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imagem da capa
© Márcio Diegues.
O material que ilustra a edição, exceto os identificados, são todos concebidos por Márcio Diegues.
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Obra do homenageado

Poesia

Pedra do sono (1942)


Os três mal-amados (1943)
O engenheiro (1945)
Psicologia da composição com a Fábula de Anfion e Antiode (1947)
O cão sem plumas (1950)
O rio ou Relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife (1954)
Morte e vida severina: auto de Natal pernambucano (1956)
Paisagens com figuras (1956)
Uma faca só lâmina (1956)
Quaderna (1960)
Dois parlamentos (1961)
Serial (1961)
A educação pela pedra (1966)
Museu de tudo (1975)
A escola das facas (1980)
Auto do frade (1984)
Agrestes (1985)
Crime na Calle Relator (1987)
Sevilha andando (1989)
Primeiros poemas (1990)

Prosa

Considerações sobre o poeta dormindo (1941)


Prática de Mallarmé (1942)
Joan Miró (1950)
A geração de 45 (1952)
Esboço de panorama (1953)
Da fundação moderna da poesia (1954)
A América vista pela Europa (1954)
Poesia e composição ― a inspiração e o trabalho de arte (1956)
Aniki Bobó (1958)
O arquivo das Índias e o Brasil (1966)
Discurso do Sr. João Cabral de Melo Neto (1972)
Carta a Murilo Mendes (1972)
Guararapes (1981)
Marly de Oliveira (1995)
Ideias fixas (1998)

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Natal – RN

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Saio de meu poema
como quem lava as mãos

João Cabral de Melo Neto, Psicologia da composição

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sumário

13 Apresentação
O ato do poema é um ato íntimo,
solitário, que se passa sem testemunhas

24 Diálogos de João Cabral com a Literatura Brasileira


por Antonio Carlos Secchin

37 O discurso cacto de João Cabral de Melo Neto


por Edneia Rodrigues Ribeiro

49 Pedra e rio: o movimento como “método”


por Francisco José Ramires

63 Da seda à palavra, da palavra à seda: a palavra seda de


João Cabral de Melo Neto
por Rogério Caetano de Almeida e Lívia Lopes Marangoni

75 POEMAS (1)

Antonio Carlos Sobrinho


Maíra Matos
Marina Magalhães
Breno Almeida de Castro
Gusthavo Gonçalves Roxo
Julieta Simone
Lucas Grosso
Vinicius Comoti
Paula Peregrina

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João Cabral entre vulcões
128 por Iván Carvajal

134 O embate entre a vida e a morte na poética de João Cabral


por Rosanne Bezerra de Araújo e Wallyson Rodrigues de
Souza

147 João Cabral de Melo Neto e as muitas pedras: análise da


poesia lírica e a recepção da crítica literária
por Rosidelma Pereira Fraga e Adriana Helena Albano

169 João Cabral de Melo Neto: ainda o leitor


por Rafaela de Abreu Gomes

179 POEMAS (2)

Isabel de Carvalho
Edwardo Silva
Nayara C. P. Valle
Claudia Baeta Leal
Thiago Alexandre Tonussi
Francisco Romário Nunes
Alves Candeira
Thássio Ferreira

231 Aniki bóbó: a palavra enigmática


por Rafaela Cardeal

244 Intertextualidade e intersemiose em Morte e vida severina


por Darío Gómez Sánchez

254 Sob o signo das águas: João, o cão e suas plumas


por Francisca Luciana Sousa da Silva

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269 Traços anticabralinos na poesia de Ana Cristina Cesar
por Mariana Bastos

279 MEMÓRIA

Poesia ao norte
por Antonio Candido

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apresentação

O ato do poema é um ato íntimo, solitário, que se passa sem testemunhas.


João Cabral de Melo Neto

Pedra do sono foi o primeiro livro de poemas publicado por João Cabral
de Melo. Pedra inaugural, portanto. É interessante reparar como o
primeiro elemento desse sintagma se converteu em intermitência no seu
trajeto literário; um ponto de retorno mas nunca de descanso,
contrariando a sugestão onírica demonstrada na presença do segundo
componente. Como se uma educação do poeta ― para recuperar os
termos utilizados no designativo de outro livro publicado mais tarde, A
educação pela pedra ― devesse primar continuamente pelo reinventivo,
este que resulta quase sempre, no inovador, como se cada livro fosse uma
peça distinta de uma composição. Se de escolas falamos, a esta devemos
acrescentar outra, A escola das facas (1980), quando reconhece, também
de muito antes, a influência deste segundo elemento na sua poesia.
Na obra de 1942 é visível o diálogo que manteve com o surrealismo no
início de sua formação literária; mas, propositalmente recompôs a estética
à sua maneira: um surrealismo estruturado, sem se entregar ao tratamento
da escrita automática. Essa vaga não se dissiparia totalmente de imediato,
ainda que, mais tarde, o próprio poeta tenha desenvolvido uma recusa
sobre a escola ao ponto de questionar sobre o papel deste primeiro título
e de outros poemas num projeto literário fundamentado numa tentativa

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de objetividade da palavra. Mas, uma simples visita pela sua bibliografia
ativa, em nada espartana, nos levará reconhecer que não foi este projeto
fundado apenas na tendência que o distingue no âmbito da poesia
brasileira, uma vez que, da verve surrealista, sua obra não deixa de
transitar por uma poesia de tons memorialistas e formas mais populares,
ainda que o reconhecido sucesso de Morte e vida severina, do qual deriva
a última fonte, repouse mais numa posição assumida de um imaginário
advindo de suas releituras em outros meios que propriamente do texto
original. Quer dizer, o grande mérito do poeta terá sido converter as
recorrências no conteúdo poético em benefício de uma dicção autêntica e
irrepetível, uma característica que ressalta a posição que alcançou no
âmbito das literaturas de expressão portuguesa.
À pedra e à faca ― e o poema dramático de 1955, logo nos sugere ―
deve-se acrescentar o rio. São estes três elementos capazes de descrever,
mesmo que não sintetizem, a poesia de João Cabral de Melo Neto. Não
sintetizam porque nela se contém toda uma geografia dos seus afetos: o
Recife que contribuiu para sua primeira formação e nunca saído do poeta
e algumas cidades da Espanha que levaram-no descobrir seu lugar natal.
Sevilha, por exemplo, não é puramente uma cidade da Andaluzia, mas a
transfiguração material de um Pernambuco habitado pelo poeta, mais da
estruturação de um imaginário que puramente de memória. Ora, é
verdade que nada mais sobra do devaneio romântico advindo das
saudades da terra tropical, porque a poesia cabralina expulsa quaisquer
sentimentalismos (e tropicalismos), mas o lugar original é o Éden do poeta,
não no sentido da exuberância que a princípio o termo sugira, obviamente,
e sim no sentido de repouso, do ponto original, matéria com a qual se
moldam os materiais constituintes de seu universo poético.
Numa conferência de 1952, o poeta ensaia a discriminação de dois
princípios criativos: um coletivo, integralmente pulverizado desde a
modernidade; e outro individual, então vigente. Este último conduz o
poético para soluções diferentes à feitura e composição dos mundos
inaugurados pela criação literária. Nesse sentido, o poeta deixou de ser o
que domina uma vasta experiência criativa e é o que busca dominar os
tiques particulares que constituem seu estilo. Sempre se diz que quando
um poeta fala do seu ofício ou da obra sua e alheia expressa alguma parte
da sua profissão de fé, constituindo indiretamente seu tratado particular
de criação. Essa certeza que não é falsa, confirma, numa vista ligeira, que
as definições de João Cabral de Melo Neto em “Poesia e composição”
esclarecem o que se disse acima: toda sua poesia é uma tentativa de
singularização do mundo e das coisas para mostrá-lo sem quaisquer

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misticismos: “o poema no qual não entra para nada o espetáculo de seu
autor e, ao mesmo tempo, pode fornecer do homem que escreve uma
imagem perfeitamente digna de ser que dirige sua obra e é senhor de seus
gestos”, acrescenta o poeta.
Uma das últimas aparições públicas de João Cabral de Melo se deu
numa passagem bastante atribulada de sua vida, aquando da perda
progressiva da visão; foi uma entrevista conduzida a várias vozes para os
Cadernos de Literatura Brasileira, publicados pelo Instituto Moreira Salles.
Mais isolado do convívio público e muito avesso a quaisquer celebrações
em torno da sua obra, nesta entrevista, o poeta registra parte importante
do seu ofício e da poesia como um todo. É quando se apresenta uma
formulação metafórica, tratada certamente na intimidade dos poucos
convivas, uma vez que puxada pela companheira Marly de Oliveira. O
conceito está em perfeito diálogo com a tese levantada em “Poesia e
composição”, ampliando-a pela imagem sobre o poeta motivado para
coletividade e o poeta individualista: o primeiro carrega consigo toda uma
época, enquanto o segundo introduz cisões. É importante destacar que
esses sistemas aparentemente binários não reduzem a poesia e seus
criadores a duas classes em oposição, visto que entre uma e outra
destacam-se mesmo poetas e obras que se estabelecem como pontes
dialéticas. Mas, na sinalética cabralina, ele próprio é um poeta
perfeitamente integrado ao segundo grupo ― sua posição na cena da
nossa literatura é isolada, é o poeta cuja obra coloca um freio na
espontaneidade modernista.
É verdade que a histografia literária sempre se utilizou, muito pelo
instinto do continuísmo linear recorrente na concepção dominante de
história, de duas tentativas conciliadores. De um lado, é comum se utilizar
da condição de filho bastardo do modernismo para acentuar uma
integração da poesia cabralina a uma linha original da nossa poesia. Isto é,
uma tentativa de explicitação das suas origens pelos pressupostos da
Escola de 1922. De outro, agora pensando o momento de sucessão, tenta-
se adequar, forçadamente, sua obra entre os precursores da poesia
experimental dos concretistas. Mas essas determinações se formam mais
intuitivamente que comprovadamente. Se por um lado encontram as
justificativas que abrigam o poeta entre os reconhecidos, por outro,
impedem ao leitor de encontrar os valores que o distinguem não entre mas
dentre os demais. Cada poeta se afirma pela individualidade que alcança
com sua obra e toda obra de um poeta precisa primeiro ser lida sem a
interferência de outros reflexos que não os dela própria. A confirmação

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disso não foi dada por João Cabral de Melo Neto, mas entre nós, foi
exercida por ele. E é o suficiente.
A cesura com que singularizou os usos da linguagem poética ultrapassou
os limites do fazer poético até então vigente e implicou no estabelecimento
de uma posição do poeta dentre o cânone. Assim, o costume de se atribuir
ao autor de O cão sem plumas o papel de continuador da estética
modernista é redutor, porque sua obra se apropria da liberdade de criação
aberta aqui, mas propõe outra maneira de construção literária totalmente
distinta da pauta em vigor, substituindo, por exemplo, a irrupção do acaso,
o instante excepcional ― possibilidades que se examinadas de perto não se
encontram muito distantes do que os próprios modernistas condenavam ―
pelo trabalho laboral com a palavra, fazendo com a que a poesia se
estabeleça como espírito dos objetos criados e não que estes sejam o
aprisionamento da poesia: “Para mim, a poesia é uma construção, como
uma casa”, diz na referida entrevista aos Cadernos de Literatura Brasileira.
“A poesia é uma composição”, emenda. Já o lugar de precursor da poesia
concretista, talvez recorrente devido ao zelo com a forma e a objetividade
da linguagem, também é facilmente questionável, visto que, nunca foi seu
interesse uma intersecção entre voz, forma e conteúdo. Quis, antes, uma
voz, uma forma e um conteúdo capazes de responder pela própria
individualidade do objeto criado. Nesse sentido, talvez só nisso, ele se
aproxime da chamada Poesia Concreta, mas, como repara, esta é a condição
de todo poeta desde uma pulverização do poeta signo de uma coletividade.
João Cabral nunca deixou de referir que os concretistas, ainda que se note
uma extensão do seu trabalho, “fizeram uma coisa inteiramente nova”.
A posição individual se dá, esclareça-se, não porque se rompeu os
estreitamentos entre o poeta e a sociedade; mas aquele deixou de estar
acima do coletivo, deixou de ser o indivíduo eleito, para se individualizar pela
coletividade, o que, pela maneira de singularização do mundo, pode se
constituir dentro e fora da coletividade, antena do seu tempo, para
recuperar a medida metáfora mallarmaniana. Isso justifica de maneira mais
ou menos precisa a imensa solidão do poeta num universo de fronteiras
incontornáveis. Neste firmamento, João Cabral de Melo Neto não é o
satélite que no seu entorno abriga todo um sistema; brilha porque alto vive.

Pedro Fernandes de Oliveira Neto


Diretor da Revista 7faces

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João Cabral de Melo Neto (1920-1999)

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o homenageado

João Cabral de Melo Neto nasceu a 9 de janeiro de 1920, no interior de


uma família ligada aos engenhos de cana-de-açúcar; na infância, é nessas
propriedades ― o engenho de Poço do Aleixo, em São Lourenço da Mata,
Pacoval e Dois Irmãos, em Moreno ― onde vive até que a família, na década
seguinte, volta ao Recife. A cidade e o trânsito por seus arredores marcarão
em definitivo toda sua formação e se farão onipresentes na sua obra poética.
Não apenas a cidade e outros lugares, a diversidade cultural e social
circunscrita sobretudo no agreste rural de Pernambuco se farão presenças,
mesmo quando o poeta deitar seu olhar de fora do seu lugar natal.
Antes da vocação para a literatura, João Cabral esteve, nos primeiros
anos da juventude, envolvido num interesse que duraria pouco: foi jogador
de futebol e campeão juvenil pelo Santa Cruz Futebol Clube. Essa estadia,
embora designada mais tarde, como uma pequena aventura influenciada
pelo incentivo dos primos, integra uma necessidade que se fez premente
ainda precoce, como era comum aos do seu tempo: adquirir as
responsabilidades da vida adulta em busca de uma independência financeira
e social. Nota-se que, tão logo, se depara com a instabilidade da vida no
esporte, volta-se para desempenhar funções das mais variadas no âmbito
dos negócios em família ― dois anos depois do campeonato que sagra o
Santa Cruz, presta serviços de consultoria jurídica na Associação Comercial

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de Pernambuco, encarrega-se da apuração industrial no Departamento de
Estatísticas do Estado etc. ― parando apenas quando lhe vem a estabilidade
com a vida de diplomata. É nesse período de primeiros socorros no trabalho
burocrático no Recife que se forma o interesse pela literatura.
Primeiro para a crítica literária e só depois ― ao se descobrir sem o
estofo intelectual necessário para função ― para a criação poética. Esse
interesse se forma do contínuo convívio com os frequentadores do Café
Lafayette, ponto de encontro das principais figuras do Recife ligadas ao meio
artístico, como pintores, jornalistas, escritores e aspirantes; é um período
que se estende ainda pelo primeiro contato com alguns nomes de alguma
maneira já destacados no eixo sul-sudeste, como Murilo Mendes, que o
apresenta a Carlos Drummond de Andrade e Jorge de Lima. Estamos por
volta dos anos 1940 e este contato com os sudestinos se forma depois que
realiza com a família sua primeira viagem ao Rio de Janeiro. Dessa
integração, forma-se sua primeira aparição pública: no Congresso de Poesia
do Recife, onde apresenta “Considerações sobre o poeta dormindo”, um
salto antecipatório ou preparo do que se gestava e que seria o primeiro livro
aparecido apenas um ano depois ― Pedra do sono ― graças ao seu próprio
esforço. Esta estreia se dá por uma modesta tiragem de 340 exemplares dos
quais quatro dezenas é vendida como objeto de coleção para custear os
gastos com a impressão do livro na oficina gráfica Drechsler & Cia., livro que,
de mão e mão, chegaria a importantes nomes da crítica, formadores de
opinião na época. Basta citar que, um ano depois da publicação, Antonio
Candido, recém-empossado numa coluna literária da Folha da manhã
demonstrava interesse por um jovem do norte com dicção personalíssima
no âmbito das apresentações mais recentes no meio literário.
É também em 1942 que se instala no Rio de Janeiro; cumpre seleção
para Força Expedicionária Brasileira (da qual é dispensado por motivo de
saúde) e depois para o cargo no Departamento Administrativo do Serviço
Público através de concurso público. A estadia na então capital do Brasil,
integra-o ainda nos quadros literários que aí circulavam, formado pelos
nomes conhecidos no fim da década anterior e pela aproximação a outras
figuras, como Augusto Frederico Schmidt, quem publica o livro de primeira
projeção, O engenheiro. É também no Rio que entra, depois de prestar
concurso, para a vida diplomática, começada dentro do país e enviado
depois a diversas partes do mundo. Espanha, Suíça, França, Portugal,
Inglaterra, Índia, Senegal, Mauritânia, Mali, Guiné, Paraguai, Equador. Só
volta a se fixar em definitivo no seu país natal em 1992.
Nesse tempo, sua obra se expande. Com dicção formada que coloca o
poeta entre os mais importantes da poesia de língua portuguesa da segunda

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metade do século XX chegam títulos como: Psicologia da composição
(impresso em 1947 em Barcelona através do selo O Livro Inconsútil, criado
pelo autor para editar em pequenas e artesanais tiragens, obras de poetas
brasileiros e espanhóis); O cão sem plumas (1950); O rio (escrito em 1953,
mas publicado um ano depois quando recebe o prêmio criado pelas
celebrações do quarto centenário de São Paulo); Duas águas (a primeira
antologia reunindo todos os livros anteriores mais os inéditos Morte e vida
severina, Paisagens com figuras e Uma faca só lâmina, em 1956); Quaderna
(publicado em Portugal, em 1960); Dois parlamentos (outro livro custeado
por própria conta e publicado primeiramente na Espanha em 1961, mesmo
ano quando sai no Brasil pela editora conduzida por Rubem Braga e
Fernando Sabino, Terceira feira, um livro que reunia os dois títulos
anteriores mais a coletânea Serial); A educação pela pedra (1966, livro que
lhe rende os prêmios Jabuti, Pen Club e o do Instituto Nacional do Livro);
Poesias completas (segunda reunião de poemas que se publica em 1968, em
vésperas de ocupar um assento na Academia Brasileira de Letras); Museu de
tudo (publicado em 1975 e premiado pela Associação Paulista de Críticos de
Arte); A escola das facas (1979); O auto do frade (1982); Agrestes (1985);
Crime na calle Relator (1987); Poemas pernambucanos (uma antologia
editada no mesmo ano em que sai uma terceira reunião dos seus poemas,
Museu de tudo e depois, em 1988); Sevilha andando (1990), seu último
título. A primeira reunião de sua obra completa aparece em 1994.
A consagração popular e crítica acontece e se estabelece a partir de
1966. O auto de Natal concebido primeiro para ganhar encenação no teatro
de Ana Clara Machado, ganha adaptação no Teatro da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (Tuca) com música de Chico Buarque de
Holanda; o sucesso da peça favorece uma turnê que começa pelo Brasil,
chega à França e depois à Espanha. No Festival de Nancy, o poeta recebe o
prêmio de Melhor Autor; em Barcelona, Morte e vida severina se converte
numa operística com música de Salvador Moreno.
Antes citamos sobre alguns dos galardões que marcaram a biografia de
João Cabral de Melo Neto, mas três deles não podem deixar de ser
mencionados: o Prêmio Camões, recebido em 1990; o Prêmio Neustadt, em
1992; e o Prêmio Rainha Sofia de Poesia Iberoamericana, em 1994. Estes
dois últimos, duas das mais importantes honrarias na carreira literária de um
poeta antes do Prêmio Nobel, só foram concedidos, primeira e unicamente,
até o presente, ao poeta pernambucano. A esta lista, soma-se o
reconhecimento da Grã-Cruz da Ordem Militar, oferecida por Portugal, um
ano antes de sua morte. Cabral morreu a 9 de outubro de 1999, na cidade

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que terá aprendido a gostar, o Rio de Janeiro, sem nunca se desfazer das
mesmas memórias daquele Brasil profundo de onde veio.
A diversidade de celebrações em torno de uma obra consagrada terá
favorecido na postura arredia que se formou nos últimos anos de sua vida,
agravada ainda pela invasão acentuada da cegueira. Mas, em muito tempo,
dificilmente outro poeta brasileiro alcançará o lugar por ele conquistado.
Nascido num país que cultivou o verso de apelo melódico e cuja poesia ainda
é sempre movida pelos auspícios de uma inspiração, de uma matriz
autobiográfica e onde o poeta é quase uma entidade sagrada ou marginal,
João Cabral de Melo Neto foi um dos mais sinceros criadores, fez da poesia
um ofício e do poeta a profissão, apesar de nunca exercê-la sozinha, como é
para todos os nascidos neste mesmo país para o qual a criação artística é um
passatempo feito para entreter espíritos vazios. Se sua ideia de poesia é
inimitável, ao menos poderíamos começar por seguir o modelo do espírito
criativo que cultivou. Talvez, assim, estivéssemos numa condição um pouco
melhor do que a vivida por ele e praticamente imutável desde então. Ainda
há tempo.

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Diálogos de João Cabral com a
Literatura Brasileira
por Antonio Carlos Secchin

Muito se fala na maciça presença da Espanha na obra poética de


João Cabral de Melo Neto. E com razão: a Espanha comparece em
cento e vinte e nove de seus poemas, e essa forte presença tem sido,
cada vez mais, objeto de teses, ensaios e livros.
Exatamente por isso ― considerando a quantidade e a qualidade
de estudos hispanizantes dedicados ao poeta ―, talvez, agora, fosse
conveniente mudar o ângulo da investigação, e centrá-lo num ponto
bem menos explorado: quais as marcas da literatura brasileira na
produção de Cabral?
Diz-se, com alguma razão, que ele apenas superficialmente
referiu-se às letras brasileiras, e nem sempre de modo favorável. Ainda
assim, uma análise minuciosa ― que aqui não desenvolveremos ―
poderia apontar novos caminhos para a compreensão da poesia
cabralina, independentemente do notório apego por ele desenvolvido
para com a cultura espanhola.
Apresentaremos, resumidamente, as principais conexões de João
Cabral com a literatura brasileira, estabelecendo, de início, uma
tipologia dessas relações, a partir de quatro polos distintos: 1. as
dedicatórias; 2. as epígrafes; 3. os títulos de poemas; 4. as referências
e alusões no interior dos textos.
Esses grandes eixos poderiam, por exemplo, ser submetidos a
uma rigorosa investigação diacrônica. Com o passar do tempo,
mantêm-se, aumentam ou diminuem as presenças brasileiras em
títulos e referências textuais? Os nomes inicialmente citados
persistem ao longo da obra? Há grandes homenageados? Ocorrem
desaparecimentos súbitos? Tudo isso um mapeamento cronológico
trataria de pôr em relevo.

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Para retornarmos à nossa tipologia, salientemos que, no interior
de cada categoria, poderíamos estabelecer uma tripartição de juízo de
valores emitidos pelo autor, a saber: comentário neutro, positivo,
negativo. Nem sempre citação implica endosso; diríamos mesmo que
a neutralidade e a crítica, velada ou explícita, acabam prevalecendo.
Todas as citações de João Cabral, acompanhadas do número da
página de onde provieram, foram extraídas de Poesia completa e prosa
(Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008).

1. As dedicatórias

Aqui, cabe distinguir se as dedicatórias se reportam a poema ou,


mais prestigiosas, a livro inteiro; se estampam apenas um protocolo
cordial, ou se estão acompanhadas de alguma motivação literária,
para além da simples amizade.
Dos vinte livros do poeta, nada menos do que catorze são
dedicados. Desses, porém, somente quatro apresentam algo além do
nome do homenageado. São eles: O engenheiro, de 1945 ― “A Carlos
Drummond de Andrade, meu amigo” (p.42); O cão sem plumas, de
1952 ― “A Joaquim Cardozo, poeta do [rio] Capibaribe” (p.80); A
educação pela pedra, de 1966 ― “A Manuel Bandeira, esta antilira
para seus oitent´anos” (p.308); Agrestes, de 1985 ― “A Augusto de
Campos”, seguido de poema-homenagem (p.485).
Na primeira dedicatória, ao externar seus vínculos de amizade,
não é impossível que, de modo consciente ou não, houvesse também,
por parte de Melo Neto, o desejo de legitimar sua própria literatura
através da afirmação de vínculos mantidos com Carlos Drummond de
Andrade, o nome mais importante da poesia brasileira do século XX.
João Cabral, aliás, nunca escondeu a dívida estética para com
Drummond, ainda que, anos depois, praticamente rompesse relações
com ele, tanto poética quanto pessoalmente.
Relações que preservou a vida inteira com o segundo
homenageado, Joaquim Cardozo, também, como João Cabral, nascido
na cidade do Recife, e igualmente cantor da paisagem nativa: por isso
chamado de “poeta do Capibaribe”.
Na mesma cidade nasceu o terceiro poeta, Manuel Bandeira,
primo de João Cabral, e, como Joaquim Cardozo, de geração anterior
a Melo Neto. Manuel Bandeira, porém, cedo mudou-se para o Rio de
Janeiro, e falou relativamente pouco da terra natal, o que, para um
regionalista ferrenho à moda de Cabral, deveria ser quase uma ofensa.

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Além disso, a poesia de Bandeira é considerada um dos pontos mais
altos do lirismo brasileiro, enquanto Melo Neto rejeita em seus versos
a presença explícita do sentimento. Daí, portanto, que não deixe de
ser metalinguísticamente depreciativa e irônica a dedicatória “A
Manuel Bandeira, esta antilira para seus oitent´anos” ― a rigor, uma
antidedicatória.
Situação oposta à derradeira, dirigida ao poeta concretista
Augusto de Campos, frente a quem João Cabral declara divergências
que não escondem afinidades, enquanto, diante de Bandeira, adotou
um tom aparentemente neutro para sublinhar a radical diferença (a
“antilira”).
Pelo pouco usual procedimento de uma dedicatória em forma de
poema, vale a pena transcrever trechos desse texto, em que João eleva
a arte de Augusto a um patamar superior ao da poesia que ele próprio
pratica:

Você aqui reencontrará


as mesmas coisas e loisas
que me fazem escrever
tanto e de tão poucas coisas:
/.../
Nada disso que você
construiu durante a vida;
muito aquém do ponto extremo
é a poesia oferecida
a quem pode, como a sua,
lavar-se da que existia,
levá-la à pureza extrema
em que é perdida de vista;
/.../
Por que é então que este livro
tão longamente é enviado
a quem faz uma poesia
de distinta liga de aço?
Envio-o ao leitor contra,
envio-o ao leitor malgrado
e intolerante, o que Pound
diz de todos o mais grato (p.486)

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Cabral confessa-se redundante (escrever tanto de tão poucas
coisas), declara que a obra de Augusto é mais radical do que a sua
(situada “aquém do ponto extremo”), e diz desejar leitores exigentes
e contestadores, personificados em Augusto de Campos e Ezra Pound.
O suposto confronto, sob o manto da modéstia, era de tal modo
autodepreciativo, que, posteriormente, Augusto de Campos replicaria:

e não encontro nem


palavras para o abraço
senão as do aprendiz
/…/
nunca houve um leitor
contra mais a favor1

Quanto às demais dedicatórias de livros, em que nada consta além


do nome do agraciado, observamos que a grande maioria contempla
poetas, sejam eles de gerações anteriores, como Augusto Frederico
Schmidt, Murilo Mendes, Vinicius de Morais e (outra vez) Carlos
Drummond de Andrade, sejam da geração de Cabral: Lêdo Ivo e
Antônio Rangel Bandeira.
Com exceção de Murilo Mendes, cuja dicção surrealista
reverberou no livro de estreia cabralino, Pedra do sono (1942), os
demais escritores pouco têm a ver com a poesia de Cabral, alguns
deles sendo considerados seus antípodas ― é o caso dos líricos
Schmidt e Vinicius de Morais. Ambos, porém, figuras importantes na
biografia do poeta. Schmidt pagou do próprio bolso a impressão do
segundo livro de João Cabral, O engenheiro; ironicamente, financiou
um tipo de poesia que iria destronar a sua própria. Vinicius de Morais,
na avaliação de João Cabral, era o poeta brasileiro de maior talento ―
desperdiçado, porém, nos descaminhos do lirismo amoroso. Talvez
para provocar o amigo, Melo Neto tenha-lhe dedicado uma de suas
mais cerebrais e complexas composições: Uma faca só lâmina (1956).
Lêdo Ivo, escritor de gama variadíssima de recursos, foi amigo de João
Cabral desde a adolescência e, à revelia, é considerado representante-
mor da “Geração de 45”, estigmatizada pelos historiadores literários,
e na qual, cronologicamente, João Cabral se insere, apesar de sempre
haver sublinhado distâncias frente aos projetos estéticos e ideológicos
do grupo de 1945.
A única dedicatória feminina ― et pour cause ― encontra-se no
derradeiro livro de Cabral, Sevilha andando (1989): “Para Marly”
(p.598) ― trata-se da poetisa Marly de Oliveira, sua segunda esposa.

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Curiosamente, João Cabral revelava-se, em termos proporcionais,
menos pródigo na dedicatória de poemas do que na de livros. Em
centenas de poemas, apenas vinte e um são dedicados. Nesse
pequeno contingente, prevalece o protocolo da simples amizade,
destituída de expressa sintonia literária. Eventualmente um adendo
“justifica” a dedicatória; outras vezes, ela se fundamenta no local de
nascimento do homenageado. Com efeito, A escola das facas (1980),
repertório de textos circunscritos apenas ao estado natal do poeta,
abriga vários poemas com dedicatórias a familiares, amigos ou
escritores pernambucanos.
Outros exemplos da parcimônia cabralina: apesar de ser o poeta
mais valorizado pela crítica e pelos estudos universitários na segunda
metade do século XX, um único ensaísta mereceu-lhe dedicatória:
Eduardo Portella (que, aliás, além de estudar em Pernambuco, residiu
na Espanha, como João Cabral). Já a Felix de Athayde, primo do
escritor, não coube sequer poema inteiro, mas somente uma parte: a
ele foram dedicados trinta e dois dos cento e vinte e oito versos de “O
sim contra o sim”, de Serial (1961).

2. As epígrafes

Um segundo eixo revelador da presença da literatura brasileira na


obra de João Cabral são as epígrafes; aqui, as incidências são
modestíssimas. É certo que o recurso, em geral, não é abundante em
sua poesia: no todo, onze registros. Em nove deles, porém, a
procedência é estrangeira. As epígrafes brasileiras acolhem os
assíduos Carlos Drummond de Andrade e Vinicius de Morais.
Do primeiro, Cabral se vale do trecho inicial de famoso poema,
“Quadrilha” (1930): “João amava Teresa que amava Raimundo / que
amava Maria que amava Joaquim que amava Lili”2. O fragmento,
extraído de uma composição de natureza humorística, e subtraído
desse contexto, serve de epígrafe ao segundo livro de João Cabral,
intitulado Os três mal-amados (1943), integrado por monólogos
alternadamente proferidos por João, Raimundo e Joaquim, cada um
deles representante de determinada maneira de vivenciar o impacto
amoroso e de reelaborá-lo em linguagem poética. Portanto, o texto de
Drummond, mais do que mera epígrafe, converte-se em espécie de
mote, a ser glosado diversamente pelos três personagens.
A epígrafe de Vinícius provém do algo enigmático poema
“Retrato, à sua maneira”3, encerrado pelo verso “Camarada

7faces • 28
diamante!”, epíteto com o qual o poeta do Rio de Janeiro elogiava o
poeta pernambucano. Cabral desconstruiu a homenagem, na
“Resposta a Vinicius de Morais” (1975):

Não sou um diamante nato


nem consegui cristalizá-lo:
se ele te surge no que faço,
será um diamante opaco,
de quem, por incapaz do vago,
quer de toda forma evitá-lo,
se não com o melhor, o claro
do diamante, com o impacto:
com a pedra, a aresta, com o aço
do diamante industrial, barato,
que, incapaz de ser cristal raro,
vale pelo que tem de cacto. (p.364)

Definindo-se, em sua dureza, como pedra industrial, de pouco


valor, o poema se ergue contra a própria epígrafe.

3. Os títulos de poemas

Se contabilizarmos os poemas em cujos títulos se localizam nomes


de autores brasileiros ou títulos de suas obras, chegaremos ao total de
trinta.
Situação ímpar é a de Carlos Drummond de Andrade. Após
nomear dois poemas nos livros iniciais de João Cabral, desaparece sem
deixar vestígios.
O escritor mais citado, de longe, é Joaquim Cardozo, com seis
incidências, quase sempre favoráveis, ou, na pior das hipóteses,
neutras.
São vários os textos de base anedótica, em que Cabral passa ao
largo de qualquer avaliação literária (mas a ausência de avaliação já
não seria uma avaliação?), para limitar-se ao relato de episódios
curiosos, que testemunhou ou de que ouviu falar. Assim constroem-se
“Murilo Mendes e os rios”, “Rubem Braga e o homem do farol”,
“Contam de Clarice Lispector”:

Um dia, Clarice Lispector


intercambiava com amigos

7faces • 29
dez mil anedotas de morte,
e do que tem de sério e circo.

Nisso, chegam outros amigos,


vindos do último futebol,
comentando o jogo, recontando-o,
refazendo-o, de gol a gol.

Quando o futebol esmorece,


abre a boca um silêncio enorme
e ouve-se a voz de Clarice:
Vamos voltar a falar na morte? (p.528)

Também frequentador constante do tema, João Cabral presta


homenagens póstumas em “A Willy Lewin, morto” e “Na morte de
Marques Rebelo”.
Contabilizam-se ainda uns poucos poemas em que João Cabral
não nomeia apenas ou diretamente o escritor, e sim o título de obra,
acompanhada ou não da identidade do autor. Em tais casos, que
julgamos mais interessantes, o que se expõe, ou se contrapõe, são
modalidades do discurso literário, afins ou não do discurso cabralino.
Nesse grupo entrariam “Ilustração para a ‘Carta aos puros’, de Vinicius
de Morais”, “Casa grande & senzala, quarenta anos”, “A pedra do
reino” [de Ariano Suassuna], “Sobre O sangue na veia” [de Marly de
Oliveira].
Nos textos relativos a Gilberto Freyre e a Ariano Suassuna, o
poeta rende homenagens a visões de mundo e estilos bem
contrastantes aos que pratica. Defensor da extrema lucidez, da vigília
constante, do controle métrico-retórico, da artificialidade dos
truncamentos sintáticos, assim se manifestou sobre Freyre:

Ninguém escreveu em português


no brasileiro de sua língua:
esse à vontade que é o da rede,
dos alpendres, da alma mestiça,
medindo sua prosa de sesta,
ou prosa de quem se espreguiça. (p.361)

7faces • 30
Cultor do deserto, da paisagem e da linguagem esvaziada, da
bruta contraposição cromática negro/ branco (sua poesia é visual, mas
não colorida), captou um outro Nordeste em Ariano Suassuna:

Foi bem saber-se que o Sertão


não só fala a língua do não.
/.../
Tu, que conviveste o Sertão,
/.../
nos deste a ver que nele o homem
não é só o capaz de sede e fome. (p.394)

Três textos assumem particular relevo nesse nicho


metalinguístico.
“O sim contra o sim” (1961) abriga o único elogio de João Cabral a
poeta brasileiro anterior ao Modernismo. Não por acaso, refere-se a
poeta do Nordeste ― Augusto dos Anjos ― avesso à musicalidade, e
que injetava na poesia vocábulos considerados “prosaicos” ou
vulgares, em contraste com a “pureza lexical” e o pendor pelas frases
de efeito dos parnasianos:

Tais águas [de Augusto dos Anjos] não são lavadeiras,


deixam tudo encardido:
o vermelho das chitas
ou o reluzente dos estilos (p.273)

Em “Graciliano Ramos:”, pela primeira (e única) vez, João Cabral


assume a persona de outro escritor brasileiro, com o qual, de resto,
tem visíveis afinidades formais e temáticas (particularmente no
romance Vidas secas, de 1938). A máscara alheia se patenteia no fato
de o título do poema encerrar-se com dois pontos; logo, não se trata
de poema sobre o autor, mas de simulação discursiva de Graciliano:

Falo somente com o que falo:


com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca (p.287)

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Tão refratário a expor-se, João Cabral o fez em “Autocrítica”, onde
as linguagens e os espaços referenciais soberanos no afeto do poeta
surgem numa íntima e tensa convivência:

Só duas coisas conseguiram


(des)feri-lo até a poesia:
o Pernambuco de onde veio
e o aonde foi, a Andaluzia.
Um o vacinou do falar rico
e deu-lhe a outra, fêmea e viva
desafio demente: em verso
dar a ver Sertão e Sevilha. (p.430)

4. As referências e as alusões

Referências e alusões (não anunciadas em títulos de poemas,


como no tópico anterior) podem traduzir-se em pequenas histórias
envolvendo obras e autores brasileiros, ou apontarem também para
questões de natureza metalinguística.
Enquanto a referência tende a ser mais facilmente compreendida
pelo leitor, a alusão é oblíqua, comporta zonas de ambiguidade. É pelo
jogo alusivo que o lado mais ferino, às vezes sarcástico, de João Cabral
vai manifestar-se.
Novamente, o autor com maior número de referências ― três ―
é o velho mestre Joaquim Cardozo. Em “Prosas na Maré da Jaqueira”,
Cardozo faz-se acompanhar de dois poetas nordestinos: Carlos Pena
Filho (a quem, individualmente, Melo Neto já dedicara um poema) e
Mateus de Lima; este, obscuro escritor, irmão do conhecido Jorge de
Lima, cuja poesia, pela ausência de citação, é maliciosamente
desvalorizada pela presença fraternal e pouco expressiva de Mateus.
Já em “À Brasília de Oscar Niemeyer”, a peculiaridade reside na
inserção de texto alheio, devidamente identificado, em meio ao
poema: “símbolos do que chamou Vinícius/ ‘imensos limites da
pátria’” (p.373). A inserção desse fragmento do verso viniciano4
constitui-se na única utilização literal da palavra de outrem no corpus
cabralino.
O poeta praticamente ignora duas das principais figuras do
Modernismo brasileiro: Mário de Andrade e Oswald de Andrade,
citados de passagem em “Díptico: José Américo de Almeida”: “bem
antes de ouvir dos Andrades” (p.526). Essa desconsideração, aliás,

7faces • 32
parecia recíproca, pois em várias entrevistas Cabral relatou o silêncio
com que sua produção inicial teria sido recebida (ou desprezada) pelos
dois Andrades.
No que tange às alusões, percorreremos pontos extremos do
afeto cabralino. Às vezes, ele é apenas irônico, como no início de “A
cana dos outros” (1961):

Esse que andando planta


os rebolos de cana
nada é do Semeador
que se sonetizou. (p.267)

O alvo é a poesia de Péricles Eugênio da Silva Ramos, um dos


líderes da Geração de 45, cujo livro Sol sem tempo (1953) contém o
“Poema do semeador”; nele, as ações de um etéreo semeador são
praticamente opostas aos gestos rudes do plantador de cana
pernambucano. Péricles Eugênio evoca o “aroma de jardins sem
consistência” e o “canto nupcial de polens tontos”5.
Ironia também é arma (leve) dirigida contra Gilberto Freyre. Para
João Cabral, Freyre, no clássico Casa grande & senzala (1933), teria
lançado um olhar excessivamente conciliador da formação social do
Brasil. Em Morte e vida severina (1956), Melo Neto associa o
nascimento de um menino a repentina explosão de esperança, na
crença de um futuro melhor, por parte dos habitantes dos mocambos.
A idealizada reversão de expectativas é assim expressa:

Cada casebre se torna


no mocambo exemplar
que tanto celebram os
sociólogos do lugar. (p.172)

João Cabral sobe o tom no já citado “Graciliano Ramos:”, quando,


para contrapor-se ao vigoroso estilo seco do romancista, alude a outro
tipo de escrita, associada a uma “crosta viscosa/ resto de janta
abaianada” (p.287). Não é difícil atribuir tal estilo adiposo e
“abaianado” a famoso ficcionista nordestino, que, ademais,
costumava incluir receitas culinárias em alguns romances.
Melo Neto tampouco é complacente com o escritor Homero Pires,
personagem não nomeado de “Um piolho de Rui Barbosa” (p.529) e
autor de vários livros sobre o famoso jurista. Numa antiga conversa,

7faces • 33
reportada a Melo Neto, Pires teria falado mal dos pernambucanos, o
que já foi bastante para acender a ira do poeta.
João Cabral passa da ironia ao sarcasmo em “Retrato de escritor”,
impiedosa descrição de autor de quem fora amigo na juventude,
acusado agora de exibir na literatura sua (falsa) solidariedade à dor
humana. Além disso, quanto mais distanciado estivesse o objeto da
pseudocomiseração, mais “solidário” o escritor se mostraria ―
insensível, portanto, à dor e à miséria vizinhas:

/.../ele se passa a limpo


o que ele escreveu da dor indonésia
lida no Rio, num telegrama do Egito (p.336)

As alusões do afeto positivo concentram-se em Sevilha andando.


Marly [de Oliveira], citada unicamente na dedicatória, espraia-se,
alusiva, em dezoito poemas do livro. Configurada como metonímia
feminina da cidade perfeita (Sevilha), Marly condensaria em si todos
os atributos da beleza, da sensualidade e do aconchego, ainda que, na
realidade, não fosse natural de Sevilha. Transmuda-se, então, na
“Sevilhana que não se sabia”. Alguns exemplos:

Assim, não há nenhum sentido


usar o “como” contigo:
és sevilhana, não és “como a”,
és Sevilha, não só sua sombra. (p.604)

***

Uma mulher que sabe ser


mulher e centro do ao redor,
capaz de na calle Regina
ou até num claustro ser o sol. (p.609)

***

Eu a tenho, ali, a meu lado,


num sol negro de massa escura:

que é a de tua cabeleira,


farol às avessas, sem luz,

7faces • 34
e que me orienta a consciência
com a luz cigana que reluz. (p.61)

Por fim, retornemos ao prólogo, quando falamos de dedicatórias.


Em 1945, num exemplar de O engenheiro, João Cabral compôs
poema-dedicatória a Lêdo Ivo. O texto consistia na sugestão de futuro
epitáfio para o amigo:

Aqui repousa,
livre de todas as palavras,
LÊDO IVO,
poeta
na paz reencontrada
de antes de falar,
e em silêncio, silêncio
de quando as hélices param
no ar. (p.657)

O poema poderia igualmente servir como autoepitáfio cabralino:


a “desarrumada vida” de João Cabral extinguiu-se em 9 de outubro de
1999. No entanto, aqui estamos, celebrando-lhe a voz, ou melhor,
deixando que sua obra fale através de nós.
Porque, a rigor, é sempre falso o silêncio de um poeta verdadeiro:
a todo momento, sopradas pela paixão dos leitores, as hélices de sua
poesia recomeçam a girar, numa vitória definitiva contra a morte.

Notas
1CAMPOS, Augusto de. “João/Agrestes”. In: Despoesia. São Paulo:
Perspectiva, 1994, p.77.

2ANDRADE, Carlos Drummond de. “Quadrilha”. In: Alguma poesia.


Belo Horizonte: Pindorama, 1930, p.103.

3MORAIS, Vinicius de. “Retrato, à sua maneira”. In: Antologia poética.


Rio de Janeiro: A Noite, s/d, p.266.

4MORAIS, Vinicius de. Verso 1 do poema: “Talvez os imensos limites


da pátria me lembrem os puros”. In: Antologia poética. Rio de Janeiro:
A Noite, s/d, p.53.

5 RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. “Poema do semeador”. In: Sol sem


tempo. São Paulo: Clube de Poesia de São Paulo, 1953, p.12.

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O discurso cacto de
João Cabral de Melo Neto
por Edneia Rodrigues Ribeiro

Não sou um diamante nato


nem consegui cristalizá-lo:
se ele te surge no que faço
será um diamante opaco
de quem por incapaz do vago
quer de toda forma evitá-lo,
senão com o melhor, o claro,
do diamante, com o impacto:
com a pedra, a aresta, com o aço
do diamante industrial, barato,
que incapaz de ser cristal raro
vale pelo que tem de cacto.

João Cabral de Melo Neto

Na poesia de João Cabral de Melo Neto é comum o diálogo com


outros artistas de diferentes épocas e de diversas modalidades. Além
de dedicatórias e de breves menções ao longo da obra cabralina,
muitos são homenageados como assunto principal do poema. Em
Museu de tudo (1975) e na seção “Linguagens alheias”, de Agrestes
(1985), essa característica torna-se mais evidente. Cerca de metade
dos 80 poemas que integram o livro de 1975 versa sobre escritores,
escultores, pintores, entre outros. Assim, esse livro-museu pode ser
visto como uma tentativa de salvaguardar artistas e manifestações

7faces • 37
culturais, tanto eruditas quanto da tradição popular. Em relação à
Literatura Brasileira, nesse Museu, são contemplados alguns nomes
que, além da relevância no campo literário nacional, pertencem ao
círculo de convivência do poeta responsável pela exposição.
“Resposta a Vinicius de Moraes”, que serve de epígrafe para este
trabalho, faz parte desses poemas para amigos-escritores de Museu
de tudo1. Com ele o poeta pernambucano busca retribuir a
homenagem feita por Vinicius de Moraes, neste “Retrato, à sua
maneira”:
Magro entre pedras
Calcárias possível
Pergaminho para
A anotação gráfica

O grafito Grave
Nariz poema o
Fêmur fraterno
Radiografável a

Olho nu Árido
Como o deserto
E além Tu
Irmão totem aedo

Exato e provável
No friso do tempo
Adiante Ave
Camarada diamante!
(MORAES, 2017, p.300)

Ao homenagear o amigo, Vinicius de Moraes busca imitar o seu


estilo conciso. Das “vinte palavras sempre as mesmas / de que
conhece o funcionamento” ― sugeridas pelo sujeito poético de “A
lição de poesia”, em O engenheiro (1945) ―, o sujeito poético de
“Retrato, à sua maneira” recorre a pedras, calcárias, grafito, árido,
deserto e diamante. Ao vocabulário mineralizado, peculiar à poesia de
João Cabral, concilia-se outro mais fluido que sinaliza o afeto entre os
dois amigos: fraterno, irmão, aedo e camarada. Nesse exercício
poético, marcado pelo uso de iniciais maiúsculas e pela ausência de

7faces • 38
pontuação, não há elementos que remetam aos sonetos lírico-
amorosos com os quais o autor da homenagem se tornou conhecido
e, talvez, nada além do léxico e dos versos curtos remetam a uma
imitação do estilo cabralino.
Todavia, a associação de João Cabral ao diamante, embora venha
a ser contestada em “Resposta a Vinicius de Moraes”, é bastante
significativa para entender a opinião difundida a seu respeito e que o
próprio poeta ajudou a criar com afirmações deste tipo: “eu sou um
antilírico, me considero mais crítico do que poeta” (MELO NETO apud
PEIXOTO, 1983, p.203). A imagem do João Cabral conciso, cerebral,
antilírico, entre outras ideias vinculadas à exatidão, norteou a maior
parte dos trabalhos acerca da sua poesia. Se tais direcionamentos não
serviram para criar um rótulo de “poeta difícil”, ao menos
contribuíram para delimitar muitas leituras voltadas ao seu
preciosismo estético.
Ilustra o consenso acerca do seu rigor estético a irônica
homenagem prestada por Vinicius de Moraes no “Retrato, à sua
maneira”. João Cabral, porém, parece não ter se sentido contemplado
com tal caracterização e, após duas décadas, revida com outro poema.
Ao contestar o amigo, João Cabral inicia a sua resposta-poema
retomando a expressão com a qual Vinicius lhe saúda no último verso:
“Camarada diamante!”2. Apesar da conotação política, remetendo à
inclinação progressista de ambos, o termo “camarada”, ligado ao
universo lírico sentimental do poeta carioca, associa-se a “diamante”,
mais próximo à ideia de mineralização vinculada à poética do
pernambucano. O contraste entre os dois vocábulos sugere um traço
peculiar à poesia cabralina: o trabalho com ideias díspares em um
mesmo contexto.
É possível atribuir a esse poema um caráter circunstancial, pois se
relaciona a um contexto específico em que João Cabral se propõe a
responder à homenagem feita pelo amigo3. Além do caráter subjetivo
voltado a figuras conviviais, nessa troca de poemas estão contidos
elementos de crítica literária que instauram reflexões sobre o trabalho
poético esmerado e avesso à inspiração do autor de A educação pela
pedra. O questionamento ao “elogio” feito por Vinicius acentua-se nos
seguintes versos:

se ele te surge no que faço


será um diamante opaco

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[...]
que incapaz de ser cristal raro
vale pelo que tem de cacto.
(MELO NETO, 1975. p.43)

Ainda que o seu trabalho poético extremado permita associá-lo


ao diamante, ao cristal ou a outros minerais, o sujeito poético defende
a identificação da sua poesia com o reino vegetal. João Cabral não se
considera um diamante nato, mas, caso seja visto dessa maneira, diz
aproximar-se mais do “aço do diamante industrial, barato”. Ao se
distanciar da pedra preciosa, esse poeta evidencia a imagem do cacto
como elemento a que busca se assemelhar. O cacto4 aparece em
outros poemas de João Cabral: “Duas bananas & a bananeira”, “The
Country of the Houyhnhnms” e “The Country of the Houyhnhnms”
(outra composição)”, de A educação pela pedra (1966). Referências a
espécies vegetais típicas de biomas mais agrestes é notada também
em “O avelós”, de Museu de tudo:

Uma cerca viva existe


pelo incinerado Nordeste
(a quem o Sul dá sequer
a hora do relógio se a pede)
e que se conserva verde
quando ao redor tudo no Agreste
quartas-feiras de cinzas
retira dos baús e veste.
Não é verde para mentir
o incinerado em volta, é adrede:
dá um leite que queima
quem é de fora e a desconhece.
(MELO NETO, 1975, p.39)

Avelós é uma planta da família das euforbiáceas, bastante


utilizada como cerca viva. No Brasil, também recebe os nomes
populares de pau-pelado, homem-nu, coroa-de-cristo, cachorro-
pelado, árvore-lápis ou graveto-do-diabo. Reconhecida pela toxidade,
o contato com sua seiva pode provocar desde queimaduras à cegueira
temporária. O elevado potencial tóxico em contraste com o seu verde,
aparentemente inofensivo, pode ser visto como símbolo de defesa e

7faces • 40
resistência. A vegetação que se destaca em meio ao incinerado,
reflexo dos efeitos da seca no Nordeste, é alçada à condição de
elemento combativo ao desconhecido e ao “de fora”. Esse suposto
inimigo contra o qual o avelós se arma é sugerido por: “(a quem o Sul
dá sequer / a hora do relógio se a pede)”. Os versos aparecem entre
parênteses no meio do poema sugerindo ressalvas do sujeito poético
em relação à hegemonia do eixo Sul-Sudeste do Brasil.
O envolvimento com temáticas sociais é mais explícito nos livros
da década de 1950 ― O cão sem plumas (1950), O Rio (1954) e Morte
e vida severina (1956). Contudo, em publicações posteriores não
desaparece a preocupação de João Cabral em fazer da realidade
imediata o mote da sua poesia. A crítica à indiferença do poder público
― concentrado nas regiões mais desenvolvidas do Brasil ― em relação
ao Nordeste é retomada ao longo da sua obra. O inconformismo do
poeta com as desigualdades sociais brasileiras pode ser observado no
poema “Conversa em Londres”5, Agrestes (1985), no livro inconcluso
A casa de farinha6 e no poema inédito “A Deus, natural do Rio, São
Paulo e do Centro-sul”7. A última estrofe sintetiza a descrença do
sujeito poético em um Deus que, supostamente, privilegia certa região
em detrimento de outras:

Como nordestino que sou,


que me impunham desde o colégio,
e eras minha fonte de tédio:
descubro agora. És Centro-Sul.

Se o nordestino não possui voz nem vez para lutar contra as


mazelas sociais advindas das condições climáticas desfavoráveis e da
indiferença política (e até mesmo Divina), cabe à vegetação e, por
meio de um processo alegórico, à própria poesia apresentarem gestos
de resistência. O verde do avelós que se destaca em meio a um cenário
cinzento pode simbolizar que a vida teima em prosseguir apesar das
agruras do lugar. Contudo, essa cor contrastante representa um meio
intencional de iludir o desconhecido, a fim de atrair sua atenção e
revidar o descaso dispensado à região Nordeste. Assim como essa
planta busca atrair os desavisados do seu potencial tóxico, os
requintes poéticos do mais racional dos poetas brasileiros podem ser
compreendidos como uma maneira de conquistar a atenção de um
leitor especializado para, posteriormente, incomodá-lo com questões

7faces • 41
enfrentadas por uma parcela da população brasileira cujos olhos dos
mais privilegiados não alcançam como sugere a figura do Dr. Sudene,
a quem os trabalhadores associam o fechamento d’A casa de farinha:
“Fabuloso de poder para impedir os abusos do coronel. Os otimistas
creem nele; os pessimistas reconhecem sua existência mas dizem que
é igual a todos.” (NEMO NETO, 2013, p.54).
Embora não seja da mesma família dos cactos, o gesto de
resistência contido em “O avelós” assemelha-se ao que é oferecido
pelo mandacaru, em “Duas bananas & a bananeira”8:

Entre a caatinga tolhida e raquítica,


entre uma vegetação ruim, de orfanato:
no mais alto, o mandacaru se edifica
a torre gigante e de braço levantado;
quem o depara, nessas chãs atrofiadas,
pensa que ele nasceu ali por acaso;
mas ele dá nativo ali, e daí fazer-se
assim alto e com o braço para o alto.
Para que, por encima do mato anêmico,
desde o país eugênico além das chãs,
se veja a banana que ele, mandacaru,
dá em nome da caatinga anã e irmã.
(MELO NETO, 2014, p.459)

Explora-se o caráter polissêmico do fruto da bananeira associado


a um tipo de cacto. Enquanto o mandacaru se desenvolve em lugar
árido, cercado pela vegetação raquítica e anêmica da caatinga, aquela
precisa de lugar mais fértil, embora pouco nobre, como os monturos
de lixo depositados em fundos de quintais. Ao retratá-lo com os braços
levantados, sobrepondo-se à “vegetação ruim, de orfanato”, o sujeito
poético indica que o cacto, apesar da macheza, também dá banana. O
seu fruto, diferentemente daquele que se colhe da bananeira, pode
ser entendido como “gesto ofensivo que consiste em dobrar o braço
com a mão fechada, segurando ou não o cotovelo com a outra mão”
(HOUAISS, 2009, p.251). Trata-se de um regionalismo usado no Brasil,
em situações informais, para indicar contrariedade, resistência a algo
e gesto de rebeldia. Por meio de um processo polissêmico, o
mandacaru, resistindo às adversidades do seu habitat, revolta-se e
oferece uma banana à vegetação eugênica.

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A referência ao cacto aparece também em “The Country of the
Houyhnhnms”:

Ou para quando falarem dos Yahoos:


furtar-se ao ouvir falar, no mínimo;
ou ouvir no silêncio todo em pontas
do cacto espinhento, bem agrestino;
aviar e ativar, debaixo do silêncio,
o cacto que dorme em qualquer não;
avivar no silêncio os cem espinhos
com que pode despertar o cacto não.
(MELO NETO, 2014, p.462)

Surge, novamente, no poema que faz par com o anterior, “The


Country of the Houyhnhnms (outra composição)”:

Ou para quando falarem dos Yahoos:


não querer ouvir falar, pelo menos;
ou ouvir, mas engatilhando o sorriso,
para dispará-lo, a qualquer momento.
Aviar e ativar, debaixo do silêncio,
o cacto que dorme em qualquer não;
avivar no silêncio os cem espinhos
com que pode despertar o cacto não.
(MELO NETO, 2014, p.467)

Os dois poemas se encontram na seção Nordeste (A), de A


educação pela pedra, livro que conta com outras três: Nordeste (a),
Não-Nordeste (B) e Não-Nordeste (b). Divididos em duas estrofes, cuja
segunda foi citada acima, o poema propõe um jogo entre o ato de falar
e de escutar. Na primeira, a pedra e a faca apresentam-se como
elementos fundamentais para que se possa falar dos Yahoos,
enquanto, na segunda, o cacto aparece como opção para quando
alguém estiver conversando sobre eles. Para o sujeito poético, quem
ouve os Houyhnhnms falar de seus planos para os Yahoos deve se
armar com o silêncio e o sorriso de zombaria, a fim de aviar, ativar e
avivar o discurso do cacto.
Valendo-se de um processo intertextual com a parte IV de As
viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, João Cabral alegoriza essa

7faces • 43
vegetação como discurso necessário diante da condição vivida pelos
Yahoos nordestinos. A ideia de regionalizar os Yahoos de Swift pode
ser percebida nesta entrevista:

É humor negro. Swift era mestre nisso. [...] O país dos


Houyhnhnms é uma novela de Swift em que o sujeito
naufraga em um território em que mandam os cavalos. Os
homens são os cavalos, são os houyhnhnms. De forma que
ele apresenta os cavalos mandando em tudo os
houyhnhnms são os homens. Ali, no poema “The Country of
the Houyhnhnms”, eu me refiro ao nordestino. Aquilo é uma
alusão à situação do homem do nordeste. (MELO NETO,
apud PEIXOTO, 2001, p.140)

O escritor irlandês denuncia a exploração de seres humanos com


base na alegoria entre homens e cavalos, enquanto, nos poemas de
João Cabral, Yahoos pertencem à mesma espécie. Assim, a resistência
do discurso irônico do cacto ― vinculado ao conteúdo ― junta-se à
dicção poética elaborada sobre bases sólidas de pedra ― mais voltada
à forma ― para criticar relações sociais em que o dominador expõe o
dominado a condições sub-humanas. Conforme Marta Peixoto (1983,
p.193), “os yahoos fazem parte de uma classe rejeitada, como a dos
nordestinos pobres já antes tematizada em sua poesia, cujas
condições de vida só podem ser descritas com palavras duras, com o
auxílio da ironia e da sátira.”
Para falar do homem marginalizado, a elaboração estética
extremada torna-se insuficiente. Essa poesia da recusa, pronta a se
rebelar contra padrões literários e sociais vigentes, resiste à secura da
própria estrutura de pedra sobre a qual se consolidara e se dispõe a
incomodar o leitor, atirando-lhe tais pedras, ferindo-o com “facas de
dois gumes” e com os espinhos do cacto. Ou, ainda, mesmo de longe,
oferecendo-lhe gestos de indiferença e de rebeldia, como sugere a
imagem do mandacaru com os braços dobrados acima da vegetação
eugênica.
A tensão entre opostos ― a passagem do plano mineral ao vegetal
indicada no último verso de “Resposta a Vinicius de Moraes” ― reitera
a dimensão humana de uma poética que extrapola a racionalidade
criadora. Ao contestar a expressão “Camarada diamante!”, João
Cabral busca desvencilhar a sua poesia do preciosismo estético

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representado pelo reino mineral. Sem negar a relevância da pedra na
sua poesia ― “Para falar dos Yahoos se necessita / que as palavras
funcionem de pedra:” ―, não lhe agrada o fato de ser comparado a
uma pedra preciosa. Portanto, a tentativa de se aproximar ao reino
vegetal pode ser entendida como a configuração de um discurso capaz
de desestabilizar o leitor, à medida que conciliam os espinhos do cacto
à dureza da pedra e à ambiguidade da faca na esmerada poética
cabralina.

Notas

1 O conjunto de poemas sobre escritores brasileiros, muitos deles


figuras conviviais de João Cabral ― Manuel Bandeira, Vinicius de
Moraes, Marques Rebelo, Rubem Braga, Joaquim Cardozo, Willy Lewin
e Gilberto Freyre ― integra o corpus da tese de doutoramento Um
Museu de duas faces. Poesia de circunstância em João Cabral de Melo
Neto, defendida pela autora deste trabalho, na Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG), em 2019. Algumas ideias deste artigo foram
desenvolvidas nessa tese.

2 A justificativa para ser considerado “Camarada diamante” por


Vinicius de Moraes está implícita na obra poética desenvolvida por
ambos, uma cerebral e antilírica e a outra lírico-amorosa. Em
entrevista concedida a Bebeto Arantes, em 1999, João Cabral
apresenta o seguinte argumento: “Porque eu não caía nessas coisas de
lirismo. Eu pregava uma coisa cartesiana, não lírica. Então ele me
chamava de Camarada Diamante” (MELO NETO, 2009, p.70).

3 Para Pedrag Matvejevitch (1971), em um dos estudos mais acurados


acerca da poesia de circunstância, esse conceito é ambíguo e
contraditório, pois se, por um lado, refere-se a obras que tratam de
acontecimentos humanos mais particulares e contingentes, por outro,
designa também a poesia dita engajada ou, ainda, aquela feita sob
encomenda, com o propósito de acompanhar cerimônias. Neste
trabalho, serão considerados circunstanciais os versos que se
aproximam da definição esboçada pelo próprio poeta na conferência
inédita ― “A poesia brasileira” (1954): “O poema de circunstância é o
poema ocasional, o poema que ocorre em determinada circunstância,
sem que tenha em vista uma função exterior ou tenha sido criado em
atenção a uma necessidade exterior”. (MELO NETO, 1954, fl.150). Esse
assunto é abordado de modo mais detido na tese de doutoramento
defendida pela autora deste artigo.

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4 Sobre esse assunto é importante destacar o belíssimo poema “O
cacto”, de Manuel Bandeira, escrito em 1925 e publicado no livro
Libertinagem.

5 Neste
trecho do poema, o sujeito poético atribui a um britânico, a quem
emprestara material para estudar o Brasil, a seguinte opinião:

“O Brasil é o Império britânico


de si mesmo, e sem dispersão;

é fácil de ler nesse mapa,


colônias, colônias da Coroa,
domínios e reinos unidos,
e a Londres, certo mais monstruosa,

que no Brasil não é cidade,


é região, é esponja e é fluida,
a de Minas, Rio, São Paulo
que vos arrebata até a chuva.”
[...]
“enfim, o Nordeste é uma colônia
como qualquer, só que tem título,
o “da Coroa”, que o Rei dá
aos territórios mais mendigos.” (MELO NETO, 2014, p.670-671)

6Datado de 1966, o material foi organizado por Inez Cabral, a quem o poeta
teria entregado o fichário com as anotações. Em 2013, publicou-se uma
versão fac-similar dos manuscritos, acompanhada de transcrições feitas pela
organizadora, com o título Notas sobre a possível A casa de farinha.

7 Com outros cinquenta poemas inéditos integra a Poesia completa de João


Cabral (São Paulo: Alfaguara), organizada por Antonio Carlos Secchin com a
colaboração da autora deste trabalho.

8A bananeira também é tema do poema inédito “A bananeira no


Equador”, também publicado na Poesia completa de João Cabral de
Melo Neto.

Referências

BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova


Aguilar, 1986.
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da
Língua Portuguesa – Eletrônico. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

7faces • 46
MATVEJEVITCH, Pedrag. Poésie de circonstance. Paris, Nizet, 1971.
MORAES, Vinicius de. Vinicius de Moraes: obra reunida. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2017.
MELO NETO, João Cabral. Museu de tudo. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1975.
MELO NETO, João Cabral. Entrevista “Conversas com o poeta João
Cabral de Melo Neto”. In: SIBILA - Revista de poesia e cultura. Ano 9,
número 13, agosto de 2009.
MELO NETO, João Cabral. Notas sobre uma possível A casa de
farinha. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
MELO NETO, João Cabral. Poesia completa. Rio de Janeiro; Lisboa:
Academia Brasileira de Letras; Glaciar, 2014.
MELO NETO, João Cabral. A poesia brasileira [texto inédito]. In:
Arquivo-Museu de Literatura Brasileira (AMLB), da Fundação Casa de
Rui Barbosa (FCRB), Seção “Produção Intelectual”, pasta “Ensaio –
Prosa de João Cabral de Melo Neto”. 1954, fls. 147-175.
MELO NETO, João Cabral. “A Deus, natural do Rio, São Paulo e
Centro-Sul” [texto inédito]. In: Arquivo-Museu de Literatura
Brasileira (AMLB), da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), Seção
“Produção Intelectual”.
PEIXOTO, Marta. Poesia com coisas: uma leitura de João Cabral de
Melo Neto. São Paulo: Editora Perspectiva, 1983.
RIBEIRO, Edneia Rodrigues. A fissura do duplo em A Educação pela
Pedra: consolidação de uma prática de antilira. Dissertação
(Mestrado em Letras-Estudos Literários), Universidade Estadual de
Montes Claros (Unimontes), Montes Claros-MG, 2012.
RIBEIRO, Edneia Rodrigues. Um museu de duas faces: poesia de
circunstância em João Cabral de Melo Neto. 2019. Tese (Doutorado
em Estudos Literários), Faculdade de Letras, Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, 2019.
SECCHIN, Antonio Carlos. João Cabral: uma fala só lâmina. São Paulo:
Cosac Naify, 2014.

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Pedra e rio: o movimento como
“método”
por Francisco José Ramires

Quando lemos os poemas de João Cabal de Melo Neto e,


tateando-os, ganhamos alguma intimidade (imprescindível para o
desfrute e o estudo), notamos que um aspecto característico perpassa
sua obra: o movimento da (e na) poesia como princípio estruturante.
Chamamos de movimento na poesia a forma encontrada pelo
autor para representar poeticamente os homens e seus
deslocamentos no espaço (geográfico) e no tempo (histórico). O
movimento da poesia tem a ver com os arranjos de palavras, imagens
e versos, e com as escolhas dos temas, muitas vezes revisitados
criativamente pelo autor em momentos distintos de sua trajetória (ou
até mesmo dentro de um único poema). A despeito da maneira
excessivamente esquemática de nosso raciocínio, precisamos
considerar que não há, aqui, duas dimensões estanques, visto que
estão intrinsecamente articuladas no plano da obra como um todo,
mas também, separadamente, no interior dos poemas. É muito
curioso, mas a impressão é de que, em andamento, a obra de João
Cabral de Melo Neto é carregada de idas e vindas entre o todo e suas
partes, a ponto de cada elemento novo levar a uma reconfiguração do
conjunto. Decorre disso que o movimento é erigido à condição de
“método” de construção poética e de “visão de mundo”, vertida em
versos. À maneira de Miró, João Cabral de Melo Neto parece escrever
com luta e em luta contra os automatismos da linguagem, contra os
significados já inscritos nas palavras. Ou mesmo contra tradições e
fórmulas consagradas.

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Para quem se aventure a interpretar a obra cabralina, é de bom
tom considerar a articulação dialética entre continuidade e ruptura.
Para tanto, o desenvolvimento do autor, como poeta, repõe a
formação como processo social crivado pela inserção no jogo literário
propriamente dito e também pela constituição de sua identidade, ou
seja, toda dinâmica envolvida nos julgamentos (pessoais e estéticos)
como fenômenos igualmente sociais: ver e ser visto, ler e dar a ver suas
criações. Na medida em que começa a se configurar uma trajetória
como autor (para si e para os críticos), eivada de metamorfose, é dada
a possibilidade de releitura de sua produção passada, à luz de
sucessivos novos momentos e posições, crivados por alterações
históricas e sociais de maior monta, na toada das viagens efetuadas
pelo próprio autor.
Isso nos permite avançar em outra direção: a seriação dos
trabalhos literários. Não como mera cronologia, disposição linear,
mas, sobretudo, como ponto de fuga da análise de qualquer poema
em particular, tendo em vista que João Cabral de Melo Neto tinha o
costume da reflexividade, ou seja, a retomada artística e crítica de
temas (e poemas) como exercício revigorante de seu “método”.
Mesmo dando muita importância à rotina diária, esta era precondição
do dinamismo de sua “fórmula” poética, artisticamente nada rotineira
em si. Em Cabral, nenhum trabalho era acabado, posto que sempre
merecedor de experimentações futuras.
A socialização do poeta transcorreu num momento em que os
movimentos migratórios começavam a se mostrar como tendência de
longa duração: por imposições decorrentes de condições de vida e
trabalho, facilitadoras da necessária “liberação” de mão-de-obra para
regiões cujo dinamismo econômico demandava alterações
demográficas e sociais; pelo desejo de ver os horizontes culturais
estendidos ou, o que é ainda mais radical, a vontade pessoal de
acompanhar uma história cujo ritmo recoloca tais horizontes cada vez
mais distantes, por maiores que sejam os esforços de aproximação.
Aquilo que Max Weber chamou de a moderna impossibilidade de
morrer pleno de vida. Na modernidade, as viagens são o destino
humano mais notório e repleto de possibilidades para a exploração
estética. Contra essa busca incessante, compreendemos a depressão
que acometeu o poeta pernambucano no fim de sua vida, decorrente
da cegueira e o correspondente drama de quem se viu “impedido” de

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seguir em seu ofício, sobretudo porque Cabral não se limitava a ouvir
as palavras e os poemas. Era imperioso vê-los também.
Ondas migratórias intimamente articuladas aos processos de
industrialização, urbanização e metropolização, que ganhavam
visibilidade, em Recife, na ampliação dos espaços ocupados por
mocambos; no campo, pela derrocada dos engenhos mais tradicionais,
de mecânica tornada rudimentar face ao processo de constituição das
usinas. Portanto, falamos de transformações que dão sustentação
para a uma tomada de consciência da historicidade, baseada na ideia
de que tudo, absolutamente tudo, está em transição. No escopo
regional, salientamos os deslocamentos de homens e mulheres
provindos do sertão, do agreste ou da zona da mata, e também da
própria experiência de Cabral, que vivenciou as viagens como destino
humano. Seus versos são carregados de técnica e sensibilidade graças
às quais vicejam mudanças biográficas potencializadas por um mundo
em transformação.
Com maior ou menor vigor, mas sempre presente, a consciência
da mudança histórica, forjada em condições sociais, políticas e
econômicas em reconfiguração, está entranhada em todos os poemas
desse poeta pernambucano. De tal modo que, no final das contas, João
Cabral de Melo Neto transcende e muito sua localidade de origem,
ainda que ela esteja ali, profundamente incrustada em cada dobra de
seus versos. Difícil vê-lo apenas como escritor regional,
pernambucano. Devemos lembrar que chegou a ser cogitado para a
láurea do Nobel de literatura e teve seus trabalhos traduzidos para
diversos idiomas. Em certa medida, ele foi muito além das fronteiras
nacionais.
Podemos realizar uma breve digressão acerca de duas metáforas
que sintetizam, em nosso modo de ver, sua percepção das mudanças
históricas em andamento. Metáforas que encerram em si o
movimento como “método” de criação literária e de percepção
poética do mundo: pedra e rio.
A pedra é um símbolo literário que não ficou restrito e esquecido
no livro de estreia. Não houve abandono, mas sim uma longa e forte
persistência, feita a partir de recriações esparsas, porém vigorosas. No
início, a pedra estava cindida em duas partes: Europa e Brasil. Nesse
momento, sua lapidação apresentou silhueta surrealista, porém
jamais como mera importação desproposital e ou equívoca de
modelos do Velho Mundo. Na sanha do desbaste e do polimento

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literários, a pedra foi ajustada à realidade na qual João Cabral de Melo
Neto foi socializado. Assim, Pedra do sono entra como capítulo da
aclimatação do surrealismo ao sistema literário nacional, com raiz
local, visto que o nome do poema era o nome de um lugar de seu
estado natal. Seu surrealismo não é, portanto, tão somente a
exploração artística dos caminhos do inconsciente humano, abertos na
toada dos estudos do campo da psicanálise. Ele se refere à realidade
maior, com um olhar direcionado para fora (e não apenas para o
interior do ser humano), em busca de matéria-prima com potencial
estético, no cotidiano da vida, nos espaços nomeados por homens e
mulheres. Seu surrealismo vem prenhe de instrumentos e objetivos
realistas, controlados pela razão lúcida. A escrita automática passou
longe de sua proposta e de suas intenções.
Pedra do Sono é nome de um local geográfico, situado no
município de Limoeiro-PE, região intermédia entre sertão e litoral, não
muito distante de Recife. Portanto, a despeito das experiências feitas
na toada de um projeto literário nascido do outro lado do Atlântico, a
escolha do título dá o tom do enraizamento local das vontades do
autor. No livro, predominam as temáticas da cidade (rua e vias
públicas, mas também os espaços reclusos do lar), da subjetividade do
escritor e do “imaginário” local popular, por vezes transfigurados em
versos oníricos. Temas nem sempre harmonizados entre si, visto que
os poemas nos devolvem uma feição levemente esquálida e as pistas
de uma proposta consciente, cujo traço decisivo é a afronta política a
outras linguagens então dominantes, baseadas fundamentalmente no
ensaio e no romance.
Pedra do sono reúne poemas que expressam uma consciência
possível (em desenvolvimento), calcada na fricção entre o esforço de
manter-se atento às vanguardas europeias e o escrutínio necessário
ao fazer literário em um país de passado colonial, onde se forjava um
projeto de capitalismo e civilização, cujas principais determinações
decorriam das desigualdades internas e daquelas relativas às nações
mais avançadas. Capitalismo dependente e subdesenvolvido,
periférico. A esqualidez do livro está ligada a esse contexto
perturbador. Por um lado, os sinais de aceleração da história, ligados
ao predomínio da ordem social e técnica capitalista sobre nossa
formação senhorial e escravocrata. Por outro, a persistência de
condições que serviam de esteio ao atraso, cujo resultado era uma
modernidade muito particular, atravancada.

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Tudo isso era potencializado pela experiência de derrocada de sua
própria família, com seu pai submetido a perseguições de natureza
política e cerceado em suas chances de sobrevivência. Esse clima deve
ter tido grande repercussão no espírito do autor. À vertigem dos temas
oníricos correspondia a vertigem de sua existência familiar, ainda mais
aguda por ser o segundo filho da prole. Portanto, poderia ter sentido
a pressão da responsabilidade de entrar como arrimo dos irmãos mais
jovens, em uma redistribuição de papéis no seio da família e na
redefinição de sonhos.
Com quinze anos, João Cabral de Melo Neto foi campeão juvenil
pelo Santa Cruz Futebol Clube. Com dezessete anos de idade (1937),
já trabalhava na Associação Comercial de Pernambuco e, em seguida,
no Departamento de Estatística do Estado. Tendo legado alguns
poemas sobre Ademir da Guia e sobre o América Futebol Clube,
muitos anos depois, não é exagero dizer que o esporte era uma paixão.
Assim, a carreira futebolística poderia ter sido alternativa de vida. Há
depoimentos que dão testemunho de ele, Cabral, ter sido um bom
jogador. Assim, o caminho de fazer do futebol um meio de vida e fonte
de reconhecimento pode ter sido inviabilizado em decorrência das
alterações das condições de vida do país, com respingos em seu lar. Se
o futebol era envolvido por grande emoção, deve ter sido frustrante
ter de abandoná-lo. Essa energia talvez tenha sido somatizada, tendo
sido ele acometido por fortes dores de cabeça que logo entraram para
o anedotário dos amigos mais chegados, mas também foram motivo
de preocupação, com internações e cirurgias. Quiçá tenha sido
sublimada em uma direção diversa: a literatura.
Houve momentos de retomada da pedra em trabalhos literários
posteriores, desbastada com intenção de lhe conferir contornos
diversos. O retorno e, portanto, a continuidade são evidências
empíricas da persistência do autor, julgando-a apropriada dentro de
seu projeto (em formação). Caso contrário, não haveria por que
mantê-la. Bastaria abrir mão (caminho “natural”), se levarmos em
conta as pequenas “repreensões” que o livreto suscitou, aqui e ali, nas
respostas daqueles que o leram quando de sua publicação, talvez sem
terem a informação geográfica contida em seu título, posicionando os
versos no limiar de uma literatura excêntrica, de torre de marfim.
Simultaneamente, os usos futuros dessa metáfora são evidência
empírica da configuração retroativa da qual falamos há pouco. Obras
criadas posteriormente obrigam o crítico a voltar ao livro de estreia, a

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fim de perscrutá-lo com intenção instigada pelos novos trabalhos,
reveladores do dinamismo que só pode ser apreendido ao longo do
tempo. Diacronia que impõe o retrocesso aos estudos feitos no calor
da hora (sincrônicos). Cada nova publicação reposiciona as
imediatamente anteriores, transformando seus valores, exigindo
novas leituras.
É claro que, dialeticamente, a pedra vem carregada de
descontinuidade, pois a metáfora seria referida ao sertanejo como
tipo social. Metáfora construída como aproximação em relação a
homens e mulheres que habitavam o ambiente seco e pedregoso do
sertão. Seres humanos que, segundo Cabral, deveriam armar-se com
as qualidades de resistência da pedra, para que fosse possível dar
conta das necessidades da vida, tamanha a hostilidade natural e social
daquelas paragens.
Nesses seres de pedra subjaz a desumanização como “negação”
da história, aparentemente mais lenta para os sertanejos,
“petrificada” para essa parcela das classes trabalhadoras, para os
desclassificados em relação às linhagens senhoriais e à burguesia em
formação. Contudo, a pedra é também o símbolo da história possível,
em termos de resistência política, esperança e tenacidade na luta pela
existência. História dos homens simples, em um país crivado por
desníveis regionais nada desprezíveis. O ponto alto dessa nova feição
da imagem de estreia é o livro A educação pela pedra, escrito entre
1962-1965 e publicado em 1966. Momento delicado da história
brasileira, prenhe de incertezas políticas que culminaram no golpe de
1964, com a tomada militar do Estado, em meio à estigmatização e
repressão de toda crítica e das mobilizações sociais contestatórias,
urbanas ou rurais. Uma nova ditadura que pode ter ativado as
emoções vinculadas às memórias da juventude do escritor e dos
tempos sombrios de outrora.
Antes disso, a “tese” do livro de 1966 já havia sido apresentada
em um trabalho de 1953, intitulado O rio ou relação da viagem que faz
o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife. O poema tem o
mesmo porte de O cão sem plumas. Podemos dizer que o tema é
idêntico, ainda que seja um poema com vida própria, premiado,
autônomo e com arranjo bem diverso. Talvez se trate de uma releitura
crítica.
Os versos transcorrem na cadência das águas dos rios
pernambucanos, indo em direção ao litoral (Recife). As águas (o rio),

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como metáfora literária, não substituem a pedra ou a ela se
sobrepõem. Elas se combinam, são amalgamadas, em rimas que nos
lembram do cancioneiro popular e da poesia cantada por tipos
provindos das classes populares. Seguindo o fluxo fluvial, é notória a
preocupação “etnográfica” de João Cabral de Melo Neto, expressa nos
nomes locais que ficam para trás à medida que as águas avançam,
rumo a seu destino. Há forte interesse geográfico, em termos da
ocupação do espaço pelos seres humanos. Espaço usado, habitado,
percorrido, abandonado. O poema toma a realidade nordestina
(pernambucana) como referente, da qual busca se aproximar, mas
jamais a ponto de se confundir com ela, espelhá-la. Afinal de contas,
literatura não é apenas retrato da realidade. É, fundamentalmente,
criação.
Se em O cão sem plumas a aplicação poética do materialismo
dialético ofereceu ao leitor a imagem de migrantes despojados de
propriedades, no terrível limite de verem a própria força de trabalho
arrefecer, a sobrevivência por um fio, nesse novo poema a
preocupação etnográfica indica a incorporação de informações de
caráter antropológico, em um sentido diverso, qual seja: a despeito da
expropriação inerente aos processos de proletarização de homens e
mulheres, estes carregam consigo um imaginário popular que os
enriquece (contos, orações, músicas, artesanatos etc.), que os define
(em termos identitários) e funciona como visão de mundo capaz de
sustentar a dignidade subjacente a um sistema de valores caros à vida
dessas pessoas. Não é à toa que, a despeito de ser ateu, João Cabral
de Melo Neto criou também um auto de natal materialista,
reconhecendo a importância da religiosidade para essa população.
Este auto se chama Morte e Vida Severina.
Em uma das passagens, o rio chega (e Cabral volta) a Limoeiro,
vilarejo representado com as qualidades da pedra. Esse “retorno” ao
seu ponto de “origem” é também a transfiguração da literatura
cabralina (em construção). Pura reflexividade, pois o poema versa
também sobre seu itinerário autoral. O local é o mesmo, mas um
pouco modificado (a vida veste ainda / sua mais dura pele. / Só que
aqui há mais homens / para vencer tanta pedra). Poema escrito em
território nacional, pois João Cabral estava de volta ao Brasil, para
responder ao processo administrativo por subversão. Sob ameaça,
acionou a literatura como meio para reaver lembranças, na luta para
defender quem era.

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Em outros momentos de sua poesia, a água seria vertida em
metáfora para a paixão com que João Cabral de Melo Neto passou a
apreciar a dança, particularmente os movimentos femininos das
mulheres sevilhanas, os volteios de seus corpos e vestidos esvoaçantes
do flamenco. A água, doravante vista como atributo feminino,
redefiniria a pedra como qualificativo masculino, numa oscilação entre
Brasil e Espanha, razão e paixão, escrita e dança, drama e arte. De
forma inusitada, o poeta racionalista abre a guarda diante do erotismo
dessa expressão cultural, cedendo ao que Max Weber chamou de a
maior força irracional da vida, cuja explosão exigia um lugar no
esquema ascético de seus versos.
O movimento, como destino existencial, metáfora poética e
“método” de criação literária, ganha um estofo todo especial a partir
do momento em que começamos pensar a literatura como instância
do social e este como uma das dimensões da obra, direcionando nosso
olhar nesse duplo sentido.
A ascendência de João Cabral de Melo Neto tem raízes fincadas
em solo senhorial. Sua família era detentora de engenhos, mas não de
usinas, o que dá o tom de seu poder econômico, modesto se
comparado ao dos grandes proprietários locais. Somado a isso, não
devemos nos esquecer da intimidade com o poder político, cujo
principal cacife foi, sobretudo, a formação jurídica, área da qual saíram
inúmeros sujeitos que ocuparam as mais diversas posições no Estado,
alguns deles convertendo a política em condição de trabalho
duradouro.
Nos primeiros momentos de vida, a socialização de João Cabral
deu-se em meio ao esfacelamento das bases econômicas de sua
família. Essa derrocada, como já dito, instituiu condições
absolutamente novas, favoráveis à “liberação” do jovem em relação
aos possíveis destinos diretamente vinculados à reprodução
(bloqueada) do legado familiar (material e simbólico). Assim, a
reconversão se impôs como necessidade e novas trajetórias possíveis
ficaram à sua disposição no horizonte social de então.
Em tais circunstâncias, era grande a chance de Cabral formar uma
“visão de mundo” mais ajustada às transformações que o envolviam
naquela fase de sua vida. Olhar muito distinto do que ele teria, caso
tivesse de lidar com as obrigações ligadas ao gerenciamento dos
negócios da família ou às disputas políticas, anteriores e
contemporâneas ao Estado Novo varguista.

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Houve distanciamento entre o jovem Cabral e as pessoas em
posições similares às de seus ascendentes ou de descendentes (de
outras famílias) em condições de levar adiante o legado de berço,
circunscrito a limites históricos concretos. Há identidade, porém
combinada a uma postura mais “objetiva”, no sentido de não-
compromisso em termos da defesa de valores, julgamentos e estilos
de vida. Não tardou até Cabral se arriscar no Rio de Janeiro,
abandonando a família de origem, para fazer a própria vida.
Essa situação ambígua, de identidade-distanciamento, ganhou
expressividade poética no livro O engenheiro, no poema “Os primos”.
Suas estrofes versam sobre uma praça onde há estátuas de membros
de sua linhagem. Petrificados, a relação do autor com seus parentes é
perpassada por proximidade e empatia, mas também pela
impossibilidade de se reconhecer plenamente naqueles seres de pedra
(tão estranhos), que representam um passado morto ou inviável e,
portanto, novas perspectivas quanto ao futuro: “Meus primos todos /
em pedra, na praça / comum, no largo / de nome indígena. / No gesso
branco, / os antigos dias, / os futuros mortos”. O tom narrativo é
quebrado em versos pequenos, atravancando a leitura e, portanto,
dando força ao desconforto de quem não conseguia se ver inserido na
linha genealógica.
João Cabral de Melo Neto tornou-se “livre” para assumir um dos
princípios básicos da modernidade: a vontade de fazer a própria vida,
sem as injunções que recaíam sobre as pessoas quando o ambiente
familiar era asfixiante e, portanto, pouco favorável ao florescimento
da individualidade. Aliás, devemos recordar que esse atributo recebeu
contornos disformes no livro de estreia, quando Cabral ainda estava
totalmente sujeito à gravidade deformadora da casa da família.
Fazer a própria vida, mas também a própria literatura. Desde o
início, esta foi arquitetada e dinamizada como criação e participação
no grande diálogo público travado entre escritores, críticos e
intelectuais. O trabalho poético foi erigido à condição de estilo de vida
e veículo de expressão de suas opiniões acerca do ofício em si e da
sociedade brasileira, particularmente de Pernambuco. A vontade
inicial de seguir a carreira de crítico de arte foi internalizada em seus
versos. Quantos não são os poemas em que Cabral explicita seus
julgamentos acerca de obras literárias e mesmo de artistas plásticos,
como Franz Weissmann, Miró e tantos outros!

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Seus versos são dotados de atributos dialógicos marcantes. Cabral
não era apenas indiferente ou hostil em relação aos críticos (ainda que
não seja totalmente infenso a essas posturas). Ele pensava junto com
eles, numa verdadeira esfera pública versificada. A julgar pelas
análises construídas e apresentadas em nosso esboço de
interpretação, ao menos no período que vai de Pedra do sono a O cão
sem plumas, a presença mais constante parece ser mesmo a de Sergio
Buarque de Holanda. Há um respeito muito grande de Cabral pelo
crítico e deste pelo escritor, como se, ao menos durante esse
interregno, suas opiniões fossem acompanhadas com bastante
atenção, incitando-o em seu trabalho literário.
Quanto à relação com Gilberto Freyre, mais matizes devem ser
considerados. No momento em que João Cabral se refere ao primo
como “ditador intelectual” de sua província natal, há um desconforto
que não podemos negligenciar. Desconforto quanto a Freyre e quanto
ao presumido ambiente acanhado onde ele vivia. Acanhamento em
comparação com o Rio de Janeiro (então capital do país), com a
Europa. Para deixar tudo mais complicado, foi esse mesmo Freyre que
ofereceu um restante de papel usado na feitura da publicação de
estreia de João Cabral de Melo Neto: Pedra do Sono, livro cujas formas
e temas surreais continham os dilemas e desgostos pessoais e
familiares, em um momento de grande conturbação para a família. Seu
surrealismo expressava mal-estar.
Esse constrangimento talvez decorresse, primeiramente, da
intenção do jovem escritor de investir suas energias criativas e seu
tempo na forma poesia, em contraponto ao predomínio do ensaísmo
das ciências humanas e da prosa romanesca, ora de cor regionalista,
ora centrada no tema da decadência das antigas famílias senhoriais,
ancoradas nas atividades rurais. Cabral tateava em busca de um
espaço entre a proposta modernista, a reação “formalista” da geração
de 1940 (à qual ele mesmo chegou a ser associado) e as prosas aqui
referidas.
Posteriormente, já distante da “província”, ao entrar em contato
com a obra de Josué de Castro e suas análises a respeito das condições
que diminuíam terrivelmente a expectativa de vida da população
pobre de Recife, em uma época de flerte com o materialismo histórico,
João Cabral foi além do problema relativo à linguagem: prosa ou
poesia. O negro de O cão sem plumas não é só a cor da lama dos
mangues: é a negação da tese da mestiçagem. Ante os dados

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oferecidos por Castro, o desconforto recai sobre ideias contempladas
em Casa-grande & Senzala, como “democracia racial” ou “equilíbrio
de antagonismos”. A cor da pele e o que ela significava em termos
sociais (simbólicos) era o sinal de uma sub cidadania ou mesmo sua
quase total negação. Um estigma desumanizador. Onde o equilíbrio?
Onde a democracia?
No livro Museu de Tudo, escrito entre 1966 e 1974, consta um
pequeno poema de seis versos, intitulado “Casa-grande & Senzala,
quarenta anos”.

Ninguém escreveu em português


no brasileiro de sua língua:
esse à-vontade que é o da rede,
dos alpendres, da alma mestiça,
medindo sua prosa de sesta,
ou prosa de quem se espreguiça.

Desde o título, o tom é de comemoração pelas quatro décadas de


publicação do clássico de Gilberto Freyre, em 1973. De certa forma,
ele condensa a postura de Cabral em relação ao primo, com laivos de
contemporização. Uma leitura pelo viés da construção das palavras: o
tema da prosa, qualificado pelo à-vontade da rede. Cabral parece
acatar a miscigenação. A perspectiva é a do alpendre, portanto, da
casa-grande, omitindo a senzala: o espaço dos negros, que ocupariam
os mocambos. A rede vazia, sem muitos dos personagens que dali
davam ordens, aos berros, à criadagem da propriedade.
Não obstante, essa languidez, despida das relações hierárquicas
que articulavam os espaços dos negros e dos brancos e, aqui, redunda
em “preguiça” (literariamente estilizada), é contida e tensionada pelo
racionalismo geométrico com que João Cabral de Melo Neto construiu
sua obra. Cada um dos seis versos é rigorosamente construído com
nove sílabas, oscilando (como uma rede em movimento) entre
tonicidades marcadas nas segundas, quintas e nonas sílabas (nos
versos 1, 5 e 6) e nas quartas e quintas sílabas, nos demais. No lugar
do “ressentimento” juvenil, a astúcia literária de um escritor já de
posse de uma cadeira na Academia Brasileira de Letras; contra a vida
de cigano de um funcionário do Itamaraty, a escolha por um olhar
muito peculiar acerca da obra de Freyre, com destaque para o
“brasileirismo” do livro e seu “sotaque”. Tudo isso num momento em

7faces • 59
que ele também se via às voltas com os cuidados necessários para
manter seu posto e seu correspondente meio de vida, em um novo
regime autoritário.
Cabral fez de seus versos uma “instância” de diálogo entre poesia
e ensaísmo; entre literatura, ciências humanas e artes plásticas; entre
passado e presente. Diálogo necessário à sua proposta literária. Chega
um momento em que o autor demonstra estar convencido de que as
migrações levam à ampliação das classes populares nos centros
urbanos, alguns em processo de metropolização. Contingente humano
totalmente alheio àquilo que deveria ser preservado, no julgamento
dos defensores da cidade em seus traços arquitetônicos tradicionais.
Para essas pessoas que buscavam trabalho, a integração à economia
urbana deu-se a partir de atividades disfuncionais ao desenvolvimento
das relações tipicamente capitalistas, em situações frequentemente
precárias, aquém das esperanças nutridas pelos viajantes.
Os movimentos migratórios remodelavam a cidade, como espaço
e forma de sociabilidade, de modo que as condições de vida se
tornavam propícias ao florescimento de discursos nostálgicos,
conservadores, carentes da antiga cidade que, na opinião de muitos,
foi tomada e, portanto, deveria ser devolvida, como nos bons tempos.
Entretanto, a remodelagem também apontava para a possibilidade da
cidade futura, que tinha de lidar com o seguinte problema: como esses
novos moradores, parciais ou permanentes, poderiam ser integrados,
a fim de que pudessem usufruir das riquezas e benesses das quais o
campo carecia? Assim, estavam lançadas as bases de uma nova força
social, que poderia organizar-se e proferir o próprio discurso, para que
suas vozes pudessem ser ouvidas na esfera pública. Pouco a pouco, o
isolamento entre interior e litoral, campo e cidade, ia sendo superado,
em meio à imperiosa integração territorial, um dos requisitos
estruturais de uma economia capitalista em expansão.
O sertão “ia” para a cidade e “voltava”, tamanha a andança que
se instaurou, ainda mais se consideramos que os meios de transportes
tornariam esses deslocamentos cada vez mais fáceis. À pedra, símbolo
do isolamento, foi articulada a metáfora das águas (do rio). Dessa
combinação, podemos depreender os sentidos atribuídos por João
Cabral de Melo Neto ao ofício do verso, sempre aberto às mudanças
históricas, presidido por uma lógica de rigor de construção e abertura
às transformações da vida. Alimentando-se das múltiplas vozes
(estéticas e sociais, nacionais e estrangeiras) que ressoavam no Brasil

7faces • 60
e em outras nações (situação à qual se habituou, principalmente após
seu ingresso no Itamaraty), esse poeta criou soluções literárias muito
originais, cuja forma era permeável às transformações sociais,
econômicas e políticas que alteravam a sociedade brasileira.
João Cabral empenhou-se na construção de uma poesia
incessantemente metamorfoseada em várias vozes, construindo os
sons como imagens. Em seus versos, a oralidade e a visualidade
tiveram diluídas suas fronteiras. Não fazia sentido falar em artes,
territórios e culturas como compartimentos estanques, quando o
mundo começava a ser cada vez mais balizado pelo fluxo quase
ininterrupto de mercadorias, ideias e pessoas. Para condensar tudo
isso em versos, nada melhor que arquitetar um “método,” com
plasticidade suficiente para apreender o movimento da arte, da
história, da vida. Com lentidão, a água é capaz de envolver e friccionar
a pedra. Eis um dos sentidos que animou a existência desse
engenheiro das letras.

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Da seda à palavra, da palavra
à seda: a palavra seda de João Cabral
de Melo Neto
por Rogério Caetano de Almeida e Lívia Lopes Marangoni

A palavra seda

A atmosfera que te envolve


Atinge tais atmosferas
Que transforma muitas coisas
Que te concernem, ou cercam.

E, como as coisas, palavras


Impossíveis de poema:
Exemplo, a palavra ouro,
E até este poema, seda.

É certo que tua pessoa


Não faz dormir, mas desperta;
Nem é sedante, palavra
Derivada da de seda.

E é certo que a superfície


De tua pessoa externa,
De tua pele e de tudo
Isso que em ti se tateia,

Nada tem da superfície


Luxuosa, falsa, acadêmica,
De uma superfície quando
Se diz que ela é “como seda”.

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Mas em ti, em algum ponto,
Talvez fora de ti mesma,
Talvez mesmo no ambiente
Que retesas quando chegas,

Há algo de muscular,
De animal, carnal, pantera,
De felino, da substância
Felina, ou sua maneira,

De animal, de animalmente,
De cru, de cruel, de crueza,
Que sob a palavra gasta
Persiste na coisa seda.

“A palavra seda”, poema integrante da obra Quaderna (1960), de


João Cabral de Melo Neto, configura-se, de maneira geral, como um
exercício explícito de construção de imagem. Há, ao longo do texto,
uma tentativa do eu-lírico de ilustrar, por meio do uso de uma
comparação sempre problematizadora na sua própria composição, o
teor do caráter de alguém (ou algo, como veremos adiante), que
permanece sem identidade. Por ilustração, no entanto, não
entendemos um processo de simplificação. A ideia da análise que
segue é demonstrar que, mesmo que haja, como reconhecido pelo
autor, predomínio do que é concreto em detrimento ao abstrato na
sua poesia, ela não possui, de forma alguma, por consequência, algum
elemento facilitador de compreensão das imagens construídas. O
crítico literário russo, Viktor Chklovski, em seu texto “A arte como
procedimento” discursa sobre a ideia: “O objetivo da imagem não é
tornar mais próxima de nossa compreensão a significação que ela traz,
mas criar uma percepção particular do objeto, criar uma visão e não
seu reconhecimento.” (CHKLOVSKI, 1970, p.45).
A imagem verbal, esse “predicado constante para sujeitos
diferentes” (CHKLOVSKY, 1970, p.41), carrega em si um esforço, similar
ao da Bauhaus, de passar o máximo de informação no mínimo de
palavras. Atrelado a isso, a singularização, “percepção particular do
objeto” (CHKLOVSKY, 1970, p.46), quase nos obriga a uma reflexão

7faces • 64
metalinguística, tão característica da poesia cabralina. Segundo Samira
Challub, em seu livro A metalinguagem, um poema que se pergunta
sobre si mesmo e, por meio dessa reflexão, desnuda a própria forma
com a qual se pergunta, é um poema marcado pelo signo da
modernidade.
A autora prossegue argumentando que isso caracterizaria um
redimensionamento da arte e, a partir dessa tentativa de
conhecimento do seu ser – fórmula peculiar de episteme ― aí se
incluiria o desejo de desvendar como se deu a história desse poema
moderno. Tal noção moderna de arte, segundo a autora, estaria
marcada pela concepção metalinguística (consciência e construção), o
que contraporia sentimento e expressão. O que ocorre, por meio da
metalinguagem, é o que Samira nomeia como dessacralização do mito
da criação, o que desnuda o processo de produção da obra. De alguma
maneira, aproxima-se do que Victor Chklovsky indica como
singularização: “aplicar o método de singularização na descrição de
dogmas e ritos, métodos segundo o qual ele substituía as palavras da
linguagem corrente pelas palavras habituais de uso religioso; resultou
daí qualquer coisa de estranho, de monstruoso, que foi sinceramente
considerado por muita gente como uma blasfêmia e os feriu
penosamente” (CHKLOVSKI, 1970, p.50). Podemos considerar, então,
que através da consciência metalinguística moderna, produz-se essa
singularização da linguagem.
Em consonância bastante evidente com tal concepção moderna
de criação artística, Cabral insiste no tom laboral e, acima de tudo,
intencional de sua escrita. Entrevistado em 1986, por Geneton Moraes
Neto, ele afirma:

Valéry dizia que tudo que vinha a ele espontaneamente


era eco de outra pessoa! Ele só acreditava numa coisa que
ele fizesse com rigor intelectual, porque durante este
trabalho rigoroso ele eliminava tudo o que, nele, era dos
outros. O homem acha, em geral, que tudo o que se faz
artificialmente é falso e não diz nada dele. Vejo
exatamente o contrário: o que você faz espontaneamente
é eco de alguma coisa que você leu, ouviu ou percebeu de
qualquer maneira. (MELO NETO, 2007, não paginado)

7faces • 65
O título do poema, “A palavra seda”, traz uma noção
metalinguística e singularizada ao fazer menção a uma palavra que é
seda. Posicionada no título, tal menção pode nos fazer crer o conteúdo
do poema deve, principalmente, se tratar de um desenvolvimento da
representatividade do termo seda. No entanto, somos surpreendidos
ao perceber que a primeira estrofe seguirá outros rumos. Ainda no que
se refere ao título, outra maneira de leitura da frase poderia ser: “A
palavra se dá”. Por esses caminhos, o caráter imperativo da sentença
talvez nos possa revelar a maneira com a qual a palavra, de maneira
quase independente, encontra lugar de ser na atividade poética de
Cabral. É como se o conteúdo do poema fosse externo ao texto: há
uma espécie de distanciamento do que se quer dizer na sua relação
com a palavra. A palavra, coisa em si, se distancia do conteúdo, seu
devir, constructo de imagem.
Semelhante concepção pode ser formulada a partir da leitura de
outro poema de Cabral, intitulado “O poema”, no qual o autor nos
apresenta versos como: “Mas é no papel que o verso rebenta / Como
um ser vivo / Pode brotar / De um chão mineral?”. Em seu artigo “A
metapoesia em João Cabral de Melo Neto e em Joaquim Cardozo...”,
as autoras Nadja da Silva e Zeneide Silvino apontam, no poema citado,
tal ímpeto externo às vontades ou decisões do eu-lírico do poema: “o
papel desperta no escritor um constante desejo de criar, fazer surgir
‘um ser vivo’. Afinal é isso que, segundo Ele, deve ser o fruto do labor
de um poeta: um ser de vida / um organismo / com sangue e sopro / e
este ser nada mais é que um verso.” (SILVA; SILVINO, 2018, p.214).
Além desse elemento que retoma a metalinguagem e perpassa o
poema, aprofundando-se no próprio texto, temos o que Antonio
Carlos Secchin chama de poesia do menos: “Com Quaderna (1959),
João Cabral de Melo Neto retoma uma abrangência temática já
expressa em Paisagens com figuras: o Nordeste, a Espanha, e o diálogo
entre ambos, marcado pelo vetor comum de uma condição humana
definida pelos signos da carência e do menos.” (SECCHIN, 1999, p.133).
Na primeira estrofe do poema “Palavra seda” que, conforme
Secchin, é um dos oito poemas da obra que possui uma presença do
feminino, deparamo-nos com a primeira imagem apresentada. O que
nos é introduzido é um ambiente, de certa forma, etéreo, no qual são
lançadas afirmações categóricas acerca das mudanças do indivíduo
que se realizam através do que o cerca.

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Apesar de haver referência ao caráter humano do que está sendo
descrito em estrofes posteriores, como em “certo que tua pessoa”, o
verniz metalinguístico que cobre o poema nos permite aceitar a
possibilidade de lidarmos com um ser feito apenas de palavras, um ser
metalinguístico, um ser que é o próprio poema. Voltando-nos às
escolhas lexicais, o uso da palavra “atmosfera” nos remete à ideia de
ascensão e, talvez, instabilidade. De outra maneira, o caráter empírico
da terceira estrofe, carrega, em outra perspectiva, uma possibilidade
de acesso da palavra fazer-se realidade (“É certo que tua pessoa / Não
faz dormir, mas desperta; / Nem é sedante, palavra / Derivada da de
seda.”) O eu lírico posiciona, dessa forma, o ser do qual fala num
patamar oscilante ― entre a instabilidade de uma atmosfera que
transforma e de uma pessoa que não deixa dormir, nem é sedante.
Voltaremos à terceira estrofe posteriormente.
Em relação à sonoridade, é possível destacar a utilização de sons
específicos que contribuem para produção da imagem proposta. Ao
longo da primeira estrofe, temos a aliteração da consoante t, como em
atmosfera, atinge, tais, transforma, muitas. Tal repetição de uma
consoante oclusiva dá corpo e força à descrição enfática e categórica
que se pretende quando da introdução desse ser. Por outro lado, ao
final do quarteto, é possível perceber certa insistência na letra c. Os
sons fricativos, presentes em concernem, cercam são produzidos por
meio do estreitamento da passagem do ar na boca. Dessa forma, há,
por meio do auxílio do recurso sonoro, a criação de uma imagem
etérea, mas envolta por tensão, aterramento e certo sufocamento,
haja vista o literal bloqueio e estreitamento do caminho do ar.
A sobreposição dessas ideias, de certo modo materializadas pela
sonoridade, apoia-se também em um recurso sintático. Os dois
primeiros versos: “A atmosfera que te envolve / atinge tais
atmosferas” não são, de certa forma, confortáveis ao ouvido num
primeiro momento, uma vez que fazem uso de repetição de termos e
sons que nos obrigam, portanto, a aceitar um jogo truncado de
sobreposição. É como se houvesse um empilhamento de níveis, assim
como ocorre, de fato, com as camadas da atmosfera (troposfera,
estratosfera, mesosfera...). Somos forçados a nos perguntar quais são
as “tais atmosferas” atingidas pela própria atmosfera que envolve esse
ser e que o fazem capaz da transformação das coisas. Retomando a
ideia de que o ser é o próprio poema, há, novamente, a presença do

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cunho antes ativo do que passivo do conteúdo dessa escrita que tem,
sobre um outro, poder transformador.
Na segunda estrofe, o eu-lírico afirma que a característica
transformadora, própria da atmosfera de quem ele descreve, além de
coisas, é capaz de também alterar “palavras impossíveis de poema”.
Temos uma primeira referência clara ao ato da escrita, uma vez que
há menção e, por assim dizer, restrição daquilo que seria palavra de
poema. Como exemplo do que seriam palavras impossíveis de poema,
há referência ao ouro e à seda. De acordo com o Dicionário de
símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant: “O ouro, considerado
tradicionalmente como o metal mais precioso, é o metal perfeito.”
(2001, p.669). Além disso, este símbolo pode significar uma
transmutação do ser, ou ainda conhecimento e imortalidade. É
interessante analisar o juízo que o eu-lírico faz do que pode ou não
pertencer a um poema. Ao assumirmos tal interpretação do símbolo
proposto, aquilo que seria perfeito, acabado e não oscilante não pode
compor uma atividade poética. De outra maneira, poderíamos ampliar
este olhar para o conhecimento e / ou para a imortalidade, no entanto
a transmutação é algo inevitável em qualquer circunstância da
linguagem, mesmo na metalinguagem: seria, então, um retorno da
linguagem a si mesma para modificar-se? O ouro-palavra pode
transmutar-se em seda? Sua ductibilidade está contida na seda.
Vale ressaltar a maneira com a qual, no último verso da segunda
estrofe, o eu-lírico compara ― ou talvez reduz ― seu poema à seda.
Este tecido, delicado e resistente, como qualquer outro, carrega uma
simbologia relacionada à criação: “Tecer não significa somente
predestinar (com relação ao plano antropológico), mas também criar,
fazer sair de sua própria substância, exatamente como faz a aranha,
que tira de si própria a sua teia” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2001,
p.872). Faz-se presente, ao longo desta segunda estrofe, um
emaranhado de significações metalinguísticas, no qual a constante
autorreferência por vezes confunde os papéis de quem fala com aquilo
sobre o que se fala. Antonio Carlos Secchin afirma que, analogamente
ao que ocorre no poema “Estudos para uma bailadora andaluza”
temos em “A palavra seda” o seguinte fenômeno: “a linguagem que
cria o objeto poético é também a linguagem que examina a própria
possibilidade de criação.” (SECCHIN, 1999, p.143).
É possível absorver, a partir das comparações implícitas, a ideia de
que tanto a perfeição quanto o próprio poema são incabíveis naquilo

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que é definido como “possível de poema”. Dessa forma, se nem a
perfeição, nem o exercício poético ― extremos de uma linha
imaginária ― têm lugar de ser, o que resta é a imagem do nada, ou,
em outra medida, a poética, nos indica uma transmutação do ser, da
palavra, e, através de uma relação metonímica, com tudo aquilo que
se manifesta no poema. Ou seja, retomando a conexão com a primeira
estrofe, a atmosfera que envolve esse ser é capaz de transformar,
alterar, ressignificar tanto o concreto (as coisas, a palavra), como o
abstrato (as sensações, a seda) ― há aqui uma experiência de
singularização. Cada vez mais o eu-lírico confere ao seu objeto de
descrição maior força e poder.
Esse engenhoso ser metalinguístico, que tem como poder
transformador sua própria substância ― a palavra ― nos faz
questionar em qual lugar ela reside. Se é capaz de transfigurar o
concreto, é palpável? Se, por outro lado, revira essa seda-abstração, é
imaterial? A natureza arbitrária do signo, definição de Saussure, é o
que poderia permitir a alternância da paramentação da palavra. O fato
de podermos decidir, aleatoriamente, a relação entre significado e
significante é um aspecto que nos traz a sensação do abstrato, já que
regra tátil não há. Por outro lado, o enraizamento dos signos na
linguagem, que nos permite dar nome, cor, forma às abstrações do
pensamento parece fazer da palavra algo corpóreo, mas sua
corporalidade ocorre de outra forma: em sons, em ritmos, em criação
de imagem, em uma emulação do tátil. Dessa forma, talvez um
entrelugar pareça ser sua morada mais adequada.
Na terceira estrofe, é feita uma explanação de outra característica
desse ser “seda”, tecido vinculado à sensibilidade e à delicadeza
oriental; trata-se de um ser de linguagem que “desperta”. Este ser que
“não faz dormir” e nada pode ter de próximo com o sedante, “palavra
derivada da de seda”. É possível perceber a intenção do eu lírico, aqui,
de afastar o máximo possível essa pessoa da “seda”, ou da palavra
“seda” em questão. Tal oposição, no entanto, não é completa: essa
palavra delicada, paradoxalmente, seda. E, de outra forma,
explorando o possível trocadilho, ela impõe um movimento de “ceder”
ao que não se vê, ao que não se corporifica no poema. Vale ressaltar
que, até o momento, no poema, não foi feita nenhuma descrição clara
da seda que levasse embutido algum juízo de valor. Ou seja, o eu-lírico
aproxima e afasta sutilmente este ser da seda, sem que nos conte o
que, de fato, pensa sobre ele. Por outro lado, a palavra seda está

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presente no final da estrofe anterior e nesta (segunda e terceira
respectivamente), o que faz haver uma ressonância de sua presença.
Na quarta e na quinta estrofes, é como se todo o ambiente etéreo
construído por palavras-ouro e palavras-seda fosse bruscamente
interrompido, ou dissolvido. Demonstra-se nessas estrofes que essa
superfície de corpo não possui nada “como seda”. É como se essa
palavra, outra em relação às utilizadas nas estrofes anteriores,
perdesse sua capacidade de abstração, perdesse sua característica de
ouro e seda, ainda que permaneçam “como seda”. Isso se dá quando,
finalmente, o eu-lírico nos apresenta, com três adjetivos, (luxuosa,
falsa e acadêmica) sua visão sobre a seda. É como se, ao renomear e
recaracterizar a seda, trouxesse toda a sua descrição para a
concretude da terra, o que substitui a imagem volátil proposta até
aqui.
Não é possível admitir tal interpretação de forma explícita, mas a
maneira com a qual esses adjetivos são postos nos dá uma sensação
de um tom crítico e reflexivo. É possível inferir que esse tom esteja
presente, justamente por serem adjetivos que têm um valor
semântico oposto ao que o poeta pretenderia em sua poesia. Em
entrevista publicada pelo Tribuna do norte, Cabral afirma: “Eu não me
considero digno de fazer um poema falando de mim diretamente.
Toda experiência serve de material para um poema, mas essa
experiência vai aparecer no poema sob outra forma. Ninguém tem o
direito de se confessar em público.” (2011, não paginado).
A sua visão quanto à postura que o poeta deve assumir nos traz a
primeira oposição: o não se crer digno de fazer parte do conteúdo do
poema é o que constitui sua humildade ― e não luxo. Da mesma
forma, a sua rejeição à ideia de sistematizar, academicamente, uma
poesia composta de sucessivas confissões, é a sua verdade ― e não
falsidade.
Nesse ponto da análise, é interessante retomar o momento no
qual o eu-lírico compara seu poema à seda. Agora, sem mais mistérios
acerca do que ele entende por seda: quando há referência a ela, é
possível assumir uma relação metonímica entre a seda e o poema,
uma vez que, tomando a parte pelo todo, a crítica embutida na
descrição da seda é, também, indiretamente, direcionada ao próprio
poema. Apesar de, enquanto crítica, ser, obviamente, externa ao que
está escrito, ela faz emergir um tom metalinguístico, uma vez que faz
parte da tessitura daquilo a que se opõe ― o poema em si.

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Na sexta e na sétima estrofes, é ilustrado, de maneira geral, as
imagens do que, de maneira ambivalente, está e / ou não está
presente na carnadura da seda. Essa compleição dura, característica
da poesia cabralina, é tratada como possibilidade de existência nessa
palavra-seda-corpo que é o poema. Tal sobreposição de seda em
palavra e em corpo localiza todos esses entes numa espécie de corpo
zoomorfizado. Além do efeito da justaposição, há, novamente, o jogo
metalinguístico ― daquilo que está fora ou faz parte; o que fala do
outro ou fala de si ― nesta ambientação.
O que é proposto é uma caracterização animalesca, pouco polida
e bruta do ser. Nos versos 3, 4 e 5 da sétima estrofe, isso é
desenvolvido por meio de uma gradação. As estrofes 6, 7 e 8
constituem, sintaticamente, apenas um período. Aliada à gradação,
esse tipo de construção sintática, impede o leitor de respirar e provoca
uma tensão na leitura. Esse efeito, pode ser pretendido, justamente,
porque há, nesse momento, uma grande revelação a ser feita, uma
espécie de clímax do poema.
Neste ponto, é possível inferir que tal revelação seja própria do
autor em relação ao que pensa sobre sua poética, ou sua obra. Então,
esse ser, metalinguística e imageticamente visto aqui como palavra, é
seda, esse tecido que cria mundo, poemas, palavras. É como se ele
quisesse deixar claro, mas de maneira sutil, que tudo que se opõe à
seda é seda, não há como fugir. As imagens que criam tensões poéticas
entre palavra, palavra-seda e seda são, também, uma tensão entre
reflexões metalinguísticas e singularização, para retomarmos
Chklovski.
A última estrofe traz a comprovação de que o par de
palavras seda / sedante se relaciona com outros pares ou trios com a
mesma origem etimológica: animal / animalmente; cru / cruel /crueza.
As relações que se estabelecem são de origem etimológica e pelo fato
de serem palavras, coisa em si. E os dois últimos versos do poema
ensejam o encerramento desta interpretação: “Que sob a palavra
gasta / Persiste na coisa seda.” A palavra, também ela,
metalinguisticamente, é coisa. Essa coisa gasta se torna “coisa seda”.
O que seria isto? O objeto, tecido de seda? Ou é a palavra que se dá e
ao dar-se torna-se seda forte e delicada? Ainda: há uma possibilidade
de essa palavra desgastada não representar a tessitura do universo-
em-seda ― algo similar ao que João Alexandre Barbosa diz sobre outro
texto cabralino: “propõe a tensão entre a existência contemplativa do

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poeta e sua fixação ainda inatingível pela palavra, de onde resulta um
certo teor melancólico de que está impregnado” (BARBOSA, 2002,
p.251).
As tensões entre a palavra e a seda, o empírico e o metafísico, a
imagem e a ideia podem ser compreendidas, genericamente falando,
a partir daquilo que João Alexandre Barbosa coloca como “fratura
moderna entre expressão e composição.” (BARBOSA, 2002, p.253). Ou
ainda algo entre “a realidade e a auto referencialidade” (BARBOSA,
2002, p.263). Enfim, “Palavra seda” é construído de maneira
condizente com o que João Alexandre Barbosa, de novo, sintetiza os
poemas de Quaderna: “este lirismo entra sempre pela via que é a
característica maior do poeta, isto é, pela lucidez com que faz da
linguagem a própria imitação do objeto a ser nomeado” (BARBOSA,
2002, p.268).
Nessa emulação da realidade que se faz palavra, a secura.

Referências

BARBOSA, João Alexandre. “A lição de João Cabral”. In: Alguma


Crítica. Cotia: Ateliê Editorial, 2002.
CAMAROTTI, Gerson. “O meu último encontro com o poeta João
Cabral de Melo Neto”. In: Blog do Camarotti, 24 de outubro de 2015.
Disponível em <http://g1.globo.com/politica/blog/blog-do-
camarotti/post/o-meu-ultimo-encontro-com-o-poeta-joao-cabral-de-
melo-neto.html> Último acesso em: 21 de agosto de 2019.
CHALLUB, Samira. A metalinguagem. São Paulo: Ática, 2005.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Trad.
Vera da Costa e Silva et ali. 16 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2001.
CHKLOVSKI, Viktor. “A arte como procedimento”. In: Teoria da
literatura: formalistas russos. Sem indicação de tradutor. Porto
Alegre: Editora Globo, 1970.
MELO NETO, João Cabral de. “Entrevista”. In: Tribuna do Norte. Natal,
14 de março de 2011. Disponível em:
<http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/entrevista-joao-cabral-
de-melo-neto/175379>. Último acesso em: 07 de abril de 2020.
SECCHIN, Antonio Carlos. João Cabral. A poesia do menos e outros
ensaios cabralinos. Mogi das Cruzes: Topbooks Editora; Universidade
de Mogi das Cruzes, 1999.
MORAES NETO, Geneton. “João Cabral de Melo Neto. Uma aula do
poeta que combatia a ‘emoção fácil’ na poesia” (Entrevista). In:
Geneton.com – Jornal de um repórter, 10 de junho de 2007.

7faces • 72
Disponível em: <http://www.geneton.com.br/archives/000210.html>
Último acesso em: 12/09/2020.
SILVA, Nadja Maira Baltazar da; SILVINO, Zeneide Leite. “A
metapoesia em João Cabral de Melo Neto e em Joaquim Cardozo”.
In: Revista Diálogos, n.19, p.208-232, mar.-abr., 2018.

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POEMAS (1)

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Antonio Carlos Sobrinho
Salvador – Bahia

Doutor em Literatura e Cultura. Mestre em Estudo de Linguagens. Professor nos cursos de


Letras do Centro Universitário Jorge Amado, em Salvador, Bahia.

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diário I

John, eu não esqueço


a felicidade é uma arma quente

Belchior

hoje eu escrevi um poema político:


como rasura
e
como dança
sobre o corpo dócil da página branca,
aconteceu a palavra
alegria

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O que retorna

Ali, na curva do tempo,


resta um ontem
jamais ido.
Não é de adeus a sua boca de vazios.
É de caninos enfileirados e de fome,
muita e insaciável.
É de aspereza a sua língua
que, descarnada,
conjuga toda ausência.

A faca de teu nome,


lâmina de não-ditos,
sangra o silêncio,
este corpo de mim.
corte feito de lentidão e de agudeza
(desde o dentro
para o dentro retorna
em círculos)

Eu sei
não há sutura possível:
a tua presença me agulha sob as unhas dos dedos.

7faces • 80
um lugar de saúde

Como desprender
da parede
um fantasma para que levemente
se esfarele e não cesse de
esfarelar: poema.

Moisés Alves

certas vozes só agulham aqui,


neste ontem revindo do sem silêncio
de mim.

como um cão,
procuro lamber onde sangra
e faz pus.
mas,
à parte a língua tocar a pele,
não há cura
ou sequer alívio.

fantasmas são imunes à saliva


– eu já deveria saber.
fantasmas são imunes a tudo
– eu já deveria saber.

pouco importa.
como um cão,
roço com a língua onde sangra
e faz pus.

– a palavra é o meu apesar de tudo.

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Maíra Matos
Rio de Janeiro – RJ

Maíra Matos (1984) é poeta, psicóloga, artista, realizadora e roteirista formada pela Escola
de Cinema Darcy Ribeiro. Carioca, nascida e criada, atualmente mora no Méier. Realizou
diversos curtas metragens premiados, entre eles Casa do vô (2016) e A rua são as pessoas
(2016). Trabalhou durante alguns anos em projetos sociais e na saúde pública, no Rio. Sua
dissertação de mestrado, versa sobre feminilidade e masculinidade no Brasil
contemporâneo, e foi publicada, em 2014, no livro À deriva: juventude e masculinidades.

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telescópio

nunca consegui ver marte no céu


você me mostrava
todas as noites.
olha, agora
ele tá tão grande, tão perto
eu não via nada.
onde?
ali, vermelho.
limpava as lentes
esfregava os olhos:
nada.

você vai ficar linda


de óculos.
testei os seus,
eram imensos.
o mundo todo
desfocado.
o médico sentenciou:
ela tem a visão normal.

você frustrado
todas as noites,
olha ali,
perto de vênus.
resolvi fingir.
ah, agora, to vendo.
é incrível.
e imaginava
o planeta vermelho,
com uns pontinhos laranjas
e um mar verde-claro.
que lindo, falamos juntos.

M adora olhar o céu.


todas as noites
a gente ri dos planetas
e estrelas que inventamos.
comprei pra ela de natal
uma roupa de astronauta.

7faces • 85
a liberdade é azul

parte I: a barata

escovava os dentes
enquanto lia
o útero
pra você
em cima da cama
no tempo que
éramos nuvens

no almoço
daquele dia
você não disse que

eu não escutei
as baratas
que cresciam
por dentro
quando
olhava pra você

parte 2: polvo

fiquei por anos


acumulando os restos
nas ventosas
ao lado da boca

olhava seu corpo mole


e virava sombra
quando você me segurava
pelos braços

parte 3: arara

mas minha tinta é azul


como as penas

minha voz
quase extinta

a língua é
que me salva

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negra
úmida
quente.

abro as asas.
orgasmos.
múltiplos.

7faces • 87
o amor é uma pedra com pelos

doí
quando os pelos
dela nascem
em silencio
no meu útero
insetos morderam
o feto

dentro de mim
no sertão: sua virilha devora
a pedra do meu mar

é o cavo escuro do chão?


o amor?
é um jogo?

Lili engravidou?
de J?
o amor é mãe?
é porta?
é traça?

canto pra ela


dormir aninhada
o cabelo dela
o meu cabelo
J não ficou
pra ver se os poucos fios
seriam da cor
dos seus
engravidou T e M
na mesma semana

os cabelos dela
nos meus cabelos
a pedra era o mundo
e era isso.

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Marina Magalhães
Rio de Janeiro – RJ

Marina é pernambucana, mora no Rio de Janeiro e escreve poemas. Nas outras horas vagas,
é estudante de direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e atriz. Administra uma
conta no Instagram com seus versos e colagens autorais, o @projetoplumas.

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Best Brazilian Coffee Routes for you to try

Aos bons bebedores de café,


indicamos o belíssimo sul de Minas.
As estradas são fundidas a ferro
em pele de moças.
Lentamente, elas fraturam as costelas
ao escalarem ali montanhas
com cheiro de café coado.
E delas, o sangue em pasta
já preto e coagulado.
O corpo também está se desmontando,
aos cacos, em pó.
Nos bares de Pouso Alegre vão servir
uma mulher instantânea.
Basta adicionar-lhe água e não se esqueça
do açúcar
porque, garanto,
é amarga.
Tem sido servida nas ruas do Rio de Janeiro.
Bebida encorpada. Moagem grossa.
Tem muito corpo.
Torra médio clara, seja lá o que isso signifique.
É uma latina das boas,
servida em xicrinhas
de amores terrivelmente
espressos.

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Breno Almeida de Castro
Uberlândia – Minas Gerais

Breno Almeida de Castro, nascido a 21 de novembro de 1998 em Uberlândia, Minas Gerais.


Atualmente, cursa Licenciatura em Letras / Língua Portuguesa na Universidade Federal de
Uberlândia (UFU).

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Furdunço

a sexta-feira vem para provar que o anzol está posto e deliramos com a vontade de abocanhá-lo.
para um reles não-convertido, o mundo não é nada quando não satisfaz.
prisão àquele que já foi longe, longe até demais.
não limitado como um cordeiro ético, moral e justo.
admiro estes que abandonam a vida,
desdizem o próprio mundo que habitam, dão novo nome.

eu, que já estive dos dois lados


digo a ti
que como o camaleão, seremos parte do meio,
sobreviveremos a ele,
seremos, sem sentir nem mais uma vez sequer
o que fomos no passado.

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Penitência

Sonhamos por um tempo que a vida poderia ser fácil.


Todo esforço foi para alívio do inferno que todos vivenciamos.
No hospital, velhos e doentes ― amontoados de células que lutam para sobreviver...
Uma visão de Odisseu ao se encontrar com Sísifo no Tártaro.
A vida é nada mais do que isso:
pelejas.
Lutamos e lutaremos, até o fim, para continuar vivos
Como baratas que se debatem tentando fugir do tóxico esborrifado.

Embora a beleza exista, nela está a tragédia.

O drama de cada homem permanecerá,


Para a graça do divino espírito universal.

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Gusthavo Gonçalves Roxo
Rio de Janeiro – RJ

Nasceu em 1996 no Rio de Janeiro. É bacharel em Museologia pela Universidade Federal do


Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Publicou seu primeiro livro, Chá de Girassóis, em 2019 de
forma independente.

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Esquina

O gosto de sangue
preenche minha boca
os dentes que um dia foram novos
que causaram tanta dor ao nascer
se despedem devagar da minha boca

Pelo menos em meus sonhos


a cada morte um cai
já não sinto mais as velhas obturações
no mundo que um dia vou retornar

a incerteza bate em minha face


a realidade grita em meu ouvido
escuto um constante zumbido
Será que eu não quero perceber?
Será que esse é o sonho de uma outra vida?

O sabor amargo me faz acreditar no agora


A tristeza nos olhos de quem me soca
é clara a decepção
Não é possível que seja mentira
Tudo que fiz, para chegar aqui

O dente que cai


na esquina da rua uruguai
me faz lembrar que um dia já me importei
Com as coisas que vivem por aqui

O céu parece real


os gritos de susto também
nunca antes deitei nessa calçada
As pedras portuguesas lembram as rochas da praia
confortavelmente inusitadas
Será que agora vou sonhar?
Acredito que talvez
Finalmente possa voltar a sentir.

7faces • 99
7faces • 100
Julieta Simone
Rio de Janeiro – RJ

Escritora iniciante. Doutoranda em Artes Visuais na Universidade de São Paulo. Começa a


escrever poemas em 2019.

7faces • 101
7faces • 102
Almoço da solidão

Sinto frio quando almoço sozinha


O restaurante mais parece inverno
A comida que não alcança a boca
Cai no prato, distraída
O som agudo dos talheres entorna
Minha comida esfria

7faces • 103
Um dia

Comecei a escrever poesia


Esse é o terceiro, como vês
As causas foram simples
Vago e enorme desamor
Fome absoluta de tudo
Inconstante temor
Brasil, desilusão
Apenas.

Esse é o quarto
Agora peguei o jeito

7faces • 104
Subliminar

Palavra encanto
Tudo nela cabe, subentendido
Esconder o.
Subverter a.
Bom senso do ressentido.
Lamento do limiar.

7faces • 105
Agarro

Nem tanto
Afiada
Nem tanto
Pronta
Sigo em tentativas
Persigo as atrativas
Nem tanto
Fartas
Nem tanto
Certas
Me apego às erradas
As chances me escapam
Escorrego.
O que atiça,
Agarro

7faces • 106

Não havia mais palmeiras quando estive lá


Não vi onça pintada e não ouvi o sabiá
Nem as cobras corais
E as não corais

Se um dia já teve tatu, tamanduá, sagui


é coisa finda, de antigamente

Disseram que um dia existiu


Uma tal de maniçoba

7faces • 107
Ao cacique Emyra Wajâpi,
assassinado em 24 de julho de 2019
por garimpeiros no Amapá

Noite na floresta
Nós dois na rede
Nos embalando
Ouço tua voz
O mais belo canto
De todos os cantos do mundo
Teus olhos me fitam
São sábios os teus olhos
Profundos
Tua pele escura
De carne dura e áspera
Em urucum
Você esfrega o dedo no meu rosto
Me dá conselhos
Os melhores conselhos do mundo
De lá pra cá virei sua filha
Te dei meu filho pra você encantar
Te preparei um peixe
O meu é frito
Você sorri
Teus assassinos não conhecem o teu sorriso
Teu último suspiro respira em mim
De lá pra cá me vingarei
Dos nossos piores inimigos
Meu canto é o teu duplo
Minha voz, o teu grito
Meu corpo, tua rede
A cada dia um inimigo
Um por um
Cairá

7faces • 108
Lucas Grosso
São Paulo – SP

Lucas Grosso é autor do livro de poemas Nada (editora Patuá, 2019); já publicou nas revistas
Úrsula, Subversa, 7faces, Zunái e Mallarmargens (contribuindo com as duas primeiras com
maior periodicidade). Mantém o blog Lucas Grosso, destruidor de cenários.

7faces • 109
7faces • 110
Poema parisiense número 1

é por uma janela inopinada


que nós vemos
três meninas francesas
que na segurança de uma cozinha
na Paris suburbana
fogem de ondas de calor:
o calor atípico daquele verão
e o calor previsto
o de uma vida adulta
em iniciação

é por uma janela inopinada


que nós vemos
três meninas francesas
que na segurança de uma cozinha
brincam
brincam no limbo etário
ora muito jovens para
tanta circunspecção
ora muito velhas para
tanta reinação

no vazio de uma tarde de férias


no vazio de almoço leve
no vazio do dançar de meias
no vazio de um beijo reles
sem consistência profunda
as brincadeiras das parisienses
de férias de sua intendência
da vida adulta

e por uma janela inopinada


as três meninas francesas
vaporosas ficarão
até que acabem as férias
até que acabe a infância
até que surjam as nuvens
a cobrir intransigentes
o azul dessa levidão

7faces • 111
Meu editor

meu primeiro editor é


meu astigmatismo
meu crítico censor que
confunde letras e riscos
meu analista que se afasta
da semântica e pensa apenas
em como berrar os istmos
de um mundo em afluviação

crítico iníquo
esteta inócuo
meu astigmatismo
é uma meditação

se me faltar a sede
se me faltar a política
se me faltar o fim
se me faltar o amor
meu astigmatismo vai garantir
que exista a parede
que exista a fita
que exista o ror
que exista o clarim
que o ponto-cego do escólio
vai unir

7faces • 112
Linguiça cultural

na praça do correio
Homero abriu sua banca
vende fones de ouvido
balas de eucalipto
discos de funk jônicos
as armas e barões
e DVDs piratas de patos esganiçados

Calíope espera o ônibus


depois de um banho de loja com Nanã
bateram pernas em outlets e brechós
e anteciparam as tendências
para o próximo verão

Camões com as orelhas do Mickey


toma sorvete com Cali e Zé Pelintra
enquanto jogam truco
numa praça de alimentação

Buda olhou o Qorpo Santo no chão


fez para Donne mais um Dry Martini
olhou no aplicativo se ia chover
mas não fechou sua janela
de frente pro cine
― hoje terá o Adam Sandler
na seção

vamos celebrar a festa das nações


celebrar a legião urbana de
quadros azuis de Mark Rothko
a feira de orgânicos das vaidades
o avanço técnico dos sonetos
e as formigas lygia-fagundenses em rebeliões
vamos celebrar a dieta
vamos acelerar na poética
vamos cair por terras despedaçadas
com as cortinas de ferros-velhos
pelas praias cannenses
até que não sobre tudo que
faça esquecermos que um dia
seremos nada

7faces • 113
7faces • 114
Vinicius Comoti
São Paulo – SP

Vinicius Comoti é autor dos livros Lanzurapa (2016), Leite com manga (2018), O Futum das
Birelas (2018) e Rabicó de Puto (2019).

7faces • 115
7faces • 116
baco se esfola
sobre o arame farpado
no fogaréu dos gatos
que trepam na epístola da escuridão

rabo preso

conchavo da alucinação

7faces • 117
o postal com a imagem de um poço
um chaveiro esquecido
ao lado de um isqueiro branco encardido
a pulseirinha de couro e brincos de pena
o doce do perfume vagando no bolso da jaqueta
meias molhadas de cerveja
o detalhe da mordida na nuca e o trago das pintas
que formam triângulos
selando uma escuridão entorpecida
uma descida pela vereda truncada pelas folhagens
a periferia de um recanto disfarçado de cosmopolita
os cadarços que parecem uma lasca de lama

7faces • 118
uma cigarra esturricada
dentro da carcaça da televisão
os espelhos se confrontam
no fluxo de camelôs fugindo
da perseguição dos vampiros
que beliscam os desenhos rupestres
os desencontros expressionistas
aquela que um dia amou apenas um condenado
mutilado pelas nuvens e os corais sem métrica
sabendo da garoa das cortinas mantidas fechadas
por esconderem o palco ensebado da mentira
com a sua saliva e os pacotes de bolacha moída

pala
dos antepassados

a mesinha cheia de farelo de pão

7faces • 119
7faces • 120
Paula Peregrina
Rio de Janeiro – RJ

É graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, mestranda


em artes visuais, na linha de pesquisa história e crítica de arte no PPGAV-UFRJ, autora do
livro Terras Secas (Editora Pandorga, 2017), ghost-writer, assessora acadêmica e artista-
escritora nas horas vagas.

7faces • 121
7faces • 122
Geração 80

Somo burgueses falidos e marginais


no caos burocrático da democracia
sonhamos viver utópica liberdade
pulamos corda com as correntes do sistema
alimentamo-nos da cópia de originais
consumimos arte e cevada com supremacia
cortamos laços dos nós embaraçados da verdade
apreciamos a invisibilidade de nossa postura
amena
― E se algum dia tivéssemos coragem a mais
alimentássemos a brasa fria da nossa rebeldia
poderia alguma razão descabida convencer a metade
de que lutar por um sonho não vale a pena?
Até lá - bebemos discursos colossais
limpamo-nos com os trapos da nossa covardia
flertamos imberbes e sedutores com nossa vaidade
pulamos fora levando na coleira nossa ancestralidade

7faces • 123
Notívagos

A manhã mal dormida da cidade


Desperta latente nunca adormecida

Vidros espelhados tons de céu cintilam


Ocre nascente do cinza ― cores mortas-vivas
Entre um sinal e outro os pés vacilam
Vívidos passos entre pombos e ratos

Há quem vá no rastro do dia


Há quem volte no seu rastro

7faces • 124
Conchas e contas de Maria

Movidas de seu lugar elas agonizam vida

Como velha rezando o terço balbuciante


Consternada ela passa lentamente as contas

Ressecadas se vão as cascas das conchas

Na casa escura passos lentos vacilantes


Angulosos farrapos espirraram sua curvatura
Hesitante entre lembranças ― orações e arrepios

Os cascos côncavos esmaltados perderam o brilho

Ante o barulho de outro se aquieta em um canto

As guardiãs das pérolas perderam o encanto

A velha termina a oração com suspiro e amém

Privadas da ressaca suspiram as conchas também

7faces • 125
Foto: Elpidio Lins Suassuna

7faces • 126
7faces • 127
João Cabral entre vulcões
por Iván Carvajal

Em alguma ocasião, o escritor Javier Vásconez me surpreendeu ao


contar-me que o poeta, um homem magro e silencioso, costumava
visitar sua livraria El Cronopio que funcionava até o final dos anos 70
no bairro La Mariscal. Terá sido em meados de 1994, quando
soubemos que tinha sido concedido o Prêmio Rainha Sofia de Poesia
Ibero-americana a João Cabral de Melo Neto, o grande poeta que foi
Embaixador do Brasil no Equador entre 1979 e 1981. Vásconez se
lembrava que aquele senhor austero chegava à livraria e, ainda que
lhe fosse oferecida uma confortável poltrona que ficava num canto,
preferia se sentar num banco de madeira. Folheava alguns livros, em
silêncio. Poucos, muito poucos sabiam, então, que em Quito vivia um
dos maiores poetas da língua portuguesa e da América Latina. Um
poeta que, além do mais, como tinha assinalado Ángel Crespo e Pilar
Gómez Bedate um par de décadas antes, era “o escritor brasileiro
contemporâneo mais diretamente relacionado com a vida e a
literatura espanhola”1, que conhecia profundamente a tradição
poética que ia de Mío Cid e Gonzalo de Berceo até Jorge Guillén e seus
contemporâneos. O que, somado à sua grande poesia, justificava
plenamente que se lhe concedesse o referido Prêmio Rainha Sofia.
Essa imagem de sobriedade e extrema concentração do homem
que se sentava no banco da livraria nos mostra o espírito do poeta de
Viver nos Andes, os dez poemas escritos durante sua estadia no
Equador que aparecem publicados no seu livro Agrestes (1985). No
conjunto de poemas que Cabral dedicou à nossa paisagem andina
transparecem alguns componentes centrais da sua poética. O
primeiro, sem dúvida, é a preocupação construtiva do texto poético, o

7faces • 128
equilíbrio formal, a concretização das imagens, a ausência de
elementos ornamentais. A sobriedade de sua poesia tem relação com
uma rara sabedoria, com uma capacidade de unir em umas quantas
linhas a interiorização da paisagem, a meditação sobre a circunstância
humana vinculada à geografia e à história, e uma insólita criação de
sentido surgida de uma economia verbal alheia a qualquer eloquência.
Cabral repudiava tanto a oratória como o barroquismo.
“Duas palavras podem definir o conjunto da poesia de João Cabral
de Melo Neto: coerência e densidade”, assinala João Almino no início
do seu luminoso ensaio “O domador de sonhos e outras imagens da
pedra” que dedica ao poeta2. Estes dois atributos, coerência e
densidade, são o resultado da busca de uma poética peculiar que
Almino denomina “construtivista”. Esta característica da poética de
Cabral, sem dúvida, está vinculada à sua atenta percepção de
determinadas tendências vanguardistas das artes plásticas e da
arquitetura do século XX. Cabral costumava afirmar que Le Corbusier
havia exercido maior influência nele do que qualquer poeta, crítico ou
filósofo; com tal asseveração certamente queria destacar a
importância que a “arquitetura” do poema tinha para ele. Tal poética
outorga privilégio à construção do poema antes que à expressão da
subjetividade do poeta. João Cabral, em uma entrevista à revista
Cadernos de Literatura Brasileira (1996), manifestou que nunca sentiu
uma “necessidade interior” de expressar-se, razão pela qual a escritura
dos poemas lhe exigia muito trabalho3. A sua poesia não tem nada de
confessional, de exposição de emoções pessoais. Isto não quer dizer,
no entanto, que nos poemas de Cabral não exista uma potente
imaginação combinada com uma inteligência inquisitiva sobre a
condição humana. Existe neles um singular olhar da terra, da
paisagem, do deserto, dos rios ou das montanhas, e com eles, dos seus
habitantes que, mais além da aparente secura da expressão poética,
provocam um constante desafio ao leitor, obrigando-o a deter-se em
cada verso, na inesperada repetição de vocábulos ou a invenção de
termos, ou nas notas de humor ou ironia.
Em qualquer paisagem que se construa nos poemas de João
Cabral haverá uma reminiscência ou uma referência, implícita ou
explícita, às do Nordeste brasileiro, à caatinga ou ao sertão, à sua
vegetação, sua aridez ou seus rios. A voz poética de João Cabral parece
surgir dessas terras. Um poema, “Fazer o seco, fazer o úmido” de A

7faces • 129
educação pela pedra, poderia nos servir para ilustrar este matiz da sua
poética:

A gente de uma capital entre mangues,


gente de pavio e de alma encharcada,
se acolhe sob uma música tão resseca
que vai ao timbre de punhal, navalha.
[…]

A gente de uma Caatinga entre secas,


entre datas de seca e seca entre datas,
se acolhe sob uma música tão líquida
que bem poderia executar-se com água.

Podemos imaginar o poeta quando chega a Quito, 2850 metros


sobre o nível do mar. Antes, durante o longo período que viveu na
Europa cumprindo missões diplomáticas na Espanha, Londres ou
Genebra, terá contemplado cordilheiras nevadas e, possivelmente,
terá atravessado algumas delas. Mas é diferente viver nas alturas,
onde a neve começa sobre os 4.000 metros. Quando Cabral chega a
Quito, quando passa por Riobamba em direção ao Chimborazo já tem
60 anos. Quanto lhe terá custado respirar!
Os poemas de Viver nos Andes são apresentados como uma
viagem por um trecho da cordilheira. A partir de uma janela em Quito
o poeta contempla o Cotopaxi, um “perfeito cone de neve” que por si
só, no quadrilátero de vidro, poderia ser tomado como modelo de
geometria e construtivismo. O poeta ascende até o Chimborazo, pelo
menos até os páramos do colosso. Os poemas são sequências de uma
trajetória pelo “Corredor dos Vulcões”, como os manuais de geografia
e os guias de turismo costumavam denominar as duas ramificações
paralelas da Cordilheira dos Andes que atravessam o Equador. Essa
paisagem andina se apresenta em imagens muito concretas e concisas;
basta indicar as duas grandes montanhas, o Chimborazo e o Cotopaxi,
para convocar o silêncio dos vulcões, que ― por agora ― renunciaram
à oratória, que “aprenderam a ser sem gritar-se”. Mas a imponente
geografia da cordilheira contrasta com o habitante do páramo de
altura, o “índio formiga”, e com o animal que ― depois da conquista
espanhola ― se tornou emblemático dos pajonales, a ovelha.

7faces • 130
A concisão da imagem “índio formiga” tem que ver com as
condições sociais que se impuseram aos índios andinos como
consequência da conquista ibérica, condições que continuaram com a
república e que seguiam existindo, apesar da modernização do país,
quando Cabral esteve no Equador, e que em parte continuam ainda
hoje: pobreza, humilhação, marginalização, submissão à dureza de
trabalhos mal remunerados. A formiga ― o inseto ― torna-se símbolo
do trabalhador submetido a um tipo de servidão; é ao mesmo tempo
a imagem da redução ao mínimo e paradigma do esforço. Custa viver
e mais ainda trabalhar nas alturas, onde falta o ar, onde a atmosfera é
rarefeita. Como pesa o colosso, a montanha, sobre o índio que habita
nas alturas? O poeta, que sente a angústia da falta de oxigênio, o
imagina correndo sempre em busca do ar para levar no bolso.
A asfixia por falta de ar nas alturas se assemelha ao afogamento
no mar, a boca angustiada de quem sofre esta falta de ar é a mesma.
“Era do Recife, este afogado”, diz o poema. O verso fala de quem? Por
acaso, do poeta ao que lhe falta o ar nas alturas do Chimborazo ou de
outro afogado que lhe vem à lembrança? O laço entre os “afogados
submarinos” e os “sobreandinos” estabelece a conexão entre os Andes
e o Nordeste brasileiro, entre a massa imponente da montanha e a
borda do oceano, entre a neve e os depósitos de açúcar.
É costume considerar que existe uma faceta política na poesia de
João Cabral relacionada justamente com as imagens geográficas, com
as paisagens, com a pedra ― não é em vão que seu livro mais
importante, talvez, se chame A educação pela pedra. No caso de Viver
nos Andes esta política é evidente, não somente pela menção ao “índio
formiga”, mas pela caracterização dos vulcões:

De cada lado do “Corredor”


estão deitados; morta é a oração,
é o vociferar, o deslavar-se;
hoje não são oradores, não.

Hoje são mansas fotografias,


aprenderam a ser sem berrar-se;
o tempo ensinou-lhes o silêncio.

Este poema, aliás, começa com dois versos: “Dá-se que um homem
pouco vulcânico / habita o ‘Corredor dos Vulcões’”. Este “homem

7faces • 131
pouco vulcânico” é, logicamente, o poeta João Cabral, mas poderia ser
também o silencioso índio que habita nos páramos de altura. Mas, não
é um “orador”, não é um demagogo, não grita. O Chimborazo, como
sabemos, é um vulcão extinto. O Cotopaxi, ao contrário, nos ameaça
permanentemente com uma possível erupção que seria catastrófica,
como já foram algumas no passado, registradas desde o século XVI ao
XIX. Mais recentemente, em 2015, o vulcão voltou a entrar em
atividade. Além do Cotopaxi, o Tungurahua e o Reventador
erupcionaram nos últimos anos. Mais ao sul, se contemplam as
fumarolas do Sangay. Isto é, ainda existem vulcões que vociferam, que
não são somente mansas fotografias. Mas o maior de todos, o
imponente, o Chimborazo, parece surdo e mudo.
Justamente, o Chimborazo é o que provém de outra linha desta
faceta “política” de Viver nos Andes, pois os poemas de João Cabral
dialogam com Meu delírio sobre o Chimborazo de Simon Bolívar
(1822), que pode ser considerado um poema em prosa. Em dois
poemas o Libertador é citado. Sobre o primeiro deles, “Um sono sem
frestas”, se poderia interpretar que João Cabral alude ao poema de
Bolívar pela associação que surge entre o sono provocado pela
anestesia, a sonolência que ocasiona a falta de ar nas alturas e o
delírio. Mas junto a esta associação tem outra que estabelece certa
oposição a ela, pois o poema começa com a imagem da terra morta,
dos sonhos dos mortos na clausura das suas celas. O poema de João
Cabral conclui que esse sonho compacto perdeu as chaves do discurso
de Bolívar. Com isso, a referência a Bolívar se desloca de Meu delírio
sobre o Chimborazo a outros discursos ou ensaios seus, talvez o
Discurso de Angostura (1819) ou a Carta da Jamaica (1815), nos quais
o Libertador expõe sua ideia de uma unidade ou federação hispano-
americana que seria o fundamento de uma sólida democracia. Cabe
anotar, no entanto, que enquanto para João Cabral o Chimborazo
impõe silêncio, no Delírio de Bolívar ― que vem também desde as
terras baixas do (rio) Orinoco e ascende ao nevado seguindo os rastros
de La Condamine e Humboldt ― é a voz do Infinito e do Tempo que se
dirige ao herói para assinalar seu destino: “diga a verdade aos
homens”. No último poema de Viver nos Andes, o Chimborazo se
transforma em palanque. Impõe silêncio, nem sequer o vento pode
cantar em seus órgãos, mas quem sabe esse profundo silêncio
preserve a montanha como altíssima tribuna reservada pelo tempo
“para um Bolívar que condene / a quem fecha a América ao fermento”.

7faces • 132
Mas a atmosfera rarefeita, a geografia surda e muda dos Andes
equatoriais se torna caixa de ressonância da sóbria poesia de João
Cabral de Melo Neto.
Notas
1 CRESPO, Ángel; GÓMEZ BEDATE, Pilar. “Realidad y forma en la poesía

de João Cabral de Melo Neto”. In: Revista de Cultura Brasileña. Madrid,


n.8, marzo de 1964. Citação, p.5.

2 ALMINO, João. “El domador de sueños y otras imágenes de la piedra.


La construcción de la poética de João Cabral de Melo Neto desde Pedra
do sono hasta Educação pela pedra”, disponível em Tendencias de la
literatura breasileña. Escritos en contrapunto (Buenos Aires: Leviatán,
2010, p.184-221).

3 Cadernos de Literatura Brasileira (Rio de Janeiro: Instituto Moreira


Salles, março de 1996, n.1). Esta edição dedicada a João Cabral de
Melo Neto junta a referida entrevista, tábua biográfica, reproduz
alguns textos seus, fotografias e depoimentos e artigos como “A lição
de João Cabral”, de João Alexandre Barbosa (p.62-105).

* Este texto foi publicado em João Cabral de Melo Neto. Vivir en los
Andes, Edição comemorativa do centenário de seu nascimento
publicada pela Embaixada do Brasil em Quito (2020, p.25-31). A
tradução para o português é de Alfonso Montúfar e Sonia Paredes.
Este texto foi cedido pelo autor para esta edição.

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O embate entre a vida e a morte na
poética de João Cabral
por Rosanne Bezerra de Araújo e Wallyson Rodrigues de Souza

O poeta é como o toureiro. Precisa viver medindo forças


com a morte ou não vive.1

João Cabral de Melo Neto

O presente ensaio aborda a temática taurina na obra de João


Cabral de Melo Neto (1920-1999). Dentre os poemas que trazem o
tema, nos deteremos no “Touro andaluz” inserido no seu último livro,
Andando Sevilha. Antes de abordarmos o poema, iremos
contextualizar sua obra, que evidencia a singularidade do escritor na
poesia brasileira. Para tanto, percorreremos um breve trajeto com
uma reflexão sobre a sua poética. Como sabemos, sua escrita preza
pela racionalidade somada à sensibilidade e humanidade na busca
constante por uma poesia simétrica, com versos obedecendo a exata
medida da edificação da poética cabralina.
É no contexto da terceira geração modernista, conhecida como
Geração de 45, que se destaca a figura do poeta pernambucano.
Apesar do enquadramento do escritor junto aos autores que
compõem tal fase, a obra de João Cabral apresenta diferenças
consideráveis da escrita dos seus contemporâneos. Enquanto estes se
propunham a abdicar o experimentalismo de 1922 e revisitar as
formas poéticas tradicionais, como o soneto, João Cabral inaugurava
uma poesia provida de rigor formal e, diferente daqueles, rompe com
a tradição poética brasileira sentimentalista, lírica e retórica. Tanto o

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rigor formal como o regionalismo dos seus versos reverberam seu
conteúdo, a realidade brasileira dos menos afortunados.
Grande parte dos estudiosos de sua obra tendem a apresentar
uma resistência em enquadrá-lo na Geração de 45. A associação
parece estar mais relacionada ao caráter cronológico ― isto é, ao fato
de Cabral ter publicado, por exemplo, sua primeira obra, Pedra do
Sono, em 1942 ― do que propriamente aos fundamentos ideológicos
e estéticos do seu fazer poético. De um modo geral, podemos inferir
que tentar rotular sua obra, seja como fixada na Geração de 45, seja
como concreta ou social, é uma tarefa inadequada que tende a reduzir
o estilo poético desenvolvido pelo autor. Tentar encaixá-lo em
categorias limitaria seu alcance literário.
Sua obra é usualmente dividida em Duas águas. A primeira está
relacionada à concepção poética, isto é, ao racionalismo vocabular e à
regularização engenhosa da forma ― daí o reconhecimento do autor
como “poeta engenheiro”. Já a segunda, compreende os problemas
sociais da realidade brasileira, sobretudo a nordestina, daqueles que
vivem à margem da sociedade, além de abordar temas mais subjetivos
como a memória. Apesar da divisão, é importante destacar que as
duas partes não são heterogêneas uma à outra, mas se integram,
formando o estilo poético cabralino2.
Destacamos o último trabalho do autor, dividido em dois volumes:
Sevilha andando e Andando Sevilha (1989), os quais foram escritos
durante o período em que João Cabral viveu na Espanha como
diplomata. Essas obras remontam, de forma mais acentuada, a
influência espanhola sobre a sua obra. Conforme aponta Salgueiro
(2007, p.1), os dois últimos livros do poeta são o ponto alto dessa
representação cultural, desde a referência a pintores, como Picasso e
Miró, a escritores, como Quevedo e Jorge Guillén. O pesquisador
defende ainda que “Cabral se servirá de Sevilha, como um cavalheiro
corteja e seduz uma dama. Para isso, buscará nela traduzir-se,
traçando em seus octossílabos a cultura de um paraíso feminino,
através da trindade mulher-língua-cidade” (SALGUEIRO, 2007, p.2).
A ideia de uma poesia que bebe de águas regionais e estrangeiras,
nos fornece uma pista fundamental em relação à percepção do
trabalho de João Cabral: ele não se restringe ao regionalismo, mas se
universaliza. Os espaços representados podem ser compreendidos
como figuras alegóricas, como bem observa Bertussi (2009, p.70), em
relação à representação do nordeste brasileiro:

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uma alegoria de um sistema injusto, em que a seca é,
muito mais do que um fenômeno climático, uma forma
política e desumana de sociedade, que tira da vida tudo o
que ela tem de vitalidade para ser um espaço sempre
aberto à “indesejada das gentes”, a morte que está
ameaçadoramente presente, ou um pretexto para falar da
existência.

O ofício de diplomata garantiu ao escritor a convivência direta


com diferentes culturas e essa interação se refletiu na sua literatura.
Em suma, se por um lado, a sua obra se apropria do conteúdo
regionalista, por outro, ela flerta com culturas exteriores, como é o
caso da Espanha. O importante é que ― conforme aponta a citação de
Bertussi ―, o estilo poético do autor acolhe o regionalismo, mas
também se universaliza tematicamente.
De fato, a poética de João Cabral se expande em diversos temas.
De uma perspectiva, o tecido literário do escritor se nutre da
concretude, do ceticismo, da sensibilidade da razão; de outra, temos
o perfil cabralino voltado para a realidade social, a memória, a solidão,
a linha tênue que separa a vida da morte ou, ainda, aspectos da
(des)conhecida metafísica. A angústia, a incerteza estão presentes na
segunda água cabralina, como por exemplo, no poema “História de
pontes”, no qual um transeunte solitário caminha de madrugada por
uma ponte de Recife, entregue à solidão absoluta.
São muitos os poemas que poderiam ser analisados neste ensaio,
desde o seu conhecido auto natalino, Morte e vida severina, até os
poemas menos comentados. Da primeira obra, Pedra do sono, à
última, Andando Sevilha, invadimos e somos invadidos pelos versos de
um poeta que trabalha o dentro e o fora, percorrendo várias
paisagens, entrelaçando o passado e o presente no caminhar de sua
poesia. A consagração do instante poético se concretiza no percurso
de um rio, no vento do canavial, na ondulação do mar.
Enfim, o poeta abarca as coisas a sua volta, trabalhando cada
imagem em detalhes. Sua poesia de tão densa fixa-se em nosso ser ―
hipnotiza-nos, recorrendo à imagem sugerida pelos versos de “Outro
rio: o Ebro”, de Paisagens com figuras: “Entre vilas desmaiadas /
(hipnose de sol e azul)”. A satisfação em pronunciarmos des-mai-a-
das, diante da cor azul da pele do céu que leva o ponto amarelo

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brilhante, o sol, como quem leva um sinal no corpo, deixa-nos
rendidos, como ocorre com as vilas que, diante de tais cores, perdem
as suas, e, acinzentadas, desmaiam. Tal hipnose poética deve-se,
certamente, ao caráter popular da métrica do autor ao privilegiar
versos com sete sílabas, já que sua métrica favorita era a redondilha
maior.
Vemos a imagem, além da experiência do tempo, ser
autenticamente a base do poema cabralino. No primeiro verso a
seguir, de “O sol no Senegal”, poema de Museu de tudo, o pronome
“aquilo” torna o mar um tanto insignificante na presença da imagem
do sol que salta, rompendo a manhã:

O mar é aquilo de onde


se vê o sol saltar

E ao fim do dia, o pôr-do-sol,

não salta como nasce:


se desmancha no mar.

Nesses breves versos que trazem a figura do sol (no amanhecer e


no entardecer), o leitor, mesmo desconhecendo a estética cabralina,
consegue perceber o trabalho do poeta com a imagem. Outra imagem
cara ao escritor é a do rio e o que habita nas suas margens, deixando
evidente aqueles que vivem à margem em meio à paisagem de seca
do nordeste brasileiro. O monólogo d’ O rio passa a diálogo em Morte
e vida severina. No auto natalino, o poeta “tenta uma ‘resposta’: a
miséria é um mecanismo que devora a vida, mas esta enfim subsiste,
embora o poeta reconheça” (LEITE, 1966, p.81): “É difícil defender / só
com palavras a vida” (O rio).
Mesmo apresentando a temática social, a palavra cabralina não
deixa de apresentar o controle intelectual da estrutura do poema, uma
estrutura antifragmentária do texto e da realidade. Para o poeta, a
palavra só existe com aquilo que ela significa. Realidade e texto
interagem continuamente na construção da linguagem poética.
Como já mencionado neste presente ensaio, a carreira de João
Cabral como diplomata resultou em anos de experiência na Espanha,
onde o poeta teve a oportunidade de conhecer escritores e pintores.

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Em especial, foi influenciado pela poesia de Joan Brossa, poeta catalão,
e pela pintura de Joan Miró.
Comprometido com a arte intelectual e simétrica, Cabral foi
cativado especialmente pela estética de Joan Miró, cuja arte foi
decisiva para a feitura de Psicologia da composição e O cão sem
plumas. Por meio do artista espanhol, ele conseguiu fortalecer o
aspecto visual e arquitetônico de sua poesia.
Cientes da amplitude de temas na sua poesia, passemos para a
última obra do poeta, onde encontraremos poemas de temática
taurina, a exemplo de “Touro Andaluz”, objeto de análise deste
estudo. Entremos, sem mais delongas, no livro Andando Sevilha.
Composto de trinta e seis poemas, Andando Sevilha traz a cultura
espanhola. O poeta nutria grande admiração pela cidade (Sevilha), o
que o levou a criar o neologismo “sevilhizar”, transformando o nome
da cidade em verbo cuja ação seria a de “civilizar” o mundo, como
percebemos no trocadilho. A admiração pela cidade é revelada na
descrição das procissões, de ruas, praças e bairros, da dança flamenca,
das corridas de touro com seus famosos toureiros, da mulher sevilhana
e assim por diante. Sevilha é descrita como uma cidade feminina que
acolhe o viajante. A cidade é retratada como “o aconchego de
mulher”, onde mulher e cidade se amalgamam em uma só,
constituindo o ser sevilhano.
Como afirma Antonio Carlos Secchin3, o poeta estabelece
analogias entre os objetos, trabalhando-os no espaço do poema, no
intuito de concretizar a forma da imagem através da tessitura do
poema. Assim, os símbolos (mulher e cidade) falam a mesma
linguagem. Essa imitação do objeto tem continuidade em outros
poemas cabralinos, a exemplo de “A imitação da água”, que traz a
imagem resultante da comparação entre os símbolos mulher e onda.
Além da mulher-cidade (Sevilha), temos os símiles: mulher-casa,
mulher-fruta, mulher-onda, mulher-bailadora, provando a inesgotável
imitação da imagem do objeto na construção cabralina.
Mas não é sobre a mulher sevilhana que vamos dedicar a presente
análise, e sim à temática das corridas de toros. Desde o seu primeiro
livro, O engenheiro, João Cabral exalta a luz, a claridade do sol, a
construção de uma poesia racional, solar. O sol do meio-dia d’O
engenheiro reaparece nas últimas obras, no verão sevilhano, com as
corridas de toros. Para compor poemas sobre as touradas, o escritor
estudou a arte da tauromaquia e o seu vocabulário particular (pelo

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menos vinte termos da arte de tourear tais como corral, palcos,
tendidos, lidiar, ruedo, matador, capote de paseo, cita etc., constituem
o vocabulário cabralino). Seguramente, o conhecimento teórico o
auxiliou na construção de imagens poéticas. Afinal, o poeta tinha que
ser sabedor da cultura para transpô-la nos seus versos. Desse modo,
Cabral descreve tanto o espaço (as praças de touros) onde se passam
as touradas, como os personagens que atuam no espetáculo (o
homem e o animal). Para uma melhor compreensão da atração do
poeta pelas corridas de touros, iniciemos esta parte com a afirmação
de José Castello sobre o fato de Cabral não se limitar a ter amizade
somente com artistas e intelectuais:

Quando tem tempo livre, Cabral vai para as arquibancadas


da praça de touros e se mistura com a multidão. Assiste às
corridas, empolgado, mas se diverte mais ainda depois que
elas terminam e se refugia então no pequeno Bar do Pepe,
vizinho à praça, onde os toureiros bebem antes de voltar
para suas cidades. (CASTELLO, 1996, p.95).

Era justamente em oportunidades como a descrita acima que o


poeta ouvia as conversas de bar e a narração de histórias sobre
toureiros famosos, como por exemplo, o episódio da morte de
Manolete, vítima de uma cornada fatal. Ao ouvir os casos, o poeta
transportava-os para a poesia. Um de seus poemas, em Andando
Sevilha, homenageia Manolete ― o poema “Manolo González”:

Perguntavam muitos: “Porque tu


toureias no extremo do ser,

no limite entre a vida e a morte,


como faz o toureiro pobre?

Não podes fingir o perigo,


tourear buscando-se o tranquilo?

Porque tourear como toureias,


como se fosse a vez primeira?”

Se calava, quase menino,

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de cabelo louro de gringo,

menino vestindo ouro e prata,


cores da morte celebrada.

Manolete serviu de exemplo para João Cabral. A solidão e o


radicalismo do toureiro, ao manter a sua existência suspensa no modo
como jogava com os limites da vida, tocaram o poeta profundamente.
Como bem destaca Flora Süssekind (1998, p.31), a literatura cabralina
é fundada “na tensão entre narrativo e descritivo, mobilidade e
figuração”, resultando, assim, na singularidade do seu método
poético.
Dentre os poemas de temática taurina podemos citar ainda: “A
praça de touros de Sevilha”, “Touro andaluz”, “Lembrando Manolete”,
“Alguns toureiros”, “El toro de lidia”, “A morte de Gallito”, “Miguel
Baez, “Litri’”, “Juan Belmonte”. Alguns poemas são como uma elegia
direcionada aos toureiros, com um tom terno, melancólico, e também
com uma pitada do humor cabralino, como pode ser observado no
poema dedicado a Juan Belmonte, um importante toureiro,
considerado por muitos o fundador da tourada moderna. Conta-se que
ele tinha quarenta cicatrizes, provando ser um matador imbatível.
Venceu a morte tantas vezes e, ao fim, cometeu suicídio prestes a
completar setenta anos. Vejamos como o poeta, de forma engenhosa,
narra o causo em “Juan Belmonte”:

Sempre solitário e sem corte,


falando mudo, com a morte,

de entre as quarenta cicatrizes


com que o agredira, usando chifres.

Ele que transformava a arte


de desafiar a morte, dar-se

à morte, com quem discutia,


ao fim levou-o de vencida.

Por amor de moça mocinha


que o recusara e às suas quintas,

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Percebemos o humor sutil do poeta ao relatar a história de um
toureiro que viveu pondo a sua vida em risco, como comprovam as
cicatrizes, mas que, por conta de um amor não-correspondido, se
suicidou. Ainda assim, mostrou-se vencedor ao tourear contra a
morte, pois, ao tirar a própria vida, demonstrou que mandava na
morte ― “convocou-a, mas quando o quis”.
Faz-se necessário frisar que a temática taurina explorada por João
Cabral não possui relação com a visão popular da luta entre o homem
e o touro. Para o poeta, importa a apreciação estética das corridas de
toro. A arte taurina pode ser interpretada como uma metáfora para o
fazer poético do escritor na sua lida com a construção do poema.
O olhar do poeta-engenheiro, semelhante ao olhar atento e
cuidadoso do toureiro, estuda a geometria do seu poema como o
matador investiga a geometria do local da tourada. Da arquitetura da
praça de touros, com os lugares a serem ocupados pelos espectadores,
o poeta passa a descrever o lugar do toureiro, o centro da arena. A
atenção passa da arquitetura para o drama que se desenvolve entre a
vida e a morte. Da imagem externa da praça o poeta passa para a
interioridade da cena e dos seus personagens. Touro e toureiro se
equilibram no limite tênue entre vida e morte. Ainda, a sensibilidade
do poeta une a tensão entre homem-animal-público, formando um
trio indissociável. Vejamos o poema “Touro andaluz”:

Há um momento na corrida
em que o espectador também lida.

Quem nos palcos, quem nos tendidos,


quem no sol, quem na sombra rica,

esquece quem, de ouro ou de prata,


ali está a fazer sua faina.

Surge o touro de cabeça alta,


seu desafio é a toda a praça.

Corre em volta, querendo ver


quem com ele vai-se entender;

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se essa alta cabeça que leva
há alguém que abaixar se atreva.

Depois, se campa, o olhar derrama,


olhar de carvão, brasa, drama,

chama que dá um calafrio


mesmo em quem mais longe do risco.

(Até o momento em que os toureiros


canalizam seu ímpeto cego,

se apoderam dele: e o calafrio


muda de curso, como um rio.)

Primeiramente, observemos os vocábulos destacados em itálico


pelo próprio poeta nos dois primeiros dísticos. São termos da
tauromaquia e merecem um detalhamento para apreendermos
melhor o evento da tourada. A corrida de toros é um evento no qual
vários animais são toureados em uma praça fechada ― as conhecidas
praças de touros. O segundo verso traz o verbo lida conjugado na
terceira pessoa do singular, do infinitivo lidiar que significa lutar contra
o touro, provocando-o e afastando-se dele. No terceiro verso temos
palcos e tendidos. O primeiro refere-se aos lugares onde ficam os
espectadores, espécie de camarotes. Já o segundo define os lugares
descobertos próximos ao obstáculo que separa o público da parte
central. Por fim, sol e sombra são escolhidos conforme o bolso do
público. Aqueles que podem pagar mais pelo ingresso têm direito à
sombra, enquanto os lugares onde bate o sol são destinados aos
menos afortunados. Faz-se necessário explicar esses detalhes para
comprovar ainda mais o caráter analítico e crítico do poeta, ao
evidenciar não simplesmente o evento da tourada, mas todo o seu
entorno, como a divisão social bem demarcada dos espectadores. De
fato, Cabral não possui um olhar de turista, mas de estudioso do
cenário que habita, seja no Brasil ou na Espanha.
O poema narra o momento no qual ocorre a tourada. Esse
momento é compartilhado pelos espectadores, cujos olhares são
cúmplices da cena, como dizem os dois primeiros versos: “Há um
momento na corrida / em que o espectador também lida”. O animal e

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as pessoas encontram-se no mesmo espaço, no mesmo tempo. Além
do tempo da articulação dos versos, temos também a plasticidade do
poema que nos remete a um quadro, a uma pintura, em que o
espectador pode apreender toda a cena simultaneamente, estando
todos os olhares voltados para o mesmo local. Dessa forma, temos
uma totalidade que se caracteriza pela junção da imagem à
musicalidade dos versos.
Seguindo o ritmo do poema, é importante notar a repetição do
pronome quem ao aparecer sete vezes no poema. Retomemos o
segundo dístico como exemplo: “Quem nos palcos, quem nos
tendidos, / quem no sol, quem na sombra rica”. O encadeamento dos
versos, pausados pelas vírgulas, pode ser um efeito utilizado para a
constituição dos passos lentos e prudentes do touro ao entrar na
arena, assim como a repetição do pronome quem pode, além de
demonstrar a ansiedade do público diante da entrada do animal,
evidenciar o fato de o mesmo estar cercado de pessoas, de inúmeros
“quem”(s), estando todos à espera ansiosamente pelo desfecho do
drama.
Em meio aos pronomes quem, ou seja, em meio à multidão que
aguarda o espetáculo, surge o touro com o seu olhar desafiador,
buscando, entre todos, aquele com “quem ele vai se entender”.
Somente no décimo segundo verso temos a mudança do quem para o
alguém ― o matador que irá desafiá-lo.
A atenção do poeta consegue captar cada detalhe, como o
movimento e o olhar do animal, cuja cabeça altiva e soberana desafia
a todos, semelhante à postura do poeta que aponta no meio de todos,
apreendendo tudo o que está ou não ao seu alcance. Em “Touro
andaluz” vemos que o poeta não descreve simplesmente o olhar do
touro, mas parece ser cúmplice do que o animal sente e expressa no
olhar. Saindo do lugar de mero espectador, o olhar do poeta voa da
arquibancada para a arena, como se visse tudo através de uma lente
de aumento, na qual as imagens do espetáculo saltam aos olhos.
Até aqui parecemos caminhar no tempo interno do poema,
compreendendo a descrição de uma cena, o encadeamento e o ritmo
dos versos. Nos versos décimo terceiro e décimo quarto, conseguimos
unir o nosso olhar ao olhar do touro, ou seja, passamos ao tempo
interno desses versos, o instante presente, o tão esperado momento:
quando o bravo animal é ferido. A totalização do poema parece estar
retratada na imagem do olhar do touro que por sua vez unifica o olhar

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de todos na mesma direção, no mesmo instante: “Depois, se campa, o
olhar derrama, / olhar de carvão, brasa, drama”
Ligados pelo mesmo olhar, os sentimentos parecem misturar-se,
como se o ser das pessoas estivesse intrinsecamente ligado ao do
touro, formando um único ser, de maneira que a interioridade de um
é passada para o outro. Assim, o calafrio que as pessoas sentem diante
do olhar ameaçador do animal passa a ser sentido por ele, quando é
atingido pelo seu rival.
Essa inversão de papéis, em que o touro de vilão passa a ser
vítima, é acompanhada por todos nós, leitores, frente ao espetáculo
(poema). Distanciamo-nos um pouco do momento da ação, já que
saímos da temporalidade e da linguagem interior do poema, para
refletirmos sobre o drama do touro e o sofrimento que os toureiros
lhe causam. Para sairmos de cena e pensarmos sobre esse espetáculo,
o poeta abre um parêntese para, dessa forma, não interromper a
tourada. Diferentemente dos toureiros que agem instintivamente, o
leitor obtém um certo distanciamento da cena, podendo colocar-se no
lugar do animal e perceber que o calafrio causado pelo touro nas
pessoas é o mesmo do qual ele agora é vítima:

(Até o momento em que os toureiros


canalizam seu ímpeto cego,

se apoderam dele: e o calafrio


muda de curso, como um rio.)

A aproximação com o rio, nesses últimos quatro versos do poema,


revela o rio / vida que corre dentro do homem e do animal. Tal rio /
vida pode estancar a qualquer instante, bastando um passo em falso,
seja do touro ou do seu rival. Conforme as regras da corrida, é sabido
que entre o momento da entrada do toureiro na arena e a morte do
touro o tempo totalizado deve resultar em quinze minutos,
demonstrando a rapidez do confronto entre o animal e o toureiro. Os
passos cuidadosos de ambos são visualizados nos versos breves,
evidenciando a lição de geometria do verso cabralino.
Importante notar que, diferente dos poemas nos quais Cabral
homenageia os toureiros, em “Touro andaluz” o animal torna-se o
centro do poema. Os versos evidenciam a tensão e o drama que se
desenvolvem a cada movimento do touro. Símbolo de bravura e força,

7faces • 144
o animal é a imagem principal. Temos, portanto, uma elegia ao touro
andaluz. O embate do toureiro com o touro vai muito além de um jogo
ou espetáculo. Há todo um rigor estético, sutil, simbólico e poético,
que une o homem ao animal. O touro representa a força
descontrolada (paixão) sobre a qual um artista (toureiro, poeta) exerce
o domínio. Na arena, um dos dois será sacrificado.
Neste poema, touro, toureiro e espectador são unidos no instante
da tourada pela tensão entre viver e morrer. Quem sai vencedor pode
ser tanto o homem como o animal. A catarse alcançada pelo
espectador ocorre quando o touro é derrotado, simbolizando, assim,
a vitória da vida. O calculado movimento geométrico do animal e do
toureiro exigem atenção. O primeiro realiza movimentos de ida e volta
em direção ao seu rival, enquanto o segundo, vestido com traje de
seda e cores vivas, movimenta-se em torno de si mesmo, provocando
o animal. O ir e vir do touro pode ser uma metáfora para a precisão da
lida do poeta com a matéria de sua poesia. O passo cuidadoso e
calculado do poeta reflete a prudência dos personagens na arena.
Vimos que nos últimos versos do poema aparece a metáfora do
rio-vida tão presente na poética cabralina, como comprovam seus os
poemas O rio, O cão sem plumas e Morte e vida severina. O rio
Capibaribe tanto é sujeito, possuidor de seu próprio monólogo, como
também acompanha o monólogo do retirante sertanejo. A luta pela
vida é constante ― o rio que busca sobreviver à seca, impedindo que
ela o corte, o Severino retirante que caminha às margens do rio e da
sociedade em busca de uma vida melhor, e agora, nessas última obras,
o toureiro que vive pondo sua vida em risco, desafiando a morte.
Na poética de João Cabral, morrer e viver andam juntos, imersos
nesse rio torrencial da existência. Viver é suicidar-se continuamente
nesse rio, na sua rotina de correr incessantemente, entregando-se ao
que não sabe estar à sua frente, a exemplo do perigo constante das
corridas de toro.
Neste poema aprendemos mais uma lição cabralina ao
observarmos a descrição realista da coreografia do toureiro e do
animal unidos no olhar do espectador/leitor. De forma semelhante, a
condição exposta no cenário é a condição de todos nós na coreografia
da vida, diante dos nossos dramas, na tensão constante entre a vida e
a morte.

7faces • 145
Notas

1 MELO NETO, apud CASTELLO, 1996, p.179.

2 Ver Rosanne Bezerra de Araújo, Travessia poética: temáticas do


tempo na poesia de João Cabral (Natal, EDUFRN, 2016).

3 VerAntonio Carlos Secchin, João Cabral: a poesia do menos (Rio de


Janeiro, Topbooks, 1999).

Referências

ARAUJO, Rosanne Bezerra de. Travessia Poética: Temáticas do tempo


na poesia de João Cabral. Natal: EDUFRN, 2016.
BERTUSSI, L. João Cabral de Melo Neto: do regional ao universal, do
nordeste brasileiro à Espanha, da miséria à vitalidade. Antares: Letras
e Humanidades, v.1, n.1, p.68-91, 2009.
CASTELLO, José. O homem sem alma. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
INSTITUTO MOREIRA SALLES. Cadernos de Literatura Brasileira. João
Cabral de Melo Neto, n.1, Rio de Janeiro, 1996.
LEITE, Sebastião Uchôa. Participação da palavra poética: do
modernismo à poesia contemporânea. Rio de Janeiro: Vozes, 1966.
MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1995.
SALGUEIRO, W. “Cabral (se) Descobre (em) Sevilha: A Cidade Feira,
Medida”. In: REEL – Revista Eletrônica de Estudos Literários, Vitória,
v.3, n.3, p.1-10, 2007.
SECCHIN, Antonio Carlos. João Cabral: a poesia do menos e outros
ensaios cabralinos. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.
SÜSSEKIND, Flora. A voz e a série. Rio de Janeiro: Sette Letras; Belo
Horizonte: UFMG: 1998.

7faces • 146
João Cabral de Melo Neto e as muitas
pedras: análise da poesia lírica e a
recepção da crítica literária
por Rosidelma Pereira Fraga e Adriana Helena de Oliveira Albano

A mão daquele martelo


nunca muda de compasso.
Mas tão igual sem fadiga,
mal deve ser de operário.

João Cabral de Melo Neto

Neste ensaio acadêmico, elege-se como premissa homenagear o


poeta João Cabral de Melo Neto e a sua representação canônica na
literatura pelo viés da crítica literária. Como objetivo principal revisita-
se a linguagem a palo seco para demonstrar investigações
epistemológicas de sua obra de Pedra do sono à Educação pela pedra.
Nelas, podem-se examinar as procedências da subjetividade e alguns
de seus desdobramentos na poesia lírica.
A poesia de João Cabral de Melo Neto possui marcas
inconfundíveis. O estilo de rigor e de trabalho com a linguagem, o
metro e as figuras são estilos de um artista que sabe trabalhar o verso
no compasso do martelo de um operário, como se lê na epígrafe
citada. Toma-se esse arquiteto das palavras para refletir sobre sua
poesia, que é escrita desde a década de 1940 e segue até 1980 na
poesia brasileira. Neste exame, pretende-se expor ao leitor de sua
obra, uma visita pelos caminhos da crítica hegemônica e dos estudos
acadêmicos sobre sua obra, não esgotando os espaços e lugares, tendo
em vista ainda que não se tem o propósito de exaurir a diversidade de

7faces • 147
pesquisas e nem tampouco excluir estudos também de qualidade
hermenêutica e epistemológica.
Com José Guilherme Merquior, define-se o poeta, utilizando suas
próprias palavras: “sou o menos passivo dos poetas”. Segundo esse
crítico, João Cabral de Melo Neto é

o primeiro poeta do novo lirismo; aquele que é, em relação


à lírica anterior, um antipoeta, porque não dá uma só
emoção que não venha pensada, uma só palavra que não
chegue um conceito, uma só música, sem a exatidão e a
nudez do único som necessário. Portanto, o poeta que
primeiro rompeu não só com as melações, os
sentimentalismos, as pobres melodias, a sugestão
deslizante, mas sobretudo com o acessório, o acidental, a
obra do acaso e da sua irmã inspiração. (MERQUIOR, 1996,
p.119).

O poeta estreia na poesia depois da Segunda Guerra Mundial,


com a geração de 45. Escreve Pedra do sono (1942) no contexto
político de ditadura, censura, tortura e falta de liberdade. Predominam
em sua obra a angústia e a ressonância de um Carlos Drummond de
Andrade ou de Murilo Mendes, diante de uma poesia com traços do
surrealismo de André Breton. Cabral dá início a sua poesia com traços
de perturbação. O poeta jovem é carregado de torturas psíquicas e,
num conjunto de vinte poemas, os aspectos são oníricos e herméticos.
Seu poema “Dentro da perda da memória”, dessa primeira obra,
é permeado de traços surrealizantes:

Dentro da perda da memória


(A José Guimarães de Araújo)

Dentro da perda da memória


uma mulher azul estava deitada
que escondia entre os braços
desses pássaros friíssimos
que a lua sopra alta noite
nos ombros nus do retrato.

E do retrato nasciam duas flores

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(dois olhos dois seios dois clarinetes)
que em certas horas do dia
cresciam prodigiosamente
para que as bicicletas de meu desespero
corressem sobre seus cabelos.

E nas bicicletas que eram poemas


chegavam meus amigos alucinados.
Sentados em desordem aparente,
ei-los a engolir regularmente seus relógios
enquanto o hierofante armado cavaleiro
movia inutilmente seu único braço.
(MELO NETO, 1942, p.5).

“Dentro da perda da memória” oferece uma variedade de


substantivos ― retrato, bicicletas, relógio, mulher, memória, braços ―
que não permitem inferir uma lógica, conferindo, assim, um
estranhamento que é peculiar dos traços surreais e da imagem
poética. Efetivamente, a imagem obscura que esses substantivos
atribuem ao texto poético leva o leitor a pensar nas considerações de
Friedrich (1991) sobre o poeta Diderot, pelo fato de este ter
recomendado a obscuridade aos poetas como algo intencional,
chegando a vangloriar-se do leitor. Assim também se pensa no poema
cabralino quando o leitor absorve o ilogismo que é concebido por meio
do contexto esdrúxulo da imagem. A veia imagética reside na “cor da
mulher” (azul) e nos “ombros nus do retrato”, através da nudez e da
sensualidade que se constitui como marca da poesia surrealista.
O poema, desde a primeira estrofe, traz versos que explicitam de
imediato uma contradição do real, com discursos metafóricos
produzidos pelo poeta, estabelecendo um jogo caótico para o leitor.
Este, posicionado fora do campo de composição, vê-se diante das
várias possibilidades de leitura conotativa que o poema oferece.
A mulher-deusa surge no poema como metáfora realizada pela
imagem, cuja extravagância expressiva se dá mediante a leitura dos
seguintes versos: “uma mulher azul estava deitada / que escondia
entre os braços desses pássaros friíssimos”. Simbolicamente, essa
“mulher azul” é concebida pela evasão do inconsciente e, nesse
sentido, o seu universo rompe com a mediocridade do real, podendo
ir ao encontro de Aristóteles, no que tange ao caráter de

7faces • 149
verossimilhança, se considerado que o poeta deve ser mais fabulador
e seu objetivo ser o de criar o universo como gostaria que tivesse
acontecido. A possibilidade de uma verdade inaugurada pelo poeta
ocorre através da dimensão de um novo mundo. Para validar essa
autenticidade, existe o poder da imagem poética, que o poeta é capaz
de construir a partir do universo da linguagem. Octavio Paz assim
descreve como se dá essa autenticidade: “as imagens do poeta
possuem autenticidade: o poeta as viu ou ouviu. São a expressão
genuína de sua visão e experiência do mundo. Trata-se de uma
verdade objetiva, essa verdade estética da imagem que só vale dentro
de seu próprio universo.” (1986, p.37). Isto é, as imagens jamais se
interpretam com palavras, uma vez que as imagens vão além do signo-
objeto. Cabe, ao leitor, um repensar e reviver dessa veia imagística,
pois o poeta transforma-o em coautor das imagens produzidas no
texto. Isso porque, numa perspectiva valéryana, o poeta e o leitor
devem jogar o mesmo jogo, pensando por imagens.
A poesia de João Cabral de Melo Neto se estreia pelo abstrato (o
sonho, o sono, a memória), que levemente se junta ao concreto
(pedra), os quais, nas obras seguintes, são mais demarcados. Em Pedra
do sono, conforme classificação da gramática normativa da língua
portuguesa, os substantivos são concretos, comuns e simples. E por
meio de uma abstração do real no substantivo, o pensamento
(abstrato) passa a existir por si só. Todavia, no primeiro verso da
terceira estrofe do poema “Dentro da perda da memória”, o signo
poético “bicicleta” remete ao desespero ou angústia do poeta,
tornando a substantivação abstrata, assim como a memória (abstrata),
que é tida como concreta no poema, uma vez que, se é possível uma
mulher azul estar deitada dentro de uma memória (inexistente), o
pensamento também pode ser tocado.
Antonio Carlos Secchin (1999, p.26) analisa a memória como um
fator minimizado, em que “o poeta não se contenta em ver como o
fenômeno se dá, mas intenta saber como ele se organiza”. Mais
precisamente, o crítico explica que “o vínculo entre e sujeito e objeto
proposto em Pedra do sono não se reveste de aspectos celebratórios”,
ao que Luiz Costa Lima (1968) chamou de “repúdio ao poético”.
A repulsa do poético aponta para uma leitura ambígua e utópica,
provocando o hermetismo e uma impossibilidade de compreensão da
lírica, como se o poeta se vangloriasse do leitor, uma vez que, para o
poeta, “existe uma glória em não ser compreendido“ e “a poesia

7faces • 150
moderna se deixa lançar no caos do inconsciente e da obscuridade”
(FRIEDRICH, 1991, p.62).
Pedra do sono configura-se por meio da obscuridade do signo, da
relação entre significante e significado, exercendo uma ruptura na
mente do leitor. Isso lembra o próprio ensinamento da palavra flor,
em Psicologia da composição, no qual o poeta não precisa da beleza
da flor para poetizar o poema, pois a “flor” pode ser “fezes” e ainda
“estrume” de poemas.
Na visão de Alcides Villaça (1996), há, em Pedra do sono, um
estranhamento linguístico, que o leitor percebe quando observa o
discurso num plano superficial, mas também a demarcação da
fantasia, que ocorre numa instância em que as relações entre sujeito
e mundo (a mulher azul, os retratos, as bicicletas do desespero etc.)
são suprimidas.1 Nesse caso, segundo Villaça (1996, p.145), “os gestos,
as notícias e as imagens, bem como as figuras surgem filtradas por
lentes ou em espelhos e retratos. A figura do eu, inatingida, apenas
insinua na estátua espetacular de um manequim”.
Esses gestos insinuantes permeiam toda a obra inicial do poeta e,
assim, a figura feminina se constrói com a sensualidade detectada na
imagem dos seios, embora ela seja intacta ao poeta e ao leitor. O certo
é que o utópico se realiza na exposição de “um rosto”, de “um
manequim”, como um quadro inatingível.
Em Os três mal-amados (1943), ainda há traços desse aspecto do
sono e do sonho como na obra Pedra do sono, infiltrados pelos
devaneios. A matéria do sonho surge através das vias diurnas e não
noturnas. João Alexandre Barbosa (1974) considera Os três mal-
amados como uma obra de imitação da forma, cujo traço
característico é a relação sujeito–objeto que se transforma em
contradições instauradas em objetividade e subjetividade. Em outras
palavras, o sonho no livro de 1943 é símbolo do devaneio que permite
a mobilização dos personagens João, Raimundo e Joaquim e traz os
resquícios de “Quadrilha”, de Carlos Drummond de Andrade.
Na obra seguinte, em O engenheiro, o poeta escreve um poema a
Paul Valéry. Enquanto Pedra do Sono se volta pela imagem do noturno,
do sono e da obscuridade, próprio dos poetas surrealistas, a obra O
engenheiro se veste de traços herméticos que vêm ornados de luz e
leve clareza. Secchin (1999) chamou essas marcas de “desativação
onírica”. Paulatinamente a essa desativação onírica, o poeta-

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engenheiro demarcará o seu fazer sob a perspectiva de luz, foco,
medida, entre outros elementos:

A luz, o sol, o ar livre


Envolvem o sonho do engenheiro
O engenheiro sonha coisas claras:
Superfícies, tênis, um copo de água.

[...]

o engenheiro pensa o mundo justo,


mundo que nenhum véu encobre.
(MELO NETO,1945, p.344).

Não há dúvidas de que o sonho aqui não é o mesmo de Pedra do


sono. Para essa afirmação, leva-se em conta o fato de o engenheiro
não sonhar com o noturno, com a obscuridade, mas sim com a luz, o
sol, e com as coisas claras, no sentido de tirar a máscara, porque o
engenheiro busca um “mundo que nenhum véu encobre”. Isso,
contudo, não significa dizer que a obra deixa de uma vez as marcas do
livro anterior, como é o caso dos versos: “os homens podem / sonhar
seus jardins / de matéria de fantasma / sonho fora do sono” (MELO
NETO, 1945, p.348).
Paulatinamente à exposição do perfil de Cabral em seus dois
primeiros livros, pode-se dizer que a consciência aguda, com forte
engajamento formal, tomará a obra do poeta em toda sua trajetória,
o que parece seguir uma escala ascendente, de Pedra do sono à Escola
das facas.
Maria Lúcia Sampaio (1978, p.86), ao escrever sobre “a estética de
João Cabral de Melo Neto”, conclui que

O poeta representa o ideal estético pelo seu culto à


disciplina e ao rigor formal, ao repúdio à inspiração, à
construção, ao despojamento. Mas esse despojamento
não significa ausência de figuras. As figuras na obra de João
Cabral não são “ornamentos”, mas elementos de
estruturação da poesia.

7faces • 152
Psicologia da composição (1947), obra dividida em três partes ―
“Fábula de Anfion”; “Psicologia da composição”; “Antiode” ― constitui
parte do objeto de estudo em que se desenvolve um trabalho com
discussões sobre as marcas da metalinguagem, da poesia antilírica e
de outros elementos da subjetividade. Na obra O cão sem plumas
(1950), que também faz parte desta pesquisa, o poeta oscila entre o
discurso poético e a referência plástica. Segundo Campos (1967, p.71),
nesse aspecto, o poeta exerce uma “desalienação da linguagem ao
problema da participação poética”.
Alfredo Bosi (1971, p.526) explica o que é, para ele, “cão sem
plumas”:
Cão sem plumas (= pêlos) é o Capibaribe, rio que carrega
os detritos dos sobrados e dos mocambos recifenses, rio
que seria também matéria do complexo poema narrativo
“O rio”, onde a poesia nasce de um sábio uso do prosaico,
do polirrítmico, aderente às flutuações da linguagem
coloquial.

Na visão de Secchin (1999, p.71), a poesia de O cão sem plumas é


trabalhada “com o dado referencial”. Em outras palavras, “o curso do
rio Capibaribe será representado por um discurso que buscará na
forma do objeto-rio o modelo de sua enunciação”.2
No já referido ensaio de Guilherme Merquior, intitulado “Crítica,
razão e lírica” (1996), o crítico escreve que a poesia brasileira adquiriu
nova força e se fez lírica interpretativa nas meditações do fazer poético
a partir da obra de João Cabral de Melo Neto. Isso porque se trata de
uma poesia que vai além do metapoético, em que o trabalho de
metalinguagem chega ao nível social, como é o caso do poema “Catar
feijão”. Para ele, Cabral, bem antes de Educação pela pedra, abre seus
versos à problemática social, visto que, em O cão sem plumas,

a lírica de razão reencontrava o caminho de uma


interpretação da existência em Brasil, desta vez em plena
consciência do nosso estado transitivo, dos nossos
conflitos de sociedade em formação. Situava os seus temas
na região crucial onde ao mesmo tempo era a terra do
autor e a sede dos mais agudos desníveis sociais: o
Nordeste. (MERQUIOR, 1996, p.213)

7faces • 153
Similarmente à visão de Bosi (1971), no que tange à obra O rio,
Haroldo de Campos (1967, p.72) pondera que o poeta delineia uma
poesia com características do prosaico e o rio tem a função do sujeito
porque a obra é uma espécie de prosa em poesia, ou uma “invasão do
prosaico”:
vemo-lo [...] fazer prosa em poesia (não prosa poética nem
poema em prosa, mas poesia que fica ao lado da prosa pela
importância primordial que confere à informação
semântica). Nesse sentido, pode-se dizer que João Cabral
de Melo Neto dá categoria estética a muito daquilo que,
no chamado romance nordestino, tinha apenas categoria
documentária.

Paisagens com figuras (1954), segundo Secchin (1999), é uma


obra, como o título mesmo diz, elaborado graças a figuras. Por meio
delas, o leitor chegará à referencialidade, através do “Pregão do
Recife”, metaforizando os três cemitérios pernambucanos ―
“Toritama”, “São Lourenço da Mata” e “Nossa Senhora da Luz”.
Esse pregão recifense oferece uma leitura das paisagens externas
― os defuntos, a morbidez e a falta de esperança do homem do
Nordeste ―, o qual se constitui como o responsável pela encenação
poética da pobreza. Essa característica social encerra, na paisagem da
figura do cemitério, o fim de todo homem do canavial, tanto o rico
como o pobre:

Cemitério pernambucano
(São Lourenço da Mata)

É cemitério marinho
Mas marinho de outro mar.
Foi aberto para os mortos
que afoga o canavial.
(MELO NETO, 1955, p.130).

Cemitério pernambucano
(Nossa Senhora da Luz)

Nenhum dos mortos daqui

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vem vestido de caixão.
Portanto, eles não se enterram,
São derramados no chão.
(MELO NETO, 1955, p.132).

Nesse mesmo contexto visual ou referencial de Paisagens com


figuras, como se observa nos excertos antes citados, pode-se dizer que
o poeta ainda descortina a paisagem da Espanha, sob um olhar
minucioso de quem viveu e tocou o lugar:

Em certo lugar da Mancha,


onde mais dura é Castela
sob as espécies de um vento
soprando armando de areia,
vim surpreender a presença,
mais do que pensei, severa,
de certo Miguel Hernández,
hortelão de Orihuela.
(MELO NETO, 1997, p.256).

Na mesma época, Cabral escreve Morte e vida severina, um auto


por meio da métrica em redondilha maior, com uma leitura que
remete à oralidade, isto é, para a voz alta, através do discurso de
Severino e outros personagens no poema. Em Morte e vida severina,
o retirante dramatiza o homem e a vida do sertão e, por conseguinte,
privilegia o referencial em muitas obras, mormente, em Morte e vida
severina “privilegia a concretude referencial do universo Severino, as
figuras retóricas dessa paisagem irão reforçá-la, na medida em que
literalidade e imagem são construídas sob o comando comum dos
signos do concreto.” (SECCHIN, 1999 p.117).
A poesia de Cabral, depois de 1955, é marcada por aspectos mais
rigorosos. A mola central nasce com o poema “Uma faca só lâmina: ou
Serventia das ideias fixas”, em que elementos como “faca, bala, breu
relógio, lâmina” são associados a corpo e homem numa relação de
comunicação poética, isto é, metalinguística.3 Esses e outros
elementos destruidores equivalem a símbolos de uma ideia fixa, os
quais o poeta utiliza, na trajetória do fazer, por meio do ritmo preciso
e enxuto, bem como do rigor incorporado na linguagem dos poemas.

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Segundo Meneses-Leroy (1997), a linguagem seca de “Uma faca
só lâmina” decorre “do falar seco que inspiram Graciliano Ramos e
João Cabral de Melo Neto a falar por imagens (ou parábolas) que
alimentam o discurso sugestivo de Guimarães Rosa”; no que se refere
ao sertão:

é este sertão-linguagem que permite ao autor questionar


a sua condição de poeta ou de ser humano e enunciar o
resultado dessa reflexão, definindo [...] a sua posição no
tempo e no espaço perante o grupo social a que pertence.
E o resultado desse questionamento, que não passa de
discurso, é a constatação da impossibilidade de atuação
sobre o “real”, porque, como exprime João Cabral no verso
final de Uma Faca só Lâmina: “por fim a realidade / prima,
é tão violenta /que ao tentar apreendê-la / toda imagem
rebenta”. (MENESES-LEROY, 1997, p.239).

O fato de Uma faca só lâmina ser uma obra representativa do


poeta e uma das mais estudadas não livrou João Cabral de queixar-se
dos vários estudos que a crítica tem desenvolvido em torno dela.
Secchin (1999, p.333) reproduz, em seu texto, esse reparo feito por
Cabral de Melo Neto:

Acho errado ver Uma Faca só Lâmina exclusivamente


como arte poética. Também ainda não se enfatizou o
grande predomínio dos substantivos, adjetivos e verbos
concretos nos meus textos. Sim, porque adjetivos e verbos
admitem essa categoria. Por exemplo: o adjetivo sublime
é abstrato, como tristeza. Maçã é tão concreto quanto
adjetivo torto. A literatura espanhola usa [...] o concreto, e
por isso me interessou.

Já em Quaderna (1959), dedicada a Murilo Mendes, Cabral cria


uma poesia com ênfase na figura do feminino, conforme se constata
nos poemas “Estudos para uma bailadora andaluza”, “A mulher e a
casa”, bem como “Mulher vestida de gaiola” e outros textos que
compõem a obra. De Quaderna, o poema “A mulher e a casa” trata da
relação entre erotismo e poesia, relação que se evidencia das
concepções desenvolvidas por Paz (1994) e George Bataille (1987).

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Para anunciar a sedução, a partir do interior e exterior, presentes em
tal obra, mencionam-se os excertos da primeira e quarta quadra do
poema:

Tua sedução é menos


de mulher do que de casa:
pois vem de como é por dentro
ou detrás da fachada.

[...]

Seduz, pelo que é dentro


ou será, quando se abra;
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas.
(MELO NETO, 1959, p.224- 225).

A demarcação do erotismo sensorial é vista sob o prisma do


espaço ou lugar fechado (casa) ligado ao corpo, pois a organização
erótica do poema permite a relação mulher-homem-habitação-
penetração, tendo em vista a sedução que o feminino exerce sobre o
masculino, na última quadra de “A mulher e a casa”:

exercem sobre esse homem


efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.
(MELO NETO, 1959, p.154).

A marca do erotismo, em Quaderna e em outros poemas nos quais


a mulher é ligada à percepção da relação com a exploração da
linguagem, vem do desvendamento do que está além da fachada, na
relação entre mulher e casa.
Em Dois parlamentos (1960), o poeta exerce a continuidade da
poesia social já explorada em O cão sem plumas. Na visão de Secchin
(1999), Dois Parlamentos vem complementar o tema de O cão sem
plumas, O rio e Morte e vida severina, uma vez que o poeta usa a
autotextualidade, que permite ao leitor a releitura de discursos de
obras diferentes4.

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Sequencialmente a Dois parlamentos, João Cabral publica Serial.
Sua poesia segue um tom de linguagem enxuta, medida e de quadra,
como nos dezessete poemas de Quaderna. Importante destacar os
poemas “A palo seco”, que caracteriza toda a secura da linguagem
econômica do poeta, e “O sim contra o sim”, que permite a análise
quanto à metalinguagem. Para o crítico Merquior (1996, p.114), Serial
é o “livro de manso andar” porque “exibe um poeta cada vez mais
devoto do objeto, cada vez mais olho-de-ver, e de ver melhor que o
comum, mais dentro e mais penetrantemente fino”. No capítulo
“Serial” de seu ensaio Razão do poema, o crítico demonstra que o
poeta é capaz de contemplar as coisas de novo jeito;

alguém capaz de contemplar as coisas de tão perto, que as


deixe falar por si, e oferecer todas essas virtudes que as
coisas têm de humanas, mas onde, de tão bem olhadas, já
não há somente antropomorfismo, não há somente o
reflexo do próprio homem [...]. João Cabral toma as
pessoas como objetos; não é claro, que as reduza ao nível,
ao estilo de existir das simples coisas, mas porque põe no
exame do humano a mesma cortante contemplação, de
vestir com a expressão incomum aquilo que se sentia sem
definir com propriedade. (MERQUIOR, 1996, p.115-116).

Em 1966, A educação pela pedra foi considerada, por


unanimidade da crítica literária, como o apogeu de aprendizado
cabralino sobre a pedra. Com 48 poemas acerca de Pernambuco e das
mais variadas temáticas, o poeta demonstra o seu veio pedagógico em
relação à arte da poesia. No texto “A máquina do poema”,5 da obra O
dorso do tigre, Benedito Nunes (1974, p.265) reafirma essas
constatações sobre o livro e salienta que

João Cabral de Melo Neto sintetiza as duas águas da


expressão poética, uma voltada para a captação da
realidade social e humana, como em Morte e Vida
Severina, outra para a captação do fenômeno poético em
toda a sua amplitude, como Uma Faca só Lâmina. Essas
duas tendências unem-se, agora, dentro do ciclo de A
Educação pela Pedra, numa só corrente expressional, onde

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forma e matéria, estrutura e temática se produzem
reciprocamente.

A ideia de duas águas foi utilizada pelo poeta na antologia Duas


águas (1956), com poemas divididos para dois tipos de leituras ― em
silêncio e em voz alta ―, e retomada logo depois pela crítica.
Ressaltando-se o observado por Benedito Nunes, de que as duas
tendências se unem em A educação pela pedra, pode-se citar o poema
cujo título é o mesmo da obra; nele, se nota que a pedra é o elemento
concreto, representando uma “lição de impessoalidade”. Conforme o
crítico, a pedra simboliza a “frieza intelectual e resistência moral,
converte-se na secura humana do sertão, que nada ensina a ninguém”
(NUNES, 1974, p.267); confirma o poema:

No sertão a pedra não sabe lecionar


E se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.
(MELO NETO, 1966, p.79).

Em seu estudo Transição e permanência, Aguinaldo Gonçalves


(1989) menciona que se trata de “figuras geométricas [...]
quadrangulares ou retangulares”. Acerca da disciplina com a pedra e
da construção do verso, o crítico observa que “a lucidez inventiva que
jamais se vale do improviso fornecido pela inspiração, na busca do
‘equilíbrio’ essencial perdido na poesia de caráter pessoal do
romantismo e que se mantém até os nossos dias, encontra-se, talvez,
a simetria geométrica das composições de A Educação pela pedra.”
(GONÇALVES, 1989, p.58).
Depois dessa obra, João Cabral, em 1975, escreve Museu de tudo,
em cujos versos preliminares o leitor antevê a presença de um discurso
do espaço cultural, graças à demonstração:

Este museu de tudo é museu


como qualquer outro reunido;
como museu, tanto pode ser
caixão de lixo ou arquivo.
Assim, não chega ao vertebrado
que deve entranhar qualquer livro:

7faces • 159
é depósito do que aí está,
se fez sem risca ou risco.
(MELO NETO, 1997, p.249).

A propósito, João Cabral de Melo Neto, ao discorrer sobre essa


obra, assim classifica os referidos poemas:

No Museu de tudo reuni a produção que não se encaixa


nos outros livros como O cão sem plumas, Rio, Morte e vida
severina. Eu tenho a impressão que acostumei mal o leitor
brasileiro. Todo mundo publica livros de poemas soltos e
quando eu faço um ninguém entende. Eu não faço seleção
[de poemas soltos]. O que não está acabado eu deixo para
depois. (SOUZA, 1999, p.107-108).

É curioso notar que a exposição dos objetos do museu cabralino


ou seus “utensílios” sem serventia aproximam-se dos “nadifúndios” ou
“inutensílios” poéticos de Manoel de Barros. A matéria apreendida no
e do lixo serve para a construção da poesia “que deve entranhar
qualquer livro / é depósito do que se fez sem risca ou risco”.
Nos anos 1980, João Cabral publica A escola das facas e explicita
o solo pernambucano, em 44 poemas, com marcas intratextuais e
intertextuais.5 O poeta revê textos das obras anteriores representados
no poema:
Eis mais um livro (fio que seja o último)
De um incurável pernambucano;
Se programam ainda publicá-lo,
Digam-me, que com pouco o embalsamo

[...]

Um poema é sempre, como um câncer?


(MELO NETO, 1997, p.6).

Nesta obra presencia-se um menino que tanto pode ser vários


meninos de Pernambuco como pode ser aquele menino de José Lins
do Rego, no que tange ao contato com a cana-de-açúcar. Entretanto,
o poema de Cabral oferece ao leitor a marca brutal, não do trabalho
com a cana-de-açúcar, mas do trabalho com a linguagem de rigor, do

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corte e de objetos cortantes, para que essa linguagem “a palo seco” se
realize na medida exata:

A cana cortada é uma foice.

[...]

Menino, o gume de uma cana


cortou-me ao quase de cegar-me,
e uma cicatriz, que não guardo,
soube dentro de mim guardar-se
(MELO NETO, 1980, p.9).

Nesse diálogo de vozes tem-se uma primeira pessoa, porém o foco


central é o objeto ― “a faca da cana-de-açúcar” ― que, por sua vez,
exerce a função de corte, cuja agressividade do verso se dá na
linguagem, na mesma relação “faca-lâmina” e “cana-gume”.
Posteriormente a essa exposição da poesia de João Cabral de
Melo Neto e a recepção da crítica literária sobre suas obras, desde
Pedra do sono (1942) até A escola das facas (1980), pretende-se
enfocar como a produção do poeta, em quase meio século, enquadra-
se na poesia lírica contemporânea e que traços o poeta deixa como
ressonâncias na poesia brasileira.
Desde o nascimento, a poesia de Cabral foi interpretada como fria
e racionalista. Sobre esse racionalismo do poeta, o crítico José Castello
(2006), nos relatos de suas conversas com o poeta, em João Cabral de
Melo Neto: o homem sem alma & diário de tudo, classifica-o como um
poeta sem alma, sem inspiração, em que a palavra é fria e
bruscamente calculada, impessoal e medida. Ora,

Cabral pratica uma poética do pudor e da fissão em versos.


Uma poética antilírica e até antipoética. Cabral chega a
dizer que seu ideal seria dispor de um computador que
escrevesse poesia. Chegaria, então, à impessoalidade
máxima e ao silêncio absoluto, estampados em versos
absolutamente desguarnecidos de subjetividade. A utopia
da poesia bruta, versos de um poeta-diamante para quem
escrever é, apenas, cavar. A poesia, então, se faz pedra.
(CASTELLO, 2006, p.28).

7faces • 161
A respeito do antissentimentalismo e da antipoesia, Alfredo Bosi
(1996) constatou que a lírica cabralina possui uma dimensão inusitada,
no que se refere à nudez de traços supérfluos e ao despojamento de
cadências sentimentais quando o poeta constrói um poema.
A poeta Marly Oliveira, no prefácio de Serial e antes ― onde se
registram os dois volumes Pedra do sono a Serial e A educação pela
pedra e Depois ―, argumenta que o poeta já havia se definido como
poeta antilírico e antissentimental desde um surrealismo inaugural ao
encontro de uma poesia social. O poeta se preocupa com a linguagem
comparada à linguagem baudelairiana, como manifesta a autora sobre
Melo Neto e modernismo:

embora se saiba que o modernismo chegara ao Recife já


estruturado por um Drummond, enriquecido pelas
imagens surrealistas de um Murilo, não se pode esquecer
que o jovem escritor já estava em contato com vários
poetas, sobretudo os franceses, pelas mãos de Willy Lewin;
que já havia lido um Reverdy, e conhecia até mesmo um
Picasso. Assim, pois, uma poesia diferente da que
conhecera nos compêndios escolares, e que o atraía pela
“mescla de estilos” e pela “queda da aura” que Benjamin
apontara como característica da modernidade de
Baudelaire. (OLIVEIRA, 1997, p.9).

Nessa perspectiva, pode-se asseverar que a convivência de Cabral


com os poetas franceses contribuiu para a sua formação. O poeta
dispõe de uma lírica, por vezes, com essa “queda da aura”, que é,
como se viu antes, um atributo da modernidade em Baudelaire,
continuada por Cabral, mormente no que tange à Psicologia da
composição. A poesia de Cabral dialoga com as imagens de Flores do
mal por ser uma poesia antilírica.
Diante disso, como situar a lírica de João Cabral de Melo Neto em
um período literário?
A crítica literária é um unânime ao separar o poeta da Geração de
45 pelo estilo diferenciado dos outros poetas como Domingos de
Carvalho, Péricles Eugênio, André Carneiro, Ilka Brunhilde Laurito,
Lêdo Ivo, dentre outros, desde Pedra do sono, embora se saiba que a
obra inicial do poeta é um topônimo, de Drummond, de Brejo das

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almas, e de um Murilo Mendes surrealista. O próprio poeta declara
que foi o primeiro mineiro quem o convenceu de que ele também
poderia ser poeta e, sobretudo, o segundo: “a poesia de Murilo
Monteiro Mendes, sem dúvida, me foi mestra pela plasticidade e ainda
pela novidade da imagem. E, sobretudo, foi ela quem me ensinou a dar
precedência à imagem sobre a mensagem do texto” (BOSI, 1971,
p.448).
Entretanto, a partir de Psicologia da composição, a poesia de
Cabral deixa as imagens drummondianas e murilianas e passa a ser
cabralina. O poeta consegue criar um projeto poético inconfundível.
Assim, o poeta pertence ao Grupo de 45, por marca cronológica, que
é explicada por ele como um fenômeno biológico. Nas palavras do
autor, pode-se comprovar a sua separação da poesia de 1945:

creio que foi Ortega Y Gasset quem tratou com mais


inteligência o problema das gerações em arte. Endosso as
idéias de Ortega: pertencer a uma geração é um fenômeno
biológico, não se pode mudar o ano de nascimento. Mas
alguns reduzem uma geração à idéia de escola literária;
nessa perspectiva, nada tenho a ver com a escola de 45 e
com seu ideário estético, formulado, aliás, por um
pequeno grupo dentre os nascidos em 1920 e adjacências.
(SECCHIN, 1999, p.323).

Diante dessas considerações até aqui feitas, ressalta-se que o


poeta João Cabral de Melo Neto, com toda sua obra, produzida em
quatro décadas do século XX, seria capaz de construir um período
literário brasileiro. Um poeta que, sem dúvida, marcou a poesia
brasileira e permitiu a outras literaturas em língua portuguesa um
diálogo, não se separando de vários outros poetas com quem Cabral
dialogou. É nesse diálogo e por analogias que, conforme Merquior
(1996, p.129), o crítico se vê obrigado a pensar na obra do poeta
pernambucano, no mesmo racionalismo e objetividade da poesia
portuguesa “de Cesário, com quem João Cabral, tem em comum
extraordinária justeza de observação, ou de Pessoa, que sabe como
ele que as coisas são o que são, sem mistério nenhum”:

Como Cesário, João Cabral apalpa as coisas; mas não é para


desmontá-las, para fazer essa espécie de autópsia que os

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grandes naturalistas, quase todos revolucionários,
praticavam com o desprezo impassível que se tem pelas
coisas mortas, pelo mundo cadáver, a decomposição
burguesa naturalmente desmembrável. João Cabral não
disseca; interpreta. Joga com estruturas, não com simples
somas. (MERQUIOR, 1996, p.121).

A obra de João Cabral de Melo Neto, demonstrada pelos diversos


estudos da crítica literária, não abarcados todos aqui, legitima o poeta
como canônico. Particularmente o crítico Luiz Costa Lima (1968), assim
como Benedito Nunes (1974), citado anteriormente, escreve que a
reunião de Pedra do sono até Uma faca só lâmina levou à
denominação de duas águas por querer

corresponder a duas intenções do autor e a duas maneiras


de apreensão por parte do leitor ou ouvinte: de um lado,
poemas para serem lidos em silêncio, numa contaminação
a dois, poemas cujo aprofundamento temático quase
sempre concentrado exige mais do que leitura, releitura;
de outro lado, poemas que, menos que lidos, podem ser
ouvidos. (LIMA, 1968, p.309).

A poética cabralina arquiteta-se sob a objetividade de uma


antilírica, antipoética, cujo planejamento do poeta foi defender ao
máximo a impessoalidade, evocando a pedra, o silêncio, as águas, o
sonho e, sobretudo a escavação lapidada da pedra. Por conseguinte, o
leitor precisará conviver com a pedra e aprender dela. A respeito do
antissentimentalismo e da antipoesia, constatou-se que a lírica
cabralina possui uma dimensão inusitada, no que se refere à nudez de
traços supérfluos e ao despojamento de cadências sentimentais
quando o poeta constrói um poema como demonstrou a grande parte
da crítica literária.
A rigor, infere-se que a lírica do autor, lida, relida e esmiuçada pela
crítica literária do Brasil, demonstra que as águas e pedras essenciais
para a denominação e dimensão de sua obra formulam a intenção do
autor. Seus leitores ávidos compreenderão que o aprofundamento
temático requer sempre a releitura da poesia, da audição e da leitura
silenciosa. Como elucidou Costa Lima: é preciso que o leitor passe pela

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contaminação a dois, a poesia do autor a recepção do leitor da poética
do homem sem alma.

Notas

1 O formalista russo Victor Chklovsky (1973), em “A arte como


procedimento”, concebe o estranhamento como imagem poética,
referindo que não há poesia que não se ocupe de imagens.

2A metáfora do rio expressa pela imagem de O cão sem plumas foi


objeto de comparação com a imagem metafórica da ilha na poesia de
Corsino Fortes em Convergências e tessituras, de Rosidelma Fraga (Rio
de Janeiro: CBJE, 2010).

3 “Apublicação, em 1956, pela José Olympio, do livro Duas águas, ao


mesmo tempo em que reunia a obra de João Cabral, com os livros dos
anos 40 e 50 ― de Pedra do sono, de 1942, a O rio ou relação da
viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife, de
1954 ―, incluía também três novos livros. Os dois primeiros escritos
entre 1954 e 1955, e o último, em 1955: Morte e vida severina: auto
de natal pernambucano; Paisagens com figuras; e Uma faca só lâmina
ou a serventia das ideias fixas.” (BARBOSA, 2001, p.8).

4 A autotextualidade, de acordo com Jean Ricardou (apud Lucien


Dällenbach, 1979), refere-se a uma intertextualidade restrita, isto é,
como uma possibilidade de diálogo entre textos do mesmo autor.

5O texto “A máquina do poema” encontra-se primeiramente como o


quarto capítulo de Poetas modernos do Brasil. Nele, Benedito Nunes
(1968) discute a obra de João Cabral de Melo Neto, com ênfase em
Psicologia da composição, O cão sem plumas e A educação pela pedra.
Ao final da obra, é apresentada uma seleta de poemas do
pernambucano, bem como algumas imagens do Capibaribe e do
sertão em Pernambuco, entre outros estudos, como a pintura de Joan
Miró, o mestre plástico de João Cabral de Melo Neto.

5 Para Jean Ricardou (apud Lucien Dällenbach, 1979), há discrepância


entre a intertextualidade geral e a restrita. Segundo ele, a primeira
pode ser entendida como as relações intertextuais entre textos de
autores diferentes (como é o caso de Manoel de Barros e Corsino
Fortes e João Cabral), ao passo que a segunda, a intertextualidade
restrita, trata-se das relações entre textos do mesmo autor (conforme
se lê nas obras dos poetas supracitados, o que não é abarcado neste

7faces • 165
estudo, mas permite visualizar os intratextos, ou intertextualidade
restrita.

Referências

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Neto. São Paulo: Publifolha, 2001.
BATAILLE, George. O erotismo. Trad. Antônio Carlos Viana. Porto
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BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo:
Cultrix, 1971.
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e crítica literária. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.
CAMPOS, Haroldo. Metalinguagem. Petrópolis: Vozes, 1967.
CASTELLO, José João Cabral de Melo Neto. O homem sem alma. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. Trad. Marise Curioni.
São Paulo: Duas Cidades, 1991.
GONÇALVES, Aguinaldo. Transição e permanência. São Paulo:
Iluminuras, 1989
LIMA, Luiz Costa. Lira e antilira: Mário, Drummond, Cabral. São Paulo:
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Encontros Intelectuais. São Paulo: Editora Anhembi, 1974.
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MELO NETO, João Cabral de. Serial e antes. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1997.
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1996.
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e antes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.7-13.
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João Cabral de Melo Neto
© Antonio Augusto Fontes / Reprodução

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João Cabral de Melo Neto: ainda
o leitor
por Rafaela de Abreu Gomes

Silencioso: quer fechado ou aberto,


inclusive o que grita dentro; anônimo:
só expõe o lombo, posto na estante,
que apaga em pardo todos os lombos;
modesto: só se abre se alguém o abre,
e tanto o oposto do quadro na parede,
aberto a vida toda, quanto da música,
viva apenas enquanto voam suas redes.
Mas, apesar disso e apesar de paciente
(deixa-se ler onde queiram), severo:
exige que lhe extraiam, o interroguem;
e jamais exala: fechado, mesmo aberto.

João Cabral de Melo Neto, “Para a Feira do Livro”

Sabemos que, se olhássemos o mundo ao nosso redor e, em


movimentos rápidos, fôssemos capazes de perceber tudo o que nos
cerca, então já teríamos compreendido a estrutura de todo mínimo
elemento e não precisaríamos de nenhum processo interpretativo /
analítico. Nessa perspectiva, pensando nos primeiros movimentos do
entendimento de alguém, desnecessário seria aprender a ler.
Todavia, as palavras não são translúcidas, não podemos entendê-
las simplesmente olhando para elas. Para ler e interpretar as palavras
numa folha de papel é preciso, também, ler o mundo que dá, a nós,
leitores, e a elas, uma origem; ou, de forma mais simples: é preciso,
segundo Paulo Freire, ler a “palavramundo” (FREIRE, 2005, p.15).

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Por isso, não compreendemos os movimentos de leitura,
interpretação e análise desvinculados de seus aspectos contextuais e
circunstanciais, assim como não tratamos um entendimento como o
de “sistema literário”1, por exemplo, a partir de blocos capazes de
separar autor, leitor, obra e efeito. Para este trabalho, tais elementos
são pensados em relação, a fim de que, em conjunto, possam garantir
uma leitura atenta e crítica para uma obra literária2.
Então, considerando que podem estar guardadas, em atos de
leituras, responsabilidades significativas no que se refere à formação
intelectual de alguém, pensaremos a respeito da face leitora do poeta
João Cabral de Melo Neto, para quem o exercício da leitura foi
atividade contínua ao longo da vida, como ele mesmo afirmou, mais
de uma vez:

Leio pelo prazer de ler e não para esgotar uma


determinada literatura ou ler o que se está escrevendo no
momento. A leitura é, para mim, a coisa mais importante.
Quando me perguntam o que aconselharia a um jovem
para ler, eu digo que, para ler, é preciso ter prazer. Quem
tem esse prazer vai descobrindo o que quer ler. (MELO
NETO apud ATHAYDE, 1998, p.51)

Para João Cabral, leitura não foi sinônimo de responsabilidade ou


de obrigação. Sua relação com os livros esteve diretamente ligada às
circunstâncias de sua vida. Quando criança, leu os livros da biblioteca
paterna porque via seu pai lendo. Morando na Espanha, conheceu
autores cujos livros estavam nas estantes das livrarias que frequentava,
de modo que não direcionava suas escolhas com base em juízos de
valor. Sua postura parecia-se com a de um leitor curioso diante da
página não lida: só lendo ele poderia descobrir se determinado livro
seria de seu interesse. Essa liberdade leitora o fez conhecer textos
variados, nos países onde viveu. E, movendo-se por interesses leitores,
foi, aos poucos, construindo uma biblioteca pessoal.
Em todo o seu percurso como leitor, desde as leituras na biblioteca
de seu pai até a grande biblioteca de seu amigo Willy Lewin e as muitas
outras que conheceu nos países onde viveu, João Cabral construiu e
alimentou em si aquilo a que Umberto Eco chamou “memória vegetal”
(ECO, 2010, p.9), que, num solo, pode crescer e se desenvolver se for
devidamente cuidada e, no espaço da mente humana, deve ser

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constantemente revisitada, a fim de que as lembranças não percam,
das leituras já realizadas, os detalhes de suas formas.
A memória faz um homem conhecer a si, mas é necessário que ele
filtre suas percepções; do contrário, correrá o risco de se perder em
meio às lembranças que tem ― filtrando-as, é possível identificar e
entender o papel de cada uma em sua formação. No âmbito da
memória vegetal cabralina, podemos encontrar os autores de sua
biblioteca pessoal, sobre os quais o poeta falou abertamente nas
entrevistas que concedeu ao longo da vida, reconhecendo em cada um
deles uma influência para o seu trabalho poético.
Uma postura de João Cabral, diante dos autores de sua biblioteca
pessoal, bem como seu modo de enxergar a linguagem poética com
forte carga de objetividade, podem ser argumentos utilizados pela
crítica para adjetivar o poeta com denominações excessivamente
“matemáticas”, como se ele, enquanto autor, detivesse todo o domínio
sobre sua poesia e o leitor, diante de um poema seu, visse
prontamente o que ali representa a “intenção” do poeta.
Consideramos que essa é uma forma extrema de ler a obra
cabralina, uma vez que entendemos a leitura do ponto de vista
receptor de Hans Robert Jauss, para quem há um horizonte de
expectativas do leitor sobre uma leitura, ou seja, “há na experiência
literária um saber prévio [...], com base no qual o novo de que
tomamos conhecimento faz-se experenciável” (JAUSS, 1994, p.28). O
“saber prévio” pode ser tudo o que o leitor espera encontrar num texto
literário, desde as expectativas levadas para uma leitura que, uma vez
concluída, poderá apresentar novas possibilidades interpretativas.
Além disso, embora com um caráter mais “denotativo”, os poemas
cabralinos não são uma espécie de espelho refletor para situações
definidas. Mesmo que momentos continuados de escrita tenham
integrado a rotina de João Cabral, ele não pode ser caracterizado como
poeta artificial; seus versos mostram uma escrita poética disciplinada
pelo hábito de escrever, não a de alguém que, mecanicamente, decide
escrever poemas. Seu trabalho com a linguagem é minucioso, mas
diretamente ligado à observação do cotidiano (e de seu próprio fazer
poético), através de pessoas nas ruas da Espanha, das paisagens do
Recife, da vida e, nela, as nuances que chamaram sua atenção. Sobre
esse aspecto, Félix de Athayde foi claro quando disse que Cabral

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Escreve sobre a vida (forma em movimento) e não sobre o
que já é morto (forma inerte). Seus poemas são, antes de
tudo, forma, mas forma trabalhada. Somente através do
trabalho (da forma) é que a linguagem se desenvolve e
evidencia as coisas. [...] Lógica, racional, realista,
materialista e crítica. Sua poesia, quase sempre, é ‘uma
visão crítica da realidade’. (ATHAYDE, 2000, p.16)

Há muitas grandezas à espera de descobertas nos poemas


cabralinos, e a relação entre questões lógicas, racionais, realistas,
materialistas e críticas pode ser uma das mais fortes, uma vez que
pensar em uma poesia clara e objetiva, construída a partir de
elementos circunstanciais e materiais é tarefa exigente. Esses aspectos
precisam ser analisados na obra poética de João Cabral; do contrário,
facilmente se confundirá sua disciplina para a leitura e para a escrita
com posturas artificiais. Vejamos, por exemplo, de que modo essas
questões estão contidas nas quatro primeiras estrofes do poema “A
Mesa”, de O engenheiro (1945):

O jornal dobrado
sobre a mesa simples;
a toalha limpa,
a louça branca
e fresca como o pão.
A laranja verde:
tua paisagem sempre,
teu ar livre, sol
de tuas praias; clara
e fresca como o pão.
(MELO NETO, 2007, p.49)

Há signos de materialidade em quase todas as palavras utilizadas


pelo poeta, a começar por “mesa”, assim como “jornal”, “toalha”,
“louça”. Combinadas, tais palavras sugerem ao leitor um ambiente
claro, limpo e ventilado. Em seguida, visualizada a imagem, o poeta
passa para outro nível de materialidade: dos objetos e utensílios, vai
para o concreto dos alimentos, do pão e da laranja, claros e frescos,
em harmonia com a mesa pronta para o café da manhã. Só então a voz
poética nos fala da luminosidade da paisagem e do sol, do ar e das

7faces • 172
praias, e nós percebemos como, partindo de certa materialidade, em
sequência lógica, somos apresentados a imagens harmoniosamente
combinadas, realizando-se em manhã tranquila.
Para João Cabral, sua vontade era “falar numa linguagem mais
compreensível desse mundo de que até os jornais nos dão notícias
todos os dias, cujo barulho chega até nossa porta.” (MELO NETO apud
CARVALHO, 2011, p.21). Isso é algo que um escritor procura fazer,
mesmo sabendo que há uma distância entre seu movimento de leitura
do mundo, a partir do real que alimenta o fazer poético, e as infindáveis
leituras que serão feitas de sua obra ao longo do tempo.
Outros autores manifestaram o desejo pela escrita simples, como
sugere Autran Dourado, dirigindo-se ao jovem aspirante a escritor,
dizendo-lhe para seguir “os gregos, que diziam da maneira mais
simples e concreta as coisas mais profundas” (DOURADO, 2009, p.9).
No âmbito da poesia cabralina, consideramos que houve uma escolha,
em lugar de imagens abstratas e emotivas, que visasse a possibilidade
de “escrever friamente uma coisa que contenha emoção para o leitor”
(MELO NETO apud ATHAYDE, 2000, p.28).
Nesse sentido, o trabalho cabralino com a linguagem esteve muito
ligado ao papel do poeta como leitor, que ele manteve durante toda a
vida ― e quando a visão não lhe permitiu mais se dedicar ao exercício
da leitura, havia o imenso vazio que isso lhe causava.
Em depoimento para os Cadernos de Literatura Brasileira, Joan
Brossa se diz influenciado por João Cabral, sobretudo quando o poeta
afirma que “a poesia e a arte deveriam ter algum comprometimento,
mas que isso não poderia ofuscar a personalidade do artista” (IMS,
1996, p.16). Em nosso ponto de vista, isso é fruto da presença forte do
poeta / leitor ao lado do poeta / construtor, uma vez que a observação
de uma circunstância e / ou de um traço circunstancial representaram
motes para o processo de criação cabralino, o que podemos observar,
por exemplo, com a notícia que o poeta leu em Barcelona, ainda na
década de 1940, a respeito de a expectativa de vida no Recife, à época,
ser inferior à expectativa de vida na Índia, o que o motivou a escrever
O cão sem plumas (1950).
No poema “Paisagem do Capibaribe”, conhecemos uma voz
poética a nos mostrar as condições do rio, e da gente às suas margens.
Vejamos a segunda e a terceira estrofes do poema:

O rio ora lembrava

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a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.

Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.
(MELO NETO, 2007, p.81)

Os versos são construídos quase inteiramente com predicações


negativas que, gradativamente, vão alcançando níveis mais críticos,
uma vez que, se na primeira estrofe, somos aproximados do rio que
lembra as características de um cão abandonado, do qual apenas a
língua é mansa (na esperança de ser alimentada), a barriga, por estar
vazia, é triste, e os olhos, por terem visto cenas ruins, não espelham
mais a inocência e a confiança características dos cachorros; na
segunda, o rio é personificado na figura do cão ― recebia mansamente
o que lhe davam, como a língua faminta do cão que, movida pelos
instintos do animal, aceita o que for para saciar a fome e não se move
por predileções. Possuía, também, o leito triste por já não ver
nenhuma vida e os olhos sujos porque, em lugar de peixes, só o lixo
tomava conta de suas águas.
Vejamos, ainda, na quarta estrofe, como a caracterização do rio
vai se desenvolvendo:

Sabia dos caranguejos


de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.

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(MELO NETO, 2007, p.81)

Para além da representação poética de uma realidade pobre do


Recife, o cão que não tem plumas configura o vazio do homem
nordestino que, dificilmente, retiraria da terra fértil e irrigada, o
sustento de sua vida. Estamos, por isso, diante de voz poética sensível
e lúcida, capaz de relacionar o rio Capibaribe à imagem, quase
absurda, de um cão que não tem plumas, isto é, não tem sequer o que
não poderia ser seu; ao mesmo tempo em que, numa sequência lógica,
nos levará a concluir que, se o rio é como o cão sem plumas e o homem
é como o rio, então os dois são como cães sem plumas e, predicados
com a ausência, têm o vazio em sua natureza.
Então, sobretudo como leitor, João Cabral não deixou de
relacionar palavra e mundo, num processo de criação em que a
metalinguagem foi trabalhada ao lado das observações do poeta, a
partir do terceiro livro que publicou, O engenheiro (1945). Desde
então, há, em sua poesia, uma preocupação maior com as questões
humanas, no sentido de que “A imaginação, como as demais funções
do espírito, não pode usufruir de si mesma; está sempre engajada num
empreendimento” (SARTRE, 2004, p.40), ou seja, o trabalho
imaginativo, neste caso, o trabalho com a poesia, não tem sentido
quando voltado apenas para si. Ele deve ser posto a serviço da
elucidação de questões humanas, o que, para a obra cabralina, se
mostra fundamental, já que “o poeta é humanista por excelência”
(MELO NETO apud ATHAYDE, 1998, p.45).
No caso de João Cabral, “engajar-se num empreendimento”
significa estar atento a circunstâncias, com a lucidez de quem, embora
vivendo em diversos lugares do mundo, soube observar atentamente
aquilo que via e de que tomava conhecimento, inclusive em relação ao
seu lugar de origem, o Recife, para transformar o que via, através de
sua linguagem poética, em versos que, uma vez conhecidos, fazem
com o leitor questione cenários, situações e lugares sem, para tanto,
amparar-se em ideologismos. João Alexandre Barbosa considera que
haja, mesmo, na poesia cabralina

uma espécie de educação em toda a sua obra, que se


manifesta em termos de uma singular imitação:
aprendendo com objetos, coisas, situações, paisagens,
etc., a sua linguagem foi, aos poucos, montando uma nova

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forma de ver ― que o leitor, por sua vez, aprende ao
apreendê-la ―, jamais permitindo-se a facilidade de um
dizer didático, desde que sempre dependente do fazer
poético. (BARBOSA, 1986, p.108)

A educação referida por João Alexandre Barbosa é, para nós, fruto


desse caráter leitor de João Cabral, diretamente associado à maneira
visual que o poeta tinha de lidar com as palavras ― para ele era preciso
ter, antes, uma imagem do poema e só depois, colocá-lo no papel em
branco. Quando viu, por exemplo, o toureiro espanhol Manolete
tourear, disse que ele “não fazia um gesto de ‘mais’. [...] Manolete não
fazia absolutamente nada, ele ficava em pé e o touro é que rodava em
volta dele” (SIBILA, 2009, p.89). Então, ver Manolete diante do touro,
foi, para o poeta, uma oportunidade de observar seu modo de
escrever, a fim de retirar dos poemas as palavras que, em seu ponto de
vista, estivessem sobrando, para que sua voz não parecesse
excessivamente lírica.
Não há relação direta entre a postura de um toureiro e o processo
de construção poética, mas o poeta / leitor sabe observar e ler o
mundo que o cerca, de modo a apreender imagens e levá-las para o
seu trabalho com a escrita, uma vez que “A leitura do mundo precede
a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa
prescindir da continuidade da leitura daquele” (FREIRE, 2005, p.11).
Portanto, consideramos que a face de João Cabral como leitor é
fundamental para quem se debruça sobre sua poesia; o poeta não
escreveu livros cuja estrutura fosse repetida, esteve preocupado com
a novidade que poderia ser alcançada em versos, numa consequência
de observações continuadas do mundo que o rodeava, bem como da
análise que fazia das obras literárias das literaturas da Espanha e do
Brasil, com as quais mais conviveu, observando estilos e temas, a fim
de alcançar seu método particular de criação literária.
Embora esse caminho, que parte da leitura para a escrita, seja
comum a quem procura criar algo, é preciso dizer que, para João
Cabral, leitura e escrita representam uma ideia obsessiva, isto é, uma
ideia muitas vezes trabalhada ao longo de seu percurso poético e
ensaístico.
Ademais, o poeta comentou, algumas vezes, acerca de sua relação
com a leitura, o seguinte: “tenho o vício da linguagem, quer dizer, o
vício de ler, o vício da leitura. Desde que me entendo por gente, não

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me lembro de mim, mesmo menino, senão com um livro na mão. Eu
tenho a doença de ler.” (MELO NETO apud ATHAYDE, 1998, p.52), de
modo que os movimentos de leitura e escrita, interligados, foram
constantemente retomados pelo poeta como fundamentais para o seu
processo de composição da poesia.

Notas

1 Em Formação da Literatura Brasileira (1975), Antonio Candido


propõe o conceito de sistema literário, segundo o qual o autor está
relacionado à obra literária e ao público leitor. Há a “existência de um
conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes de seu
papel, um conjunto de receptores, formando diferentes tipos de
público, sem os quais a obra não vive, um mecanismo transmissor [...],
que liga uns aos outros” (CANDIDO, 2000, p.23).

2 Esse ponto de vista se coaduna com a discussão proposta por


Dominique Maingueneau, em “A embreagem paratópica” (In: O
Contexto da obra literária, 2001), segundo a qual há “uma espécie de
embreagem do texto sobre a situação paratópica do autor. A
embreagem linguística permite ancorar o enunciado numa situação de
anunciação. Para isso, emprega elementos (os embreantes) que
participam ao mesmo tempo da língua e do mundo que, embora
permanecendo signos linguísticos, adquirem seu valor por meio do
evento enunciativo que os carrega. Naquilo que se poderia chamar
embreagem paratópica, estamos diante de elementos de ordens
variadas que participam ao mesmo tempo do mundo representado
pela obra e da situação paratópica através da qual se define o autor
que constrói esse mundo.” (MAINGUENEAU, 2001, p.17, grifos do
autor).

Referências

ATHAYDE, Félix de. Ideias fixas de João Cabral de Melo Neto. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira: FBN; Mogi das Cruzes, SP: Universidade de
Mogi das Cruzes, 1998.
BARBOSA, João Alexandre. As ilusões da modernidade. São Paulo:
Perspectiva, 1986.

7faces • 177
CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: momentos
decisivos. 6 ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2000.
DOURADO, Autran. Breve manual de estilo e romance. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2009.
ECO, Humberto. Memória vegetal. Trad. Joana Angélica d'Ávila. Rio
de Janeiro: Record, 2010.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. São Paulo: Cortez, 2005.
INSTITUTO MOREIRA SALLES. Cadernos de Literatura Brasileira. João
Cabral de Melo Neto, n.1, Rio de Janeiro, 1996.
JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à
Teoria Literária. Trad. Regina Zilberman. São Paulo: Ática, 1994.
MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária. Trad.
Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
MELO NETO, João Cabral de. Poesia completa e prosa. 2 ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira: 2007.
SIBILA, Revista de Poesia e Cultura. Conversas com o poeta João
Cabral de Melo Neto. Número especial em pdf/Ano 9, número 13,
agosto de 2009.
João Cabral de Melo Neto. Nº 1. Rio de Janeiro: Instituto Moreira
Salles, 1996.

7faces • 178
POEMAS (2)

7faces • 179
7faces • 180
Isabel de Carvalho
Albergaria-a-velha – Portugal

Nascida em Coimbra. Vive em Albergaria-a-Velha, Portugal.

7faces • 181
7faces • 182
Corvo
Corvo que vive dando a morte
Deram-te tal sorte.
Tinhas de ser tu de mau agouro.
Não podias simbolizar o ouro?

A Natureza fez-te para viver,


Mas à tua passagem, quem irá morrer?

Qual o significado deste poema, deste animal?


Será o corvo simbólico?
Ou o poema foi escrito por um ornitólogo?
Oh corvo! não sei que fizeste para merecer este mal.

7faces • 183
Crença

Não sei se os outros creem no


que escrevem.
Eu não sei se creio naquilo
que escrevo.

A escrita e a leitura são como Deus:


há que ter fé na mensagem e nas palavras.

7faces • 184
Edwardo Silva
Manaus – Amazonas

Edwardo Silva, nasceu em 1996, em Manaus, Amazonas. Aluno do curso de Medicina na


Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

7faces • 185
7faces • 186
almiscarado e refrescante, com notas cítricas de abacaxi e mel

o aroma que subitamente revela


um fóssil imaterial,
a matéria da memória
preservada no âmbar cruel da indiferença
uma dócil recordação proustiana reverbera
na parede lateral do crânio de plástico
e ao centro o circuito degenera
na escuridão cósmica
na bruma eletroquímica
e no instante seguinte, no fim do milênio,
é especialmente intrigante a voz na janela
que ofuscante regenera e estoura
a lâmpada incandescente de tungstênio.

7faces • 187
estranhos sinais de urano

um poema paleolítico
construído na fonética
de grunhidos cavernícolas
e destruído na estética
de versos dodecassílabos.

um cínico hieróglifo abstrato


inscrito na parede do sótão de um antiquário,
a ruína monolítica e antediluviana de uma escultura
que jaz no interior do porão de uma floricultura,
a radiografia de uma pintura velha,
natureza-morta de sempre-vivas,
em exposição na área interditada
de uma biblioteca abandonada,
um inexplicável palimpsesto soterrado.

a rima silenciosa e apocalíptica de um protozoário,


o carbono-quatorze
de uma vibrante lágrima de quartzo.

7faces • 188
o anárquico ato de futricar a fruta

a árvore frutífera fincada no quintal


no tronco uma placa pregada estabelece:
'não mexa na fruta!’
a decrépita repetição de gênesis,
de certo versículo,
a imperativa restrição antifrugívora e antifrugal
o absoluto ridículo,
a regra infrutífera,
e o doce prazer de violá-la
o puro desfrute em desobedecê-la integralmente
e da fruta o prazer em cravar-lhe o dente
e imprudentemente comê-la.

7faces • 189
quero ter uma morte ridícula e heroica

quero ser esmagado


por um piano desafinado,
guilhotinado pelos revolucionários,
quero contrair a gripe espanhola.
morrer de hilaridade fatal

quero ser executado, silenciosamente,


na agulha sutil de uma injeção letal,
rápida e indolor,
ou ruidosamente gritando, dilacerado
na boca irracional de um bicho faminto
de preferência uma girafa rosa carnívora.

quero que um vaso de flores raras e perfumadas


despenque da varanda
do nono andar de um edifício comercial
e fragmente meu crânio em mil e um pedaços.

falecerei cochilando no fim da tarde,


envenenado no café da manhã,
devorado em ritual canibal no pacífico sul,
sufocado pelo inseticida,
nu no auditório, no palco do teatro,
no ringue de boxe,
magicamente aniquilado por um xamã voodoo.

quero partir depois de amanhã


ou na antevéspera do juízo final,
quero engasgar com a réplica em miniatura
de um violino stradivarius.
me intoxicar com uma framboesa amarga.

quero morrer no meio do meu espetáculo de ilusionismo


no picadeiro de um circo itinerante
com os holofotes focalizando
o vendedor de algodão doce.
serei então taxidermizado no formato dum boneco de ventríloquo
e por fim descansarei
na gaveta fria do morgue,
no absoluto silêncio de um solilóquio infinito.

7faces • 190
Nayara C. P. Valle
Barra do Cuieté – Minas Gerais

Nasceu a 13 de setembro de 1979. Cresceu em Barra do Cuieté, Minas Gerais, um vale entre
o rio e o mar. Formada em Letras-Português e pós-graduada em Jornalismo Cinematográfico.
É autora de Esmeril (Editora Urutau).

7faces • 191
7faces • 192
A mulher viajante

Numa hora qualquer morreu a mais tenra Flor


enlutecendo o jardim do cimo da cidade
O seu sorriso enrugado antecedeu em muitos dias
as badaladas. E por ela nenhum sino dobrou-se
Na derradeira festa, gritam e engasgam rezas e
cânticos esticados noite afora
– ouve-se do coro sacro a melodia chorosa
a ondular a fonte esgotada da juventude
em que ela se perdeu
Amontoam-se curiosos seduzidos pelo choro
e moribundos famintos de lágrimas e dor
Carpideiras despreparadas não engomaram os lenços
de linho branco
Bandolins esgarçados encorajam os lamentos –
ressoando por todo o adro notas de vida eterna
Nenhum ornamento nas pétalas roçadas de morte
Adentrada a noite, ela segue ainda mais mirrada –
os lábios pálidos que um dia beijaram a cana
repousam cerrados sem a lembrança do sabor
Os fiéis apinhados no templo imploram pela alma –
estrangeiros à dor familiar
Todos suspeitam, mas nunca saberão – talvez nunca –
que do outro lado ela vê as ramagens
do seu recente corpo-cadáver – que ainda dói! –
murcharem
Vertem-se lágrimas diáfanas: ainda apegada à velha de mãos exaustas sentada ao lado
da urna –
perdida nas contas do terço a reza infinita e amarga
afogando-se na tarefa angustiosa de reter as horas...
Nenhum arremedo nenhum consolo divino –
não existe palavra de ordem neste exíguo universo que caminha
e conspira para o aniquilamento voluntarioso das frágeis criaturas
E cada lágrima cimentada no inalcançável corpo da morta
servirá de um lutuoso regalo para a expiação dos vivos
alimentando de fé a promessa no reencontro
da alma silenciosa a vagar pelo Tempo.

7faces • 193
Errância

Enquanto caminhas
trôpego pelos cânions
eu sigo arrastada
pelos abismos
da velha casa
As mãos inquietas
sempre à procura de mim
nas sobras da mudança
dos que se foram
No mesmo instante, sob os pés
a poeira levanta
cobrindo teu corpo desértico
– paisagem secreta
que te abriga dos outros

O rímel endurecido
ainda cobre os cílios
da menina que me olha
do outro lado do espelho
Assim, tu também te voltas
silencioso e abrupto
para a Terra revolta
de lembranças infantis
daquele que foste
nas histórias que te contaram

Que buscas, homem?


pode um nome guiar
a tua errática andança
ou os ecos de outras vozes
darem sentido ao teu
irredutível alheamento?
A tua procura por ventura
encerra a recôndita imagem
que guardaste dos desenhos
que fizeram de ti?

Busco uma versão rasurada


de quem me deu à luz
ou frases gentis
que dirijo a mim mesma
enquanto bebo e enceno
a peça repetitiva da criança exilada?

7faces • 194
Entre o jogo de chá do casamento
e os vestidos sob medida
– para o corpo que outrora me hospedou –
acarinho a escuridão que alerta:
não são seus, não lhe pertencem

Homem
estou – e tu estás também –
encerrada no espesso cristal
errando pelos mesmos caminhos
do antes e do agora –
exaustivo esforço
de reter, ávida
a memória que escapa
a este tempo margeado
de palavras despovoadas
que contam tudo e nada
sobre nós
A errância é o teu caminho
e tua possível verdade
Como tu, deslizo
inconstante e desconfiada
se a cada verso que atravesso
afasto de mim o que sou
como se riscasse o cristal
a sombra da luz que findou.

7faces • 195
Lamento noturno

Oh, noite, agora eu acordo


para tua aconchegante nudez
Eu mesma arrancada com violência de mim
indesejosa, rasgando as fibras do ser
Sedenta e abismada com a escuridão
com que me acolhes
Teço em tuas horas a angústia estreitada
em meu peito, até o romper da aurora
sufocando cada grito – espinhoso, insistente
acumulado das horas claras
Súbito entrego meus lamentos
que acaricias como a mãe às suas filhas
Choro no umbral do quarto os meus pesares
ternamente enovelados no decurso do dia
Sinto-me esmagada pelo peso renitente
aderido ao meu dorso descarnado
dos desejos inconclusos e insistentes
Entrego-os para ti, para que, com tuas
lâminas de gelo perfures todos os anseios
permitindo que extravase o afeto cultivado
das resoluções derradeiras, das andanças pelo tempo
seletivo e fantasmático, da estrada de pedra cristalina
rumo à Casa inalcançável
nas curvas da memória que se esvai...
Toma, oh noite, as palavras embriagadas
com que brindamos. E, juntas, seremos dois astros
assombrados, cobertos pela névoa cinza
misturando-nos uma à outra
como irmãs que separadas ao nascer
se reconhecem no instante
em que se olham.

7faces • 196
Irmãos

Passas por mim


aos tropeços
e esbarrões
não te desculpas
pela névoa
indelicada
que carregas
em teus punhos
Eu, a mulher inapreensível
sou sólida
mas não o sabes
Eu sou
mesmo que não me vejas
Sou raiz antiga
Tu pressentes como sou
inamovível para ti
mesmo para ti
que apenas sentes

Distanciei-me de mim
por muito tempo
mas acordei do sonho
enrodilhado de futuro
movendo-me de volta
para o seio que nunca seca
– abrigo delicado
dos escombros do tempo
onde reúno farpas
para entrelaçá-las
aos meus nós

Ouço teu anseio


de ver o mundo
pois já cansaste
da tua imaginação
Não sabes tu
que minha ambígua raiz
cresce incansável
em direção a este lugar
perdido e escuro
que queres desatar

Pintamos as mesmas flores

7faces • 197
cinzas
Solitários
assopramos o pó
por cima das cabeças
dos Homens
e seguimos cambaleantes
com o bordado
do melhor caminho
gravado nas mãos
Somos irmãos
mas não me reconheces
Me molhas
desgastando bruto
as minhas margens
de minério de ferro
a cada encontro
És um rio
audaz e caudaloso
movendo todos de ti
enquanto andas

Reconheço-te
portanto, peço:
ouve meu grito talhado
de assombro de descrença
de abismo
e saiba:
a cada atropelo
levas consigo
um vão escavado
da dureza sombria
com tuas mãos liquefeitas
Peço-te ainda, com ternura
não desfaças os esconderijos
porosos
que me abrigam de Deus.

7faces • 198
Claudia Baeta Leal
Rio de Janeiro – RJ

Claudia Baeta Leal é paulistana, formada em Letras pela UNICAMP, com pós-graduação em
História, e servidora pública federal. Além de alguns artigos em periódicos acadêmicos e da
organização de livros sobre história do Brasil, publicou dois poemas na revista Alagunas, em
2018, e o livro de poesia Itinerário: ida e volta, em 2019, pela Editora Letramento.

7faces • 199
7faces • 200
Queimada

Ardo
Queimo em combustão aguda,
criminosa.
Na vastidão
de um incêndio incontrolável,
sou fagulha, brasa
e chama.
Carvão como propósito.

Ardo.
Marco clarão na noite,
clareira aberta, vil e clandestina, na floresta.
Mata morta em chamas
e fim.
Queimo o verde, o mato, a carne,
o chão.
Carbonizo.
Estalos de madeira em sinfonia,
nacos de minha carne
que alimentam de carvão
bichos famintos e feridos.

Ardo.
Queimo por terra e por ar.
Cavo rios de lava;
risco o céu de fumaça e podridão.
Os vapores fétidos me levam
a todo canto:
nuvens podres carregadas.
Choverei tóxica,
mas só depois.
Olhe bem:
já está escuro!

7faces • 201
7faces • 202
Thiago Alexandre Tonussi
Uberlândia – MG

Nascido em Uberlândia-MG, cresceu em Piracicaba-SP, de onde mudou-se para Europa aos


vinte anos de idade. Depois de passar por alguns países hoje reside em Londres, na
Inglaterra. Formou-se em Línguas Modernas e Literatura Comparativa pela Universidade de
Londres (Birkbeck). É autor de Mundo na boca. Os poemas que seguem parte deste livro.

7faces • 203
7faces • 204
Mundo na boca

Não gosto de palavra acostumada


Manuel de Barros

O Mundo é demasiado grande. Não cabe na folha


de árvore. Mesmo quando acompanhada de outras
folhas de papel reciclado ou não. Diga-me então
como pode o mundo caber numa única palavra?

O Mundo cabe na palavra mundo. Não é isto mágica?


Uma única palavra contendo tudo: minhoca coca
cola drogaria Cinderela primavera canhões e guerra

tico-tico e no fubá, Elvis Presley e sepultura, molhar-se


de chuva sorvete lua e rabanete, computador dor e puta
Omo presilha China e Bhagavad Gita, penico e sol e sul

pulga pólvora Amazônia e língua. De tudo cabe na palavra


mundo. Até submarino buraco negro buraco branco e buraco
de ozônio buraco escuro e barraco, cinzas e noite e drama. Tudo

junto numa única palavra. Lindo! Lindo é isto de mundo


caber na boca de todo mundo

7faces • 205
Segundos

e não matarás

A cada segundo
alguém morre de sepse no mundo. E mata-se um boi um porco
e 185 frangos
que muito provavelmente nunca viram o sol
A cada trinta
segundos
morre alguém de malária
Ouvi dizer que a cada dois
alguém morre de prazer ou por falta de sangue. De fome se morre sempre
Sempre que se come rodízio ou põe-se comida no lixo. Isto é
a cada três segundos
morre uma criança de fome e toda a humanidade se suicida
a cada três segundos
Aqui
é quando a demência e toda a angústia tomam conta

Aos quatro segundos


um novo refugiado surge no mundo
tanto no mundo da loucura quanto no mundo dos loucos
Mas que importa, todo esse blábláblá
se no quinto segundo já se vendeu mais de 35.000 produtos da Coca-Cola no mundo?
Sim! É uma pergunta sem reposta
o fato de que a cada cinco segundos uma criança morra de causas evitáveis
como por exemplo
falta de amor

Também em cinco segundos


duzentas e cinco mil novas publicações são feitas só no Facebook. E
como não só criança morre
mas trabalhador também morre trabalhando
Morre um trabalhador a cada 15 segundos
em acidente incidental, tal qual, depressão falta de tesão desilusão. Isso
se não tiver tido derrame cerebral

Se por acaso sobrevivemos aos seis segundos


Então morremos muito provavelmente morreremos
de doenças relacionadas ao tabaco diabetes ou de AVC
Não podemos esquecer
a cada sete segundos
uma menina menor de 15 anos é forçada a se casar e se casando a abrir as pernas

7faces • 206
sempre que o patrão queira e sem reclamar de solidão de falta de carinho de falta de
prazer
de tristeza

Agora
oito são os segundos
necessários para matar um ser vivo saudável e rico em verdura
sabores e sabedoria
e do tamanho de um campo de futebol
Consigo morre, quando este ser vivo morre, morre
mais vida do que toda a humanidade junta jamais verá ou criará
infelizmente

Felizmente
descobrimos que segundo os números
somente quando alcançamos o nono minuto
e não segundo
Alguém morre assassinado com um tiro na cabeça e outros cento e dois tiros
no resto do corpo
Com uma paulada e outras sessenta e oito facadas nas costas
Ou estrangulado depois de estuprado ou estuprada em plena luz do dia e praça pública
transmitido ao vivo
para todo o nosso abençoado país

Quando chegamos aos dez segundos


a esperança já morrera
há muito tempo. E aqui morremos
Mas depois de tudo
a única pergunta que me resta É
quem come todos os frangos que morrem enquanto este poema nasce
para quem o lê pela primeira vez?

7faces • 207
(Sem nome)

uma xícara egípcia com café colombiano


uma revista de filosofia sobre livros de poesia
uma estátua de Sócrates trazida da Grécia
mas feita na China, presente de uma irmã

livros como o Bhagavad Gita misturados com a Bíblia


ensinam-me, há poesia percorrendo as veias da rotina
há poesia nos caminhos dentre ruas vazias de insetos
há poesia nos vocábulos: estupor verborragia e caipira

e onde estará nossas vidas senão lá do lado de fora


da palavra, no passo não dado ainda, na semente
que morre só para que nasça uma nova primavera
e da primavera um Monet, um Goya, um florilégio

contendo entre os seus muitos trechos em verso


um que diz amar é colar-se em todos os sentidos
mas o mais bonito, é o fato provável, eu não existo

7faces • 208
Francisco Romário Nunes
Piripiri – Piauí

Nasceu em Quixeramobim, Ceará, onde iniciou a carreira profissional como professor de


Literatura. Mudou-se para o Piauí onde atualmente é docente da Universidade Estadual do
Piauí (UESPI).

7faces • 209
7faces • 210
promessas

guarda esse rosto que não é teu


não revele teu cândido segredo
tu que conheces tanto do medo
feito um livro que ninguém leu

a absolvição é tua testemunha


permanente silêncio da prece
eis o fértil tempo que aquece
na utopia que a vida empunha

lua guardadora de memórias


brilha como um afago de luz
na existente sombra da cruz
vive em revoada de histórias

o olhar é a própria revelação


e as promessas se cumprem
e todos os caminhos se unem
na fonte que flui sem direção

7faces • 211
transmutação

nos arrebóis da fantasia


vi imagens distorcidas
tudo em transmutação

é feito
não se esqueça
se gente imitasse árvore
não haveria tanta matança

pois que
num arco-íris de penas
a terra choveu passarinhos

e os rios
ah, os rios
os rios voam nas nuvens

7faces • 212
Alves Candeira
Belém – PA

É aluno de Economia na Universidade Federal do Pará.

7faces • 213
7faces • 214
foi a única coisa que restou dela em mim.

fazia tempo que eu não conversava com ele


uns meses, eu acho
enfim, nada mudou.
percebi que o seu cabelo cresceu
e que alguns pelinhos de barba despontavam
perguntei se ele estava bem com isso
e ele me disse que sim, que estava ótimo
perguntei sobre o seu caso anterior
que foi com uma garota que acabou viciada demais
em algumas coisas absolutamente desnecessárias
como drogas sintéticas
ele me disse que estava tudo ótimo
perguntei: sério?
sério, ele me respondeu
o que fez para tudo ficar tão bem?
nos separamos, apenas isso
e você, perguntei,
continua viciado em sintéticos também?
sim, é claro, foi a única coisa que restou dela em mim.

7faces • 215
7faces • 216
Thássio Ferreira
Rio de Janeiro – RJ

Thássio Ferreira (São Gonçalo, 1982). Escritor radicado no Rio de Janeiro, publicou os livros
de poesia (DES)NU(DO) (Ibis Libris, 2016) e Itinerários (Ed. UFPR, 2018). Tem poemas e
contos publicados em revistas e antologias, como a Revista Brasileira (n. 94), da Academia
Brasileira de Letras, Escamandro, Gueto, Mallarmargens e Germina. Seu conto “Tetris” foi
vencedor do Prêmio Off Flip 2019, e seu livro inédito Cartografias, finalista do Prêmio Sesc
2017. Participou da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) em 2017, 2018 e 2019. Os
poemas que a 7faces publica integram o livro Cumprir o amor, no prelo.

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7faces • 217
7faces • 218
agora (depois)

a casa está limpa dos teus sinais.


a playlist de canções tristes
com alguns saltos e muitos repeats
está zerada.
a conta conjunta está extinta
e a do gás voltará ao meu nome
mês que vem.
guardei três ou duas
camisas tuas
para mim
— gosto delas.
nossos retratos e os presentes
que me deste
estão no fundo do fundo
do armário
— alguns eu deitei fora
ou doei, porque doíam
mais ainda depois
que vi os presentes
que te dei e pedi
para levares contigo
jogados atrás do sofá
(farpa a mais na carne
desses dias).
teu travesseiro levaste.
teu riso levaste.
teu desamor também.
agora, só memória.

7faces • 219
a casa limpa

a casa, mesmo limpa


da tua voz, de teus sinais
guarda inda teu silêncio
que não consigo limpar
dos cantos
das frestas
do risco
no chão de taco.

habito sozinho
um silêncio
que não é o meu.

é difícil
respirar aqui
no teu silêncio.

talvez eu adote um cão.

7faces • 220
o amor afogado

a mudez de aquário
dos passos parados
que marco e apago
na carne dos dias
— no horizonte
sem onde
em que sequer
me embalo
desaprumado —
engordando
meu quarto
de saudades tuas

apaga as chagas
que a tua presença
petrificava
em meus lábios:

a dor de calar
o amor afogado
com que hoje me abraço

é menor que o cansaço


de nadar em tuas águas
sempre contracorrente
(sempre sempre sempre)

: desamparado náufrago

7faces • 221
outra quadrilha

João amava Raimundo que amava João


e até aqui era valsa, não quadrilha.
Mas Raimundo se apaixonou por Joaquim
que era casado com Fernandes
que o esperava na Alemanha.
Joaquim propôs a Raimundo
que fugissem
— louco amor! ––
mas Raimundo teve medo.
Joaquim foi para a Alemanha
e Raimundo ficou com João
até que João descobriu tudo
e depois de semanas
dançando sozinho
no escuro da sala
indaga-se agora
se conta a Fernandes
sobre esses passos
desencontrados…

7faces • 222
esse dia

as mãos do desamor
com sua aspereza de areia
e sua naturalidade — feita
dos invisíveis sem
pressa nem medo

teceu calada
esse dia
— ao nosso lado
na cama
na mesa
na praia —
durante as horas
ávidas
em que tentávamos
ser felizes

descuidados

7faces • 223
quando

quando o amor morreu


não sei
na confusão
dos lençóis a lavar
dos gestos espreitados
dos espinhos que se entranham
em nossa carne
e quando lembramos
de os tirar, porque doem já
depois de muitos dias
não conseguimos mais.

mas vi que o amor morreu


num dia de sol
frente ao mar
(esse grande amor
involuntário da matéria
pela matéria).

talvez tudo que precisasse


fosse clareza
silêncio
e esse travo de sal.

7faces • 224
cumprir o amor

cumprir um amor
como cumprir uma
maternidade
quando se vive mais tempo
que os filhos
(que a paixão)
porque o tempo às vezes
mata
vida, amores, filhos
às vezes morre:

mesmo com toda


dor, toda
dúvida, todo
martírio pelo que
não fizemos
(ou fizemos)
o conforto feito
um fôlego
de que tentamos
o melhor
com nossa
tão pequena
mesquinhez estúpida

7faces • 225
poema perto do fim

1.
às horas de chuva
bebo chuva no côncavo
do teu peito
porque sei
que o tempo é
pouco
e nunca
veremos
paris

(não juntos)

2.
talvez se um dia
eu de novo caminhar
sobre os séculos e dores
solidificados em pedra
no chão da sainte-chapelle
quando levantar os olhos
à luz vazada dos vitrais
(e se eu chorar, se eu chorar
como tu choras quando
a beleza é muita)
talvez eu lembre de ti

(talvez)

7faces • 226
dois pássaros

quando à noite, tem pesadelos


e me prenhocupo tanto
(grávido de angústias)
cuidando de seu todo ser
que freme e balbucia

então seu lábio acalma


como ensonando-se de vez
como embalando em acalanto
seu próprio sono em si
e tudo é silêncio e luz exata
na escuridão do quarto:

eu me ensono junto a ele


descansado da vigília finda
e compartilhamos o tempo
como dois pássaros cegos
exaustos enfim do voo
a beber da mesma nascente

7faces • 227
na plateia

dentro da sala de teatro


na escuridão cor de tempo
condensado (liquefeito e
gaseficado no mesmo vão
momento)

meu amor chora


res-pira
pisca
não pisca
pisca
não

sorri
e sente
algo que
me escapa
ali
na sala escura do teatro.

7faces • 228
papo

um papo à beira-noite
ele e eu

(à beira do amor
feito já fosse)

: você é sinestésico
eu sou caleidoscópico.

7faces • 229
Capa de Aniki Bóbó. Verso Brasil Editora.

7faces • 230
Aniki Bóbó: a palavra enigmática
por Rafaela Cardeal

Aniki Bóbó era um objeto desconhecido dos leitores da obra de João


Cabral de Melo Neto, ausente dos volumes da obra completa, inclusive da
mais recente Poesia completa (2014), edição portuguesa que inclui
oportunamente Ilustrações para as fotografias de Dandara. Era também um
enigma para a crítica cabralina, embora se encontrasse no arquivo literário
do autor, nas caixas que abrigavam sua produção intelectual, um datiloscrito
do poema em prosa, cuja referência lacunar mencionava “edição de trinta
exemplares, ilustrado por Aloisio Magalhães, Recife, 1958”1 — informação
que, sabemos hoje, contraria o colofão do original, como vemos na figura a
seguir. Sem a presença de qualquer imagem, o documento é simplesmente
uma transcrição, o que não nos permitiria ter a dimensão estética do livro
composto a quatro mãos. Após quase sessenta anos da sua publicação numa
raríssima tiragem, e do seu consequente desaparecimento, tal mistério
começou a ser desvendado em 2016, quando veio a lume uma reedição
dessa obra “inclassificável”, nas palavras de Valéria Lamego, organizadora
do volume que trouxe à cena o livro, fac-similado e acompanhado por
ensaios críticos, suscitando uma importante reflexão acerca das ligações
entre as artes poéticas e as artes gráficas.

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Colofão de Aniki Bóbó. Verso Brasil Editora.

Se, por um lado, quase ninguém tinha visto ou lido até então o raro Aniki
Bóbó, de Cabral e Magalhães, por outro, uma obra homônima tem reconhecido
destaque internacional, Aniki-Bóbó (1942), o primeiro longa-metragem do
realizador português Manoel de Oliveira, clássico absoluto do cinema
português e marco da cinematografia mundial. À partida não existe nenhum
diálogo entre as duas obras, trata-se apenas de uma mera coincidência. Mas,
curiosamente, além do nome comum, a película apresenta-nos uma série de
questões que ajudam a perceber de algum modo o livro. Inspirado num poema
de Rodrigues Freitas2, o filme retrata as aventuras e os conflitos de um grupo
de crianças da zona ribeirinha da cidade do Porto, em meio aos contrastes entre
a liberdade das ruas, a rigidez da escola e a vigilância do Estado. No início da
película, em grande plano, vemos impressa na sacola de Carlitos a frase “Segue
sempre por bom caminho”, que acompanha a narrativa e o menino como um
leitmotiv. Esse princípio é desrespeitado quando o tímido e sonhador Carlitos,
para ganhar o coração de Teresinha, rouba na “Loja das Tentações” a
inacessível boneca que a amada tanto desejava. O desenlace acontece quando
Carlitos devolve a boneca roubada ao lojista, que, por sua vez, comovido com
atitude do menino, oferece-lhe o desejado objeto para que ele possa
conquistar novamente Teresinha. Com o pecado perdoado pelo dono da loja,
os imperativos do desejo do menino estão a partir daí de acordo com a norma
social, assim a verdade é o elemento de harmonia que permite o final feliz da
história.

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Fotogramas de Aniki-Bóbó, de Manuel de Oliveira (1942).
Coleção Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema.

7faces • 233
Durante a película, são recorrentemente entoados os versos de uma
lengalenga:

Aniki Bébé
Aniki Bobó
Passarinho, tótó
Berimbau, cavaquinho
Salomão, sacristão
Tu és polícia
Tu és ladrão

No jogo infantil, a fórmula mágica é repetida por uma das crianças para
dividir os “polícias” e os “ladrões”. Manoel de Oliveira esclareceu em
algumas entrevistas que a cantilena não era uma memória de sua infância,
mas sim foi uma descoberta feita no próprio local das filmagens, era a forma
que os meninos da Ribeira usavam para escolher os parceiros nas
brincadeiras. Decidiu então aproveitar como título porque envolvia “um
certo mistério”, o qual se adequava à riqueza interior dos personagens e ao
centro da ação narrativa, uma vez que “o jogo das crianças desenvolve-se
sob o peso sociológico, ético, ideológico, repressivo, que caracteriza a
ideologia, a moral urbana” (OLIVEIRA apud PINA, p.58). Apesar de o filme ser
considerado por alguns críticos precursor do cinema neorrealista italiano, o
realizador alerta que a sua filmografia está inserida no campo poético e
nunca teve qualquer aspecto de carácter social ou econômico como ponto
fundamental da sua estrutura ou construção (p.27). Como bem observou
Manuel António Pina, o caráter poético do filme se funda num processo de
transformação simbólica: a partir da história de amor de Carlitos e Teresinha
demonstra-se um universo mais amplo, o dos sentimentos e dos desejos
humanos. Convertendo-se numa “fábula realista”, Aniki-Bóbó foi, e continua
a ser, “um raio de realismo poético a destoar das dominâncias do tempo”
(RAMOS apud PINA, p.19).
Podemos dizer então que Manoel de Oliveira cunhou a enigmática
expressão, que era praticamente desconhecida, ou corrente para um
público bastante restrito, antes da exibição da película. O crítico literário
Arnaldo Saraiva (2014), em busca de uma analogia com o Aniki brasileiro,
tentou encontrar, em vão, a lengalenga em estudos de folclores e de jogos
tradicionais e em cancioneiros populares, em coletâneas de rimas infantis,
de Portugal e do Brasil. Não sendo registrada na escrita, a cantiga
provavelmente se perdeu por pertencer às tradições orais de uma pequena
comunidade, o que reforça o “certo mistério” identificado por Oliveira e, ao

7faces • 234
mesmo tempo, a conquista de uma outra origem, vinda da composição
cinematográfica. Igualmente, quando tentamos perceber de onde vem a
referência do livro, deparamos com explicações difusas, pois nem Aloisio de
Magalhães nem João Cabral sabiam precisar qual era a origem da expressão:
o designer afirmava, numa entrevista de 1980, que havia lido o nome Aniki
Bóbó em algum lugar, que não se lembra, e então o interesse pela palavra
fez com que ele imaginasse um pássaro (MAGALHÃES apud ANASTASSAKIS
& KUSCHNIR, 2016, p.45); enquanto o poeta escrevia, numa carta dos anos
de 1970, que o próprio Aloisio teria dito que era o nome de um brinquedo
de criança de Pernambuco, do qual igualmente não se lembrava (MAMEDE,
1987, p.111). Na mesma carta, João Cabral esclarecia que a experiência foi
uma “brincadeira” com o parceiro que fez os desenhos, restando a ele a
função de escrever “as ilustrações interpretando os desenhos”, ou de
“ilustrar com o texto”; e concluía definindo que se tratava de um “texto
abstrato”, um “jogo” (p.111).
Há, na ilustração textual de Aniki Bóbó, uma aparente simplicidade, mas
que exige do leitor algum esforço sobretudo a respeito de seu sentido.
Percebemos um fio narrativo, no entanto, à medida que avançamos na
leitura parece elaborar-se uma espécie de alegoria ou fabulação, um tanto
nebulosa. Na primeira parte da composição, apresenta-se uma personagem,
Aniki — um pássaro, se observarmos na gravura da página seguinte do livro
—, que possui duas cores, o azul e o encarnado; enquanto na segunda, as
cores aparecem relacionadas à sua “rara coleção”, eram azuis o seu “colchão
de molas” e as suas “lâminas de barbear”, mas estas, quando vista de perto,
eram “vermelhas por antecipação”.

Páginas de Aniki Bóbó. Verso Brasil Editora.

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Já na terceira parte, ocorre uma ação: “do alto de seu azul Aniki via tudo
encarnado. Por isso se mudou de seus pagos: não conseguiu desinfetá-los”.
Num movimento imigratório, ele “veio para o país dos sociólogos, trazendo
suas giletes, cujo país é um esqueleto com nádegas obesas e gordas”. Eis a
quarta e última parte:

Quando Aniki viu o verde, disse que tinha grande prática, e


pôs-se a desembrulhar sua linda coleção de lâminas. Limpou
o país de todas as cores, senão do azul e do encarnado. Mas
o vermelhão que vêdes é a lâmina suja de seu trabalho.
(MELO NETO, 2016, não paginado)

Se Aniki Bóbó constrói-se como uma fábula, e como tal apresenta no fim
da narrativa um ensinamento ou uma moral, decerto não pertenceria
estritamente a esse gênero literário. Embora se possa inferir alguma
pedagogia na história de Aniki, ao fim da leitura não temos muita clareza
nem certeza do que realmente se trata. Apenas um leitor familiarizado com
a obra de João Cabral de Melo Neto, a meu ver, poderia aceder, numa
perspectiva metalinguística, ao significado mais amplo dessa fábula
poética. Como bem observou Augusto Massi (2016, p.41), é bastante
representativo que a última palavra do livro seja “trabalho”, uma palavra-
chave no programa cabralino. Do ponto de vista estético e ético, o trabalho
aparece desde muito cedo na poética cabralina quer no título O engenheiro
(1945), que acabou por se tornar o epíteto mais célebre do poeta, quer
como método de criação artística teoricamente em Poesia e composição
(1952)3. Igualmente, o elogio do labor, maquinal ou artesanal, manifesta-
se em vários momentos na própria obra assim como no reconhecimento
de seus pares, na produção de artistas visuais e poetas — lembremos, por
exemplo, o “Elogio da usina e de Sophia de Mello Breyner Andresen”, ou o
elogio a Miró, o “sólido artesão da Catalunha” (MELO NETO, 1997, p.49).
Encontramos ainda a palavra “fábula” em quatro poemas de João
Cabral: “Fábula de Anfion”, parte de Psicologia da composição (1947);
“Fábula de Joan Brossa”, de Paisagens com figuras (1956); “Fábula de um
arquiteto”, de A educação pela pedra (1966); e “Fábula de Rafael Alberti”,
de Museu de tudo (1975). Todas funcionam, cada uma à sua maneira, como
alegorias acerca do trabalho artístico. Nas dedicadas aos espanhóis,
destaca-se, em Brossa, o afastamento da vertente surrealista, mais
“mística”, em favor das “coisas espessas / que a gravidez pesa ao chão”
(MELO NETO, 2014, p.222) e, em Alberti, igualmente, o abandono do “jogo

7faces • 236
aéreo” em busca do caminho inverso, “da palavra à coisa” (p.535), Noutra,
a dirigida a um arquiteto — sabemos, Le Corbusier, num comentário à
Capela Notre Dame du Haut, em Ronchamp —, compõe-se uma crítica
àquele que, na contramão dos poetas espanhóis, se afastou de um
construir aberto, “ar luz razão certa”, para erguer “opacos de fechar”
(p.455). Na de Anfion, narra-se a recusa de Anfion à “injusta sintaxe”
(p.146) de Tebas, edificada ao acaso pelo soar de sua flauta, diante da
falência de um projeto de uma cidade: “Desejei longamente / liso muro, e
branco / puro em si // como qualquer laranja / leve laje sonhei / largada
no espaço.” (p.147).
Ora, as fábulas cabralinas são sobretudo metapoéticas, e como tais se
estruturam a partir de determinados valores que orientam a estética e a
ética da criação e do criador. Assim, no gesto final de Anfion, de jogar a
flauta “aos peixes surdos-mudos do mar”, recusa-se sobretudo o
instrumento inadequado à sua utopia construtivista e que não lhe permite
construir uma cidade justa, leve e clara, a cidade “civil sonhada”. Espelha-
se em Anfion aquilo que é exigido por João Cabral para a poesia: não
aceitar o obscurantismo do mistério e o caos da espontaneidade no
processo de criação, eliminando assim a desmesura, em defesa do
planejamento racional e das medidas justas. Apesar do fracasso anfiônico,
que põe em cena os limites do sonho civil e da falha, num investimento
crítico-teórico, mantém-se o compromisso ético na permanente reflexão
acerca das suas escolhas estéticas. Num desenlace triunfante, Aniki é o
“anti-Anfion” (2016, p.23), pois cumpre o seu objetivo de limpar o excesso
cromático do país, à exceção do azul e do encarnado, as duas cores que
possuía previamente. O sucesso da empreitada, nesse caso, parece estar
ligado rigorosamente ao instrumento, aqui apropriado ao desejo de seu
proprietário, porque as suas muitas “lâminas de barbear” têm as
qualidades necessárias à prática de depuração: a crueldade, a violência, a
agudeza. O ideal de justeza e justiça, descrito na “Fábula de Anfion”, só
poderia ser atingido com a substituição do mau instrumento — a flauta —
e mediante a serventia de uma afiada e impiedosa lâmina, objeto que Aniki
empunha, objeto cabralino por excelência.
Dentro de uma perspectiva cronológica, Aniki Bóbó situa-se nos fins da
década de 1950, período crucial na consolidação da poesia cabralina, no
contexto das publicações de O cão sem plumas (1950), O rio (1954) e Duas
águas (1956) — coletânea que inclui os inéditos Morte e vida severina,
Paisagens com figuras e Uma faca só lâmina. E inclusive de dois livros
escritos nos anos 50, mas publicados nos primeiros anos da década

7faces • 237
seguinte: Quaderna (1960) e Serial (1961). Neles se encontram alguns
fragmentos que nos ajudam a perceber de modo mais concreto o jogo
abstrato proposto por João Cabral. Na expressão “país dos sociólogos” e
na sua qualificação “esqueleto com nádegas obesas e verdes” podemos
reconhecer um eco de Morte e vida severina e O cão sem plumas, obras
que junto com O rio formam uma trilogia, uma espécie de cartografia
geográfica, humana e social da desigualdade em Pernambuco,
extensivamente no Nordeste brasileiro, um retrato de uma terra de
contrastes. De um lado, uma miséria coletiva, exemplar em certos
contextos:

Cada casebre se torna


no mocambo exemplar
que tanto celebram os
sociólogos do lugar.
(MELO NETO, 2014, p.274)

E de outro, uma opulência aristocrática:

Algo da estagnação
das árvores obesas
pingando os mil açúcares
das salas de jantar pernambucanas,
por onde se veio arrastando.

(É nelas,
mas de costas para o rio,
que ‘as grandes famílias espirituais’ da cidade
chocam os ovos gordos de sua prosa.
Na paz redonda das cozinhas,
ei-las a revolver viciosamente
seus caldeirões de preguiça viscosa)
(p.166)

A condição severa e severina dos homens sem plumas contrapõe-se à


abundância de uma elite pernambucana, que está de costas para a cruel
realidade, sendo alimentada pela exploração da cana-de-açúcar. O país
esquelético, para qual Aniki vai, é um reflexo irônico e ácido dessa
sociedade, e tem como único aspecto corpulento as nádegas obesas e

7faces • 238
verdes, o excesso dos mil açúcares extraído do verde canavial. Nesse
sentido, Aniki é contundente como o despido e extremo cante “a palo
seco”, do qual se retira “higiene ou conselho” (MELO NETO, 2014, p.341).
Fazendo frente a qualquer excesso, “toda uma crosta viscosa / resto de
janta abaianada”, que cega a lâmina tirando assim seu gume, o “gosto de
cicatriz clara”, conserva-se somente o essencial, o que é “faca”, “as
mesmas palavras / girando ao redor do sol” (p.414). Afinal, o pássaro tem
um quê de retirante, de Severino, e as suas giletes um quê de uma faca só
lâmina, “toda impiedade / de lâmina azulada” (p.284).
Tendo em conta essas relações, haveria espaço para Aniki Bóbó na obra
de João Cabral de Melo Neto? O poema-gráfico naturalmente não foi
incorporado pelo autor à sua obra completa porque, como sabemos, o seu
projeto literário direcionava-se à construção de uma arquitetura. Como se
traçasse uma planta baixa antes da construção de uma casa, o poeta dizia
desenhar a ideia do livro para depois, conforme a estrutura
preestabelecida, compor os poemas. E, nesse sentido, foi uma escolha
coerente. Se tivesse a hipótese de ser incluído por Cabral, Museu de tudo
(1975) seria um espaço possível, como notou Sérgio Alcides, visto que o
livro é uma reunião de composições produzidas entre os anos de 1946 e
1974, apresentando uma espécie de retrospectiva cabralina. Nele
encontramos poemas “ilustrativos”, os quais estavam ligados a
circunstâncias específicas, como “Exposição Weissmann”, por exemplo, e
era o texto de apresentação da exposição do escultor brasileiro Franz
Weissmann, como indica-nos o título, realizada em Madrid em 1962.
Seguindo a perspectiva de João Cabral, é fácil inferir que Aniki Bóbó, ao
contrário dos poemas de seu museu, seria um projeto à parte. Motivado
pelos desenhos de Aloisio, a sua peculiaridade reside justamente na
componente gráfica intrínseca à obra, assim haveria uma perda
significativa se somente a parte escrita fosse reproduzida.
Mas por que o livro continua fora das edições da obra completa hoje? A
última edição da Poesia completa, como referimos anteriormente, integra
um projeto menos do poeta e mais do avô João Cabral. Ilustrações para
Dandara, inédito publicado em 2011, era um álbum artesanal composto
por poemas-ilustrações escritos pelo poeta-avô que se relacionavam, cada
um, imediatamente com uma das fotografias de sua neta que recebia em
Dacar, no Senegal, onde era embaixador. Projeto da “Editora do avô”, de
1975, segundo a folha de rosto, as ilustrações em verso, apesar de suas
dimensões privada, familiar e afetiva, foram a posteriori fixadas no
conjunto da obra do autor, enquanto Aniki Bóbó não — é uma questão que

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fica suspensa à espera da nova edição que assinalará o centenário do
poeta.
Num contexto mais alargado, da investigação da materialidade do livro,
o projeto gráfico de João Cabral com Aloiso Magalhães remete-nos ao
projeto editorial do selo “O livro inconsútil”, pequena oficina criada pelo
poeta no período de 1947 a 1950, em que vivia em Barcelona exercendo
funções diplomáticas. Como consequência de uma recomendação médica
para fazer exercícios físicos, João Cabral adquiriu uma prensa manual, da
marca Minerva, e com a ajuda e os ensinamentos de Enric Tormo — seu
mestre tipográfico, homenageado no poema “Paisagem tipográfica” —,
acabou imprimindo uma série de edições artesanais: quatorze títulos,
todos dedicados à poesia4. Suas atividades editoriais foram suspensas no
fim de 1950 quando foi “removido” para o Consulado do Brasil em Londres,
onde permaneceu até 1952, ano em que é convocado pelo Itamaraty a
regressar ao Brasil, para responder uma acusação de atividades
subversivas. De volta ao Recife e integrado ao seu círculo sócio-cultural,
João Cabral incentiva e fornece orientação técnica a um grupo de jovens
intelectuais e escritores, do qual fazia parte o seu primo Aloisio Magalhães,
um jovem pintor na altura, contribuindo, com sua experiência como
tipógrafo e editor, para a fundação de O Gráfico Amador5.

Ilustração de Aniki Bóbó. Verso Brasil Editora.

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Ao estampar poéticas visuais, desde a palavra enigmática às páginas
inconsúteis e de cordão, o inventivo Aniki Bóbó se desdobra entre o
cinema, as artes visuais e a poesia. Nesse contexto, Aloisio, com os
recursos que tinha à mão, o “clichê de barbante” e o pochoir, imprimiu em
folhas soltas ilustrações de um pássaro, imaginado a partir daquele nome.
Ao ver o resultado do trabalho, João Cabral propôs o caminho inverso:
ilustrar os desenhos com um texto, ao contrário do processo habitual, no
qual a escrita precede a imagem. Num gesto tipicamente cabralino, o poeta
daria à peça de improviso uma componente planejada, o poema. É bem
provável que o poeta tenha participado no projeto gráfico da edição, bem
como noutras etapas da sua composição, um desses indícios é uso do tipo
Bodoni, o preferido de João Cabral e o qual sempre usava nas impressões
dos livros inconsúteis. Para além da paixão pela tipografia, o envolvimento
de Cabral nesse experimental projeto, e amplamente na fundação da
editora, demonstra um engajamento artístico, iniciado em Barcelona, com
a sua pequena oficina. Afinal, a arte de confeccionar livros artesanais,
assim como a arte da poesia, exige rigor e domínio técnico, por isso, os
anos dedicados à prática gráfica e editorial eram, com efeito, um
alargamento de sua pesquisa estética.
Se é plausível a hipótese de que Aloisio Magalhaes tenha lido algures o
nome Aniki Bóbó numa menção à obra de Manoel de Oliveira, que na altura
da publicação do raro livro já completava mais de quinze anos de estreia;
ou que existisse um brinquedo pernambucano, talvez relacionado com a
cantilena de origem popular entoada no filme português, daí a memória de
uns dos versos da rima infantil — “Passarinho, totó” — poderia ter
sugestionado a imaginação do ilustrador. Há claramente um aspecto lúdico
nas ilustrações visuais e textuais, remetendo-nos ao universo infantil
retratado no filme, ainda que esta relação seja inferida por nós enquanto
interlocutores. De fato, a perspectiva atual nos permite reconhecer em tais
obras temas recorrentes tanto da obra do realizador — a culpa, o pecado,
o desejo, a morte; o conflito entre o humano individual e o humano social,
entre outros — quanto da obra do poeta — o número quatro, o trabalho,
a presença relevante da palavra lâmina na narrativa, por exemplo. Ao
estampar poéticas visuais, desde a palavra enigmática às páginas
inconsúteis e de cordão, o inventivo Aniki Bóbó se desdobra entre o
cinema, as artes visuais e a poesia.

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Notas

1 O arquivo de João Cabral de Melo Neto está depositado no Arquivo-


Museu de Literatura Brasileira (AMLB), da Fundação Casa de Rui Barbosa,
localizada no Rio de Janeiro. O datiloscrito em questão pertence a um
conjunto maior de textos em prosa, de origens diversas.

2 No genérico — parte inicial do filme — lê-se “Argumento e planificação


de Manoel de Oliveira inspirado num poema de Rodrigues Freitas”. O
“poema” ou o conto “Os meninos milionários”, publicado na revista
Presença em 1935.

3Originalmente, conferência pronunciada por João Cabral na Biblioteca de


São Paulo em 13 de novembro de 1952 por ocasião de um curso de Poética
e que tinha como subtítulo “A inspiração e o trabalho de arte”.

4 Em 1947, João Cabral de Melo Neto imprimiu o seu livro Psicologia da


composição. No ano de 1948, Mafuá do malungo, de Manuel Bandeira;
Cores, perfumes e sons, de Charles Baudelaire, tradução de Osório Dutra;
Alma em la luna, de Juan Ruiz Calonja; El poeta conmemorativo, de Juan
Eduardo Cirlot; Pequena antologia pernambucana, de Joaquim Cardoso;
Acontecimento de soneto, de Lêdo Ivo; Corazón em la tierra, de Alfonso
Pintó. Em 1949, Sonets de caruixa, de Joan Brossa; Pátria minha, de Vinicius
de Moraes; Antología de poetas brasileños de ahora (Murilo Mendes,
Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Augusto Frederico
Schmidt e Vinicius de Moraes), tradução Alfonso Pintó. Em 1950, o seu O
cão sem plumas e a revista O cavalo de todas as cores, com Alberto de
Serpa. Em 1953, O marinheiro e a noiva, de Joel Silveira.

5 Faziam parte do grupo, além de Aloisio Magalhaes, Gastão de Holanda,


José Laurenio de Melo e Orlando da Costa Ferreira.

Referências

ANASTASSAKIS, Zoy; KUSCHNIR, Elisa. “Uma investigação da ‘coisa


gráfica’”. In: MELO NETO, João Cabral de. Aniki Bóbó. Rio de Janeiro:
Verso Brasil, 2016.
MAMEDE, Zila. Civil geometria: bibliografia crítica, analítica e anotada de
João Cabral de Melo Neto, 1942-1982. São Paulo: Nobel, 1987.
MASSI, Augusto. “Dualismo ao quadrado”. In: MELO NETO, João Cabral
de. Aniki Bóbó. Rio de Janeiro: Verso Brasil, 2016.
MELO NETO, João Cabral de. Aniki Bóbó. Rio de Janeiro: Verso Brasil,
2016.

7faces • 242
MELO NETO, João Cabral de. Poesia completa. Lisboa: Glaciar, 2014.
MELO NETO, João Cabral de. Prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
OLIVEIRA, Manoel de. Aniki-Bóbó. Porto: 70 min, 1942.
PINA, Manuel António. Aniki-Bóbó. Porto: Assírio & Alvim, 2012.
SARAIVA, Arnaldo. Dar a ver e a se ver no extremo – O poeta e a poesia de
João Cabral de Melo Neto. Porto: Afrontamento, 2014.

Agradecimento
Agradeço à Valéria Lamego por ceder, gentilmente, as imagens de
divulgação de Aniki Bóbó, e à Cinemateca Portuguesa, pela cedência das
imagens do filme de Manuel de Oliveira.

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Intertextualidade e intersemiose em
Morte e vida severina
por Darío Gómez Sánchez

João Cabral de Melo Neto é um dos nomes mais importantes da


poesia moderna em língua portuguesa e seu poema dramático Morte
e vida severina, uma das obras mais representativas da literatura do
nordeste do Brasil. Há nesse poema ressonâncias das antigas
literaturas ibéricas, e tem sido encenado em teatro, cinema e
televisão, o que faz com que seja um lugar de confluência entre o
antigo e o moderno. Nosso interesse nas seguintes linhas é descrever
alguns elementos específicos que permanecem constantes nos
processos de adaptação ou intertextualidade e de tradução ou
intersemiose desta obra e, no possível, arriscar algumas conclusões
mais gerais sobre a criação literária como um processo de tradução
cultural.

1. O autor e sua obra

João Cabral de Melo Neto (1920-1999) nasceu na cidade de Recife.


Aos 22 anos, publicou Pedra de sono e, três anos depois, O engenheiro,
título com o qual será futuramente identificado por sua concepção
racional da criação poética. Seus deveres como diplomata o levaram a
várias cidades do mundo, incluindo Barcelona, onde publica Psicologia
da composição e um ensaio em português sobre Joan Miró, com
ilustrações do pintor. Em 1954, após ser acusado de comunista, vence
o Concurso José de Anchieta que lhe garante a publicação de O rio, e
em 1956 reúne sob o título de Duas águas seus livros anteriores e os
inéditos: Morte e vida severina, Paisagens com figuras e Uma faca só
lâmina. Outros títulos importantes são: Terceira feira (1961), antologia

7faces • 244
que apresenta pela primeira vez Serial; A educação pela pedra (1966);
Museu de tudo (1975); Auto de frade (1984) e Crime na calle Relator
(1987). Em 1969 ingressa na Academia Brasileira de Letras.
Oscilando entre as tendências de vanguarda e a poesia popular, a
principal característica da obra de Cabral é o concretismo ou o
construtivismo estético: uma espécie de sensacionismo objetivo que
se manifesta na referência frequente a objetos sólidos e sensações
táteis, e distante de qualquer confessionalismo romântico. Como ele
mesmo afirma em uma entrevista concedida a revista Manchete em
1976: “a palavra concreta, porque sensorial, é sempre mais poética do
que a palavra abstrata, e que assim, a função do poeta é dar a ver (a
cheirar, a tocar, a provar, de certa forma a ouvir; enfim, a sentir) o que
ele quer dizer, isto é, dar a pensar.” (citado por SOUZA, 2004, p.56)
Morte e vida severina (1956) foi escrita por encomenda para uma
montagem teatral, mas, dado que sua encenação foi descartada,
Cabral decidiu publicá-la como um poema, embora mantendo o
subtítulo “Auto de natal pernambucano”. Este poema dramático conta
a história de um jovem retirante que vai da Serra da Costela, no
interior da Paraíba, seguindo o curso do rio Capibaribe, até chegar a
Recife, no estado de Pernambuco. Em sua peregrinação, Severino só
encontra fome, violência e morte, e quando chega à cidade, depois de
ouvir o diálogo de dois coveiros, pensa em pular de uma ponte, mas a
notícia do nascimento de um bebê o reconcilia com a vida.
Na história da literatura nacional, o trabalho é considerado como
manifestação do Realismo Social do Nordeste ou do Neorrealismo
Brasileiro que, a partir da década de 1930, busca contrabalançar as
tendências experimentais que caracterizam a literatura produzida no
eixo Rio-São Paulo, mas com a particularidade de que, neste caso, esse
regionalismo se realiza num poema e não num romance. Uma
característica marcante desse auto de natal é a maneira como o autor
apresenta a miséria, a fome e a seca com elementos poéticos de
grande plasticidade, transformando a aridez natural da paisagem em
fértil beleza poética.
Do nosso ponto de vista, o interesse da obra reside em ser um
ponto de encontro ou interseção entre a tradição literária e a
modernidade midiática. Com efeito, o poema de João Cabral recupera
vários elementos da literatura ibérica medieval e, ao mesmo tempo,
funciona como uma matriz criativa para a elaboração de textos
contemporâneos em outras linguagens. Ponto de chegada do verbal

7faces • 245
oral e escrito, e ponto de partida do verbal visual ou musical, esta obra
caracterizada pela plasticidade de suas imagens sonoras e visuais se
apresenta como um interessante objeto intersemiótico porque
permite analisar a tradução ou transitoriedade de linguagens como
propriedade da criação artística.

2. Intertextualidade e intersemiose

“Com Vida e morte severina, quis homenagear toda a literatura


ibérica”, diz João Cabral em entrevista, e especifica algumas chaves da
origem intertextual do poema: “Os monólogos do retirante derivam
do romance castelhano. A cena do enterro na rede vem do folclore
catalão. Não me lembro se a mulher na janela é de origem galega o se
está em Pereira da Costa. A conversa com Severino antes de o menino
nascer obedece ao modelo da tensão galega.” (citado por SECCHIN,
1985, p.330). E agrega que, no nível local, as fontes são a tradição
funerária do nordeste, presente no encontro com os cantores das
incelênças, e o Pastoril, que é uma celebração popular de natal em
Pernambuco, e de onde vem toda a cena final.
O “auto de natal” surge como uma proposta teatral para a Escola
Norte Teatro de Belém que não se concretiza e, como já foi anotado,
Cabral decide publicar como um poema dramático. No entanto, a
partir de sua publicação, a peça inicia uma extensa jornada de
relacionamento com outras linguagens artísticas, como o teatro, a
música e o vídeo; diversas elaborações intersemióticas ou semiotextos
entre os quais se destacam a montagem do Teatro da Universidade
Católica de São Paulo, com música de Chico Buarque (que ganhou o
prêmio do Festival de Nancy, na França, em 1966), uma adaptação
parcial para filme com roteiro e direção de Zelito Viana (1977), uma
produção de teleteatro dirigida por Walter Avancini para a emissora
de televisão Globo (gravada ao ar livre e incorporando a música da
montagem do TUCA, em 1981), um documentário feito por Gerson
Camaroti (1977) e uma versão em quadrinhos criada pelo cartunista
Miguel Falcão (com o texto integral do poema, em 2005); versão
posteriormente adaptada para uma série de desenhos animados para
televisão (com o apoio da Fundação Joaquim Nabuco para a TV Escola
em 2010).
Mas, além de destacar a diversidade de antecedentes
intertextuais e consequentes intersemióticos que convergem no

7faces • 246
poema dramático de João Cabral de Melo Neto, o que nos interessa é
identificar alguns elementos comuns que podem ser analisados nas
diferentes elaborações. Entre as várias possibilidades que surgem,
podemos citar: o uso da linguagem popular, a identidade do sertanejo,
a miséria e a violência no sertão, a paisagem e sua secura, a solidão e
as privações sofridas pelos retirantes. E tais possibilidades podem ser
agrupadas em dois tópicos genéricos: a circunstância da seca, típica da
paisagem do sertão, e a peculiaridade da fala popular nordestina
característica do sertanejo; esses elementos concentram o visual e o
sonoro, e são característicos da estética sensacionista do poema em
questão e da poética geral de Cabral.

3. A paisagem no texto, no intertexto e no semiotexto

O tema da paisagem nordestina (especialmente do chamado


sertão) como elemento tópico do poema está relacionado com vários
intertextos da arte brasileira e se projeta, a partir da obra de Cabral,
em vários semiotextos.
Em termos de história literária, a fonte mais óbvia do poema
cabralino pode ser identificada nas propostas do chamado “romance
do 30” ou neorrealismo brasileiro, que busca denunciar de maneira
conclusiva o castigo que a terra e o homem sofrem devido à seca. A
paisagem árida de Vidas secas de Graciliano Ramos e a área verde
descrita em Menino de engenho por José Lins Rego, bem como as
obras Geografia da fome de Josué de Castro e Irmão Juazeiro de F.
Julião estão geográfica e estilisticamente presentes no realismo social
do poema. Essa relação intertextual entre o poema cabralino e a
narrativa do regionalismo nordestino merece um estudo particular.
Mas, talvez seja na linguagem da pintura que possamos encontrar
o melhor intertexto cabralino ― o melhor no sentido de que sendo a
paisagem um elemento visual, ela é apresentada dessa maneira. A
pintura “Retirantes” (1944) de Candido Portinari, antecipa a força
poética necessária para expressar e denunciar artisticamente a fome,
a miséria e a falta de um horizonte de vida que caracteriza a realidade
geossocial do sertão. Nesta pintura podemos observar uma paisagem
desértica, sem montanhas, monótona e desabitada, ou habitada por
restos de pedras e ossos e por algumas pessoas que, devido à
proximidade da morte (própria ou dos outros), se assemelham a
caveiras. A atmosfera de desesperança, tédio, precariedade, tristeza

7faces • 247
da paisagem e de suas gentes, presente na pintura de Portinari
reaparece elaborada verbalmente no poema de Cabral, numa
linguagem que ― em ambos os casos ― podemos identificar como
expressionista, no sentido de que usa fortes contrastes vitais para
explicar uma situação de injustiça.

Candido Portinari. Retirantes, 1944. Óleo sobre tela 190 x 180 cm.
Reprodução.

7faces • 248
De fato, o poema de Cabral é construído como um forte contraste
entre vida e morte, entre água e terra. Isso ocorre porque, além do
deserto ou Sertão, a paisagem descrita no poema incorpora a chamada
Zona da Mata e a costa ou litoral, e com elas o rio e o mar. A fluidez do
rio também funciona como uma metáfora da viagem do retirante e a
imensidão do mar representa a promessa de chegada à cidade ― e
ainda existe o mangue, como ponto de encontro entre o rio e o mar.
Esses contrastes elaborados de maneira plástica e poética alcançam
uma dimensão estética que supera o cru realismo testemunhal.
Nas adaptações visuais, especificamente na versão televisiva, o
contraste expressionista que dá força ao poema (e à pintura) parece
perder intensidade. De fato, os elementos da paisagem, que
conotados pela palavra (ou pela cor) adquirem um valor mais
expressivo, acabam sendo redundantes quando apresentados
explicitamente. Embora também seja verdade que, no drama
televisivo, o que se perde em possibilidades poéticas se ganha em
recursos técnicos, que favorecem ―de outra forma ― a visualização
do contraste entre água e terra, vida e morte. Assim, por exemplo, a
presença da seca é reforçada pelo foco reiterativo nos raios do sol,
como determinantes da aridez do sertão, e a redenção ou vitalidade
da água é explicitada com os enfoques do rio, como na cena em que o
retirante toma um banho vivificante ― quase uma ablução ― que não
aparece relatada no poema. A versão televisiva parece transferir o
contraste expressionista da paisagem para a caracterização de alguns
personagens, como a mulher na janela, que aparece com uma
gesticulação desesperada e completamente vestida de preto no meio
do candente deserto.

4. O ritmo no texto, no intertexto e no semiotexto

Morte e vida severina é composta por 18 quadros, intercalando


diálogos com monólogos; são 1215 versos predominantemente
septissílabos, com uma rima assonante imperfeita e agrupados em
diferentes grupos estróficos. Esse tipo de verso e estrofe são
característicos de um gênero da poesia popular do interior do
nordeste do Brasil, conhecido como cordel, nome sob o qual são
agrupadas uma série de narrações orais impressas em pequenas
brochuras.

7faces • 249
Devido a sua forma e caráter narrativos, o poema de Cabral pode
ser assimilado a um longo cordel, mas com características particulares
em relação à sua difusão e conteúdo. Também é possível estabelecer
relações entre a forma do poema e seu antecedente mais distante, a
composição narrativa em verso denominada romance castellano.
Como o próprio Cabral admite, seu poema é um tributo às antigas
literaturas ibéricas e, especificamente, a presença do romanceiro se
faz evidente nos monólogos do retirante.
Além da coincidência de elementos formais, como o tipo de verso
e de rima, tanto o romance castelhano quanto o cordel nordestino têm
algumas características temáticas que podem ser encontradas na obra
de Cabral: o tradicionalismo do tema ou personagem, neste caso
relacionado à vida do retirante e à paisagem do sertão; o caráter
episódico ou fragmentário, que nesta história em verso se concentra
na viagem de Severino da Paraíba até Pernambuco, sem especificar a
situação de origem ou seu desenvolvimento posterior; e o realismo da
narração que (exceto alguns cordéis modernos) não envolve fatos ou
eventos fantásticos.
Uma questão a pensar ― indo além da identificação de elementos
formais ou temáticos ― seria por que ou de que maneira o gênero do
romance castelhano medieval reaparece na literatura brasileira
moderna. E poderíamos arriscar que a motivação estaria dada pela
coincidência das circunstâncias próprias de sociedades rurais com
relações socioeconômicas de natureza feudal: dificuldades
econômicas, fome, falta de terra para cultivar, senhorio ou
“coronelismo” são alguns dos elementos comuns ao contexto em que
surgem o romance castelhano, o cordel pernambucano e a obra de
Cabral ― embora seja apenas neste último que esses elementos sejam
explicitamente incorporados ao tema com uma espécie de realismo
social que não encontramos na composição hispânica tradicional e
dificilmente no cordel nordestino na atualidade.
Porém, menos do que essa relação histórico-formal, o que
estamos interessados em destacar é que a reiteração do mesmo tipo
de verso e do mesmo esquema de rima confere ao poema de Cabral
um ritmo particular que se assemelha a uma reza ou, mais
exatamente, a uma ladainha ou litania, um ritmo que pode estar
relacionado com a reiterada presença da morte na maioria dos
quadros do poema. Mas advertindo que não há nada de dramático ou
desesperado nessa presença: Severino se encontra com a morte a cada

7faces • 250
momento como se fosse apenas mais um elemento da paisagem. E
esse ritmo de prece ou litania reforça o tom calmo, de aceitação,
presente em toda a peça, mesmo quando Severino pensa em tirar a
própria vida. Assim, a atualização do gênero medieval está justificada
não só estilisticamente, porque faz parte da tradição literária
peninsular (romance) presente na cultura do nordeste (cordel), mas
também porque cria uma espécie de cenário rural-feudal que,
reforçado pelo ritmo da litania, entra em relação direta com os temas
propostos.
Já no plano da intersemiose, teríamos que analisar se aquela
atmosfera feudal e o ritmo da ladainha que caracterizam o poema, e
que estão relacionados com a origem medieval do intertexto e com o
conteúdo lutuoso do texto, permanecem ou se transformam na nova
linguagem. Para isso, nos detemos na musicalização de alguns
fragmentos feita por Chico Buarque para a produção teatral de 1965 e
que também é incorporada ao drama televisivo de 1981.
E aqui é interessante referir uma anedota: diz-se que, justificado
pela intenção de manter a riqueza rítmica do texto apenas na
linguagem verbal, Cabral não autorizou a musicalização do poema.
Ignorando a proibição, porém, o jovem compositor do Rio de Janeiro
realizou seu trabalho e somente após o prêmio obtido pela peça no
festival de teatro de Nancy o poeta acabou aceitando a difusão das
músicas que, ao longo dos anos, se tornaram tão ou mais populares
que o poema.
A repetição ou monotonia do ritmo do texto gera uma linha
melódica apropriada à expressão dos sentimentos de tristeza, a qual
temos relacionado à litania. Dado que na rima, tecnicamente, ocorre
uma diminuição do tom, pode-se dizer que o poema é caracterizado
por um tom bemolizado, no sentido de que o bemol diminui meio tom.
Mas aqui devemos reconhecer nossas limitações teóricas com relação
aos aspectos técnicos da música. O fato é que as músicas de Buarque
reiteram e aprimoram o tom monorrítmico e a redução tonal,
ajustando-se à forma e ao conteúdo do poema. No entanto, também
é possível afirmar que elas quebram a unidade rítmica do texto original
de várias maneiras.
Uma evidência dessa perda de unidade é que na versão teatral
nem todo o texto é musicalizado. Os monólogos do retirante, por
exemplo, não são. E no caso dos diálogos, é frequente que apenas os
parlamentos de um dos personagens sejam musicalizados, como no

7faces • 251
diálogo de Severino com a mulher na janela, o que gera uma
dissonância rítmica que não faz parte do texto original. Também é
verdade que essa alteração da unidade do ritmo poético atinge
momentos de magistralidade, como na música “Funeral do lavrador”,
na qual a velocidade do ritmo poético é aumentada com a melodia e
são repetidos alguns versos finais da estrofe, o que que dá à música
um dramatismo que o poema não possui e que aprimora sua
performance no palco.
Assim, poderíamos dizer que é precisamente a busca desse efeito
dramático com vista à representação teatral o que legitima a versão
musical. Portanto, não é uma adaptação, mas uma nova criação, outra
linguagem para outro contexto e com outra intenção. E, embora o tom
monorrítmico e a litania sejam preservados, a combinação de fala,
música e variações musicais gera uma transformação total do texto
original.
Concluindo, poderíamos afirmar que, tanto nas composições
musicais quanto na versão televisiva, o que acontece não é uma
adaptação do poema cabralino, mas a criação de um novo texto, outra
obra na qual é possível identificar alguns elementos do texto original
(como versos, caracteres ou atmosferas), mas com um status artístico
único e original. E essa singularidade ou originalidade característica da
intersemiose exigiria uma conceituação particular, mas por enquanto
permitem confirmar a grandeza da obra de Cabral.

Referências

BUARQUE, Chico. “Funeral de um lavrador” (Letra de João Cabral de


Melo Neto). Chico Buarque de Hollanda. Vol. 3. RGE, 1968.
BISPO, Marlucy Mary Gama. “Morte e vida severinas: uma análise
cultural”. In: Revista Fórum Identidades, ano 3, v.6, p.189-198, jul.-
dez. de 2009.
MORTE e vida severina. Adaptação da peça. Direção de Walter
Avancini. Rio de Janeiro: TV Globo, 1981.
GONÇALVES, Helton de Souza. Dialogramas concretos. Uma leitura
comparativa das poéticas de João Cabral de Melo neto e Augusto de
Campos. São Paulo: Annablume, 2004.
MUZART, Zahidé Lupinacci. “Morte e vida Severina – O poema do
não”. In: Travessia, n.3, 1981, p.33-40.
PINHEIRO NETO, José Elias: “Geografia e literatura: a paisagem
geográfica e ficcional em Morte e Vida severina de João Cabral de

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Melo Neto”. In: Boletim campineiro de Geografia, v.2, n.2, p.322-340,
2012.
PORTINARI, Candido: Retirantes. Óleo sobre tela, 190 x 180 x 2,5cm,
1944, Museu de Arte Moderna de São Paulo.
SECCHIN, Antonio Carlos. João Cabral: a poesia do menos. São Paulo:
Duas cidades; Brasília: INL, Fundação Nacional Pró-Memória,1985.

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Sob o signo das águas: João, o cão e suas
plumas
por Francisca Luciana Sousa da Silva

Introdução

Pères profunds, têtes inhabitées,


Suis sous le poids de tant de pelletées,
Êtes la terre et confundez nos pas,
Le vrai rongeur, le ver irréfutable,
N’est point pour vous qui dormez sous la table,
Il vit de vie, il ne me quitte pas!

Paul Valéry, Le cimitière marin1

O gesto que irrompe no palco, deixando o público em estado de


alerta, semelha “o verso que rebenta no branco asséptico do papel”
(“O poema”, O engenheiro, 1942-1945). Este foi o primeiro impulso
para a escrita deste artigo, inicialmente voltado para o espetáculo de
Deborah Colker, Cão sem plumas (2017), a partir de poema homônimo
de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), O cão sem plumas (1950)
― que foi contemplado com o Prix Benois de la Danse, Teatro Bolshoi,
em Moscou, como Melhor Espetáculo em 2018. Há, contudo, uma
distinção mínima, porém determinante já no título dos dois ‘rebentos’
que nos impele a repetir um dos exercícios do corpo de dança: ler e
reler este e outros poemas cabralinos nos quais percebemos um fértil
diálogo. Se “a função do poeta é dar a ver” (MELO NETO, 2008, p.228),
deixemo-nos guiar por aquele cuja voz, em parte, calou-se há vinte
anos, mas segue ecoando em diferentes línguas e linguagens, dando

7faces • 254
prova que “um ser vivo pode brotar de um chão mineral” (MELO NETO,
2008, p.228).

A cidade é passada pelo rio


como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada

O rio ora lembrava


a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.

Aquele rio
era como um cão sem plumas.
(MELO NETO, 2008, p.82)

O que ou quem atravessa? O que ou quem é atravessado nesse


poema cujas imagens serão plasticamente moldadas, montadas e
dançadas pelo corpo de dança da premiada artista Deborah Colker?
Entre as vozes que atestaram a novidade e a força desse poeta do
engenho, figuram as de Antonio Candido (1918-2017), José Guilherme
Merquior (1941-1991), Benedito Nunes (1929-2011) e Alfredo Bosi
(1936- ). Em linhas gerais, ressaltam, em sua fortuna crítica, a
arquitetura do poema, afinada ao gosto pessoal do poeta pelo tema,
sem desconsiderarem outros aspectos, a nosso ver, não
suficientemente explorados, por exemplo, o onírico e o social,
presentes em Pedra do sono (1940-1941) e Morte e vida severina
(1954-1955), este último certamente um dos seus poemas mais
conhecidos. Sobre este, em particular, João Cabral afirmou, certa vez,
ser “um poema fracassado” por não ter alcançado seu público original,
que ele chamou “esse leitor ou ouvinte de romance de cordel”, de um
“Brasil de pouca cultura” que demonstrou pouco ou nenhum interesse
por ele, diferentemente do “Brasil das capitais, o Brasil que vai aos

7faces • 255
teatros” (MELO NETO, 2008, XXXIII). Feito sob encomenda, ganhou
diferentes montagens em todo o país e fora dele, com música do então
estreante Chico Buarque de Holanda, além de versões para o cinema
e a TV (1966, 1977, 1981); uma das mais recentes adaptações foi para
a TV Escola em animação 3D pelas mãos do cartunista Miguel Falcão
(2012).
Nesse sentido, entendemos ser de grande relevância a recepção
crítica em torno de poemas capitais como os apontados, mas
interessa-nos, especialmente, a recepção estética, neste texto, a
dança contemporânea da Companhia Deborah Colker. Considerando
o que é próprio da poética cabralina (a predileção pela objetividade,
pelos substantivos e verbos, pelas imagens telúricas e também
existenciais), como o literário se materializa no espetáculo de Deborah
Colker Cão sem plumas (2017) a partir do poema homônimo de João
Cabral de Melo Neto? Como a tensão verbo-corpo-imagem seduz,
emociona, comove ou incomoda diferentes públicos numa montagem
assumidamente visceral? Em que medida dialogam com outro poema
“paisagístico”, cujo eu-lírico está no próprio título ― O rio (1953)?
Nossa hipótese geral é a de que há um corpo que dança e que se pensa
enquanto dança. Há outros corpos ― em transe, em trânsito. A tensão
em torno de um corpo poético, conforme ensinamentos de Jacques
Lecoq (1921-1999), professor, diretor de teatro e mímico, fundador da
escola que leva seu nome ― a École Internationale de Théâtre Jacques
Lecoq ― é o mote para a investigação em curso, aproximando imagens
como o fluir do rio e o devir do corpo, a aridez da terra em corpos
áridos, embrutecidos. Silenciados sim, mas nada silenciosos. Além dos
corpos, assim nos ensina o historiador, medievalista literário e
linguista Paul Zumthor (1915-1995), o espaço também performa
(ZUMTHOR, 2014), sendo mais um bailarino.
Homenagear o poeta lançando luz sobre um dos seus poemas
capitais, O cão sem plumas (1950), trazido à cena por Deborah Colker,
constitui-se nosso principal objetivo. Em seguida, identificar e analisar,
em diferentes momentos do espetáculo, pontos de tensão, levando
em conta as escolhas estéticas da companhia, entre elas, o vídeo e a
música. Para tanto, propomos uma relação das oito cenas do
espetáculo Cão sem plumas com as quatro partes assinaladas pelo
poeta João Cabral de Melo Neto. Em seguida, associá-las com o longo
poema O rio. Com isso, acreditamos contribuir com pesquisas em
Literatura Comparada, Artes e áreas afins, como as de Rafaela de

7faces • 256
Abreu Gomes, autora da dissertação intitulada João Cabral, um poeta-
crítico (2015) e do livro Um vislumbre a caminho: a humana poesia de
João Cabral (2019). Em 2020, é a vez de celebrar o centenário do poeta
e o do poema que abre este texto4, com o qual dialoga, como se verá,
com o firme propósito de privilegiar a vida e não a morte do poeta,
que permanece muito vivo entre nós através da força de suas palavras.
Isso posto, propomos uma breve fundamentação teórica que
servirá de aporte para alguns campos conceituais adotados, como
recepção, performance, intertextualidade e tradução intersemiótica.
Em seguida, apresentamos a análise dos dados coletados em pesquisa
de caráter qualitativo-exploratória, além de bibliográfica. Nosso
corpus, além do livro, inclui o próprio espetáculo (visto em Belo
Horizonte, em agosto de 2018, e em Fortaleza, em março de 2019), os
vídeos da companhia de dança publicados nas plataformas Vimeo e
YouTube, além dos encartes do espetáculo. Na sequência, os
resultados colhidos dessa investigação cheia de atravessamentos
enviesados, pedras e poucas plumas.

1. João e a crítica, vozes e gestos

Conforme assinalamos há pouco, um dos livros de estreia de


Cabral, Pedra do sono, contou com importante recepção crítica
tomada ainda hoje como referência por muitos estudiosos. A voz de
Antonio Candido como que balizou o que só seria confirmado décadas
depois pelo próprio poeta em sua autocrítica, asseverando ser uma
poesia toda tópica por tratar sempre (ou quase sempre) de um
assunto, deixando ao leitor a conclusão. Nesse sentido, cumpre
destacar a importância da teoria da recepção ou Estética da Recepção,
cuja origem remonta à década de 1960 com o escritor e crítico literário
alemão Hans Robert Hauss (1921-1997), desenvolvendo-se nas
décadas seguintes na Alemanha e nos Estados Unidos em vários
campos de estudo. Tem seu foco de análise sobre o receptor de um
fato artístico ou cultural. O professor emérito Antonio Gómez-
Moriana, em 1985, lançará outra perspectiva, propondo “quatro
instâncias do fato literário” (ZUMTHOR, 2014, p.26) de forma
integrada: contexto, autor, texto, leitor. Pelo menos duas décadas
antes, essas instâncias já aparecem na referida obra de João Cabral e
de outros poetas, a despeito da complexidade que tal análise
engendra. Com Zumthor, optamos por perceber (e não somente

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receber) sensorialmente o literário “para poder induzir alguma
proposição sobre a natureza do poético” (ZUMTHOR, 2014, p.27),
tanto no poema de Cabral quanto no espetáculo Cão sem plumas.
Alinhado às nossas inquietações, ele indaga sobre o papel do corpo na
leitura e na percepção do literário.

O que entender aqui pela palavra “corpo”? Despojado


como ele está em minha frase, parece escapar, por
demasiado puro e abstrato, ideal, como o ego
transcendental de Husserl! No entanto, é ele que eu sinto
reagir, ao contato saboroso dos textos que amo; ele que
vibra em mim, uma presença que chega à opressão. O
corpo é o peso sentido na experiência que faço dos textos.
(ZUMTHOR, 2014, p.27)

Este corpo ― despojado, puro, abstrato ― nos remete ao


próprio cão sem plumas de João Cabral, e não sendo a palavra nada
inocente, como ainda nos lembra Zumthor, permite-nos emendar com
outro campo teórico: o da performance. Ela, que é sempre constitutiva
da forma, passou a ser empregada pela linguística desde o início dos
anos 1950. Suas regras regem “simultaneamente o tempo, o lugar, a
finalidade da transmissão, a ação do locutor e, em ampla medida, a
resposta do público” e “importam tanto ou ainda mais do que as regras
textuais postas na obra na sequência das frases” (ZUMTHOR, 2014,
p.33-34). Trata-se, portanto, de preocupação comum ao artesão das
palavras e à artista do corpo: engendrar frases ao contexto real e
determinar seu alcance primando pelo emprego do corpo das palavras
(LECOQ, 2010, p.86)5 em dado espaço. Tal compreensão coaduna com
as noções de performance defendidas por Zumthor, ampliando teses
já propostas por MacLuhan (1911-1980) em torno da relação com a
voz e com a escrita. Assim, há que se considerar a evolução dos meios
e os modos de comunicação; a referência de modo imediato a um
acontecimento oral e gestual, levando em conta a presença do corpo
no estudo da obra, dele a poesia emana; finalmente, “a performance
não apenas se liga ao corpo, mas, por ele, ao espaço. Esse laço se
valoriza por uma noção, a de teatralidade” (ZUMTHOR, 2014, p.39-42).
A nosso ver, essas três noções se aplicam aos corpora em estudo,
particularmente ao espetáculo de Deborah Colker, que não só valoriza
como também faz uso de diferentes meios e modos de comunicação

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(filme, canção, dança, acrobacia), tem o corpo como matéria-prima e
há muito investiga sua relação com o movimento e o espaço: Velox
(1995), Rota (1997), Casa (1999) e 4 por 4 (2002). Em Nó (2005), o
tema é o desejo, com remontagem em 2012 e reestreia em 2018, em
Minas Gerais e São Paulo, chegando a Fortaleza em 2019.
Neste artigo, consideramos dois textos, no sentido mais amplo do
termo, um de partida ― O cão sem plumas (1950) ― e outro de
chegada ― Cão sem plumas (2017), ao qual também se aplica o
conceito de intertextualidade e seus desdobramentos (SAMOYAULT,
2008), como a citação. A já referida companhia de dança empreende
um processo de reescrita, “vital para a literatura contemporânea, sob
a forma de tradução intrassemiótica (dentro do mesmo código) ou
intersemiótica (de um para outro código)” (OLIVEIRA, 2012, p.63). As
duas se materializam no espetáculo, considerando trechos do poema
lido em português e inglês, mas prevalece a chamada tradução, ou
transposição, intersemiótica. Em “O texto traduzido: do intra- ao inter-
semiótico” (2012, sic), Oliveira destaca a obsessão das criações atuais
a partir de recriações em códigos distintos do originalmente
construído. A pesquisadora cita alguns exemplos das artes visuais (Van
Gogh, Francis Bacon, Velásquez, Rodin), mas não deixa de remeter a
outras artes e mídias ― Literatura, Cinema, Música ― que também
têm ocupado a crítica contemporânea. Ela nos lembra que o processo
de reescrita (ou reescritura, como prefere Julia Kristeva) “pode
acumular camadas sucessivas de citações, superpondo leituras de
releituras de releituras” (OLIVEIRA, 2012, p.64), como faz Colker não
só com o poema em pauta, mas com outros elementos culturais de
Pernambuco, como o maracatu rural, o jongo, o coco, ressignificando-
os. A estética do mangue veio à baila e, com ela, suas pulsões e
tensões. Passemos a elas.

2. Do corpo da palavra à palavra encarnada: João Cabral por Deborah


Colker

O que há de humano num cão? E quanto de cão o homem carrega


em sua lida diária, em sua dor infinita? O sangue de ambos, como um
rio, flui, mas também escorre, estanca, apodrece, impunemente. Que
outros signos a eles se associam? Elencamos três tipos: espaciais,
materiais e híbridos. Há travessias e atravessamentos de cada um
deles no poema e no espetáculo por nós analisado. Jorge Dü Peixe, um

7faces • 259
dos músicos que dele participa, assim o resume: “É uma ópera da
lama, do rio. Uma ópera ácida como as palavras certeiras de João
Cabral” (Catálogo do espetáculo, 2017). Mas antes da análise
propriamente dita, cumpre apresentar uma síntese sobre cada uma
das obras.

O cão sem plumas

O título nada tem de surrealista: é metáfora do rio


Capibaribe, que atravessa o Recife, e dos habitantes
pobres que habitam as suas margens, sugados e
explorados até naquilo que não possuem ― daí o cão sem
plumas. Primeira grande incursão de Cabral no domínio da
poesia engajada, o longo poema é um notável exemplo de
obra que concilia uma visão complexa do tecido social a
uma urdidura igualmente complexa do tecido verbal.

O rio

Se no livro anterior o Capibaribe já era protagonista,


neste é também narrador numa espécie de autobiografia
do percurso da nascente sertaneja à desembocadura
recifense. História e geografia se mesclam, num relato
voluntariamente “prosaico” e descritivo. Consolida-se a
preferência pelo verso curto, pela rima toante e pelas
estrofes simétricas com número par de versos. (MELO
NETO, 2008, XXIII)

Cão sem plumas

“O espetáculo é sobre coisas inconcebíveis, que não


deveriam ser permitidas. É contra a ignorância humana.
Destruir a natureza, as crianças, o que é cheio de vida”, diz
Deborah. A dança se mistura com o cinema. Cenas de um
filme realizado por Deborah e pelo pernambucano Cláudio
Assis ― diretor de longas-metragens como Amarelo
Manga, Febre do Rato e Big Jato ― são projetadas no
fundo do palco e dialogam com os corpos dos 13
bailarinos. As imagens foram registradas em novembro de

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2016, quando coreógrafa, cineasta e toda a companhia
viajaram durante 24 dias do limite entre sertão e agreste
até Recife.

[...]

Os bailarinos se cobrem de lama, alusão às paisagens que


o poema descreve, e seus passos evocam os caranguejos.
O animal que vive no mangue está nas ideias do geógrafo
Josué de Castro (1908-1973), autor de Geografia da fome
e Homens e caranguejos, e do cantor e compositor Chico
Science (1966-1997), principal nome do mangue beat. O
movimento mesclava regional e universal, tradição e
tecnologia. Como Deborah faz.

[...]

“Cabem a elegância do clássico, a lama das raízes e o olhar


contemporâneo. O nome disso é João Cabral”, diz ela.
(Release de Cão sem plumas, 2017, não paginado)

No primeiro verso da primeira parte de O cão sem plumas,


intitulada “Paisagem do Capibaribe”, o poeta, ou seu eu-lírico, fala: “A
cidade é passada pelo rio”. O recurso da voz passiva é mantido nos
versos que seguem, comparando o rio a uma rua e uma fruta, também
atravessados, respectivamente, por um cachorro e uma espada.
Lemos aí a tensão operada em âmbito lexical e recuperada
plasticamente pela artista Deborah Colker, sem traduzir palavra por
palavra, mas laborar e elaborar um novo discurso estético. Tradução
intersemiótica, portanto.
Seja na projeção, seja na performatividade no palco, na música
ora agressiva, ora sutil, as escolhas da artista remetem ao processo de
atravessar o poema e por ele ser atravessado (a), bem como a cidade
do Recife, o rio e suas paisagens. Assim, “Paisagem do Capibaribe I”,
“Paisagem do Capibaribe II”, “Fábula do Capibaribe” e “Discurso do
Capibaribe”, em João Cabral de Melo Neto, dão lugar, na poética de
Colker, a “Aluvião”, “Rio Ribeirinho”, “Caranguejão”, “Canavial”, “Rio
Cão”, “Mangue”, “Garças” e “Cidade”. O percurso proposto pela
companhia lembra o de outro poema em suas palavras iniciais: O rio

7faces • 261
ou Relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade
do Recife: “Sempre pensara em ir / caminho do mar. / Para os bichos
e rios / nascer já é caminhar / Eu não sei o que os rios / têm de homem
do mar; / sei que se sente o mesmo / e exigente chamar” (MELO NETO,
2008, p.95). Deborah e sua companhia ouvem o chamado. Qual o rio,
eles se dão conta que já se nasce descendo: Rio – Homem – Cão. O
primeiro verso de O cão sem plumas sugere a síntese do espetáculo,
que abre com “Aluvião”, até encerrar com “Cidade”. Vemos, pois, o
atravessamento em diferentes nuances: poéticas, experimentais,
visuais.
Passando quadro a quadro, lemos / vemos, em Paisagem do
Capibaribe I, relações de oposição e complementaridade, poder e
subserviência ao longo das quinze estrofes. O concreto e o abstrato, a
essência e a matéria ora se tocam, ora trocam de lugar, o que
certamente sugerirá alguns dos movimentos cênicos do espetáculo
Cão sem plumas com o indivíduo e o coletivo irrompendo no palco.
Dito de outro modo, predomina a imagem do rio, em seguida a do cão
e suas variantes, para só então tratar do homem e suas relações (a
partir da segunda parte do poema). O desafio da dança é mostrar tais
imagens, nem sempre de forma linear ou ordenada, valendo-se do
próprio corpo, mas com forte aparato técnico, incluindo o audiovisual,
que não prescinde do que chamamos corpo poético (LECOQ, 2010). A
professora e crítica literária Flora Süssekind (1955- ), em Compasso de
prosa – Voz, figura e movimento na poesia de João Cabral de Melo
Neto (1993) sugere desdobramento de palavras / imagens. Trata-se de
uma percepção cara ao poeta, que reconhecia em sua poética um
traço bastante visual.
Absolutamente nada escapa aos olhos da artista Deborah Colker,
que leva para a cena o que há de substancial na poética cabralina: os
seres concretos e suas relações abstratas ou abjetas, ressignificando,
por um lado, reverenciando, por outro, aquilo que o poeta cantou em
terras distantes (estava em Barcelona quando compôs o poema) sem,
contudo, esquecer seu lugar de origem (Aquele rio está na memória...).
Recupera-se o que segue no fluxo da viagem e o que vai em suas
margens, incluindo a exploração desregrada da natureza e a do
homem pelo homem, presentes em “Paisagem do Capibaribe II” e
“Fábula do Capibaribe”. A composição engenhosa de humanizar
outros seres e coisas e seu reverso ― a desumanização ― aparece ao
longo dos treze versos da segunda parte e dos quinze da terceira. O

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labor e o temor no manguezal, no canavial, na fábrica, na indústria são
lembrados, além do esvaziamento de sentidos e mesmo de fazeres. Os
vazios do homem. Na quarta e última parte do poema, “Discurso do
Capibaribe”, composta de nove estrofes, identificamos um tom mais
reflexivo, mesmo existencial, já presente nos versos anteriores, mas
de forma menos incisiva, contundente. É o que lemos por exemplo
em: “O que vive / incomoda de vida / o silêncio, o sono, o corpo /que
sonhou cortar-se / roupas de nuvens. / O que vive choca, / tem dentes,
arestas, é espesso.” (MELO NETO, 2008, p.90)
A última palavra, espesso, é recorrente nas demais estrofes para
caracterizar o cão, o homem, o rio e outros seres ou circunstâncias,
além de sintetizar o próprio poema e as imagens que ele evoca,
algumas delas densas por natureza: o mangue, o sangue. Bem mais
espesso é o longo poema narrativo publicado três anos depois, a cujas
“lembranças pessoais o poeta acrescentou o rigor de informações,
narrando em detalhes a história do rio e o que acontece em seu
percurso” (Catálogo do espetáculo, 2017, não paginado). O verbete
sobre o poeta na Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras
discorre sobre as obras aludidas, endossando alguns aspectos já
levantados: a preocupação com a temática social, a pobreza crônica e
a aridez do cenário nordestino filtradas pelo rigor da construção,
exaustão no trabalho com a palavra, múltiplos sentidos. Não só em O
cão sem plumas, mas no livro seguinte, O rio, a matéria social será
acentuada, em articulação com a estrutura formal. O Capibaribe, rio-
detrito, cuja sujeira e população a viver em condições subumanas
refletem o que há de trágico na história da miséria e do atraso do país.
Uma das leituras que fazemos desse tríptico (O rio ou Relação da
viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife, O cão
sem plumas e Morte e vida Severina) é a de que a aridez esboçada é
também literária e literalmente corporificada, reiteradamente
presente ou atualizada em diferentes esferas, pessoais e coletivas, em
signos espaciais (cidade, rio, rua, mangue, hospital, penitenciária,
asilos, palácios...), materiais (cachorro, fruta, espada, plumas, peixes,
ferrugem...) e híbridos (fonte, brisa, lodo, lama, brilho, inquietação,
negro, parto, silêncio...). Muitos desses signos repetem-se ao longo do
poema ou numa mesma estrofe, prestando-se à análise da semiose
discursiva, ou mais precisamente da tradução intersemiótica, dada a
concorrência de diferentes códigos (visuais, sonoros, musicais,
performáticos) e mesmo intrassemiótica, por haver tradução de

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versos de João Cabral em língua inglesa na sua montagem para o palco.
Da Literatura Comparada, em diálogo com a Linguística e a semiose
discursiva, empreendemos nosso olhar analítico, reconhecendo gesto
similar na montagem do espetáculo multimídia de Deborah Colker.
Dar vazão à palavra poética com e como o rio cantado pelo poeta,
assim se afigurou este trabalho de muita força e fluidez, de mergulho
profundo na aridez do sertão, na hibridez do agreste até alcançar a
cidade, esse palco de múltiplas contradições.
Os versos da segunda e quarta parte, respectivamente, do poema
cabralino em discussão, entre outras passagens, inclusive de outros
poemas (“Uma faca só lâmina”, por exemplo), não só ilustram o
catálogo do espetáculo, como também dão o seu tom: bailarinos viram
bicho (s). São cães, caranguejos e garças (“É nelas, / mas de costas para
o rio, / que ‘as grandes famílias espirituais da cidade’ /chocam ovos
gordos / de sua prosa”), além de homens bestializados (“bicho-
homem”, como prefere a coreógrafa e diretora Deborah Colker),
sendo o caranguejo o principal deles, no palco e na tela que faz confluir
imagens para o espetáculo, em filme do também pernambucano
Cláudio Assis. Representam, portanto, os subalternos e a elite. Um
trabalho de imersão cuja projeção amplia as possibilidades
interpretativas a cada nova experiência, além de realçar a beleza de
cada linguagem: verbal, audiovisual, performática. Tudo é imagem, os
versos de Cabral o atestam, o que muda é o suporte: em vez de livro,
palco, tela, fotografia, música. Antes, porém, há que se alcançar
acabamento ou apuramento estético.
Colker, também conhecida pelo apuro técnico, não se furtou de
imprimir no corpo dos bailarinos essa secura muito própria de quem
vem do agreste, na fala, nos gestos, na geografia. Também ela
emprega o seco porque já não é possível combatê-lo: há que se
conviver com ele e tirar-lhe algum proveito. É Pernambuco falando
para o mundo com sotaque carioca: em coco, jongo, maracatu rural,
samba e até kuduro. O resultado: uma ode ao belo e suas inquietações.
Trata-se de um balé moderno, contemporâneo que não só faz
referência, mas também reverencia a terra e seus mistérios, bichos e
encantos; a água e suas metamorfoses, que ora sacia, ora resseca,
como a terra; o ar e suas criaturas semoventes; o fogo, que tudo
devora, mas também alimenta.

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Cão sem Plumas, de Deborah Colker. Fotografia: CAFI.

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Conclusão

Mediante pesquisa de caráter qualitativo-exploratória e


bibliográfica, investigamos o processo de reescrita do poema O cão
sem plumas, de João Cabral de Melo Neto, para o espetáculo
multimídia de Deborah Colker, de mesmo título sem o artigo definido.
Além da dança, a companhia trabalhou com diferentes linguagens,
sem perder de vista a dimensão poética e considerar outros elementos
próprios da cultura pernambucana, como o movimento mangue beat,
o maracatu, o jongo e mesmo danças de matriz africana, como samba
e kuduro. Constatamos as possibilidades interpretativas de ordem
artístico-literária analisadas no contexto comparativo, o que nos fez
dialogar com outros campos, ainda que brevemente, entre eles a
semiose discursiva e a linguística textual. Consideramos,
particularmente, os conceitos de recepção, performance e tradução
intra e intersemiótica.
Assim, acreditamos ter cumprido minimamente nosso propósito
de ler a contrapelo (como sugere o poema “A palo seco”) dois
trabalhos seminais, especialmente de enxergar lirismo onde apenas se
vê (ou costuma-se, pelo menos) arquitetura e engenho. Não deixa de
haver, e poemas como “O cão sem plumas”, já no título, dão prova
disso. O esmero na escolha das palavras, com precisão matemática,
muitas vezes, não invalida sua preocupação social e, com ela, a
sugestão de imagens não só belas como pungentes. O mesmo ocorre
com o espetáculo de Deborah Colker, conhecida pelas investidas
radicais na criação e exploração do espaço cênico, um mergulho
profundo e não menos sensível nas raízes do Brasil.

Notas

1 Tradução de Eduardo de Campos Valadares: “Cabeça oca o pai


venerado encerra, / Sob o peso de tantas pás de terra, / O vazio
confunde o nosso passo, / Quem morde é o verme irrefutável, / Em
nada a ínfimo cão comparável, / Vive de vida, estou preso a seu laço!”
(2019, p.29) (Paul Valéry, Cemitério marinho).

2Segundo Solange Fiuza, “Na fundação recepção crítica luso-brasileira


da poesia de João Cabral de Melo Neto destacam-se duas resenhas,
uma assinada por Antonio Candido e outra pelo português Vitorino
Nemésio” (2018, p.112). A primeira data de 1943, publicada no jornal

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Folha da Manhã, em São Paulo; a outra de 1949, publicada no Jornal
Popular de Lisboa.

3 Da recepção internacional podemos citar a premiação no Quatrième


Festival Mondial du Théatre Universitaire (Festival Mundial do Teatro
Universitário), em Nancy, França, onde foi encenada em 25 de abril de
1966, tendo ali sido bem recebida pela crítica, com destaque em
publicações no Le Figaro e no Le Monde.

4 A poesia de Paul Valéry ecoa no Brasil, por exemplo, em Carlos


Drummond de Andrade (Claro Enigma, 1951); João Cabral de Melo
Neto lhe dedicou um poema também “sob o signo das águas” (Duas
águas, 1956), além das séries “Cemitério alagoano”, “Cemitério
paraibano” e “Cemitério pernambucano (Floresta do Navio)”, que
integram Quaderna (1956-1959), entre outras.

5 No teatro físico de Jacques Lecoq (1921-1999), parte do treinamento


de atores e clowns envolve poesia e música. Antes, porém, da leitura
e interpretação de poemas e canções, são feitos jogos lúdicos com
palavras e sonoridades. Vemos nesse processo criativo certa
similaridade com as escolhas dos artistas em questão, como se pode
depreender pelo excerto: “As palavras são abordadas pelos verbos,
aqueles que trazem a ação, e pelos substantivos, que representam as
coisas nomeadas. Considerando a palavra como um organismo vivo,
buscamos o corpo das palavras. Para isso, é preciso escolher aquelas
que oferecem uma real dinâmica corporal.” (LECOQ, 2010, p.86)

Referências

BELCHIOR, ACGFF. “A palo seco”. In: Alucinação. Continental, 1974.


FIUZA, Solange. “Textos fundadores da recepção crítica luso-brasileira
de João Cabral de Melo Neto”. In: Navegações, v.12, n.1, jan-jun.
2018, p.112-121.
FREITAS, Ivig. “Engenheiro da Palavra” [Homenagem]. In: O povo.
Vida & Arte. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 9 out. 2019.
GOMES, Rafaela de Abreu. “Uma microanálise feita por João Cabral
de Melo Neto”. In: Entrelaces. Revista do Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará, v.1 n.11,
p.57-67, 2018.
GOMES, Rafaela de Abreu. João Cabral, um poeta-crítico: poiesis e
crítica. (Dissertação de mestrado). Fortaleza: Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará, 2015, 163p.
GOMES, Rafaela de Abreu. Um vislumbre a caminho: a humana
poesia de João Cabral. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2019.

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JOÃO Cabral de Melo Neto. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e
Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2019. Disponível em:
<http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa3026/joao-cabral-
demelo-neto>. Acesso em: 09 de set. 2019.
LECOQ, Jacques. O corpo poético. Uma pedagogia da criação teatral.
Trad. Marcelo Gomes. São Paulo: Editora Senac; Edições SESC, 2010.
MELO NETO, João Cabral. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 2008.
OLIVEIRA, Solange Ribeiro de. Perdida entre signos: Literatura, Artes
e Mídias, hoje. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2012.
PETROBRAS, Catálogo do espetáculo Cão sem Plumas. Criação,
coreografia e direção: Deborah Colker. Direção executiva: João Elias.
Filme Cão sem Plumas. Direção Cláudio Assis e Deborah Colker.
Patrocínio Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro / Secretaria
Municipal de Cultura. Realização Je Produções Ltda. Duração 1h10
min. Classificação Livre. Rio de Janeiro: CSP, 2017, 54p.
REALEASE DE CÃO SEM PLUMAS (2017). Disponível em:
<https://www.ciadeborahcolker.com.br/release-csp> Último acesso
em: 31 out. 2019.
SAMOYAULT, Tiphaine. A intertextualidade. Trad. Sandra Nitrini. São
Paulo: Hucitec, 2008.
SÜSSEKIND, Flora. “Com passo de prosa – Voz, figura e movimento na
poesia de João Cabral de Melo Neto”. Revista USP, n.16, 1993, p.93-
102.
VALÉRY, Paul. O Azul e o Mar. Trad. Eduardo de Campos Valadares.
Cotia: Ateliê Editorial; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2019.
VALÉRY, Paul. O cemitério marinho. Trad. Jorge Wanderley. Rio de
Janeiro: Orfeu, 1949.
YOKOZAWA, Solange Fiuza Cardoso. “Textos fundadores da recepção
crítica luso-brasileira de João Cabral de Melo Neto”. In: Navegações,
v. 12, n.1, p.112-121, jan.-jun. 2018.
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Trad. Jerusa Pires
Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

7faces • 268
Traços anticabralinos na poesia de
Ana Cristina Cesar
por Mariana Bastos

“Há sim, um traço anticabralino, antiformalista...”, “o traço


comum que parece ‘pintar’ é o traço anticabralino...”, foi o que
respondeu Ana Cristina Cesar à Sebastião Uchoa Leite a certa altura de
um debate sobre qual seria o “ponto comum” entre aquelas diferentes
vozes que compunham a antologia 26 Poetas Hoje, organizada por
Heloisa Buarque de Hollanda em 1976 ― publicação que acabou por
tornar-se um marco legitimador da chamada “poesia marginal”,
produção que, até então, circulava às margens (e daí o seu nome) do
sistema editorial.
É na antologia que Ana Cristina faz a sua primeira aparição em
livro (até então ela só havia publicado poucos poemas em algumas
revistas literárias da época, sempre ao lado de outros poetas). É a
partir daqui, também, que a poeta, que até aquele momento havia
evitado se filiar a qualquer uma das três principais coleções / selos de
poesia do período (Frenesi, Vida de Artista e Nuvem Cigana), deixando
sempre bem clara a sua distinção, passa a querer se fazer ler e ouvir,
isto é, passa a querer disputar o sentido daquela produção.
É sobretudo a partir da publicação da antologia que também se
nota certo “ímpeto classificatório” por parte dos críticos, que
encontraram na antologia um campo fértil para esse gesto, dada a
variedade dos poemas. É nesse sentido que o debate mencionado
mais acima, organizado pelos escritores e críticos Luiz Costa Lima,
Sebastião Uchoa Leite e Jorge Wanderley, e transcrito na revista José,
se encaminha, na busca por um denominador comum entre aquelas
diferentes vozes. A tarefa mostra-se complicada, mas há insistência:
“a gente tem que procurar [...] apesar das diferenças [...] deve haver
um ponto comum”, diz Sebastião Uchoa Leite.

7faces • 269
A própria Hollanda ressalta no grupo, além da feitura e
distribuição manual do livro pelos próprios poetas, a coloquialidade,
“a presença de uma linguagem informal” a fim de encurtar a distância
entre autor e leitor; “a desierarquização do espaço nobre da poesia”;
a recusa das correntes experimentais de vanguarda; “o flash cotidiano
e o corriqueiro”, que “muitas vezes irrompem no poema quase em
estado bruto e parecem predominar sobre a elaboração literária”; a
“fragmentação de instantes aparentemente banais”; os traços
bandeirianos; a “renovação dos impulsos desclassicizantes do
modernismo”, “a volta da alegria, da força crítica do humor, da
informalidade”; “o teor altamente afetivo”; a presença de João Cabral
como estímulo e amarra; e a “atualização da recusa ao convencional”
(HOLLANDA, 2007, p.9-12).
Esse “traço anticabralino” será retomado por Ana Cristina Cesar
em seu artigo “Nove bocas da nova musa”, também de 1976,
publicado pelo jornal Opinião. Nele, a poeta1 comenta as faces da nova
poesia brasileira, para ela “anticabralina por excelência”, uma vez que
ali não há hesitação em introduzir “a paixão, a falta de jeito, a gafe, o
descabelo, os arroubos”. Valendo-se sobretudo das ideias de José
Guilherme Merquior em seu ensaio acerca das tendências da poesia
brasileira a partir dos anos cinquenta, Ana Cristina diz que

a nossa poesia mais recente e mais radical caracteriza-se


primeiramente pelo “estilo mesclado”, ou seja, retoma a
lição moderna, inaugurada por Baudelaire, que abole a
distinção rígida de estilos, misturando a visão poética
problematizante com temas e expressões vulgares,
criando assim uma tensão com esse convívio do sério e do
coloquial. (CESAR, 2016, p.187)

Herdeira do Tropicalismo e dos poetas pós-tropicalistas, a poesia


marginal dos anos setenta seguiu desacreditando dos discursos
totalizadores de direita e esquerda, desconfiando ainda mais do lugar
muito cerebral, técnico, engajado onde a literatura havia sido posta,
primeiro, pela poesia de João Cabral de Melo Neto, depois pela
vanguarda concretista e pela poesia dos Centros Populares de Cultura.
Tratava-se de um novo tipo de relação com a literatura, não mais
desejada como “forma séria de conhecimento” (CESAR, 2016, p.111).

7faces • 270
Aqui um salto enorme: em “Visita à oficina”, seção de textos
inéditos de Ana Cristina Cesar em Poética (2013), encontra-se
reproduzido um belo e instigante manuscrito, datado de 30 de
outubro de 1981. Ressalto que, naquele ano, a poeta havia retornado
ao Brasil depois de um tempo fora; em maio, lançado seu terceiro livro,
Luvas de pelica; e escrevia, num caderno de capa dura preta, os
poemas que, no ano seguinte, comporiam a parte inédita de A teus
pés2.

Agora percebo por que a grande obsessão com a carta, que


é na verdade obsessão com o interlocutor preciso e o
horror do “leitor ninguém” de que fala Cabral. A grande
questão é escrever para quem? Ora, a carta resolve este
problema. Cada texto se torna uma Correspondência
Completa, de onde se estende o desejo das
correspondências completas entre nós, entre linhas, clé
total. A outra variação é o diário, que se faz à falta de
interlocutor íntimo, ou à busca desse interlocutor
(“querido diário...” ou as trancas que denunciam o medo/o
desejo do leitor indiscreto). Nos dois gêneros manda a
prosa, que evita “esses trancos da dicção da frase de
pedras” ― que deseja embalar e seduzir o leitor nos seus
trilhos:
“até o deslizante decassílabo
discursivo dos chãos de asfalto
que se viaja em quase-sono,
sem a lucidez dos sobressaltos”

Sob o signo da paixão: os sobressaltos são outros; são


vertigens súbitas no meio da paisagem que rola.

Tendo lido sobre a “admirável coerência” de Goeldi. De


quem já localizou a sua fala ― e desse lugar, fala. Minha
“falta de lugar”. A “procura de uma fala”. Veja-se os meus
livros: entre a prosa e a poesia, entre o discursivo e o
sobressalto. Redescubro João Cabral com medo. Dessa
precisão. Da renúncia da sedução. Daí se segue direto para
concretos, que não lembrarei agora, no seu fulminante
localizar-se. Que fala localizada! A posição marcada. A

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poesia que sobressai, lúcida, pedra. A poesia que desliza,
embala, aplaina, seduz. O partido.
Me vejo muda entre partidos.
A minha fala então?
Os meus pares, então?
Sob o signo da paixão. Veja o seu signo. Fale. É só falando.
(CESAR, 2013, p.415).

O manuscrito, parte da “pequena amostra do material que ficou


na oficina de Ana, por assim dizer, onde os exercícios de escrita para
acertar a mão eram feitos continuamente” (CESAR, 2013, p.405),
opera uma espécie de revisão de seu trabalho literário: “agora percebo
por que”. A poeta atribui novo sentido ao uso que vinha fazendo das
formas típicas dos gêneros íntimos, como o diário e a carta, em seus
livros. Trata seu uso recorrente como obsessão pelo leitor preciso, em
oposição ao horror do “leitor ninguém” de João Cabral de Melo Neto.
O “leitor preciso” como o destinatário determinado de uma carta, com
quem o remetente deseja compartilhar uma experiência, e a escrita
do diário que, pela ânsia por um outro, volta-se sobre um caderno, o
chama de querido e faz dele seu interlocutor, ou deseja, ainda, o
“leitor indiscreto”, alguém que pode de repente romper o fecho e
descobrir intimidades alheias.
A figura do “leitor ninguém”, aterrorizador, vem do penúltimo
verso de “O artista inconfessável”, poema de Museu de tudo, de 1975,
obra que integra a biblioteca de Ana Cristina ― o leitor ninguém é
aquele que sequer pressentirá o sentido do texto inútil, feito sabendo-
se de sua inutilidade. Mais adiante no manuscrito a poeta afirma
redescobrir Cabral “com medo. Dessa precisão”. A justeza, a certeza
que acaba por renunciar à sedução, assusta Ana Cristina, pois, como
observou Alcides Villaça,

O salto de Cabral ― original e definitivo ― estará na


efetivação de um estilo que repele toda confissão ou
pieguismo; estará na construção de uma matéria poética
que se quer imune à oscilação e à angústia, qualificada por
um máximo de autonomia e resistente a qualquer ameaça
de desequilíbrio. (VILLAÇA, 2003, p.146)

As figuras e composições na poesia de Cabral supõem mais a

7faces • 272
estabilidade que o movimento. O que perturba o poeta, diz Villaça, “é
o fato de ‘brotar / de um chão mineral’ o ser vivo do verso”, pois “sua
particular mitologia é a de alcançar, por obra das palavras-pedras e
dos signos-cristais, uma natureza sem dor e sem morte, sem inclinação
e sem desejo” (VILLAÇA, 2003, p.147). Mas, enquanto João Cabral tem
a resistência como qualidade, Ana Cristina não resiste.
Como reconhece Marcos Siscar, “a teoria da poesia de Ana C. não
difere essencialmente da de Cabral, no ponto específico da superação
da relação ingênua entre linguagem e realidade” (SISCAR, 2016,
p.109), enquanto, no entanto, é anticabralina, não só por valorizar e
incorporar em seu texto elementos pouco elegantes do cotidiano,
paixões e acontecimentos insignificantes, arroubos pessoais, mas por
questionar “o bloqueio das dissonâncias”, a poesia sem desejo, sem
perturbações.
Para Siscar, o que está em jogo entre os dois poetas, ou entre as
duas gerações, é o modo pelo qual o poema é colocado em relação ao
outro. João Cabral, que não recusaria o poema encomenda (como se
lê em seu famoso texto “Poesia e composição”), suporia ter acesso à
expectativa do leitor, e a completaria de modo exemplar. Para Ana
Cristina sobrepõem-se uma série de entraves e tensões nessa relação,
não se reconhecem as expectativas e não há complementação segura,
ao mesmo tempo em que as dificuldades, os “percalços da destinação”
(SISCAR, 2016, p.123), não vencem (na verdade, parecem reforçar) a
ânsia por esse outro.

Querida. É a terceira com esta a quarta que te escrevo sem


resposta. No dia do meu aniversário pegou fogo na linha
férrea e eu vinha lendo A Man and Two Women e tive de
mudar de cabine de tanto que me irritou a mulher que não
falava uma palavra, feia apontando pro livrinho, e o velho
prestativo e inclinando e abrindo a boca para falar mais.
Saí da cabine e procurei um canto vazio mas não tinha.
Horas paradas esperando. Troquei de trem e o inglês
falando bem das minhas botas, minha roupa errada. Ele
reparou no livro e disse que não aguentava a flacidez da
perfeição, mas eu preciso de você, querida, mesmo
fazendo conferências e limpando a piscina com vestido
branco e auréola prateada, eu preciso te ouvir assim
mesmo com tim tim por tim tim e falta de elegância

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pedagógica, eu reclamava disso, lembra? Me conta uma
história com moral. (CESAR, 1982, p.105)

“Dentro dessa perspectiva do desejo do outro é que queria


colocar as minhas primeiras, quer dizer, a minha insistência com o
diário”, reiterou Ana Cristina em sua fala no curso “Literatura de
mulheres no Brasil”, ministrado por Beatriz Resende, em abril de 1983.

Primeiro, eu não... Se vocês forem ver em termos, assim,


totais, não tem muito diário. Diário não é o grosso, não é
só diário que está rolando, não é só correspondência que
está rolando. Isso é um momento, é um momento que
acontece dentro da minha produção, que é o seguinte: de
repente... eu me defrontei muito de perto com a questão
do interlocutor, eu comecei, fui fazer poesia e tal, mas de
repente, isso aí me incomodava muito. Quem é esse
interlocutor? Inclusive, não sei se vocês notaram o título
do livro, A teus pés, já contém uma referência ao
interlocutor [...] Isso significa que aqui existe, de uma
maneira muito obsessiva, essa preocupação com o
interlocutor [...] Se vocês forem ver o texto, o tempo todo
o texto se refere a alguém: “meu filho”.3

O depoimento da poeta retoma o que ela havia escrito dois anos


antes. Diário e carta, que tanto marcaram a sua produção e a recepção
de seus textos até ali, passam a ser lidos sob a perspectiva da busca
por um interlocutor, e não da exposição de uma intimidade, de
“revelações... e ocultamentos” (CESAR, 2016, p.293):

Você escreve um diário para suprir esse interlocutor que


está te faltando. Você está precisando loucamente falar
com alguém, você está precisando loucamente
confidenciar umas tantas coisas [...] e aí, muitas vezes, a
gente de puro engasgo, de necessidade mesmo, apela para
o diariozinho. E naquele diário também tem um
interlocutor, mesmo que ele não tenha a forma de alguém,
você está ali se dirigindo a alguém [...].

7faces • 274
O que acontece quando a gente escreve carta? Qual é a
questão fundamental da carta? Que tipo de texto é a
carta? Carta é o tipo de texto que você está dirigindo a
alguém [...] Fundamentalmente, carta você escreve para
mobilizar alguém, especialmente se a gente entra no
terreno da paixão, onde a correspondência fica mais
quente. Você quer mobilizar alguém, você quer que,
através do seu texto, um determinado interlocutor fique
mobilizado.

Bom, e a literatura? Quando você faz poesia, quando você


faz romance, quando alguém produz literatura
propriamente, qual é a diferença em relação a esses
gêneros? Você está escrevendo para todo mundo? Do
ponto de vista pessoal, do ponto de vista de como é que
nasce um texto, você, quando está escrevendo, o impulso
básico de você escrever é mobilizar alguém, mas você não
sabe direito quem é esse alguém. [...] Se você escreve
literatura, o impulso de mobilizar alguém – a gente podia
chamar de o outro – continua, persiste (CESAR, 2016,
p.293-294).

Importa lembrar que entre aquele manuscrito e essa transcrição


de sua fala há um livro: A teus pés. E este formaliza essa obsessão. O
interlocutor é procurado pelo sujeito lírico a cada poema, numa ânsia
que o descentraliza, faz dele sujeito em vozes, tornando-o ele mesmo
a busca por um outro. A escrita do livro mostra-se, como nos
anteriores, determinada por certo distanciamento crítico, agora de sua
própria produção. Ana Cristina Cesar é, como ressaltou Eduardo
Jardim, uma poeta reflexiva: “o componente crítico, intelectual, está
sempre presente em tudo que escreve. A crítica e a teoria não se
apresentam como instâncias que, de fora, refletem e avaliam. A
reflexão crítica sobre o poema está incorporada na sua feitura”
(JARDIM, 2017, p.111). A linguagem radical de A teus pés é resultado,
portanto, de um percurso, da “trilha irresistível em direção ao
descentramento” (SÜSSEKIND, 1995, p.63-64).
O descentramento do sujeito poético é algo presente na poesia de
João Cabral, mas certamente difere do operado pelos versos de Ana
Cristina, configurando-se, assim, como mais um traço anticabralino

7faces • 275
dessa poesia. Em muitos poemas a voz poética em João Cabral de Melo
Neto acaba por efetuar um descentramento do sujeito, ao evocar
memórias e paisagens de, como disse Alfredo Bosi (2004), um “fora
sem dentro”, bastante influenciado pelas pinturas sem perspectiva de
Joan Miró. Já Ana Cristina Cesar, mesmo provocando um
descentramento devido às várias vozes que irrompem no poema,
fazendo com que não seja mais possível delimitar, localizar aquela voz,
não deixa de querer lembrar ao leitor que há, por trás daquelas tantas
vozes, e daquele objeto livro, alguém de carne e osso. Em outras
palavras, se a remissão tão característica da obra de Ana Cristina (e tão
avessa ao projeto poético de João Cabral) a um eu biográfico é
parcialmente contaminada pela artificialidade do eu da poesia, a parte
que sobra insiste em dizer que há alguém real por trás daqueles textos.
A segurança de que esse eu real por trás do texto pode, ou deve, ser
associado à poeta, está irrevogavelmente avariada, mas é como se Ana
Cristina quisesse reforçar: ainda que não se possa saber quem, é
necessário se lembrar de que há alguém.

Notas

1 Andréa Catrópa em seu texto “Quem fala nos textos críticos de Ana
Cristina Cesar?” observa como a autora não estava interessada na
“dicotomia rígida entre sujeito criador e crítico, pois a sua poesia
contém, na própria concepção de literatura, uma fonte de reflexão
para seu ensaísmo, o seu método.” ― “A multiplicidade de papéis e
atividades que o nome Ana Cristina Cesar pressupõe não permite que
dotemos esse nome por trás do texto de uma ‘identidade estável’, da
qual, talvez, seja justo supor que o corpo do sujeito empírico seja o
reduto.” (CATRÓPA, 2015, p.146-147).

2 A teus pés (1982), único livro que Ana Cristina publicou por editora
em vida, é composto por três obras que ela havia lançado de forma
independente – Cenas de abril (1979), Correspondência completa
(1979) e Luvas de pelica (1981) – acrescidos de mais um, inédito,
também chamado A teus pés.

3 Trecho copiado da transcrição original do depoimento da autora, que

integra seu acervo no Instituto Moreira Salles. Tal parte encontra-se,


com algumas supressões, em Crítica e tradução (2016, p.295).

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Referências

BOSI, Alfredo. “Fora sem dentro? Em torno de um poema de João


Cabral de Melo Neto”. In: Estudos Avançados. São Paulo, 2004, v. 18,
n. 50.
CATRÓPA, Andréa. Sereia de papel: visões de Ana Cristina Cesar. Rio
de Janeiro: EdUERJ, 2015.
CESAR, Ana Cristina. Crítica e tradução. São Paulo: Companhia das
Letras, 2016.
CESAR, Ana Cristina. Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). 26 poetas hoje. Rio de Janeiro:
Aeroplano, 2007.
JARDIM, Eduardo. Tudo em volta está deserto: encontros com a
literatura e a música no tempo da ditadura. Rio de Janeiro: Bazar do
tempo, 2017.
SISCAR, Marcos. “Ana C. aos pés das letras”. In: De volta ao fim: o
“fim das vanguardas” como questão da poesia contemporânea. Rio
de Janeiro: 7Letras, 2016.
SÜSSEKIND, Flora. Até segunda ordem não me risque nada: os
cadernos, rascunhos e a poesia-em-vozes de Ana Cristina Cesar. Rio
de Janeiro: 7Letras, 1995.
VILLAÇA, Alcides. “Expansão e limite da poesia de João Cabral” In:
Leitura de poesia, 2003.

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memória

“Esta crítica de Antonio Candido foi para mim uma revelação. Foi ela
que me deu coragem de continuar escrevendo no início de minha
carreira. A situação era a seguinte: aquele grupo que eu frequentava
no Recife era profundamente influenciado pelo surrealismo. Mas o
surrealismo, na minha opinião, sempre foi o traumatismo da escrita.
Como eu era absolutamente incapaz de fazer a tal escrita automática,
com a qual eu não concordava, e, ao mesmo tempo, desejava
continuar fazendo parte do grupo do Café Lafayette, eu forjei um tipo
de surrealismo, quer dizer, meu surrealismo era algo construído.
Quando li o artigo de Antonio Candido, me senti encorajado a escrever
desenvolvendo meu construtivismo.”

A afirmativa lida é do poeta João Cabral de Melo Neto. Está na


visível trabalhosa entrevista construída para o primeiro volume de um
projeto que o Instituto Moreira Salles deu a conhecer a partir de março
de 1996 sob título de Cadernos de Literatura Brasileira; uma das
últimas falas públicas, quando o poeta, em grande parte motivado pela
perda da visão, estava ainda mais envolto no seu mundo particular.

7faces • 279
A destacada publicação seguia o objetivo de, entre uma revista e
um livro didático, dar a conhecer parte importante da nossa literatura.
Pareceu lógica a escolha da equipe editorial dedicar o número de
estreia ao criador pernambucano: era o maior nome da literatura
brasileira ainda vivo e parte de um rico grupo dos que ajudaram a
estabelecer suas feições. Avesso a homenagens, no sentido do
derramamento sempre recorrente dessas ocasiões, os editores numa
nota de esclarecimento do material revelado, trataram de dirigir o
sentido dos leitores para o tom do reconhecimento.
O termo parece ainda mais caro quase duas décadas mais tarde,
principalmente porque acompanhamos se formar uma geração mais e
mais marcada pela carência dos sentidos e dos afetos, de egos frágeis
ao mesmo tempo que (ou assim porque) inflados, logo, afeita ao tipo
de aplauso derivado do sentido mais recusado por João Cabral para o
termo homenagear. A mesura, usual no poeta, mas uma recorrência
aos de sua geração parece, definitivamente, na melhor das hipóteses
subvertida; mas no ponto vigente não é blasfêmia dizê-la, perdida.
Talvez por isso os olhos de hoje façam reservas ao autor de O cão sem
plumas; desconhecendo-o parte última de um tempo mais intenso de
sinceridades, preferem, por vezes, a ignorância de não o tocar.
A reprodução do texto a seguir é feita em duplo gesto de
homenagem: ao poeta e ao crítico. E ao termo reconhecimento,
podemos acrescentar que é esta uma maneira particular de saudar
dois nomes do nosso pequeno território intelectual com os quais
muito temos a aprender. Este texto demonstra as implicações
saudáveis, um pouco em falta, entre o exercício da criação e da crítica.
“Poesia ao norte” apareceu pela primeira vez publicamente no
rodapé alimentado por Antonio Candido no jornal Folha da manhã ―
posto que ocupou a partir de 1943 e ficou até 1945. A intervenção
sobre João Cabral data de 13 de junho de 1943. Pedra do sono havia
sido editado há quase um ano, numa tiragem de 340 exemplares, dos
quais, parte foi doada a amigos e quatro dezenas vendidas aos
familiares a fim de recuperar os custos com a publicação.
O que parece mais importante de acrescentar aqui é saber como
o livro do poeta pernambucano chegou às mãos de Antonio Candido.
Conta o crítico que um colega da faculdade foi viver no Recife depois
de iniciar carreira no City Bank; este conhece João Cabral e no ano de
aparição do livro, os dois viajam juntos a São Paulo com destino ao Rio
de Janeiro onde tentariam vaga no concurso para carreira diplomática.
Nesta viagem, a pedido do colega, Cabral autografa e por seu

7faces • 280
intermédio envia ao dele desconhecido crítico um dos exemplares de
Pedra do sono ― os dois só se encontram alguns anos mais tarde.
Assim, a crítica de Antonio Candido, que João Cabral só conhecerá
por intermédio de Carlos Drummond de Andrade muito tempo depois
de publicada, foi a primeira no fechado eixo sudeste do país. E versa
sobre o primeiro livro do poeta com algum entusiasmo e uma reserva
quanto a certo hermetismo da poesia. Sua validade aparece atestada
pela voz do próprio Melo Neto e impressa nos rumos que tomaria sua
obra poética a partir do livro seguinte, este que ampliará os limites de
sua posição no âmbito da literatura brasileira.

* Agradecemos a Ana Luisa Escorel pelos encaminhamentos para com a autorização da


reprodução do texto de seu pai nesta edição.

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Primeira edição de Pedra do sono, o primeiro livro de
João Cabral de Melo Neto, publicado em 1942. Da
antologia que reúne poemas escritos entre 1939 e 1941
foram publicados 340 exemplares; três centenas da
tiragem em papel simples foram distribuídas entre
amigos e o restante dos exemplares impresso em “Papel
Buetten para subscritores”, conforme se lê no colofão. O
livro foi impresso nas Oficinas Drechsler & Cia, em Recife.

7faces • 282
Poesia ao norte
por Antonio Candido

Tenho em mãos dois livros de poesia, ambos de rapazes apenas


saídos da adolescência e ambos nortistas: Pedra do Sono, do Sr. João
Cabral de Melo Neto1, de Recife, e Anjo dos Abismos, do Sr. Rui
Guilherme Barata2, de Óbidos, Pará.
São dois poetas radicalmente diversos e de méritos também
desiguais. Enquanto o pernambucano já se apresenta de posse dos seus
meios pessoais de expressão, o paraense ainda se encontra preso
demais à imitação. De qualquer modo, representam bem a poesia da
geração novíssima, e não me lembro de moço algum do Sul que tenha
estreado tão bem quanto eles, nos dois últimos anos.
É interessante como o Norte se interessa pela poesia. O grupo das
“Publicações Norte”, de Recife, apareceu através dela ou da sua crítica.
No Ceará, um Congresso de Poesia nos mandava notícias no fim do ano
passado ― por sinal que num manifesto cheio de dignidade intelectual.
De modo geral, me parece que a literatura, mais no Norte do que
no Sul, é ainda a grande via de expressão. Ente nós, centro-sulinos,
manifesta-se na mocidade uma certa tendência para o ensaio, a
pesquisa histórica e sociológica, a crítica sob todos os seus aspectos.
Tendência que predomina sobretudo em São Paulo, onde o número de
poetas e ficcionistas desaparece ante o acúmulo de críticos e
pesquisadores. É com prazer que constato essa inclinação como que
pragmática de utilizar a inteligência e a sensibilidade na análise do nosso
tempo e dos nossos problemas ― porque me parece que dessa
auscultação ansiosa pode resultar uma linha de pensamento e de
conduta que seja o nosso roteiro.

7faces • 283
O Sr. João Cabral de Melo Neto tem como epígrafe do seu livro o
desafio heroico de Mallarmé: “Solitude, récif, étoile...”. Com razão,
porque Pedra do Sono é uma aventura arriscada. O seu ponto de partida
são as imagens livremente associadas ou pescadas no sonho, sobre as
quais o autor age como ordenador. É esta disposição poética que
caracteriza o livro do Sr. João Cabral de Melo Neto.
Pedra do Sono é a obra de um poeta extremamente consciente que
procura construir um mundo fechado para a sua emoção, a partir da
escuridão das visões oníricas. Os poemas que o compõem são, é o
termo, construídos com rigor, dispondo-se os seus elementos segundo
um critério seletivo, em que se nota a ordenação vigorosa que o poeta
imprime ao material que lhe fornece a sensibilidade. Disso já se
depreendem as duas características principais desses poemas, tomados
em si: hermetismo e valorização por assim dizer plástica das palavras.
Trabalhando um material caprichoso, como é o do sonho e o da
associação livre, o Sr. Cabral de Melo tem necessidade de um certo rigor
por assim dizer construtivista. Daí se fechar dentro dos seus poemas,
onde há um mínimo de matéria discursiva e um máximo de libertação
do vocábulo ― entendendo-se por tal a tendência para deixá-lo valer
por si, manifestando o poder de sugestão que possui. As palavras, que
têm um poder sugestivo maior ou menor conforme as relações que as
ligam umas com as outras, se dispõem nos seus poemas quase como
valores plásticos, nesse sistema fechado que assume às vezes o caráter
de composição pictórica, e a beleza nasce da sua interrelação.
Não se conclua porém que esta poesia seja um edifício racionalista.
Muito pelo contrário, o trabalho ordenador a que é devida se exerce
sobre os dados mais espontâneos da sensibilidade. Daí a riqueza do
livro, que alia a ordenação da inteligência ao que há de mais
essencialmente espontâneo no homem.

*
A tendência vamos dizer construtivista do Sr. Cabral de Melo se
mostra na sua incapacidade quase completa de fazer poemas em que
não haja um número maior ou menor de imagens materiais. As suas
emoções se organizam em torno de objetos preciosos que servem de
sinais significativos do poema ― cada imagem material tendo de fato,
em si, um valor que a torna fonte de poesia, esqueleto que é o poema.
O verso vive exclusivamente dela.
Numa poesia em que há, por mínima e escondida que seja, uma
intenção ou uma possibilidade de interpretação discursiva, as palavras

7faces • 284
se esbatem diante da realidade maior da frase e da imagem, elas
próprias ultrapassadas pelo valor simbólico do que querem exprimir.
Quando leio:

“Eu sou a Moça-Fantasma


que espera na Rua do Chumbo
o carro da madrugada.
Eu branca e longa e fria
a minha carne é um suspiro
frio, na madrugada da Serra”
(Carlos Drummond de Andrade)

percebo logo um elemento narrativo, uma sequência verbal que se


sobrepõe, evidentemente, como música e como significado, aos
substantivos: moça, rua, carro, serra etc.
Agora, porém, se passo a uma poesia em que não há sequência
verbal ― no sentido de ligação discursiva ― mas tão somente esforço
de sugestão emotiva pela simples força dos vocábulos, sentirei de
repente a desmedida importância que estes adquirem. Tornam-se
salientes no poema, se impõem a mim como partes de um
estereograma. E os poemas do Sr. Cabral de Melo são, em certo sentido,
estereogramas poéticos. Veja-se, por exemplo:

“Dentro da perda da memória


Uma mulher azul estava deitada
Que escondia entre os braços
Desses pássaros friíssimos
Que a lua sopra alta noite
Nos ombros nus do retrato.
E do retrato nasciam duas flores
(Dois olhos dois seios dois clarinetes)
Que em certas horas do dia
Cresciam prodigiosamente
Para que as bicicletas de meu desespero
Corressem sobre seus cabelos;
E nas bicicletas que eram poemas
Chegavam meus amigos alucinados;
Sentados em desordem aparente,
Ei-los a engolir regularmente seus relógios
enquanto o hierofante armado cavaleiro

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movia inutilmente seu único braço.”
(Pedra do Sono)

Este poema é dos mais belos do autor, e nele encontramos todas as


características da sua poesia. Percebemos imediatamente que o vago
fio discursivo é apenas o zigue-zague associativo através do qual o poeta
vai construindo solidamente as imagens que são, ao mesmo tempo, os
elementos significativos e o arcabouço do poema. Note-se, então, o
valor dominante que os substantivos exprimindo coisas passam a
adquirir, ao lado das imagens por eles formadas. O poema todo parte
da imagem ― mulher azul ― que condiciona quatro pontos principais
de ossificação: pássaros, lua, retrato, cabelos. Em torno deles se veem
dispor as outras imagens materiais: flores, olhos, seios, clarinetes,
bicicletas, amigos, hierofante, braço. Estas palavras comandam os
versos, estruturam o poema e dependem de uma vontade ordenadora
que, após havê-los selecionado, os dispõe, dentro da composição, como
valores por assim dizer plásticos.
E assim são quase todos os poemas do Sr. Cabral de Melo. Não o
chamo porém de cubista, porque ele não é só isso. O seu cubismo de
construção é sobrevoado por um senso surrealista da poesia. Nessas
duas influências ― a do cubismo e a do surrealismo ― é que julgo
encontrar as fontes da sua poesia. Que tem isso justamente de
interessante: engloba em si duas correntes diversas e as funde numa
solução bastante pessoal.
Não obstante, há certos momentos em que temos a impressão de
que o Sr. Cabral de Melo está despoetizando demais as suas poesias, e
fazendo uma natureza morta, ou qualquer outra composição pictórica.
Veja-se a Homenagem a Picasso:

“O esquadro disfarça o eclipse


Que os homens não querem ver.
Não há música aparentemente
Nos violinos fechados.
Apenas os recortes de jornais diários
Acenam para mim com o juízo final”.

Para não se dizer que o poeta se submete aí à exigência da


homenagem, leia-se a Composição, que começa assim:

“Frutas decapitadas, mapas,

7faces • 286
Aves que prendi sob o chapéu,
Não sei que vitrolas errantes,” etc.

Essa tendência do Sr. Cabral de Melo leva-o frequentemente ao


exagero de um certo composicionismo verbal a que ele não sabe fugir.
Daí o ar experimental que corre por certas partes do livro, não sei se
devido apenas a isso ou também ao caráter de primeira expedição
literária desse livrinho de moço.
Como quer que seja, há nele qualidades fortes de poesia, e eu não
sei de ninguém nos últimos tempos que tenha estreado com tantas
promessas. Seus poemas são realmente belos, e representam a riqueza
de uma incontestável solução pessoal.

*
Mas essa riqueza não vai sem um certo empobrecimento humano.
“Solitude, récif, étoile...”. Como Mallarmé, o poeta pernambucano se
atirou em busca da poesia pura. Não discuto a sua “réussite” pessoal,
que é das boas. Quanto à poesia pura é que não sei se o seu barco
alcançará as estrelas ou se ficará pelos escolhos. Toda pureza implica
um aspecto de desumanização. É o problema permanente da pureza
ressecando a vida.
Nos nossos tempos de poesia mais comunicativa, já transcendida a
fase hermética pura, quase sempre vítima da sua autofagia, soa com
certo ar de raridade o livro do Sr. Cabral de Melo. E nos leva a crer que
a voz (?) do cisne mallarmeano está sempre viva, a ponto de vir ressoar
na última geração da nossa literatura. Pureza poética, surrealismo,
cubismo ― coisas que estão soando agora como requinte, mesmo
quando tão talentosamente representados por alguém como o nosso
poeta.
O erro da sua poesia é que, construindo o mundo fechado de que
falei, ela tende a se bastar a si mesma. Ganha uma beleza meio
geométrica e se isola, por isso mesmo, do sentido de comunicação que
justifica neste momento a obra de arte. Poesia assim tão
autonomamente construída se isola no seu hermetismo. Aparece como
um cúmulo de individualismo, de personalismo narcisista que, no Sr.
Cabral de Melo, tem um inegável encanto, uma vez que ele está na
idade dessa espontaneidade na autocontemplação. O Sr. Cabral de
Melo, porém, há de aprender os caminhos da vida e perceber que lhe
será preciso o trabalho de olhar um pouco à roda de si, para elevar a

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pureza da sua emoção a valor corrente entre os homens e, deste modo,
justificar a sua qualidade de artista.

*
De tendência oposta é o Sr. Rui Guilherme Barata. Dele, aliás, não
se pode dizer o que eu disse do poeta pernambucano. Não se encontra
no seu livro o que se poderia considerar como uma solução mais ou
menos pessoal. Anjos dos Abismos revela, da primeira à última linha,
uma identificação profunda com a poesia do Sr. Augusto Frederico
Schmidt. Vento, mar, noite, morta amada, janelas abertas: ― não falta
nada. Identidade no arsenal das imagens, na busca dos termos, nos
cacoetes poéticos ― como a repetição constante de um dado vocábulo
(o mar entra vinte e nove vezes nos quarenta versos da poesia Ode ao
Mar), ou as imagens que se formam sempre acompanhadas por um
adjetivo amplificador: “estranhas mulheres coroadas”; “escuridão da
noite encarcerada”; “árvores loucas que procurassem o céu” etc. A
impressão que fica é que o moço poeta nada mais quis do que escrever
exatamente como o grande cantor de Estrela Solitária.
E, no entanto, o Sr. Rui Guilherme Barata é um bom poeta. A sua
identificação é um fenômeno que se apresenta como tal intensidade,
que nos leva a pensar nele como na Lucy Citty Ferreira do Sr. Augusto
Frederico Schmidt. E aí está o maior elogio que se lhe pode fazer.
A bela fluidez, o halo majestoso, a nobre melancolia e o ritmo largo
do Sr. Augusto Frederico Schmidt, o Sr. Rui Guilherme Barata os possui
em certo grau. Seus poemas se leem com prazer, e nunca se tem a
sensação deprimente de pastiche. Revelam, como foi dito, mais
identificação do que propriamente imitação. Pena é que este processo
seja de natureza a cortar as asas do jovem poeta paraense. Porque não
creio que quem se mostra de tal modo tomado pela maneira de outrem
consiga um dia se livrar dela.

1
João Cabral de Melo Neto ― Pedra do Sono ― Pernambuco ― 1942
2
Rui Guilherme Barata ― Anjo dos Abismos ― Poesias ― Livraria José Olympio
Editora ― Rio ― 1943

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Os autores

ANTONIO CARLOS SECCHIN


É Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde atuou como
professor, profissão que exerceu também nas universidades de Bordeaux, Roma, Rennes,
Mérida e Paris III-Sorbonne Nouvelle. Sétimo ocupante da Cadeira n.19 na Academia Brasileira
de Letras. Sua obra se reparte entre a crítica, a ficção e a poesia. Da primeira expressão,
destaca-se o longo convívio com a obra de João Cabral de Melo Neto, sobre a qual publica João
Cabral de ponta a ponta (Recife: Cepe Editora, 2020). Como poeta é autor de, entre outros:
Ária de estação (Rio de Janeiro: São José, 1973), Diga-se de passagem (Rio de Janeiro: Ladrões
do Fogo, 1988); Todos os ventos (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002) e Eu & Outras (Porto
Alegre: Simplíssimo Livros, 2013).

EDNEIA RODRIGUES RIBEIRO


É Doutora em Letras-Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Professora de Literatura no Instituto Federal do Norte de Minas Gerais (IFNMG), campus
Montes Claros. Pesquisadora da obra de João Cabral de Melo Neto há mais de uma década,
teve a sua poesia como objeto de estudo no mestrado e no doutorado. Como responsável pela
seção de “Inéditos e dispersos”, colaborou na organização da Poesia completa (São Paulo:
Alfaguara, 2020) de João Cabral.

FRANCISCO JOSÉ RAMIRES


Nasceu em São Paulo e reside em São José dos Campos. É professor de Sociologia e escritor. É
autor de um livro de crônicas ficcionais intitulado Olhar de cão (São Paulo: Penalux, 2018) e de
duas coletâneas de contos: A morada e outros contos (Biblioteca 24horas, 2017) e
Reminiscências (Penalux, 2019). Também é autor de artigos sobre escritores variados, como
Roberto Bolaño e Thomas Mann; reedita João Cabral de Melo Neto: engenharia literária
(Penalux, 2020), livro que se propõe uma interpretação sociológica do processo de formação
do poeta e é resultado de uma pesquisa de doutorado realizada na Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo. Também participa do grupo de
“Classicando”, de leitura e discussão de clássicos.

ROGÉRIO CAETANO DE ALMEIDA


É Professor e Doutor em Literatura Brasileira na Universidade Tecnológica Federal do Paraná
(UFTPR/Curitiba); integrante do Grupo de Trabalho de Intermidialidade da Associação
Nacional. Desenvolve pesquisas relacionadas ao fantástico, ao grotesco e ao absurdo em
literatura e outras linguagens, sempre privilegiando o estudo de poesia. É líder do Grupo de
Pesquisa “(Des)Caminhos da modernidade ao Contemporâneo”.

LÍVIA LOPES MARANGONI


É aluna de graduação em Letras / Português na Universidade Tecnológica Federal do Paraná.
Também é poeta, com trabalhos publicados em antologias.

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IVÁN CARVAJAL
É poeta, filósofo e escritor. Atua na Pontifícia Universidade Católica do Equador. Diretor da
revista País Secreto. Sua vasta e premiada obra poética foi reunida integralmente pela primeira
vez em 2015, na antologia Poesía reunida 1970-2014. Como ensaísta publicou, dentre outros,
A la zaga del animal imposible e Ensayos sobre poesía ecuatoriana en el siglo XX.

ROSANNE BEZERRA DE ARAÚJO


É doutora em Letras / Literatura Comparada, pela Universidade Federal da Paraíba, com
estágio de doutorado no exterior (CAPES), no Departamento de Teologia na Universidade de
Nottingham, Reino Unido (2007-2008). Realizou o seu pós-doutorado em 2015 no
Departamento de Literatura Comparada do Centro de Literatura Europeia Moderna, da
Universidade de Kent, Reino Unido, por meio do Programa Pesquisa Pós-doutoral no Exterior
(CAPES). Investigou o teatro tardio de Samuel Beckett, estabelecendo relações com a tradição
filosófica herdada pelo escritor. Atualmente, é Professora Associada do Departamento de
Línguas e Literaturas Estrangeiras Modernas na Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN). É autora de Diagnóstico literário à luz das seis doenças espirituais de Constantin Noica:
Esperando Godot e outros casos (edUFRN, 2017); Travessia Poética: temáticas do tempo na
poesia de João Cabral (edUFRN, 2016) e Niilismo heroico em Samuel Beckett e Hilda Hilst: fim
e recomeço da narrativa (edUFRN, 2012).

WALLYSON RODRIGUES DE SOUZA


É Doutor e Mestre em Estudos da Linguagem / Literatura Comparada pela Universidade
Federal do Rio Grande do Norte.

ROSIDELMA PEREIRA FRAGA


É Doutora e Mestra em Letras e Linguística, na área de Estudos Literários, pela Universidade
Federal de Goiás (UFG); concluiu estágio pós-doutoral em Cultura Contemporânea, pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente é professora de língua portuguesa
e literatura e pertence ao quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Federal de Roraima (UFRR). Tem publicações em crítica literária e poesia, dentre
as quais se destacam, Convergências e tessituras: Manoel de Barros, João Cabral de Melo Neto
e Corsino Fortes (crítica, Rio de Janeiro: CBJE, 2010) e Poeisis em verso e prosa (poemas e
contos, Rio de Janeiro: Multifoco, 2013) e Amoramente (Cuibá: Carlini & Caniato Editorial,
2018).

ADRIANA HELENA DE OLIVEIRA ALBANO


É Doutora em Teoria da Literatura pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
(Unesp); concluiu estágio pós-doutoral na Universidade Federal de Roraima, onde atualmente
é professora. É autora dos livros de crítica literária Rastros de memória (Juiz de Fora: Funalfa,
2008) e O pilão de pilar lembranças (Boa Vista: EdUFRR, 2019).

RAFAELA DE ABREU GOMES


É aluna do Doutorado Acadêmico em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Federal do Ceará. Nesta mesma instituição conclui o Mestrado em Literatura
Comparada em 2015, com a dissertação João Cabral, um poeta-crítico: poiesis e crítica, sob
orientação da Professora Odalice de Castro Silva. Desde 2010, é membro do grupo de pesquisa
“Espaços de leitura: cânones e bibliotecas”. É autora do livro Um vislumbre a caminho: a
humana poesia de João Cabral (Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2019).

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RAFAELA CARDEAL
É aluna do Doutorado em Ciências da Literatura, na especialidade Literatura Brasileira, no
Instituto de Letras e Ciências Humanas da Universidade do Minho, onde desenvolve uma
investigação sobre a recepção de João Cabral de Melo Neto em Portugal, com a orientação do
Professor Carlos Mendes de Sousa e com uma bolsa de doutoramento da Fundação para a
Ciência e a Tecnologia (SFRH/BD/147088/2019). É membro do grupo “Poéticas em língua
portuguesa”, do Centro de Estudos Humanísticos (CEHUM). Defendeu, em 2016, a dissertação
de Mestrado Visita ao Museu de tudo, de João Cabral de Melo Neto, com o financiamento da
CAPES, no Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Nessa instituição, concluiu o bacharelado (2013) e a licenciatura (2015) em Letras.

DARÍO GÓMEZ SÁNCHEZ


É Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Rio de Janeiro (UFRJ), e acaba
de concluir sua pesquisa de pós-doutorado na Universidade Complutense de Madri sobre a
religiosidade na poesia de Rubén Darío. Fez mestrado em Literatura Hispânica no Instituto Caro
y Cuervo de Bogotá. Atualmente se desempenha como professor de literaturas em Língua
espanhola na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Têm publicado artigos em revistas
especializadas sobre poesia moderna luso-hispano-americana, assim como alguns capítulos de
livros sobre literatura fantástica.

FRANCISCA LUCIANA SOUSA DA SILVA


É aluna do Doutorado em Estudos Literários pelo Programa de Pós-Graduação em Letras e
Estudos Literários (Pós-Lit) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); mestra pelo
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará (UFC); especialista
em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília (UnB) e Cátedra Unesco/ARCHAI; e
graduada em Letras/Português pela UFC. É professora, revisora, poeta e atriz, com passagem
pela Cia. Palmas de Teatro (2011-2013) e Grupo Paideia (2002-2012). Atualmente é
pesquisadora vinculada ao Núcleo de Cultura Clássica da UFC e ao Grupo de Pesquisa de
Tradução de Teatro (GTT, UFMG/CNPq). Assina a curadoria do projeto “Ariadne Rústica Hilst:
um mergulho nos mares da mitologia grega e da poesia”, promovido pela Companhia Crisálida
de Teatro.

MARIANA BASTOS
É aluna do Doutorado em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo, instituição onde
concluiu Mestrado e Literatura Brasileira e Bacharelado em Letras. Atualmente, desenvolve,
com o apoio do CNPq, uma pesquisa sobre as possíveis relações entre a poética de Ana Cristina
Cesar e a do artista visual José Leonilson. No mestrado, realizou uma dissertação sobre o livro
A teus pés, de Ana Cristina Cesar.

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A Revista 7faces é uma produção semestral independente com interesse na publicação de poesia.

Editores
Pedro Fernandes de Oliveira Neto
Cesar Kiraly

Organização desta edição


Pedro Fernandes de Oliveira Neto
Cesar Kiraly

Conselho editorial
Eduardo Viveiros de Castro
Ésio Macedo Ribeiro
Maria Filomena Molder
Nuno Júdice

Colaboradores (por ordem de apresentação)


Antonio Carlos Sobrinho Isabel de Carvalho
Maíra Matos Edwardo Silva
Marina Magalhães Nayara C. P. Valle
Breno Almeida de Castro Claudia Baeta Leal
Gusthavo Gonçalves Roxo Thiago Alexandre Tonussi
Julieta Simone Francisco Romário Nunes
Lucas Grosso Alves Candeira
Vinicius Comoti Thássio Ferreira
Paula Peregrina

Agradecimentos
Ao Antonio Carlos Secchin pelo aceite ao convite para compor esta edição; ao Iván Carvajal pela cessão do texto
traduzido nesta edição; a Ana Luisa Escorel pela ajuda com a reprodução do texto de Antonio Candido; à
Companhia de Dança Deborah Colker pela cessão das imagens reproduzidas; ao Márcio Diegues por aceitar o
convite para ilustrar esta edição; e a todos que enviaram / cederam material para a ideia.

Contato
Pelo correio eletrônico dos editores, pedro.letras@yahoo.com.br, ckiraly@id.uff.br ou através do
correio eletrônico da redação revistasetefaces@ymail.com

Revista 7faces.
Natal – RN. Ano 11. Edição n. 21. Jan.-Jul. 2020.
ISSN 2177-0794

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publicados, conforme declaração enviada por cada um, hospedadas no
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