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Um livro de cavalarias
Isabel Almeida
Palmeirim de Inglaterra, de Francisco de Moraes, edição de Lênia Márcia Mongelli, Raúl César
Gouveia Fernandes e Fernando Maués, São Paulo, Ateliê/Editora Unicamp, 2016, 744 pp.
dade’…”) e “Esta Edição”. Não custa per- a investigação já desenvolvida por estudiosos
ceber o rumo seguido. como António Dias Miguel, Aurelio Vargas
Preocupação fundamental foi enquadrar a Díaz-Toledo ou Margarida Alpalhão, e re-
obra de Moraes, lembrando que ela é parte cordam cartas de Moraes, com seus relatos
de uma tradição de raízes medievas, com miúdos de festas extraordinárias ou de um
franca afirmação (reforçada pela imprensa) quotidiano faustoso.
no século XVI. Palmeirim de Inglaterra – Proceder deste modo, i.e., contemplar,
notam os editores – surge num contexto de além do livro de cavalarias, diferentes gé-
florescimento dos ciclos fundados com Ama- neros cultivados pelo autor (cartas, um dis-
dís de Gaula e Palmerín de Oliva. Essa pro- curso autobiográfico designado “Desculpa
liferação começa por sobressair em território de Uns Amores” e ainda três diálogos), traz
castelhano, mas, como argutamente fazem benefícios: permite identificar interlocutores
crer os editores, o fenómeno revela-se tão e patrocinadores (com relevo para D. Leonor
complexo quanto fecundo: Palmeirim de In- de Áustria e sua filha, a Infanta D. Maria),
glaterra, quarto título dos Palmeirins, “des- lançando luz sobre redes de sociabilidade e
considera por completo as alterações sugeri- correspondências a distância; permite apurar
das no Platir” (p. 11), o terceiro da mesma subtis e significativas conexões entre textos
linhagem, e vincula-se aos dois primeiros, distintos (por exemplo, de acordo com os
maxime a Primaleón? Afinal, bem poderá editores, a matéria que constitui o cerne da
ter sido o auto vicentino de Don Duardos – “Desculpa” “externa-se” na misoginia fla-
recriação selecta de Primaleón – a despertar grante em Palmeirim de Inglaterra); permite,
a atenção de Francisco de Moraes para esse enfim, abarcando um todo, reconhecer nele
segundo livro do ciclo dos Palmeirins. Resta certa diversidade.
concluir: o sucesso das histórias fabulosas Asseveram os editores que, nos diálogos
superou fronteiras – genológicas e políticas. (só postumamente impressos, em 1624), Mo-
Em “Informações Biográficas”, vai sendo raes “envereda para uma outra direção: a dos
traçado o retrato de Moraes, autor moldado colóquios entre pessoas que discorrem sobre
em ambientes palacianos, ao serviço da fa- diversos temas […] para abordar assuntos po-
mília real ou da alta nobreza. Na verdade, lêmicos” (p. 19). Sem dúvida. No entanto,
mais do que um conjunto de dados, procura- apetece interrogar: trata-se, de facto, de “uma
-se aí desenhar um percurso, assinalar re- outra direção”? Este caminho não foi enge-
lações e destacar experiências. Cientes das nhosamente aberto na própria narrativa de
dificuldades próprias da pesquisa em do- Palmeirim de Inglaterra, em cujo capítulo
cumentos do século XVI, onde coexistem 106, por exemplo, se acha um embrionário
homónimos nem sempre destrinçáveis, os colóquio entre um cavaleiro e um ermitão?
editores retêm o que é inequívoco e fazem Que o género – livro de cavalarias – me-
avultar etapas como as estadas diplomáticas rece ponderada reflexão, mostra-o nitidamente
na corte de França, a respeito da qual Mo- a “Introdução”, ao apontar o carácter contro-
raes escreveu e para a qual enviou notícias. verso dessas obras, que arrastavam consigo
Lênia Márcia Mongelli, Raúl César Gouveia um antiquíssimo problema: a definição de
Fernandes e Fernando Maués não esquecem “falso” e “verdadeiro”, indissoluvelmente as-