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imagem da capa
© Márcio Diegues.
O material que ilustra a edição, exceto os identificados, são todos concebidos por Márcio Diegues.
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Obra do homenageado
Poesia
Prosa
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Natal – RN
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Saio de meu poema
como quem lava as mãos
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sumário
13 Apresentação
O ato do poema é um ato íntimo,
solitário, que se passa sem testemunhas
75 POEMAS (1)
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João Cabral entre vulcões
128 por Iván Carvajal
Isabel de Carvalho
Edwardo Silva
Nayara C. P. Valle
Claudia Baeta Leal
Thiago Alexandre Tonussi
Francisco Romário Nunes
Alves Candeira
Thássio Ferreira
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269 Traços anticabralinos na poesia de Ana Cristina Cesar
por Mariana Bastos
279 MEMÓRIA
Poesia ao norte
por Antonio Candido
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apresentação
Pedra do sono foi o primeiro livro de poemas publicado por João Cabral
de Melo. Pedra inaugural, portanto. É interessante reparar como o
primeiro elemento desse sintagma se converteu em intermitência no seu
trajeto literário; um ponto de retorno mas nunca de descanso,
contrariando a sugestão onírica demonstrada na presença do segundo
componente. Como se uma educação do poeta ― para recuperar os
termos utilizados no designativo de outro livro publicado mais tarde, A
educação pela pedra ― devesse primar continuamente pelo reinventivo,
este que resulta quase sempre, no inovador, como se cada livro fosse uma
peça distinta de uma composição. Se de escolas falamos, a esta devemos
acrescentar outra, A escola das facas (1980), quando reconhece, também
de muito antes, a influência deste segundo elemento na sua poesia.
Na obra de 1942 é visível o diálogo que manteve com o surrealismo no
início de sua formação literária; mas, propositalmente recompôs a estética
à sua maneira: um surrealismo estruturado, sem se entregar ao tratamento
da escrita automática. Essa vaga não se dissiparia totalmente de imediato,
ainda que, mais tarde, o próprio poeta tenha desenvolvido uma recusa
sobre a escola ao ponto de questionar sobre o papel deste primeiro título
e de outros poemas num projeto literário fundamentado numa tentativa
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de objetividade da palavra. Mas, uma simples visita pela sua bibliografia
ativa, em nada espartana, nos levará reconhecer que não foi este projeto
fundado apenas na tendência que o distingue no âmbito da poesia
brasileira, uma vez que, da verve surrealista, sua obra não deixa de
transitar por uma poesia de tons memorialistas e formas mais populares,
ainda que o reconhecido sucesso de Morte e vida severina, do qual deriva
a última fonte, repouse mais numa posição assumida de um imaginário
advindo de suas releituras em outros meios que propriamente do texto
original. Quer dizer, o grande mérito do poeta terá sido converter as
recorrências no conteúdo poético em benefício de uma dicção autêntica e
irrepetível, uma característica que ressalta a posição que alcançou no
âmbito das literaturas de expressão portuguesa.
À pedra e à faca ― e o poema dramático de 1955, logo nos sugere ―
deve-se acrescentar o rio. São estes três elementos capazes de descrever,
mesmo que não sintetizem, a poesia de João Cabral de Melo Neto. Não
sintetizam porque nela se contém toda uma geografia dos seus afetos: o
Recife que contribuiu para sua primeira formação e nunca saído do poeta
e algumas cidades da Espanha que levaram-no descobrir seu lugar natal.
Sevilha, por exemplo, não é puramente uma cidade da Andaluzia, mas a
transfiguração material de um Pernambuco habitado pelo poeta, mais da
estruturação de um imaginário que puramente de memória. Ora, é
verdade que nada mais sobra do devaneio romântico advindo das
saudades da terra tropical, porque a poesia cabralina expulsa quaisquer
sentimentalismos (e tropicalismos), mas o lugar original é o Éden do poeta,
não no sentido da exuberância que a princípio o termo sugira, obviamente,
e sim no sentido de repouso, do ponto original, matéria com a qual se
moldam os materiais constituintes de seu universo poético.
Numa conferência de 1952, o poeta ensaia a discriminação de dois
princípios criativos: um coletivo, integralmente pulverizado desde a
modernidade; e outro individual, então vigente. Este último conduz o
poético para soluções diferentes à feitura e composição dos mundos
inaugurados pela criação literária. Nesse sentido, o poeta deixou de ser o
que domina uma vasta experiência criativa e é o que busca dominar os
tiques particulares que constituem seu estilo. Sempre se diz que quando
um poeta fala do seu ofício ou da obra sua e alheia expressa alguma parte
da sua profissão de fé, constituindo indiretamente seu tratado particular
de criação. Essa certeza que não é falsa, confirma, numa vista ligeira, que
as definições de João Cabral de Melo Neto em “Poesia e composição”
esclarecem o que se disse acima: toda sua poesia é uma tentativa de
singularização do mundo e das coisas para mostrá-lo sem quaisquer
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misticismos: “o poema no qual não entra para nada o espetáculo de seu
autor e, ao mesmo tempo, pode fornecer do homem que escreve uma
imagem perfeitamente digna de ser que dirige sua obra e é senhor de seus
gestos”, acrescenta o poeta.
Uma das últimas aparições públicas de João Cabral de Melo se deu
numa passagem bastante atribulada de sua vida, aquando da perda
progressiva da visão; foi uma entrevista conduzida a várias vozes para os
Cadernos de Literatura Brasileira, publicados pelo Instituto Moreira Salles.
Mais isolado do convívio público e muito avesso a quaisquer celebrações
em torno da sua obra, nesta entrevista, o poeta registra parte importante
do seu ofício e da poesia como um todo. É quando se apresenta uma
formulação metafórica, tratada certamente na intimidade dos poucos
convivas, uma vez que puxada pela companheira Marly de Oliveira. O
conceito está em perfeito diálogo com a tese levantada em “Poesia e
composição”, ampliando-a pela imagem sobre o poeta motivado para
coletividade e o poeta individualista: o primeiro carrega consigo toda uma
época, enquanto o segundo introduz cisões. É importante destacar que
esses sistemas aparentemente binários não reduzem a poesia e seus
criadores a duas classes em oposição, visto que entre uma e outra
destacam-se mesmo poetas e obras que se estabelecem como pontes
dialéticas. Mas, na sinalética cabralina, ele próprio é um poeta
perfeitamente integrado ao segundo grupo ― sua posição na cena da
nossa literatura é isolada, é o poeta cuja obra coloca um freio na
espontaneidade modernista.
É verdade que a histografia literária sempre se utilizou, muito pelo
instinto do continuísmo linear recorrente na concepção dominante de
história, de duas tentativas conciliadores. De um lado, é comum se utilizar
da condição de filho bastardo do modernismo para acentuar uma
integração da poesia cabralina a uma linha original da nossa poesia. Isto é,
uma tentativa de explicitação das suas origens pelos pressupostos da
Escola de 1922. De outro, agora pensando o momento de sucessão, tenta-
se adequar, forçadamente, sua obra entre os precursores da poesia
experimental dos concretistas. Mas essas determinações se formam mais
intuitivamente que comprovadamente. Se por um lado encontram as
justificativas que abrigam o poeta entre os reconhecidos, por outro,
impedem ao leitor de encontrar os valores que o distinguem não entre mas
dentre os demais. Cada poeta se afirma pela individualidade que alcança
com sua obra e toda obra de um poeta precisa primeiro ser lida sem a
interferência de outros reflexos que não os dela própria. A confirmação
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disso não foi dada por João Cabral de Melo Neto, mas entre nós, foi
exercida por ele. E é o suficiente.
A cesura com que singularizou os usos da linguagem poética ultrapassou
os limites do fazer poético até então vigente e implicou no estabelecimento
de uma posição do poeta dentre o cânone. Assim, o costume de se atribuir
ao autor de O cão sem plumas o papel de continuador da estética
modernista é redutor, porque sua obra se apropria da liberdade de criação
aberta aqui, mas propõe outra maneira de construção literária totalmente
distinta da pauta em vigor, substituindo, por exemplo, a irrupção do acaso,
o instante excepcional ― possibilidades que se examinadas de perto não se
encontram muito distantes do que os próprios modernistas condenavam ―
pelo trabalho laboral com a palavra, fazendo com a que a poesia se
estabeleça como espírito dos objetos criados e não que estes sejam o
aprisionamento da poesia: “Para mim, a poesia é uma construção, como
uma casa”, diz na referida entrevista aos Cadernos de Literatura Brasileira.
“A poesia é uma composição”, emenda. Já o lugar de precursor da poesia
concretista, talvez recorrente devido ao zelo com a forma e a objetividade
da linguagem, também é facilmente questionável, visto que, nunca foi seu
interesse uma intersecção entre voz, forma e conteúdo. Quis, antes, uma
voz, uma forma e um conteúdo capazes de responder pela própria
individualidade do objeto criado. Nesse sentido, talvez só nisso, ele se
aproxime da chamada Poesia Concreta, mas, como repara, esta é a condição
de todo poeta desde uma pulverização do poeta signo de uma coletividade.
João Cabral nunca deixou de referir que os concretistas, ainda que se note
uma extensão do seu trabalho, “fizeram uma coisa inteiramente nova”.
A posição individual se dá, esclareça-se, não porque se rompeu os
estreitamentos entre o poeta e a sociedade; mas aquele deixou de estar
acima do coletivo, deixou de ser o indivíduo eleito, para se individualizar pela
coletividade, o que, pela maneira de singularização do mundo, pode se
constituir dentro e fora da coletividade, antena do seu tempo, para
recuperar a medida metáfora mallarmaniana. Isso justifica de maneira mais
ou menos precisa a imensa solidão do poeta num universo de fronteiras
incontornáveis. Neste firmamento, João Cabral de Melo Neto não é o
satélite que no seu entorno abriga todo um sistema; brilha porque alto vive.
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João Cabral de Melo Neto (1920-1999)
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o homenageado
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de Pernambuco, encarrega-se da apuração industrial no Departamento de
Estatísticas do Estado etc. ― parando apenas quando lhe vem a estabilidade
com a vida de diplomata. É nesse período de primeiros socorros no trabalho
burocrático no Recife que se forma o interesse pela literatura.
Primeiro para a crítica literária e só depois ― ao se descobrir sem o
estofo intelectual necessário para função ― para a criação poética. Esse
interesse se forma do contínuo convívio com os frequentadores do Café
Lafayette, ponto de encontro das principais figuras do Recife ligadas ao meio
artístico, como pintores, jornalistas, escritores e aspirantes; é um período
que se estende ainda pelo primeiro contato com alguns nomes de alguma
maneira já destacados no eixo sul-sudeste, como Murilo Mendes, que o
apresenta a Carlos Drummond de Andrade e Jorge de Lima. Estamos por
volta dos anos 1940 e este contato com os sudestinos se forma depois que
realiza com a família sua primeira viagem ao Rio de Janeiro. Dessa
integração, forma-se sua primeira aparição pública: no Congresso de Poesia
do Recife, onde apresenta “Considerações sobre o poeta dormindo”, um
salto antecipatório ou preparo do que se gestava e que seria o primeiro livro
aparecido apenas um ano depois ― Pedra do sono ― graças ao seu próprio
esforço. Esta estreia se dá por uma modesta tiragem de 340 exemplares dos
quais quatro dezenas é vendida como objeto de coleção para custear os
gastos com a impressão do livro na oficina gráfica Drechsler & Cia., livro que,
de mão e mão, chegaria a importantes nomes da crítica, formadores de
opinião na época. Basta citar que, um ano depois da publicação, Antonio
Candido, recém-empossado numa coluna literária da Folha da manhã
demonstrava interesse por um jovem do norte com dicção personalíssima
no âmbito das apresentações mais recentes no meio literário.
É também em 1942 que se instala no Rio de Janeiro; cumpre seleção
para Força Expedicionária Brasileira (da qual é dispensado por motivo de
saúde) e depois para o cargo no Departamento Administrativo do Serviço
Público através de concurso público. A estadia na então capital do Brasil,
integra-o ainda nos quadros literários que aí circulavam, formado pelos
nomes conhecidos no fim da década anterior e pela aproximação a outras
figuras, como Augusto Frederico Schmidt, quem publica o livro de primeira
projeção, O engenheiro. É também no Rio que entra, depois de prestar
concurso, para a vida diplomática, começada dentro do país e enviado
depois a diversas partes do mundo. Espanha, Suíça, França, Portugal,
Inglaterra, Índia, Senegal, Mauritânia, Mali, Guiné, Paraguai, Equador. Só
volta a se fixar em definitivo no seu país natal em 1992.
Nesse tempo, sua obra se expande. Com dicção formada que coloca o
poeta entre os mais importantes da poesia de língua portuguesa da segunda
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metade do século XX chegam títulos como: Psicologia da composição
(impresso em 1947 em Barcelona através do selo O Livro Inconsútil, criado
pelo autor para editar em pequenas e artesanais tiragens, obras de poetas
brasileiros e espanhóis); O cão sem plumas (1950); O rio (escrito em 1953,
mas publicado um ano depois quando recebe o prêmio criado pelas
celebrações do quarto centenário de São Paulo); Duas águas (a primeira
antologia reunindo todos os livros anteriores mais os inéditos Morte e vida
severina, Paisagens com figuras e Uma faca só lâmina, em 1956); Quaderna
(publicado em Portugal, em 1960); Dois parlamentos (outro livro custeado
por própria conta e publicado primeiramente na Espanha em 1961, mesmo
ano quando sai no Brasil pela editora conduzida por Rubem Braga e
Fernando Sabino, Terceira feira, um livro que reunia os dois títulos
anteriores mais a coletânea Serial); A educação pela pedra (1966, livro que
lhe rende os prêmios Jabuti, Pen Club e o do Instituto Nacional do Livro);
Poesias completas (segunda reunião de poemas que se publica em 1968, em
vésperas de ocupar um assento na Academia Brasileira de Letras); Museu de
tudo (publicado em 1975 e premiado pela Associação Paulista de Críticos de
Arte); A escola das facas (1979); O auto do frade (1982); Agrestes (1985);
Crime na calle Relator (1987); Poemas pernambucanos (uma antologia
editada no mesmo ano em que sai uma terceira reunião dos seus poemas,
Museu de tudo e depois, em 1988); Sevilha andando (1990), seu último
título. A primeira reunião de sua obra completa aparece em 1994.
A consagração popular e crítica acontece e se estabelece a partir de
1966. O auto de Natal concebido primeiro para ganhar encenação no teatro
de Ana Clara Machado, ganha adaptação no Teatro da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (Tuca) com música de Chico Buarque de
Holanda; o sucesso da peça favorece uma turnê que começa pelo Brasil,
chega à França e depois à Espanha. No Festival de Nancy, o poeta recebe o
prêmio de Melhor Autor; em Barcelona, Morte e vida severina se converte
numa operística com música de Salvador Moreno.
Antes citamos sobre alguns dos galardões que marcaram a biografia de
João Cabral de Melo Neto, mas três deles não podem deixar de ser
mencionados: o Prêmio Camões, recebido em 1990; o Prêmio Neustadt, em
1992; e o Prêmio Rainha Sofia de Poesia Iberoamericana, em 1994. Estes
dois últimos, duas das mais importantes honrarias na carreira literária de um
poeta antes do Prêmio Nobel, só foram concedidos, primeira e unicamente,
até o presente, ao poeta pernambucano. A esta lista, soma-se o
reconhecimento da Grã-Cruz da Ordem Militar, oferecida por Portugal, um
ano antes de sua morte. Cabral morreu a 9 de outubro de 1999, na cidade
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que terá aprendido a gostar, o Rio de Janeiro, sem nunca se desfazer das
mesmas memórias daquele Brasil profundo de onde veio.
A diversidade de celebrações em torno de uma obra consagrada terá
favorecido na postura arredia que se formou nos últimos anos de sua vida,
agravada ainda pela invasão acentuada da cegueira. Mas, em muito tempo,
dificilmente outro poeta brasileiro alcançará o lugar por ele conquistado.
Nascido num país que cultivou o verso de apelo melódico e cuja poesia ainda
é sempre movida pelos auspícios de uma inspiração, de uma matriz
autobiográfica e onde o poeta é quase uma entidade sagrada ou marginal,
João Cabral de Melo Neto foi um dos mais sinceros criadores, fez da poesia
um ofício e do poeta a profissão, apesar de nunca exercê-la sozinha, como é
para todos os nascidos neste mesmo país para o qual a criação artística é um
passatempo feito para entreter espíritos vazios. Se sua ideia de poesia é
inimitável, ao menos poderíamos começar por seguir o modelo do espírito
criativo que cultivou. Talvez, assim, estivéssemos numa condição um pouco
melhor do que a vivida por ele e praticamente imutável desde então. Ainda
há tempo.
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Diálogos de João Cabral com a
Literatura Brasileira
por Antonio Carlos Secchin
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Para retornarmos à nossa tipologia, salientemos que, no interior
de cada categoria, poderíamos estabelecer uma tripartição de juízo de
valores emitidos pelo autor, a saber: comentário neutro, positivo,
negativo. Nem sempre citação implica endosso; diríamos mesmo que
a neutralidade e a crítica, velada ou explícita, acabam prevalecendo.
Todas as citações de João Cabral, acompanhadas do número da
página de onde provieram, foram extraídas de Poesia completa e prosa
(Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008).
1. As dedicatórias
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Além disso, a poesia de Bandeira é considerada um dos pontos mais
altos do lirismo brasileiro, enquanto Melo Neto rejeita em seus versos
a presença explícita do sentimento. Daí, portanto, que não deixe de
ser metalinguísticamente depreciativa e irônica a dedicatória “A
Manuel Bandeira, esta antilira para seus oitent´anos” ― a rigor, uma
antidedicatória.
Situação oposta à derradeira, dirigida ao poeta concretista
Augusto de Campos, frente a quem João Cabral declara divergências
que não escondem afinidades, enquanto, diante de Bandeira, adotou
um tom aparentemente neutro para sublinhar a radical diferença (a
“antilira”).
Pelo pouco usual procedimento de uma dedicatória em forma de
poema, vale a pena transcrever trechos desse texto, em que João eleva
a arte de Augusto a um patamar superior ao da poesia que ele próprio
pratica:
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Cabral confessa-se redundante (escrever tanto de tão poucas
coisas), declara que a obra de Augusto é mais radical do que a sua
(situada “aquém do ponto extremo”), e diz desejar leitores exigentes
e contestadores, personificados em Augusto de Campos e Ezra Pound.
O suposto confronto, sob o manto da modéstia, era de tal modo
autodepreciativo, que, posteriormente, Augusto de Campos replicaria:
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Curiosamente, João Cabral revelava-se, em termos proporcionais,
menos pródigo na dedicatória de poemas do que na de livros. Em
centenas de poemas, apenas vinte e um são dedicados. Nesse
pequeno contingente, prevalece o protocolo da simples amizade,
destituída de expressa sintonia literária. Eventualmente um adendo
“justifica” a dedicatória; outras vezes, ela se fundamenta no local de
nascimento do homenageado. Com efeito, A escola das facas (1980),
repertório de textos circunscritos apenas ao estado natal do poeta,
abriga vários poemas com dedicatórias a familiares, amigos ou
escritores pernambucanos.
Outros exemplos da parcimônia cabralina: apesar de ser o poeta
mais valorizado pela crítica e pelos estudos universitários na segunda
metade do século XX, um único ensaísta mereceu-lhe dedicatória:
Eduardo Portella (que, aliás, além de estudar em Pernambuco, residiu
na Espanha, como João Cabral). Já a Felix de Athayde, primo do
escritor, não coube sequer poema inteiro, mas somente uma parte: a
ele foram dedicados trinta e dois dos cento e vinte e oito versos de “O
sim contra o sim”, de Serial (1961).
2. As epígrafes
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diamante!”, epíteto com o qual o poeta do Rio de Janeiro elogiava o
poeta pernambucano. Cabral desconstruiu a homenagem, na
“Resposta a Vinicius de Morais” (1975):
3. Os títulos de poemas
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dez mil anedotas de morte,
e do que tem de sério e circo.
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Cultor do deserto, da paisagem e da linguagem esvaziada, da
bruta contraposição cromática negro/ branco (sua poesia é visual, mas
não colorida), captou um outro Nordeste em Ariano Suassuna:
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Tão refratário a expor-se, João Cabral o fez em “Autocrítica”, onde
as linguagens e os espaços referenciais soberanos no afeto do poeta
surgem numa íntima e tensa convivência:
4. As referências e as alusões
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parecia recíproca, pois em várias entrevistas Cabral relatou o silêncio
com que sua produção inicial teria sido recebida (ou desprezada) pelos
dois Andrades.
No que tange às alusões, percorreremos pontos extremos do
afeto cabralino. Às vezes, ele é apenas irônico, como no início de “A
cana dos outros” (1961):
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reportada a Melo Neto, Pires teria falado mal dos pernambucanos, o
que já foi bastante para acender a ira do poeta.
João Cabral passa da ironia ao sarcasmo em “Retrato de escritor”,
impiedosa descrição de autor de quem fora amigo na juventude,
acusado agora de exibir na literatura sua (falsa) solidariedade à dor
humana. Além disso, quanto mais distanciado estivesse o objeto da
pseudocomiseração, mais “solidário” o escritor se mostraria ―
insensível, portanto, à dor e à miséria vizinhas:
***
***
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e que me orienta a consciência
com a luz cigana que reluz. (p.61)
Aqui repousa,
livre de todas as palavras,
LÊDO IVO,
poeta
na paz reencontrada
de antes de falar,
e em silêncio, silêncio
de quando as hélices param
no ar. (p.657)
Notas
1CAMPOS, Augusto de. “João/Agrestes”. In: Despoesia. São Paulo:
Perspectiva, 1994, p.77.
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O discurso cacto de
João Cabral de Melo Neto
por Edneia Rodrigues Ribeiro
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culturais, tanto eruditas quanto da tradição popular. Em relação à
Literatura Brasileira, nesse Museu, são contemplados alguns nomes
que, além da relevância no campo literário nacional, pertencem ao
círculo de convivência do poeta responsável pela exposição.
“Resposta a Vinicius de Moraes”, que serve de epígrafe para este
trabalho, faz parte desses poemas para amigos-escritores de Museu
de tudo1. Com ele o poeta pernambucano busca retribuir a
homenagem feita por Vinicius de Moraes, neste “Retrato, à sua
maneira”:
Magro entre pedras
Calcárias possível
Pergaminho para
A anotação gráfica
O grafito Grave
Nariz poema o
Fêmur fraterno
Radiografável a
Olho nu Árido
Como o deserto
E além Tu
Irmão totem aedo
Exato e provável
No friso do tempo
Adiante Ave
Camarada diamante!
(MORAES, 2017, p.300)
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pontuação, não há elementos que remetam aos sonetos lírico-
amorosos com os quais o autor da homenagem se tornou conhecido
e, talvez, nada além do léxico e dos versos curtos remetam a uma
imitação do estilo cabralino.
Todavia, a associação de João Cabral ao diamante, embora venha
a ser contestada em “Resposta a Vinicius de Moraes”, é bastante
significativa para entender a opinião difundida a seu respeito e que o
próprio poeta ajudou a criar com afirmações deste tipo: “eu sou um
antilírico, me considero mais crítico do que poeta” (MELO NETO apud
PEIXOTO, 1983, p.203). A imagem do João Cabral conciso, cerebral,
antilírico, entre outras ideias vinculadas à exatidão, norteou a maior
parte dos trabalhos acerca da sua poesia. Se tais direcionamentos não
serviram para criar um rótulo de “poeta difícil”, ao menos
contribuíram para delimitar muitas leituras voltadas ao seu
preciosismo estético.
Ilustra o consenso acerca do seu rigor estético a irônica
homenagem prestada por Vinicius de Moraes no “Retrato, à sua
maneira”. João Cabral, porém, parece não ter se sentido contemplado
com tal caracterização e, após duas décadas, revida com outro poema.
Ao contestar o amigo, João Cabral inicia a sua resposta-poema
retomando a expressão com a qual Vinicius lhe saúda no último verso:
“Camarada diamante!”2. Apesar da conotação política, remetendo à
inclinação progressista de ambos, o termo “camarada”, ligado ao
universo lírico sentimental do poeta carioca, associa-se a “diamante”,
mais próximo à ideia de mineralização vinculada à poética do
pernambucano. O contraste entre os dois vocábulos sugere um traço
peculiar à poesia cabralina: o trabalho com ideias díspares em um
mesmo contexto.
É possível atribuir a esse poema um caráter circunstancial, pois se
relaciona a um contexto específico em que João Cabral se propõe a
responder à homenagem feita pelo amigo3. Além do caráter subjetivo
voltado a figuras conviviais, nessa troca de poemas estão contidos
elementos de crítica literária que instauram reflexões sobre o trabalho
poético esmerado e avesso à inspiração do autor de A educação pela
pedra. O questionamento ao “elogio” feito por Vinicius acentua-se nos
seguintes versos:
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[...]
que incapaz de ser cristal raro
vale pelo que tem de cacto.
(MELO NETO, 1975. p.43)
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resistência. A vegetação que se destaca em meio ao incinerado,
reflexo dos efeitos da seca no Nordeste, é alçada à condição de
elemento combativo ao desconhecido e ao “de fora”. Esse suposto
inimigo contra o qual o avelós se arma é sugerido por: “(a quem o Sul
dá sequer / a hora do relógio se a pede)”. Os versos aparecem entre
parênteses no meio do poema sugerindo ressalvas do sujeito poético
em relação à hegemonia do eixo Sul-Sudeste do Brasil.
O envolvimento com temáticas sociais é mais explícito nos livros
da década de 1950 ― O cão sem plumas (1950), O Rio (1954) e Morte
e vida severina (1956). Contudo, em publicações posteriores não
desaparece a preocupação de João Cabral em fazer da realidade
imediata o mote da sua poesia. A crítica à indiferença do poder público
― concentrado nas regiões mais desenvolvidas do Brasil ― em relação
ao Nordeste é retomada ao longo da sua obra. O inconformismo do
poeta com as desigualdades sociais brasileiras pode ser observado no
poema “Conversa em Londres”5, Agrestes (1985), no livro inconcluso
A casa de farinha6 e no poema inédito “A Deus, natural do Rio, São
Paulo e do Centro-sul”7. A última estrofe sintetiza a descrença do
sujeito poético em um Deus que, supostamente, privilegia certa região
em detrimento de outras:
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enfrentadas por uma parcela da população brasileira cujos olhos dos
mais privilegiados não alcançam como sugere a figura do Dr. Sudene,
a quem os trabalhadores associam o fechamento d’A casa de farinha:
“Fabuloso de poder para impedir os abusos do coronel. Os otimistas
creem nele; os pessimistas reconhecem sua existência mas dizem que
é igual a todos.” (NEMO NETO, 2013, p.54).
Embora não seja da mesma família dos cactos, o gesto de
resistência contido em “O avelós” assemelha-se ao que é oferecido
pelo mandacaru, em “Duas bananas & a bananeira”8:
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A referência ao cacto aparece também em “The Country of the
Houyhnhnms”:
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vegetação como discurso necessário diante da condição vivida pelos
Yahoos nordestinos. A ideia de regionalizar os Yahoos de Swift pode
ser percebida nesta entrevista:
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representado pelo reino mineral. Sem negar a relevância da pedra na
sua poesia ― “Para falar dos Yahoos se necessita / que as palavras
funcionem de pedra:” ―, não lhe agrada o fato de ser comparado a
uma pedra preciosa. Portanto, a tentativa de se aproximar ao reino
vegetal pode ser entendida como a configuração de um discurso capaz
de desestabilizar o leitor, à medida que conciliam os espinhos do cacto
à dureza da pedra e à ambiguidade da faca na esmerada poética
cabralina.
Notas
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4 Sobre esse assunto é importante destacar o belíssimo poema “O
cacto”, de Manuel Bandeira, escrito em 1925 e publicado no livro
Libertinagem.
5 Neste
trecho do poema, o sujeito poético atribui a um britânico, a quem
emprestara material para estudar o Brasil, a seguinte opinião:
6Datado de 1966, o material foi organizado por Inez Cabral, a quem o poeta
teria entregado o fichário com as anotações. Em 2013, publicou-se uma
versão fac-similar dos manuscritos, acompanhada de transcrições feitas pela
organizadora, com o título Notas sobre a possível A casa de farinha.
Referências
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MATVEJEVITCH, Pedrag. Poésie de circonstance. Paris, Nizet, 1971.
MORAES, Vinicius de. Vinicius de Moraes: obra reunida. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2017.
MELO NETO, João Cabral. Museu de tudo. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1975.
MELO NETO, João Cabral. Entrevista “Conversas com o poeta João
Cabral de Melo Neto”. In: SIBILA - Revista de poesia e cultura. Ano 9,
número 13, agosto de 2009.
MELO NETO, João Cabral. Notas sobre uma possível A casa de
farinha. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
MELO NETO, João Cabral. Poesia completa. Rio de Janeiro; Lisboa:
Academia Brasileira de Letras; Glaciar, 2014.
MELO NETO, João Cabral. A poesia brasileira [texto inédito]. In:
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Pedra e rio: o movimento como
“método”
por Francisco José Ramires
7faces • 49
Para quem se aventure a interpretar a obra cabralina, é de bom
tom considerar a articulação dialética entre continuidade e ruptura.
Para tanto, o desenvolvimento do autor, como poeta, repõe a
formação como processo social crivado pela inserção no jogo literário
propriamente dito e também pela constituição de sua identidade, ou
seja, toda dinâmica envolvida nos julgamentos (pessoais e estéticos)
como fenômenos igualmente sociais: ver e ser visto, ler e dar a ver suas
criações. Na medida em que começa a se configurar uma trajetória
como autor (para si e para os críticos), eivada de metamorfose, é dada
a possibilidade de releitura de sua produção passada, à luz de
sucessivos novos momentos e posições, crivados por alterações
históricas e sociais de maior monta, na toada das viagens efetuadas
pelo próprio autor.
Isso nos permite avançar em outra direção: a seriação dos
trabalhos literários. Não como mera cronologia, disposição linear,
mas, sobretudo, como ponto de fuga da análise de qualquer poema
em particular, tendo em vista que João Cabral de Melo Neto tinha o
costume da reflexividade, ou seja, a retomada artística e crítica de
temas (e poemas) como exercício revigorante de seu “método”.
Mesmo dando muita importância à rotina diária, esta era precondição
do dinamismo de sua “fórmula” poética, artisticamente nada rotineira
em si. Em Cabral, nenhum trabalho era acabado, posto que sempre
merecedor de experimentações futuras.
A socialização do poeta transcorreu num momento em que os
movimentos migratórios começavam a se mostrar como tendência de
longa duração: por imposições decorrentes de condições de vida e
trabalho, facilitadoras da necessária “liberação” de mão-de-obra para
regiões cujo dinamismo econômico demandava alterações
demográficas e sociais; pelo desejo de ver os horizontes culturais
estendidos ou, o que é ainda mais radical, a vontade pessoal de
acompanhar uma história cujo ritmo recoloca tais horizontes cada vez
mais distantes, por maiores que sejam os esforços de aproximação.
Aquilo que Max Weber chamou de a moderna impossibilidade de
morrer pleno de vida. Na modernidade, as viagens são o destino
humano mais notório e repleto de possibilidades para a exploração
estética. Contra essa busca incessante, compreendemos a depressão
que acometeu o poeta pernambucano no fim de sua vida, decorrente
da cegueira e o correspondente drama de quem se viu “impedido” de
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seguir em seu ofício, sobretudo porque Cabral não se limitava a ouvir
as palavras e os poemas. Era imperioso vê-los também.
Ondas migratórias intimamente articuladas aos processos de
industrialização, urbanização e metropolização, que ganhavam
visibilidade, em Recife, na ampliação dos espaços ocupados por
mocambos; no campo, pela derrocada dos engenhos mais tradicionais,
de mecânica tornada rudimentar face ao processo de constituição das
usinas. Portanto, falamos de transformações que dão sustentação
para a uma tomada de consciência da historicidade, baseada na ideia
de que tudo, absolutamente tudo, está em transição. No escopo
regional, salientamos os deslocamentos de homens e mulheres
provindos do sertão, do agreste ou da zona da mata, e também da
própria experiência de Cabral, que vivenciou as viagens como destino
humano. Seus versos são carregados de técnica e sensibilidade graças
às quais vicejam mudanças biográficas potencializadas por um mundo
em transformação.
Com maior ou menor vigor, mas sempre presente, a consciência
da mudança histórica, forjada em condições sociais, políticas e
econômicas em reconfiguração, está entranhada em todos os poemas
desse poeta pernambucano. De tal modo que, no final das contas, João
Cabral de Melo Neto transcende e muito sua localidade de origem,
ainda que ela esteja ali, profundamente incrustada em cada dobra de
seus versos. Difícil vê-lo apenas como escritor regional,
pernambucano. Devemos lembrar que chegou a ser cogitado para a
láurea do Nobel de literatura e teve seus trabalhos traduzidos para
diversos idiomas. Em certa medida, ele foi muito além das fronteiras
nacionais.
Podemos realizar uma breve digressão acerca de duas metáforas
que sintetizam, em nosso modo de ver, sua percepção das mudanças
históricas em andamento. Metáforas que encerram em si o
movimento como “método” de criação literária e de percepção
poética do mundo: pedra e rio.
A pedra é um símbolo literário que não ficou restrito e esquecido
no livro de estreia. Não houve abandono, mas sim uma longa e forte
persistência, feita a partir de recriações esparsas, porém vigorosas. No
início, a pedra estava cindida em duas partes: Europa e Brasil. Nesse
momento, sua lapidação apresentou silhueta surrealista, porém
jamais como mera importação desproposital e ou equívoca de
modelos do Velho Mundo. Na sanha do desbaste e do polimento
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literários, a pedra foi ajustada à realidade na qual João Cabral de Melo
Neto foi socializado. Assim, Pedra do sono entra como capítulo da
aclimatação do surrealismo ao sistema literário nacional, com raiz
local, visto que o nome do poema era o nome de um lugar de seu
estado natal. Seu surrealismo não é, portanto, tão somente a
exploração artística dos caminhos do inconsciente humano, abertos na
toada dos estudos do campo da psicanálise. Ele se refere à realidade
maior, com um olhar direcionado para fora (e não apenas para o
interior do ser humano), em busca de matéria-prima com potencial
estético, no cotidiano da vida, nos espaços nomeados por homens e
mulheres. Seu surrealismo vem prenhe de instrumentos e objetivos
realistas, controlados pela razão lúcida. A escrita automática passou
longe de sua proposta e de suas intenções.
Pedra do Sono é nome de um local geográfico, situado no
município de Limoeiro-PE, região intermédia entre sertão e litoral, não
muito distante de Recife. Portanto, a despeito das experiências feitas
na toada de um projeto literário nascido do outro lado do Atlântico, a
escolha do título dá o tom do enraizamento local das vontades do
autor. No livro, predominam as temáticas da cidade (rua e vias
públicas, mas também os espaços reclusos do lar), da subjetividade do
escritor e do “imaginário” local popular, por vezes transfigurados em
versos oníricos. Temas nem sempre harmonizados entre si, visto que
os poemas nos devolvem uma feição levemente esquálida e as pistas
de uma proposta consciente, cujo traço decisivo é a afronta política a
outras linguagens então dominantes, baseadas fundamentalmente no
ensaio e no romance.
Pedra do sono reúne poemas que expressam uma consciência
possível (em desenvolvimento), calcada na fricção entre o esforço de
manter-se atento às vanguardas europeias e o escrutínio necessário
ao fazer literário em um país de passado colonial, onde se forjava um
projeto de capitalismo e civilização, cujas principais determinações
decorriam das desigualdades internas e daquelas relativas às nações
mais avançadas. Capitalismo dependente e subdesenvolvido,
periférico. A esqualidez do livro está ligada a esse contexto
perturbador. Por um lado, os sinais de aceleração da história, ligados
ao predomínio da ordem social e técnica capitalista sobre nossa
formação senhorial e escravocrata. Por outro, a persistência de
condições que serviam de esteio ao atraso, cujo resultado era uma
modernidade muito particular, atravancada.
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Tudo isso era potencializado pela experiência de derrocada de sua
própria família, com seu pai submetido a perseguições de natureza
política e cerceado em suas chances de sobrevivência. Esse clima deve
ter tido grande repercussão no espírito do autor. À vertigem dos temas
oníricos correspondia a vertigem de sua existência familiar, ainda mais
aguda por ser o segundo filho da prole. Portanto, poderia ter sentido
a pressão da responsabilidade de entrar como arrimo dos irmãos mais
jovens, em uma redistribuição de papéis no seio da família e na
redefinição de sonhos.
Com quinze anos, João Cabral de Melo Neto foi campeão juvenil
pelo Santa Cruz Futebol Clube. Com dezessete anos de idade (1937),
já trabalhava na Associação Comercial de Pernambuco e, em seguida,
no Departamento de Estatística do Estado. Tendo legado alguns
poemas sobre Ademir da Guia e sobre o América Futebol Clube,
muitos anos depois, não é exagero dizer que o esporte era uma paixão.
Assim, a carreira futebolística poderia ter sido alternativa de vida. Há
depoimentos que dão testemunho de ele, Cabral, ter sido um bom
jogador. Assim, o caminho de fazer do futebol um meio de vida e fonte
de reconhecimento pode ter sido inviabilizado em decorrência das
alterações das condições de vida do país, com respingos em seu lar. Se
o futebol era envolvido por grande emoção, deve ter sido frustrante
ter de abandoná-lo. Essa energia talvez tenha sido somatizada, tendo
sido ele acometido por fortes dores de cabeça que logo entraram para
o anedotário dos amigos mais chegados, mas também foram motivo
de preocupação, com internações e cirurgias. Quiçá tenha sido
sublimada em uma direção diversa: a literatura.
Houve momentos de retomada da pedra em trabalhos literários
posteriores, desbastada com intenção de lhe conferir contornos
diversos. O retorno e, portanto, a continuidade são evidências
empíricas da persistência do autor, julgando-a apropriada dentro de
seu projeto (em formação). Caso contrário, não haveria por que
mantê-la. Bastaria abrir mão (caminho “natural”), se levarmos em
conta as pequenas “repreensões” que o livreto suscitou, aqui e ali, nas
respostas daqueles que o leram quando de sua publicação, talvez sem
terem a informação geográfica contida em seu título, posicionando os
versos no limiar de uma literatura excêntrica, de torre de marfim.
Simultaneamente, os usos futuros dessa metáfora são evidência
empírica da configuração retroativa da qual falamos há pouco. Obras
criadas posteriormente obrigam o crítico a voltar ao livro de estreia, a
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fim de perscrutá-lo com intenção instigada pelos novos trabalhos,
reveladores do dinamismo que só pode ser apreendido ao longo do
tempo. Diacronia que impõe o retrocesso aos estudos feitos no calor
da hora (sincrônicos). Cada nova publicação reposiciona as
imediatamente anteriores, transformando seus valores, exigindo
novas leituras.
É claro que, dialeticamente, a pedra vem carregada de
descontinuidade, pois a metáfora seria referida ao sertanejo como
tipo social. Metáfora construída como aproximação em relação a
homens e mulheres que habitavam o ambiente seco e pedregoso do
sertão. Seres humanos que, segundo Cabral, deveriam armar-se com
as qualidades de resistência da pedra, para que fosse possível dar
conta das necessidades da vida, tamanha a hostilidade natural e social
daquelas paragens.
Nesses seres de pedra subjaz a desumanização como “negação”
da história, aparentemente mais lenta para os sertanejos,
“petrificada” para essa parcela das classes trabalhadoras, para os
desclassificados em relação às linhagens senhoriais e à burguesia em
formação. Contudo, a pedra é também o símbolo da história possível,
em termos de resistência política, esperança e tenacidade na luta pela
existência. História dos homens simples, em um país crivado por
desníveis regionais nada desprezíveis. O ponto alto dessa nova feição
da imagem de estreia é o livro A educação pela pedra, escrito entre
1962-1965 e publicado em 1966. Momento delicado da história
brasileira, prenhe de incertezas políticas que culminaram no golpe de
1964, com a tomada militar do Estado, em meio à estigmatização e
repressão de toda crítica e das mobilizações sociais contestatórias,
urbanas ou rurais. Uma nova ditadura que pode ter ativado as
emoções vinculadas às memórias da juventude do escritor e dos
tempos sombrios de outrora.
Antes disso, a “tese” do livro de 1966 já havia sido apresentada
em um trabalho de 1953, intitulado O rio ou relação da viagem que faz
o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife. O poema tem o
mesmo porte de O cão sem plumas. Podemos dizer que o tema é
idêntico, ainda que seja um poema com vida própria, premiado,
autônomo e com arranjo bem diverso. Talvez se trate de uma releitura
crítica.
Os versos transcorrem na cadência das águas dos rios
pernambucanos, indo em direção ao litoral (Recife). As águas (o rio),
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como metáfora literária, não substituem a pedra ou a ela se
sobrepõem. Elas se combinam, são amalgamadas, em rimas que nos
lembram do cancioneiro popular e da poesia cantada por tipos
provindos das classes populares. Seguindo o fluxo fluvial, é notória a
preocupação “etnográfica” de João Cabral de Melo Neto, expressa nos
nomes locais que ficam para trás à medida que as águas avançam,
rumo a seu destino. Há forte interesse geográfico, em termos da
ocupação do espaço pelos seres humanos. Espaço usado, habitado,
percorrido, abandonado. O poema toma a realidade nordestina
(pernambucana) como referente, da qual busca se aproximar, mas
jamais a ponto de se confundir com ela, espelhá-la. Afinal de contas,
literatura não é apenas retrato da realidade. É, fundamentalmente,
criação.
Se em O cão sem plumas a aplicação poética do materialismo
dialético ofereceu ao leitor a imagem de migrantes despojados de
propriedades, no terrível limite de verem a própria força de trabalho
arrefecer, a sobrevivência por um fio, nesse novo poema a
preocupação etnográfica indica a incorporação de informações de
caráter antropológico, em um sentido diverso, qual seja: a despeito da
expropriação inerente aos processos de proletarização de homens e
mulheres, estes carregam consigo um imaginário popular que os
enriquece (contos, orações, músicas, artesanatos etc.), que os define
(em termos identitários) e funciona como visão de mundo capaz de
sustentar a dignidade subjacente a um sistema de valores caros à vida
dessas pessoas. Não é à toa que, a despeito de ser ateu, João Cabral
de Melo Neto criou também um auto de natal materialista,
reconhecendo a importância da religiosidade para essa população.
Este auto se chama Morte e Vida Severina.
Em uma das passagens, o rio chega (e Cabral volta) a Limoeiro,
vilarejo representado com as qualidades da pedra. Esse “retorno” ao
seu ponto de “origem” é também a transfiguração da literatura
cabralina (em construção). Pura reflexividade, pois o poema versa
também sobre seu itinerário autoral. O local é o mesmo, mas um
pouco modificado (a vida veste ainda / sua mais dura pele. / Só que
aqui há mais homens / para vencer tanta pedra). Poema escrito em
território nacional, pois João Cabral estava de volta ao Brasil, para
responder ao processo administrativo por subversão. Sob ameaça,
acionou a literatura como meio para reaver lembranças, na luta para
defender quem era.
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Em outros momentos de sua poesia, a água seria vertida em
metáfora para a paixão com que João Cabral de Melo Neto passou a
apreciar a dança, particularmente os movimentos femininos das
mulheres sevilhanas, os volteios de seus corpos e vestidos esvoaçantes
do flamenco. A água, doravante vista como atributo feminino,
redefiniria a pedra como qualificativo masculino, numa oscilação entre
Brasil e Espanha, razão e paixão, escrita e dança, drama e arte. De
forma inusitada, o poeta racionalista abre a guarda diante do erotismo
dessa expressão cultural, cedendo ao que Max Weber chamou de a
maior força irracional da vida, cuja explosão exigia um lugar no
esquema ascético de seus versos.
O movimento, como destino existencial, metáfora poética e
“método” de criação literária, ganha um estofo todo especial a partir
do momento em que começamos pensar a literatura como instância
do social e este como uma das dimensões da obra, direcionando nosso
olhar nesse duplo sentido.
A ascendência de João Cabral de Melo Neto tem raízes fincadas
em solo senhorial. Sua família era detentora de engenhos, mas não de
usinas, o que dá o tom de seu poder econômico, modesto se
comparado ao dos grandes proprietários locais. Somado a isso, não
devemos nos esquecer da intimidade com o poder político, cujo
principal cacife foi, sobretudo, a formação jurídica, área da qual saíram
inúmeros sujeitos que ocuparam as mais diversas posições no Estado,
alguns deles convertendo a política em condição de trabalho
duradouro.
Nos primeiros momentos de vida, a socialização de João Cabral
deu-se em meio ao esfacelamento das bases econômicas de sua
família. Essa derrocada, como já dito, instituiu condições
absolutamente novas, favoráveis à “liberação” do jovem em relação
aos possíveis destinos diretamente vinculados à reprodução
(bloqueada) do legado familiar (material e simbólico). Assim, a
reconversão se impôs como necessidade e novas trajetórias possíveis
ficaram à sua disposição no horizonte social de então.
Em tais circunstâncias, era grande a chance de Cabral formar uma
“visão de mundo” mais ajustada às transformações que o envolviam
naquela fase de sua vida. Olhar muito distinto do que ele teria, caso
tivesse de lidar com as obrigações ligadas ao gerenciamento dos
negócios da família ou às disputas políticas, anteriores e
contemporâneas ao Estado Novo varguista.
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Houve distanciamento entre o jovem Cabral e as pessoas em
posições similares às de seus ascendentes ou de descendentes (de
outras famílias) em condições de levar adiante o legado de berço,
circunscrito a limites históricos concretos. Há identidade, porém
combinada a uma postura mais “objetiva”, no sentido de não-
compromisso em termos da defesa de valores, julgamentos e estilos
de vida. Não tardou até Cabral se arriscar no Rio de Janeiro,
abandonando a família de origem, para fazer a própria vida.
Essa situação ambígua, de identidade-distanciamento, ganhou
expressividade poética no livro O engenheiro, no poema “Os primos”.
Suas estrofes versam sobre uma praça onde há estátuas de membros
de sua linhagem. Petrificados, a relação do autor com seus parentes é
perpassada por proximidade e empatia, mas também pela
impossibilidade de se reconhecer plenamente naqueles seres de pedra
(tão estranhos), que representam um passado morto ou inviável e,
portanto, novas perspectivas quanto ao futuro: “Meus primos todos /
em pedra, na praça / comum, no largo / de nome indígena. / No gesso
branco, / os antigos dias, / os futuros mortos”. O tom narrativo é
quebrado em versos pequenos, atravancando a leitura e, portanto,
dando força ao desconforto de quem não conseguia se ver inserido na
linha genealógica.
João Cabral de Melo Neto tornou-se “livre” para assumir um dos
princípios básicos da modernidade: a vontade de fazer a própria vida,
sem as injunções que recaíam sobre as pessoas quando o ambiente
familiar era asfixiante e, portanto, pouco favorável ao florescimento
da individualidade. Aliás, devemos recordar que esse atributo recebeu
contornos disformes no livro de estreia, quando Cabral ainda estava
totalmente sujeito à gravidade deformadora da casa da família.
Fazer a própria vida, mas também a própria literatura. Desde o
início, esta foi arquitetada e dinamizada como criação e participação
no grande diálogo público travado entre escritores, críticos e
intelectuais. O trabalho poético foi erigido à condição de estilo de vida
e veículo de expressão de suas opiniões acerca do ofício em si e da
sociedade brasileira, particularmente de Pernambuco. A vontade
inicial de seguir a carreira de crítico de arte foi internalizada em seus
versos. Quantos não são os poemas em que Cabral explicita seus
julgamentos acerca de obras literárias e mesmo de artistas plásticos,
como Franz Weissmann, Miró e tantos outros!
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Seus versos são dotados de atributos dialógicos marcantes. Cabral
não era apenas indiferente ou hostil em relação aos críticos (ainda que
não seja totalmente infenso a essas posturas). Ele pensava junto com
eles, numa verdadeira esfera pública versificada. A julgar pelas
análises construídas e apresentadas em nosso esboço de
interpretação, ao menos no período que vai de Pedra do sono a O cão
sem plumas, a presença mais constante parece ser mesmo a de Sergio
Buarque de Holanda. Há um respeito muito grande de Cabral pelo
crítico e deste pelo escritor, como se, ao menos durante esse
interregno, suas opiniões fossem acompanhadas com bastante
atenção, incitando-o em seu trabalho literário.
Quanto à relação com Gilberto Freyre, mais matizes devem ser
considerados. No momento em que João Cabral se refere ao primo
como “ditador intelectual” de sua província natal, há um desconforto
que não podemos negligenciar. Desconforto quanto a Freyre e quanto
ao presumido ambiente acanhado onde ele vivia. Acanhamento em
comparação com o Rio de Janeiro (então capital do país), com a
Europa. Para deixar tudo mais complicado, foi esse mesmo Freyre que
ofereceu um restante de papel usado na feitura da publicação de
estreia de João Cabral de Melo Neto: Pedra do Sono, livro cujas formas
e temas surreais continham os dilemas e desgostos pessoais e
familiares, em um momento de grande conturbação para a família. Seu
surrealismo expressava mal-estar.
Esse constrangimento talvez decorresse, primeiramente, da
intenção do jovem escritor de investir suas energias criativas e seu
tempo na forma poesia, em contraponto ao predomínio do ensaísmo
das ciências humanas e da prosa romanesca, ora de cor regionalista,
ora centrada no tema da decadência das antigas famílias senhoriais,
ancoradas nas atividades rurais. Cabral tateava em busca de um
espaço entre a proposta modernista, a reação “formalista” da geração
de 1940 (à qual ele mesmo chegou a ser associado) e as prosas aqui
referidas.
Posteriormente, já distante da “província”, ao entrar em contato
com a obra de Josué de Castro e suas análises a respeito das condições
que diminuíam terrivelmente a expectativa de vida da população
pobre de Recife, em uma época de flerte com o materialismo histórico,
João Cabral foi além do problema relativo à linguagem: prosa ou
poesia. O negro de O cão sem plumas não é só a cor da lama dos
mangues: é a negação da tese da mestiçagem. Ante os dados
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oferecidos por Castro, o desconforto recai sobre ideias contempladas
em Casa-grande & Senzala, como “democracia racial” ou “equilíbrio
de antagonismos”. A cor da pele e o que ela significava em termos
sociais (simbólicos) era o sinal de uma sub cidadania ou mesmo sua
quase total negação. Um estigma desumanizador. Onde o equilíbrio?
Onde a democracia?
No livro Museu de Tudo, escrito entre 1966 e 1974, consta um
pequeno poema de seis versos, intitulado “Casa-grande & Senzala,
quarenta anos”.
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que ele também se via às voltas com os cuidados necessários para
manter seu posto e seu correspondente meio de vida, em um novo
regime autoritário.
Cabral fez de seus versos uma “instância” de diálogo entre poesia
e ensaísmo; entre literatura, ciências humanas e artes plásticas; entre
passado e presente. Diálogo necessário à sua proposta literária. Chega
um momento em que o autor demonstra estar convencido de que as
migrações levam à ampliação das classes populares nos centros
urbanos, alguns em processo de metropolização. Contingente humano
totalmente alheio àquilo que deveria ser preservado, no julgamento
dos defensores da cidade em seus traços arquitetônicos tradicionais.
Para essas pessoas que buscavam trabalho, a integração à economia
urbana deu-se a partir de atividades disfuncionais ao desenvolvimento
das relações tipicamente capitalistas, em situações frequentemente
precárias, aquém das esperanças nutridas pelos viajantes.
Os movimentos migratórios remodelavam a cidade, como espaço
e forma de sociabilidade, de modo que as condições de vida se
tornavam propícias ao florescimento de discursos nostálgicos,
conservadores, carentes da antiga cidade que, na opinião de muitos,
foi tomada e, portanto, deveria ser devolvida, como nos bons tempos.
Entretanto, a remodelagem também apontava para a possibilidade da
cidade futura, que tinha de lidar com o seguinte problema: como esses
novos moradores, parciais ou permanentes, poderiam ser integrados,
a fim de que pudessem usufruir das riquezas e benesses das quais o
campo carecia? Assim, estavam lançadas as bases de uma nova força
social, que poderia organizar-se e proferir o próprio discurso, para que
suas vozes pudessem ser ouvidas na esfera pública. Pouco a pouco, o
isolamento entre interior e litoral, campo e cidade, ia sendo superado,
em meio à imperiosa integração territorial, um dos requisitos
estruturais de uma economia capitalista em expansão.
O sertão “ia” para a cidade e “voltava”, tamanha a andança que
se instaurou, ainda mais se consideramos que os meios de transportes
tornariam esses deslocamentos cada vez mais fáceis. À pedra, símbolo
do isolamento, foi articulada a metáfora das águas (do rio). Dessa
combinação, podemos depreender os sentidos atribuídos por João
Cabral de Melo Neto ao ofício do verso, sempre aberto às mudanças
históricas, presidido por uma lógica de rigor de construção e abertura
às transformações da vida. Alimentando-se das múltiplas vozes
(estéticas e sociais, nacionais e estrangeiras) que ressoavam no Brasil
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e em outras nações (situação à qual se habituou, principalmente após
seu ingresso no Itamaraty), esse poeta criou soluções literárias muito
originais, cuja forma era permeável às transformações sociais,
econômicas e políticas que alteravam a sociedade brasileira.
João Cabral empenhou-se na construção de uma poesia
incessantemente metamorfoseada em várias vozes, construindo os
sons como imagens. Em seus versos, a oralidade e a visualidade
tiveram diluídas suas fronteiras. Não fazia sentido falar em artes,
territórios e culturas como compartimentos estanques, quando o
mundo começava a ser cada vez mais balizado pelo fluxo quase
ininterrupto de mercadorias, ideias e pessoas. Para condensar tudo
isso em versos, nada melhor que arquitetar um “método,” com
plasticidade suficiente para apreender o movimento da arte, da
história, da vida. Com lentidão, a água é capaz de envolver e friccionar
a pedra. Eis um dos sentidos que animou a existência desse
engenheiro das letras.
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Da seda à palavra, da palavra
à seda: a palavra seda de João Cabral
de Melo Neto
por Rogério Caetano de Almeida e Lívia Lopes Marangoni
A palavra seda
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Mas em ti, em algum ponto,
Talvez fora de ti mesma,
Talvez mesmo no ambiente
Que retesas quando chegas,
Há algo de muscular,
De animal, carnal, pantera,
De felino, da substância
Felina, ou sua maneira,
De animal, de animalmente,
De cru, de cruel, de crueza,
Que sob a palavra gasta
Persiste na coisa seda.
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metalinguística, tão característica da poesia cabralina. Segundo Samira
Challub, em seu livro A metalinguagem, um poema que se pergunta
sobre si mesmo e, por meio dessa reflexão, desnuda a própria forma
com a qual se pergunta, é um poema marcado pelo signo da
modernidade.
A autora prossegue argumentando que isso caracterizaria um
redimensionamento da arte e, a partir dessa tentativa de
conhecimento do seu ser – fórmula peculiar de episteme ― aí se
incluiria o desejo de desvendar como se deu a história desse poema
moderno. Tal noção moderna de arte, segundo a autora, estaria
marcada pela concepção metalinguística (consciência e construção), o
que contraporia sentimento e expressão. O que ocorre, por meio da
metalinguagem, é o que Samira nomeia como dessacralização do mito
da criação, o que desnuda o processo de produção da obra. De alguma
maneira, aproxima-se do que Victor Chklovsky indica como
singularização: “aplicar o método de singularização na descrição de
dogmas e ritos, métodos segundo o qual ele substituía as palavras da
linguagem corrente pelas palavras habituais de uso religioso; resultou
daí qualquer coisa de estranho, de monstruoso, que foi sinceramente
considerado por muita gente como uma blasfêmia e os feriu
penosamente” (CHKLOVSKI, 1970, p.50). Podemos considerar, então,
que através da consciência metalinguística moderna, produz-se essa
singularização da linguagem.
Em consonância bastante evidente com tal concepção moderna
de criação artística, Cabral insiste no tom laboral e, acima de tudo,
intencional de sua escrita. Entrevistado em 1986, por Geneton Moraes
Neto, ele afirma:
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O título do poema, “A palavra seda”, traz uma noção
metalinguística e singularizada ao fazer menção a uma palavra que é
seda. Posicionada no título, tal menção pode nos fazer crer o conteúdo
do poema deve, principalmente, se tratar de um desenvolvimento da
representatividade do termo seda. No entanto, somos surpreendidos
ao perceber que a primeira estrofe seguirá outros rumos. Ainda no que
se refere ao título, outra maneira de leitura da frase poderia ser: “A
palavra se dá”. Por esses caminhos, o caráter imperativo da sentença
talvez nos possa revelar a maneira com a qual a palavra, de maneira
quase independente, encontra lugar de ser na atividade poética de
Cabral. É como se o conteúdo do poema fosse externo ao texto: há
uma espécie de distanciamento do que se quer dizer na sua relação
com a palavra. A palavra, coisa em si, se distancia do conteúdo, seu
devir, constructo de imagem.
Semelhante concepção pode ser formulada a partir da leitura de
outro poema de Cabral, intitulado “O poema”, no qual o autor nos
apresenta versos como: “Mas é no papel que o verso rebenta / Como
um ser vivo / Pode brotar / De um chão mineral?”. Em seu artigo “A
metapoesia em João Cabral de Melo Neto e em Joaquim Cardozo...”,
as autoras Nadja da Silva e Zeneide Silvino apontam, no poema citado,
tal ímpeto externo às vontades ou decisões do eu-lírico do poema: “o
papel desperta no escritor um constante desejo de criar, fazer surgir
‘um ser vivo’. Afinal é isso que, segundo Ele, deve ser o fruto do labor
de um poeta: um ser de vida / um organismo / com sangue e sopro / e
este ser nada mais é que um verso.” (SILVA; SILVINO, 2018, p.214).
Além desse elemento que retoma a metalinguagem e perpassa o
poema, aprofundando-se no próprio texto, temos o que Antonio
Carlos Secchin chama de poesia do menos: “Com Quaderna (1959),
João Cabral de Melo Neto retoma uma abrangência temática já
expressa em Paisagens com figuras: o Nordeste, a Espanha, e o diálogo
entre ambos, marcado pelo vetor comum de uma condição humana
definida pelos signos da carência e do menos.” (SECCHIN, 1999, p.133).
Na primeira estrofe do poema “Palavra seda” que, conforme
Secchin, é um dos oito poemas da obra que possui uma presença do
feminino, deparamo-nos com a primeira imagem apresentada. O que
nos é introduzido é um ambiente, de certa forma, etéreo, no qual são
lançadas afirmações categóricas acerca das mudanças do indivíduo
que se realizam através do que o cerca.
7faces • 66
Apesar de haver referência ao caráter humano do que está sendo
descrito em estrofes posteriores, como em “certo que tua pessoa”, o
verniz metalinguístico que cobre o poema nos permite aceitar a
possibilidade de lidarmos com um ser feito apenas de palavras, um ser
metalinguístico, um ser que é o próprio poema. Voltando-nos às
escolhas lexicais, o uso da palavra “atmosfera” nos remete à ideia de
ascensão e, talvez, instabilidade. De outra maneira, o caráter empírico
da terceira estrofe, carrega, em outra perspectiva, uma possibilidade
de acesso da palavra fazer-se realidade (“É certo que tua pessoa / Não
faz dormir, mas desperta; / Nem é sedante, palavra / Derivada da de
seda.”) O eu lírico posiciona, dessa forma, o ser do qual fala num
patamar oscilante ― entre a instabilidade de uma atmosfera que
transforma e de uma pessoa que não deixa dormir, nem é sedante.
Voltaremos à terceira estrofe posteriormente.
Em relação à sonoridade, é possível destacar a utilização de sons
específicos que contribuem para produção da imagem proposta. Ao
longo da primeira estrofe, temos a aliteração da consoante t, como em
atmosfera, atinge, tais, transforma, muitas. Tal repetição de uma
consoante oclusiva dá corpo e força à descrição enfática e categórica
que se pretende quando da introdução desse ser. Por outro lado, ao
final do quarteto, é possível perceber certa insistência na letra c. Os
sons fricativos, presentes em concernem, cercam são produzidos por
meio do estreitamento da passagem do ar na boca. Dessa forma, há,
por meio do auxílio do recurso sonoro, a criação de uma imagem
etérea, mas envolta por tensão, aterramento e certo sufocamento,
haja vista o literal bloqueio e estreitamento do caminho do ar.
A sobreposição dessas ideias, de certo modo materializadas pela
sonoridade, apoia-se também em um recurso sintático. Os dois
primeiros versos: “A atmosfera que te envolve / atinge tais
atmosferas” não são, de certa forma, confortáveis ao ouvido num
primeiro momento, uma vez que fazem uso de repetição de termos e
sons que nos obrigam, portanto, a aceitar um jogo truncado de
sobreposição. É como se houvesse um empilhamento de níveis, assim
como ocorre, de fato, com as camadas da atmosfera (troposfera,
estratosfera, mesosfera...). Somos forçados a nos perguntar quais são
as “tais atmosferas” atingidas pela própria atmosfera que envolve esse
ser e que o fazem capaz da transformação das coisas. Retomando a
ideia de que o ser é o próprio poema, há, novamente, a presença do
7faces • 67
cunho antes ativo do que passivo do conteúdo dessa escrita que tem,
sobre um outro, poder transformador.
Na segunda estrofe, o eu-lírico afirma que a característica
transformadora, própria da atmosfera de quem ele descreve, além de
coisas, é capaz de também alterar “palavras impossíveis de poema”.
Temos uma primeira referência clara ao ato da escrita, uma vez que
há menção e, por assim dizer, restrição daquilo que seria palavra de
poema. Como exemplo do que seriam palavras impossíveis de poema,
há referência ao ouro e à seda. De acordo com o Dicionário de
símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant: “O ouro, considerado
tradicionalmente como o metal mais precioso, é o metal perfeito.”
(2001, p.669). Além disso, este símbolo pode significar uma
transmutação do ser, ou ainda conhecimento e imortalidade. É
interessante analisar o juízo que o eu-lírico faz do que pode ou não
pertencer a um poema. Ao assumirmos tal interpretação do símbolo
proposto, aquilo que seria perfeito, acabado e não oscilante não pode
compor uma atividade poética. De outra maneira, poderíamos ampliar
este olhar para o conhecimento e / ou para a imortalidade, no entanto
a transmutação é algo inevitável em qualquer circunstância da
linguagem, mesmo na metalinguagem: seria, então, um retorno da
linguagem a si mesma para modificar-se? O ouro-palavra pode
transmutar-se em seda? Sua ductibilidade está contida na seda.
Vale ressaltar a maneira com a qual, no último verso da segunda
estrofe, o eu-lírico compara ― ou talvez reduz ― seu poema à seda.
Este tecido, delicado e resistente, como qualquer outro, carrega uma
simbologia relacionada à criação: “Tecer não significa somente
predestinar (com relação ao plano antropológico), mas também criar,
fazer sair de sua própria substância, exatamente como faz a aranha,
que tira de si própria a sua teia” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2001,
p.872). Faz-se presente, ao longo desta segunda estrofe, um
emaranhado de significações metalinguísticas, no qual a constante
autorreferência por vezes confunde os papéis de quem fala com aquilo
sobre o que se fala. Antonio Carlos Secchin afirma que, analogamente
ao que ocorre no poema “Estudos para uma bailadora andaluza”
temos em “A palavra seda” o seguinte fenômeno: “a linguagem que
cria o objeto poético é também a linguagem que examina a própria
possibilidade de criação.” (SECCHIN, 1999, p.143).
É possível absorver, a partir das comparações implícitas, a ideia de
que tanto a perfeição quanto o próprio poema são incabíveis naquilo
7faces • 68
que é definido como “possível de poema”. Dessa forma, se nem a
perfeição, nem o exercício poético ― extremos de uma linha
imaginária ― têm lugar de ser, o que resta é a imagem do nada, ou,
em outra medida, a poética, nos indica uma transmutação do ser, da
palavra, e, através de uma relação metonímica, com tudo aquilo que
se manifesta no poema. Ou seja, retomando a conexão com a primeira
estrofe, a atmosfera que envolve esse ser é capaz de transformar,
alterar, ressignificar tanto o concreto (as coisas, a palavra), como o
abstrato (as sensações, a seda) ― há aqui uma experiência de
singularização. Cada vez mais o eu-lírico confere ao seu objeto de
descrição maior força e poder.
Esse engenhoso ser metalinguístico, que tem como poder
transformador sua própria substância ― a palavra ― nos faz
questionar em qual lugar ela reside. Se é capaz de transfigurar o
concreto, é palpável? Se, por outro lado, revira essa seda-abstração, é
imaterial? A natureza arbitrária do signo, definição de Saussure, é o
que poderia permitir a alternância da paramentação da palavra. O fato
de podermos decidir, aleatoriamente, a relação entre significado e
significante é um aspecto que nos traz a sensação do abstrato, já que
regra tátil não há. Por outro lado, o enraizamento dos signos na
linguagem, que nos permite dar nome, cor, forma às abstrações do
pensamento parece fazer da palavra algo corpóreo, mas sua
corporalidade ocorre de outra forma: em sons, em ritmos, em criação
de imagem, em uma emulação do tátil. Dessa forma, talvez um
entrelugar pareça ser sua morada mais adequada.
Na terceira estrofe, é feita uma explanação de outra característica
desse ser “seda”, tecido vinculado à sensibilidade e à delicadeza
oriental; trata-se de um ser de linguagem que “desperta”. Este ser que
“não faz dormir” e nada pode ter de próximo com o sedante, “palavra
derivada da de seda”. É possível perceber a intenção do eu lírico, aqui,
de afastar o máximo possível essa pessoa da “seda”, ou da palavra
“seda” em questão. Tal oposição, no entanto, não é completa: essa
palavra delicada, paradoxalmente, seda. E, de outra forma,
explorando o possível trocadilho, ela impõe um movimento de “ceder”
ao que não se vê, ao que não se corporifica no poema. Vale ressaltar
que, até o momento, no poema, não foi feita nenhuma descrição clara
da seda que levasse embutido algum juízo de valor. Ou seja, o eu-lírico
aproxima e afasta sutilmente este ser da seda, sem que nos conte o
que, de fato, pensa sobre ele. Por outro lado, a palavra seda está
7faces • 69
presente no final da estrofe anterior e nesta (segunda e terceira
respectivamente), o que faz haver uma ressonância de sua presença.
Na quarta e na quinta estrofes, é como se todo o ambiente etéreo
construído por palavras-ouro e palavras-seda fosse bruscamente
interrompido, ou dissolvido. Demonstra-se nessas estrofes que essa
superfície de corpo não possui nada “como seda”. É como se essa
palavra, outra em relação às utilizadas nas estrofes anteriores,
perdesse sua capacidade de abstração, perdesse sua característica de
ouro e seda, ainda que permaneçam “como seda”. Isso se dá quando,
finalmente, o eu-lírico nos apresenta, com três adjetivos, (luxuosa,
falsa e acadêmica) sua visão sobre a seda. É como se, ao renomear e
recaracterizar a seda, trouxesse toda a sua descrição para a
concretude da terra, o que substitui a imagem volátil proposta até
aqui.
Não é possível admitir tal interpretação de forma explícita, mas a
maneira com a qual esses adjetivos são postos nos dá uma sensação
de um tom crítico e reflexivo. É possível inferir que esse tom esteja
presente, justamente por serem adjetivos que têm um valor
semântico oposto ao que o poeta pretenderia em sua poesia. Em
entrevista publicada pelo Tribuna do norte, Cabral afirma: “Eu não me
considero digno de fazer um poema falando de mim diretamente.
Toda experiência serve de material para um poema, mas essa
experiência vai aparecer no poema sob outra forma. Ninguém tem o
direito de se confessar em público.” (2011, não paginado).
A sua visão quanto à postura que o poeta deve assumir nos traz a
primeira oposição: o não se crer digno de fazer parte do conteúdo do
poema é o que constitui sua humildade ― e não luxo. Da mesma
forma, a sua rejeição à ideia de sistematizar, academicamente, uma
poesia composta de sucessivas confissões, é a sua verdade ― e não
falsidade.
Nesse ponto da análise, é interessante retomar o momento no
qual o eu-lírico compara seu poema à seda. Agora, sem mais mistérios
acerca do que ele entende por seda: quando há referência a ela, é
possível assumir uma relação metonímica entre a seda e o poema,
uma vez que, tomando a parte pelo todo, a crítica embutida na
descrição da seda é, também, indiretamente, direcionada ao próprio
poema. Apesar de, enquanto crítica, ser, obviamente, externa ao que
está escrito, ela faz emergir um tom metalinguístico, uma vez que faz
parte da tessitura daquilo a que se opõe ― o poema em si.
7faces • 70
Na sexta e na sétima estrofes, é ilustrado, de maneira geral, as
imagens do que, de maneira ambivalente, está e / ou não está
presente na carnadura da seda. Essa compleição dura, característica
da poesia cabralina, é tratada como possibilidade de existência nessa
palavra-seda-corpo que é o poema. Tal sobreposição de seda em
palavra e em corpo localiza todos esses entes numa espécie de corpo
zoomorfizado. Além do efeito da justaposição, há, novamente, o jogo
metalinguístico ― daquilo que está fora ou faz parte; o que fala do
outro ou fala de si ― nesta ambientação.
O que é proposto é uma caracterização animalesca, pouco polida
e bruta do ser. Nos versos 3, 4 e 5 da sétima estrofe, isso é
desenvolvido por meio de uma gradação. As estrofes 6, 7 e 8
constituem, sintaticamente, apenas um período. Aliada à gradação,
esse tipo de construção sintática, impede o leitor de respirar e provoca
uma tensão na leitura. Esse efeito, pode ser pretendido, justamente,
porque há, nesse momento, uma grande revelação a ser feita, uma
espécie de clímax do poema.
Neste ponto, é possível inferir que tal revelação seja própria do
autor em relação ao que pensa sobre sua poética, ou sua obra. Então,
esse ser, metalinguística e imageticamente visto aqui como palavra, é
seda, esse tecido que cria mundo, poemas, palavras. É como se ele
quisesse deixar claro, mas de maneira sutil, que tudo que se opõe à
seda é seda, não há como fugir. As imagens que criam tensões poéticas
entre palavra, palavra-seda e seda são, também, uma tensão entre
reflexões metalinguísticas e singularização, para retomarmos
Chklovski.
A última estrofe traz a comprovação de que o par de
palavras seda / sedante se relaciona com outros pares ou trios com a
mesma origem etimológica: animal / animalmente; cru / cruel /crueza.
As relações que se estabelecem são de origem etimológica e pelo fato
de serem palavras, coisa em si. E os dois últimos versos do poema
ensejam o encerramento desta interpretação: “Que sob a palavra
gasta / Persiste na coisa seda.” A palavra, também ela,
metalinguisticamente, é coisa. Essa coisa gasta se torna “coisa seda”.
O que seria isto? O objeto, tecido de seda? Ou é a palavra que se dá e
ao dar-se torna-se seda forte e delicada? Ainda: há uma possibilidade
de essa palavra desgastada não representar a tessitura do universo-
em-seda ― algo similar ao que João Alexandre Barbosa diz sobre outro
texto cabralino: “propõe a tensão entre a existência contemplativa do
7faces • 71
poeta e sua fixação ainda inatingível pela palavra, de onde resulta um
certo teor melancólico de que está impregnado” (BARBOSA, 2002,
p.251).
As tensões entre a palavra e a seda, o empírico e o metafísico, a
imagem e a ideia podem ser compreendidas, genericamente falando,
a partir daquilo que João Alexandre Barbosa coloca como “fratura
moderna entre expressão e composição.” (BARBOSA, 2002, p.253). Ou
ainda algo entre “a realidade e a auto referencialidade” (BARBOSA,
2002, p.263). Enfim, “Palavra seda” é construído de maneira
condizente com o que João Alexandre Barbosa, de novo, sintetiza os
poemas de Quaderna: “este lirismo entra sempre pela via que é a
característica maior do poeta, isto é, pela lucidez com que faz da
linguagem a própria imitação do objeto a ser nomeado” (BARBOSA,
2002, p.268).
Nessa emulação da realidade que se faz palavra, a secura.
Referências
7faces • 72
Disponível em: <http://www.geneton.com.br/archives/000210.html>
Último acesso em: 12/09/2020.
SILVA, Nadja Maira Baltazar da; SILVINO, Zeneide Leite. “A
metapoesia em João Cabral de Melo Neto e em Joaquim Cardozo”.
In: Revista Diálogos, n.19, p.208-232, mar.-abr., 2018.
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POEMAS (1)
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Antonio Carlos Sobrinho
Salvador – Bahia
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diário I
Belchior
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O que retorna
Eu sei
não há sutura possível:
a tua presença me agulha sob as unhas dos dedos.
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um lugar de saúde
Como desprender
da parede
um fantasma para que levemente
se esfarele e não cesse de
esfarelar: poema.
Moisés Alves
como um cão,
procuro lamber onde sangra
e faz pus.
mas,
à parte a língua tocar a pele,
não há cura
ou sequer alívio.
pouco importa.
como um cão,
roço com a língua onde sangra
e faz pus.
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Maíra Matos
Rio de Janeiro – RJ
Maíra Matos (1984) é poeta, psicóloga, artista, realizadora e roteirista formada pela Escola
de Cinema Darcy Ribeiro. Carioca, nascida e criada, atualmente mora no Méier. Realizou
diversos curtas metragens premiados, entre eles Casa do vô (2016) e A rua são as pessoas
(2016). Trabalhou durante alguns anos em projetos sociais e na saúde pública, no Rio. Sua
dissertação de mestrado, versa sobre feminilidade e masculinidade no Brasil
contemporâneo, e foi publicada, em 2014, no livro À deriva: juventude e masculinidades.
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telescópio
você frustrado
todas as noites,
olha ali,
perto de vênus.
resolvi fingir.
ah, agora, to vendo.
é incrível.
e imaginava
o planeta vermelho,
com uns pontinhos laranjas
e um mar verde-claro.
que lindo, falamos juntos.
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a liberdade é azul
parte I: a barata
escovava os dentes
enquanto lia
o útero
pra você
em cima da cama
no tempo que
éramos nuvens
no almoço
daquele dia
você não disse que
eu não escutei
as baratas
que cresciam
por dentro
quando
olhava pra você
parte 2: polvo
parte 3: arara
minha voz
quase extinta
a língua é
que me salva
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negra
úmida
quente.
abro as asas.
orgasmos.
múltiplos.
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o amor é uma pedra com pelos
doí
quando os pelos
dela nascem
em silencio
no meu útero
insetos morderam
o feto
dentro de mim
no sertão: sua virilha devora
a pedra do meu mar
Lili engravidou?
de J?
o amor é mãe?
é porta?
é traça?
os cabelos dela
nos meus cabelos
a pedra era o mundo
e era isso.
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Marina Magalhães
Rio de Janeiro – RJ
Marina é pernambucana, mora no Rio de Janeiro e escreve poemas. Nas outras horas vagas,
é estudante de direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e atriz. Administra uma
conta no Instagram com seus versos e colagens autorais, o @projetoplumas.
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Best Brazilian Coffee Routes for you to try
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Breno Almeida de Castro
Uberlândia – Minas Gerais
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Furdunço
a sexta-feira vem para provar que o anzol está posto e deliramos com a vontade de abocanhá-lo.
para um reles não-convertido, o mundo não é nada quando não satisfaz.
prisão àquele que já foi longe, longe até demais.
não limitado como um cordeiro ético, moral e justo.
admiro estes que abandonam a vida,
desdizem o próprio mundo que habitam, dão novo nome.
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Penitência
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Gusthavo Gonçalves Roxo
Rio de Janeiro – RJ
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Esquina
O gosto de sangue
preenche minha boca
os dentes que um dia foram novos
que causaram tanta dor ao nascer
se despedem devagar da minha boca
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Julieta Simone
Rio de Janeiro – RJ
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Almoço da solidão
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Um dia
Esse é o quarto
Agora peguei o jeito
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Subliminar
Palavra encanto
Tudo nela cabe, subentendido
Esconder o.
Subverter a.
Bom senso do ressentido.
Lamento do limiar.
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Agarro
Nem tanto
Afiada
Nem tanto
Pronta
Sigo em tentativas
Persigo as atrativas
Nem tanto
Fartas
Nem tanto
Certas
Me apego às erradas
As chances me escapam
Escorrego.
O que atiça,
Agarro
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Lá
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Ao cacique Emyra Wajâpi,
assassinado em 24 de julho de 2019
por garimpeiros no Amapá
Noite na floresta
Nós dois na rede
Nos embalando
Ouço tua voz
O mais belo canto
De todos os cantos do mundo
Teus olhos me fitam
São sábios os teus olhos
Profundos
Tua pele escura
De carne dura e áspera
Em urucum
Você esfrega o dedo no meu rosto
Me dá conselhos
Os melhores conselhos do mundo
De lá pra cá virei sua filha
Te dei meu filho pra você encantar
Te preparei um peixe
O meu é frito
Você sorri
Teus assassinos não conhecem o teu sorriso
Teu último suspiro respira em mim
De lá pra cá me vingarei
Dos nossos piores inimigos
Meu canto é o teu duplo
Minha voz, o teu grito
Meu corpo, tua rede
A cada dia um inimigo
Um por um
Cairá
7faces • 108
Lucas Grosso
São Paulo – SP
Lucas Grosso é autor do livro de poemas Nada (editora Patuá, 2019); já publicou nas revistas
Úrsula, Subversa, 7faces, Zunái e Mallarmargens (contribuindo com as duas primeiras com
maior periodicidade). Mantém o blog Lucas Grosso, destruidor de cenários.
7faces • 109
7faces • 110
Poema parisiense número 1
7faces • 111
Meu editor
crítico iníquo
esteta inócuo
meu astigmatismo
é uma meditação
se me faltar a sede
se me faltar a política
se me faltar o fim
se me faltar o amor
meu astigmatismo vai garantir
que exista a parede
que exista a fita
que exista o ror
que exista o clarim
que o ponto-cego do escólio
vai unir
7faces • 112
Linguiça cultural
na praça do correio
Homero abriu sua banca
vende fones de ouvido
balas de eucalipto
discos de funk jônicos
as armas e barões
e DVDs piratas de patos esganiçados
7faces • 113
7faces • 114
Vinicius Comoti
São Paulo – SP
Vinicius Comoti é autor dos livros Lanzurapa (2016), Leite com manga (2018), O Futum das
Birelas (2018) e Rabicó de Puto (2019).
7faces • 115
7faces • 116
baco se esfola
sobre o arame farpado
no fogaréu dos gatos
que trepam na epístola da escuridão
rabo preso
conchavo da alucinação
7faces • 117
o postal com a imagem de um poço
um chaveiro esquecido
ao lado de um isqueiro branco encardido
a pulseirinha de couro e brincos de pena
o doce do perfume vagando no bolso da jaqueta
meias molhadas de cerveja
o detalhe da mordida na nuca e o trago das pintas
que formam triângulos
selando uma escuridão entorpecida
uma descida pela vereda truncada pelas folhagens
a periferia de um recanto disfarçado de cosmopolita
os cadarços que parecem uma lasca de lama
7faces • 118
uma cigarra esturricada
dentro da carcaça da televisão
os espelhos se confrontam
no fluxo de camelôs fugindo
da perseguição dos vampiros
que beliscam os desenhos rupestres
os desencontros expressionistas
aquela que um dia amou apenas um condenado
mutilado pelas nuvens e os corais sem métrica
sabendo da garoa das cortinas mantidas fechadas
por esconderem o palco ensebado da mentira
com a sua saliva e os pacotes de bolacha moída
pala
dos antepassados
7faces • 119
7faces • 120
Paula Peregrina
Rio de Janeiro – RJ
7faces • 121
7faces • 122
Geração 80
7faces • 123
Notívagos
7faces • 124
Conchas e contas de Maria
7faces • 125
Foto: Elpidio Lins Suassuna
7faces • 126
7faces • 127
João Cabral entre vulcões
por Iván Carvajal
7faces • 128
equilíbrio formal, a concretização das imagens, a ausência de
elementos ornamentais. A sobriedade de sua poesia tem relação com
uma rara sabedoria, com uma capacidade de unir em umas quantas
linhas a interiorização da paisagem, a meditação sobre a circunstância
humana vinculada à geografia e à história, e uma insólita criação de
sentido surgida de uma economia verbal alheia a qualquer eloquência.
Cabral repudiava tanto a oratória como o barroquismo.
“Duas palavras podem definir o conjunto da poesia de João Cabral
de Melo Neto: coerência e densidade”, assinala João Almino no início
do seu luminoso ensaio “O domador de sonhos e outras imagens da
pedra” que dedica ao poeta2. Estes dois atributos, coerência e
densidade, são o resultado da busca de uma poética peculiar que
Almino denomina “construtivista”. Esta característica da poética de
Cabral, sem dúvida, está vinculada à sua atenta percepção de
determinadas tendências vanguardistas das artes plásticas e da
arquitetura do século XX. Cabral costumava afirmar que Le Corbusier
havia exercido maior influência nele do que qualquer poeta, crítico ou
filósofo; com tal asseveração certamente queria destacar a
importância que a “arquitetura” do poema tinha para ele. Tal poética
outorga privilégio à construção do poema antes que à expressão da
subjetividade do poeta. João Cabral, em uma entrevista à revista
Cadernos de Literatura Brasileira (1996), manifestou que nunca sentiu
uma “necessidade interior” de expressar-se, razão pela qual a escritura
dos poemas lhe exigia muito trabalho3. A sua poesia não tem nada de
confessional, de exposição de emoções pessoais. Isto não quer dizer,
no entanto, que nos poemas de Cabral não exista uma potente
imaginação combinada com uma inteligência inquisitiva sobre a
condição humana. Existe neles um singular olhar da terra, da
paisagem, do deserto, dos rios ou das montanhas, e com eles, dos seus
habitantes que, mais além da aparente secura da expressão poética,
provocam um constante desafio ao leitor, obrigando-o a deter-se em
cada verso, na inesperada repetição de vocábulos ou a invenção de
termos, ou nas notas de humor ou ironia.
Em qualquer paisagem que se construa nos poemas de João
Cabral haverá uma reminiscência ou uma referência, implícita ou
explícita, às do Nordeste brasileiro, à caatinga ou ao sertão, à sua
vegetação, sua aridez ou seus rios. A voz poética de João Cabral parece
surgir dessas terras. Um poema, “Fazer o seco, fazer o úmido” de A
7faces • 129
educação pela pedra, poderia nos servir para ilustrar este matiz da sua
poética:
7faces • 130
A concisão da imagem “índio formiga” tem que ver com as
condições sociais que se impuseram aos índios andinos como
consequência da conquista ibérica, condições que continuaram com a
república e que seguiam existindo, apesar da modernização do país,
quando Cabral esteve no Equador, e que em parte continuam ainda
hoje: pobreza, humilhação, marginalização, submissão à dureza de
trabalhos mal remunerados. A formiga ― o inseto ― torna-se símbolo
do trabalhador submetido a um tipo de servidão; é ao mesmo tempo
a imagem da redução ao mínimo e paradigma do esforço. Custa viver
e mais ainda trabalhar nas alturas, onde falta o ar, onde a atmosfera é
rarefeita. Como pesa o colosso, a montanha, sobre o índio que habita
nas alturas? O poeta, que sente a angústia da falta de oxigênio, o
imagina correndo sempre em busca do ar para levar no bolso.
A asfixia por falta de ar nas alturas se assemelha ao afogamento
no mar, a boca angustiada de quem sofre esta falta de ar é a mesma.
“Era do Recife, este afogado”, diz o poema. O verso fala de quem? Por
acaso, do poeta ao que lhe falta o ar nas alturas do Chimborazo ou de
outro afogado que lhe vem à lembrança? O laço entre os “afogados
submarinos” e os “sobreandinos” estabelece a conexão entre os Andes
e o Nordeste brasileiro, entre a massa imponente da montanha e a
borda do oceano, entre a neve e os depósitos de açúcar.
É costume considerar que existe uma faceta política na poesia de
João Cabral relacionada justamente com as imagens geográficas, com
as paisagens, com a pedra ― não é em vão que seu livro mais
importante, talvez, se chame A educação pela pedra. No caso de Viver
nos Andes esta política é evidente, não somente pela menção ao “índio
formiga”, mas pela caracterização dos vulcões:
Este poema, aliás, começa com dois versos: “Dá-se que um homem
pouco vulcânico / habita o ‘Corredor dos Vulcões’”. Este “homem
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pouco vulcânico” é, logicamente, o poeta João Cabral, mas poderia ser
também o silencioso índio que habita nos páramos de altura. Mas, não
é um “orador”, não é um demagogo, não grita. O Chimborazo, como
sabemos, é um vulcão extinto. O Cotopaxi, ao contrário, nos ameaça
permanentemente com uma possível erupção que seria catastrófica,
como já foram algumas no passado, registradas desde o século XVI ao
XIX. Mais recentemente, em 2015, o vulcão voltou a entrar em
atividade. Além do Cotopaxi, o Tungurahua e o Reventador
erupcionaram nos últimos anos. Mais ao sul, se contemplam as
fumarolas do Sangay. Isto é, ainda existem vulcões que vociferam, que
não são somente mansas fotografias. Mas o maior de todos, o
imponente, o Chimborazo, parece surdo e mudo.
Justamente, o Chimborazo é o que provém de outra linha desta
faceta “política” de Viver nos Andes, pois os poemas de João Cabral
dialogam com Meu delírio sobre o Chimborazo de Simon Bolívar
(1822), que pode ser considerado um poema em prosa. Em dois
poemas o Libertador é citado. Sobre o primeiro deles, “Um sono sem
frestas”, se poderia interpretar que João Cabral alude ao poema de
Bolívar pela associação que surge entre o sono provocado pela
anestesia, a sonolência que ocasiona a falta de ar nas alturas e o
delírio. Mas junto a esta associação tem outra que estabelece certa
oposição a ela, pois o poema começa com a imagem da terra morta,
dos sonhos dos mortos na clausura das suas celas. O poema de João
Cabral conclui que esse sonho compacto perdeu as chaves do discurso
de Bolívar. Com isso, a referência a Bolívar se desloca de Meu delírio
sobre o Chimborazo a outros discursos ou ensaios seus, talvez o
Discurso de Angostura (1819) ou a Carta da Jamaica (1815), nos quais
o Libertador expõe sua ideia de uma unidade ou federação hispano-
americana que seria o fundamento de uma sólida democracia. Cabe
anotar, no entanto, que enquanto para João Cabral o Chimborazo
impõe silêncio, no Delírio de Bolívar ― que vem também desde as
terras baixas do (rio) Orinoco e ascende ao nevado seguindo os rastros
de La Condamine e Humboldt ― é a voz do Infinito e do Tempo que se
dirige ao herói para assinalar seu destino: “diga a verdade aos
homens”. No último poema de Viver nos Andes, o Chimborazo se
transforma em palanque. Impõe silêncio, nem sequer o vento pode
cantar em seus órgãos, mas quem sabe esse profundo silêncio
preserve a montanha como altíssima tribuna reservada pelo tempo
“para um Bolívar que condene / a quem fecha a América ao fermento”.
7faces • 132
Mas a atmosfera rarefeita, a geografia surda e muda dos Andes
equatoriais se torna caixa de ressonância da sóbria poesia de João
Cabral de Melo Neto.
Notas
1 CRESPO, Ángel; GÓMEZ BEDATE, Pilar. “Realidad y forma en la poesía
* Este texto foi publicado em João Cabral de Melo Neto. Vivir en los
Andes, Edição comemorativa do centenário de seu nascimento
publicada pela Embaixada do Brasil em Quito (2020, p.25-31). A
tradução para o português é de Alfonso Montúfar e Sonia Paredes.
Este texto foi cedido pelo autor para esta edição.
7faces • 133
O embate entre a vida e a morte na
poética de João Cabral
por Rosanne Bezerra de Araújo e Wallyson Rodrigues de Souza
7faces • 134
rigor formal como o regionalismo dos seus versos reverberam seu
conteúdo, a realidade brasileira dos menos afortunados.
Grande parte dos estudiosos de sua obra tendem a apresentar
uma resistência em enquadrá-lo na Geração de 45. A associação
parece estar mais relacionada ao caráter cronológico ― isto é, ao fato
de Cabral ter publicado, por exemplo, sua primeira obra, Pedra do
Sono, em 1942 ― do que propriamente aos fundamentos ideológicos
e estéticos do seu fazer poético. De um modo geral, podemos inferir
que tentar rotular sua obra, seja como fixada na Geração de 45, seja
como concreta ou social, é uma tarefa inadequada que tende a reduzir
o estilo poético desenvolvido pelo autor. Tentar encaixá-lo em
categorias limitaria seu alcance literário.
Sua obra é usualmente dividida em Duas águas. A primeira está
relacionada à concepção poética, isto é, ao racionalismo vocabular e à
regularização engenhosa da forma ― daí o reconhecimento do autor
como “poeta engenheiro”. Já a segunda, compreende os problemas
sociais da realidade brasileira, sobretudo a nordestina, daqueles que
vivem à margem da sociedade, além de abordar temas mais subjetivos
como a memória. Apesar da divisão, é importante destacar que as
duas partes não são heterogêneas uma à outra, mas se integram,
formando o estilo poético cabralino2.
Destacamos o último trabalho do autor, dividido em dois volumes:
Sevilha andando e Andando Sevilha (1989), os quais foram escritos
durante o período em que João Cabral viveu na Espanha como
diplomata. Essas obras remontam, de forma mais acentuada, a
influência espanhola sobre a sua obra. Conforme aponta Salgueiro
(2007, p.1), os dois últimos livros do poeta são o ponto alto dessa
representação cultural, desde a referência a pintores, como Picasso e
Miró, a escritores, como Quevedo e Jorge Guillén. O pesquisador
defende ainda que “Cabral se servirá de Sevilha, como um cavalheiro
corteja e seduz uma dama. Para isso, buscará nela traduzir-se,
traçando em seus octossílabos a cultura de um paraíso feminino,
através da trindade mulher-língua-cidade” (SALGUEIRO, 2007, p.2).
A ideia de uma poesia que bebe de águas regionais e estrangeiras,
nos fornece uma pista fundamental em relação à percepção do
trabalho de João Cabral: ele não se restringe ao regionalismo, mas se
universaliza. Os espaços representados podem ser compreendidos
como figuras alegóricas, como bem observa Bertussi (2009, p.70), em
relação à representação do nordeste brasileiro:
7faces • 135
uma alegoria de um sistema injusto, em que a seca é,
muito mais do que um fenômeno climático, uma forma
política e desumana de sociedade, que tira da vida tudo o
que ela tem de vitalidade para ser um espaço sempre
aberto à “indesejada das gentes”, a morte que está
ameaçadoramente presente, ou um pretexto para falar da
existência.
7faces • 136
brilhante, o sol, como quem leva um sinal no corpo, deixa-nos
rendidos, como ocorre com as vilas que, diante de tais cores, perdem
as suas, e, acinzentadas, desmaiam. Tal hipnose poética deve-se,
certamente, ao caráter popular da métrica do autor ao privilegiar
versos com sete sílabas, já que sua métrica favorita era a redondilha
maior.
Vemos a imagem, além da experiência do tempo, ser
autenticamente a base do poema cabralino. No primeiro verso a
seguir, de “O sol no Senegal”, poema de Museu de tudo, o pronome
“aquilo” torna o mar um tanto insignificante na presença da imagem
do sol que salta, rompendo a manhã:
7faces • 137
Em especial, foi influenciado pela poesia de Joan Brossa, poeta catalão,
e pela pintura de Joan Miró.
Comprometido com a arte intelectual e simétrica, Cabral foi
cativado especialmente pela estética de Joan Miró, cuja arte foi
decisiva para a feitura de Psicologia da composição e O cão sem
plumas. Por meio do artista espanhol, ele conseguiu fortalecer o
aspecto visual e arquitetônico de sua poesia.
Cientes da amplitude de temas na sua poesia, passemos para a
última obra do poeta, onde encontraremos poemas de temática
taurina, a exemplo de “Touro Andaluz”, objeto de análise deste
estudo. Entremos, sem mais delongas, no livro Andando Sevilha.
Composto de trinta e seis poemas, Andando Sevilha traz a cultura
espanhola. O poeta nutria grande admiração pela cidade (Sevilha), o
que o levou a criar o neologismo “sevilhizar”, transformando o nome
da cidade em verbo cuja ação seria a de “civilizar” o mundo, como
percebemos no trocadilho. A admiração pela cidade é revelada na
descrição das procissões, de ruas, praças e bairros, da dança flamenca,
das corridas de touro com seus famosos toureiros, da mulher sevilhana
e assim por diante. Sevilha é descrita como uma cidade feminina que
acolhe o viajante. A cidade é retratada como “o aconchego de
mulher”, onde mulher e cidade se amalgamam em uma só,
constituindo o ser sevilhano.
Como afirma Antonio Carlos Secchin3, o poeta estabelece
analogias entre os objetos, trabalhando-os no espaço do poema, no
intuito de concretizar a forma da imagem através da tessitura do
poema. Assim, os símbolos (mulher e cidade) falam a mesma
linguagem. Essa imitação do objeto tem continuidade em outros
poemas cabralinos, a exemplo de “A imitação da água”, que traz a
imagem resultante da comparação entre os símbolos mulher e onda.
Além da mulher-cidade (Sevilha), temos os símiles: mulher-casa,
mulher-fruta, mulher-onda, mulher-bailadora, provando a inesgotável
imitação da imagem do objeto na construção cabralina.
Mas não é sobre a mulher sevilhana que vamos dedicar a presente
análise, e sim à temática das corridas de toros. Desde o seu primeiro
livro, O engenheiro, João Cabral exalta a luz, a claridade do sol, a
construção de uma poesia racional, solar. O sol do meio-dia d’O
engenheiro reaparece nas últimas obras, no verão sevilhano, com as
corridas de toros. Para compor poemas sobre as touradas, o escritor
estudou a arte da tauromaquia e o seu vocabulário particular (pelo
7faces • 138
menos vinte termos da arte de tourear tais como corral, palcos,
tendidos, lidiar, ruedo, matador, capote de paseo, cita etc., constituem
o vocabulário cabralino). Seguramente, o conhecimento teórico o
auxiliou na construção de imagens poéticas. Afinal, o poeta tinha que
ser sabedor da cultura para transpô-la nos seus versos. Desse modo,
Cabral descreve tanto o espaço (as praças de touros) onde se passam
as touradas, como os personagens que atuam no espetáculo (o
homem e o animal). Para uma melhor compreensão da atração do
poeta pelas corridas de touros, iniciemos esta parte com a afirmação
de José Castello sobre o fato de Cabral não se limitar a ter amizade
somente com artistas e intelectuais:
7faces • 139
de cabelo louro de gringo,
7faces • 140
Percebemos o humor sutil do poeta ao relatar a história de um
toureiro que viveu pondo a sua vida em risco, como comprovam as
cicatrizes, mas que, por conta de um amor não-correspondido, se
suicidou. Ainda assim, mostrou-se vencedor ao tourear contra a
morte, pois, ao tirar a própria vida, demonstrou que mandava na
morte ― “convocou-a, mas quando o quis”.
Faz-se necessário frisar que a temática taurina explorada por João
Cabral não possui relação com a visão popular da luta entre o homem
e o touro. Para o poeta, importa a apreciação estética das corridas de
toro. A arte taurina pode ser interpretada como uma metáfora para o
fazer poético do escritor na sua lida com a construção do poema.
O olhar do poeta-engenheiro, semelhante ao olhar atento e
cuidadoso do toureiro, estuda a geometria do seu poema como o
matador investiga a geometria do local da tourada. Da arquitetura da
praça de touros, com os lugares a serem ocupados pelos espectadores,
o poeta passa a descrever o lugar do toureiro, o centro da arena. A
atenção passa da arquitetura para o drama que se desenvolve entre a
vida e a morte. Da imagem externa da praça o poeta passa para a
interioridade da cena e dos seus personagens. Touro e toureiro se
equilibram no limite tênue entre vida e morte. Ainda, a sensibilidade
do poeta une a tensão entre homem-animal-público, formando um
trio indissociável. Vejamos o poema “Touro andaluz”:
Há um momento na corrida
em que o espectador também lida.
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se essa alta cabeça que leva
há alguém que abaixar se atreva.
7faces • 142
as pessoas encontram-se no mesmo espaço, no mesmo tempo. Além
do tempo da articulação dos versos, temos também a plasticidade do
poema que nos remete a um quadro, a uma pintura, em que o
espectador pode apreender toda a cena simultaneamente, estando
todos os olhares voltados para o mesmo local. Dessa forma, temos
uma totalidade que se caracteriza pela junção da imagem à
musicalidade dos versos.
Seguindo o ritmo do poema, é importante notar a repetição do
pronome quem ao aparecer sete vezes no poema. Retomemos o
segundo dístico como exemplo: “Quem nos palcos, quem nos
tendidos, / quem no sol, quem na sombra rica”. O encadeamento dos
versos, pausados pelas vírgulas, pode ser um efeito utilizado para a
constituição dos passos lentos e prudentes do touro ao entrar na
arena, assim como a repetição do pronome quem pode, além de
demonstrar a ansiedade do público diante da entrada do animal,
evidenciar o fato de o mesmo estar cercado de pessoas, de inúmeros
“quem”(s), estando todos à espera ansiosamente pelo desfecho do
drama.
Em meio aos pronomes quem, ou seja, em meio à multidão que
aguarda o espetáculo, surge o touro com o seu olhar desafiador,
buscando, entre todos, aquele com “quem ele vai se entender”.
Somente no décimo segundo verso temos a mudança do quem para o
alguém ― o matador que irá desafiá-lo.
A atenção do poeta consegue captar cada detalhe, como o
movimento e o olhar do animal, cuja cabeça altiva e soberana desafia
a todos, semelhante à postura do poeta que aponta no meio de todos,
apreendendo tudo o que está ou não ao seu alcance. Em “Touro
andaluz” vemos que o poeta não descreve simplesmente o olhar do
touro, mas parece ser cúmplice do que o animal sente e expressa no
olhar. Saindo do lugar de mero espectador, o olhar do poeta voa da
arquibancada para a arena, como se visse tudo através de uma lente
de aumento, na qual as imagens do espetáculo saltam aos olhos.
Até aqui parecemos caminhar no tempo interno do poema,
compreendendo a descrição de uma cena, o encadeamento e o ritmo
dos versos. Nos versos décimo terceiro e décimo quarto, conseguimos
unir o nosso olhar ao olhar do touro, ou seja, passamos ao tempo
interno desses versos, o instante presente, o tão esperado momento:
quando o bravo animal é ferido. A totalização do poema parece estar
retratada na imagem do olhar do touro que por sua vez unifica o olhar
7faces • 143
de todos na mesma direção, no mesmo instante: “Depois, se campa, o
olhar derrama, / olhar de carvão, brasa, drama”
Ligados pelo mesmo olhar, os sentimentos parecem misturar-se,
como se o ser das pessoas estivesse intrinsecamente ligado ao do
touro, formando um único ser, de maneira que a interioridade de um
é passada para o outro. Assim, o calafrio que as pessoas sentem diante
do olhar ameaçador do animal passa a ser sentido por ele, quando é
atingido pelo seu rival.
Essa inversão de papéis, em que o touro de vilão passa a ser
vítima, é acompanhada por todos nós, leitores, frente ao espetáculo
(poema). Distanciamo-nos um pouco do momento da ação, já que
saímos da temporalidade e da linguagem interior do poema, para
refletirmos sobre o drama do touro e o sofrimento que os toureiros
lhe causam. Para sairmos de cena e pensarmos sobre esse espetáculo,
o poeta abre um parêntese para, dessa forma, não interromper a
tourada. Diferentemente dos toureiros que agem instintivamente, o
leitor obtém um certo distanciamento da cena, podendo colocar-se no
lugar do animal e perceber que o calafrio causado pelo touro nas
pessoas é o mesmo do qual ele agora é vítima:
7faces • 144
o animal é a imagem principal. Temos, portanto, uma elegia ao touro
andaluz. O embate do toureiro com o touro vai muito além de um jogo
ou espetáculo. Há todo um rigor estético, sutil, simbólico e poético,
que une o homem ao animal. O touro representa a força
descontrolada (paixão) sobre a qual um artista (toureiro, poeta) exerce
o domínio. Na arena, um dos dois será sacrificado.
Neste poema, touro, toureiro e espectador são unidos no instante
da tourada pela tensão entre viver e morrer. Quem sai vencedor pode
ser tanto o homem como o animal. A catarse alcançada pelo
espectador ocorre quando o touro é derrotado, simbolizando, assim,
a vitória da vida. O calculado movimento geométrico do animal e do
toureiro exigem atenção. O primeiro realiza movimentos de ida e volta
em direção ao seu rival, enquanto o segundo, vestido com traje de
seda e cores vivas, movimenta-se em torno de si mesmo, provocando
o animal. O ir e vir do touro pode ser uma metáfora para a precisão da
lida do poeta com a matéria de sua poesia. O passo cuidadoso e
calculado do poeta reflete a prudência dos personagens na arena.
Vimos que nos últimos versos do poema aparece a metáfora do
rio-vida tão presente na poética cabralina, como comprovam seus os
poemas O rio, O cão sem plumas e Morte e vida severina. O rio
Capibaribe tanto é sujeito, possuidor de seu próprio monólogo, como
também acompanha o monólogo do retirante sertanejo. A luta pela
vida é constante ― o rio que busca sobreviver à seca, impedindo que
ela o corte, o Severino retirante que caminha às margens do rio e da
sociedade em busca de uma vida melhor, e agora, nessas última obras,
o toureiro que vive pondo sua vida em risco, desafiando a morte.
Na poética de João Cabral, morrer e viver andam juntos, imersos
nesse rio torrencial da existência. Viver é suicidar-se continuamente
nesse rio, na sua rotina de correr incessantemente, entregando-se ao
que não sabe estar à sua frente, a exemplo do perigo constante das
corridas de toro.
Neste poema aprendemos mais uma lição cabralina ao
observarmos a descrição realista da coreografia do toureiro e do
animal unidos no olhar do espectador/leitor. De forma semelhante, a
condição exposta no cenário é a condição de todos nós na coreografia
da vida, diante dos nossos dramas, na tensão constante entre a vida e
a morte.
7faces • 145
Notas
Referências
7faces • 146
João Cabral de Melo Neto e as muitas
pedras: análise da poesia lírica e a
recepção da crítica literária
por Rosidelma Pereira Fraga e Adriana Helena de Oliveira Albano
7faces • 147
pesquisas e nem tampouco excluir estudos também de qualidade
hermenêutica e epistemológica.
Com José Guilherme Merquior, define-se o poeta, utilizando suas
próprias palavras: “sou o menos passivo dos poetas”. Segundo esse
crítico, João Cabral de Melo Neto é
7faces • 148
(dois olhos dois seios dois clarinetes)
que em certas horas do dia
cresciam prodigiosamente
para que as bicicletas de meu desespero
corressem sobre seus cabelos.
7faces • 149
verossimilhança, se considerado que o poeta deve ser mais fabulador
e seu objetivo ser o de criar o universo como gostaria que tivesse
acontecido. A possibilidade de uma verdade inaugurada pelo poeta
ocorre através da dimensão de um novo mundo. Para validar essa
autenticidade, existe o poder da imagem poética, que o poeta é capaz
de construir a partir do universo da linguagem. Octavio Paz assim
descreve como se dá essa autenticidade: “as imagens do poeta
possuem autenticidade: o poeta as viu ou ouviu. São a expressão
genuína de sua visão e experiência do mundo. Trata-se de uma
verdade objetiva, essa verdade estética da imagem que só vale dentro
de seu próprio universo.” (1986, p.37). Isto é, as imagens jamais se
interpretam com palavras, uma vez que as imagens vão além do signo-
objeto. Cabe, ao leitor, um repensar e reviver dessa veia imagística,
pois o poeta transforma-o em coautor das imagens produzidas no
texto. Isso porque, numa perspectiva valéryana, o poeta e o leitor
devem jogar o mesmo jogo, pensando por imagens.
A poesia de João Cabral de Melo Neto se estreia pelo abstrato (o
sonho, o sono, a memória), que levemente se junta ao concreto
(pedra), os quais, nas obras seguintes, são mais demarcados. Em Pedra
do sono, conforme classificação da gramática normativa da língua
portuguesa, os substantivos são concretos, comuns e simples. E por
meio de uma abstração do real no substantivo, o pensamento
(abstrato) passa a existir por si só. Todavia, no primeiro verso da
terceira estrofe do poema “Dentro da perda da memória”, o signo
poético “bicicleta” remete ao desespero ou angústia do poeta,
tornando a substantivação abstrata, assim como a memória (abstrata),
que é tida como concreta no poema, uma vez que, se é possível uma
mulher azul estar deitada dentro de uma memória (inexistente), o
pensamento também pode ser tocado.
Antonio Carlos Secchin (1999, p.26) analisa a memória como um
fator minimizado, em que “o poeta não se contenta em ver como o
fenômeno se dá, mas intenta saber como ele se organiza”. Mais
precisamente, o crítico explica que “o vínculo entre e sujeito e objeto
proposto em Pedra do sono não se reveste de aspectos celebratórios”,
ao que Luiz Costa Lima (1968) chamou de “repúdio ao poético”.
A repulsa do poético aponta para uma leitura ambígua e utópica,
provocando o hermetismo e uma impossibilidade de compreensão da
lírica, como se o poeta se vangloriasse do leitor, uma vez que, para o
poeta, “existe uma glória em não ser compreendido“ e “a poesia
7faces • 150
moderna se deixa lançar no caos do inconsciente e da obscuridade”
(FRIEDRICH, 1991, p.62).
Pedra do sono configura-se por meio da obscuridade do signo, da
relação entre significante e significado, exercendo uma ruptura na
mente do leitor. Isso lembra o próprio ensinamento da palavra flor,
em Psicologia da composição, no qual o poeta não precisa da beleza
da flor para poetizar o poema, pois a “flor” pode ser “fezes” e ainda
“estrume” de poemas.
Na visão de Alcides Villaça (1996), há, em Pedra do sono, um
estranhamento linguístico, que o leitor percebe quando observa o
discurso num plano superficial, mas também a demarcação da
fantasia, que ocorre numa instância em que as relações entre sujeito
e mundo (a mulher azul, os retratos, as bicicletas do desespero etc.)
são suprimidas.1 Nesse caso, segundo Villaça (1996, p.145), “os gestos,
as notícias e as imagens, bem como as figuras surgem filtradas por
lentes ou em espelhos e retratos. A figura do eu, inatingida, apenas
insinua na estátua espetacular de um manequim”.
Esses gestos insinuantes permeiam toda a obra inicial do poeta e,
assim, a figura feminina se constrói com a sensualidade detectada na
imagem dos seios, embora ela seja intacta ao poeta e ao leitor. O certo
é que o utópico se realiza na exposição de “um rosto”, de “um
manequim”, como um quadro inatingível.
Em Os três mal-amados (1943), ainda há traços desse aspecto do
sono e do sonho como na obra Pedra do sono, infiltrados pelos
devaneios. A matéria do sonho surge através das vias diurnas e não
noturnas. João Alexandre Barbosa (1974) considera Os três mal-
amados como uma obra de imitação da forma, cujo traço
característico é a relação sujeito–objeto que se transforma em
contradições instauradas em objetividade e subjetividade. Em outras
palavras, o sonho no livro de 1943 é símbolo do devaneio que permite
a mobilização dos personagens João, Raimundo e Joaquim e traz os
resquícios de “Quadrilha”, de Carlos Drummond de Andrade.
Na obra seguinte, em O engenheiro, o poeta escreve um poema a
Paul Valéry. Enquanto Pedra do Sono se volta pela imagem do noturno,
do sono e da obscuridade, próprio dos poetas surrealistas, a obra O
engenheiro se veste de traços herméticos que vêm ornados de luz e
leve clareza. Secchin (1999) chamou essas marcas de “desativação
onírica”. Paulatinamente a essa desativação onírica, o poeta-
7faces • 151
engenheiro demarcará o seu fazer sob a perspectiva de luz, foco,
medida, entre outros elementos:
[...]
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Psicologia da composição (1947), obra dividida em três partes ―
“Fábula de Anfion”; “Psicologia da composição”; “Antiode” ― constitui
parte do objeto de estudo em que se desenvolve um trabalho com
discussões sobre as marcas da metalinguagem, da poesia antilírica e
de outros elementos da subjetividade. Na obra O cão sem plumas
(1950), que também faz parte desta pesquisa, o poeta oscila entre o
discurso poético e a referência plástica. Segundo Campos (1967, p.71),
nesse aspecto, o poeta exerce uma “desalienação da linguagem ao
problema da participação poética”.
Alfredo Bosi (1971, p.526) explica o que é, para ele, “cão sem
plumas”:
Cão sem plumas (= pêlos) é o Capibaribe, rio que carrega
os detritos dos sobrados e dos mocambos recifenses, rio
que seria também matéria do complexo poema narrativo
“O rio”, onde a poesia nasce de um sábio uso do prosaico,
do polirrítmico, aderente às flutuações da linguagem
coloquial.
7faces • 153
Similarmente à visão de Bosi (1971), no que tange à obra O rio,
Haroldo de Campos (1967, p.72) pondera que o poeta delineia uma
poesia com características do prosaico e o rio tem a função do sujeito
porque a obra é uma espécie de prosa em poesia, ou uma “invasão do
prosaico”:
vemo-lo [...] fazer prosa em poesia (não prosa poética nem
poema em prosa, mas poesia que fica ao lado da prosa pela
importância primordial que confere à informação
semântica). Nesse sentido, pode-se dizer que João Cabral
de Melo Neto dá categoria estética a muito daquilo que,
no chamado romance nordestino, tinha apenas categoria
documentária.
Cemitério pernambucano
(São Lourenço da Mata)
É cemitério marinho
Mas marinho de outro mar.
Foi aberto para os mortos
que afoga o canavial.
(MELO NETO, 1955, p.130).
Cemitério pernambucano
(Nossa Senhora da Luz)
7faces • 154
vem vestido de caixão.
Portanto, eles não se enterram,
São derramados no chão.
(MELO NETO, 1955, p.132).
7faces • 155
Segundo Meneses-Leroy (1997), a linguagem seca de “Uma faca
só lâmina” decorre “do falar seco que inspiram Graciliano Ramos e
João Cabral de Melo Neto a falar por imagens (ou parábolas) que
alimentam o discurso sugestivo de Guimarães Rosa”; no que se refere
ao sertão:
7faces • 156
Para anunciar a sedução, a partir do interior e exterior, presentes em
tal obra, mencionam-se os excertos da primeira e quarta quadra do
poema:
[...]
7faces • 157
Sequencialmente a Dois parlamentos, João Cabral publica Serial.
Sua poesia segue um tom de linguagem enxuta, medida e de quadra,
como nos dezessete poemas de Quaderna. Importante destacar os
poemas “A palo seco”, que caracteriza toda a secura da linguagem
econômica do poeta, e “O sim contra o sim”, que permite a análise
quanto à metalinguagem. Para o crítico Merquior (1996, p.114), Serial
é o “livro de manso andar” porque “exibe um poeta cada vez mais
devoto do objeto, cada vez mais olho-de-ver, e de ver melhor que o
comum, mais dentro e mais penetrantemente fino”. No capítulo
“Serial” de seu ensaio Razão do poema, o crítico demonstra que o
poeta é capaz de contemplar as coisas de novo jeito;
7faces • 158
forma e matéria, estrutura e temática se produzem
reciprocamente.
7faces • 159
é depósito do que aí está,
se fez sem risca ou risco.
(MELO NETO, 1997, p.249).
[...]
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corte e de objetos cortantes, para que essa linguagem “a palo seco” se
realize na medida exata:
[...]
7faces • 161
A respeito do antissentimentalismo e da antipoesia, Alfredo Bosi
(1996) constatou que a lírica cabralina possui uma dimensão inusitada,
no que se refere à nudez de traços supérfluos e ao despojamento de
cadências sentimentais quando o poeta constrói um poema.
A poeta Marly Oliveira, no prefácio de Serial e antes ― onde se
registram os dois volumes Pedra do sono a Serial e A educação pela
pedra e Depois ―, argumenta que o poeta já havia se definido como
poeta antilírico e antissentimental desde um surrealismo inaugural ao
encontro de uma poesia social. O poeta se preocupa com a linguagem
comparada à linguagem baudelairiana, como manifesta a autora sobre
Melo Neto e modernismo:
7faces • 162
almas, e de um Murilo Mendes surrealista. O próprio poeta declara
que foi o primeiro mineiro quem o convenceu de que ele também
poderia ser poeta e, sobretudo, o segundo: “a poesia de Murilo
Monteiro Mendes, sem dúvida, me foi mestra pela plasticidade e ainda
pela novidade da imagem. E, sobretudo, foi ela quem me ensinou a dar
precedência à imagem sobre a mensagem do texto” (BOSI, 1971,
p.448).
Entretanto, a partir de Psicologia da composição, a poesia de
Cabral deixa as imagens drummondianas e murilianas e passa a ser
cabralina. O poeta consegue criar um projeto poético inconfundível.
Assim, o poeta pertence ao Grupo de 45, por marca cronológica, que
é explicada por ele como um fenômeno biológico. Nas palavras do
autor, pode-se comprovar a sua separação da poesia de 1945:
7faces • 163
grandes naturalistas, quase todos revolucionários,
praticavam com o desprezo impassível que se tem pelas
coisas mortas, pelo mundo cadáver, a decomposição
burguesa naturalmente desmembrável. João Cabral não
disseca; interpreta. Joga com estruturas, não com simples
somas. (MERQUIOR, 1996, p.121).
7faces • 164
contaminação a dois, a poesia do autor a recepção do leitor da poética
do homem sem alma.
Notas
7faces • 165
estudo, mas permite visualizar os intratextos, ou intertextualidade
restrita.
Referências
7faces • 166
NUNES, Benedito. Passagem para o poético. 2. ed. São Paulo: Ática,
1996.
OLIVEIRA, Marly de. “Prefácio”. In: MELO NETO, João Cabral de. Serial
e antes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.7-13.
PAZ, Octavio. A dupla chama: amor e erotismo. Trad. Wladyr Dupont.
São Paulo: Siciliano, 1994.
PAZ, Octavio. Signos em rotação. Trad. Sebastião Uchoa Leite. São
Paulo: Perspectiva, 1986.
SAMPAIO, Maria Lúcia Pinheiro. Processos retóricos na obra de João
Cabral de Melo Neto. São Paulo: HUCITEC, 1978.
SECCHIN, Antonio Carlos. “Caminhos recentes da poesia brasileira”.
In: Poesia e desordem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, p.93-110.
SECCHIN, Antonio Carlos. A poesia do menos e outros ensaios
cabralinos. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.
SOUZA, Helton Gonçalves de. A poesia crítica de João Cabral de Melo
Neto. São Paulo: Annablume, 1999.
VILLAÇA, Alcides. “Pedra do sono”. In: BOSI, Alfredo (Org.). Leitura de
poesia. São Paulo: Ática, 1996.
7faces • 167
João Cabral de Melo Neto
© Antonio Augusto Fontes / Reprodução
7faces • 168
João Cabral de Melo Neto: ainda
o leitor
por Rafaela de Abreu Gomes
7faces • 169
Por isso, não compreendemos os movimentos de leitura,
interpretação e análise desvinculados de seus aspectos contextuais e
circunstanciais, assim como não tratamos um entendimento como o
de “sistema literário”1, por exemplo, a partir de blocos capazes de
separar autor, leitor, obra e efeito. Para este trabalho, tais elementos
são pensados em relação, a fim de que, em conjunto, possam garantir
uma leitura atenta e crítica para uma obra literária2.
Então, considerando que podem estar guardadas, em atos de
leituras, responsabilidades significativas no que se refere à formação
intelectual de alguém, pensaremos a respeito da face leitora do poeta
João Cabral de Melo Neto, para quem o exercício da leitura foi
atividade contínua ao longo da vida, como ele mesmo afirmou, mais
de uma vez:
7faces • 170
constantemente revisitada, a fim de que as lembranças não percam,
das leituras já realizadas, os detalhes de suas formas.
A memória faz um homem conhecer a si, mas é necessário que ele
filtre suas percepções; do contrário, correrá o risco de se perder em
meio às lembranças que tem ― filtrando-as, é possível identificar e
entender o papel de cada uma em sua formação. No âmbito da
memória vegetal cabralina, podemos encontrar os autores de sua
biblioteca pessoal, sobre os quais o poeta falou abertamente nas
entrevistas que concedeu ao longo da vida, reconhecendo em cada um
deles uma influência para o seu trabalho poético.
Uma postura de João Cabral, diante dos autores de sua biblioteca
pessoal, bem como seu modo de enxergar a linguagem poética com
forte carga de objetividade, podem ser argumentos utilizados pela
crítica para adjetivar o poeta com denominações excessivamente
“matemáticas”, como se ele, enquanto autor, detivesse todo o domínio
sobre sua poesia e o leitor, diante de um poema seu, visse
prontamente o que ali representa a “intenção” do poeta.
Consideramos que essa é uma forma extrema de ler a obra
cabralina, uma vez que entendemos a leitura do ponto de vista
receptor de Hans Robert Jauss, para quem há um horizonte de
expectativas do leitor sobre uma leitura, ou seja, “há na experiência
literária um saber prévio [...], com base no qual o novo de que
tomamos conhecimento faz-se experenciável” (JAUSS, 1994, p.28). O
“saber prévio” pode ser tudo o que o leitor espera encontrar num texto
literário, desde as expectativas levadas para uma leitura que, uma vez
concluída, poderá apresentar novas possibilidades interpretativas.
Além disso, embora com um caráter mais “denotativo”, os poemas
cabralinos não são uma espécie de espelho refletor para situações
definidas. Mesmo que momentos continuados de escrita tenham
integrado a rotina de João Cabral, ele não pode ser caracterizado como
poeta artificial; seus versos mostram uma escrita poética disciplinada
pelo hábito de escrever, não a de alguém que, mecanicamente, decide
escrever poemas. Seu trabalho com a linguagem é minucioso, mas
diretamente ligado à observação do cotidiano (e de seu próprio fazer
poético), através de pessoas nas ruas da Espanha, das paisagens do
Recife, da vida e, nela, as nuances que chamaram sua atenção. Sobre
esse aspecto, Félix de Athayde foi claro quando disse que Cabral
7faces • 171
Escreve sobre a vida (forma em movimento) e não sobre o
que já é morto (forma inerte). Seus poemas são, antes de
tudo, forma, mas forma trabalhada. Somente através do
trabalho (da forma) é que a linguagem se desenvolve e
evidencia as coisas. [...] Lógica, racional, realista,
materialista e crítica. Sua poesia, quase sempre, é ‘uma
visão crítica da realidade’. (ATHAYDE, 2000, p.16)
O jornal dobrado
sobre a mesa simples;
a toalha limpa,
a louça branca
e fresca como o pão.
A laranja verde:
tua paisagem sempre,
teu ar livre, sol
de tuas praias; clara
e fresca como o pão.
(MELO NETO, 2007, p.49)
7faces • 172
praias, e nós percebemos como, partindo de certa materialidade, em
sequência lógica, somos apresentados a imagens harmoniosamente
combinadas, realizando-se em manhã tranquila.
Para João Cabral, sua vontade era “falar numa linguagem mais
compreensível desse mundo de que até os jornais nos dão notícias
todos os dias, cujo barulho chega até nossa porta.” (MELO NETO apud
CARVALHO, 2011, p.21). Isso é algo que um escritor procura fazer,
mesmo sabendo que há uma distância entre seu movimento de leitura
do mundo, a partir do real que alimenta o fazer poético, e as infindáveis
leituras que serão feitas de sua obra ao longo do tempo.
Outros autores manifestaram o desejo pela escrita simples, como
sugere Autran Dourado, dirigindo-se ao jovem aspirante a escritor,
dizendo-lhe para seguir “os gregos, que diziam da maneira mais
simples e concreta as coisas mais profundas” (DOURADO, 2009, p.9).
No âmbito da poesia cabralina, consideramos que houve uma escolha,
em lugar de imagens abstratas e emotivas, que visasse a possibilidade
de “escrever friamente uma coisa que contenha emoção para o leitor”
(MELO NETO apud ATHAYDE, 2000, p.28).
Nesse sentido, o trabalho cabralino com a linguagem esteve muito
ligado ao papel do poeta como leitor, que ele manteve durante toda a
vida ― e quando a visão não lhe permitiu mais se dedicar ao exercício
da leitura, havia o imenso vazio que isso lhe causava.
Em depoimento para os Cadernos de Literatura Brasileira, Joan
Brossa se diz influenciado por João Cabral, sobretudo quando o poeta
afirma que “a poesia e a arte deveriam ter algum comprometimento,
mas que isso não poderia ofuscar a personalidade do artista” (IMS,
1996, p.16). Em nosso ponto de vista, isso é fruto da presença forte do
poeta / leitor ao lado do poeta / construtor, uma vez que a observação
de uma circunstância e / ou de um traço circunstancial representaram
motes para o processo de criação cabralino, o que podemos observar,
por exemplo, com a notícia que o poeta leu em Barcelona, ainda na
década de 1940, a respeito de a expectativa de vida no Recife, à época,
ser inferior à expectativa de vida na Índia, o que o motivou a escrever
O cão sem plumas (1950).
No poema “Paisagem do Capibaribe”, conhecemos uma voz
poética a nos mostrar as condições do rio, e da gente às suas margens.
Vejamos a segunda e a terceira estrofes do poema:
7faces • 173
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.
Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.
(MELO NETO, 2007, p.81)
7faces • 174
(MELO NETO, 2007, p.81)
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forma de ver ― que o leitor, por sua vez, aprende ao
apreendê-la ―, jamais permitindo-se a facilidade de um
dizer didático, desde que sempre dependente do fazer
poético. (BARBOSA, 1986, p.108)
7faces • 176
me lembro de mim, mesmo menino, senão com um livro na mão. Eu
tenho a doença de ler.” (MELO NETO apud ATHAYDE, 1998, p.52), de
modo que os movimentos de leitura e escrita, interligados, foram
constantemente retomados pelo poeta como fundamentais para o seu
processo de composição da poesia.
Notas
Referências
ATHAYDE, Félix de. Ideias fixas de João Cabral de Melo Neto. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira: FBN; Mogi das Cruzes, SP: Universidade de
Mogi das Cruzes, 1998.
BARBOSA, João Alexandre. As ilusões da modernidade. São Paulo:
Perspectiva, 1986.
7faces • 177
CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: momentos
decisivos. 6 ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2000.
DOURADO, Autran. Breve manual de estilo e romance. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2009.
ECO, Humberto. Memória vegetal. Trad. Joana Angélica d'Ávila. Rio
de Janeiro: Record, 2010.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. São Paulo: Cortez, 2005.
INSTITUTO MOREIRA SALLES. Cadernos de Literatura Brasileira. João
Cabral de Melo Neto, n.1, Rio de Janeiro, 1996.
JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à
Teoria Literária. Trad. Regina Zilberman. São Paulo: Ática, 1994.
MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária. Trad.
Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
MELO NETO, João Cabral de. Poesia completa e prosa. 2 ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira: 2007.
SIBILA, Revista de Poesia e Cultura. Conversas com o poeta João
Cabral de Melo Neto. Número especial em pdf/Ano 9, número 13,
agosto de 2009.
João Cabral de Melo Neto. Nº 1. Rio de Janeiro: Instituto Moreira
Salles, 1996.
7faces • 178
POEMAS (2)
7faces • 179
7faces • 180
Isabel de Carvalho
Albergaria-a-velha – Portugal
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Corvo
Corvo que vive dando a morte
Deram-te tal sorte.
Tinhas de ser tu de mau agouro.
Não podias simbolizar o ouro?
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Crença
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Edwardo Silva
Manaus – Amazonas
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almiscarado e refrescante, com notas cítricas de abacaxi e mel
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estranhos sinais de urano
um poema paleolítico
construído na fonética
de grunhidos cavernícolas
e destruído na estética
de versos dodecassílabos.
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o anárquico ato de futricar a fruta
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quero ter uma morte ridícula e heroica
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Nayara C. P. Valle
Barra do Cuieté – Minas Gerais
Nasceu a 13 de setembro de 1979. Cresceu em Barra do Cuieté, Minas Gerais, um vale entre
o rio e o mar. Formada em Letras-Português e pós-graduada em Jornalismo Cinematográfico.
É autora de Esmeril (Editora Urutau).
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A mulher viajante
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Errância
Enquanto caminhas
trôpego pelos cânions
eu sigo arrastada
pelos abismos
da velha casa
As mãos inquietas
sempre à procura de mim
nas sobras da mudança
dos que se foram
No mesmo instante, sob os pés
a poeira levanta
cobrindo teu corpo desértico
– paisagem secreta
que te abriga dos outros
O rímel endurecido
ainda cobre os cílios
da menina que me olha
do outro lado do espelho
Assim, tu também te voltas
silencioso e abrupto
para a Terra revolta
de lembranças infantis
daquele que foste
nas histórias que te contaram
7faces • 194
Entre o jogo de chá do casamento
e os vestidos sob medida
– para o corpo que outrora me hospedou –
acarinho a escuridão que alerta:
não são seus, não lhe pertencem
Homem
estou – e tu estás também –
encerrada no espesso cristal
errando pelos mesmos caminhos
do antes e do agora –
exaustivo esforço
de reter, ávida
a memória que escapa
a este tempo margeado
de palavras despovoadas
que contam tudo e nada
sobre nós
A errância é o teu caminho
e tua possível verdade
Como tu, deslizo
inconstante e desconfiada
se a cada verso que atravesso
afasto de mim o que sou
como se riscasse o cristal
a sombra da luz que findou.
7faces • 195
Lamento noturno
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Irmãos
Distanciei-me de mim
por muito tempo
mas acordei do sonho
enrodilhado de futuro
movendo-me de volta
para o seio que nunca seca
– abrigo delicado
dos escombros do tempo
onde reúno farpas
para entrelaçá-las
aos meus nós
7faces • 197
cinzas
Solitários
assopramos o pó
por cima das cabeças
dos Homens
e seguimos cambaleantes
com o bordado
do melhor caminho
gravado nas mãos
Somos irmãos
mas não me reconheces
Me molhas
desgastando bruto
as minhas margens
de minério de ferro
a cada encontro
És um rio
audaz e caudaloso
movendo todos de ti
enquanto andas
Reconheço-te
portanto, peço:
ouve meu grito talhado
de assombro de descrença
de abismo
e saiba:
a cada atropelo
levas consigo
um vão escavado
da dureza sombria
com tuas mãos liquefeitas
Peço-te ainda, com ternura
não desfaças os esconderijos
porosos
que me abrigam de Deus.
7faces • 198
Claudia Baeta Leal
Rio de Janeiro – RJ
Claudia Baeta Leal é paulistana, formada em Letras pela UNICAMP, com pós-graduação em
História, e servidora pública federal. Além de alguns artigos em periódicos acadêmicos e da
organização de livros sobre história do Brasil, publicou dois poemas na revista Alagunas, em
2018, e o livro de poesia Itinerário: ida e volta, em 2019, pela Editora Letramento.
7faces • 199
7faces • 200
Queimada
Ardo
Queimo em combustão aguda,
criminosa.
Na vastidão
de um incêndio incontrolável,
sou fagulha, brasa
e chama.
Carvão como propósito.
Ardo.
Marco clarão na noite,
clareira aberta, vil e clandestina, na floresta.
Mata morta em chamas
e fim.
Queimo o verde, o mato, a carne,
o chão.
Carbonizo.
Estalos de madeira em sinfonia,
nacos de minha carne
que alimentam de carvão
bichos famintos e feridos.
Ardo.
Queimo por terra e por ar.
Cavo rios de lava;
risco o céu de fumaça e podridão.
Os vapores fétidos me levam
a todo canto:
nuvens podres carregadas.
Choverei tóxica,
mas só depois.
Olhe bem:
já está escuro!
7faces • 201
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Thiago Alexandre Tonussi
Uberlândia – MG
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Mundo na boca
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Segundos
e não matarás
A cada segundo
alguém morre de sepse no mundo. E mata-se um boi um porco
e 185 frangos
que muito provavelmente nunca viram o sol
A cada trinta
segundos
morre alguém de malária
Ouvi dizer que a cada dois
alguém morre de prazer ou por falta de sangue. De fome se morre sempre
Sempre que se come rodízio ou põe-se comida no lixo. Isto é
a cada três segundos
morre uma criança de fome e toda a humanidade se suicida
a cada três segundos
Aqui
é quando a demência e toda a angústia tomam conta
7faces • 206
sempre que o patrão queira e sem reclamar de solidão de falta de carinho de falta de
prazer
de tristeza
Agora
oito são os segundos
necessários para matar um ser vivo saudável e rico em verdura
sabores e sabedoria
e do tamanho de um campo de futebol
Consigo morre, quando este ser vivo morre, morre
mais vida do que toda a humanidade junta jamais verá ou criará
infelizmente
Felizmente
descobrimos que segundo os números
somente quando alcançamos o nono minuto
e não segundo
Alguém morre assassinado com um tiro na cabeça e outros cento e dois tiros
no resto do corpo
Com uma paulada e outras sessenta e oito facadas nas costas
Ou estrangulado depois de estuprado ou estuprada em plena luz do dia e praça pública
transmitido ao vivo
para todo o nosso abençoado país
7faces • 207
(Sem nome)
7faces • 208
Francisco Romário Nunes
Piripiri – Piauí
7faces • 209
7faces • 210
promessas
7faces • 211
transmutação
é feito
não se esqueça
se gente imitasse árvore
não haveria tanta matança
pois que
num arco-íris de penas
a terra choveu passarinhos
e os rios
ah, os rios
os rios voam nas nuvens
7faces • 212
Alves Candeira
Belém – PA
7faces • 213
7faces • 214
foi a única coisa que restou dela em mim.
7faces • 215
7faces • 216
Thássio Ferreira
Rio de Janeiro – RJ
Thássio Ferreira (São Gonçalo, 1982). Escritor radicado no Rio de Janeiro, publicou os livros
de poesia (DES)NU(DO) (Ibis Libris, 2016) e Itinerários (Ed. UFPR, 2018). Tem poemas e
contos publicados em revistas e antologias, como a Revista Brasileira (n. 94), da Academia
Brasileira de Letras, Escamandro, Gueto, Mallarmargens e Germina. Seu conto “Tetris” foi
vencedor do Prêmio Off Flip 2019, e seu livro inédito Cartografias, finalista do Prêmio Sesc
2017. Participou da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) em 2017, 2018 e 2019. Os
poemas que a 7faces publica integram o livro Cumprir o amor, no prelo.
-------
7faces • 217
7faces • 218
agora (depois)
7faces • 219
a casa limpa
habito sozinho
um silêncio
que não é o meu.
é difícil
respirar aqui
no teu silêncio.
7faces • 220
o amor afogado
a mudez de aquário
dos passos parados
que marco e apago
na carne dos dias
— no horizonte
sem onde
em que sequer
me embalo
desaprumado —
engordando
meu quarto
de saudades tuas
apaga as chagas
que a tua presença
petrificava
em meus lábios:
a dor de calar
o amor afogado
com que hoje me abraço
: desamparado náufrago
7faces • 221
outra quadrilha
7faces • 222
esse dia
as mãos do desamor
com sua aspereza de areia
e sua naturalidade — feita
dos invisíveis sem
pressa nem medo
teceu calada
esse dia
— ao nosso lado
na cama
na mesa
na praia —
durante as horas
ávidas
em que tentávamos
ser felizes
descuidados
7faces • 223
quando
7faces • 224
cumprir o amor
cumprir um amor
como cumprir uma
maternidade
quando se vive mais tempo
que os filhos
(que a paixão)
porque o tempo às vezes
mata
vida, amores, filhos
às vezes morre:
7faces • 225
poema perto do fim
1.
às horas de chuva
bebo chuva no côncavo
do teu peito
porque sei
que o tempo é
pouco
e nunca
veremos
paris
(não juntos)
2.
talvez se um dia
eu de novo caminhar
sobre os séculos e dores
solidificados em pedra
no chão da sainte-chapelle
quando levantar os olhos
à luz vazada dos vitrais
(e se eu chorar, se eu chorar
como tu choras quando
a beleza é muita)
talvez eu lembre de ti
(talvez)
7faces • 226
dois pássaros
7faces • 227
na plateia
sorri
e sente
algo que
me escapa
ali
na sala escura do teatro.
7faces • 228
papo
um papo à beira-noite
ele e eu
(à beira do amor
feito já fosse)
: você é sinestésico
eu sou caleidoscópico.
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Capa de Aniki Bóbó. Verso Brasil Editora.
7faces • 230
Aniki Bóbó: a palavra enigmática
por Rafaela Cardeal
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Colofão de Aniki Bóbó. Verso Brasil Editora.
Se, por um lado, quase ninguém tinha visto ou lido até então o raro Aniki
Bóbó, de Cabral e Magalhães, por outro, uma obra homônima tem reconhecido
destaque internacional, Aniki-Bóbó (1942), o primeiro longa-metragem do
realizador português Manoel de Oliveira, clássico absoluto do cinema
português e marco da cinematografia mundial. À partida não existe nenhum
diálogo entre as duas obras, trata-se apenas de uma mera coincidência. Mas,
curiosamente, além do nome comum, a película apresenta-nos uma série de
questões que ajudam a perceber de algum modo o livro. Inspirado num poema
de Rodrigues Freitas2, o filme retrata as aventuras e os conflitos de um grupo
de crianças da zona ribeirinha da cidade do Porto, em meio aos contrastes entre
a liberdade das ruas, a rigidez da escola e a vigilância do Estado. No início da
película, em grande plano, vemos impressa na sacola de Carlitos a frase “Segue
sempre por bom caminho”, que acompanha a narrativa e o menino como um
leitmotiv. Esse princípio é desrespeitado quando o tímido e sonhador Carlitos,
para ganhar o coração de Teresinha, rouba na “Loja das Tentações” a
inacessível boneca que a amada tanto desejava. O desenlace acontece quando
Carlitos devolve a boneca roubada ao lojista, que, por sua vez, comovido com
atitude do menino, oferece-lhe o desejado objeto para que ele possa
conquistar novamente Teresinha. Com o pecado perdoado pelo dono da loja,
os imperativos do desejo do menino estão a partir daí de acordo com a norma
social, assim a verdade é o elemento de harmonia que permite o final feliz da
história.
7faces • 232
Fotogramas de Aniki-Bóbó, de Manuel de Oliveira (1942).
Coleção Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema.
7faces • 233
Durante a película, são recorrentemente entoados os versos de uma
lengalenga:
Aniki Bébé
Aniki Bobó
Passarinho, tótó
Berimbau, cavaquinho
Salomão, sacristão
Tu és polícia
Tu és ladrão
No jogo infantil, a fórmula mágica é repetida por uma das crianças para
dividir os “polícias” e os “ladrões”. Manoel de Oliveira esclareceu em
algumas entrevistas que a cantilena não era uma memória de sua infância,
mas sim foi uma descoberta feita no próprio local das filmagens, era a forma
que os meninos da Ribeira usavam para escolher os parceiros nas
brincadeiras. Decidiu então aproveitar como título porque envolvia “um
certo mistério”, o qual se adequava à riqueza interior dos personagens e ao
centro da ação narrativa, uma vez que “o jogo das crianças desenvolve-se
sob o peso sociológico, ético, ideológico, repressivo, que caracteriza a
ideologia, a moral urbana” (OLIVEIRA apud PINA, p.58). Apesar de o filme ser
considerado por alguns críticos precursor do cinema neorrealista italiano, o
realizador alerta que a sua filmografia está inserida no campo poético e
nunca teve qualquer aspecto de carácter social ou econômico como ponto
fundamental da sua estrutura ou construção (p.27). Como bem observou
Manuel António Pina, o caráter poético do filme se funda num processo de
transformação simbólica: a partir da história de amor de Carlitos e Teresinha
demonstra-se um universo mais amplo, o dos sentimentos e dos desejos
humanos. Convertendo-se numa “fábula realista”, Aniki-Bóbó foi, e continua
a ser, “um raio de realismo poético a destoar das dominâncias do tempo”
(RAMOS apud PINA, p.19).
Podemos dizer então que Manoel de Oliveira cunhou a enigmática
expressão, que era praticamente desconhecida, ou corrente para um
público bastante restrito, antes da exibição da película. O crítico literário
Arnaldo Saraiva (2014), em busca de uma analogia com o Aniki brasileiro,
tentou encontrar, em vão, a lengalenga em estudos de folclores e de jogos
tradicionais e em cancioneiros populares, em coletâneas de rimas infantis,
de Portugal e do Brasil. Não sendo registrada na escrita, a cantiga
provavelmente se perdeu por pertencer às tradições orais de uma pequena
comunidade, o que reforça o “certo mistério” identificado por Oliveira e, ao
7faces • 234
mesmo tempo, a conquista de uma outra origem, vinda da composição
cinematográfica. Igualmente, quando tentamos perceber de onde vem a
referência do livro, deparamos com explicações difusas, pois nem Aloisio de
Magalhães nem João Cabral sabiam precisar qual era a origem da expressão:
o designer afirmava, numa entrevista de 1980, que havia lido o nome Aniki
Bóbó em algum lugar, que não se lembra, e então o interesse pela palavra
fez com que ele imaginasse um pássaro (MAGALHÃES apud ANASTASSAKIS
& KUSCHNIR, 2016, p.45); enquanto o poeta escrevia, numa carta dos anos
de 1970, que o próprio Aloisio teria dito que era o nome de um brinquedo
de criança de Pernambuco, do qual igualmente não se lembrava (MAMEDE,
1987, p.111). Na mesma carta, João Cabral esclarecia que a experiência foi
uma “brincadeira” com o parceiro que fez os desenhos, restando a ele a
função de escrever “as ilustrações interpretando os desenhos”, ou de
“ilustrar com o texto”; e concluía definindo que se tratava de um “texto
abstrato”, um “jogo” (p.111).
Há, na ilustração textual de Aniki Bóbó, uma aparente simplicidade, mas
que exige do leitor algum esforço sobretudo a respeito de seu sentido.
Percebemos um fio narrativo, no entanto, à medida que avançamos na
leitura parece elaborar-se uma espécie de alegoria ou fabulação, um tanto
nebulosa. Na primeira parte da composição, apresenta-se uma personagem,
Aniki — um pássaro, se observarmos na gravura da página seguinte do livro
—, que possui duas cores, o azul e o encarnado; enquanto na segunda, as
cores aparecem relacionadas à sua “rara coleção”, eram azuis o seu “colchão
de molas” e as suas “lâminas de barbear”, mas estas, quando vista de perto,
eram “vermelhas por antecipação”.
7faces • 235
Já na terceira parte, ocorre uma ação: “do alto de seu azul Aniki via tudo
encarnado. Por isso se mudou de seus pagos: não conseguiu desinfetá-los”.
Num movimento imigratório, ele “veio para o país dos sociólogos, trazendo
suas giletes, cujo país é um esqueleto com nádegas obesas e gordas”. Eis a
quarta e última parte:
Se Aniki Bóbó constrói-se como uma fábula, e como tal apresenta no fim
da narrativa um ensinamento ou uma moral, decerto não pertenceria
estritamente a esse gênero literário. Embora se possa inferir alguma
pedagogia na história de Aniki, ao fim da leitura não temos muita clareza
nem certeza do que realmente se trata. Apenas um leitor familiarizado com
a obra de João Cabral de Melo Neto, a meu ver, poderia aceder, numa
perspectiva metalinguística, ao significado mais amplo dessa fábula
poética. Como bem observou Augusto Massi (2016, p.41), é bastante
representativo que a última palavra do livro seja “trabalho”, uma palavra-
chave no programa cabralino. Do ponto de vista estético e ético, o trabalho
aparece desde muito cedo na poética cabralina quer no título O engenheiro
(1945), que acabou por se tornar o epíteto mais célebre do poeta, quer
como método de criação artística teoricamente em Poesia e composição
(1952)3. Igualmente, o elogio do labor, maquinal ou artesanal, manifesta-
se em vários momentos na própria obra assim como no reconhecimento
de seus pares, na produção de artistas visuais e poetas — lembremos, por
exemplo, o “Elogio da usina e de Sophia de Mello Breyner Andresen”, ou o
elogio a Miró, o “sólido artesão da Catalunha” (MELO NETO, 1997, p.49).
Encontramos ainda a palavra “fábula” em quatro poemas de João
Cabral: “Fábula de Anfion”, parte de Psicologia da composição (1947);
“Fábula de Joan Brossa”, de Paisagens com figuras (1956); “Fábula de um
arquiteto”, de A educação pela pedra (1966); e “Fábula de Rafael Alberti”,
de Museu de tudo (1975). Todas funcionam, cada uma à sua maneira, como
alegorias acerca do trabalho artístico. Nas dedicadas aos espanhóis,
destaca-se, em Brossa, o afastamento da vertente surrealista, mais
“mística”, em favor das “coisas espessas / que a gravidez pesa ao chão”
(MELO NETO, 2014, p.222) e, em Alberti, igualmente, o abandono do “jogo
7faces • 236
aéreo” em busca do caminho inverso, “da palavra à coisa” (p.535), Noutra,
a dirigida a um arquiteto — sabemos, Le Corbusier, num comentário à
Capela Notre Dame du Haut, em Ronchamp —, compõe-se uma crítica
àquele que, na contramão dos poetas espanhóis, se afastou de um
construir aberto, “ar luz razão certa”, para erguer “opacos de fechar”
(p.455). Na de Anfion, narra-se a recusa de Anfion à “injusta sintaxe”
(p.146) de Tebas, edificada ao acaso pelo soar de sua flauta, diante da
falência de um projeto de uma cidade: “Desejei longamente / liso muro, e
branco / puro em si // como qualquer laranja / leve laje sonhei / largada
no espaço.” (p.147).
Ora, as fábulas cabralinas são sobretudo metapoéticas, e como tais se
estruturam a partir de determinados valores que orientam a estética e a
ética da criação e do criador. Assim, no gesto final de Anfion, de jogar a
flauta “aos peixes surdos-mudos do mar”, recusa-se sobretudo o
instrumento inadequado à sua utopia construtivista e que não lhe permite
construir uma cidade justa, leve e clara, a cidade “civil sonhada”. Espelha-
se em Anfion aquilo que é exigido por João Cabral para a poesia: não
aceitar o obscurantismo do mistério e o caos da espontaneidade no
processo de criação, eliminando assim a desmesura, em defesa do
planejamento racional e das medidas justas. Apesar do fracasso anfiônico,
que põe em cena os limites do sonho civil e da falha, num investimento
crítico-teórico, mantém-se o compromisso ético na permanente reflexão
acerca das suas escolhas estéticas. Num desenlace triunfante, Aniki é o
“anti-Anfion” (2016, p.23), pois cumpre o seu objetivo de limpar o excesso
cromático do país, à exceção do azul e do encarnado, as duas cores que
possuía previamente. O sucesso da empreitada, nesse caso, parece estar
ligado rigorosamente ao instrumento, aqui apropriado ao desejo de seu
proprietário, porque as suas muitas “lâminas de barbear” têm as
qualidades necessárias à prática de depuração: a crueldade, a violência, a
agudeza. O ideal de justeza e justiça, descrito na “Fábula de Anfion”, só
poderia ser atingido com a substituição do mau instrumento — a flauta —
e mediante a serventia de uma afiada e impiedosa lâmina, objeto que Aniki
empunha, objeto cabralino por excelência.
Dentro de uma perspectiva cronológica, Aniki Bóbó situa-se nos fins da
década de 1950, período crucial na consolidação da poesia cabralina, no
contexto das publicações de O cão sem plumas (1950), O rio (1954) e Duas
águas (1956) — coletânea que inclui os inéditos Morte e vida severina,
Paisagens com figuras e Uma faca só lâmina. E inclusive de dois livros
escritos nos anos 50, mas publicados nos primeiros anos da década
7faces • 237
seguinte: Quaderna (1960) e Serial (1961). Neles se encontram alguns
fragmentos que nos ajudam a perceber de modo mais concreto o jogo
abstrato proposto por João Cabral. Na expressão “país dos sociólogos” e
na sua qualificação “esqueleto com nádegas obesas e verdes” podemos
reconhecer um eco de Morte e vida severina e O cão sem plumas, obras
que junto com O rio formam uma trilogia, uma espécie de cartografia
geográfica, humana e social da desigualdade em Pernambuco,
extensivamente no Nordeste brasileiro, um retrato de uma terra de
contrastes. De um lado, uma miséria coletiva, exemplar em certos
contextos:
Algo da estagnação
das árvores obesas
pingando os mil açúcares
das salas de jantar pernambucanas,
por onde se veio arrastando.
(É nelas,
mas de costas para o rio,
que ‘as grandes famílias espirituais’ da cidade
chocam os ovos gordos de sua prosa.
Na paz redonda das cozinhas,
ei-las a revolver viciosamente
seus caldeirões de preguiça viscosa)
(p.166)
7faces • 238
verdes, o excesso dos mil açúcares extraído do verde canavial. Nesse
sentido, Aniki é contundente como o despido e extremo cante “a palo
seco”, do qual se retira “higiene ou conselho” (MELO NETO, 2014, p.341).
Fazendo frente a qualquer excesso, “toda uma crosta viscosa / resto de
janta abaianada”, que cega a lâmina tirando assim seu gume, o “gosto de
cicatriz clara”, conserva-se somente o essencial, o que é “faca”, “as
mesmas palavras / girando ao redor do sol” (p.414). Afinal, o pássaro tem
um quê de retirante, de Severino, e as suas giletes um quê de uma faca só
lâmina, “toda impiedade / de lâmina azulada” (p.284).
Tendo em conta essas relações, haveria espaço para Aniki Bóbó na obra
de João Cabral de Melo Neto? O poema-gráfico naturalmente não foi
incorporado pelo autor à sua obra completa porque, como sabemos, o seu
projeto literário direcionava-se à construção de uma arquitetura. Como se
traçasse uma planta baixa antes da construção de uma casa, o poeta dizia
desenhar a ideia do livro para depois, conforme a estrutura
preestabelecida, compor os poemas. E, nesse sentido, foi uma escolha
coerente. Se tivesse a hipótese de ser incluído por Cabral, Museu de tudo
(1975) seria um espaço possível, como notou Sérgio Alcides, visto que o
livro é uma reunião de composições produzidas entre os anos de 1946 e
1974, apresentando uma espécie de retrospectiva cabralina. Nele
encontramos poemas “ilustrativos”, os quais estavam ligados a
circunstâncias específicas, como “Exposição Weissmann”, por exemplo, e
era o texto de apresentação da exposição do escultor brasileiro Franz
Weissmann, como indica-nos o título, realizada em Madrid em 1962.
Seguindo a perspectiva de João Cabral, é fácil inferir que Aniki Bóbó, ao
contrário dos poemas de seu museu, seria um projeto à parte. Motivado
pelos desenhos de Aloisio, a sua peculiaridade reside justamente na
componente gráfica intrínseca à obra, assim haveria uma perda
significativa se somente a parte escrita fosse reproduzida.
Mas por que o livro continua fora das edições da obra completa hoje? A
última edição da Poesia completa, como referimos anteriormente, integra
um projeto menos do poeta e mais do avô João Cabral. Ilustrações para
Dandara, inédito publicado em 2011, era um álbum artesanal composto
por poemas-ilustrações escritos pelo poeta-avô que se relacionavam, cada
um, imediatamente com uma das fotografias de sua neta que recebia em
Dacar, no Senegal, onde era embaixador. Projeto da “Editora do avô”, de
1975, segundo a folha de rosto, as ilustrações em verso, apesar de suas
dimensões privada, familiar e afetiva, foram a posteriori fixadas no
conjunto da obra do autor, enquanto Aniki Bóbó não — é uma questão que
7faces • 239
fica suspensa à espera da nova edição que assinalará o centenário do
poeta.
Num contexto mais alargado, da investigação da materialidade do livro,
o projeto gráfico de João Cabral com Aloiso Magalhães remete-nos ao
projeto editorial do selo “O livro inconsútil”, pequena oficina criada pelo
poeta no período de 1947 a 1950, em que vivia em Barcelona exercendo
funções diplomáticas. Como consequência de uma recomendação médica
para fazer exercícios físicos, João Cabral adquiriu uma prensa manual, da
marca Minerva, e com a ajuda e os ensinamentos de Enric Tormo — seu
mestre tipográfico, homenageado no poema “Paisagem tipográfica” —,
acabou imprimindo uma série de edições artesanais: quatorze títulos,
todos dedicados à poesia4. Suas atividades editoriais foram suspensas no
fim de 1950 quando foi “removido” para o Consulado do Brasil em Londres,
onde permaneceu até 1952, ano em que é convocado pelo Itamaraty a
regressar ao Brasil, para responder uma acusação de atividades
subversivas. De volta ao Recife e integrado ao seu círculo sócio-cultural,
João Cabral incentiva e fornece orientação técnica a um grupo de jovens
intelectuais e escritores, do qual fazia parte o seu primo Aloisio Magalhães,
um jovem pintor na altura, contribuindo, com sua experiência como
tipógrafo e editor, para a fundação de O Gráfico Amador5.
7faces • 240
Ao estampar poéticas visuais, desde a palavra enigmática às páginas
inconsúteis e de cordão, o inventivo Aniki Bóbó se desdobra entre o
cinema, as artes visuais e a poesia. Nesse contexto, Aloisio, com os
recursos que tinha à mão, o “clichê de barbante” e o pochoir, imprimiu em
folhas soltas ilustrações de um pássaro, imaginado a partir daquele nome.
Ao ver o resultado do trabalho, João Cabral propôs o caminho inverso:
ilustrar os desenhos com um texto, ao contrário do processo habitual, no
qual a escrita precede a imagem. Num gesto tipicamente cabralino, o poeta
daria à peça de improviso uma componente planejada, o poema. É bem
provável que o poeta tenha participado no projeto gráfico da edição, bem
como noutras etapas da sua composição, um desses indícios é uso do tipo
Bodoni, o preferido de João Cabral e o qual sempre usava nas impressões
dos livros inconsúteis. Para além da paixão pela tipografia, o envolvimento
de Cabral nesse experimental projeto, e amplamente na fundação da
editora, demonstra um engajamento artístico, iniciado em Barcelona, com
a sua pequena oficina. Afinal, a arte de confeccionar livros artesanais,
assim como a arte da poesia, exige rigor e domínio técnico, por isso, os
anos dedicados à prática gráfica e editorial eram, com efeito, um
alargamento de sua pesquisa estética.
Se é plausível a hipótese de que Aloisio Magalhaes tenha lido algures o
nome Aniki Bóbó numa menção à obra de Manoel de Oliveira, que na altura
da publicação do raro livro já completava mais de quinze anos de estreia;
ou que existisse um brinquedo pernambucano, talvez relacionado com a
cantilena de origem popular entoada no filme português, daí a memória de
uns dos versos da rima infantil — “Passarinho, totó” — poderia ter
sugestionado a imaginação do ilustrador. Há claramente um aspecto lúdico
nas ilustrações visuais e textuais, remetendo-nos ao universo infantil
retratado no filme, ainda que esta relação seja inferida por nós enquanto
interlocutores. De fato, a perspectiva atual nos permite reconhecer em tais
obras temas recorrentes tanto da obra do realizador — a culpa, o pecado,
o desejo, a morte; o conflito entre o humano individual e o humano social,
entre outros — quanto da obra do poeta — o número quatro, o trabalho,
a presença relevante da palavra lâmina na narrativa, por exemplo. Ao
estampar poéticas visuais, desde a palavra enigmática às páginas
inconsúteis e de cordão, o inventivo Aniki Bóbó se desdobra entre o
cinema, as artes visuais e a poesia.
7faces • 241
Notas
Referências
7faces • 242
MELO NETO, João Cabral de. Poesia completa. Lisboa: Glaciar, 2014.
MELO NETO, João Cabral de. Prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
OLIVEIRA, Manoel de. Aniki-Bóbó. Porto: 70 min, 1942.
PINA, Manuel António. Aniki-Bóbó. Porto: Assírio & Alvim, 2012.
SARAIVA, Arnaldo. Dar a ver e a se ver no extremo – O poeta e a poesia de
João Cabral de Melo Neto. Porto: Afrontamento, 2014.
Agradecimento
Agradeço à Valéria Lamego por ceder, gentilmente, as imagens de
divulgação de Aniki Bóbó, e à Cinemateca Portuguesa, pela cedência das
imagens do filme de Manuel de Oliveira.
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Intertextualidade e intersemiose em
Morte e vida severina
por Darío Gómez Sánchez
7faces • 244
que apresenta pela primeira vez Serial; A educação pela pedra (1966);
Museu de tudo (1975); Auto de frade (1984) e Crime na calle Relator
(1987). Em 1969 ingressa na Academia Brasileira de Letras.
Oscilando entre as tendências de vanguarda e a poesia popular, a
principal característica da obra de Cabral é o concretismo ou o
construtivismo estético: uma espécie de sensacionismo objetivo que
se manifesta na referência frequente a objetos sólidos e sensações
táteis, e distante de qualquer confessionalismo romântico. Como ele
mesmo afirma em uma entrevista concedida a revista Manchete em
1976: “a palavra concreta, porque sensorial, é sempre mais poética do
que a palavra abstrata, e que assim, a função do poeta é dar a ver (a
cheirar, a tocar, a provar, de certa forma a ouvir; enfim, a sentir) o que
ele quer dizer, isto é, dar a pensar.” (citado por SOUZA, 2004, p.56)
Morte e vida severina (1956) foi escrita por encomenda para uma
montagem teatral, mas, dado que sua encenação foi descartada,
Cabral decidiu publicá-la como um poema, embora mantendo o
subtítulo “Auto de natal pernambucano”. Este poema dramático conta
a história de um jovem retirante que vai da Serra da Costela, no
interior da Paraíba, seguindo o curso do rio Capibaribe, até chegar a
Recife, no estado de Pernambuco. Em sua peregrinação, Severino só
encontra fome, violência e morte, e quando chega à cidade, depois de
ouvir o diálogo de dois coveiros, pensa em pular de uma ponte, mas a
notícia do nascimento de um bebê o reconcilia com a vida.
Na história da literatura nacional, o trabalho é considerado como
manifestação do Realismo Social do Nordeste ou do Neorrealismo
Brasileiro que, a partir da década de 1930, busca contrabalançar as
tendências experimentais que caracterizam a literatura produzida no
eixo Rio-São Paulo, mas com a particularidade de que, neste caso, esse
regionalismo se realiza num poema e não num romance. Uma
característica marcante desse auto de natal é a maneira como o autor
apresenta a miséria, a fome e a seca com elementos poéticos de
grande plasticidade, transformando a aridez natural da paisagem em
fértil beleza poética.
Do nosso ponto de vista, o interesse da obra reside em ser um
ponto de encontro ou interseção entre a tradição literária e a
modernidade midiática. Com efeito, o poema de João Cabral recupera
vários elementos da literatura ibérica medieval e, ao mesmo tempo,
funciona como uma matriz criativa para a elaboração de textos
contemporâneos em outras linguagens. Ponto de chegada do verbal
7faces • 245
oral e escrito, e ponto de partida do verbal visual ou musical, esta obra
caracterizada pela plasticidade de suas imagens sonoras e visuais se
apresenta como um interessante objeto intersemiótico porque
permite analisar a tradução ou transitoriedade de linguagens como
propriedade da criação artística.
2. Intertextualidade e intersemiose
7faces • 246
poema dramático de João Cabral de Melo Neto, o que nos interessa é
identificar alguns elementos comuns que podem ser analisados nas
diferentes elaborações. Entre as várias possibilidades que surgem,
podemos citar: o uso da linguagem popular, a identidade do sertanejo,
a miséria e a violência no sertão, a paisagem e sua secura, a solidão e
as privações sofridas pelos retirantes. E tais possibilidades podem ser
agrupadas em dois tópicos genéricos: a circunstância da seca, típica da
paisagem do sertão, e a peculiaridade da fala popular nordestina
característica do sertanejo; esses elementos concentram o visual e o
sonoro, e são característicos da estética sensacionista do poema em
questão e da poética geral de Cabral.
7faces • 247
da paisagem e de suas gentes, presente na pintura de Portinari
reaparece elaborada verbalmente no poema de Cabral, numa
linguagem que ― em ambos os casos ― podemos identificar como
expressionista, no sentido de que usa fortes contrastes vitais para
explicar uma situação de injustiça.
Candido Portinari. Retirantes, 1944. Óleo sobre tela 190 x 180 cm.
Reprodução.
7faces • 248
De fato, o poema de Cabral é construído como um forte contraste
entre vida e morte, entre água e terra. Isso ocorre porque, além do
deserto ou Sertão, a paisagem descrita no poema incorpora a chamada
Zona da Mata e a costa ou litoral, e com elas o rio e o mar. A fluidez do
rio também funciona como uma metáfora da viagem do retirante e a
imensidão do mar representa a promessa de chegada à cidade ― e
ainda existe o mangue, como ponto de encontro entre o rio e o mar.
Esses contrastes elaborados de maneira plástica e poética alcançam
uma dimensão estética que supera o cru realismo testemunhal.
Nas adaptações visuais, especificamente na versão televisiva, o
contraste expressionista que dá força ao poema (e à pintura) parece
perder intensidade. De fato, os elementos da paisagem, que
conotados pela palavra (ou pela cor) adquirem um valor mais
expressivo, acabam sendo redundantes quando apresentados
explicitamente. Embora também seja verdade que, no drama
televisivo, o que se perde em possibilidades poéticas se ganha em
recursos técnicos, que favorecem ―de outra forma ― a visualização
do contraste entre água e terra, vida e morte. Assim, por exemplo, a
presença da seca é reforçada pelo foco reiterativo nos raios do sol,
como determinantes da aridez do sertão, e a redenção ou vitalidade
da água é explicitada com os enfoques do rio, como na cena em que o
retirante toma um banho vivificante ― quase uma ablução ― que não
aparece relatada no poema. A versão televisiva parece transferir o
contraste expressionista da paisagem para a caracterização de alguns
personagens, como a mulher na janela, que aparece com uma
gesticulação desesperada e completamente vestida de preto no meio
do candente deserto.
7faces • 249
Devido a sua forma e caráter narrativos, o poema de Cabral pode
ser assimilado a um longo cordel, mas com características particulares
em relação à sua difusão e conteúdo. Também é possível estabelecer
relações entre a forma do poema e seu antecedente mais distante, a
composição narrativa em verso denominada romance castellano.
Como o próprio Cabral admite, seu poema é um tributo às antigas
literaturas ibéricas e, especificamente, a presença do romanceiro se
faz evidente nos monólogos do retirante.
Além da coincidência de elementos formais, como o tipo de verso
e de rima, tanto o romance castelhano quanto o cordel nordestino têm
algumas características temáticas que podem ser encontradas na obra
de Cabral: o tradicionalismo do tema ou personagem, neste caso
relacionado à vida do retirante e à paisagem do sertão; o caráter
episódico ou fragmentário, que nesta história em verso se concentra
na viagem de Severino da Paraíba até Pernambuco, sem especificar a
situação de origem ou seu desenvolvimento posterior; e o realismo da
narração que (exceto alguns cordéis modernos) não envolve fatos ou
eventos fantásticos.
Uma questão a pensar ― indo além da identificação de elementos
formais ou temáticos ― seria por que ou de que maneira o gênero do
romance castelhano medieval reaparece na literatura brasileira
moderna. E poderíamos arriscar que a motivação estaria dada pela
coincidência das circunstâncias próprias de sociedades rurais com
relações socioeconômicas de natureza feudal: dificuldades
econômicas, fome, falta de terra para cultivar, senhorio ou
“coronelismo” são alguns dos elementos comuns ao contexto em que
surgem o romance castelhano, o cordel pernambucano e a obra de
Cabral ― embora seja apenas neste último que esses elementos sejam
explicitamente incorporados ao tema com uma espécie de realismo
social que não encontramos na composição hispânica tradicional e
dificilmente no cordel nordestino na atualidade.
Porém, menos do que essa relação histórico-formal, o que
estamos interessados em destacar é que a reiteração do mesmo tipo
de verso e do mesmo esquema de rima confere ao poema de Cabral
um ritmo particular que se assemelha a uma reza ou, mais
exatamente, a uma ladainha ou litania, um ritmo que pode estar
relacionado com a reiterada presença da morte na maioria dos
quadros do poema. Mas advertindo que não há nada de dramático ou
desesperado nessa presença: Severino se encontra com a morte a cada
7faces • 250
momento como se fosse apenas mais um elemento da paisagem. E
esse ritmo de prece ou litania reforça o tom calmo, de aceitação,
presente em toda a peça, mesmo quando Severino pensa em tirar a
própria vida. Assim, a atualização do gênero medieval está justificada
não só estilisticamente, porque faz parte da tradição literária
peninsular (romance) presente na cultura do nordeste (cordel), mas
também porque cria uma espécie de cenário rural-feudal que,
reforçado pelo ritmo da litania, entra em relação direta com os temas
propostos.
Já no plano da intersemiose, teríamos que analisar se aquela
atmosfera feudal e o ritmo da ladainha que caracterizam o poema, e
que estão relacionados com a origem medieval do intertexto e com o
conteúdo lutuoso do texto, permanecem ou se transformam na nova
linguagem. Para isso, nos detemos na musicalização de alguns
fragmentos feita por Chico Buarque para a produção teatral de 1965 e
que também é incorporada ao drama televisivo de 1981.
E aqui é interessante referir uma anedota: diz-se que, justificado
pela intenção de manter a riqueza rítmica do texto apenas na
linguagem verbal, Cabral não autorizou a musicalização do poema.
Ignorando a proibição, porém, o jovem compositor do Rio de Janeiro
realizou seu trabalho e somente após o prêmio obtido pela peça no
festival de teatro de Nancy o poeta acabou aceitando a difusão das
músicas que, ao longo dos anos, se tornaram tão ou mais populares
que o poema.
A repetição ou monotonia do ritmo do texto gera uma linha
melódica apropriada à expressão dos sentimentos de tristeza, a qual
temos relacionado à litania. Dado que na rima, tecnicamente, ocorre
uma diminuição do tom, pode-se dizer que o poema é caracterizado
por um tom bemolizado, no sentido de que o bemol diminui meio tom.
Mas aqui devemos reconhecer nossas limitações teóricas com relação
aos aspectos técnicos da música. O fato é que as músicas de Buarque
reiteram e aprimoram o tom monorrítmico e a redução tonal,
ajustando-se à forma e ao conteúdo do poema. No entanto, também
é possível afirmar que elas quebram a unidade rítmica do texto original
de várias maneiras.
Uma evidência dessa perda de unidade é que na versão teatral
nem todo o texto é musicalizado. Os monólogos do retirante, por
exemplo, não são. E no caso dos diálogos, é frequente que apenas os
parlamentos de um dos personagens sejam musicalizados, como no
7faces • 251
diálogo de Severino com a mulher na janela, o que gera uma
dissonância rítmica que não faz parte do texto original. Também é
verdade que essa alteração da unidade do ritmo poético atinge
momentos de magistralidade, como na música “Funeral do lavrador”,
na qual a velocidade do ritmo poético é aumentada com a melodia e
são repetidos alguns versos finais da estrofe, o que que dá à música
um dramatismo que o poema não possui e que aprimora sua
performance no palco.
Assim, poderíamos dizer que é precisamente a busca desse efeito
dramático com vista à representação teatral o que legitima a versão
musical. Portanto, não é uma adaptação, mas uma nova criação, outra
linguagem para outro contexto e com outra intenção. E, embora o tom
monorrítmico e a litania sejam preservados, a combinação de fala,
música e variações musicais gera uma transformação total do texto
original.
Concluindo, poderíamos afirmar que, tanto nas composições
musicais quanto na versão televisiva, o que acontece não é uma
adaptação do poema cabralino, mas a criação de um novo texto, outra
obra na qual é possível identificar alguns elementos do texto original
(como versos, caracteres ou atmosferas), mas com um status artístico
único e original. E essa singularidade ou originalidade característica da
intersemiose exigiria uma conceituação particular, mas por enquanto
permitem confirmar a grandeza da obra de Cabral.
Referências
7faces • 252
Melo Neto”. In: Boletim campineiro de Geografia, v.2, n.2, p.322-340,
2012.
PORTINARI, Candido: Retirantes. Óleo sobre tela, 190 x 180 x 2,5cm,
1944, Museu de Arte Moderna de São Paulo.
SECCHIN, Antonio Carlos. João Cabral: a poesia do menos. São Paulo:
Duas cidades; Brasília: INL, Fundação Nacional Pró-Memória,1985.
7faces • 253
Sob o signo das águas: João, o cão e suas
plumas
por Francisca Luciana Sousa da Silva
Introdução
7faces • 254
prova que “um ser vivo pode brotar de um chão mineral” (MELO NETO,
2008, p.228).
Aquele rio
era como um cão sem plumas.
(MELO NETO, 2008, p.82)
7faces • 255
teatros” (MELO NETO, 2008, XXXIII). Feito sob encomenda, ganhou
diferentes montagens em todo o país e fora dele, com música do então
estreante Chico Buarque de Holanda, além de versões para o cinema
e a TV (1966, 1977, 1981); uma das mais recentes adaptações foi para
a TV Escola em animação 3D pelas mãos do cartunista Miguel Falcão
(2012).
Nesse sentido, entendemos ser de grande relevância a recepção
crítica em torno de poemas capitais como os apontados, mas
interessa-nos, especialmente, a recepção estética, neste texto, a
dança contemporânea da Companhia Deborah Colker. Considerando
o que é próprio da poética cabralina (a predileção pela objetividade,
pelos substantivos e verbos, pelas imagens telúricas e também
existenciais), como o literário se materializa no espetáculo de Deborah
Colker Cão sem plumas (2017) a partir do poema homônimo de João
Cabral de Melo Neto? Como a tensão verbo-corpo-imagem seduz,
emociona, comove ou incomoda diferentes públicos numa montagem
assumidamente visceral? Em que medida dialogam com outro poema
“paisagístico”, cujo eu-lírico está no próprio título ― O rio (1953)?
Nossa hipótese geral é a de que há um corpo que dança e que se pensa
enquanto dança. Há outros corpos ― em transe, em trânsito. A tensão
em torno de um corpo poético, conforme ensinamentos de Jacques
Lecoq (1921-1999), professor, diretor de teatro e mímico, fundador da
escola que leva seu nome ― a École Internationale de Théâtre Jacques
Lecoq ― é o mote para a investigação em curso, aproximando imagens
como o fluir do rio e o devir do corpo, a aridez da terra em corpos
áridos, embrutecidos. Silenciados sim, mas nada silenciosos. Além dos
corpos, assim nos ensina o historiador, medievalista literário e
linguista Paul Zumthor (1915-1995), o espaço também performa
(ZUMTHOR, 2014), sendo mais um bailarino.
Homenagear o poeta lançando luz sobre um dos seus poemas
capitais, O cão sem plumas (1950), trazido à cena por Deborah Colker,
constitui-se nosso principal objetivo. Em seguida, identificar e analisar,
em diferentes momentos do espetáculo, pontos de tensão, levando
em conta as escolhas estéticas da companhia, entre elas, o vídeo e a
música. Para tanto, propomos uma relação das oito cenas do
espetáculo Cão sem plumas com as quatro partes assinaladas pelo
poeta João Cabral de Melo Neto. Em seguida, associá-las com o longo
poema O rio. Com isso, acreditamos contribuir com pesquisas em
Literatura Comparada, Artes e áreas afins, como as de Rafaela de
7faces • 256
Abreu Gomes, autora da dissertação intitulada João Cabral, um poeta-
crítico (2015) e do livro Um vislumbre a caminho: a humana poesia de
João Cabral (2019). Em 2020, é a vez de celebrar o centenário do poeta
e o do poema que abre este texto4, com o qual dialoga, como se verá,
com o firme propósito de privilegiar a vida e não a morte do poeta,
que permanece muito vivo entre nós através da força de suas palavras.
Isso posto, propomos uma breve fundamentação teórica que
servirá de aporte para alguns campos conceituais adotados, como
recepção, performance, intertextualidade e tradução intersemiótica.
Em seguida, apresentamos a análise dos dados coletados em pesquisa
de caráter qualitativo-exploratória, além de bibliográfica. Nosso
corpus, além do livro, inclui o próprio espetáculo (visto em Belo
Horizonte, em agosto de 2018, e em Fortaleza, em março de 2019), os
vídeos da companhia de dança publicados nas plataformas Vimeo e
YouTube, além dos encartes do espetáculo. Na sequência, os
resultados colhidos dessa investigação cheia de atravessamentos
enviesados, pedras e poucas plumas.
7faces • 257
receber) sensorialmente o literário “para poder induzir alguma
proposição sobre a natureza do poético” (ZUMTHOR, 2014, p.27),
tanto no poema de Cabral quanto no espetáculo Cão sem plumas.
Alinhado às nossas inquietações, ele indaga sobre o papel do corpo na
leitura e na percepção do literário.
7faces • 258
(filme, canção, dança, acrobacia), tem o corpo como matéria-prima e
há muito investiga sua relação com o movimento e o espaço: Velox
(1995), Rota (1997), Casa (1999) e 4 por 4 (2002). Em Nó (2005), o
tema é o desejo, com remontagem em 2012 e reestreia em 2018, em
Minas Gerais e São Paulo, chegando a Fortaleza em 2019.
Neste artigo, consideramos dois textos, no sentido mais amplo do
termo, um de partida ― O cão sem plumas (1950) ― e outro de
chegada ― Cão sem plumas (2017), ao qual também se aplica o
conceito de intertextualidade e seus desdobramentos (SAMOYAULT,
2008), como a citação. A já referida companhia de dança empreende
um processo de reescrita, “vital para a literatura contemporânea, sob
a forma de tradução intrassemiótica (dentro do mesmo código) ou
intersemiótica (de um para outro código)” (OLIVEIRA, 2012, p.63). As
duas se materializam no espetáculo, considerando trechos do poema
lido em português e inglês, mas prevalece a chamada tradução, ou
transposição, intersemiótica. Em “O texto traduzido: do intra- ao inter-
semiótico” (2012, sic), Oliveira destaca a obsessão das criações atuais
a partir de recriações em códigos distintos do originalmente
construído. A pesquisadora cita alguns exemplos das artes visuais (Van
Gogh, Francis Bacon, Velásquez, Rodin), mas não deixa de remeter a
outras artes e mídias ― Literatura, Cinema, Música ― que também
têm ocupado a crítica contemporânea. Ela nos lembra que o processo
de reescrita (ou reescritura, como prefere Julia Kristeva) “pode
acumular camadas sucessivas de citações, superpondo leituras de
releituras de releituras” (OLIVEIRA, 2012, p.64), como faz Colker não
só com o poema em pauta, mas com outros elementos culturais de
Pernambuco, como o maracatu rural, o jongo, o coco, ressignificando-
os. A estética do mangue veio à baila e, com ela, suas pulsões e
tensões. Passemos a elas.
7faces • 259
dos músicos que dele participa, assim o resume: “É uma ópera da
lama, do rio. Uma ópera ácida como as palavras certeiras de João
Cabral” (Catálogo do espetáculo, 2017). Mas antes da análise
propriamente dita, cumpre apresentar uma síntese sobre cada uma
das obras.
O rio
7faces • 260
2016, quando coreógrafa, cineasta e toda a companhia
viajaram durante 24 dias do limite entre sertão e agreste
até Recife.
[...]
[...]
7faces • 261
ou Relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade
do Recife: “Sempre pensara em ir / caminho do mar. / Para os bichos
e rios / nascer já é caminhar / Eu não sei o que os rios / têm de homem
do mar; / sei que se sente o mesmo / e exigente chamar” (MELO NETO,
2008, p.95). Deborah e sua companhia ouvem o chamado. Qual o rio,
eles se dão conta que já se nasce descendo: Rio – Homem – Cão. O
primeiro verso de O cão sem plumas sugere a síntese do espetáculo,
que abre com “Aluvião”, até encerrar com “Cidade”. Vemos, pois, o
atravessamento em diferentes nuances: poéticas, experimentais,
visuais.
Passando quadro a quadro, lemos / vemos, em Paisagem do
Capibaribe I, relações de oposição e complementaridade, poder e
subserviência ao longo das quinze estrofes. O concreto e o abstrato, a
essência e a matéria ora se tocam, ora trocam de lugar, o que
certamente sugerirá alguns dos movimentos cênicos do espetáculo
Cão sem plumas com o indivíduo e o coletivo irrompendo no palco.
Dito de outro modo, predomina a imagem do rio, em seguida a do cão
e suas variantes, para só então tratar do homem e suas relações (a
partir da segunda parte do poema). O desafio da dança é mostrar tais
imagens, nem sempre de forma linear ou ordenada, valendo-se do
próprio corpo, mas com forte aparato técnico, incluindo o audiovisual,
que não prescinde do que chamamos corpo poético (LECOQ, 2010). A
professora e crítica literária Flora Süssekind (1955- ), em Compasso de
prosa – Voz, figura e movimento na poesia de João Cabral de Melo
Neto (1993) sugere desdobramento de palavras / imagens. Trata-se de
uma percepção cara ao poeta, que reconhecia em sua poética um
traço bastante visual.
Absolutamente nada escapa aos olhos da artista Deborah Colker,
que leva para a cena o que há de substancial na poética cabralina: os
seres concretos e suas relações abstratas ou abjetas, ressignificando,
por um lado, reverenciando, por outro, aquilo que o poeta cantou em
terras distantes (estava em Barcelona quando compôs o poema) sem,
contudo, esquecer seu lugar de origem (Aquele rio está na memória...).
Recupera-se o que segue no fluxo da viagem e o que vai em suas
margens, incluindo a exploração desregrada da natureza e a do
homem pelo homem, presentes em “Paisagem do Capibaribe II” e
“Fábula do Capibaribe”. A composição engenhosa de humanizar
outros seres e coisas e seu reverso ― a desumanização ― aparece ao
longo dos treze versos da segunda parte e dos quinze da terceira. O
7faces • 262
labor e o temor no manguezal, no canavial, na fábrica, na indústria são
lembrados, além do esvaziamento de sentidos e mesmo de fazeres. Os
vazios do homem. Na quarta e última parte do poema, “Discurso do
Capibaribe”, composta de nove estrofes, identificamos um tom mais
reflexivo, mesmo existencial, já presente nos versos anteriores, mas
de forma menos incisiva, contundente. É o que lemos por exemplo
em: “O que vive / incomoda de vida / o silêncio, o sono, o corpo /que
sonhou cortar-se / roupas de nuvens. / O que vive choca, / tem dentes,
arestas, é espesso.” (MELO NETO, 2008, p.90)
A última palavra, espesso, é recorrente nas demais estrofes para
caracterizar o cão, o homem, o rio e outros seres ou circunstâncias,
além de sintetizar o próprio poema e as imagens que ele evoca,
algumas delas densas por natureza: o mangue, o sangue. Bem mais
espesso é o longo poema narrativo publicado três anos depois, a cujas
“lembranças pessoais o poeta acrescentou o rigor de informações,
narrando em detalhes a história do rio e o que acontece em seu
percurso” (Catálogo do espetáculo, 2017, não paginado). O verbete
sobre o poeta na Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras
discorre sobre as obras aludidas, endossando alguns aspectos já
levantados: a preocupação com a temática social, a pobreza crônica e
a aridez do cenário nordestino filtradas pelo rigor da construção,
exaustão no trabalho com a palavra, múltiplos sentidos. Não só em O
cão sem plumas, mas no livro seguinte, O rio, a matéria social será
acentuada, em articulação com a estrutura formal. O Capibaribe, rio-
detrito, cuja sujeira e população a viver em condições subumanas
refletem o que há de trágico na história da miséria e do atraso do país.
Uma das leituras que fazemos desse tríptico (O rio ou Relação da
viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife, O cão
sem plumas e Morte e vida Severina) é a de que a aridez esboçada é
também literária e literalmente corporificada, reiteradamente
presente ou atualizada em diferentes esferas, pessoais e coletivas, em
signos espaciais (cidade, rio, rua, mangue, hospital, penitenciária,
asilos, palácios...), materiais (cachorro, fruta, espada, plumas, peixes,
ferrugem...) e híbridos (fonte, brisa, lodo, lama, brilho, inquietação,
negro, parto, silêncio...). Muitos desses signos repetem-se ao longo do
poema ou numa mesma estrofe, prestando-se à análise da semiose
discursiva, ou mais precisamente da tradução intersemiótica, dada a
concorrência de diferentes códigos (visuais, sonoros, musicais,
performáticos) e mesmo intrassemiótica, por haver tradução de
7faces • 263
versos de João Cabral em língua inglesa na sua montagem para o palco.
Da Literatura Comparada, em diálogo com a Linguística e a semiose
discursiva, empreendemos nosso olhar analítico, reconhecendo gesto
similar na montagem do espetáculo multimídia de Deborah Colker.
Dar vazão à palavra poética com e como o rio cantado pelo poeta,
assim se afigurou este trabalho de muita força e fluidez, de mergulho
profundo na aridez do sertão, na hibridez do agreste até alcançar a
cidade, esse palco de múltiplas contradições.
Os versos da segunda e quarta parte, respectivamente, do poema
cabralino em discussão, entre outras passagens, inclusive de outros
poemas (“Uma faca só lâmina”, por exemplo), não só ilustram o
catálogo do espetáculo, como também dão o seu tom: bailarinos viram
bicho (s). São cães, caranguejos e garças (“É nelas, / mas de costas para
o rio, / que ‘as grandes famílias espirituais da cidade’ /chocam ovos
gordos / de sua prosa”), além de homens bestializados (“bicho-
homem”, como prefere a coreógrafa e diretora Deborah Colker),
sendo o caranguejo o principal deles, no palco e na tela que faz confluir
imagens para o espetáculo, em filme do também pernambucano
Cláudio Assis. Representam, portanto, os subalternos e a elite. Um
trabalho de imersão cuja projeção amplia as possibilidades
interpretativas a cada nova experiência, além de realçar a beleza de
cada linguagem: verbal, audiovisual, performática. Tudo é imagem, os
versos de Cabral o atestam, o que muda é o suporte: em vez de livro,
palco, tela, fotografia, música. Antes, porém, há que se alcançar
acabamento ou apuramento estético.
Colker, também conhecida pelo apuro técnico, não se furtou de
imprimir no corpo dos bailarinos essa secura muito própria de quem
vem do agreste, na fala, nos gestos, na geografia. Também ela
emprega o seco porque já não é possível combatê-lo: há que se
conviver com ele e tirar-lhe algum proveito. É Pernambuco falando
para o mundo com sotaque carioca: em coco, jongo, maracatu rural,
samba e até kuduro. O resultado: uma ode ao belo e suas inquietações.
Trata-se de um balé moderno, contemporâneo que não só faz
referência, mas também reverencia a terra e seus mistérios, bichos e
encantos; a água e suas metamorfoses, que ora sacia, ora resseca,
como a terra; o ar e suas criaturas semoventes; o fogo, que tudo
devora, mas também alimenta.
7faces • 264
Cão sem Plumas, de Deborah Colker. Fotografia: CAFI.
7faces • 265
Conclusão
Notas
7faces • 266
Folha da Manhã, em São Paulo; a outra de 1949, publicada no Jornal
Popular de Lisboa.
Referências
7faces • 267
JOÃO Cabral de Melo Neto. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e
Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2019. Disponível em:
<http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa3026/joao-cabral-
demelo-neto>. Acesso em: 09 de set. 2019.
LECOQ, Jacques. O corpo poético. Uma pedagogia da criação teatral.
Trad. Marcelo Gomes. São Paulo: Editora Senac; Edições SESC, 2010.
MELO NETO, João Cabral. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 2008.
OLIVEIRA, Solange Ribeiro de. Perdida entre signos: Literatura, Artes
e Mídias, hoje. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2012.
PETROBRAS, Catálogo do espetáculo Cão sem Plumas. Criação,
coreografia e direção: Deborah Colker. Direção executiva: João Elias.
Filme Cão sem Plumas. Direção Cláudio Assis e Deborah Colker.
Patrocínio Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro / Secretaria
Municipal de Cultura. Realização Je Produções Ltda. Duração 1h10
min. Classificação Livre. Rio de Janeiro: CSP, 2017, 54p.
REALEASE DE CÃO SEM PLUMAS (2017). Disponível em:
<https://www.ciadeborahcolker.com.br/release-csp> Último acesso
em: 31 out. 2019.
SAMOYAULT, Tiphaine. A intertextualidade. Trad. Sandra Nitrini. São
Paulo: Hucitec, 2008.
SÜSSEKIND, Flora. “Com passo de prosa – Voz, figura e movimento na
poesia de João Cabral de Melo Neto”. Revista USP, n.16, 1993, p.93-
102.
VALÉRY, Paul. O Azul e o Mar. Trad. Eduardo de Campos Valadares.
Cotia: Ateliê Editorial; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2019.
VALÉRY, Paul. O cemitério marinho. Trad. Jorge Wanderley. Rio de
Janeiro: Orfeu, 1949.
YOKOZAWA, Solange Fiuza Cardoso. “Textos fundadores da recepção
crítica luso-brasileira de João Cabral de Melo Neto”. In: Navegações,
v. 12, n.1, p.112-121, jan.-jun. 2018.
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Trad. Jerusa Pires
Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
7faces • 268
Traços anticabralinos na poesia de
Ana Cristina Cesar
por Mariana Bastos
7faces • 269
A própria Hollanda ressalta no grupo, além da feitura e
distribuição manual do livro pelos próprios poetas, a coloquialidade,
“a presença de uma linguagem informal” a fim de encurtar a distância
entre autor e leitor; “a desierarquização do espaço nobre da poesia”;
a recusa das correntes experimentais de vanguarda; “o flash cotidiano
e o corriqueiro”, que “muitas vezes irrompem no poema quase em
estado bruto e parecem predominar sobre a elaboração literária”; a
“fragmentação de instantes aparentemente banais”; os traços
bandeirianos; a “renovação dos impulsos desclassicizantes do
modernismo”, “a volta da alegria, da força crítica do humor, da
informalidade”; “o teor altamente afetivo”; a presença de João Cabral
como estímulo e amarra; e a “atualização da recusa ao convencional”
(HOLLANDA, 2007, p.9-12).
Esse “traço anticabralino” será retomado por Ana Cristina Cesar
em seu artigo “Nove bocas da nova musa”, também de 1976,
publicado pelo jornal Opinião. Nele, a poeta1 comenta as faces da nova
poesia brasileira, para ela “anticabralina por excelência”, uma vez que
ali não há hesitação em introduzir “a paixão, a falta de jeito, a gafe, o
descabelo, os arroubos”. Valendo-se sobretudo das ideias de José
Guilherme Merquior em seu ensaio acerca das tendências da poesia
brasileira a partir dos anos cinquenta, Ana Cristina diz que
7faces • 270
Aqui um salto enorme: em “Visita à oficina”, seção de textos
inéditos de Ana Cristina Cesar em Poética (2013), encontra-se
reproduzido um belo e instigante manuscrito, datado de 30 de
outubro de 1981. Ressalto que, naquele ano, a poeta havia retornado
ao Brasil depois de um tempo fora; em maio, lançado seu terceiro livro,
Luvas de pelica; e escrevia, num caderno de capa dura preta, os
poemas que, no ano seguinte, comporiam a parte inédita de A teus
pés2.
7faces • 271
poesia que sobressai, lúcida, pedra. A poesia que desliza,
embala, aplaina, seduz. O partido.
Me vejo muda entre partidos.
A minha fala então?
Os meus pares, então?
Sob o signo da paixão. Veja o seu signo. Fale. É só falando.
(CESAR, 2013, p.415).
7faces • 272
estabilidade que o movimento. O que perturba o poeta, diz Villaça, “é
o fato de ‘brotar / de um chão mineral’ o ser vivo do verso”, pois “sua
particular mitologia é a de alcançar, por obra das palavras-pedras e
dos signos-cristais, uma natureza sem dor e sem morte, sem inclinação
e sem desejo” (VILLAÇA, 2003, p.147). Mas, enquanto João Cabral tem
a resistência como qualidade, Ana Cristina não resiste.
Como reconhece Marcos Siscar, “a teoria da poesia de Ana C. não
difere essencialmente da de Cabral, no ponto específico da superação
da relação ingênua entre linguagem e realidade” (SISCAR, 2016,
p.109), enquanto, no entanto, é anticabralina, não só por valorizar e
incorporar em seu texto elementos pouco elegantes do cotidiano,
paixões e acontecimentos insignificantes, arroubos pessoais, mas por
questionar “o bloqueio das dissonâncias”, a poesia sem desejo, sem
perturbações.
Para Siscar, o que está em jogo entre os dois poetas, ou entre as
duas gerações, é o modo pelo qual o poema é colocado em relação ao
outro. João Cabral, que não recusaria o poema encomenda (como se
lê em seu famoso texto “Poesia e composição”), suporia ter acesso à
expectativa do leitor, e a completaria de modo exemplar. Para Ana
Cristina sobrepõem-se uma série de entraves e tensões nessa relação,
não se reconhecem as expectativas e não há complementação segura,
ao mesmo tempo em que as dificuldades, os “percalços da destinação”
(SISCAR, 2016, p.123), não vencem (na verdade, parecem reforçar) a
ânsia por esse outro.
7faces • 273
pedagógica, eu reclamava disso, lembra? Me conta uma
história com moral. (CESAR, 1982, p.105)
7faces • 274
O que acontece quando a gente escreve carta? Qual é a
questão fundamental da carta? Que tipo de texto é a
carta? Carta é o tipo de texto que você está dirigindo a
alguém [...] Fundamentalmente, carta você escreve para
mobilizar alguém, especialmente se a gente entra no
terreno da paixão, onde a correspondência fica mais
quente. Você quer mobilizar alguém, você quer que,
através do seu texto, um determinado interlocutor fique
mobilizado.
7faces • 275
dessa poesia. Em muitos poemas a voz poética em João Cabral de Melo
Neto acaba por efetuar um descentramento do sujeito, ao evocar
memórias e paisagens de, como disse Alfredo Bosi (2004), um “fora
sem dentro”, bastante influenciado pelas pinturas sem perspectiva de
Joan Miró. Já Ana Cristina Cesar, mesmo provocando um
descentramento devido às várias vozes que irrompem no poema,
fazendo com que não seja mais possível delimitar, localizar aquela voz,
não deixa de querer lembrar ao leitor que há, por trás daquelas tantas
vozes, e daquele objeto livro, alguém de carne e osso. Em outras
palavras, se a remissão tão característica da obra de Ana Cristina (e tão
avessa ao projeto poético de João Cabral) a um eu biográfico é
parcialmente contaminada pela artificialidade do eu da poesia, a parte
que sobra insiste em dizer que há alguém real por trás daqueles textos.
A segurança de que esse eu real por trás do texto pode, ou deve, ser
associado à poeta, está irrevogavelmente avariada, mas é como se Ana
Cristina quisesse reforçar: ainda que não se possa saber quem, é
necessário se lembrar de que há alguém.
Notas
1 Andréa Catrópa em seu texto “Quem fala nos textos críticos de Ana
Cristina Cesar?” observa como a autora não estava interessada na
“dicotomia rígida entre sujeito criador e crítico, pois a sua poesia
contém, na própria concepção de literatura, uma fonte de reflexão
para seu ensaísmo, o seu método.” ― “A multiplicidade de papéis e
atividades que o nome Ana Cristina Cesar pressupõe não permite que
dotemos esse nome por trás do texto de uma ‘identidade estável’, da
qual, talvez, seja justo supor que o corpo do sujeito empírico seja o
reduto.” (CATRÓPA, 2015, p.146-147).
2 A teus pés (1982), único livro que Ana Cristina publicou por editora
em vida, é composto por três obras que ela havia lançado de forma
independente – Cenas de abril (1979), Correspondência completa
(1979) e Luvas de pelica (1981) – acrescidos de mais um, inédito,
também chamado A teus pés.
7faces • 276
Referências
7faces • 277
7faces • 278
memória
“Esta crítica de Antonio Candido foi para mim uma revelação. Foi ela
que me deu coragem de continuar escrevendo no início de minha
carreira. A situação era a seguinte: aquele grupo que eu frequentava
no Recife era profundamente influenciado pelo surrealismo. Mas o
surrealismo, na minha opinião, sempre foi o traumatismo da escrita.
Como eu era absolutamente incapaz de fazer a tal escrita automática,
com a qual eu não concordava, e, ao mesmo tempo, desejava
continuar fazendo parte do grupo do Café Lafayette, eu forjei um tipo
de surrealismo, quer dizer, meu surrealismo era algo construído.
Quando li o artigo de Antonio Candido, me senti encorajado a escrever
desenvolvendo meu construtivismo.”
7faces • 279
A destacada publicação seguia o objetivo de, entre uma revista e
um livro didático, dar a conhecer parte importante da nossa literatura.
Pareceu lógica a escolha da equipe editorial dedicar o número de
estreia ao criador pernambucano: era o maior nome da literatura
brasileira ainda vivo e parte de um rico grupo dos que ajudaram a
estabelecer suas feições. Avesso a homenagens, no sentido do
derramamento sempre recorrente dessas ocasiões, os editores numa
nota de esclarecimento do material revelado, trataram de dirigir o
sentido dos leitores para o tom do reconhecimento.
O termo parece ainda mais caro quase duas décadas mais tarde,
principalmente porque acompanhamos se formar uma geração mais e
mais marcada pela carência dos sentidos e dos afetos, de egos frágeis
ao mesmo tempo que (ou assim porque) inflados, logo, afeita ao tipo
de aplauso derivado do sentido mais recusado por João Cabral para o
termo homenagear. A mesura, usual no poeta, mas uma recorrência
aos de sua geração parece, definitivamente, na melhor das hipóteses
subvertida; mas no ponto vigente não é blasfêmia dizê-la, perdida.
Talvez por isso os olhos de hoje façam reservas ao autor de O cão sem
plumas; desconhecendo-o parte última de um tempo mais intenso de
sinceridades, preferem, por vezes, a ignorância de não o tocar.
A reprodução do texto a seguir é feita em duplo gesto de
homenagem: ao poeta e ao crítico. E ao termo reconhecimento,
podemos acrescentar que é esta uma maneira particular de saudar
dois nomes do nosso pequeno território intelectual com os quais
muito temos a aprender. Este texto demonstra as implicações
saudáveis, um pouco em falta, entre o exercício da criação e da crítica.
“Poesia ao norte” apareceu pela primeira vez publicamente no
rodapé alimentado por Antonio Candido no jornal Folha da manhã ―
posto que ocupou a partir de 1943 e ficou até 1945. A intervenção
sobre João Cabral data de 13 de junho de 1943. Pedra do sono havia
sido editado há quase um ano, numa tiragem de 340 exemplares, dos
quais, parte foi doada a amigos e quatro dezenas vendidas aos
familiares a fim de recuperar os custos com a publicação.
O que parece mais importante de acrescentar aqui é saber como
o livro do poeta pernambucano chegou às mãos de Antonio Candido.
Conta o crítico que um colega da faculdade foi viver no Recife depois
de iniciar carreira no City Bank; este conhece João Cabral e no ano de
aparição do livro, os dois viajam juntos a São Paulo com destino ao Rio
de Janeiro onde tentariam vaga no concurso para carreira diplomática.
Nesta viagem, a pedido do colega, Cabral autografa e por seu
7faces • 280
intermédio envia ao dele desconhecido crítico um dos exemplares de
Pedra do sono ― os dois só se encontram alguns anos mais tarde.
Assim, a crítica de Antonio Candido, que João Cabral só conhecerá
por intermédio de Carlos Drummond de Andrade muito tempo depois
de publicada, foi a primeira no fechado eixo sudeste do país. E versa
sobre o primeiro livro do poeta com algum entusiasmo e uma reserva
quanto a certo hermetismo da poesia. Sua validade aparece atestada
pela voz do próprio Melo Neto e impressa nos rumos que tomaria sua
obra poética a partir do livro seguinte, este que ampliará os limites de
sua posição no âmbito da literatura brasileira.
7faces • 281
Primeira edição de Pedra do sono, o primeiro livro de
João Cabral de Melo Neto, publicado em 1942. Da
antologia que reúne poemas escritos entre 1939 e 1941
foram publicados 340 exemplares; três centenas da
tiragem em papel simples foram distribuídas entre
amigos e o restante dos exemplares impresso em “Papel
Buetten para subscritores”, conforme se lê no colofão. O
livro foi impresso nas Oficinas Drechsler & Cia, em Recife.
7faces • 282
Poesia ao norte
por Antonio Candido
7faces • 283
O Sr. João Cabral de Melo Neto tem como epígrafe do seu livro o
desafio heroico de Mallarmé: “Solitude, récif, étoile...”. Com razão,
porque Pedra do Sono é uma aventura arriscada. O seu ponto de partida
são as imagens livremente associadas ou pescadas no sonho, sobre as
quais o autor age como ordenador. É esta disposição poética que
caracteriza o livro do Sr. João Cabral de Melo Neto.
Pedra do Sono é a obra de um poeta extremamente consciente que
procura construir um mundo fechado para a sua emoção, a partir da
escuridão das visões oníricas. Os poemas que o compõem são, é o
termo, construídos com rigor, dispondo-se os seus elementos segundo
um critério seletivo, em que se nota a ordenação vigorosa que o poeta
imprime ao material que lhe fornece a sensibilidade. Disso já se
depreendem as duas características principais desses poemas, tomados
em si: hermetismo e valorização por assim dizer plástica das palavras.
Trabalhando um material caprichoso, como é o do sonho e o da
associação livre, o Sr. Cabral de Melo tem necessidade de um certo rigor
por assim dizer construtivista. Daí se fechar dentro dos seus poemas,
onde há um mínimo de matéria discursiva e um máximo de libertação
do vocábulo ― entendendo-se por tal a tendência para deixá-lo valer
por si, manifestando o poder de sugestão que possui. As palavras, que
têm um poder sugestivo maior ou menor conforme as relações que as
ligam umas com as outras, se dispõem nos seus poemas quase como
valores plásticos, nesse sistema fechado que assume às vezes o caráter
de composição pictórica, e a beleza nasce da sua interrelação.
Não se conclua porém que esta poesia seja um edifício racionalista.
Muito pelo contrário, o trabalho ordenador a que é devida se exerce
sobre os dados mais espontâneos da sensibilidade. Daí a riqueza do
livro, que alia a ordenação da inteligência ao que há de mais
essencialmente espontâneo no homem.
*
A tendência vamos dizer construtivista do Sr. Cabral de Melo se
mostra na sua incapacidade quase completa de fazer poemas em que
não haja um número maior ou menor de imagens materiais. As suas
emoções se organizam em torno de objetos preciosos que servem de
sinais significativos do poema ― cada imagem material tendo de fato,
em si, um valor que a torna fonte de poesia, esqueleto que é o poema.
O verso vive exclusivamente dela.
Numa poesia em que há, por mínima e escondida que seja, uma
intenção ou uma possibilidade de interpretação discursiva, as palavras
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se esbatem diante da realidade maior da frase e da imagem, elas
próprias ultrapassadas pelo valor simbólico do que querem exprimir.
Quando leio:
7faces • 285
movia inutilmente seu único braço.”
(Pedra do Sono)
7faces • 286
Aves que prendi sob o chapéu,
Não sei que vitrolas errantes,” etc.
*
Mas essa riqueza não vai sem um certo empobrecimento humano.
“Solitude, récif, étoile...”. Como Mallarmé, o poeta pernambucano se
atirou em busca da poesia pura. Não discuto a sua “réussite” pessoal,
que é das boas. Quanto à poesia pura é que não sei se o seu barco
alcançará as estrelas ou se ficará pelos escolhos. Toda pureza implica
um aspecto de desumanização. É o problema permanente da pureza
ressecando a vida.
Nos nossos tempos de poesia mais comunicativa, já transcendida a
fase hermética pura, quase sempre vítima da sua autofagia, soa com
certo ar de raridade o livro do Sr. Cabral de Melo. E nos leva a crer que
a voz (?) do cisne mallarmeano está sempre viva, a ponto de vir ressoar
na última geração da nossa literatura. Pureza poética, surrealismo,
cubismo ― coisas que estão soando agora como requinte, mesmo
quando tão talentosamente representados por alguém como o nosso
poeta.
O erro da sua poesia é que, construindo o mundo fechado de que
falei, ela tende a se bastar a si mesma. Ganha uma beleza meio
geométrica e se isola, por isso mesmo, do sentido de comunicação que
justifica neste momento a obra de arte. Poesia assim tão
autonomamente construída se isola no seu hermetismo. Aparece como
um cúmulo de individualismo, de personalismo narcisista que, no Sr.
Cabral de Melo, tem um inegável encanto, uma vez que ele está na
idade dessa espontaneidade na autocontemplação. O Sr. Cabral de
Melo, porém, há de aprender os caminhos da vida e perceber que lhe
será preciso o trabalho de olhar um pouco à roda de si, para elevar a
7faces • 287
pureza da sua emoção a valor corrente entre os homens e, deste modo,
justificar a sua qualidade de artista.
*
De tendência oposta é o Sr. Rui Guilherme Barata. Dele, aliás, não
se pode dizer o que eu disse do poeta pernambucano. Não se encontra
no seu livro o que se poderia considerar como uma solução mais ou
menos pessoal. Anjos dos Abismos revela, da primeira à última linha,
uma identificação profunda com a poesia do Sr. Augusto Frederico
Schmidt. Vento, mar, noite, morta amada, janelas abertas: ― não falta
nada. Identidade no arsenal das imagens, na busca dos termos, nos
cacoetes poéticos ― como a repetição constante de um dado vocábulo
(o mar entra vinte e nove vezes nos quarenta versos da poesia Ode ao
Mar), ou as imagens que se formam sempre acompanhadas por um
adjetivo amplificador: “estranhas mulheres coroadas”; “escuridão da
noite encarcerada”; “árvores loucas que procurassem o céu” etc. A
impressão que fica é que o moço poeta nada mais quis do que escrever
exatamente como o grande cantor de Estrela Solitária.
E, no entanto, o Sr. Rui Guilherme Barata é um bom poeta. A sua
identificação é um fenômeno que se apresenta como tal intensidade,
que nos leva a pensar nele como na Lucy Citty Ferreira do Sr. Augusto
Frederico Schmidt. E aí está o maior elogio que se lhe pode fazer.
A bela fluidez, o halo majestoso, a nobre melancolia e o ritmo largo
do Sr. Augusto Frederico Schmidt, o Sr. Rui Guilherme Barata os possui
em certo grau. Seus poemas se leem com prazer, e nunca se tem a
sensação deprimente de pastiche. Revelam, como foi dito, mais
identificação do que propriamente imitação. Pena é que este processo
seja de natureza a cortar as asas do jovem poeta paraense. Porque não
creio que quem se mostra de tal modo tomado pela maneira de outrem
consiga um dia se livrar dela.
1
João Cabral de Melo Neto ― Pedra do Sono ― Pernambuco ― 1942
2
Rui Guilherme Barata ― Anjo dos Abismos ― Poesias ― Livraria José Olympio
Editora ― Rio ― 1943
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Os autores
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IVÁN CARVAJAL
É poeta, filósofo e escritor. Atua na Pontifícia Universidade Católica do Equador. Diretor da
revista País Secreto. Sua vasta e premiada obra poética foi reunida integralmente pela primeira
vez em 2015, na antologia Poesía reunida 1970-2014. Como ensaísta publicou, dentre outros,
A la zaga del animal imposible e Ensayos sobre poesía ecuatoriana en el siglo XX.
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RAFAELA CARDEAL
É aluna do Doutorado em Ciências da Literatura, na especialidade Literatura Brasileira, no
Instituto de Letras e Ciências Humanas da Universidade do Minho, onde desenvolve uma
investigação sobre a recepção de João Cabral de Melo Neto em Portugal, com a orientação do
Professor Carlos Mendes de Sousa e com uma bolsa de doutoramento da Fundação para a
Ciência e a Tecnologia (SFRH/BD/147088/2019). É membro do grupo “Poéticas em língua
portuguesa”, do Centro de Estudos Humanísticos (CEHUM). Defendeu, em 2016, a dissertação
de Mestrado Visita ao Museu de tudo, de João Cabral de Melo Neto, com o financiamento da
CAPES, no Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Nessa instituição, concluiu o bacharelado (2013) e a licenciatura (2015) em Letras.
MARIANA BASTOS
É aluna do Doutorado em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo, instituição onde
concluiu Mestrado e Literatura Brasileira e Bacharelado em Letras. Atualmente, desenvolve,
com o apoio do CNPq, uma pesquisa sobre as possíveis relações entre a poética de Ana Cristina
Cesar e a do artista visual José Leonilson. No mestrado, realizou uma dissertação sobre o livro
A teus pés, de Ana Cristina Cesar.
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7faces
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A Revista 7faces é uma produção semestral independente com interesse na publicação de poesia.
Editores
Pedro Fernandes de Oliveira Neto
Cesar Kiraly
Conselho editorial
Eduardo Viveiros de Castro
Ésio Macedo Ribeiro
Maria Filomena Molder
Nuno Júdice
Agradecimentos
Ao Antonio Carlos Secchin pelo aceite ao convite para compor esta edição; ao Iván Carvajal pela cessão do texto
traduzido nesta edição; a Ana Luisa Escorel pela ajuda com a reprodução do texto de Antonio Candido; à
Companhia de Dança Deborah Colker pela cessão das imagens reproduzidas; ao Márcio Diegues por aceitar o
convite para ilustrar esta edição; e a todos que enviaram / cederam material para a ideia.
Contato
Pelo correio eletrônico dos editores, pedro.letras@yahoo.com.br, ckiraly@id.uff.br ou através do
correio eletrônico da redação revistasetefaces@ymail.com
Revista 7faces.
Natal – RN. Ano 11. Edição n. 21. Jan.-Jul. 2020.
ISSN 2177-0794
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que seja preservada a face de seus respectivos autores e não seja para utilização com fins lucrativos.
Os textos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus respectivos autores e fica disponível para
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através do correio eletrônico revistasetefaces@ymail.com; nos
comprometemos a atender as exigências no prazo legal de 72 horas
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