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FILOSOFIA | 10º ano Doc.

Textos de apoio Kant e Mill


KANT
Segundo Kant, em que deve assentar a moralidade? Kant acredita que a moralidade deve refletir a
compreensão que tu e eu temos acerca do que é uma boa vontade, do que é o dever e do que são os
nossos juízos morais sobre casos particulares da ação humana. Portanto, a estratégia que está subjacente
ao projeto ético de Kant, expresso na FMC[1], é a investigação das nossas intuições morais comuns,
para tornar possível a demonstração racional do princípio fundamental da moralidade. Para quê? Para
recusar as teses fundamentais do utilitarismo, a saber: que a fonte da motivação moral é a felicidade (a
procura do prazer e a ausência de dor); e que o valor moral de uma dada ação depende exclusivamente
da avaliação das consequências produzidas para o maior número de pessoas afetadas por essa ação
particular.

Segundo Kant, o que é então necessário para que as nossas ações sejam ações morais? Uma ação será
moral se e só se respeita os princípios ou regras morais independentemente da felicidade que dela
resultarem para um, para a maioria ou para todos os seres racionais. Uma ação será moral se e só se (a)
o princípio prático que lhe deu origem puder ser aceite por qualquer ser racional e (b) se respeitar a
dignidade dos seres humanos.

Kant nunca nos diz o que devemos fazer, embora possamos concluir através da aplicação da sua
metodologia ética o que não devemos fazer. Porquê? Porque Kant apenas nos fornece uma fórmula que
funciona como um teste ou critério para averiguar se os princípios morais subjetivos que guiam as
nossas ações (e que designa de máximas) podem ser princípios morais objetivos, quer dizer, podem ser
aceites por qualquer ser racional (e que designa de leis morais). Qual é, segundo Kant, o teste ou critério
da moralidade? O teste ou critério da moralidade é o imperativo categórico (IC), que é justamente o
coração do seu projeto ético.

Moralidade e dever:

Um dos aspetos mais marcantes da ética de Kant é que defende que, para identificarmos o que faz de
uma ação uma ação moral, temos de colocar de lado as nossas inclinações (o que queremos). Por isso,
afirma que não é suficiente que uma ação seja realizada apenas em conformidade externa com a lei

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moral: é indispensável que o motivo da ação seja o puro respeito pela lei, e não o interesse pessoal
(como acontece no egoísmo) ou a maximização da felicidade para o maior número (como acontece no
utilitarismo). Ora, segundo Kant, a distinção entre ações conformes ao dever (conformes com a lei
moral) e ações realizadas por dever (por respeito à lei moral) está presente na moralidade comum,
sendo, por isso, uma distinção que tu e eu podemos entender. Por outro lado, Kant acredita que tu e eu
não hesitaremos em conceder maior valor moral às ações realizadas por dever do que às ações realizadas
em conformidade com o dever. Kant defende que, independentemente da dificuldade de penetrar nas
intenções alheias ou nas suas motivações do homem comum, qualquer pessoa, incluindo eu e tu, pode
facilmente reconhecer o valor moral de uma ação realizada por respeito à lei moral. Acredito que isso
ficará mais claro através da análise da seguinte experiência mental: imagina dois comerciantes que dão
aos seus clientes o troco correto. Imagina que um fá-lo porque tem medo de ser apanhado a enganar os
clientes e que o outro fá-lo porque deve fazê-lo. Ora, qual destas ações julgas que possui valor moral?
Não parece difícil adivinhar que a tua resposta será idêntica à de Kant, já que não terás qualquer dúvida
em atribuir maior valia moral à ação do segundo comerciante, ou seja, à ação daquele que agiu por
dever. No caso do primeiro comerciante, embora a sua ação seja externamente conforme ao dever, quer
dizer, pareça ser uma ação realizada por dever, na realidade a sua motivação era egoísta, pelo que a sua
ação não possuirá valor moral.

Kant defende que a moralidade se relaciona com aquilo que motiva os seres humanos a agir. Se estás
motivado a respeitar a lei moral porque esse é o teu dever, então a tua ação será moral. Kant ao
identificar a moralidade com o dever chega a conclusão que apenas uma vontade que perceba esta
motivação será uma boa vontade. Como verás a seguir, esta é uma noção central no sistema ético
kantiano.

Boa Vontade

Kant afirma na FMC que não é possível pensar em seja o que for no mundo, ou até fora dele, que se
possa considerar bom sem qualificação exceto a vontade boa. O que está Kant a defender aqui? Está a
defender que a única coisa que é intrinsecamente valiosa (valiosa em si), quer dizer, boa sem
qualificação, é uma vontade boa. Mas o que significa ter uma vontade boa? Significa possuir uma
vontade que age por puro respeito pela lei moral e não em mera conformidade com a lei moral. As
pessoas que possuem uma vontade boa estão motivadas para respeitar a lei, porque é esse o seu dever e
não porque serão beneficiadas ao fazê-lo. Por outras palavras, as pessoas que possuem uma boa vontade
fazem o que é certo apenas porque é certo fazê-lo. Para Kant o supremo bem não é a felicidade, mas a

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boa vontade. Se existe alguma coisa que seja é boa sem qualificação, essa coisa é a boa vontade. Se
existe alguma coisa que seja é boa sem qualificação, essa coisa é a boa vontade. Esta tese contraria o
utilitarismo de J. Stuart Mill, para quem o que é moralmente relevante para avaliar uma dada ação são
sempre e apenas as suas consequências.

Um aspeto fundamental a considerar aqui, é que Kant não nega a tese utilitarista. Kant sabe que
queremos ser felizes, mas defende que a moralidade nada tem a ver com o querer ser feliz. A moralidade
tem a ver com o merecer ser feliz. Ora, o que nos permite esperar ser dignos de felicidade é a boa
vontade, pois o seu valor é inteiramente intrínseco, quer dizer, é independente daquilo que uma
determinada ação promove ou permite realizar.

Imperativo hipotético e Imperativo categórico

Segundo Kant, os princípios morais são imperativos, uma vez que ordenam que façamos certas coisas e
proíbem-nos de fazer outras. Por exemplo, “não deves roubar” é um imperativo. Mas os imperativos não
são todos iguais. Kant diz que existem imperativos hipotéticos e imperativos categóricos. O que os
distingue? Para responder a esta pergunta, deves considerar a seguinte experiência mental: imagina que
me dizes que tocas piano e que queres ser um grande pianista. Posso dizer-te que deves praticar bastante
para aperfeiçoares a tua técnica. Ora, o que te estou a dizer é que se queres ser um grande pianista, então
deves praticar bastante. Repara que na realidade estou a dizer-te algo que tem a seguinte forma lógica:
Se… (antecedente), então… (consequente). Ora, segundo Kant, esta é a forma de um imperativo
hipotético. Podemos expressá-la da forma seguinte: Se queres x, então faz y.

Um imperativo hipotético é uma ordem cuja forma visa a obtenção de uma consequência ou efeito
desejável para um, para a maioria ou para todos. É uma ordem condicional que considera moralmente
relevante os efeitos ou consequências de uma dada ação. No fundo, é este tipo de imperativo que está
subjacente ao egoísmo e ao utilitarismo.

Kant defende que a forma do imperativo categórico é «Faz X!». O imperativo categórico é uma ordem
absoluta e incondicional, isto é, uma ordem que nos diz como devemos agir sem exceção. A moralidade
kantiana é uma moralidade de princípios morais categóricos, pelo que também é conhecida como a
moral do IC (Imperativo Categórico).

Como te disse antes, a ética de Kant tem como objetivo identificar um critério que permita saber se uma
dada ação é certa ou errada. Ora, Kant considera que esse critério é o IC. Porquê? Segundo Kant, somos

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seres racionais e livres, que não se limitam a fazer coisas, mas que escolhem o que querem fazer. As
nossas ações decorrem de princípios práticos que consideramos relevantes para as nossas vidas e que
Kant designa de máximas. As máximas são princípios morais subjetivos, princípios válidos para nós.
Será que Kant considera morais as ações realizadas de acordo com estes princípios? Não, porque Kant
defende que uma ação é moral se e só se o princípio moral subjetivo (a máxima) puder ser aceite como
princípio moral objetivo (a lei moral) por todos os seres racionais, isto é, se puder ser aceite e seguida
por todos os seres racionais, sem que isso envolva qualquer tipo de contradição.

Fórmula do Imperativo Categórico

A primeira fórmula que deves considerar é conhecida como a fórmula da lei universal e é a seguinte:
Age apenas de acordo com aquela máxima que possas ao mesmo tempo querer que se torne uma lei
universal. O que significa? Significa que é um procedimento que devemos utilizar para saber se uma
dada máxima deve ser desejada pelo agente da ação como válida não somente pela sua vontade, mas
pela vontade de todo o ser racional. Significa que devemos agir sempre de acordo com princípios
práticos (máximas) que qualquer ser racional esteja disposto a aceitar.

Ao contrário do que defende o utilitarismo, Kant afirma que não há favoritos nem sacrificados na moral.
Segundo o filósofo alemão, os seres iguais devem ser tratados de forma igual, por isso, se for
moralmente permissível alguém agir de uma certa forma, então será moralmente permissível qualquer
pessoa agir dessa forma se as circunstâncias forem similares, quer dizer, se as situações não diferirem
quanto aos aspetos moralmente relevantes. Kant defende que se não existirem diferenças moralmente
relevantes entre duas ações, então não há razão para as avaliar de forma diferente. Segundo Kant, o que
é moralmente relevante é a motivação ou a intenção de agir por dever e não por causa de um desejo
particular. Por isso, o que é moralmente relevante é a essência da ação, quer dizer, saber se uma pessoa
age racionalmente e segundo o seu sentimento de dever.

A primeira formulação do IC identifica dois critérios para determinar o que é moralmente permissível e
moralmente justificável. O primeiro é o critério da universabilidade: uma ação é moralmente
permissível e justificável se e só se a máxima que lhe deu origem puder ser aplicável a todos os seres
racionais, quer dizer, se a máxima puder ser universabilizada.

2ª Fórmula do Imperativo Categórico

A segunda fórmula do IC (Imperativo categórico) é: Age de maneira a tratar a humanidade, na tua

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própria pessoa ou em qualquer outra, nunca somente como meio, mas sempre também como fim. De
acordo com esta formulação, conhecida como a fórmula da humanidade, Kant pretende que uma ação,
para ser moral, tem de tratar as pessoas como fins e nunca como meios.

Embora Kant considere que a 1ª e a 2ª fórmulas do IC sejam equivalentes, na realidade são


complementares, quer dizer a 2ª fórmula é complementar da 1ª. Assim, decidir se uma ação é moral
implica um processo de dois passos: (1) determinar se uma máxima de ação pode ser universalizada e é
reversível e (2) determinar se tal ação trata qualquer pessoa como fim em si mesmo e não como mero
meio. Se a ação passar em ambos os testes, então será moralmente permissível.

A intuição moral que está por detrás da 2ª fórmula do IC é que todos os seres humanos são
intrinsecamente valiosos. Mas o que significa afirmar que todos os seres humanos são intrinsecamente
valiosos?

Para responder a esta pergunta é necessário perceber que existe, segundo Kant, uma diferença crucial
entre objetos e pessoas. Os objetos têm valor mas apenas as pessoas têm dignidade. Porquê? Considera
as seguintes experiências mentais:

1. Imagina que um amigo te emprestou o seu computador portátil. Sem que o pudesses evitar, acabas
por o deixar cair ao chão e o computador fica estragado de uma forma irrecuperável. Como és uma
pessoa decente, compras-lhe um computador idêntico para substituir o que estragaste. Partindo do
princípio que também substituíste o software e que conseguiste copiar todos os ficheiros do disco duro
do antigo computador, provavelmente concluis que nada de mal aconteceu. O teu amigo já não tem o
computador original, mas tem um substituto que, para todos os efeitos, é em tudo equivalente ao que se
estragou.

2. Imagina que estás hospitalizado em razão de uma doença incurável. Os teus pais vêm visitar-te todos
os dias e choram à beira da tua cama. Estão completamente desolados por saberem que em breve
morrerás. Mas és incrivelmente corajoso e és tu quem os conforta. Imagina que um dia eles chegam
bastante mais contentes e te dizem “Temos excelentes notícias para ti. Um médico disse-nos que embora
vás morrer, podemos clonar-te e substituir-te depois de morreres. E, ainda que não sejas realmente tu, o
teu clone parecer-se-á contigo e, de muitas maneiras, comportar-se-á como tu. Vamos dar-lhe a tua
cama, as tuas roupas, em suma, vamos dar-lhe tudo o que agora é teu! Diz lá, não é uma notícia
fantástica?” Como reagirias? Presumo que ficarias completamente estupefacto. Como poderiam eles

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pensar em substituir-te?! Afinal és um ser humano único, que não pode, pura e simplesmente, ser
substituído por alguém, ainda que geneticamente idêntico.

Ora, quando Kant afirma que todo o ser humano é intrinsecamente valioso, o que está a defender é que
nenhum ser humano é substituível ou sacrificável, porque a dignidade dos seres humano não é
substituível ou sacrificável. A dignidade humana é algo que não se pode perder, algo que não tem preço
nem valor de mercado.

Kant defende que o valor intrínseco dos seres humanos decorre do facto de todo o ser humano possuir
consciência de si, ser racional e livre. Por terem consciência de si, podem perceber os princípios que
governam as suas ações. Por serem racionais, podem determinar se esses princípios são universalizáveis.
E, por serem livres, podem escolher os princípios que guiam as suas ações. Portanto, o valor do ser
humano decorre da sua dignidade e, diz Kant, a sua dignidade decorre da capacidade que todo o ser
humano tem para: agir de acordo com máximas ou princípios; perseguir princípios racionais de
prudência e eficiência; prever as consequências futuras das suas ações, adotar planos de longo prazo, e
resistir a tentações imediatas; aceitar de forma incondicional princípios de conduta, quer dizer,
imperativos categóricos; e compreender o mundo e pensar de forma abstrata. Em consequência, podem
ser moralmente responsáveis pelas suas ações.

Respeitar o valor intrínseco das pessoas, envolve respeitar o seu livre-arbítrio. Ao permitir que escolham
o tipo de vida que querem viver, estamos a tratá-las como fins em si mesmos e não como meros meios.

A 2ª fórmula do IC é bastante importante porque, para além nos motivar a agir de acordo com a 1ª
fórmula, aponta para um novo conteúdo do IC. A ideia de respeitar os outros como pessoas, de os
considerar como o fim mesmo de uma ação, e nunca como mero meio que sirva outra finalidade, é uma
crença ética poderosa. De acordo com ela podemos classificar de inumanas e indignas de um ser
racional todas as ações que impliquem manipulação do outro, ou seja, a sua utilização como mero meio.
Quando manipulamos as pessoas, quer dizer, quando as usamos contra a sua vontade ou sem que disso
se apercebam, estamos a tratá-las como meros meios. Quando escravizamos as pessoas, por exemplo,
estamos a impedir que persigam os seus próprios desejos e planos e estamos a forçá-las a viver de
acordo com os nossos planos. A escravidão é imoral precisamente por não reconhecer o valor intrínseco
dos “escravos”, por os tratar como coisas ou instrumentos em vez de os tratar como agentes morais,
respeitando a sua autonomia – o direito de viverem as suas vidas como quiserem.

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Objeções à ética do dever em Kant

A ética ou filosofia moral de Kant tem sido alvo de inúmeras objeções.

Uma dessas objeções visa o caráter a priori da teoria moral de Kant, uma vez que há boas razões para
acreditar que uma teoria moral a priori não é justificável por nenhuma característica da natureza
humana. A teoria kantiana, por exemplo, aplica-se a qualquer teoria em qualquer tempo desde que essa
criatura seja racional, independentemente do que mais possa ser. Contudo, bastante filósofos acreditam
que uma teoria moral aceitável deve basear-se nos aspetos empíricos da condição humana. Por exemplo,
uma tal teoria, defendem, deve ter em conta aquilo que faz o ser humano feliz (como faz o utilitarismo),
porque senão o objetivo da teoria torna-se completamente obscuro. Repara, se levar uma vida virtuosa
(moralmente boa) não conduz à felicidade, então será que vale a pena levar uma vida virtuosa
(moralmente boa)? Parece que não, já que parece não haver motivação para agir moralmente.

Uma outra objeção frequente recusa a tese de que apenas as ações realizadas por respeito à lei têm valor
moral. Considera a seguinte experiência mental: imagina uma situação em que um pai brinca com o seu
filho por puro divertimento e não por dever. E imagina uma outra situação em que um pai brinca de
forma nada espontânea com o seu filho, mas que ao fazê-lo está a agir apenas de acordo com o seu dever
de pai. Ora, de um ponto de vista kantiano, qual das ações tem valor moral? Seguramente que seria a
segunda, pois só na segunda se verifica uma ação realizada por dever. A ação do primeiro pai seria
classificada por Kant como um caso de ação por inclinação e, este tipo de ação. não tem valor moral.
Mas não será esta resposta contraintuitiva? Parece evidente que as nossas intuições morais nos
conduzem a responder que o segundo homem falha como pai. Por outro lado, ainda que possamos
aceitar que o segundo tem uma falha de caráter por ser incapaz de amar o filho, não poderemos aceitar
que o primeiro tem uma falha de caráter por amar o filho. Assim, ao contrário do que defende Kant,
parece que devemos atribuir valor moral à ação do primeiro pai.

Um outro tipo de objeção diz respeito ao facto de bastantes filósofos defenderem que Kant erra ao não
admitir a possibilidade de existirem deveres conflituantes, e ao defender que, se experienciamos dois
deveres, mas apenas pudermos cumprir um deles, então é porque apenas um deles é realmente um dever.
Ora, num dilema moral, escolher um curso de ação em função de um dever implica sempre não escolher
um curso de ação alternativo que implica um outro dever.

Mas Kant não considera que seja assim. Segundo ele, provavelmente apenas um dever se impõe a

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Antígona, que deveria racionalmente identificar claramente qual é: se obedecer às leis da cidade ou se
obedecer às leis dos deuses. Seja como for, Kant engana-se, pois podemos de facto experienciar
situações em que há deveres conflituantes. Ora, a sua teoria ética falha porque não nos fornece nenhum
mecanismo que permita decidir como resolver dilemas morais em que exista um conflito real de
deveres. Alguns filósofos posteriores que aceitam grande parte da filosofia moral de Kant, perceberam
que esta é uma dificuldade real e, por isso, propuseram mecanismos para tornar possível decidir, em
situações em os deveres conflituem, qual deve ter prioridade.

Como vimos, Kant defende que a única coisa realmente importante de um ponto de vista moral é a
motivação (intenção) que está por detrás de uma dada ação. Todavia, isto é algo de que podemos
justificadamente discordar. Por exemplo, imaginemos alguém, digamos, o Sr. X, que quer ajudar um seu
primo, digamos, o Sr. Y, dando-lhe dinheiro, tornando-o bastante rico, já que acredita que esta é a
melhor forma de o ajudar a crescer e melhorar como pessoa. Só que o primo tem pouco tino e, como era
expectável, acaba rapidamente por esbanjar todo o dinheiro que recebeu, ficando numa situação pior do
que aquela em que estava antes de receber o dinheiro. Ainda que as intenções do Sr. X sejam
moralmente corretas, ele é moralmente responsável pelo que sucedeu, como o será sempre alguém que,
sabendo que uma sua ação particular terá más consequências, ainda assim a realize. Neste caso, a ênfase
que Kant coloca na intenção excluindo em absoluto as consequências, parece conduzir a equívocos. Na
experiência mental anterior, o melhor curso de ação seria aquele que, em vez de valorizar a intenção,
valorizasse as consequências. Ainda que possamos aceitar que o utilitarismo seja uma teoria ética
problemática, por considerar como moralmente relevantes apenas as consequências, teremos que aceitar
que, pelo menos em algumas circunstâncias, está correta.

Considere-se uma outra experiência mental: alguém atropela fatalmente uma criança sem que houvesse
oportunidade de o evitar. Ainda que o acaso seja determinante nesta ação, a pessoa sente-se responsável
e fica com remorsos, até porque se não os sentisse, poderíamos dizer que havia algo errado com o seu
caráter. Como é fácil de perceber, esta é uma situação frequente em ética: alguém sentir-se moralmente
responsável por algo que fez pura e simplesmente porque não conseguiu evitar. Só que para a ética
moral kantiana só as intenções são moralmente relevantes para avaliar a correção ou incorreção de uma
ação, quer dizer, a sua moralidade. Em consequência, a vida humana é imune ao acaso no que diz
respeito à moralidade. A questão então é: será que só as intenções interessam do ponto de vista ético?
Parece que não. Parece profundamente errado que alguém, ainda que sem qualquer tipo de
responsabilidade direta pela morte de uma criança, como acontece neste caso, não fique abalado pela

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situação. Uma tal situação coloca-nos perante questões que estão para além das consequências e das
intenções e que têm que ver com o caráter das pessoas e com o valor moral do agente, como defendia,
por exemplo, Aristóteles na sua ética das virtudes (que, infelizmente, não faz parte do nosso plano de
estudos).

Adaptado a partir do original da autoria de João Oliveira.

[1] Fundamentação da Metafísica dos Costumes (livro de kant sobre Ética)

Kant caricaturado retirado de: https://www.cartoonstock.com/directory/i/immanuel_kant.asp

Stuart Mill
1. CARACTERIZAÇÃO GERAL DO UTILITARISMO
Há uma família de éticas normativas, isto é, teorias sobre o que devemos ou não fazer, que se designa
éticas teleológicas, isto é, teorias em que o certo e o errado são identificados com o fim ( télos) da ação.
Do ponto de vista destas éticas, devemos fazer o que é certo e certo é o que tem a ver com os resultados
da ação.

Dentro das éticas teleológicas, vamos apenas considerar as éticas consequencialistas, isto é, éticas em
que o certo e o errado são identificados sempre com as consequências da ação. Uma ética

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consequencialista defende que devemos agir de forma a produzir boas consequências ou então a
diminuir as más consequências. As duas principais correntes do consequencialismo são o egoísmo ético
e o utilitarismo. A diferença é que para o egoísmo ético o fundamental é que o ser humano deve agir em
seu próprio benefício, ao passo que de acordo com o utilitarismo o ser humano deve agir em função do
interesse de todos.

O utilitarismo defende que cada indivíduo deve viver de forma a proporcionar o maior bem ou maior
felicidade para a comunidade. Cada indivíduo deve analisar a situação particular na qual se encontra e
descobrir qual a ação que trará o maior benefício para todos os envolvidos. Uma vez que cada ação é única,
não é possível saber que regras são morais, porque pode acontecer que as regras morais não promovam a
maior felicidade para os envolvidos. Por exemplo, a regra «Devemos dizer sempre a verdade» não é moral,
porque pode acontecer que promova a maior infelicidade para os envolvidos.

O utilitarismo é uma teoria ética objetivista, a posteriori e racional. Defende que a razão humana é capaz de
fundar racionalmente o certo e errado e encontrar na experiência (a posteriori) um princípio objetivo que
identifique o que, em cada situação, é nosso dever fazer. Desta forma, o utilitarismo corta radicalmente com
as éticas teológicas que encontram numa entidade superior e divina a origem dos princípios da moralidade.

O utilitarismo tem por base uma certa perceção do ser humano que consiste na afirmação de que a maioria
dos seres humanos [e não só] procura a felicidade. Se é assim, certa será, em qualquer circunstância, a ação
que a promove. Como se depreende, não é fácil determinar o que significa exatamente a felicidade, e as
formas de utilitarismo têm justamente a ver com esta dificuldade. Mas é um facto inelutável que os seres
humanos [e não só] querem ser felizes.

O utilitarismo é, em primeiro lugar, uma teoria ética consequencialista, o que significa que se distingue de
outras teorias éticas que se baseiam na intenção. O que é moralmente relevante para apreciar a moralidade de
uma ação é o seu resultado. Assim, um curso de ação será obrigatório se e só se promover boas
consequências ou minimizar más consequências.

Uma outra característica do utilitarismo é a sua função maximizadora. Qualquer versão do utilitarismo está
comprometida com a tese de que devemos fazer o melhor possível. A pressuposição básica é que, se algo é
bom, então não seria razoável produzi-lo em quantidade pequena, já que, quanto mais tivermos do que é
bom, melhor para todos. Se o prazer é bom, então quanto mais atividades prazerosas praticarmos, mais
próximos estaremos de maximizar a utilidade geral. Importa lembrar, todavia, que o utilitarismo não é uma
teoria egoísta, porque o que se deve maximizar não é o bem pessoal, mas o bem para o maior número
possível.

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O utilitarismo é considerado uma teoria ética bastante exigente porque o que se pede frequentemente de um
ponto de vista utilitarista é que o bem seja promovido de forma imparcial, quer dizer, de uma forma que os
interesses pessoais são moralmente equivalentes aos interesses pessoais de todos aqueles que são afetados
por dado curso de ação. A imparcialidade é um elemento característico do utilitarismo. Esta teoria ética
defende que não há preferidos e todos contam como um no cálculo final das consequências, pelo que o
utilitarismo acaba por ser uma teoria ética igualitária, porque não existem seres humanos de primeira e seres
humanos de segunda. Os interesses de todos contam, ninguém é excluído arbitrariamente do cálculo e os
benefícios de uma ação devem ser estendidos ao maior número possível de sujeitos morais.

O utilitarismo distingue o valor da ação do valor do agente. O facto de uma ação ser boa ou má não
independe do facto do seu agente ser boa ou má pessoa. Uma pessoa pode realizar inopinadamente e com
boas intenções uma ação que na verdade é desarrazoada e cujo resultado é desastroso. Nesse caso, a ação
será má, mas nem por isso a pessoa e a sua intenção deixarão de ser boas.

O princípio da utilidade é a única fonte da moralidade. Nenhuma ação é certa ou errada independentemente
da sua fonte, a menos que esteja em conformidade com o princípio de utilidade. Os defensores do
utilitarismo dizem que esta é uma teoria do raciocínio moral voltada para a promoção do bem comum.

2. HEDONISMO QUALITATIVO DE J. STUAR MILL

Stuart Mill elaborou uma forma mais refinada de utilitarismo hedonista. Procurou introduzir elementos que
valorizassem o caráter da pessoa e não apenas o prazer. Procurou também compatibilizar as questões de
justiça e direitos humanos com a teoria da utilidade. Mas procurou sobretudo introduzir elementos
qualitativos na avaliação dos prazeres e, dessa forma, na escolha das ações. O seu objetivo será então
fornecer uma definição mais adequada de felicidade. Para isso, Mill distingue entre prazeres superiores, de
ordem intelectual, estética e social, e prazeres sensuais, inferiores, de ordem sensorial, como a alimentação,
o repouso, entre outros. Segundo Mill, os prazeres superiores são mais complexos, duradouros e seguros,
enquanto os prazeres inferiores, embora possivelmente mais intensos, são mais simples e episódicos, sendo
mais comummente associados a desprazeres e costumando causar dor quando excedidos. Daqui resulta que
os prazeres superiores têm mais valor, quer dizer, são intrinsecamente mais valiosos, no cálculo hedónico.
Assim, ouvir Bach é mais desejável do que comer uma feijoada, porque provoca um prazer intrinsecamente
mais valioso e, por isso, mais desejável. Por outro lado, Mill admite que é muito mais difícil satisfazer todas
as necessidades, das mais simples às mais superiores, o que significa que a felicidade – entendida como a
satisfação suficiente de necessidades razoavelmente concebidas – pode ser mais improvável em tais casos.
Além disso, o facto de que parecemos dar maior preferência à preservação da nossa capacidade para os

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prazeres superiores sobre a preservação da nossa capacidade para os prazeres inferiores seria prova suficiente
de que os primeiros produzem um bem maior. Quem discorda, diz Mill, é porque nunca experimentou os
prazeres superiores e fala, portanto, sem conhecimento de causa. Defende, por isso, que os seres humanos
não são como os porcos. Ainda que procurem prazeres corpóreos, procuram algo mais elevado a que os
porcos jamais poderão aspirar. Um prazer como tocar piano envolve o exercício de faculdades e habilidades
distintamente humanas, como a interpretação e a compreensão e obriga a que o pianista desenvolva virtudes
distintamente humanas como a paciência, a dedicação e persistência, algo que um porco jamais
desenvolverá.

Os utilitaristas confrontam-se com as dificuldades que decorrem do facto de o utilitarismo possuir uma
estrutura consequencialista. A dificuldade principal diz respeito à previsão dos efeitos das nossas ações e ao
facto de ser recomendável esperar até sobrevirem as consequências dos nossos atos para avaliar se foram
bons ou maus. Especialmente problemática é a dificuldade de previsão das consequências no longo prazo. A
resposta de Mill de que habitualmente possuímos uma ideia razoável e aproximada do que vai acontecer não
parece convincente. A resposta de que se não conseguimos prever as consequências no longo prazo então é
melhor não pensar nisso, também não parece muito plausível. Uma outra forma de lidar com esta dificuldade
é sugerir que há consequências imediatas e consequências remotas. Segundo eles, apenas as consequências
imediatas contariam para estabelecer o valor moral de um ato. Ainda que assim fosse, precisaríamos de um
critério claro para determinar até onde consideramos consequências imediatas e a partir de quando
consideramos consequências remotas.

Os problemas do utilitarismo com as questões de justiça distributiva começam logo na ideia de maximizar
a felicidade para o maior número. O que significa isto? Significa que devemos promover a felicidade para
todos ou para a maioria? O utilitarismo quer promover a felicidade de todos, mas depois o que consegue é
apenas promover a da maioria. A função da maximização da felicidade conflitua com a universalidade e
imparcialidade, ou seja, com o caráter igualitarista da ética utilitarista, o que conduz a acusá-lo de ser um
sistema ético intrinsecamente injusto, porque não reconhece a independência total da justiça relativamente à
utilidade e não discute, por isso, a distribuição da felicidade. Não equaciona qualquer princípio distributivo
seja meritocrático, igualitário ou equitativo. Por exemplo, se um soldado luta bravamente pelo seu país,
merece ser recompensado; se alguém contribui para o bem comum, deve receber na proporção das suas
necessidades ou na proporção do seu esforço; e se alguém não contribui quando está em condições de o
fazer, então não deve receber. Contudo, como no cálculo utilitário os únicos critérios são o da maximização
da felicidade para o maior número, a possibilidade de quem tem mérito ser sacrificado em nome da maioria;
a possibilidade de quem contribui para o bem comum ser sacrificado em nome da maioria; a possibilidade de
quem precisa ser sacrificado em nome da maioria; e a possibilidade de quem nada faz, podendo, fazer parte

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da maioria são bem reais. Se é assim, o utilitarismo confronta-se com um sério problema de justiça. Supõe
que podemos criar uma grande riqueza para o nosso país por meio da escravização de uma minoria. Se a
sociedade, como um todo, for suficientemente beneficiada pela escravidão, isto ultrapassaria o efeito
negativo sobre a minoria escravizada. Uma tal ação seria justificada à luz do princípio da utilidade. No
entanto, considerando as nossas intuições morais comuns, pensamos que a justiça e os direitos fundamentais
dos indivíduos são demasiado importantes para serem sacrificados em nome do bem comum. Os indivíduos
não são simplesmente meios para um fim, mas um fim em si próprios, com os seus interesses e
preocupações. Tratar as pessoas como meios para um fim é negar o respeito que essas pessoas, pelo simples
facto de serem pessoas, merecem. O utilitarismo reconhece a importância da justiça e dos direitos, mas
apenas naqueles casos em que esse reconhecimento produz maior felicidade para o maior número. Quando a
justiça e os direitos não promovem o bem comum, devem ser ignorados.

O utilitarismo enfrenta um outro problema com a questão dos deveres e obrigações especiais. Parece
que dada a nossa condição especial, há deveres e obrigações especiais que temos, mas que outras pessoas não
têm. Terão outros que decorrem da sua situação particular. Estes deveres particulares são diferentes dos
deveres e obrigações que todos temos, como, por exemplo, o dever de promover o bem comum. Por
exemplo, as pessoas que são pais têm obrigações e deveres especiais para com os seus filhos, e as que são
professores têm deveres especiais para com os seus alunos. E outras pessoas não têm estas obrigações
especiais, mas têm outras. Ora, o utilitarismo é incapaz de explicar estes deveres especiais, mas é sobretudo
incapaz de os levar em conta.

Intuitivamente percebemos que ações como respeitar a propriedade dos outros, dizer a verdade e
cumprir promessas são princípios morais importantes. No entanto, para o utilitarismo a obrigatoriedade
destes atos está dependente da contingência de terem ou não boas consequências. Supõe, por exemplo, que
peço emprestados 1000 Euros a um amigo rico, prometendo devolver-lhos na sexta feira da semana que vem.
Supõe que no dia em que prometi devolver-lhe o dinheiro percebo que aumentaria a felicidade para o maior
número se, em vez de lho devolver, o doasse à Cáritas Portugal. Certamente que, de um ponto de vista
utilitarista, devias ignorar a minha promessa e o curso de ação moralmente obrigatório, porque, afinal de
contas, é o que maximiza imparcialmente a felicidade para o maior número. Intuitivamente sou obrigado a
achar que não é assim porque tenho o dever de cumprir a minha promessa e devolver-lhe o dinheiro.

Esta dificuldade do utilitarismo com os deveres e obrigações relaciona-se com o facto de ser uma ética que
não tem preocupações com o passado, mas apenas com o futuro, pelo que é incapaz de integrar o problema
das promessas na sua estrutura consequencialista.

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Muitos defendem que o utilitarismo é uma teoria moral absurdamente exigente. Por exemplo, imagina
que queres comer um gelado, mas que há gente no mundo que não tem acesso a água potável. Ora, como, de
um ponto de vista utilitarista, os teus interesses são moralmente irrelevantes no cálculo hedónico, o que
deves fazer é doar o dinheiro que irias gastar na aquisição do gelado a uma ONG que se dedique a levar água
potável a quem não a tem. Ora, não quer dizer que não haja situações na tua vida em que seja moral pensares
nos outros, a questão não é essa. A questão é que o raciocínio utilitarista levar-nos-ia rapidamente a passar da
situação de estar melhor do que para a situação de estar pior do que. Portanto, ao pedir que escolhamos
sempre o melhor para a felicidade agregada, o utilitarismo parece deixar pouco espaço para que possamos
dar importância aos nossos projetos e interesses pessoais ou até mesmo preocupar-nos com as nossas vidas.

Segundo os críticos, o que está aqui em causa é que a ideia de imparcialidade utilitarista é demasiado
imparcial, porque exige sempre do sujeito moral o dever de se sacrificar em nome da promoção da felicidade
da maioria. Portanto, o utilitarismo trata os sujeitos morais como meios para um fim, quer dizer, espera que
tu e eu possamos ser o meio através do qual o mundo fica mais feliz. Espera-se que tu e eu sejamos capazes
de realizar esse sacrifício em nome de algo maior do que nós – a promoção do bem comum. No fundo, exige
que sejamos santos e heróis, quando, sabemos, poucos seres humanos o serão ou conseguirão ser
genuinamente.

Os críticos do utilitarismo consideram que, de um modo geral, a ética utilitarista, ao encarar o sujeito moral
como um espectador imparcial, impessoal e neutro, o despoja da sua humanidade porque considera
moralmente irrelevantes aspetos que a moralidade comum valoriza, como, por exemplo, as virtudes de
caráter, as emoções e os sentimentos morais, a intenção. O ponto de vista do universo exige, segundo os
utilitaristas, que o sujeito moral raciocine moralmente tendo como referência sempre os resultados dos seus
atos e nunca os próprios atos em si. Reduz, dizem os críticos, o sujeito moral a um calculador frio e
insensível aos aspetos da moralidade que o homem comum valoriza, em virtude de possuir uma ideia
inadequada do sujeito moral. Quando uma pessoa age não está em causa apenas o que resulta do seu ato, mas
também o tipo de pessoa que é.

Bernard Williams é um crítico contemporâneo do utilitarismo. Acusa o utilitarismo de não levar em conta a
integridade pessoal. Apresenta dois contraexemplos para justificar a sua objeção. O primeiro é o seguinte:
George fez um doutoramento em química mas não tem emprego. A sua saúde frágil limita as opções de
trabalho. Tem dois filhos. É o trabalho da sua mulher que garante a subsistência de uma família que vive
dificuldades e tensões. Os filhos ressentem-se de tudo isto e tomar conta deles tornou-se um problema. Mas
um dia um químico mais velho propõe-lhe um emprego num laboratório que faz investigação em guerra
química e biológica. George é contra este tipo de guerra. Já a sua mulher nada vê de incorreto na

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investigação em questão. Quer aceite quer não, a investigação prosseguirá. George não é realmente
necessário. Afirma Williams que um utilitarista defenderia que o George tem de aceitar o emprego porque
esse é o curso de ação que maximizará a felicidade para o maior número.

O segundo contraexemplo é o seguinte: os acasos de uma expedição botânica atiram Jim para o centro de
uma aldeia sul-americana. De repente, vê à sua frente uma série de homens atados e alinhados contra uma
parede. Estão prestes a ser fuzilados. Mas tudo dependerá de Jim. Por cortesia, o capitão que comanda as
operações concede a Jim o privilégio de matar um dos índios. Se o fizer os outros serão libertados. Se
recusar a proposta, todos os índios morrerão. Também neste caso Williams não tem dúvidas em afirmar que
um utilitarista defenderia que Jim tem de executar um dos índios porque esse é o curso de ação que
maximizará a felicidade para o maior número.

Williams considera que em qualquer caso o utilitarismo está errado, porque o que deve prevalecer são as
nossas convicções morais e não a maximização da felicidade para o maior número, a não ser obviamente que
eu esteja pessoalmente motivado para o fazer. Por exemplo, no caso de George, o que o utilitarista exige é
que George ajude a sua família, não obstante a quantidade de infelicidade que sentiria com o seu trabalho e a
responsabilidade indireta das consequências do uso que vierem a fazer dos resultados da sua investigação.
Mas o argumento essencial de Williams é que se o George aceitar o emprego, será obrigado a abandonar
quem é, quer dizer, a sua integridade. Os compromissos mais profundos que sustentam a sua personalidade
seriam abandonados. Por outro lado, se Jim aceitar executar um índio para salvar outros, promovendo, assim,
a felicidade para o maior número, estará a agir contra a sua crença essencial de que matar um inocente para
salvar vidas é errado. Para Jim o dilema não é promover ou não a felicidade para o maior número, mas matar
ou não um inocente. Portanto, não estão em causa as consequências de um ato, mas o ato em si. Se Jim matar
um dos índios, a questão será para ele a responsabilidade de ter morto um inocente. Se não o fizer, será algo
que ele permitiu que acontecesse. Como já sabes, para um utilitarista esta distinção entre agir e omitir é
moralmente irrelevante, ainda que na prática, afirma Williams, não seja. Para um utilitarista o dilema está
apenas no que permitiu ou não permitiu que acontecesse, o que implica uma espécie de responsabilidade
negativa.

Segundo Williams, o utilitarismo trata algo tão central para a pessoalidade, como é a identidade, como uma
fonte de utilidade entre outras. Para Williams, o facto de algumas crenças fazerem de nós quem somos,
permite-nos agir segundo um engajamento genuíno, quer dizer, permitem-nos agir de acordo com as nossas
crenças sobre o que devemos ou não devemos fazer. Uma teoria moral que exige que ignoremos quem somos
não chega sequer a conseguir explicar como é possível a moralidade, menos ainda por que é necessária.

Adaptado a partir do original da autoria de João Oliveira.

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Stuart Mill caricaturado retirado de: https://www.cartoonstock.com/directory/j/john_stuart_mill.asp

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