Você está na página 1de 25

entre o atlântico sul e o elba

para Carlos Abbenseth

Leila Danziger
1

amplio a foto
2, 10, 100 vezes
e não vejo

a trajetória
da fumaça
de seu cigarro
preso aos lábios
enquanto
na mão esquerda
você tem a bola de neve
que o menino

deseja tomar
de você

a pouca definição da foto


ampliada
2, 10, 100 vezes
faz daquela tarde de fevereiro
uma experiência de tremor
de mal estar
como descrito pelo personagem
de A invenção de Morel
ao roçar as imagens
em sua ilha

toda foto é uma ilha?

toda fotografia é uma reserva de futuro


toda fotografia é o tempo que nos resta
2

não sei te enviei essas fotos, Carlos


você e o menino com capuz vermelho

você e meu filho

os dois
suspensos
às margens do Elba
às 4 da tarde
naquela neve ainda limpa
do início do novo século
3

amplio a foto
2, 10, 100 vezes
e vejo

vejo
seus olhos
levemente enviesados
por dois horizontes
dois meridianos
dois polos distantes
que esticam a corda de sua vida
desde a origem

sempre
sempre em turbilhão

procuro sua voz


sei de uma gravação
em que você lê

De pé, na sombra
da cicatriz no ar

mas o que encontro


é a canção de um outro exílio
o elogio às palmeiras

e ao sabiá
traduzido em sua língua
em minha língua
paterna
que você me ensinou
4

procuro
ainda procuro

sua caligrafia
essa parte do nosso corpo
quase em extinção

onde guardo sua letra


de canhoto?
não encontro
manuscrito algum

senão
sua dedicatória
em uma antologia de Celan
edição bilíngue
inglês-alemão
oferecida
ao menino da foto
por ocasião de seu Bar-mitsvá

acho que te disse, Carlos –


sempre acreditei que você tivesse uma escrita secreta
5

esse poema
é a peça anterior
a um outro poema
escrito há 10 anos
Berlin Zoo
em que refaço
outra foto

uma foto
nunca revelada
presa no coração
de uma câmera fotográfica

esquecida em um trem

vivíamos

sob um outro
regime
de imagem
6

quase escrevi –

esse poema é a peça


que se encaixa em outro poema
escrito há 10 anos

mas não, nada se encaixa

quando amplio a foto


2, 10, 100 vezes
a imagem balbucia
gagueja

e se refaz

incerta
fulgurante

em blocos
intocados
de
ruídos
espera
e
distância

: Licht war. Rettung.

São Paulo, setembro de 2022


Carlos Abbenseth nasceu em 5 de março de 1948, creio, e se
foi em maio de 2020. Viveu sobretudo entre Hamburgo e o
Rio de Janeiro. Fez do trânsito entre línguas seu habitat
poético, político, reflexivo e existencial. Curiosamente, resistia
a traduzir..., mas traduziu, com Lia Luft, O Homem sem
qualidades, de Robert Musil (Ed. Nova Fronteira, 1989), Guerra
aérea e literatura, de W.G. Sebald (Ed. Companhia das Letras,
2011, com Frederico Figueiredo), além de contos de Heinrich
Böll e poemas de Paul Celan, Ingeborg Bachman, Nelly Sachs,
entre outros. Foi radicalmente anti-produtivista, e um
estrangeiro por toda parte. Na Alemanha, esteve intensamente
envolvido com grupos políticos de esquerda. Atuou como
professor de língua e literatura alemã no Baukurs e Instituto
Goethe, no Rio de Janeiro. Foi o professor mais emocionante
de todos os tempos.
Notas
Na parte 1, as frases em itálico são de Maurício Lissovsky.
Na parte 4, os versos em itálico são do poema Stehen, de Paul
Celan, em tradução de Carlos Abbenseth.
Na parte 6, o verso final Licht war. Rettung. é de um poema
do livro Atemwende, de Paul Celan.

Leila Danziger
artista plástica, poeta e professora do Instituto de Artes da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

FAD | 2022
Esses “livrinhos” são editados pela FAD, que é na verdade as
iniciais do meu nome, Franklin Alves Dassie. Essa “coleção”,
com o livro da Leila, já tem nove números. Elas circulam por e-
mail e você pode se cadastrar enviando seu e-mail para mim.
Meu e-mail é: franklin.alves@hotmail.com

Agradeço imensamente a Leila esse presente que ela nos deu:


um procedimento da arte como fotografia, que o Walter
Benjamin solicitava e uma coisa que o John Berger diz que se
deve fazer da fotografia um ato memorial, de narração e dizer
(lembro que etimologicamente dizer tem a ver com mostrar).

Estamos mostrando, e é isso.

Você também pode gostar