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Folha de Rosto

Um escritor de fino trato, por Jayme da Costa Pinto

Man about town ou enquadrando o savoir-faire


Primavera à la carte
A visão da boleia
Uma história inacabada
A vida amorosa de um corretor da bolsa
Aluga-se quarto
A reabilitação de Jimmy Valentine
A namorada gastadeira
Dois cavalheiros e o dia de Ação de Graças
O pêndulo
Um cosmopolita no café
A última folha
A receita perdida
De passagem pela Arcádia
O alegre mês de maio
O conde e o convidado das bodas
O perfil encantado
Uma tragédia no Harlem
Nasce um nova-iorquino
Créditos
Na Nova York do início do século XX, um lugar-comum dizia serem
400 as pessoas que realmente importavam na cidade. Ao publicar sua
segunda coletânea de contos, em 1906, O. Henry fez constar uma nota
de abertura em que dizia preferir acreditar no responsável pelo censo,
que estimava a quantidade de almas locais em 4 milhões. O autor
adotaria, assim, o cálculo oficial como base para falar da grande
variedade de interesses humanos que compõem as histórias do livro,
batizado então de The Four Million.
Nessa época, O. Henry já era reconhecido como um dos principais
contistas americanos de sua geração e deixava claro, nesse brevíssimo
manifesto, que a matéria-prima da sua ficção naquele momento eram
a cidade e seus habitantes, de modo amplo e irrestrito. Garçons,
vendedoras de lojas de departamentos, mendigos, malandros, casais
enamorados, casais cansados, velhos, jovens, nenhum tipo o
desinteressava.
The Four Million deu a partida para os dois lançamentos seguintes,
The Trimmed Lamp (1907) e The Voice of the City (1908), em que Nova
York segue servindo de palco para os pequenos dramas e comédias da
vida cotidiana descritos por O. Henry. Vielas e avenidas, botecos e
hotéis estrelados, becos escuros e praças iluminadas são também
personagens, e emolduram os tipos que o autor observava em suas
andanças pela cidade, notadamente em suas estratégicas paradas em
bares e restaurantes. Charles Alphonso Smith, professor de literatura
americana e biógrafo de O. Henry, diz que o autor classificava os
cabarés de Nova York com o mesmo zelo e meticulosidade que um
cientista organiza insetos ou uma bibliotecária separa livros. Desse
privilegiado ponto de vista, a mesa de bar, O. Henry logo percebeu que
Nova York encapsulava um mundo em si mesma, revelando-se uma
imensa inspiração para um analista de costumes como ele.
O presente volume pinçou histórias principalmente dos três livros
citados acima e se pretende, dessa forma, representativo do período
nova-iorquino de O. Henry. Os textos sobre a cidade não se esgotam
nos 19 aqui reunidos – o total beira 400 –, mas podem servir de porta
de entrada para outras obras do autor, inclusive apontando para além
destas crônicas urbanas: dois anos antes do lançamento de The Four
Million, em 1904, O. Henry lançara um primeiro volume de contos
chamado Cabbages and Kings, em que retrata o ambiente letárgico de
uma cidadezinha imaginária da América Central. O trabalho é fruto
da passagem do autor pela região, no fim do século XIX, onde por seis
meses tentou se estabelecer longe das garras da Justiça americana, que
estava em seu encalço. Além das histórias de Cabbages and Kings, a
estada na região caribenha legou também a expressão banana republic,
cunhada por O. Henry em tentativa de capturar o ethos muito
particular daquela sociedade – agrária, solar, imprevisível. O conto “A
receita perdida”, incluído neste volume, repercute algo dessa
temporada tropical.
Mas, antes de chegar a Nova York via Caribe, o autor atendia pelo
nome de William Sydney Porter. O. Henry foi o nom de plume adotado
no tempo em que passou na Penitenciária Federal de Ohio, para onde
foi levado em 1898, acusado de fraude bancária, e emergiu em 1901
como o escritor que viemos a conhecer.
Nascido em Greensboro, Carolina do Norte, em 11 de setembro de
1862, Porter viveu ali até os 3 anos de idade, quando sua mãe morreu e
ele foi morar com o pai na casa da avó paterna. Segundo o biógrafo
Charles Smith, ele foi um jovem ávido por leitura, tendo sido exposto
tanto a clássicos quanto a obras de consumo mais rápido. Porter dizia
ter lido tudo que importava até os 19 anos, e incluía entre seus
favoritos Anatomia da melancolia, de Robert Burton, e Os contos das mil
e uma noites. Aos 17 anos foi trabalhar na farmácia do tio, onde ficou
por dois anos e acabou por se tornar técnico farmacêutico, habilidade
que se revelou importante mais tarde em sua vida.

Quando completou 20 anos, Porter se mudou para o Texas e


Quando completou 20 anos, Porter se mudou para o Texas e
trabalhou como ajudante em fazendas até se fixar na cidade de Austin,
onde conseguiu emprego como farmacêutico, depois caixa de banco e,
por fim, jornalista. Em Austin, sua vida social floresceu. Hábil com o
violão e com boa voz para cantar, o futuro escritor logo se juntou ao
Hill City Quartet, grupo de jovens que fazia serenatas para as moças da
cidade. E assim conheceu Athol Estes, sete anos mais nova e com quem
se casaria em julho de 1887. Athol foi grande incentivadora da carreira
literária paralela do marido. Algumas histórias escritas nesse período, e
vendidas a jornais e revistas, tinham por base personagens e tramas
desenvolvidas por Porter enquanto trabalhava como desenhista de
mapas para o Gabinete de Colonização Rural do Texas e, mais tarde,
como caixa e contador do First National Bank. Mas em 1894 a maré
começou a mudar para o jovem bancário das letras. As práticas
administrativas do First National não eram exatamente rígidas;
segundo Smith, era comum funcionários fazerem retiradas de dinheiro
e só registrarem a movimentação – i.e., avisar o caixa – vários dias
depois. Essa falta de cuidado acabou redundando em uma acusação de
fraude contra Porter, que foi demitido do banco.
Enquanto a investigação se desenrolava, Porter passou a trabalhar
em tempo integral em um pequeno periódico satírico semanal, criado
por ele mesmo, chamado The Rolling Stone. A revista falava de pessoas,
costumes e política, além de também trazer contos da lavra do
proprietário. Tamanhos atrativos, porém, não cativaram número
suficiente de leitores e o negócio fechou em abril de 1895. Mas a essa
altura, os textos de Porter já tinham circulado e acabaram por chamar
atenção do diário Houston Post, que o contratou no final daquele ano,
levando a família, agora acrescida da filha Margaret, a se mudar para
lá. No jornal, a popularidade de Porter aumentou, e foi ali também
que ele aperfeiçoou a técnica que usaria até o fim de sua trajetória
literária: observar, conversar, anotar. As ideias para a coluna no Post
vinham-lhe ao flanar por lobbies de hotéis, restaurantes, locais
públicos. Tomava forma assim o arguto comentarista do gesto menor,
do olhar furtivo, da intenção apenas insinuada.
Enquanto isso, em Austin, as autoridades concluíram que Porter
tinha, sim, culpa no cartório e decidiram prendê-lo. Num primeiro
momento, o sogro o socorreu, pagando a fiança. Mas, ao pegar o trem
no dia marcado para a audiência no tribunal, em julho de 1896, Porter
sentiu um impulso que o empurrava para o sul e o fez mudar a rota
rumo a Honduras – país que coincidentemente não tinha tratado de
extradição com os EUA.
Porter passou os seis meses seguintes em um hotel em Trujillo,
onde escreveu Cabbages and Kings e tentou preparar o terreno para
mandar trazer a mulher e a filha, que tinham ficado morando em
Austin. Mais uma vez, porém, o destino tinha outros planos: Athol
estava muito doente, tuberculosa e sem condições de viajar. Ao saber
do estado da companheira, Porter voltou a Austin e se entregou às
autoridades em fevereiro de 1897. Solto sob fiança, paga novamente
pelo sogro, o escritor pôde ficar ao lado da mulher até julho daquele
ano, quando ela morreu.
O julgamento do caso de fraude terminou em fevereiro do ano
seguinte, com a condenação de Porter a cinco anos de prisão, sentença
que começou a ser cumprida em março de 1898, na Penitenciária
Federal de Ohio. O certificado de técnico farmacêutico permitiu que o
escritor trabalhasse no hospital da prisão como responsável noturno
pelos medicamentos. Porter tinha direito a um quarto individual na
ala médica e, aparentemente, não chegou a passar um dia sequer em
cela comum. E teve tempo e paz de espírito para conseguir publicar
quatorze contos sob diferentes pseudônimos, mas O. Henry foi o que
se tornou mais conhecido, tendo aparecido pela primeira vez na
edição de dezembro de 1899 da revista McClure. Um amigo do escritor,
radicado em Nova Orleans, recebia os contos e os encaminhava para
publicação. Ninguém tinha como saber que o autor daqueles textos
era um preso cumprindo pena.

O trabalho no hospital somado ao bom comportamento reduziu a


O trabalho no hospital somado ao bom comportamento reduziu a
sentença de Porter em dois anos, e ele reencontrou a liberdade em
julho de 1901. Seguiu direto para Pittsburgh, onde a filha Margaret,
então com 11 anos, vivia com os avós.
Começava ali, no despertar do século XX, o período mais prolífico
do escritor, que logo se mudou para Nova York para se aproximar de
seus editores. O. Henry integrou-se rapidamente à metrópole, tornou-
se íntimo de suas entranhas e personagens, e deu a eles uma voz
própria, inédita. E fez isso em apenas oito anos de estada na cidade, os
oito últimos de sua curta existência, entre a chegada em 1902 e a
morte em 5 de junho de 1910, aos 47 anos, de cirrose.
Atribui-se também a essa fase o aperfeiçoamento da técnica que
tornou o escritor especialmente conhecido: os finais inesperados de
seus contos, tidos como sua grande contribuição à literatura
americana. Mas o final inesperado não chega a ser, mesmo
restringindo a análise apenas à estrutura narrativa das histórias, o
principal alicerce da excelência formal dos contos. A surpresa da
última frase é o ponto de convergência, o ápice, de várias manobras
que denotam engenhosidade estrutural e podem ser identificadas ao
longo da história toda, iluminando-a desde a primeira sentença. A
chacoalhada que o leitor leva ao terminar o texto é um feito
meramente mecânico quando comparado à elaborada manipulação de
elementos que o tornou possível. A arquitetura subjacente é tal que o
desfecho narrativo já se anuncia no início, jamais some do radar e
permeia todas as ações até a frase final, que surge como
desdobramento temático e justificativa para a primeira.
Não é, portanto, na surpresa final que se dá a conhecer o domínio
técnico de O. Henry, mas na constatação posterior, igualmente
inesperada, de que fomos surpreendidos: afinal, olhando para trás, a
surpresa era inevitável. A técnica, em si, tem fôlego curto, não gera
reflexão. Já se algo permanece após a leitura, esse algo tem a ver com o
tema, que foi exposto e colocado em pé com ajuda da técnica, mas não
criado por ela. O conto americano é outro depois de O. Henry porque
o autor soube, como poucos antes dele, explorar a riqueza e a
diversidade de temas sociais. Em suas mãos, diz o biógrafo Smith, o
conto se tornou um instrumento de consciência coletiva inédito na
cultura americana. Sua característica mais distintiva, estivesse na
Carolina do Norte, no Texas, em Honduras ou finalmente em NY, foi
saber reagir com sensibilidade aos interesses demasiado humanos de
homens e mulheres mergulhados em seus papéis no teatro da vida. A
observação minuciosa e a impressionante capacidade de reproduzir
esse pathos revelam um interesse em fenômenos sociais que sempre
veio em primeiro lugar na sua obra. Contos como “Uma história
inacabada”, aqui incluído, em que O. Henry evoca um tema recorrente
para descrever as dificuldades de uma vendedora de loja de
departamentos explorada pelos patrões, ilustram de modo exemplar
esse aspecto: o leitor e futuro presidente Theodore Roosevelt,
contemporâneo do escritor e chefe da polícia de Nova York nos
primeiros anos do século XX, declarou que essas histórias o
influenciaram a se tornar um defensor explícito dos direitos dessas
trabalhadoras. Ou ainda o modo como desconstrói o sonho americano
em textos como “Dois cavalheiros e o dia de Ação de Graças” –
também parte desta coletânea –, de um lado exaltando os elementos
da solidariedade e da importância de se dar graças e, de outro, jogando
luz sobre uma sociedade em que todos nascem iguais, mas, enquanto
uns comem peru, alguns comem frango e outros tantos não comem
nada.
Os que conheceram O. Henry pessoalmente o descreviam como um
homem de modos gentis, delicadeza no trato, refinamento na fala,
bom humor e um certo ar de indiferença, mais charmoso do que
ofensivo. O presente volume abre com a história “Man About Town ou
Enquadrando o savoir-faire”, em que o narrador busca obsessivamente
definir um tipo nova-iorquino caracterizado, não por coincidência, por
traços muito próximos aos usados no início deste parágrafo para falar
do próprio O. Henry: o indivíduo que circula com elegância pela
cidade, para o qual não há portas fechadas, é admirado por todos, de
policiais a garçons, a quem chama pelo nome, e que está à vontade em
qualquer situação. Se não criou a expressão Man About Town – sem
equivalente em português –, O. Henry ajudou consideravelmente a
disseminá-la. O conto é praticamente um verbete que tenta captar
todas as nuances semânticas da frase, que acabou por ganhar vida
própria na língua inglesa, tendo virado título de filme, nome de revista
e termo corrente para designar esse tipo de personagem urbano.
Um último ato, talvez surpreendente e possivelmente inevitável
como quase tudo na vida e na obra do escritor, aconteceu
postumamente. Em 23 de novembro de 2011, véspera do Dia de Ação
de Graças, o presidente americano Barack Obama citou O. Henry,
mais especificamente trechos do conto “Dois cavalheiros (...)” para
anistiar dois perus – chamados Liberdade e Paz – destinados a serem
servidos no tradicional almoço que marca a mais americana das datas
comemorativas. Aproveitando a brecha, o professor de ciência política
Peter Ruckman e o advogado Scott Henson protocolaram um pedido
de perdão póstumo, em setembro de 2012, em nome de William
Sydney Porter. Ruckman e Henson acreditam que a acusação de
fraude bancária foi mal apurada e, de resto, a contribuição do escritor
para a cultura americana já bastaria para garantir uma revisão
favorável ao réu. O caso ainda aguarda um desfecho. De onde estiver,
O. Henry deve ter lançado olhos curiosos sobre essa movimentação em
torno de sua anistia: dois perus que subverteram o ditado e não
morreram na véspera, um presidente da República e um escritor de
fino trato, todos no mesmo barco? Pode haver uma boa história aí.

Jayme da Costa Pinto é tradutor e intérprete.


*

Nota do tradutor

Os desafios de trazer O. Henry para o leitor brasileiro do início do


século XXI não foram poucos; a inestimável ajuda dos colegas
tradutores Karen Sotelino e Milton Azevedo, da Universidade da
Califórnia em Berkeley, tornou a tarefa menos árdua.
Havia duas ou três coisas que eu queria saber. Não gosto de mistérios.
Por isso comecei a investigar.
Demorei duas semanas para descobrir o que as mulheres carregam
em suas malas de viagem. Então passei a perguntar por que um
colchão é feito de duas partes. Essa indagação, ainda que séria, foi
recebida em princípio com desconfiança porque soava mais como
charada. Por fim me garantiram que a produção em duas partes
buscava aliviar o fardo das mulheres que arrumam camas. Fui tolo o
bastante para insistir e pedir encarecidamente para saber por que,
então, não eram fabricados em duas partes iguais; mas aí me puseram
para correr.
O terceiro gole a que eu tanto ansiava na fonte do conhecimento
estava relacionado a um personagem conhecido como “Man about
town”. Era uma figura muito vaga em minha mente, vaga demais.
Devemos ter uma ideia concreta de qualquer coisa, mesmo que seja
apenas uma ideia imaginária, antes de poder compreendê-la. Tenho
uma imagem mental do joão-ninguém que é tão clara como uma
gravura feita em aço. Seus olhos são de um azul lívido, ele veste colete
marrom e casaco preto de sarja brilhante. Está sempre tomando sol e
mascando alguma coisa; e não para de abrir e fechar seu canivete de
bolso com o polegar. E, se o Homem Superior um dia fosse
encontrado, podem acreditar, seria um sujeito grandão, pálido, com
pulseiras azuis aparecendo sob o punho da camisa; estará sentado em
frente a um engraxate e o som de pinos e boliche caindo será ouvido
ao fundo. E estará cercado de pedras preciosas.
Mas a tela da minha imaginação não registrava um traço sequer do
Man about town. Eu o imagino com uma expressão forçada de escárnio
(como o Gato Risonho) e camisa abotoada nos punhos. E só. Assim,
pedi ajuda a um repórter de jornal.
“Bom”, ele me disse, “um Man about town fica entre um hedonista
que pula de bar em bar e um frequentador de clubes exclusivos. Ele
não é exatamente… É alguém que circula entre as recepções na
residência da sra. Fish e lutas fechadas de boxe. Ele não faz parte nem
do Clube Lotos nem do Grêmio Esportivo e Recreativo Aprendizes de
Metalúrgicos Boxeadores Canhotos Jerry McGeoghghan. Não sei
exatamente como descrevê-lo, você o encontra em todo lugar onde há
algo acontecendo. Suponho que seja mesmo um tipo. Veste-se
elegantemente todas as noites; conhece o caminho das pedras; chama
todos os policiais e garçons da cidade pelo primeiro nome. Não, ele
nunca é visto em companhia de loiras oxigenadas. Geralmente está
sozinho ou com outro homem”.
Meu amigo repórter foi embora, mas segui investigando. A essa
altura, as 3.126 lâmpadas elétricas do Rialto já estavam acesas. Pessoas
passavam por mim, mas não prendiam minha atenção. Olhares
cortesãos me lançavam ofertas de amor pago e eu seguia incólume.
Gente que gosta de jantar fora, gente que quase nunca sai de casa,
moças fazendo compras, homens superconfiantes, pedintes, atores,
assaltantes, milionários e estrangeiros passavam por mim. Alguns
seguiam apressados, saltando obstáculos; outros passeavam, alguns
ainda se esgueiravam e havia quem caminhasse com o queixo
empinado. Mas eu não reparava em ninguém. Conhecia todos eles;
havia lido o que guardavam no coração, já tinham servido a um
propósito. Eu queria mesmo era o meu tipo. Ignorá-lo seria um erro –
um erro de tipagem. Não! Continuemos.
E continuemos com uma digressão moral. É gratificante observar
uma família que lê o jornal de domingo. O papai destrincha,
interessado, a página com imagens de uma jovem se exercitando
defronte de uma janela aberta – e a moça está se abaixando. Mas
calma! A mamãe se ocupa em descobrir as letras que faltam nas
palavras N_va Yo_k. As meninas mais velhas leem atentamente a seção
de finanças, onde um jovem investidor relatou na semana passada as
aplicações que tinha feito na empresa Q, X & Z. Willie, o filho de 18
anos que frequenta a escola pública em Nova York, se entretém com o
artigo semanal que descreve como recuperar uma camisa velha. Espera
ganhar um prêmio de costura no final do curso.
A vovó segura firme a seção de quadrinhos; e Tottie, o bebê, brinca
em cima das páginas de anúncios imobiliários. Essa visão se pretende
reconfortante pois é desejável que se pulem algumas linhas desta
história. Ela faz as vezes de introdução para uma bebida forte.
Entrei, assim, num café – e, enquanto o drinque era preparado,
perguntei ao homem que retira a colher usada para mexer o uísque
quente assim que você a coloca no balcão o que ele entendia pelo
termo, epíteto, descrição, designação, caracterização ou denominação
“Man about town”.
“Bom”, disse com cuidado, “é um sujeito que está por dentro de
tudo, é admirado e transita pela noite como ninguém, sabe? Sempre
por cima, nunca será visto nos cafundós das montanhas Flatirons,
entende? Acho que é isso que significa”.
Agradeci e saí.
Na calçada, uma mocinha do Exército da Salvação chacoalhou a
canequinha de contribuições na altura do bolso do meu casaco.
“Você saberia me dizer”, perguntei, “se já deparou com o
personagem comumente chamado de ‘Man about town’ em suas
andanças diárias por aí?”.
“Acho que sei de quem está falando”, respondeu, sorrindo. “Nós os
vemos nos mesmos lugares toda noite. São os guarda-costas do diabo.
Se os soldados de um exército qualquer forem tão fiéis quanto eles, os
comandantes estarão muito bem servidos. Nós os abordamos e
conseguimos colocar alguns daqueles centavos sujos a serviço do
Senhor.”
Ela chacoalhou a caneca mais uma vez, joguei uma moeda. Em
frente a um hotel estrelado, um amigo meu, crítico, descia do táxi.
Parecia sem pressa, então fiz a pergunta. Ele me respondeu de forma
meticulosa, como imaginei.

“Existe um tipo assim em Nova York”, disse. “O termo me é


“Existe um tipo assim em Nova York”, disse. “O termo me é
bastante familiar, mas acho que nunca me pediram para definir esse
personagem. Seria difícil apontar para você um espécime exato. Eu
diria, assim sem pensar muito, que se trata de um homem que sofre
daquela doença nova-iorquina muito particular, que faz com que a
pessoa queira ver e conhecer tudo. Às 6 da tarde a vida começa para
ele. Segue rigidamente as regras de vestir e se portar; mas no setor
‘meter o nariz onde não é chamado’ poderia dar aula a um gato ou a
uma gralha. É o homem que percorreu a Bohemia, em Nova York, de
cima a baixo, passando por tavernas subterrâneas e topos de edifícios,
pela Hester Street e pelo Harlem para dizer que é impossível encontrar
um lugar na cidade onde não usem faca para cortar espaguete. Esse
tipo, esse sr. Savoir-Faire, fez tudo isso. Está sempre farejando algo
novo. É a personificação da curiosidade, do despudor, da onipresença.
Carruagens de aluguel foram criadas por sua inspiração, assim como
charutos com anilhas douradas e a maldição da música durante o
jantar. Não existem muitos como ele, mas seus modos são adotados em
todo canto.
“Fico feliz que tenha tocado no assunto; já senti a influência
maligna dessa figura noturna em nossa cidade, mas nunca pensei em
analisá-la. Percebo agora que o seu tipo deveria ter sido classificado há
muito tempo. Em seu rastro surgiram agentes de vinhos e novos
modelos de casaco; e a orquestra toca Let’s All Go Up to Maud’s para ele,
a pedidos, em vez de Händel. Ele faz a ronda toda noite, enquanto
você e eu arriscamos algo diferente só uma vez por semana. Quando a
tabacaria é arrombada, ele dá uma piscadela para o guarda, como
quem sabe onde pisa, e deixa a cena calmamente. Já você e eu
vasculhamos a carteira, em busca de nomes dentre os presidentes que
estampam as notas, e miramos o céu em busca de endereços para
fornecer ao sargento de plantão.”
Meu amigo, o crítico, pausou para recobrar o fôlego e a eloquência.
Aproveitei a chance.

“Você acaba de classificá-lo”, gritei satisfeito. “Traçou um retrato


“Você acaba de classificá-lo”, gritei satisfeito. “Traçou um retrato
que o coloca na galeria de tipos da cidade. Mas preciso encontrar um
desses pessoalmente. Preciso estudá-lo em primeira mão. Onde poderei
encontrá-lo? Como saberei identificá-lo?”
Aparentemente sem ouvir o que eu dissera, o crítico continuava. E
o taxista esperava o pagamento também.
“Ele é a essência sublimada do Atrevimento; o extrato refinado e
intrínseco da Desenvoltura; o espírito concentrado, purificado,
irrefutável e inescapável da Curiosidade e do Questionamento. Novas
sensações são como oxigênio em suas narinas; quando seu
experimento se esgota, ele passa a explorar novos campos com a
infatigabilidade de um…”
“Perdão”, interrompi, “mas pode me apresentar um tipo desses? É
algo novo para mim. Preciso estudá-lo. Vou procurar pela cidade toda
até encontrar. Seu habitat deve ser aqui mesmo, na Broadway”.
“Vou jantar aqui”, respondeu meu amigo. “Entre comigo, se
houver um exemplar no recinto, aponto para você. Conheço a maioria
dos fregueses aqui.”
“Não vou jantar ainda”, disse. “Peço licença. Vou encontrar o meu
‘Man about town’ esta noite, nem que tenha que varrer Nova York de
Battery a Coney Island.”
Deixei o hotel e caminhei pela Broadway. A busca pelo meu tipo
deu um agradável sopro de vida e interesse ao ar que eu respirava. Eu
me sentia feliz por estar em uma cidade tão grande, complexa e
diversificada. Sem pressa e com certa arrogância, eu andava sentindo
meu coração bater forte por ser um cidadão da grande Gotham, por
compartilhar da magnificência e dos prazeres da cidade, por aproveitar
sua glória e prestígio.
E me virei para atravessar a rua. Ouvi um zumbido que lembrava
uma abelha e, então, fiz um longo e gostoso passeio com Santos
Dumont.
Quando abri os olhos, lembrei de um cheiro de gasolina e
perguntei: “Não passou ainda?”.
Uma enfermeira do hospital colocou a mão não especialmente
macia na minha fronte, que não estava febril. Um jovem médico
apareceu, sorriu e me passou o jornal do dia.
“Quer ver o que aconteceu?”, perguntou animado. Li a reportagem.
O título começava exatamente no ponto em que deixei de ouvir o
zumbido na noite anterior. E o texto terminava assim:
“(…) Hospital Bellevue, onde constatou-se que os ferimentos não
eram graves. Parecia ser um típico Man about town.”
Era um dia de março.
Nunca, jamais comece uma história desta forma. Não existe
abertura pior. Carece de imaginação, graça, sabor, e tem, muito
provavelmente, a consistência do vento. Mas neste caso é permissível.
Porque o próximo parágrafo, que aliás deveria ter iniciado a narrativa,
é por demais extravagante e absurdo para ser ostentado sem aviso
perante o leitor.
Sarah chorava sobre o cardápio.
Imagine uma moça nova-iorquina vertendo lágrimas sobre um
menu! Em busca dos motivos, o leitor terá o direito de ponderar que
acabaram as lagostas no restaurante, ou que ela prometera não tomar
sorvete na Quaresma, ou que havia pedido cebola ou, ainda, que
acabara de voltar de uma sessão vespertina de Hackett. E então, como
todas essas teorias estão erradas, permitirá que a história siga adiante.
O sujeito que proclamou que o mundo era uma ostra e que ele a
abriria com a espada alcançou sucesso imerecido. Não é difícil abrir
uma ostra com uma espada. Mas o leitor já viu alguém abrir o
molusco bivalve com uma máquina de escrever? Gostaria de aguardar
por uma dúzia de ostras cruas abertas desse jeito?
Equipada com essa ferramenta improvável, Sarah tinha conseguido
separar as conchas o suficiente para sentir um gostinho do mundo
gelado e pegajoso ali encerrado.
Ela conhecia tanto de taquigrafia quanto as estenógrafas despejadas
no mundo por esses cursos para secretárias. E, por não saber
estenografar, tampouco conseguia se juntar àquela brilhante
constelação de talentos que habita os escritórios. Tornou-se datilógrafa
freelance e caçava trabalhos aqui e ali copiando textos.
O feito mais notável da batalha de Sarah contra o mundo foi o
acordo firmado com o restaurante Schulenberg’s Home. O restaurante
ficava ao lado do edifício de tijolos vermelhos onde ela dividia um
minúsculo quarto. Certa noite, depois de jantar no Schulenberg, onde
comeu os cinco pratos do menu fixo por 40 centavos (menu servido
com pressa, na velocidade com que se atiram cinco bolas de beisebol
na cabeça do homem de cor), Sarah saiu levando consigo o cardápio.
Era escrito de forma praticamente ininteligível, uma mistura de inglês
e alemão, e disposto na página de tal forma que, se o freguês não
tomasse cuidado, começava a refeição com palitos de dente e pudim de
arroz e terminava com sopa e o dia da semana.
Na manhã seguinte, Sarah levou a Schulenberg uma folha limpa,
onde havia datilografado lindamente o menu. As iguarias agora
apareciam, tentadoras, sob os nomes certos, incluindo “hors d’œuvre” e
“não nos responsabilizamos por casacos e guarda-chuvas”.
Schulenberg comprou a ideia no ato. Antes de ir embora, Sarah o
tinha feito concordar, por conta própria, com uma proposta. Ela
forneceria cardápios datilografados para as 21 mesas do restaurante –
um cardápio novo para o jantar, todos os dias; e outros para o café da
manhã e para o almoço, sempre que houvesse mudanças nos pratos ou
necessidade de substituir cardápios desgastados.
Em troca, Schulenberg mandaria três refeições por dia para o
quarto de Sarah, por um garçom – gentil se possível –, juntamente
com um rascunho a lápis daquilo que o Destino reservava aos
fregueses do restaurante para o dia seguinte.
Satisfação mútua resultou do acordo. Os fregueses de Schulenberg
agora sabiam o nome daquilo que comiam, mesmo que por vezes a
natureza do alimentos ainda os intrigasse. E Sarah tinha comida
durante aquele inverno frio e tedioso, o que para ela era o principal.
Mas o calendário mentiu, dizia que a primavera chegara. A
primavera chega quando chega. A neve congelada de janeiro ainda
cobria as ruas da cidade. Os realejos ainda tocavam In the Good Old
Summertime com a mesma vivacidade e força de dezembro. Os homens
começavam a fazer empréstimos de trinta dias para comprar vestidos
para a Páscoa. Os zeladores desligavam o vapor. E, quando essas coisas
acontecem, é possível dizer que a cidade ainda está nas garras do
inverno.
Certa tarde, em seu elegante quartinho, Sarah tremia de frio: “casa
aquecida; meticulosamente limpa; confortável; local valorizado”. Seu
único afazer eram os cardápios de Schulenberg. A cadeira de balanço
rangeu quando Sarah sentou e lançou o olhar janela afora. O
calendário na parede seguia gritando: “A primavera chegou, Sarah, a
primavera chegou! Estou dizendo, olhe pra cá, meus números
mostram isso. E suas medidas também estão ótimas, está pronta para a
primavera, Sarah. Por que o olhar tão tristonho?”.
O quarto de Sarah ficava nos fundos da casa. Da cadeira, ela via a
parede sem janelas da fábrica de caixas fincada do outro lado da rua.
Mas era uma parede cristalina, e Sarah observava uma viela gramada,
à sombra de cerejeiras e olmos, e margeada por framboeseiras e
roseiras Cherokee.
Os verdadeiros presságios primaveris são sutis demais para olhos e
ouvidos. Podem surgir no açafrão em flor, na madeira viçosa do
corniso, no canto do pássaro azul – e até mesmo de forma mais óbvia,
como a aparição do trigo-sarraceno e dos cogumelos, que dão adeus ao
inverno e recepcionam a Verde Dama em seus seios ainda imaturos.
Mas, para os filhos favoritos do planeta, as mensagens chegam diretas e
gentis da Noiva da vez, informando que serão filhos ilegítimos apenas
os que assim o quiserem.
No verão anterior, Sarah tinha visitado o campo e se apaixonado
por um fazendeiro.
(Ao escrever, nunca volte atrás após um anúncio assim. Constitui
arte menor, além de frustrar o interesse. Deixe fluir, fluir.)
Sarah passou duas semanas na fazenda Sunnybrook. Ali aprendeu a
amar Walter, filho de Franklin, dono da propriedade. Muitos
fazendeiros amaram, casaram e desmamaram em menos tempo. Mas o
jovem Walter Franklin era um agricultor moderno. Tinha um telefone
no estábulo e era capaz de prever, com exatidão, o impacto que a
próxima safra de trigo canadense teria na batata plantada durante a
lua nova.
Foi nessa viela sombreada por framboeseiras que ele a cortejou e a
conquistou. E juntos tramaram para ela uma coroa de flores dente-de-
leão. Walter esbanjou elogios ao efeito do amarelo das pétalas sobre o
castanho das tranças. Sarah deixou o mimo ali mesmo e caminhou de
volta a casa balançando nas mãos o chapéu de palhinha.
Combinaram de se casar na primavera – aos primeiros sinais da
primavera, disse Walter. E Sarah voltou à cidade para martelar sua
máquina de escrever.
Uma batida na porta dissipou as lembranças daquele dia feliz. Um
garçom trouxera o rascunho a lápis do cardápio do Home Restaurant
para o dia seguinte, na letra angulosa de Schulenberg.
Sarah sentou-se em frente à máquina de escrever e colocou uma
folha entre os rolos. Era ligeira no teclado. Geralmente, os 21 menus
ficavam prontos em uma hora e meia.
Naquele dia, houve mais alterações na lista de pratos do que de
costume. As sopas estavam mais leves; o porco tinha sido eliminado
dos pratos principais e agora aparecia apenas entre as opções de assado,
acompanhado de nabos. O espírito leve da primavera permeava o
cardápio. O cordeiro, que até havia pouco pulava alegre pelas colinas
verdejantes, agora amolecia no molho que homenageava suas
cabriolas. O canto da ostra, embora não silenciado, estava mais para
diminuendo con amore. A frigideira parecia estar presa, inativa, atrás das
grades (da grelha). A lista de tortas tinha aumentado; os pudins
adocicados, desaparecido; as linguiças, envoltas em sua roupagem
usual, mal se esticavam em agradável meditação sobre a morte ao lado
do trigo-sarraceno e do bordo – doce mas igualmente desenganado.
Os dedos de Sarah dançavam qual anões sobre um córrego. Seu
olhar preciso passava por todos os pratos, dando a cada um a devida
posição de acordo com o comprimento das palavras.
Logo acima das sobremesas vinha a lista de legumes. Cenouras e
ervilhas, aspargos com torrada, os eternos tomate, milho e succotash,
favas, repolho – e de repente…
Sarah chorava sobre o cardápio. Lágrimas vindas de um desespero
profundo invadiam seu coração e brotavam em seus olhos. A cabeça
abaixou sobre o pequeno suporte da máquina de escrever e o teclado
disparou um acompanhamento seco para aqueles soluços úmidos.
Ela não recebia uma carta de Walter havia duas semanas. E o item
seguinte do menu incluía dentes-de-leão. Dentes-de-leão com algum
tipo de ovo – mas esqueça o ovo! Eram dentes-de-leão, a flor que
Walter usou para coroá-la sua Rainha do Amor, sua futura noiva.
Dentes-de-leão, arautos da primavera, agora coroavam a sua mágoa,
como um lembrete de seus dias mais felizes.
Minha senhora, eu a desafio a sorrir depois de passar por este teste:
permita que o buquê de rosas Noisette trazido por Percy na noite em
que a senhora lhe entregou seu coração seja servido como salada, e
temperado na sua frente, durante uma refeição a preço fixo no
Schulenberg. Se Julieta tivesse testemunhado tamanha desonra às
provas de amor que recebera, teria buscado ainda antes a poção do
esquecimento indicada pelo bom boticário.
Como é traiçoeira a primavera! À grande cidade de concreto e ferro
uma mensagem precisava ser enviada. E ninguém melhor para fazê-lo
que o pequeno mensageiro dos campos, com seu capote verde e
áspero, e com seus ares modestos. É um verdadeiro soldado da fortuna
esse dent-de-lion, como o chamam os chefs franceses. Quando em flor,
auxilia na consumação do amor, transformado em coroa sobre o
cabelo castanho de minha donzela; quando jovem e implume, vai para
a panela fervente e espalha a palavra de sua amante soberana.
Com esforço, Sarah segurava as lágrimas. Os menus precisavam ser
datilografados. Envolta pelo tênue brilho daquele sonho florido, ela
ainda dedicou um tempo a passear distraidamente os dedos sobre as
teclas da máquina de escrever, coração e mente à solta na viela
sombreada ao lado do jovem fazendeiro. Mas Sarah logo voltou às vias
calçadas de Manhattan, e a máquina de escrever desatou a matraquear
feito motor de automóvel (de um fura-greve na porta da fábrica).
Às 6 horas o garçom trouxe-lhe o jantar e levou embora os
cardápios datilografados. Na hora de comer, Sarah pôs de lado, com
um suspiro, a porção de dentes-de-leão com ovos. Assim como aquela
massa escura havia se transfigurado de flor brilhante, emblemática do
amor, em hortaliça desprezível, da mesma forma as esperanças de
verão da moçoila haviam murchado e perecido. O amor pode, como
disse Shakespeare, alimentar-se de si mesmo: mas Sarah simplesmente
não conseguiu comer os dentes-de-leão que haviam ornado o primeiro
banquete espiritual de seu verdadeiro amor.
Às 7 e meia, o casal do quarto ao lado começou a brigar; o morador
do andar de cima dedilhou a flauta em busca do lá; o gás foi
ligeiramente reduzido; três vagões de carvão começaram a ser
descarregados – o único som a causar inveja ao fonógrafo; e os gatos
que perambulavam nas cercas atrás do prédio se recolheram em
direção a Mukden. Para Sarah, eram sinais de que chegara a hora de
ler. Puxou a cópia de The Cloister and the Hearth, o melhor e menos
vendido livro do mês, apoiou os pés no baú de roupas e se deixou levar
por Gerard.
A campainha tocou lá embaixo. A senhoria atendeu. Sarah deixou
Gerard e Denys acuados por um urso e tentou ouvir quem tinha
chegado. Sim, você também tentaria ouvir, do jeitinho que ela fez.
E então uma voz forte ecoou no andar de baixo. Sarah levantou
num salto em direção à porta, largando o livro no chão e a contenda
francamente em favor do urso.
Você já adivinhou. Ela chegou ao topo da escada junto com o
aguardado fazendeiro, que subiu os degraus de três em três e a ergueu
do chão feito colheitadeira no campo.
“Por que você não escreveu, por quê?”, gritou Sarah.
“Nova York é uma cidade muito grande”, respondeu Walter
Franklin. “Cheguei há uma semana e fui até o seu antigo endereço.
Descobri que você partiu numa quinta-feira. Isso me consolou um
pouco, afastou a possibilidade do azar de uma sexta-feira. Mas não me
poupou de uma busca por você, com ajuda da polícia e tudo!”
“Mas eu escrevi”, disse Sarah com veemência.
“Não recebi nada.”
“Como me achou, então?”
O jovem fazendeiro abriu um sorriso primaveril.
“Entrei por acaso no Home Restaurant hoje mais cedo”, respondeu.
“Não ligo para o que dizem, gosto de comer legumes e verduras nesta
época do ano. Então passei os olhos pelo cardápio, muito bem
datilografado por sinal, e, quando cheguei ao item logo abaixo de
repolho, virei na cadeira e gritei pelo proprietário. Ele me contou
onde você morava.”
“Eu me lembro”, suspirou Sarah, feliz. “Abaixo do repolho vinham
os dentes-de-leão.”
“Eu reconheceria aquele ‘W’ deslocado da sua máquina de escrever
em qualquer canto do mundo”, continuou Franklin.
“Mas não tem ‘W’ em dente-de-leão”, retrucou Sarah, surpresa.
O rapaz tirou o cardápio do bolso e apontou para a linha.
Sarah reconheceu ali o primeiro menu que tinha datilografado
naquela tarde. Ainda trazia um borrão no canto superior direito, bem
onde uma lágrima tinha escorrido. Mas onde deveriam ter escrito o
nome da hortaliça, os dedos de Sarah, movidos pela forte lembrança
dos botões em flor, acionaram teclas improváveis.
Entre o repolho vermelho e os pimentões recheados, aparecia o
seguinte item: “QUERIDO WALTER, COM OVOS COZIDOS”.
O condutor da carruagem tem um ponto de vista próprio, talvez mais
simplório que o de seguidores de outras vocações. Lá de cima,
sacolejando na boleia, enxerga os outros homens como partículas
nômades, desprovidos de importância a não ser quando possuídos por
desejos migratórios. Ele é Jeú, o restante das pessoas são bens em
trânsito. Seja você presidente ou vagabundo, para o condutor não
passará de passageiro. Ele o recolhe, agita o chicote, chacoalha suas
vértebras e o põe no seu devido lugar.
Na hora de pagar, ao demonstrar familiaridade com as tarifas
oficiais você não terá feito mais que a obrigação; já se esquecer a
carteira em casa, perceberá como era inofensiva a imaginação de
Dante.
Não chega a ser uma teoria extravagante a de que a simplicidade de
propósitos e a visão de mundo estreita desse profissional resultam da
construção peculiar do veículo. Cantando de galo lá no alto, sentado
em assento individual, o condutor se eleva como Júpiter e segura o
destino do passageiro entre duas frágeis tiras de couro. E você,
indefeso, ridicularizado, confinado, balançando feito um boneco
chinês, vê-se reduzido a um camundongo preso numa ratoeira – justo
você, para quem os servos se curvam em terra firme – e precisa se
esgoelar para que seus desejos mais simplórios se façam ouvir através
de uma fenda mínima, rasgada em seu peripatético sarcófago.
Dentro da carruagem, você nem chega a ser um ocupante: é apenas
conteúdo. É carga no meio do oceano – e “o querubim que se acomoda
lá no alto” sabe de cor o endereço do fundo do mar.
Certa noite, ouviam-se sons de festejos no prédio de tijolinhos perto
do café McGary’s Family. E pareciam vir do apartamento da família
Walsh. A calçada tinha sido obstruída por uma profusão de vizinhos
interessados, que de vez em quando abriam caminho para um
entregador apressado que vinha do McGary’s com encomendas
pertinentes às festividades. O contingente da calçada se distraía com
comentários e discussões nas quais não se esforçou para omitir a
notícia de que Norah Walsh estava se casando.
No ápice da celebração, os participantes da festa transbordaram
para a calçada. Quem já estava de fora envolveu o grupo, misturando-
se à farra. A brisa da noite carregava gritos de alegria, saudações,
gargalhadas e outros ruídos inclassificáveis, embalados pelas oferendas
feitas pelo McGary’s à cena nupcial.
Perto da calçada, estacionada, estava a carruagem de Jerry
O’Donovan. Falcão da Noite era o apelido dele, e não se via na cidade
carruagem mais lustrosa ou asseada a carregar finas rendas e violetas
de outono. E o cavalo! Não exagero ao afirmar que era tão bem
alimentado de aveia que até aquelas velhas que deixam de lado a louça
na pia para mandar prender mensageiros teriam sorrido – sim, sorrido
– ao ver o animal.
Em meio à multidão inconstante, ruidosa, pulsante, avistavam-se
relances da cartola de Jerry, castigada por anos de vento e chuva; de
seu nariz em forma de cenoura, alvo preferencial de passageiros
desobedientes e das jovens e atléticas proles da elite local; e de seu
casaco verde com botões dourados, admirado nas redondezas do
McGary’s. Era nítido que Jerry havia abusado das funções de sua
carruagem e trazia ali dentro uma “carga”. De fato, podemos expandir
um pouco a imagem e enxergar Jerry como um vendedor de
guloseimas, a se dar crédito ao testemunho de um jovem espectador de
que Jerry transportava um “docinho de coco”.
De algum lugar do meio da turba na rua ou dos pedestres
enfileirados no passeio, uma jovem surgiu e se postou ao lado da
carruagem. O olho de falcão de Jerry captou o movimento. De uma
guinada, virou a carruagem, derrubando três ou quatro observadores e
a si mesmo – não, quase! Ele se apoiou num hidrante e manteve o
equilíbrio. Feito marujo escalando a escada de corda durante um
temporal, Jerry alcançou seu assento. Uma vez lá em cima, os líquidos
do McGary’s se equilibraram. Jerry balançava no mastro de sua
embarcação tão seguro quanto um operário que faz reparos no alto de
um arranha-céu.
“Pode entrar, moça”, disse, segurando as rédeas.
A jovem obedeceu; as portas se fecharam; o chicote de Jerry cortou
o ar e a multidão na calçada se afastou enquanto a bela carruagem
partia pelas ruas da cidade.
Quando o cavalo movido a aveia aliviou o embalo do primeiro
estirão, Jerry levantou a tampa superior da carruagem e perguntou,
através da pequena abertura, com voz de megafone quebrado,
tentando agradar:
“Para onde a senhorita vai?”
“Para onde o senhor quiser” foi a reposta, musical e satisfeita.
“Passear é o que a moça quer”, pensou Jerry. E então sugeriu:
“Uma volta pelo parque, então, senhorita. Será um passeio
elegante, agradável.”
“Como quiser”, respondeu a passageira, feliz.
A carruagem seguiu para a 5ª Avenida e acelerou ao chegar àquela
rua perfeita. Jerry chacoalhava na boleia. Os potentes fluidos do
McGary’s foram ativados pelo movimento e enviavam novas
emanações para a cabeça do condutor. Jerry começou a entoar uma
canção de Killisnook e a brandir o chicote como se fosse uma batuta.
Dentro da carruagem, a passageira se acomodou nas almofadas e
olhava para a direita e para a esquerda, fitando luzes e casas. Mesmo
na penumbra da cabine, seus olhos brilhavam como estrelas ao
entardecer.
Quando viraram na Rua 59, Jerry balançava no assento feito joão-
bobo e as rédeas estavam frouxas. Mas o cavalo adentrou o parque
como de costume e deu início à já familiar volta noturna. A passageira
se reclinou no assento, extasiada, e respirou fundo as fragrâncias de
grama, folhas e flores. E o sábio animal, atrelado ao coche e
conhecedor do terreno, pôs-se a trotar em ritmo pausado, mantendo-se
à direita da rua.
A força do hábito também enfrentou com sucesso o crescente
torpor de Jerry. Erguendo a escotilha da embarcação castigada pela
tormenta, soltou a pergunta que todos os condutores fazem no parque.
“A senhorita go-gostaria de parar no Cas-sino? Pode tomar um
refresco, ouvir música. Todo mundo pa-para.”
“Acho que seria interessante”, respondeu a passageira.
O cavalo freou bruscamente na entrada do Cassino. As portas da
carruagem se abriram. A passageira desceu diretamente para a calçada.
Logo foi envolvida pela música e deslumbrou-se com as luzes e cores.
Alguém colocou um pequeno cartão em sua mão, onde se lia o
número 34. Ela se virou e viu sua carruagem a 20 metros de distância,
estacionando entre outros coches e carros a motor. E então um
homem que parecia constituído apenas pela parte da frente de uma
camisa apareceu à sua frente e, com passos de dança, recuou para trás.
Quando deu por si, ela estava acomodada em uma pequena mesa
perto de um corrimão por onde subiam jasmins.
Parecia haver um convite silencioso ao consumo. Ela consultou as
poucas moedas que tinha na bolsa e recebeu delas autorização para
pedir um copo de cerveja. E ficou ali sentada, absorvendo tudo – a vida
nova e colorida num palácio de fadas na floresta encantada.
As cinquenta mesas estavam ocupadas por príncipes e rainhas
exibindo todas as sedas e joias do mundo. De vez em quando, um deles
olhava curioso para a passageira de Jerry. E viam nela uma figura
simples, que trajava um vestido rosa de tecido misto com nome
pomposo – “foulard”. Um rosto comum, mas com uma expressão de
amor pela vida que causava inveja às rainhas.
Por duas vezes os ponteiros mais longos do relógio deram uma
volta completa. Os representantes da realeza foram esvaziando seus
tronos al fresco e saíram matraqueando rumo aos veículos reais. A
música se retirou para dentro de caixas de madeira e sacolas de couro e
feltro. Os garçons tiravam as toalhas das mesas próximas àquela figura
sem graça, quase solitária.

A passageira de Jerry se levantou e entregou seu papelzinho


A passageira de Jerry se levantou e entregou seu papelzinho
numerado e perguntou com simplicidade:
“Este cartão vale alguma coisa?”
O garçom explicou que era o comprovante da carruagem e que
deveria ser entregue ao homem na entrada. O homem pegou o cartão
e chamou pelo número. Só havia três carruagens estacionadas. O
condutor de uma delas foi avisar Jerry, que dormia. Ele acordou
xingando, subiu à ponte do capitão e conduziu seu barco para o píer.
A passageira entrou e a carruagem se embrenhou pelos meandros frios
do parque, buscando atalhos para casa.
No portão, um lampejo de lucidez iluminou a mente confusa de
Jerry na forma de uma desconfiança repentina. Algumas coisas lhe
ocorreram. Ele freou o cavalo, levantou a tampa da cabine e despejou
sua voz fonográfica feito um peso de chumbo pela pequena abertura:
“Quero ver 4 dólares antes de seguir com a corrida. Tem dinheiro
aí?”
“Quatro dólares?”, riu a passageira com voz suave. “Não tenho,
não. No máximo alguns centavinhos.”
Jerry fechou a tampa da cabine e chicoteou seu bem alimentado
cavalo. O barulho dos cascos abafava, mas não mascarava
completamente os palavrões. O condutor cuspia maldições contra o
céu estrelado, ameaçava os veículos que passavam com golpes de
chicote; espalhava impropérios variados pelas ruas onde passava, a
ponto de um motorista de caminhão, que se dirigia lentamente para
casa já tarde da noite, ouvir e se sentir constrangido. Mas ele sabia
onde buscar um recurso e para lá seguiu a galope.
Jerry estacionou no edifício com degraus iluminados de verde.
Abriu as portas da carruagem e saltou desajeitadamente da boleia.
“Você, venha!”, disse bruscamente.
Ao descer do veículo, a passageira ainda trazia em seu rosto comum
aquele sorriso de sonho adquirido no Cassino. Jerry a pegou pelo
braço e a levou para dentro da delegacia de polícia. Um policial de
bigodes grisalhos olhou interessado do outro lado da mesa. Ele e o
condutor se conheciam.
“Sargento”, começou Jerry com seu tom rouco, martirizado,
trovejante, “tenho aqui uma passageira que…”
Então Jerry fez uma pausa. Passou a mão vermelha, calejada, pela
testa. A névoa criada por McGary’s começava a se dissipar.
“Uma passageira, sargento”, continuou, sorrindo, “que eu gostaria
de lhe apresentar. É minha mulher, casamos na casa do velho Walsh
hoje. Foi uma festa e tanto. Cumprimente o sargento, Norah, e vamos
embora para casa.”
Antes de entrar na carruagem, Norah suspirou fundo. “Eu me
diverti tanto, Jerry”, disse.
Não mais nos lamuriamos ou despejamos brasas de fogo sobre a
cabeça quando ouvimos menção às chamas de Tofete. Isso porque até
mesmo os pregadores já começam a nos dizer que Deus é urânio, ou
éter, ou algum outro composto atômico, e que o pior destino
reservado a nós, pecadores, é uma reação química. É uma hipótese
agradável; mas subsiste ali o admirável terror da ortodoxia.
São dois os temas sobre os quais uma pessoa pode discorrer
livremente sem possibilidade de que a contradigam: pode falar sobre
sonhos e sobre algo que ouviu um passarinho contar. Tanto Morfeu
quanto a ave são testemunhas incompetentes, e o interlocutor não se
atreverá a atacar a narrativa. Uma visão onírica, portanto, com toda a
sua fraqueza de fundamentos, alimentará o meu tema – escolhido já
com pedidos de desculpa e arrependimentos – em lugar de um campo
mais limitado, o da conversa fiada com a vizinha.
Tive um sonho tão descolado da alta crítica que chegou a tocar no
outro extremo da análise exegética: o da antiga, respeitada e pranteada
teoria do juízo final.
Gabriel tocara sua trombeta e aqueles de nós que não podiam
seguir o exemplo foram denunciados e levados a julgamento. Reparei
que de um lado se reuniam fiadores profissionais, solenemente
vestidos de preto e usando colarinhos que abotoavam por trás. Mas
aparentemente havia alguma encrenca com as escrituras de suas
propriedades e pelo jeito eles não iriam conseguir livrar nenhum de
nós.
Um tira voador – ou anjo policial – voou até mim e me pegou pela
asa esquerda. Perto dali havia um grupo de espíritos com aparência
muito próspera, também aguardando julgamento.
“Você pertence a esse grupo?”, perguntou o policial.
“Quem são eles?”, foi minha resposta.
“Ora, eles são…”
Mas essas irrelevâncias estão tomando espaço que deveria ser
ocupado pela história.
Dulcie trabalhava numa loja de departamentos. Vendia bordados,
pimentões recheados, automóveis, essas bugigangas que costumam
oferecer em lojas de departamentos. Do salário combinado, Dulcie
recebia 6 dólares por semana. O restante era creditado na conta de
outra pessoa, no livro-razão controlado por D – oh, energia primal,
diria o reverendo –, então está bem, no Livro-Razão da Energia Primal.
No seu primeiro ano na loja, Dulcie recebia 5 dólares por semana.
Seria instrutivo saber como ela vivia com essa quantia. Ninguém se
importa? Muito bem, talvez as pessoas se interessem por quantias mais
vultosas. Seis dólares é uma quantia mais vultosa. Contarei então
como ela sobrevivia com 6 dólares por semana.
Certo final de dia, às 6 da tarde, enquanto enfiava o grampo na
touca e chegava a poucos milímetros de atingir a medulla oblongata,
Dulcie disse para sua amiga Sadie – a moça que aborda a gente pelo
lado esquerdo:
“Sabia, Sadie, vou sair para jantar com o Piggy hoje.”
“Não brinca!”, gritou Sadie, admirada. “Que sortuda! O Piggy é um
sujeito formidável, e sempre convida as garotas para lugares
formidáveis. Levou Blanche ao Hoffman House noite dessas, a música
lá é formidável e os frequentadores também. Você terá uma noite
formidável, Dulcie.”
Dulcie correu para casa. Seus olhos brilhavam e seu rosto exibia o
delicado tom cor-de-rosa do entardecer da vida – da vida real. Era
sexta-feira e restavam a ela 50 centavos do salário semanal.
As ruas estavam repletas de gente na hora do rush. As luzes elétricas
da Broadway cintilavam – atraindo mariposas que vinham de milhas,
léguas, centenas de léguas de distância, para um curso rápido sobre
como se chamuscar na luz incandescente. Homens adequadamente
vestidos, com feições semelhantes às entalhadas em sementes de cereja
por velhos lobos do mar, viravam-se para observar Dulcie, que passava
por eles apressada, aérea. Manhattan, a flor de cacto que viceja à noite,
começava a abrir suas pétalas brancas de perfume forte.
Dulcie parou numa loja de artigos baratos e gastou seus 50 centavos
num colarinho de renda. Aquele dinheiro deveria ter conhecido outro
destino – 15 centavos para jantar, 10 para o café da manhã, 10 para o
almoço. Outros 10 seriam somados às suas parcas economias, e os 5
restantes seriam torrados em balas de alcaçuz – do tipo que fazia as
bochechas incharem, feito dor de dente, e que duravam tanto quanto.
O alcaçuz era uma extravagância – quase um excesso –, mas o que é a
vida sem prazeres?
Dulcie vivia num quarto alugado. Existe essa diferença entre quarto
alugado e pensão: no quarto, os outros não ficam sabendo quando
você passa fome.
Dulcie subiu para o quarto – no terceiro andar, fundos, de um
prédio de tijolos aparentes no West Side. Abriu o gás para acender o
fogo. Cientistas nos dizem que o diamante é a substância mais dura
que existe. Estão errados. As senhorias conhecem um outro composto
que faz o diamante parecer massa de vidraceiro. Elas enfiam esse
material nos bicos de gás para reduzir a chama e a pessoa pode até
subir numa cadeira para tentar furar o bloqueio forçando o dedo ali.
Vai sangrar em vão. Nem um grampo consegue remover a substância.
Por isso vamos chamá-la de irremovível.
Dulcie então acendeu o fogo. É sob essa chama débil que
analisaremos o quarto.
Sofá-cama, penteadeira, mesa, lavatório, cadeira – por esses itens a
senhoria era culpada. O restante era da lavra de Dulcie. Sobre a
penteadeira, seus tesouros – um vaso de porcelana dourado, presente
de Sadie; um calendário de restaurante; um livro sobre o significado
dos sonhos; um pouco de pó de arroz sobre um pires de vidro e um
cacho de cerejas artificiais amarrado com fita cor-de-rosa.
Apoiados no velho espelho estavam retratos do general Kitchener,
de William Muldoon, da duquesa de Marlborough e de Benvenuto
Cellini. Em outra parede, via-se uma placa de gesso com a imagem de
O’Callahan vestindo um capacete de centurião romano. Ao lado, uma
violenta oleografia mostrava uma criança esverdeada caçando uma
irritante borboleta. E isso resume o gosto artístico de Dulcie, que
nunca foi abalado. Ela jamais perdera o sono com rumores de mantos
eclesiásticos roubados; e tampouco algum crítico olhou com desprezo
para sua entomologista mirim.
Piggy era esperado às 7 da noite. Enquanto ela se apronta, vamos
discretamente olhar para o outro lado e fofocar.
Pelo quarto, Dulcie pagava 2 dólares por semana. Nos dias úteis, o
desjejum custava 10 centavos; ela fazia café e cozinhava um ovo com o
gás do quarto enquanto se vestia. Nas manhãs de domingo, se
esbaldava com costeletas de vitela e abacaxi empanado no restaurante
Billy’s, a um custo de 25 centavos – e deixava 10 centavos de gorjeta.
Nova York oferece muitas tentações, a pessoa acaba cometendo
extravagâncias. Dulcie gastava 65 centavos por semana almoçando no
restaurante da loja de departamentos; o jantar saía por 1,05 dólar. Os
jornais vespertinos – que nova-iorquino consegue passar sem jornal? –
consumiam 6 centavos; e, aos domingos, dois jornais – um pela coluna
de aconselhamento pessoal e outro para ler mesmo – somavam 10
centavos. O total chegava a 4,76 dólares. Sem contar que a pessoa
precisa de roupas etc.
Eu desisto. Ouço falar de incríveis barganhas na compra de tecidos
e também de milagres operados com linha e agulha; mas não sei, não.
Seguro minha pena no ar, em vão, quando penso em acrescentar à
vida de Dulcie algumas das alegrias que lhe são de direito por virtude
de decretos não escritos, sagrados e naturais, ainda que pouco efetivos,
sobre a equanimidade dos céus. Em duas ocasiões ela tinha visitado
Coney Island e montado nos cavalinhos de brinquedo. É penoso
contabilizar os prazeres em número de verões, em vez de horas.
Piggy é fácil de descrever. Quando as moças assim o apelidaram,
um estigma imerecido atingiu a nobre linhagem dos suínos. A lição
sobre nomes de animais na velha cartilha da escola começa justamente
com a biografia de Piggy. Era gordo, tinha a alma de um rato, os
hábitos de um morcego e a grandeza de um gato…
Usava roupas caras e era um connaisseur da arte de passar fome.
Bastava olhar para uma balconista e já podia dizer, com grande
exatidão, há quanto tempo a moça não comia nada mais nutritivo do
que marshmallows com chá. Circulava pelo distrito comercial,
perambulando por lojas de departamentos e soltando convites para
jantar. Os homens que passeiam cães pela rua o veem com desprezo.
Trata-se de um tipo, no qual não mais me deterei. Minha pena não foi
feita para ele, não sou carpinteiro.
Às 10 para as 7, Dulcie estava pronta. Olhou-se no velho espelho. O
reflexo era satisfatório. O vestido azul-escuro, bem cortado e sem
vincos; o chapéu com a bela pena preta; as luvas só ligeiramente gastas
– tudo ali representava falta, inclusive de comida – caíram-lhe muito
bem.
Dulcie esqueceu tudo por um instante, exceto que era bonita e que
a vida estava prestes a erguer uma pontinha do seu misterioso véu para
revelar-lhe suas maravilhas. Nunca havia sido convidada para sair. E
agora teria um breve momento de brilho e exaltação.
As garotas diziam que Piggy era um “gastão”. Dulcie teria pela
frente um grande jantar, música, mulheres magnificamente vestidas
para serem observadas, além de coisas para comer que faziam torcer de
modo estranho a boca das moças quando tentavam descrever o
alimento. Não havia dúvidas de que ela receberia outros convites.
Dulcie tinha visto um casaco de tafetá de seda em uma vitrine na
rua – se economizasse 20 centavos por semana em vez de 10…
vejamos… Demoraria anos! Mas tinha uma loja de roupa usada na 7ª
Avenida…
Bateram na porta. Dulcie abriu. A senhoria ficou ali parada, riso
falso, tentando farejar comida feita com gás roubado.
“Um cavalheiro espera lá embaixo”, disse. “Sr. Wiggins é o nome.”
Esse era o epíteto pelo qual Piggy era conhecido por quem,
infelizmente, precisava levá-lo a sério.
Dulcie voltou-se para a penteadeira em busca do lenço e então
parou, congelada. Ao olhar no espelho mais cedo, enxergara o reino
das fadas e a si mesma, uma princesa que acordava de um sono
profundo. Mas tinha esquecido quem a observava com olhos belos,
mas severos – o único que poderia aprovar ou condenar o que ela
fazia. Sério, esbelto e alto, com ar de triste censura no rosto de feições
perfeitas e melancólicas, o general Kitchener fixava sobre ela seus
maravilhosos olhos a partir do porta-retrato dourado na penteadeira.
Dulcie virou-se para a senhoria como uma boneca mecânica.
“Diga a ele que não posso ir. Diga que estou doente ou coisa
parecida. Diga que não vou sair.”
Depois de fechar e trancar a porta, Dulcie jogou-se na cama,
quebrando a pena do chapéu, e chorou por dez minutos. O general
Kitchener era seu único amigo. Representava seu ideal de cavalheiro
galante. Ele parecia guardar um segredo doloroso, aquele lindo bigode
era um sonho, e ela tinha um pouco de medo daqueles olhos ao
mesmo tempo severos e ternos. Dulcie alimentava uma fantasia de que
o general um dia apareceria na casa e pediria para falar com ela, com
sua espada batendo nas botas altas. Certa vez, um garoto na rua
golpeou o poste de luz com uma corrente e ela logo abriu a janela para
ver. Decepção. Ela sabia que o general Kitchener estava no Japão,
liderando seus soldados contra turcos selvagens, e que nunca sairia do
porta-retrato por ela. Ainda assim, um simples olhar bastara para
subjugar Piggy naquela noite. Sim, naquela noite.
Quando o choro passou, Dulcie levantou, despiu-se de seu melhor
vestido e pôs o velho quimono azul. Não queria jantar. Cantou dois
versos de Sammy. Então ficou imensamente interessada numa pinta
vermelha que descobriu no nariz. Depois de cuidar disso, puxou uma
cadeira para perto da mesa vacilante e leu a sorte com um baralho
velho.
“Nojento, descarado!”, disse em voz alta. “Eu nunca disse nada nem
dei motivos para ele pensar isso!”

Às 9 horas Dulcie pegou uma lata de bolachas de água e sal, um


Às 9 horas Dulcie pegou uma lata de bolachas de água e sal, um
pote de geleia de framboesa e preparou um festim. Ofereceu um
pouco ao general Kitchener, mas ele apenas a olhou, como a esfinge
teria olhado para uma borboleta – se é que existem borboletas no
deserto.
“Não precisa comer se não quiser”, disse Dulcie. “E não se sinta tão
superior, nem me repreenda com esse olhar. Será que agiria com essa
arrogância se tivesse que sobreviver com 6 dólares por semana?”
Não era bom sinal que Dulcie se comportasse de forma tão dura
com o general. E então, com um gesto brusco, virou o retrato de
Benvenutto Cellini para baixo. Mas isso já não era indesculpável
porque ela sempre achou que se tratava de Henrique VIII, a quem não
aprovava.
Às 9 e meia, Dulcie deu uma última olhada nos retratos da
penteadeira, apagou a luz e foi dormir. É terrível ir para a cama depois
de dar boa-noite para figuras como o general Kitchener, William
Muldoon, a duquesa de Marlborough e Benvenuto Cellini.
Esta história não chega a lugar nenhum. O restante vem depois –
quando Piggy volta a convidar Dulcie para jantar, e nesse dia ela está
se sentindo mais solitária que de costume, e por acaso o general
Kitchener estava olhando para o outro lado do quarto, e então…
Como eu já disse antes, sonhei que estava ao lado de um grupo de
anjos com aparência muito próspera, quando um policial me pegou
pela asa e perguntou se eu pertencia àquele grupo.
“Quem são?”, indaguei.
“São os homens que empregam moças e pagam a elas 5 ou 6 dólares
por semana. E elas têm de sobreviver com isso. Você é um deles?”
“Nem em um milhão de anos”, respondi. “Sou apenas o sujeito que
pôs fogo no orfanato. E depois matei um cego para arrancar-lhe uns
centavos.”
Pitcher, assistente de confiança no escritório de Harvey Maxwell,
corretor de valores, permitiu que um olhar de moderada surpresa e
curiosidade visitasse seu semblante normalmente inexpressivo quando
seu patrão entrou na sala, cheio de energia, às 9 e meia da manhã em
companhia de sua jovem estenógrafa. Com jeito de poucos amigos,
Maxwell resmungou um “Bom dia, Pitcher” e acelerou em direção à
mesa de trabalho como se fosse saltar sobre o móvel e mergulhou na
enorme pilha de cartas e telegramas que o esperavam.
A moça trabalhava como estenógrafa de Maxwell havia um ano. E
era bonita de um modo decididamente não estenográfico. Renunciava
à pompa do penteado sedutor. Não exibia correntes, braceletes ou
broches. Não tinha jeito de quem estava a ponto de aceitar um convite
para almoçar. O vestido, cinza e despretensioso, era-lhe fiel às formas,
mas discreto. O belo chapéu-turbante negro trazia espetada uma pena
de arara ouro-esverdeada. Naquela manhã, a jovem estava
timidamente radiante. Os olhos brilhavam, lânguidos; e as maçãs do
rosto, rosadas, combinavam com a expressão alegre, embalada por
boas lembranças.
Pitcher, ainda um tanto curioso, observou uma diferença nos
modos da moça. Em vez de ir diretamente à sala contígua, onde ficava
sua mesa, ela ficou por ali, algo hesitante, no escritório maior. E em
dado momento, aproximou-se da escrivaninha de Maxwell, o
suficiente para que ele notasse sua presença.
A máquina ali sentada não era mais um homem, mas um corretor
de valores nova-iorquino, feito de engrenagens barulhentas e molas
em movimento.
“O que foi?”, perguntou Maxwell, ríspido. A correspondência
aberta se amontoava feito neve cenográfica sobre a mesa. O olhar
penetrante, impessoal e indelicado de Maxwell fixava-se sobre ela,
impaciente.
“Nada”, respondeu a estenógrafa, e saiu sorrindo discretamente.
“Sr. Pitcher”, perguntou ela ao assistente de confiança, “o sr.
Maxwell disse alguma coisa ontem sobre contratar uma nova
estenógrafa?”
“Disse, sim”, respondeu Pitcher. “Ele me pediu que arranjasse
outra. Avisei a agência ontem à tarde, deviam mandar algumas
candidatas hoje cedo. São 9 e 45 e até agora não apareceu nem
chapelão, nem chiclete de abacaxi.”
“Vou fazer o trabalho normalmente, então”, disse a jovem, “até
chegar alguém para assumir o cargo.” E se dirigiu à outra sala, onde
pendurou o chapéu-turbante com pena de arara ouro-esverdeada no
lugar de sempre.
Quem nunca assistiu ao espetáculo do corretor de valores em ação
num dia agitado de negócios estaria em desvantagem se decidisse
seguir a profissão de antropólogo. O poeta canta “a hora repleta de
existência gloriosa”. Não é apenas a hora do corretor de valores que
vive repleta; minutos e segundos são igualmente lotados, feito
plataformas de trem na hora do rush.
E aquele era um dia especialmente movimentado para Harvey
Maxwell. O ticker começou a cuspir, em espasmos, as fitas de papel
com as cotações do dia; o telefone teve um ataque crônico de ligações;
homens entravam na sala e de maneira jovial, ríspida, irritada,
entusiasmada, chamavam por Maxwell. Mensageiros iam e vinham. Os
assistentes corriam como marujos em meio à tormenta. Até mesmo o
rosto de Pitcher ameaçou esboçar algo que lembrava animação.
Na Bolsa aconteciam furacões, avalanches, tempestades e erupções
vulcânicas, e essas perturbações dos elementos se reproduziam em
miniatura no escritório do corretor de valores. Maxwell empurrou sua
cadeira contra a parede e cuidava das transações qual um bailarino na
ponta do pé. Pulava do telefone para a escrivaninha e desta para a
porta com a agilidade de um artista de circo.
O estresse aumentava quando o corretor notou a presença de uma
imponente franja loura, que balançava sob uma cobertura de veludo
enfeitada por pena de avestruz; de um casaco que imitava couro de
foca; e de um colar de contas grandes como nozes que ia quase até o
chão, terminando com um coração de prata. Havia uma jovem muito
cheia de si conectada a esses acessórios, e Pitcher estava ali para
apresentá-la.
“A moça veio da agência de estenógrafas para conversar sobre o
emprego”, explicou Pitcher.
Maxwell se virou, as mãos abarrotadas de papel e fitas com as
cotações do dia.
“Que emprego?”, perguntou franzindo os olhos.
“De estenógrafa”, respondeu Pitcher. “O senhor me pediu ontem
que ligasse para a agência e solicitasse que mandassem alguém hoje de
manhã.”
“Você está ficando louco, Pitcher”, rebateu Maxwell. “Por que eu
daria uma ordem dessas? A srta. Leslie tem feito um trabalho
plenamente satisfatório desde que chegou, há um ano. Enquanto
quiser, o emprego é dela. Não temos vagas abertas, moça. Cancele o
pedido com a agência, Pitcher, e não me traga mais ninguém aqui.”
O coração de prata saiu da sala, chacoalhando e batendo contra a
mobília, indignada. Pitcher aproveitou para comentar com o contador
que “o velho” parecia mais distraído e esquecido a cada dia.
O ritmo das transações tornou-se ainda mais intenso e rápido. No
pregão, estavam castigando meia dúzia de ações nas quais clientes de
Maxwell tinham investido pesadamente. Ordens para comprar e
vender chegavam com a velocidade do voo das andorinhas. Alguns
papéis do próprio Maxwell estavam em risco e o homem trabalhava
como uma máquina em alta rotação, delicada, porém firme – e
funcionava a todo vapor, preciso, sem hesitar, com a palavra certa, a
decisão adequada, a reação pronta. Um relógio.
Com a chegada da hora do almoço, certa calmaria tomou o lugar
do tumulto.
Maxwell permaneceu em pé, perto de sua mesa, com as mãos cheias
de telegramas e memorandos, uma caneta sobre a orelha direita e fios
de cabelo despenteados sobre a testa. A janela da sala estava aberta
porque a querida zeladora, a primavera, tinha ligado o aquecedor e
liberado um pouco de calor pelas entranhas da terra.
E pela janela entrou um perfume errante – talvez perdido –, uma
fragrância delicada e doce de lilás que por um instante paralisou o
corretor de valores. Era o perfume da srta. Leslie, era dela, só dela.
A fragrância a trouxe de forma vívida, quase tangível, perante
Maxwell. O mundo das finanças se reduziu de repente a um grão de
areia. E ela estava na sala ao lado, a vinte passos dali.
“É agora que resolvo isso”, disse Maxwell em voz alta. “Vou pedir
agora, não sei por que não fiz isso antes.” E correu para a outra sala
como um jogador de beisebol tentando salvar uma base. Foi direto
para a mesa da estenógrafa.
Ela olhou para ele e sorriu. O rosto enrubesceu um pouco, seu
olhar era meigo e franco. Maxwell apoiou o cotovelo na mesa. Ainda
segurava um monte de papéis nas mãos e a caneta continuava na
orelha.
“Srta. Leslie”, ele começou a dizer, apressado. “Tenho só um
minuto, e quero dizer uma coisa nesse pouco tempo. Quer ser minha
esposa? Não tivemos tempo de fazer amor direito, mas eu te amo.
Responda rápido, por favor – estão arrebentando com as ações da
Union Pacific.”
“Que história é essa?”, exclamou a jovem. Ela se levantou e
arregalou os olhos para ele.
“Não está me entendendo?”, perguntou Maxwell, irritado. “Quero
que case comigo. Eu te amo. Eu queria dizer isso antes, esperei as
coisas acalmarem um pouco. Mas já estão me chamando no telefone.
Mandem esperar, Pitcher. Casa comigo?”
A estenógrafa reagiu de modo muito estranho. De início, pareceu
chocada; mas logo as lágrimas brotaram e ela sorriu, feliz, colocando
um dos braços carinhosamente em torno do pescoço do corretor de
valores.
“Agora eu sei”, ela disse suavemente. “Este negócio aqui não deixou
que pensasse em mais nada por um tempo. Fiquei assustada no
começo. Você não se lembra, Harvey? Nós nos casamos ontem à noite
na pequena igreja aqui da esquina.”
Inquieta, incerta e fugaz como o próprio tempo. Assim podemos
descrever uma parte considerável da população do Red Brick District,
no baixo West Side. Sem teto, ainda assim habitam centenas de casas.
Pulam de quarto em quarto, sempre em trânsito – trânsito residencial,
trânsito emocional. Entoam “Lar, doce lar” em ritmo de ragtime;
carregam seus tesouros numa caixa de papelão; a corda, sempre útil,
vai em volta do chapéu; uma planta de borracha faz as vezes de
figueira.
Daí que as casas desse distrito, tendo abrigado milhares de
moradores, têm também milhares de histórias para contar, a maioria
sem graça, claro, mas seria estranho não encontrar um ou dois
fantasmas no rastro desses hóspedes errantes.
Certa noite, um jovem perambulava entre essas mansões
decadentes, tocando a campainha de todas. Na 12ª, apoiou a bagagem
na soleira e limpou a poeira do chapéu e da testa. A campainha
ressoou distante, o som parecia vir de um abismo profundo.
À porta dessa casa, a 12ª cuja campainha ele havia tocado, acudiu
uma governanta que o fez pensar em um verme doente,
empanturrado, que havia acabado de devorar o interior de uma noz,
deixando só a casca, e agora queria preencher o espaço vazio com
hóspedes comestíveis.
Ele perguntou se havia quarto vago.
“Entre”, disse a governanta. A voz dela vinha da garganta, e a
garganta parecia revestida de pelos. “O quarto do terceiro andar,
fundos, está vago desde a semana passada. Gostaria de ver?”
O jovem a seguiu escada acima. Uma luz fraca, vinda sabe-se lá de
onde, aliviava a escuridão dos corredores. Os dois caminhavam, sem
fazer barulho, sobre um carpete na escada que a própria máquina de
tear teria renegado. Parecia ter se tornado um vegetal e, depois,
degradado naquele ar viciado, privado da luz do sol, transformando-se
num líquen viçoso, em um musgo que se espalhava em pequenas
manchas pelos degraus e grudava no sapato como matéria orgânica. A
cada lance de escadas, avistavam-se nichos vazios na parede. Talvez
tivessem abrigado plantas, que teriam morrido naquele ar rançoso e
putrefato. Ou quem sabe estátuas e imagens de santo tivessem
ocupado os espaços, mas não seria inconcebível que demônios e
diabretes as arrastassem dali, na escuridão, e as levassem para as
profundezas ímpias de algum abismo com área para alugar.
“Este é o quarto”, disse a governanta, com sua garganta peluda. “É
um bom quarto. Não costuma vagar. Tinha gente muito elegante aí no
verão passado – não perturbaram e ainda pagaram adiantado. O
banheiro fica no fim do corredor. Sprowls e Mooney alugaram por três
meses. Fazem um número de vaudeville. Srta. B’retta Sprowls – talvez
tenha ouvido falar nela –, se bem que esses são nomes artísticos. Ali
em cima da penteadeira ficava pendurada a certidão de casamento dos
dois, num quadrinho. O gás é aqui. Como vê, tem bastante espaço no
armário. Todo mundo gosta deste quarto, nunca fica vago por muito
tempo.”
“Vocês recebem muita gente de teatro?”, perguntou o jovem.
“Eles vem e vai. Muitos hóspede é artista, sim. Aqui é o bairro dos
teatro. Esse pessoal nunca fica muito tempo em lugar nenhum.
Sempre tem gente assim aqui. Eles vem e vai.”
O jovem aceitou ficar com o quarto, pagaria uma semana
adiantado. Estava cansado, falou, e já ia ficar ali mesmo. Contou o
dinheiro e pagou. O quarto tinha sido arrumado naquele dia, disse a
governanta, com toalhas e água inclusive. Quando ela já se retirava, o
rapaz fez, pela milésima vez, a pergunta que já estava na ponta da
língua.
“Uma jovem – Srta. Vashner, Eloise Vashner – lembra-se de ter
hospedado alguém com esse nome? É cantora, estaria trabalhando em
algum teatro da região. Pele clara, estatura mediana, magra, cabelo
loiro-avermelhado, uma pinta perto da sobrancelha esquerda.”
“Não lembro desse nome, não. Esse pessoal artista troca de nome
igual troca de quarto. Eles vem e vai. Não lembro dessa aí, não.”
Não. Sempre não. Cinco meses de buscas ininterruptas e a
inevitável negativa no fim. E tanto tempo gasto. Durante o dia,
perguntando para gerentes de teatro, empresários, escolas, elencos de
peças. À noite, interrogando plateias variadas, de espetáculos de
primeira linha a produções tão vagabundas que o jovem até receava
encontrar o que procurava. Ele, que mais a amou, fez de tudo para
localizá-la. E tinha certeza de que desde que a moça sumira de casa esta
grande cidade, cercada de água, a mantinha cativa em algum ponto.
Mas era como uma gigantesca faixa de areia movediça, em constante
deslocamento, sem sustentação: os grãos que hoje estão por cima
amanhã estarão enterrados no lodo.
O quarto acolheu o novo hóspede com um ar de pseudo-
hospitalidade, dando boas-vindas de maneira confusa, agitada,
superficial, como o sorriso capcioso de uma mulher de reputação
duvidosa. A aura de conforto decadente vinha do brilho refletido na
mobília deteriorada; do brocado esfarrapado do sofá e de duas
cadeiras; do aparador barato, com espelho alto, que ficava entre as
duas janelas; dos porta-retratos dourados e da cama com armação de
latão.
O hóspede reclinou, inerte, numa poltrona enquanto o quarto,
confuso como um apartamento na torre de Babel, tentava falar-lhe da
variedade de moradores que por ali passara.
O tapete policromático estendido à sua frente lembrava uma ilhota
retangular e florida, cercada por um mar de sujeira por todos os lados.
Sobre o papel de parede colorido pendiam certas pinturas que
parecem perseguir aqueles que não têm um teto fixo – The Huguenot
Lovers, The First Quarrel, The Wedding Breakfast, Psyche at the Fountain. O
contorno austero do console da lareira estava coberto de modo
indigente por um tecido de cortina até chamativo, mas esticado de
esguelha, torto como as cintas das dançarinas do balé amazônico.
Sobre o console, alguns restos de naufrágio abandonados pelos
passageiros do quarto que tiveram a sorte de seguir para um novo
porto: um ou dois vasos sem valor, retratos de atrizes, um frasco de
remédio, cartas perdidas de um baralho.
Um a um, assim como se decifram os caracteres de um criptograma,
os pequenos sinais deixados pela procissão de hóspedes do quarto
começaram a ganhar sentido. A parte puída do tapete em frente à
penteadeira dava notícias das belas mulheres que por ali passaram. As
diminutas marcas de dedos na parede remetiam aos pequenos
prisioneiros que tentavam encontrar sol e ar. Uma mancha salpicada,
como que produzida por uma bomba detonada, testemunhava o
ponto onde explodiram um copo ou uma garrafa arremessados, ainda
cheios, contra a parede. No espelho entre as janelas alguém havia
rabiscado com um diamante, e com letras hesitantes, o nome “Marie”.
A impressão era de que a sequência de moradores daquele quarto fora
tomada por uma fúria – talvez levados ao limite da paciência por
aquela frieza ostensiva – e descarregara no recinto todas as suas
paixões. A mobília estava lascada; o sofá, desfigurado pelas molas que
saltavam para fora, parecia um monstro horrível que havia sido morto
durante um grotesco acesso convulsivo. E uma poderosa perturbação
rachara parte do console de mármore da lareira. Cada tábua do
assoalho tinha a própria história e anunciava sua agonia
individualmente. Era inacreditável que tanto rancor e tanta maldade
tivessem sido dirigidos àquele espaço justamente por quem um dia o
chamou de lar. E no entanto pode ter sido o instinto familiar que
ainda sobrevivia, a ira ressentida contra os falsos deuses domésticos, a
alimentar-lhes a revolta. Podemos limpar, enfeitar e cuidar até de uma
simples cabana, desde que seja nossa.
O jovem hóspede permitiu que esses pensamentos percorressem
tranquilamente sua mente enquanto o quarto era tomado por sons e
aromas da pensão. De um quarto ao lado, ouviu um riso manso,
preguiçoso; de outros cantos, o monólogo de uma reprimenda, o som
de dados sendo jogados, uma cantiga de ninar, um choro triste; no
andar de cima, um banjo animava o ambiente. Portas batiam de um
lado; o som dos trens elevados ia e vinha; um gato miava alto na cerca
atrás do prédio. E ele sentia o hálito da casa – antes sensação fria e
úmida do que um odor –, um eflúvio gelado e bolorento, como se fora
exalado de câmaras subterrâneas, misturado a emanações de linóleo e
de madeira podre.
E então, de repente, enquanto ele descansava na poltrona, o quarto
foi invadido por um cheiro forte e doce de resedá. O aroma chegou de
uma vez, feito um golpe de vento, com uma fragrância tão intensa e
marcante que por pouco não parecia uma visita de verdade. O rapaz
perguntou alto: “O que foi, querida?”, como se alguém o tivesse
chamado, e levantou-se rapidamente, olhando em volta. O rico
perfume grudava em seu corpo, envolvia-o. Ele estendeu os braços
tentando tocá-lo, seus sentidos se misturavam, confusos. Como podia
alguém ser convocado peremptoriamente por um odor? Deve ter sido
um som, claro. Não foi um som que o tinha tocado, que o tinha
acariciado?
“Ela esteve neste quarto”, gritou. E levantou depressa tentando
agarrar parte daquilo, ele sabia que reconheceria qualquer coisa, até a
mais ínfima, que ela tivesse tocado. Esse perfume sedutor de resedá,
essa fragrância que ela adorava e de que tinha se apropriado… de onde
vinha?
O quarto tinha sido arrumado sem muito cuidado. Espalhados
sobre a toalhinha gasta da penteadeira via-se meia dúzia de grampos
de cabelo – esses amigos discretos e indistinguíveis das mulheres, de
gênero feminino, modo infinitivo e tempo indeterminado. Ele os
ignorou, ciente de exultante falta de identidade ali encerrada.
Saqueando as gavetas da penteadeira, descobriu um velho lenço,
pequeno e rasgado. Apertou-o contra o rosto. O pedacinho de pano
exalava um odor picante, atrevido, de heliotrópio. Atirou-o no chão.
Em outra gaveta, encontrou botões esquisitos, um programa de teatro,
o cartão de uma casa de penhores, dois marshmallows esquecidos, um
livro sobre a interpretação dos sonhos. Na última gaveta, uma tiara
preta de cetim, que o deteve, paralisado entre o gelo e o fogo. Mas a
tiara preta de cetim é também muito reservada, um enfeite pessoal
comum da feminilidade, e que não conta histórias.
E então ele atravessou o quarto como um cão farejador, cheirando
as paredes, conferindo os cantos da esteira, andando de quatro,
fuçando a lareira, a mesa, as cortinas, a escrivaninha capenga, em
busca de um sinal, mas incapaz de perceber que ela estava ali ao lado,
pertinho, colada, dentro, em cima, encostada, chamando, cortejando,
recorrendo incisivamente aos sentidos mais sutis, a ponto de os mais
grosseiros perceberem o apelo. Mais uma vez, ele respondeu em voz
alta: “Sim, querida?”, e virou-se, olhos arregalados, fixando o vazio,
porque não conseguia diferenciar forma, cor, amor, braços estendidos
em meio ao aroma de resedá. Deus do céu, de onde vem esse perfume?
E desde quando perfumes têm voz? E seguiu tateando.
Ele investigou também fendas e cantos e desencavou rolhas e
cigarros que ignorou solenemente. Mas encontrou meio charuto na
dobra do tapete e o esmagou com o pé, não sem antes rogar uma
praga. Vasculhou o quarto de ponta a ponta. Desvendou sinais
lúgubres, sórdidos, de muitos hóspedes transitórios. Mas daquela que
buscava, e que poderia ter estado ali, e cujo espírito parecia habitar o
lugar, nem sinal.
E então pensou na governanta.
Saiu correndo do quarto mal-assombrado, escada abaixo, até chegar
a uma porta onde havia luz. Ela saiu assim que ele bateu. O rapaz
tentou segurar o entusiasmo.
“Pode me dizer quem ocupou o quarto antes de mim?”
“Sim, senhor, digo de novo. Foram Sprowls e Mooney, como já
falei. A srta. B’retta Sprowls trabalhava no teatro e era casada com o sr.
Mooney. Minha pensão é um lugar respeitável. A certidão de
casamento estava lá pendurada…”
“Como era a srta. Sprowls? Me refiro à aparência.”
“Bom, tinha cabelos pretos, baixinha, atarracada, com uma cara
engraçada. Foram embora na semana passada.”
“E antes deles?”
“Antes teve um senhor solteiro, trabalhava numa transportadora.
Ficou me devendo uma semana. Antes dele, teve a srta. Crowder e os
dois filhos, ficaram quatro meses. Antes ainda tivemos o sr. Doyle, os
filhos dele pagaram pelo quarto. Ficou seis meses. Temos aí um ano de
hóspedes, senhor, mais eu não lembro.”
Ele agradeceu e voltou ao quarto. O lugar estava morto. A essência
que o vivificara tinha desparecido. O perfume de mignonette também:
em seu lugar, ficou o velho odor de mobília mofada, uma atmosfera de
armazém.
A esperança minguava, levando junto a fé. Ele ficou sentado
olhando para a luz amarelada, vacilante, do lampião de gás. A seguir
foi para a cama e começou a rasgar os lençóis em tiras. Então usou o
canivete para encaixar os pedaços de pano nas fendas em torno das
janelas e da porta. Depois de vedar tudo, apagou a luz, ligou o gás de
novo e se deitou na cama, agradecido.

Era a vez de a sra. McCool ir buscar cerveja. E ela foi, para depois se
sentar com a sra. Purdy num daqueles retiros subterrâneos onde as
governantas se encontram e os vermes não morrem.
“Aluguei o quarto do terceiro andar hoje”, disse a sra. Purdy, com
espuma em volta dos lábios. “Um rapaz. Foi dormir faz duas horas.”
“Verdade, sra. Purdy?”, respondeu a sra. McCool, admirada. “A sra.
sabe mesmo passar esses quartos pra frente. Contou pra ele?”,
perguntou misteriosa, falando baixo.
“Os quartos”, respondeu a sra. Purdy em tom forrado de pelo, “são
para alugar, ponto. Não contei nada”.
“Está certa, a gente aluga quarto pra viver. A sra. sabe negociar.
Muita gente daria pra trás no aluguel do quarto se soubesse que uma
suicida morreu naquela cama.”
“É isso mesmo, a gente tem de cuidar da nossa vida”, observou a
sra. Purdy.
“Verdade. E só faz uma semana que ajudei a arrumar aquele
quarto. Mocinha bonita a que se matou com o gás, que rostinho mais
lindo ela tinha.”
“Seria bonita mesmo, como a senhorita diz”, ressalvou a sra. Purdy,
“se não fosse aquela pinta perto da sobrancelha. Beba mais um pouco,
sra. McCool”.
Um guarda entrou na sapataria da prisão, onde Jimmy Valentine
costurava meticulosamente a parte superior de alguns calçados, e o
levou à sala da administração. Ali o diretor entregou-lhe seu indulto,
assinado pelo governador naquela manhã. Jimmy recebeu o
documento com ar de cansaço. Tinha cumprido dez meses de uma
sentença de quatro anos. Esperava ficar no máximo três meses.
Quando um homem com tantos amigos do lado de fora como Jimmy
chega ao xadrez, nem vale a pena cortar-lhe o cabelo.
“Muito bem, Valentine”, disse o diretor, “você vai sair amanhã de
manhã. Aprume-se, rapaz, e aja como homem. No fundo, você não é
um mau sujeito. Pare de arrombar cofres, viva honestamente”.
“Eu?”, respondeu Jimmy, surpreso. “Mas eu nunca arrombei um
cofre na vida!”
“Não”, rebateu o diretor, “claro que não. Se não, vejamos: como é
que você acabou preso por causa daquele roubo em Springfield? Não
quis apresentar um álibi com medo de comprometer alguém
importante? Ou o júri é que estava mal-intencionado e quis prejudicá-
lo? É sempre das duas uma com vítimas inocentes como você”.
“Eu?”, disse Jimmy, com a cara lavada. “Mas, diretor, nunca pisei
em Springfield na vida!”
“Pode levar, Cronin”, ordenou, sorrindo, o diretor, “e arrume
roupas para ele sair amanhã. Solte-o às 7 horas e deixe que venha para
a área comum. Pense no que eu falei, Valentine”.
Às 7 e quinze da manhã seguinte, Valentine estava na sala do
diretor. Vestia um terno de corte abominável, desses feitos em série, e
um par de sapatos duros, que faziam barulho quando ele caminhava –
itens que o Estado fornece quando dá baixa a seus hóspedes
compulsórios.

O funcionário do presídio entregou-lhe uma passagem de trem e


O funcionário do presídio entregou-lhe uma passagem de trem e
uma nota de 5 dólares, com a qual o Estado esperava que ele se
reabilitasse, tornando-se um próspero cidadão de bem. O diretor deu-
lhe um charuto e um aperto de mão. Valentine, 9762, passou a constar
nos registros carcerários sob a rubrica “Anistiado pelo governador”, e o
sr. James Valentine caminhou assim rumo à liberdade.
Ignorando o canto dos pássaros, o verde das árvores e o perfume
das flores, Jimmy seguiu direto para um restaurante. Ali,
experimentou os primeiros prazeres da liberdade na forma de frango
grelhado e vinho branco – seguidos por um charuto melhor do que o
oferecido pelo diretor. Na sequência, dirigiu-se calmamente à estação
ferroviária. Atirou uma moeda no chapéu do cego sentado ao lado da
porta e embarcou no trem. Em três horas, chegou a uma cidadezinha
próxima à fronteira estadual. Entrou no café de um certo Mike Dolan
e cumprimentou Mike, que estava sozinho atrás do balcão.
“Desculpe não ter conseguido fazer nada antes, Jimmy”, disse Mike.
“Mas tivemos de enfrentar aquele protesto em Springfield e o
governador quase mudou de ideia. Tudo bem com você?”
“Tudo certo”, respondeu Jimmy. “Está com a minha chave?”
Jimmy pegou a chave e subiu rumo a um quarto nos fundos do
prédio. Estava tudo do jeito que ele deixara. No chão ainda se via o
botão do colarinho da camisa de Ben Price, arrancado quando o ilustre
detetive apareceu para levar Jimmy à força.
Jimmy puxou a porta do armário embutido, trazendo para baixo a
cama de dobrar e revelando uma tampa de madeira deslizante, que
puxou para retirar uma mala empoeirada. Abriu a mala e olhou com
carinho para o melhor jogo de ferramentas de arrombador do leste dos
Estados Unidos. Era um conjunto completo, forjado em aço
temperado, a última palavra em brocas, ponteiras, arcos de pua, pés de
cabra, ganchos e perfuradores, mais duas ou três novidades inventadas
pelo próprio Jimmy e das quais ele muito se orgulhava. Custaram-lhe
mais de 900 dólares e foram feitas sob encomenda numa casa
especializada nesse ramo de atividade.
Meia hora depois, Jimmy desceu e atravessou o café. Ele agora
trajava roupas de bom gosto, bem cortadas, e trazia na mão a mala já
desempoeirada.
“Algo em vista?”, perguntou Mike, puxando conversa.
“Eu?”, respondeu Jimmy, com ar confuso. “Não estou entendendo.
Sou representante da Companhia de Rosquinhas Amalgamadas e
Trigo Moído de Nova York.”
Mike achou tanta graça na resposta que obrigou Jimmy a aceitar
um copo de leite na mesma hora – ele nunca chegava perto de bebidas
mais fortes.
Uma semana depois da liberação de Valentine 9762, um cofre foi
arrombado em Richmond, Indiana, trabalho bem-feito, sem pistas.
Prejuízo de parcos 800 dólares. Passadas mais duas semanas, um cofre
reforçado, patenteado, à prova de arrombamentos, foi aberto feito um
queijo e esvaziado em 1.500 dólares – prata e títulos mobiliários foram
deixados para trás. A essa altura, os caçadores de ladrões começaram a
se interessar. E então um velho cofre de banco em Jefferson City
tornou-se ativo e entrou em erupção, expelindo notas que somaram 5
mil dólares. Os prejuízos agora já eram grandes o suficiente para que o
assunto chegasse às mãos de alguém como Ben Price. Ao comparar
suas anotações, o policial notou uma incrível semelhança nos métodos
de arrombamento. Investigando as cenas dos crimes, Price teria dito:
“Vejo aí a assinatura elegante de Jim Valentine. Ele voltou à ativa.
Observem esse botão de combinação, arrancado com a facilidade com
que se colhe um rabanete na terra molhada. Só ele tem as ferramentas
para fazer isso. E vejam como a fechadura foi perfeitamente removida!
O Jimmy nunca precisa fazer mais de um furo. Sim, acho que quero
pegar o sr. Valentine. Ele cumprirá a sentença dessa vez sem essas
tolices de redução de pena ou indulto.”
Ben Price conhecia os hábitos de Jimmy. Aprendeu enquanto
investigava o caso Springfield: um bom intervalo entre um trabalho e
outro, fugas rápidas, nada de comparsas e um gosto pela alta sociedade
– essas táticas contribuíram para a fama do sr. Valentine de sempre
conseguir se livrar da punição. Espalhou-se o boato de que Ben Price
estava na pista do arrombador misterioso, o que acalmou outros
proprietários de cofres à prova de roubo.
Certa tarde, Jimmy Valentine e sua mala saltaram da diligência
postal em Elmore, uma cidadezinha a 8 quilômetros da ferrovia e
plantada no meio da região dos carvalhos, no estado de Arkansas.
Jimmy, parecendo um jovem e atlético estudante que voltava da
universidade para casa, seguiu pela calçada de madeira a caminho do
hotel.
Uma jovem atravessou a rua, passou por ele e entrou por uma
porta sobre a qual se lia “Banco Elmore”. Jimmy Valentine olhou-a
nos olhos, esqueceu-se de quem era e tornou-se um novo homem. Ela
baixou os olhos, levemente enrubescida. Rapazes com o estilo e a
aparência de Jimmy eram raros em Elmore.
Jimmy cercou um menino que matava o tempo na porta do banco
como se fosse um dos acionistas, e começou a perguntar sobre a
cidade. De vez em quando, jogava-lhe uma moeda. Depois de um
tempo, a moça saiu do banco, ignorando solenemente o jovem com a
mala, e seguiu seu caminho.
“Essa moça não é a srta. Polly Simpson?”, perguntou Jimmy,
capcioso.
“Não”, respondeu o garoto. “É Annabel Adams. O pai dela é o dono
do banco. O que veio fazer em Elmore? A corrente do seu relógio é de
ouro? Vou comprar um cachorro, tem mais moedas aí?”
Jimmy foi para o hotel Planter’s e hospedou-se com o nome de
Ralph D. Spencer. Apoiado no balcão, apresentou-se ao funcionário da
recepção. Disse que estava em Elmore à procura de um ponto
comercial. Como estava o mercado de calçados na cidade? Haveria
oportunidades nessa área?
O funcionário do hotel ficou impressionado com as roupas e os
modos de Jimmy. Ele próprio se achava um modelo de estilo para a
juventude pouco dourada de Elmore, mas agora enxergava claramente
suas limitações. Enquanto tentava decifrar o modo como Jimmy dava
o nó na gravata, o rapaz passava as informações pedidas.
Deveria existir, sim, uma oportunidade boa no mercado de
calçados. Não havia na cidade nenhuma loja especializada em sapatos,
que eram vendidos no armazém de secos e molhados. De fato, os
negócios de modo geral iam bem por ali. Tomara que o sr. Spencer
decida se instalar em Elmore, é um lugar bom para morar e as pessoas
são muito amistosas.
O sr. Spencer pensou em ficar uns dias na cidade para analisar
melhor a situação. O recepcionista não precisava chamar o carregador,
não, ele mesmo levaria a mala, era muito pesada.
O sr. Ralph Spencer, a fênix que ressurgira das cinzas de Jimmy
Valentine – cinzas produzidas pela chama de um repentino ataque
amoroso –, ficou em Elmore e prosperou. Abriu um negócio de
calçados e se saiu muito bem.
Também socialmente foi um sucesso, tendo feito muitos amigos. E
atendeu o desejo de seu coração: conheceu a srta. Annabel Adams e
aos poucos se deixou cativar pelos encantos da moça.
Ao final de um ano, a situação do sr. Ralph Spencer era a seguinte:
tinha conquistado o respeito da comunidade, sua loja de calçados
progredia, e ele e Annabel estavam de casamento marcado para dali a
duas semanas. O sr. Adams, o típico banqueiro dedicado do interior,
aprovou Spencer. Annabel nutria por ele tanto orgulho quanto
afeição. E ele estava tão à vontade com o sr. Adams e também com a
irmã casada de Annabel que já parecia um membro da família.
Certo dia, Jimmy sentou-se no quarto e escreveu esta carta, que
postou para o endereço seguro de um velho amigo em Saint Louis:

“Meu velho amigo,


Quero que esteja no Sullivan’s, em Little Rock, na quarta-feira que vem às 9
horas. Quero que você resolva umas pendências para mim. E também quero
presentear você com as minhas ferramentas. Sei que vai gostar de ficar com
elas – não conseguiria um jogo igual por menos de mil dólares. Então, Billy,
abandonei essa vida faz um ano. Tenho uma loja agora. Vivo honestamente
e vou me casar com a melhor garota do mundo daqui a duas semanas. É a
única vida possível, Billy, a decente. Hoje eu não encostaria em um dólar
sequer de outro homem ainda que fosse para ganhar um milhão. Depois de
casar, vou vender a loja e mudar para o oeste, onde é menor o risco de me
procurarem por causa de velhas encrencas. Ela é um anjo, Billy. Acredita em
mim e eu não voltaria a aprontar por nada nesse mundo. Esteja no Sully’s,
por favor, preciso falar com você. Vou levar as ferramentas.
Do seu velho amigo,
Jimmy”

Na segunda-feira à noite, depois que Jimmy tinha escrito a carta,


Ben Price chegou discretamente a Elmore em uma diligência de
aluguel. Andou pela cidade em seu estilo reservado até descobrir o que
buscava. Da farmácia em frente à loja de sapatos de Spencer, ele pôde
dar uma boa olhada em Ralph D. Spencer.
“Quer dizer que você vai se casar com a filha do banqueiro,
Jimmy?”, pensou Ben em voz alta. “Não sei, não.”
Na manhã seguinte, Jimmy tomou café na casa dos Adams. Tinha
planejado ir a Little Rock encomendar o terno para o casamento e
comprar algo bonito para Annabel. Seria a primeira vez que sairia da
cidade desde que se instalara em Elmore. Um ano já havia passado
desde os últimos “trabalhos” profissionais e ele achou que era seguro
sair da toca.
Depois do café, boa parte da família seguiu para o centro da cidade,
incluindo o sr. Adams, Annabel, Jimmy e a irmã casada de Annabel,
com as duas filhas, de 5 e 9 anos. Pararam no hotel onde Jimmy ainda
se hospedava e ele subiu para pegar a mala. Então rumaram todos para
o banco. Na porta já estava estacionada a diligência tocada por Dolph
Gibson, que levaria Jimmy até a estação de trem.
Entraram todos no salão do banco, passando pela balaustrada de
carvalho entalhado – incluindo Jimmy: o futuro genro do sr. Adams
era bem-vindo em qualquer lugar. Os funcionários gostaram de ser
cumprimentados pelo jovem bem-apessoado e afável que logo se
casaria com a srta. Annabel. Jimmy colocou a mala no chão. Annabel,
cujo coração borbulhava de felicidade, pleno de juventude, pôs o
chapéu de Jimmy e ergueu a mala. “Eu daria uma bela caixeira-
viajante, não acham?”, perguntou. “Nossa, Ralph, que peso! Parece
que está cheia de barras de ouro.”
“Está cheia de calçadeiras de metal”, disse Jimmy, friamente. “Vou
devolvê-las à fábrica. Levando pessoalmente, economizo no frete;
estou ficando muito muquirana.”
O banco Elmore acabara de instalar um novo cofre e uma nova
caixa-forte. O sr. Adams estava muito orgulhoso das aquisições e
insistiu para que todos olhassem de perto. A caixa-forte era pequena,
mas apresentava uma nova porta, patenteada, que era trancada por
três ferrolhos de aço acionados ao mesmo tempo por uma única
manivela, e contava ainda com uma trava temporizadora. Radiante, o
sr. Adams explicava o mecanismo para o sr. Spencer, que, cortês,
escutava sem demonstrar muito interesse. As duas meninas, May e
Agatha, estavam encantadas com o brilho do metal, com aquele
relógio esquisito e com os botões todos.
Enquanto estavam entretidos com a novidade, Ben Price entrou no
banco como quem não quer nada e apoiou o cotovelo no balcão do
caixa. Olhou para dentro do salão e disse ao funcionário que o recebeu
que não queria nada, apenas esperava por um conhecido.
De repente, ouviram-se gritos das mulheres e uma comoção. Sem
que os adultos percebessem, May, a menina mais velha, por
brincadeira, tinha trancado Agatha na caixa-forte. Bateu a porta,
fechou os ferrolhos e girou o botão da combinação, como tantas vezes
tinha visto o avô fazer.
O velho banqueiro correu para a manivela e a puxou com força. “A
porta não pode ser aberta”, suspirou. “O relógio ainda não foi ajustado
nem o segredo da combinação definido.”
A mãe de Agatha gritou de novo, histérica.
“Silêncio”, disse o sr. Adams, levantando a mão trêmula. “Fiquem
todos quietos por um instante. Agatha!”, chamou, o mais alto possível.
“Ouça.” Durante o silêncio que se sucedeu, puderam escutar o som
distante da criança, que berrava em pânico no interior escuro da caixa-
forte.
“Minha querida, meu tesouro!”, chorava a mãe. “Ela vai morrer de
pavor! Abram a porta! Ou arrombem! Vocês homens não podem fazer
nada?”
“Não existe homem daqui até Little Rock que possa abrir essa
porta”, disse o sr. Adams com a voz vacilante. “Meu Deus, Spencer! O
que vamos fazer? Essa criança não vai aguentar muito tempo lá
dentro. Falta ar, e além disso ela vai ter convulsões de medo.”
A mãe de Agatha, fora de si, batia na porta do cofre. Alguém
sugeriu dinamite como último recurso. Annabel se virou para Jimmy,
tinha o olhar angustiado, mas ainda não desesperado. Para uma
mulher, nada parece impossível aos poderes do homem que ela
idolatra.
“Será que você não consegue fazer alguma coisa, Ralph? Tentar,
pelo menos?”
Ele a encarou com um sorriso diferente, mas suave.
“Annabel”, disse, “me dê esse broche em forma de rosa que está
usando, por favor”.
Mal acreditando no que ouvia, ela soltou o broche do decote do
vestido e o colocou na mão de Jimmy. Jimmy guardou a rosa no bolso
do colete, arrancou o paletó e arregaçou as mangas da camisa. Com
esse ato, Ralph D. Spencer saiu de cena dando lugar a Jimmy
Valentine.
“Afastem-se da porta, todos”, ordenou.
Então deitou a mala sobre a mesa e a abriu totalmente. Daquele
momento em diante, ele parecia não ter consciência da presença de
mais ninguém. Arranjou as reluzentes ferramentas sobre a mesa de
maneira rápida e organizada, assobiando baixinho, como sempre fazia
quando trabalhava. Em silêncio absoluto e imóveis, os outros o
observavam, enfeitiçados.
Um minuto depois, a broca preferida de Jimmy já furava
tranquilamente a porta de aço. Em dez minutos – quebrando o
próprio recorde de arrombador –, ele deslocou os ferrolhos e abriu a
porta.
Agatha, quase desfalecida, mas sã, foi levada aos braços da mãe.
Jimmy Valentine vestiu o paletó e caminhou em direção da porta
da rua. Enquanto andava, achou ter ouvido uma voz distante, algo
familiar, chamando “Ralph!”. Mas nem chegou a hesitar.
Na entrada, um homem alto obstruía a passagem.
“Olá, Ben!”, disse Jimmy, ainda exibindo aquele sorriso estranho.
“Finalmente conseguiu, hein? Vamos lá. Não sei se faz muita diferença
agora.”
E então Ben Price agiu de modo ainda mais inesperado.
“Deve ter se enganado, sr. Spencer”, disse ele, “acho que não o
conheço. Sua condução o espera, certo?”
E Ben Price se virou e seguiu pela rua.
Havia 3 mil moças na Grande Loja. Masie era uma delas. Tinha 18
anos e trabalhava como vendedora na seção de luvas para cavalheiros.
Ali, tornara-se conhecedora de duas variedades de seres humanos:
cavalheiros que compram luvas em lojas de departamentos e mulheres
que compram luvas para cavalheiros desafortunados. Além desse
amplo conhecimento da espécie humana, Masie teve acesso a outras
informações também. Tinha armazenado as gotas de sabedoria
despejadas pelas outras 2.999 moças num cérebro tão discreto e
cauteloso quanto o de um gato maltês. Talvez a natureza, prevendo
que faltariam em sua vida conselhos ponderados, brindara Masie com
o ingrediente da perspicácia, além da beleza, da mesma forma com
que dotou a raposa prateada de pelo magnífico e astúcia superior à de
outros animais.
Masie era muito bonita. Loiríssima, tinha o jeito calmo e pausado
de uma mulher que faz bolos de manteiga em uma vitrine. Assumia o
posto atrás do balcão da Grande Loja e, quando o freguês estendia a
mão para que ela tirasse as medidas da luva, logo se lembrava de Hebe,
a deusa grega da juventude; e, num segundo instante, perguntava-se
como ela tinha conseguido aqueles olhos de Minerva.
Se o inspetor da loja não estava por perto, Masie mascava chiclete;
quando ele passava por ali, a moça elevava o olhar, como se mirasse as
nuvens, e sorria com ar melancólico.
Esse é o sorriso da atendente de loja, e aconselho o leitor a evitá-lo,
a menos que tenha o coração calejado e também afinidade com as
travessuras de Cupido. Era o sorriso que Masie reservava às horas de
lazer, e não à loja, mas o inspetor precisava de uma dose. Tratava-se do
Shylock das lojas de departamentos. Quando aparecia para xeretar,
cobrava também seu pedágio: para as moças bonitas, era olhar
afetuoso ou um “passa daqui!”. Claro que nem todos os inspetores de
loja são assim. Há poucos dias, os jornais contavam a história de um
com mais de 80 anos de idade.
Certo dia, Irving Carter, pintor, milionário, viajante, poeta,
automobilista, entrou por acaso na Grande Loja. É forçoso acrescentar
que a visita não era voluntária. O dever filial o agarrou pelo colarinho
e o arrastou porta adentro, enquanto sua mãe olhava interessada
algumas estátuas de bronze e terracota.
Carter andou calmamente até o balcão das luvas para matar o
tempo. Sua necessidade de um par de luvas era genuína: esquecera de
trazê-las no passeio. Mas suas ações dispensam desculpas porque ele
nunca tinha ouvido falar de flertes no balcão das luvas.
Ao se aproximar de seu destino, ele hesitou, repentinamente ciente
dessa face desconhecida do trabalho pouco digno de Cupido.
Três ou quatro rapazes, algo vulgares e vestindo cores gritantes,
apoiavam-se nos balcões num embate com aqueles protetores
manuais. As vendedoras soltavam risadinhas e se ofereciam como
escada para o protagonismo dos fregueses, em estridente tentativa de
chamar-lhes atenção.
Carter teria recuado, mas já tinha ido longe demais. Masie o
encarou do balcão, inquisitiva, com olhos de um azul gelado, lindo,
cintilante como um raio de sol sobre icebergs à deriva nos mares do
sul.
E então Irving Carter, pintor, milionário etc., sentiu uma onda de
calor corar seu rosto aristocraticamente pálido. Mas não era
acanhamento, o rubor tinha origem intelectual. Ele soube, num
instante, que estava no mesmo patamar de jovens comuns, banais, que
flertavam com moças sorridentes em outros balcões. Ele mesmo se
apoiava no carvalho daquele improvável ponto de encontro, um
Cupido proletário, com o coração desejoso da consideração de uma
vendedora de luvas. Carter já não era melhor do que Bill, Jack ou
Mickey. E, de repente, sentiu simpatia por eles, e um exultante e audaz
desprezo pelas convenções que o haviam moldado, além de uma
inequívoca determinação para ter aquela criatura perfeita para si.
As luvas estavam pagas e embrulhadas, mas Carter protelou a saída.
As covinhas nos cantos dos lábios vermelho-escuros de Masie ficaram
mais pronunciadas. Todos os cavalheiros que compravam luvas ali
adiavam a partida daquele mesmo jeito. Ela dobrou o braço,
revelando-se pela manga do vestido, feito Psiquê, e apoiou o cotovelo
sobre o visor de vidro do balcão.
Carter desconhecia a experiência de estar numa situação sobre a
qual não tivesse perfeito domínio. E agora ocupava uma posição muito
mais desconfortável do que Bill, Jack ou Mickey: não tinha chance
nenhuma de encontrar aquela linda moça socialmente. O cérebro dele
se esforçava para lembrar os costumes e a natureza de vendedoras
sobre quem tinha lido ou de quem ouvira falar. Por algum motivo, ele
tinha a impressão de que essas pessoas nem sempre faziam questão de
usar os canais tradicionais de apresentação. O coração de Carter batia
alto, mas hesitante com a ideia de propor um encontro incomum com
aquele ser adorável e virginal. A agitação interna acabou por lhe dar o
empurrão que faltava.
Depois de alguns comentários amistosos e bem recebidos sobre
temas gerais, ele colocou seu cartão de visitas ao lado da mão da moça,
no balcão.
“Perdoe-me o atrevimento”, disse, “mas gostaria que me concedesse
a satisfação de reencontrá-la. Meu nome está no cartão. Garanto que é
com o maior respeito que peço a deferência de me tornar um de seus
ami… conhecidos. Posso ansiar pelo privilégio?”
Masie conhecia homens, principalmente homens que compram
luvas. Sem hesitar, mirou-o nos olhos com um sorriso franco e
respondeu:
“Claro. Você me parece direito. Não costumo sair com homens que
não conheço. Não fica bem para uma moça. Quando quer me ver de
novo?”
“Assim que possível”, disse Carter. “Se me permitir, posso ir até sua
casa…”

Masie riu melodiosamente. “Nossa, não!”, retrucou enfática. “Se


Masie riu melodiosamente. “Nossa, não!”, retrucou enfática. “Se
visse o nosso apartamento! Somos cinco dividindo três quartos. Queria
só ver a cara da minha mãe se eu aparecesse em casa com um amigo!”
“Nesse caso, em qualquer lugar que lhe seja conveniente”, disse o
apaixonado Carter.
“Então”, continuou Masie, sua pele de pêssego exibindo uma
expressão de quem pensara em algo brilhante, “acho que quinta-feira à
noite é bom para mim. Me encontra na esquina da 8ª Avenida com a
Rua 48 às 7 e meia? Moro ali do lado. Mas preciso estar de volta às 11
horas. Minha mãe não me deixa ficar na rua depois das 11 horas.”
Carter concordou agradecido com os termos do encontro e saiu à
cata da mãe, que já o procurava para mostrar a Diana de bronze que
havia comprado.
Uma vendedora de olhos pequenos e nariz arrebitado aproximou-se
de Masie, querendo conversa.
“Agradou o grã-fino, Masie?”
“O cavalheiro pediu permissão para ir me visitar”, respondeu
Masie, imponente, enquanto guardava o cartão de Carter no decote.
“Permissão para visitar!”, repetiu, olhos pequenos, rindo baixinho.
“Ele disse algo sobre jantar no Waldorf e um passeio de carro depois?”
“Pare com isso”, disse Masie, enfastiada. “Você não está acostumada
com coisas bacanas. E só pensa nisso desde que aquele bombeiro levou
você naquela espelunca para comer chop suey. Não, ele não falou nada
sobre o Waldorf, mas o endereço no cartão dele fica na 5ª Avenida, e,
se ele por acaso pagar o jantar, pode apostar sua vida que o garçom do
lugar não estará de rabo de cavalo.”
Ao sair da Grande Loja dirigindo seu carro elétrico, na companhia
da mãe, Carter mordia os lábios e sentia o coração apertar. Sabia que o
amor chegara a ele pela primeira vez em seus 29 anos de vida. O fato
de o objeto desse amor ter prontamente aceitado encontrá-lo numa
esquina, embora indicasse um passo em direção a seus desejos, deixava-
o apreensivo.

Carter não conhecia a vendedora. Não sabia que a casa dela se


Carter não conhecia a vendedora. Não sabia que a casa dela se
resumia a um quartinho onde mal dava para se morar e que
normalmente estava lotada de amigos e parentes. A esquina da rua era
sua sala de estar, o parque era onde recebia visitas, a avenida era o
jardim onde gostava de caminhar. Ainda assim, e na maior parte do
tempo, ali ela era tão senhora de si, intocável, quanto a donzela que
habita o aposento forrado de tapeçarias.
Certa noite, ao cair do sol, duas semanas depois do primeiro
encontro, Carter e Masie estavam passeando de braços dados num
pequeno e mal iluminado parque. Chegaram a um banco, protegido
por árvores, mais afastado, e ali sentaram.
Pela primeira vez, o braço dele a envolveu, discretamente. E ela
recostou a cabeça loira em seu ombro.
“Nossa”, suspirou Masie, agradecida. “Por que nunca pensou nisso
antes?”
“Masie”, continuou Carter, de modo franco, “você deve saber que a
amo. Quero pedi-la em casamento. Você já me conhece o suficiente
para não ter dúvida quanto a minhas intenções. Quero você, preciso
tê-la. Não me importo com a diferença entre nossas condições”.
“Qual é a diferença?”, perguntou Masie, curiosa.
“Na verdade, não há diferença”, respondeu Carter rapidamente, “a
não ser na mente dos tolos. Tenho o poder de lhe dar uma vida de
luxos. Minha posição social é inquestionável, tenho muitos recursos”.
“Todos dizem isso”, observou Masie. “É a piada que sempre ouço.
Aposto que na verdade você é balconista de lanchonete ou vive de
apostar em cavalos. Não sou tão ingênua quanto pareço.”
“Posso lhe dar todas as provas que quiser”, respondeu Carter
educadamente. “E quero você, Masie. Eu a amo desde o primeiro
momento em que a vi.”
“Todos amam”, disse Masie, dando risada. “Essa conversa… No dia
em que eu conhecer um homem que se apaixone por mim só no
terceiro encontro, acho que fico com ele.”

“Por favor, não fale assim”, pediu Carter. “É verdade, desde a


“Por favor, não fale assim”, pediu Carter. “É verdade, desde a
primeira vez em que cruzamos olhares, você é a única mulher no
mundo para mim.”
“Mas é mesmo um brincalhão!”, retrucou Masie, rindo novamente.
“Para quantas outras você já disse isso?”
Mas Carter insistiu. E por fim conseguiu tocar aquela alma ao
mesmo tempo delicada e irrequieta que habitava, lá no fundo, o
adorável peito da balconista. As palavras penetraram um coração cuja
leveza era também a melhor forma de proteção. Ela o encarou com
olhos que de fato o viam. E um brilho cálido tomou-lhe as maçãs do
rosto. Trêmulas, suas asas de mariposa se fecharam e ela parecia estar a
ponto de se aninhar na flor do amor. Um leve vislumbre da vida e das
possibilidades para além do balcão de luvas a visitou naquele
momento. Carter percebeu a mudança e avançou sobre a
oportunidade.
“Case comigo, Masie”, suspirou, “sairemos desta cidade horrorosa,
conheceremos lugares lindos. Deixaremos o trabalho para trás, a vida
será feita apenas de longas férias. Sei aonde vou levá-la – já estive lá
muitas vezes. Pense numa praia onde o verão é eterno, as ondas são
sempre vibrantes e as pessoas vivem felizes e livres como crianças.
Velejaremos para lá e ficaremos o tempo que você quiser. Em uma
dessas cidades distantes existem palácios maravilhosos repletos de
pinturas e estátuas deslumbrantes. As ruas são feitas de água e as
pessoas se deslocam em…”
“Eu sei”, interrompeu Masie, ajeitando-se na cadeira. “Gôndolas.”
“Isso”, sorriu Carter.
“Foi o que pensei”, completou Masie.
“E depois”, continuou Carter, “seguiremos viagem para onde
desejarmos. Depois da Europa, visitaremos a Índia e as cidades antigas
daquela região, passearemos de elefante, conheceremos os lindos
templos hindus e brâmanes, os jardins japoneses, os camelos e as
corridas de charrete na Pérsia, e todas as belezas do mundo. Gostaria
de fazer isso, Masie?”
Masie se levantou.
“Acho melhor irmos embora, é tarde”, disse a moça, friamente.
Carter concordou. Ele já conhecia as variações de humor da moça,
sempre ao sabor do vento, e sabia que era inútil enfrentá-las. Mas
sentiu certo triunfo: tinha segurado, ainda que por um fiapo de seda, a
alma de sua arredia Psiquê, e portanto havia esperança. Pela primeira
vez, ela havia recolhido as asas e suas mãos frias tinham se fechado
sobre as dele.
Na Grande Loja, no dia seguinte, Lulu, a amiga de Masie, a
encurralou no canto do balcão.
“Como vão as coisas entre você e seu amigo bacana?”, perguntou.
“Ah, ele?”, respondeu Masie, arrumando os cachos. “Adivinha, Lu,
o que o sujeito queria que eu fizesse.”
“Que virasse cantora?”, palpitou Lulu, ansiosa pela resposta.
“Nada, ele é muito pé de chinelo até pra isso. Queria que eu casasse
com ele e fosse passar a lua de mel em Coney Island!”
Existe um dia que é só nosso. Um dia em que nós, americanos que não
somos os grandes empreendedores que ergueram a nação, voltamos
para casa e para os biscoitos fermentados e nos surpreendemos com a
distância entre a varanda e a velha bomba d’água – parecia tão perto
antes! Deus abençoe esse dia. O presidente Roosevelt nos dá o dia de
presente. Ouvimos uma conversa sobre os puritanos, mas não
conseguimos lembrar quem eram mesmo. Mas aposto que daríamos
uma surra neles se tentassem aportar por aqui de novo. Frangos da
raça Plymouth Rock? Esses a gente conhece. Muitos aqui precisaram
recorrer ao galináceo depois que a associação dos criadores subiu o
preço do peru. Mas alguém em Washington está passando a eles
informações sobre essas proclamações do Dia de Ação de Graças.
A grande cidade que fica a leste das plantações de cranberry fez do
Dia de Ação de Graças uma instituição. A última quinta-feira de
novembro é o único dia do ano em que reconhecem a existência de
uma parte da América que habita o lado de lá da linha do trem. É o
único dia puramente americano. Sim, um dia de comemoração,
exclusivamente americano.
E agora contarei a história que prova a vocês que temos tradições
deste lado do oceano que estão envelhecendo muito mais rapidamente
que as inglesas – graças a nossa determinação e iniciativa.
Stuffy Pete sentou no terceiro banco à direita de quem chega à
Union Square vindo do leste, do lado oposto à fonte. Em todos os Dias
de Ação de Graças dos últimos nove anos ele havia sentado no mesmo
lugar exatamente às 13 horas. E em todas as vezes, alguma coisa lhe
aconteceu – coisas charles-dickensianas, que faziam inchar o seu colete
na área acima do coração, e também do outro lado.
Hoje, porém, a presença de Stuffy Pete no tradicional ponto de
encontro parecia resultar mais do hábito e menos da sensação de fome
anual que, como parecem pensar os filantropos, aflige os pobres nesses
intervalos mais longos.
Pete não podia estar com fome. Acabara de se fartar em um
banquete que o deixara com forças apenas para respirar e se
locomover. Seus olhos pareciam duas pálidas groselhas enfiadas num
bolo de massa de vidraceiro sujo de molho de peru. Respirava em
arquejos. Um imponente rolo de tecido adiposo roubava a elegância
insinuada pelo colarinho levantado. Botões que haviam sido
costurados por generosas mãos do Exército da Salvação, na semana
anterior, pulavam feito pipocas e se espalhavam pelo chão em torno
dele. Podia estar esfarrapado, com a camisa aberta até a região do osso
da sorte; mas a brisa de novembro, carregada de finos flocos de neve,
trazia-lhe um alívio gelado. Stuffy Pete estava pleno das calorias
produzidas por um almoço dos mais generosos, que começou com
ostras e terminou com pudim de ameixas, passando por (ou pelo
menos essa foi a impressão dele) todo peru, batatas assadas, salada de
frango, torta de abóbora e sorvete que existia no mundo. E assim ele
sentou-se à mesa, devorou a comida e agora admirava o mundo com
desdém pós-repasto.
Foi uma refeição inesperada. Ele passava em frente a um casarão de
tijolos vermelhos no começo da 5ª Avenida, onde viviam duas
senhoras de família conhecida e que valorizavam tradições. Elas
chegavam a ponto de negar a existência de Nova York e acreditavam
que o Dia de Ação de Graças só valia para Washington Square. Um dos
costumes da casa era colocar um empregado na entrada lateral com
ordens para admitir o primeiro transeunte faminto que passasse depois
que o relógio marcasse meio-dia e o fartasse com um banquete. Stuffy
Pete passou ali por acaso a caminho do parque. Os senescais o
chamaram e levaram adiante o hábito cultivado no castelo.
Depois de manter o olhar fixo à frente por dez minutos, Stuffy Pete
sentiu vontade de variar um pouco o campo de visão. Com esforço
tremendo, virou a cabeça lentamente para a esquerda. E então
arregalou os olhos assustado e parou de respirar; e as mal calçadas
extremidades de suas pernas curtas começaram a tremer sobre o
cascalho.
O Velho Cavalheiro atravessava a 4ª Avenida e andava em direção
ao mesmo banco da praça.
Em todo Dia de Ação de Graças, durante nove anos, o Velho
Cavalheiro vinha encontrar Stuffy Pete no banco. Era algo que o
Velho Cavalheiro tentava transformar em tradição. Em todo Dia de
Ação de Graças, durante nove anos, ele havia encontrado Stuffy Pete
ali e o havia levado a um restaurante onde o observara engolindo um
belo almoço. Fazem isso de modo inconsciente na Inglaterra. Mas este
é um país jovem, nove anos não é nada mau. O Velho Cavalheiro era
um patriota fiel e se considerava um pioneiro em tradições
americanas. Para que algo se torne singular, marcante, precisamos
repetir o ato por muito tempo, sem nunca deixar que nos escape. É
como receber semanalmente os centavos pagos a título de seguro
trabalhista. Ou varrer as ruas.
O Velho Cavalheiro seguia, íntegro e imponente, na construção
daquela Instituição. Claro que alimentar Stuffy Pete todo ano nada
tinha de nacional em essência, como a Carta Magna ou como servir
geleia no café da manhã na Inglaterra. Mas era um passo. Quase
feudal. E mostrava, pelo menos, que era possível criar Costumes em
Nova Y… – digo, na América.
O Velho Cavalheiro era magro, alto e tinha 60 anos. Vestia roupas
pretas e usava óculos antigos, daqueles que não param no nariz. Os
cabelos estavam mais brancos e finos que no ano anterior, e ele parecia
depender mais da bengala de madeira nodosa e cabo torto.
À medida que seu benfeitor oficial se aproximava, Stuffy ficou mais
ofegante e se arrepiou feito aqueles cachorros gordos de madame
quando cruzam com um vira-latas. Ele teria voado dali se pudesse, mas
nem toda a habilidade de Santos Dumont faria com que desgrudasse
daquele banco. Resultado do bom trabalho realizado pelos mirmidões
daquelas duas senhoras.

“Bom dia”, disse o Velho Cavalheiro. “Fico feliz em notar que foi
“Bom dia”, disse o Velho Cavalheiro. “Fico feliz em notar que foi
poupado das vicissitudes de mais um ano que passou e pôde caminhar
com saúde por este mundo maravilhoso. Essa bênção apenas já é
suficiente para que demos graças no dia de hoje. Se puder me
acompanhar, meu caro, vou proporcionar-lhe uma refeição que
igualará seu bem-estar físico ao mental.”
O Velho Cavalheiro dizia sempre a mesma frase. Em todo Dia de
Ação de Graças, durante nove anos. As palavras em si já praticamente
formavam uma Instituição. Nada se comparava a elas, exceto talvez a
Declaração de Independência. E até aquele dia, eram música aos
ouvidos de Stuffy. Mas agora ele encarava o Velho Cavalheiro com
agonia e os olhos marejados. A neve fina chegava a ponto de derreter
ao cair em sua testa suada. O Velho Cavalheiro sentiu um rápido
calafrio e deu as costas ao vento.
Stuffy Pete sempre se perguntou por que o Velho Cavalheiro soava
triste quando falava. Não sabia que era porque ele queria muito ter
um filho para sucedê-lo. Um filho que fosse até ali quando ele mesmo
já tivesse partido. Um filho que se apresentaria orgulhoso e forte ao
próximo Stuffy e diria: “Em memória de meu pai”. Aí, sim, teríamos
uma Instituição.
Mas o Velho Cavalheiro não tinha parentes. Vivia em cômodos
alugados de um velho e decadente casarão localizado numa rua
tranquila a leste do parque. No inverno, cultivava brincos-de-princesa
numa pequena estufa do tamanho de um baú. Na primavera,
participava da parada de Páscoa. No verão, morava em um sítio nas
colinas de Nova Jersey, onde sentava numa cadeira de vime e discorria
sobre uma borboleta, a Ornithoptera amphrisius, que esperava
encontrar um dia. No outono, pagava o almoço para Stuffy. Essas
eram as ocupações do Velho Cavalheiro.
Stuffy Pete o encarou por meio minuto, estufado e indefeso,
sentindo pena de si mesmo. Os olhos do Velho Cavalheiro brilhavam
com o prazer da generosidade. O rosto exibia mais rugas com o passar
dos anos, mas a gravata-borboleta preta estava elegante como sempre,
a camisa de linho branco era linda e o bigode grisalho enrolava,
garboso, nas pontas. E então Stuffy soltou um som que lembrava
ervilhas fervendo na panela. A intenção era falar. E, como o Velho
Cavalheiro já tinha ouvido aqueles ruídos nove vezes antes, concluiu
com razão que eram o jeito de Stuffy dizer que aceitava o convite.
“Obrigado, irei com o senhor, obrigado. Estou com muita fome.”
O coma da saciedade não impedira que a mente de Stuffy fosse
invadida pela convicção de que ele formava a base de uma Instituição.
Seu apetite naquele Dia de Ação de Graças não lhe pertencia mais; mas
sim, e pelo direito sagrado dos costumes estabelecidos, se não pela Lei
da Prescrição, a esse tipo de Velho Cavalheiro que o havia
expropriado. A América é livre, naturalmente; mas para que uma
tradição se firme, alguns deverão assumir o papel daqueles algarismos
que ficam à direita da vírgula, a parte decimal que se repete
infinitamente. Nem todos os heróis são feitos de aço e ouro. Aqui
mesmo temos um herói que empunha armas de ferro, mal revestido
de prata e latão.
O Velho Cavalheiro conduziu seu protegido anual ao restaurante, e
depois à mesa onde o banquete sempre era servido. Foram logo
reconhecidos.
“Lá vem o velho”, comentou um garçom, “que paga almoço para
aquele vagabundo todo ano”.
O Velho Cavalheiro sentou-se primeiro. E brilhava como uma
pérola em seu pedestal de futura Tradição Centenária. Os garçons
abasteciam a mesa com os pratos da ocasião e Stuffy – emitindo um
suspiro que foi confundido com um grunhido faminto – ergueu garfo
e faca e produziu para si próprio uma coroa de louros imperecíveis.
Jamais um herói tão valoroso lutou tanto para atravessar as linhas
inimigas. Peru, costeletas, sopas, legumes, tortas desapareciam tão logo
eram servidos. Já saciado ao chegar ao restaurante, o cheiro da comida
quase o levou a perder a honra, mas Stuffy se superou como um
verdadeiro cavalheiro. Ele viu o olhar de felicidade benemérita no
rosto do Velho Cavalheiro – uma felicidade maior que qualquer
brinco-de-princesa ou Ornithoptera amphrisius poderiam trazer – e não
teve coragem de fazê-la desvanecer.
Depois de uma hora, Stuffy recostou-se na cadeira. Tinha vencido a
batalha.
“Muito obrigado, senhor”, disse ofegante, parecendo o vazamento
numa tubulação de vapor. “Muito agradecido pela fartura.”
E então se levantou com dificuldade, olhos vidrados, e seguiu em
direção à cozinha. Um garçom o girou feito um pião e apontou a saída.
O Velho Cavalheiro contou cuidadosamente o 1,30 dólar e deixou três
níqueis de gorjeta.
Separaram-se, como sempre, na porta do restaurante: o Velho
Cavalheiro foi para o sul; Stuffy, para o norte.
Depois de dobrar a esquina, Stuffy parou. Começou a arrancar as
roupas velhas à moda de uma coruja que solta penas e então desabou
na calçada feito um cavalo com insolação.
Quando a ambulância chegou, o jovem cirurgião e o motorista
reclamaram, baixinho, do peso daquele homem. Não havia cheiro de
uísque para justificar uma transferência à delegacia e, assim, Stuffy e
seus dois almoços foram levados para o hospital, onde o colocaram em
uma cama e o examinaram em busca de doenças estranhas, na
esperança de achar um problema que exigisse o bisturi.
E vejam só: uma hora depois chega outra ambulância trazendo o
Velho Cavalheiro. Foi colocado em outra cama, tinha cara de
apendicite, disseram.
Mas em seguida um dos jovens médicos encontrou no corredor
uma das jovens enfermeiras, de olhos bonitos, e os dois pararam para
conversar sobre os casos.
“Aquele senhor simpático ali”, contou o doutor, “ninguém diria
que é quase um caso de inanição. Família antiga, orgulhosa. Me disse
que não come nada há três dias”.
“Rua 81, um passinho à frente para o pessoal descer, por favor”, gritou
o pastor vestido de azul.
Um rebanho de cidadãos-ovelha espremeu-se para sair do trem
enquanto outra leva lutava para entrar. Ding-ding! O vagão de animais
da linha Manhattan Elevated seguiu seu rumo, sacolejante, e John
Perkins despareceu pelas escadas da estação em meio à massa recém-
liberta.
John andou devagar em direção ao seu apartamento. Devagar
porque no léxico do seu cotidiano não existia a palavra “talvez”.
Nenhuma surpresa aguarda um homem casado há dois anos e que
mora num quarto e sala. Ao caminhar, John Perkins vaticinava a si
próprio, com a desesperança melancólica dos membros do rebanho, a
conclusão inevitável de mais um dia marcado pela monotonia.
Katy iria esperá-lo na porta e dar-lhe um beijo com sabor de
chantilly gelado e doce de manteiga. Ele tiraria o casaco, sentaria na
poltrona dura feito pedra e leria, no vespertino, histórias de russos e
japoneses mortos pelo linotipo implacável. Para jantar, carne de
panela, salada temperada com molho próprio para limpar sapatos
(sem danificar o couro), ruibarbo cozido e um vidro de geleia de
morango envergonhado do certificado de pureza estampado no rótulo.
Depois do jantar, Katy mostraria o novo retalho da colcha incrível que
ela estava fazendo e que o entregador de gelo tinha cortado da própria
gravata. Às 7 e meia, eles espalhariam jornais sobre a mobília para
protegê-la do gesso que cairia do teto assim que o vizinho de cima, um
homem bem gordo, começasse os exercícios de fisiculturismo.
Exatamente às 8, Hickey & Mooney, da trupe de teatro de variedades
(ainda sem data para estrear) e moradores do apartamento da frente,
cederiam à influência suave do delirium tremens e começariam a atirar
cadeiras para o alto, movidos pela alucinação de que Hammerstein
estaria atrás deles com um contrato de 500 dólares por semana. E
então o cavalheiro que mora do outro lado do fosso de ventilação
começaria a tocar flauta; o vazamento noturno de gás invadiria
alegremente as ruas; o monta-cargas sairia dos trilhos; o zelador, mais
uma vez, ajudaria os cinco filhos da sra. Zanowitski a atravessar o Rio
Yalu; a dama com sapatos cor de champanhe desceria até o lobby, Skye
terrier a tiracolo, para colar o nome que usa às quintas-feiras na caixa
de correio e na campainha – e a rotina noturna do edifício Frogmore
estaria em pleno andamento.
John Perkins sabia que essas coisas aconteceriam. E sabia que às 8 e
quinze ele se encheria de coragem e pegaria o chapéu, e que sua
mulher faria um discursinho reclamando:
“Aonde você vai, me diga, John Perkins?”
“Acho que vou dar um pulo no McCloskey’s e jogar uma
sinuquinha com o pessoal”, ele responderia.
Nos últimos tempos, essa era a rotina de John Perkins. Entre 10 e
11 da noite, ele voltava para casa. Às vezes, Katy já estava dormindo;
mas em outras ocasiões esperava acordada, disposta a derreter no
cadinho de sua raiva um pouco mais do ouro que reveste o aço forjado
das correntes do matrimônio. Por essas e por outras, Cupido terá
muito o que explicar quando estiver diante do tribunal que fará justiça
às suas vítimas do edifício Frogmore.
Naquela noite, John Perkins encontrou o lugar-comum virado do
avesso ao chegar à sua porta. Nada de Katy com seu beijinho carinhoso
e adocicado. Os cômodos pareciam estar em completa desordem. As
coisas da mulher se espalhavam por toda parte. Sapatos no meio da
sala, prancha para alisar cabelo, tiaras, quimonos, pó de arroz, tudo
amontoado em cima de cadeiras ou da penteadeira… Aquilo não
combinava com Katy. Com o coração apertado, John viu que um
pente ainda segurava entre os dentes uma nuvem encaracolada de
cabelo castanho. Alguma urgência ou perturbação incomum deve ter
se apoderado da mulher, que sempre guardava meticulosamente essas
mechas em um pequeno vaso azul perto da lareira para um dia fazer
uma peruca.
Um pedaço de papel dobrado pendia do bico de gás por um
barbante. John o pegou. Era um bilhete da mulher, dizia o seguinte:

“Querido John,
Acabo de receber um telegrama contando que minha mãe está muito
doente. Vou pegar o trem das 4 e trinta. O meu irmão, Sam, vai me
encontrar na estação. Tem carne de carneiro na geladeira. Espero que não
seja amigdalite de novo. Pague o leiteiro, são 50 centavos. Ela passou muito
mal na primavera passada. Não esqueça de escrever para a companhia de
gás sobre o medidor. Suas meias boas estão na gaveta de cima. Amanhã
escrevo.
Com pressa,
Katy.”

Em dois anos de casamento ele e Katy nunca haviam se separado


sequer por uma noite. John releu várias vezes o bilhete, estarrecido.
Aquilo tudo violava uma rotina que nunca tinha sido quebrada, e isso
o deixava confuso.
Pendurado no encosto da cadeira, o avental vermelho com
bolinhas pretas que ela sempre vestia ao servir as refeições revelava-se
pateticamente inanimado e disforme. As roupas que ela usava no dia a
dia tinham sido largadas a esmo pela casa. Um pequeno saquinho de
papel com os docinhos de manteiga favoritos de Katy jazia por ali
também, ainda fechado por um lacinho. O jornal do dia, escancarado
sobre o tapete, exibia o buraco retangular de onde havia sido
recortado o horário dos trens. Tudo naquele ambiente remetia a falta,
a uma essência perdida, à alma e à vida que não mais habitavam
aquele espaço. John Perkins ficou ali parado em meio aos restos
mortais com uma sensação estranha de desolação dentro do peito.
E então começou a arrumar o apartamento da melhor maneira
possível. Ao tocar nas roupas da mulher, um arrepio atravessou-lhe o
corpo. Nunca tinha pensado em como seria a existência sem Katy. Ela
estava de tal modo entranhada em sua vida que era como o ar que ele
respirava – necessário, mas pouco notado. Agora, sem aviso prévio, ela
partira, desaparecera. Estava completamente ausente, como se nunca
tivesse existido. Seriam poucos dias, claro, no máximo uma semana ou
duas, mas para ele a mão fria da morte havia apontado um dedo na
direção de seu lar, até então seguro e marcado pela rotina.
John tirou a carne de carneiro da geladeira, fez um café e sentou-se
para comer sozinho, cara a cara com aquele deslavado certificado de
pureza colado na geleia de morango. Ruidosos entre as bênçãos
perdidas, apareciam-lhe agora espectros de carnes de panela e saladas
temperadas com óleo de limpar sapatos. Sua casa havia desmoronado.
Uma sogra com dor de garganta expulsara com força os lares e penates.
Depois da refeição solitária, John sentou-se em frente à janela.
Não queria fumar. Do lado de fora, a cidade gritava para que ele se
juntasse àquela dança de desvario e prazer. A noite era dele. Poderia
sair insuspeito e dedilhar as cordas da alegria livremente, como um
homem solteiro. Poderia farrear e vaguear e aprontar até de
madrugada se quisesse; e não haveria nenhuma Katy irada esperando
por ele, empunhando o cálice onde restava a borra de sua felicidade.
Poderia ir jogar sinuca no McCloskey’s com seus parceiros fanfarrões
até que Aurora apagasse as luzes. Mas haviam se afrouxado os laços
matrimoniais que o freavam sempre que o edifício Frogmore o
enfastiava. Katy partira.
John Perkins não estava acostumado a analisar as próprias
emoções. Mas, sentado ali naquela salinha pequena, desenfeitada sem
Katy, identificou de forma certeira a raiz de seu incômodo. Sabia agora
que Katy era necessária para sua felicidade. Os sentimentos que tinha
por ela, e que estavam amortecidos pela monotonia da vida doméstica,
haviam sido bruscamente sacudidos pela perda de sua presença. Já não
nos foi dito repetidas vezes, em provérbios, sermões e fábulas, que não
damos valor à música até que a ave de voz doce alce voo – ou coisa
parecida, dita de maneira menos floreada?
“Sou um tonto, um enganador”, pensou John Perkins em voz alta.
“O jeito que venho tratando Katy… Saio toda noite para jogar sinuca e
vadiar com meus amigos em vez de ficar em casa com ela. A
coitadinha passa o tempo aqui sozinha, sem distração, e eu agindo
desse jeito! John Perkins, você é um farsante. Vou compensar tudo que
fiz com a pobre moça. Vamos sair, ela vai se divertir um pouco. E vou
me afastar do pessoal do McCloskey’s a partir de hoje.”
Sim, a cidade clamava lá fora para que John Perkins pegasse o trem
de Momo. E no McCloskey’s os rapazes jogavam sinuca sem se
preocupar com a hora. Mas nem a tentação da luxúria nem a maciez
do feltro verde persuadiriam a alma cheia de remorsos de John
Perkins, o desolado. Algo que lhe pertencia e lhe era razoavelmente
caro, ainda que por vezes desdenhado, havia-lhe sido retirado. E ele
queria de volta. Uma volta no tempo até um certo homem chamado
Adão, expulso do jardim das delícias pelos querubins, daria pistas da
rota descendente de Perkins, o arrependido.
Perto da mão direita de John Perkins havia uma cadeira. Apoiada
no encosto, uma blusa azul de Katy ainda guardava marcas das curvas
da dona. As mangas tinham dobrinhas, causadas pelo movimento dos
braços na lida para dar a John conforto e prazer. Um aroma de
jacintos, delicado mas inconfundível, vinha do tecido. John segurou a
blusa na mão e encarou, triste, a indiferença da peça. Katy nunca era
indiferente. Lágrimas – sim, lágrimas – invadiram os olhos de John
Perkins. Quando ela voltasse, as coisas seriam diferentes. Ele
compensaria toda aquela desatenção. O que era a vida sem Katy,
afinal?
A porta abriu. Katy entrou carregando uma malinha. John olhou-a,
atordoado.
“Ufa, como é bom voltar pra casa”, disse Katy. “Mamãe não teve
nada sério. Sam estava na estação e contou que ela passou um pouco
mal, mas se recuperou logo depois de ele mandar o telegrama. Então
peguei o trem seguinte de volta. Estou louca por uma xícara de café.”
Ninguém notou o som das engrenagens se encaixando e colocando
o apartamento terceiro andar do edifício Frogmore de volta aos
trilhos. Uma correia rateou, uma mola esticou, o mecanismo se
ajustou, e as rodas retomaram a velha órbita.
John Perkins olhou para o relógio. Eram 8 e quinze. Ele pegou o
chapéu e foi em direção à porta.
“Aonde você vai, me diga, John Perkins?”, perguntou Katy, em tom
de reclamação.
“Acho que vou dar um pulo no McCloskey’s e jogar uma
sinuquinha com o pessoal”, respondeu John.
Meia-noite e o café estava lotado. Por acaso, a mesa em que me
acomodei tinha escapado ao olhar de quem entrava, e duas cadeiras
vazias estendiam os braços em falsa hospitalidade aos fregueses que
cruzavam a porta.
E então um cosmopolita sentou-se em uma delas, e fiquei feliz
porque sempre nutri uma teoria de que, depois de Adão, jamais
existira outro cidadão do mundo. Ouvimos falar do tipo, claro, e
sempre deparamos com bagagens repletas de etiquetas de países
estrangeiros, mas o que temos ali são viajantes, e não cosmopolitas.
Peço ao leitor a consideração de atentar ao cenário: mesas cobertas
por tampos de mármore, assentos de couro com encosto que sobe
pelas paredes, clima festivo, mulheres vestidas de modo elegante, mas
sem exagero, e falando em coro, deliciosamente, sobre gostos,
economia, opulência ou arte; garçons atenciosos, em especial com
fregueses que vivem à larga; música escolhida para agradar a todos,
variando de compositor a cada instante; conversas e risadas que se
misturam – e imaginem, ainda, as Würzburgers servidas em copos
altos, que se amoldam aos lábios feito o fruto maduro que pende da
cerejeira e se oferece ao bico do gaio. Disse-me um escultor de Mauch
Chunk que a cena era indiscutivelmente parisiense.
O meu cosmopolita se chamava E. Rushmore Coglan e será muito
conhecido no próximo verão em Coney Island. Pretende instalar por
lá uma nova “atração”, informa, que garantirá diversão digna de reis. E
dali a conversa seguiu por outras latitudes e longitudes. Coglan tomou
o globo em suas mãos, por assim dizer, com familiaridade, desdenho
até, e o mundo parecia reduzido ao tamanho de uma cereja
marrasquino adornando um prato de grapefruit, desses oferecidos em
menus a preço fixo. Ele falava desrespeitosamente da linha do
equador, pulava de continente em continente, ridicularizava fusos
horários, varria os sete mares com o guardanapo. Com um movimento
de mão, contava de um certo bazar em Hiderabade. Vupt! E estávamos
esquiando na Lapônia. Zip! E lá íamos de canoa havaiana pelo quebra-
mar de Kealaikahiki. Presto! E nos arrastava pelas florestas de carvalho
no Arkansas, parava um pouco para descansar nas planícies alcalinas
de seu rancho em Idaho, e nos atirava diretamente entre os
arquiduques da sociedade vienense. Sem piscar, passava a detalhar o
resfriado que apanhara da brisa gelada de um lago em Chicago e de
como a velha Escamila o havia curado, em Buenos Aires, com uma
infusão quente da erva chuchula. Uma carta endereçada a “E.
Rushmore Coglan, Advogado, Planeta Terra, Sistema Solar, Universo”
iria certamente chegar-lhe às mãos.
Eu acreditava ter finalmente encontrado o único ser
verdadeiramente cosmopolita desde Adão e ouvia aquele discurso sem
fronteiras um pouco temeroso de descobrir ali no meio aquela nota
local que trai o mero viajante. Mas ele jamais titubeava ou oscilava em
suas opiniões, que eram tão imparciais em relação a cidades, países ou
continentes quanto a força da gravidade ou dos ventos.
E à medida que E. Rushmore Coglan matraqueava sobre nosso
pequeno planeta, eu pensava, feliz, em um outro grande quase-
cosmopolita que escreveu para o mundo e se dedicou especialmente a
Bombaim. Em um poema, ele diz que existem orgulho e rivalidade
entre as cidades da terra e que “os homens ali nascidos viajam para
toda parte em buscas eternas, mas se apegam às suas cidades feito
crianças às saias maternas”. E sempre que andam por “ruas ruidosas e
desconhecidas”, lembram-se da terra natal “e são fiéis, ingênuos,
revelam carinho; e a simples menção à cidade reforça ainda mais os
laços com o ninho”. E minha alegria aumentou porque peguei o sr.
Kippling num cochilo: eu tinha encontrado um homem que não era
feito de pó, não se vangloriava do local de nascimento, um homem
que, se fosse contar vantagem, falaria de seu vasto e esférico mundo
apenas perante marcianos ou habitantes da Lua.

Impressões sobre esses temas foram sufocadas em E. Rushmore


Impressões sobre esses temas foram sufocadas em E. Rushmore
Coglan por algo que ocorria do outro lado do salão. Enquanto Coglan
me descrevia a topografia da região ao longo da ferrovia Siberiana, a
orquestra engatou um medley. A música que fechava o arranjo era
Dixie, hino sulista, e a melodia alegre quase sumia sob as palmas vindas
de praticamente todas as mesas.
Vale aqui abrir parênteses para dizer que essa cena notável pode ser
testemunhada toda noite em vários cafés de Nova York. Muita cerveja
já foi entornada na tentativa de propor uma teoria que a explique.
Conjeturas precipitadas afirmam que todo sulista corre para um café
ao anoitecer. Esse aplauso dirigido a melodias “rebeldes” em uma
cidade do Norte de fato intriga um pouco, mas não é um mistério
insolúvel. A guerra com a Espanha, as generosas safras de hortelã e
melancia, alguns azarões vencedores nas corridas em Nova Orleans e
os banquetes impressionantes, oferecidos pelos cidadãos de Indiana e
Kansas que compõem a sociedade da Carolina do Norte, colocaram o
Sul na moda em Manhattan. Sua manicure pode deixar escapar num
sussurro que seu indicador esquerdo lembra demais de um cavalheiro
em Richmond, Virgínia. Ah, certamente; mas muitas moças estão
trabalhando agora, sabe como é, a guerra…
Enquanto a banda tocava Dixie, um jovem de cabelos pretos surgiu
do nada, gritando como os comandados de Mosby na Guerra Civil e
agitando freneticamente seu chapéu de aba mole. Driblando a fumaça,
ocupou a cadeira vaga na nossa mesa e puxou um maço de cigarros do
bolso.
A noite chegava àquele momento em que o recato desaparece. Um
de nós mencionou três Würzburgers ao garçom; o rapaz de cabelos
pretos confirmou sua inclusão no pedido com um sorriso e um aceno
de cabeça. Apressei-me em fazer uma pergunta porque queria testar
uma teoria com ele.
“Você se incomodaria de me confirmar se sua cidade natal é…”
O punho de E. Rushmore Coglan bateu na mesa, silenciando-me.

“Com licença”, disse, “mas esse é o tipo de pergunta que não gosto
“Com licença”, disse, “mas esse é o tipo de pergunta que não gosto
de ouvir. Que diferença faz o lugar onde se nasce? É justo julgar um
homem com base no seu endereço postal? Eu mesmo já conheci gente
do Kentucky que odiava uísque, habitantes da Virgínia que não
descendiam de Pocahontas, nativos de Indiana que nunca tinham
escrito um romance, mexicanos que não usavam calça de veludo com
dólares de prata costurados na bainha, ingleses engraçados, ianques
perdulários, sulistas de sangue-frio, ocidentais obtusos e nova-
iorquinos ocupados demais para parar por uma hora na rua e observar
um quitandeiro maneta encher saquinhos de papel com cranberries.
Deixe que um homem seja apenas um homem e não o prejudique com
rótulos deste ou daquele canto”.
“Perdão”, respondi, “mas minha curiosidade não era
despropositada. Conheço o Sul e, quando a banda toca Dixie, gosto de
observar as reações. Formei uma crença de que o homem que aplaude
aquela canção com violência e um senso explícito de lealdade regional
ou é nativo de Secaucus, em New Jersey, ou do distrito que fica entre
Murray Hill Lyceum e o Rio Harlem, nesta cidade. Eu estava prestes a
testar minha crença com este cavalheiro quando você me interrompeu
com a sua própria… teoria mais ampla, eu diria”.
E então o jovem de cabelos pretos começou a falar comigo e ficou
claro que a sua mente também se movia por caminhos peculiares.
“Eu gostaria de ser uma flor de congonha”, disse de forma
misteriosa, “fincada no topo de um vale, e cantar Too-Ralloo-Ralloo”.
A conversa estava obscura demais; voltei-me a Coglan. “Já dei a
volta ao mundo doze vezes”, contou. “Conheço um esquimó em
Upernavik que manda trazer suas gravatas de Cincinnati e um pastor
de cabras no Uruguai que ganhou uma competição de palavras
cruzadas em Battle Creek sobre comidas de café da manhã. Alugo um
quarto no Cairo, no Egito, e outro em Yokohama, pelo ano todo.
Tenho chinelos me esperando numa casa de chá em Xangai e não
preciso dar instruções sobre como preparar meus ovos no Rio de
Janeiro ou em Seattle. Mundo pequeno. Que vantagem há em se
vangloriar por vir do Norte, do Sul, ou da mansão no vale, ou da
Avenida Euclid, em Cleveland, ou de Pike’s Peak, ou do Condado de
Fairfax, na Virgínia, ou de Hooligan’s Flats ou qualquer outro lugar?
O mundo será um lugar melhor quando deixarmos de lado essas
bobagens sobre cidadezinhas mofadas ou dez acres de terra pantanosa
só porque, por acaso, nascemos ali.”
“Você me parece ser um cosmopolita genuíno”, elogiei. “Mas
também desconfio que reprovaria o patriotismo.”
“Uma relíquia da idade da pedra”, respondeu, cordial. “Somos
todos irmãos – chineses, ingleses, zulus, patagões e os moradores da
região onde o Rio Kaw faz a curva. Um dia, esse orgulho mesquinho
por cidades, estados, regiões ou países sumirá do mapa e seremos todos
cidadãos do mundo, como deve ser.”
“Mas quando viaja por terras estrangeiras”, insisti, “seus
pensamentos não se voltam a um lugar especial, um lugar…”.
“Lugar nenhum”, interrompeu E. R. Coglan, ligeiro. “Essa massa
planetária esférica, ligeiramente achatada nos polos e conhecida como
Terra é o meu lar. Deparei em minhas viagens com vários cidadãos
deste país, e todos estavam sempre à procura do que já conheciam. Vi
homens nascidos em Chicago passeando sob o luar de Veneza e que, de
dentro das gôndolas, falavam orgulhosos dos canais de drenagem da
terra natal. Certa vez testemunhei um sulista dizendo ao rei da
Inglaterra, ao serem apresentados, e sem pestanejar, que sua tia-avó
materna descendia, por afinidade, dos Perkinses, de Charleston.
Conheci ainda um nova-iorquino que foi raptado por criminosos
afegãos. A família enviou o dinheiro do resgate e ele acabou por
retornar a Cabul com o agente. “O dinheiro veio do Afeganistão?”,
perguntaram os nativos por meio de um intérprete. “Até que não
demorou muito, não acha?”
“Oh, não sei…”, responde ele, e começa então a falar sobre um
taxista que trabalha na esquina da 6ª Avenida com a Broadway. “Essas
ideias não me seduzem. Não estou ligado a nada que tenha menos de
12 mil quilômetros de diâmetro. Se tiver de me rotular, sou E.
Rushmore Coglan, cidadão da esfera terrestre.”
Meu cosmopolita então acenou adieu e se retirou, acreditava ter
avistado um conhecido no meio do barulho e da fumaça. E assim fui
deixado na companhia da flor de congonha frustrada que, a essa
altura, afogado em Würzburger, já não tinha condições de expressar
suas aspirações de se empoleirar, melodioso, no topo de um monte.
Fiquei ali pensando sobre o meu autêntico cosmopolita e me
perguntando como pôde ter passado despercebido pelo poeta. Era uma
descoberta minha e eu acreditava nele. Como é mesmo o verso? “Os
homens ali nascidos viajam para toda parte em buscas eternas, mas se
apegam às suas cidades feito crianças às saias maternas.”
Isso não se aplicava a E. Rushmore Coglan. O mundo era sua…
Meus pensamentos foram interrompidos pelo barulho de uma
briga que acontecia do outro lado do café. Por sobre a cabeça dos
fregueses que estavam sentados, pude ver E. Rushmore Coglan
atracado em combate com alguém que me era estranho. Brigavam
entre as mesas feito titãs. Copos quebravam, homens agarravam o
chapéu e se levantavam para logo serem nocauteados. Uma morena
gritava. Uma loira cantava Teasing.
Meu cosmopolita defendia o orgulho e a reputação da Terra
quando os garçons cercaram os dois combatentes com sua conhecida
formação em “V” e arrastaram ambos para a rua.
Chamei McCarthy, um dos garçons franceses do lugar, e indaguei a
causa do conflito.
“O homem de gravata vermelha” (era o meu cosmopolita),
respondeu o garçom, “ficou irritado porque o outro sujeito zombou
das calçadas e do fornecimento de água da cidade dele”.
“Mas aquele homem é um cidadão do mundo, um cosmopolita!
Ele…”
“Ele disse que nasceu em Mattawamkeag, no Maine”, continuou
McCarthy, “e que não ia tolerar ninguém falando mal de lá”.
Em uma pequena região a oeste de Washington Square, as ruas
enlouqueceram e se repartiram em pequenas faixas chamadas places,
que formam ângulos e curvas incomuns. Uma rua pode ser travessa de
si mesma – e em mais de um ponto. Um artista descobriu que essas
vielas ofereciam uma oportunidade valiosa. Suponha que um
cobrador, em busca de receber o pagamento referente à compra de
tinta, pincel e telas, ao andar pelo bairro deparasse consigo próprio
fazendo o caminho inverso, e sem ter recebido um centavo!
Assim, rumo ao pitoresco Greenwich Village logo seguiu o povo das
artes em busca de janelas voltadas para o norte, frontões do século
XVIII, sótãos holandeses e aluguéis baratos. E então importaram
canecas de estanho e réchauds da 6ª Avenida, e tornaram-se uma
“colônia”.
No último andar de um predinho de tijolos de três andares, Sue e
Johnsy montaram um estúdio. “Johnsy” era apelido de Joanna. Uma
delas era do Maine; a outra, da Califórnia. Conheceram-se no
restaurante de um “Delmonico’s” na Rua Oito e descobriram tanta
compatibilidade em seus gostos por arte, salada de chicória e mangas
bufantes que o encontro resultou no estúdio em conjunto.
Isso aconteceu em maio. Em novembro, um resfriado diferente,
invisível, e que os médicos batizaram de pneumonia, passou a
espreitar a colônia, tocando um morador aqui, outro ali, com seus
dedos gélidos. No lado leste, o flagelo se espalhou com força, fazendo
vítimas às dezenas, mas avançou lentamente pelo emaranhado de
ruazinhas estreitas e cobertas de musgo conhecidas por places.
O sr. Pneumonia não era o que se poderia chamar de cavalheiro.
Uma mulher pequenina, com o sangue afinado pelos ventos da
Califórnia, não seria páreo para o velho trapaceiro sedento de sangue.
Mas Johnsy não escapou: caíra prostrada, mal se mexia na cama de
ferro pintado de onde olhava as pequenas janelas holandesas nos
fundos do prédio vizinho. Certa manhã, o médico de sobrancelhas
grisalhas e peludas chamou Sue no corredor.
“Ela tem uma chance, digamos, em dez”, falou enquanto
chacoalhava o termômetro de mercúrio. “E essa chance tem a ver com
vontade de viver. Esse hábito que as pessoas têm de se aliar ao coveiro
transforma a farmacopeia toda em uma grande bobagem. Sua amiga
decidiu que não vai ficar boa. Ela tem algum projeto em mente, algo
que a anime?”
“Ela gostaria de pintar a baía de Nápoles um dia”, respondeu Sue.
“Pintar?? Quero saber se ela tem algo em mente que valha mesmo
a pena – um homem por exemplo.”
“Homem?”, retrucou Sue, num tom anasalado de berimbau de
boca. “Será que um homem vale – não, doutor, nada assim que a
anime.”
“Bem, é a fraqueza então”, continuou o médico. “Farei tudo o que
a ciência, ou o que dela meus esforços alcançarem, permitir. Mas,
sempre que um paciente começa a contar o número de veículos de seu
cortejo fúnebre, subtraio 50% do poder curativo dos remédios. Se
conseguir que ela faça pelo menos uma pergunta sobre os novos estilos
de capas de inverno, garanto a ela uma chance em cinco – em vez de
uma em dez.”
Depois que o médico saiu, Sue foi para o ateliê e chorou até
transformar o delicado guardanapo de papel em uma maçaroca só.
Então encheu o peito e seguiu, pimpona, para o quarto de Johnsy com
uma prancheta de desenho e assobiando um ragtime.
Johnsy estava deitada e mal se mexia sob as cobertas, de onde
mirava a janela. Sue parou de assobiar achando que a amiga dormia.
Ajeitou a prancheta e começou a trabalhar em um desenho
encomendado para ilustrar um texto de revista. Jovens artistas abrem
caminho no mundo da Arte desenhando para revistas que publicam
textos de jovens escritores que estão abrindo caminho na Literatura.

Enquanto esboçava um elegante par de calças de montaria e um


Enquanto esboçava um elegante par de calças de montaria e um
monóculo sobre a figura do herói, um caubói de Idaho, Sue ouviu um
som baixo, que se repetia. Rapidamente se aproximou da cama.
Os olhos de Johnsy estavam abertos. Ela olhava para a janela e
contava – contava de trás para a frente.
“Doze”, ela disse, e um pouco depois, “onze”; e depois “dez”, e
“nove”; e então “oito” e “sete” praticamente ao mesmo tempo.
Sue virou-se, apreensiva, para a janela. O que tinha ali para ser
contado? Um pequeno jardim escuro, sem graça, e os fundos do prédio
vizinho. Uma velha trepadeira, com as raízes enrugadas e apodrecidas,
escalava a parede até a metade. O sopro frio do outono havia
arrancado as folhas da trepadeira e revelado os galhos, quase nus,
agarrados aos tijolos, que também se desfaziam.
“O que foi, querida?”, perguntou Sue.
“Seis”, respondeu Johnsy, quase suspirando. “Estão caindo mais
depressa agora. Há três dias, eram quase cem. Minha cabeça doía para
contar. Mas agora ficou fácil. Olhe, caiu mais uma. Sobraram só
cinco.”
“Cinco o quê, querida? Fale para a sua Sudie.”
“Folhas. Na velha trepadeira. Quando a última cair, também eu irei
embora. Já sei disso faz três dias. O médico não contou?”
“Nunca ouvi tamanha bobagem”, retrucou Sue, com desdém. “O
que as folhas de uma velha trepadeira têm a ver com a sua saúde? E
você sempre gostou dessa árvore, sua danada. Larga de besteira. O
médico me disse hoje cedo que suas chances de melhorar logo eram de
– quero lembrar as palavras exatas –, disse que suas chances eram de
dez para uma! É quase a mesma chance que temos em Nova York
quando pegamos o bonde ou passamos perto de uma construção.
Agora tome um pouco de sopa e deixe a sua Sudie acabar o desenho
para poder vender ao editor e depois comprar vinho do Porto para a
mocinha doente e costeletas de porco para a gulosa aqui.”
“Não precisa mais comprar vinho”, disse Johnsy, olhos fixos na
janela. “Caiu mais uma. E não quero mais sopa. Agora sobraram
quatro. Quero ver a última cair antes do anoitecer. E então irei
também.”
“Johnsy, querida”, disse Sue, curvando-se na direção da amiga,
“prometa que vai ficar de olhos fechados, sem olhar para a janela, até
eu acabar o desenho. Tenho que entregar esse trabalho amanhã. E
preciso da luz natural, senão eu fecharia a cortina.”
“Não pode desenhar no outro quarto?”, perguntou Johnsy,
friamente.
“Prefiro estar aqui com você”, respondeu Sue. “Além disso, não
quero que fique olhando para essas folhas bobas.”
“Então me avise assim que acabar”, continuou Johnsy, fechando os
olhos, branca como uma estátua, “porque eu quero ver a última folha
cair. Estou cansada de esperar, cansada de pensar. Quero largar mão de
tudo e seguir ao sabor do vento, igual a essas folhas velhas e cansadas”.
“Tente dormir um pouco”, concluiu Sue. “Vou lá chamar o
Behrman para servir de modelo para o mineiro ermitão que vou
desenhar. Não demoro. Não se mexa até eu voltar.”
O velho Behrman era um pintor que morava no andar de baixo. Já
passara dos 60 e tinha uma barba à la Moisés de Michelangelo, com
caracóis que desciam de uma cabeça de sátiro e cobriam um peito de
duende. Era um fracasso artístico. Por quarenta anos, empunhara o
pincel sem nunca se aproximar de sua Musa. Estava sempre prestes a
pintar uma obra-prima, que jamais sequer começava. Na maior parte
do tempo, só pintava anúncios comerciais em paredes. Faturava um
dinheirinho posando de modelo para jovens artistas da colônia que
não podiam pagar um profissional. Bebia gim além da conta e
continuava alardeando a obra-prima que um dia perpetraria. De resto,
era um homenzinho muito bravo, que escarnecia das pessoas que
considerava muito moles e que se considerava o cão de guarda oficial
das duas jovens artistas do andar de cima.
Sue encontrou Behrman já exalando um aroma forte de bagas de
zimbro em sua caverna pequena e escura no primeiro andar. Em um
dos cantos, apoiada sobre um cavalete, via-se uma tela em branco que
havia 25 anos esperava pelos primeiros traços de sua obra-prima. Ela
contou a ele sobre a fantasia de Johnsy e sobre como ela temia que a
amiga, frágil como uma folha, de fato se deixasse levar pelo vento
conforme sua ligação com o mundo enfraquecia.
O velho Behrman a encarava com os olhos injetados e logo gritou
seu menosprezo por aquele monte de bobagem.
“Ainda tem gente na mundo que pensa que vai morrer porque os
folhas caem do velha trepadeirra? Nunca ouvi tanta besteirra. Eu non
vai posar para o seu mineirro estúpido. Como você deixarr esse
bobagem entrrar no cabeça dela? Ach, coitada da senhorrita Yohnsy.”
“Ela está muito doente e fraca”, disse Sue, “e a febre encheu a
cabeça dela com esses pensamentos mórbidos. Muito bem, sr.
Behrman, se não quer posar para mim, não precisa. Mas acho que o
senhor é um velho falastrão”.
“Mulherres!, gritou Behrman. “Quem disse que non querro posar?
Vamos, fou com você. Faz meia horra que estou falando que querro
posar. Mein Gott! Isso aqui non é lugar parra alguém bondoso como a
senhorrita Yohnsy ficar doente. Um dia fou pintar minha obrra-
prrima e vamos todas mudar daqui. Isso mesmo.”
Johnsy dormia quando eles subiram. Sue abaixou a cortina do
quarto e levou Behrman para o outro cômodo. Ali, os dois espiaram
pela janela para ver, receosos, a velha trepadeira. E então se
entreolharam sem dizer nada. Caía uma chuvinha fria, persistente,
misturada com neve. Behrman, em sua velha camisa azul, assumiu o
posto de mineiro ermitão sentando numa panela virada com a boca
para baixo e que fazia as vezes de rocha.
Ao acordar depois de apenas uma hora de sono na manhã seguinte,
Sue logo viu que Johnsy estava desperta e tinha o olhar parado na
direção da cortina fechada.
“Abra, quero ver”, mandou, sussurrando.
Exausta, Sue obedeceu.
Mas veja só! Mesmo depois da chuva forte e das rajadas de vento
que duraram a noite toda, ainda sobrara ali na parede uma última
folha da trepadeira. Ainda verde perto do talo, mas com as bordas já
mostrando o amarelado decadente da decomposição, a folha pendia
bravamente em um galho a 6 metros do chão.
“É a última”, disse Johnsy. “Eu tinha certeza de que cairia durante a
noite. Ouvi a ventania. Mas hoje ela cai, e eu morrerei na mesma
hora.”
“Minha querida”, disse Sue, recostando o rosto cansado no
travesseiro. “Pense em mim, se não quer mais pensar em você. O que
vou fazer?”
Johnsy não respondeu. A coisa mais solitária do mundo é a alma
que se prepara para seguir sua misteriosa jornada. Aquela fantasia
parecia se apoderar dela com mais força à medida que os laços que a
ligavam às amizades e ao mundo se afrouxavam.
O dia se arrastou e mesmo ao cair da tarde elas ainda podiam
enxergar a folhinha verde agarrada ao galho contra a parede. Com a
chegada da noite, os ventos do norte voltaram a soprar com força
enquanto a água da chuva castigava as janelas e escorria pelos beirais
holandeses.
Quando clareou, Johnsy, a mandona, ordenou que a cortina fosse
aberta.
A folha ainda estava lá.
Johnsy ficou deitada olhando para a folha. E então chamou Sue,
que preparava um caldo de galinha no fogão.
“Fui uma garota má, Sudie”, disse Johnsy. “Algo segurou aquela
folha lá fora para me mostrar como eu estava errada. É um pecado
querer morrer. Pode me trazer um pouco do caldo. E também leite
com um pouco de vinho do Porto – não, antes me traga um espelho e
me ajude a sentar na cama, quero olhar enquanto você cozinha.”
Uma hora depois, ela disse:
“Sudie, um dia, espero poder pintar a baía de Nápoles.”
O médico foi visitá-las naquela tarde e Sue arrumou uma desculpa
para acompanhá-lo ao corredor na saída.

“Cinquenta por cento”, concluiu o médico, segurando as mãos


“Cinquenta por cento”, concluiu o médico, segurando as mãos
trêmulas de Sue. “Com os cuidados corretos, ela vai superar. E agora
preciso ver outro paciente no andar de baixo. Behrman é o nome –
artista, parece. Pneumonia também. É um homem já idoso, está fraco,
e o ataque foi mais agudo. Não há esperança para ele, mas o levaremos
hoje para o hospital para que fique mais confortável.”
No dia seguinte, o médico anunciou para Sue: “Ela não corre mais
perigo. Você venceu. Alimentação e cuidados, só isso agora”.
Naquela tarde, Sue aproximou-se da cama onde Johnsy tricotava,
feliz, um cachecol tão azul quanto inútil e abraçou-a, envolvendo
também todos os travesseiros.
“Tenho uma coisa para contar, minha ratinha. O sr. Behrman
morreu hoje de pneumonia no hospital. Ficou só dois dias doente. O
zelador o encontrou no primeiro dia, desamparado no apartamento e
sentindo muitas dores. Seus sapatos e roupas estavam molhados,
chegaram a congelar. Ninguém conseguiu descobrir por onde ele
andou naquela noite tão chuvosa e fria. Encontraram uma lanterna,
ainda acesa, uma escada fora do lugar, pincéis e uma paleta com tintas
verde e amarela misturadas. Olhe pela janela, querida, e repare na
última folha da trepadeira. Nunca pensou em por que ela não voou
dali quando o vento bateu? É a obra-prima de Behrman: ele a pintou
ali na noite em que a última folha caiu.
Desde que o bar recebeu a bênção da igreja e coquetéis passaram a dar
início aos jantares dos eleitos, pode-se falar sem medo do botequim. Os
abstêmios não precisam ouvir, se não quiserem; sempre há a opção do
restaurante caça-níquel, onde uma moedinha enfiada na ranhura onde
se lê caldo frio entrega, na verdade, um dry Martini.
Con Lantry trabalhava no lado sóbrio do balcão, no café do sr.
Kenealy. Você e eu ficávamos em pé, numa perna só feito gansos, do
lado oposto, e zerávamos voluntariamente o salário da semana. À
nossa frente, Con, asseado, moderado, sóbrio, educado, elegante no
paletó branco, pontual, confiável, jovem e responsável, tomava nossos
trocados.
O botequim (abençoado ou amaldiçoado) ficava num desses
logradouros que formam paralelogramos, em vez de quarteirões
uniformes, e são habitados por lavanderias, famílias tradicionais
decadentes e boêmios que nada têm a ver com os grupos anteriores.
No andar de cima do café viviam Kenealy e família. Sua filha,
Katherine, tinha olhos escuros… mas por que você precisa saber disso?
Contente-se com sua Geraldine ou com sua Eliza Ann. A moça era o
sonho de Con; e quando ela chamava, com voz suave ao pé da escada
dos fundos, pedindo a jarra de cerveja para o jantar, o coração dele
disparava como uma dose de milk punch dentro da coqueteleira.
Sistemáticas e justas são as regras do Romance: se você joga o último
centavo da sua fortuna sobre o balcão para comprar uísque, o barman
aceitará e casará com a filha do chefe, e tudo acabará bem.
Mas isso não valia para Con. Na presença de mulheres, a língua
travava e o rosto enrubescia. Justo ele, que repreendia com o olhar
jovens barulhentos cuja tagarelice era exacerbada pelo ponche, que
usava o espremedor de limão para conter os bagunceiros, que jogava
os briguentos na calçada sem sequer amarrotar a gravata branca,
quando estava diante de uma mulher, perdia a voz, não falava coisa
com coisa, gaguejava, enterrava-se sob uma avalanche de timidez e
angústia. O que era ele, então, diante de Katherine? Um medroso, sem
nada a dizer, incapaz de um elogio inteligente, o mais sem graça dos
enamorados que um dia balbuciaram bobagens sobre o clima na
presença da amada.
Eis que apareceram no Keanely’s dois homens queimados do sol,
Riley e McQuirk. Conversaram com Keanely e alugaram um quarto
nos fundos, que ocuparam com garrafas, sifões, jarras e vidros
medidores usados por farmacêuticos. Estavam ali todos os acessórios e
líquidos encontrados em um botequim, mas eles não vendiam
drinques. Passavam o dia lá dentro, suando e preparando infusões e
decocções com as bebidas que tinham à disposição. Riley tinha estudo,
e gastava resmas de papel para transformar galões em onças, quartos
de galão em gotas. McQuirk, homem moroso de olhos avermelhados,
despejava toda mistura malsucedida no ralo da pia acompanhada de
um xingamento leve, rouco e sentido. Trabalhavam arduamente e sem
descanso para chegar a alguma solução secreta, como dois alquimistas
labutando para arrancar ouro dos elementos.
E nesse quarto dos fundos, certa noite depois do expediente,
adentrou Con. Sua curiosidade profissional havia sido atiçada por
aqueles misteriosos barmen, em cujo bar não se bebia, e que todos os
dias buscavam na despensa de Keanely as bebidas que usavam, aos
montes, em infrutíferos experimentos.
Pela escada dos fundos desceu Katherine, com um sorriso que
lembrava o amanhecer na Baía de Gweebarra.
“Boa noite, sr. Lantry”, disse a moça. “Quais são as novidades do
dia, por favor?”
“Pa-parece que va-vai chover”, gaguejou o tímido, recuando em
direção à parede.
“Não podia ser notícia melhor”, continuou Katherine. “Não se
perde nada com um pouco de água.” No quarto dos fundos Riley e
McQuirk trabalhavam como duas bruxas barbadas em suas estranhas
misturas. Retiravam líquidos de cinquenta garrafas diferentes, tudo
cuidadosamente medido segundo as medições de Riley, e depois
misturavam tudo numa grande vasilha de vidro. Então McQuirk
jogava o resultado fora, blasfemava desanimado e os dois
recomeçavam o processo.
“Sente-se”, disse Riley a Con, “vou contar a história toda”.
“No verão passado, eu e o Tim concluímos que abrir um bar
americano nesse país chamado Nicarágua daria dinheiro. Sabíamos de
uma cidade na costa onde só tinha quinina para comer e rum para
beber. Nativos e forasteiros se deitavam com calafrios e levantavam
febris; um drinque bem-feito é o remédio da natureza para todos esses
incômodos tropicais.
“Então fizemos um bom estoque de bebidas em Nova York, e
também de acessórios de bar e copos, e pegamos o vapor para Santa
Palma. No caminho, eu e Tim vimos peixes voadores, jogamos com o
capitão e a tripulação, e já começamos a nos sentir os reis do highball
no Trópico de Capricórnio.
“Quando estávamos a cinco horas do país onde apresentaríamos
drinques longos a preços pequenos, o capitão nos chamou à bitácula
de estibordo para recapitular algumas coisas.
“‘Esqueci de dizer a vocês’, começou o capitão, ‘que a Nicarágua
baixou no mês passado um imposto de importação de 48% ad valorem
sobre todas as bebidas engarrafadas. O presidente confundiu um vidro
de tônico capilar com pimenta e agora quer se vingar. Bebidas em
barris não pagam nada’.
“Pena o senhor não ter avisado antes”, dissemos. E então
compramos dois barris de 42 galões do capitão, abrimos todas as nossas
garrafas e ali despejamos o líquido. Aqueles 48% teriam arruinado
nosso negócio, preferimos arriscar fazendo aquele coquetel de 1.200
dólares em vez de jogar tudo fora.
“Quando aportamos, abrimos um dos barris. A mistura estava de
dar vergonha. Era da cor daquela sopa de ervilhas servida no Bowery, e
o gosto lembrava aquele líquido parecido com café que a sua tia o
obriga a beber para conter as palpitações que atacam quando seu
cavalo perde. Demos a um negro quatro dedos da mistura: ele ficou
deitado embaixo de um coqueiro três dias, batendo o calcanhar na
areia, e se recusou a assinar um atestado de qualidade.
“Mas o outro barril! Me diga, barman, algum dia você já colocou
um chapéu-panamá com uma faixa amarela e subiu num balão com
uma moça bonita e 8 milhões de dólares no bolso, tudo isso ao mesmo
tempo? Pois é isso que trinta gotas daquela bebida fazem o sujeito
sentir. Com dois dedos daquilo goela adentro, você cobriria o rosto
com as mãos e choraria por não ter ninguém ao seu redor que valesse
a pena surrar além do pequeno Jim Feffries. Sim, senhor, a mistura
naquele segundo barril era o elixir destilado da batalha, do dinheiro,
da boa vida. Tinha a cor do ouro, era transparente como vidro e
brilhava à noite como se prendesse ali os raios do sol. Você teria que
esperar mil anos para conseguir servir uma bebida como aquela.
“Bom, então abrimos o negócio servindo aquele drinque, e foi o
suficiente. A pequena nobreza mestiça do país se amontoava como um
enxame de abelhas para experimentar. Se o barril tivesse durado mais,
aquele país teria se tornado o maior do mundo. Quando abríamos a
porta de manhã, uma fila de generais, coronéis, ex-presidentes e
revolucionários já dobrava o quarteirão, todos esperando para ser
servidos. Começamos vendendo a 50 centavos por drinque. Os últimos
dez galões sumiram a 5 dólares o gole. A coisa era maravilhosa. Dava
aos homens coragem, ambição, ousadia para fazer qualquer coisa. Ao
mesmo tempo, eles não se importavam se o dinheiro era sujo ou se
vinha diretamente do Cartel do Gelo. Quando o barril chegou à
metade, a Nicarágua tinha repudiado a dívida nacional, eliminado o
imposto sobre o cigarro e estava prestes a declarar guerra contra
Estados Unidos e Inglaterra.
“E foi por acaso que descobrimos esse rei dos drinques, e será por
sorte que acertaremos de novo. Estamos tentando há dez meses. Em
pequenas levas de cada vez, já produzimos barris contendo todos os
ingredientes nocivos e conhecidos da profissão etílica. Daria para
montar dez bares com todo uísque, brandy, coquetéis, bitters, gim e
vinhos que eu e Tim já jogamos fora. Que um drinque glorioso como
esse seja negado ao mundo… É uma tristeza e um desperdício de
dinheiro. Os Estados Unidos, como nação, receberiam muito bem um
drinque assim, e pagariam por ele.”
Durante toda a conversa, McQuirk esteve medindo e misturando
cuidadosamente pequenas quantidades de espíritos, como Riley os
chamava, listados a lápis em sua última receita. O resultado final tinha
uma coloração chocolate horrorosa, mosqueada. McQuirk provou e
em seguida, com os epítetos de sempre, jogou tudo fora.
“É uma história estranha, ainda que verdadeira”, disse Con. “Agora
vou jantar.”
“Tome um drinque”, ofereceu Riley. “Temos aqui todos os tipos,
exceto a receita perdida.”
“Nunca bebo”, respondeu Con, “nada mais forte que água. Acabo
de encontrar a srta. Katherine na escada e ela me disse algo muito
verdadeiro, ‘não se perde nada com um pouco de água’”.
Quando Con saiu, Riley quase derrubou McQuirk com um tapa nas
costas.
“Ouviu aquilo?”, gritou. “Dois tolos é o que somos. As seis dúzias
de Apollinaris que carregávamos no navio – você mesmo abriu as
garrafas – em que barril despejou aquela água, em que barril, idiota?”
“Acho”, respondeu McQuirk lentamente, “que foi no segundo
barril que abrimos, lembro do pedaço de papel azul colado na lateral”.
“Descobrimos”, anunciou Riley. “Era isso que faltava. A água é que
faz a diferença. Estávamos certos com relação ao resto. Corre, rapaz, vá
pegar duas garrafas de Apollinaris no bar enquanto calculo as
proporções aqui.”
Uma hora depois, Con caminhava pela calçada na direção do café
do sr. Kenealy. Assim fazem os funcionários fiéis em suas horas de
descanso: ficam circulando perto do local de trabalho, movidos por
alguma misteriosa atração.

Um carro de polícia estava parado na entrada lateral. Três ágeis


Um carro de polícia estava parado na entrada lateral. Três ágeis
policiais meio que carregavam, meio que empurravam Riley e
McQuirk pelos degraus da escada de trás do prédio. Os olhos e o rosto
dos dois estampavam os ferimentos e cortes de um conflito sangrento e
intenso. Mesmo assim, ambos demonstravam uma estranha alegria e
lançavam contra os policiais os restos débeis de sua loucura belicosa.
“Começaram a se pegar no quarto dos fundos”, explicou Kenealy.
“E a cantar! Isso foi o pior. Quebraram tudo. Mas são bons homens,
pagarão por tudo. Estavam tentando inventar um novo coquetel. Vou
cuidar para que sejam soltos de manhã.”
Con foi em direção do quarto dos fundos para ver o campo de
batalha. Enquanto ele atravessava o saguão, Katherine estava descendo
pela escada de trás.
“Boa noite mais uma vez, sr. Lantry”. “Mais novidades sobre o
tempo?”
“Continua ame-meaçando chu-chuva”, respondeu Con, passando
por ela com a face enrubescida.
Riley e McQuirk tinham de fato travado uma batalha entre amigos.
Havia garrafas e copos quebrados por toda parte. O quarto exalava
álcool e o chão estava coberto por pequenas poças de bebida.
Sobre a mesa, ainda em pé, restava um copo medidor de 32 onças.
No fundo do recipiente, duas colheres de sopa do líquido – um líquido
dourado brilhante, que parecia aprisionar os raios do sol em suas
áureas profundezas.
Con cheirou. Provou. Bebeu.
Quando retornava pelo saguão, Katherine começava a subir as
escadas.
“Nenhuma novidade ainda, sr. Lantry?”, perguntou, com sorriso
provocante.
Con a levantou do chão e a segurou no ar.
“A novidade”, disse, “é que vamos nos casar”.
“Coloque-me no chão, senhor!”, gritou, indignada, “ou eu vou…
Ah, Con, de onde tirou coragem para me dizer isso?”.
Existe um hotel na Broadway que escapou da mira dos promotores de
viagens de verão. É longo, amplo e arejado. Os quartos têm
acabamento em carvalho escuro, de baixa temperatura. A brisa local e
os arbustos verde-escuros proporcionam as delícias, sem incorrer nas
inconveniências, das montanhas Adirondack. Pode-se subir por suas
largas escadarias ou ascender como em sonho por seus elevadores com
botões de cobre, acionados por funcionários com uma alegria serena
jamais alcançada por alpinistas. O chef de cozinha sabe preparar uma
truta melhor que a servida nas White Mountains, frutos do mar de
fazer inveja a Old Point Comfort, e uma carne de antílope capaz de
derreter o coração burocrático do guarda florestal.
Alguns poucos descobriram esse oásis no deserto em que
Manhattan se transforma em julho. Nesse mês, é possível observar o
reduzido grupo de hóspedes espalhados preguiçosamente no ventilado
escurinho do grandioso salão de jantar, olhando-se uns aos outros em
meio ao deserto gelado de mesas desocupadas e felicitando-se em
silêncio.
Garçons supérfluos, atenciosos, pneumáticos pairam por ali,
atendendo a todas as vontades antes mesmo de serem verbalizadas. O
termômetro indica sempre abril. O teto exibe aquarelas que imitam
um céu estival, com delicadas nuvens que vão e vêm sem desaparecer,
ao contrário do que fazem as verdadeiras, para nosso pesar.
O ruído agradável e distante da Broadway se transforma, na
imaginação de hóspedes afortunados, em uma cascata que inunda a
floresta com seu reconfortante rumor. Cada passo desconhecido
desperta os ouvidos ansiosos dos hóspedes, que temem pela invasão de
seu refúgio por incansáveis caçadores de prazeres, que estão sempre
em busca dos mais recônditos esconderijos da Natureza.

Assim, na despovoada estalagem, uma pequena comunidade de


Assim, na despovoada estalagem, uma pequena comunidade de
connaisseurs se esconde durante a estação quente, desfrutando ao
máximo os prazeres da montanha e do mar, que arte e habilidade
reuniram e agora lhes servem.
Naquele mês de julho chegou ao hotel uma pessoa cujo cartão de
visitas, enviado ao gerente para registro, dizia: “Madame Héloise
D’Arcy Beaumont”.
Madame Beaumont era o tipo de hóspede que o hotel Lotus amava.
Tinha o fino ar da aristocracia, temperado e suavizado por um tom
afável, cordial, que fazia dos funcionários do hotel seus escravos. Os
mensageiros brigavam pela honra de atender seus chamados; o pessoal
da administração, fossem donos da propriedade, transfeririam o hotel
e tudo que lá havia para madame; os outros hóspedes viam nela o
toque supremo de exclusividade e beleza feminina que completava o
ambiente.
Essa visitante mais que especial raramente saía do hotel. Seus
hábitos afinavam-se com os da seleta clientela do hotel Lotus. Para
aproveitar aquela deliciosa hospedaria, é preciso renunciar à cidade
como se estivesse a léguas de distância. À noite, uma breve excursão
pelos terraços vizinhos é até desejável. Durante os tórridos dias,
porém, deve-se buscar o reduto umbroso do Lotus como a truta que se
limita aos límpidos santuários de sua lagoa preferida.
Embora hospedada sozinha no hotel Lotus, madame Beaumont
portava-se como uma rainha cujo isolamento se deve apenas à sua
posição. Tomava café da manhã às 10, um ser meigo, sereno, delicado,
que brilhava suavemente na penumbra feito um jasmim ao cair da
tarde.
Mas era no jantar que a glória de madame atingia o ápice. Trajava
um vestido tão lindo e diáfano quanto a bruma que emana de uma
cascata invisível em meio a um desfiladeiro. A nomenclatura que
descreveria o vestido está além das capacidades deste escriba. Rosas de
um vermelho pálido repousavam sobre o colo adornado por rendas.
Era um traje que o maître avistava com admiração e recebia à entrada
do restaurante. Pensava-se em Paris ao admirá-lo, e também em
condessas misteriosas, em Versalhes, em floretes, na sra. Fiske e no
vermelho-e-negro. Circulava no hotel Lotus um boato de origem
obscura dizendo que madame era uma cidadã do mundo e que usava
suas delicadas mãos para manipular acordos internacionais em favor
da Rússia. Tendo viajado pelas estradas mais suaves do mundo, não
surpreende que ela tenha logo identificado nas refinadas cercanias do
hotel Lotus o local mais desejado da América para se refugiar no auge
do verão.
No terceiro dia da estada de madame Beaumont no hotel, um
jovem chegou ao Lotus para se hospedar. Sua vestimenta – para falar
de suas características de modo apropriado – estava na moda, mas sem
exageros; seus traços eram interessantes e uniformes; e sua fisionomia
era a de um homem sofisticado, viajado. Ele informou ao recepcionista
que ficaria por três ou quatro dias, perguntou sobre os vapores que
partiriam para a Europa e mergulhou no vazio abençoado daquele
hotel único com o ar satisfeito do viajante que chega à sua pousada
favorita.
O jovem – sem querer duvidar da veracidade dos registros – era
Harold Farrington. Ele se imiscuiu na exclusiva e mansa corrente vital
do Lotus com tamanho tato e serenidade que não chegou a causar
sequer uma ondulação mínima que chamasse atenção de seus
companheiros de jornada sequiosos de descanso. Harold jantou no
Lotus uma iguaria epônima e se deixou embalar pela mesma
tranquilidade etérea dos outros venturosos navegantes. Em apenas um
dia, o jovem garantiu um lugar à mesa, conquistou a atenção do
garçom e dividiu o temor de que afobados perseguidores da mansidão,
gente que mantinha em alta a temperatura na Broadway, aparecessem
de súbito e destruíssem esse retiro tão próximo e tão secreto.
No dia seguinte à chegada de Harold Farrington, depois do jantar,
madame Beaumont deixou cair o lenço ao sair do restaurante. O sr.
Farrington o recolheu e o devolveu, sem a efusividade de quem busca
estabelecer relacionamento.
Talvez houvesse algo de maçônico entre os distintos hóspedes do
Lotus. Talvez se atraíssem porque compartilhavam a sorte de ter
descoberto o melhor do verão em um hotel da Broadway. Ambos
trocaram palavras delicadas, por cortesia, e tentaram deixar a
formalidade de lado. E então o ambiente favorável de um verdadeiro
hotel de verão fez nascer entre os dois uma amizade que cresceu,
floresceu e frutificou imediatamente, como a mística planta do
feiticeiro. Por alguns instantes ficaram no terraço ao final do corredor
jogando conversa ao vento.
“Os velhos hotéis de verão já não me interessam”, disse madame
Beaumont, com um sorriso discreto, mas doce. “De que adianta voar
para as montanhas ou para as praias tentando escapar do barulho e da
sujeira se as pessoas que causam tudo isso nos perseguem até lá?”
“Mesmo no oceano”, completou Farrington, “os filisteus marcam
presença. Os mais exclusivos vapores estão se transformando em meras
balsas. Que o céu nos ajude quando os veranistas descobrirem que o
Lotus está mais longe da Broadway que o arquipélago de Thousand
Islands e a Ilha Mackinac”.
“Espero que nosso segredo dure ainda uma semana”, disse
madame, com um suspiro e um sorriso. “Não sei para onde eu iria se
decidissem todos vir para o Lotus. Só conheço um outro lugar tão
agradável no verão, o castelo do conde Polinski nos Montes Urais.”
“Ouvi dizer que Baden-Baden e Cannes estão quase desertas nesta
temporada”, emendou Farrington. “Ano após ano, os velhos hotéis
vão perdendo prestígio. Muita gente, como nós, talvez esteja
procurando locais mais reservados, que escapam à maioria.”
“Prometi a mim mesma mais três dias deste maravilhoso descanso”,
disse madame Beaumont. “Na segunda-feira, o Cedric zarpará.”
Os olhos de Harold Farrington traíram sua decepção. “Também
partirei na segunda-feira”, disse, “mas não para o estrangeiro”.
Madame Beaumont encolheu um dos ombros, num gesto europeu.
“Não posso me esconder aqui para sempre, por mais encantadora
que seja a estada. O château está preparado para me receber há mais de
um mês. As festas que sou obrigada a organizar… quanta amolação!
Mas jamais esquecerei desta semana no hotel Lotus.”
“Nem eu”, disse Farrington com voz baixa. “E jamais escusarei o
Cedric.”
No domingo à noite, três dias depois, os dois ocuparam uma
pequena mesa no mesmo terraço. Um garçom trouxe gelo e pequenas
taças com clarete.
Madame Beaumont trajava o mesmo lindo vestido que usara em
todos os dias no jantar. Parecia pensativa. Perto de sua mão, sobre a
mesa, repousava uma pequena bolsa bordada. Depois de levar um
cubo de gelo à boca, ela abriu a bolsinha e de lá tirou uma nota de 1
dólar.
“Sr. Farrington”, disse, com o sorriso que havia arrebatado o Lotus,
“quero contar uma coisa. Vou partir amanhã antes do café porque
preciso voltar ao trabalho. Sou vendedora da seção de meias da Casey’s
Mammoth Store, e minhas férias acabam amanhã às 8 horas. Essa nota
de 1 dólar é o último dinheiro que verei até receber meu salário
semanal de 8 dólares no sábado que vem. O senhor é um cavalheiro e
foi muito gentil comigo, por isso quis contar-lhe a verdade antes de ir
embora.
“Estou economizando o salário faz um ano só para estas férias. Eu
queria passar a semana como uma dama, mesmo que seja a última vez
na vida que faço isso. Queria acordar quando bem entendesse, sem
precisar rastejar da cama às 7 da manhã; e queria passar bem, e ser
servida, e tocar uma sineta sempre que precisasse de alguma coisa,
igual gente rica. E consegui. E foram os melhores momentos que
espero ter na vida. Volto para o trabalho e para meu quarto alugado
feliz por mais um ano. Quis contar tudo, sr. Farrington, porque fiquei
com a impressão de que o senhor gostou de mim, e gostei do senhor
também. Não consegui evitar enganá-lo até agora, era tudo um grande
conto de fadas. Por isso falei da Europa e de coisas que leio sobre
outros países, e o fiz acreditar que era uma grande dama.

“Este vestido aqui – é o único que tenho e que é adequado para este
“Este vestido aqui – é o único que tenho e que é adequado para este
lugar – comprei na O’Dowd & Levinsky, à prestação.
“Custou 75 dólares e foi feito sob medida. Paguei 10 dólares de
entrada e a loja vai me cobrar 1 dólar por semana até quitar tudo. Era
isso que eu tinha a dizer, sr. Farrington, exceto que meu nome é
Mamie Siviter, e não madame Beaumont, e agradeço pela sua atenção
comigo. Este dólar é para pagar a prestação do vestido que vence
amanhã. Agora acho que vou para o meu quarto.”
Harold Farrington escutou impassível a declaração da mais
adorável das hóspedes do Lotus. Quando ela terminou, Farrington
tirou um bloquinho do bolso do casaco e, com um pequeno lápis,
preencheu uma folha que estava em branco. Depois, arrancou a
página do bloquinho, jogou-a em direção da moça e pegou a nota de 1
dólar.
“Também preciso voltar ao trabalho amanhã”, disse, “mas posso
recomeçar já. Esse papel é um recibo no valor de 1 dólar. Sou cobrador
da O’Dowd & Levinsky há três anos. Não é engraçado como nós dois
tivemos a mesma ideia para as férias? Eu sempre quis ficar num hotel
de primeira. Economizei meu salário de 20 dólares por semana e
consegui. Escute, Mame, que tal irmos de barco até Coney no sábado à
noite?”.
O rosto da suposta madame Héloise D’Arcy Beaumont brilhou.
“Pode apostar que vou, sr. Farrington. A loja fecha ao meio-dia no
sábado. Acho que Coney vai ser muito bom, mesmo depois de
passarmos uma semana como ricos.”
Abaixo do terraço, a cidade abafada rosnava e zumbia na noite de
julho. Dentro do hotel Lotus, reinavam sombras suaves e refrescantes,
e o solícito garçom permanecia a postos junto às janelas baixas, pronto
para servir madame e seu acompanhante ao menor gesto.
Na porta do elevador, Farrington se despediu e madame se
preparou para a última subida. Mas, antes que a jaula silenciosa
chegasse, ele disse: “Pode esquecer de Harold Farrington, por favor.
McManus é meu nome, James McManus. Alguns amigos me chamam
de Jimmy”.
“Boa noite, Jimmy”, despediu-se madame.
Faça-me um favor, esmurre com força o olho do poeta quando ele
cantar louvores ao mês de maio. É um mês governado por
traquinagens e desvarios. Duendes e diabretes rondam os bosques em
flor; Puck e seu séquito de gnomos tomam conta da cidade e do
campo.
Em maio a natureza nos aponta o dedo, crítica, a nos lembrar que
não somos deuses, mas membros excessivamente vaidosos de sua
grande família. Ela nos recorda que somos irmãos do molusco que vai
virar sopa e também do burro; que somos rebentos diretos do amor-
perfeito e do chimpanzé, e não passamos de primos-irmãos das
pombas que arrulham, dos patos que grasnam, das criadas domésticas
e dos policiais que vemos nos parques.
Em maio, Cupido flecha às cegas – milionários se casam com
estenógrafas; sábios professores cortejam jovens que mascam chiclete,
usam avental branco e trabalham no balcão de restaurantes de comida
rápida; professoras severas obrigam rapagões malcomportados a ficar
na escola depois das aulas; moços carregando escadas adentram
sorrateiros os jardins onde Julietas esperam na janela, protegida por
treliças, já de malas prontas; namorados saem para dar um passeio e
voltam casados; senhores vestem polainas e borboleteiam perto da
Escola Normal; e até homens casados, desacostumados a sentimentos
de ternura e carinho, dão um tapinha nas costas da esposa e
resmungam: “Tudo bem, minha velha?”.
No mês de maio, que não encarna outra deusa salvo Circe, ao se
mascarar para o baile em homenagem à linda estação debutante, o
verão paralisa-nos a todos.
O velho sr. Coulson gemeu um pouco e se ajeitou em sua cadeira
para inválidos. Tinha um problema sério de gota em um dos pés, uma
casa perto do Parque Gramercy, meio milhão de dólares e uma filha. E
tinha também uma governanta, a sra. Widdup. O fato em si e o nome
merecem uma frase cada um. Pronto.
Quando maio cutucou o sr. Coulson, ele se tornou o irmão mais
velho da rolinha. Na janela, perto de onde se sentava, havia caixas com
narcisos, jacintos, gerânios e amores-perfeitos, cujos aromas a brisa
carregava para dentro do quarto. Logo irrompeu uma disputa renhida
entre o perfume floral e os vigorosos eflúvios do linimento usado
contra a gota. O linimento ganhou com folga, mas não a tempo de
evitar que as flores acertassem um direto no nariz do velho sr.
Coulson. Esse feiticeiro implacável e dissimulado, o mês de maio,
terminara seu trabalho.
Do outro lado do parque, distante das fossas olfatórias do sr.
Coulson, vinham outros odores – inconfundíveis, característicos,
marcas registradas da primavera e que emanam da parte da cidade que
fica acima do metrô, e só de lá. São os cheiros de asfalto quente,
cavernas subterrâneas, gasolina, patchuli, cascas de laranja, gases que
sobem pelo bueiro, frutas podres vindas de Albany, cigarros árabes,
argamassa e a tinta fresca dos jornais. Mas o ar que soprava para
dentro do quarto era doce e suave. Pardais ruidosos brincavam por
toda parte. Jamais confie em maio.
O sr. Coulson torceu as pontas de seus bigodes brancos, amaldiçoou
o próprio pé e sacudiu com força a sineta que ficava ao seu lado, em
cima da mesa.
Logo chegou a sra. Widdup. De aparência graciosa, encorpada,
tinha pele clara, 40 e poucos anos e parecia perspicaz.
“O Higgins saiu, senhor”, disse, com um sorriso sugestivo de
massagem vibratória. “Foi ao correio postar uma carta. Posso fazer
algo pelo senhor?”
“É hora da minha aconitina”, respondeu o sr. Coulson. “Prepare
para mim, o frasco está ali. Três gotas com água. Maldito Higgins!
Ninguém nesta casa se importa se eu morrer aqui nesta cadeira por
falta de atenção.”
A sra. Widdup suspirou alto.
“Não diga isso, sr. Coulson. Tem gente aqui que se preocupa mais
do que o senhor imagina. Disse treze gotas?”, perguntou.
“Três”, respondeu o velho Coulson. E então pegou o remédio e a
mão da sra. Widdup. Ela enrubesceu. Ah, sim, isso pode ser feito. Basta
prender a respiração e comprimir o diafragma.
“Sra. Widdup”, disse o sr. Coulson, “a primavera chegou entre nós”.
“E não é que chegou mesmo?”, rebateu a sra. Widdup. “O ar está
mais quente e tem anúncio de cerveja em cada esquina. E o parque
está todo florido de amarelo, rosa, azul. E sinto muitas dores nas
pernas e no corpo.”
“Na primavera”, citou o sr. Coulson, mexendo nos bigodes, “a
imaginação de um jovem… digo, a imaginação de um homem volta-se,
ligeira, para pensamentos de amor”.
“Minha nossa!”, exclamou a sra. Widdup, “é verdade, parece que
está no ar”.
“Na primavera”, continuou o velho Coulson, “a íris ganha mais
brilho; e a pomba, fulgor”.
“Conheço a Íris, ela é animada mesmo”, suspirou a sra. Widdup,
pensativa.
“Sra. Widdup”, disse o sr. Coulson com feição de dor, acusando
uma pontada no pé, “esta casa seria muito solitária sem a senhora. Já
sou um homem idoso, mas tenho uma soma confortável de dinheiro.
Se meio milhão de dólares em títulos do governo, mais a afeição
genuína de um coração que, se já não bate com o entusiasmo juvenil,
ainda é capaz de palpitar com verdadeira…”
O ruído alto de uma cadeira derrubada no cômodo ao lado
interrompeu a respeitável e inocente vítima do mês de maio.
Em seguida adentrou o recinto a srta. Van Meeker Constantia
Coulson, ossuda, confiante, alta, nariz empinado, frígida, bem-criada,
35 anos, a cara do Parque Gramercy. E colocou o binóculo de teatro. A
sra. Widdup rapidamente abaixou e arrumou a bandagem no pé do sr.
Coulson.

“Achei que o Higgins estivesse com você”, disse a srta. Van Meeker
“Achei que o Higgins estivesse com você”, disse a srta. Van Meeker
Constantia.
“O Higgins saiu”, explicou-lhe o pai, “e a sra. Widdup atendeu
minha chamada. Agora estou melhor, sra. Widdup, obrigado. Não,
não preciso de mais nada”.
A governanta se retirou, pálida, ante o olhar frio e inquisitivo da
srta. Coulson.
“O clima primaveril é excelente, não acha, filha?”, perguntou o
velho, ciente da culpa no cartório.
“Exatamente”, respondeu a srta. Van Meeker Constantia Coulson,
algo enigmática. “Quando a sra. Widdup sai de férias, papai?”
“Se não me engano, daqui a uma semana”, respondeu o sr.
Coulson.
A srta. Van Meeker Constantia ficou parada por um instante
defronte da janela que dava para uma pequena praça, iluminada pelo
suave sol da tarde. E, com os olhos de um botânico, mirou as flores –
as armas mais poderosas do insidioso mês de maio. Com a fria emoção
de uma Virgem de Colônia, suportou o ataque de serenidade etérea.
Os brandos raios de sol como que ricocheteavam, congelados, na
armadura fria de seu peito inabalável. O aroma das flores não
despertava sentimentos minimamente ternos nos rincões inexplorados
de seu anestesiado coração.
O gorjeio dos pardais impingia-lhe dor. Ela desdenhava do mês de
maio.
Mas, ainda que fosse impune aos ataques da estação, a srta. Coulson
era sagaz o bastante para reconhecer-lhe a força. Ela sabia que
senhores de idade e mulheres de quadril largo pulavam feito pulgas
amestradas naquele ridículo bonde chamado maio, o mais zombeteiro
de todos os meses. Já tinha ouvido histórias de cavalheiros idosos que
se casaram com governantas. Que coisa mais humilhante era esse
sentimento chamado amor!
No dia seguinte às 8 da manhã, quando o entregador de gelo tocou,
a cozinheira lhe disse que a srta. Coulson queria vê-lo no porão.
“Ora, ora, justo eu, o ‘Esquina da Olcott com Depew’, que nem
sequer tem nome?”, respondeu o entregador de gelo, admirado.
Como concessão, o rapaz abaixou as mangas da camisa, largou os
ganchos de gelo ao lado das plantas e entrou na casa. Quando a srta.
Van Meeker Constantia Coulson lhe dirigiu a palavra, ele tirou o
boné.
“Existe uma entrada nos fundos deste porão”, disse a srta. Coulson,
“que pode ser acessada pelo terreno vizinho, onde estão fazendo
escavações para construir um prédio. Quero que me traga, por essa
entrada e em duas horas, 500 quilos de gelo. Talvez precise de um ou
dois ajudantes. Vou mostrar onde quero que coloquem o gelo. E
também quero que entregue 500 quilos por dia, nos próximos quatro
dias, da mesma forma. A empresa pode colocar a encomenda na nossa
conta regular. E isto aqui é pelo trabalho extra.”
A srta. Coulson estendeu-lhe uma nota de 10 dólares. O entregador
de gelo se curvou, segurando o boné com as duas mãos para trás.
“Não se preocupe com isso, senhorita. Será um prazer ajudá-la no
que precisar.”
Viva o mês de maio!
Ao meio-dia, o sr. Coulson derrubou dois copos da mesa, quebrou a
sineta e gritou por Higgins, tudo ao mesmo tempo.
“Traga um machado”, ordenou o sr. Coulson, sardônico, “ou um
litro de ácido prússico, ou chame a polícia para me dar um tiro.
Qualquer coisa a morrer de frio!”.
“Parece que está esfriando mesmo, senhor”, disse Higgins. “Eu não
tinha reparado, vou fechar a janela.”
“Feche logo. E chamam a isso de primavera? Se continuar assim,
volto para Palm Beach. Esta casa parece um necrotério.”
Mais tarde, chegou a srta. Coulson, zelosa, querendo saber se o pai
melhorara da gota.
“Constantia”, disse o velho, “como está o tempo lá fora?”
“Ensolarado”, respondeu a srta. Coulson, “mas frio”.
“Parece que estamos no meio do inverno”, comentou o sr. Coulson.
“É um caso”, continuou Constantia, olhando distraída pela janela,
“de inverno que se deixa estender no colo da primavera, embora a
metáfora não seja das mais refinadas”.
Em seguida, ela saiu e caminhou pela lateral do parque em direção
à Broadway para fazer compras. E um pouco depois disso a sra.
Widdup entrou no quarto do inválido.
“O senhor me chamou?”, perguntou, cheia de covinhas. “Pedi que
o Higgins fosse à farmácia e acho que ouvi a sineta.”
“Não chamei, não”, respondeu o sr. Coulson.
“Receio ter interrompido o senhor ontem”, disse a sra. Widdup. “O
senhor estava prestes a dizer alguma coisa.”
“Como é possível”, perguntou o velho Coulson, sério, “que eu
esteja passando tanto frio nesta casa?”.
“Frio?”, disse a governanta. “Bem, agora que o senhor falou, está
frio mesmo aqui no quarto. Mas lá fora está quente, parece até junho.
E esse tempo faz o coração da gente pular fora do peito! A hera deitou
folhas no muro lateral da casa, a gente ouve os realejos tocando, vê as
crianças dançando nas calçadas… é a hora certa de dizer o que vai em
nosso coração. O senhor mesmo, ontem…”
“Mulher!”, rugiu o sr. Coulson, “é uma tola! Pago para que cuide
desta casa. Estou congelando em meu próprio quarto e a senhora me
entra aqui para falar de heras e realejos! Me arranje um casaco, já.
Feche todas as portas e janelas. Uma criatura velha, gorda,
irresponsável e burra como a senhora tagarelando sobre primavera e
flores no meio do inverno! Quando o Higgins voltar, diga-lhe que me
traga ponche de rum quente. E agora saia!”.
Mas quem pode empanar o brilho do mês de maio? Ela pode até ser
malandra e capaz de perturbar a mente de um homem são; mas nem
toda a astúcia de uma virgem nem uma montanha de gelo
armazenado serão suficientes para que maio abaixe a cabeça perante a
cintilante galáxia dos meses.
Ah, sim, a história não acabou.

Uma noite se passou e Higgins ajudou o velho Coulson logo cedo a


Uma noite se passou e Higgins ajudou o velho Coulson logo cedo a
se sentar perto da janela. Já não fazia frio no quarto. Aromas celestiais
e suaves fragrâncias ocupavam o ambiente.
A sra. Widdup entrou apressada e se postou perto da cadeira dele. O
sr. Coulson estendeu sua mão magra e segurou a da governanta, roliça.
“Sra. Widdup”, disse ele, “esta casa não seria um lar sem a senhora.
Tenho meio milhão de dólares. Se isso, e mais a afeição genuína de um
coração que já não é tão jovem, mas que não é frio…”
“Descobri o que estava esfriando seu coração”, interrompeu a sra.
Widdup, curvando-se sobre a cadeira. “Era gelo – toneladas de gelo –
no porão, na sala da caldeira, em toda parte. Fechei os registros por
onde o ar frio entrava no seu quarto, sr. Coulson. Coitadinho. E agora
estamos em maio de novo.”
“Um coração sincero”, continuou o sr. Coulson, divagando, “que a
primavera trouxe de volta à vida… Mas o que minha filha vai dizer,
sra. Widdup?”.
“Não se preocupe, senhor”, respondeu a sra. Widdup, feliz da vida.
“A srta. Coulson fugiu com o entregador de gelo ontem à noite.”
Certa noite, quando Andy Donovan foi jantar na pensão em que se
hospedava na 2ª Avenida, a sra. Scott o apresentou a uma nova
pensionista, uma jovem, srta. Conway. A srta. Conway era miúda e
discreta. Trajava um vestido marrom-escuro simples e dirigia sua
atenção, algo desinteressada, para o prato de comida. Ergueu as
pálpebras acanhadas e lançou um olhar direto, sentencioso, ao sr.
Donovan, murmurou educadamente o nome do rapaz e voltou a
atacar o carneiro. O sr. Donovan curvou a cabeça com a graça e o
sorriso radiante com que vinha rapidamente amealhando progresso
social, comercial e político, e apagou de seu caderninho aquela do
vestido marrom-escuro.
Duas semanas depois, Andy estava sentado nos degraus da entrada
da pensão, apreciando um charuto, quando ouviu um sussurro atrás
de si e virou a cabeça para olhar – e assim ficou.
Saía pela porta a srta. Conway. Usava um vestido negro de crêpe
de… crêpe de… bom, aquele tecido fininho. O chapéu era preto, e dele
pendia um tremulante véu também da cor do ébano, delicado como
uma teia de aranha. Ela se deteve no degrau mais alto e calçou as luvas
negras. Não havia no traje todo sequer um pontinho branco ou
colorido. O cabelo loiro, cheio, estava amarrado para trás, formando
um nó sedoso e brilhante sobre a nuca. O rosto era mais comum do
que bonito, mas agora estava iluminado, quase belo, pelos grandes
olhos acinzentados que miravam por sobre as casas do outro lado da
rua, em direção ao céu, com sedutora expressão de tristeza e
melancolia.
Vejam bem, garotas: toda de negro, entenderam?, e escolheu crêpe
de… crêpe de Chine, lembrei! Toda de negro e com aquele olhar triste,
distante, o cabelo brilhando sob o véu escuro (tem de ser uma loira,
claro), e tenta dar a impressão de que, mesmo que sua jovem
existência tenha sofrido um revés justo no momento em que se
preparava para um salto adiante, um passeio pelo parque pode-lhe
fazer bem. Mas tem de sair pela porta, casualmente, na hora certa – e
pronto, os homens cairão feito patos. Mas meu ceticismo é brutal, não
acham? Não devo descrever trajes de luto dessa forma.
O sr. Donovan rapidamente reinscreveu a srta. Conway em seu
caderninho. Jogou fora o que sobrava do charuto – cerca de 3
centímetros, que ainda queimariam por uns oito minutos – e mudou o
próprio centro de gravidade para seus sapatos de couro envernizado.
“A noite está linda, srta. Conway”, disse; e se o departamento de
meteorologia ouvisse a ênfase confiante daquelas palavras, hastearia
imediatamente a bandeirola branca.
“Para quem tem coração para desfrutá-la, está mesmo, sr.
Donovan”, respondeu a srta. Conway, suspirando.
O sr. Donovan, no seu íntimo, amaldiçoou o tempo bom. Clima
sem coração! Deveria chover granizo, ventar forte e nevar para
combinar com o estado de espírito da srta. Conway.
“Espero que nenhum parente seu… que não tenha enfrentado
nenhuma perda”, assuntou o sr. Donovan.
“A morte me tirou”, disse a srta. Conway, hesitante, “não um
parente, mas alguém que… não vou importuná-lo com o meu pesar,
sr. Donovan”.
“Importunar?”, protestou o sr. Donovan. “De jeito nenhum, srta.
Conway, eu adoraria, digo, eu lamento muito, quer dizer, ninguém
está mais solidário à senhorita agora do que eu.”
A srta. Conway abriu um discreto sorriso. E era um sorriso mais
triste do que sua expressão quando séria.
“’Ria, e o mundo rirá com você. Chore, e rirão de você’”, citou a
moça. “Isso eu aprendi, sr. Donovan. Não tenho amigos nem
conhecidos nesta cidade. Mas o senhor foi bom comigo. Muito
agradecida.”
Ele havia-lhe passado a pimenta na mesa em duas ocasiões.

“É difícil viver sozinho em Nova York, sem dúvida”, continuou o


“É difícil viver sozinho em Nova York, sem dúvida”, continuou o
sr. Donovan. “Mas uma coisa eu digo: quando esta velha cidadezinha
afrouxa o nó e se revela mais acolhedora, não há limites. E se a
senhorita desse uma volta no parque, será que não ajudaria a afastar
essa tristeza? Se me permitir…”
“Obrigada, sr. Donovan. Aceito de bom grado se o senhor achar
que a companhia de um coração tão deprimido pode ser amena…”
E pelos portões do velho parque cercado por grades de ferro no
centro da cidade, onde antes os eleitos tomavam a fresca, os dois
adentraram e encontraram um banco mais reservado.
Existe uma diferença entre o pesar na juventude e na idade
madura. O fardo da juventude é aliviado quando compartilhado; na
maturidade, por mais que se compartilhe, a dor permanece inalterada.
“Ele era meu noivo”, confidenciou a srta. Conway, depois de uma
hora de conversa. “Iríamos nos casar na primavera. Não quero que
pense que invento histórias, sr. Donovan, mas ele era um conde
legítimo. Tinha terras e um castelo na Itália. Chamava-se conde
Fernando Mazzini. Nunca conheci ninguém tão elegante. Papai foi
contra, claro, e quando fugimos para nos casar, papai foi atrás de nós e
me trouxe de volta. Tive certeza que papai e Fernando duelariam.
Papai tem uma cocheira de aluguel em P’kipsee.
“Mas por fim papai mudou de ideia e disse que podíamos nos casar
na primavera. Fernando mostrou-lhe provas de seus títulos e
propriedades, e depois voltou à Itália para arrumar o castelo onde
íamos morar. Papai é muito orgulhoso, e, quando Fernando quis me
dar milhares de dólares para ajudar no enxoval, papai o repreendeu,
furioso. Não permitiu que eu ganhasse presentes e nem sequer uma
aliança. Quando Fernando embarcou, vim para a cidade e arrumei um
emprego de caixa numa loja de doces.
“Três dias atrás, recebi uma carta da Itália dizendo que Fernando
tinha morrido num acidente de gôndola.
“Por isso estou de luto. Meu coração, sr. Donovan, ficará para
sempre com ele, no túmulo. Estou sendo péssima companhia, mas não
posso me interessar por outra pessoa agora. Não quero segurá-lo aqui,
sr. Donovan, e privá-lo da companhia alegre de amigos que estão em
condições de sorrir e entretê-lo. Talvez o senhor prefira voltar para
casa.”
Garotas, ouçam com atenção, se querem ver um jovem sair
correndo atrás de pá e enxada, basta dizer a ele que seu coração está no
túmulo de outro sujeito. Rapazes são ladrões de túmulo por natureza.
Perguntem a qualquer viúva. Algo precisa ser feito para restituir o
órgão faltante àqueles anjos chorosos que se vestem em crêpe de Chine.
O morto leva a pior em todos os sentidos.
“Lamento muito”, disse o sr. Donovan, com ternura. “Não iremos
voltar para casa ainda. E não diga que não tem amigos nesta cidade,
srta. Conway. Sinto pela sua perda e quero que acredite que sou seu
amigo.”
“Tenho uma foto dele aqui no meu medalhão”, disse a srta.
Conway depois de secar os olhos com um lenço. “Nunca mostrei a
ninguém, mas mostrarei para o senhor porque acredito que seja um
amigo sincero.”
O sr. Donovan olhou fixamente e com muita curiosidade a foto que
estava dentro do medalhão da srta. Conway. O rosto do conde Mazzini
incitava interesse. Tinha traços suaves, inteligentes, vivos, quase
atraentes. Era o rosto de um homem forte e alegre, que poderia ser um
líder entre seus pares.
“Tenho outra foto, maior, emoldurada no meu quarto”, disse a
srta. Conway. “Quando voltarmos, mostrarei ao senhor. É tudo que
sobrou para me lembrar do Fernando, mas ele estará sempre presente
no meu coração, disso tenho certeza.”
Uma tarefa delicada se apresentava ao sr. Donovan: substituir o
desafortunado conde Mazzini no coração da srta. Conway. Sua
admiração por ela o obrigava a fazê-lo. Mas a magnitude da
empreitada não parecia pesar sobre seus ânimos. Ele havia ensaiado o
papel do amigo solidário e animado; e o desempenhara tão bem que a
meia hora seguinte foi dedicada a uma conversa em torno de duas
taças de sorvete, ainda que o tom seguisse sério e a tristeza não tivesse
deixado os grandes olhos acinzentados da srta. Conway.
Antes de se despedirem no corredor, à noite, a moça correu até o
quarto e trouxe a foto maior, carinhosamente embrulhada num
cachecol de seda branca. O sr. Donovan a estudou com olhos
inescrutáveis.
“Ele me deu essa foto na noite em que viajou para a Itália”, disse a
srta. Conway. “A que uso no medalhão foi feita a partir dessa.”
“Homem bem-apessoado”, disse o sr. Donovan, cortês. “O que acha,
srta. Conway, de me conceder o prazer de sua companhia em Coney
no domingo que vem?”
Um mês depois, anunciaram o noivado para a srta. Scott e os outros
pensionistas. A srta. Conway seguiu vestindo roupas pretas.
Passada uma semana do anúncio, os dois sentaram-se no mesmo
banco do parque no centro da cidade. As folhas balançando nas
árvores transformavam a cena numa sequência cinetoscópica do casal
sob o luar. Mas Donovan se mostrara ausente e abatido o dia todo.
Estava tão calado que os lábios enamorados não mais conseguiram
segurar a pergunta que o coração enamorado queria fazer.
“Qual é o problema, Andy, por que está tão quieto e impaciente?”
“Não é nada, Maggie.”
“Conheço você. Acha que não percebo? Nunca agiu assim antes. O
que foi?”
“Nada de mais, Maggie.”
“Tem coisa aí, e quero saber o que é. Aposto que está pensando em
outra. Está bem. Por que não vai atrás dela, se é isso que você quer? E
tire as mãos de mim, por favor.”
“Vou dizer o que é, então”, disse Andy, sabiamente. “Mas acho que
você não vai entender direito. Ouviu falar de Mike Sullivan, não
ouviu? O pessoal o chama de ‘Big Mike’ Sullivan.”
“Nunca ouvi falar”, respondeu Maggie. “E nem quero, se ele faz
você agir desse modo. Quem é esse sujeito?”

“É o homem mais importante de Nova York”, disse Andy, quase


“É o homem mais importante de Nova York”, disse Andy, quase
reverente. “É capaz de fazer o que bem entender com o Tammany Hall
ou qualquer outro grupo político. É imenso, do tamanho da cidade.
Diga algo contra Big Mike e em dois segundos terá um milhão de
homens no seu encalço. Dizem que visitou a velha pátria há algum
tempo e os reis correram para o buraco feito coelhos.
“Pois bem, Big Mike é meu amigo. Eu não tenho tanta influência
no distrito, mas Mike é tão bom para a arraia-miúda quanto para os
grandes. Encontrei com ele hoje no Bowery, sabe o que ele fez? Veio
me cumprimentar. ‘Andy’, ele disse, ‘tenho acompanhado seu
trabalho, você está se saindo bem na sua parte da rua e estou
orgulhoso disso. O que quer beber?’ Ele acendeu um charuto e eu
peguei um drinque. Contei que ia me casar em duas semanas. ‘Andy’,
disse Mike, ‘mande um convite para me lembrar; quero ir ao
casamento.’ Foi isso que Big Mike me disse. E ele sempre cumpre o que
diz.
“Você não entende, Maggie, mas eu daria um braço para ter Big
Mike Sullivan na nossa cerimônia. Seria o maior orgulho da minha
vida. Quando ele prestigia um casamento, o noivo está bem-arranjado
para sempre. É por isso que estou preocupado hoje.”
“Por que não o convida, então, se é tão importante assim?”,
perguntou Maggie, mais calma.
“Não posso, e existe um motivo”, disse Andy, chateado. “Existe
uma razão por que ele não deve comparecer. Mas não me pergunte
qual é, não posso dizer.”
“Não me importo”, respondeu Maggie. “Deve ter algo a ver com
política, claro. Mas isso não é motivo para você não sorrir para mim.”
“Maggie”, interrompeu Andy, “você pensa tanto em mim quanto
pensava no seu… no conde Mazzini?”
Andy esperou um bom tempo, mas Maggie não respondeu. De
repente, ela recostou a cabeça no ombro dele e começou a chorar…
chorar de soluçar, molhando com lágrimas o crêpe de Chine.

“Pronto, pronto…”, disse Andy, tentando acalmá-la e deixando de


“Pronto, pronto…”, disse Andy, tentando acalmá-la e deixando de
lado os próprios problemas. “O que foi?”
“Andy”, soluçou Maggie, “menti para você, e você não casará
comigo nem me amará mais. Mas preciso contar a verdade. Andy,
nunca houve nem sombra do tal conde. Nunca tive um amor na vida.
Mas as outras moças tinham, e falavam deles, e com isso os rapazes
gostavam ainda mais delas. E, Andy, eu fico ótima de preto, você sabe
disso. Comprei aquela foto em uma loja. Depois mandei fazer aquela
foto menor, que está no medalhão, e inventei a história do conde e do
acidente para poder usar preto. Ninguém pode amar uma mentirosa.
Você vai me largar, Andy, e morrerei de vergonha. Nunca amei
ninguém além de você.”
Mas, em vez de ser rejeitada, ela sentiu o braço de Andy envolvê-la.
Virou-se para ele e viu que sorria.
“Você me perdoa, Andy?”
“Claro. Isso não é problema nenhum. Vamos mandar o conde para
a cova de vez. Você esclareceu tudo, Maggie. Eu esperava que fizesse
isso antes do casamento. Garota corajosa!”
“Mas, Andy”, disse Maggie com um sorriso tímido, depois de se
certificar de que estava mesmo perdoada, “você acreditou na história
do conde?”.
“Bem, não muito”, respondeu Andy, sacando um charuto, “porque
é a foto do Big Mike Sullivan que você carrega nesse seu medalhão”.
Existem poucas mulheres califas. Mulheres são Sherazades por
natureza, predileção, instinto e disposição das cordas vocais. Todos os
dias, mil e uma histórias são contadas por centenas de milhares de
filhas de vizires para seus sultões. Mas algumas acabarão flechadas se
não se cuidarem.
Conheço a história de uma mulher califa. Não é exatamente uma
história das Mil e uma noites porque esta fala de Cinderela, que trocou
o pano de chão pelos brilhos em outro tempo e lugar. Assim, se o
leitor não se importa com a confusão de datas (que, de resto, parecem
emprestar à história um tom oriental), sigamos adiante.
Em Nova York existe um hotel muito, muito antigo. O leitor terá
visto gravuras de sua fachada em revistas. Foi construído, vejamos…
na época em que nada havia acima da Rua 14 exceto a velha trilha
indígena para Boston e o escritório de Hammerstein. Logo a
desgastada hospedaria será demolida. E, quando as sólidas paredes
forem arrebentadas e os tijolos escorrerem pelas calhas da obra, grupos
de cidadãos irão se reunir nas esquinas próximas para chorar a
destruição do querido cartão-postal. O orgulho cívico é muito forte na
Nova Bagdá. Os soluços mais sentidos e os lamentos mais melosos pelo
ato iconoclasta virão do sujeito (natural de Terre Haute) cujas doces
lembranças do velho hotel se limitam a ter sido expulso a pontapés do
balcão de almoço gratuito, em 1873.
Nesse estabelecimento sempre se hospedava a sra. Maggie Brown. A
sra. Brown era uma mulher magra, de 60 e poucos anos, que usava
roupas pretas muito simples e carregava uma maleta feita
aparentemente com o couro do animal que Adão batizou de jacaré.
Ela costumava ocupar um quarto e sala no último andar do hotel, pelo
que pagava 2 dólares por dia. E sempre que ela estava lá, muitos
homens corriam para vê-la, indivíduos de rosto anguloso, ansiosos,
com apenas alguns segundos disponíveis. Maggie Brown era tida como
a terceira mulher mais rica do mundo, e aqueles solícitos cavalheiros
eram apenas os corretores e negociantes mais endinheirados da cidade,
que ali acudiam para pedir empréstimos insignificantes, de milhões de
dólares, à senhora de aparência encardida e com a maleta pré-
histórica.
A estenógrafa e datilógrafa do hotel Acrópole (pronto, deixei
escapar o nome!) era a srta. Ida Bates, uma remanescente dos clássicos
gregos. Não havia falhas em sua fisionomia. Um homem de outros
tempos, ao elogiar uma dama, diria: “Tê-la amado foi o equivalente a
receber uma educação liberal”. Pois bem, apenas ter admirado os
cabelos negros e a blusa branca, justa na cintura, da srta. Bates
equivalia a um curso por correspondência completo em qualquer
escola no país. Às vezes, ela datilografava umas coisas para mim, mas,
como se recusava a receber o pagamento adiantado, passou a me ver
como amigo e protegido. Era generosa e tinha boa índole; nunca,
jamais, um vendedor de lubrificantes ou um importador de peles
haviam cruzado a linha do bom comportamento na presença dela. O
exército inteiro do Acrópole, do proprietário que morava em Viena ao
chefe dos carregadores de mala que estava acamado havia dezesseis
anos, correria imediatamente em defesa da moça.
Certo dia, passei pelo santuário Remingtorium da srta. Bates e vi
em sua cadeira um ser de cabelos negros – tratava-se de uma pessoa,
sem dúvida – catando milho com os indicadores. Meditando sobre a
mutabilidade das coisas, segui em frente. No dia seguinte, saí em férias
de duas semanas. Na volta, entrei pelo saguão do Acrópole e avistei,
irradiando o aconchego familiar dos velhos tempos, a srta. Bates:
grega, gentil e impecável como sempre, colocando a capa sobre a
máquina de escrever. Já era hora de encerrar o expediente, mas ela me
pediu que sentasse por uns minutos na cadeira de onde datilografava
os ditados. A srta. Bates explicou sua ausência e seu retorno ao hotel
Acrópole com palavras idênticas – ou muito semelhantes – a estas:
“Como vão os seus contos?”
“Muito bem”, respondi. “Estou num ritmo bom.”
“Peço desculpas”, ela emendou. “A boa datilografia é fundamental
para os contos. Sentiu minha falta?”
“Não conheço ninguém”, disse-lhe eu, “tão hábil quanto a
senhorita para separar adequadamente fivelas de cinto, ponto e
vírgulas, hóspedes de hotel e grampos de cabelo. Mas a senhorita se
ausentou. Outro dia, vi uma caixa de menta-pepsina sentada no seu
lugar”.
“Já ia contar-lhe a respeito, se não tivesse me interrompido”,
retrucou a srta. Bates.
“Naturalmente conhece Maggie Brown, que se hospeda aqui. A
fortuna dela chega a 40 milhões de dólares e ela mora em Jersey num
apartamento de 10 dólares. Tem sempre mais dinheiro à mão que
meia dúzia de candidatos à vice-presidência. Não sei se carrega tudo na
meia, mas sei que é muito popular naquela parte da cidade onde
adoram o bezerro de ouro.
“Duas semanas atrás, a sra. Brown parou aí na porta e ficou bem
uns dez minutos me observando. Eu estava sentada de lado para ela,
batendo as cópias de um contrato de cobre para um senhor muito
gentil de Tonopah. Mas sempre enxergo tudo em volta de mim.
Quando estou concentrada no trabalho, vejo as coisas pela presilha
lateral que uso no cabelo; e posso deixar um botão desabotoado nas
costas da minha blusa e perceber se tem alguém me olhando por trás.
Não me virei naquele dia porque ganho de 18 a 20 dólares por semana
e não precisava olhar.
“Naquela noite, na hora de fechar por aqui, ela mandou me
chamar. Achei que teria de datilografar 2 mil palavras de anotações,
acordos de penhora e contratos, e me contentar com 10 centavos de
gorjeta. Mesmo assim, lá fui eu. Meu amigo, que surpresa. A velha
Maggie Brown se humanizara.
“‘Minha criança’”, disse-me, ‘você é a criatura mais bonita que já vi
na vida. Quero que largue seu trabalho e venha morar comigo. Não
tenho amigos ou parentes, salvo um marido e um ou dois filhos, mas
não tenho contato com eles. São fardos enormes para uma mulher
trabalhadora. Quero que seja uma filha para mim. Dizem que sou
avarenta e mesquinha, e os jornais publicam mentiras sobre mim,
dizem que cozinho minha própria comida e lavo minha roupa. É
mentira. Mando tudo para a lavanderia, exceto lenços, meias, anáguas
e camisas de gola mais delicadas. Tenho 40 milhões de dólares em
dinheiro, ações e títulos que são tão negociáveis quanto os papéis
preferenciais da Standard Oil. Sou uma senhora solitária e preciso de
companhia. Você é o ser humano mais bonito que conheço. Quer vir
morar comigo? Verá como sei gastar dinheiro também’, completou.
“Meu amigo, o que você teria feito? Claro que aceitei. E, para ser
sincera, comecei a gostar da velha Maggie. E não era só por causa dos
40 milhões e do que ela poderia fazer por mim. Eu também estava só
no mundo. Todo mundo precisa de alguém para explicar aquela dor
no ombro esquerdo, ou falar de como os sapatos envernizados logo
ficam imprestáveis depois que começam a craquelar. E não posso
recorrer a homens que conheço em hotéis – é exatamente esse tipo de
abertura que eles procuram.
“E então larguei o emprego aqui e fui morar com a sra. Brown.
Parecia mesmo que eu a tinha conquistado. Ela ficava me olhando sem
parar enquanto eu lia ou folheava revistas.
“A certa altura, perguntei: ‘Por acaso eu lhe lembro algum parente
falecido ou amigo de infância, sra. Brown? Reparei que a senhora me
faz uma inspeção visual bem completa de vez em quando’.
“‘Você tem o rosto’, ela respondeu, ‘exatamente igual ao de uma
grande amiga – a melhor amiga que tive. Mas também gosto muito de
você pelo que é, minha filha’, concluiu.
“E sabe o que ela fez, meu amigo? Deixou-se levar como uma onda
no mar de Coney. Acompanhou-me a uma excelente costureira e deu-
lhe carta branca para que me ajeitasse – dinheiro não seria problema.
Eram ordens imediatas, e a modista trancou a porta da frente e pôs
toda a equipe para trabalhar.

“Depois nos mudamos – adivinhe para onde? Não. Tente de novo.


“Depois nos mudamos – adivinhe para onde? Não. Tente de novo.
Isso mesmo, o hotel Bonton. Nosso quarto tinha seis cômodos e
custava 100 dólares por dia. Eu vi a conta. Comecei a amar aquela
senhorinha.
“E então, meu amigo, quando os vestidos começaram a chegar…
nem digo nada, você não entenderia. Passei a chamá-la de tia Maggie.
Você conhece a Cinderela, claro. Bem, o que a Cinderela falou quando
o príncipe encaixou aquele sapatinho tamanho 3 e meio em seu pé
pode ser considerado um relato triste se comparado às coisas que eu
disse a mim mesma.
“E aí a tia Maggie decidiu organizar um banquete no Bonton para
me apresentar à sociedade e causar inveja a todas as famílias
holandesas da 5ª Avenida.
“‘Já fui apresentada, tia Maggie’, disse-lhe. ‘Mas posso ser
apresentada de novo, não me importo. Só que esse é um dos melhores
hotéis da cidade. Permita-me dizer que é difícil reunir esse bando de
notáveis sem ter prática nisso’.
“‘Não se preocupe, minha filha’, disse tia Maggie. ‘Não mando
convites, mando ordens. Vou trazer cinquenta convidados aqui que
jamais se reuniriam para outra recepção a menos que fosse oferecida
pelo rei Edward ou por William Travers Jerome. São todos homens,
naturalmente, e todos me devem dinheiro – ou pretendem dever.
Algumas esposas não virão, mas outras tantas sim.’
“Pena você não ter estado no banquete. O serviço de jantar era todo
de ouro e cristal lapidado. Havia cerca de quarenta homens e
mulheres, além de tia Maggie e de mim. Você não teria reconhecido a
terceira mulher mais rica do mundo. Ela trajava um vestido de seda
novo e com tantas passamanarias que na hora me lembrou o barulho
da chuva de granizo que ouvi quando dormi no apartamento de uma
amiga no último andar de um prédio.
“E o meu vestido! Meu amigo, não desperdiçarei palavras agora.
Era todo de renda feita à mão e custou 300 dólares. Eu vi a conta. Os
homens eram todos carecas ou tinham suíças brancas e falavam
animadamente sobre uns tais 3% e a safra de algodão em Bryan.
“À minha esquerda havia algo que falava como um banqueiro; à
direita, um jovem que se apresentou como ilustrador de jornal. Era o
único… bem, vou falar mais dele depois.
“Acabado o jantar, a sra. Brown e eu subimos para o quarto.
Tivemos de abrir espaços em meio à multidão de repórteres que
lotavam o corredor. É uma das coisas que o dinheiro faz. A propósito,
você conhece um ilustrador de jornal chamado Lathrop – um homem
alto, de olhos bonitos e voz suave? Não, eu não lembro o nome do
jornal. Tudo bem.
“Quando chegamos ao quarto, a sra. Brown telefonou pedindo a
conta imediatamente. Logo mandaram: 600 dólares. Eu vi. Tia Maggie
desmaiou. Coloquei-a no sofá e afrouxei a blusa bordada.
“‘Minha filha’, disse ao voltar a si, ‘o que foi aquilo: aumento no
aluguel ou imposto de renda?’
“‘Só um jantarzinho’, respondi. ‘Nada que preocupe, uma gota no
oceano das grandes negociatas. Sente-se e preste atenção no que está
fazendo – uma atenção desapegada, se outro jeito não houver.’
“E então, meu amigo, sabe o que a tia Maggie fez? Deu para trás!
Tirou a gente do hotel Bonton às 9 horas da manhã seguinte.
Mudamos para um quarto de pensão no Lower West Side. Ela alugou
um cômodo que tinha água no piso de baixo e eletricidade no piso de
cima. Depois que nos instalamos, tudo que se via no quarto eram
vestidos novos somando 1.500 dólares e um fogão de uma boca.
“Tia Maggie sofrera um ataque súbito de sovinice. Acho que todo
mundo precisa cair na farra uma vez na vida. Homens gastam muito
com bebida, mulheres se entusiasmam com vestidos. Mas com 40
milhões de dólares! Eu gostaria de ter uma foto… falando nisso, você
por acaso conhece um ilustrador de jornal chamado Lathrop? Sujeito
alto… já perguntei isso antes, não? Ele foi muito gentil comigo no
jantar. Gostei da voz dele. Deve ter achado que eu herdaria parte do
dinheiro da tia Maggie.
“Bem, meu amigo, três dias na lida da pensão bastaram para mim.
A tia Maggie foi um amor. Mal me deixava sair de perto dela. Mas vou
lhe contar uma coisa: a mulher virou cidadã honorária de
Muquiranalândia. O limite de gastos era 75 centavos por dia. Fazíamos
nossa própria comida no quarto. Lá estava eu, usando roupas de mil
dólares e me virando do avesso para cozinhar num fogão de uma boca.
“Como falei, no terceiro dia, escapei da gaiola. Não dava para
preparar cozido de rins a 15 centavos usando um vestido de 150
dólares com renda de Valenciennes. Então procurei no guarda-roupa o
vestido mais barato que a sra. Brown tinha me comprado – é o que
estou usando agora –, nada mau por 75 dólares, não acha? Todas as
minhas roupas estavam no apartamento da minha irmã no Brooklyn.
“‘Sra. Brown, ex-tia Maggie’, então eu disse a ela, ‘vou agora
movimentar meus pés de forma alternada, um depois do outro, de
modo e em direção tais que este quartinho desaparecerá sob mim o
mais rapidamente possível. Não sou adoradora de dinheiro, mas não
tolero certas coisas. Posso tolerar o monstro fabuloso sobre o qual já li
e que é capaz de fazer voar com o mesmo sopro pássaros quentes e
garrafas frias. Mas não tolero a fraqueza. Dizem que tem 40 milhões de
dólares. A verdade é que nunca terá menos que isso. E eu estava
começando a gostar da senhora’.
“A finada tia Maggie então começou a bater os pés até que rolaram
umas lágrimas. Ela sugeriu mudarmos para um quarto melhor, com
fogão de duas bocas e água corrente.
“‘Gastei muito dinheiro, minha filha’, lamentou, ‘agora precisamos
economizar durante um tempo. Você é a criatura mais bonita que
conheci na vida, não quero que me abandone’.
“Bom, estou aqui agora, certo? Vim direto ao Acrópole e pedi meu
emprego de volta. E consegui. Como andam os seus contos mesmo? Sei
que foi prejudicado com minha ausência aqui, para datilografá-los… Já
pensou em incluir ilustrações nas histórias? E por acaso você conhece
um ilustrador de jornal… Preciso calar a boca, sei que fiz essa pergunta
antes. Em que jornal será que ele trabalha? É engraçado, mas não pude
deixar de imaginar que ele não estava pensando no dinheiro que ele
talvez achasse que eu pensava em herdar da velha Maggie Brown. Se
eu conhecesse alguns editores de jornal…”
Da porta veio o som de passos leves. Ida Bates identificou quem era
pela presilha lateral do cabelo. Vi-a enrubescer, ainda que estátua
perfeita – um milagre que compartilho apenas com Pigmalião.
“Estou perdoada?”, perguntou-me – agora transformada em
adorável suplicante. “É o sr. Lathrop. Me pergunto se não foi mesmo o
dinheiro… Será que depois de tudo…”
Naturalmente fui convidado para o casamento. Terminada a
cerimônia, puxei Lathrop de lado.
“Você é um artista, e mesmo assim não conseguiu descobrir por
que Maggie Brown tinha tanta afeição pela srta. Bates? Venha, vou
mostrar.”
A noiva usava um vestido branco simples, drapeado lindamente à
moda dos antigos trajes gregos. Peguei umas folhas das grinaldas que
decoravam o salão e fiz com elas uma coroa, que coloquei sobre os
cabelos castanhos de née Bates. Então fiz com que virasse de lado para
o marido.
“Por Deus!”, exclamou o recém-casado. “E não é que a cabeça de
Ida é igualzinha à da mulher que estampa o dólar de prata!”
A sra. Fink tinha descido para uma visitinha à sra. Cassidy, no
apartamento do andar de baixo.
“Não tá uma lindeza?”, perguntou a sra. Cassidy, virando o rosto
orgulhosa para que a sra. Fink pudesse ver. Um dos olhos estava
praticamente fechado, coberto por uma grande mancha roxo-
esverdeada. Os lábios, cortados, sangravam um pouco, e havia marcas
avermelhadas de dedos ao redor do pescoço.
“Meu marido nem pensaria em fazer uma coisa dessas comigo”,
disse a sra. Fink, disfarçando a inveja.
“E eu não aceitaria um homem”, retrucou a sra. Cassidy, “que não
me batesse pelo menos uma vez por semana. Isso mostra um pouco de
consideração. Mas essa última dose que o Jack me deu não teve nada
de homeopática. Ainda estou vendo estrelas. E agora ele será o homem
mais gentil da cidade pelo resto da semana, para compensar. Só este
olho aqui vale uns ingressos para o teatro e uma blusa de seda, no
mínimo”.
“Acredito”, disse a sra. Fink, complacente, “que o sr. Fink é
cavalheiro demais para levantar a mão contra mim”.
“Ah, pare com isso, Maggie”, respondeu a sra. Cassidy enquanto
passava pomada de hamamélis no rosto, “está com inveja porque seu
homem é um fracote, lento demais para dar um soco em você.
Quando chega em casa, o único exercício que faz é sentar para ler o
jornal – verdade ou não?”.
“O sr. Fink gosta mesmo de ler o jornal com calma quando volta
para casa”, reconheceu a sra. Fink, jogando a cabeça para trás. “Mas ele
nunca me faria de Steve O’Donnell só para se divertir – disso eu sei.”
A sra. Cassidy soltou a risadinha satisfeita da dona de casa recatada
e feliz. E feito uma Cornélia a exibir suas joias, abaixou o decote do
quimono para revelar outro valioso hematoma, vermelho-escuro no
centro e alaranjado nas bordas – um ferimento quase já cicatrizado,
mas ainda ardente na memória.
A sra. Fink capitulou. O brilho em seus olhos diminuiu, ganhou
um ar de admiração invejosa. Ela e a sra. Cassidy haviam sido colegas
na fábrica de caixas de papelão antes de casarem, um ano antes. Agora,
ela e o marido ocupavam o apartamento no andar de cima ao de
Mame e o companheiro. Por causa disso tudo, não conseguia dar uma
de superior ante a amiga.
“Mas não dói quando ele mete a mão em você?”, perguntou a sra.
Fink, curiosa.
“Se dói?”, respondeu a sra. Cassidy num grito agudo, de soprano.
“Já sentiu uma casa desabando em cima de você? Essa é a sensação,
como se estivessem puxando você dos escombros. A mão esquerda do
Jack equivale a duas sessões de cinema e um par de sapatos novos. E a
direita! No mínimo uma viagem para Coney Island e seis pares de
meia de seda rendada para compensar.”
“Mas por que ele bate em você?”, perguntou a sra. Fink com olhos
arregalados.
“Bobinha”, retrucou a sra. Cassidy. “Porque está de cara cheia.
Geralmente é no sábado à noite.”
“Mas que motivo você dá?”, insistiu, em busca de uma luz.
“Ué, não casei com ele? O Jack chega em casa bêbado e estou aqui,
não estou? Em quem mais ele teria o direito de bater? Ai se eu pego
ele batendo em outra! Às vezes é porque o jantar não está pronto; às
vezes é porque o jantar está pronto. O Jack não precisa de muito
motivo. Ele entorna todas até lembrar que é casado. Então volta para
casa e me espanca. Nos sábados, eu tiro da sala os móveis com cantos
mais pontudos, assim não machuco a cabeça quando ele começa o
serviço. A esquerda dele tonteia qualquer um. Tem vez que entrego os
pontos logo no primeiro round, mas quando quero me divertir durante
a semana, ou preciso de roupa nova, deixo que ele castigue mais. Fiz
isso ontem à noite. O Jack sabe que estou querendo uma blusa de seda
preta há mais de um mês, e eu sabia que um olhinho roxo só não ia
garantir o mimo. Aposto com você que ele vai trazer a blusa hoje.”
A sra. Fink pensava.
“O meu Mart”, disse, “nunca encostou um dedo em mim. É isso
que você disse, Mame, ele chega em casa resmungando e não me diz
nada. Nunca me leva a lugar nenhum. Passa o tempo esquentando a
poltrona. Até me compra uma coisinha ou outra, mas com tanta má
vontade que nem dou valor”.
A sra. Cassidy abraçou a amiga.
“Tadinha. Sei que nem todo mundo tem um marido igual ao Jack.
Os casamentos não acabavam se tivesse mais homem como ele. Essas
infelizes que estão por aí precisam mesmo é de um homem que chegue
em casa e encha a cara delas de alegria uma vez por semana, e depois
compense com beijinhos e chocolate. A vida ficaria mais interessante.
O que eu quero mesmo é um homem forte, que me soque quando está
bêbado e me abrace quando está sóbrio. Quero distância de homem
que não faz uma coisa nem outra!”
A sra. Fink suspirou.
De repente, ruídos encheram o corredor. A porta do apartamento
se escancarou com o chute desferido pelo sr. Cassidy. Os braços dele
estavam ocupados segurando pacotes. Mame levantou num pulo e se
pendurou no pescoço do marido. Seu olho bom tinha o mesmo brilho
feliz que se vê na virgem maori que recobra a consciência na cabana,
depois de ser nocauteada e arrastada até ali pelo pretendente. “Oi,
menina”, gritou o sr. Cassidy, largando os pacotes e erguendo-a num
abraço apertado. “Tenho ingressos para Barnum & Bailey’s, e, se você
rasgar um desses embrulhos, acho que vai encontrar aquela blusa de
seda – olá, sra. Fink! – não tinha visto a senhora. Como vai o velho
Mart?”
“Vai bem, sr. Cassidy, obrigada”, respondeu a sra. Fink. “Preciso
subir agora. O Mart vai chegar para jantar. Amanhã trago aquele
tecido que você pediu, Mame.”

A sra. Fink subiu para o apartamento e chorou um pouco. Era um


A sra. Fink subiu para o apartamento e chorou um pouco. Era um
choro sem sentido, o tipo de choro que só as mulheres conhecem, um
choro sem causa aparente, absurdo; o choro mais curto e
desesperançado de todo o repertório da tristeza. Por que o Martin
nunca tinha lhe dado uma surra? Ele era grande e forte como Jack
Cassidy. Será que não gostava dela? Ele não discutia, chegava em casa e
ficava quieto, tristonho, prostrado. Era até bom provedor, mas
ignorava os sabores que a vida podia ter.
O navio de sonhos da sra. Fink enfrentava um período de calmaria.
Seu capitão alternava entre a mesa de jantar e a rede de dormir. Se ele
ao menos mostrasse um pouco de fibra ou pisasse mais duro de vez em
quando! E ela tinha contado com uma viagem tão feliz, com paradas
nos portos das Ilhas das Delícias! Mas agora, para variar, estava pronta
para largar a esponja na pia, cansada, e sem um único arranhão para
exibir depois daqueles rounds sem graça com seu parceiro de lutas. Por
um instante ela quase odiou Mame – a Mame dos cortes e hematomas,
dos presentes e carinhos recebidos em meio à viagem tempestuosa ao
lado daquele amante combativo, bruto e afetuoso.
O sr. Fink chegou em casa às 19 horas. Exalava à maldição da
domesticidade. Para além dos portais de seu aconchegante lar, não se
aventurava. Era o homem que havia tomado o bonde – a anaconda
que engolia as presas, a árvore caída e imóvel.
“Gostou do jantar, Mart?”, perguntou a sra. Fink, que tinha se
esforçado na preparação. “Ahã”, resmungou o sr. Fink.
Depois de comer, ele pegou o jornal e sentou para ler, já sem os
sapatos.
Levantai, oh novo Dante, e cantai o caminho merecido da perdição
para o homem que senta de meias para ler em casa. Irmãs da Santa
Paciência, que por força do dever suportaram o martírio em seda,
algodão, renda ou lã – não caberia aqui um novo canto?
O dia seguinte era feriado, Dia do Trabalho. As ocupações da sra.
Cassidy e da sra. Fink cessariam durante uma passagem do Sol. O
trabalho, triunfante, desfilaria pelas ruas abrindo espaço para a
diversão.
A sra. Fink levou o tecido à sra. Cassidy logo cedo. Mame vestia a
blusa de seda nova. Até o olho roxo emitia um brilho festivo. Jack
parecia tomado de remorso, e um dia pleno de felicidade se desenhava
com direito a parques, piqueniques e cerveja.
Um sentimento crescente de inveja e indignação tomou conta da
sra. Fink na volta ao apartamento no andar de cima. Feliz da Mame
com seus hematomas e pomadas analgésicas! Mas será que Mame
tinha o monopólio da felicidade? Martin Fink era um homem tão
bom quanto Jack Cassidy, sem dúvida. Sua mulher estaria então
condenada a jamais apanhar ou receber carinhos? De repente, uma
grande ideia ocorreu à sra. Fink. Ela mostraria a Mame que existiam
maridos tão capazes de usar os punhos e, talvez, de revelar tanto afeto
depois da surra, quanto qualquer Jack Cassidy.
O Dia do Trabalho faria jus ao nome na casa dos Finks: a pia da sra.
Fink estava repleta de louça suja; o sr. Fink, de meias, lia o jornal na
poltrona da sala. O dia prometia passar rápido. Mas a inveja ganhava
corpo no coração da sra. Fink, assim como a determinação de tomar
uma atitude. Se o marido não a espancava – se não estava disposto a
provar sua masculinidade, usar sua prerrogativa e mostrar seu
interesse em assuntos conjugais, deveria então ser instado a fazê-lo.
O sr. Fink acendeu o cachimbo e calmamente coçou um calcanhar
com o dedão do outro pé. Ele repousava na tranquilidade do estado
matrimonial como uma cereja flutua, sem afundar, sobre um pudim.
Estava no paraíso – tranquilamente sentado, acercando-se do mundo à
sua volta de forma indireta, pela palavra impressa, em meio aos ruídos
da esposa enxaguando a louça e aos aromas agradáveis do café da
manhã que partia e do almoço que estava a caminho. Muitas ideias
nem sequer passavam por sua cabeça, e a mais distante delas era a de
bater na mulher.
A sra. Fink abriu a água quente sobre as tábuas de lavar. Do
apartamento de baixo ecoava o riso alegre da sra. Cassidy. Soava como
provocação, como se ela estivesse exibindo sua felicidade para a
coitada que não apanhava no andar de cima. Tinha chegado a hora da
sra. Fink.
Ela se voltou furiosamente para o homem que lia na sala.
“Preguiçoso, folgado! Preciso me matar na cozinha por causa de
tipinhos assim? Você é um homem ou um cãozinho de madame?”
O sr. Fink deixou cair o jornal, pego de surpresa. Ela temia que ele
não a golpeasse, que a provocação fosse insuficiente. Então saltou na
frente do marido e bateu com força, punho cerrado, no rosto dele.
Naquele instante, sentiu um arrepio de amor pelo companheiro que
não sentia havia muito tempo. Levante-se, Martin Fink, e comande seu
reino! Agora ela com certeza sentiria o peso daquela mão – só para
provar que ele se importava, só por isso!
O sr. Fink ficou em pé – e Maggie o acertou de novo, no queixo,
com a outra mão. E fechou os olhos na expectativa temerosa, mas feliz,
do murro que logo viria – ela suspirou o nome dele e inclinou-se para
a frente, ansiosa pela bordoada.
No andar de baixo, o sr. Cassidy, envergonhado e contrito,
maquiava o olho de Mame antes do passeio. Do apartamento de cima,
ouviam-se gritos de mulher, agudos, e sons de batidas, tropeços,
cadeiras virando – sem dúvida, a trilha sonora de um conflito
doméstico.
“Mart e Mag brigando?”, especulou o sr. Cassidy. “Não sabia que
eles gostavam da coisa. Acha que devo subir para ver se precisam de
um porta-esponja?”
Um dos olhos da sra. Cassidy brilhava feito diamante. O outro
piscava com dificuldade.
“Oh, oh”, disse ela, com a voz calma, aparentemente sem cinismo e
sem a típica explosão feminina. “Será que… Espere aqui, Jack, vou lá
ver o que aconteceu.”
E subiu correndo as escadas. Mal entrou no corredor, deu com a
sra. Fink abrindo bruscamente a porta da cozinha.

“Maggie!”, soltou a sra. Cassidy num suspiro de alegria. “Ele bateu?


“Maggie!”, soltou a sra. Cassidy num suspiro de alegria. “Ele bateu?
Ele bateu?”
A sra. Fink correu e enfiou o rosto no ombro da amiga, chorando
sem parar.
A sra. Cassidy segurou o rosto de Maggie com as duas mãos e o
levantou devagar. Os olhos estavam lacrimejantes, vermelhos, mas
aquela pele aveludada, sardenta, permanecia imaculada, sem
hematomas ou outros sinais do punho covarde do sr. Fink.
“Me conta, Maggie”, implorou Mame, “ou eu mesmo entro lá e
descubro. O que aconteceu? Ele machucou você? O que ele fez?”
E o rosto da sra. Fink mais uma vez mergulhou desesperadamente
no colo da amiga.
“Pelo amor de Deus, não abra aquela porta, Mame”, pediu
soluçando. “E nunca conte isso para ninguém, guarde com você. Ele
não encostou a mão em mim. E ele… meu Deus, ele está lá… lavando
roupa… lavando roupa!”
Entre várias outras coisas, Raggles era um poeta. Chamavam-no de
vagabundo, mas isso era só um modo elíptico de dizer que era filósofo,
artista, viajante, naturalista, descobridor. Mas era principalmente
poeta. Jamais escrevera um verso na vida; ele vivia a poesia. Sua
Odisseia seria um limerique – se tivesse sido escrita. Mas, para residir
na proposição inicial, Raggles era um poeta.
A especialidade de Raggles, caso tivesse se voltado para a pena e o
papel, teria sido o soneto dedicado a cidades. Ele estudava as cidades
como as mulheres estudam o próprio reflexo no espelho; como as
crianças estudam a cola e a serragem de um boneco quebrado; como os
homens que escrevem sobre animais selvagens estudam as jaulas de
um zoológico. Para Raggles, uma cidade não se resumia a uma pilha
de tijolos e cimento populada por certo número de habitantes. Tinha
alma e características distintivas, era um conglomerado
individualizado de vida com essência, sabor e sentimentos singulares.
Três mil quilômetros a norte, sul, leste e oeste, Raggles vagava em
fervor poético, trazendo as cidades para perto do peito. A pé, em
estradas empoeiradas; acelerado, em magníficos trens de carga, e sem
nunca se importar com o tempo. E, quando encontrava o coração de
uma cidade e ouvia suas confissões mais íntimas, flanava, incansável,
para a seguinte. Volúvel, o Raggles! Mas talvez ele não tivesse ainda
topado com a corporação cívica capaz de conquistar e apaziguar sua
inquietação crítica.
Os poetas antigos nos ensinaram que as cidades são femininas. E
assim as via o poeta Raggles. Sua mente encerrava uma concepção
clara, concreta, da figura que simbolizava cada localidade que havia
cortejado.
Chicago o arrebatava por alusão à sra. Partington, a plumas e a
patchuli; e perturbava seu sono com o melodioso canto de promessa
futura. Mas Raggles acordava arrepiado de frio e com a impressão
desanimadora de que ideais haviam se perdido em meio à emanação
de salada de batata e peixe.
Assim ele sentia Chicago. A descrição talvez seja incerta e
imprecisa, mas isso é culpa de Raggles. Ele deveria ter registrado suas
impressões em poemas de revista.
Pittsburgh o impressionava qual uma apresentação de Otelo feita
em idioma russo por menestréis da trupe de Dockstader, numa estação
de trem. Mas tratava-se de uma senhora nobre e generosa, essa
Pittsburgh – singela, cordial, lavando os pratos com a face enrubescida
e trajando vestido de seda com sapatilhas brancas, e insistindo para
que Raggles sentasse em frente à lareira acesa e aproveitasse o
champanhe e os pés de porco com batatas fritas.
Nova Orleans apenas o observara da sacada alta. Da rua, Raggles
conseguiu entrever seus olhos pensativos, brilhantes, e o abanar rápido
do leque. Mas só isso. Apenas em uma ocasião ficaram cara a cara.
Amanhecia e a cidade lavava os tijolos vermelhos do passeio com um
balde d’água, rindo e entoando uma chansonnette. Acabou
encharcando os sapatos de Raggles com água fria. Allons!
Boston revelou-se à mente poética de Raggles de modo errático e
único. Era como se ele tivesse tomado chá gelado e a cidade fosse uma
tira de pano branco e frio abraçando-lhe a cabeça com força, e isso de
alguma forma o incitasse a um esforço mental imenso, cujo propósito
ele desconhecia. No fim das contas, Raggles acabou tirando neve das
ruas para sobreviver; o pano molhou, apertando ainda mais os nós, e
não pôde ser removido.
Ideias indefinidas e ininteligíveis, alguém dirá; mas essa crítica deve
ser temperada com gratidão, trata-se aqui da imaginação do poeta –
imagine só se tivesse sido colocada em versos!
Certo dia Raggles sitiou o coração da grande cidade de Manhattan.
Essa era a maior de todas; e ele queria descobrir seu tom, queria
saborear, avaliar, classificar, explicar, rotular e encaixar Manhattan no
conjunto das outras cidades que lhe haviam revelado os segredos de
suas individualidades. E aqui deixamos de ser tradutores de Raggles
para nos tornarmos seu cronista.
Raggles desceu da balsa de manhã e caminhou para o centro da
cidade com o ar blasé de um cidadão cosmopolita. Vestiu-se para
desempenhar o papel de “homem não identificado”. Não havia país,
raça, classe, grupo, sindicato, partido ou clube de boliche que pudesse
alegar tê-lo como representante. Suas roupas, doadas aos poucos por
cidadãos de altura diferente da dele, mas com o coração de mesmo
tamanho, não destoavam tanto de sua figura quanto aquele tipo de
vestimenta feita em lotes, que nos chega de trem e é enviada por
alfaiates transcontinentais, incluindo suspensórios, lenços de seda e, de
bônus, abotoaduras peroladas. Sem dinheiro – como sói acontecer a
um poeta –, mas com o ardor de um astrônomo investigando uma
nova estrela na Via Láctea, ou como um homem que de repente
descobre tinta jorrando de sua caneta, Raggles perambulou pela
grande cidade.
No fim da tarde, ele se afastou do tumulto e da agitação com o
semblante tomado por terror. Sentia-se derrotado, confuso,
desconcertado, assustado. Outras cidades se exibiam como letras
grandes, fáceis de ler; como donzelas do interior, rapidamente
decifráveis; como revistas de palavras cruzadas cuja solução vem junto
com a assinatura; como suaves ostras de coquetel; mas esta aqui era
fria, cintilante, plácida, tão inacessível quanto um diamante de 4
quilates aos olhos de um amante que encara a vitrine enquanto
dedilha, no fundo do bolso úmido, o salário de vendedor de
armarinhos.
A recepção oferecida pelas outras cidades ele conhecia bem – a
gentileza caseira, o toque humano de caridade explícita, os
xingamentos amistosos, a curiosidade tagarela, a credulidade ou a
indiferença facilmente identificáveis. Esta cidade de Manhattan não
lhe dava pista nenhuma, fechava-se, passando por ele nas ruas como
um rio. Nenhum olhar, nenhuma voz se dirigia a ele. Seu coração
ansiava por sentir no ombro a mão coberta de fuligem de Pittsburgh;
por ouvir o som estridente, mas sociável de Chicago; pelo olhar pálido
e simplório por trás dos monóculos de Boston – até mesmo das botas
excessivamente pontudas mas bem-intencionadas de Louisville e St.
Louis ele sentia falta.
Na Broadway, Raggles, o bem-sucedido galanteador de tantas
cidades, sentia-se intimidado, um caipira diante da pretendente. Pela
primeira vez conhecia a dolorosa humilhação de ser ignorado. E
quando tentou reduzir aquela cidade iluminada, mutante, gélida a
uma simples fórmula, fracassou miseravelmente. Era poeta, sim, mas
ela não lhe oferecia analogias interessantes, termos de comparação,
nem sequer exibia falhas em suas faces polidas, nenhum ponto de
apoio em que ele pudesse se agarrar para observar melhor sua
estrutura, como tinha feito de modo íntimo e até com certo desdém
em tantas outras cidades. As casas eram muralhas intermináveis com
seteiras abertas para defesa; as pessoas eram espectros brilhantes, mas
sem alma, que se moviam de um jeito sinistro e individualista.
O ponto que mais pesava sobre a alma de Raggles e travava sua
imaginação poética era o espírito de egoísmo que saturava os
habitantes do mesmo modo que brinquedos são saturados por tinta.
Cada exemplar que ele analisava parecia um monstro movido por uma
vaidade abominável. O senso de humanidade os havia abandonado;
eram ídolos hesitantes, feitos de pedra envernizada, que adoravam a si
próprios e ansiavam, absortos, pela adoração de seus conterrâneos de
mármore. Congelados, cruéis, implacáveis, impenetráveis, moldados
por padrões idênticos, corriam como estátuas induzidas ao movimento
por algum milagre, ao mesmo tempo que alma e sentimentos
permaneciam adormecidos na pedra relutante.
Aos poucos, Raggles passou a entender alguns tipos. Havia o senhor
de meia-idade, barba branca e curta; face rosada e lisa, e olhos azuis
penetrantes; que se vestia à moda da juventude dourada e parecia
personificar a riqueza, a maturidade e a fria indiferença da cidade.
Outro tipo local era a mulher alta, bonita, luminosa qual escultura de
aço, com pose de deusa serena, que se vestia como as princesas de
antigamente e cujos olhos eram de um azul tão glacial como o reflexo
do sol em uma geleira. Um terceiro tipo era subproduto desta cidade
de marionetes: o sujeito enorme, falastrão, severo, aparentemente sob
constante torpor, e que tinha o queixo largo como um campo de trigo,
a compleição de um bebê recém-batizado e os punhos de um lutador.
Esse tipo se apoiava em placas de anúncio de charutos e via o mundo
com insolência desinteressada.
O poeta é uma criatura sensível, e Raggles logo se recolheu perante
o embate desanimador com o indecifrável. A expressão fria,
enigmática, irônica, ilegível, antinatural e cruel da cidade o deixou
abatido e desnorteado. Aquilo não tinha coração? Raggles preferia a
pilha de lenha para carregar, as reprimendas de donas de casa
rabugentas, o mau humor simpático dos barmen de balcões
provincianos, a amigável truculência da polícia interiorana, os chutes,
as prisões, as oportunidades quase irresponsáveis oferecidas pelas
outras cidades, vulgares, estridentes, imperfeitas, antes tudo isso que
esta falta de humanidade.
Raggles juntou coragem e tentou encontrar caridade entre os locais.
Desatentos, indiferentes, passavam por ele sem nem sequer piscar os
olhos em sinal de que ao menos percebiam sua existência. E então
Raggles disse a si mesmo que Manhattan, aquela cidade grande mas
impiedosa, não tinha alma; que seus habitantes eram bonecos
controlados por fios, e que ele estava só em um imenso deserto.
Raggles começou a atravessar a rua. Então houve uma explosão,
uma gritaria, um silvo e uma colisão. Alguma coisa o atingira e o
lançara para o alto, a muitos metros de onde estava. Enquanto caía
como a vara de um rojão, a Terra e suas cidades se transformaram em
fragmentos de um sonho.
Raggles abriu os olhos. Primeiramente, um cheiro chamou-lhe
atenção – o aroma das flores primaveris do paraíso. E então uma mão
suave, uma pétala caída, tocou sua fronte. Curvada sobre ele estava a
mulher que se vestia como as princesas de antigamente, os olhos azuis
agora eram ternos e plenos de solidariedade humana. Sob a cabeça do
atropelado, no asfalto, havia sedas e peles. Segurando o chapéu de
Raggles, com a face mais rosada do que nunca após o veemente
desabafo verbal contra motoristas imprudentes, estava o senhor que
personificava a riqueza e a maturidade da cidade. Do café da esquina
acudiu o subproduto queixudo, com cara de bebê, segurando um copo
cheio de um líquido vermelho-escuro que sugeria possibilidades
deliciosas.
“Beba isto, parceiro”, disse o subproduto, segurando o copo perto
da boca de Raggles.
Centenas de pessoas se amontoaram ali em um instante, os rostos
estampando muita preocupação. Dois policiais amáveis, magníficos,
abriram a roda e afastaram a multidão de bons samaritanos. Uma
senhora vestindo xale preto soltou a voz para sugerir cânfora; o
entregador de jornal colocou alguns exemplares sob o cotovelo de
Raggles, que se apoiava no calçamento enlameado. Um jovem agitado,
carregando um caderninho, perguntava o nome de todo mundo.
Uma sirene tocou, imponente, e a ambulância se aproximou do
burburinho. Um cirurgião muito calmo passou então a conduzir os
trabalhos.
“Como se sente, meu senhor?”, perguntou o médico, chegando
mais perto. A princesa das sedas e dos cetins enxugou uma gota
vermelha da testa de Raggles com um lenço fino e perfumado.
“Eu?”, respondeu Raggles, esboçando um sorriso seráfico. “Estou
bem.”
Havia encontrado o coração de sua nova cidade.
Depois de três dias, o hospital o transferiu para a ala dos
convalescentes. Estava ali fazia uma hora quando os atendentes
ouviram sons de uma briga. Descobriram que Raggles havia atacado e
agredido outro paciente, convalescente como ele – um passageiro
enfurecido, que estava ali para ser remendado depois de uma colisão
entre trens.
“O que está acontecendo aqui?”, perguntou a enfermeira-chefe.
“Ele estava falando mal da minha cidade”, respondeu Raggles.
“Que cidade?”, insistiu a enfermeira.
“Nova York”, retrucou Raggles.
© Editora Carambaia, 2022

REVISÃO
Ricardo Jensen de Oliveira

PROJETO GRÁFICO
Mayumi Okuyama

VERSÃO DIGITAL
Antonio Hermida

CIP-Brasil. Catalogação na Publicação


Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

H451c
Henry, O., 1862-1910
Contos [recurso eletrônico] / O. Henry ; seleção, apresentação e tradução Jayme da Costa Pinto. – 1. ed. –
São Paulo: Carambaia, 2022.
recurso digital; 2 MB

Tradução de: Short stories


Formato: ebook
Modo de acesso: world wide web
Inclui posfácio
ISBN 978-85-69002-94-9 (recurso eletrônico)

1. Contos americanos. 2. Livros eletrônicos. I. Pinto, Jayme da Costa II. Título.

22-80916
CDD: 813
CDU: 82-34(73)

Meri Gleice Rodrigues de Souza – Bibliotecária – CRB-7/6439


DIRETOR-EXECUTIVO Fabiano Curi

EDITORIAL
Graziella Beting (diretora editorial)
Livia Deorsola (editora)
Laura Lotufo (editora de arte)
Kaio Cassio (editor-assistente)
Pérola Paloma (assistente editorial/direitos autorais)
Lilia Góes (produtora gráfica)

RELAÇÕES INSTITUCIONAIS E IMPRENSA Clara Dias


COMUNICAÇÃO Ronaldo Vitor
COMERCIAL Fábio Igaki
ADMINISTRATIVO Lilian Périgo
EXPEDIÇÃO Nelson Figueiredo
ATENDIMENTO AO CLIENTE Meire David
DIVULGAÇÃO/LIVRARIAS e escolas Rosália Meirelles

Editora Carambaia
Av. São Luís, 86, cj. 182
01046-000 São Paulo SP
contato@carambaia.com.br
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Table of Contents
Folha de Rosto
Um escritor de fino trato, por Jayme da Costa Pinto
Man about town ou enquadrando o savoir-faire
Primavera à la carte
A visão da boleia
Uma história inacabada
A vida amorosa de um corretor da bolsa
Aluga-se quarto
A reabilitação de Jimmy Valentine
A namorada gastadeira
Dois cavalheiros e o dia de Ação de Graças
O pêndulo
Um cosmopolita no café
A última folha
A receita perdida
De passagem pela Arcádia
O alegre mês de maio
O conde e o convidado das bodas
O perfil encantado
Uma tragédia no Harlem
Nasce um nova-iorquino
Créditos

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