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CONTRIBUIÇÕES DE RUDOLF ALLERS PARA A

FUNDAMENTAÇÃO ANTROPOLÓGICA DE
PSICOTERAPIA

DR. MARTÍN ECHAVARRIA

Tradução Robert Barbosa Batista

Espíritu LXII (2013) ∙ nº 146 ∙ 419-431


l.Dados biográficos

Este ano marca o 130º aniversário do nascimento e 50º da morte do psiquiatra e filósofo
austríaco Rudolf Allers (1883-1963). Esse autor, que na época se tornou conhecido do
público de língua espanhola através do livro do filósofo francês Louis Jugnet, Rudolf
Allers ou Anti-Freud,1 é hoje quase totalmente desconhecido do grande público,
incluindo psicólogos e psiquiatras. Não obstante, seus próprios méritos e seu lugar na
história da psicologia e da psicoterapia fazem valer a pena relembrar algumas de suas
ideias neste duplo aniversário. Seu ex-discípulo Viktor Frankl disse dele, acreditamos
precisamente, que "ele antecipou a psicoterapia do futuro".2
Allers teve o mérito de ser o principal representante de uma visão de mundo católica na
era clássica da psicoterapia. Ele nasceu em Viena com o sobrenome Abeles, que mudou
em 1907 para Allers.3 Ele estudou medicina na Universidade de Viena, onde assistiu aos
seminários ministrados por Sigmund Freud. Além de se especializar em neurologia,
psiquiatria e obter o doutorado em medicina, Allers fez o doutorado em Filosofia pela
Università Cattolica del Sacro Cuore, em Milão, em 1934. Foi assistente de Kraepelin e
professor nas Universidades de Praga e Munique e, posteriormente, a partir de 1938,
nos Estados Unidos, primeiro na Universidade Católica da América e depois, a partir de
1948, na Universidade de Georgetown. Como psicoterapeuta, Allers foi formado na
escola de Alfred Adler, de quem mais tarde se separou por razões filosóficas. Allers
também foi um dos professores de Viktor Frankl, que frequentemente o cita em suas
obras. Foi também amigo de Edith Stein e do Pe. Agostino Gemelli, e mentor de Hans
Urs von Balthasar, além de conhecer pessoalmente ou por correspondência, importantes
representantes da cultura católica do século XX, como Viktor E. von Gebsattel, Romano

1 L. Jugnet. (1975). Rudolf Allers o el Anti-Freud. Madrid: Speiro.


2 V. E. Frankl. (1994). Rudolf Allers como filósofo y psiquiatra, Discurso
conmemorativo pronunciado el 24 de marzo de 1964 en la 14ª Reunión ordinaria de
la Sociedad Austríaca de Médicos para la Psicoterapia. Logoterapia y análisis existencial.
Barcelona: Herder, 239.
3 Não sabemos o motivo exato da mudança de sobrenome. Abeles é um sobrenome judeu, apesar do

que Allers nega em sua correspondência com Louis Jugnet que ele seja um convertido e afirma que já,
pelo menos, seus pais eram católicos: “Primeiro uma nota de história pessoal. Não sei de onde se
originou a ideia de que sou um convertido ao catolicismo. É apenas um erro. Eu nasci de um casamento
católico e fui educado na doutrina como qualquer criança ou jovem na Áustria. Se há conversão, é
apenas no sentido de que a fé só passou a ser um fator decisivo em minha vida mais tarde". (29 de
março de 1949). Sua esposa Carola (“Lola”) Meitner se converteu do Judaísmo ao Catolicismo. No Livro
do Memorial das Vítimas do Nacional Socialismo da Universidade de Viena em 1938, está escrito:
“Rudolf ALLERS, nee ABELES (nascido em 13 de janeiro de 1883 em Viena, morreu em 14 de dezembro
de 1963 em Hyattsville / Maryland) era PD. Doutorando em Psiquiatria na Faculdade de Medicina da
Universidade de Viena. Foi perseguido em tempos de nazismo por ser judeu perdeu o cargo e foi
expulso da universidade em 22 de abril de 1938. Ele emigrou para os EUA ”; cf.http:
//gedenkbuch.univie.ac.at/index.php ID = 435 & no_cache = 1 & G = 2 & person_single_id = 32736 &
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[11/06/2013].
Guardini, Erich Przywara, Gabriel Marcel e Josef Pieper. Sua orientação filosófica é
claramente cristã, embora sofra de um certo ecletismo.
Combinado de uma forte influência da fenomenologia, especialmente de Husserl e
Scheler, com ideias vindas de Santo Tomás, Santo Agostinho e Santo Anselmo. No
campo da psicologia, Allers escreveu especialmente sobre psicoterapia e formação do
caráter. Suas obras incluem Das Werden der sittlichen Person. Wesen und Erziehung
des Charakters (La evolución de la persona moral. Naturaleza y educación del
carácter),4 The Successful Error (El error exitoso),5 Sexualpädago-gik: Grundlagen und
Grundlinien (Pedagogía sexual: Fundamentos y líneas básicas),6 etc. Postumamente, foi
publicado o livro Abnorme Welten,7 no qual Allers faz uma abordagem fenomenológica
dos diferentes tipos de experiências anormais.

II. Allers diante de Freud e Adler

Apesar de ter sido aluno de Freud, Allers optou pela escola de Alfred Adler, a
Psicologia Individual (Individualpsychologie), que por vários motivos parecia mais
aberta a uma concepção integral do ser humano. Com efeito, Adler criticou a concepção
mecanicista do psiquismo, afirmou a liberdade do ser humano e a importância do fator
teleológico para a compreensão de seu comportamento, idéias todas em flagrante
contradição com as teses centrais do sistema freudiano. Quanto aos caracteres
neuróticos, Adler originou-se de uma atitude egocêntrica, e não de experiências de
infância de natureza sexual. O neurótico seria uma pessoa que, desde a infância, trilhou
um caminho de egocentrismo e busca pelo sentimento de ser importante, mas que, ao
mesmo tempo, possuiria profundos sentimentos de insuficiência e impotência, que
Adler chamou de "sentimentos de inferioridade". Por causa desse complexo, o neurótico
estaria sempre se comparando com os outros, tentando sair da situação de "estar por
baixo" para chegar a "estar por cima". Sentindo-se incapaz de atacar diretamente a
superioridade desejada, o neurótico a buscaria por caminhos oblíquos e indiretos, como
a exploração de suas próprias fraquezas orgânicas. A passagem do caráter egocêntrico-
inseguro, que Adler chama de "caráter neurótico", para o surgimento dos sintomas
neuróticos ocorreria quando a pessoa fosse submetida a uma situação que provoca um
"choque" (equivalente ao trauma da escola francesa e da psicanálise). Esse choque
estaria associado ao enfrentamento de uma das três grandes tarefas da vida: matrimônio,
trabalho e amizade. O neurótico temeria essas três situações e abordá-las produziria uma
crise que ativaria seu sistema neurótico defensivo. Todo ser humano se depara ao longo
da vida com situações difíceis, incluindo traumáticas, mas no neurótico se produzem um

4 Publicado en español como R. Allers (1957). Naturaleza y Educación del carácter.


Barcelona: Labor.
Publicado em português como Psicologia do caráter (Rio, Agir, 1951). (N.T.)
5 R. Allers. (1958). El psicoanálisis de Freud. Buenos Aires: Troquel.

Freud, estudo crítico da psicanálise (Porto, Editora Tavares Martins, 1958). (N.T)
6 R.Allers. (1965). Pedagogía sexual. Fundamentos y líneas principales analítico-

existenciales. Barcelona: Miracle.


7 R.Allers. (2008). Abnorme Welten. Ein phänomenologischer Versuch zur Psychiatrie.

Weinheim: Beltz.
efeito desproporcional e duradouro. Por isso, a terapia adleriana não se concentra na
recuperação das memórias inconscientes da infância, mas na mudança de atitude perante
a vida, ou seja, na assunção de uma atitude de responsabilidade e no desenvolvimento
do “sentimento de comunidade”, além de uma autoestima saudável.
É normal que essas ideias de Adler atraíssem mais Allers do que as concepções
reducionistas de Freud, também criticadas por Adler. Segundo esse autor, a teoria de
Freud seria a expressão em forma de uma teoria da maneira egocêntrica de pensar do
neurótico, o que a confirmaria em seu estilo de vida patogênico. O complexo de Édipo
seria típico da criança mimada e já revelaria por si mesmo a presença de uma inclinação
neurótica. A sexualidade, por sua vez, seria parte da busca do neurótico para se sentir
importante. Não seria de seu interesse como tal, mas como um meio de auto-afirmação.
Por isso, nesse campo, o neurótico buscaria sentir-se viril, e isso independente do sexo,
já que o neurótico de nossa cultura identificaria masculinidade com superioridade. É por
isso que Adler chama a sexualidade de "parábola do plano de vida". Allers acrescenta às
críticas de Adler, as suas: o pensamento de Freud seria insuficientemente fundamentado
cientificamente, seria cheio de paralogismos e contradições, e também conteria um viés
anti-religioso e anti-moral. Por isso, Allers se opôs à proposta de autores como Roland
Dalbiez e Jacques Maritain de compor a psicanálise com a filosofia tomista.8 A crítica
radical de Allers à psicanálise, mais frequente hoje, custou-lhe em seu tempo descrédito
em muitos círculos e certo ostracismo, embora Allers sempre tenha sido um autor
reconhecido e apreciado em seu meio científico. Por outro lado, Adler, autor de quem
sempre se sentiria próximo, não foi receptivo à tentativa allersiana de fundamentar a
psicoterapia antropologicamente.9 Foi isso que levou à separação entre os dois autores e
a razão pela qual o jovem Viktor Frankl, discípulo de Allers, também foi expulso por
Adler da Associação de Psicologia Individual. Posteriormente, Allers sentiu certa
simpatia, embora com distanciamento crítico, pela psicoterapia existencial, e assumiu
uma postura crítica em relação ao behaviorismo, como outra forma de reducionismo.10

III. Uma psicologia antropológica

A proposta de Allers é desenvolver o que ele chama de "psicologia antropológica" ou


também "das alturas" e não apenas "de baixo", ou seja, reducionista. Allers argumenta

8 Cf. R. Dalbiez, (1987). El método psicoanalítico y la doctrina freudiana. Buenos


Aires: Club de Lectores; J. Maritain, (1943). Cuatro ensayos sobre el espíritu en su
condición carnal. Buenos Aires: Club de Lectores. Cf. también Echavarría, M. F.
(2001). El “inconsciente espiritual” y la “supraconsciencia del espíritu” según Jacques
Maritain”. Sapientia, 56, 175-189.
9 As vezes que Adler se refere a Allers, ele o faz em termos educados, mas críticos; por exemplo, na

seguinte passagem de uma carta de Adler a Josef Pieper: “Conheço de perto os autores que você
freqüentemente cita e menciona pelo nome, Allers, Wexberg e também Kronfeld. Da mesma forma para
Künkel. Eles são, sem dúvida, cabeças notáveis. No entanto, nem eu nem meus colaboradores
conseguimos encontrar em seus trabalhos uma única ideia que pudesse ser de aplicação prática para a
teoria básica da Psicologia Individual. "
10 Para um desenvolvimento mais completo, cf. M. F. Echavarría (2013). Corrientes de

psicología contemporánea. Barcelona: Scire, 153-207.


que tanto a psicologia, a caracterologia (o que hoje chamaríamos de “psicologia da
personalidade”) e, finalmente, a psicoterapia precisam estar baseadas em uma
concepção verdadeira sobre o que o homem é (antropologia) e o que o homem deve ser
(ético). Estes, por sua vez, se apóiam em uma certa metafísica e até mesmo em uma
concepção religiosa, porque Deus, o Ser supremo e o Bem perfeito, é o fundamento de
todas as coisas. No que diz respeito à antropologia, Allers aspirou a desenvolver “um
tratado que consiga para os nossos tempos o que o Tratado do homem de Santo Tomás
fez no passado”, tratado que, na linha da nova antropologia filosófica (Scheler,
Plessner) sintetizou os princípios todo o conhecimento sobre o homem contribuído pela
ciência.11 Com relação à caracterologia, Allers diz:

O fato de que toda tentativa de refletir sobre o caráter humano é direcionada


para tais problemas [ou seja, filosófico], já nos indica a escassa consistência
que deveria ter uma caracterologia entendida como disciplina encerrada em
seus próprios limites, e em que medida ela exige ser completada, ainda mais
adequadamente, para se fundamentar e encontrar justificativa em outros
domínios conceituais. Se a caracterologia teórica deseja fazer a mais elementar
justiça às bases sobre as quais repousa seu objeto, ela não pode nem mesmo ser
concebida se não se fundamentar na teoria do valor e, em última instância, na
ontologia e na metafísica. Conseqüentemente, uma doutrina prática de caráter
sempre precisa se basear na ética como uma ciência de realização de valores. E
embora a caracterologia deva ser deixada de fora das avaliações, ela não pode,
no entanto, existir sem referência aos valores. E como tudo o que se relaciona
com o valor culmina no summum bonum e só nele pode ter origem, verifica-se
que todos os problemas de qualquer caracterologia devem estar profundamente
ligados ao religioso. Uma caracterologia naturalística é impossível em si
mesma.12

No campo da psicoterapia, Allers considera que a concepção adleriana segundo a qual a


origem do caráter neurótico é uma atitude egocêntrica, acarreta a necessidade de se
aprofundar uma concepção antropológico-moral da psicoterapia. Allers diz isso nestas
palavras:

O sujeito é responsável, de alguma forma, por sua condição? Uma psicologia


estritamente médica pode ir mais longe e pode não precisar encontrar uma resposta para
levar o tratamento a bom fim. Mas uma psicologia que contemple a totalidade da
personalidade - uma psicologia que poderíamos chamar de "antropológica" - deve estar
atenta a esse problema. Pessoalmente, estou convencido de que nunca seremos capazes

11 R. Allers (1950). Ethics and Anthropology. The New Scholasticism 24/3, 1950,
237-262; 261.
Este artigo se encontra disponível também em Allers, R. (2009). Work and Play. Collected papers on the
Philosophy of Psychology (1938-1963). (N.T.)
12 R. Allers, Naturaleza y educación del carácter, 57.
de formar uma opinião exata sobre a natureza dos distúrbios neuróticos se quisermos
evitar essa questão, limitando-nos a considerações psicológicas. O problema da
responsabilidade é claramente moral. Mas não se pode compreender a estrutura do
comportamento, seja ela qual for, sem considerar os objetivos perseguidos pelo sujeito,
os valores que ele deseja alcançar com seus atos, ou seja, a posição que assume perante
as leis e os fatos morais.13

IV. Educação de caráter

Para Allers, o caráter é entendido em relação aos valores. O caráter se desenvolve


corretamente quando a ordem subjetiva de preferência de valores está de acordo com a
ordem objetiva de valores. Os valores constituem uma ordem hierárquica no topo da
qual está o Summum Bonum, que é ao mesmo tempo o máximo na escala do ser. O
caráter educativo implica o reconhecimento da verdade das coisas, verdade que em sua
integralidade também implica revelação:

Somente à luz da Verdade Eterna podemos ver as coisas em sua ordem. [...]
Mas precisamente isto: descobrir a tal posição de todo Ser, valor e ordenar
nosso comportamento de acordo com essa descoberta, aqui está o objetivo de
toda esucação. Uma visão de valores só se abre diante do olhar que incide
sobre todos eles; isso, porém, culmina na direção do Summum Bonum e é
baseado Nele. Agora, descobrindo o Pai, só o Filho nos ensinou. Portanto, só
há uma educação Nele e para Ele: paidagogia en to Christo - eis ton Christón.14

Seguindo Adler, assim como Santo Tomás, Allers considera o egocentrismo um desvio
da tendência natural à perfeição. É necessário, portanto, salvar ao mesmo tempo o
desejo natural de perfeição com o desenvolvimento do que ele prefere chamar, não de
"sentimento de comunidade" (como fez Adler), mas de "vontade de comunidade": "A
educação tem que resolver esta difícil tarefa: encontrar o caminho entre todas aquelas
medidas que podem comprometer a experiência do próprio valor e aquelas que tendem a
estabelecer uma absolutização dessa mesma pessoa”.15 Esta aparente antinomia seria
resolvida na comunidade da Igreja:

13 R. Allers (1937). "Aridité sintoma et aridité stade", em Études Carmélitaines, 22, 132-153; 140. Para
um desenvolvimento mais amplo do tema do fundamento antropológico da psicologia clínica, cf. M. F.
Echavarría (2013). Personalidad y responsabilidad : La clínica de la personalidad desde una perspectiva
antropológica. A. Polaino-Lorente y G. Pérez-Rojo (2013). Antropología y psicología clínica. Madrid : CEU
Ediciones, 53-75.
O artigo "Aridité sintoma et aridité stade" se encontra traduzido:
https://drive.google.com/file/d/17q7Lj_Xf0jxH_r4PB_DKIYL3NAg82ifl/view?usp=drivesdk (N.T)
14 R. Allers, Pedagogía sexual y relaciones humanas. Barcelona : Miracle, 376.
15 R. Allers, Naturaleza y educación del carácter, 213.
Este paradoxo e antinomia (não maior, aliás, que as outras divergências
antinômicas da vida humana) encontra sua expressão, ou melhor, seu protótipo
na sobrevivência de Cristo na Igreja, como comunidade de santos, podendo
também viver na pessoa humana: “Eu não vivo, mas Cristo vive em mim”.
Assim, o ideal de caráter que só pode satisfazer plenamente as condições da
existência humana e da natureza - não importa o quanto varie em particular, de
acordo com a constituição individual e a estrutura cultural, nacional,
situacional - deve ser inscrito em o quadro de um modo de vida que reduz à
unidade as divergências polares do indivíduo e da comunidade, de uma pessoa
digna e de uma totalidade fundadora de valores, de finitude criativa e de
vocação para participar da vida divina. Nenhum esclarecimento adicional é
necessário para ver que todas essas demandas são cumpridas em uma vida
católica profunda e precisamente entendida. Assim como kαθολιkή não apenas
se estende por todas as culturas, povos e épocas, mas também abrange toda a
diversidade qualitativa das pessoas humanas individuais, também a vida
católica, uma vida segundo o princípio católico, pode satisfazer as divergências
de nosso ser, reduzindo-as para a unidade dos opostos. Não só a Igreja deve
poder viver Κατʹολου, acima de tudo, como de fato o faz, mas também cada um
de seus membros.16

V. Caráter neurótico e conflito metafísico

Como Adler, Allers considera que a base comum das diferentes formas de desvio de
caráter está em uma linha de comportamento egocêntrica, geralmente adotada desde a
infância. Teríamos aqui dois aspectos: o da atitude egocêntrica, que corresponde à
afetividade, e o aspecto cognitivo, a falta de objetividade com que se aborda o
conhecimento do mundo e a falsa opinião sobre si mesmo. Allers adota a concepção
adleriana das origens do personagem neurótico, mas a reinterpreta inserindo-a em um
referencial teórico antropológico. O complexo de inferioridade leva a uma angústia que
derivaria da falta de aceitação irrestrita da própria finitude e do lugar que, por natureza e
biografia, se deve ocupar na ordem das coisas, natural e sobrenatural. Essa atitude
geraria uma vaga angústia de fundo, que em situações de choque geraria o surgimento
de sintomas neuróticos:

Esse vago desconforto, essa angústia indefinida, que não é nem angústia, mas
antecipação de tal estado,17 toda essa inquietação, nem sempre são efeitos de
um pecado cometido ou apenas contemplado e depois esquecido porque a
vaidade não o tolera;18 Esses fenômenos são às vezes a manifestação oculta de

16 Ibidem, 213-214.
17 Mais tarde, Frankl falaria de "angústia expectante". Cf. V. E. Frankl (1964). Teoría
y terapia de las neurosis. Madrid: Gredos, 84ss.
18 Essa ideia é explicitamente formulada por outro psiquiatra católico vienense, Igor Caruso, no primeiro

estágio de seu desenvolvimento intelectual; cf. I. A. Caruso (1954). Análisis psíquico y síntesis existencial.
uma vida truncada, que não tem fundamentos sólidos e que se move em um
mundo mais ilusório do que real. Esse esvaziamento da vida, essa perda de
contato com a realidade pode se desenvolver sem que o comportamento externo
seja afetado. Mas às vezes, sob um choque repentino, após qualquer evento
(que, talvez, não tome a aparência de uma catástrofe senão em condições
particulares) essa vida desmorona.19

No fundo dos distúrbios neuróticos estaria, então, uma atitude inconsciente de falta de
aceitação da realidade, de "inautenticidade", uma espécie de autoengano ou "mentira
existencial", que impede viver a vida em profundidade. A pessoa apresentaria uma
espécie de rebelião oculta, não inteiramente clara para sua própria consciência, contra a
exigência de profundidade que a própria realidade apresenta. Por trás dessa atitude estaria,
de acordo com Allers, o vício da soberba:

Não é possível explicar aqui como essa atitude de rebelião interior, que o sujeito
geralmente não reconhece como tal, constitui um fator de importância central na
evolução das neuroses. O objeto da rebelião não é um acontecimento isolado, um
sofrimento, um conflito, mas o fato total de não ser mais que uma criatura,
limitada em seu poder, em sua existência, em seus direitos. Apesar dos milhares
ou milhões de anos que se passaram depois que a serpente impeliu os primeiros
homens à rebelião, as palavras do diabo não deixaram de ser ouvidas
furiosamente em nosso íntimo: eritis sicut Dii.20

Essa atitude, em sua raiz, dependeria do estado de natureza decaída. Portanto, seria um
perigo potencial para todo homem:

A neurose surge do exagero ocorrido na divergência -que existe em toda a vida


humana- da vontade de poder e da possibilidade de poder. Em outras palavras:
é resultado da situação puramente humana, visto que se constitui na natureza
decaída. Pode-se dizer também que, orientada para os mórbidos e pervertidos, é

Barcelona: Herder, 61: "Esse fato que chamamos de neurose ocorre exatamente quando uma culpa não
foi admitida, foi reprimida e produziu um sentimento de culpa difuso ou mesmo falsamente localizado."
Esta tese é uma reinterpretação (uma "transvalorização" diz Caruso) da opinião do próprio Freud,
segundo a qual o sintoma neurótico teria origens éticas, ou seja, nasceria do embate entre um desejo
moralmente inaceitável de consciência e defesa, que "não quer” ver esse defeito. Em sua evolução
posterior, no entanto, Caruso se afastou dessas teses, combinando uma psicanálise mais freudiana com
uma ideologia marxista.
19 R.Allers (1999). Reflexiones sobre la patología del conflicto. Andereggen, I. - Seligmann, Z. La

psicología ante la Gracia. Buenos Aires: EDUCA, 296.


Artigo traduzido em:
https://drive.google.com/file/d/1tkACrAVv8hMg4Rs1dvftWGFdoL2eG3f4/view?usp=drivesdk (N.T.)
20 R. Allers (1999). El amor y el instinto. Estudio psicológico. Andereggen, I. - Seligmann, Z. La psicología

ante la Gracia. Buenos Aires: EDUCA, 337.


consequência da rebelião da criatura contra sua finitude e impotência
naturais.21

Como se vê, dessa forma a neurose não é mais vista como uma simples "doença", mas
como um estado geral de desequilíbrio afetivo e psicossomático que tem uma raiz não
apenas psicológica, mas espiritual e que está relacionada à condição do ser humano. em
um estado de natureza decaída. Nem todo homem é necessariamente neurótico, mas
esse seria o terreno em que germinaria a "neurose" (que na realidade nada tem a ver
com um distúrbio dos "nervos"). Nem todo homem egocêntrico seria ipso facto, mas
sim aquele que, na ambiguidade das decisões nada tomadas, gera em si um vago estado
de angústia que predispõe ao surgimento desses sintomas. Onde Adler falava da falta de
enfrentamento das três grandes tarefas da vida (casamento, trabalho e amizade), Allers
distingue mais profundamente um “conflito metafísico”: “O caráter nervoso se
transforma em neurose manifesta desde a situação do indivíduo ameaça colocá-lo diante
do 'conflito metafísico'. Sob certas condições, esse conflito pode ser completamente
ignorado.22 Mais tarde, ele prefere chamar esse conflito "metafísico" simplesmente de
conflito "moral":

Em meu primeiro livro, eu disse que o neurótico sofre de um conflito metafísico.


Eu ainda acredito nisso. Mas também acredito que tal conflito necessariamente
assume a forma de um conflito moral, ou que um problema ontológico - como o
do lugar do homem e deste homem individual na ordem real - é também um
problema moral. O homem está "localizado", é verdade, mas também "se
localiza". Como sua personalidade não é simplesmente dada, mas deve ser
desenvolvida por ele mesmo, é um dever a cumprir e não apenas um dom
recebido, e o homem deve consentir em ocupar o lugar que lhe pertence e ao
qual pertence.23

É por causa dessa raiz moral oculta dos distúrbios neuróticos que Allers afirma que
apenas o santo está completamente livre de neurose:
Do fato de que a inautenticidade constitui, como todo mundo está implicado,
uma característica essencial do comportamento neurótico, segue-se também a
consequência de que somente aquele homem cuja vida passa em uma dedicação
autêntica e completa às tarefas da vida ( natural ou sobrenatural), ele pode
estar totalmente livre de neuroses; aquele homem que responde constantemente
com um decidido "sim" à sua posição de criatura em geral e de criatura de
constituição específica e concreta. Ou seja: "na margem da neurose só está o
santo".24

21 R. Allers, Naturaleza y educación del carácter, 306.


22 R. Allers, “Reflexiones sobre la patología del conflicto”, 299.
23 Carta a Louis Jugnet del 2 de agosto de 1949.
24 R. Allers, Naturaleza y educación del carácter, 310 (nota 1).
É verdade que na vida de alguns santos há períodos em que aparecem alguns sintomas
neuróticos ou patológicos aparentes.25 No entanto, na opinião de Allers, o diagnóstico
deve ser feito à luz da personalidade integral, e não com base em sintomas isolados.
Estaríamos perante uma verdadeira neurose quando as alterações fossem provocadas por
aquela angústia existencial que advém da não aceitação plena e consciente da finitude e
do próprio lugar na ordem da existência. Em vez disso, alguns sintomas neuróticos
isolados podem ocorrer independentemente do caráter neurótico. Seriam as
consequências de defeitos ainda não purificados, ou de momentos de intensa purificação
interior, como noites escuras, e não das próprias neuroses verdadeiras. Por esta razão,
Allers propõe distinguir entre um "sintoma de aridez" e um "estado de aridez":

Isso facilita a compreensão de episódios ou fases neuróticas que


ocorrem com tanta frequência, ou que são pelo menos notavelmente
semelhantes a eles, no curso da vida de muitos santos. Esses fatos não
devem nos levar a concluir que a vida santa é uma atitude neurótica ou
que germina no terreno da neurose, como acreditava uma
incompreensível explicação pseudocientífica. Ao observar essas vidas
com atenção, percebe-se que os episódios neuróticos nada mais são do
que simples episódios de determinados períodos da vida, etapas
transitórias, nas quais a luta com o "sombrio déspota do eu" está
travada e cuja superação sempre leva o homem a um nível superior na
vida. Assim, também se explica que tais episódios podem se repetir, pois
correspondem a várias etapas da ascensão do homem e sempre iniciam
uma "superformação" mais completa do homem em Deus - para usar a
expressão de Tauler-. [...] A tentativa de explicar a “Noite Escura” e
outros fenômenos semelhantes, como neuróticos ou simplesmente
naturais,26 nos pareceria perfeitamente absurda.

Conclusão

25 Cf. R. Allers, Carta a Louis Jugnet de 6 de outubro de 1949: “Observam-se, nas biografias de algumas
pessoas consideradas ou reconhecidas como santos, traços que pelo menos se assemelham a sintomas
neuróticos; Digo "se assemelham" porque é muito difícil chegar a uma ideia precisa da natureza dos
chamados sintomas. O fato de serem semelhantes aos que conhecemos nas neuroses ainda não os
torna idênticos. Essa identificação apressada levou alguns alienistas a considerar "anormais" homens
que consideramos santos. Se observarmos o sintoma isolado, tomado em si mesmo, às vezes há de fato
uma semelhança notável; mas isso não prova nada. Aprendemos na psiquiatria que a semelhança de
fatos patológicos pode ser muito enganosa. A crise epiléptica assemelha-se à que ocorre após a uremia
e, para um observador leigo, até mesmo à da "grande histeria". Os biógrafos dos santos não estudaram
psiquiatria. Ou considere o caso dos estados "extáticos", como são conhecidos na catatonia, na histeria
e como efeitos de certas drogas; quando comparado ao êxtase religioso, há uma semelhança marcante.
Mas se a evolução da personalidade total for levada em consideração, é claro que estamos enfrentando
fenômenos muito diferentes.”
26 R. Allers, Naturaleza y educación del carácter, 310-311.
Tentamos resumir muito sucintamente as contribuições de Allers para uma
fundamentação antropológica da psicoterapia. Só fomos capazes de fazer uma síntese
muito estreita e talvez muito simplificada que, tememos, pode não fazer Allers
inteiramente justiça nas nuances de seu pensamento. Também deixamos de lado outros
aspectos do pensamento de Allers, como seus estudos experimentais sobre a percepção
ou sua obra estritamente filosófica, por acharmos mais interessante destacar esses
aspectos, em nosso juízo original, de sua obra. Esperamos assim contribuir, não só para
a memória, mas para a reavaliação do presente das suas intuições fundamentais,
indubitavelmente matizadas e improváveis em alguns pontos, mas sem dúvida
sugestivas e que trazem em si uma intuição muito verdadeira: a da avaliação de o
homem como pessoa e, portanto, como responsável perante a sua consciência e perante
Deus, e das importantes consequências que esta tem para o estudo da personalidade e
para a prática da psicologia. Por isso, acreditamos que ainda hoje, cinquenta anos após
sua morte, vale a pena conhecer e aprofundar os estudos deste importante psiquiatra e
filósofo católico.

Martín F. Echavarría
Universitat Abat Oliba CEU
echavarria@uao.es

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