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Resumo
Introdução geral
Antes de propriamente iniciarmos nossa reflexão1, gostaríamos de
fazer algumas premissas.
* O autor possui doutorado em Teologia Espiritual pelo Pontificio Ateneo Antonianum (2010).
Atualmente é membro de conselho editorial da revista Grande Sinal e professor no Instituto
Teológico Franciscano de Petrópolis-RJ.
1. Este artigo também foi publicado na revista Espíritu y Vida, do Instituto Franciscano de Teo-
logia de Monterrey, México.
Grande Sinal: Revista de Espiritualidade e Pastoral, vol. 74, n. 01, p. 27-43, Jan./Jun. 2020 27
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5. Cf. Gn 1-2.
6. Cf. Itin 1,9; 1,15; 6,2; 7,5.
7. Desde a elaboração da teoria darwiniana da evolução das espécies através da seleção natural
(cf. DARWIN, C. On the origin of species, by means of natural selection. London: John Murray, Al-
bemable Street, 1859), foi firmado um acordo no âmbito científico de que a diversidade de formas
de vida seria devida às mudanças aleatórias transmitidas hereditariamente e que, por sua vez,
confeririam a algumas espécies maior capacidade de adaptação e, portanto, certas vantagens evo-
lutivas. Com o desenvolvimento da biologia molecular, especialmente com a descoberta do DNA,
esse acordo se consolidou ainda mais, tornando-se hegemônico no âmbito das ciências naturais
e se espalhando em outras áreas, principalmente através do trabalho de Jaques Monod, O acaso
e a necessidade (cf. MONOD, J. Chance and necessity: an essay on the natural Philosophy of
Modern Biology. Michigan: Vintage Books, 1972). Além disso, cientistas contemporâneos como o
zoólogo Richard Dawkins, enfatizando o acaso e a aleatoriedade como base da evolução biológica,
argumentam que não faz sentido pressupor a existência de um Criador que estaria na origem da
natureza (cf. DAWKINS, R. The God delusion. Mariner Books, Reprint, 2008).
8. Cf. Itin 1,14.
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que a totalidade das criaturas, cada qual a seu modo, nos remete ao
Criador9. Aqui, na verdade, o Mestre Franciscano lança um segundo
fundamento para uma espiritualidade ecológica: o valor das criaturas
não se esgota nelas mesmas, mas, na possibilidade que elas têm de nos
conduzir ao princípio do qual provém – como indica a preposição per
do título do primeiro capítulo: “De gradibus ascensionis in Deum et de
speculatione ipsius per vestigia eius in universo” – na medida em que,
considerando-as como escada, fazemos o salto dos seus atributos para
os atributos do Criador.
A segunda imagem é aquela do espelho, pois, dado que o primeiro
princípio é o Summum Bonum e que é próprio do bem difundir-se, o
sumo Bem difunde-se nas suas criaturas, de tal sorte que o primeiro
princípio pode ser percebido em tantos sinais10: como é indicado pela
preposição in do título do segundo capítulo: “De speculatione Dei in
vestigiis suis in hoc sensibili mundo”. Assim, as criaturas são os sinais
visíveis da natureza invisível de Deus11, como que seus sacramentos,
o que nos remete à tese de Theilhard de Chardin acerca da diafania
de Deus no coração da matéria, a propósito da qual o mesmo recorria
também à metáfora do espelho12.
Portanto, a essência criadora, enfim, o Criador, brilha (relucet),
através dos seus vestígios, em todas as suas criaturas e, na nossa men-
te, através da sua imagem, de modo que todas as criaturas são como
que sacramentos de Deus, sinais visíveis das Suas perfeições invisíveis,
o primeiro grande livro no qual a lei de Deus foi impressa13. Convém a
nós, portanto, ler corretamente este livro, fazendo aquele interessante
exercício que Boaventura chama de contuitio, isto é, “a apreensão inte-
lectual da presença do ser infinito no e pelo finito”14, pelo qual podemos
perceber que Deus está em tudo e tudo está em Deus15.
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De tudo o que foi dito até agora, percebe-se que é quase uma ne-
cessidade natural que o espírito do contemplante e do sábio seja, atra-
vés das criaturas, a Ele conduzido, que o ser humano veja, ouça, ame
e louve a Deus em todas as suas criaturas16. Deixar de fazê-lo, não
diz respeito apenas a uma questão subjetiva, à relação pessoal do ser
humano com Deus, mas, produz consequências sociais e até cósmicas,
pois, quando o ser humano deixa de reconhecer a presença do Criador
na criação, é essa mesma que se insurge contra ele ou, nas palavras
do livro da Sabedoria, que “se ergue contra os insensatos”17. Portanto,
o Doutor Seráfico parece-nos sugerir que o ateísmo possui consequên-
cias ecológicas, uma vez que, pelo mesmo, perde-se a consciência do
caráter sagrado da natureza, reduzindo-a a simples objeto passível de
manipulação e de consumo.
Outra consideração significativa para o nosso tema é aquela de
Boaventura sobre o mundo entendido também como saeculum, ou seja,
não somente como um espaço que tudo contém, mas também como um
tempo onde tudo acontece. Tal intuição encontra-se em surpreendente
sintonia com a física de Albert Einstein, especialmente com o seu con-
ceito de espaço/tempo quadrimensional18.
Em suma, para Boaventura, esse mundo, entendido também como
saeculum, possui necessariamente não somente uma origem, mas,
também uma duração e um fim19, de tal sorte que Deus não é somente
o princípio originário da criação, mas também o princípio da sua con-
servação e consumação. E a fim de que a criação atinja a sua consuma-
ção, o Criador inseriu no seminarium da matéria uma multiplicidade
de formas em virtude dos seus princípios de desenvolvimento latentes,
as chamadas rationes seminales, teoria estoico-agostiniana que é de
significativa importância para cosmologia boaventuriana20.
Disso tudo, podemos perceber uma concepção dinâmica de cria-
ção segundo a qual a mesma não pode ser reduzida a um ato isolado
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21. MOLTMANN, J. Deus na criação. Doutrina ecológica da criação. Trad. de H. Reimer e I.R.
Reimer. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 299.
22. LS 118. Verifica-se ainda uma forte influência do biocentrismo em alguns movimentos am-
bientais contemporâneos e também nas disciplinas científicas que os apoiam, por exemplo, a
Biologia da Conservação. Geralmente, de acordo com a perspectiva dos principais autores desse
novo campo científico, as intervenções humanas na natureza devem sempre ser consideradas
como um “impacto antrópico”. Cf. Dyke, 2003; Primack, 1995; Soulé, 1986). SOULÉ, M. Conser-
vation biology: the science of scarcity and diversity. Massachusetts: Sinauer Associates, 1986;
PRIMACK, R. A primer of conservation biology. Boston University, 1995; DYKE, F. Conservation
biology: foundations, concepts, applications. Netherlands: Springer, 2008.
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30. PANIKKAR, R. Ecosofía. Para una espirirtualidad de la tierra. Madrid: San Pablo, 1994,
p. 105-117. Nesta mesma linha, Papa Francisco é muito claro na sua denúncia tanto do antro-
pocentrismo desordenado quanto do biocentrismo, quando diz que “Um antropocentrismo desor-
denado não deve necessariamente ser substituído por um ‘biocentrismo’, porque isto implicaria
introduzir um novo desequilíbrio que não só não resolverá os problemas existentes, mas acres-
centará outros”: LS 118.
31. Cf. Itin 5,1; Ex 25,18-20; 26,31.
32. Ex 3,14.
33. Cf. Itin 5,3.
34. Cf. Itin 5,5.
35. Itin 5,5.
36. Dt 6,4; cf. Itin 5,6.
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37. Para o aprofundamento da questão, veja: MANSELLI, R. Il secolo XII: religione popolare ed
eresia. Roma: Editoriale Jouvence, 1983, p. 209-250.
38. Cf. Itin 1,3.
39. Lc 18,19.
40. Cf. Itin 5,8.
41. Gn 1,31.
42. Cf. Pseudo-Dionísio Areopagita, De divinis nominibus. Ed. J.-P. Migne, Lutetiae Parisiorum,
1857, 4,1 PG 3,694, cf. 3,1 PG 3,679; De caelesti hierarchia 4,1 PG 3, 178ss.
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dade do Pai, do Filho e do Espírito Santo43. E dado que entre as três di-
vinas pessoas há uma suma co-intimidade (pericorese) pela qual uma
está na outra e uma opera com a outra, pode-se afirmar que todas as
operações extra-trinitárias (emanações) são comuns a todas elas, de
modo que o ato criacional constitui-se como um ato trinitário. Assim,
o Doutor Seráfico nos aponta para o ser trino de Deus como o próprio
fundamento da criação, como bem esclarece Orlando Todisco:
Se o Pai não se conhecesse mediante o Filho, no qual exprime
e conhece todas as coisas, se o Pai e o Filho não se amassem
inspirando o Espírito no qual e mediante o qual amam as cria-
turas, a criação, em sentido bíblico, não seria possível44.
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Conclusão
De tudo o que foi dito, gostaríamos de assinalar, a modo de conclu-
são, algumas ideias que, ao nosso ver, são de grande relevância para a
reflexão para uma proposta de espiritualidade ecológica que se queira
inspirar no Itinerarium mentis in Deum.
A primeira é que consideramos legítimo falar de uma proposta de
espiritualidade ecológica da obra, pois, se é verdade que nela nem em
qualquer outra obra do Doutor Seráfico encontra-se o termo ecologia,
aquilo que o mesmo sugere encontra-se, vale dizer, uma consideração
das relações entre os seres entre si, o meio ambiente que, na proposta
boaventuriana, são integradas pela relação com o Deus que os habita
e transcende.
A segunda é que, não obstante as enormes diferenças entre as cos-
mologias medievais e as contemporâneas, percebem-se várias conver-
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