém de fora, desenturmado, estrangeiro ou
que não partilhava os mesmos códigos. Nas palavras de Maddox (2006): ―Para os outros seis

vocabulary I have not encountered since.‘ (…) Ernest Jones has gone down in psychoanalytic history as the
rather priggish servant who also acted as a nurse both to Freud and to the psychoanalytic ‗movement‘‖ (Phillips,
1993, p. 9)
517
Como vimos no capítulo II (biográfico), a Sociedade Glamorgan foi uma iniciativa de Jones e colegas,
quando, jovem e sem raízes, se sentia oprimido e ―sem que ninguém lhe desse a mão para um cumprimento‖ na
―colmeia humana‖ de Londres.
518
Maddox, 2006, p. 25. A própria biógrafa, como já vimos, enxergou na facilidade de transitar entre ―pontes‖ –
entre Gales e Inglaterra, por exemplo –um aspecto que favoreceria Jones mais tarde na psicanálise.
519
―We are all good Jews‖. (Maddox, 2006, p. 165)
224

[membros do Comitê] Jones era um ‗outsider520‘, um não-judeu que falava alemão como um
estrangeiro e que se sentava em uma Londres distante para escrever-lhes instruções como se
eles fossem crianças.‖ 521
No entanto, a sua condição de estrangeiro não-judeu pareceu, ao menos no início
de sua aproximação com Freud, uma boa nova para o movimento. (Bem nos recordamos que,
assim que Freud conheceu Jones, viu nele uma oportunidade estratégica de dissociar a
imagem da Psicanálise do judaísmo.) Ao mesmo tempo, Maddox nos conta que o
―estrangeirismo‖ de Jones era uma faca de dois gumes – como sempre é o contato entre um
grupo fechado já estruturado (seja um grupo religioso, étnico, uma escola de psicanálise, etc)
e alguém ―de fora‖: Freud literalmente o estranhava:

Jones é, indubitavelmente, uma pessoa das mais interessantes, e um homem de


valor, mas dá-me a impressão de, eu já ia dizendo, singularidade racial [no original
racial strangeness]. É um fanático e não come o suficiente. ‗Que eu me possa cercar
de homens gordos‘ diz César etc. De certo modo ele me lembra o magro e faminto
Cássio. Renega toda a hereditariedade; aos olhos dele, mesmo eu sou um
reacionário. Como, com sua moderação, o senhor conseguiu se entender com
ele?‖.522

Para compreendermos a profundidade deste trecho de carta de Freud a Jung –


nessa época seu (ainda) mais próximo aliado – é de suma importância buscarmos a origem da
citação: César e Cassius, citados na carta, são personagens da peça teatral ―Júlio César‖ 523, de
William Shakespeare – tragédia baseada na história romana real.
A trama, de maneira sucinta, retrata a conspiração contra o general romano Júlio
César, seu assassinato e as consequências decorrentes. O foco da peça é portanto uma traição,
e um personagem importantíssimo é Brutus. Na obra, Brutus é muito próximo de César, mas
acaba sendo corrompido por Cassius, que o convence a matar César. Brutus aceita participar
da conspiração e ajuda a matar o general. No momento de seu esfaqueamento, muitos

520
―Outsider‖ é um termo interessante e polissêmico da língua inglesa. Pode significar ―estranho‖, ―forasteiro‖,
―intruso‖, ―leigo‖ e, o que tem um sentido especialmente caro no presente trabalho, ―aquele que não pertence ao
grupo‖. Fonte: Google translator
521
―To the other six [of the Committee], Jones was an outsider, a gentile who spoke German like a foreigner and
sat in distant London writing instructions to them all as if they were children.‖ (Maddox, 2006, p. 165)
522
Carta de 03.05.1908 in Correspondência Freud-Jung, p. 175. Citada por Maddox, 2006, p. 63.
523
Consultar SHAKESPEARE, W. ―Julius Caesar.‖ In: BULLEN, Arthur Henry (Ed.). The complete Works of
William Shakespeare. London: Collector‘s Library Editions, CRW Publishing Limited, 2005. E também:
SHAKESPEARE, W. Júlio César. Adaptação de Diana Stewart, São Paulo: Melhoramentos, 1981 ou
http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/cesar.html e
https://pt.wikipedia.org/wiki/J%C3%BAlio_C%C3%A9sar_(Shakespeare)
225

conspiradores diferentes golpeiam César, mas é na última punhalada, de Brutus, que o general
exclama: ―Até tu, Brutus?‖ – frase que se tornou célebre.
Cassius, ―magro e esfomeado‖, é a figura do conspirador que corrompe até os
melhores amigos, e na carta Freud compara Jones a ele. Os versos da peça a que Freud faz
alusão é:

CÉSAR:
Deixe-me ter perto de mim homens que sejam gordos;
(...)
Cássio tem um olhar magro e faminto;
Ele pensa demais; homens assim são perigosos.524

O baixo e magro Jones, com ar intelectual - um homem que ―pensa demais‖-


levanta suspeitas em Freud e o faz desconfiar das intenções (e do caráter) do forasteiro: virá o
magro Cassius-Jones conspirar contra o general Júlio César-Freud? E nessa conspiração
colocará até mesmo seus melhores amigos (como Jung, o destinatário da carta), contra ele?
Não à toa Freud escreve a Jung (potencial Brutus) seu receio: você que é tão moderado, como
pôde se dar com ele? (‗Por favor, não se deixe corromper e não fique contra mim!‘)525
É Riccardo Steiner (1993) que coloca luz a esta questão shakespeariana em sua
introdução às cartas Freud-Jones e analisa como esse sentimento de desconfiança aparece nas
correspondências (além, evidentemente, desta carta emblemática sobre Cassius):526 ―Sobre
isso vale a pena recordar os comentários que Freud enviou pouco depois em outra carta a
Jung, que havia perdido seu entusiasmo inicial por Jones porque parecia ter ficado incerto
sobre a psicanálise no decorrer desses meses‖.527

524
―CAESAR:
Let me have men about me that are fat;
(…)
Yond Cassius has a lean and hungry look;
He thinks too much: such men are dangerous.‖ (Shakespeare, 2005. Ato I, Cena II, v. 198-201.)

525
A história curiosamente nos mostra que Jung de fato foi um dissidente e rompeu a lealdade com Freud anos
mais tarde, mas não por nenhuma influência de Jones-Cassius.
526
O autor comenta, em uma nota de rodapé: ―(...) uma das primeiras impressões de Jones de Freud trouxe a
peça de Shakespeare à mente, especificamente a figura de Cassius; pode-se também adicionar, por sugestão,
Brutus. Ambos participaram do assassinato de César.‖ (Steiner, R., 1993, p. xlix) O autor também nos contaria a
interessante passagem em que Freud fez o papel de Brutus no teatro quando tinha 14 anos. (!)
―(...) one of Freud‘s first impressions of Jones brought Shakespeare‘s play to mind, specifically the figure of
Cassius; one might also add, by implication, Brutus. Both participated in the assassination of Caesar.‖ (Steiner,
R., 1993, p. xlix)
527
―In this light, it is worth recalling the comments Freud sent shortly afterward in another letter to Jung, who
had lost his initial enthusiasm for Jones because he seemed to have grown uncertain about psychoanalysis in the
course of those months.‖ (Steiner, 1993, p. xxiii)
226

Em seguida o autor citará as cartas em que Jung diz que Jones é um ―enigma‖,
mentiroso, adulador e oportunista (Freud responderá, como nos lembramos, que não acredita
que Jones minta para eles) e ainda algumas cartas que já vimos -, como a que Freud diz que
Jones, como um celta, não é completamente acessível a ―nós, mediterrâneos‖.
Steiner também nos lembra que a desconfiança voltará com força em outra
passagem da História da Psicanálise (e do relacionamento entre Freud e Jung): a chegada de
Melanie Klein: ―Talvez nessas cartas em particular seja possível compreender um dos
momentos mais dramáticos de toda a relação entre Freud e Jones, onde o fantasma de Cassius
parece ressurgir plenamente, quando Freud (...) praticamente acusava Jones de trair a acepção
de psicanálise tal como Freud e sua filha a concebiam por apoiar Klein em Londres.‖ 528
É possível que aquilo Freud temesse em seus discípulos tivesse algo a ver com a
originalidade de ideias. Sempre que um seguidor começa a ter pensamentos muito autorais,
parece inevitável um distanciamento e diferenciação do mestre, e nesse sentido podemos
entender o receio de Freud-César como uma prevenção contra a dissidência intelectual.
De fato, a originalidade é uma questão-chave em nossas reflexões sobre a figura
de Ernest Jones. O próprio Jones não se considerava original e o diz explicitamente em uma
carta a Freud – que comemora o fato. Vejamos de que forma isto ocorreu.
Maddox529 nos conta que em meados de 1910 Jones envia vários escritos de sua
autoria para Freud constrangido por ―tomar tanto tempo‖ do mestre Um dos escritos é
justamente um apanhado-resumo detalhado da teoria freudiana (―Freud‘s Psychology‖, 1910)
e Freud responderá que este – não à toa! – é, dentre todos que ele enviou, o seu preferido. Em
resposta ao envio dos artigos, Freud parabeniza Jones por não querer ―dar uma de original‖ e
afirma que o galês (que na época vivia no Canadá) é o melhor apoiador que a Psicanálise
poderia querer no Novo Mundo justamente por não se colocar em evidência:

Tenho que agradecer [ao senhor] por tantas publicações e duas cartas cheias de
assunto de grande interesse. Mas, antes de tudo, deixe-me expressar novamente
minha convicção de que o senhor é o ajudante mais habilidoso, poderoso e
devotado, que a Psicanálise poderia ter encontrado no Novo Mundo. (...) Entre os
artigos o que mais gostei foi aquele sobre a minha psicologia (...) Deixe-me
acrescentar que estou feliz pelo senhor não ser um desses colegas que querem se
mostrar originais e totalmente independentes a cada vez que escrevem algo, mas o
senhor não menospreza mostrar-se como intérprete de outros pensamentos. É uma

528
―Perhaps in those particular letters it is possible to grasp one of the most dramatic moments of the entire
relationship between Freud and Jones, where the ghost of Cassius seems to reemerge into full view as Freud (…)
practically reproached Jones for betraying the sense of psychoanalysis as Freud and his daughter conceived of it
by supporting Klein in London.‖ (Steiner, 1993, p. xxxix)
529
2006, p. 85.
227

prova de que o senhor se sente seguro de sua própria originalidade e subordina


facilmente suas ambições pessoais aos interesses da causa [grifo meu].530

Em resposta, Jones com muita modéstia afirma não ser um autor original e nem
pretendê-lo:

Quanto à originalidade, que o senhor mencionou, eu sinto que é um ideal mais


sensato visar desenvolver a própria capacidade na direção que puder do que em
meramente tentar ser ‗original‘. O complexo de originalidade não é forte em mim:
ao invés disso minha ambição é saber, ficar “nos bastidores”, e estar “por dentro”,
mais do que “descobrir”. Percebi que tenho muito pouco talento para a
originalidade; qualquer talento que eu possa ter reside mais na capacidade de ver,
talvez rapidamente, o que os outros apontam. Sem dúvida que isso também tem sua
utilidade no mundo. Portanto, meu trabalho será tentar trabalhar em detalhes, e
encontrar novas demonstrações para a verdade de ideias que outros sugeriram. Para
mim, o trabalho é como uma mulher carregando um bebê;531 para homens como o
senhor, eu suponho que é mais como a fertilização masculina [grifo meu]. 532 533

530
―I have to thank [you] for a lot of publications and two letters full of matter of high interest. But before all let
me express again my conviction, that you are the most skillful, powerful and devote[d] helper, Psychoanalysis
could have found in the New World. (…) Among the papers I liked most that on my psychology (…) Let me add
that I am glad you are not one of these fellows who want to show themselves original and totally independent
every time they do something in writing, but you do not despise to show yourself as interpreter of anothers
thoughts. It is a proof that you feel sure of your own originality and subordinate easily your personal ambitions
to the interests of the cause [grifo meu]‖ (Carta de 22.05.1910 in Freud-Jones correspondence, p. 58-59. Citada
por Maddox, 2006, p. 89.
531
Ao analisar esta carta, Phillips (1998) enxerga que ao se colocar do lado feminino o galês não só dá pistas de
seu relacionamento com o mestre, mas também mostra seu olhar (e o de Freud) sobre o feminino (um forte ponto
de discordância teórica de Jones em relação a Freud era sobre a sexualidade feminina): ―A questão da tradução
levantava a questão de quem era competente, além do próprio Freud, para representar a Psicanálise. A questão
levantada pela diferença sexual era: quem está preparado, digamos, para falar sobre sexualidade feminina?
Desde logo, era como se essas duas questões estivessem inextricavelmente ligadas.‖ (1998, p. 171) A partir desta
ideia, e até o final de sua resenha/capítulo, Phillips desenvolverá essas reflexões. Embora de fato Jones tenha
forte conexão com as mulheres (em vários sentidos) e a análise do autor seja interessante, minha leitura sobre
esta afirmação de Jones vai em outras direções, como veremos a seguir.
532
Não à toa tanto a minha associação, por sonho, como a associação de Phillips, em seu artigo, trazem Jones
como uma figura feminina – ora uma babá, ora uma copeira, de vestido e avental: de fato o próprio Jones faz esta
associação e se coloca como ―mulher‖ em relação à Psicanálise. Para Veszy-Wagner (1968), o fato de Jones
evitar ―chamar atenção para si‖ e não deixar claro onde estava sua autoria tem relação com este papel
―masculino‖ que o galês atribuía a Freud (e apenas o masculino poderia ser criador, portanto), e o papel
feminino, que atribuía a si. (1968, p. 66)
533
―As to originality, which you mentioned, I feel it is a more sensible ideal to aim at developing one‘s own
capacity in whatever direction that may lie than in merely trying to be ‗original‘. The originality-complex is not
strong with me; my ambition is rather to know, to be “behind the scenes” and “in the know”, rather than to find
out. I realize that I have very little talent for originality; any talent I may have lies rather in the direction of
being able to see perhaps quickly what others point out: no doubt that also has its use in the world. Therefore
my work will be try to work out in detail, and to find new demonstrations for the truth of, ideas that others have
suggested. To me work is like a woman bearing a child; to men like you, I suppose it is more like the male
fertilization [grifo meu]‖ (Carta de 19.06.1910 in Freud-Jones correspondence, p. 61. Citada por Maddox, 2006,
p. 85).
Sobre essa questão, Turner (2006), ao escrever uma resenha da biografia de Maddox, fez rápido mas o
interessante apontamento que a ―falta de originalidade‖ de Jones lhe daria a vantagem de estar ―imune‖ às
dissidências, que poderia afastá-lo de Freud. (Para o mesmo autor, o galês estaria mais interessado no poder.)
228

Essa exata questão chamou a atenção de Phillips (1998), e, ao analisar as cartas


com o tema das traduções e aquelas sobre a (falta de) originalidade de Jones, conclui - com
uma acidez impressionante:

Ao que parece, Jones estava até muito satisfeito de aceitar que Freud o considerasse
uma besta de carga e propagandista. (...) Jones era tão disponível a Freud, em parte,
porque, como escreveu em sua autobiografia, ‗por mais empreendedor que eu
pudesse ser intelectualmente, não estava fadado à vida de um pioneiro.‘ (O que
tende a passar por autoconhecimento, e até sabedoria, na psicanálise é uma forte
percepção das próprias limitações pessoais.) A seu modo ‗subjetivo‘, Freud
rapidamente percebeu – e explorou, para benefício de ambos – as dúvidas muito
evidentes de Jones sobre si mesmo. ‗Fico contente que você não seja um daqueles
camaradas‘, escreve Freud a ele (em inglês) no início da sua relação, ‗que querem
mostrar-se originais (...)‘ (...) Isso traça uma linha fina entre o que poderia ter
parecido reconhecimento acurado, e portanto, reforçador, e uma demanda da parte
de Freud: ‗quem eu quero que você seja‘ lançado como ‗este é quem você é‘, que é
um ingrediente em toda interpretação psicanalítica. A matriz certamente foi
forjada534 cedo para Jones.535

A imagem de Jones como besta de carga é discutível se nos lembrarmos que


mesmo se considerarmos uma relação sadomasoquista (como era, segundo Phillips, aquela
entre os dois psicanalistas), ambos os participantes tem benefícios (neuróticos) nas suas
respectivas posições, e se determinado lugar (sádico ou masoquista) gera satisfação ou
realização a cada integrante do par neurótico, a ideia de um ―animal subjugado‖ não se
sustenta: ficam em suspenso nessa imagem as escolhas de Jones (conscientes ou
inconscientes) em assumir os papéis que exerceu e o quanto ele mesmo forjou para si, como
um homem (e não um animal irracional vitimizado) o lugar que ocupou (ou não ocupou) na
Psicanálise. Em outras palavras, não se trata de um homem em cima de um burro (um homem
e um animal estão em condições diferentes), mas de dois homens que constroem para si um
modelo específico de relação.
Phillips toca rapidamente neste ponto quando fala em ―benefício de ambos‖ e
também como – ainda que cheio de ironia – afirma que Jones estaria ―até muito satisfeito‖
com isto. O autor menciona também um aspecto interessante: o quanto esse lugar de Jones –
de supostamente não-original – teria sido uma posição forjada para ele pelo próprio Pai da
Psicanálise, simplesmente porque isto atenderia aos seus interesses (de Freud) e ao da

534
Esta é a tradução da edição em português da Companhia das Letras (1998). Outra tradução possível para a
frase seria: ―Certamente o molde foi projetado cedo para Jones ― ou ―O dado foi lançado‖ ou ainda ―A sorte foi
lançada‖ (Tradução livre). A frase original é ―The die was certainly cast early for Jones.‖ (Phillips, 1993, p. 10)
O autor ainda adicionará o comentário de que o modelo de relação entre Freud e Jones – ou, se quisermos, esse
―molde‖ – se manterá ao longo de todos os anos de correspondência (ou seja, da vida): Jones alegando falta de
originalidade – parecendo estar confortável nessa posição – e Freud como o autor original. (Phillips, 1998, p.
170-171)
535
Phillips, 1998, p. 170.
229

―Causa‖. Já mencionamos este aspecto mais cedo, quando discutimos sobre o quanto seria
interessante para o Movimento a existência de um psicanalista exatamente com as
características de Jones – e nesse sentido arriscamos intuir que é como se a invisibilidade de
sua obra autoral fosse quase que um projeto comum, em certa medida oportuno a todos os
participantes da história.536
E há ainda outro aspecto importante aqui. Nesse momento da discussão convém
lembrarmos do conceito de fantasia de inversão de gerações em Jones. Já havíamos elaborado
algumas reflexões ao analisar o trecho (da biografia de Freud) em que Jones escreve: ―Sentia
eu nele [em Freud] vagamente um aspecto algo feminino, nas suas maneiras e nos seus
movimentos – que talvez me tenha levado a uma atitude de ajuda ou mesmo de proteção,
antes que a mais característica atitude filial de muitos analistas [grifo meu]‖.537
Naquela ocasião comparamos o lugar de mulher que Jones atribui a Freud ao
lugar do filho ou do discípulo, numa proposta explícita de inversão dos papéis da dupla. Neste
momento, lemos outro trecho de Jones (em carta ao mestre) em que ele afirma exatamente o
contrário! Como que para ―justificar sua falta de originalidade‖, o galês coloca Freud em um
lugar masculino e ele agora assume o feminino. É muito interessante acompanharmos, então,
o coexistir de papéis filiais e paternais em Jones, e em cada contexto um papel se destaca
sobre o outro.
Poderíamos então avançar um pouco mais em nossas ponderações e ter o interesse
de comparar as datas em que os dois trechos foram escritos. O comentário de Jones sobre seu
lugar feminino - e supostamente ―não criador‖ - na Psicanálise é de 1910, apenas dois anos
após conhecer Freud pessoalmente; nesta época vivia no Canadá e escrevia uma profusão de
artigos. Como vimos, Freud não parecia se impressionar com nenhuma dessas produções (15
anos depois, em 1925, escreveria uma carta a Eitingon afirmando que ―Racionalização‖ era o
único artigo original de Jones) e a bem da verdade o próprio galês, como estamos estudando,
não fazia muita autopropaganda (de sua própria autoria ou criatividade).
Muitos anos depois, entre o fim dos anos 40 e início dos 50, Jones começa a
escrever a biografia de Freud. São portanto 40 anos após a carta em que se atribui um papel

536
A esse respeito agradeço a contribuição da banca e de meu orientador na ocasião do Exame de Qualificação,
que me apontaram este aspecto. Antes do Exame o presente trabalho pouco considerava fatores da política do
Movimento na invisibilidade do legado de Jones (nossa interpretação estava muito centrada em aspectos de sua
própria personalidade, dados biográficos, suas produções e interesses). Atentar para o fato de que este lugar pode
ter sido - e provavelmente foi – reforçado pelo contexto externo, por atender aos planos de Freud e por vantagens
do perfil de Jones à Causa, é algo bastante coerente e que nos convida à reflexão.
537
Jones, 1970, Vol II, p. 396.
230

―feminino não criador‖, e então escreve que enxergava em Freud traços de feminilidade. O
jogo se inverte: agora Jones se sente paternal em relação a Freud (que, aliás, ―aceita‖ qualquer
atributo que Jones quiser lhe dar, pois está morto!). É inevitável pensarmos que a maturidade
tenha dado a Jones a possibilidade de passar de um lugar a outro – em última instância de
discípulo a mestre (mas novamente enfatizamos: com o mestre morto...). Ao final da vida, e já
sem Freud diante de si, Jones finalmente teria se colocado como ―homem criador‖..?
Esta questão da criação fica ainda mais interessante se pensarmos que Jones tem
então no fim da vida a maravilhosa ―oportunidade edípica‖ de (re) contar a história do pai
(mestre) como bem lhe aprouver: no fim, a primeira biografia oficial de Freud tem os vieses
que Jones imprime nela– quase como se derramasse sua autoria ―masculina‖ sobre o pai
morto (e sobre toda sua história).
Ainda sobre esta questão de feminino e masculino (que Jones associa com os
lugares de ―não criador/demandador de cuidados‖, de um lado, e ―criador/protetor‖, de outro)
podemos levantar mais outra interpretação: a complementariedade entre homem e mulher.
Isto é, seja quando Jones é feminino e Freud masculino ou o contrário (e essas forças e
posições estariam presentes e coexistentes o tempo todo) fato é que se combinam para atuar
juntos, como em um casal com um projeto comum: a Psicanálise. E ainda que Jones seja a
―mulher‖ do casal, é o momento de lembrar que se é o homem que ―fertiliza‖ (e traz então o
princípio criador) é a mulher que traz o filho ao mundo – exatamente, e literalmente, como
Jones fez com a Psicanálise! Se Freud a criou, foi Jones que a ―trouxe ao mundo‖ em um
movimento de franca internacionalização. Se hoje a Psicanálise não é mais ―assunto de
judeus‖, nem apenas de Viena ou falada exclusivamente em alemão, isto se deve em grande
medida, seguramente, ao trabalho de Jones.538

538
Aí também está minha diferença em relação à linha de análise de Phillips: na carta Jones não disse
simplesmente que assume no trabalho a posição de ―mulher‖, mas de uma ―mulher que tem um filho‖,
sugerindo, mais do que qualquer coisa, um casamento (fértil) com Freud. E podemos seguir com mais
interpretações e associações (de fato o tema é fascinante): se Jones e Freud estão então como que em um
casamento, se trata mais de uma colaboração do que de uma relação de poder ou tutela (como na díade pai-filho).
É como se Freud e Jones estivessem lado a lado, e não necessariamente um acima do outro.
Em 1936 Jones escreveu um artigo sobre Monarquia Constitucional* e teceu considerações sobre como garantir
que uma monarquia não seja tirânica. Se para Veszy-Wagner (1968, p. 72), que menciona o artigo em seu texto,
o que salta aos olhos neste trabalho é a ideia de que o crescimento implica adquirir independência sobre o
progenitor sem que isso implique destruição, quando li o texto coloquei destaque também em outra ideia
jonesiana: a força que o autor dá para a amizade [com o pai] como resultado de uma adequada integração entre
afeto e parricídio. É evidente que há muitos trabalhos de Jones – como esse - interessantíssimos e que merecem
novos estudos. Por ora, apenas mencionamos a relação entre esta ideia jonesiana e nossa imagem de uma relação
entre Jones e Freud não tão marcada pela paternidade/filiação: nem tanto pai, nem tanto filho, mas um par
afetuoso. *Publicado em ―Papers on Psychoanalysis‖ (1938). (Maddox relaciona a publicação deste artigo sobre
Monarquia Constitucional com o contexto histórico e nos revela que Jones vai escrevê-lo na mesma época época
em que morreu o Rei George V. (2006, p. 227-228))
231

Voltemos agora à análise da carta de Jones – em que se diz ―não original‖.


Quando o galês fala em ―estar nos bastidores‖ é impossível não nos lembrarmos de seu
trabalho ―O complexo de Deus‖ (1913) e a descrição do sujeito afetado pelo complexo:
aquele que prefere estar escondido, atrás do trono, não se colocando em evidência: ―Qualquer
influência que exercem é feita de forma bastante indireta, estimulando mais admiradores
ativos. Seu ideal é ser "o homem por trás do trono", dirigindo assuntos de cima, sendo
invisíveis para a multidão.‖ 539
A questão da originalidade de ideias – ou a falta dela e a identificação quase total
de Jones com Freud, como numa fusão de ideias ou uma ―autoria dupla‖ - não passou
despercebida pelo analista de Jones, Sándor Ferenczi. Por anos confidente de Freud, Ferenczi
compartilharia o andamento da análise do galês.
A análise brevíssima – de apenas dois meses – foi suficiente para que Ferenczi
observasse que o tratamento psicanalítico de Jones passava pelos seguintes temas-chave
(correlatos): a sua baixa estatura, seu ―complexo paterno‖ e ―complexo de onipotência‖
(poderíamos supor como uma compensação a um complexo de inferioridade?) 540 Outro ponto
que chamaria a atenção do analista de Jones era uma espécie de ―inibição da originalidade‖.
Ferenczi - sem nenhuma discrição- comentaria este último ponto em uma troca de cartas com
Freud.
O ano era 1915, e Freud se queixa de Jones para Ferenczi afirmando que o galês o
copiou descaradamente em um artigo: ―P.S:. Jones publicou no Internationale Rundschau
(Zürich) um ensaio intitulado ‗Guerra e sublimação', no qual há uma nota de rodapé que diz:
Ver também o ensaio ‗Zeitgemässes, etc‘, de Fr.[eud].541 Na verdade, se trata de uma cópia
escancarada desse ensaio.‖ 542
Ferenczi responde que, vindo de Jones, isto não o surpreende: ―A propensão de
Jones ao plágio conheço bem; da mesma forma ele se apropriou do meu ensaio sobre a

539
―Any influence they exert is done so quite indirectly, by means of stimulating more active admirers. Their
ideal is to be ‗the man behind the throne‘, directing affairs from above while being invisible to the crowd..‖
(Jones, 1974, p. 253-254) (Conferir capítulo V.1 ―O Complexo de Deus‖)
540
Segundo Maddox, 2006, p. 109.
541
O referido artigo de Jones é ―War and Sublimation‖, 1915, publicado como ―Krieg und Sublimation‖ na
Internationale Rundschau (20 dec 1915) e também como parte da coletânea ―Essays in applied psychoanalysis‖.
O texto de Freud a que Jones se refere na nota de rodapé é ―Considerações atuais sobre a guerra e a morte‖, do
mesmo ano (Freud, 1915, v. 12, p. 209)
542
―P.D.: Jones ha publicado en la Internationale Rundschau (Zürich) un ensayo titulado ‗Guerra y
sublimación‘, en el que dice una nota a pie: Véase también el ensayo ‗Zeitgemässes, etc‘, de Fr.[reud]. En
realidad, se trata de una reproducción desnuda de ese ensayo.‖ (Carta de 24.12.1915 in Falzeder, 2001, v. II, 1,
p. 147)
232

sugestão.543 A originalidade dele está inibida (eu sei pela sua análise), e por isso deve
satisfazer sua ambição desta forma. No entanto, é um bom menino; só precisa corrigir esse
defeito. [Ver também seu livro sobre Hamlet.] [grifo meu].544
Phillips (1998) enxerga uma falta de inovação teórica da obra jonesiana e ele
perderia nesse aspecto na comparação com Jung, Ferenczi, Rank e Abraham.545
Mais uma vez devo oferecer um contraponto à leitura de Phillips. Como estamos
vendo ao longo de nosso estudo, a originalidade do pensamento teórico de Jones é de fato
difícil de ser bem delimitada justamente por estar muitas vezes como que ―camuflada‖ em
disfarces – a meu ver, estratégicos -: seja por não se distinguir muito bem das ideias de Freud,
seja pelo diálogo excessivo com outros autores, pela forma modesta de explanar suas ideias,
pela dispersão temática, ou ainda pela falta de sistematização, continuidade, etc. Isto não nos
permite deduzir conclusivamente que não haja originalidade: afinal de contas, a dificuldade de
encontrar o que quer que seja não comprova que tal coisa não exista!
Autores teóricos que se dispuseram a fazer a análise em minúcia dos pensamentos
psicanalíticos de Jones (delineando o que seria sua teoria546) identificaram originalidade em
547
suas ideias – e citaremos estes autores logo a seguir. Veszy-Wagner (1968), por exemplo,

543
A nota de rodapé da coletânea de cartas nos esclarece o ocorrido: ―Na opinião de Ferenczi, Jones havia
plagiado em ‗The action of suggestion in psychotherapy‘ (Journal of Abnormal Psychology, 1910-1911, 5: 217-
254) a teoria da sugestão que Ferenczi expôs em ‗Transferencia e introyección‟ (1909, 67). O conflito durou
vários anos. No final de 1923, na ocasião de outro ensaio de Jones sobre o tema (‗The nature of auto-suggestion‘,
International Journal of Psycho-Analysis, 1923, 4: 293-312), Ferenczi defendeu vigorosamente sua prioridade.‖
―En opinión de Ferenczi, Jones había plagiado en ‗The action of suggestion in psychotherapy‘ (Journal of
Abnormal Psychology, 1910-1911, 5: 217-254) la teoria de la sugestión que expone Ferenczi en Transferencia e
introyección‟ (1909, 67). El conflicto subsistió durante varios años. A finales de 1923, con ocasión de otro
ensayo de Jones sobre el tema (‗The nature of auto-suggestion‘, International Journal of Psycho-Analysis, 1923,
4: 293-312), Ferenczi defendió energicamente su prioridad.‖ (Falzeder, 2001, v. II, 1, p. 149, carta de 26 de
dezembro de 1915, nota de rodapé 1).
544
―La propensión de Jones al plagio la conosco bien; de uma manera similar se apropió en su día de mi ensayo
sobre la sugestión. Su originalidade está inhibida (lo sé por su análisis), y por eso debe satisfacer su ambición de
este modo. A pesar de todo, es un buen muchacho; sólo necessita que se corrija este defecto. [Véase, por certo,
también su libro sobre Hamlet.]‖ (Carta de 26.12.1915 in Falzeder, 2001, v. II, 1, p. 148)
545
―Jung, Ferenczi, Rank e Abraham eram todos, como Jones sabia, muito mais inovadores teoricamente do que
ele poderia ser; e, no fim, a única maneira pela qual ele poderia defender sua posição contra Freud era em nome
da suposta originalidade de outra pessoa – a de Melanie Klein.‖ (Phillips, 1998, p. 170) Dr. Robert Hinshelwood
também é da opinião que Melanie Klein foi quem trouxe originalidade à sociedade britânica: para este autor,
nem Jones e nem nenhum britânico da época tinham ideias muito inovadoras: ―Jones, como eu disse, não era
original em seu pensamento, e nem havia muitas pessoas em Londres que fossem originais.‖ ―Jones, as I say,
was not original in his thinking, and nor were there many people in London who were original.‖ (Ver Anexos)
546
Sabemos que Jones escreveu muito sobre conceitos teóricos, tais como a sexualidade feminina, o superego, o
complexo de castração, o simbolismo, etc.
547
Não foi meu intuito tecer essas considerações aqui, que seriam características de um trabalho voltado à teoria
psicanalítica (isto é, compreender o conceito de ansiedade em Jones, ou de simbolismo, de culpa, de castração,
etc). É importante salientar, portanto, que como não me propus a analisar o ―grau de inovação‖ dos construtos
teóricos de Jones, não posso afirmar, também, com a certeza de um convicto, que sua contribuição teórica é sim,
original como um todo (ainda que haja autores que o afirmem. Em minhas leituras, como já apontado ao longo
do trabalho, identifiquei ideias originais em Jones, tais como a fantasia de inversão de gerações, ou o conceito de
233

atribui ao fato de Jones não atribuir importância às próprias contribuições à nossa dificuldade,
como leitores, de localizar onde estão – percepção com que concordamos integralmente (o
experimentei no próprio exercício de pesquisa). Já discutimos esse aspecto aqui, mas se por
um lado a ―procura‖ por ideias originais na obra de Jones certamente é trabalhosa, por outro
pode render descobertas valiosas.548
Portanto, não podemos concluir que um autor que hesite em se firmar como
original – como é o caso de Jones - não seja, então, original. Parece-me então que também
Phillips ―comprou a ideia‖ de um Jones não-original - ideia esta que, como vimos, talvez
fosse oportuna em muitos aspectos para todos os envolvidos (para o Movimento, para as
políticas psicanalíticas internas, para Freud e para o próprio Jones). É curioso: o próprio
Phillips traz esta interessante ideia de um ―molde forjado para Jones‖ mas em seguida parece
incorporar este molde e adotá-lo como verdade.
Mas voltemos agora a dar a palavra a alguém que tem a autoridade de ter
conhecido Jones em suas ―profundezas‖: seu analista Ferenczi. Apenas alguns dias após o
encerramento das sessões, o húngaro conta a Freud que Jones melhorou muito com a análise,
e nos seguintes pontos:

A análise teve um efeito muito favorável sobre ele. Suas convicções adquiriram uma
fundamentação mais sólida, sua independência aumentou e, provavelmente,
aumentou a coragem para um pouco de originalidade a mais [grifo meu]. Espero
que ele obtenha o domínio sobre suas tendências neuróticas a partir de agora – mas
quanto a isto não ouso fazer um prognóstico seguro [grifo no original].549

É interessante o termo que Ferenczi usa aqui: ―coragem‖. Bem nos lembramos
que no capítulo V (em que discutimos sobre o God-complex) mencionamos um prefácio que
Jones escreveu para escritos kleinianos. No referido texto, Jones admira – mais ainda do que a
própria teoria kleiniana – a audácia de Klein em defendê-la:

Uma boa parte das descobertas e conclusões de Melanie Klein tinha sido esboçada
nos começos por Freud, Rank e outros, mas o que torna tão característica e digna de

Racionalização, por exemplo – que me pareceram bastante criativos). O que estamos propondo a Phillips é
portanto a suspensão do julgamento conclusivo em benefício de uma leitura mais cuidadosa dos jogos de força
então operantes nesta dinâmica de ―suposta não-originalidade jonesiana‖.
548
A própria Veszy-Wagner em certo trecho de seu texto comenta que era ―difícil separar las ideas originales de
Jones de las de Freud ya que, em cierto sentido, parecen estar fusionadas.‖ (1968, p. 51) (A autora até dirá que
era como se Freud fosse o ―sujeito introjetado‖ de Jones, usando um conceito de Glover. p. 51) No entanto, em
outro trecho a autora vai dizer que encontrou uma destas ―descobertas valiosas‖, por exemplo, em ―Hamlet e
Édipo‖: afirma que, embora Jones tenha se baseado na leitura edipiana de Freud, foi original ao interpretar os
sentidos inconscientes de Ofelia para Hamlet: ―Su trabajo sobre Hamlet constituye uno de los mejores ejemplos
de integración de las enseñanzas freudianas com la investigación original de Jones.‖ (1968, p. 38-39)
549
Carta de 05.08.1913 in Falzeder, 1994, v. I. 2, p. 230-231.
234

admiração a sua obra é a coragem e a inabalável integridade com que ela elaborou,
exaustivamente, as implicações e consequências dessas sugestões iniciais, assim
realizando novas e importantes descobertas em sua carreira [grifo meu].550

Nesse sentido, a questão da originalidade em Jones também teria a ver com uma
postura de bravura ou ímpeto – podemos pensar, de coragem para se diferenciar.
Phillips deve ter se baseado neste prefácio de Jones (mas não o sabemos pela
ausência, como já dito, de quaisquer referências bibliográficas indicadas em seu texto) ao
tecer a consideração que ―o que era revolucionário sobre Klein não era tanto sua teoria ou
técnica (seus pontos de vista são na sua maior parte apenas uma extensão lógica e muitas
vezes paródica de Freud), mas que ela teve sucesso onde outros falharam – em dividir a
comunidade psicanalítica‖.551 (Curiosamente toda a frase em parênteses desapareceu da
edição brasileira de seu texto.)
Embora não fale em coragem, que é o aspecto que estamos enfatizando aqui, o
que o autor aponta é que Klein teve, mesmo com uma teoria supostamente ―aparentada‖ da
freudiana, o efeito de gerar uma cisão, uma ruptura importante – e, podemos pensar então, que
teve uma consequência de ―irreversibilidade‖ (em outras palavras: nada mais poderia ser
como antes na História da Psicanálise).
Em sua autobiografia Jones também faz uma conexão entre o pioneirismo e a
coragem, e enfatiza que o processo não é fácil: ―O processo inconsciente de superação é, no
entanto, de ordem desafiadora e difícil - na coragem para isso é que reside muito da grandeza
do pioneiro‖552
Esse ímpeto de Klein (e obviamente de Freud) que é admirado por Jones também
será de alguma forma identificado pelo galês em Abraham. Neste trecho se entrevê uma
admiração de Jones pela originalidade do alemão – que o levaria ao ―sucesso‖: ―É digno de
nota como Abraham saía-se bem sem qualquer forma de ajuda, o que mostra que o caráter
original do indivíduo, assim como o seu temperamento, são da mais alta importância para a
obtenção de sucesso.‖ 553

550
Jones, 1982, p. 8.
551
―What was revolutionary about Klein was not so much her theory or technique (her views are mostly just a
logical and often parodic extension of Freud‘s), but that she succeeded where others had failed – in dividing the
psychoanalytic community.‖ (1993, p. 10, tradução livre).
552
―The unconscious process of overcoming, however, is of a challenging of defying order – in the courage for
this lies much of pioneer‘s greatness.‖ Jones, 1959, p. 203. Jones também vai assinalar que uma das dificuldades
de um pioneiro é de defender com concivção suas ideias mas ao mesmo tempo evitar que estas se convertam em
dogmas. (1959, p. 203)
553
Jones, 1970, v. II, p. 502.
235

É interessante também analisar a menção a fazer as coisas ―sem ajuda‖, isto é, de


forma independente ou autônoma – e é inevitável associarmos estas ideias à noção de autoria.
Pelo que temos visto, a impressão de um certo ―fusionamento‖ de Jones com outros colegas
aparece de forma repetida em autores e fontes diferentes – isto é, Jones supostamente
―copiando‖ Freud, seu pai psicanalítico; plagiando seu analista Ferenczi em seus artigos, ou
então seu analista mencionando sua dificuldade em afirmar-se como autor original, ou até o
próprio Jones afirmando essa fragilidade em si e admirando a coragem e originalidade dos
outros. Cada vez mais esta repetição nos faz seguros de que a questão da diferenciação, da
autoria e originalidade são de fato temas-chaves para a compreensão do personagem Jones na
história da Psicanálise e em sua própria história.
É preciso mencionar, a esse respeito, que até mesmo dois de seus artigos que
utilizamos em nossa análise (sobre os avós e sobre a fantasia de inversão de gerações) trazem
tantos diálogos com trabalhos de contemporâneos seus, inclusive publicados no mesmo ano
(como o de Abraham, de 1913), que a própria delimitação da autoria de Jones sobre estas
reflexões se pulveriza um pouco554. Se Abraham (1913), por exemplo, afirmou que a figura do
avô está sempre acima do pai, até na linguagem (―Grand-father‖), Jones em seu texto associou
o avô com Deus - como vimos há pouco – e também deu seus exemplos na linguagem de
diversas etnias. Na realidade Abraham também fez a comparação entre avós e um lugar divino
– como vimos no início de nosso trabalho (apenas não chegou a dar exemplos na linguagem,
como Jones fez). São de fato artigos muito ―aparentados‖ e até o fato de os dois trabalhos
terem sido publicados no mesmo ano nos dificulta precisarmos se houve inspiração de Jones
em Abraham, ou de Abraham em Jones, - ou ambos, mutuamente.555
Também salta aos olhos o fato de que Jones fez questão de dar um título (para seu
artigo sobre avós) quase idêntico ao de um trabalho de Jung: ―The significance of the father in

554
Winnicott (1994) aponta para o fato de que Jones colocava referências bibliográficas em número
espantosamente alto em seus artigos.
555
Jones afirma que seu artigo e o de Abraham foram publicados ―simultaneamente‖, mas notamos, porém, que
Jones cita o trabalho de Abraham, mas Abraham não cita o trabalho de Jones, o que pode indicar que o texto de
Abraham tenha sido publicado antes que o de Jones (mas esta é apenas uma hipótese. Ambos podem ter trocado
ideias a respeito, não se sabe, ou talvez Jones seja mais ―respeitador‖ de obras alheias, fazendo questão de citá-
las, etc.). Evidentemente tal descoberta me colocou um conflito: quem eu admirava exatamente em relação às
reflexões sobre avós: Jones ou Abraham? Com o avançar da pesquisa, porém, me dei conta que um conflito
como esse apenas corrobora a questão-chave de compreensão do personagem Ernest Jones, que por vezes se
funde, se mescla ou se mistura com outrem (seja com Freud, ou, nesse caso, com Abraham). A diferenciação,
como estamos vendo, é um tema crucial para nosso debate. (E um último comentário: parece-me, nesse sentido,
que a originalidade de Jones reside muito mais em sua ideia de fantasia de inversão de gerações, colocando avós
e netos como aliados edípicos. Este conceito, inclusive, foi o que me deu sustentação teórica em minha
dissertação de mestrado, me auxiliando a compreender a forte e repetida conexão, ao longo de anos, entre
adolescentes e idosos.)
236

the destiny of the individual‖556 (o artigo de Jones se intitula ―The significance of the
grandfather for the fate of the individual‖) e o galês avisa esta intenção ao leitor logo na
primeira linha do texto. (Certamente a intenção de Jones é a de promover um diálogo com o
colega, mas mais uma vez o leitor pode se confundir sobre a autoria de ambos artigos – como
eu mesma me confundi.)
A questão é portanto de difícil estudo e desperta uma série de novas reflexões.
Maddox, ao tratar sobre a suposta falta de originalidade do galês em sua biografia, coloca a
seguinte afirmação – um tanto difícil de compreender, inicialmente: ―Original is as original
does‖.557
Qual o sentido desta frase? ―Original é aquele que faz (as coisas) de maneira
original‖ seria minha formal pessoal de traduzi-la. Não contente com a tradução, consultei
uma tradutora profissional558, que me sugeriu ―Quem é original faz de maneira original‖.
Sim, mas qual seria o sentido desta frase nesse contexto da biografia de Jones?
Estava afinal Maddox defendendo – ou concluindo – que Jones é ou não é original?
O leitor há de convir que a compreensão desta frase diz respeito diretamente ao
objetivo de nosso estudo– e desvendá-la poderia ser uma questão-chave para a minha reflexão
e estudo.
A busca pelo sentido da frase – no contexto da vida e obra de Jones – foi
compartilhada com familiares e amigos. Um dia, recebi uma dica 559 de ouro: ―lembra que o
personagem Forrest Gump, em determinada cena do filme, pronuncia uma frase semelhante?‖
A frase é: ―Stupid is as stupid does‖.
Revi o filme. De fato Forrest diz a tal frase em várias cenas, ao longo de toda sua
vida – desde que era criança. O contexto é sempre o mesmo: a frase é uma resposta à pergunta
de alguém: ―Você é burro ou o quê?‖
Pesquisando sobre a origem desta expressão na língua inglesa, encontrei um dado
interessante: Esse modelo de frase é uma variação da citação original ―Handsome is as

556
Jones cita o artigo de Jung em nota de rodapé, em alemão, mas sem o ano de publicação. Encontrei, na
edição das obras completas de Freud da Companhia das Letras, volume 9, a indicação de que o referido artigo de
Jung foi publicado na Jahrbuch für psychoanalytische em 1909, ou seja, quatro anos antes que o texto de Jones.
(Conferir p. 381 de FREUD, S. (1917) O tabu da virgindade. In: Observações sobre um caso de neurose
obsessiva [―O Homem dos ratos‖], uma recordação de infância de Leonardo da Vinci e outros textos (1909-
1910). Vol. 9. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.)
557
Maddox, 2006, p. 86.
558
Maria de Fátima Siqueira de Madureira Marques.
559
Dica de Helena de Madureira Marques.
237

handsome does‖, que significa que a verdadeira beleza de uma pessoa reside em atitudes
bonitas, e não em sua aparência. Algo como: ―Belo é quem faz coisas belas‖. 560
Os falantes de língua inglesa adaptaram essa citação a vários outros atributos,
gerando variações como: ―Pretty is as pretty does‖; ―Beauty is as beauty does‖ e ―Ugly is as
ugly does‖ (todas essas frases tem o mesmo sentido que a citação original; são diferentes
versões de uma mesma ideia).
A mãe de Forrest é quem cria esta versão da frase sobre a burrice, ensinando o
filho a se defender quando duvidassem de suas capacidades intelectuais. Isto é, ao dizer a
frase Forrest afirma que a burrice não pode ser deduzida pelas aparências ou por uma
―primeira impressão‖, mas somente por suas atitudes- portanto é uma resposta-pedido: ―Não
me julgue pela minha aparência [de burro]‖: ―A versão de Forrest para o ditado diz que a
estupidez não é apenas uma coisa superficial derivada da aparência de uma pessoa. (...) Como
as outras versões, a expressão se resume a isso: julgue as pessoas pelo que elas fazem, não
pela forma como elas parecem ser‖.561
Forrest parece bobo, mas não é, afinal não faz ―coisas bobas‖. De fato, no filme
Forrest alcança grandes conquistas na vida e faz com qualidade muitas tarefas a que se
propõe: jogar ping-pong, vender camarões, correr, cuidar de sua mãe doente, cuidar de um
filho. A suposta estupidez de Forrest (pela aparência) seria desmentida através de suas
atitudes – se não inteligentes, ao menos eficientes.
Voltemos à nossa frase: ―Original is as original does‖. Maddox cria aqui mais
uma versão da citação antiga para definir Jones – ou, talvez como a mãe de Forrest, para
―defendê-lo‖. E ainda: se original é quem faz as coisas de modo original, ―o modo de fazer as
coisas‖ de Jones afinal é ou não é original (a dúvida persiste)?
De fato Maddox parece querer defender Jones de si mesmo – já que havia sido ele
próprio a atestar sua (suposta) falta de originalidade ao mestre Freud.
O parágrafo seguinte de Maddox nos ajuda e parece justificar sua expressão:
―Enquanto os outros seguidores de Freud estavam construindo novas teorias do
comportamento humano – Adler foi o primeiro da fila em 1911 com a proposição de que o

560
Conferir: <https://www.quora.com/What-does-stupid-is-as-stupid-does-mean-1> e
<http://www.encyclopedia.com/doc/1O214-handsomeisashandsomedoes.html>.
561
―Forrest's version of the saying means that stupidity is not just a
surface thing derived from a person's appearance. (…) Like the other versions, it comes down to this: judge
people by what they do, not by how they appear.‖ (https://www.quora.com/What-does-stupid-is-as-stupid-does-
mean-1)
238

‗desejo de poder‘ era um impulso mais forte que o sexo – Jones dedicou seus dons para expor
as ideias de Freud.‖ 562
De fato, a originalidade é uma questão carregada de ambivalência quando se trata
de Ernest Jones. Por um lado, se a maioria dos seguidores de Freud criou novos construtos
teóricos, novos conceitos, explorou facetas que Freud deixou de lado ou não se aprofundou, e
alguns chegaram a tecer teorias tão autorais que se distanciaram do mestre, rompendo a
lealdade com ele – como Jung -, Jones esteve sempre ao lado de Freud defendendo os cânones
da Psicanálise tal como havia sido concebida pelo ―Professor‖. (Bem nos recordamos como
Jones chegou certa vez a observar seus colegas como potenciais ―traidores‖ da ―Causa‖ e os
acomodou, como um juiz, em uma listinha com diferentes graus de lealdade à teoria
freudiana. Com a chegada de Melanie Klein, anos mais tarde, Jones conseguirá a façanha de,
mesmo concordando explicitamente com as ideias da psicanalista, manter a interlocução com
Freud – que, por mais que fosse inegavelmente conflituosa nessa fase, não levou a
rompimentos).563
Independentemente de suas contribuições teóricas serem consideradas originais ou
não (como vimos, este é um debate complexo que exigiria entrarmos a fundo em sua obra
como um todo e fazer o difícil exercício de localizar exatamente quando e onde se diferencia
de Freud564), podemos compreender este seu ―modo de fazer as coisas‖ (nos lembrando de
nossa frase-citação ―Original is as original does‖) como original.
Compreendendo portanto ―original‖ como fazer algo diferente do que os outros
fazem, que não tem semelhante, que não tem iguais, Jones sem dúvida tem originalidade,
como apontou Maddox. Nenhum outro personagem na História da Psicanálise foi o guardião
de Freud (entendendo Freud como sinônimo de ―Psicanálise‖ e também como pessoa real,
salvando-o dos nazistas), nenhum outro levou a Psicanálise para os países de língua inglesa
(com isso internacionalizando a Psicanálise definitivamente); ninguém mais, além de Jones,
se dedicou de corpo e alma para espalhar a ―semente‖ da Psicanálise por onde fosse, usando
seus talentos pessoais – que não eram poucos – para promover tanto o mestre quanto sua

562
―While Freud‘s other followers were constructing new theories of human behavior – Adler was the first to
break ranks, in 1911, with the proposition that the ‗will to power‘ was a stronger drive than sex – Jones poured
his gifts into exposition of Freud‘s ideas.‖ (Maddox, 2006, p. 86)
563
Como veremos mais adiante, Jones teria então se mantido leal aos princípios freudianos mesmo ao acolher
ideias dissidentes, já que justificava que a expansão da Psicanálise estava no germe de seu próprio fundamento.
564
É claro que é mais fácil localizar essas divergências quando o próprio Jones as apresenta como tal, por
exemplo em seus textos sobre o desenvolvimento da sexualidade feminina e a apresentação de seu conceito de
Afanise. Como vimos, para Girard (1972) sua concepção psicanalítica se torna então como que ―intermediária‖
entre Freud e Klein, mas esse debate precisaria ser respaldado em uma profunda discussão teórica de seus textos
desta época – o que faremos em uma próxima oportunidade.
239

criação. Jones foi agraciado com os dons da eloquência, da diplomacia, o domínio da


linguagem, em todos os sentidos: o dom da tradução, da oratória e da escrita, bem como da
persuasão; o dom de mediar conflitos e de dar passos estratégicos, de identificar
possibilidades e traçar planos – e de realizá-los; o total domínio da teoria freudiana a ponto de
transmiti-la e ensiná-la como se fosse um ―Freud por procuração‖; o dom da didática, o dom
do trabalho incansável e a enorme paixão pela Psicanálise – e pelo mestre, que a criou.
Utilizar os próprios dons para promover o outro – seja uma pessoa (o mestre) ou
um interesse comum, de importância histórica e universal (a Psicanálise) é, sem dúvida, algo
original. Nenhum outro seguidor de Freud o fez, apenas Jones.
Jones toma para si muito cedo a função de levar a psicanálise para além de um
grupo restrito, e se preocupa não só em difundir as teorias freudianas por onde for como
também de didaticamente explicá-las e defendê-las, sendo por isso um dos primeiros
―historiadores da psicanálise‖.
Seu traço ―professoral‖, didático, aliado ao senso de dever de fazer ―propaganda‖
e de defender a ―causa‖ (quase como um missionário) estão bastante evidentes por exemplo
na pequena obra ―O que é Psicanálise?‖(1949), que traz uma compilação de conceitos-chave
(Inconsciente, repressão, etc) e também faz uma defesa do método em seus diversos usos e
interfaces (com a Medicina, Antropologia, Religião, etc),
O mesmo estilo paciente e sistematizador se vê no artigo-compilação ―Recent
advances in Psycho-Analysis‖ (1920), no qual Jones sumariza os progressos no campo
psicanalítico nos últimos anos.
Em nossos dias, Renato Mezan (2014) expõe a importância histórica do artigo
didático de Jones:

Imaginemos que estamos em meio a uma peça de teatro. O primeiro ato acabou: ele
corresponde ao período que se conclui com a Primeira Guerra, no qual Freud é sem
dúvida a figura dominante. Depois do intervalo, os espectadores retornam às suas
poltronas. Mas, antes de iniciar-se o segundo ato, um dos personagens vem à boca
de cena e narra o que se passou entre a última cena do ato anterior e a que vai ser
representada quando se abrirem novamente as cortinas. Esta comparação não é
imprópria para caracterizar o artigo que Ernest Jones publicou em 1920, no primeiro
número do International Journal: ―Recent Advances in Psycho-Analysis.‖ (...) O
texto de Jones é precioso porque nos oferece uma ideia de como esses temas eram
percebidos por um observador extremamente bem colocado – membro do círculo
mais íntimo de Freud – no começo da época que estamos estudando. Por outro lado,
sua avaliação quanto à natureza dos progressos realizados por Freud suscitaria ainda
hoje, quase cem anos depois, um largo acordo entre os analistas, pois de fato são
mudanças importantes na teoria, com indiscutível relevância clínica. 565

565
Mezan, 2014, p. 259-261.
240

Mezan aqui festeja pelo menos dois aspectos do artigo e da contribuição de Jones:
por um lado, seu didatismo e esforço de marcar uma etapa importante na História da
Psicanálise- enquanto ainda passava por ela – e outro, a própria avaliação de Jones – nesse
sentido autoral – tão precisa e coerente que encontraria eco e concordância até mesmo em
psicanalistas de nossos dias.
O mérito de Jones aqui estaria, portanto, em uma dupla face, poderíamos dizer,
uma autoria-não-autoral ou um didatismo com marcas próprias; isto é, Jones se situaria
exatamente na delicada fronteira entre o falar com voz própria e o apenas reproduzir (ou
resumir, ou explicar) a teoria freudiana.
Talvez, por essas características tão ambivalentes, a colocação de Maddox
sustente essa dualidade de interpretação; é como se dissesse: enquanto todos os seguidores de
Freud estavam preocupados em ser originais, Jones fez de modo original (fez diferente): usou
seus talentos para promover a Psicanálise. Afinal... ―Original is as original does‖: ―Original é
quem faz as coisas de modo original‖. Como Forrest Gump, não nos deixemos levar pelas
aparências... quem não parece original pode sê-lo, basta observar suas atitudes e não julgar
precipitadamente.
E há mais. Veszy-Wagner colocava o galês como um pensador criativo também
por sua obra (ainda que segundo a mesma autora seja difícil distinguir exatamente onde, e no
566
que diferenciava de Freud): ―[Jones tinha a] vaidade legítima de um criador original‖ e
ainda: ―(...) Se Jones tivesse sistematizado seus próprios ensinamentos, lembraríamos dele
menos como o biógrafo de Freud do que como um pensador notável e original.‖ 567
Em nossos dias Griffin (2009), ao fazer uma resenha da obra de Maddox, concluiu
não só que Jones fez contribuições originais como também, em suas palavras, era uma espécie
de gênio (mesmo com a questão ―parricida‖ em relação a Freud, ao fundo): ―Incompleta como
pode ser a sua reconciliação entre a rivalidade e o parricídio com o amor e o desejo de se
tornar um com Freud, isso não quer dizer que Jones não tenha suas próprias conquistas
originais, como evidenciado por suas contribuições originais para a literatura psicanalítica (...)
Além disso, ele era um gênio organizacional (…)‖ 568

566
―vanidad del creador original‖ (Veszy-Wagner, 1968, p. 35-36)
567
―(...) Si Jones hubiera sistematizado sus propias enseñanzas, lo recordaríamos menos como biógrafo de
Freud que como um notable y original pensador.‖ (1968, p. 59) A propósito, a PADD – Psychoanalytic
Document Database assim define a obra jonesiana: ―Ernest Jones deixou uma obra extensa e variada que não
forma um todo coeso‖ (―Ernest Jones left behind an extensive and diverse body of work that does not form a
cohesive whole.‖) In: http://www.padd.at/people/851?locale=de
568
―Incomplete as may be his reconciliation of rivalry and parricide with love and a desire to become one with
Freud, this is not to say that Jones did not have his own original achievements, as evidenced by his original
241

No ano da morte de Jones, Zetzel (1958) publicou um texto sumarizando as


contribuições teóricas do galês e defendeu que suas ideias eram originais e que suas
contribuições não se limitavam a discorrer sobre as ideias freudianas (em determinado trecho
a autora chega inclusive a comparar Jones com Paul Morphy e diz que suas qualidades – por
tudo que fez pela Psicanálise - são semelhantes à do enxadrista!).

Também Claude Girard (1972) - estudioso de Jones que se dispôs a esmiuçar as


suas contribuições teóricas – avaliou que o galês foi de fato original em seus construtos (por
mais que o próprio, em um acesso de humildade em uma carta a Freud, tenha negado). No
capítulo final de seu livro o francês conclui: ―Esta apresentação da vida, da atuação e obra de
Ernest Jones, médico, neurologista, psicanalista, nos permitiu delinear os seus papéis e indicar
os traços mais marcantes da sua atuação e os pontos de impacto, onde a originalidade de suas
formulações e sua visão teórica puderam influenciar idéias psicanalíticas [grifo meu]‖.569
O mesmo autor francês escreverá um bonito parágrafo sobre originalidade, nos
lembrando que, depois de Freud, ―ser original‖ de fato é um desafio para todo e qualquer
discípulo. Mencionando o fato, por exemplo, de que Jones escreveu ―Hamlet e Édipo‖ (um
trabalho de Psicanálise aplicada) a partir de uma indicação de Freud, Girard se questiona:

contributions to the psychoanalytical literature (...) Furthermore, he was an organizational genius (...)‖ (Griffin,
2009, p. 1179)
Chama a atenção nesse trecho a repetição do termo ―original‖, como se o autor quisesse mesmo reforçar que
havia, sim, originalidade ―conquistas originais‖, ―contribuições originais‖.

Em nossos dias Dr Hinshelwood também enxerga Jones como um expoente no movimento psicanalítico – mas
no sentido organizacional e político (e não com contribuições teóricas)

―Na Grã-Bretanha, Jones foi o mais importante da geração fundadora de psicanalistas na Grã-Bretanha, e liderou
a profissão por quase 40 anos até que subitamente se aposentou no interior em 1944 aos 65 anos. Ninguém se
compara às suas realizações organizacionais na Grã-Bretanha. Um exemplo foi a longa batalha de Jones com a
British Medical Association em 1926-1927, onde muitos médicos respeitáveis se opuseram à psicanálise como
um tratamento charlatão. Foi uma batalha que Jones ganhou contra forças superiores. Na minha opinião, Jones
foi um colaborador muito importante para a estabilidade e o desenvolvimento da psicanálise como movimento
social, mesmo que sua escrita profissional e acadêmica fosse muito limitada em comparação com outras.‖
(Consultar: Anexos)

―In Britain, Jones was the most important of the founding generation of psychoanalysts in Britain, and led the
profession for nearly 40 years until he suddenly retired to the country in 1944 at the age of 65. No-one else
compares to his organisational achievements in Britain. One example was Jones long battle with the British
Medical Association in 1926-1927, where many formidable medical men opposed psychoanalysis as a quack
treatment. It was a battle that Jones won against superior forces. In my view Jones was a very important
contributor to the stability and development of psychoanalysis as a social movement, even though his
professional and academic writing was very limited compared to others.‖ (Consultar: Anexos)
569
―Cet exposé de la vie, de l'action et de l'ouvre d'Ernest Jones, médecin, neurologue, psychanalyste, nous a
permis d'esquisser ses rôles, d‘indiquer les traces les plus vivantes de son action et les points d'impact où
l'originalité de ses formulations et de sa vision théorique a pu infléchir les conceptions psychanalytiques [grifo
meu]‖ (Girard, 1972, p. 387)
242

Esta noção de psicanálise aplicada Jones trouxe em grande parte para seus ‗Ensaios‘
[Essays in Applied Psycho-Analysis], mas pode-se dizer que eles são apenas um
exercício? Jones, em sua admiração pela poderosa criatividade de Freud, como na que
ele manifestou por Janet ou por alguns de seus mestres, e que ele reconheceu em M.
Klein, Jones se refere à sua própria criatividade e seus próprios modos de
originalidade. A fonte da criatividade é, como para Freud, sua própria análise, sua
auto-análise no relacionamento estabelecido com seus primeiros pacientes e o
progresso de sua auto-análise durante o relacionamento com Freud e que terminou
com uma análise com Ferenczi. As primeiras obras de Jones, mais diretamente
inspiradas pelo trabalho de Freud, são também aquelas em que se encontra o eco de
seus conflitos ou suas tendências profundas, as que mais claramente decorrem dessa
jornada conjunta de abertura e progresso da análise pessoal. As obras posteriores só
serão o desenvolvimento dos grandes temas que lhe são apreciados antes de 1916.
Este vínculo entre o desenrolar de uma descoberta psicanalítica e o progresso da
experiência em sua própria análise foi bem trazido à luz por Jones para Freud. (...) É
verdade que, depois dele [de Freud], seus alunos sentiram essa questão de sua
originalidade mais ou menos fortemente e resolviam cada uma à sua maneira, alguns
deles desenvolvendo um aspecto da teoria de Freud que os separava dele. Freud, no
caso de Rank, percebeu essa evolução e entendeu que ele queria explorar a descoberta;
‗Traumatismo do nascimento‘ fazia parte de uma relação de transferência com Freud.
Os relacionamentos que Jones deixa vislumbrar entre os temas de seu trabalho, suas
fantasias, suas preocupações, suas memórias de infância, seu caráter, nos permitem
fazer alguns hipóteses sobre os mecanismos emocionais que apoiaram essa criação. A
vida da psicanálise mostra que existe uma possibilidade constante de originalidade,
cuja fonte reside na autenticidade e especificidade da experiência de cada indivíduo.
É isso que favorece para cada autor um campo do domínio psicanalítico. (Grifos
meus)570

570
O autor concluirá dizendo que ―Este campo preferencial no trabalho de Jones é o das fontes afetivas primárias
da vida psíquica.‖ (Entendo que Girard quer dizer aqui que em sua leitura de Jones, a ―tônica‖ de sua obra estaria
voltada para a vida emocional precoce, o que o colocaria afinado com Klein).

―Cette notion de psychanalyse aplique, Jones y contribua largement par ses Essais, mais peut-on dire d‘eux aussi
qu‘ils ne sont qu‘un exercise? Jones, dans son admiration de la puissante créatice de Freud, comme dans celle
qu‘il manifesta envers Janet ou certains de ses maitres, et qu‘il reconnut chez M. Klein, Jones renvoie à as propre
créativité et à ses propres moyens d‘originalité. La source de as créativité est comme pour Freud as propre
analyse, cheminement de son auto-analyse dans la relation établie avec ses premiers patients, puis cheminement
de son auto-analyse au cours de la relation avec Freud don‘t nous avons évoqué quelques traces et qui se termina
par ‗analyse avec Ferenczi. Les premiers travaux de Jones, les plus directement inspires de l‘ouvre de Freud,
sont aussi ceux dans lesquels on trouve lécho de ses conflits ou de ses tendances profondes, ceux qui procedente
le plus clairement de ce cheminement conjoint de l‘ouvre et des progrès de l‘analyse personannelle. Les ouvres
ulterieures ne seront que le développement des grands thèmes qui lui sont chers avant 1916.Ce lien entre le
déroulement d‘une découverte psychanalytique et les progrès de l‘expérience dans as propre analyse a été bien
mis em évidence par Jones pour Freud: J. Starobinski em donne um autre exemple, mais ces conditions
nécessaires pour toute création en psychanalyse ne furent pas le seul apannage de Freud. Il est vrai qu‘après lui
ses élèves ont tous ressenti cette question de leur originalité plus ou moins vivement et l‘ont résolue chacun à sa
façon, certains em développant um aspect de la théorie de Freud qui les séparait de lui. Freud, dans l ecas de
Rank, perçut cette évolutión et comprit que celui-ci voulut exploiter as découverte; le Traumatisme de la
Naissance s‘inscrivait dans une relation transférentielle par rapport à Freud. Les relations que Jones laisse
entrevoir entre les thèmes de son ouvre, ses fantasmes, ses préoccupations, ses souvenirs infantiles, son
caractere, permettent de faire quelques hypothèses sur les mécanismes affectifs qui ont soutenu cette création. La
vie de la psychanalyse montre qu‘il existe une constante possibilite d‘originalité dont la source se situe dans
l‘authenticité el la spécificité de l‘expérience de chacun. C‘est ce qui contribue à privilégier pour chaque auteur
um champ du domaine psychanalytique, ce champ préférentiel dans l‘ouvre de Jones est celui des sources
affectives primaires de la vie psychique.‖ (Girard, 1972, p. 178-9)
243

É uma ideia revigorante: uma vez que a Psicanálise trata necessariamente ―das
profundezas‖, a originalidade de cada um – e com Jones não seria diferente – emerge de suas
próprias questões íntimas, de seus anseios, complexos, fixações psíquicas, e nesse sentido
toda obra psicanalítica, sendo profundamente pessoal, tem a autenticidade como fundamento.
(Girard também menciona uma ―evolução‖ da obra que acompanharia a evolução da análise
de Jones, mas esse é um tema um pouco mais complexo e difícil de ser estudado, até porque,
como sabemos, Jones fez uma análise brevíssima... além disso, também é complicado avaliar
a sua ―auto-análise‖)
Segundo o mesmo autor, que analisou em detalhe a obra teórica do galês, Jones
traria um modo de pensar intermediário entre Freud e Melanie Klein - ponto também
trabalhado por Imbasciati (1983) -, e a isso acrescento: Jones consegue um feito relevante em
termos teóricos e pessoais: mantém sua lealdade a Freud e à Psicanálise dita ―clássica‖ e ao
mesmo tempo se mantém aberto às novidades para o bem da própria Psicanálise.571
Girard (1972) analisa:

Um dos primeiros alunos de Freud, ele rapidamente encontrou uma escala


internacional e adquiriu um lugar de destaque nos órgãos representativos da
psicanálise, que ainda carrega a marca de seus talentos administrativos e sua
influência sobre o recrutamento, a formação de psicanalistas e seu ensino.
Sua obra é uma das mais importantes depois da de Freud. Ela fornece uma visão
geral da psicanálise e promove uma efervescência psicanalítica nos mais variados
ramos das ciências humanas. Traz a marca de uma evolução na teoria psicanalítica,
que não se restringe ao que Freud produziu, mas reflete uma experiência pessoal: ele
foi um dos principais arquitetos na manutenção do legado científico de Freud e ao
mesmo tempo preservou as possibilidades evolutivas da psicanálise com um espírito
de abertura científica572. Sua obra o situa como um intermediário entre Freud e
Melanie Klein. 573

571
Phillips diria: ―Com a chegada de Klein a Londres em 1926, ele [Jones] começou a sentir-se, pela primeira
vez, na vanguarda do avanço psicanalítico‖ (1998, p. 176)
572
Roazen (1974) também descreveu essa abertura em Jones: [ele] ―podia ser considerado um indivíduo de
espírito aberto e tolerante; não somente apoiou e protegeu Melanie Klein, tida como cismática em Viena, como
também escreveu uma introdução à obra de Ronald Fairbairn, único analista na Escócia, naquele tempo.‖ (p.
391) Já vimos aqui este prefácio de Jones à obra de Fairbairn.
573
―L'un des premiers élèves de Freud, il se révéla rapidement d'une envergure internationale et acquit une place
de premier plan dans les organismes représentatifs de la psychanalyse, qui portent encore la marque de ses dons
d'administrateur et de son influence sur le recrutement, la formation des psychanalystes et leur enseignement.
Son ouvre est l'une des plus importantes après celle de Freud. Elle offre une vision générale de la psychanalyse
et elle apporte le ferment psychanalytique dans les branches les plus variées des sciences humaines. Elle porte la
marque d'une évolution dans la théorie psychanalytique, qui n'est pas seulement celle que Freud suscita, mais qui
témoigne d'une expérience personnelle: il fut l'un des principaux artisans du maintien de l'héritage scientifique de
Freud, tout en préservant les possibilités évolutives de la psychanalyse dans un esprit d'ouverture scientifique.
Son ouvre le situe comme un intermédiaire entre Freud et Mélanie Klein.‖ (Girard, 1972, p. 387)
244

Jones deixa claro esse posicionamento delicadamente pendular (fincado nas bases
da Psicanálise clássica, mas simpático à teoria de M Klein; tradição e vanguarda) em seu
prefácio da obra kleiniana ―Os progressos da Psicanálise‖ (1982):

Apesar de sua estupenda produção, tanto em quantidade como em qualidade, tão


fértil era Freud em ideias e descobertas originais que não era possível, mesmo para
um trabalhador como ele era, explorar todas as suas ramificações potenciais. Muitos
colaboradores o ajudaram nessa gigantesca tarefa. Uma nota de página, de Freud, foi
ampliada de tal maneira que se tornou um livro sobre Hamlet, e muitas sugestões
luminosas foram convertidas em ensaios ou mesmo em livros. Esse trabalho
prosseguirá ainda por muitos anos, tão frutíferas foram as suas inspirações. Além
disso, o emprego dos métodos que ele inventou deve conduzir, logicamente, a novas
descobertas, além daquelas que o próprio Freud realizou, e a hipóteses que ampliem
ou retifiquem até as dele – um processo que ele próprio aplicou, sem hesitações, aos
seus trabalhos.
Contudo, chega-se a um ponto em que tais esforços suscitam um problema difícil. A
amarga experiência nos ensinou que a resistência contra o inconsciente pode ser tão
sutil que é capaz de distorcer as descobertas analíticas e reinterpretá-las em apoio de
alguma defesa pessoal. Como se poderá distinguir esse perturbador estado de coisas
de um verdadeiro progresso, de um aprofundamento dos nossos conhecimentos
sobre o inconsciente? O único critério que pode ser legitimamente empregado é o
válido para toda a ciência, uma unanimidade de conclusões obtidas por homens
adequadamente qualificados, utilizando o mesmo método em condições
semelhantes. O que certamente é ilegítimo é o princípio procustiano de avaliar todas
as conclusões em comparação com as alcançadas por Freud, por maior que possa e
deva ser o nosso respeito por ele.574

O posicionamento e poder de persuasão de Jones são muito interessantes: utiliza a


própria teoria psicanalítica e a capacidade de Freud de se autocorrigir e mudar os rumos de
sua própria teoria para justificar as ―ramificações potenciais‖ em outras direções.
Jones consegue assim – com notável dom de eloquência – nos convencer que
avançar para além de Freud constitui um ato de lealdade aos próprios postulados
psicanalíticos!
O rigor da psicanálise e sua missão de aprofundar os conhecimentos sobre o
inconsciente seriam, nesse sentido, o método em si guardião e promotor do livre-pensar (em
outras palavras, da associação livre), garantindo, por definição, que as conclusões e teorias
não sejam ―procustianamente‖, como afirma Jones, adaptadas à imagem e semelhança de
Freud.
Embora tenha conciliado as duas escolas (Londres e Viena) – e seu papel de
mediador tenha sido, como vimos, absolutamente crucial para a História da Psicanálise -,
Jones se posicionou conceitualmente do lado de Melanie Klein, conseguindo com isso um

574
Jones, 1982, p. 7.
245

feito tão interessante quanto paradoxal: descolou a psicanálise da figura de Freud quase
como para assim garantir a solidez da disciplina e do método. 575
Em outras palavras, se manteve leal aos preceitos psicanalíticos de Freud ao
mesmo tempo em que acolhia novas proposições – e, se pensarmos bem, foi apenas por
incorporar plenamente os fundamentos profundos da Psicanálise que pode dar as boas vindas
para a ousadia que Klein propunha.
Daí decorre a ideia interessantíssima de que a abertura para a vanguarda é
entendida, com Jones, como uma tradição da Psicanálise!
Isso nos faz lembrar do que escreveu Antonio Imbasciati (1983): para este autor a
obra de Jones, além de esclarecer muitos pontos teóricos, tem o valor de haver impedido que
as divergências teóricas culminassem em algo mais radical e que, ―desta forma, a psicanálise
poderia se desenvolver fecundamente, mesmo após a morte de seu fundador, sem permanecer
vinculado a ele de maneira religiosa.‖ Mais adiante o autor também dirá que em determinado
texto jonesiano ―(...) Jones parece querer expressar uma atitude crítica sobre o que foram
consideradas posições freudianas clássicas e reivindicar à escola em Londres, uma lealdade
substancial, que fosse em um espírito de evolução, ao verbo do mestre ". 576

Jones também consegue se situar, neste prefácio, em outra ambivalência sutil:


menciona seu próprio trabalho como exemplo (o notável trabalho sobre Hamlet, uma de suas
obras mais conhecidas), mas não cita a si mesmo como autor, se colocando assim exatamente
na linha tênue que separa a humildade do modesto, de um lado, e a vaidade do ―chamar a
atenção para si‖, de outro. E ainda: ao mesmo tempo em que reconhece que muitas obras
―novas‖ foram feitas após Freud (talvez como as suas?), ainda assim as coloca em referência
ao mestre como continuações, inspirações, ideias subsequentes ao seu legado.
Essas ambivalências tornam ainda mais difícil precisarmos a ideia de
originalidade em Psicanálise, e mais especificamente, como é nosso interesse aqui, escrutinar
os aspectos de originalidade do próprio Jones.

575
Aqui nos lembramos de um detalhe significativo: nos primórdios da expansão da Psicanálise, quando a
primeira geração de psicanalistas começava a se organizar em sociedades e congressos, Jones se mostrou avesso
à ideia de batizar o primeiro congresso internacional de psicanalistas de ―Encontro de Psicologia Freudiana‖,
pois segundo ele este nome feria a objetividade científica do congresso. Consultar nosso capítulo biográfico
sobre Jones, Capítulo II.
576
―in questo modo la psicoanalisi pote fecondamente svilupparsi, anche dopo la morte del suo fondatore, senza
rimanere legata a lui in modo religioso.‖ (Imbasciati, 1983, p. 71) ―Jones sembra insieme voler esprimere uma
critica a quelle che erano ritenute posizioni freudiane classiche e rivendicare ala scuola di Londra uma
sostanziale fedeltà, sai purê in uno spirito di evoluzione, al verbo del maestro.‖ (Imbasciati, 1983, p. 72)
246

Se tivermos a curiosidade de procurar o termo ―original‖ no dicionário


encontraremos as seguintes definições:

―original
o.ri.gi.nal
adj m+f (lat originale) 1. Relativo a origem. 2. Que tem o cunho da origem. 3. Que provém da
origem. 4. Feito pela primeira vez, ou em primeiro lugar; que não é copiado nem reproduzido.
5. Que não foi dito ou feito à imitação de outrem. 6. Que tem caráter próprio; que não copia
nem imita. 7. Que não tem semelhante; esquisito, extraordinário. 8. Bizarro, excêntrico,
extravagante, singular. sm 1. O que provém da origem. 2. O que tem caráter próprio; o que
não foi copiado nem imitado. 3. Primeira redação de uma obra ou de um pensamento. 4. Tip
Texto manuscrito ou datilografado, destinado à composição. 5. Escrito ou desenho primitivos
dos quais se tiram cópias. 6. Tipo, modelo, padrão que inspirou imitações. 7. Pessoa
excêntrica.‖577

Façamos então um exercício de ―check list‖, cruzando alguns possíveis sentidos para o
―original‖ no dicionário e o que aqui discutimos sobre Jones:

1.Relativo à origem: Qual a origem de Jones? Galês que ganhou o mundo, saiu de uma cidade
pequena para brilhar na universidade, cedo se destacou pela erudição e trabalho árduo e
inteligente. Trouxe consigo suas origens por onde passou, mas suplantou o ―complexo de
galês‖ (misto de orgulho e inferioridade) – que inclusive gerou seu artigo – se
―internacionalizando‖ – e de quebra, fazendo o mesmo com a Psicanálise.

2.Feito pela primeira vez: Foi Jones quem, pela primeira vez, levou a Psicanálise para os
países que falavam inglês – e, por conseguinte, para o mundo inteiro. Foi Jones que, enquanto
os outros seguidores de Freud trabalhavam na construção de suas próprias teorias, se dedicava
a representar as ideias de Freud países afora, utilizando seus dons de oratória, eloquência,

577
Fonte: <http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-
portugues&palavra=original>.
247

escrita e diplomacia para atenuar resistências, driblar puritanismos, fechar parcerias e abrir
pontes e portas. 578

578
Sobre a capacidade conciliadora e de ―duplas lealdades‖ de Jones, o próprio já havia apontado, como vimos,
tratar-se de um desejo inconsciente de unir (e separar) seus pais. A esse respeito Girard (1972) fará um
comentário interessante:

―A influência deste conflito e seus modos específicos de resolução são encontrados ao longo de seu trabalho:
fidelidade às duas causas da medicina e da psicanálise e a luta para uní-las que ele conseguiu desempenhar, papel
de conciliador nos conflitos entre os membros do comitê (...) constante interesse em questões de linguística,
etimologia e os problemas das minorias galesa, judaica e irlandesa. Ele uniu as influências anglicanas e galesas
cuja oposição foi ultrapassada, dando uma dimensão internacional ao seu ideal e suas ambições muito cedo. Ele
era realmente um homem do século XX.

Sobre conflitos relacionados à onipotência, resolução de Édipo no desejo de união dos pais, tais como os
processos dinâmicos de sua evolução genital e prégenital, podemos observar algumas expressões em seu
trabalho. Se obras como "Traços do caráter anal-erótico.", "O Complexo de Deus", "Medo, Ódio, Culpa", "Sobre
o Pesadelo", dão à leitura o sentimento de uma experiência psicológica profunda e tão rica, de tal autenticidade
na delicadeza da descrição, com tal desejo de compreender os mecanismos envolvidos, não será porque, além
dos documentos psicopatológicos à sua disposição - como uma referência de autenticidade das análises -, não há
a percepção e a memória de seus próprios conflitos, de amor e ódio, de suas defesas obsessivas, de seus desejos
de onipotência, da marca em seu próprio caráter de um erotismo anal, dos pesadelos de sua infância? Seu
trabalho é, portanto, bastante o oposto da afirmação dogmática de uma doutrina, mas aparece como o
desenvolvimento de uma trajetória levando-o às fontes profundas de sua própria criatividade. Este obra escrita é
apenas um dos meios de unir a multiplicidade de campos em que seu desejo o leva a manifestar, pois ela é
apenas uma das facetas dessa atividade frutífera em que ele conciliou o escritor e o homem de ação.‖ (Girard,
1972, p. 48-9)

―L‘influence de ce conflit et de ses modes spécifiques de résolution se retrouve au cours de son ouvre: fidelité
aux deux causes de la médecine et de la psuchanalyse et lutte pour les unir qu‘il sut mener à bien, rôle de
conciliateur dans le conflits entre les membres du comité, (...) intérêt constant pour les questions de linguistique,
d‘étymologie et les problèmes de minorités galloises, juives, irlandaises. Il réunit en lui les influences
anglicisantes et galloises dont l‘opposition fut dépassée en donnant três tôt à son ideal et à ses ambitions une
dimension internationale. Il fut bien em ce sens un homme du vingtième siècle.

Conflits liés à la toute-puissance, résolution de ‗oedipe dans de désir d‘union des parentes, tels sont les processos
dynamiques de son évolution prégénitale puis genitale, dont on peut repérer quelques expressions dans son
ouvre. Si des travaux comme ―Les Traits de Caractère se rattachant à l‘Érotisme Anal‖, ―Le Complexe de Dieu‖,
―La Peur, la haine, la Culpabilité‖, ―La Cauchemar‖, donnent à la lecture le sentimento d‘une profonde et si riche
experiènce psychologique, d‘une telle authenticité dans la finesse de la description, d‘une telle volonté de
compréhension des mécaniesmes en cause, n‘est-ce point parce que, delá des documents psychopathologiques à
as dispositions, comme une référence d‘authenticité des analyses, il ya a la perception et le souvenir de ses
propres conflits, d‘amour et de haine, de ses défenses obsessionelles, de ses désirs de tou-te-puissance, de la
marque sur son caractere de son propre érotisme anal, de ses cauchemars d‘enfant? Son ouvre est ainsi tout à
l‘inverse de l‘affirmation dogmatique d‘une doctrine, mais apparaît plutôt comme le développement d‘une
trajectoire le conduisant aux sources profondes de sa proper créativité. Cette ouvre écrite n‘est qu‘un des moyens
de reunir la multiplicité des champs où son désir le porte à se manifester, car ele n‘est qu‘une des faces de cette
activité féconde dans laquelle il concilia l‘écrivain et l‘homme d‘action.‖ (Girard, 1972, p. 48-9)

(Vemos aqui uma seleção de textos do autor que ―revelariam‖ Jones, e observamos um artigo em comum com
nossa própria seleção – o ―Complexo de Deus‖ – embora os temas eleitos por Girard difiram um pouco dos
nossos - com exceção, é claro, da questão da onipotência. Como dissemos no início deste trabalho, a obra de
Jones é tão rica que seguramente é possível traçar vários fios condutores e pontos de coerência entre diversas
seleções de textos.)
248

5.Que não foi dito ou feito à imitação de outrem. Jones sempre esteve às voltas com a questão
da autoria. Afinal, o que Jones fala é jonesiano ou freudiano? Um de seus trabalhos mais
aclamados foi ―Hamlet‖, feito a partir de explorações e aprofundamentos de uma nota de
rodapé do próprio Freud. Ferenczi o acusava de imitador – e dizia que, como seu ex-analista,
já tinha se deparado com essas tendências na personalidade do galês...

8.Tipo, modelo, padrão que inspirou imitações. Na realidade Freud é que era o modelo-
referência para Jones e, se não chegou a imitá-lo propriamente, fez toda sua trajetória baseada
nas criações do mestre e seguindo as suas orientações. Pode-se dizer no entanto, que Jones
chegou a exercer influência – como ele mesmo – em vários aspectos na História da
Psicanálise: influenciando poetas e escritores (como James Joyce, Sylvia Plath, Laurence
Olivier), seja abrindo as portas para o pensamento de Melanie Klein, seja deixando obras
significativas de Psicanálise aplicada (Hamlet), estudos brilhantes da personalidade do gênio
(o gênio enxadrista, Freud, o Complexo de Deus) estudos didáticos (―O que é a Psicanálise?‖,
etc), etc

7. Pessoa excêntrica. Patinador artístico, enxadrista, homem com uma história pessoal
carregada de polêmicas e pontos de mistério, de caráter talvez duvidoso, dotado de profundos
dons e defeitos igualmente marcantes, Jones não é, definitivamente, um homem ―comum‖.

Original? ―Original is as original does‖...

Talvez esteja aí a importância de ser Ernest Jones.


249

IX CONSIDERAÇÕES FINAIS

―There is plenty of room at the top‖ (Thomas Jones, pai


de Ernest Jones) 579

Um baixinho de nome comum.


Ernest Jones parecia se incomodar com pelo menos dois traços seus: a pequena
estatura e seu nome comum demais. Se o primeiro foi tema de suas sessões no divã de seu
psicanalista Ferenczi, o segundo chegou a provocar a decisão radical de mudar de nome
(acrescentar mais um sobrenome), a fim de se destacar na multidão – decisão que não levou
adiante, porém, e optou por continuar sofrendo as ―agruras‖ de se chamar Ernest Jones.
Desde pequeno Jones tinha sonhos de grandeza, e acreditava que os festejos de
Ano-Novo eram para si580; mais velho, sonhava em ser um pioneiro nas ciências, tais como
seus mestres mais admirados. Então conheceu Sigmund Freud e entendeu que não estava
fadado ao pioneirismo: uma vez que a grande descoberta/criação está feita (a Psicanálise),
está feita – assim pensou.
Vimos, ao longo do presente trabalho, de que forma os traços biográficos de
Ernest Jones guardam coerência com alguns de seus trabalhos psicanalíticos, bem como com
sua atuação no movimento psicanalítico e sua relação com Sigmund Freud.
Os textos selecionados de sua extensa obra, bem como estudos de autores que o
estudaram, mostram um homem às voltas, em seus interesses psicanalíticos, com a questão
dos pares importância-desimportância (de si), complexo de inferioridade-―Complexo de
Deus‖, soberba-humildade, vaidade-modéstia, e, o que talvez seja um fio condutor entre todos
esses pares: grande-pequeno.
Griffin (2009), que escreveu uma resenha crítica da biografia de Jones escrita por
Maddox (2006), faz uma interessante comparação entre, de um lado, a imagem proustiana de
homens em pernas-de-pau que sobem tão alto que ao final acabam por cair (―Em busca do
tempo perdido‖) e, de outro lado, o desejo ambicioso de Jones em subir, se elevar, estar no
alto, alcançar as alturas (e Jones era um homem de baixa estatura, o autor nos lembra...), bem
como suas ―quedas‖ na vida. Diz o autor que o que o fez se lembrar de Proust foi uma
sensação de desequilíbrio no ―alcance das alturas‖ dada pela

579
―Há muito lugar no topo‖. (Jones, 1959, p. 42)
580
No discurso fúnebre para Ernest Jones, W. H. Gillespie, então presidente da IPA, disse as belas palavras:
―Então ele morreu, e todas as trombetas tocaram para ele do outro lado.‖ (―So he passed over, and all the
trumpets sounded for him on the other side.‖ Gillespie, 1958)
250

busca vertiginosa da ambição ("a escala das coisas" [Jones, 1959], a ‗medida‘ da
‗contribuição para a existência humana‘ '[Jones, 1939]), uma vida que se desdobra ao
longo do tempo, a autoconsciência de Jones sobre sua altura/estatura, e as ‗quedas
catastróficas iniciais‘ de Jones (Maddox, p.206) (...). Sem que eu estivesse plenamente
consciente disso, essa imagem estava juntando (...) ligações entre as vidas de Jones e
Proust – e isso se relaciona com a tensão entre um sentido de si sustentado em ser
visto/espelhado, precariamente, por outros (para Proust, pela sociedade, para Jones,
pelas mulheres, pelo público do mundo psicanalítico e por essa conexão com Freud) e
com a conquista psicológica /de desenvolvimento de uma forma de autodefinição mais
estável e autônoma. 581

É impossível não pensarmos, ao se falar em grande-pequeno (ou em estar


acima/abaixo), no clássico conceito psicanalítico do Complexo de Édipo e no par Pai-Filho, e
vimos, ao passear pelos seus trabalhos selecionados, de que forma a paternidade é uma
questão chave na compreensão do personagem Ernest Jones.
Uma das principais facetas do frequente questionamento das figuras de
autoridade, se deu, como testemunhamos, pelo feroz ataque à Religião e a todos os seus
correlatos – para Jones, também entrariam no balaio as superstições, as crendices, o
ocultismo, as telepatias e todos os métodos, teorias ou crenças que afastassem o sujeito –
assim pensava, - das verdadeiras motivações por detrás da fé: os impulsos inconscientes.
Ao interpretar psicanaliticamente os sentimentos religiosos, a figura de Deus, por
consequência, é desmontada por um escrutínio jonesiano implacável, - o que relativiza seu
poder e desmantela as relações de onipotência e domínio. O próprio sentimento religioso é
concebido para Jones como um traço do complexo de inferioridade, e nesse sentido a

581
―(…) It was the physical sensation of disequilibrium in the face of reaching for heights generated by this
metaphor, its allusion to the dizzying pursuit of ambition (‗the scale of things‘ [Jones, 1959]; the ‗measure‘ of
‗contribution to human existence‘ [Jones, 1939]), to a life unfolding over time, to Jones‘s self-consciousness
about his height/stature, and to Jones‘s ‗early catastrophic falls‘ (Maddox, p. 206) that first drew me to it.
Without my being fully conscious of it, this imagery was bringing together (on the surface, improbable) links
between the lives of Jones and Proust – as it relates to the tension between a sense of self supported by being
seen/mirrored, precariously, by others (for Proust, by society; for Jones, by women, by the audience of the
psychoanalytic world, and by this connection with Freud) and the psychological/developmental achievement of a
more stable, autonomous form of self-definition.‖ (Griffin, 2009, p. 1173-4)

Cabe mencionar que o autor também tece considerações entre essas ―quedas‖ e a patinação artística que Jones
praticava (Griffin, 2009, p. 1173): a biógrafa vai nos contar que o livro que o galês escreveu sobre o esporte era
sobre a ―arte de cair‖, voltada para os iniciantes com baixa autoconfiança (e a autora vai acrescentar: ―o que
nunca foi um problema para Jones‖) (Maddox, 2006, p. 205) (A esse respeito, consultar o artigo de Dufresne e
Genosko, de 1995)
Certamente o título do décimo quinto capítulo da obra de Maddox inspirou Griffin nessa imagem: ―Skating to
the top.‖ (Maddox, 2006, p. 203) Tal título é difícil tradução. Seria algo como ―Patinando em direção ao topo.‖
(Estamos vendo, a propósito, como essa questão de ―chegar no topo‖ era importante para Jones.)

Mais adiante em seu texto o mesmo autor dirá, contudo, que Jones tinha uma necessidade ―quase psicopática‖ de
se elevar a fim de ser um parceiro no ―plano do mestre‖ (p. 1174) – nesse ponto acredito que haja um exagero.
251

emancipação de um sujeito supostamente seguro de si – ou até de uma civilização inteira -


prescindiria de poderes divinais acima de sua cabeça.
Tanto na teoria como em sua vida pessoal – Jones era um ateu convicto – as
religiões são portanto compreendidas praticamente como um sintoma, e para tanto devem ser
debeladas pelo poder revelador da Psicanálise.
E se para o autor o sentimento de inferioridade é uma característica dos religiosos,
ao mesmo tempo é um traço marcante de um povo inteiro: os galeses. No entanto o próprio
Jones era galês, e expor assim uma característica que também o inclui não poderia passar
despercebido em nossa análise. Da mesma forma vimos como o artigo sobre o que chamou de
―Complexo de Deus‖ traz questões da maior relevância para compreendermos traços do
próprio autor. Paradoxalmente, como vimos neste interessante trabalho, o sujeito que sofre do
―complexo de Deus‖ frequentemente é ateu (por não suportar nenhum ―outro‖ Deus, além e
acima de si) e muitas vezes exibe – exatamente ao contrário do que poderíamos supor – uma
modéstia exagerada, como uma formação reativa de uma autovalorização exacerbada.
Ao relembrar este aspecto é inevitável não nos reportarmos às numerosas cartas
de Jones a Freud e à sua maneira de, com certa frequência, hipervalorizar o mestre em
detrimento de si e de sua própria obra, como se um excesso de humildade não o permitisse se
afirmar como autor original. Aí também entram os problemas de Jones em relação à imitação
(de que foi acusado algumas vezes), como se apenas repetisse as ideias originais de seu
mestre (ou seu analista) e não tivesse autoria ou voz própria. E então também entrariam aí os
pares de opostos genialidade-normalidade (ou mediocridade), originalidade-imitação, mestre-
aluno.
Poderíamos seguir nosso caminho interpretativo concluindo então que temos
diante de nós um Jones diminuto, sem nome (um João-ninguém), um imitador, mero repetidor
das doutrinas freudianas, escondido à sombra do mestre...
Não iremos por esse caminho, porém.
Como sabemos, em Psicanálise nada é tão simples como parece e compreender
Ernest Jones é um pouco mais difícil do que isto.
Os estudos biográficos e a análise dos textos selecionados de sua obra, bem como
a contextualização do seu papel na História da psicanálise e dos jogos de força que estavam
então vigentes revelam algo mais sofisticado e extremamente relevante na história de Jones,
que nos dão pistas para a compreensão mais profunda deste personagem.
Em seus artigos de 1913 ―The significance of the grandfather for the fate of the
individual‖ e ―The phantasy of the reversal of generations‖, Jones aponta para a importância
252

da figura do avô e menciona a sua associação com Deus, substituindo o poder paterno. O neto,
como ―reencarnação psíquica do avô‖, se identificaria com ele por estarem ambos em posição
de ameaça ao pai. Assim, como o galês afirma, quando o filho quer ―se livrar‖ dos pais o avô
parece um bom substituto.
Daí decorre a reflexão – já apontada por Abraham (1913)- de que se o pai do pai é
portanto alguém que manda-em-quem-manda, (como Deus), isto coloca o pai, para o filho
(neto), em nova perspectiva. Também nos lembramos da reflexão do mesmo autor, em que
nos conta a história de um menino que se confortava pensando que seu pai não teria um
domínio eterno, pois um dia perderia sua potência tal como o avô perdeu a sua. (Poderíamos
também acrescentar: o que também demonstra que o domínio do pai não é absoluto é o
próprio fato de também ter ele um pai, acima de si.) Inferimos então que se o pai também tem
um pai acima dele, seu poder não é – e a rigor nenhum poder seria – absoluto, ou
inquestionável, ou eterno, ou único. Afinal de contas, mesmo acima do avô há outro pai (o
bisavô), e assim por diante, com representantes do poder paterno em cada uma das gerações.
Da mesma forma, em Jones, a fantasia de inversão geracional transforma o filho em pai do
seu pai, o que, se por um lado pode ter uma conotação amorosa (em Jones o amor tem então
uma natureza paternal), por outro garante ao filho uma inversão do poder e domínio,
colocando abaixo de si aquele que estaria acima de si.
Assim nos parece que a destituição de autoridade paterna tem um lugar relevante
em Jones, e ela pode ser vista em seu trabalho sobre o gênio enxadrista Paul Morphy - em
vários aspectos. Em primeiro lugar, Jones se debruça sobre o jogo de xadrez (jogo que ele
mesmo pratica e no qual tem um desempenho notável) e resgata sua história, trazendo o
significado que o jogo tem, através dos séculos, de morte ao Rei. Jones então faz algo
interessante: após nos contar a história do jogo (mesclada à própria história da humanidade),
nos conta a história de um homem, como se toda a cultura ou toda a humanidade estivesse na
análise de um só homem – e da mesma forma a análise de um só homem pudesse nos ajudar a
compreender toda a humanidade.
E esse homem, Paul Morphy, se por um lado era um gênio inquestionável do
xadrez – ou, em outras palavras, exímio ―matador de Reis‖ – por outro lado, em determinado
momento da vida não apenas se afasta do xadrez como também perde a sanidade mental,
entrando em profunda paranoia.
O jovem Morphy parou de jogar quando estava justamente no auge do sucesso e
colecionava títulos importantíssimos, tendo vencido jogadores de sabida excelência – muito
mais velhos e experientes, inclusive, e de diferentes nacionalidades. Este cenário faz Jones
253

cogitar tratar-se de um caso de ―fracasso no triunfo‖, um fenômeno analisado por Freud em


dois de seus textos e que descreve como a culpa edípica que poderia tingir de sofrimento
experiências de conquista e vitória.
Mas Jones prefere não seguir pelo caminho de Freud e oferece uma outra
interpretação.
Embora não tenha usado essa nomenclatura (essa é uma construção minha, para
fazermos a comparação com o conceito de Freud), segundo Jones Morphy teria ―fracassado
no fracasso‖ isto é, sua insanidade teve origem na falência de condições mínimas que
garantissem que ele pudesse viver os conflitos edípicos de maneira disfarçada, - metaforizada,
por assim dizer. No exato momento em que suas intenções ―vis‖ (os impulsos incestuosos e
desejo de morte ao pai) foram então ―descobertas‖, Morphy se afasta do xadrez – o jogo
deixou de ser um símbolo, então, e a sublimação perde sua função de defesa – e toda sua
estrutura psíquica é assim ameaçada.
O que temos então é um xeque-mate do próprio Jones em relação a várias figuras
de autoridade, de poder ou de destaque: xeque mate em Freud – ao cogitar mas rejeitar sua
interpretação -, em Morphy, por demonstrar como a sua genialidade e sucesso estavam
assentados sobre condições psíquicas frágeis e, afinal de contas e o tempo todo, no Rei, do
jogo de xadrez, que assistimos ser morto uma e outra vez, ao longo de seu texto, a cada
partida do enxadrista!
E acima dos avós, dos gênios (seja da Psicanálise, como Freud, ou do xadrez,
como Morphy), e acima até mesmo dos reis, estaria o ―Rei dos Reis‖: Deus.
Aí também – ou principalmente-, está, como vimos, uma das maiores destituições
de autoridade em Jones: não apenas analisa a fé religiosa (no indivíduo ou em uma civilização
inteira) como racionalizações ou sentimento de inferioridade, como também ironiza o auto
engrandecimento dos superpoderosos nomeando um complexo de ―Complexo de Deus‖.
Essa superação dos poderes paternos também aparece na própria escolha de
vocação do galês– que foi bastante precoce. Como vimos, embora sua mãe desejasse que ele
fosse um religioso, acabou não achando tão ruim a escolha do filho pela Medicina, já que
ambas as posições tinham o status que ela valorizava. No entanto o sentido psíquico da
escolha de Jones nada tinha a ver com imagem social: temos, em sua autobiografia, o valioso
relato de que ser médico, para ele, significava uma superação edípica:

Desde que eu me entendo por gente quis ser médico. (...) Minha escolha foi sem
dúvida fortemente influenciada pela personalidade do nosso médico de família. (...)
O nascimento da minha irmã mais nova, quando eu tinha três anos, é uma lembrança
254

consciente, assim como os sons de dor da minha mãe em trabalho de parto. Sua
história de que a Rainha Victoria, uma abelha rainha zelosa, tinha nos trazido o novo
bebê não tinha nada a ver com as minhas observações das atividades do médico, e
estava claro para mim que ele era uma pessoa muito poderosa que poderia levar os
resultados dos delitos do meu pai à uma conclusão feliz. A partir desse momento,
uma vez que um médico era superior até mesmo a um pai, resolvi me tornar um
[grifo meu]. 582

Este relato nos faz sentir que estamos no caminho certo, e encontramos então mais
um elemento jonesiano acima do pai, uma figura entre tantas em sua obra selecionada: o Avô
(Avô-Deus), o Neto (que por inversão de gerações se coloca como o pai de seu pai, e se alia
ao avô) o Gênio, o Rei, Deus – e agora também o Médico.
Recordamos também a ironia de Jones em relação às figuras da Monarquia. Não
apenas nos jogos de xadrez Jones destitui o Rei: em Toronto, por exemplo, se irritou com os
canadenses por achá-los muito beatos e obedientes aos monarcas.
É interessante mencionar, a esse respeito, que Jones e Freud passaram juntos por
um período em que, tanto no âmbito das relações internas, pessoais, do movimento
psicanalítico quanto no contexto histórico mais amplo havia um clima de queda de monarcas.
Axel Hoffer, na introdução da edição espanhola das correspondências entre Freud e Ferenczi
(Falzeder, 2001), nos mostra como esse clima histórico se relacionava com a situação entre
Freud e outro ―filho‖ seu: Ferenczi:

a relação entre monarca e súdito representa um importante dimensão simbólica da


relação entre Freud e Ferenczi. A tensão entre a autoridade de Freud como pai da
psicanálise e a luta de Ferenczi contra a assimetria da relação, como um filho
obediente e logo rebelde, aparece novamente no esforço de Ferenczi de converter a
relação (...) em uma relação recíproca e em igualdade de condições. (...) O que
acontece em nível individual na relação entre Freud e Ferenczi ocorre também
internacionalmente, com as monarquias perdendo seu poder sobre o povo. Do ponto
de vista das lutas contra o monarca, podemos considerar como uma das
consequências da I Guerra Mundial, a queda das monarquias e o estabelecimento de
novas repúblicas com uma maior participação do povo no poder. A luta entre Freud
e Ferenczi em nível individual se desenvolve, portanto, em paralelo aos
acontecimentos internacionais; em termos individuais estão enfrentando assimetria e
reciprocidade, autoritarismo e igualitarismo, e, na política, monarquia e república. 583

582
―I knew as far back as I can remember that I wanted to be a doctor. (…) my determination was without doubt
powerfully influenced by the personality of our family doctor. (…) The birth of my younger sister, when I was
three, comes into conscious recollection, as do the sounds of my mother‘s pain in travail. Her story that Queen
Victoria, an assiduous queen bee, had sent us the new baby did not at all tally with my observations of the
doctor‘s activities, and it was plain to me that he was a very exalted person who could bring the results of my
father‘s misdeeds to a happy issue. From that moment, since a doctor was superior even to a father, I resolved to
become one.‖ (Jones, 1959, p. 41)
583
―la relación entre monarca y súdito representa una dimensíon simbólica importante de la relación entre Freud
y Ferenczi. La tensión entre la autoridad de Freud como padre del psicoanálisis y la lucha de Ferenczi contra la
asimetría de la relación, como hijo ya obediente ya rebelde, se manifiesta una y outra vez en el esfuerzo de
Ferenczi por convertir la relación (...) em una relación recíproca y en igualdad de condiciones. (...) Lo que
sucede en el plano individual de la relación entre Freud e Ferenczi se produce, asimismo, en el plano
255

Sabemos que as discordâncias e ―rebeldia‖ de Ferenczi frente ao pai da


Psicanálise culminaram em divergências importantes e em um afastamento (ou até
poderíamos chamar ―estranhamento‖), mas não é exatamente isso o que ocorre com Jones.
Ernest Jones, teria, como vimos, uma posição muito mais diplomática e leal entre
todos os ―irmãos‖, sendo aquele que ficou do lado do mestre por toda a vida. Como um filho
parental – atuando aí também a ―fantasia de inversão de gerações‖ – Jones também cuidou de
seu ―pai‖, chegando inclusive a salvá-lo (literalmente) dos nazistas durante a guerra.
Mas o fato de se colocar como ―um pai do seu pai‖, ou um filho parental, não
significa, porém, que Jones não manifestasse o conflito edípico ―clássico‖ em relação a Freud:
pelo contrário, podemos notar como tal conflito foi o tom não apenas de sua atuação no
movimento psicanalítico como também em alguns temas pelos quais se debruçou em sua
obra.
O conflito de Jones parecia decorrer do embate entre forças opostas: de um lado, a
tendência de coroar Freud e colocá-lo em um pedestal, se autodiminuindo diante de tão
fulgurante brilho e genialidade. Por outro, se dedicava com empenho em desfazer crenças
religiosas ou superstições, relativizar o poder dos deuses, destronar os reis e enxergar o
aspecto humano nos gênios. Dedicava-se a desfazer, com a arma psicanalítica, os tabus da
idolatria e fé cega, trazendo os conteúdos primitivos e infantis do inconsciente à luz da razão.
Mas foi o próprio Jones que também enxergou que a razão pode ser utilizada como uma
defesa, um ―disfarce‖ para os mesmíssimos impulsos primitivos... foi ele, afinal, que cunhou
o conceito de ―Racionalização‖! (Sofrendo dela, talvez, na própria carne?)
Já vimos que Jones se incomodava com seu próprio nome, mas é preciso resgatar
que seu incômodo tinha duas facetas. Por um lado, o contrariava ter um ―nome de rei‖
(lembramos que seus pais escolheram nomes da realeza, e o quanto isso o incomodava); por
outro em determinada fase da vida desejou mudar seu sobrenome por ser comum demais,
(talvez ―plebeu‖ demais?), para que pudesse se destacar na multidão, para que se
diferenciasse, saísse da invisibilidade. Da mesma forma, se por um lado destronava os
monarcas, por outro corou Freud como o rei da Psicanálise - e diante dele manifestava um

internacional, en cuanto que las monarquías pierden su poder sobre el pueblo. Desde el punto de vista de las
luchas contra el monarca, podemos considerar como uma de las consecuencias de la Primera Guerra Mundial la
caída de las monarquías y la instauración de nuevas repúblicas con una mayor participación del pueblo en el
poder. La lucha entre Freud e Ferenczi en el plano individual se desarolla, pues, paralelamente a los
acontecimientos internacionales; en términos individuales están enfrentados la asimetría y la reciprocidad, el
autoritarismo y el igualitarismo, y en la política, la monarquía y la república.‖ (Falzeder, 2001, p. 19)
256

respeito e admiração por vezes excessivos. E mais: conseguiu acolher até mesmo um
pensamento divergente do freudiano (o de Melanie Klein) e assumir, diante do mestre, suas
concordâncias com ela (e portanto suas discordâncias com Freud e sua filha, Anna), mas
mesmo assim foi capaz de manejar a situação de modo a evitar tanto uma cisão da Sociedade
Britânica quanto um rompimento de suas relações com Freud (além de preservar a amizade
com Anna Freud584). Vimos como, numa brilhante concepção da Psicanálise, Jones acolheu o
novo mantendo-se fiel à tradição, e foi estritamente freudiano ao repensar o freudismo!
Se por um lado Jones parecia manifestar uma admiração imensa pelo Pai-gênio, -
com o risco de cair em ―fanatismo‖ –, por outro lado promoveu uma destituição das
autoridades paternas, relativizando o poder do pai ao resgatar outras figuras que façam frente
a um poder tão esmagador. Se foi considerado por alguns servil ou fanático, também era
conhecido por ter uma personalidade difícil, implacável, de língua afiada. O mesmo que
destitui as autoridades era, afinal, conhecido como um homem autoritário. Foi acusado de ser
um idólatra lambe-botas, ao mesmo tempo em que antipatizava com tudo que fosse religioso;
dedicou sua vida ao mestre mas teve ímpetos de diferenciação – na tentativa da mudança de
nome, na ambição de liderança em relação à ―Causa‖, no anseio de pioneirismo, na simpatia e
afinidade de pensamento com Melanie Klein.
Foi ―filho‖ de Freud e pedia seus conselhos, orientações, diretivas, pedia licença
para que lesse seus escritos, quase que se desculpando, mas também foi ―pai‖ de Freud, ou
seu ―filho-parental‖, assumindo a liderança de cuidar da sua criação, a Psicanálise, e da
própria pessoa de Freud, conseguindo sua migração, protegendo sua reputação, cuidando de
sua família (como ao receber Anna Freud em férias na Inglaterra e mais tarde trazendo todos
da família em segurança para Londres, sob a ameaça nazista).
Escreveu muitíssimo e tinha sonhos de pioneirismo, mas também sem muito pejo
tomava para si ideias de outros autores ou de certo modo se misturava a eles – seja com o
próprio mestre (como no estudo sobre Hamlet), seja com o analista Ferenczi. Tomou carona
no poder de Freud tornando seu o próprio movimento psicanalítico, mas por procuração: ―um
homem é forte quando representa uma ideia forte.‖
A questão é ambivalente, à semelhança da interpretação sobre o gênio enxadrista
Paul Morphy: houve um fracasso no fracasso ou um fracasso no triunfo? Isto é: Jones abdicou
de investir em uma teoria original – embora fosse, a meu ver, original em diversos aspectos –
por não chegar a ―jogar o jogo‖ com um adversário tão poderoso como Freud (fracasso no

584
A própria Anna o afirma em seu texto de 1979 sobre Jones (conferir p. 349-50).
257

fracasso)? Ou então jogou o jogo, teve movimentos impetuosos de autoafirmação, ambição e


auto importância, bem como de diferenciação e sucesso (a venda excelente e várias reedições
de seus livros, as medalhas de ouro, cargos de presidência), mas por culpa edípica não pode ir
até o fim e se empenhar em criar um legado próprio (fracasso no triunfo)?
Nossa análise nos mostrou aspectos dos dois movimentos. Por um lado, Jones não
chegou a alcançar o que parecia ser um desejo profundo (o de ser um ―pioneiro‖ teórico,
como vimos em sua autobiografia) pois conhecer Freud e sua magistral genialidade parece tê-
lo intimidado um pouco (―Então veio Freud, e eu logo descobri que eu tinha que ir para a
escola novamente.‖ 585), e nesse sentido ele mesmo, Jones, abandonaria a partida antes mesmo
que ela começasse, quase como se não fosse digno de adversário tão poderoso.
Por outro lado, em certa medida os próprios impulsos megalomaníacos ou a
vaidade, o ―se dar importância‖, talvez até em demasia, se convertam, por formação reativa,
em seu oposto, exatamente como a modéstia excessiva que Jones enxerga naqueles que
sofrem do Complexo de Deus. E assim, por talvez acreditar inconscientemente que seu brilho
próprio é tão fulgurante que potencialmente cegaria os demais, trata de se mostrar
moderadamente, e modestamente, em ―escala humana‖. Assim nos lembramos do plano de
Jones de ―diluir‖ seus artigos mais polêmicos entre outros mais ―neutros‖, de neurologia;
também nos lembramos de sua dispersão em vários assuntos diferentes e dos diálogos com
tantas vertentes que não deixavam claro qual o fio condutor de seu pensamento; ou ainda do
seu modo de escrever que ocasionalmente transparece um receio de assumir-se autor (como
ele mesmo deixa ambivalente, em seu texto sobre Racionalização, se o conceito é dele ou de
Freud).
Jones parece oscilar entre o prazer e a culpa de se diferenciar de Freud, e isso
pode ser notado por várias fontes: a forma e o conteúdo dos textos aqui selecionados; traços
de sua história e personalidade; aspectos do relacionamento com o mestre e, por fim, o fato,
inegável, de Jones ser pouco conhecido como si mesmo (seus pensamentos, suas inovações)
em nossos dias – isto é, para além de seus cargos administrativos ou de ser o ―biógrafo de
Freud‖.
Dotado de uma personalidade complexa, capaz de grandes gestos de generosidade
e ao mesmo tempo com deslizes de caráter, era hábil em elevar o mestre sem se colocar em
evidência – mas quiçá desejando-o. Era talentoso em fazer pontes e mediar diferenças; reuniu
diferentes psicanalistas – e aproximou grupos, escolas – pelo seu imenso poder de mediação e

585
Then came Freud, and I soon found I had to go to school again.‖ (Jones, 1959, p. 159)
258

diplomacia (às vezes tão exagerado que não deixava claro ―de qual lado estava‖). Foi um
galês que entrou no universo inglês, um não-judeu que se aproximou dos judeus; aproximou a
Medicina e a Psicanálise; transformou o alemão em inglês pelo trabalho com as traduções;
colocou lado a lado, para trabalhar na mesma Sociedade, as divergentes Anna Freud e
Melanie Klein.
Sem dúvida nenhuma há muito a se estudar em Ernest Jones, e se o presente
trabalho pretendeu, acima de tudo, colocar luz em um personagem um tanto invisível no meio
psicanalítico (a julgar, como vimos, da escassez de trabalhos sobre ele, o desconhecimento
geral de boa parte de sua obra, a publicação de apenas uma parcela pequena de suas obras no
país, etc), há ainda muito por fazer. Um campo se abre na compreensão das interfaces de
Jones com outros autores, seu diálogo com o pensamento kleiniano, a coerência interna de sua
obra completa – e muito mais. (Pretendo seguir tais estudos no pós-doutorado, trazendo cada
vez mais de Jones ao meio psicanalítico. Se Jones era, por assim dizer, um ―embaixador‖ da
Psicanálise, assumo eu então a função de ―embaixadora‖ de Jones no Brasil, tomando para
mim a honra e a enorme responsabilidade de dedicar meus próximos estudos e pesquisas ao
autor e suas contribuições.586)
Jones dedicou seus últimos anos a escrever a biografia de Freud - mas deixou a
sua própria incompleta. 587
E assim, voltando aos traços de Jones com que abrimos o presente capítulo,
podemos agora entender que uma forte preocupação de Jones parecia ser com sua grandeza e
seu nome, isto é, sua estatura e diferenciação: qual era, afinal, a envergadura de seu trabalho.
Mas a sabedoria da sonora frase do pai de Jones, que também abre o capítulo, –
com a força que tem a fala de um pai – nos lembra que há bastante espaço no topo: lá em
cima cabem mais de um.
Jones parece ter atingido a serenidade desta frase quando se aproximava do fim da
vida, como vemos em sua última correspondência trocada com o mestre. Na carta, faz um

586
Disse Veszy-Wagner: ―Jones teve uma vida longa, frutífera e plena. No entanto, não podemos deixar de
lamentar que precisamente ele, que nos deixou tal riqueza de conhecimento, não conseguiu completar a
construção de suas teorias e expandir as intuições que iluminaram o trabalho de sua vida. Como seus herdeiros,
tentaremos continuar pelo caminho que foi forçado a abandonar ". ―Jones tuvo una vida prolongada, fructífera y
plena. No obstante, no podemos dejar de lamentar que precisamente él, que nos ha legado semejante caudal de
conocimiento, no pudiera completar el edifício de sus teorias y ampliar esas intuiciones que iluminaron la obra
de su vida. Como sus herederos, intentaremos continuar por el caminho que se vio obligado a abandonar.‖ (1968,
p. 91)
587
Mervyn Jones, filho de Jones, escreveu o epílogo da autobiografia incompleta do pai. No texto, afirma que foi
uma escolha consciente de Jones deixar de lado a escrita de sua autobiografia para escrever a de Freud. (Jones,
1959, p. 258)
259

retrospecto e conclui, do alto de seus 60 anos de idade: ―foi uma vida muito interessante e nós
dois fizemos uma contribuição para a existência humana - mesmo que em medida muito
diferente.‖ 588
É um delicado equilíbrio: Jones reconhece a genialidade do mestre e seu papel, de
proporções oceânicas, na Psicanálise, na História do mundo, e na própria Cultura ocidental;
mas também reconhece afinal seu próprio valor e senta-se, no topo, ao lado de Freud.
Este é o topo daqueles que ―contribuíram para a existência humana‖ e ali há lugar
para os dois, cada um do seu tamanho.
Sentado atrás do trono, ―dirigindo assuntos de cima, sendo invisíveis para a
multidão‖, 589 Jones então foi um dos grandes.
E assim, ao final testemunhamos como a vida e a obra selecionada de Jones
trazem tal riqueza de diálogo, tal alinhamento de sentidos que nos lembra a citação que o
próprio galês faz em sua autobiografia: ―Um pensador que não sofre seu problema, que não
vive seu pensamento, não é um pensador; é um mero orador, repetindo pensamentos que
foram pensados por outros.‖ 590

588
―it has been a very interesting life and we have both made a contribution to human existence – even if in very
different measure.‖ (Carta de 03.09.1939. in Correspondência Freud-Jung, p. 770.) Citada por Maddox, 2006, p.
242-243.
589
―(…) directing affairs from above while being invisible to the crowd.‖ - diz Jones em ―Complexo de Deus
(1913). (1974, p. 253-254)
590
―A thinker who does not suffer his problem, who does not live his thought, is not a thinker; he is a mere
elocutionist, repeating thoughts that have been thought by other.‖ (Benedetto Croce - citado por Jones, 1959,
p.62)
260

REFERÊNCIAS

Obras de Ernest Jones

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591
O que é ―relevante‖ é um critério um tanto subjetivo, e cada estudioso de Jones elencará sua própria lista.
262

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2017
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22 a 25 de outubro de 2017, UFSJ – São João del Rei-MG

592
Muitos materiais foram consultados, estes estão entre os mais relevantes.
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01 a 5 de novembro de 2017 - Fortaleza-CE

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593
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http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-24302007000100004

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http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-11382008000200011

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Miranda-Ferreira.pdf
http://www.euppublishing.com/doi/full/10.3366/pah.2014.0138

http://www.euppublishing.com/doi/pdfplus/10.3366/pah.2014.0138
270

ANEXOS

Entrevista de Dr. Robert Hinshelwood concedida por email a Izabel de Madureira


Marques. São Paulo, 29 nov. 2016. (A reprodução na íntegra no presente trabalho,
traduzida e no original, foi autorizada pelo autor.)

Dr Robert Hinshelwood é psicanalista, psiquiatra e professor emérito da


Universidade de Essex, Inglaterra; autor, entre outros, do ―Dicionário do Pensamento
Kleiniano‖594, Dr. Hinshelwood teve a gentileza de me conceder uma entrevista em 2016.
Suas respostas mostram um panorama de sua visão sobre Jones (vida e obra), bem como
revelam como o psicanalista galês é visto na Inglaterra. A Melanie Klein Trust, organização
inglesa voltada à formação e pesquisa na teoria e técnica de Klein, assim descreveu o
professor britânico:

―Bob Hinshelwood tem sido um escritor prolífico nos últimos 35 anos, cujo
amplo trabalho abrange a psicanálise clínica e teórica, bem como a aplicação do pensamento
psicanalítico a outros campos, especialmente grupos, organizações e ciências sociais.
Também foi professor apaixonado e estudioso de psicanálise, mais proeminente como
professor de psicanálise na Universidade de Essex. (...) Fascinado pelos escritos de Melanie
Klein - ricos mas de difícil compreensão -, se interessou em torná-los mais acessíveis.‖ .595

594
HINSHELWOOD, R. Dicionário do Pensamento Kleiniano. Porto Alegre: Artes Medicas, 1992.

595
“Bob Hinshelwood has been a prolific writer for the last 35 years, whose wide-ranging workcovers clinical
and theoretical psychoanalysis as well as the application of psychoanalytic thinking to other fields,
especially groups, organisations and social science. He has also been a passionate teacher and scholar of
psychoanalysis, most prominently as Professor for Psychoanalysis at the University of Essex. (…)
Fascinated by the rich but difficult to digest writings of Melanie Klein, he was interested in making them
more accessible.‖ In: http://www.melanie-klein-trust.org.uk/hinshelwood
271

Entrevista Dr. Hinshelwood (traduzida):

1. Qual a importância de Ernest Jones?

Minha impressão, como a de muitas pessoas, é que Ernest Jones (1879-1958) foi
muito importante na história da psicanálise, especialmente na Grã-Bretanha, mas também
importante para o movimento internacional. Ele veio de uma origem não conformista no País
de Gales, e quando descobriu a psicanálise (em torno de 1905), esta também era uma questão
não conformista. Ao mesmo tempo, ele era extremamente leal a Freud, tão leal que pareceu
ter sido extremamente competitivo para se tornar o apoiante mais ativo e efetivo de Freud.
Jones era importante, no entanto, não por suas contribuições teóricas ou clínicas,
mas por seu trabalho organizacional e "político". Como você sabe, Jones era um membro
central do "anel secreto" [Comitê secreto], o círculo interno de colaboradores de Freud, e
pode ter sido o planejador [do Comitê] em 1911. Este foi um grupo secreto que se formou
para proteger Freud e suas ideias de dissidentes como Alfred Adler, e mais tarde Carl Jung.
Era um poderoso grupo dos mais leais: Sandor Ferenczi, Otto Rank, Hans Sachs, Karl
Abraham e um pouco mais tarde, Max Eitingon. Jones foi presidente da Associação
Psicanalítica Internacional entre 1920-1925, no período desorganizado após a Primeira Guerra
Mundial; e também foi presidente entre 1934 e 1951; Além disso, ele fundou o International
Journal of Psychoanalysis em 1920 e editou-o até 1939.
Além desse arroubo organizacional, a maior conquista de Jones foi sua biografia
de três volumes de Freud, escrita a partir de sua experiência pessoal de conhecer os detalhes
mais próximos da vida profissional de Freud e até sua morte na Inglaterra; bem como ter
acesso a todo o arquivo da vida de Freud, muitos desses documentos ainda não acessíveis. A
biografia é pessoal e mais valiosa para isso, mas outras biografias já foram escritas, que
idealizam menos Freud, por exemplo Frank Sulloway (1979 e Peter Gay (1988), e muitos que
capturam Freud em seu contexto histórico e social, por exemplo, George Makari (2008).
Na Grã-Bretanha, Jones foi o mais importante da geração fundadora de
psicanalistas na Grã-Bretanha, e liderou a profissão por quase 40 anos até que subitamente se
aposentou no interior em 1944 aos 65 anos. Ninguém se compara às suas realizações
organizacionais na Grã-Bretanha. Um exemplo foi a longa batalha de Jones com a British
Medical Association em 1926-1927, onde muitos médicos respeitáveis se opuseram à
psicanálise como um tratamento charlatão. Foi uma batalha que Jones ganhou contra forças
superiores.
272

Na minha opinião, Jones foi um colaborador muito importante para a estabilidade


e o desenvolvimento da psicanálise como movimento social, embora sua escrita profissional e
acadêmica fosse muito limitada em comparação com outras.

2. No Brasil Ernest Jones é conhecido principalmente como o “biógrafo de


Freud”. De que forma Jones é conhecido na Inglaterra?

Sim, a biografia é a contribuição escrita mais importante de Jones. Ele realmente


conhecia Freud e todos os psicanalistas e psiquiatras significativos de sua época, na Grã-
Bretanha, Europa e América.
Eu acho que muitas vezes é o caso de um colaborador de um campo de trabalho
acadêmico ser esquecido por um tempo e então ser "re-descoberto" mais tarde. É necessário
que haja uma biografia bem pesquisada de Jones (talvez você faça), que reconheça seu
trabalho organizacional, bem como seu trabalho escrito.

3. A que poderíamos atribuir a “invisibilidade” de Ernest Jones? (Ou acredita


que ele seja invisível apenas no Brasil?) Quais suas hipóteses?

Na Grã-Bretanha Jones não é "invisível". A sala de reuniões principal no prédio


da Sociedade Psicanalítica Britânica é chamada de "Sala Ernest Jones". Ele é considerado o
fundador da psicanálise em meu país. Os arquivos da Sociedade Britânica detêm uma grande
quantidade de documentos de Jones; e a biblioteca da Sociedade foi fundada com os próprios
livros de Jones.
Eu falarei sobre seus escritos em uma pergunta posterior, mas é verdade que a
reputação de uma pessoa após sua morte depende cada vez mais do que ela publicou, e Jones
nunca criou uma nova direção de qualquer tipo na psicanálise. Ele estava sempre ansiando ser
leal a tudo o que Freud disse (embora seu caráter fosse mais complicado do que apenas um
discípulo - eu chegarei a esse ponto mais adiante).

4. Jones foi uma figura polêmica. Poderíamos pensar que a desconfiança que
paira sobre Jones é em parte um dos motivos de sua “invisibilidade” em
nossos dias?
273

Ele era realmente um personagem polêmico, embora isso nunca o tivesse


impedido realmente no que queria fazer, apesar dos problemas em que ele se meteu. Parece
que ele não hesitou muito em perseguir o que queria e acreditava. Como você sabe, isso era
verdade tanto nas suas relações românticas com as mulheres, como em sua busca de
convicções intelectuais. Como eu disse anteriormente, ele pretendia ser tão leal a Freud como
ninguém, além de falar o que pensava - inclusive, em um momento, dizendo a Freud que
Anna Freud nunca havia analisado seu complexo de Édipo!
A maior controvérsia que levou à desconfiança em relação a ele foi que ele
parecia ser um mulherengo, e pode ter sido que, privadamente, ele tenha pensado que a teoria
libidinal de Freud justificava uma sexualidade mais aberta. Você sabe, uma piada é chamá-lo
de Erogenous Jones.
Ele foi preso em duas ocasiões por ter falado com jovens sobre questões sexuais.
Ele escreve sobre isso em sua autobiografia (Free Associations); aparentemente intrigado,
ofendido e entretido pelas atitudes sociais abafadas sobre a sexualidade antes da Primeira
Guerra Mundial. Foi por causa dessas prisões que Jones deixou o país em 1908 por 5 anos,
morando em Toronto, Canadá (durante o qual ajudou a fundar a American Psychoanalytical
Association).
Phyllis Grosskurth, que era o biógrafo de Klein, disse que a reputação atual de
Jones em Toronto é que ele era enganador e não confiável de modo geral, mas não recebi
nenhuma informação sobre isso. Então eu suspeito que fossem apenas suas relações com as
mulheres, incluindo algumas pacientes do sexo feminino. No Canadá, ele morava abertamente
com sua namorada, Loe Kann, que era viciada em drogas (o que não era tão incomum no
século 19), e havia sido anteriormente paciente de Jones. Quando retornaram do Canadá em
1913, Jones a levou para uma análise com Freud. Parece que o resultado principal da análise
foi que Freud a convenceu a romper o relacionamento com Jones. Talvez com base no que
Freud soube dela, Freud estava com receio de que Jones voltasse sua atenção para Anna
Freud.
Como eu disse, a desconfiança de Jones nunca foi um sério obstáculo para sua
carreira e, na Grã-Bretanha, a psicanálise tem uma grande dívida com Jones, mas parece
verdade que fora da Grã-Bretanha, Jones foi tido como inconsequente. Nunca ouvi dizer que
sua biografia de Freud foi desacreditada, embora seja certamente influenciada pela
idealização de Jones em relação a Freud e, talvez, pela idealização de Jones sobre sua própria
relação com Freud.
274

5. Embora pouquíssimo conhecida (ao menos no Brasil), Jones tem uma obra
extensa, foi um escritor prolífico. Sobre isto, pergunto:
5.a) Como o sr. caracterizaria a obra de Jones? O sr. a conhece e, se sim, como a
classificaria?

Sim, ele era muito produtivo, muito claro, e escreveu muito em defesa da
psicanálise no começo. Ele não apenas concordou com Freud, mas poderia fazer uma análise
muito útil de algumas questões. Por exemplo, ele escreveu um artigo que ainda é relevante
atualmente sobre o conceito de superego, em 1925, dois anos depois que Freud o apresentou.
Por exemplo, ele faz a interessante pergunta sobre o superego como o herdeiro do complexo
de Édipo: se o menino desiste de sua mãe como o objeto amado, por que é o pai que o menino
introjeta como superego?

5.b) O que se destaca na obra de Jones?

Em torno dessa época (na década de 1920) ele também escreveu sobre a tese
antropológica de Freud, Totem e Tabu. Os antropólogos na Grã-Bretanha (Bronsislav
Malinovski, Elliott Smith, WH, R. Rivers criticaram a "fantasia filogenética" de Freud sobre
os tabus tribais. Jones, impressionantemente, na minha opinião, se deu ao trabalho de
consultar os principais textos antropológicos desta época (como Westermarck e Frazer) e
escreveu uma refutação extensa de Malinovski (Jones, 1925). O padrão de debate de Jones é
muito competente para o tempo. Jones estava interessado em ciência social e, já em 1924,
organizou palestras relacionadas à psicanálise com a sociologia ( publicado como Aspectos
Sociais da Psicanálise, e editado por Jones).
Mais tarde na década de 1930, Jones estava preocupado com as teorias
psicanalíticas que divergiram entre Londres e Viena. Ele fez questão de confrontá-las, e, com
(acho) Federn em Viena, ele organizou as Exchange Lectures [Palestras de Intercâmbio] e, de
fato, proferiu a primeira delas sobre "Sexualidade feminina" em Viena em 1935; Joan Riviere
fez a segunda sobre a gênese do conflito psíquico na primeira infância em Viena em 5 de
maio de 1936 (aniversário de 80 anos de Freud). E Robert Waelder deu uma resposta a
Riviere quando ele palestrou em Londres em novembro de 1936. Mas a série [de palestras]
acabou por causa dos nazistas. Essas palestras foram as precursoras das Reuniões Científicas
das Controversial Discussions em Londres (1943-1944) depois que a família Freud se mudou
para Londres.
275

5.c) Por que será que a obra de Jones é tão pouco conhecida (e pouco estudada,
pouco citada em artigos e trabalhos...)?

Jones era muito bom ao escrever sobre as questões importantes na psicanálise em


um momento histórico particular. Vivemos em um período histórico diferente e temos
diferentes questões com quais queremos lidar. Jones, como eu disse, não estava tão
interessado em fazer novas descobertas ou criar uma nova escola de psicanálise, então ele
nunca deixou um grupo de seguidores da maneira que Ferenczi fez, ou Klein, ou Kohut, etc.
O trabalho de Jones era criar um movimento saudável que pudesse sobreviver e florescer.
Como você sabe, nos últimos anos da carreira profissional de Jones o futuro da
psicanálise era muito incerto. Não só a figura principal, o próprio Freud, morreu em 1939,
mas as muitas sociedades psicanalíticas na Europa desapareceram quando os nazistas
invadiram e extinguiram a "ciência judaica". Stalin já havia esmagado a psicanálise russa
depois de 1925 aproximadamente. O que havia restado da psicanálise na Europa em 1940
eram pequenas sociedades na Suécia e na Suíça - mais a influente sociedade de Londres, é
claro. E, como você sabe, Freud nunca pensou que a psicanálise nos EUA fosse significativa.
Então, houve muito luto por parte dos psicanalistas e uma grande preocupação com a
sobrevivência [da psicanálise] na Grã-Bretanha em torno de 1940-1941, quando os nazistas
também podem ter invadido a Grã-Bretanha. A Grã-Bretanha naquele momento parecia ser
responsável pela sobrevivência da psicanálise.
Então, acho que Jones era uma influência muito importante naquela época em que
ele estava ativo. Ele não deixou uma contribuição científica realmente original, mas nos deu a
biografia e a forma organizacional e a resistência do movimento psicanalítico.

6. O sr.acredita que Jones “viveu à sombra” de Freud ou conseguiu posicionar-


se como si mesmo (como autor, como psicanalista)?

Bem, todos, em certo sentido, estão à sombra de Freud. Como eu disse, Jones
assumiu uma posição particular nessa sombra. Não tentou criar novas e melhores teorias, mas
estabelecer o movimento de forma organizada e duradoura. Pessoalmente, acho que Jones
conseguiu essa tarefa e deve ser reconhecido como o líder de uma resistência nos anos 1930-
1940, quando a psicanálise parecia estar tão ameaçada. Sua biografia não é apenas um
trabalho de erudição (é uma erudição significativa), mas é uma afirmação de que Freud e a
276

psicanálise sobreviverão. Então, Jones foi ofuscado por Freud, e talvez ele devesse ser tirado
das sombras e celebrado por sua grande capacidade organizacional.

7. Jones “abriu as portas” para Melanie Klein e impediu que essa fosse expulsa
da Sociedade. Como o sr. classifica a relação Jones-Klein? (Isto é: O pensamento de Jones e
as similaridades com o pensamento de Klein/ o relacionamento pessoal entre ambos/ as
influências de um sobre o outro, etc)

Sim, Jones foi brilhante ao criar um interesse sério pela psicanálise e em


conseguir as melhores mentes para pensar sobre isso, e muitas delas se juntaram à sociedade
psicanalítica. Ele veio de uma origem bastante comum e estudou na Universidade de Londres
– formação como Médico. Ele não fazia parte da intelectualidade de Oxford e Cambridge;
mas ele conseguiu obter a nata da inteligência britânica interessada pela psicanálise - pelo
menos a inteligência progressista. Muitos deles estavam vinculados a bolsas de estudo na
Universidade de Cambridge e eram parte de um grupo de elite chamado "Apóstolos". Muitos
deles também faziam parte do grupo Bloomsbury em Londres em 1900, incluindo Virginia
Woolf, Roger Fry. Lytton Strachey e outros. E todos estavam interessados na psicanálise,
alguns diretamente, alguns indiretamente via Ernest Jones. O irmão de Virginia Woolf,
Adrian Stephen tornou-se um psicanalista, com sua esposa; e o irmão de Lytton Strachey,
James Strachey, também se tornou psicanalista. Por intermédio de Jones, a psicanálise estava
ligada aos mais altos níveis da vida intelectual britânica. Aparentemente Bertrand Russell leu
Freud enquanto estava na prisão durante a Primeira Guerra Mundial, quando ele era um
objetor de consciência [objetor de consciência é uma pessoa que por razões de consciência se
recusa a servir às forças armadas- Fonte: Google translator].
James Strachey, que começou como jornalista, e sua esposa, a artista Alix, se
casaram em 1923 e foram passar a lua de mel em Viena, onde ambos se analisaram com
Freud (ao mesmo tempo). Freud disse a Alix Strachey - que era uma depressiva (e acho que
anoréxica) - para fazer uma análise com seu colega em Berlim, Karl Abraham, especialista em
transtorno maníaco-depressivo. Ela estava em Berlim em 1924-1925, exatamente na época em
que Melanie Klein estava em análise com Karl Abraham. Alix e Melanie se tornaram amigas,
e Alix ficou impressionada de uma maneira divertida com a extravagância de 'die Klein' e
escrevia para seu marido em Londres regularmente sobre os analistas em Berlim, incluindo
Klein, que realmente foi a que mais impressionou porque ela entendia as crianças (ver Meisel
e Kendrick, 1986).
277

As altas classes inglesas tinham tido terríveis experiências de infância, com


separações maciças, etc., e a compreensão de Klein deve ter sido muito inspiradora para Alix,
seu marido James e para outros em Londres. E assim, Melanie Klein foi adotada pela British
Society. Originalmente uma série de 6 palestras em 1926, e depois um convite oficial de Jones
para vir a Londres, especificamente para analisar seus filhos (mais tarde, ele acrescentou sua
esposa à lista de pacientes de Klein).
Penso que Jones aceitou as mulheres em igualdade de condições, e na década de
1920, a Sociedade britânica tinha quase 1/3 de membros do sexo feminino. Mas imagino que
a reputação de Klein através dos Strachey fez Klein parecer uma outra ‗captura‘ de mente
notável para sua Sociedade. Isto também deu à sua Sociedade uma nova originalidade. Jones,
como eu disse, não era original em seu pensamento, e nem havia muitas pessoas em Londres
que fossem originais; Edward Glover fez algumas especulações interessantes, mas depois
discordou da Sociedade e de Klein e renunciou à Sociedade em 1944. Na década de 1920,
Klein estava fazendo novos avanços e decidiu explorar sua própria originalidade. Acho que
isso é o que deve ter tido apelo para Jones. Isso deu à sociedade britânica uma qualidade
distinta. Eu mencionei que Jones era um não-conformista (um termo para as denominações
religiosas comuns no País de Gales), mas em espírito ele talvez sempre tivesse um desejo
escondido de rivalizar com Freud - para sair da sombra. Quando, a partir de 1927, surgiu a
rivalidade entre Klein e Anna Freud, pode-se imaginar se elas exerceram entre elas uma
rivalidade entre Freud e Jones, de uma forma deslocada - bem, isso é apenas especulação.
Penso que o interesse de Jones em Klein estava genuinamente no
desenvolvimento profissional da psicanálise, e não era um interesse por ela como mulher.
Quando ela chegou a Londres, Jones estava então chegando aos 50 anos de idade, e ele estava
convencionalmente casado, então é provável que sua vida romântica anterior estivesse
começando a desaparecer.

8. Há algo mais que o sr. gostaria de considerar sobre Ernest Jones e que não
abordamos nessa entrevista?

Uma das coisas notáveis sobre Jones é que, mesmo com todo o trabalho exaustivo
que ele fez para a psicanálise, ele tinha tempo para outros interesses. Ele escreveu um artigo
(1931) sobre Paul Morphy (1837-1884), que era um prodígio de xadrez americano e um
campeão informal do mundo. O raciocínio de Jones pode parecer simplista agora, mas era
típico do pensamento psicanalítico nos primórdios; A ideia era que Morphy gostava de dar
278

xeque-mate em seu oponente por trás, o que para Jones indicava as tendências homossexuais
excessivas de Morphy. O ponto é que Jones deve ter sido ele mesmo razoavelmente
experiente e competente no xadrez.
Além disso, Jones escreveu um livro didático sobre patinação no gelo!
Obrigado pela oportunidade de contribuir com o seu projeto histórico com meus
pensamentos bastante aleatórios. Jones era um homem formidável, e o movimento
psicanalítico inicial não teria sido o mesmo, e provavelmente não seria tão influente, sem ele.
Ele era, ao mesmo tempo, um homem com falhas, mas quem de nós não tem.

Referências 596

Gay, Peter (1988) Freud: A Life for our Time. London: Dent.
Jones, E, (1924) (ed,) Social Aspects of Psychoanalysis London: Williams and Norgate.
Jones, E. (1925) Mother-right and the sexual ignorance of savages. International Journal of
Psychoanalysis 6: 109-130. Reprinted in Ernest Jones (1951) Essays in Applied
Psychoanalysis. London: Hogarth.
Jones, E. (1926) The Origin and Structure of the Super-Ego. Int. J. Psycho-Anal., 7:303-311.
Jones, E. (1931) The problem of Paul Morphy – A contribution to the psycho-analysis of chess.
International Journal of Psychoanalysis 12: 1-23.
Jones, E. (1935) Early female sexuality. International Journal of Psychoanalysis 16:263-273.
Makari, G. (2008) Revolution in Mind: The Creation of Psychoanalysis. London: Duckworth
Meisel, P. & Kendrick, W. (1986). Bloomsbury/Freud: The Letters of James and Alix
Strachey. 1924-1925. London: Chatto & Windus.
Riviere, J. (1936) On the genesis of psychical conflict in earliest infancy. International
Journal of Psychoanalysis 17: 395-422
Sulloway, F.J. (1979) Freud. Biologist of the Mind. Beyond the Psychoanalytic Legend.
London: Burnett Books.
Waelder, R. (1937). The problem of the genesis of psychical conflict in earliest infancy.
International Journal of Psychoanalysis 18: 406-473.

596
Referências enviadas pelo autor, ao final das respostas às perguntas. (A entrevista foi
enviada por email)
279

Entrevista com Dr Hinshelwood - original em inglês:

1.How important is Ernest Jones?

My impression, as that of many people, is that Ernest Jones (1879-1958) was very
important in the history of psychoanalysis, especially in Britain but also important for the
international movement. He came from a non-conformist background in Wales, and when he
discovered psychoanalysis (around 1905), it was also a non-conforming subject. At the same
time, he was extremely loyal to Freud, so loyal he appears to me to have been extremely
competitive to become Freud‘s most active and effective supporter.
Jones was important, however, not for his theoretical or clinical contributions, but
for his organisational, and ‗political‘ work. As you know, Jones was a core member of the
‗secret ring‘, Freud‘s inner circle of collaborators, and may have been the instigator of it in
1911. This was a secret group that formed to protect Freud, and his ideas, from dissenters
such as Alfred Adler, and later Carl Jung. It was a powerful group of the most loyal: Sandor
Ferenczi, Otto Rank, Hans Sachs, Karl Abraham and a little later, Max Eitingon. Jones was
President of the International Psychoanalytical Association for an inteim period, 1920- 1925,
in the disorganised period after the First world war; and was also President# between 1934
and 1951; in addition, he founded the International Journal of Psychoanalysis in 1920, and
edited it until 1939.
Beyond this organisational flare, Jones greatest achievement was his three-volume
biography of Freud, written from his personal experience of knowing the closest details of
Freud‘s professional life, and even his death in England; as well as having access to the entire
archive of Freud‘s life, many of those documents still not freely accessible. The biography is
personal and most valuable for that, but other biographies have since been written which are
less idealising of Freud, for instance Frank Sulloway (1979 and Peter Gay (1988), and many
that capture Freud in his historical and social context, e.g. George Makari (2008).
In Britain, Jones was the most important of the founding generation of
psychoanalysts in Britain, and led the profession for nearly 40 years until he suddenly retired
to the country in 1944 at the age of 65. No-one else compares to his organisational
achievements in Britain. One example was Jones long battle with the British Medical
Association in 1926-1927, where many formidable medical men opposed psychoanalysis as a
quack treatment. It was a battle that Jones won against superior forces.
280

In my view Jones was a very important contributor to the stability and


development of psychoanalysis as a social movement, even though his professional and
academic writing was very limited compared to others.

2.In Brazil Ernest Jones is known mainly as the "Freud‟s biographer ". How is
Jones known in England?

Yes, the biography is Jones‘ most important written contribution. He really knew
Freud, and all of the significant psychoanalysts and psychiatrists of his time, in Britain,
Europe and America.
I think it is often the case that a contributor to a field of academic work, gets
forgotten for a while and is then ‗re-discovered‘ later on. It is necessary that there should be a
well-researched biography of Jones (perhaps you will do it), that acknowledges his
organisational as well as his written work.

3.What are the possible reasons for Ernest Jones's "invisibility"? (Or do you
believe that he is „invisible‟ only in Brazil?) What are your guesses/your thoughts about it?

In Britain, Jones is not ‗invisible‘. The main meeting room in the building of the
British Psychoanalytical Society is called ‗The Ernest Jones Room‘. He is regarded as the
founder of psychoanalysis in my country. The archives of the British Society hold a large
amount of Jones‘ documents; and the library of the Society was founded on Jones‘ own books
I will come to his writings in a later question, but it is true that a person‘s
reputation after their death increasingly rests on what they published, and Jones never
founded a new direction of any kind in psychoanalysis. He was always too anxious to be
loyal to everything that Freud said (although his character was more complicated than just a
disciple – I will come to that later).

4.Jones was a controversial personality. Could we think that the mistrust that
hangs over Jones is partly one of the reasons for his "invisibility" in our days?

He was indeed a controversial character, though this never really hindered him in
what he wanted to do, despite the trouble he got into. It seems he did not hesitate too much to
pursue what he wanted and believed in. As you know, this was true of his romantic relations
281

with women as well as his pursuit of his intellectual convictions. As I said earlier he aimed to
be as loyal to Freud as anyone, as well as speaking what he thought – including, at one
moment telling Freud that Anna Freud had never had her Oedipus complex analysed!
The biggest controversy that led to mistrust in him was that he seemed to be a
womaniser, and it may have been that privately he thought that the libidinal theory of Freud
justified a more overt sexuality. You know, one joke is to call him Erogenous Jones.
He was arrested on two occasions for speaking to young girls about sexual
matters. He writes about this in his autobiography (Free Associations); seemingly puzzled,
affronted and amused by the stuffy social attitudes about sexuality before the First World
War. It was because of these arrests that Jones left the country in 1908 for 5 years, living in
Toronto, Canada (during which time he helped to found the American Psychoanalytical
Association).
Phyllis Grosskurth, who was Klein‘s biographer, said that in Toronto Jones‘
reputation now is that he was deceitful and untrustworthy in general, but I did not get any
information on what that was. So I suspect it was just his relations with women, including
some female patient‘s. In Canada he lived openly with his mistress, Loe Kann, who was a
drug addict (not so uncommon in the 19th century), and previously a patient of Jones. When
they returned from Canada in 1913, Jones took her to Freud for an analysis. It seems the main
result of the analysis was that Freud convinced her to break the relationship with Jones.
Perhaps on the basis of what Freud learned from her, Freud was anxious Jones would turn his
attention to Anna Freud.
As I say the mistrust of Jones was never a serious obstacle to his career, and in
Britain psychoanalysis owes a strong debt to Jones, but it seems true that outside Britain,
Jones has been dismissed as inconsequential. I have never heard that his biography of Freud
was distrusted, although it is certainly influenced by Jones‘ idealisation of Freud, and perhaps
of Jones‘ idealisation of his own relation to Freud.

5.Although very little known (at least in Brazil), Jones has an extensive work; he
was a prolific writer. About this, I would like to ask you:
5a) How would you describe Jones's work? (Do you know his work? If so, how
would you classify it?)

Yes, he was very prolific, very clear, and wrote strongly in defence of
psychoanalysis in the early days. He did not just agree with Freud, but could make a very
282

useful analysis of issues. For instance, he wrote a paper which is still relevant today on the
super-ego concept, in 1925, two years after Freud introduced it. For instance, he asks the
interesting question about the super-ego as the heir to the Oedipus complex: If the boy gives
up his mother as the loved object, why is it the father the boy introjects as the super-ego?

5b) What stands out in Jones' work?

At around this time (in the 1920s) he also wrote about Freud‘s anthropological
thesis, Totem and Taboo. Anthropologists in Britain (Bronsislav Malinovski, Elliott Smith,
W.H,R. Rivers were critical of Freud‘s ‗phylogenetic fantasy‘ about tribal taboos. Jones,
impressively, in my view, took the trouble to consult the major anthropological texts of this
time (such as Westermarck, and Frazer) and wrote an extended rebuttal of Malinovski (Jones
1925). The standard of debate by Jones is very competent for the time. Jones was interested
in social science and as early as `1924 had organised lectures relating psychoanalysis to
sociology (published as Social Aspects of Psychoanalysis, and edited by Jones).
Later in the 1930s, Jones was worried about psychoanalytic theories that diverged
between London and Vienna. He made a point of confronting these, and with (I think) Federn
in Vienna, he organised the Exchange Lectures, and in fact gave the first on ‗Female
sexusality‘ in Vienna in 1935; Joan Riviere gave the second on @The genesis of psychic
conflict in early infancy in Vienna on May 5 1936 (Frued‘s 80th birthday). And Robert
Waelder gave a response to Riviere when he lectured in London in November 1936. But the
series died out because of the Nazi Anschluss. These lectures were in effect the forerunners
of the Scientific Meetings of the Controversial Discussions in London (1943-1944) after the
Freud family had moved to London.

5c) Why is the work of Jones so little known (and little studied, little cited in
articles and works, etc)? What is your guess about it?

Jones was very good at writing about the important issues in psychoanalysis at a
particular historical moment. We live in a different historical period, and have different
issues we want to deal with. Jones, as I said, was not so interested in making new discoveries
or creating a new school of psychoanalysis, so he never left a group of followers in the way
that Ferenczi did, or Klein, or Kohut, etc. Jones‘ work was to create a healthy movement that
could survive and flourish.
283

As you know in the last years of Jones working career, the future of
psychoanalysis was very uncertain. Not only did the major figure, Freud himself, die in 1939,
but the many psychoanalytic societies in Europe disappeared as the Nazi‘s invaded and
extinguished the ‗Jewish science‘. Stalin had already crushed Russian psychoanalysis after
about 1925 or so. The only remains of psychoanalysis in Europe by 1940 were small
Societies in Sweden and Switzerland -plus the influential one it London of course. And as
you know Freud never thought that psychoanalysis is the US was significant. So there was a
lot of mourning for psychoanalysts to do, and a very great worry about its survival in Britain
around 1940-1941 when the Nazi‘s might have invaded Britain as well. Britain at that time
seemed to be responsible for the survival of psychoanalysis.
So my guess is that Jones was a very important influence at the time he was
active. He left no really original scientific contribution, but gave us the biography, and the
organisational shape and endurance of the psychoanalytic movement.

6.Do you believe that Jones lived “standing in Freud‟s shadow” or was he able to
show himself as himself (as an author, as a psychoanalyst)?

Well, everyone, in a sense is in Freud‘s shadow. As I have said, Jones took up a


particular position in that shadow. It did not attempt to create new and better theories but to
establish the movement in an organised and lasting manner. Personally I think Jones did
succeed in this task, and should be recognised as the leader of a resistance in the 1930-1940s
when psychoanalysis appeared to be so threatened. His biography is not only a work of
scholarship (it is significant scholarship) but it is a statement that Freud and psychoanalysis
will survive. So, Jones was overshadowed by Freud, and perhaps he should be brought out of
the shadows, and celebrated for his major organisational capacity.

7.Jones has "opened the door" to Melanie Klein and prevented her from being
excluded from the British Society. How do you describe the Jones-Klein relationship? (That
is: Jones' thinking and similarities with Klein's thinking / the personal relationship between
both / the influences of one over the other, etc.)

Yes, Jones was brilliant at creating a serious interest in psychoanalysis, and in


getting the best minds to think about it, and many of them to join the psychoanalytical society.
He came from a fairly ordinary background, and was educated in London University – a
284

training as a Doctor. He was not a part of the oxford and Cambridge intelligentsia; but he
succeeded in getting the cream of the British intelligentsia interested in psychoanalysis – at
least the forward-looking intelligentsia. Many of these were connected with scholarship in
Cambridge University and part of an elite group there called the ‗Apostles‘. Many of these
were also part of the Bloomsbury group in London around 1900, including Virginia Woolf,
Roger Fry. Lytton Strachey and others. And they were all interested in psychoanalysis, some
directly, some indirectly via Ernest Jones. Virginia Woolf‘s brother, Adrian Stephen became
a psychoanalyst, with his wife; and Lytton Strachey‘s brother, James Strachey, also became a
psychoanalyst. Through Jones, psychoanalysis was connected to the highest levels of British
intellectual life. Apparently Bertrand Russell reading Freud while in jail during the First
World War, when he was a conscientious objector,.
James Strachey, starting as a Journalist, and his artist wife, Alix, were married in
1923 and went for their honeymoon to Vienna where they both had an analysis with Freud (at
the same time). Freud told Alix Strachey, who was a depressive (and I think anorexic) to go
for an analysis with his co-worker in Berlin, Karl Abraham, who was a specialist in manic-
depressive disorder. She was in Berlin in 1924-1925, exactly at the time when Melanie Klein
was in analysis with Karl Abraham. Alix and Melanie became friends, and Alix was
impressed in an amused way with the flanbouyant ‗die Klein‘, and wrote to her husband back
in London regularly about the analysts in Berlin, including Klein, who did indeed impress the
most, and really because she understood children (see Meisel and Kendrick 1986).
The English upper classes all had terrible childhood experiences, with massive
separations, etc., and Klein‘s understanding must have been very refreshing for Alix, her
husband James, and others in London. And so, Melanie Klein was adopted by the British
Society. Originally a series of 6 lectures in 1926, and then an official invitation from Jones to
come to London, specifically to analyse his children (later he added his wife to Klein‘s list of
patients).
I think that Jones was very accepting of women on equal terms, and in the 1920s,
the British Society had nearly 1/3rd female members. But I imagine Klein‘s reputation via
the Strachey‘ made Klein seem another capture of a remarkable mind for his Society. It also
gave his Society a new originality. Jones, as I say, was not original in his thinking, and nor
were there many people in London who were original; Edward Glover did make some
interesting speculations, but later disagreed with the Society and with Klein, and resigned
from the Society in 1944. In the 1920‘s Klein was making new advances, and determined to
exploit her own originality. I think this is what must have appealed to Jones. It gave the
285

British Society a distinctive quality. I mentioned that Jones was a non-conformist (a term for
the common religious denominations in Wales), but in spirit he perhaps always had a hidden
wish to rival Freud – to come out from the shadow. When from 1927 7 the rivalry between
Klein and Anna Freud broke out, one can wonder if they played out between them a rivalry
between Freud and Jones, in a displaced form – well that is only speculation.
I think genuinely Jones‘ interest in Klein was in the professional development of
psychoanalysis, and was not an interest in her as a woman. When she came to London, Jones
was by then getting on for 50 years of age, and he was conventionally married by then, so it is
likely that his romantic earlier life had begun to fade away.

8.Is there anything else you would like to consider about Ernest Jones that we did
not address in this interview?

One of the remarkable things about Jones is that as well as all the exhaustive work
he did for psychoanalysis, he had time for other interests. He wrote a paper (1931) on Paul
Morphy (1837-1884) who was an American chess prodigy, and informal world champion.
Jones‘ argument may seem simplistic now but was typical of psychoanalytic thinking in the
early days; the idea was that Morphy liked to checkmate his opponent from behind, which to
Jones indicated Morphy‘s excessive homosexual tendencies. The point is that Jones must
himself have been a reasonably knowledgeable and competent at chess.
In addition, Jones wrote a textbook on ice-skating!
Thank you for the opportunity to contribute my rather random thoughts to your
historical project. Jones was a formidable man, and the early psychoanalytic movement
would not have been the same, and probably not as influential, without him. He was, at the
same time, a man with flaws, but don‘t we all have them.

References597

Gay, Peter (1988) Freud: A Life for our Time. London: Dent.
Jones, E, (1924) (ed,) Social Aspects of Psychoanalysis London: Williams and Norgate.

597
Referências enviadas pelo autor, ao final das respostas às perguntas. (A entrevista foi enviada por email)
286

Jones, E. (1925) Mother-right and the sexual ignorance of savages. International Journal of
Psychoanalysis 6: 109-130. Reprinted in Ernest Jones (1951) Essays in Applied
Psychoanalysis. London: Hogarth.
Jones, E. (1926) The Origin and Structure of the Super-Ego. Int. J. Psycho-Anal., 7:303-311.
Jones, E. (1931) The problem of Paul Morphy – A contribution to the psycho-analysis of
chess. International Journal of Psychoanalysis 12: 1-23.
Jones, E. (1935) Early female sexuality. International Journal of Psychoanalysis 16:263-273.
Makari, G. (2008) Revolution in Mind: The Creation of Psychoanalysis. London: Duckworth
Meisel, P. & Kendrick, W. (1986). Bloomsbury/Freud: The Letters of James and Alix
Strachey. 1924-1925. London: Chatto & Windus.
Riviere, J. (1936) On the genesis of psychical conflict in earliest infancy. International
Journal of Psychoanalysis 17: 395-422
Sulloway, F.J. (1979) Freud. Biologist of the Mind. Beyond the Psychoanalytic Legend.
London: Burnett Books.
Waelder, R. (1937). The problem of the genesis of psychical conflict in earliest infancy.
International Journal of Psychoanalysis 18: 406-473.

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