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D esconstrução e É tica

Ecos d e J a cq u es D errida

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© Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 2004

Descontrução e ética - ecos de Jacques Derrida / organização:


Paulo Cesar Duque-Estrada.. - Rio de Janeiro : Ed. PUC-Rio;
São Paulo : Loyola, 2004.
248 p.; 21 cm
Inclui bibliografia
I. Ética. 2. D errida, Jacques, 1930- I. D uque-Estrada, Paulo Cesar.
II. Título: Ecos de Jacques Derrida. r n n : 170
Sumário

Introdução...................................................................................... ..

Desconstrução e Ética
Geoffrey B ennington.......................................................................... . 9

Alteridade, Violência e Justiça: Trilhas da Desconstrução


Paulo Cesar Duque-Estrada.................................................................33

H erm enêutica e Desconstrução: por um a Ética da Leitura


Ligia Saram ago.................................................................................... 65

O Direito da Desconstrução
Rachel N ig ro .........................................................

Democracia Radical e O portunidades da Justiça


Pablo Sanges G h e tti................................................................. 101

H orizonte Dissimétrico:
O nde se Desenha a Ética Radical da Desconstrução
1 31
Ana M aria C ontinentino..................................................................

D errida e la Question la Plus Fatale ^


Tatiana Grenha...................................................................................

As Muitas Faces do O utro em Lévinas ^


Rafael H addock-Lobo.................................................................
................. 193
Entrevista com Geoffrey B en n in g to n .............................

Apêndice n -j
Política e Amizade: uma Discussão com Jacques er ^^
Geoffrey Bennington..............................................
D esconstrução e É tica

Geoffrey Bennington

A desconstrução não pode propor uma ética. Se o conceito de


ética, como todos os conceitos, vem a nós, como não poderia deixar de
fazê-lo, da tradição que passou a ser chamada de “metafísica ociden­
tal”, e se, como Derrida coloca desde o início, a desconstrução pretende
desconstruir a “maior totalidade”1- a rede inter-relacionada de con­
ceitos que nos é legada pela (ou como) metafísica -, então a “ética” não
poderia deixar de ser um tema e um objeto da desconstrução, um tema
para ser desconstruído, mais do que admirado ou afirmado. A ética é
completamente metafísica, não podendo, portanto, jamais ser simples­
mente assumida ou afirmada pela desconstrução. A demanda ou o
desejo por uma “ética desconstrucionista” são, nesse sentido, fadados
à frustração.
É, contudo, na ingenuidade de certas reações à desconstrução,
que desejam apresentá-la como diretamente ligada, de um modo ou
de outro, ao ético como se a desconstrução se destinasse a nos liber­
tar da ilusão metafísica para a clara luz da felicidade ética e da
autocorreção2, que podemos também identificar um certo cunho de

1Derrida, J. De la grammatologie. Paris: Minuit, 1967. Gramatologia. Trad. Miriam


Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 1999. Daqui por ian
te referido como GR. Havendo apenas um núm ero de página, a referencia diz res­
peito à edição francesa. N. do T.

deconstruction: an attempt at self-criticismt e por


artigo “Justice without ethics”, p. 58. Critchley, em
(Oxford: Blackwell, 1992), continua a ser uma int:
toes.

9
D esconstruçao e Ética

verdade digno de elaboração. A desconstrução desconstrói a étic


o u revela a ética desconstruindo-se (a si mesma) na desconstrução
m as algum sentido de ética ou do ético, ajgo de arquiético, talvez so
brevivaà desconstrução ou venha à tona como sua origem ou recur­
so. A desconstrução não pode ser ética, não pode propor uma ética
m as a ética poderia, ainda assim, fornecer um a pista privilegiada para
a desconstrução e a desconstrução poderia proporcionar uma nova
form a de se pensar alguns dos problemas tradicionalmente propos-
tos pela ética.
A form a desse argum ento é fam iliar a outros movimentos
desconstrucionistas. A escritura, por exemplo - e talvez o mais famo­
so exemplo - é em si mesma um conceito metafísico que, não obstante,
p o r m eio dessa mesma determinação metafísica, proporciona im­
portantes recursos para a desconstrução da metafísica. O mesmo
ocorre com os conceitos de signo ou de metáfora. Os conceitos “secun-
darizados” constitutivamente pela metafísica podem mostrar-se, pa­
radoxalmente, como primários e constitutivos, eles mesmos, do con­
ceito prim ário por excelência (que é, em última instância, sempre
“presença”), do qual se apresentam, inevitavelmente, como deriva­
dos. Nesse sentido, a “ética” pode tam bém sem pre fornecer à
desconstrução recursos reprimidos ou inexplorados por sua deter­
m inação metafísica, recursos estes que podem vir a mostrar-se de
certa forma “mais poderosos” e em excesso em relação àquela mesma
determ inação metafísica. Nesse caso, a desconstrução pode, enfim,
ser descrita como algo ético e, talvez, como a ética mesma. Em Force
oflawyDerrida faz uma reivindicação, tão famosa quanto misteriosa,
segundo a qual a justiça (como distinta do direito e da lei) é a condi­
ção indesconstrutível da desconstrução, e isso, ao que parece, precisa
ter alguma ressonância ética para que possa ser inteligível3.
Há, é claro, ao menos uma notável diferença entre escritura e
ética como recursos desconstrucionistas em potencial, e esta vem a
ser a diferença mesma de status entre elas no âmbito do pensamento
metafísico. A escritura é, na melhor das hipóteses, um conceito secundá-

3 Force de loi. Paris: Galilée, 1994. Trad. M ary Quaintance. Force o f law: the “mystical
foundation” o f authority. In: Cardozo Law Review, 11/5-6 (1990), 920-1045. Daqui
p o r diante referido com o FL. N. do T.

10
D esconstruçâo e Ética

rio num dom ínio (o da linguagem) tornado, ele mesmo, secundário


no pensamento tradicional, enquanto a ética é, desde o início, uma
das divisões básicas da filosofia, um de seus principais ramos. Pode-
se esperar, então, que esta seja uma noção mais complexa e diferen­
ciada do que a de “e s c ritu ra ”, e que p ro p o n h a um a tarefa
concomitantemente mais difícil para a desconstruçâo. Além disso,
enquanto a “escritura” é, explícita e consistentemente, usada na obra
de Derrida como um meio para o pensamento desconstrucionista,
desdobrada exaustivamente tanto em sua forma tradicional quan­
to na desconstrucionista, a “ética” jamais é tratada deste modo e, na
verdade, como se verá, sua incidência explícita na obra de Derrida
encontra-se essencialmente concentrada em suas discussões em tor­
no da obra de Emmanuel Lévinas, cujo pensamento volta-se, preci­
samente, para a realização de um deslocamento do sentido metafísico
tradicional de ética, em nome de uma redefinição da noção de
metafísica. São essas discussões sobre Lévinas que fornecerão nosso
fio condutor.
Por outro lado, se Derrida tem sido de fato bem-sucedido ao
levar a termo ou ao promover a desconstruçâo da “maior totalidade”,
então estaríamos certos em esperar que seu pensamento, em geral,
não deixará de ter efeitos no domínio da filosofia tradicionalmente
chamada ética e que, na verdade, não seria falso ampliar uma discus­
são sobre “desconstruçâo e ética ’ por meio de sua obra como um
todo (as notas de pé de página ao longo deste texto tentarão dar uma
noção dessa possibilidade). E, realmente, veremos que este é o caso. o
conceito mesmo de “rastro originário” (originary trace), tal como foi
desenvolvido em De la grammatologie, refere-se, de fato, imediata
mente, à “relação com o outro”, a partir da qual podemos acompa­
nhar Lévinas na identificação de tal relação como a base do etico.
Isso terá duas conseqüências distintas; L ó pensamento descons­
trucionista, em geral., tem uma implicação ética precisamente por
causa desse status do rastro originário; e 2. ô pensamento ^scol^s
trucionista terá intervenções específicas a fazer no voca u rio
metafísica tradicional da ética, em torno de conceitos como
responsabilidade, decisão, lei e dever.
*

11
D esconstruçào e É tica

A abertura não ética da ética pode ser percebida diretamente


contudo, de u m m odo inabordável, no fato, po r exemplo, desta leitu’
ra aqui e agora4. Q ualquer texto, “antes” de afirm ar ou comunicar^
que quer que seja, constitui-se n u m apelo a um a leitura ainda serm
pre p o r vir5. N enhum texto pode eleger com o necessária alguma lei­
tura particular de si m esm o (o texto das leis talvez seja o mais claro
exemplo aqui: as leis tentam excluir qualquer leitura outra que não
aquela “intencionada” pelo legislador, tentam constranger a leitura a
essa única leitura, mas dem onstram , nos extraordinários esforços que
se econtram ali envolvidos, a impossibilidade m esm a desta tarefa);
mas, da m esm a forma, nenhum texto pode abrir-se a qualquer leitu­
ra (n en h u m texto é absolutamente indeterminado quanto às suas pos­
sibilidades de leitura). Os textos pedem leitura, clamam por leitura,
m as não por qualquer leitura; eles deixam aberta um a latitude essen­
cial de liberdade, que é o que precisamente constitui a leitura como
leitura, algo mais do que um a passiva decifração. Não haveria prática
o u instituições de leitura sem essa abertura, e sem o permanecer aberto
dessa abertura (a herm enêutica é o sonho de fechamento dessa aber­
tura). Toda e qualquer leitura, por mais respeitosa que seja em rela­
ção ao texto lido (isto é, por mais respeitosa que seja em relação à
form a com o o texto lê-se a si mesmo), tem lugar nessa abertura, e é
essa a razão pela qual textos não são mensagens, e por que o conceito
clássico de “com unicação” é inútil para discuti-los. Segue-se que a

4 O segundo texto de D errida sobre Lévinas, “En ce m om ent m ê m e . . [In: Psyché:


inventions de Vautre (Galilée, 1987). Daqui por diante, PSY. N. do T.}, dá muitos
exemplos, na escrita de Lévinas, no qual este apela para o m om ento presente da
escrita o u da leitura no texto m esmo, m ostrando com o esses m om entos são repeti­
ções deslocadas um do outro, em que o texto tan to se interrom pe com o reintegra
suas interrupções em sua textura. A inescrutabilidade ou indeterm inabilidade de
term os dêiticos ou indicativos em textos escritos é um dos traços da escrita mais
caros a D errida, e o p onto a p artir do qual as am bições da fenom enologia são siste­
m aticam ente desfeitas: La voix et le phénomène [(daqui por diante referido como
VP. N. do T.). A voz e o fenôm eno. Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1994] já fez do pronom e uje n e os efeitos de sua repetibilidade um ponto
crucial de suas análises.
5As reflexões que se seguem sobre a leitura foram resum idas a p artir da apresenta­
ção mais longa que se encontra no início de m eu artigo “Lecture —de Georges Bataille
[In: Georges Bataille - après tout. ed. D. Hollier. Paris: Berlim, 1995). Com pare-se a
diferente abordagem de Critchley da Uclôtural reading” em The ethics o f deconstruction.

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D esconstruçâo e É tica

leitura tem o dever de respeitar não apenas os “desejos” do texto (sua


leitura mais obviam ente program ada de si m esm o), mas também a
abertura que abre um a margem de liberdade em relação a tais dese­
jos, e sem a qual tais desejos não poderiam sequer ser registrados ou
reconhecidos. Os leitores reconhecem tais desejos (tradicionalmente
pensados como as “intenções do autor”) somente quando se abrem
àquela abertura que constitui a legibilidade mesma do texto - por
mínima que possa ser, de fato, essa legibilidade - e esta se encontra,
como tal, já em excesso em relação àqueles desejos. Um texto é um
texto apenas quando m inim am ente legível nesse sentido, e isso sig­
nifica que pode ser sempre lido diferentemente no que diz respeito à
forma como ele gostaria de ser lido. Uma relação absolutamente res-
j peitosa para com um texto proibiria alguém de sequer tocá-lo. A éti-
j ca da leitura consistiria, então, na negociação da margem aberta pela
^ legibilidade6.
Derrida formula, algumas vezes, essa situação em termos de le­
gados ou de herança. Aqui, por exemplo, em Espectros de Marx:

Uma herança não se junta nunca, ela não é jamais una consigo
mesma. Sua unidade presumida, se existe, não pode consistir
senão na injunção de reafirmar escolhendo. É preciso quer dizer é
preciso filtrar, peneirar, criticar, é preciso escolher entre vários
possíveis que habitam a mesma injunção. E habitam-na de modo
contraditório, em torno de um segredo. Se a legibilidade de um
legado fosse dada, natural, transparente, unívoca, se ela não pe­
disse e não desafiasse ao mesmo tempo a interpretação, não se
teria nunca o que herdar. Seríamos afetados por isso como por
um a causa - natural ou genética. Herda-se sempre um segredo -
que diz “leia-me, alguma vez serás capaz”7?

6A “ética da leitura” aqui esboçada, m antém um a óbvia relação de respeitosa heran­


ça (e distância) com a descrição que Heidegger dá no §35 do Kantbuch, masvn ã o '
pode simplesmente aceitar a justificativa de Heidegger do que ele vê como a inevitá­
vel violência da interpretação pela “força de um a Idéia inspiradora . Discuto isso em
'relação a Kant em Lafrontière (Paris: Galilée, 2000). Ver também Miller, J. Hills. The
cthics o f reading. Nova Iorque: Colum bia University Press, 1987.
7 Derrida, J. Espectros de Marx. Trad. Anam aria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-
Dumará, 1994, p. 33.

13
D esconstruçâo e Ética

E u m pouco adiante:

A herança não é jam ais dada, é sem pre u m a tarefa. Permanece


d ian te de nós, tão incontestavelm ente que, antes mesmo de
querê-la ou recusá-la, som os herdeiros, e herdeiros enlutados,
com o todos os herdeiros. Em especial disto a que chama mar­
x ism o. Ser... isso q u e r d izer... herdar. T odas as questões
concernentes ao ser ou ao que há em ser (ou em não ser: or not
to be) são questões de herança. N ão há n en h u m a devoção
passadista em lem brá-lo, nenhum sabor tradicionalista. A rea­
ção, o reacionário ou o reativo, é o caso, unicam ente, de inter­
pretações da estrutura de herança. Somos herdeiros, o que não
quer dizer que temos ou que recebemos isto ou aquilo, que tal
herança nos enriquece um dia com isto ou aquilo, mas que o ser
disso que som os é, prim eiram ente, herança, o queiramos, saiba­
m os o u não8.

O conceito de herança tam bém aparece num momento-chave


num texto sobre Nélson Mandela: tendo salientado a admiração de
M andela pela tradição européia da democracia parlamentar, Derrida
continua:

Mas se ele adm ira esta tradição, isto significaria que ele é o seu
herdeiro, simplesmente o seu herdeiro? Sim e não, de acordo
com o que se com preenda aqui por herança. Pode-se reconhecer
um autêntico herdeiro naquele que conserva e reproduz, mas
tam bém naquele que respeita a lógica do legado, a ponto de, em
determ inado m om ento, voltá-la contra aqueles que reivindicam
ser os seus detentores, a ponto de pôr a nu, contra seus usur­
padores, aquilo mesmo que, na herança, jamais foi visto: a pon­
to de trazer à luz, pelo ato inaudito da reflexão, aquilo que nun­
ca viu a luz9.

8 Pp. 78-79.
9Admiration de Nelson Mandela, 456. (M inha tradução. N. do T.) Ver também 471
472 e Du droit à la philosophie. Paris: Galilée, 1990. pp. 82 e 449.

14
D esconstruçao e Ética

Segue-se dessa situação que a leitura-com o-herança não é ape­


nas um a relação ética em si m esm a, m as pode ser tom ada para
exemplificar a relação ética com o um a relação assimétrica com um
outro incontrolável e inassimilável. Esse outro não é absolutamente
outro (se o fosse, o texto seria irreconhecível com o texto, sequer pe­
diria leitura), mas essa alteridade (a insistência e indecifrabilidade
última desse cham ado p o r leitura, o fato de que a leitura não é ape­
nas um tranqüilo ato de decifração) é irredutível10. Nessa situação,
na qual nosso dever é o de ler respeitando aquilo mesmo que torna
possível a leitura (isto é, aquilo m esm o que torna impossível que a
leitura seja um a m era decifração, aquilo que a leitura nunca poderá
ler com o tal), nosso dever, ou o dever daquele dever, é o de ser inven­
tivo. Ser inventivo não significa ser m eram ente respeitoso. Uma lei­
tura respeitosa (a acadêmica, por exemplo) jamais começa a cum prir

10 Este é o m o tiv o de algum as objeções de D errida a Lévinas em Violence et


métaphysique (daqui p o r diante referido com o VM. N. do X): Lévinas opõe às difi­
culdades de Husserl, nas Cartesian meditations, com o problem a do outro, o sentido
de que o o u tro é absolutamente outro em relação a m im , e D errida defende Husserl
com o argum ento de que a alteridade do outro tem a chance de ser registrada ape­
nas na m edida em que, em certo sentido, o outro é o mesmo que eu. O outro só é
realm ente o u tro na m edida em que ele, ou ela, não tenha o status daquela form a de
alteridade própria aos objetos do m undo exterior: a alteridade do outro, no sentido
que esta recebe em Lévinas, depende, de acordo com suas recentes análises, do fato
de que o o u tro deva supostam ente parecer-se comigo o suficiente para que sua
alteridade (com o “um a outra origem do m undo”, num a linguagem fenomenológica)
possa tornar-se evidente. D errida encontra-se aqui num a posição curiosa: em VP
ele sugere (sem realizar um a análise detalhada) que essa questão da apresentação
analógica do outro constitua, juntam ente com aquelas questões tem porais ligadas a
term os com “re -” (repetição, representação, retenção), um dos pontos nos quais a
fenom enologia de Husserl encontrava-se mais vulnerável. Em VM, ele parece estar
defendendo Husserl exatam ente nessa questão, com base no fato de que Husserl
perm ite que a alteridade real do outro venha à tona, justam ente por causa da im pene­
trabilidade, para m im , daquilo que é, contudo, m anifestam ente um alter egoyo mes­
mo que eu. A possível coerência desses dois gestos é, sem dúvida, oferecida pelo
pensam ento com plexo de D errida sobre “o m esm o” com o constitutivam ente não
idêntico. D errida deixa em aberto a possibilidade de se criticar Husserl neste ponto
{L'ecriture et la différence. Paris: Seuil, 1967, n. 1. p. 194), como ele realmente o faz
em VP, e retom a sucintam ente em Le m ot d*accueil> em Adieu (Paris: Galilée, 1997, p.
96). A escritura e a diferença. Trad. M aria Beatriz M arques Nizza da Silva. São Paulo.
Perspectiva, 2002. D aqui por diante referido com o ED. Havendo apenas um núm e­
ro de página, a referência diz respeito à edição francesa. N. do T.

15
D esconstruçào e Ética

seu dever na m edida em que tende a fechar a ab ertu ra que faz a leita
ra possível e necessária em p rim eiro lu g ar11: e, na verdade, esta lógiCa
pode ser estendida ao conceito de dever em geral - Kant afirma, com0
se sabe, que devo agir não apenas de acordo com o dever, mas a partir
do dever, a bem do dever (de o u tra form a, eu sem pre estaria simples,
m ente im itando aquilo que considero ser um a conduta respeitosa)12
m as a lógica últim a disso é a de que eu devo, de fato, em nome do
dever, agir não apenas tendo em vista o dever, m as a partir do dever,
no sentido de inventar algo que se encontra fora da esfera daquilo
que o dever, presum ivelm ente, poderia ditar ou prescrever. Seguir
sim plesm ente o próprio dever, procurando o agir apropriado em al­
gum livro de leis ou regras, tal com o se encontram dadas, é tudo
m enos ético - é, no m elhor dos casos, um a administração de direitos
e deveres, um a burocracia da ética. Nesse sentido, um ato ético digno

11 D iscuto isso no contexto particular do jornal French Studies, n u m trabalho apre­


sentado na 50.a conferência anual em 1997: “Faire sem blant” que provavelmente
não sairá em French Studies. Este texto encontra-se disponível na internet: http:// I
w w w .sussex.ac.uk/U nits/frenchthought/texts/sem blant_fram es.htm .
12 Veja-se, p o r exem plo, Kant: Critique o f practical reason. T rad. M ary Gregor.
C am bridge University Press, 1997. p. 69): “O conceito de dever, portanto, requer da
ação um acordo objetivo com a lei, mas requer da m áxim a da ação um respeito
subjetivo à lei, com o único m eio de determ inação da vontade pela lei. Nisto repousa
a distinção entre a consciência de ter agido em conformidade com o dever e a partir
do dever, isto é, o respeito à lei, o prim eiro do qual (legalidade) é possível, mesmo i
que as inclinações sejam unicam ente os fundam entos determ inantes da vontade, ao
passo que o segundo (moralidade), o m érito m oral [moral worth]>deve ser colocado
apenas da seguinte forma: que a ação tenha lugar a p a rtir do dever, isto é, unicamen­
te a bem da lei (M inha tradução. N. do T ). A reescrita derridiana desta passagem,
com o um a obrigação de agir inventivam ente a partir do dever, estabelecería aquilo
para o qual deveríam os assim agir não com o a lei, m as sim com o a justiça, no senti­
do referido em FL, em que a justiça (para além de qualquer form alização sua como
lei, direito o u instituição) é apresentada com o a “indesconstrutível condição da
desconstruçào ,o u m esm o com o a própria desconstruçào (p. 35). O aparentepathos
ético aqui gerado precisa ser contrabalançado pela necessária possibilidade daquele
tipo de im itação que Kant se preocupa em excluir: m inha invocação supostamente
desconstrucionista da justiça com o aquilo para o qual eu ajo poderá sempre ser um
m ero sim ulacro e, de fato, sem pre o será na ausência de invenção. Os freqüen tes
apelos de D errida pela necessidade de invenção nos cam pos da ética ou da política
necessariam ente desapontam : nós, obviam ente, gostaríam os de que nos dissessem
o que inventar —e então estaríam os livres da responsabilidade de invenção...

16
D esconstruçâo e É tica

deste nom e é sempre inventivo, mas de m odo algum inventivo com o


interesse de expressar a liberdade “subjetiva” de um agente, mas sim
como resposta e responsabilidade para com o outro (neste caso, o
texto que é lido). Pois estou, afinal, lendo um texto de outrem, não
apenas tentando “expressar-me”: e essa é um a situação geral. Posso,
de fato, “expressar-me”, exercer m inha liberdade, apenas nesta situa­
ção de resposta e responsabilidade com respeito ao sempre-já-estar-
aí do outro texto com o parte de um a “tradição” em relação à qual
estou sempre já em dívida.
Essa “ética da leitura” está presente nas formulações de Derrida
desde seus primeiros trabalhos. Em suas discussões a respeito de Freud
ou Lévi-Strauss, por exemplo, fica claro que não há como escapar da
“cumplicidade” com a tradição (somente ela nos fornece todos os
nossos conceitos e vocabulários), e a questão que se coloca é aquela
de se negociar rigorosa e inventivamente com essa necessária cum ­
plicidade (aquilo que temos chamado aqui de herança ou simples­
mente leitura). “Freud and the scene of writing”, por exemplo, se ini­
cia aparentem ente condenando Freud com base no fato de que todos
os seus conceitos são herdados da tradição metafísica, não podendo
ser, portanto, tão radicais, ou tão novos, quanto se costum a pensar.
Mas D errida em seguida reconhece que, em si mesma> essa situação
de herança não deve ser um motivo para lamentação ou crítica, e
isso porque talsituação é inevitável: todos devem, necessariamente,
herdar seus conceitos da tradição; de forma que a causa da lamentação
é deslocada, e a objeção a Freud acaba dizendo respeito ao fato de
que ele “nunca refletiu a respeito da necessidade histórica e teórica”
dessa situação13. Desse m odo, em seu conhecido e mais antigo en­
saio, Structure, sign and play in the discourse o f the human Sciences,
Derrida logo estabelece em torno de Lévi-Strauss a inevitabilidade
de u m a c e rta “c u m p lic id a d e ” com a tra d iç ã o : e, d ad a essa
inevitabilidade, a questão que se coloca é aquela de com o esta é ne­
gociada e considerada. Assim com o Freud, Lévi-Strauss não pôde
senão herdar seus conceitos da tradição; o que se esperava que ele
fizesse (e isto é, então, um a reivindicação ética) é que refletisse a res-

* Discuto esse gesto no contexto específico da relação de D errida com Freud em


Preanalysis (the thing itself)”.

17
D esconstruçào e Ética

peito dessa inevitabilidade mesma. Somente então, ele argument


haveria um a chance de se fazer algo a respeito da (e com a) her a>
que não podem os escolher não receber14. an<^a

Essa situação da leitura fornece, então, um a certa matriz para s


pensar a respeito da natureza herdada dos conceitos em geral, a obri
gação (não um a necessidade, no máximo aquilo que Derrida cha
maria um a chance) de ler e de, assim, nos dar a possibilidade de des­
locar esses conceitos.
Neste constructo, um a certa e aparente irresponsabilidade (aqui­
lo que venho chamando de leitura) abre a possibilidade de uma res­
ponsabilidade como resposta ao outro que, necessariamente, não é
um absolutamente outro. Mas se essa é uma situação geral, que colo­
ca os nossos procedimentos conceituais num milieu que pode, com
razão, exigir um sentido deslocado de ética (quer dizer, lido de ma­
neira responsável) para descrevê-lo15, esse sentido de ética duplica-se
quando a conceptualidade específica que está sendo lida e herdada é
aquela da ética mesma. Pois a obra de Derrida não apenas reflete, de
um a forma que poderíamos querer chamar de ética, sobre a relação
com a tradicionalidade do pensamento em geral> mas também, oca­
sionalmente, naquele milieu, sobre a tradicionalidade dos conceitos
éticos em particular, como, de fato, tem feito cada vez mais nos últi­
mos anos. Essa reflexão mais explicitamente ética pode ser rapida­
mente caracterizada pelo fato de ela ocorrer num espaço entre uma
crítica fenomenológica da divisão tradicional da filosofia (incluin­
do-se aí o lugar que essa divisão reserva ao ético) e uma tentativa

A qualidade e a fecundidade de um discurso são talvez m edidas pelo rigor crítico


com o qual esta relação com a história da metafísica e dos conceitos herdados e
pensada.” (ED, p. 414). M inha tradução. N. do T.
,?.0^ re a cluest^° da resposta e da responsabilidade, ver: Gasché. Inventions o)
difference (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1994) e minhas reservas em
Genuine Gasché (perhaps) (Interrupting Derrida. Londres; Nova Iorque: Routledge,
2000). O deslocamento que a responsabilidade opera sobre a ética significa prova­
velmente que somos levados a considerar esta situação um a situação política, e um
dos objetivos de Le mot d accueil é questionar a distinção entre ética e política.

18
D esconstrução e Ética

levinasiana de resgatar um sentido do ético com o “filosofia prim ei­


ra ' Derrida quer registrar tanto a força da suspeita de Husserl - ou
(mais radicalm ente) de Heidegger - , no que se refere ao lugar da
ética no delineam ento tradicional da filosofia16, quanto a poderosa
reivindicação de Lévinas de que a ética seja considerada com o filoso­
fia primeira, anterior ao que ele cham a de ontologia. A referência a
Lévinas parece quase tão essencial para D errida quanto aquela a
Heidegger, e um a possível form a de se trilhar um cam inho através d a
obra de D errida é acom panhar os três grandes ensaios dedicados a
Lévinas17. Já tratam os de algumas das dúvidas levantadas em Violence
and methaphysics a respeito da conceptualidade básica de Lévinas, e
usamos En ce m om ent même... para estabelecer um a certa eticidade
originária na textualidade mesma: passemos agora a Le m ot d'accueil
para um a elaboração de alguns m om entos éticos mais “positivos”
em Derrida.
O argum ento central deste texto desenvolve-se da seguinte for­
ma: de acordo com Lévinas, a ética começa no acolhim ento ou re­
cepção do outro, o qual “aparece”, não fenom enalm ente, na face18.
Essa receptividade original define a relação ética com o o face a face,
uma relação dual não simétrica. Lévinas argum enta de um m odo
muito convincente que somente essa relação, com o essencialmente
ética, proporciona a possibilidade de sentido num a situação que se-

16Em VM, D errida associa Husserl e Heidegger, no m ínim o p o r com partilharem : 1.


um com prom isso com a fonte essencialmente grega da filosofia; 2. um a exigência
de transgressão ou redução da metafísica; e 3. “a categoria do ético é aqui não apenas
dissociada da metafísica, mas relacionada com algo outro do que ela m esma, uma
instância anterior e mais radical. De outro m odo, quando a lei, o poder de resolução
e a relação com o outro voltam à arché, perdem aí a sua especificidade ética”. (De
acordo com a nota de rodapé de Derrida: Husserl: “A razão não tolera que nela se
distingam o ‘teórico’, o ‘prático’, o estético’ etc.” Heidegger: “M esm o palavras como
ogica, ética e física florescem som ente quando o pensam ento originário chega ao
tim. Letter on hum anism ) VM, p. 121.
Estes estão igualm ente separados por intervalos de 16 anos: VM, “En ce m om ent
rneme dans cet ouvrage me voici”. In: P S Y e Le mot d ’accueil. In: Adieu à Emmanuel
^ evinas. Paris: Galilée, 1997 (daqui p o r diante referido com o AD. N. do T ).
Lévinas caracteriza extensamente a face na seção III, de Totalité et infini: essai sur
* ^ e ^ aëue: M artinus Nijhoff, 1969. Totalidade e infinito. Trad. José Pin-
eiro. Lisboa: Edições 70,2000. Daqui por diante referido como, TI. N. do T.

19
D esconstruçào e É tica

ria, de outro m odo, de desorientação,9. Essa relação face a face cora


outro é caracterizada com o assim étrica pela transcendência do o °
tro, o que, nesse contexto, significa que o o u tro possui um direj^
prévio e radical sobre m im , o u m esm o “m e” perm ite existir, essenc°
almente, com o responsabilidade p ara com e pelo outro. Eu não exis
to prim eiro e depois encontro o outro: antes, o (sempre singular)
outro me cham a à existência (being) com o sem pre e já responsável
por ele1920. Em Le m ot d'accueil D errida insiste no quanto essa relação
dual (ainda que assimétrica) é afetada pela terceira parte. Essa possi­
bilidade de a terceira parte (um outro outro, o o u tro do outro) ron­
dar o m eu face a face com o outro fornece a possibilidade da justiça
pelo m enos no sentido do direito, isto é, um a form ulação codificável
do que, no face a face mesmo, teria de perm anecer singular àquela
relação, incomunicável e acima de tudo inform ulável como ética.
N um a leitura que vai além das intenções óbvias do texto de Lévinas,
D errida quer dizer que essa presença originária da terceira parte ron­
dando o face a face com o outro pode parecer com prom eter ou con­
tam inar a pureza da relação propriam ente ética; mas essa-possível
contaminação, esse com prom etim ento da pureza, são necessários, já
que a relação ética deve evitar a possibilidade de um a violência abso­

19 Ver o im portante ensaio La signification et les sens (M eaning and sense. Trad.
Alphonso Lingis. Dordrecht: M artinus Nijhoff, 1987). As noções de orientação e
desorientação aparecem insistentem ente neste texto: ver, p o r exemplo, pp. 34, 36,
3 9 ,4 0 ,4 2 ,4 3 ,4 4 ,6 0 ,9 1 ,9 3 ,9 7 ,9 9 . Seria possível m ostrar, n u m a leitura paralela do
breve texto de Kant de 1786 W hat is orientation in thinking?. Trad. Barry Nisbet.
n u R^ tss (ed-)> Kant’s political writings. 2 ed. edição am pliada, Cambridge:
am ri ge mversity Press, 1991, pp. 237-249), que o apelo à orientação apenas faz
nrp 1 nUm cont^xto anterior de desorientação, de tal m odo que a orientação sem*
V p rtfrT ° Ç° daquela mesma desorientação que ela supostam ente deve superar.
7 Í T aS Ões de Derrida sobre a n o ?So de um “heading” em C aum W
M n u t m o T r u a a l a,T Tnée- (Trad- Pas« le -A n n e Brault e Michael Naas). Paris:
’ * e o t e r eading. Bloom ington: Indiana University Press, 1992).
to específico m *scld*no Para lem brar o fato de que Lévinas tem um pensamem
S 2 S Í ^ mpleXO no que concerne à diferença sexual e ao feminino. Derrida
2 1 Z 1 Z T , P -ra 1SS° 30 fmal de VM (ED- 228 n. 1). e dedica um a longa par«
a c fn c e p lo le v L * discussâ°- Ver tam bém AD, pp. 71 -85, sobre
concepção levmas.ana do espaço dom éstico com o fem inino.

20
D esconstruçao e É tica

luta por parte daquela pureza m esm a21. Pois se o encontro singular I
com o outro no face a face não estivesse sem pre já com prom etido I
por essa terceira parte que ronda (e, p o r conseguinte, pela com uni-
cabilidade, inteligibilidade, mas tam bém pela institucionalização e
politização), então a relação ética supostam ente p u ra poderia sem ­
pre ser aquela da pior violência:

A terceira parte não espera, sua eleidade cham a a p artir do m o ­


mento da epifania da face no face a face. Pois a ausência da ter­
ceira parte ameaçaria com violência a pureza do ético na abso­
luta imediatidade do face a face com o único. Sem dúvida, Lévinas
não diz isto desta forma. Mas o que ele faz quando, para além ou
através do duo do face a face entre dois “seres únicos”, ele apela
à justiça, afirma e reafirma que a justiça “é necessária” - ilfa u t—?
Não estaria ele, então, levando em conta esta hipótese de um a
violência da ética pura e imediata no face a face da face? De um a
violência potencialmente desencadeada na experiência do vizi­
nho e do unico absoluto? Da im possibilidade de se discernir o
bem do mal, o am or do ódio, o dar do tom ar, a vontade de viver
do im pulso para a morte, o acolhimento hospitaleiro do enclau-
suram ento egoísta ou narcísico?
A terceira parte seria, assim, um a proteção contra a violência
ética propriam ente dita. A ética poderia estar duplam ente ex­
posta a esta mesm a violência. Exposta a sofrê-la, mas tam bém a
exercê-la. Alternativam ente ou sim ultaneam ente. É verdade que

O p ro p n o Lévinas intro d u z essa noção do “z7”, de eleidade (illeity), para descrever


o alem do ser”, do qual provém a alteridade do outro [Cf. La signification et les sens,
P-65, relem brada de passagem por D errida em AD, p. 74, n. 1. D errida tam bérr
ama atenção para o fato de que essa cooriginariedade da terceira pessoa está clara
em evinas de TI em diante (AD, pp. 111-112)]. É essa dim ensão que perm ite à
ranscen ência do outro oferecer um a orientação e estar relacionada a Deus, e é
c^UCla«j^ara ^ Vinas conceber um “Deus não contam inado pelo ser”, com o ele colo-
na ota Prelim inar a A utrem ent qu’être, ou au-délà de l ’essence. (The Hague:
^ a r inus Nijhoff, 1981). Mas, para D errida, essa ileidade é justam ente o princípio
poss0ld'am ^na^ 0> 6 *SS° Prec^sarnente garantirá que qualquer “orientação” que se
ma^ 1Zer .^ue e^a ° fereça deve ser considerada no contexto de um a desorientação
r 5 mais abrangente. Ver o com entário explícito sobre a necessidade de conta-
naçao em En ce m om ent même... (p. 182).

21
D esconstruç Ao e É tica

esta terceira p arte p ro teto ra o u m e d iad o ra, em seu devir jurídj


co-político, violenta, p o r sua vez, pelo m enos virtualm ente a
pureza do desejo ético pelo único. D aí a fatalidade terrificante
de um duplo constrangim ento.

Essa análise, que, n u m estilo tip icam en te desconstrucionista


im pele o texto lido p ara além de suas p ró p rias pretensões explícitas*
m as que, assim fazendo, respeita a lógica da eco n o m ia própria do
texto e responde ao cenário de u m a ética da le itu ra que esboçamos
anteriorm ente, gera um a condição que po d e ser en co n trad a em to­
das as situações desconstrucionistas: aquela de um a essencial contami-
nabüidade que pretende dar conta tanto da possibilidade de toda e
qualquer pureza como da im possibilidade a priori da realização (mes­
m o que ideal) de um a tal pureza. A lógica aqui, que, n u m outro m o­
m ento, foi form ulada precisam ente com o o quase-transcendental, ex-
põe, em geral, um a cum plicidade (até m esm o u m a identidade) entre
condições de possibilidade e condições de im possibilidade, de tal
m odo que a possibilidade necessária do fracasso, do com prom etim ento
ou da contam inação da situação supostam ente (ou desejosamente)
pura é suficiente para justificar o argum ento de que tal pureza está já
com prom etida na sua formulação mesma. Aquilo que supostamente
protegeria essa pureza em questão é, precisam ente, o que a compro­
mete . Nesse caso, a relação ética do face a face constitui-se como
etica somente na medida em que ela se protege de si m esm a na figura
da terceira parte: mas essa figura mesm a sempre im pedirá o ético de
ser a relaçao pura que se supõe e, dessa form a, lança dúvidas sobre
sua prioridade como algo ético.
considprá\T^et^ ^ nC' ^ J">arac*oxais ou aporéticas dessa situação são
consideráveis, mas e nelas que podem os encontrar o âmago do pen-2

22 Esta é um a estrutura generalizável no Densam^ntA a * .


facilmente apreendida nos argum entos s o b r e l v T desconstrucionista>talvez maf
a vida é vida apenas na m edida em que ela de I I ^ 6 * " ° contexto de Freud:
m a (um a vida pura ou desprotegida seria , ' f ° tege-se de 51 m T
morte (Freud et la trètiP Ap Vá v m orte instantanea) num a economia da

La Cana L a , . i ,
pp. 303-311. au-dela. Pans: A ubier-Flam m arion, 1979.
D esconstruçào e Ética

sarnento desconstrucionista sobre a ética. Segue-se, por exemplo, da


situação que acabamos de descrever (por meio e para além de Lévinas
numa versão de seu pensam ento que já apela para a legitimidade da
terceira parte) que a justiça encontra sua condição de possibilidade
no que Derrida chama perjúrio. A natureza ética da relação ética pri­
mordial no face a face singular com o sempre único outro depende
de que tal ética seja protegida de si mesma pelo apelo à, e da, terceira
parte, mas apelar para essa terceira parte significa que estou eo ipso
sendo infiel ao outro, fracassando em m inha promessa implícita de
fidelidade e respeito incondicionais. A ética tem a chance de ser ética
somente neste tornar-se-justiça, que é já e tam bém o tornar-se-direi-
to da justiça, o tornar-se-form al da relação absolutamente não for­
mal do face a face, o tornar-se-institucionalizada da “absoluta ante­
rioridade pré-institucional da relação com o outro, e, assim, na trai­
ção do meu engajamento prim ário com o outro como este outro sin­
gular. A ética começa com essa arquitraição ou arquiperjúrio, que
funciona como sua condição de possibilidade e (portanto) de im ­
possibilidade:

Lévinas nunca designa esta dupla ligação deste modo. No en­


tanto, eu correrei o risco por minha própria conta de inscrever a
sua necessidade na conseqüência de seus axiomas, que são esta­
belecidos ou lembrados pelo próprio Lévinas: se o face a face
com o único engaja a ética infinita da minha responsabilidade
pelo outro num tipo de juram ento [serment] before the lettery
um a promessa de respeito ou de fidelidade incondicional, então
a inelutabilidade da terceira parte e, com ela, da justiça, assinala
um prim eiro ato de perjúrio...
Daí em diante, no desdobramento da justiça, já não se pode mais
discernir a fidelidade à promessa feita do perjúrio do falso teste­
munho, mas, antes de tudo, já não se pode mais discernir trai­
ção de traição, sempre mais do que uma só traição. Deve-se en­
tão, com toda prudência analítica necessária, respeitar a quali­
dade, a modalidade, a situação dos fracassos em relação a esta
“palavra original de honra” diante de todos os juram entos
[serments]. Mas estas diferenças jamais apagariam o rastro deste
perjúrio inaugural. Tal como a terceira parte, que não espera, a

23
D esconstruçào e É tica

instância que abre tan to a ética q u an to a justiça encontra-se nes>


ta s em u m a s itu a ç ã o de [en instance de] p e rjú rio quase-
transcendental o u originário, m esm o pré-originário.

A ética, então, é ética apenas na m edida e m q u c e s tá origina-


riam ente com prom etida ou contam inada pelo i ^ o ético. De acordo
com u m a lógica delineada mais de 30 anos antes, ê n f Violence and
metaphysicSy a chance de se evitar a p io r violência é dada por um
com prom isso que envolve a aceitação, e o cálculo, da m en o r violên­
cia23. C om o com todos os outros conceitos pu ram en te positivos, em
aparência, que são analisados desconstrutivam ente, a ética, em seu
sentido levinasiano, som ente pode tornar-se coerente ao se permitir
proteger-se de si por meio de um a contam inação inoculatória, e ne­
cessariamente arriscada, de si mesma por seu(s) aparente(s) outro(s).
/N este caso, D errida dirá que a ética é essencialm ente pervertível, e
/ que essa pervertibilidade é a condição positiva (a ser afirm ada, por-
\ tanto) de todos os valores “positivos” (o Bom, o Justo, e assim por
I diante) que a ética nos compele a buscar.
Essa afirmação de pervertibilidade como um a condição positiva
daquilo que pareceu ser-lhe oposto (tanto que, po r exemplo, uma
condição positiva do prom eter é a de que eu nem sem pre possa man­
ter m inha promessa, pois sem tal necessária possibilidade, se o obje­
to de m inha promessa se seguisse necessariamente do m eu prometê-
lo, m inha promessa não seria, de form a alguma, um a promessa, mas
um a conseqüência causal necessária24) não obriga, certamente, al­
guém a acolher perversões reais de valores éticos. Dizer que uma con­
dição positiva da ética é um perjúrio inaugural - ou estrutural - não

23 Cf. VM, n. 1, pp. 136, 172,191. [Este texto não se encontra na tradução brasileira
de ED referida acima. N. cio T] Estas observações não devem ser tom adas como se
insinuassem que tal cálculo é simples, ou que já sabem os o que é a violência.
Este argum ento de um a “possibilidade necessária” (de que um a promessa só é
um a promessa se for necessariamente possível que ela seja quebrada, apenas se há a
ameaça de que a promessa não seja m antida) sugere que a distinção entre unia pro­
messa e um a ameaça é mais difícil de se com preender d o que pode, a princípio«
parecen a mais antiga alusão a esse respeito na obra de D errida parece estar em

24

i
D esconstruçào e Ética

Significa que estou, daqui p o r diante, eticam ente obrigado a aprovar


atos reais de perjúrio. Essa produção de um a condição de possibili­
dade é o aspecto da análise que sugere sua qualificação como trans­
cendental. Mas esse caráter especificamente quase-transcendental sig­
nifica que, como sem pre ocorre no pensam ento desconstrucionista
é rigqrosamente impossível separar o transcendental do fático, o u /
empírico25; isso acarreta que n ão ^o sso u sar, cpnfqrtavelmente^o as- '
peqtq^^ransçendental da análise para fornecer um conhecimento a \
priori do qual casos empíricos, eventos que ocorrem, de fato consti- /
tuam atos de perversão ou de perversidade. A análise quase-trans- 1
cendental abre, como um a condição da ética, a possibilidade do pior
perjúrio ou perversão da ética. A possibilidade necessária do pior é
uma condição positiva do (incondicionalmente exigido) melhor. A
possibilidade necessária do que Kant chamou de mal radical é uma
condição positiva do bem. A abertura não ética da ética, como cha-
mada em Violence and metaphysics, consiste apenas nisto: que a chance
da ética (isto é, sua possibilidade necessária como não necessária26)
tem lugar na sua hospitalidade à possibilidade de que o evento por
vir seja o pior, que o “sim” primordial que ela diz ao outro, o estran­
geiro27, o arrivant28, poderia sempre ser um dar as boas-vindas a algo

25 O argum ento do quase-transcendental (a dependência transcendental ao argu­


mento quase-Iógico sobre a possibilidade necessária) que é quase-transcendental,
justo em função de sua complicação dos níveis empírico/fático e transcendental, já
está colocado - ainda que discretam ente, é verdade - na prim eira obra publicada de
Derrida: ver sua “Introdução” a L 'origine de la géométrie, de Husserl, pp. 168-169.
Cf. m inha tentativa de form alizar esta situação em Derridabase. In: Bennington, G.
& Derrida, J. Jacques Derrida. Paris: Seuil, 1991. Jacques Derrida. Trad. Anamaria
Skinner. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.
Ver o apelo explícito de Derrida a um a noção de chance no contexto de Lévinas (e
da leitura) em En ce m om ent même... In: PSY, p. 175, e de forma mais geral em Mes
chances..., que desenvolve algo com o um a ética de “dar chance à chance”.
Ver o pequeno escrito Nombre de oui> dedicado a Michel de Certeau, o qual, em
jych é, se inicia com a intraduzível frase “Oui, à Vétranger” (“Sim ao estrangeiro” /
àl>5 ^d”) Stran&er>’’ ou> como 0 contexto segue sugerindo, “Sim, ao exterior” / “Yes,

A figura do arrivant chega em Apories (Paris: Galilée, 1993) como um nom e para
3 a ,S?^uta *m Previsibilidade do ainda por vir. Ver tam bém a elaboração mais infor­
ma e Derrida desta questão num a discussão com Alexander Garcia D üttm ann,
Perhaps or maybe.
D esconstruçâo e É tica

o u alguém que iria sim plesm ente d errubar com um sopro a rtiinh
casa, m inha acolhida, na soleira da qual eu estendo o cumprimento&
a oferta de com ida e bebida, no gesto ético original, de acordo com
Lévinas. A ética significa, então, nessa perspectiva, que eu saiba a pri0r•
que a ética é constitutivam ente pervertível, m as que eu nunca sei de
antem ão quando ela é, de fato, pervertida. Com o vimos antes, qual­
quer conhecimento a esse respeito im ediatam ente eliminaria a especi­
ficidade do ético em favor de um a aplicação adm inistrativa ou buro­
crática de regras cognitivas.
Essa situação parece prom over o que poderia ser chamado de
u m a visão decisionista da ética. Sem um a espécie de teste anterior, e
supostam ente obrigatório do que é ético, estipulado pelo assim cha­
m ado form alism o kantiano, e sem o tipo de garantias oferecidas pela
espécie de pensam ento ético que fundam enta a ética, de forma não
problem ática, num ethos ou mesmo ethnos particular29, parece inevi­
tável que a ética se transform e num a questão de decisões singulares
tomadas em ocasiões de eventos singulares. E, com o é também o caso
do decisionismo de Cari Schmitt no cam po da teoria política, sem­
pre parecerá que se corre o risco de incentivar um a compreensão
particular da soberania do sujeito que decide30. Não é difícil observar
que as dúvidas de Derrida quanto à prim azia que Lévinas concede ao
outro na relação ética, com seu concom itante (e atraente, sedutor)
rebaixamento do sujeito de sua clássica posição voluntarística, sem­
pre poderão parecer correr o risco de retornar a um a forma de subje­
tivismo, sem qualquer doutrina da subjetividade para sustentá-las.1

Esta é a tensão que marca a influente obra de Alasdair M aclntyre, Short history
ethics. 2.ed. Londres: Routledge, 1998. M aclntyre quer associar um a verdade fund.
dora da ética a um m om ento pré-filosófico (hom érico, p o r exem plo), no qual <
julgamentos éticos estavam ligados de form a não problem ática à sua função soei?
e escreve então, um livro dedicado a lam entar a ética com o a história da perda des:
ver a e (pré-)ética. Gostaríam os de dizer contra isso que a ética somente come*,
« ^ ° IV (primitivo) entre função e ação, e que esta é apenas um a versão
ria [n !!! da étlCa' A ética>nessa Perspectiva, estaria atrelada à sua necess?
vathoî nnctu l- 3 C>3 na° P0<*er*a ser>então, razoavelm ente, objeto do tipo
pathos nostalg.co que lhe é conferido por M aclntyre.

e rekmbrade,CUt^ Schmitt extensamente em Politiques de Vamitié. Paris: Galileé, 1994


relembra essa d.scussão em Le m ot d ’accueil ( n i , p. 52).

26
D esconstruçao e Ética

É, pois, de suma im portância que Derrida, explícita e consistente­


mente, argumente que a lógica da decisão, requerida pela posição
que resumimos aqui, é mais poderosa do que os recursos da doutri­
na clássica do sujeito. Pois o que seria um a decisão que simplesmen­
te dispusesse m inhas próprias possibilidades subjetivas e egológicas
senão uma recusa do advento mesmo da alteridade que está sendo
aqui radicalizada como a condição (não ética) do ético? Se “decisão”
significasse simplesmente a expressão de minha vontade subjetiva,
então ela não seria decisão alguma, mas, novamente, num outro re­
gistro, a mera aplicação de possibilidades dadas num a situação, o
que consiste, precisamente, num certo desafio àquilo que é m era­
mente possível31. Derrida argumenta que o conceito de responsabi­
lidade, que é um a maneira de se adentrar naquilo que aqui está sen­
do descrito, excede os recursos do conceito de sujeito em tal medida
que o sujeito funciona como um conceito des-responsabilizador, um
conceito que encerra a natureza infinita da responsabilidade, que
Lévinas teve o mérito de trazer tão poderosamente. E se a “defesa” de
Husserl por Derrida em Violence and metaphysics pareceu correr o
risco de reinstalar a primazia do sujeito contra os insights mais auda­
ciosos de Lévinas, Le mot d'accueil torna mais claro o que a economia
do texto anterior pode ter obscurecido um pouco: se pretendemos
falar inteligivelmente a respeito de decisões e responsabilidades, en­
tão devemos reconhecer que elas têm lugar através do outro, e que o
seu ter lugar “em m im ” nos diz algo a respeito do outro (já) em m im ,
de form a que, seguindo um o u tro “axiom a” do p en sam en to
desconstrutivista, “eu” sou apenas na medida em que já abrigo (aco­
lho) o outro em mim; se apenas, como indicamos no início deste
esboço, na medida em que, para ser eu mesmo, devo aceitar como

31Aqui também a ética envolveria um a certa experiência do impossível, a qual Derrida


gosta de associar à desconstruçao com o tal. Isso se liga intim am ente com o sentido
de uma obrigação de ser inventivo ou criativo. Para um a visão não desconstrucionista
da ligação entre criatividade e impossibilidade, ver, de M argaret Boden, The Creative
mind. Londres: Weidenfeld and Nicolson, 1990. Parece-me que Simon Critchley in­
terpreta erradam ente a lógica da decisão p o r associá-la a um uso “decidido”, de
sua parte, da linguagem da tradição, e por insistir, à luz daquela decisão, em opor o
fático —ou contingente —àquilo que ele só pode então com preender com o um
transcendentalismo de Derrida (The ethics o f deconstruction. Oxford: Blackwell, 1992,
p. 42 e capítulo 5).

27
D esconstruç Ao e É tica

m in h a a alteridade da “trad ição ” (m in im am en te na form a da lín


que eu falo, mas que nunca escolhi32, e sob o n o m e que m e foi 3
m as o qual eu nunca, eu m esm o, m e dei33). A qui tam bém D errid’
encontra-se explicitam ente estendendo (e, dessa form a, tam bém res
peitosam ente contestando) Lévinas:

Se as perseguirm os com a necessária audácia e rigor, estas con


seqüências devem nos levar a u m o u tro pen sam en to da decisão
responsável. Lévinas, sem dúvida, não diria isto nestes termos
m as não se poderia argüir neste caso [D errida tin h a acabado de
citar Lévinas no sentido de que: “N ão sou eu - é o o utro que diz
sim ”] que sem exonerar a m im m esm o, de qualquer forma, a
decisão e a responsabilidade são sem pre do outro? Q ue elas sem­
pre retornam para o outro, a p artir do outro, seja este outro o
outro em mim? Pois seria isto realm ente um a decisão, um a ini­
ciativa que perm aneceria pura e sim plesm ente “m inha”, em con­
form idade com a necessidade que ainda parece requerer, na mais
poderosa tradição da ética e da filosofia, que a decisão seja sem­
pre m inha decisão, a decisão daquele que livrem ente pode di­
zer “eu”, “m im ”, ipse, egomet ipse? Aquilo que retorna a mim des­
ta form a seria ainda um a decisão? Teríamos o direito de dar este
nom e “decisão” a um m ovim ento puram ente autônom o, seja
este m ovim ento aquele de um a acolhida e hospitalidade, que
procederia somente de m im mesmo, e m eram ente desdobraria

d ^ m ^ n r t r *nvolvim ento? de D errida «obre este tem a na obra sobre Joyce (ver espe
" r í “ 6 gram ° P hone- In: Ulysse gramophone, deux mots pour Joyce. Pará
ris Galilée T Ve‘^ m a'S autobi°g ràfico, Le monolinguisme de l’autre. Pa
desenvolvidi n i T n do “ nstitutivo o u tro -em -m im é, m uito naturalmente
Î GaH £ 199V Î , De r nda Sobre Freud: ver especialm ente M al d ’archive. Pa
R e iu m e D Ù m a Î Í n T ra d Cláudia de M oraes Rego. RM de Janeiro
n ù ^ r o £ T á , na f qUI T referid° com o MA. Havendo apenas un
mTaduzfvel L
inrraauzivel 771 ^ reSpeit°
f un ’se garde de Vautre” . à edi^ f™ cesa. N. do T.) E a fôrmult
33 Cf. La guerre des nom s propres In- HR p - j .v ,, .

«L . x r i „ s ™ 0
t™° inr Mad'-Ab“ "'“ ”*>
« r “ m bém L '.p h o n ,™ a „ . S Î T h " “ n ° m " '' “ “ P° " ‘

28
D esconstruçAo e É tica

as possibilidades para um a subjetividade que fosse a minha? Não


estaríamos justificados em verm os nisto o desdobrar de um a
imanência egológica, o desdobram ento autônom o e autom áti­
co dos predicados ou possibilidades próprios a um sujeito, sem
aquele dilaceram ento que deve advir em qualquer assim cha­
m ada livre decisão?

Essa radicalização p o r D errida do pensam ento de Lévinas con­


siste, de certo m odo, em não mais do que um rigoroso d e s d o b r a - ^
mento do conceito de alteridade, que Lévinas teve o incomensurável
mérito de trazer à luz com o o m om ento constitutivo do ético. Essa
“radicalização” pode sempre parecer (e os levinasianos sem pre assim
o com preenderam ) justam ente o oposto, num a redução do radica­
lismo do próprio pensam ento de Lévinas, na m edida em que este
radicalismo parece protestar contra a absolutização, po r Lévinas, do
outro e, nesse sentido, tornar-se o outro menos outro do que ocorre,
efetivamente, em Lévinas. Mas, nesse terreno paradoxal, devemos ser
cautelosos quanto a um a tal lógica linear: a construção que D errida
faz da alteridade com o sempre menos que absoluta constitui, de fato,
um pensam ento do outro como mais outro que o absolutamente ou­
tro. Essa aparente lógica de “menos é mais” surge dos primeiros insights
de Derrida sobre a noção de diferença, e o quase-conceito de différance,
conforme sugeri, em outro lugar, pode ser pensado de form a provei­
tosa com o um nom e para a não-absolutidade da diferença34. A
différance é o que salva um pensam ento da diferença dos argum entos
hegelianos sobre a diferença absoluta que malogra em indiferença e
absoluta identidade, ou então afirma a diferença na indiferença e ab­
soluta identidade, como não-receptiva à resolução dialética que Hegel
pensa seguir-se, inevitavelmente, da verdade da diferença que supos­
tamente reside na oposição e na contradição. O pensam ento aparen­
temente máximo da diferença como contradição, de fato, sempre leva
a uma reafirmação da identidade para além da diferença, enquanto
o pensamento aparentem ente m ínim o da diferença, ao lado da opo-

Ver m eu artigo D errida. In: A companion to continental philosophy. Ed. S. Critchley


and W. Schroeder. Oxford: Blackwell, 1998, p. 553.

29
D esconstruç Ao e É tica

sição e contradição, libera u m conceito de diferença m ais radical


refratário, que não deve ser teleológica ou dialeticam ente reu V
n u m a identidade m aior35. 10
N o presente contexto, a conseqüência desse pensam ento sobre
diferença o u alteridade com o não absolutas é o que salva Derrida d3
tentativa de Lévinas de situar o ético, en q u an to tal, com o “filosofia
prim eira”, co n tra a ontologia, e tam bém da últim a piedade do apel0
a D eus com o a quase inevitável figura da alteridade absoluta e, p0r
conseguinte, com o a verdade da face singular do outro que funda
m en ta a ética, dá-lhe sentido e, supostam ente, nos salva da desorien­
tação. Mas, do m esm o m odo, e este é tam bém em geral um traço do
pensam ento desconstrutivista, torna-se difícil ter com o confiáveis as
distinções herdadas da metafísica entre, po r exemplo, ontologia, éti­
ca e política. As radicalizações de Lévinas realizadas p o r Derrida na
prim eira parte de Le m ot d ’accueil tendem a com plicar a distinção
entre ontologia e ética36, e a segunda parte sugere que Lévinas não
estaria apto, a despeito dele mesmo, de m anter os tipos de distinções
entre ética e política que são, todavia, cruciais para sua filosofia, pelo
m enos desde o parágrafo de abertura de Totality and infinity37.
A questão de D errida deriva- se daquilo que acabamos de consi­
derar a respeito da figura da terceira parte: pois se a terceira parte
torna possível a relação ética enquanto tal ao instigar um a contami­
nação originária e necessária de sua pureza, então o traço definidor
do ético (a figura dual do face a face, ainda que assimétrico) tende a

É curioso que D errida não tenha publicado um a análise detalhada deste momen­
to em Greater logtc, a qual ele cita, com aparente aprovação, em V M (n. 1, p. 227),
mas a qual ele evoca mais criticam ente em Positions. Paris: M inuit, 1972. Posições.
j a d . Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: A utêntica Editora, 2001.
fnfma ^ é-? e^e’to da anaEse do rastro em GR, em que a escolha deste termo é, de
10? 1 lnteressant<z m otivada, em parte, por seu próprio uso em Lévinas (pp-
linsma J m e exPhcitam ente apresentado em GR com o o que abre áreas de
linguagem, tem porahzação e a relação com o outro (p. 69).
m entos em n^p sim plesm ente se alinha - com o os m aiores deles - entre osjulga-
™r e vencèr a an VC " m ° ralidade- E,a '« m a a m oralidade derrisória. A arte de pre-
exercício m esmo P-° r ‘‘*uaÍ56l)ler meios _ política - , im põe-se, então, com o o
à ingenuidade.” (TI, ix ^ ^ l] ) P° ‘tlCa Se opõe à m oralidade com o a filosofia se opoe
D esconstruçâo e Ética

perder-se na perspectiva de um a multiplicidade de relações introdu­


zidas pela abertura à terceira parte em geral. Nesse caso, poderiam os
dizer que estamos tanto no dom ínio da política quanto no da ética.
Essa pluralização perturbadora e até mesmo dispersiva da figu­
ra do outro (para o qual Lévinas apelou para garantir um princípio
de sentido num a situação de angustiante desorientação) dá origem,
em outros ensaios recentes de Derrida, à surpreendente fórm ula tout
autre est tout uutre38. Essa fórmula, traduzida por David Wills como
“todo outro é sempre (um pouco) outro” [every other (one) is every
(bit) other], in tro d u z sim ultaneam ente um a certa singularidade
irredutível e um a certa pluralidade. Um dos desejos do pensam ento
de Derrida sempre foi o de apreender conjuntam ente singularidade
e pluralidade ou multiplicidade, e esse desejo pode ser encontrado
ainda em sua obra recente, tanto por meio do questionam ento da
distinção de Kierkegaard entre o ético e o religioso em Donner la
mort, como por meio da tentativa de repensar o conceito de dem o­
cracia em Politiques de Vamitié. O princípio pelo qual a m esm a
(irrecolocável) singularidade do outro (o princípio de sua diferença)
é somente pensável no contexto da equalização potencial dessa sin­
gularidade com toda outra singularidade (o princípio de sua indife­
rença) fará desafios difíceis ao nosso pensamento por algum tem po
(incalculável) p o r vir. No contexto da “desconstruçâo e ética”, é esse
princípio que garante a possibilidade, tanto da sempre singular rela­
ção “ética” quanto de sua transgressão e dispersão perpétuas na m ulti­
plicidade “política”.

Tradução: Ligia Saramago


Revisão técnica da tradução: Paulo Cesar Duque-Estrada

38Ver especialmente D onner la m ort. In: Véthique du don. Ed. Jean-M ichel Rabaté e
Michael Wetzel. Paris: Metailié, 1992, pp. 79-108. Politiques de Vamitié, p. 259, e M A,
p. 123.

31
A pêndice
P olítica e A mizade:
uma D iscussão com Jacques D errida*

Geoffrey Bennington

Em nom e da U niversidade de Sussex, e, mais especificamente, em


nome do Centro de Pensam ento C ontem porâneo Francês, é u m gran­
de prazer e u m a h o n ra para m im receber Jacques Derrida. Nos últimos
cinco anos, é a segunda vez que Jacques D errida nos visita, e, por várias
reações que pude presenciar, eu sei o quanto as pessoas se sentem feli­
zes com isto. Eu não vou fazer nenhum tipo de apresentação sobre
quem é Jacques D errida ou sobre o que ele teria a nos interessar; eu
deduzo que a presença de vocês aqui, tão numerosa, me perm ite pen­
sar que isto já é bem claro para todos vocês.
Então, eu farei apenas alguns breves apontam entos, para nos dei­
xar o m aior tem po possível para ouvirm os Jacques Derrida. O form a­
to que acordam os para a sessão é o seguinte: eu falarei mais ou m e­
nos por cinco m inutos e vou sugerir três ou quatro áreas prelim ina­
res de discussão, às quais Jacques D errida irá responder, sobre este
tópico geral de política e am izade que, como alguns de vocês devem
saber, dá título a u m livro recentem ente publicado em inglês (foi
publicado em francês em 1994)1, e eu espero que alguns de yoces
tenham lido. Assim, vou inicialm ente sugerir três ou quatro in

A pedido de Jacques D errida, esclarecem os que se trata defU^ ^ ^ g ton> na 0ca-


instigada p o r algum as questões dirigidas ao a u to r p o r Geo rey ^ [Jniver-
•ao d<: u m , d „ v i s i t a s d e D e r r id , , o C e n .n fo , M m f M „
xdade de Sussex (o co rrid a em 1." de dezem bro de 1997). O tex o, q ^ ^ da
Primeira vez, foi tran scrito p o r B enjam in Noys e encontra-se ac ,
universidade (http://w w w .sussex.ac.uk/Units/frenchthought/derr

acesso em 18.02.2003). r
Derrida, J. Politiques de l'am itié. Paris: Galilée, 1994. . 0

235
D esconstruçào e É tica 1
de indagação para dar a Jacques D errid a u m a oportunidade de e h
çar algumas das linhas principais d o arg u m en to do livro, e, após ° '
respostas a este convite, ele terá m u ito prazer em receber as suas q^
tões. Eu gostaria de sugerir, p ara a p a rte po sterio r da sessão, já qu^
nosso tem po disponível é bastante lim itado, que tentem os perrnane°
cer, pelo m enos de um m o d o geral, no âm bito desses temas iniciais
que são tratados no livro.
Eu reuni quatro linhas bem sim ples de questionam ento que são
apenas aberturas para um a discussão com base no livro Politiques de
Vamitié. A prim eira é a questão: por que política? É notório que, já há
alguns anos e a p artir de várias frentes, você vem sendo alvo de uma
dem anda por política ou de um a dem anda p o r um a determinada
política, e se poderia pensar que este livro estaria, finalmente, res­
pondendo a tal dem anda. Sendo assim, estaria você, neste momento,
elaborando ou, diriam alguns, finalm ente elaborando um a teoria
política ou um a política desconstrutiva?
Segunda questão, ou linha de questionam ento, de m odo igual­
mente direto: por que amizade? O livro chama-se Politiques de Vamitié,
e pode parecer estranho aproxim ar argum entos políticos do aparen­
temente marginal conceito de amizade, em detrim ento de conceitos
mais óbvios como soberania, poder, legitim idade, representação e
assim por diante. Em outras palavras, o que a am izade teria a ver
com a política e o que a política teria a ver com a amizade?
A terceira questão ou linha de questionam ento diz respeito a
um a palavra ou um conceito que aparece insistentem ente ao longo
do livro. Trata-se da palavra ou conceito democracia, e, mais especifi­
camente, da formulação que é repetida ao longo do livro sobre uma
emocracia por vir. Eu pergunto se você poderia nos dizer algo sobre
isso e sobre o que isso significaria.
E a última linha de questionam ento, que é realm ente uma aber-
a para o trabalho que você vem desenvolvendo desde a publica-
et ^ esse ^ vro>em 1994, é baseada na observação de que
o cenf3 3h ° m a*S recente inclina-se a mover, ou parece ter movido,
DolítirJ^ 6 ^ rav^ ac*e desse tipo de investigação política ou quase-
mente n» k r ^ 1 ^ ° 3° conceito de hospitalidade. Você tem, recente-
lidade- en n ^ ° mu*tos trahalhos em torno do conceito de hospita-
rgunto se você poderia nos dar um a noção geral do que
236
P olítica e A mizade : uma D iscussão
com Jacques D errida

isso envolve talvez em to rn o desta situação, aqui, hoje, onde estam™


oferecendo a você algo com o hospitalidade; nós o estamos acolhe
do, mais ou m enos hospitaleiram ente, em nosso espaço mais ou
menos dom éstico, que está ele próprio contido em um espaço natu
ral ou cultural que nem sem pre foi, e que, com freqüência, ainda não
é muito hospitaleiro com seu trabalho.
Então, são quatro questões: 1. Por que política? 2. Por que ami­
zade? 3. E quanto à dem ocracia? 4. E quanto à hospitalidade?

Jacques Derrida:

Eu tenho trin ta m inutos hoje. Obrigado. Eu estou m uito grato,


satisfeito e h o n rad o p o r estar de volta aqui, e especialmente por
estar associado a este novo C entro de Pensamento Contemporâneo
Francês que eu penso ser, e não sou o único a pensar assim, uma
iniciativa m uito im p o rtan te e necessária. Todos esperamos seu su­
cesso, e tentarem os fazer o m elhor de nós para participar desse em­
preendim ento.
Agora, com o podem perceber, estas questões são dificílimas, pois
tenho dé improvisar, em inglês e em poucos minutos, uma resposta
direta, sem saber se alguns de vocês leram ou não os textos, que são
mais precisos e explícitos do que tudo que eu possa vir a dizer aqui.
Então, tentarei responder de um a form a mais direta e resumida pos­
sível às questões de Geoff.

Por que política?

É verdade que, desde o início, por assim dizer, quando comece'


escrever e a lecionar, muitas pessoas, amigável e não amigave e >
me censuraram por não colocar diretamente questões po iticas.
que isso era, ao mesmo tempo, um a objeção justa e mjus * ^
Pois eu acho que tudo que fiz estava direta ou indiretamente c o ^
^ questões políticas, e eu poderia mostrar isso de u m a ° medida
cisa. Não obstante, é, também, uma verdade e justa obj ^ > aguar.
em que essa relação com a política era muito in ire ^ 0 np
dando o momento, no desenvolvimento de mm ao * política,
vel que eu desejava alcançar, nesta reelaboraçao
237
D esconstruçào e É tica

pudesse ser alcançado. E isso explica o atraso, o m odo implícito


que eu tratei a questão inicialm ente. c° m
Agora, to m an d o literalm ente a questão de Geoff, que eu ten h o '
m inha frente: não acho que, m esm o neste m om ento atual do meu
trabalho, eu esteja respondendo à d em an d a p o r política, ou seia
p ro p o n d o algo que possa se encaixar no que se chama, em nossa
tradição, de política. O que estou ten tan d o fazer, agora, especialmen­
te no livro Spectres de M arx2, o u em Politiques de Vamitié, é tentar
entender ou repensar (e eu não sou, obviam ente, o único que vem
fazendo isso) o que é a política, o que está envolvido precisamente na
dissem inação do cam po político. Desse m odo, não estou propondo
u m novo conteúdo político dentro da velha m oldura, mas tentando
redefinir ou pensar de m odo diferente o que está envolvido no polí­
tico com o tal, e, p o r essa m esm íssim a razão, não p roponho um a teo­
ria política, posto que o que digo, especificam ente sobre a amizade e
a hospitalidade, o que é a am izade e o que é a hospitalidade, excede,
precisam ente, o conhecim ento. Na sua form a extrem a e mais essen­
cial, trata-se de algo que não pode tornar-se um teorem a, algo que,
sim plesm ente, tem de ser conhecido. H á u m certo tipo de experiên­
cia, de experiência política na am izade e na hospitalidade, que não
pode ser sim plesm ente objeto de um a teoria, o que não configura
u m m ovim ento antiteorético. Acho que a teoria política é necessária,
m as tento articular essa necessidade de um a teoria política com algo
na política ou na am izade, na hospitalidade, que não pode, por ra­
zões estruturais, tornar-se objeto de um conhecim ento, de uma teo­
V.
ria, de um teorema.
Então, não se trata de um a teoria política: parte do que estou
querendo dizer nestes textos não participa de um a teoria que seria
incluída no cam po conhecido com o politologia ou teoria política, e,
tam bém , não é um a política desconstrucionista. N ão creio que haja
algo com o um a política desconstrucionista, se, pelo nom e de políti­
ca, entendem os um program a, um a agenda ou, ainda, o nom e de um
regime. Veremos que m esm o a palavra democracia, que eu tento am ­
bientar, não é sim plesm ente o nom e de u m regime político ou da

2 D errida, J. Spectres de M arx. Paris: Galilée, 1993. Espectros de M arx. Trad. A n am aria
Skinner. Rio de Janeiro: R elum e-D um ará, 1994. N . do T.

238
Política e A mizade: uma D iscussão com J acques D errida

organização de u m Estado-naçao. A ssim , não acho que isto em eme


estou engajado, o que v en h o te n ta n d o fazer de m odo m uito compli
cado já há u m longo te m p o , possa ser cham ado de teoria política ou
de política d esconstrucionista. M as acho que, dadas as premissas (ou
supondo-se que elas estejam dadas) do que estive fazendo antes des­
tes últim os livros, chegou o tem p o de eu dizer algo mais sobre políti­
ca. N ão u m a sim p les te o ria p o lític a o u u m a p o lítica descons­
trucionista, m as, n o vam ente, dizer algo sobre política não é simples­
mente um gesto especulativo, é u m com prom isso concreto e pes­
soal, e este com prom isso perform ativo é p arte do que estou escre­
vendo. Spectres de M a rx , antes de ser um texto sobre a teoria marxis­
ta, sobre a h eran ça de M arx, é, digam os, um com prom isso pessoal
em um certo m o m en to , n u m a certa form a, n u m m odo singular.

Por que am izade?

Por que, então - a segunda questão - este privilégio concedido,


neste cam po que eu acabei de descrever, à amizade? Geoff diz, m uito
corretam ente, que a am izade tem sido, por séculos, um conceito apa­
rentem ente m arginal d entro do cam po da política e da filosofia polí­
tica. Isto é verdadeiro e não tão verdadeiro assim: é marginal nas usuais
taxinomias dos conceitos políticos. N ão se pode encontrar ali o con­
ceito de am izade; ele é norm alm ente deixado à ética, à psicologia ou
à moral, p o r não ser considerado um conceito político, como são
considerados governo, soberania ou cidadania. Mas, tão logo se leem
os textos canônicos de teoria política, com eçando por Platão ou
A ristóteles, d esco b re-se q u e a am izade desem penha um papel
organizador na definição d e justiça e, até mesmo, de democracia. Por
exemplo, em Politiques de Vam itié, cito alguns textos de Platao e
Aristóteles, nos quais a am izade é definida com o a virtude essencia .
Deixem-me fazer apenas um a referência escolar a Aristóte es,
que diz que existem três tiposde-mnizade: primeiramente, a mais
alta amizade seria baseada nã virtudé e não teria nada a ver co
política - tratar-se-ia da amizade entre dois homens virtupsos; em
segundo lugar, a amizade baseada ná utilidadè e no .
amizade política; e, em terceiro lugar e no nível mais aixo,
amizade baseada nò prazer -) como diz Aristóteles, quan o n
239
D esconstruçâo e É tica

busca prazer no m eio dos jovens. Assim, vê-se que tem os um concei­
to de am izade que é e não é político. A am izade política é um tipo de
amizade. Uma das questões poderia ser, para colocá-la de um modo
bem corriqueiro, a seguinte: deveríam os nós selecionar nossos ami­
gos dentre os nossos aliados políticos? D everíam os nós concordar
politicam ente com u m am igo para iniciarm os u m a amizade? Isso
seria necessário? São política e am izade, am bas, homogêneas? Pode­
ríam os nós ter um am igo que fosse, politicam ente, um inimigo, e
vice-versa, e assim po r diante? N ovam ente, em Aristóteles, tem-se a
idéia de que a busca da justiça não diz respeito em nada à política,
tem -se de ir além ou, às vezes, trair m esm o a am izade em nome da
justiça. Desse m odo, há u m núm ero de problem as nos quais se vê o
am or - não o am or, mas a philia e a am izade - desem penhando um
papel organizador na definição de experiência política.
Por conseguinte, o que tento fazer - e estou olhando para o meu
relógio —é seguir a linha de paradoxos entre am izade e política, a fim
de buscar um m odelo de amizade predom inante e canônico, que, em
nossa cultura, dos gregos até agora (na cultura grega, na cultura
rom ana, na cultura judaica, cristã ou islâmica), tenha sido dominante,
\ tenha sido prevalecente e hegemônica. Q ue aspectos desse conceito
J prevalecente e hegem ônico poderiam ser politicam ente expressivos
\ e politicam ente significantes? É claro que eu não quero homogeneizar
J - este conceito não é u m sim ples conceito hom ogêneo, não é
exatam ente o m esm o na Grécia, na Idade M édia e hoje - , ainda que
existam alguns aspectos perm anentes. E é justam ente esse feixe de
aspectos perm anentes que eu tento descobrir, analisar e formalizar
de um ponto de vista político.
Então, quais são eles? Falando m uito, m uito, m uito grosso modo:
antes de tudo, o m odelo dessa am izade diz respeito à amizade entre
dois hom ens jovens, m ortais, que têm um contrato segundo o qual
um sobreviverá ao outro, um será o herdeiro do outro e eles deverão
concordar politicam ente. Eu dou um bom núm ero de exemplos des-
se m odelo que exclui, antes de tudo, a am izade entre um homem e
um a m ulher ou entre mulheres. Por conseguinte, as mulheres en­
contram-se totalm ente excluídas desse m odelo de amizade: tanto uma
m ulher com o amiga de um hom em , com o duas mulheres como ami­
gas entre si. E, portanto, a figura do irm ão, da fraternidade, está tam-

240
P olítica e A mizade : uma D iscussão com Jacques D errida

bém no centro desse m odelo canônico. M ostro isso, evidentemente,


0r meio de u m certo n ú m e ro de textos e exemplos. A irmandade -
P fraternidade - é a figura dessa am izade canônica. É claro que esse
conceito de irm andade tem algum as premissas históricas e culturais,
gle vem da Grécia, m as tam b ém do m odelo cristão no qual a irm an­
dade ou a fraternidade é essencial. Os hom ens são todos irmãos, pois
são filhos de Deus - e pode-se encontrar a ética desse conceito até
mesmo em um conceito aparentem ente secular como o de amizade
ou de política. N a Revolução Francesa, este foi o fundam ento da De­
claração dos D ireitos do H om em . A fraternidade foi, na época, obje­
to de um terrível debate na França, no qual ela aparece, entre a igual­
dade e a liberdade, com o u m dos fundam entos da república. Dessa
forma, tem -se de lidar, aqui, com o que eu chamo de um conceito
falocêntrico ou fa lo g o c ên trico de amizade. É claro que isto não signifi­
ca, para m im , que a hegem onia desse conceito seria de tal modo po­
derosa que o que ela teria excluído permanecería total e efetivamente
excluído. N ão significa que um a m ulher não poderia ter a experiên­
cia de amizade com um hom em ou com outra mulher. Significa, ape­
nas, que, dentro dessa cultura, dessa sociedade em que esse cânone
prevalecente foi considerado legítimo e autorizado, não haveria voz,
nem discurso, nem possibilidade de reconhecimento destas possibi­
lidades excluídas. . .
Por isso, todos os conceitos que são fundamentais em política
eu apenas m encionei aqueles que Geoff selecionou:
representação - foram direta ou indiretamente marcados por esse co
c ito canônico. Dessa m aneira, mesmo a idéia de * m * o modo
como esta se definiu de inicio, teve de concordar com as p tessu p o ^
ções desde conceito, com o privilégio concedido â o b n m m .« ™
dade. O que irmandade significa? S ig n ifica, e».dentemente famüra
esquema familiar, filiação. Significa irmão, em vez e ,ns[ãn_
grande número de textos em que a uma e simp esm ^ Por.
cia do irmão, algo que não é diferente e quenao canônlca da
tanto, têm-se, aqui, todas as condições par ^ autoc-tonia na
política, do Estado (quais sejam: a relação co esentaça0,a
Grécia, com o território, Estado-nação, a 1 iav j ^ am esse conceito
soberania - todas essas condições con^ aS nressa razão que eu 1
falocêntrico de vín cu lo social co m o am iza c
241
D esconstruçâo e Ética

pensei que este fio condutor - a problem ática da am izade - poderia


ser útil no intuito de prosseguir com a desconstruçâo (digam os m ui­
to rapidamente) dessa carga maciça da teoria política tradicional, e
de me fornecer um a alavanca estratégica para continuar o trabalho
que eu fiz, enquanto ingressava no cam po da política de um m odo
mais eficaz.

E quanto à democracia?

Agora, a terceira questão diz respeito à democracia: po r que a pa­


lavra democracia, na expressão que eu freqüentem ente repito, demo­
cracia por vir7. Porque democracia é um nom e estranho para um regi­
me; de início, era difícil localizar a democracia no meio do espectro de
regimes, e todos sempre tiveram dificuldade em im putar um lugar para
a democracia. Democracia significa, m inim am ente, igualdade. Aqui se
vê o porquê de a amizade ser um a im portante chave para a discussão:
porque na amizade, e até mesmo na amizade clássica, o que está em
jogo é a reciprocidade, a igualdade, a simetria e assim p o r diante, etc.
Não há democracia a não ser como igualdade entre todos - e eu tenta­
rei, a seguir, tornar mais específico este “todos”*. Mas esta é um a igual­
dade que pode ser calculada, calculável: calcula-se o núm ero de coliga­
ções, de eleitores, de vozes, de cidadãos. Por outro lado, tem -se de con­
ciliar essa demanda por igualdade com a dem anda por singularidade,
com o respeito ao Outro como singular —e isto é um a aporia. Como
podemos nós, ao mesmo tempo, levar em conta a igualdade de cada
um, a justiça e a eqüidade, levando tam bém em conta e respeitando a
heterogênea singularidade de cada um?
Desde o início, a dem ocracia foi associada a valores, a axiomas,
que pertencem a esse conceito canônico de am izade, que quer dizer
irm andade, família, enraizam ento em u m territó rio (autoctonia),
sta o nação (dependendo do território), solo e lugar, etc. Agora, é
possive pensar em um a dem ocracia que poderia ser, então, se não
ajus a a, ao menos articulada a um outro conceito de am izade, um a
ou ra expenência de amizade que não seria sim plesm ente depen-

j * nte> Va*j°8ar com ° sentido de everyone, como todos e cada um. N. do


P olítica e A m iza de : um a D iscussão com J acques D errida

a nte ou su b o rd in ad a ao q u e cham ei de conceito canônico prevale-


nte de am izade (falogocêntrico, m asculino e assim p o r diante, etc.)
E isto é o que estou te n ta n d o elab o rar em Politiques de Yamitié: um a
democracia tão e stra n h a que n ão é m ais sim plesm ente redutível à
cidadania, à organização de u m regim e p ara u m a dada sociedade
como Estado-nação. Eu n ão te n h o absolutam ente nada contra o Es-
tado-nação. Eu apenas p ro cu rei en ten d er o que, hoje, vai além de
suas fronteiras - e, agora, ap ro x im o -m e lentam ente da últim a ques­
tão, sobre hospitalidade.
Quais têm sido, quais são e quais serão os lim ites da problem áti­
ca do Estado-nação? É possível que, p ara além do Estado-nação, o
conceito de dem ocracia guarde não apenas u m sentido, m as um a
força de injunção? P odem os, nós, pensar em u m a dem ocracia para
além dos lim ites do m odelo político clássico, do Estado-nação e de
suas fronteiras? É possível pensarm os de m odo diferente esta dupla
injunção, de igualdade para todos e respeito pela singularidade, para
além dos lim ites das clássicas política e amizade?
É em nom e disso que podem os tentar questionar o conceito (
canônico de am izade. Mas p o r que, em prim eiro lugar, faríam os isso? /
Por que estaríam os nós interessados em questionar, em desconstruir,
se se preferir, o conceito canônico de amizade? É em nom e da demo­
cracia, pois eu penso que, no tradicional conceito de amizade tal como
o herdamos, existe desigualdade e repressão. É em nom e de mais de­
mocracia que eu acho que tem os de destrancar, abrir, deslocar esse
conceito prevalecente, e isso não é apenas um a iniciativa m inha, não
apenas a in ic ia tiv a d e a lg u é m o p e ra n d o de u m a m a n e ira
desconstrutiva, isso é o que está acontecendo hoje. Hoje, esse m ode­
lo de irm andade, de hom em , de am izade, está sendo desconstruído
no m undo todo. O que eu digo sobre o Estado-nação é o que está
acontecendo hoje no m undo. A assim cham ada desconstrução é sim
plesmente o que está acontecendo, de m odo mais ou menos visjye
0u de um m odo diferente, nisso que se cham a desigualdade e e
senvolvimento”. Porque, hoje, se houver interesse nisso, poder-se-a
Ver q quão poderoso o conceito de fraternidade ainda é. na ret ri
dos políticos, a fraternidade retorna constantem ente —e, por veze ,
bastante respeitável - , mas, caso se enxerguem as implicações ess
conceito de fraternidade, é provável que se tenha questões.
D esconstruçào e É tica

Então, quando eu falo de u m ( d e m o c r a c ia p o r vir, não m e refiro a


uma democracia futura, a u m novo regim e, a u rn a nova organização
deEstados-nação (ainda que isto possa ser desejável), m as quero dizer,
com este p o r vir , a prom essa de u m a autêntica dem ocracia que nunca
se concretiza no que cham am os dem ocracia. Isso é u m m odo de se
prosseguir criticando o que hoje se dá em to d o lugar em nossas socie­
dades sob o nom e de dem ocracia. Isso não significa que a d em o cra cia
p o r vir será simplesmente um a dem ocracia fu tu ra corrigindo ou aper­
feiçoando as atuais condições das assim cham adas dem ocra-cias. Sig­
nifica, antes de tudo, que esta dem ocracia com a qual sonham os está
ligada conceitualmente a um a prom essa. A idéia de u m a prom essa está
inscrita na idéia de dem ocracia: igualdade, liberdade, liberdade de ex­
pressão, liberdade de im prensa - todas estas coisas estão inscritas como
promessas na democracia. D em ocracia é u m a prom essa. Por isso, ela é
o mais histórico conceito da política; é o único conceito de u m regime
ou de um a organização política no qual a história, que é o processo
sem fim de m elhoram ento e perfectibilidade, está inscrita no próprio
conceito. Desse m odo, é, com pletam ente, u m conceito histórico, e é
por essa razão que eu o cham o de p o r vir: é um a prom essa e perm ane­
cerá um a promessa. Mas p o r vir tam bém quer dizer, não u m futuro,
mas que tem de estar p o r v ir com o um a prom essa, com o u m dever, que
está p o r v ir imediatamente. 1
Nós não tem os de esperar que a dem ocracia fu tu ra aconteça,
que apareça; nós devemos fazer, aqui e agora, o que deve ser feito
para que ela ocorra. É um a injunção, u m a injunção im ediata, sem
atraso. O que nao significa que ela to m ará a form a de u m regime,
! Se lssociarm os a dem ocracia do n o m e de u m regim e, então,
na n n Uk 08 ^ n o m e d e m o c ra c ia a qualquer tip o de experiência
. de efetív dac*e>justiça, eqüidade e respeito pela singularida-
/ democrari ° Utr° ’ P° r assim dizer- Dessa form a, trata-se de uma
( devemos r e s t ^ &3^ ° ra> mas *sso im plica, evidentem ente, que não
ao EstaHn r, n n ^ 'r a dem ocracia ao político, no sentido clássico, ou
I T e r n o s ^ 0’ ° U à ddadania-
Pensar em ú im rela °~ 0] UltaS razões ú ue todos nós conhecemos, de
mas também co a ~a° •em ocra^ ca nao apenas com outros cidadãos,
porânea: sabe-s” 1 na° ' ddadaos-Trata-se de um a experiência contem-
que, entre as guerras, depois da Primeira Guerra
244
P olítica e A m izade : uma D iscussão com Jacques D errida

M undial, j á h a v ia n a E u ro p a » - e H a n n a h A r e n d t d e u u m a a te n ç ã o e S
pecial a is to - u m a m f i m d a d e d e p e s s o a s , n e m s e q u e r e m e x i K ™
sequer d e p o r ta d a s , m a s a p e n a s d e s lo c a d a s , q u e n ã o e r a m c o n s i d ê T
das c id a d ã o s , e, d e a c o r d o c o m H a n n a h A r e n d t, e sta s e ria u m a Z
origens d o q u e a c o n te c e u n a S e g u n d a G u e r r a M u n d ia l. E sta n ã o - c id a ­
dania d e p e s s o a s c o m as q u a is d e v e m o s n o s p r e o c u p a r , as q u a is deve
m os a c o lh e r, n o s u r g e , n o s c o m p e le a p e n s a r u m a re la ç ã o d e m o c rá tic a
p ara a lé m d a s f r o n te ir a s d o E s ta d o - n a ç ã o . O u seja, a in v e n ç ã o d e n o ­
vas p rá tic a s, n o v o d i r e ito i n t e r n a c io n a l, a tr a n s f o r m a ç ã o d a s o b e ra n ia
do E stad o . T e m o s, h o je , m u i to s e x e m p lo s d e s s a s itu a ç ã o n a s c h a m a d a s
in te rv e n ç õ e s n ã o g o v e r n a m e n ta is , e m t u d o q u e ex ig e in te rv e n ç ã o , in i­
ciativas p o lític a s , q u e n ã o d e v e m d e p e n d e r d a s o b e r a n ia d o E stad o ,
que, e m ú ltim a in s tâ n c ia , c o n c e r n e à c id a d a n ia . D e fato , n ó s sa b e m o s
- e é p o r isso q u e a ta r e f a é tã o v a s ta e in c e s s a n te - q u e , h o je , m e s m o
nas o rg a n iz a ç õ e s e in s titu iç õ e s in te r n a c io n a is , a s o b e r a n ia d o E sta d o é
u m a re g ra , e q u e , e m n o m e d o d ir e ito in te r n a c io n a l, a lg u n s E sta d o s-
nação m a is p o d e r o s o s d o q u e o u tr o s fa z e m a lei. N ã o a p e n a s p o r q u e
este d ire ito in te r n a c io n a l é b a s ic a m e n te u m d ire ito e u r o p e u , n a tr a d i­
ção d a E u r o p a e d o d ir e ito , m a s , ta m b é m , p o r q u e esses E s ta d o s -n a ç ã o
m ais p o d e r o s o s fa z e m a lei, is to é, eles c o m a n d a m , d e fa to , a o rd e m
in te rn a c io n a l. P o r ta n to , h á u m g r a n d e n ú m e r o d e p r o b le m a s u rg e n te s
que r e q u e re m p r e c is a m e n te essa tr a n s f o r m a ç ã o d o c o n c e ito d e p o líti­
ca, d o c o n c e ito d e d e m o c r a c ia e d o c o n c e ito d e a m iz a d e . A g o ra , já se
justifica, e m c e rta m e d id a , p o r q u e q u e e u e sc o lh i a hospitalidade c o m o
tem a p riv ile g ia d o e m m e u s re c e n te s s e m in á r io s e p u b lic a ç õ e s 4.

E q u a n to à h o s p i t a l id a d e ?

E u te n h o d e a c o lh e r o O u t r o - e e s ta é u m a in ju n ç ã o in c o n d ic i­
onal - , q u e m q u e r q u e s e ja e le o u e la , in c o n d ic io n a lm e n te , se m p e d ir
u m d o c u m e n to , u m n o m e , u m c o n te x to o u u m p a s s a p o r te . E sta é a
p rim e irís s im a a b e r t u r a d a m i n h a r e la ç ã o c o m o O u tr o : a b r ir m e u
espaço, m e u la r - m i n h a c a s a , m i n h a lín g u a , m in h a c u ltu ra , m in h a

ossivelmente, a publicação mais importante seja De 1’hospitalité (Paris. Calmann


1997). Mas esta linha de investigação pode ser também encontrada nas obras
,oo devant la loi (In: Derrida, J. et al. La faculté déjuger. Paris: Éditions de M inut,
voH;í0rce de loi: le “fondement mystique de l’autorité” (In: C a r d o z o L a w Review,
19,1990) e Le monolinguisme de Vautre (Paris: Galilée, 1996). • 0
D esconstruçáo e Ética

Nacão m eu Estado e eu mesmo. Na verdade nao ten h o de abrir, por.


nue iá está aberto, está aberto antes m esm o de eu to m ar um a decisão
sobre abrir ou não; então, tenho de m an ter ab erta a abertura ou ten­
tar mantê-la aberta incondicionalm ente. M as e claro que este incon­
dicionalmente é algo estarrecedor, é apavorante. Se decidirm os que
todos estarão aptos a adentrar m eu espaço, m in h a casa, m eu lar, m i­
nha cidade, m eu Estado, m inha linguagem , e se pensarm os como eu
penso, a saber, que, no que se adentra m eu espaço incondicional-
mente, pode-se m uito bem estar apto a m u d a r tu d o de lugar, a per­
turbar, a abalar e até m esm o a destruir, então o p io r po d e acontecer e
devemos estar abertos a isso, ao m elhor e ao pior. M as, visto que essa
hospitalidade incondicional pode conduzir a u m a perversão da ética
da amizade, tem os de condicionar essa incondi-cionalidade, negoci­
ar a relação entre essa injunção incondicional e a necessária condi­
ção, organizar essa hospitalidade - o que significa leis, direitos, con­
venções, limites, é claro, leis sobre im igração e assim p o r diante, etc.
Todos temos, especialmente na Europa, em am bos os lados do canal,
esse problem a de imigração, de até que p o n to devem os acolher o
Outro. Assim, a fim de pensarm os em um a nova política de hospita­
lidade, um a nova relação de cidadania, tem os de repensar todos esses
problemas a que me referi nestes últim os m inutos.
Deixem-me dizer só mais um a coisa, antes de m e deter nesta
tradição do conceito de hospitalidade, com base no que eu acabei de
dizer sobre cidadania e não-cidadania. Nós poderíam os simplesmente
sonhar com um a dem ocracia que fosse cosm opolita. H á um a tradi­
ção do cosmopolitismo - e se tivéssemos tem p o poderíam os estudar
esta tradição - que chega até nós, p o r u m lado, pelo pensam ento
grego dos estóicos, que tinham u m conceito de cidadão do mundo.
ao a u o .n a tradição cristã, tam bém oferece certo apelo ao cidadão
o m undo, precisam ente na figura do irm ão. São Paulo diz que so-
t ° 0S lrm ã ° s>ou seja, filhos de Deus. N ão som os, portanto, es-
essa tràHOS~PertenCemOS ao m u n d o c o m o c id a d ã o s d o m u n d o . E e
c o n c e 'td lda° qUC p o d e r !a m o s se g u ir a té K a n t, p o r e x e m p lo , e m cujo
p ita lid a d e ° P 0 ^ tÍS m 0 e n c o n t r a m ° s a s c o n d iç õ e s p a r a a h o s-
in ú m e ra s r o n d ^ n ° c o n c e ito d e c o s m o p o l i ta e m K a n t, ex iste m
nho^t) e stra n g e iro eS" ^ d e tU d °> é d a r o ’ d e v e “se a c o lh e r ° e s tra '
deve-se c o n c e d e r a T m t ^ lcía e m °lu e e^e é u r n c id a d ã o d e o u tr o país;
tem in ú m e ra s n n t / 6 ° \r d t o d e v is ita >c n ã o d e p e r m a n ê n c ia ; e exis-
w s c o n d iç õ e s q u e n ã o p o s s o , r a p id a m e n te , re su m ir

246
PoU tica E A mizade : uma D iscussão com Jacques D errida

aqui, mas esse conceito de cosm opolita, que é m uito singular, muito
djgno de respeito (e eu acho que o cosmopolitism o é um a coisa muito
boa), é um conceito m uito lim itado. Limitado precisamente pela refe­
rência ao político, ao Estado, à autoridade do Estado, à cidadania e ao
estrito controle da residência e do período de permanência.
Portanto, acho que o que tentei cham ar de um a Nova Internacio­
nal, em Spectres de Marx, deve, estritam ente falando, ultrapassar esse
conceito de cosm opolitism o. N ós temos de fazer muitas coisas e, é cla­
ro trabalhar dentro do espaço do cosmopolitismo e em um direito
internacional que m antenha viva a soberania do Estado. Há muito a
ser feito dentro do Estado e em organizações internacionais que res­
peitem a soberania do Estado; é o que se chama política hoje. Mas,
para além dessa tarefa, que é enorm e, devemos pensar e ser orientados
por algo que é mais do que cosmopolitismo, mais do que cidadania.
Agora se vê, apenas algumas frases antes de eu parar, o quão
estranho é este itinerário que clama por um novo conceito de dem o­
cracia, fundado - assum indo-se que tal seja um fundam ento, e não
estou certo de que o seja - nessa experiência sem fundam ento da
amizade, que não deveria ser lim itada como tem sido. Um conceito
de dem ocracia que redefiniria o político, não apenas para aléin d°
Estado-nação, mas para além do próprio cosmopolitismo - o que, ^ -
obviamente, parece ser um a perspectiva utópica ou m uito distante,[Np
mas eu não acho isso. Obviam ente, há um a enorm e distância, se pen­
sarmos que essas coisas têm de ser alcançadas e efetivamente concre­
tizadas, mas sabemos, hoje, assim que abrim os os jornais, que tais
problemas são urgentes e prevalecentes na vida cotidiana. Vemos, na
vida cotidiana, que esse conceito clássico de democracia, no mo o
como ele habita toda a retórica de políticos e parlamentares, encon­
tra-se abalado, que precisam os de algo mais. Vemos clue os.con<^*
de cidadania, de fronteira, de imigração encontram-se, oje, s°
terrível deslocam ento sísmico. E não apenas sentimos is o. po
analisar isto todos os dias, e, desse m odo, o que parece es >
bem distante de nós está tam bém m uito perto e n s, o
E é um a tarefa urgente reelaborar, repensar, reengajar e
nhado, de um m odo diferente, nestas questões.
Tradução: Rafael Haddock-Lobo

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