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LUÍS DE CAMÕES.

extratos) e pela lírica, incluindo 36 poe-


A GLOBAL POET FOR TODAY mas, sendo 8 em medida velha e os res-
HELDER MACEDO AND THOMAS EARLE tantes em medida nova.
(EDS.) ANDRÉ CARRILHO (ILUSTRADOR) Em face desta distribuição, não há
Lisboa: Lisbon Poets & Company, 2019 dúvida de que estamos perante uma
360 páginas. ISBN 9789895467327 antologia equilibrada e bem represen-
tativa da obra de Camões. Não faltam
Dar a conhecer Camões a leitores do os principais registos modais e estilísti-
século XXI é um propósito tão louvável cos como não faltam os temas essenciais
quanto difícil. Essa é nomeadamente, que assinalam o mundo do nosso poeta
em Portugal, a tarefa dos professores maior.
do Ensino Básico e Secundário, a quem Uma segunda escolha a fazer pelos
cumpre falar regularmente de Os Lusía- autores relaciona-se com as fontes.
das a alunos de 14/15 anos e da lírica Embora não existam muitos problemas
no ano subsequente. A pergunta parece de substância quanto à fixação do texto
não encontrar resposta: como se pode épico, os autores mencionam duas edi-
demonstrar o valor e a “atualidade” da ções: a de Costa Pimpão e a de António
criação camoniana a jovens que descon- José Saraiva. Como é sabido, trata-se
fiam da poesia ou a têm por forma de de fontes diferentes: a primeira é mais
comunicação anacrónica? destinada a um público universitário
Mas se a dificuldade se coloca para (sendo por isso, desde logo, menos ano-
leitores de língua portuguesa, o que tada); já a segunda, é mais provida de
dizer quando se trata de levar Camões comentários interpretativos, uma vez
ao conhecimento de um público que que visa um público mais alargado.
não só desconhece a língua como não No que toca à Lírica, porém, sobre-
conhece a cultura que lhe serve de vivem dúvidas de vário tipo, envol-
enqua­dramento? vendo não apenas a fixação do texto
Este foi, nem mais nem menos, o desa- como a própria atribuição autoral.
fio que Helder Macedo e Thomas Earle Neste caso, os antologiadores recor-
decidiram aceitar, preparando uma reram conjugadamente a três fontes:
antologia bilingue da obra camoniana a edição da Lírica Completa, preparada
(Português/Inglês). Não foram pou- por Maria de Lurdes Saraiva e vinda a
cas as opções que tiveram que tomar. lume em 1980, a edição dos sonetos, da
E nenhuma delas se afigurava fácil. A responsabilidade de Cleonice Berardi-
primeira residia na escolha dos textos. nelli (publicada em Paris, no mesmo
Seguramente condicionados pelo for- ano jubilar) e os 5 volumes laboriosa-
mato da coleção em que o volume se mente organizados por Leodegário de
integra, Macedo e Earle selecionaram Azevedo Filho, publicados entre 1985
50 textos, distribuídos pela épica (14 e 2001.
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O recurso a fontes tão diferentes e tão ela suscita. É evidentemente o caso de


diversas poderia suscitar, desde logo, a Helder Macedo. O texto introdutório
questão da autenticidade de algumas é assim um verdadeiro ensaio sobre a
composições. Basta lembrar que, em obra camoniana globalmente conce-
termos de cânone, as edições de Saraiva bida. Como síntese (forçosamente mais
e de Leodegário se encontram justa- contida do que aquela que o mesmo
mente nos antípodas uma da outra: a autor escreveu para um outro empreen-
primeira acolhendo mais de seis cen- dimento bilingue (Português/Caste-
tenas de composições e a segunda mal lhano) vindo a lume em 2007, o atual
ultrapassando a centena. Ainda assim, texto poderia figurar numa qualquer
embora sinalizando fontes variadas, os enciclopédia cultural de vocação cos-
autores do volume optaram por incluir mopolita. Contém informação segura e
apenas textos que figuram nas edições encerra uma proposta de leitura pessoal
mais aceites: Pimpão, Cidade e Leal de que, de acordo com o título do livro,
Matos. Deduz-se assim que, mais do destaca justamente a globalidade e a
que qualquer outro objetivo, a alusão atualidade do poeta.
a fontes tão diversas se destina não a O facto de se destinar a um público
confundir o leitor mas precisamente essencialmente não-português explica
a informá-lo acerca dos alinhamentos a ênfase na ideia de que Camões é um
dissonantes que subsistem sobre tais poeta renovador ou mesmo pioneiro.
matérias. É o que ocorre quando se sinte-
Num empreendimento desta natu- tiza desta forma a relação do poeta
reza, a Introdução assume importância com a diversidade dos seus modelos:
central. Tendo em vista o público espe- “Camões filled old bottles with new
rado, impõe-se que o texto seja claro mas wine” (p. 17). É ainda o que sucede
não redutor, seguro mas não exagerada- quando se refere o sensualismo pre-
mente erudito. Em meu juízo, as vinte sente na lírica camoniana: “Few poets,
páginas que antecedem a Antologia before or after Camões, have celebra-
cumprem plenamente estes requisitos. ted feminine sexuality as much he did”
Revelam-se muito úteis a quem pouco (p. 19); ou, mais concretamente ainda,
ou nada conhece do autor em causa mas quando se evoca a celebração do amor
não deixam de conter pistas de reflexão físico e espiritual que envolve a “mulher
que aproveitam a quem estiver mais negra”: “not as an exotic import or a
familiarizado com a obra camoniana. literary gloss of the bleckbut comely
Esta notável combinação entre cla- woman of the Song of Solomon, but
reza e profundidade só podia ter sido as a recognition of the value of diffe-
alcançada por alguém que tivesse uma rence” (p. 21).
longa e intensa proximidade com a Confrontado com asserções deste
obra do poeta e com os problemas que tipo, o leitor que nada sabe de Camões
l u í s d e c a m õ e s . a g l o b a l p o e t f o r t o d ay | 499

pode sentir-se atraído pela leitura do esclarecer sentidos pontuais dos tex-
volume. Já o leitor que conhece o poeta tos traduzidos. Sem enquadramento e
sente-se estimulado para rever ideias sem notas, o leitor menos preparado
que talvez tivesse por inamovíveis. Não vê-se obrigado a recuperar mais vezes
necessita sequer de aderir às propostas a Introdução. A verdade, porém, é que
de leitura de Macedo, de forma imediata na sua abrangência, o elegante e bem
e integral. Mas retém uma visão desa- fundamentado texto de Macedo não
fiadora que lhe permite o confronto, poderia incluir respostas para todas as
quer com outras perspetivas quer com perguntas que podem fazer-se, a propó-
a sua própria visão. sito de alguns dos textos que figuram na
A seleção dos fragmentos da epopeia antologia.
e da lírica é pelo menos representativa. Na p. 178, por exemplo, logo a
Refletindo naturalmente o gosto dos seguir ao belíssimo soneto “Um mover
antologiadores, não se encontra ferida d’olhos brando e piadoso”, encon-
pelo principal defeito das antologias: tramos o texto que começa “Porém já
a falta de proporção. Nela encontra- cinco sóis eram passados”. Se o leitor
mos diversidade criteriosa (notámos a português pode reconhecer logo o iní-
importância reconhecida aos poemas cio do episódio do Adamastor, outro,
em medida velha) e nela encontramos, menos preparado, sentirá a falta de uma
sobretudo, um conjunto de textos que explicação contextualizadora.
fazem ainda mais sentido em função do O mesmo pode acontecer com o epi-
agrupamento a que são sujeitos. sódio de Inês de Castro (pp. 92-104).
Não é a primeira vez que a obra As imortais estâncias de Camões valem
de Camões é traduzida para Inglês. bem por si mesmas. Mas o leitor gos-
Desde 1655 até aos nossos dias, vieram taria de saber algo sobre a oportuni-
a público várias versões da epopeia dade do tema numa epopeia e sobre a
(parciais ou integrais). Já as traduções importância que ele ocupa na cultura
de textos líricos são em bem menor portuguesa.
número e mais recentes (datam todas A propósito do alinhamento de tex-
do século XX). tos, pode haver quem fique com pena de
Nessa perspetiva, a atual obra repre- não ver contempladas as estâncias que
senta um empreendimento valioso e encerram o Canto IV, dedicadas às des-
equilibrado, com grande potencial de pedidas de Belém.
impacto em vários tipos de público. Apesar de me faltar conhecimento
Ainda assim, podem notar-se duas para me pronunciar criticamente sobre
faltas. A primeira prende-se com a falta o trabalho de tradução levado a efeito
de enquadramento dos episódios de Os por Thomas F. Earle, atrevo-me a dizer
Lusíadas; a segunda relaciona-se com a que também a este nível a Antologia
ausência de algumas notas capazes de encontrou o tradutor indicado. Colo-
500 | recensões

car o português de Camões em inglês acabam de prestar à língua e à cultura


semanticamente percetível e fonetica- portuguesa. Nas suas duas vertentes, o
mente harmonioso e manter a fideli- título que escolheram para o seu livro
dade ao espírito do autor não está ao (“...a global poet for today”) fica bem
alcance de muitos. É necessário domi- demonstrado no carácter prospetivo
nar bem os dois idiomas, desde logo; da Introdução, no critério que presidiu
mas é sobretudo preciso ter uma grande à escolha dos textos e na propriedade
experiência de contacto com textos por- versátil da tradução que nos é apre-
tugueses do século XVI. Por último, é sentada. É justo salientar, de resto, que
imprescindível conhecer em profundi- se trata de um serviço que se soma a
dade o mundo camoniano e as muito muitos outros já prestados por aqueles
diferentes formas de expressão que o professores à causa da Língua e da Lite-
servem. São requisitos de muita exi- ratura Portuguesas, tão necessitada de
gência, que no tradutor em causa con- militância serena e qualificada.
vergem com raríssima felicidade. Tudo
isso contribui para o pequeno milagre José Augusto Cardoso Bernardes
que é vermos as redondilhas de “Sobre https://orcid.org/0000-0002-8019-2465
os Rios que vão” vertidas em inglês e, https://doi.org/10.14195/2183-847X_11_20
mesmo assim, permanecerem não só
reconhecíveis mas potenciadas na sua
TEXTOS FUNDAMENTALES
modernidade de grito angustiado e de
SOBRE PORTUGAL
superação mística.
MIGUEL DE UNAMUNO
Importância integradora tem, por
ÁNGEL MARCOS DE DIOS (ED.)
fim a vintena de ilustrações que André
Salamanca: Luso Española de Ediciones
Carrilho concebeu para este volume.
(2020)
Todas surpreendem pela beleza, pela
135 páginas. ISBN 9788415712428
adequação ao texto e pela capacidade de
evocar e alargar a leitura. Retenho, em SAUDADES DE PORTUGAL
especial, as que figuram na p. 69 (refe- RAMÓN GÓMEZ DE LA SERNA
rente ao soneto “Eu cantarei de amor tão ANTONIO SÁEZ DELGADO E PABLO
docemente”), na p. 175 (alusiva à figura JAVIER PÉREZ LÓPEZ (ED.)
da Bárbara escrava) na p. 201 (a propó- Lisboa: Abysmo (2019)
sito do soneto “Alma minha gentil que te 152 páginas. ISBN 9789899014008
partiste”) ou na p. 231, introduzindo as
redondilhas de “Sobre os rios que vão”. Miguel de Unamuno e Ramón Gómez
Em face de tantas características de la Serna são duas figuras centrais
louváveis, existem fundas razões para da cena literária espanhola novecen-
agradecer aos Professores Helder tista, que têm em comum um invulgar
Macedo e Thomas Earle o serviço que interesse por Portugal numa época em

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