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livros / Homenagem

Um livro de cavalarias

Isabel Almeida

Palmeirim de Inglaterra, de Francisco de Moraes, edição de Lênia Márcia Mongelli, Raúl César
Gouveia Fernandes e Fernando Maués, São Paulo, Ateliê/Editora Unicamp, 2016, 744 pp.

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E
ditar, hoje, uma nar- oferece uma edição cuidada – enriquecida
rativa quinhentista co- por ilustrações e precedida de um claro pre-
mo Palmeirim de In- âmbulo –, bem como uma bibliografia, um
glaterra, de Francisco glossário, índices e até uma genealogia dos
de Moraes (c. 1500-c. Palmeirins. Sem caírem na tentação de re-
1572), exige uma fina duzir a extensa obra de Francisco de Moraes
consciência do que se a uma antologia breve, os editores facultam
pretende com tal ini- um Palmeirim de Inglaterra integral e for-
ciativa: a que público(s) se destina? Quais necem estimulantes pistas para a sua fruição.
as metas a atingir? Lênia Márcia Mongelli, Quem percorrer o preâmbulo, vê-lo-á re-
Raúl César Gouveia Fernandes e Fernando cortado em quatro secções: “O Ciclo dos
Maués – os responsáveis pela publicação aqui Palmeirins”, “Informações Biográficas”, “In-
recenseada – não se demoram a explicitar trodução” (subdividida em mais quatro pon-
uma resposta para esses quesitos, mas tor- tos: “De que Servem Livros de Cavalarias
nam evidente que os consideraram, seja nas Fingidas?”, “Da Utilidade dos Livros de Ca-
opções tomadas, seja no conciso anúncio do valarias Fingidas”, “‘Verdades’ de ‘Fingimen-
seu propósito maior: “[...] não se tratando de tos’ no Palmeirim de Inglaterra”, “Quando
edição crítica, o trabalho de estabelecimento o ‘Fingimento’ se Eleva à Mais Pura ‘Ver-
do texto foi norteado pelo objetivo de apre-
sentar uma versão fidedigna e acessível da
obra, tal qual ela se apresenta na edição de
Neste texto foi mantida a ortografia vigente em Portugal.
1567 [...], a versão mais difundida” (p. 54).
O volume agora dado à estampa há-de in-
teressar a leitores especializados e a curiosos
decididos a ousar o primeiro contacto com ISABEL ALMEIDA é professora da
um livro de cavalarias. A uns e outros se Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

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dade’…”) e “Esta Edição”. Não custa per- a investigação já desenvolvida por estudiosos
ceber o rumo seguido. como António Dias Miguel, Aurelio Vargas
Preocupação fundamental foi enquadrar a Díaz-Toledo ou Margarida Alpalhão, e re-
obra de Moraes, lembrando que ela é parte cordam cartas de Moraes, com seus relatos
de uma tradição de raízes medievas, com miúdos de festas extraordinárias ou de um
franca afirmação (reforçada pela imprensa) quotidiano faustoso.
no século XVI. Palmeirim de Inglaterra – Proceder deste modo, i.e., contemplar,
notam os editores – surge num contexto de além do livro de cavalarias, diferentes gé-
florescimento dos ciclos fundados com Ama- neros cultivados pelo autor (cartas, um dis-
dís de Gaula e Palmerín de Oliva. Essa pro- curso autobiográfico designado “Desculpa
liferação começa por sobressair em território de Uns Amores” e ainda três diálogos), traz
castelhano, mas, como argutamente fazem benefícios: permite identificar interlocutores
crer os editores, o fenómeno revela-se tão e patrocinadores (com relevo para D. Leonor
complexo quanto fecundo: Palmeirim de In- de Áustria e sua filha, a Infanta D. Maria),
glaterra, quarto título dos Palmeirins, “des- lançando luz sobre redes de sociabilidade e
considera por completo as alterações sugeri- correspondências a distância; permite apurar
das no Platir” (p. 11), o terceiro da mesma subtis e significativas conexões entre textos
linhagem, e vincula-se aos dois primeiros, distintos (por exemplo, de acordo com os
maxime a Primaleón? Afinal, bem poderá editores, a matéria que constitui o cerne da
ter sido o auto vicentino de Don Duardos – “Desculpa” “externa-se” na misoginia fla-
recriação selecta de Primaleón – a despertar grante em Palmeirim de Inglaterra); permite,
a atenção de Francisco de Moraes para esse enfim, abarcando um todo, reconhecer nele
segundo livro do ciclo dos Palmeirins. Resta certa diversidade.
concluir: o sucesso das histórias fabulosas Asseveram os editores que, nos diálogos
superou fronteiras – genológicas e políticas. (só postumamente impressos, em 1624), Mo-
Em “Informações Biográficas”, vai sendo raes “envereda para uma outra direção: a dos
traçado o retrato de Moraes, autor moldado colóquios entre pessoas que discorrem sobre
em ambientes palacianos, ao serviço da fa- diversos temas […] para abordar assuntos po-
mília real ou da alta nobreza. Na verdade, lêmicos” (p. 19). Sem dúvida. No entanto,
mais do que um conjunto de dados, procura- apetece interrogar: trata-se, de facto, de “uma
-se aí desenhar um percurso, assinalar re- outra direção”? Este caminho não foi enge-
lações e destacar experiências. Cientes das nhosamente aberto na própria narrativa de
dificuldades próprias da pesquisa em do- Palmeirim de Inglaterra, em cujo capítulo
cumentos do século XVI, onde coexistem 106, por exemplo, se acha um embrionário
homónimos nem sempre destrinçáveis, os colóquio entre um cavaleiro e um ermitão?
editores retêm o que é inequívoco e fazem Que o género – livro de cavalarias – me-
avultar etapas como as estadas diplomáticas rece ponderada reflexão, mostra-o nitidamente
na corte de França, a respeito da qual Mo- a “Introdução”, ao apontar o carácter contro-
raes escreveu e para a qual enviou notícias. verso dessas obras, que arrastavam consigo
Lênia Márcia Mongelli, Raúl César Gouveia um antiquíssimo problema: a definição de
Fernandes e Fernando Maués não esquecem “falso” e “verdadeiro”, indissoluvelmente as-

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sociada ao debate sobre os conceitos de his- cas paixões; é “à margem das convenções
tória e de ficção – debate aceso e melindroso e da estereotipia” (p. 50) que constrói um
numa época em que as fábulas cavaleirescas Floriano do Deserto – o gémeo “rebelde”
fingiam ser história e a história acolhia em (p. 51) de Palmeirim, capaz de um “grito
si traços ficcionais. “Tempos cavaleirosos” de liberdade” (p. 51) que, em finais de Qui-
(p. 33), “séculos ‘heroicos’” (p. 29) – en- nhentos, já não seria facilmente tolerado.
fatizam os editores, buscando, em sínteses A presente edição não dá conta do que
panorâmicas, comparar o mundo medievo e foi, em 1592, a censura infligida ao texto
o renascentista, para melhor precisarem cada de Moraes. É pena. O leitor teria mais uma
um. Assim, advertem: Amadises e Palmei- razão para apreciar este trabalho, produzido
rins teriam, num século XVI que foi ainda com irrepreensível empenho e manifesto ri-
de conquistas e descobertas, “uma função gor. Cientes da fortuna editorial de Palmei-
didático-pedagógica” (p. 33). A ficção, com rim de Inglaterra, Lênia Márcia Mongelli,
todas as suas maravilhas, possuía uma vero- Raúl César Gouveia Fernandes e Fernando
similhança que a justificava, e Palmeirim de Maués preferiram concentrar-se no texto im-
Inglaterra – sublinham – entra nesse jogo presso em 1567, tendo embora em conta a
ambíguo. Também Moraes apresentou a nar- descoberta, propalada por Margarida Alpa-
rativa como traslado de uma velha “crónica”, lhão, de uma edição hipoteticamente anterior
de origem ignota. E também ele a compôs – porventura a editio princeps, de c. 1544.
de maneira a, por meio da representação de Qualquer empresa suscita discussão (os
fantasias, excessos, desejos e lutas, projectar editores sabem-no melhor que ninguém). Po-
questões e modelos actuantes. deremos pensar que alguns dos critérios de
Lênia Márcia Mongelli, Raúl César Gou- modernização e regularização ortográfica fo-
veia Fernandes e Fernando Maués não que- ram demasiado audazes. Converter “vertude”
rem, na “Introdução”, resumir o texto de em “virtude” ou “ingres” em “inglês”; elidir
Moraes. Aplicam-se, sim, por um lado, a a oscilação entre formas como “emparar” e
fazer sobressair grandes eixos da fábula e “amparar” são saltos que a história da lín-
recursos típicos das narrativas cavaleirescas gua não aconselha. Apagar a separação de
(desde as peripécias que ensombram o nasci- “partes” da narrativa e renumerar capítulos
mento do primus inter pares até ao conflito tão pouco parece necessário ou vantajoso.
entre cristãos e “inimigos da Fé” – p. 36); Reparos desse teor, porém, não diminuem
por outro lado, salientam uma qualidade que o mérito da obra realizada.
distingue o autor: a sua destreza na imita- Francisco de Moraes, se os documentos
ção de padrões estabelecidos ou no engen- não nos enganam, terá navegado por mar
dramento de marcas singulares. V.g., é “na até Ceuta e até França. A longa travessia do
contramão do paradigma” (p. 46), “sob uma Atlântico, só a sua narrativa a fez. Sorte dos
óptica […] a que não é estranha a noção de livros. Pleno de sabedoria e de graça, Palmei-
alteridade posta em voga pelo expansionismo rim de Inglaterra continua a ser fascinante.
marítimo” (p. 46) – vincam os editores – que A edição levada a cabo por Lênia Márcia
Moraes concebe figuras como as gigantas Mongelli, Raúl César Gouveia Fernandes e
Arlança e Colambar, atribuindo-lhes trági- Fernando Maués aí está para o provar.

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