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BOA VONTADE E ACÇÃO POR DEVER

A ÉTICA DEONTOLÓGICA DE KANT

«Não tínhamos dinheiro para comer e estava tão desesperado que vendi a minha filha para
comprar alimentos.»

Foi assim que, em julho de 2016, o pai de Gharibgol, uma menina afegã de seis anos, justificou
ter vendido e casado a menor com um homem de 55 anos, em troca de uma cabra, arroz,
açúcar e azeite para cozinhar.

Devo eu, quando me encontro em dificuldades, usar os outros como meio?

Haverá alguma circunstância em que seja moralmente admissível vender e forçar uma criança
a casar?

Para a moral kantiana – o exemplo mais citado de deontologismo – a resposta a ambas as


questões é, sem margem para hesitações, não. Examinemos porquê.

Filósofo alemão, natural de Königsberg (na altura capital da Prússia Oriental, hoje Kaliningrado,
na Rússia), nasceu em 1724 e faleceu em 1804. Foi um dos pensadores mais influentes da
Modernidade.

Ao procurar solução para o problema «O que devo fazer?», Kant começou por investigar a
natureza da ação moral respondendo à questão: «O que é uma ação moral?».

Kant acreditava no caráter universal e absoluto das regras morais e a investigação que
desenvolveu procurou, antes de tudo, estabelecer o princípio supremo de toda a
moralidade.

Na obra Fundamentação da metafísica dos costumes (1785), começa por interrogar-se:

Existirá no ser humano algo bom em si mesmo, algo absolutamente bom, um bem último, a
partir do qual possamos fundamentar toda a moralidade?
Aos olhos de Kant, nenhuma das virtudes humanas tradicionais pode ser considerada boa em
si mesma.

Só a boa vontade (ou vontade boa) é boa em si mesma, isto é, absolutamente boa, sem
reservas.

A boa vontade é o mais elevado bem, um bem do qual todos os demais dependem. Só ela, diz
Kant, age por dever.

Mas, o que significa agir por dever?

AÇÃO CONFORME O DEVER AÇÃO POR DEVER


(LEGALIDADE) (MORALIDADE)

Ajo em conformidade com o dever quando a Ajo por dever quando a minha ação é única
minha ação cumpre a lei, mas, e
simultaneamente, persegue um interesse exclusivamente motivada pelo respeito à lei,
particular ou é o resultado de uma independentemente das consequências ou
inclinação ou de um desejo. dos resultados da ação, mesmo com prejuízo
de todas as minhas inclinações ou desejos.
A ação está de acordo com a lei moral, mas
tem como motivo inclinações ou desejos. A ação está de acordo com a lei moral e
Não tem, portanto, qualquer valor moral. tem como único motivo o respeito pelo
dever.
Tem, por isso, valor moral.

O que distingue uma ação por dever de uma ação meramente em conformidade com o dever
é, portanto, o motivo ou a intenção do agente.

Kant defende que a moral não pode basear-se em considerações empíricas, como os
interesses, as inclinações e os desejos de cada um, pois estas são contingentes e particulares,
não podendo, por isso, ser o fundamento de regras imparciais.

A correção da ação é, então, condição necessária para a moralidade, mas não é condição
suficiente.

O que importa é agir corretamente porque assim tem de ser, não porque a ação nos permite
satisfazer algo ou alcançar uma dada consequência.
IMPERATIVO CATEGÓRICO E IMPERATIVO HIPOTÉTICO

A vontade humana deve ser boa, mas não é santa, isto é, sempre boa. Não faz parte da sua
natureza escolher somente aquilo que é certo. Assim sendo, a razão prática atua guiada por
imperativos.

Os imperativos são princípios, fórmulas ou leis que expressam a noção de dever ser. Kant, ao
investigar a natureza de tais princípios, concluiu que os imperativos são de dois tipos

distintos: hipotético e categórico.

IMPERATIVO HIPOTÉTICO IMPERATIVO CATEGÓRICO


Uma ação é boa porque é um meio para Uma ação é boa se, e apenas se, for
conseguir algum fim ou propósito. realizada por respeito à lei em si mesma.

Ordena condicionalmente, dependendo da Ordena incondicionalmente, valendo


existência de determinadas circunstâncias. independentemente das circunstâncias.

«Se queres X, então deves fazer Y». «Deves fazer Y, sem mais».

É uma lei particular (vale apenas em É uma lei universal (válida para todos os
determinadas condições e para alguns seres racionais, quaisquer que sejam as
indivíduos) e contingente (é verdadeira, mas circunstâncias) e necessária (tem de ser
poderia ter sido falsa). verdadeira em todos os mundos possíveis).

Rege as ações em conformidade Rege as ações por dever.


com o dever.

Kant não pretendeu reunir uma lista de normas ou prescrições que orientassem o viver
quotidiano dos seres humanos. A sua ética não é material, mas formal: o imperativo
categórico, em que se expressa a lei moral, terá, por isso, de conter apenas uma forma, válida
para todas as pessoas e em todas as circunstâncias.

Trata-se de uma única lei, a lei suprema da moralidade, podendo, porém, ser formulada de
maneiras diferentes.
Primeira formulação

Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei
universal.

Segunda formulação

Age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da
natureza.

Terceira formulação

Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer
outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca como simplesmente meio.

O facto de Kant nos propor várias formulações do imperativo categórico não contradiz a sua
afirmação inicial de que existe apenas uma única lei moral, uma única fórmula universal e
necessária. A segunda e a terceira formulações são, afirma o filósofo, redutíveis à primeira.

Este princípio, o imperativo categórico, é o único critério válido para avaliar se um ato é ou não
moralmente permissível.

Se queremos que a nossa máxima (ou regra subjetiva) seja seguida por todas as pessoas em
todas as circunstâncias, o ato é permissível.

Se não queremos que a nossa máxima se transforme em lei universal, se tomamos a liberdade
de abrir apenas uma exceção para nós nas atuais circunstâncias, o ato é moralmente
reprovável e contrário à lei da razão prática.

«Temos de poder querer que uma máxima da nossa ação se transforme em lei universal: é
este o cânone pelo qual a julgamos moralmente em geral. Algumas ações são de tal ordem que
a sua

máxima nem sequer se pode pensar sem contradição como lei universal da natureza, muito
menos ainda se pode querer que devam ser tal. Em outras não se encontra, na verdade, essa

impossibilidade interna, mas é, contudo, impossível querer que a sua máxima se erga à
universalidade de uma lei da natureza, pois que uma tal vontade se contradiria a si mesma.»
(Kant)
Será possível que, a propósito de uma mesma ação, vontades distintas estabeleçam
imperativos

categóricos diferentes? Justifica.

EXERCÍCIO

Não. A lei moral, o imperativo categórico, não depende de cada um de nós enquanto
indivíduos com interesses e desejos. Não é uma lei subjetiva. A lei moral é uma lei objetiva que
é estabelecida pela razão, sem admitir exceções ou considerações particulares. Se
considerarmos apenas o ponto de vista imparcial da razão, chegaremos todos à mesma
conclusão, a um imperativo universal que todos reconhecemos como válido.

AUTONOMIA E HETERONOMIA

AUTONOMIA

Agir moralmente é agir livremente e agir livremente é, para Kant, agir autonomamente.

A autonomia é a característica de uma vontade que age racionalmente e cumpre o dever pelo
dever, não sendo condicionada por qualquer outra coisa ou autoridade exterior.

O seu princípio é, portanto, o princípio da moralidade, o imperativo categórico.

Não devo atear fogos, porque esse é o meu dever.

HETERONOMIA

Agimos de forma heterónoma, quando agimos de acordo com determinações exteriores.

Para Kant, sempre que agimos em função de um fim exterior, ou quando escolhemos um meio
para atingir um fim, não estamos a agir livremente, mas a ser escravos dos nossos apetites e
aspirações.

Não devo atear fogos, se quero continuar a ser respeitado.

Não devo atear fogos, dado que as leis do Estado o proíbem.

CRÍTICAS À ÉTICA DEONTOLÓGICA DE KANT


Qual das seguintes ações é claramente contra o dever, para deontologistas como Kant?
Porquê?

(A) Um agente mata uma pessoa inocente para evitar que outras cinco morram.

(B) Um agente nega-se a matar uma pessoa inocente e outras cinco morrem.

Para o deontologismo, a resposta certa é, sem margem para hesitações, (A). Porquê?

O deontologismo estabelece uma distinção entre matar e deixar morrer.

Se um agente maltrata intencionalmente uma pessoa inocente, causando-lhe a morte, a sua


ação é propositada e implica a violação consciente e voluntária de uma obrigação absoluta.

Se, por outro lado, o agente se nega a matar uma pessoa para salvar outras cinco, então, dado
que a morte destas não foi um meio ou um fim escolhido livremente pelo agente, não há
violação da obrigação.

Consequentemente, o agente em questão não pode ser responsabilizado pela morte das cinco
pessoas.

Obviamente, nem todos estaremos de acordo com esta convicção do deontologista.

A teoria de Kant nem sempre consegue resolver o problema do conflito entre deveres.

Deontologistas absolutistas, como Kant, defendem que pelo menos algumas restrições são
incondicionais. Entre estas encontramos, por exemplo, o dever de nunca maltratar pessoas
inocentes, de em circunstância alguma mentir ou de jamais quebrar promessas. Mas, por
vezes, é inevitável termos de escolher entre dois destes deveres. Realizar uma obrigação moral
(por exemplo, o dever de dizer sempre a verdade) pode implicar não cumprir outra (por
exemplo, o dever de prestar sempre auxílio).

Existem emoções e sentimentos distintivamente morais.

Kant defende que a única motivação apropriada para a ação moral é o sentido do dever.
Agimos moralmente quando agimos racional e desinteressadamente. Isto significa que são
excluídas da moralidade todas as ações realizadas por motivos não racionais, motivos sobre os
quais não temos necessariamente controlo. Por exemplo, são excluídas da moralidade todas as
ações que têm na base emoções ou sentimentos. Porquê? Porque, ao contrário dos motivos
racionais, as emoções e os sentimentos podem pôr em causa a imparcialidade dos agentes.

Porém, ao contrário de Kant, muitas pessoas acreditam que há emoções distintamente morais
e defendem que a dimensão ética do ser humano só pode ser compreendida a partir da análise
das emoções e da sua importância para os julgamentos morais.

Cumprir cegamente uma obrigação moral pode conduzir a consequências desastrosas.

A ética de Kant não nos diz apenas que é errado mentir, diz-nos também que é errado mentir
em qualquer circunstância, independentemente das consequências, mesmo que isso pudesse

evitar a morte de milhões de pessoas. Contudo, quem não mentiria, se, em determinada
circunstância, dizer a verdade trouxesse o sério risco de conduzir alguém à morte?

Sempre que cumprir uma obrigação moral conduza a consequências mais funestas e
indesejáveis do que dizer uma mentira, parece razoável, para muitas pessoas, admitir
exceções.

O facto de o absolutismo kantiano desprezar as consequências da ação é um dos aspetos


implausíveis da teoria.
1. A Ética é o reino dos fins, isto é o modo como o homem estabelece os valores que pretende
atingir através da sua acção no mundo.

2. A Ética de Kant é uma ética deontológica, isto significa que estabelece deveres absolutos
que não têm excepção e que têm necessariamente de ser cumpridos se queremos que as
nossas acções sejam correctas moralmente. As acções correctas são aquelas que obedecem ao
dever. Não é o resultado das acções que conta, também não contam as suas consequências, o
que conta na acção são as intenções , os princípios que o sujeito segue.

3.a. Há acções que vão contra o dever e essas são proibidas moralmente. (matar inocentes) e
em nenhuma circunstância permitidas.

b. Acções conforme ao dever, estão de acordo com o dever mas a sua intenção não é moral,
isto é a intenção é satisfazer uma necessidade, um interesse ou uma inclinação.

c. Por fim as acções que se fazem apenas por obediência ao dever e respeito absoluto pela lei,
essas são acções com conteúdo moral e o sujeito que as pratica é um sujeito moral.

4. A mesma acção pode ser praticada com diferentes intenções: posso ajudar um amigo por
compaixão, para obter um benefício (por exemplo, para ficar bem visto) ou por sentir que
tenho esse dever.

Para determinar o valor moral de uma acção é preciso saber a intenção com que foi praticada
porque a razão é que determina o fim da acção e é o fim da acção que é moral, e porque só
uma vontade livre de inclinações subjectivas pode assegurar o valor moral da acção, o seu
valor universal.

Segundo Kant, ajudar um amigo só tem valor moral se isso tiver sido feito em nome do dever.

5. A ética é um sistema de regras absolutas;

As regras morais devem ser respeitadas independentemente das consequências;


As regras (deveres) morais são leis que a razão estabelece para todos os seres racionais.

As obrigações morais são absolutas porque não estão sujeitas a excepções, mesmo se aplicá-
las tem consequências negativas para o sujeito. Só assim garantimos a universalidade da lei
moral.

A obrigação de não mentir não varia consoante as circunstâncias, devendo nuns casos ser
respeitada e não o ser noutros. essa obrigação impõe-se como uma lei do ser racional.

As obrigações morais não são impostas por Deus nem resultam dos nossos sentimentos.

Kant pensava que só somos realmente livres se formos nós próprios a definir as leis a que o
nosso comportamento deverá obedecer.

6.IMPERATIVOS HIPOTÉTICOS E CATEGÓRICOS

Uma obrigação (ou imperativo) é hipotética quando existe apenas em certas condições, mas
não noutras.

Tenho a obrigação de estudar para os exames de acesso a Medicina apenas na condição de


querer ser médico.

Esta obrigação apenas existe em função de o agente ter um certo desejo.

Se o agente abandonar o desejo relevante, a obrigação desaparece também.

Serão as nossas obrigações morais apenas hipotéticas?

Se a moral fosse seguir regras hipotéticas, só teríamos, por exemplo, a obrigação de ajudar os
outros em certas condições, não em todas. Mas temos o dever de ajudar quem precisa em
todas as circunstâncias, quaisquer que sejam os nossos desejos.

A obrigação de ajudar os outros não deixa de existir porque deixámos, por exemplo, de querer
agradar. Continua a existir mesmo nesse caso.

Kant conclui que a obrigação de não mentir (como todas as outras obrigações morais), não são
hipotéticas.

Mentir, roubar ou matar pessoas inocentes, não é permissível pois as máximas destas acções
não são universalizáveis:

As Obrigações morais particulares como não mentir, não roubar ou não matar pessoas
inocentes, têm em comum o facto de as suas máximas (A regra/norma que é proposta pela
acção) serem universalizáveis.
Esta característica comum reflecte a nossa obrigação moral básica: agir segundo máximas que
todos possam também seguir.

Esta obrigação moral é o fundamento de todas as nossas obrigações morais particulares.

Trata-se do IMPERATIVO CATEGÓRICO ou lei moral.

• OBJECÇÕES À MORAL KANTIANA

• Kant pensava que a exigência de praticar apenas acções cujas máximas pudessem ser
universalizadas garantia que as regras morais eram absolutas.

• Elisabeth Anscombe, uma filósofa inglesa do século XX mostrou que Kant estar enganado
neste ponto.

• O respeito pelo imperativo categórico não implica a obrigação de não mentir em todas as
situações

• A ideia de que temos a obrigação de não mentir seja em que circunstância for não é fácil de
defender.

• Kant acreditava que as regras morais serem absolutas é uma consequência de apenas serem
permitidas as acções cujas máximas podem ser universalizadas.

• Isto levou-o a concluir que obrigações como respeitar a palavra dada ou não mentir, não
dependem das circunstâncias, sejam quais forem as consequências.

• Um exemplo pode mostrar que Kant não tem razão.

• Durante a segunda guerra mundial, Helga esconde em sua casa uma amiga judia para evitar
ser deportada para um campo de extermínio. Um dia, um oficial nazi bate à porta de Helga e
pergunta onde está a sua amiga.

• Segundo Kant, Helga tinha o dever de dizer a verdade.


• A máxima “É permissível mentir” não pode ser universalizada: se todos mentissem ninguém
acreditaria em nada e mentir deixava de ser eficaz.

• Mas a máxima “Mente na condição de isso permitir salvar a vida a um inocente” não tem
este defeito.«, isto é, pode ser universal.

OUTRA OBJECÇÃO

Kant não responsabiliza o agente moral pelas consequências materiais da acção. Uma acção
cuja intenção é boa, não pode ter directamente consequências nefastas. Mas esta acção de
não mentir obedeceria ao dever mas teria consequências graves para a amiga de Helga. Logo,
poderemos acusar esta teoria de formal ou ideal. Num mundo ideal "não mentir" seria sempre
obrigatório mas no mundo real, "não mentir" pode ter consequências materiais graves, das
quais o agente moral é também responsável. Os deveres morais não podem depender das
circunstâncias porque se assim for há sempre justificação para não se cumprirem e a moral
será uma quimera, uma mera ilusão. Mas o agente moral não é só responsável por si, também
é responsável pelos outros e pela sua felicidade e bem estar. Esse princípio não é importante,
porque consideraria Kant, não podemos legislar sobre a felicidade só sobre o que devemos
fazer.

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