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Borges (1974).
32 [ O espelho da América
quem, como Borges sugere, talvez tenha tido muito pouco valor? Toda
história é, antes de qualquer coisa, uma história narrada. Um recorte,
uma seleção, uma memória que lembra e que apaga certos momentos,
circunstâncias e personagens. Uma história que, como veremos com
Calvino, às vezes nos força a afirmar que não sabemos o que querem
dizer aqueles dados fragmentários que temos entre as mãos.
Uma das questões mais interessantes que Borges nos obriga a
pensar é a que podemos levantar quando lemos as suas considerações
sobre a tradução de Burton: qual é o propósito do escritor? E, para isso,
Borges fala-nos, não do historiador, mas do homem Burton. Conta-
nos as numerosas viagens pela África, a expedição às fontes do Nilo, as
suas lutas na Somália... Apenas para nos dar uma vaga ideia de quem é
Burton. Tudo isso porque Borges quer que percebamos que
[...] o Burton da lenda de Burton é o tradutor das Noites [...] A
sua obra tem um prestígio prévio com o qual não conseguiu
competir nenhum outro arabista. As atrações do proibido lhe
correspondem. Trata-se de uma única edição, limitada a mil
subscritores do “Burton Club”, com o compromisso jurídico de
não reeditar [...]. Aventuro a hipérbole: percorrer as 1001 Noites
na tradução de Sir Richard não é menos incrível que percorrê-
las “vertidas literalmente do árabe e comentadas” por Simbad o
Marujo. (BORGES, 1974, p. 403).
criando uma narrativa que dialoga apenas com aqueles autores que são
contestados. Borges mostra-nos
[...] uma falta grave [de Richard Burton], que passo a declarar.
Centenas de dísticos e canções figuram nas Noites; Lane (incapaz
de mentir salvo no referente à carne) tinha-os transladado com
precisão, numa prosa cômoda. Burton era poeta [...]. A solução
“prosaica” do rival não deixou de indigná-lo, e optou por uma
tradução em versos ingleses – procedimento já previamente
infeliz, já que ia contra sua própria norma de literalidade total.
O ouvido, aliás, ficou quase tão prejudicado quanto a lógica [...].
(BORGES, 1974, p. 403-404).