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O ITINERARIUM MENTIS IN DEUM

Uma proposta de espiritualidade ecológica

Fr. Fábio Cesar Gomes, OFM*


Petrópolis – RJ

Resumo

O presente artigo analisa o Itinerário da mente para Deus, a mais tra-


duzida e comentada obra de Boaventura, numa perspectiva pouco con-
siderada, a da espiritualidade ecológica. Ao falarmos de espiritualidade
ecológica, procuraremos fazer, sobretudo, uma leitura de tipo teológi-
co/espiritual da referida obra, tentando evidenciar os grandes horizontes
teológico/espirituais para os quais o texto nos aponta.

Palavras-chave: natureza; antropologia; Trindade; cristocentrismo.

Introdução geral
Antes de propriamente iniciarmos nossa reflexão1, gostaríamos de
fazer algumas premissas.

* O autor possui doutorado em Teologia Espiritual pelo Pontificio Ateneo Antonianum (2010).
Atualmente é membro de conselho editorial da revista Grande Sinal e professor no Instituto
Teológico Franciscano de Petrópolis-RJ.
1. Este artigo também foi publicado na revista Espíritu y Vida, do Instituto Franciscano de Teo-
logia de Monterrey, México.

Grande Sinal: Revista de Espiritualidade e Pastoral, vol. 74, n. 01, p. 27-43, Jan./Jun. 2020 27
Fr. Fábio Cesar Gomes, OFM

Em primeiro lugar, o título anuncia que nos propomos refletir so-


bre o Itinerário da mente para Deus, a mais traduzida e comentada
obra de Boaventura, numa perspectiva que, de acordo com o que
verificamos, a mesma quase não foi considerada, a da espirituali-
dade ecológica.
Trata-se de uma expressão que, obviamente, não a encontramos
em nenhuma obra boaventuriana, uma vez que a preocupação com as
questões ecológicas, como as entendemos hoje, não pertencia ao hori-
zonte teológico/espiritual da Idade Média. De fato, tal como a de Fran-
cisco ao compor o seu Cântico das Criaturas, a intenção de Boaventura
ao compor o Itinerário não foi de caráter ecológico, mas, estritamente
espiritual e existencial, como ele mesmo nos diz claramente já nas pri-
meiras linhas do prólogo:
Portanto, porque seguindo o exemplo do beatíssimo pai Fran-
cisco, procurava essa paz com espírito ardente, eu pecador
que, ainda que indigno, sou o seu sétimo sucessor no governo
da Ordem, aconteceu que, trinta e três anos depois da sua
morte, dirigi-me, por vontade divina ao Monte Alverne, lugar
de quietude onde procurar a paz do espírito; e lá, enquanto
meditava sobre a possibilidade de a alma ascender a Deus, se
me apresentou, entre outras coisas, aquele evento admirável
ocorrido naquele lugar ao bem aventurado Francisco, ou seja,
a visão do Serafim alado em forma de Crucificado. E meditan-
do sobre isso, logo dei-me conta de que tal visão oferecia-me
o êxtase contemplativo do mesmo pai e, ao mesmo tempo, o
caminho que a esse conduz2.

Mesmo assim, ao propormos uma reflexão sobre a espiritualidade


ecológica a partir do Itinerarium mentis in Deum, cremos que não esta-
mos pecando de anacronismo, mas, realizando um procedimento plau-
sível, uma vez que adotamos um método legítimo de leitura do texto,
aquele hermenêutico, segundo o qual, uma vez salvaguardadas as di-
ferenças de contextos históricos, teológicos e existenciais nos quais um
texto surgiu, a intencionalidade do seu leitor pode dialogar com àquela
do seu autor3.

2. Cf. BONAVENTURA, San. Itinerarium mentis in Deum. Traduzione di Orlando Todisco.


Roma: Città Nuova, 1993, prol. 2.
3. Cf. VAIANI, C. Teologia e Fonti Francescane. Milano: Edizioni Biblioteca Francescana, 2006,
p. 50-54.

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O Itinerarium Mentis in Deum: Uma proposta de espiritualidade ecológica

Ademais, como não estamos falando simplesmente de ecologia,


mas, de espiritualidade ecológica, procuraremos fazer, sobretudo, uma
leitura de tipo teológico/espiritual do Itinerário, segundo a qual, para
além de questões particulares de caráter histórico, cultural ou filosófi-
co (das quais não nos sentimos suficientemente competentes para fa-
lar), tentamos evidenciar os grandes horizontes teológico/espirituais
para os quais o texto nos aponta.
Cabe ainda precisar que o que chamamos aqui de espiritualidade
é aquilo que o Papa Francisco entende com esse termo quando, no últi-
mo capítulo da Carta Encíclica Laudato Si’, concebe a espiritualidade
ecológica não tanto como uma proposição de ideias, mas, sobretudo
como uma explicitação das motivações que derivam da vida espiritual
para alimentar a paixão pelo cuidado do mundo4. Portanto, tratare-
mos de evidenciar aquelas motivações profundas que a reflexão teoló-
gico-espiritual de Boaventura nos oferece diante da urgente tarefa do
cuidado da criação que nos é confiada.
Devemos dizer ainda que muitas das ideias que serão aqui apre-
sentadas inspiram-se nas reflexões do grupo de pesquisa em ecoteo-
logia do Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis que, há alguns
anos, vem se dedicando ao estudo do tema e que, durante os meses de
março e abril de 2019, dedicou-se a estudar o Itinerário, especialmente
os dois primeiros capítulos. Por isso, algumas vezes, chamaremos a
atenção a alguns pontos da reflexão boaventuriana que, ao nosso ver,
encontram eco ou confirmação no pensamento de outros autores estu-
dados pelo grupo.
Em todo caso, queremos fazer alguns simples acenos sobre o tema
nesta específica obra do Doutor Seráfico que, apesar de breve, é de
grande densidade teológico/espiritual, de modo que não intentamos
alargar o âmbito da nossa hermenêutica para outras obras do autor
que citaremos somente esporadicamente ou para as quais remetere-
mos oportunamente. Tratam-se, portanto, de simples acenos que, tam-
bém por força da natureza dessa apresentação, permanecerão necessa-
riamente incompletos.

1. Perspectivas da pesquisa: os três horizontes fundamentais


Tomando um conceito central da obra que é aquele de “speculatio” – es-
treitamente relacionado como o substantivo speculum e o verbo spe-

4. Cf. Laudato Si’, 216.

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Fr. Fábio Cesar Gomes, OFM

culare – que pode ser traduzido como conhecimento, consideração,


meditação ou contemplação, organizaremos nossa reflexão em três
considerações respectivamente relativas aos temas da natureza, do ser
humano e de Deus, a partir das quais o apelo ecológico do Itinerário
desdobra-se em três grandes horizontes teológico/espirituais: o cósmi-
co, o antropológico e o trinitário.

1.1. Consideração a respeito da natureza: o horizonte cósmico

Um primeiro grande horizonte teológico/espiritual que Boaven-


tura nos apresenta é o cósmico, ou seja, aquele que brota das suas
considerações a respeito da natureza, entendida como criação, como
mundo criado. Trata-se de uma consideração profundamente inspira-
da na Sagrada Escritura, segundo a qual o mundo criado pressupõe a
existência de um princípio do qual se origina e somente ao qual, em
sentido próprio, pode ser atribuído o nome de Criador5. A tal princípio
Boaventura se refere com expressões que denotam essa sua dignida-
de toda própria, com por exemplo: Opificex Summus, Primum Prin-
cipium, Summum Bonum e Creatrix essentia6. Aqui emerge uma pri-
meira motivação, derivada dos dados bíblicos, em vista à proposição
de uma espiritualidade ecológica: a convicção de que o universo não é,
como pensava Demócretes e ainda sustentam certos cientistas7, sim-
ples fruto do acaso e da necessidade, mas, que tem origem num princí-
pio que tem o poder de criar tudo a partir do nada (ex nihilo), ou seja,
a partir da sua livre vontade8.
Para falar deste mundo sensível, da criação, Boaventura utiliza-se
de duas interessantes imagens. Primeiro, a da escada, sugerindo-nos

5. Cf. Gn 1-2.
6. Cf. Itin 1,9; 1,15; 6,2; 7,5.
7. Desde a elaboração da teoria darwiniana da evolução das espécies através da seleção natural
(cf. DARWIN, C. On the origin of species, by means of natural selection. London: John Murray, Al-
bemable Street, 1859), foi firmado um acordo no âmbito científico de que a diversidade de formas
de vida seria devida às mudanças aleatórias transmitidas hereditariamente e que, por sua vez,
confeririam a algumas espécies maior capacidade de adaptação e, portanto, certas vantagens evo-
lutivas. Com o desenvolvimento da biologia molecular, especialmente com a descoberta do DNA,
esse acordo se consolidou ainda mais, tornando-se hegemônico no âmbito das ciências naturais
e se espalhando em outras áreas, principalmente através do trabalho de Jaques Monod, O acaso
e a necessidade (cf. MONOD, J. Chance and necessity: an essay on the natural Philosophy of
Modern Biology. Michigan: Vintage Books, 1972). Além disso, cientistas contemporâneos como o
zoólogo Richard Dawkins, enfatizando o acaso e a aleatoriedade como base da evolução biológica,
argumentam que não faz sentido pressupor a existência de um Criador que estaria na origem da
natureza (cf. DAWKINS, R. The God delusion. Mariner Books, Reprint, 2008).
8. Cf. Itin 1,14.

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O Itinerarium Mentis in Deum: Uma proposta de espiritualidade ecológica

que a totalidade das criaturas, cada qual a seu modo, nos remete ao
Criador9. Aqui, na verdade, o Mestre Franciscano lança um segundo
fundamento para uma espiritualidade ecológica: o valor das criaturas
não se esgota nelas mesmas, mas, na possibilidade que elas têm de nos
conduzir ao princípio do qual provém – como indica a preposição per
do título do primeiro capítulo: “De gradibus ascensionis in Deum et de
speculatione ipsius per vestigia eius in universo” – na medida em que,
considerando-as como escada, fazemos o salto dos seus atributos para
os atributos do Criador.
A segunda imagem é aquela do espelho, pois, dado que o primeiro
princípio é o Summum Bonum e que é próprio do bem difundir-se, o
sumo Bem difunde-se nas suas criaturas, de tal sorte que o primeiro
princípio pode ser percebido em tantos sinais10: como é indicado pela
preposição in do título do segundo capítulo: “De speculatione Dei in
vestigiis suis in hoc sensibili mundo”. Assim, as criaturas são os sinais
visíveis da natureza invisível de Deus11, como que seus sacramentos,
o que nos remete à tese de Theilhard de Chardin acerca da diafania
de Deus no coração da matéria, a propósito da qual o mesmo recorria
também à metáfora do espelho12.
Portanto, a essência criadora, enfim, o Criador, brilha (relucet),
através dos seus vestígios, em todas as suas criaturas e, na nossa men-
te, através da sua imagem, de modo que todas as criaturas são como
que sacramentos de Deus, sinais visíveis das Suas perfeições invisíveis,
o primeiro grande livro no qual a lei de Deus foi impressa13. Convém a
nós, portanto, ler corretamente este livro, fazendo aquele interessante
exercício que Boaventura chama de contuitio, isto é, “a apreensão inte-
lectual da presença do ser infinito no e pelo finito”14, pelo qual podemos
perceber que Deus está em tudo e tudo está em Deus15.

9. Cf. Itin 1,2.


10. Cf. Itin 6,2; 1.15; 1,9.
11. Cf. Itin 2,13.
12. Cf. CHARDIN, T. de. O meio divino. Tradução de Celso Márcio Teixeira. Petrópolis: Vozes,
2010, p. 85.
13. Cf. Itin 1,12.
14. PRUNIÈRES, L. Contuitio, in Lexique Bonaventure. Paris: Éditions Franciscaines, 1969, p. 42.
15. A esta capacidade, Karl Christian Friedrich Krause chamou, no século XIX, de panenteísmo,
justamente para diferenciá-la do panteísmo e do teísmo: cf. Entwurf des Systemes der Philoso-
phie. Erste Abtheilung enthaltend die allgemeine Philosophie, nebst einer Anleitung zur Na-
turphilosophie. Ed. de Thomas Bach e Olaf Breidbach, 2007.

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Fr. Fábio Cesar Gomes, OFM

De tudo o que foi dito até agora, percebe-se que é quase uma ne-
cessidade natural que o espírito do contemplante e do sábio seja, atra-
vés das criaturas, a Ele conduzido, que o ser humano veja, ouça, ame
e louve a Deus em todas as suas criaturas16. Deixar de fazê-lo, não
diz respeito apenas a uma questão subjetiva, à relação pessoal do ser
humano com Deus, mas, produz consequências sociais e até cósmicas,
pois, quando o ser humano deixa de reconhecer a presença do Criador
na criação, é essa mesma que se insurge contra ele ou, nas palavras
do livro da Sabedoria, que “se ergue contra os insensatos”17. Portanto,
o Doutor Seráfico parece-nos sugerir que o ateísmo possui consequên-
cias ecológicas, uma vez que, pelo mesmo, perde-se a consciência do
caráter sagrado da natureza, reduzindo-a a simples objeto passível de
manipulação e de consumo.
Outra consideração significativa para o nosso tema é aquela de
Boaventura sobre o mundo entendido também como saeculum, ou seja,
não somente como um espaço que tudo contém, mas também como um
tempo onde tudo acontece. Tal intuição encontra-se em surpreendente
sintonia com a física de Albert Einstein, especialmente com o seu con-
ceito de espaço/tempo quadrimensional18.
Em suma, para Boaventura, esse mundo, entendido também como
saeculum, possui necessariamente não somente uma origem, mas,
também uma duração e um fim19, de tal sorte que Deus não é somente
o princípio originário da criação, mas também o princípio da sua con-
servação e consumação. E a fim de que a criação atinja a sua consuma-
ção, o Criador inseriu no seminarium da matéria uma multiplicidade
de formas em virtude dos seus princípios de desenvolvimento latentes,
as chamadas rationes seminales, teoria estoico-agostiniana que é de
significativa importância para cosmologia boaventuriana20.
Disso tudo, podemos perceber uma concepção dinâmica de cria-
ção segundo a qual a mesma não pode ser reduzida a um ato isolado

16. Cf. Itin 2,11; 1,15.


17. Sb 5,21; cf. Itin 1,15.
18. Einstein unifica as três dimensões do espaço com o tempo, que seria a quarta dimensão
do continuum espaço/tempo. Assim, podemos dizer que, tanto na reflexão filosófico/teológica de
Boaventura quanto na elaboração científica de Einstein, a realidade imanente se apresenta como
uma trama articulada que sintetiza o tempo e o espaço: cf. EINSTEIN, A. A teoria da relativida-
de. Tradução de Silvio Levy. Porto Alegre: L&PM, 2103.
19. Cf. Itin 1,12.
20. Para uma melhor explicação deste conceito, cf. BOEHNER, Ph. Itinerarium mentis in Deum.
With an Introduction, English Translation and Commentary, St. Bonaventure, 1956, p. 115, nota 23.

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O Itinerarium Mentis in Deum: Uma proposta de espiritualidade ecológica

realizado por Deus no momento em que o universo surge, mas, como


uma ação continuada de Deus com a qual o ser humano é chamado a
colaborar através do seu trabalho e da sua inteligência. Aqui, talvez,
poderíamos encontrar, na intuição boaventuriana, um termo de con-
ciliação entre a visão criacionista e evolucionista do universo, pois,
no Doutor Seráfico, parece não haver contradição entre a fé no ato
criacional de Deus e a percepção de que a matéria contém inúmeras
potencialidades a serem continuamente desenvolvidas. Tal intuição,
parece-nos bastante confirmada no conceito de criação continuada for-
mulado por Jürgen Moltmann, segundo o qual,
Se entendemos a criação no início como um sistema aber-
to, afirma-se com isso que, com este início, estão colocadas
as possibilidades para a sua história de destruição e salvação
bem como para sua plenificação21.

De tudo o que foi dito, percebe-se que, para Boaventura, as cria-


turas são imprescindíveis para uma autêntica experiência de Deus,
uma vez que Ele pode ser verdadeiramente conhecido somente através
dos seus vestígios impressos na criação, de modo que a vida espiritual
é concebida em estreita relação com o mundo no sentido de universo
criado, com toda a realidade material, entendida não como um obstá-
culo a superar ou como uma realidade intrinsecamente negativa a ser
negada, mas, portadora dos sinais e das marcas da presença de Deus.
Todavia, ao valorizar de modo assim tão positivo a criação, Boa-
ventura não incorre no erro de privilegiar aquela tendência que, na
Laudato Si’ o Papa identifica com a teoria do “biocentrismo”22. De fato,
o nosso Doutor relaciona de modo muito equilibrado a absoluta trans-
cendência de Deus com a sua verdadeira imanência na criação, decli-
nando de modo coerente a relação entre o Deus distante e escondido
de Dionísio com o qual conclui a obra, e o Deus visível e crucificado de

21. MOLTMANN, J. Deus na criação. Doutrina ecológica da criação. Trad. de H. Reimer e I.R.
Reimer. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 299.
22. LS 118. Verifica-se ainda uma forte influência do biocentrismo em alguns movimentos am-
bientais contemporâneos e também nas disciplinas científicas que os apoiam, por exemplo, a
Biologia da Conservação. Geralmente, de acordo com a perspectiva dos principais autores desse
novo campo científico, as intervenções humanas na natureza devem sempre ser consideradas
como um “impacto antrópico”. Cf. Dyke, 2003; Primack, 1995; Soulé, 1986). SOULÉ, M. Conser-
vation biology: the science of scarcity and diversity. Massachusetts: Sinauer Associates, 1986;
PRIMACK, R. A primer of conservation biology. Boston University, 1995; DYKE, F. Conservation
biology: foundations, concepts, applications. Netherlands: Springer, 2008.

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Francisco com o qual a inicia23, como se deduz do último parágrafo do


capítulo cinco:
O ser puríssimo e absoluto (...) enquanto perfeitíssimo e imen-
so, está dentro de todas as coisas, mas não circunscrito a al-
guma delas; fora de todas as coisas, mas não excluído delas;
acima de todas as coisas, mas não separado delas; abaixo de
todas as coisas, mas não abatido por elas24.

De fato, a impostação boaventuriana sobre a natureza é radical-


mente teocêntrica.

1.2. Consideração sobre o ser humano: o horizonte antropológico

Outra imagem muito sugestiva que nos é apresentada já no pró-


prio título principal da obra: Itinerarium mentis in Deum e naquele
que precede o primeiro capítulo: Incipit speculatiio pauperis in deserto,
é aquela da viagem, da peregrinação, segundo a qual a existência ter-
rena do ser humano é concebida como um grande deserto a ser atravessa-
do para que se chegue à terra prometida que é o próprio Deus, a uma
caminhada de retorno (redditus) para aquele de onde viemos (exitus).
Trata-se de uma viagem que Boaventura compara àquela de três dias
do povo de Israel do Egito para o deserto, pois implica num tríplice
movimento: para fora, para dentro e para cima de nós25.
Portanto, a essência da condição do ser humano neste mundo é
aquela de um peregrino (viator), de um pobre em busca do Absolu-
to, de modo que, como tal, não deveria apropriar-se de nada, mas,
respeitar a dignidade de todos os seres da criação. Aqui, portanto,
encontra-se toda uma motivação de cunho antropológico para cuida-
do da criação que poderíamos formular assim: se a nossa condição
terrena não representa o nosso destino último, mas, tão somente um
caminho, uma viagem rumo a um destino que nos transcende, então,
a atitude fundamental com a qual devemos nos colocar nesse mun-
do é aquela do pobre que de nada se apropria, mas que tudo recebe
com gratidão e alegria. Trata-se de uma espiritualidade do peregrino,
ou seja, que aponta para o modo de ser daquele que reconhece sua

23. Cf. Itin nota 7, p. 568-9.


24. Itin 5,8.
25. Cf. Ex 3,18; Itin 1,3.

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O Itinerarium Mentis in Deum: Uma proposta de espiritualidade ecológica

própria transitoriedade e finitude, buscando “viajar” neste mundo do


melhor modo, contemplando a bela paisagem da criação e fazendo-se
companheiro de viagem de todos os outros viajantes.
A propósito da imagem da escada sobre a qual já falamos, é inte-
ressante perceber que o nosso Doutor considera o ser humano como
parte da grande escada da criação, de modo que ele deve identificar-se
com a escada pela qual é chamado a elevar-se ao Criador. Em outras
palavras, existe uma fundamental igualdade entre o ser humano e as
outras criaturas, justamente porque todos compartilham da mesma
condição de criaturalidade, todos somos criaturas. Assim, para além
de todas as diferenças que existem entre os seres, há uma condição
fundamental que os iguala: serem criaturas de Deus, provenientes de
uma origem primeira e única, o Pai Criador, de tal modo que a ex-
periência da fraternidade não pode ficar restrita aos relacionamentos
interpessoais, mas, deve se estender a toda a criação, como tão bem
compreendeu e vivenciou Francisco de Assis.
Neste sentido, na perspectiva da espiritualidade ecológica, é inte-
ressante também perceber que, tal como na narrativa bíblica, para o
Doutor Seráfico, a criação do ser humano não constitui o ápice da obra
criadora de Deus, mas, o sábado, isto é, o repouso sabático, a glória de
Deus, que, no Itinerário, é representado pelo sétimo degrau da ascen-
são da mente em Deus, isto é, o êxtase mental e místico.
Porém, esse ser humano, criatura como todas as outras, ainda a
partir do que nos informa o dado bíblico, possui uma dignidade pró-
pria que o distingue delas: ter sido criado à imagem e semelhança de
Deus. Portanto, enquanto imago et similitudo Dei, o ser humano está
relacionado com Deus não somente como seu Criador, como as demais
criaturas, mas, como objeto do próprio conhecimento e amor e como
“espaço” onde Ele habita. Essa imagem e semelhança do ser humano
com Deus aparece na sua unidade de essência (corpo/alma) e na sua
trindade de potências: memória, inteligência e vontade, de modo que
o ser humano é considerada por Boaventura como um minor mundus,
um microcosmo, uma síntese do universo. Assim, se por um lado toda a
criação é espelho do Criador enquanto reflete os seus vestígios, a alma
é também espelho no qual resplandece a imagem de Deus.
Tal dignidade toda própria do ser humano não significa autonomia
deste com relação ao restante da criação, nem pode justificar a depre-
dação da natureza. Ao contrário, em Boaventura, o macro e o micro
cosmo não se separam, mas, entre ambos há dependência e interação,

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Fr. Fábio Cesar Gomes, OFM

através do conhecimento de todas as coisas que existem (macrocosmo)


que entra no microcosmo (ser humano) pela porta dos cinco sentidos,
de três modos: pela percepção, pelo prazer e pelo juízo26. E porque so-
mos também parte da grande escada da criação, não podemos nem
subsistir nem nos compreender separados dela, dado que nosso pró-
prio corpo é uma substância composta, ou seja, gerada por aquilo que
Boaventura chama de corpos simples ou, como o confirma a moderna
cosmologia: “somos poeira de estrelas”27.
Esse espelho que é a alma, no entanto, foi como que ofuscado pelo
pecado original, de tal modo que deve ser purificado e polido através
da graça de Cristo, chamado de “a escada reparadora” da escada des-
pedaçada pelo pecado de Adão28. De fato, se no estado da natureza
instituída o ser humano era capaz do repouso da contemplação, no es-
tado da natureza decaída, inclinou as próprias costas, encurvando-se
em direção à terra e tornando-se incapaz de ver a luz do céu. Por isso,
foi necessária uma intervenção da graça e da justiça, da ciência e da
sabedoria, o que aconteceu em Jesus Cristo que retifica a alma no seu
tríplice relacionamento: para fora, para dentro e para cima29.
Inspirados neste realismo antropológico de Boaventura, podería-
mos talvez dizer que na raiz da crise ambiental está uma crise antro-
pológica, um antropocentrismo absoluto, numa subjetividade conside-
rada como único critério de verdade, que faz com que o ser humano
volte-se unicamente para si próprio, apropriando-se daquilo que lhe foi
dado como dom: a própria existência e a de todas as coisas e justifican-
do, com isso, a depredação da natureza.
Portanto, se Boaventura, na sua concepção de mundo não resvala
para um biocentrismo, também aqui, não resvala para o antropocen-
trismo que representou o grande paradigma da modernidade, mas,
conserva sempre a perspectiva teocêntrica a partir da qual interpreta
tanto o ser humano quanto a totalidade da criação em mútua relação,

26. Cf. Itin. 2,2-3.


27. Cf. Itin 2,2. O astrônomo Carl Sagan, constatando que os átomos que compõem a matéria or-
gânica têm sua origem nas reações nucleares ocorridas nos corpos celestes, afirma que “o nitrogê-
nio em nosso DNA, o cálcio em nossos dentes, o ferro em nosso sangue, o carbono em nossas tortas
de maçã foram feitos no interior de estrelas em colapso. De fato, fomos feitos de matéria estelar”
(SAGAN, C. Cosmos. New York: Random House, 1980). Portanto, a matéria orgânica deriva da
matéria inorgânica, mineral, de modo que, aos ouvidos do judeu e do cristão, aqui pode ressoar o
eco do ensinamento bíblico segundo o qual o corpo humano vem do pó da terra (cf. Gn 2,7).
28. Cf. Prol.4; 4,2.
29. Cf. Itin 1,7.

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O Itinerarium Mentis in Deum: Uma proposta de espiritualidade ecológica

perspectiva que encontra talvez uma confirmação naquela que, Rai-


mon Panikkar chama de “intuição cosmoteândrica”30.

1.3. Consideração sobre Deus: o horizonte trinitário

Nos capítulos cinco e seis do Itinerarium, Boaventura nos convida


a contemplar Deus acima de nós, ou seja, através da verdade eterna
impressa na nossa mente, de modo que, de acordo com a analogia com o
templo de Jerusalém, estamos propriamente no Santo dos Santos onde,
sobre a arca, estão os dois querubins que, por sua vez, simbolizam os
dos modos pelos quais nos elevamos às perfeições invisíveis de Deus31.
De acordo com o primeiro modo, afirma-se que o nome próprio de
Deus é o ser conforme o que já no Antigo tinha sido revelado: “Eu sou
aquele que sou”32. De fato, o ser divino é o ser por excelência, que não
se identifica com nenhum ser particular, misto de ato e potência, mas,
que é ato puro33. Boaventura evidencia, aqui, mais uma vez, a diferen-
ça ontológica entre o Criador, considerado como ens a se enquanto pos-
sui o ser em si mesmo, não dependendo nem do ser nem do não ser, e as
criaturas, consideradas como entes ab alio, uma vez que são colocadas
e mantidas na existência pelo Criador34. E o ser puro, simples e absoluto
é, consequentemente, “primarium, aeternum, simplicissimum, actua-
lissimum, perfectissimum et summe unum”35, de modo que, partindo
da propriedade do ser como primeiro, chega-se à sua unicidade, já tam-
bém atestada no Antigo Testamento naquele texto que resume a fé
israelita: “Ouve Israel: o teu Deus é o único Deus”36.
Destas interessantes considerações boaventurianas sobre a onto-
logia, talvez o que de mais relevante podemos assinalar como inspira-
ção para as nossas reflexões de caráter ecológico é que, nelas, existe a

30. PANIKKAR, R. Ecosofía. Para una espirirtualidad de la tierra. Madrid: San Pablo, 1994,
p. 105-117. Nesta mesma linha, Papa Francisco é muito claro na sua denúncia tanto do antro-
pocentrismo desordenado quanto do biocentrismo, quando diz que “Um antropocentrismo desor-
denado não deve necessariamente ser substituído por um ‘biocentrismo’, porque isto implicaria
introduzir um novo desequilíbrio que não só não resolverá os problemas existentes, mas acres-
centará outros”: LS 118.
31. Cf. Itin 5,1; Ex 25,18-20; 26,31.
32. Ex 3,14.
33. Cf. Itin 5,3.
34. Cf. Itin 5,5.
35. Itin 5,5.
36. Dt 6,4; cf. Itin 5,6.

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superação de todo e qualquer dualismo, segundo a contraposição entre


espírito e matéria, alma e corpo, justificada pela existência de mais do
que um princípio criador, como, naquela época, pensavam os adeptos
da heresia cátara37. Ao contrário, para Boaventura, há um único prin-
cípio do qual tem origem todos os seres criados: celestes e terrestres,
espirituais, materiais e mistos38, de modo que, ontologicamente falan-
do, não há oposição entre os eles, mas, uma unidade fundamental, que
indica interação e complementariedade.
Mas, no Itinerarium, Boaventura vai mais além. Diz que há um
segundo modo de nos elevarmos às perfeições divinas, representado
pelo segundo querubim, que consiste na afirmação de que o primeiro
nome, vale dizer, a identidade primeira de Deus, é o Bem, o que nos é
revelado no Novo Testamento quando Jesus, dialogando com o jovem
rico, lhe diz que “Ninguém é bom a não ser Deus”39. De fato, o ser que
é uno é, ao mesmo tempo, verdadeiro e bom, possuindo todo poder,
exemplaridade e comunicabilidade40.
Portanto, o único princípio criador é o Sumo Bem, a Suma Bon-
dade, de tal sorte que tudo o que dele provém é intrinsecamente bom,
também a matéria e o corpo corruptível. Não há um princípio ruim
do qual provém a matéria e o corpo, como apregoavam os cátaros, ao
lado de um princípio bom do qual podem provir somente os entes es-
pirituais. Na verdade, de acordo com o relato bíblico, ao criar todos os
seres, “Deus viu que tudo era bom”41. Portanto, em Boaventura, tal
como em Francisco no Cântico das Criaturas, nada de desprezo pela
matéria, mas, de respeito, reverência e cuidado pela mesma, ancora-
dos na convicção da bondade intrínseca de todas as coisas pelas quais
e nas quais podemos contemplar a bondade do Criador.
Essa categoria de Bem que, segundo o princípio dionisiano é “diffu-
sivum sui”42, por sua vez, nos introduz no mistério trinitário, expressão
da suma difusão do Sumo Bem, de modo que, como afirma o nosso
Doutor, a perfeita comunicabilidade do Sumo Bem é necessária à Trin-

37. Para o aprofundamento da questão, veja: MANSELLI, R. Il secolo XII: religione popolare ed
eresia. Roma: Editoriale Jouvence, 1983, p. 209-250.
38. Cf. Itin 1,3.
39. Lc 18,19.
40. Cf. Itin 5,8.
41. Gn 1,31.
42. Cf. Pseudo-Dionísio Areopagita, De divinis nominibus. Ed. J.-P. Migne, Lutetiae Parisiorum,
1857, 4,1 PG 3,694, cf. 3,1 PG 3,679; De caelesti hierarchia 4,1 PG 3, 178ss.

38
O Itinerarium Mentis in Deum: Uma proposta de espiritualidade ecológica

dade do Pai, do Filho e do Espírito Santo43. E dado que entre as três di-
vinas pessoas há uma suma co-intimidade (pericorese) pela qual uma
está na outra e uma opera com a outra, pode-se afirmar que todas as
operações extra-trinitárias (emanações) são comuns a todas elas, de
modo que o ato criacional constitui-se como um ato trinitário. Assim,
o Doutor Seráfico nos aponta para o ser trino de Deus como o próprio
fundamento da criação, como bem esclarece Orlando Todisco:
Se o Pai não se conhecesse mediante o Filho, no qual exprime
e conhece todas as coisas, se o Pai e o Filho não se amassem
inspirando o Espírito no qual e mediante o qual amam as cria-
turas, a criação, em sentido bíblico, não seria possível44.

Boaventura nos abre, assim, para o horizonte trinitário a partir


do qual, como afirma ainda o Papa Francisco na Laudado Si’, a cria-
ção deve ser considerada45. Nesse sentido é muito sugestivo que, nos
números que dedica para falar da Trindade e a relação entre as cria-
turas, ao lado da de S. Tomás, o Papa evoque também a teologia e a
espiritualidade de S. Boaventura, citando expressamente duas frases
das Quaestiones disputatae de Mysterio Trinitatis46.
Portanto, a teologia trinitária de Boaventura nos diz que a Trinda-
de pertence, em primeiro lugar, à origem da própria criação que, deste
modo, não é fruto nem do acaso nem dum primeiro motor mecânico e
insensível47, mas, de um princípio bom que é, por consequência, rela-
cional, comunicativo, comunional. Além disso, uma tal visão teológica,
convida-nos a perceber na totalidade da criação e em cada criatura em
particular uma certa estrutura trinitária que, segundo o Papa, deveria
conduzir-nos não somente à uma atitude de admiração diante da in-
crível trama de relações que existe entre todos os seres, mas também,
a uma espiritualidade da solidariedade global e a uma antropologia
menos subjetivista e mais relacional48.

43. Cf. Itin 6,2.


44. Itin nota 5, 559.
45. Cf. LS 239.
46. Cf. LS 239.
47. É preciso dizer que essa concepção mecanicista do mundo foi reafirmada desde o início do
Iluminismo Europeu, especialmente por autores como Descartes, Hobbes e Newton. No entanto,
a partir do desenvolvimento da física quântica no século XX, a perspectiva mecanicista perderá
cada vez mais consistência.
48. Cf. LS 240.

39
Fr. Fábio Cesar Gomes, OFM

Tal horizonte trinitário, por sua vez, no Itinerarium, é permeado por


um forte caráter mistagógico, pois, sem negar a inefabilidade do misté-
rio de Deus, nos conduz ao mesmo. De fato, através dos seis graus da
iluminação, simbolizados pelas seis asas do serafim visto por Francisco,
“a alma se dispõe a gozar da paz nos raptos extáticos da sabedoria cris-
tã”49, quer dizer, à experiência mística que, no capítulo sétimo, Boaven-
tura chama de êxtase mental e místico, uma experiência que é sempre
gratuita, uma vez que o próprio desejo de recebê-la nos é inflamado pelo
Espírito Santo50. Quando essa experiência acontece, há uma superação
do intelecto e uma transformação do afeto, de modo que o próprio pro-
cesso da cointuição é superado, pois, agora, segundo o nosso Doutor, a
mente deve elevar-se para além de si mesma desejar morrer51.
Essa instigante reflexão boaventuriana certamente questiona
também a arrogante pretensão do cientificismo moderno de tudo com-
preender para tudo dominar e explorar, convidando-nos a reconhecer
que muito maior do que sabemos é o que ignoramos, e que as atitudes
fundamentais a se conservar diante do mistério da vida é a da admira-
ção e da reverência.

2. Jesus Cristo como ponto de convergência: o cristocentrismo


boaventuriano

Por fim, acredito que seja necessário chamarmos a atenção para


uma questão central de toda a espiritualidade franciscana e também
do pensamento boaventuriano, muito evidente no Itinerarium, para a
qual converge tudo o dissemos anteriormente: o seu cristocentrismo.
De fato, se pudemos falar de um horizonte cósmico, antropológico e
trinitário da espiritualidade boaventuriana na obra, é porque Jesus
Cristo, com a sua encarnação, entrou no mundo, vivendo nele como
peregrino a fim de nos revelar o verdadeiro rosto de Deus.
Assim, fazemos agora também alguns brevíssimos acenos a al-
gumas referências cristológicas que Boaventura faz na obra que, no
nosso modo de ver, possuem maior relevância para o nosso interesse
ecológico.
Em primeiro lugar, na obra, Jesus Cristo aparece sobretudo exer-
cendo o papel de mediador entre Deus e a humanidade, pois, na unidade

49. Itin prol. 3.


50. Cf. Itin 7,4.
51. Cf. Itin 7,4; 7,2; 7,6.

40
O Itinerarium Mentis in Deum: Uma proposta de espiritualidade ecológica

da sua pessoa, acontece a admirável união entre Deus e o ser humano52.


Por isso, como afirma o Todisco, do mesmo modo que sem a Trindade
não se pode compreender o mistério da encarnação, sem a encarnação,
o mistério trinitário invisível não se teria tornado visível e perceptível53.
Mas Jesus Cristo é também a chave de leitura para compreender-
mos o livro da criação, pois, se o livro escrito por dentro é a sabedoria
divina e aquele escrito por fora é o mundo criado, Jesus Cristo é o livro
escrito por dentro e por fora, no qual a eterna Sabedoria e sua obra
encontram-se unidas em unidade de pessoa54. De fato, se a encarnação
tem um significado eminentemente teológico, enquanto Cristo é
o revelador de Deus por excelência, a mesma tem também fortes
ressonâncias ecológicas, sobretudo enquanto nos diz que o mundo cria-
do é intrinsecamente bom, uma vez que, não somente foi criador por
um princípio bom, mas, porque, nele, Deus mesmo entrou, assumindo
a condição humana. Assim, a encarnação é uma definitiva confirmação
da bondade de todas as criaturas, do seu caráter sacramental, de sorte
que o decisivo é o modo segundo o qual as consideramos, como magis-
tralmente afirmou Teilhard de Chardin ao dizer que, “em virtude da
criação e, mais ainda, da Encarnação, nada é profano, aqui embaixo,
para quem sabe ver”55.
Mas, é claro que Boaventura não pode ser acusado de um otimismo
exagerado, pois tem claríssima consciência da condição humana marca-
da pelo pecado. Assim, como já dissemos, se com o pecado o ser humano
quebrou a primeira escada (a da criação), Cristo, assumindo a condição
humana e, portanto, redimindo-a, tornando-se a “escada reparadora”
que nos possibilita como que retornar ao paraíso, gozando da verdade
eterna. Além disso, ele é o verdadeiro espelho no qual contemplamos
nossa humanidade tal como foi criada por Deus no sexto dia56.
De tudo isso, torna-se muito claro que Jesus Cristo na sua encarna-
ção não se apresenta somente como o revelador do rosto de Deus e como
o revelador da bondade intrínseca do mundo criado, mas, aquele que,
de acordo com a expressão da Gaudium et Spes, “manifesta plenamente
o homem ao próprio homem e lhe descobre a sua altíssima vocação”57,

52. Cf. Itin 6,4.


53. Cf. Itin nota 5, 558-9.
54. Cf. Itin 6,7.
55. CHARDIN, T. de. O meio divino, p. 33.
56. Cf. Itin 4,2; 6,7.
57. Gaudium et Spes, n. 22.

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Fr. Fábio Cesar Gomes, OFM

nos desvela nossa verdadeira identidade, o significado verdadeiro da


nossa dignidade de imagem e semelhança de Deus. Tal dignidade,
assim como o Verbo Encarnado nos revela, não tem nada a ver com
dominação, exploração e, muito menos, com depredação da natureza
e degradação da dignidade humana, muito pelo contrário, tem a ver
com a opção por um estilo de vida pobre, marcado pela não apropriação
de nada, pela partilha dos bens e pelo respeito pela dignidade de cada
pessoa e de cada ser da criação.
Mais ainda, é somente a partir do mistério pascal de Cristo que
nossa humanidade pode, por graça, participar da imensidão da vida
divina, sendo conduzida por Ele ao mistério divino. De fato, segundo as
belas imagens cheias de simbolismo às quais Boaventura recorre para
falar disso, sobretudo no último capítulo da obra, somente através da
consideração atenta de Cristo crucificado, comparado ao propiciatório
colocado sobre a arca de Deus é que torna-se possível o êxtase mental e
místico, ou seja, a nossa passagem com Ele para o Pai, pois, se Deus
é fogo, é Jesus Cristo que o acende com o ardor da sua paixão58.
O que nos cabe fazer, é, seguindo as indicações da própria graça
que sempre nos precede, nos dispormos cada vez melhor a isso, elevan-
do-nos sempre mais a Deus olhando para fora, para dentro e para cima
de nós mesmos59.

Conclusão
De tudo o que foi dito, gostaríamos de assinalar, a modo de conclu-
são, algumas ideias que, ao nosso ver, são de grande relevância para a
reflexão para uma proposta de espiritualidade ecológica que se queira
inspirar no Itinerarium mentis in Deum.
A primeira é que consideramos legítimo falar de uma proposta de
espiritualidade ecológica da obra, pois, se é verdade que nela nem em
qualquer outra obra do Doutor Seráfico encontra-se o termo ecologia,
aquilo que o mesmo sugere encontra-se, vale dizer, uma consideração
das relações entre os seres entre si, o meio ambiente que, na proposta
boaventuriana, são integradas pela relação com o Deus que os habita
e transcende.
A segunda é que, não obstante as enormes diferenças entre as cos-
mologias medievais e as contemporâneas, percebem-se várias conver-

58. Cf. Itin 7,2.3.6.


59. Cf. Itin 1,4.

42
O Itinerarium Mentis in Deum: Uma proposta de espiritualidade ecológica

gências de fundo, de modo que algumas considerações boaventurianas


de caráter filosófico/teológico, parecem ser confirmadas por algumas
teses das ciências e da teologia contemporâneas.
Enfim, reafirmamos que uma espiritualidade ecológica que quei-
ra referir-se a Boaventura, deve ser sustentada sobretudo por quatro
grandes alicerces:
- a sacramentalidade da criação que nos remete continuamente ao
Criador e que deve suscitar no ser humano a admiração e a reve-
rência da qual brota o cuidado;
- a transitoriedade da condição humana no mundo que suscita a
atitude de não apropriação das criaturas, mas, que nos convida
à convivência e a responsabilidade para com as futuras gerações;
- a fé trinitária que, enquanto nos propõe uma visão de Deus como
relação, sugere-nos uma visão de ser humano mais relacional;
- e, por fim, o cristocentrismo que, enquanto nos apresenta o Verbo
de Deus como princípio e finalidade da criação, nos aponta para a
Sua condição terrena de vida como o modelo por excelência de uma
perfeita relação do humano com as criaturas todas e com o Criador.

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