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1. DADOS BIOGRÁFICOS
João Cabral de Melo Neto nasceu em Recife,
Pernambuco. Trabalhou como funcionário do
Departamento de Estatística, em 1940, em sua cidade
natal. Em 1947, mudou-se para o Rio de Janeiro e iniciou
carreira diplomática, percorrendo vários países da
Europa, sendo que destes a Espanha foi o país no qual
melhor se adaptou. João Cabral pertenceu à Academia
Brasileira de Letras e é considerado um dos maiores
poetas brasileiros do século XX. O autor de A Pedra do
Sono e O Cão sem Plumas faleceu em 1998.
2. CARACTERÍSTICAS DO AUTOR
q Antimusical, Antisentimental, Antilírico;
q Poesia Racional, Calculada (O Engenheiro);
q Versos forjados, fabricados;
q Linguagem substantiva, “de pedra”, sem adjetivos, sem adornos;
q Abafamento, distanciamento, anulação do “eu”;
q Crítica social não panfletária
3. PRINCIPAIS OBRAS
Pedra do Sono (1942); O Engenheiro (1945); O Cão sem Plumas (1950);
Educação pela Pedra (1975)
4. RESUMO DA PEÇA
Estrutura geral
Morte e Vida Severina é um poema dramático (peça de teatro em forma de
poema) que se divide em 18 cenas ou fragmentos poéticos, todos precedidos
por um título explicativo de seu conteúdo, praticamente resumos do que
encontramos nos poemas em si. Podemos separá-los em dois grandes grupos:
as primeiras 12 cenas descrevem a peregrinação de Severino. Trata-se do
Caminho ou Fuga da Morte. Nesta parte o poeta habilmente alterna monólogos
de Severino com diálogos que trava ou escuta no caminho; as últimas 6 cenas
apresentam O Presépio ou O Encontro com a Vida, em que é descrito o
nascimento do filho de José, mestre carpina, em clara alusão ao nascimento de
Jesus.
As cenas da morte
1. (Monólogo) - Severino se apresenta. Tem dificuldades para se diferenciar
dos outros "severinos", pois são "iguais em tudo na vida". Este Severino
representa a todos.
Cena 4: O Velório – Severino ouve cantigas e pensa ser uma festa, no entanto
a música ouvida é o som das excelências (ladainhas entoadas em um
velório)
Cena 6: Diálogo com a Rezadeira – Severino se dirige a uma mulher que está
“bem de vida”e se oferece para trabalhar. Diz o que sabe fazer: lavrar até em
pedra, fazer roçados, trabalhar no canavial...Mas o ofício que dá tanto lucro à
mulher é o de lidar com a morte, único negócio lucrativo no sertão: “Como aqui
a morte é tanta,/ só é possível trabalhar nessas profissões que fazem/ da morte
ofício ou bazar.../ Só os roçados da morte compensam aqui cultivar...”
Cena 12: Diálogo com José, mestre carpina - num jogo de antíteses se
chocam o pessimismo de Severino com o otimismo de José.
5. CARACTERÍSTICAS DA OBRA
Gênese e história da obra
Morte e Vida Severina foi escrito em 1954/55, por encomenda de Maria Clara
Machado, então diretora do grupo O Tablado, que não pôde levar ao palco a
peça. Publicado inicialmente no livro Duas Águas (1956), o texto foi finalmente
montado pelo grupo do TUCA (Teatro da Universidade Católica de São Paulo),
dirigido por Roberto Freire e Silnei Siqueira, com música de Chico Buarque de
Holanda, e obteve sucesso mundial numa turnê em 1966. A partir daquele ano,
passou a integrar o volume Poemas em Voz Alta, que reúne a parcela mais
comunicativa da obra do "poeta engenheiro".
PRÊMIOS e MÚSICA
Morte e Vida Severina, Auto de Natal Pernambucano, é, sem dúvida,
a obra mais popular de João Cabral de Melo Neto. Escrita em 1954 e
encenada pela primeira em 1965, com música de Chico Buarque, a peça em
seu ano de estréia, foi vencedora do Festival de Nancy na França. A partir de
então foram inumeráveis as reencenações, as releituras e os estudos críticos
realizados no mundo inteiro a respeito deste auto de João Cabral.
TEMÁTICA CENTRAL
O poema, segundo o próprio autor, “retrata a típica realidade do
Pernambucano que foge da seca em busca do Recife e acaba morando
numa favela ribeirinha”. Severino, o emigrante que sai da caatinga em
busca de uma vida melhor no litoral, é o estereótipo do nordestino oprimido
pela seca, pela fome e pela exclusão social. No caminho que perfaz,
seguindo o rio Capibaribe para chegar até a cidade de Recife, Severino desfia
um rosário metafórico de locais e fatos que trazem em comum o traço insigne
da morte.
REALIDADE NORDESTINA
Neste percurso, marcado por pequenas tragédias locais que,
encadeadas, apresentam um panorama duro e fiel da realidade do sertão
nordestino, Severino vê se perderem suas singelas esperanças de encontrar
um pouco de vida num lugar onde a morte é o mais marcante elemento da
paisagem local.
Quando, finalmente, chega em Recife, percebendo que sua história
não seria diferente da de seus irmãos severinos, o retirante pensa em
antecipar seu inevitável destino suicidando-se nas águas do Capibaribe.
Entretanto, neste momento da narrativa, com o nascimento do filho de Seu
José, mestre carpina, homem com o qual Severino falava a respeito do
suicídio, o discurso muda de tom. Seu José, à revelia das condições
desfavoráveis, faz um lírico e emocional elogio à vida.
Na fala do mestre carpina, observa-se um olhar de esperança (ainda
que circunspecta) e de deslumbre (ainda que contido) diante da vida. Mesmo
num lugar marcado pela morte e mesmo sendo o nascimento de seu filho a
pequena explosão de uma vida certamente severina como a dele, Seu
José não deixa de reconhecer a beleza do “espetáculo” da vida e da latente
força transformadora da sua presença.
VISÃO DE ESPERANÇA
Percebemos, então, que o conflito apresentado no título da obra é
dialeticamente abordado em toda a narrativa. Por exemplo, quando Severino
busca vida, durante toda sua viagem, quem lhe acompanha é a morte. No
entanto, quando o retirante pensa em se render ante domínio da morte, é
subitamente despertado pela explosão de uma vida que traz em si toda
uma carga de otimismo e esperança.
ESPERANÇA RELATIVIZADA
“Entretanto, apesar da fala otimista de seu José, as duas ciganas
profetizam um futuro não muito feliz para seu filho. Pode-se depreender da
fala duas ciganas que ‘o Severino será um massacrado, tanto na natureza
quanto em sociedade’” Portanto, se formos inquiridos sobre qual mensagem
se encerra no texto de João Cabral, se de otimismo ou pessimismo, o mais
prudente é optarmos pela ambigüidade, já que, como pudemos notar, esta
obra se constrói a partir de contrastes e oposições.
O AUTO
Auto: representação popular, medieval, de cunho religioso, mas que
trazia também elementos profanos como música, dança, cantorias, mímicas...
PEÇA DENTRO DA PEÇA
Auto dentro do Auto: dentro da encenação de Morte e Vida Severina,
temos a representação de um auto natalino, de um presépio. Veja as analogias
Estrela-guia = Rio-guia
Pastor(es) = Severino(s)
Mestre Carpina = S. José
Seu filho = Menino Jesus
Mocambo = Presépio
REGIONAL X UNIVERSAL
Observamos neste caso, um símbolo da cultura universal que é o
nascimento de Cristo retratado com as cores e os elementos locais do
nordeste. Nesta assimilação, uma mulher do povo assume o papel de anjo
da Anunciação, os vizinhos com seus presentes representam os reis magos,
o mocambo do mestre carpina é o presépio e Seu José retrata São José.Fica
então incorporada à cultura do folclore regional nordestino uma festa
eminentemente universal.
Inspiração na Literatura de Cordel: “O poema é simples. Escrevi-o
para os sujeitos analfabetos que ouvem literatura de cordel na Feira de Santo
Amaro, no Recife” (João Cabral) mostra o contraste apresentado pelo dilema
do(s) Severino(s) que busca a vida em meio à morte no sertão (“de velhice
antes dos trinta,/ de emboscada antes dos vinte,/ de fome um pouco por dia...”)
e quando está prestes a se render à morte, depara-se com a “explosão de
uma vida Severina”.
COMPOSIÇÃO POÉTICA
Composição: a peça é constituída de 18 cenas, compostas de 1241
versos, em sua maioria, heptassílabos ou redondilha maior (cadência
popular)
- É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
deste latifúndio.
— Terás de terra
completo agora o teu fato:
e pela primeira vez, sapato.
— Como és homem,
a terra te dará chapéu:
fosses mulher, xale ou véu.
— Tua roupa melhor
Ser de terra e não de fazenda:
não se rasga nem se remenda.
— Tua roupa melhor e te ficar
á bem cingida: como roupa feita é medida.
— Esse chão te é bem conhecido
(bebeu teu suor vendido).
— Esse chão te é bem conhecido
(bebeu o moço antigo).
— Esse chão te é bem conhecido
(bebeu tua força de marido).
—Desse chão és bem conhecido
(através de parentes e amigos).
—Desse chão és bem conhecido
(vive com tua mulher, teus filhos).
—Desse chão és bem conhecido
(te espera de recém nascido).
QUESTÕES
01. (UEL) No poema Morte e vida severina, podem-se reconhecer as
seguintes características da poesia de João Cabral de Melo Neto:
a. sátira aos coronéis do Nordeste e versos inflamados.
b. experimentalismo concretista e temática urbana.
c. memorialismo nostálgico e estilo oral.
d. personagens da seca e linguagem disciplinada.
e. descrição da paisagem e intenso subjetivismo.
05. (U.F. Ouro Preto) Sobre Morte e vida severina é incorreto afirmar:
01 O auto utiliza-se de uma linguagem grandiosa, de tom eufórico, para
exaltar a capacidade de resistência do nordestino que a todas as privações
resiste sem sucumbir. O nordestino é visto aqui sobretudo como um forte e é
justamente esta sua qualidade que o texto de João Cabral celebra.
02 Severino retirante, em sua viagem, encontra sempre à morte, até que, já
em Recife, chega-lhe a notícia do nascimento de um menino, signo de que
ainda resiste à constante negação da existência "severina".
04 Os versos breves e concisos de Morte e vida Severina acentuam o que
tematicamente o poema enfoca: o sufocamento das "vidas severinas",
confinadas no horizonte estreito da vivência nordestina.
08 O auto realiza uma personalização dramática de um sujeito coletivo: os
"severinos" que a seca escorraça do sertão e que o latifúndio escorraça da
terra.
16 Pela fala final do mestre carpina, Seu José, o auto parece sugerir que a
"severinidade" não é condição, mas estado, não é permanente nem intrínseca
ao sujeito e, portanto, pode ser transformada.
07. (PUC) Sobre Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, é
incorreto afirmar:
A) Trata-se de um poema dramático que tem como subtítulo “Auto de Natal
pernambucano”.
B) O contraste entre a vida e a morte ganha contornos paradoxais quando,
chegando ao Recife, Severino, em vez de se encantar com o rio que “não seca,
vai toda vida”, pensa em suicidar-se em suas águas.
C) No poema, o único espaço social em que ricos e pobres se igualam é o
cemitério.
D) O nascimento de uma criança, no final do poema, relativiza a idéia de que,
no Nordeste, a morte sempre se sobrepõe à vida.
E) Escrito na década de 50, o poema tem sido adaptado freqüentemente para
o teatro e a televisão, o que contribuiu grandemente para sua popularização.
08. (UP) Assinale a afirmação que não diz respeito à Morte e Vida Severina
de João Cabral de Melo Neto:
a) Trata-se de um Auto de Natal pela analogia com a festa maior da
cristandade.
b) Severino vai do sertão à zona da mata e daí para Recife, o litoral de lama.
c) A celebração da vida aparece no final da peça.
d) Severino descobre ao final da viagem que a miséria e a morte também
estão no litoral.
e) A família de retirantes expulsa pela seca muda-se para São Paulo.
09. (UP)
- É uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
- É uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.
10. (UEPG) Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, é um auto
de natal pernambucano. Acerca dessa obra, assinale o que foi correto.
01) Ela conta a história de Severino, homem do agreste que, em busca do
litoral, defronta-se a cada parada com a morte.
02) Nela, João Cabral de Melo Neto pratica um lirismo confessional por
intermédio de uma linguagem grandiloqüente, característica bastante comum
de sua poética.
04) O título aponta para os movimentos que sustentam sua linha narrativa:
morte e vida.
08) Severino, personagem-protagonista, representa o retirante nordestino.
16) O autor procura mostrar como, apesar da suspeita de adultério, o amor
consegue superar tudo.
(FUVEST-SP)
Decerto a gente daqui
jamais envelhece aos trinta
nem sabe da morte em vida,
vida em morte, severina;
(João Cabral de Melo Neto, Morte e vida severina)
CASA DE PENSÃO
ALUÍSIO AZEVEDO
1. DADOS DO AUTOR
Aluísio de Azevedo nasceu em São Luís, Maranhão em
1857 e faleceu em Buenos Aires, em 1913.
Transferiu-se para o Rio de Janeiro onde foi
caricaturista, e jornalista. Aluízio pode ser considerado
como um dos primeiros escritores profissionais da
literatura brasileira, já que viveu da publicação de suas
obras durante um bom tempo de sua vida, muitas vezes
lamentando os seus parcos proventos. Em virtude disso,
ao ingressar na carreira diplomática, Aluízio
abandonou a literatura sem a ela retornar até o final de
sua vida.
Por conta de suas necessidades materiais, Aluízio publicou muitas obras mais
comerciais, por assim dizer, como é o caso de seu primeiro romance Uma
lágrima de mulher, de 1880, e outros como Mistério da Tijuca – reeditado
com o nome de Girândola de amores e Memórias de um condenado –
reeditado com o nome de A condessa de Vésper. No entanto isso não o
impediu de realizar obras das mais importantes do nosso Naturalismo, como O
mulato, Casa de pensão e, especialmente, sua obra-prima, O cortiço.
2. CARACTERÍSTICAS DO AUTOR
Introdutor do Naturalismo no Brasil, Aluísio Azevedo, inspirado por Zola (1840-
1902) e Eça de Queirós (1845-1900), escreve romances para o cenário
brasileiro. Sua obra, marcada de altos e baixos, retrata o meio maranhense da
época, expõe preconceitos e satiriza os hábitos dos típicos moradores de São
Luís. A luta do escritor se volta contra o conservadorismo e a forte presença do
clero, responsável pela falta de ação dos habitantes maranhenses. Entretanto,
como não é mestre na análise do íntimo de suas personagens, não cria tipos,
mas dedica-se à descrição das massas, observando-as do exterior e
privilegiando o relato do pormenor. Suas narrativas se organizam em torno de
episódios e diálogos freqüentes, geralmente, comandados por narradores
oniscientes. Em O Cortiço, sua grande obra, reúne vários tipos da sociedade
do período: o português ganancioso, o negro, o mestiço e o fidalgo burguês.
Alfredo Bosi destaca como valores do escritor e legado ao romance de
costumes "o poder de fixar conjuntos humanos como a casa de pensão e o
cortiço dos romances homônimos". Contudo, lamenta o apego do escritor às
teorias darwinistas que o impediram de "manejar com a mesma destreza
personagens e enredos, deixando uns e outros na dependência de esquemas
canhestros".
3. PRINCIPAIS OBRAS
Folhetins Românticos e Romances
Uma Lágrima de Mulher (1880); O Mulato (1881); Memórias de um Condenado
(1802), (reed. A Condessa Véspes); Casa de Pensão (1884); Filomena Borges
(1884); O Homem (1887); O Coruja (1890); O Cortiço (1890), O Esqueleto
(1890), (em colaboração com Olavo Bilac); O Livro de uma Sogra (1895).
Contos e crônicas
Demônios (1893), (contos); O Touro Negro (1938), (crônica).
Teatro
Em colaboração com Artur Azevedo: Os Doidos (1879), (comédia); Flor de Lis
(1881), (opereta); Casa de Orates (1882), (comédia); Frizmark (1888), (revista);
A República (1890), (revista), Um Caso de Adultério (1891), (comédia); Em
Flagrante (1891), (comédia).
Em colaboração com Emílio Rouède: Venenos que Curam (1886), (comédia);
O Caboclo (1886), (drama).
4. CARACTERÍSTICAS DO NATURALISMO
CIENTIFICISMO
Os escritores realistas e também os naturalistas sofrem grande
influência das teorias científicas e filosóficas surgidas de meados para fins do
século XIX, como o Positivismo de Auguste Comte, o Evolucionismo de
Charles Darwin e, principalmente o Determinismo de Hipolyte Taine.
DETERMINISMO
O Determinismo era a aplicação na arte da teoria de que o homem seria
determinado por três forças condicionantes de seu comportamento, sendo elas:
o meio, a raça e o momento.
"E assim, pouco a pouco, se foram reformando todos os seus hábitos singelos
de aldeão português: e Jerônimo abrasileirou-se. A sua casa perdeu aquele ar
sombrio e concentrado que a entristecia; já apareciam por lá alguns
companheiros de estalagem, para dar dois dedos de palestra nas horas de
descanso, e aos domingos reunia-se gente para o jantar. A revolução afinal foi
completa: a aguardente de cana substituiu o vinho; a farinha de mandioca
sucedeu à broa; a carne-seca e o feijão-preto ao bacalhau com batatas e
cebolas cozidas; a pimenta-malagueta e a pimenta-do-reino invadiram
vitoriosamente a sua mesa (...)"
(O Cortiço – Aluísio de Azevedo)
ROMANCE DE TESE
O autor naturalista se porta como se fosse um cientista e suas
personagens são tratadas como se fossem cobaias. Muitos romances
naturalistas tinham como objetivo comprovar as teses científicas e filosóficas
da época, como o positivismo, o darwinismo e o determinismo.
Nesse sentido existe um distanciamento entre narrador e personagens,
uma impessoalidade que consistia na vontade de se aproximar dos métodos
da observação científica para revelar a verdade social.
“A verdade, toda a verdade, nada mais que a verdade – Direito criminal”
(epígrafe de O cortiço)
LINGUAGEM E NARRADORES
Em consonância com essa postura cientificista, os autores naturalistas
optam na maioria das vezes por narradores em terceira pessoa e
observadores. Já a linguagem naturalista se mostra objetiva e descritiva,
por vezes incorrendo num excessivo detalhismo.
"Raimundo tinha vinte e seis anos e seria um tipo acabado de brasileiro, se não
foram os grandes olhos azuis, que puxara do pai. Cabelos muito pretos,
lustrosos e crespos; tez morena e amulatada, mas fina; dentes claros que
reluziam sob a negrura do bigode; estatura alta e elegante; pescoço largo, nariz
direito e fronte espaçosa. A parte mais característica de sua fisionomia eram os
olhos grandes, ramalhudos, cheios de sombras azuis; pestanas eriçadas e
negras, pálpebras de um roxo vaporoso e úmido; as sobrancelhas muito
desenhadas no rosto, como a nanquim, faziam sobressair a frescura da
epiderme, que, no lugar da barba raspada, lembrava os tons suaves e
transparentes de uma aquarela sobre papel de arroz."
(O Mulato, Aluísio de Azevedo).
AGRUPAMENTOS HUMANOS
Os romances naturalistas têm preferência por aglomerações humanas. Ao
contrário do Romantismo que privilegiava enredos ancorados em uma
personagem central como Iracema, Inocência e Isaura, no Naturalismo os
romances passam a dar ênfase a personagens coletivas: cortiços, casas de
pensão, colégios internos, navios...
"No confuso rumor que se formava, destacavam–se risos, sons de vozes
que altercavam, sem se saber onde, grasnar de marrecos, cantar de galos,
cacarejar de galinhas. De alguns quartos saíam mulheres que vinham
dependurar cá fora, na parede, a gaiola do papagaio, e os louros, à
semelhança dos donos, cumprimentavam–se ruidosamente, espanejando–se à
luz nova do dia". (O cortiço, p. 36)
AMBIENTES SÓRDIDOS
E estes agrupamentos humanos descritos nos romances naturalistas
geram ambientes nojentos, sujos, sórdidos. Os autores naturalistas tinham
gosto em chocar seus leitores com cenas repugnantes para a época.
"[...] uma preta velha, vergada por imenso tabuleiro de madeira, sujo, seboso,
cheio de sangue e coberto por uma nuvem de moscas, apregoava em tom
arrastado e melancólico: 'Fígado, rins e coração'. Era uma vendedeira de fatos
de boi. [...] os cães, estendidos pelas calçadas, tinham uivos que pareciam
gemidos humanos, movimentos irascíveis, mordiam o ar, querendo morder os
mosquitos."
(O Mulato – Aluísio de Azevedo)
FOCO NARRATIVO
O autor escolheu o seu ponto-de-vista narrativo: a terceira pessoa do
singular, um narrador onisciente e onipotente, fora do elenco dos
personagens. Como um observador atento e minucioso dentro das próprias
fórmulas apertadas do naturalismo. No caso deste romance, Aluísio Azevedo
trabalhou muito servilmente sobre os fatos absolutamente reais.
TEMPO
Em nenhum momento a história nos relata um tempo preciso, até porque
pressupõe que sendo uma história baseada em fatos reais, deduz que se
passe em 1876, data precisa do ocorrido que abalou a cidade carioca.
PERSONAGENS
Os personagens, sob nomes fictícios, escondem pessoas reais:
Mme. Brizard - (D. Júlia Clara Pereira, mãe da moça e do rapaz, assassino) é
uma viúva, dona da casa de pensão: Era mulher de cinquenta anos, viúva de
uma afamadohoteleiro que lhe deixara muitas saudades e dúzia e meia
deapólices da dúvida pública, nascida em Marselha, a francesa,casara aos
quinze anos com um diplomata russo que morrera enão deixara filhos, estava
viúva aos vinte. Depois apareceu Mr.Brizard, a subida de Luís Felipe ao trono
fê-lo vir ao Brasil e setornar hoteleiro, amava o Brasil.Após casar com João
Coqueiro passa a ser a principalcúmplice nas tramoias para ludibriar o jovem
Amâncio.
Os Hóspedes:
Nº 01: Dr. Tavares – Advogado, gostava de fazer discursos
inflamados e epopeicos, interessa-se em defender Amâncioquando está preso
e é um dos que ainda se mantem com afamília de Coqueiro quando eles saem
da casa de pensão paraSanta Tereza.
Nº 02: Fontes – Era um homem que havia ficado rico, masperdera todo seu
dinheiro, agora tentava se reerguer vendendomuamba pela cidade.
Nº 07 Rapaz doente – Rapaz que definha dia após dia emorre nas mãos de
Amâncio.
Nº 11 Dr. Correia – Médico, alugava o quarto só para estudar, mas não era
bem isso. Era uma fachada para encontros noturnos com mulheres.
ENREDO
Amâncio (Da Silva Bastos e Vasconcelos), rapaz rico e provinciano,
abandona o Maranhão e segue de navio para o Rio de Janeiro (a Corte) a fim
de se encaminhar nos estudos e na vida. É um provinciano que sonha com os
deslumbramentos da Corte. Chega cheio de ilusões e vazio de propósitos de
estudar... A mãe fica chorosa e o pai, indiferente, como sempre fora no trato
meio distante com o filho. O rapaz tinha que se tornar um homem.
Amâncio começa morando em casa do sr. Campos, amigo do Pai, e, forçado,
se matricula na Escola de Medicina. Ia começar agora uma vida livre para
compensar o tempo em que viveu escravizado às imposições do pai e do
professor, o implacável Pires.
Por convite de João Coqueiro, co-proprietário de uma casa de pensão,
junto com a sua velhusca mulher Mme. Brizard, muda-se para lá. É tratado com
as maiores preferências: os donos da pensão queriam aproveitar o máximo de
seu dinheiro e ainda arranjar o seu casamento com Amélia, irmã de Coqueiro.
Um sujo jogo de baixos interesses, sobretudo de dinheiro. Naquele ambiente,
tudo concorreria para fazer explodir a super-sensualidade do maranhense.
"Ele, coitado, havia fatalmente de ser mau, covarde e traiçoeiro: Na ramificação
de seu caráter e sensualidade era o galho único desenvolvido e enfolhado,
porque de todos só esse podia crescer e medrar sem auxílios exteriores."
A casa de pensão era um amontoado de gente, em promiscuidade
generalizada, apesar da hipócrita moralidade pregada pelo seu dono: havia
miséria física e moral, clara e oculta. Com a chegada de Amâncio, a pensão
passou a arapuca para prender nos seus laços o jovem, inesperto e rico
estudante: pegar o seu dinheiro e casá-lo com a irmã do Coqueiro. Para
alcançar o fim, todos os meios eram absolutamente lícitos. Amélia,
principalmente quando da doença do rapaz, se desdobrou nos mais íntimos
cuidados. Até que se tornou, disfarçadamente, sua amante. Sempre mantendo
as aparências do maior respeito exigido dentro da pensão pelo João
Coqueiro...
A casa de pensão traz personagens de todas as índoles, com uma
promiscuidade generalizada, apesar da falsa moralidade pregada pelo seu
dono. Com a chegada do rico estudante, ele tornou-se irresistível para Lúcia,
uma mulher interesseira que vive com o Senhor Pereira na casa de pensão.
Após engravidar do primo em segundo grau, este volta para o Rio Grande do
Sul e nunca mais retornou. Com a honra arruinada, Lúcia então decide viver
com Pereira, já que ele estava sempre na casa dos seus pais. Mas ao cobrar o
matrimônio, Pereira revela que já é casado. Lúcia então se diz casada para
manter as aparências e seu grande sonho é casar-se com um homem rico.
Amâncio é visto como sua grande chance.
Durante toda a narrativa, é perceptível como Amâncio é galante e se
enamora das mulheres facilmente. Encanta-se por Dona Hortência, mulher
de Campos, tem interesse também em Lúcia e depois de um tempo torna-se
amante de Amelinha, irmã de Coqueiro. Este, por outro lado, cada vez
mais começa a fazer de Amâncio o pagador de suas contas. A ganância por
dinheiro é retratada em vários momentos.
A grande reviravolta se dá quando Amâncio torna a se enamorar por
Dona Hortência. Chega-lhe a escrever uma carta apaixonada, declarando
seu amor, mas quem descobre a carta é Amelinha, que a esconde e
depois a entrega ao irmão. Todos então redobram os “cuidados” com o
maranhense, com medo de perderem a grande mina de ouro. O pai de
Amâncio morre no Maranhão. Ele pretendia voltar, a pedido da mãe para
vê-la e também para administrar os negócios que o pai deixara, logo que
terminassem os seus exames de medicina.
Com medo de perder a influência sobre Amâncio, Amelinha exige que
eles se casem, mas diante da negativa, o ameaça com a promessa de que
vai contar a todos que ele a desgraçou. Amâncio então prepara sua viagem
às escondidas, mas no dia do embarque é preso, ao ser acusado de sedutor e
de ter tirado a honra de Amelinha. João Coqueiro preparou toda a trama e
entregou o caso ao famoso e desonesto advogado Teles de Moura, que forja
duas testemunhas contra o rapaz.
Mas, no dia do embarque, um oficial e justiça acompanhado de policiais
o prende para apresentação à delegacia e prestação de depoimentos.
Começa o enredado processo: uma confusão de mentiras, de fingimentos, de
maucaratismo contra o jovem rico e desfrutável para os interesses pecuniários
de Mme. Brizard e marido. Há uma ressonância geral na imprensa e, na
maioria, os estudantes se colocam ao lado de Amâncio. O senhor Campos
prepara-se para ajudar o seu protegido, mas Coqueiro lhe faz chegar às mãos
uma carta comprometedora que Amâncio escrevera à sua senhora, D.
Hortênsia. E se coloca contra quem não soube respeitar nem a sua casa...
Três meses depois de iniciado o processo, Amâncio é absolvido. O rapaz é
levado em triunfo para um almoço, no Hotel Paris.
"Amâncio passava de braço a braço, afagado, beijado, querido, como
uma mulher famosa." Todo mundo olhava com curiosidade e admiração o
estudante absolvido. E lhe atiravam flores, Ouviam-se vivas ao estudante e à
Liberdade. Os músicos alemães tocaram a Marselhesa. Parecia um carnaval
carioca.
Em outro plano, Coqueiro, sozinho, vendo e ouvindo tudo. A alma
envenenada de raiva. Em casa o destampatório da mulher que o acusava de
todo o fracasso. As testemunhas reclamavam o pagamento do seu
depoimento. Um inferno dentro e fora dele. Chegaram cartas anônimas com
as maiores ofensas. Um homem acuado...
Pegou, na gaveta, o revólver do pai. E pensou em se matar. Carregou
a arma. Acertou o cano no ouvido. Não teve coragem. Debaixo da sua janela,
gritavam injúrias pela sua covardia e mau caráter... No dia seguinte, de manhã,
saiu sinistro. Foi ao Hotel Paris. Bateu no quarto II, onde se encontrava o
estudante com a rapariga Jeanete. Esta abriu a porta. Amâncio dormia,
depois da festa e da bebedeira, de barriga para cima. Coqueiro atirou a
queima-roupa. Amâncio passa a mão no peito, abre os olhos, não vê mais
ninguém. Ainda diz uma palavra: "mamãe" ... e morre.
Coqueiro foi agarrado por um policial, ao fugir. A cidade se enche de
comentários. Muitos visitam o necrotério para ver o cadáver de Amâncio.
Vendem-se retratos do morto. Um funeral grandioso com a presença de
políticos, notícias e necrológicos nos jornais, a cidade toda abalada. A tragédia
tomou conta de todos.
A opinião pública começa a flutuar, a mudar de posição: afinal, João
Coqueiro tinha lavado a honra da irmã...
Quando D. Ângela, envelhecida e enlutada, chega ao Rio de Janeiro,
se viu no meio da confusão, procurando o filho. Numa vitrine, ela descobriu o
retrato do filho"na mesa do necrotério, com o tronco nu, o corpo em sangue.
Uma legenda: "Amâncio de Vasconcelos, assassinado por João Coqueiro, no
Hotel Paris...”
DETERMINISMO
As teses naturalistas, especialmente o Determinismo, alicerçam a construção
das personagens e das tramas.
No texto que transcrevemos a seguir, Aluísio Azevedo, ao descrever a
formação de Amâncio Vasconcelos, mostra os fatores que determinaram o
seu comportamento e o seu destino: a educação severa do pai e do
mestre-escola, a superproteção da mãe, a sífilis contraída da ama de leite,
que são as geratrizes de uma personalidade reprimida e hipócrita:
CHAGAS SOCIAIS
Autor fiel à tendência naturalista difundida pelo realismo, Aluísio Azevedo
focaliza, nesta obra, problemas como preconceitos de classe, de raças, a
miséria e as injustiças sociais. Descreve a vida nas pensões chamadas
familiares, onde se hospedavam jovens que vinham do interior para estudar na
capital. Diferente do romantismo, o naturalismo enfatiza o lado patológico do
ser humano, as perversões dos desejos e o comporta-mento das pessoas
influenciado pelo meio em que vivem.
ESTILO
O naturalismo está plenamente representado em Casa de Pensão desde a
abertura do romance, quando Amâncio aparece marcado fatalisticamente
pela escola e pela família: uma e outra o encheram de revolta. Por causa de
um castigo justo ou injusto, "todo o sentimento de justiça e da honra que
Amâncio possuía, transformou-se em ódio sistemático pelos seus
semelhantes...". O leite que o menino mamou na ama negra também está
contagiado e irá marcá-lo. O médico dizia: "Esta mulher tem reuma no sangue
e o menino pode vir a sofrer para o futuro." Amâncio é uma cobaia, um
campo de experimentação nas mãos do romancista. Nele o fisiológico é
muito mais forte do que o psicológico. É o determinismo que vai
acompanhar toda a carreira do personagem.
Está presente também na obra o sentido documental e experimental do
romance naturalista, renunciando ao sentimentalismo e à evasão, procura
construir tudo sobre a realidade. Como já mencionado, a estória do romance se
baseia num caso real.
LINGUAGEM
Uma técnica comum ao escritor naturalista é o abuso dos
pormenoresdescritivo-narrativos de tal modo que a estória caminha
devagar, lerda e até monótona. É a necessidade de ajuntar detalhes para se
dar ao leitor uma impressão segura de que tudo é pura realidade. Essas
minúcias se estendem a episódios, a personagens e a ambientes. Num
episódio, por exemplo, há minúcias de tempo, local e personagens. E móveis
de uma sala até os objetos mais miúdos.
Não se pode dizer que a linguagem do romance é regionalista; pelo contrário, o
padrão da língua usada é geral e o torneio frasal, a estrutura morfo-sintática é
completamente fiel aos padrões da velha gramática portuguesa.
Como Machado de Assis, Aluísio Azevedo também usa alguns recursos
desconhecidos da língua portuguesa do Brasil, principalmente na língua oral.
Assim, por exemplo, o caso da apossínclise (é uma posição especial do
pronome oblíquo que não escutamos no Brasil, mas é comum até na língua
popular de Portugal). São exemplos de apossínclise: "Há anos que me não
encontro com o amigo." (Há anos que não me...) "Se me não engano, você
está certo." Em Casa de Pensão essa posição pronominal é um hábito comum.
TEMÁTICAS
Como em O Cortiço, Aluísio de Azevedo se torna excepcionalmente rico na
criação de personagens coletivos: a casa de pensão, tão comum ainda hoje,
no Brasil inteiro, tem vida, uma vida estudante, nas páginas do romance.
Aluísio conhecia, de experiência própria, esse ambiente feito de tantos
quartos e tantos inquilinos, tão numerosos e tão diferentes, nivelados pela
mediocridade e em fácil decadência moral. O autor faz alguns retratos com
evidentes traços caricaturais (a sua velha mania ou vocação para a
caricatura...), mas fiéis e verdadeiros. Tudo se movimenta diante do leitor: a
casa de pensão é um mundo diferente, gente e coisas tomam aspectos novos,
as pessoas adquirem outros hábitos, informadas ou deformadas por essa vida
comunitária tão promíscua. Aí se encontram e se desencontram, se
amontoam e se separam tantos indivíduos transformados em tipos,
conhecidos, às vezes, apenas pelo número do quarto. Em O Cortiço o meio
social é mais baixo; na Casa de Pensão é médio.
Às doenças morais (promiscuidades, hipocrisia, desonestidades,
sensualismos excitados e excitantes, ódios, baixos interesses, dinheiro...)
se misturam também doenças físicas (o tuberculoso do quarto 7 que morre
na casa de pensão, a loucura e histerismo de Nini...). Foi o que encontrou
Amâncio na Casa de Pensão de Mme. Brizard. Fora para o Rio de Janeiro,
para estudar. E, num ambiente como esse, quem seria capaz de estudar? É
verdade que o rapaz já trazia a sua mentalidade burguesa do tempo: o que
ele buscava não era uma profissão, mas apenas um diploma e um título de
doutor. Ele, sendo rico, não precisaria da profissão, mas, por vaidade, de um
status, de um anel no dedo e de um diploma na parede. Essa mania de
doutor, doença que pegou no Brasil, já foi magistralmente caricaturada em
deliciosa carta de Eça de Queirós ao nosso Eduardo Prado: "A nação inteira se
doutorou. Do norte ao sul do Brasil, não há, não encontrei senão doutores!
Doutores com toda a sorte de insígnias, em toda a sorte de funções!! Doutores
com uma espada, comandando soldados; doutores com uma carteira,
fundando bancos: doutores com uma sonda, capitaneando navios; doutores
com uma apito, comandando a polícia; doutores com uma lira, soltando carnes;
doutores com um prumo, construindo edifícios; doutores com balanças,
ministrando drogas; doutores sem coisa alguma, governando o Estado! Todos
doutores..." O próprio Aluísio de Azevedo abandonou a Província para buscar
sucessos na Corte (Rio de Janeiro) e, certamente também, um título de
doutor...
TRECHO DO LIVRO
“Amâncio fora muito mal-educado pelo pai, português antigo e austero,
desses que confundem o respeito com o terror. Em pequeno levou muita
bordoada; tinha um medo horroroso de Vasconcelos; fugia dele como de
um inimigo, e ficava todo frio e a tremer quando lhe ouvia a voz ou lhe sentia os
passos. Se caso algumas vezes se mostrava dócil e amoroso, era sempre
por conveniência: habituou-se a fingir desde esse tempo.
Sua mãe, D. Ângela, uma santa de cabelos brancos e rosto de moça,
não raro se voltava contra o marido e apadrinhava o filho. Amâncio agarrava-
se-lhe às saias, fora de si, sufocado de soluços.
Aos sete anos entrou para a escola.
O mestre, um tal de Antônio Pires, homem grosseiro, bruto, de cabelo
duro e olhos de touro, batia nas crianças por gosto, por hábito do ofício. Na
aula só falava a berrar, como se dirigisse uma boiada. Tinha as mãos grossas,
a voz áspera, a catadura selvagem; e, quando metia para dentro um pouco
mais de vinho, ficava pior.
Amâncio, já na corte, só de pensar no bruto, ainda sentia calafrios dos
outros tempos, e com eles vagos desejos de vingança. Um malquerer doentio
invadia-lhe o coração, sempre que se lembrava do mestre e do pai. Envolvia-os
no mesmo ressentimento, no mesmo ódio surdo e inconfessável.
Todos os pequenos da aula tinham birra ao Pires. Nele enxergavam o
carrasco, o tirano, o inimigo e não o mestre; mas, visto que qualquer
manifestação de antipatia redundava fatalmente em castigo, as pobres crianças
fingiam-se satisfeitas, riam muito quando o beberrão dizia alguma chalaça, e
afinal, coitadinhas! Iam-se habituando ao servilismo e à mentira.
Os pais ignorantes, viciados pelos costumes bárbaros do Brasil,
atrofiados pelo hábito de lidar com escravos, entendiam que aquele animal era
o único professor capaz de “endireitar os filhos”.
Elogiavam-lhe a rispidez, recomendavam-lhe sempre que “não passasse
a mão na cabeça dos rapazes” e que, quando fosse preciso, “dobrasse por
conta deles a dose de bolos”.
Ângela, porém, não era dessa opinião: não podia admitir que seu
querido filho, aquela criaturinha fraca, delicada, um mimo de inocência e de
graça, um anjinho, que ela afagara com tanta ternura e com tanto amor, que
ela podia dizer criada com seus beijos – fosse lá apanhar palmatoadas de um
brutalhão daquela ordem! “Ora! Isso não tinha jeito!”
Mas o Vasconcelos saltava-lhe logo em cima: Que deixasse lá o
pequeno com o mestre!... Mais tarde ele havia de agradecer aquelas
palmatoadas!
Assim não sucedeu. Amâncio alimentou sempre contra Pies o mesmo
ódio e a mesma repugnância(...)”
Curiosidades
– Os presentesque Amâncio recebe aos 12 anos foram: o pai dera-lhe um
relógio de ouro e a avó dera-lhe um escravo de nome Sabino, a quem o serviria
sempre.
– Os livros românticos que mais comovem o jovem é Graziella e Rafhael de
Lamartine.
– Uma curiosidade pertinente à ama é exatamente a questão do determinismo
posto na obra, o determinismo que era gerado pelo meio social, ou seja, a
educação traumática que adquirira, e o genético, o leite da escrava, o médico
até adverte o Vasconcelos: “Esta mulher tem reuma no sangue – dizia ele -, e o
menino pode vir a sofrer no futuro.” Como se a doença da ama passasse para
o menino, e isso é fato, pois após Amâncio se recuperar da Varíola, terá
problemas com o Reumatismo. “Com semelhante esterco não podia
desabrochar melhor no seu temperamento o leite escravo, que lhe deu de
mamar uma preta da casa.” Assim conclui o narrador em uma visão
determinista e zoomórfica.
– Os amores colecionáveis de Amâncio denunciavam seu vício, atente a eles: a
filha mais velha do Costa Lobo, a mulher de um comendador, amigo de seu
pai, uma viúva de um oficial do exército, esses eram os principais, mas tinham
outros: a Francisca de Vila do Paço, por exemplo, uma espanhola e uma
senhora gorda amasiada de um boticário.
– João estava no segundo ano da Politécnica e Amélia havia já se tornado
mulher.
– Hortênsia não dançava porque o marido não deixava, pois tinha ciúmes.
– Bexigas naquela época seria o mesmo que Catapora, prima da Varíola,
Catapora naquela época matava muita gente, nessa época não se tinha vacina,
pois o Brasil só irá conhecê-la em 1904, na tão conhecida Revolta da Vacina.
– O guarda-livros e dr. Tavares são os únicos que se mudam com Amâncio e a
família do Coqueiro.
QUESTÕES
01. Sobre o romance de Aluísio de Azevedo, é correto afirmar que a
educação que Amâncio recebera do pai foi baseada:
a) no respeito
b) no medo
c) no diálogo
d) no exemplo
e) no carinho
10. (UEM) Assinale o que for correto em relação a O cortiço, à obra de seu
autor e ao momento estético de sua produção.
01) O Naturalismo, no Brasil, sob a ótica dos preconceitos provincianos, surgiu
como uma literatura imoral que, anticlerical, investia, entre outros aspectos,
contra o puritanismo sexual, contra o preconceito racial, permitindo novas
configurações da identidade sócio–cultural do país.
02) A obra literária de Aluísio de Azevedo pode ser estudada sob dois
enfoques: de um lado, alinham–se os folhetins e romances de padrão artístico
discutível e, geralmente, considerados produtos de baixo valor estético; de
outro, encontram–se romances marcados pela intensidade de seus conflitos,
reveladores de uma estrutura social problemática e decadente. A obra mais
representativa desse segundo enfoque é O cortiço.
04) "No confuso rumor que se formava, destacavam–se risos, sons de vozes
que altercavam, sem se saber onde, grasnar de marrecos, cantar de galos,
cacarejar de galinhas. De alguns quartos saíam mulheres que vinham
dependurar cá fora, na parede, a gaiola do papagaio, e os louros, à
semelhança dos donos, cumprimentavam–se ruidosamente, espanejando–se à
luz nova do dia". (O cortiço, p. 36)
No texto transcrito, o narrador, ao enfatizar a semelhança do cortiço a um
organismo vivo, aponta a coexistência indiferenciada entre homens e animais,
sugerindo a decadência do mundo racional e a conseqüente valorização do
universo puramente instintivo. O processo que identifica homens e bichos
reduz ambos a meros agentes de ruído.
08) A preocupação com a exploração exaustiva do real, em busca da
compreensão de sua verdade, faz da descrição um elemento importantíssimo
na organização da narrativa naturalista.
16) No Realismo–Naturalismo, as causas da intriga, os porquês das ações das
personagens devem estar explícitos. Assim, em O cortiço e Casa de pensão, a
causa que move os cordéis do enredo é, além da luta contra o preconceito
racial, a conquista do poder pela aquisição de bens.
11.A opção que indica sob que ponto(s) de vista as personagens são
descritas, no naturalismo, é:
a) ... físico e social.
b) ...psicológico e social.
c) ...social somente.
d) ...físico e psicológico.
e) ...físico, psicológico e social.
RESPOSTA: 5 – 1 – 3 – 4 - 2
13. “Acho apenas que devia estender a sua teoria até o estudode certas
ciências... como a Medicina... Sim! (...)”. A partir dessetrecho do livro
Casa de Pensão, revela-nos que o autor observa:
a) que naquele momento, ou seja, no século XIX, estavamarcado pelo apogeu
da ciência. Todas as ciências ganharamimportância social. Só era levado em
consideração aquilo quepudesse ser provado pelas teorias e hipóteses
observáveis pelaciência.
b) que naquele momento, ou seja, no século XVIII, estavamarcado pelo apogeu
da ciência. Todas as ciências ganharamimportância social. Só era levado em
consideração aquilo quepudesse ser teorizado pelas filosofias ou hipóteses
observáveispela ciência.
c) a importância do aprofundamento intelectual por parte de cadaindivíduo
como forma de ascensão social e base paracapitalismo. Isso é retratado no
livro pelo interesse de JoãoCoqueiro pela medicina.
d) a importância do aprofundamento intelectual por parte decada indivíduo,
característico do Naturalismo, como forma deascensão social e base para
capitalismo. Isso é retratado no livropelo interesse de Amâncio Vasconcelos
pela medicina e suabusca pela faculdade no Rio de Janeiro para a sua
formação tãodesejada.
e) a critica feita à Ciência, uma vez que o que vigorava na épocaera o estudo
da Filosofia. Assim, o campo científico não tinhavalor. Todas as correntes
científico-filosóficas surgidas no séculoXIX, principalmente o Determinismo, são
criticadas no livro Casade Pensão
15. “Desde esse instante, todo o sentimento de justiça e dehonra que Amâncio
possuía, transformou-se em ódio sistemáticopelos seus semelhantes. Ficou
fazendo um triste juízo doshomens.
- Pois se até seu próprio pai, diretamente ofendido na questão,abraçara a
causa do mais forte!...”
A sequencia correta é:
a) F / F / V / F / V
b) V / F / V / F / V
c) V / F / V / V / F
d) F / V / F / F / F
e) F / F / V / V / F
17. “Na Casa de Pensão, tudo gira em torno da cupidez dacarne ou dodinheiro,
inoculada em todas as personagens pelaherança mórbida ou pela sociedade".
A partir da citação acima, pode-se concluir que:
a) Um dos fatores decisivos na corrupção final de Amâncioé o dinheiro fácil
com que ele se engolfa em farras e boêmias ese afasta dos livros;
b) Amâncio aparece sempre condicionado e pré-determinado para o seu final
trágico, por causa doextremo sensualismo É o erótico que Amâncio
consegueconquistar até a mulher de seu protetor, o Campos.
c) O autor aprofunda o seu estudo na psicologia demassa, e apresenta, com
bastantes detalhes um quadrointeressante e válido dos movimentos de massa.
d) Amâncio não se preocupa em ganhar dinheiro no Riode Janeiro, mas
apenas em estudar e se tornar um bomprofissional.
e) Tudo parte da filosofia positivista, onde o homem serevela a partir do meio
em que vive, do momento em que seencontra e por sua herança genética.
Está(ao) correta(s):
a) I, III e VI
b) II, IV e V
c) II e V
d) V
e) III, IV e V
23. Assinale o texto que, pela linguagem e pelas idéias, pode ser
considerado como representante da corrente Naturalista.
a. "... essa noite estava de veia para a coisa; estava inspirada; divina!
Nunca dançara com tanta graça e tamanha lubricidade! Também cantou.
E cada verso que vinha de sua boca [...] era um arrulhar choroso de
pomba no cio. E [...], bêbado de volúpia, enroscava-se todo ao violão; e
o violão e ele gemiam com o mesmo gosto, grunhindo, ganindo, miando,
com todas as vozes de bichos sensuais, num desespero de luxúria que
penetrava até ao tutano com línguas finíssimas de cobra."
b. "Na planície avermelhada dos juazeiros alargavam duas manchas
verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e
famintos, [...] Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos
juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da caatinga rala."
c. "vivia longe dos homens, só sedava bem com animais. Os seus pés
duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado,
confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem
cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia."
d. "Do seu rosto irradiava singela expressão de encantadora ingenuidade,
realçada pela meiguice do olhar sereno [...] Ao erguer a cabeça para
tirar o braço de sob o lençol, descera um nada a camisinha de crivo que
vestia, deixando nu um colo de fascinadora alvura, em que ressaltava
um ou outro sinal de nascença."
e. "Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. A
pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou
parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas
palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos,
descansando sobre a espenda da sela."
24. “Defronte dele, com uma gravidade oficial, empilhavam-se grandes livros de
escrituração mercantil. Ao lado, uma prensa de copiar, um copo d água, sujo
de pó, e um pincel chato; mais adiante, sobre um mocho de madeira preta,
muito alto, via-se o Diário deitado de costas e aberto de par em par. Tratava-se
de fazer a correspondência para o Norte. Mal, porém, dava começo a uma
nova carta, lançando cuidadosamente no papel a sua bonita letra, desenhada e
grande,[...] (p.01) ”
3. CARACTERÍSTICAS DA OBRA
TEMPO NARRATIVO
Relato de um certo Oriente, primeiro romance de Milton Hatoum, se
passa nas primeiras décadas do século XX. O fio condutor da narrativa se
movimenta num fluxo de lembranças que não se colocam na ordeira da
linearidade, mas sim, na da sucessão fragmentária, mais peculiar à linha de
um tempo psicológico que à da construção de uma narrativa em flashback.
NARRADOR (ES)
O título do romance remete-nos à interação entre o contar e o ouvir,
reciprocidade dialógica que se efetiva pela magia de um narrador que nos
conta parte de sua história de vida, ouvindo-a, em grande parte, de outros
narradores
As primeiras páginas reforçam a sensação de estarmos entrando, com
um narrador inominado, num universo de lembranças que ele pretende
compartilhar com o irmão que se encontra em Barcelona. Não em forma de
monólogo, como poderia acontecer num livro de memórias autobiográficas,
mas em tom de diálogo, esse narrador em primeira pessoa, ao comunicar-
se com o irmão distante, e ao dar voz a outros narradores, abre um leque de
diferentes vozes, que se efetivam através do discurso indireto livre,
favorecendo a presentificação do passado e uma melhor percepção desse nar-
rador, que é também um ouvinte atento.
Assim, em Relato, a narradora passa a palavra a Tio Hakim, que, por
sua vez, introduz o discurso de Dorner, o fotógrafo, que introduz o relato do
marido de Emilie, e, assim, de narrador em narrador, forma-se um elo
narrativo que vai revelando a saga da protagonista, de sua família e amigos,
num movimento vagaroso que convém ao exercício da recuperação de
lembranças do passado.
ESPAÇO
A tropical Manaus, com suas mangueiras, seus casarões, seus barcos
que transitam pelo grande rio, cidade flutuante que adentra os mistérios da
floresta, é o espaço físico que abriga a loja Parisiense e o sobrado de Emilie,
núcleos espaciais do romance
PERSONAGENS PRINCIPAIS
Uma família de imigrantes libaneses que transportaram, do Oriente
para esse novo espaço, seus costumes e suas tradições, sua culinária,
religião, forma de ver e de perceber a vida que, no Brasil, mesclaram-se aos
costumes locais, sem, contudo, perderem a marca da terra natal: Oriente
plantado em novas terras, revivido na prática, em muitas situações, mas
recriado do imaginário, em outras tantas.
No entanto, dentre estas vozes a que mais ecoa é a da matriarca
Emilie, mulher que protege em segredo a dor de suas lembranças, e que
mantém um conflito religioso com seu marido, homem generoso e que gostava
da solidão, mas que não aceitava a religiosidade católica da mulher, preferindo
manter-se ligado às suas tradições orientais.
Simbolizando um elo entre o Amazonas e o Líbano está o tio Hakim,
filho mais velho de Emilie que nasce em terras brasileiras, sendo por isso o
escolhido para aprender a língua árabe, porém em Hakim esta língua materna
lhe causa estranhamento, e embora fique fascinado pela forma da escrita
árabe afirma o seguinte, "embora familiar, soava como a mais estrangeira das
línguas estrangeiras" (p. 50). Tal reconhecimento é na verdade o embate de
sentir-se estrangeiro dentro do próprio cerne familiar, fazendo parte de um
universo híbrido, ou melhor, de um outro oriente.
ENREDO
Ao retornar a Manaus, a narradora parece ter ido em busca da re-
memoração de valores como família e solidariedade, entre outros, que não só
contribuíram para sua mundividência, mas também foram constitutivos da visão
de mundo de seu irmão, a quem relata o que está ali vivenciando, espaço que
a faz reviver, na imaginação, o cenário e o ambiente de sua infância e
adolescência.
Em Relato de um certo Oriente, uma mulher visita a cidade de sua
infância depois de ter passado quase 20 anos fora. E, a partir dos
acontecimentos que se desenrolam após sua chegada, ela vai relembrando e
descobrindo histórias do seu passado e da família que a criou.
Ao retornar a Manaus, após ter permanecido internada em uma clínica
de repouso em São Paulo, a narradora chega justamente na noite que precede
o dia da morte de Emilie, sua mãe adotiva.
Inicia-se, então, um outro trabalho, o de recuperar Emelie através da
memória, não apenas a sua, mas também a de outros personagens que
entrelaçaram seu percurso de forma significativa ao daquela família: o filho
mais velho, o único a aprender o árabe e que também irá se distanciar de
todos, ao mudar-se para o sul; o alemão Dorner, amigo da família e fotógrafo;
o marido de Emelie, recuperado, mesmo depois de morto, através da memória
de Dorner, e Hindié Conceição, amiga sempre presente, a partilhar com a
conterrânea a solidão da velhice. Muitas vozes a compor um mosaico, nem
sempre ordenado, nem sempre claro naquilo que revela, mas sobretudo rico
em pequenos detalhes de extrema significação.
No intuito de enviar uma carta ao irmão, que se encontra em Barcelona,
a fim de lhe revelar a morte de Emilie, acaba escrevendo um relato com
depoimento de membros da família e de amigos, conforme o irmão lhe
pedira na última correspondência que lhe enviara. Esses testemunhos
proporcionam uma verdadeira viagem à memória, com regresso à infância e
aos fatos marcantes da vida familiar.
Logo no primeiro capítulo, a narradora nos descreve uma parte da casa
na qual acabara de acordar, em Manaus. A descrição das duas salas
contíguas é repleta de marcas identificatórias do Oriente, indicando uma
representação estilizada desse território: tapete de Isfahan, elefante indiano e
reproduções de ideogramas chineses são alguns dos objetos de consumo dos
ocidentais, tomados como símbolos, que estão presentes nos cômodos.
Em Relato de um certo Oriente as histórias falam das possibilidades e
das dificuldades do trabalho com a memória, das tensões e da convivência de
culturas, religiões, línguas, lugares, sentimentos e sentidos diferentes das
personagens em relação ao mundo. A casa de Emilie, matriarca da família na
narrativa do Relato, é um microcosmo onde estas tensões aparecem e são
vividas cotidianamente.
O que mantêm a tensão no romance é a narrativa centrada em
incidentes – o atropelamento de Soraya Ângela, o afogamento de Emir.
4. TEMAS DA OBRA
FAMÍLIA: Relato de um certo Oriente debruça-se sobre um tema bastante
comum: a família e seus dramas. A procura por mostrar as dificuldades
presentes na convivência diária de familiares e amigos entre si, com seus
diferentes segredos e comportamentos, faz deste um grande enredo.
6. TRECHOS DA OBRA
Quando abri os olhos, vi o vulto de uma mulher e o de uma criança. As
duas figuras estavam inertes diante de mim, e a claridade indecisa da manhã
nublada devolvia os dois corpos ao sono e ao cansaço de uma noite mal
dormida. Sem perceber, tinha me afastado do lugar escolhido para dormir e
ingressado numa espécie de gruta vegetal, entre o globo de luz e o
caramanchão que dá acesso aos fundos da casa. Deitada na grama, com o
corpo encolhido por causa do sereno, sentia na pele a roupa úmida e tinha as
mãos repousadas nas páginas também úmidas de um caderno aberto, onde
rabiscara, meio sonolenta, algumas impressões do vôo noturno. Lembro que
adormecera observando o perfil da casa fechada e quase deserta, tentando
visualizar os dois leões de pedra entre as mangueiras perfiladas no outro lado
da rua.
Foi nesse instante que a coisa aconteceu com uma precisão incrível; mal
posso afirmar se houve um intervalo de um átimo entre as pancadas do relógio
da copa e o trinado do telefone. Os dois sons surgiram ao mesmo tempo , e
pareciam pertencer à mesma fonte sonora . A coincidência de sons durou
alguns segundos; no momento em que o telefone emudeceu, a criança
arremessou a cabeça da boneca de encontro às hastes do relógio, provocando
uma sequência de acordes graves e desordenados, como os sons de um piano
desafinado. As duas hastes ainda se chocavam quando ouvi a última pancada
do sino da igreja. Só então corri para atender o telefone, mas nada escutei,
senão ruídos e interferências. (2004, p. 12)
QUESTÕES
Leia o fragmento abaixo do romance de Milton Hatoum, Relato de
um certo Oriente, e responda às questões.
“[...] por detrás dos troncos, da folhagem que lambia a terra, fingindo
encontrá-la, aceitando absurdamente a hipótese de que ela teria ido ao pátio
ver os animais, banhar-se na fonte, pular a cerca do galinheiro e gesticular
furiosamente diante do poleiro para que, em pânico, as aves passassem do
sono à debandada caótica, soltando as asas, ciscando a terra e o ar,
debatendo-se, encurraladas entre a cerca instransponível e a figura lânguida
que com seus excessos de contorções sequer as ameaçava; mas essa
encenação matinal, presenciada com espanto e comiseração por todos nós,
talvez fosse uma festa [...]”.
07. (ENEM)
A lavadeira começou a viver como uma serviçal que impõe respeito e não mais
como escrava. Mas essa regalia súbita foi efêmera. Meus irmãos, nos
frequentes deslizes que adulteravam este novo relacionamento, geram
dardejados pelo olhar severo de Emilie; eles nunca suportaram de bom grado
que uma índia passasse a comer na mesa da sala, usando os mesmos talheres
e pratos, e comprimindo com os lábios o mesmo cristal dos copos e a mesma
porcelana das xícaras de café. Uma espécie de asco e repulsa tingia-lhes o
rosto, já não comiam com a mesma saciedade e recusavam-se a elogiar os
pastéis de picadinho de carneiro, os folheados de nata e tâmara, e o arroz com
amêndoas, dourado, exalando um cheiro de cebola tostada. Aquela mulher,
sentada e muda, com o rosto rastreado de rugas, era capaz de tirar o sabor e o
odor dos alimentos e de suprimir a voz e o gesto como se o seu silêncio ou a
sua presença que era só silêncio impedisse o outro de viver.
HATOUM. M. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Cia das Letras, 2000.
11. (ENEM)
TEXTO I
Voluntário
Rosa tecia redes, e os produtos de sua pequena indústria gozavam de boa
fama nos arredores. A reputação da tapuia crescera com a feitura de uma
maqueira de tucum ornamentada com a coroa brasileira, obra de ingênuo
gosto, que lhe valera a admiração de toda a comarca e provocara a inveja da
célebre Ana Raimunda, de Óbidos, a qual chegara a formar uma fortunazinha
com aquela especialidade, quando a indústria norte-americana reduzira à
inatividade os teares rotineiros do Amazonas.
SOUSA, I. Contos amazônicos. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
TEXTO II
Relato de um certo oriente
Emilie, ao contrário de meu pai, de Dorner e dos nossos vizinhos, não tinha
vivido no interior do Amazonas. Ela, como eu, jamais atravessara o rio. Manaus
era o seu mundo visível. O outro latejava na sua memória. Imantada por uma
voz melodiosa, quase encantada, Emilie maravilha-se com a descrição da
trepadeira que espanta a inveja, das folhas malhadas de um tajá que reproduz
a fortuna de um homem, das receitas de curandeiros que veem em certas
ervas da floresta o enigma das doenças mais temíveis, com as infusões de
coloração sanguínea aconselhadas para aliviar trinta e seis dores do corpo
humano. “E existem ervas que não curam nada”, revelava a lavadeira, “mas
assanham a mente da gente. Basta tomar um gole do líquido fervendo para
que o cristão sonhe uma única noite muitas vidas diferentes”. Esse relato
poderia ser de duvidosa veracidade para outras pessoas, mas não para Emilie.
HATOUM, M. São Paulo: Cia. das Letras, 2008
1. DADOS DO AUTOR
Gonçalves Dias (Antônio G. D.), poeta,
professor, crítico de história, etnólogo, nasceu em
Caxias, MA, em 10 de agosto de 1823, e faleceu
em naufrágio, no baixio dos Atins, MA, em 3 de
novembro de 1864. É o patrono da Cadeira n. 15,
por escolha do fundador Olavo Bilac.
Era filho de João Manuel Gonçalves Dias,
comerciante português, natural de Trás-os-
Montes, e de Vicência Ferreira, mestiça.
Perseguido pelas exaltações nativistas, o pai
refugiara-se com a companheira perto de Caxias,
onde nasceu o futuro poeta. Casado em 1825
com outra mulher, o pai levou-o consigo, deu-lhe
instrução e trabalho e matriculou-o no curso de latim, francês e filosofia do prof.
Ricardo Leão Sabino. Em 1838 Gonçalves Dias embarcaria para Portugal,
para prosseguir nos estudos, quando faleceu-lhe o pai. Com a ajuda da
madrasta pôde viajar e matricular-se no curso de Direito em Coimbra. A
situação financeira da família tornou-se difícil em Caxias, por efeito da
Balaiada, e a madrasta pediu-lhe que voltasse, mas ele prosseguiu nos
estudos graças ao auxílio de colegas, formando-se em 1845.
Em Coimbra, ligou-se Gonçalves Dias ao grupo dos poetas que
Fidelino de Figueiredo chamou de "medievalistas". À influência dos
portugueses virá juntar-se a dos românticos franceses, ingleses, espanhóis e
alemães. Em 1843 surge a "Canção do exílio", um das mais conhecidas
poesias da língua portuguesa.
Regressando ao Brasil em 1845, passou rapidamente pelo Maranhão
e, em meados de 1846, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde morou até
1854, fazendo apenas uma rápida viagem ao norte em 1851. Em 46, havia
composto o drama "Leonor de Mendonça", que o Conservatório do Rio de
Janeiro impediu de representar a pretexto de ser incorreto na linguagem; em 47
saíram os Primeiros cantos, com as "Poesias americanas", que mereceram
artigo de elogios do escritor português Alexandre Herculano; no ano seguinte,
publicou os Segundos cantos e, para vingar-se dos seus gratuitos censores,
conforme registram os historiadores, escreveu as Sextilhas de frei Antão, em
que a intenção aparente de demonstrar conhecimento da língua o levou a
escrever um "ensaio filológico", num poema escrito em idioma misto de
todas as épocas por que passara a língua portuguesa até então. Em 1849,
foi nomeado professor de Latim e História do Colégio Pedro II e fundou a
revista Guanabara, com Macedo e Porto Alegre. Em 51, publicou os Últimos
cantos, encerrando a fase mais importante de sua poesia.
2. PRINCIPAIS OBRAS:
§ Primeiros cantos, poesia (1846);
§ Leonor de Mendonça, teatro (1847);
§ Segundos cantos e Sextilhas de Frei Antão, poesia (1848);
§ Últimos cantos (1851);
§ Os Timbiras, poesia (1857);
§ Dicionário da língua tupi (1858)
3. CARACTERÍSTICAS DO AUTOR
A melhor parte da lírica dos Cantos inspira-se ora da natureza, ora da
religião, mas sobretudo de seu caráter e temperamento. Sua poesia é
eminentemente autobiográfica. A consciência da inferioridade de origem, a
saúde precária, tudo lhe era motivo de tristezas. Foram elas atribuídas ao
infortúnio amoroso pelos críticos, esquecidos estes de que a grande paixão do
Poeta ocorreu depois da publicação dos Últimos cantos. Em 1851, partiu
Gonçalves Dias para o Norte em missão oficial e no intuito de desposar Ana
Amélia Ferreira do Vale, de 14 anos, o grande amor de sua vida, cuja mãe
não concordou por motivos de sua origem bastarda e mestiça. Frustrado,
casou-se no Rio, em 1852, com Olímpia Carolina da Costa. Foi um casamento
de conveniência, origem de grandes desventuras para o Poeta, devidas ao
gênio da esposa, da qual se separou em 1856. Tiveram uma filha, falecida
na primeira infância.
Nomeado para a Secretaria dos Negócios Estrangeiros, permaneceu na
Europa de 1854 a 1858, em missão oficial de estudos e pesquisa. Em 56,
viajou para a Alemanha e, na passagem por Leipzig, em 57, o livreiro-editor
Brockhaus editou os Cantos, os primeiros quatro cantos de Os Timbiras,
compostos dez anos antes, e o Dicionário da língua tupi. Voltou ao Brasil e,
em 1861 e 62, viajou pelo Norte, pelos rios Madeira e Negro, como membro da
Comissão Científica de Exploração. Voltou ao Rio de Janeiro em 1862,
seguindo logo para a Europa, em tratamento de saúde, bastante abalada, e
buscando estações de cura em várias cidades européias. Em 25 de outubro de
63, embarcou em Bordéus para Lisboa, onde concluiu a tradução de A noiva de
Messina, de Schiller. Voltando a Paris, passou em estações de cura em Aix-
les-Bains, Allevard e Ems. Em 10 de setembro de 1864, embarcou para o
Brasil no Havre no navio Ville de Boulogne, que naufragou, no baixio de
Atins, nas costas do Maranhão, tendo o poeta perecido no camarote, sendo a
única vítima do desastre, aos 41 anos de idade.
Todas as suas obras literárias, compreendendo os Cantos, as Sextilhas,
a Meditação e as peças de teatro (Patkul, Beatriz Cenci e Leonor de
Mendonça), foram escritas até 1854, de maneira que, segundo Sílvio Romero,
se tivesse desaparecido naquele ano, aos 31 anos, "teríamos o nosso
Gonçalves Dias completo". O período final, em que dominam os pendores
eruditos, favorecidos pelas comissões oficiais e as viagens à Europa,
compreende o Dicionário da língua tupi, os relatórios científicos, as traduções
do alemão, a epopéia Os Timbiras, cujos trechos iniciais, que são os melhores,
datam do período anterior.
Sua obra poética, lírica ou épica, enquadrou-se na temática
"americana", isto é, de incorporação dos assuntos e paisagens brasileiros
na literatura nacional, fazendo-a voltar-se para a terra natal, marcando assim
a nossa independência em relação a Portugal. Ao lado da natureza local,
recorreu aos temas em torno do indígena, o homem americano primitivo,
tomado como o protótipo de brasileiro, desenvolvendo, com José de Alencar
na ficção, o movimento do "Indianismo". Os indígenas, com suas lendas e
mitos, seus dramas e conflitos, suas lutas e amores, sua fusão com o
branco, ofereceram-lhe um mundo rico de significação simbólica. Embora não
tenha sido o primeiro a buscar na temática indígena recursos para o
abrasileiramento da literatura, Gonçalves Dias foi o que mais alto elevou o
Indianismo. A obra indianista está contida nas "Poesias americanas" dos
Primeiros cantos, nos Segundos cantos e Últimos cantos, sobretudo nos
poemas "Marabá", "Leito de folhas verdes", "Canto do piaga", "Canto do
tamoio", "Canto do guerreiro" e "I-Juca-Pirama", este talvez o ponto mais
alto da poesia indianista. É uma das obras-primas da poesia brasileira, graças
ao conteúdo emocional e lírico, à força dramática, ao argumento, à
linguagem, ao ritmo rico e variado, aos múltiplos sentimentos, à fusão do
poético, do sublime, do narrativo, do diálogo, culminando na grandeza da
maldição do pai ao filho que chorou na presença da morte.
Pela obra lírica e indianista, Gonçalves Dias é um dos mais típicos
representantes do Romantismo brasileiro e forma com José de Alencar na
prosa a dupla que conferiu caráter nacional à literatura brasileira.
Academia Brasileira de Letras
4. DIVISÃO DA OBRA
POESIA LÍRICA:
Apresenta profundos traços de subjetivismo e visível influência de seus
vários casos amorosos, principalmente seu amor frustrado por Ana Amélia; são
poemas marcados pela dor e sofrimento, chegando a beirar o ultra-romantismo
em alguns momentos. O poeta buscava "casar o pensamento com o
sentimento, a paixão com a idéia", embora a razão sempre perdesse terreno
para o coração. Entre seus poemas líricos mais famosos temos: "Se se morre
de amor", "Ainda uma vez - adeus!", "Como, és tu?" e "Não me deixes".
POESIA MEDIEVAL:
Reunidos sob o título de "Sextilhas de frei Antão", são uma série de
poemas escritos em português arcaico, à moda dos trovadores medievais.
POESIA NACIONALISTA:
Apresenta uma poesia que ora exalta a pátria distante, ora idealiza a
figura do índio. Os poemas saudosistas exaltam a natureza brasileira, sem
nunca se referirem ao elemento humano, pois, se citassem o homem brasileiro,
teriam de se referir às crises vividas pela nossa sociedade. Entretanto, é no
indianismo que atinge o máximo de sua obra (é o representante maior da
poesia indianista brasileira). Apesar de idealizado, seu índio está mais próximo
da realidade quando comparado ao índio de José de Alencar. Seus versos
indianistas, além de exaltar a natureza, desenham um índio portador de
sentimentos e atitudes artificiais, extremamente europeizado. Destacam-se
pela carga lírica, dramática e épica. Formalmente caracterizam-se pela perfeita
utilização dos vários recursos da métrica, da musicalidade e do ritmo. Entre os
poemas indianistas destacam-se: "I - Juca Pirama"; "Marabá"; "O canto do
piaga"; "Canção do tamoio"; "Leito de folhas verdes"; e "Os timbiras" (poema
épico inacabado).
POESIAS AMERICANAS
O poeta chamou de “Poesia americana” todo o conjunto de seus poemas
indianistas e nacionalistas que foram encaixados nos livros de poesia que
chamou Cantos; a poesia americana principal se encontra em Primeiros Cantos
e Últimos Cantos.
5. DEDICATÓRIA DO LIVRO ÚLTIMOS CANTOS
MEU CARO E SAUDOSO AMIGO DR. ALEXANDRE THEOPHILO DE
CARVALHO LEAL
6. FRAGMENTOS DA OBRA
realidade indígena. Este poema, Mas eles respondem: "Teus longos cabelos,
injustamente, não escapou das "São loiros, são belos,
"Mas são anelados; tu és Marabá:
críticas, tendo sido chamado de "Quero antes cabelos, bem lisos, corridos,
“rendez vous do mato”. O poeta, "Cabelos compridos,
"Não cor d'oiro fino, nem cor d'anajá," São todos Timbiras, guerreiros valentes!
Seu nome lá voa na boca das gentes,
E as doces palavras que eu tinha cá dentro
A quem nas direi?
O ramo d'acácia na fronte de um homem IV
Jamais cingirei:
Meu canto de morte,
Jamais um guerreiro da minha arazóia Guerreiros, ouvi:
Me desprenderá:
Eu vivo sozinha, chorando mesquinha, Sou filho das selvas,
Que sou Marabá! Nas selvas cresci;
Guerreiros, descendo
Comentário: “Marabá” em
Da tribo Tupi.
tupi significa mestiço de europeu
Da tribo pujante,
com índio. A jovem protagonista
Que agora anda errante
desse poema narra sua procura de
Por fado inconstante,
um amado entre os de sua tribo.
Guerreiros, nasci;
Sua condição de mestiça, marcada
Sou bravo, sou forte,
pela cor loira do cabelo e pelos
Sou filho do Norte;
olhos claros, impede qualquer
Meu canto de morte,
aproximação amorosa, pois os
Guerreiros, ouvi.
jovens da tribo querem moças
Já vi cruas brigas,
morenas, altas e selvagens. Daí sua
De tribos imigas,
tristeza e solidão.
E as duras fadigas
O poeta, além da busca do
Da guerra provei;
amor, discute aqui a relativização do
Nas ondas mendaces
conceito de beleza para indígenas e
Senti pelas faces
europeus. A mestiça solitária nada
Os silvos fugaces
mais quer do que um noivo para
Dos ventos que amei.
sentir igual às outra mulheres,
Andei longes terras,
diante de Deus e da tribo, que
Lidei cruas guerras,
estabelece o casamento para as
mulheres. Todo o seu desamparo e
VIII
solidão aparecem numa bonita “Tu choraste em presença da morte?
alternância de versos curtos e Na presença de estranhos choraste?
longos, que reproduzem tristemente Não descende o cobarde do forte;
um diálogo entre a moça e os Pois choraste, meu filho não és!
rapazes da tribo. Possas tu, descendente maldito
Ao fim do poema, pode-se De uma tribo de nobres guerreiros,
pensar que aqui também o poeta Implorando cruéis forasteiros,
deixa ver um pouco da violência da Seres presa de vis Aimorés.
colonização, pois ser mestiça é
trazer na pele e no destino essa IX
evidência. Isto dizendo, o meserando velho
A quem Tupã tamanha dor, tal fado
Já nos confins da vida reservara,
Vai com trêmulo pé, com as mãos já frias
I-JUCA PIRAMA Da sua noite escura as densas trevas
I Palpando. - Alarma! alarma! - O velho para.
No meio das tabas de amenos verdores, O grito que escutou é voz do filho,
Cercadas de troncos — cobertos de flores, Voz de guerra que ouviu já tantas vezes
Alteiam-se os tetos d’altiva nação; Noutra quadra melhor. - Alarma! alarma!
São muitos seus filhos, nos ânimos fortes, — Esse momento só vale apagar-lhe
Temíveis na guerra, que em densas coortes Os tão compridos transes, as angústias,
Assombram das matas a imensa extensão. Que o frio coração lhe atormentaram
São rudos, severos, sedentos de glória,
Já prélios incitam, já cantam vitória,
De guerreiro e de pai: - vale, e de sobra.
Já meigos atendem à voz do cantor: Ele que em tanta dor se contivera,
Tomado pelo súbito contraste, Quebrando a solidão,
Desfaz-se agora em pranto copioso,
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
De vivo luzir,
X São meigos infantes, gentis, engraçados
Um velho Timbira, coberto de glória, Brincando a sorrir.
guardou a memória São meigos infantes, brincando, saltando
Do moço guerreiro, do velho Tupi! Em jogo infantil,
Inquietos, travessos; — causando tormento,
E à noite, nas tabas, se alguém duvidava Com beijos nos pagam a dor de um momento,
do que ele contava, Com modo gentil.
Dizia prudente: - “Meninos, eu vi!
“Eu vi o brioso no largo terreiro Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
cantar prisioneiro Assim é que são;
Seu canto de morte, que nunca esqueci: Às vezes luzindo, serenos, tranqüilos,
Valente, como era, chorou sem ter pejo; Às vezes vulcão!
parece que o vejo,
Às vezes, oh! sim, derramam tão fraco,
Que o tenho nest’hora diante de mim.
Tão frouxo brilhar,
“Eu disse comigo: Que infâmia d’escravo!
Que a mim me parece que o ar lhes falece,
Pois não, era um bravo; E os olhos tão meigos, que o pranto umedece
Valente e brioso, como ele, não vi! Me fazem chorar.
E à fé que vos digo: parece-me encanto
Que quem chorou tanto, Assim lindo infante, que dorme tranqüilo,
Tivesse a coragem que tinha o Tupi!” Desperta a chorar;
Assim o Timbira, coberto de glória, E mudo e sisudo, cismando mil coisas,
guardava a memória Não pensa — a pensar.
Do moço guerreiro, do velho Tupi.
Nas almas tão puras da virgem, do infante,
E à noite nas tabas, se alguém duvidava Às vezes do céu
do que ele contava, Cai doce harmonia duma Harpa celeste,
Tomava prudente: “Meninos, eu vi!” Um vago desejo; e a mente se veste
De pranto co'um véu.
Comentário: I-Juca pirama (que em
Quer sejam saudades, quer sejam desejos
tupi significa: o que há de ser morto, Da pátria melhor;
e que é digno de ser morto) é o Eu amo seus olhos que choram em causa
herói tupi feito prisioneiro pelos Um pranto sem dor.
Timbiras, guerreiros ferozes e Eu amo seus olhos tão negros, tão puros,
canibais. Antes de ser morto, De vivo fulgor;
exigem que o guerreiro tupi entoe o Seus olhos que exprimem tão doce harmonia,
Que falam de amores com tanta poesia,
seu canto de morte, cantando seus Com tanto pudor.
feitos, sua bravura e suas
aventuras, pois a sua coragem de Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Assim é que são;
guerreiro e a sua honra - Eu amo esses olhos que falam de amores
acreditavam os Timbiras - Com tanta paixão.
passariam para todos que, depois
do rito de morte, comessem as A CONCHA E A VIRGEM
partes do seu corpo. Linda concha que passava,
Boiando por sobre o mar,
Junto a uma rocha, onde estava
SEUS OLHOS Triste donzela a pensar,
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
De vivo luzir, Perguntou-lhe: — "Virgem bela,
Estrelas incertas, que as águas dormentes
Do mar vão ferir; Que fazes no teu cismar?"
— "E tu", pergunta a donzela,
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros, "Que fazes no teu vagar?"
Têm meiga expressão,
Mais doce que a brisa, — mais doce que o
nauta
De noite cantando, — mais doce que a frauta
Responde a concha: — "Formada Sobre a líquida extensão,
Por estas águas do mar, Levam naus os seus ditames
Sou pelas águas levada, Da peleja entre os horrores;
Nem sei onde vou parar!" Vis escravos, crus senhores,
Preito e menagem lhe dão.
Responde a virgem sentida,
Que estava triste a pensar: Vive tu teu viver simples,
— "Eu também vago na vida, Mimosa e gentil donzela,
Como tu vagas no mar! Dentre todas a mais bela,
Flor de candura e de amor!
"Vais duma a outra das vagas, Coroa melhor eu te ofereço,
Eu dum a outro cismar; De ouro não, mas de poesia,
Tu indolente divagas, Coroa que a fronte alumia
Eu sofro triste a cantar. Com divino resplendor!
URGE O TEMPO
Urge o tempo, os anos vão correndo,
Mudança eterna os seres afadiga!
O tronco, o arbusto, a folha, a flor, o espinho,
Quem vive, o que vegeta, vai tomando
Aspectos novos, nova forma, enquanto
Gira no espaço e se equilibra a terra.
DUAS COROAS
Há duas coroas na terra,
Uma d′ouro cintilante
Com esmalte de diamante,
Na fronte do que é senhor;
Outra modesta e singela,
Coroa de meiga poesia,
Que a fronte ao vate alumia
Com a luz d′um resplendor.
03. (UFES)
"Minha terra não tem palmeiras...
E em vez de um mero sabiá,
Cantam aves invisíveis
Nas palmeiras que não há."
(Mário Quintana)
O texto deve ser considerado uma:
01) reafirmação da estética romântica e seus principais dogmas.
02) negação da estética romântica, questionando seu olhar que se detém mais
na paisagem que no social.
04) paródia de um texto tradicional da nossa Literatura, bem ao gosto
modernista, como já fizera Oswald de Andrade com o mesmo texto, num
poema que assim se inicia: "minha terra tem palmares/ Onde gorjeia o mar.".
08) releitura acrítica da célebre "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias.
16) intertextualidade moderna que vai na contramão das estéticas nacionalistas
e sentimentalistas das primeiras décadas do século XIX, quando o Brasil se
estabelecia como nação independente.
12. (UFPR – 2018) A respeito dos poemas que compõem o livro Últimos
Cantos (1851), do maranhense Gonçalves Dias, assinale a alternativa
correta.
a) O nacionalismo romântico se expressa no antológico poema “Canção do
exílio”, que abre o livro com um tom laudatório: “Nosso céu tem mais estrelas, /
Nossas várzeas têm mais flores, / Nossos bosques têm mais vida, / Nossa vida
mais amores”.
b) O embate entre tribos indígenas, com a consequente prisão de um guerreiro,
é narrado em “I-Juca-Pirama”, poema marcado por variedade métrica: “O
prisioneiro, cuja morte anseiam, / Sentado está, / O prisioneiro, que outro sol no
ocaso / Jamais verá!”.
c) A pureza racial dos indígenas brasileiros é exaltada no poema “Marabá” por
meio da descrição da personagem-título: “— Meus olhos são garços, são cor
das safiras, / — Têm luz das estrelas, têm meigo brilhar; / — Imitam as nuvens
de um céu anilado, / — As cores imitam das vagas do mar!”.
d) O aspecto fúnebre das lendas românticas é representado no poema “O
gigante de pedra”, em que se destaca a monstruosidade do personagem:
“Gigante orgulhoso, de fero semblante, / Num leito de pedra lá jaz a dormir! /
Em duro granito repousa o gigante, / Que os raios somente puderam fundir”.
e) O lirismo romântico prefere temas delicados, como as brincadeiras inocentes
da criança em “Mãe-d’água”: “Minha mãe, olha aqui dentro, / Olha a bela
criatura, / Que dentro d’água se vê! / São d’ouro os longos cabelos, / Gentil a
doce figura, / Airosa leve a estatura; / Olha, vê no fundo d’água / Que bela
moça não é!”.
14. (UFRJ)
I-Juca-Pirama
"Tu choraste em presença da morte?
Na presença de estranhos choraste?
Não descende o cobarde do forte;
Pois choraste, meu filho não és!"
Nos versos do poema acima, vê -se a indignação do velho índio Tupi, ao
saber que o filho pedira aos inimigos Aimorés que lhe poupassem a vida.
Neles, Gonçalves Dias apresenta um dos traços mais caros ao
Romantismo, que é o
a) culto a valores heroicos como herança da era medieval.
b) subjetivismo que se revela através da poesia em primeira pessoa.
c) gosto pelas metáforas.
d) escapismo que faz o romântico criar um mundo próprio e idealizado.
e) gosto pelo mistério que se traduz num masoquismo.
15. (PUC)
"Do tamarindo a flor jaz entreaberta,
Já solta o bogari mais doce aroma;
Também meu coração, como estas flores,
Melhor perfume ao pé da noite exala!"
("Leito de folhas verdes")
"Ação tão nobre vos honra,
Nem tão alta cortesia
Vi eu jamais praticada
Entre os Tupis - e mas foram
Senhores em gentileza."
("I - Juca Pirama")
1. DADOS DO AUTOR
Basílio da Gama (1741-1795) foi um poeta
brasileiro, autor do poema épico “Uruguai”,
considerado a melhor realização no gênero
épico no Arcadismo brasileiro. É patrono da
cadeira n.4 da Academia Brasileira de Letras.
José Basílio da Gama (1741-1795) nasceu no
arraial de São José dos Rios da Morte, hoje
Tiradentes, em Minas Gerais, no dia 08 de
abril de 1741. Ficando órfão muito cedo, foi
educado no Colégio dos Jesuítas, no Rio de Janeiro. Era noviço e pretendia
ingressar na carreira eclesiástica.
Em 1759, após a expulsão dos padres da Companhia de Jesus dos
domínios portugueses, pelo Marques de Pombal, Basílio da Gama viaja
para a Itália para completar seus estudos. Em Roma, construiu uma carreira
literária e em 1768 ingressou na Arcádia Romana, assumindo o pseudônimo
de Termindo Sipílio, uma conquista única entre os brasileiros da época.
Em 1765, Basílio da Gama escreve “Ode a Dom José I”, rei de
Portugal. Em 1767, voltou ao Rio de Janeiro e no ano seguinte foi preso,
acusado de ter amizade com os jesuítas. De acordo com um decreto
recente, qualquer pessoa que tivesse mantido comunicação com os jesuítas,
deveria ficar exilada durante oito anos em Angola, na África.
Preso, Basílio da Gama foi levado para Lisboa, mas livra-se da pena
ao escrever um poema exaltando o casamento da filha do Marques de
Pombal “Epitalâmio às Núpcias da Sra. D. Maria Amália” (1769), onde
elogia o ministro e ataca os jesuítas. Com isso, muda o rumo do processo e
passa a ser favorecido por Pombal, que lhe concede carta de fidalguia e o
nomeia Secretario do Reino.
Nesse mesmo ano publica a poesia épica “Uruguai” (1769), uma
obra-prima em que se encontram alguns dos mais apreciáveis versos da língua
portuguesa, que tem como tema a luta de portugueses e espanhóis contra os
índios de Sete Povos das Missões do Uruguai, instalados nas missões jesuítas
no atual Rio Grande do Sul, que não queriam aceitar as decisões do Tratado
de Madri, que delimitava as fronteiras do sul do Brasil.
Basílio da Gama soube como poucos transformar política em poesia. Em
1776 publica “Os Campos Elíseos” um poema em que se exaltam supostas
virtudes cívicas de membros da família de Sebastião José. Com a morte do
rei em 1777, Pombal não se mantem no cargo, é duramente atacado e
vários de seus atos são anulados. Basílio da Gama permanece-lhe fiel e
chega a escrever em sua defesa. Em 1788, lastima a morte de Dom José, em
“Lenitivo da Saudade”.
Basílio da Gama foi admitido na Academia das Ciências de Lisboa, e
sua última publicação foi “Quitúbia” (1791), um poema épico celebrando um
chefe africano que auxiliou a colônia na guerra contra os holandeses.
Basílio da Gama faleceu em Lisboa, Portugal, no dia 31 de julho de
1795.
Por Dilva Frazão
2. CARACTERÍSTICAS GERAIS DO POEMA
Poema épico composto em versos decassílabos brancos (sem rimas)
e dividido em cinco cantos, a obra retrata a guerra travada por portugueses
e espanhóis contra índios e jesuítas pela conquista da Colônia de Sete
Povos das Missões, na região do Uruguai (ou Uraguai). O general do
exército português Gomes de Andrade e Catâneo (chefe das tropas
espanholas) marcham até o local do conflito com seus soldados, e
imediatamente encontram dois índios que vinham fazer negociações de paz:
Sepé e Cacambo, sendo este último o chefe dos índios. Falha a tentativa e o
combate começa. Apesar da honrosa valentia e força dos indígenas, muitos
deles perecem. Entre os cadáveres está Sepé, amigo de Cacambo.
As tropas européias descansam à beira de um rio. O índio Cacambo,
cansado, dorme não muito longe dali. Em sonho, vê a figura de Sepé que lhe
pede para vingar sua morte provocando um incêndio no acampamento dos
brancos. O incêndio acontece e deixa o acampamento em cinzas. Cacambo
volta para junto dos índios, jesuítas e sua bela esposa Lindóia. No entanto, o
chefe guerreiro não contava com o surgimento de mais um inimigo: Balda, o
jesuíta administrador da colônia. Este o coloca na prisão e o mata com
uma bebida misteriosa, sem que a bela esposa saiba da verdade. Aparece em
cena Tanajura, uma índia detentora de artimanhas de feitiçaria, que leva
Lindóia para uma gruta e lhe mostra, através de visões, o terremoto que
deixaria Lisboa em ruínas, a reconstrução por parte do Marquês de
Pombal e a derrota e a expulsão dos jesuítas. Também lhe é revelada a
morte de Cacambo, o que causa profunda comoção. Lindóia suicida-se com
uma picada de serpente e é encontrada pelo irmão Caitutu. O indígena
retorna para junto dos seus e comunica o fato a Balda e os outros. Acusando
a velha Tanajura de assassina, tencionam matá-la. As tropas dos
portugueses e espanhóis se aproximam perigosamente. Balda diz ao povo
que provoquem um forte incêndio na sede, e o corpo de Tanajura é a
primeira coisa a ser queimada, enquanto indígenas e jesuítas fogem. Os
portugueses chegam às terras conquistadas e, em perseguição, prendem
os jesuítas, inclusive Balda.
3. RESUMO DO ENREDO
O Uraguai, poema épico de 1769, critica drasticamente os jesuítas,
antigos mestres do autor Basílio da Gama. Ele alega que os jesuítas apenas
defendiam os direitos dos índios para ser eles mesmos seus senhores. O
enredo em si, é a luta dos portugueses e espanhóis contra os índios e os
jesuítas dos Sete Povos das Missões. De acordo com o tratado de Madrid,
Portugal e Espanha fariam uma troca de terras no sul do país: Sete Povos
das Missões para os espanhóis, e Sacramento para os portugueses. Os
nativos locais recusam-se a sair de suas terras, travando uma guerra. Foi
escrito em versos brancos decassílabos, sem divisão de estrofes e divididos
em cinco cantos, e por muitos autores, foi o início do Romantismo.
No Canto I, o poeta apresenta já o campo de batalha coberto de
destroços e de cadáveres, principalmente de indígenas, e, voltando no tempo,
apresenta um desfile do exército luso - espanhol, comandado por Gomes Freire
de Andrada.
No Canto II, relata o encontro entre os caciques Sepé e Cacambo e o
comandante português. Gomes Freire de Andrada à margem do rio Uruguai. O
acordo é impossível porque os jesuítas portugueses se negavam a aceitar a
nacionalidade espanhola. Ocorre então o combate entre os índios e as tropas
luso-espanholas. Os índios lutam valentemente, mas são vencidos pelas armas
de fogo dos europeus. Cepé morre em combate. Cacambo comanda a retirada.
No Canto III, o falecido Sepé aparece em sonho a Cacambo sugerindo o
incêndio do acampamento inimigo. Cacambo aproveita a sugestão de Sepé
com sucesso. Na volta da missão Cacambo é traiçoeiramente assassinado por
ordem do jesuíta Balda, o vilão da história, que deseja tornar seu filho Baldeta
cacique, em lugar de Cacambo. Observa-se aqui uma forte crítica aos jesuítas.
No Canto IV, o poeta apresenta a marcha das forças luso-espanholas
sobre a aldeia dos índios, onde se prepara o casamento de Baldeta e Lindóia.
A moça, entretanto, prefere a morte. Com a chegada das tropas de Gomes
Freire, os índios se retiram após queimarem a aldeia.
No Canto V, o poeta expressa suas opiniões a respeito dos jesuítas,
colocando-os como responsáveis pelo massacre dos índios pelas tropas luso -
espanholas. Eram opiniões que agradavam ao Marquês de Pombal, o todo
poderoso ministro de D. José I. Nesse mesmo canto ainda aparece a
homenagem ao general Gomes Freire de Andrada que respeita e protege os
índios sobreviventes.
4. ANÁLISE DA OBRA
O TRATADO DE MADRI
Pelo Tratado de Madri, celebrado entre os reis de Portugal e de
Espanha, as terras ocupadas pelos jesuítas, no Uruguai, deveriam passar da
Espanha a Portugal. Os portugueses ficariam com Sete Povos das Missões e
os espanhóis, com a Colônia do Sacramento. Sete Povos das Missões era
habitada por índios e dirigida por jesuítas, que organizaram a resistência à
pretensão dos portugueses.
A GUERRA
O poema narra o que foi a luta pela posse da terra, travada em
princípios de 1757, exaltando os feitos do General Gomes Freire de Andrade.
Basílio da Gama dedica o poema ao irmão do Marquês de Pombal e combate
os jesuítas abertamente.
PERSONAGENS
General Gomes Freire de Andrade (chefe das tropas portuguesas);
Catâneo (chefe das tropas espanholas); Cacambo (chefe indígena); Cepé
(guerreiro índio); Balda (jesuíta administrador de Sete Povos das Missões);
Caitutu (guerreiro indígena; irmão de Lindóia); Lindóia (esposa de Cacambo);
Tanajura (indígena feiticeira).
RESUMO DA NARRATIVA
A pobreza temática impele Basílio da Gama a substituir o modelo camoniano
de dez cantos por um poema épico de apenas cinco cantos, constituídos por
versos brancos, ou seja, versos sem rimas.
Canto I: Saudação ao General Gomes Freire de Andrade. Chegada de
Catâneo. Desfile das tropas. Andrade explica as razões da guerra. A primeira
entrada dos portugueses enquanto esperam reforço espanhol. O poeta
apresenta já o campo de batalha coberto de destroços e de cadáveres,
principalmente de indígenas, e, voltando no tempo, apresenta um desfile do
exército luso-espanhol, comandado por Gomes Freire de Andrade.
ASPECTOS FORMAIS
O poema é escrito em decassílabos brancos, sem divisão em
estrofes, mas é possível perceber a sua divisão em partes: proposição,
invocação, dedicatória, narrativa e epílogo. Abandona a linguagem
mitológica, mas ainda adota o maravilhoso, apoiado na mitologia indígena.
Foge, assim, ao esquema tradicional, sugerido pelo modelo imposto em
língua portuguesa, Os Lusíadas.
CARACTERÍSTICAS ÁRCADES
A oposição entre rusticidade e civilização, que anima o Arcadismo,.
Assim, apesar da intenção ostensiva de fazer um panfleto anti-jesuítico para
obter as graças de Pombal, a análise revela, todavia, que também outros
intuitos animavam o poeta, notadamente descrever o conflito entre a
ordenação racional da Europa e o primitivismo do índio.
PRÉ-ROMANTISMO
Convém ressaltar que O Uraguai, além das características árcades, já
apresenta, algumas tendências românticas na descrição da natureza
brasileira e não poderia deixar de favorecer, no Brasil, o advento do índio
como tema literário.
Variedade, fluidez, colorido, movimento, sínteses admiráveis
caracterizam os decassílabos do poema, não obstante equilibrados e serenos.
Ele será o modelo do decassílabo solto dos românticos.
RIQUEZA LITERÁRIA
Há, no poema, uma grande sensibilidade plástica, o poeta apreende
o mundo sensível com verdadeiro prazer dos sentidos. Recria o cenário natural
sem que a notação do detalhe prejudique a ordem serena da descrição.
O CHOQUE DE CULTURAS
Senso da situação: o poema deixa de ser a celebração de um herói
para tomar-se o estudo de uma situação: o drama do choque de culturas.
LIBERDADE ESTÉTICA
Basílio foi poeta revolucionário com seu poema épico. Enquanto Cláudio
trazia ao Brasil a disciplina clássica, Basilio, sem transgredi-la muito, mas
movendo-se nela com maior liberdade estética e intelectual, levava à Europa o
testemunho do Novo Mundo.
5. TRECHOS DA OBRA
CANTO PRIMEIRO
Fumam ainda nas desertas praias
Lagos de sangue tépidos e impuros
Em que ondeiam cadáveres despidos,
Pasto de corvos. Dura inda nos vales
O rouco som da irada artilheria.
MUSA, honremos o Herói que o povo rude
Subjugou do Uraguai, e no seu sangue
Dos decretos reais lavou a afronta.
Ai tanto custas, ambição de império!
E Vós, por quem o Maranhão pendura
CANTO SEGUNDO
Aqui não temos. Os padres faziam crer aos índios que os
portugueses eram gente sem lei, que adoravam o ouro.
Rios de areias de ouro. Essa riqueza
Que cobre os templos dos benditos padres,
Fruto da sua indústria e do comércio
Da folha e peles, é riqueza sua.
Com o arbítrio dos corpos e das almas
O céu lha deu em sorte. A nós somente
Nos toca arar e cultivar a terra,
Sem outra paga mais que o repartido
Por mãos escassas mísero sustento.
Podres choupanas, e algodões tecidos,
E o arco, e as setas, e as vistosas penas
São as nossas fantásticas riquezas.
Muito suor, e pouco ou nenhum fasto.
Volta, senhor, não passes adiante.
Que mais queres de nós? Não nos obrigues
A resistir-te em campo aberto. Pode
Custar-te muito sangue o dar um passo.
Não queiras ver se cortam nossas frechas.
Vê que o nome dos reis não nos assusta.
O teu está muito longe; e nós os índios
Não temos outro rei mais do que os padres.
Acabou de falar; e assim responde
O ilustre General: Ó alma grande,
Digna de combater por melhor causa,
Vê que te enganam: risca da memória
Vãs, funestas imagens, que alimentam
Envelhecidos mal fundados ódios.
CANTO TERCEIRO
Não de outra sorte o cauteloso Ulisses,
Vaidoso da ruína, que causara,
Viu abrasar de Tróia os altos muros,
E a perjura cidade envolta em fumo
Encostar-se no chão e pouco a pouco
Desmaiar sobre as cinzas. Cresce entanto
O incêndio furioso, e o irado vento
Arrebata às mãos cheias vivas chamas,
Que aqui e ali pela campina espalha.
Comunica-se a um tempo ao largo campo
A chama abrasadora e em breve espaço
Cerca as barracas da confusa gente.
Armado o General, como se achava,
Saiu do pavilhão e pronto atalha,
Que não prossiga o voador incêndio.
Poucas tendas entrega ao fogo e manda,
Sem mais demora, abrir largo caminho
Que os separe das chamas. Uns já cortam
As combustíveis palhas, outros trazem
Nos prontos vasos as vizinhas ondas.
Mas não espera o bárbaro atrevido.
A todos se adianta; e desejoso
De levar a notícia ao grande Balda
Naquela mesma noite o passo estende.
Tanto se apressa que na quarta aurora
Por veredas ocultas viu de longe
A doce pátria, e os conhecidos montes,
E o templo, que tocava o céu co’as grimpas.
Mas não sabia que a fortuna entanto
Lhe preparava a última ruína.
Quanto seria mais ditoso! Quanto
Melhor lhe fora o acabar a vida
Na frente do inimigo, em campo aberto,
Ou sobre os restos de abrasadas tendas,
Obra do seu valor! Tinha Cacambo
Real esposa, a senhoril Lindóia,
De costumes suavíssimos e honestos,
Em verdes anos: com ditosos laços
Amor os tinha unido; mas apenas
Os tinha unido, quando ao som primeiro
Das trombetas lho arrebatou dos braços
A glória enganadora. Ou foi que Balda,
Engenhoso e sutil, quis desfazer-se
Da presença importuna e perigosa
Do índio generoso; e desde aquela
Saudosa manhã, que a despedida
Presenciou dos dous amantes, nunca
Consentiu que outra vez tornasse aos braços
Da formosa Lindóia e descobria
Sempre novos pretextos da demora.
Tornar não esperado e vitorioso
Foi todo o seu delito. Não consente
O cauteloso Balda que Lindóia
Chegue a falar ao seu esposo; e manda
Que uma escura prisão o esconda e aparte
Da luz do sol. Nem os reais parentes,
Nem dos amigos a piedade, e o pranto
Da enternecida esposa abranda o peito
Do obstinado juiz: até que à força
De desgostos, de mágoa e de saudade,
Por meio de um licor desconhecido,
Que lhe deu compassivo o santo padre,
Jaz o ilustre Cacambo - entre os gentios
Único que na paz e em dura guerra
De virtude e valor deu claro exemplo.
Chorado ocultamente e sem as honras
De régio funeral, desconhecida
Pouca terra os honrados ossos cobre.
Se é que os seus ossos cobre alguma terra.
Cruéis ministros, encobri ao menos
A funesta notícia. Ai que já sabe
A assustada amantíssima Lindóia
O sucesso infeliz. Quem a socorre!
Que aborrecida de viver procura
Todos os meios de encontrar a morte.
Nem quer que o esposo longamente a espere
No reino escuro, aonde se não ama.
Mas a enrugada Tanajura, que era
Prudente e exprimentada (e que a seus peitos
Tinha criado em mais ditosa idade
A mãe da mãe da mísera Lindóia),
E lia pela história do futuro,
Visionária, supersticiosa,
Que de abertos sepulcros recolhia
Nuas caveiras e esburgados ossos,
A uma medonha gruta, onde ardem sempre
Verdes candeias, conduziu chorando
Lindóia, a quem amava como filha;
E em ferrugento vaso licor puro
De viva fonte recolheu. Três vezes
Girou em roda, e murmurou três vezes
Co’a carcomida boca ímpias palavras,
E as águas assoprou: depois com o dedo
Lhe impõe silêncio e faz que as águas note.
Como no mar azul, quando recolhe
A lisonjeira viração as asas,
Adormecem as ondas e retratam
Ao natural as debruçadas penhas,
O copado arvoredo e as nuvens altas:
Não de outra sorte à tímida Lindóia
Aquelas águas fielmente pintam
O rio, a praia o vale e os montes onde
Tinha sido Lisboa; e viu Lisboa
Entre despedaçados edifícios,
Com o solto cabelo descomposto,
Tropeçando em ruínas encostar-se.
Desamparada dos habitadores
A Rainha do Tejo, e solitária,
No meio de sepulcros procurava
Com seus olhos socorro; e com seus olhos
Só descobria de um e de outro lado
Pendentes muros e inclinadas torres.
Vê mais o Luso Atlante, que forceja
Por sustentar o peso desmedido
Nos roxos ombros. Mas do céu sereno
Em branca nuvem Próvida Donzela
Rapidamente desce e lhe apresenta,
De sua mão, Espírito Constante,
Gênio de Alcides, que de negros monstros
Despeja o mundo e enxuga o pranto à pátria.
Tem por despojos cabeludas peles
De ensangüentados e famintos lobos
E fingidas raposas. Manda, e logo
O incêndio lhe obedece; e de repente
Por onde quer que ele encaminha os passos
Dão lugar as ruínas. Viu Lindóia
Do meio delas, só a um seu aceno,
Sair da terra feitos e acabados
CANTO QUINTO
Sossegado o tumulto e conhecidas
As vis astúcias de Tedeu e Balda,
Cai a infame República por terra.
Aos pés do General as toscas armas
Já tem deposto o rude Americano,
Que reconhece as ordens e se humilha,
E a imagem do seu rei prostrado adora.
Serás lido, Uraguai. Cubra os meus olhos
Embora um dia a escura noite eterna.
Tu vive e goza a luz serena e pura.
Vai aos bosques de Arcádia: e não receies
Chegar desconhecido àquela areia.
Ali de fresco entre as sombrias murtas
Urna triste a Mireo não todo encerra.
Leva de estranho céu, sobre ela espalha
Co’a peregrina mão bárbaras flores.
E busca o sucessor, que te encaminhe
Ao teu lugar, que há muito que te espera.
http://www.jayrus.art.br/Apostilas/LiteraturaBrasileira/ArcadisPreromant/O_URAGUAI_trechos.htm
QUESTÕES
01. (CEV) A intensidade com que o poeta Basílio da Gama descreve cenas
de guerras em O Uraguai aparece já nos versos iniciais do poema:
I. Pode-se afirmar que, com isso, o poema atualiza uma das marcas do épico,
gênero poético que costuma apresentar violentas e realçadas cenas dos
campos de batalhas.
II. Pode-se afirmar que, com isso, Basílio da Gama tenta traçar um paralelo
também entre sua obra e a famosa obra grega, transferindo aos seus heróis
indígenas toda a glória celebrada aos heróis dos poemas antigos.
III. Pode-se afirmar que, com isso, Basílio da Gama ridiculariza a figura do índio
brasileiro, apresentado como guerreiro derrotado ou covarde.
a) Todas as afirmações estão corretas.
b) As afirmações I, II estão corretas e a III errada.
c) As afirmações I e III estão corretas e a II errada.
d) A afirmação I está errada e as afirmações II e III estão corretas.
e) Todas as afirmações estão erradas.
07. (USC) Por sua temática, O Uraguai, de Basílio da Gama, pode ser
considerado um poema:
a) épico;
b) lírico;
c) satírico;
d) de escárnio;
e) de profecia.
10. (UEL)
"Fumam ainda nas desertas praias
Lagos de sangue, tépidos e impuros,
Em que ondeiam cadáveres despidos,
Pasto de corvos."
Os versos acima são excerto do poema que concilia louvações dirigidas
ao Marquês de Pombal e exaltação de heroísmo indígena. Trata-se da
obra:
a) Caramuru, de Santa Rita Durão.
b) Uraguai, de Basílio da Gama.
c) Vila Rica, de Cláudio Manuel da Costa.
d) Glaura, de Silva Alvarenga.
e) Cartas chilenas, de Thomás Antônio Gonzaga
O ENREDO
Clara é uma mulata pobre, que vive no subúrbio carioca com seus pais,
Joaquim e Engrácia, mulher “sedentária e caseira.” Joaquim era carteiro,
“gostava de violão e de modinhas. Ele mesmo tocava flauta, instrumento que já
foi muito estimado em outras épocas, não o sendo atualmente como outrora”.
Também “compunha valsas, tangos e acompanhamentos de modinhas.” Além
da música, a outra diversão do pai de Clara era passar as tardes de domingo
jogando solo com seus dois amigos: o compadre Marramaque e o português
Eduardo Lafões, um guarda de obras públicas.
CASSI: O CORRUPTOR
Por intermédio de Lafões, o carteiro Joaquim passa a receber em casa o
pretendente de Clara, Cassi Jones de Azevedo, que pertencia a uma posição
social melhor. Assim o descreve Lima Barreto:
“Era Cassi um rapaz de pouco menos de trinta anos, branco,
sardento, insignificante, de rosto e de corpo; e, conquanto fosse conhecido
como consumado "modinhoso", além de o ser também por outras façanhas
verdadeiramente ignóbeis, não tinha as melenas do virtuose do violão, nem
outro qualquer traço de capadócio. Vestia-se seriamente, segundo as modas
da rua do Ouvidor; mas, pelo apuro forçado e o degagé suburbanos, as suas
roupas chamavam a atenção dos outros, que teimavam em descobrir aquele
aperfeiçoadíssimo "Brandão", das margens da Central, que lhe talhava as
roupas. A única pelintragem, adequada ao seu mister, que apresentava,
consistia em trazer o cabelo ensopado de óleo e repartido no alto da cabeça,
dividido muito exatamente ao meio — a famosa "pastinha". Não usava topete,
nem bigode. O calçado era conforme a moda, mas com os aperfeiçoamentos
exigidos por um elegante dos subúrbios, que encanta e seduz as damas com o
seu irresistível violão.”
O padrinho Marramaque, que já lhe conhecia a fama, tenta afastá-lo de
Clara quando percebe seu interesse. Na festa de aniversário da afilhada,
provoca Cassi e deixa claro que ele não é bem-vindo ali e que seria melhor que
se retirasse. Cassi vinga-se de modo violento: junta-se a um capanga e ambos
assassinam Marramaque. Clara, que já suspeitava das ameaças do rapaz ao
padrinho, passa a temê-lo, mas ele consegue seduzi-la, principalmente ao
confessar seu crime, dizendo que matou por amor a ela.
Malandro e perigoso, Cassi já havia se envolvido em problemas com a
justiça antes, mas sempre fora acobertado pela sua família, especialmente sua
mãe, que não queria que fosse preso. Assim, conseguia subornar a polícia e
continuar impune, mesmo depois de ter levado a mãe de uma de suas vítimas
ao suicídio e da perseguição da imprensa.
O exagero narrativo de Lima Barreto torna-se patente ao descrever a
figura do sedutor. Branco, sardento e de cabelos claros, é a antítese de Clara.
Como o apontou Lúcia Miguel Pereira: “Até os animais da predileção de Cassi,
os galos de briga, são apresentados com visível má vontade: ‘horripilantes
galináceos’ de ‘ferocidade repugnante’.”
O DESFECHO
Clara engravida e Cassi Jones desaparece. Convencida pela vizinha,
dona Margarida, que procurara na tentativa de conseguir um empréstimo e
fazer um aborto, ela confessa o que está acontecendo à sua mãe. É levada a
procurar a família de Cassi e pedir “reparação do dano”. A mãe do rapaz
humilha Clara, mostrando-se profundamente ofendida porque uma negra quer
se casar com seu filho. Clara “agora é que tinha a noção exata da sua situação
na sociedade. Fora preciso ser ofendida irremediavelmente nos seus melindres
de solteira, ouvir os desaforos da mãe do seu algoz, para se convencer de que
ela não era uma moça como as outras; era muito menos no conceito de todos.”
O autor representa, na figura de Clara e no seu drama, a condição social
da mulher, pobre e negra, geração após geração. No final do romance,
consciente e lúcida, Clara reflete sobre a sua situação:
“O que era preciso, tanto a ela como às suas iguais, era educar o
caráter, revestir-se de vontade, como possuía essa varonil Dona Margarida,
para se defender de Cassi e semelhantes, e bater-se contra todos os que se
opusessem, por este ou aquele modo, contra a elevação dela, social e
moralmente. Nada a fazia inferior às outras, senão o conceito geral e a
covardia com que elas o admitiam...”
E, na cena final, ao relatar o que se passara na casa da família de Cassi
Jones para a sua mãe, conclui, em desespero, como se falasse em nome dela,
da mãe e de todas as mulheres em iguais condições: “— Nós não somos nada
nesta vida.”
O UNIVERSO SUBURBANO
O romance passa-se no subúrbio carioca e Lima Barreto descreve o
ambiente suburbano com riqueza de detalhes, como os vários tipos de “casas,
casinhas, casebres, barracões, choças” e a vida das pessoas que ali vivem.
Nas palavras de Sérgio Buarque de Holanda:
"Ao oposto de Machado de Assis, que saído do Morro do Livramento
procuraria os bairros da classe média e abastada, este homem, nascido nas
Laranjeiras, que se distinguiu nos estudos de Humanidades e nos concursos,
que um dia sonhou tornar-se engenheiro, que no fim da vida ainda se gabava
de saber geometria contra os que o acusavam de não saber escrever bem,
procurou deliberadamente a feiúra e a tristeza dos bairros pobres, o avesso
das aparências brancas e burguesas, o avesso de Botafogo e de Petrópolis."
OS “BÍBLIAS”
Ao descrever o subúrbio, Lima Barreto aborda o advento dos “bíblias”,
os protestantes que alugam uma antiga chácara e passam a conquistar novos
fiéis para seu culto:
“Joaquim dos Anjos ainda conhecera a "chácara" habitada pelos
proprietários respectivos; mas, ultimamente, eles se tinham retirado para fora e
alugado aos "bíblias"… O povo não os via com hostilidade, mesmo alguns
humildes homens e pobres raparigas dos arredores freqüentavam-nos, já por
encontrar nisso um sinal de superioridade intelectual sobre os seus iguais, já
por procurarem, em outra casa religiosa que não a tradicional, lenitivo para
suas pobres almas alanceadas, além das dores que seguem toda e qualquer
existência humana.”
E reflete sobre a nova seita:
“Era Shays Quick ou Quick Shays daquela raça curiosa de yankees
fundadores de novas seitas cristãs. De quando em quando, um cidadão
protestante dessa raça que deseja a felicidade de nós outros, na terra e no céu,
à luz de uma sua interpretação de um ou mais versículos da Bíblia, funda uma
novíssima seita, põe-se a propagá-la e logo encontra dedicados adeptos, os
quais não sabem muito bem por que foram para tal novíssima religiãozinha e
qual a diferença que há entre esta e a de que vieram.”
A crítica às “novas seitas cristãs” revela também a ojeriza de Lima
Barreto à influência americana no Brasil. Como o colocou Antônio Arnoni
Prado, o autor de Clara dos Anjos “interessou-se pelos Estados Unidos, em
virtude do tratamento desumano que este país dispensava aos seus cidadãos
de cor. (…) Censurou duramente a discriminação racial americana, assim como
o expansionismo imperialista dos ‘yankees’, que, através da diplomacia do
dólar, ia, a seu ver, convertendo o Brasil num autêntico protetorado.” Nada
mais profético.
A HERANÇA NATURALISTA
O Realismo-naturalismo aparece por volta de 1870 como uma derivação
do realismo. Recebeu profunda influência de algumas das teorias e doutrinas
que estavam no auge naquele momento, sobretudo do materialismo e do
determinismo. O Naturalismo considerava a vida do homem resultado de
fatores externos (raça, ambiente familiar, classe social, etc.). Influenciado pelas
ciências experimentais, o escritor naturalista tentava demonstrar, com rigor
científico, que o comportamento humano está sujeito a leis semelhantes às que
regem os fenômenos físicos. Se o realismo pretendia ser objetivo e imitar a
realidade, o Naturalismo desejava fazer uma análise histórica, social e
psicológica da realidade, um estudo profundo a partir de uma ampla
documentação prévia.
O Realismo-naturalismo, que tanto influenciou Lima Barreto na
composição de Clara dos Anjos, é cientificista e determinista, considerando
que as ações humanas são produtos de leis naturais: do meio, das
características hereditárias e do momento histórico. Portanto, os romances
naturalistas procuravam, através da representação literária, demonstrar teses
extraídas de teorias científicas. Para isso, o Naturalismo buscou compor um
registro implacável da realidade, incluindo seus aspectos repugnantes e
grotescos. São exatamente esses os aspectos que mais chamam à atenção na
narrativa exagerada de Clara dos Anjos.
CORES AUTOBIOGRÁFICAS
Lima Barreto produziu romances, contos, crônicas, sátiras políticas,
críticas literárias e um livro de memórias. Entre suas obras, destacam-se:
Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909); Triste Fim de Policarpo
Quaresma (1915); Numa e Ninfa (1915); Vida e Morte de M.J. Gonzaga de
Sá (1919); Histórias e Sonhos (contos, 1920); Os Bruzundangas (sátira
política, 1923); O Cemitério dos Vivos (romance autobiográfico sobre sua
experiência no hospício, 1953). Nem tudo o que Lima Barreto escreveu foi
publicado em vida. Boa parte dos escritos que formam os 17 volumes de sua
obra completa teve de ser coligida dos jornais e das revistas em que colaborou.
O romance Clara dos Anjos, por exemplo, embora tenha sido concluído em
1922, só foi publicado em volume em 1948. Na sua obra, sempre explora
temas ligados à sua própria vida, como o preconceito da sociedade para com
os mestiços e pobres. Seus romances apresentam a indignação contra a
insensibilidade dos ricos, a superficialidade dos burocratas, a corrupção dos
políticos, a esterilidade dos falsos artistas.
Esse caráter autobiográfico dos seus textos foi assim demonstrado pelo
crítico literário Sérgio Buarque de Holanda, tomando como exemplo o romance
Clara dos Anjos
"As confissões a que alude surgem abertamente, "com um mínimo de
disfarce, às vezes disfarce algum", pois não são contidas por nenhum
sentimento de frustração. E é indiferente que se exprimam ora diretamente pela
boca do autor, ora pela palavra e até pela figura dos personagens. Quem, entre
os que se recordam de Lima Barreto, não reconhecerá imediatamente muitos
dos seus traços no retrato do poeta Leonardo Flores, personagem de Clara
dos Anjos? E mesmo no empolado das frases em que o poeta repele
indignado a encomenda de uns versos, que lhe é feita por intermédio do amigo
Meneses, entraria realmente alguma intenção irônica? "Nasci pobre, nasci
mulato...", diz Leonardo. E, num longo desabafo, onde se fala na fidelidade à
própria vocação, no sacrifício às coisas proveitosas, como o dinheiro, as
posições, a respeitabilidade, nas humilhações padecidas e enfim no sofrimento
resignado, exclama: "Pairei sempre no ideal; e se este me rebaixou aos olhos
dos homens, por não compreenderem certos atos desarticulados da minha
existência, entretanto elevou-me aos meus próprios, perante a munha
consciência, porque cumpri o meu dever, executei a minha missão, fui poeta!
Para isso fiz todo o sacrifício. A Arte só ama a quem a ama inteiramente, só e
unicamente; e eu precisava amá-la, porque ela representava não só a minha
redenção, mas toda a dos meus irmãos, na mesma dor."
Por Frederico Barbosa e Sylmara Beletti
QUESTÕES
01. (UFRGS-RS) Uma atitude comum caracteriza a postura literária de
autores pré-modernistas, a exemplo de Lima Barreto, Graça Aranha,
Monteiro Lobato e Euclides da Cunha. Pode ela ser definida como:
a) a necessidade de superar, em termos de um programa definido, as estéticas
românticas e realistas.
b) pretensão de dar um caráter definitivamente brasileiro à nossa literatura, que
julgavam por demais europeizada.
c) a necessidade de fazer crítica social, já que o realismo havia sido ineficaz
nessa matéria.
d) uma preocupação com o estudo e com a observação da realidade brasileira,
em seus aspectos problemáticos e, muitas vezes, negligenciados pela
Literatura.
e) aproveitamento estético do que havia de melhor na herança literária
brasileira desde suas primeiras manifestações.
03. (Unimontes) Sobre o livro Clara dos Anjos, de Lima Barreto, é correto
afirmar:
01) A narrativa expressa a desgraça individual e coletiva da gente de cor e
pobre no Brasil.
02) O livro privilegia os desconcertos da classe burguesa, do início do século
XX.
04) A novela dissimula as simpatias e predileções sociais do romancista
brasileiro.
08) A obra representa um enfoque da situação do negro e seus descendentes
posteriormente à abolição da escravidão no Brasil.
16) Podemos dizer que há uma relação de maniqueísmo dentro do romance,
entre protagonista e vilão.
07. (UEM 2005) "A política da república, como toda a gente sabe, é paternal e
compassiva no tratamento das pessoas humildes que dela necessitam; e,
sempre, quer se trate de humildes, quer de poderosos, a velha instituição
cumpre religiosamente a lei. Vem-lhe daí o respeito que aos políticos os seus
empregados tributam e a procura que ela merece desses homens, quase
sempre interessados no cumprimento das leis que discutem e votam."
(Lima Barreto. "O 'homem' chegou". In: Melhores Contos)
NOVE NOITES
BERNARDO DE CARVALHO
1. DADOS DO AUTOR
Bernardo Teixeira de Carvalho (Rio de Janeiro RJ
1960). Romancista, contista, jornalista e tradutor. No
ano de 1983 forma-se jornalista pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ).
Ainda na década de 1980 radica-se na cidade de São
Paulo e a partir de 1986 trabalha na Folha de S.Paulo,
jornal no qual exerce função de diretor do suplemento
de ensaios Folhetim, é correspondente internacional
em Paris e posteriormente em Nova York e, entre
1998 e 2008, colunista fixo do caderno de cultura
Ilustrada. Com dissertação a respeito da obra de Wim
Wenders, obtém grau de mestre em cinema pela Escola de Comunicações e
Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) no ano de 1993, quando
também lança a coletânea de contos Aberração, que marca sua estreia na
literatura. Seu primeiro romance sai em 1995 e, desde então, tem publicado
traduções e exercido a função de crítico literário.
2. OBRA COMPLETA
§ 1993 Aberração (coletânea de contos)
§ 1995 Onze (romance)
§ 1996 Os Bêbados e os Sonâmbulos (romance)
§ 1998 Teatro (romance)
§ 1999 As Iniciais (romance)
§ 2000 Medo de Sade (romance)
§ 2002 Nove Noites (romance)
§ 2003 Mongólia (romance)
§ 2007 O Sol se Põe em São Paulo (romance)
§ 2009 O Filho da Mãe (romance)
§ 2013 Reprodução (romance)
§ 2016 Simpatia pelo demônio (romance)
3. PRINCIPAIS PRÊMIOS:
§ 2003 – Prêmio Portugal Telecom – 1º lugar(Nove Noites)
§ 2003 – Prêmio APCA – Categoria Romance(Mongólia)
§ 2004 – Prêmio Jabuti – Categoria Romance(Mongólia)
§ 2014 - Prêmio Jabuti por Reprodução, categoria romance
4. CARACTERÍSTICAS DA OBRA
Nove Noites desconstrói as estratégias da narrativa realista e propõe um
jogo com o real, jogo no qual, além de desconstruir as estratégias da narrativa
realista, este romance desafia os modos nos quais a cultura de massas
"consome" realidade.
FICÇÃO e REALIDADE
A história de Quain é verdadeira. O autor soube dela por um artigo no
"Jornal de Resenhas", da "Folha de S. Paulo", escrito pela antropóloga Mariza
Corrêa, em que o caso era citado de passagem.
A história do escritor, ao menos em parte, também procede: na orelha do
livro há uma foto de Carvalho, aos seis anos, ao lado de um índio do
Xingu, região onde seu pai de fato fora proprietário de terras (em edições mais
recentes esta foto constitui a capa da obra). O resto permanece em suspense
- e nem o próprio autor parece disposto a separar fato de ficção.
Mas as armadilhas do texto, que transita entre o documentário e o
ficcional, entre o subjetivo e o histórico, e mistura tudo, não oferecem ao
leitor nenhuma possibilidade de confiar.
Tendo como base o caso fatídico de Buell Quain, Bernardo Carvalho vai
entrelaçando história e ficção, histórias mais ou menos documentadas, numa
visão parcial. Diante da impossibilidade de apreender a realidade na sua
totalidade, a literatura, em sua estruturação ficcional, ganha o território do
incerto e do inquietante, do que ainda não foi. Em “Agradecimentos”, final de
Nove Noites, o autor deixa evidente o caráter fictício de sua narrativa.
A METALINGUAGEM
Trata-se de um texto que se apresenta como um relato ou meta-relato,
ou seja, como uma narrativa ficcional assinada por Bernardo Carvalho.
TÍTULO
Buell Quain passou nove noites na companhia do narrador personagem,
Manoel Perna.
A HISTÓRIA DE QUAIN
O narrador-autor deparou-se com a atraente história de Buell Quain
quando leu um artigo de jornal, na manhã de 12 de maio de 2001, um
sábado, quase sessenta e dois anos depois da morte desse antropólogo, às
vésperas da Segunda Guerra. O artigo relatava a história do antropólogo, que
havia morrido entre os índios do Brasil, Buell Quain, que se suicidou entre
os índios Krahô.
O narrador procurou a antropóloga que havia escrito o artigo e
demonstrou sua curiosidade pelo caso do etnólogo suicida. A partir das
primeiras pistas indicadas por essa mulher, o narrador começa a montar um
quebra-cabeça, na tentativa de investigar a biografia e o suicídio de Buell
Quain. Buell Quain se matou na noite de 2 de agosto de 1939, no ano de
abertura da Segunda Guerra.
Q uain, “quando se matou, tentava voltar a pé da aldeia de Cabeceira
Grossa para Carolina, na fronteira do Maranhão com o que na época ainda
fazia parte de Goiás e hoje pertence ao estado do Tocantins. Tinha vinte e
sete anos.”
Quain, nas últimas horas que precederam o suicídio, escreveu aos
prantos pelo menos sete cartas. Essas cartas foram endereçadas:
GÊNERO DA OBRA
Nove Noites trata-se de uma narrativa que se apresenta como um misto
de romance-reportagem e de romance-policial; uma escrita que se apóia
numa obsessão investigativa, na tentativa de averiguar fatos ocultos, na busca
incessante pela verdade.
O texto é intrigante, promovendo a inquietação e desconfiança de
seus narradores e leitores. No final das contas a obra é uma espécie de
simulacro dos gêneros policial, reportagem, documentário, enfim, daquilo
que se pode chamar da literatura-verdade, já que a investigação, no fim das
contas termina como começa, isto é, a dúvida que gera o livro permanece
ao final dele. Tanto para os leitores comuns de romances policiais ou de obras
documentais o final de Nove Noites se mostra frustrante, pois as pistas, a
investigação e a busca de provas factuais não esclarecem a verdadeira razão
do suicídio de Quain. Temos, por fim, que o romance mais de que do que
sobre uma resposta é sobre a história de uma busca. Uma busca pelo outro
que acaba sendo em última instância uma busca de si.
NARRATIVA PSEUDO-POLICIAL
A pesquisa sobre a morte de Quain vai construindo uma trama pseudo-
policial no romance, mas se revela menos como caminho à verdade do que
como elaboração de uma hipótese, ou mesmo de uma ficção. Porque cada um
dos documentos que o narrador encontra ao mesmo tempo que revelam,
encobrem.
As cartas que documentam aspectos da história teriam sido duvidosamente
traduzidas, sobre elas se constrói o testamento, que sabemos falso.
O narrador vai em busca do filho do velho que morrera no hospital,
achando que esse velho poderia ter sido o fotografo amigo de Quain, mas
quando o encontra, acha que seus traços se parecem não aos do velho mas
aos de Quain.
Outra característica de suspense policial da narrativa é que apenas
no final da narrativa há como identificar o destinatário da carta de Perna
com um fotógrafo antigo “amigo” de Quain, que teria sido seu amante.
CARTA-TESTAMENTO FICTÍCIA
Assim, o testamento de Manoel Perna, o amigo que passara "nove
noites" com Quain, que é um documento chave da pesquisa, no entanto, é
escrito – inventado - pelo próprio narrador (segundo ele próprio confessa,
quase no final do romance, desestabilizando completamente o estatuto de
verdade dos fatos narrados).
Ou seja, a "prova" principal, o fio narrativo da historia de Quain, é declarada
falsa "na cara" do leitor. E, apesar da decepção, o interesse se mantém, e até
aumenta depois dessa revelação, pois o que interessa é mais a própria
pesquisa do que alguma suposta verdade sobre Quain: interessa a relação do
narrador com essa história e aonde ela o conduzirá.
Esse personagem, o Manoel Perna, é uma espécie de desejo do autor
de resolver as lacunas que não são resolvidas pela pesquisa.
Nas palavras de Bernardo Carvalho: “Várias pistas me induziam a certas
conclusões, mas eu não tinha certeza. Precisava de um negócio que fechasse.
E a única pessoa que podia ter visto era ele. Por isso logo no início percebi que
ele seria um dos narradores. No livro ele aparece como engenheiro. Na
verdade, ele era barbeiro. Mas achei que ia ficar muito inverossímil, ele
escrevendo daquele jeito empolado com essa profissão. Foi a única coisa que
eu mudei com relação a ele”.
Através do olhar ou da imaginação do narrador-epistolar, tem-se explicitada a
intimidade do antropólogo, bem como um efeito de cumplicidade entre esse
narrador e o destinatário ausente.
PERSONAGEM-LEITOR
A escrita se torna totalmente paranóica ao ponto que nada mais parece
confiável. A "realidade" da ficção se desmancha. As histórias dependem
antes de tudo da confiança de quem as ouve (p. 8), diz o narrador. Bernardo
Carvalho, além do mistério, também produz uma ambigüidade semântica
atrelada ao dêitico “você”. O pronome de tratamento refere-se ao destinatário
secreto ao mesmo tempo em que se dirige a qualquer um que poderia ter
acesso à carta ou à narrativa e, nesse caso, o “você” passa a ser o leitor,
grande personagem que tenta desvendar os enigmas do texto.
MEMÓRIA
No livro uma experiência traumática se configura como uma máquina
de tempo, que relaciona momentos da história nacional. Assim, a história do
suicídio de Bell Quain acaba mexendo com o trauma do próprio narrador.
Quando ele está no hospital acompanhando o pai no seu leito de morte,
testemunha a última hora de um velho desconhecido, que ocupa a cama do
lado, e que está morrendo em solidão. O velho, no seu delírio, chama o
narrador de "Bill Cohen", confundindo-o com um amigo de juventude. Muitos
anos depois, o nome de "Buell Quain", mencionado num jornal, traz no
narrador a reminiscência daquele outro nome que ouvira pronunciado pelo
velho. Mas não é o mesmo nome, o narrador o deixa bem claro: de repente me
lembrei de onde o tinha ouvido antes e, fazendo a devida correção ortográfica
na minha cabeça, descobri de quem falava o velho americano no hospital (p.
147) (...)em momento nenhum deixei de desconfiar da possibilidade, ainda
que pequena, de uma confusão ou de um delírio da minha parte. Podia ter
ouvido errado, os meses que precederam a morte do meu pai foram
especialmente tensos, e eu não andava com a cabeça no lugar (p.153). Ou
seja, a leitura do nome do antropólogo no jornal se torna disparador da
experiência traumática, entendendo por ela a resposta a um evento ou
eventos violentos inesperados ou arrebatadores, que não são
inteiramente compreendidos quando acontecem, mas que retornam mais
tarde em flashbacks, pesadelos e outros fenômenos repetitivos.
Em Nove noites o passado não deixa de retornar (na estrutura em abismo,
na qual um tempo contém o passado e o futuro), retornam os rostos, as
lembranças, as experiências.
A METÁFORA DO CARACOL
Nesse sentido da memória é importante relembrar do nome que Quain recebe
entre os índios, que significa um caracol junto com o rastro que o mesmo
deixa.
QUAIN x CARVALHO
Em Nove Noites, o personagem histórico "biografado" – o Bell Quain - e o
narrador "biógrafo" não se relacionam alegoricamente, mas sim
metonimicamente. A obsessão pelo suicídio do antropólogo no Xingu revela um
trauma do próprio narrador, que teria convivido na infância com os índios: a
representação do inferno (...) fica no Xingu da minha infância (p. 60). Na busca
de dados sobre Quain, o narrador volta ao Xingu para ouvir o que os índios
lembram do Quain. Mas não consegue nenhuma informação, e em troca é ele
quem lembra da infância, quando acompanhava o pai nas viagens pelas
suas fazendas de Mato Grosso e Goiás.
Alegórica ou metonimicamente, a subjetividade do autor-narrador se
coloca no texto através de um mergulho numa outra subjetividade com a
qual o narrador estabelece um jogo. E em ambos os casos o que relaciona
essas duas subjetividades é um trauma: o trauma dos intelectuais na
ditadura, num caso, e o trauma da morte no outro.
Há também a relação de ambos com as populações indígenas:
(...) Mas se para Quain, que saía do Meio-Oeste para a civilização, o exótico foi
logo associado a uma espécie de paraíso (...) para mim as viagens com o meu
pai proporcionaram antes de mais nada uma visão e uma consciência do
exótico como parte do inferno. (p.64)
Quain vivia em busca de si mesmo ou se escondendo. Buscava um
ponto de vista que não estivesse no campo de sua própria visão, vivendo como
um estrangeiro para si mesmo. Buell Quain sempre teve fascínio pelas ilhas,
pelos universos isolados. Bernardo também isola-se da família, indo morar
em outros países, assim como Quain também possui relações familiares
complexas e, principalmente, assim como o antropólogo vindo ao Brasil, o
escritor parece com o livro buscar também um pouco de si, de sua
identidade e de seu passdo.
SUBSTITUIÇÃO e DESLOCAMENTO
A morte do pai, que ocorrera estando ele ausente, apenas é
relatada: era o dia da minha partida. Minha vida seguiu o seu rumo. Meu pai
morreu três meses depois. Fiquei três anos fora. Até a própria sintaxe - seca,
mínima - desloca a importância do fato da morte do pai. No entanto, se o
narrador chega – na imaginação do velho - como substituto de Quain; em troca
o velho oferece a possibilidade de testemunhar sua morte, em substituto
da morte do pai, que ocorrera quando ele já tinha partido. Essa troca de
papéis (a morte do velho substituindo a do pai, a chegada do narrador
substituindo a do velho amigo Quain) funciona como um deslocamento, que
pode explicar por que o mistério da morte de Quain provoca uma obsessão,
uma vez que ele remete à cena misteriosa de primeira vez que o narrador
vira um homem morrer e, é claro, ao mistério da morte silenciosa do pai.
A QUESTÃO SEXUAL
Perpassa o livro, entre outros mistérios ou informações nebulosas
que envolvem a vida de Quain, a questão de sua sexualidade. São várias as
pistas, insinuações e relatos sobre sua vida sexual e amorosa e o quanto isso
teria sido decisivo nas suas escolhas durante a vida. Uma das dúvidas é sobre
se ele era ou não casado, apesar de ter afirmado isso na sua chegada ao
Brasil, nada confirma tal informação. Também é a ambigüidade que marca os
relatos sobre suas relações sexuais e amorosas, ao final do que se é colhido
na narrativa temos que ele mantinha relações com prostitutas, também há
uma sugestão de homossexualidade na sua relação com os índios negros
que conhecera em sua viagem a Fijii, também na relação com o amigo
fotógrafo e até nos contatos com Manuel Perna e o antropólogo Levis-
Strauss. A sua relação com a prostituta que seria sua esposa-namorada-
amante e que suspeita-se ter tido um caso com seu amigo fotógrafo.
O SUICÍDIO
Obviamente que o suicídio se faz uma temática central dentro da narrativa
mesmo porque tal tema não se restringe apenas a Quain, mas também aos
próprios índios trumai que o antropólogo estudava.
“Nove Noites” tem uma linguagem mais simples do que seus outros
livros. É uma mudança que deve vigorar?
Carvalho: Não diria. Eu gosto dos outros, eu gosto da frase labiríntica. O que
eu acho é que, nos outros, é como se a linguagem estivesse à procura da
história, ao passo que no “Nove Noites” a história está a priori. Por isso o livro
parece mais um relato. A idéia era ele se aproximar do espírito de um livro de
jornalismo. Mas apenas se aproximar. As partes em itálico, por exemplo. Muita
gente veio me dizer que tinha achado lindos aqueles trechos. Quando na
verdade eu nunca teria coragem de escrever daquele jeito. Acho brega. O
personagem que escreve aquilo, o Manoel Perna, é um popular dos anos 40
tentando ser literato. Por isso a linguagem é floreada daquele jeito. Mas, no
contexto geral, é verdade. Esse livro tem uma linguagem mais simples que os
outros.
QUESTÕES
01. A partir da leitura da obra Nove noites, é INCORRETO afirmar que:
a) O relato do narrador-jornalista desdobra-se em três tempos diferentes
articulados pelo enigma da morte de Buell Quain.
b) O narrador-epistolar apresenta uma escrita fidedigna com relação aos
depoimentos do antropólogo americano.
c) O engenheiro sertanejo escreve em meados dos anos 40, quando pressente
a iminência da própria morte e relembra as “nove noites” em que estivera com
o etnólogo.
d) O jornalista que escreve em 2002 não é o único a ocupar a posição de
narrador.
16. A leitura de Nove noites, só NÃO permite depreender que Buell Quain
era um sujeito
a) Arredio.
b) Desprendido.
c) Introspectivo.
d) Ganancioso.
SAGARANA
JOÃO GUIMARÃES ROSA
1. DADOS BIOGRÁFICOS
João Guimarães Rosa nasceu em Codisburgo (MG) e
morreu no Rio de Janeiro em 1967. Filho de um
comerciante do centro-norte de Minas, fez os primeiros
estudos na cidade natal, vindo a cursar Medicina em
Belo Horizonte. Formado Médico, trabalhou em várias
cidades do interior de Minas Gerais, onde tomou
contato com o povo e o cenário da região, tão
presentes em suas obras. Autodidata, aprendeu
alemão e russo, e tornou-se diplomata, trabalhando
em vários países. Veio a ser Ministro no Brasil no ano
de 1958, e chefe do Serviço de Demarcação de Fronteiras, tratando de dois
casos muito críticos de nosso território: o do Pico da Neblina e das Sete
Quedas. Seu reconhecimento literário veio mesmo na década de 50, quando
da publicação de Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile, ambos de 1956.
Eleito para ocupar cadeira na Academia Brasileira de Letras no ano de 1963,
adiou sua posse por longos anos. Tomando posse no ano de 1967, morreu
três dias depois, vítima de um enfarte.
2. CARACTERÍSTICAS LITERÁRIAS
Guimarães Rosa é figura de destaque dentro do Modernismo. Isso se
deve ao fato de ter criado toda uma individualidade quanto ao modo de
escrever e criar palavras, transformando e renovando radicalmente o uso da
língua.
Em suas obras, estão presentes os termos coloquiais típicos do sertão,
aliados ao emprego de palavras arcaicas que já estão praticamente em
desuso. Há também a constante criação de neologismos nascidos a partir de
formas típicas da língua portuguesa, denotando o uso constante de
onomatopéias e aliterações. O resultado disso tudo é a beleza de palavras
como "refrio", "retrovão", "levantante", "desfalar", etc., ou frases brilhantes
como: "os passarinhos que bem-me-viam", "e aí se deu o que se deu – o isto
é".
A linguagem toda caracterizada de Guimarães Rosa reencontra e
reconstrói o cenário mítico do sertão tão marginalizado, onde a economia
agrária já em declínio e a rusticidade ainda predominam. Os costumes
sertanejos e a paisagem, enfocada sob todos os seus aspectos, são
mostrados como uma unidade, cheia de mistérios e revelações em torno da
vida. A imagem do sertão é, na verdade, a imagem do mundo, como se
prega em Grande Sertão: Veredas. O sertanejo não é simplesmente o ser
humano rústico que povoa essa grande região do Brasil. Seu conceito é
ampliado: ele é o próprio ser humano, que convive com problemas de ordem
universal e eterna. Problemas que qualquer homem, em qualquer região,
enfrentaria. É o eterno conflito entre o ser humano e o destino que o espera,
a luta sem tréguas entre o bem e o mal dentro de cada um, Deus e o diabo, a
morte que nos despedaça, e o amor que nos reconstrói, num clima muitas
vezes mítico, mágico e obscuro, porém muitas vezes contrastando com a
rusticidade da realidade. Seus contos seguem também, de certa forma, a
mesma linha desenvolvida dentro de seu único romance.
3. PRINCIPAIS OBRAS
Romances
Grande Sertão: Veredas (1956).
Contos
Sagarana (1946); Corpo de Baile (1956); Primeiras Estórias (1962);
Tutaméia – Terceiras Estórias (1967); Estas Estórias (1969); Ave, Palavra
(1970).
4. RESUMOS DOS ENREDOS
O livro principia por uma epígrafe, extraída de uma quadra de desafio,
que sintetiza os elementos centrais da obra : Minas Gerais, sertão , bois
vaqueiros e jagunços , o bem e o mal:
O BURRINHO PEDRÊS
A trama desse conto, como nas demais narrativas de Guimarães Rosa,
é relativamente simples. O velho burrinho Sete-de-Ouros, por falta de outras
montarias, é engajado para levar uma boiada vendida pelo dono da fazenda, o
major Saulo. Durante a viagem, ficamos sabendo que o vaqueiro Silvino quer
matar o vaqueiro Badu, por causa de uma moça. Francolim, que é uma espécie
de ajudante-de-ordens do major, denuncia a briga ao patrão, mas nada é feito
para evitá-la.
Silvino chega a provocar um acidente, com o intuito de fazer os bois
atropelarem Badu. Quando vê que não consegue matá-lo desta forma, planeja
fazê-lo pessoalmente, na viagem de volta, depois de atravessarem o ribeirão
cheio pelas chuvas. Nesse retorno, Badu está bêbado. Por isso, os demais
vaqueiros deixam-no com o burrinho Sete-de-Ouros. Ao atravessarem o
ribeirão, morrem na enchente oito vaqueiros, inclusive Silvino. Badu é salvo
heroicamente pelo Sete-de-Ouros, que consegue chegar à outra margem e ao
descanso merecido. Traz, vitorioso, o bêbado apaixonado na sela e Francolim
agarrado no rabo...
SARAPALHA
Há uma narrativa principal, que é bem simples: dois primos (Argemiro e
Ribeiro), atacados pela febre terçã, recusam-se a sair de onde estão, a fazenda
de Ribeiro. Enquanto esperam chegar os acessos da febre, vão lamentando a
doença e a partida da esposa de Ribeiro. Em certo momento, Argemiro revela
que havia se apaixonado pela esposa do outro, mas sem ter faltado com o
menor respeito a eles, já que nunca contara o fato a ninguém. Ao saber disso,
Ribeiro o expulsa da fazenda, e Argemiro vê-se obrigado a enfrentar o mato,
todo enfeitado, tremendo também com a sezão (febre).
A outra história que aparece no conto é a da partida da esposa de
Ribeiro, que o abandonou por um vaqueiro. Ribeiro, entretanto, prefere ouvir
uma história em que ela é raptada pelo diabo...
DUELO
Turíbio Todo é um seleiro papudo, vagabundo, vingativo e mau, nas
palavras do narrador. E sua esposa não parece Ter melhor caracterização,
uma vez que trai o marido e depois finge aceitá-lo de volta, sem se desligar do
amante.
O militar Cassiano, um Don Juan, amante da esposa de Turíbio, é
surpreendido (sem saber) em flagrante pelo marido traído. Para vingar o
adultério, Turíbio pensa assassinar o rival, mas descobre que matara na
verdade o irmão dele. Inicia-se aí uma Segunda vingança: não mais um marido
buscando o amante da esposa, mas um homem (Cassiano) buscando o
assassino do irmão.
Turíbio, então, passa de perseguidor a perseguido e, embora ao alvejar
o homem errado tenha demonstrado incompetência, consegue escapar às
perseguições de Cassiano, querendo cansá-lo. O militar sofria do coração e,
com o esforço da perseguição, poderia encontrar a morte, por causa da
doença.
Até esse ponto, Turíbio acerta. O coração fraco de Cassiano leva-o à
morte, mas o destino tece armadilhas totalmente inesperadas. A vingança de
Cassiano se completa pelas mãos de um capiau, que, de acordo com o quer
prometera ao militar, em seu leito de morte, encontra Turíbio e
inesperadamente o mata.
MINHA GENTE
O protagonista-narrador vai passar uma temporada na fazenda de seu tio
Emílio, no interior de Minas Gerais. Na viagem é acompanhada por Santana,
inspetor escolar, e José Malvino. na fazenda, seu tio está envolvido em uma
campanha política. O narrador testemunha o assassinato de Bento Porfírio,
mas o crime não interfere no andamento da rotina da fazenda. O narrador tenta
conquistar o amor da prima Maria Irma e acaba sendo manipulado pro ela e
termina casando-se com Armanda, que era noiva de Ramiro Gouvea.
Maria Irma casa-se com Ramiro. Histórias entrecruzam-se na narrativa: a
do vaqueiro que buscava uma rês desgarrada e que provocara os
marimbondos contra dois ajudantes; o moleque Nicanor que pegava cavalos
usando apenas artimanhas; Bento Porfírio assassinado por Alexandre Cabaça;
o plano de Maria Irma para casar-se com Ramiro.
Mesmo contendo os elementos usuais dos outros contos analisados até
aqui, este conto difere no foco narrativo na linguagem utilizada nos demais. O
autor utiliza uma linguagem mais formal, sem grandes concessões aos
coloquialismos e onomatopéias sertanejas. Alguns neologismos aparecem:
suaviloqüência, filiforme, sossegovitch, sapatogorof - mas longe da melopéia
vaqueira tão gosto do autor.
A novidade do foco narrativo em primeira pessoa faz desaparecer o
narrador onisciente clássico, entretanto quando a ação é centrada em
personagens secundárias – Nicanor, por exemplo - a onisciência fica
transparente.
É um conto que fala mais do apego à vida, fauna, flora e costumes de
Minas Gerais que de uma história plana com princípios, meio e fim. Os
"causos" que se entrelaçam para compor a trama narrativa são meros
pretextos para dar corpo a um sentimento de integração e encantamento com a
terra natal.
SÃO MARCOS
Há duas histórias neste conto. Uma delas, bem menor, é inserida no
meio da outra, que conta a desavença entre o narrador e um feiticeiro. Por ter
ridicularizado o negro Mangalô. José, o protagonista, torna-se alvo de uma
bruxaria. Mangalô constrói um boneco-miniatura do inimigo, e coloca uma
venda em seus olhos, o que faz José ficar cego, perdendo-se no meio do mato.
Para conseguir achar o caminho de volta, mesmo sem enxergar, ele reza a
oração de São Marcos, sacrílega e perigosa.
-Em nome de São Marcos e de São Manços, e do Anjo Mau, seu e meu
companheiro...
-Ui! Aurísio Manquitola pulou para a beira da estrada, bem para longe de
mim, se persignando, e gritou:
-Pára, creio-em-Deus-padre" Isso é reza brava...
Com o poder dado pela oração, mesmo cego José encontra a casa de
Mangalô, ataca o negro e o obriga a desfazer a feitiçaria.
A outra história, dentro desta, constitui um pequeno episódio no qual
José fala de um bambual onde ele e um desconhecido travam um duelo
poético; o desconhecido fazendo quadrinhas populares, e ele colocando
poemas como nomes de reis babilônicos.
CORPO FECHADO
Esta é uma história de valentões e de espertos, de violência e de
mágica: Manuel Fulô (aliás, Manuel Viga, ou Manuel Flor, ou Mané das Moças,
ou Mané-minha-égua) era dono de uma bela mulinha, na qual se exibia todo
orgulhoso. Por conviver algum tempo com os ciganos, aprendeu deles toda a
sorte de truques possíveis, envolvendo animais de montaria. Quando decide
casar, Targino, um dos valentões (aliás, um dos últimos) da cidade cisma em
ter para si a noite de núpcias:
-Escuta, Mané Fulô: a coisa é que eu gostei da Das Dor, e venho visitar
sua noiva, amanhã...Já mandei recado, avisando a ela...(...) um dia só, depois
vocês podem se casar...Se você ficar quieto, não te faço nada...
Para enfrentar o valentão, Manuel faz uma troca com uma espécie de
curandeiro da vila: dá-lhe sua mulinha e em troca o outro faz um feitiço para lhe
fechar o corpo. Então, Manuel sai à rua a fim de enfrentar Targino, com a
reprovação de todos. Acontece que este erra todos os tiros e Manuel o mata
com sua faquinha.
CONVERSA DE BOIS
O conto Conversa de Bois está inserido entre aqueles que compõem o
primeiro livro do autor: é o penúltimo entre os nove contos que se encontram
em SAGARANA, livro publicado em 1946.
A marca roseana de contador de "causos" aparece logo no primeiro
parágrafo: "Que já houve um tempo em que eles conversavam, entre si e com
os homens, é certo e discutível, pois que bem comprovado nos livros das fadas
carochas ( ..) "
O narrador abre a história contando um fato: houve um tempo em que os
bichos conversavam entre eles e com os homens e põe em dúvida se ainda
podem fazê-lo e serem entendidos por todos : "por você, por mim, por todo
mundo, por qualquer filho de Deus?!"
Manuel Timborna diz que sim, e indagado pelo narrador se os bois
também falam, afirma que "Boi fala o tempo todo", dispondo-se a contar um
caso acontecido de que ele próprio sabe notícia. Onarrador dispõe-se a escutá-
lo, mas " só se eu tiver licença de recontar diferente, enfeitado e acrescentando
pouco a pouco." Timborna concorda e inicia sua narração.
O narrador nos dirá que o fato começou na encruzilhada de Ibiúva, logo
após a cava do Mata-Quatro, em plena manhã, por volta das dez horas,
quando a irara Risoleta fez rodopiar o vento. A cantiga de um carro de bois
começou a chegar, deixando ouvir-se de longe.
Tiãozinho, o menino guia, aparece na estrada: "(...) um pedaço de gente,
com a comprida vara no ombro, com o chapéu de palha furado, as calças
arregaçadas, a camisa grossa de riscado, aberta no peito(...) Vinha triste, mas
batia ligeiro as alpercatinhas, porque, a dois palmos da sua cabeça,
avançavam os belfos babosos dos bois de guia - Buscapé, bi-amarelo (...)
Namorado, caracúsapiranga, castanho-vinagre tocado a vermelho.(...) Capitão,
salmilhado, mais em branco que amarelo, (...) Brabagato, mirim malhado de
branco e de preto. ( ...) Dançador, todo branco (...) Brilhante, de pelagem
braúna, ( ...) Realejo, laranjo-botineiro, de polainas de lã branca e Canindé,
bochechudo, de chifres semilunares(...)." O carreiro Agenor Soronho,
"Homenzarrão ruivo, (...) muito mal encarado" é apresentado aos leitores. Lá
vai o carro de bois, carregado de rapaduras, dirigido por Soronho que tinha um
orgulho danado de nunca ter virado um carro, desviado uma rota. Quem ia
triste era Tiãozinho, fungando o tempo inteiro, semi-adormecido pela vigília do
dia anterior, deixava um fio escorrendo das narinas. Ia cabisbaixo e infeliz: o
pai morrera na véspera e estava sendo levado de qualquer jeito:
"Em cima das rapaduras, o defunto. Com os balanços, ele havia rolado
para fora do esquife, e estava espichado, horrendo. O lenço de amparar o
queixo, atado no alto da cabeça, não tinha valido nada : da boca, dessorava
um mingau pardo, que ia babujando e empestando tudo. E um ror de moscas,
encantadas com o carregamento duplamente precioso, tinham vindo também."
Os bois conversam, tecem considerações sobre os homens: "- O homem
é um bicho esmochado, que não devia haver." Para os bois, Agenor é um bicho
: "homem-do-pau-comprido-com-o-marimbondo-na-ponta". Comentam dele as
covardias e despropósitos, sabem que não é tão forte quanto um boi.
O carreiro Soronhopára para conversar com uns cavaleiros, entre eles uma moça,
que ficam sabendo sobre a morte do pai do menino. Tiãozinho, que já começara a
espantar a tristeza, recebe-a toda de volta. Despedem-se e Agenor usa de novo o
aguilhão contra os animais. Os bois recomeçam a conversa : "Mas é melhor não pensar
como o homem..."
Reconhecem que Agenor Soronho é mau; o carreiro grita com eles.
Começam a distinguir como trata o menino ( "Falta de justiça, ruindade só.").
Encontram João Bala que teve o carro acidentado no Morro do Sabão; a falta
de fraternidade de Soronho não permite que o outro carreiro seja ajudado.
Tiãozinho, debaixo do sol escaldante, agora se recorda do pai: há anos
vinha cego e entrevado, por cima do jirau: "Às vezes ele chorava , de noite,
quando pensava que ninguém não estava escutando. Mas Tiãozinho, que
dormia ali no chão, no mesmo cômodo da cafua, ouvia, e ficava querendo
pegar no sono, depressa, para não escutar mais... Muitas vezes chegava a
tapar os ouvidos, com as mãos. Mal-feito! Devia de ter, nessas horas, puxado
conversa com o pai, para consolar... Mas aquilo era penoso... Fazia medo,
tristeza e vergonha, uma vergonha que ele não sabia nem por que, mas que
dava vontade na gente de querer pensar em outras coisas... E que impunha,
até, ter raiva da mãe... ( ...) Ah, da mãe não gostava! Era nova e bonita, mas
antes não fosse... Mãe da gente devia de ser velha, rezando e sendo séria, de
outro jeito... Que não tivesse mexida com outro homem nenhum... Como é que
ele ia poder gostar direito da mãe? ... "
O leitor compreenderá , então, na continuidade do Discurso Indireto Livre
que a mãe de Tiãozinho era amante de Agenor Soronho: "Só não embocava
era no quartinho escuro, onde o pai ficava gemendo; mas não gemia enquanto
o Soronho estava lá, sempre perto da mãe, cochichando os dois, fazendo
dengos... Que ódio!..." Os bois se apiadem daquele "bezerro- de- homem" tão
judiado e sofredor. Órfão, sozinho, a recordação da mãe não traz conforto. O
carreiro, que já fora patrão do pai e seria o patrão do menino, exige-lhe muito
mais que suas forças podiam oferecer: "- Entra p¹ra o lado de lá, que aí está
embrejando fundo... Mais, dianho!... Mas não precisa de correr, que não é
sangria desatada!... Tu não vai tirar o pai da forca, vai?... Teu pai já está morto,
tu não pode pôr vida nele outra vez!... Deus que me perdoe de falar isso, pelo
mal de meus pecados, mas também a gente cansa de ter paciência com um
guia assim, que não aprende a trabalhar... Oi, seu mocinho, tu agora mesmo
cai de nariz na lama! ... - E Soronho ri, com estrépito e satisfação."
Os bois observam, conversam, tramam. Resolvem matar Soronho,
livrando, portanto, o menino de toda a injustiça futura": "- E o bezerro-de-
homem-que-caminha-sempre-na-frente-dos-bois? - O bezerro-de-homem-que-
caminha-sempre-adiante vai caminhandodevagar... Ele está babando água dos
olhos..."
Percebendo que Soronho está dormindo, que descansa o aguilhão ao seu
lado, combinam derrubá-lo do carro, num solavanco repentino. Matam o
carreiro, livram o menino. Quase degolado pela roda esquerda, lá está o
carreiro: menos força que os bois, menos inteligência que eles. Tiãozinho está
livre, Agenor quase degolado jaz no chão.
5. CARACTERÍSTICAS DA OBRA
Neste livro, um conjunto de sagas - histórias épicas, folclóricas, de amor,
mistério e aventura - universaliza o sertão, mistura o popular e o erudito,
fecunda de vida o mundo primitivo e mágico dos Gerais.
Sagarana reúne nove contos nos quais estão presentes os temas
básicos de João Guimarães Rosa: a aventura, a morte, os animais
metaforizados em gente, as reflexões subjetivas e espiritualistas. Cinco
deles - O burrinho pedrês, Duelo, São Marcos, A hora e a vez de Augusto
Matraga e Corpo fechado - trazem para os sertões de Minas Gerais peripécias
de antigas histórias épicas ou heróicas. O lirismo dos temas do amor e da
solidão transparece em Sarapalha e Minha gente. Em A volta do marido
pródigo há uma espécie de heroísmo gaiato, enquanto que as reflexões sobre
o poder e a fraqueza centralizam-se em Conversa de bois.
NARRADORES
O narrador dos contos de Sagarana muitas vezes caracteriza como
folclóricas as histórias que conta, inserindo nelas quadrinhas populares e
dando-lhes um tom épico e/ou de histórias de fada. Por exemplo, temos o
Era uma vez que inicia o conto O burrinho pedrês (Era um burrinho pedrês).
Neste conto, assim como em Conversa de bois e em A volta do marido pródigo,
os animais se transformam em heróis, questionando o saber dos homens
com o seu suposto não saber.
A onisciência do narrador dos contos em terceira pessoa
O burrinho pedrês,
A volta do marido pródigo,
Sarapalha,
Duelo,
Conversa de bois
A hora e vez de Augusto Matraga
é propositalmente relativizada, dando voz própria e encantamento às
narrativas e acentuando sua dimensão mítica e poética. Percebemos, ainda,
a alternância de focos narrativos no diálogo de instrumentos - uma
clarineta insinuante, fanhosa e meio fraca (associada ao personagem Turíbio) e
uma tuba solene, penetrante, mas arquejando pelo esforço (associada ao
personagem Cassiano) - em Duelo. Em Sarapalha, o contraponto de tempos
verbais, passado e presente - o passado relacionado à impotência e à
saudade da esposa de um dos protagonistas, o presente ao momento da
doença vivido pelos dois primos - contribui para reforçar a atmosfera de dor e
isolamento, de claustrofobia, em que se encontram os personagens.
Nos contos em primeira pessoa
São Marcos
Minha gente
Corpo fechado
evidencia-se o universo primitivo e fantástico de Guimarães Rosa. O
personagem-narrador de São Marcos, por exemplo, se diz avesso à
feitiçaria e às outras artes mas se refere a elas constantemente e as acaba
utilizando. Outro exemplo é o matuto Manuel Fulô, de Corpo fechado, que
conta as suas histórias do sertão ao homem da cidade (como Riobaldo, em
Grande sertão: veredas).
Finalmente, em Minha gente, um dos contos mais bem tramados do
livro, a história principal é emendada, alterada, recontada por pequenos
detalhes e elementos dados pouco a pouco ao leitor. O foco narrativo
ilumina os passos do protagonista, mas também revela certas sutilezas que
servem para esclarecer o sentido mais profundo da história. Há uma partida de
xadrez, narrada no início, que mostra como se deve entender o enredo em si:
um xeque, dado pelo protagonista, acaba se virando contra ele próprio. Assim,
a narração insinua ao leitor que as aparências dos fatos escondem, mais
que revelam, sua verdadeira intenção.
Repletos de histórias dentro de histórias, de digressões filosóficas e
de monólogos interiores que desvendam o universo dos homens, dos
bichos e das coisas, os contos de Sagarana nos permitem uma espécie de
ritual de iniciação, ao longo da leitura. Esta iniciação ocorre se conseguirmos
compreendê-los em sua simbologia, na cosmovisão alógica, mágica, mítica
e poética que humaniza em sentido profundo os protagonistas -
aparentemente apenas sertanejos dos Gerais - e universaliza o sertão. O
sertão é o mundo, diz o Riobaldo de Grande sertão: veredas. De Sagarana,
podemos afirmar o mesmo, como veremos a seguir.
TEMAS E CARACTERÍSTICAS
O burrinho pedrês
Desde o primeiro conto, O burrinho pedrês, estão presentes os
elementos fundamentais para compreendermos os contos de Sagarana. O
nome do burrinho, Sete-de-Ouros, por exemplo, é recoberto pela magia de um
número místico (sete) e pela força simbólica doouro, indicador de
superação e de transcendência para os alquimistas.
Um burrinho velho e resignado assume, assim, uma dimensão
fantástica intensificada pelo tom de história de fada da narrativa (Era um
burrinho pedrês) e pelo heroísmo que adquire graças ao acaso - outro
elemento constante nestes contos - que o faz salvar Badu, o vaqueiro
perseguido, e Francolim, da enchente e da morte. As quadrinhas
folclóricas que povoam a narrativa, as estórias contadas pelos vaqueiros (a
do boi Calundu e a do pretinho triste) iluminam a travessia do burrinho
pedrês, de uma a outra margem do rio.A travessia, a superação de
obstáculos por ocultos caminhos é uma imagem freqüente em Guimarães
Rosa, como também a presença de forças mágicas, da natureza, atuando
sobre o mundo e mostrando as possibilidades de os fracos se tornarem
fortes, de se saber uma vida no resumo exemplar de apenas um dia...É o
caso do Sete-de -Ouros, que, depois de agigantar-se sem perceber, farejou
o cocho. Achou milho. Comeu. Então rebolcou-se, com as esponjadelas
obrigatórias, dançando de patas no ar e esfregando as costas no chão. Comeu
mais. Depois procurou um lugar qualquer, e se acomodou para dormir, entre
a vaca mocha e a vaca malhada, que ruminavam, quase sem bulha, na
escuridão. O burrinho voltou ao anonimato e à apatia da velhice, depois de
gesto surpreendentemente heróico.
Conversa de bois
Conversa de bois é também uma história que conta a travessia, a
superação da fraqueza convertida em força, através da união dos bois e
de um menino maltratado: juntos, conseguem matar o bandido com a força
da magia que animiza os bois, para melhorarem o mundo dos homens.
Corpo fechado
Em Corpo fechado temos uma temática semelhante, na qual o
instrumento da vitória, um curandeiro, fecha o corpo e assim anula a
fragilidade do protagonista que, imantado pela fé, vence o vilão, brutal e
valente, mas sem o amparo do sagrado.
São Marcos
Em São Marcos, à feitiçaria que pode punir e também serve como
reação à punição, enfatiza-se o dom e a magia da palavra cujo canto e cuja
plumagem são celebrados no conto.
Duelo
Em Duelo, o acaso decide favoravelmente a Cassiano, permitindo-lhe
que se vingue de Turíbio Todo.
Sarapalha
Sarapalha, por sua vez, enfoca a solidão, o abandono e a decadência
de dois personagens, que sofrem a doença física da maleita, e que não
podem consolar-se mutuamente, devido á doença do coração - a saudade e
o ciúme - que os separa, tornando-os mais isolados, mais sozinhos. Os
protagonistas de Sarapalha representam o homem em desgraça, sem
esperança nem horizonte.
PERSONAGENS
Nesta multiplicação de acasos movida pela necessidade, transitam os
personagens de Sagarana, em seus encontros e desencontros: um burrinho
velho salvando os vaqueiros da enchente (O burrinho pedrês), os bois salvando
o menino dos maltratos (Conversa de bois), os feiticeiros salvando os fracos
dos valentões (Corpo fechado), as artimanhas devolvendo a esposa ao marido
(A volta do marido pródigo) ou corrigindo os erros do destino (Minha gente).
Assim, todas essas histórias têm um tom épico, heróico, embora não
grandiloqüente, mas lírico.
Osdesencontros de Duelo e de Sarapalha parecem tão providenciais
quanto os encontros nos contos mencionados: a mesma razão exterior aos
atos humanos que realiza a inesperada vingança de Cassiano contra Turíbio
Todo (Duelo) parece desencadear o isolamento e a decadência dos
personagens de Sarapalha.
Tal razão é alógica e mágica, conforme dissemos, e portanto aqueles
em quem incide - os personagens de Sagarana - são os bichos, as crianças,
os loucos, os bêbados, os homens rudes e simples. Trata-se dos seres em
disponibilidade, à margem da produção econômica e por isso propensos
ao devaneio, à aventura.
Neste contexto, podemos compreender os sucessos do Sete-de-Ouros,
dos bois, do matuto Manuel Fulô, de José, o narrador-protagonista de São
Marcos, que com este nome _ Estremeci e me voltei, porque, nesta história, eu
também me chamarei José - sintetiza e resume o que queremos dizer: no
homem comum está a divindade, no pecador a salvação, como nos mostra
Augusto Matraga.
LINGUAGEM
Não é de estranhar que se compare ou se associe a linguagem de
Guimarães Rosa ao estilo Barroco, pois em ambos encontramos os jogos de
palavras, o prazer lúdico, quase infantil, dos trocadilhos, das associações
inesperadas de imagens, do trabalho sonoro e poético com a prosa.
A pontuação das frases de Guimarães Rosa também está ligada a esta
preocupação lúdica com a linguagem, que lembra o estilo Barroco: trata-se
sempre de associar o jogo de palavras aos elementos da narrativa
(personagens, narrador, enredo, etc.) Com a pontuação, ele busca um ritmo
que só pode ser encontrado na poesia do sertão, na marcha das boiadas, na
passagem lenta e imperceptível do tempo, no bater das asas dos periquitos, no
balançar sinuoso das folhas do buriti.
Guimarães Rosa é, em conclusão, o criador de uma obra em que
elementos da cultura popular e elementos da cultura erudita se mesclam
para reinventar a força da linguagem sertaneja e mineira. Conhecedor de
pelo menos dezoito idiomas, ao lado das palavras que traz do vocabulário
sertanejo há várias construções importadas do latim, do francês, do inglês
e do alemão em seus livros. Poucos como ele têm a capacidade de reunir a
erudição das reflexões filosóficas à transposição do imaginário popular,
sem menosprezar as primeiras, e simplificando o segundo.
É o que vemos ao ler alguns trechos de Sagarana, onde percebemos o
ritmo, a cadência, a fecundidade e o mistério, difícil de decifrar, de sua
linguagem.
O volume revolve o mundo regional dos "causos" veiculados pela
tradição oral, vazados em uma linguagem híbrida em que se fundemo
coloquial e o refinamento da linguagem erudita, requintada e criativa de
Guimarães Rosa.
O REGIONAL DE MINAS
O volume é composto de um conjunto de nove históriasligadas
entre si pelo espaço em que transcorrem as ações, focalizando o regional
mineiro, captando os aspectos físicos, sociológicos e psicológicos do
homem e do meio interiorano.
As novelas apresentam a fixação de costumes e aspectos
marcantes da vida regional: a miséria física e psicológica dos doentes de
maleita, em um diálogo arrastado e entremeado por surtos da febre
("Sarapalha"); a crônica dos valentões que burlam a lei e tornam-se
intocáveis, mas que podem ter a sorte revertida se houver a interferência
de forças sobrenaturais ("Corpo fechado"); o caso de feitiçaria que cega
momentaneamente o protagonista e lhe serve de aprendizado ("São
Marcos"); as malandragens de um ladino cabo eleitoral que vende a
esposa e depois a recupera de graça ("Traços Biográficos de
LalinoSalãthiel"); casos de amor e de articulação política ("Minha Gente")
e duas histórias que envolvem perseguições ("O Duelo" e "A Hora e Vez
de Augusto Matraga"), essa última considerada a mais perfeita realização
do volume.
Duelo
E grita a piranha cor de palha,
Irritadíssima:
— Tenho dentes de navalha,
e com um pulo de ida-e-volta
resolvo a questão Exagero...
— diz a arraia —
eu durmo na areia,
de ferrão a prumo,
e sempre há um descuidoso
que vem se espetar.
Pois, amigas,
murmura o gimnoto,
mole, carregando a bateria
nem quero pensar no assunto:
se eu soltar três pensamentos elétricos,
bate-poço, poço em volta,
até vocês duas boiarão mortas... (Conversa a dois metros de
profundidade.)
Turíbio Todo, nascido à beira do Borrachudo, era seleiro de profissão,
tinha pêlos compridos nas narinas, e chorava sem fazer caretas; palavra por
palavra: papudo, vagabundo, vingativo e mau. Mas, no começo desta estaria,
ele estava com a razão.
Aliás, os capiaus afirmam isto assim peremptório, mas bem que no caso
havia lugar para atenuantes. Impossível negar a existência do papo: mas papo
pequeno, discreto, bilobado e pouco móvel — para cima, para baixo, para os
lados — e não o escandaloso “papo de mola, quando anda pede esmola”...
Além do mais, ninguém nasce papudo nem arranja papo por gosto: ele resulta
das tentativas que o grande percevejo do mato faz para se tornar um animal
doméstico nas cafuas de beira-rio, onde há, também cúmplices, camaradas do
barbeiro, cinco espécies, mais ou menos, de tatus. E, tão modesto papúsculo,
incapaz de tentar o bisturi de um operador, não enfeava o seu proprietário:
Turíbio Todo era até simpático: forçado a usar colarinho e gravata, às vezes
parecia mesmo elegante.
Não tinha, porém, confiança nesses dotes, e daí ser bastante
misantropo, e dali ter querido ser seleiro, para poder trabalhar em casa e ser
menos visto. Ora, com a estrada-de-ferro, e, mais tarde, o advento das duas
estradas de automóvel, rarearam as encomendas de arreios e cangalhas, e
Turíbio Todo caiu por força na vadiação.
Minha Gente
“Tira a barca da barreira,
deixa Maria passar:
Maria é feiticeira,
ela passa sem molhar.”
(Cantiga de treinar papagaios)
Quando vim, nessa viagem, ficar uns tempos na fazenda do meu tio
Emilio, não era a primeira vez. Já sabia que das moitas de beira de estrada
trafegam para a roupa da gente umas bolas de centenas de carrapatinhos, de
dispersão rápida, picadas milmalditas e difícil catação; que a fruta mal ma dura
da cagaiteira, comida com sol quente, tonteia como cachaça; que não valia a
pena pedir e nem querer tomar beijos às primas; que uma cilha bem apertada
poupa dissabor na caminhada; que parar à sombra da aroeirinha é ficar com o
corpo empipocado de coceira vermelha; que, quando um cavalo começa a
parecer mais comprido, é que o arreio está saindo para trás, com o respectivo
cavaleiro; e, assim, longe outras coisas. Mas muitas mais outras eu ainda tinha
que aprender.
Por aí, logo ao descer do trem, no arraial, vi que me esquecera de
prever e incluir o encontro com Santana. E tinha a obrigação de haver previsto,
já que Santana que era também inspetor escolar, itinerante, com uma lista de
dez ou doze municípios a percorrer — era o meu sempre-encontrável, o meu
“até.. as-pedras-se-encontram” — espécie esta de pessoa que todos em sua
vida têm.
São Marcos
“Eu vi um homem lá na grimpa do coqueiro, ai-ai,
não era homem, era um coco bem maduro, oi-oi.
Não era coco, era a creca de um macaco, ai-ai,
não era a creca, era o macaco todo inteiro, oi-oi.”
(Cantiga de espantar males.)
Corpo fechado
“A barata diz que tem sete saias de filó...
E mentira da barata: ela tem uma só.”
(Cantiga de roda.)
Conversa de bois
— Lá vai! Lá vai! Lá vai!...
Queremos ver...
Queremos ver...
— Lá vai o boi Cala-a-Boca
fazendo a terra tremer!...”
(Coro do boi bumbá.)
QUESTÕES
01. (USF-SP) A respeito de Guimarães Rosa é correto afirmar que:
a. transmitiu ao nosso regionalismo valores universais, ao abordar dúvidas
do próprio homem, numa linguagem recriada poeticamente.
b. continuou a tradição das obras regionalistas anteriores, especialmente
as do ciclo da cana-de-açúcar, que denunciam a injustiça social.
c. foi mais valorizado como poeta, pela retomada dos recursos expressivos
da língua, com sua linguagem plena de sonoridades e figuras literárias.
d. retomou a influência científica e a linguagem objetiva e enxuta de
Euclides da Cunha, autor de Os sertões, para explicar a psicologia do
sertanejo.
e. foi um autor de vanguarda que procurou mostrar as várias regiões do
país, a partir de uma visão subjetiva e extremamente poética.
06. (FUVEST)
"Canta, canta, canarinho, ai, ai, ai...
Não cantes fora de hora, ai, ai, ai...
A barra do dia aí vem, ai, ai, ai...
Coitado de quem namora!..."
Esta quadrinha é a epígrafe do conto Sarapalha. Ela aponta para o clímax
da estória que se dá por ocasião:
a) da eleição de seu Major Vilhena: tiroteio com três mortes.
b) da confissão de Argemiro e sua expulsão da casa de Ribeiro.
c) do casamento de Luísa com o boiadeiro e despedida dos primos;
d) da morte do boiadeiro, que Argemiro mata em respeito ao primo.
e) da declaração de Ribeiro e ruptura deste com o boiadeiro.
11. (FUVEST)
"Foi seis meses em-antes-de ela ir-s'embora..."
"Desde que ela se foi, não falaram mais no seu nome. Nem uma vez. Era
como se não tivesse existido."
Estas duas passagens fazem referência explícita ao motivo central da
narrativa:
a. Primo Ribeiro é casado com Luísa por quem Argemiro se apaixona, a ponto
de matar o primo.
b. Primo Argemiro é casado com Luísa por quem Ribeiro se apaixona, a ponto
de provocar a morte do primo.
c. Luísa é casada com Ribeiro, mas apaixona-se por um boiadeiro que
Argemiro mata, em consideração ao primo.
d. Luísa é casada com Ribeiro; o Primo Argemiro é apaixonado por ela, mas
ela foge com um boiadeiro.
e. Um boiadeiro, que passa duas vezes pela casa dos primos Ribeiro e
Argemiro, casa-se com Luísa, que morava com eles.
( ) “O burrinho pedrês”
( ) “A hora e vez de Augusto Matraga”
( ) “Sarapalha”
( ) “Duelo”
Assinale a opção que indica a sequência CORRETA:
a. III, II, IV, I
b. IV, II, I, III
c. II, III, IV, I
d. IV, III, I, II
21. (UFU) Mas, de supetão, uma espécie de frango esquisito, meio carijó,
meio marrom, pulou no chão do terreiro e correu atrás da garnisé
branquinha, que, espaventada, fugiu. O galo pedrês investiu, de porrete.
Empavesado e batendo o monco, o peru grugulejou. A galinha choca
saltou à frente das suas treze familiazinhas. E, aí, por causa do bico
adunco, da extrema elegância e do exagero das garras, notei que o tal
frango era mesmo um gavião. Não fugiu: deitou-se de costas, apoiado na
cauda dobrada, e estendeu as patas, em guarda, grasnando ameaças com
muitos erres.
Para assustá-lo, o galo separou as penas do pescoço das do
corpo, fazendo uma garbosa gola; avançou e saltou, como um
combatente malaio, e lascou duas cacetadas, de sanco e esporão. Aí o gavião
fez mais barulho, com o que o galo retrocedeu. E o gavião aproveitou a folga
para voar para a cerca, enquanto o peru grugulejava outra vez, com
vários engasgos.
- Nunca pensei que um gavião pudesse ser tão covarde e idiota... - eu disse.
Maria Irma riu.
- Mas este não é gavião do campo! É manso. É dos meninos do Norberto...
Vem aqui no galinheiro, só porque gosta de confusão e algazarra. Nem come
pinto, corre de qualquer galinha...
- Claro! Gavião civilizado...
- U’lalá... Perdeu duas penas...
O sorriso de Maria Irma era quase irônico. Não me zanguei, mas também não
gostei.
ROSA, Guimarães. Minha gente. In: Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 241-242. (fragmento)
22. (UEL) Leia o texto, a seguir, extraído do conto "A hora e vez de
Augusto Matraga", e responda à questão.
A esse respeito e com base no texto, considere as afirmativas a seguir.
I. O termo “bicipitalidade” é um exemplo de neologismo. Colocado ao lado do
adjetivo “maciça”, expressa aideia da grande força muscular de Epifânio.
II. O trecho “com o pau escrevendo e lendo” constitui um exemplo de recriação
de um dito popular, “escreveu, não leu, pau comeu”, procedimento muito
comum na linguagem do autor.
III. A expressão “Ferrugem em bom ferro!” caracteriza-se como uma
construção poética que exprime, atravésdos termos “ferrugem” e “ferro”, uma
sonoridade poética da aliteração.
IV. As expressões “chover sem chuva” e “homem mudo gritando” configuram-
se como exemplos de inadequação vocabular, e seu uso revela o baixo nível
cultural do protagonista.