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Folha de Rosto
Nota do tradutor
Era a vez de a sra. McCool ir buscar cerveja. E ela foi, para depois se
sentar com a sra. Purdy num daqueles retiros subterrâneos onde as
governantas se encontram e os vermes não morrem.
“Aluguei o quarto do terceiro andar hoje”, disse a sra. Purdy, com
espuma em volta dos lábios. “Um rapaz. Foi dormir faz duas horas.”
“Verdade, sra. Purdy?”, respondeu a sra. McCool, admirada. “A sra.
sabe mesmo passar esses quartos pra frente. Contou pra ele?”,
perguntou misteriosa, falando baixo.
“Os quartos”, respondeu a sra. Purdy em tom forrado de pelo, “são
para alugar, ponto. Não contei nada”.
“Está certa, a gente aluga quarto pra viver. A sra. sabe negociar.
Muita gente daria pra trás no aluguel do quarto se soubesse que uma
suicida morreu naquela cama.”
“É isso mesmo, a gente tem de cuidar da nossa vida”, observou a
sra. Purdy.
“Verdade. E só faz uma semana que ajudei a arrumar aquele
quarto. Mocinha bonita a que se matou com o gás, que rostinho mais
lindo ela tinha.”
“Seria bonita mesmo, como a senhorita diz”, ressalvou a sra. Purdy,
“se não fosse aquela pinta perto da sobrancelha. Beba mais um pouco,
sra. McCool”.
Um guarda entrou na sapataria da prisão, onde Jimmy Valentine
costurava meticulosamente a parte superior de alguns calçados, e o
levou à sala da administração. Ali o diretor entregou-lhe seu indulto,
assinado pelo governador naquela manhã. Jimmy recebeu o
documento com ar de cansaço. Tinha cumprido dez meses de uma
sentença de quatro anos. Esperava ficar no máximo três meses.
Quando um homem com tantos amigos do lado de fora como Jimmy
chega ao xadrez, nem vale a pena cortar-lhe o cabelo.
“Muito bem, Valentine”, disse o diretor, “você vai sair amanhã de
manhã. Aprume-se, rapaz, e aja como homem. No fundo, você não é
um mau sujeito. Pare de arrombar cofres, viva honestamente”.
“Eu?”, respondeu Jimmy, surpreso. “Mas eu nunca arrombei um
cofre na vida!”
“Não”, rebateu o diretor, “claro que não. Se não, vejamos: como é
que você acabou preso por causa daquele roubo em Springfield? Não
quis apresentar um álibi com medo de comprometer alguém
importante? Ou o júri é que estava mal-intencionado e quis prejudicá-
lo? É sempre das duas uma com vítimas inocentes como você”.
“Eu?”, disse Jimmy, com a cara lavada. “Mas, diretor, nunca pisei
em Springfield na vida!”
“Pode levar, Cronin”, ordenou, sorrindo, o diretor, “e arrume
roupas para ele sair amanhã. Solte-o às 7 horas e deixe que venha para
a área comum. Pense no que eu falei, Valentine”.
Às 7 e quinze da manhã seguinte, Valentine estava na sala do
diretor. Vestia um terno de corte abominável, desses feitos em série, e
um par de sapatos duros, que faziam barulho quando ele caminhava –
itens que o Estado fornece quando dá baixa a seus hóspedes
compulsórios.
“Bom dia”, disse o Velho Cavalheiro. “Fico feliz em notar que foi
“Bom dia”, disse o Velho Cavalheiro. “Fico feliz em notar que foi
poupado das vicissitudes de mais um ano que passou e pôde caminhar
com saúde por este mundo maravilhoso. Essa bênção apenas já é
suficiente para que demos graças no dia de hoje. Se puder me
acompanhar, meu caro, vou proporcionar-lhe uma refeição que
igualará seu bem-estar físico ao mental.”
O Velho Cavalheiro dizia sempre a mesma frase. Em todo Dia de
Ação de Graças, durante nove anos. As palavras em si já praticamente
formavam uma Instituição. Nada se comparava a elas, exceto talvez a
Declaração de Independência. E até aquele dia, eram música aos
ouvidos de Stuffy. Mas agora ele encarava o Velho Cavalheiro com
agonia e os olhos marejados. A neve fina chegava a ponto de derreter
ao cair em sua testa suada. O Velho Cavalheiro sentiu um rápido
calafrio e deu as costas ao vento.
Stuffy Pete sempre se perguntou por que o Velho Cavalheiro soava
triste quando falava. Não sabia que era porque ele queria muito ter
um filho para sucedê-lo. Um filho que fosse até ali quando ele mesmo
já tivesse partido. Um filho que se apresentaria orgulhoso e forte ao
próximo Stuffy e diria: “Em memória de meu pai”. Aí, sim, teríamos
uma Instituição.
Mas o Velho Cavalheiro não tinha parentes. Vivia em cômodos
alugados de um velho e decadente casarão localizado numa rua
tranquila a leste do parque. No inverno, cultivava brincos-de-princesa
numa pequena estufa do tamanho de um baú. Na primavera,
participava da parada de Páscoa. No verão, morava em um sítio nas
colinas de Nova Jersey, onde sentava numa cadeira de vime e discorria
sobre uma borboleta, a Ornithoptera amphrisius, que esperava
encontrar um dia. No outono, pagava o almoço para Stuffy. Essas
eram as ocupações do Velho Cavalheiro.
Stuffy Pete o encarou por meio minuto, estufado e indefeso,
sentindo pena de si mesmo. Os olhos do Velho Cavalheiro brilhavam
com o prazer da generosidade. O rosto exibia mais rugas com o passar
dos anos, mas a gravata-borboleta preta estava elegante como sempre,
a camisa de linho branco era linda e o bigode grisalho enrolava,
garboso, nas pontas. E então Stuffy soltou um som que lembrava
ervilhas fervendo na panela. A intenção era falar. E, como o Velho
Cavalheiro já tinha ouvido aqueles ruídos nove vezes antes, concluiu
com razão que eram o jeito de Stuffy dizer que aceitava o convite.
“Obrigado, irei com o senhor, obrigado. Estou com muita fome.”
O coma da saciedade não impedira que a mente de Stuffy fosse
invadida pela convicção de que ele formava a base de uma Instituição.
Seu apetite naquele Dia de Ação de Graças não lhe pertencia mais; mas
sim, e pelo direito sagrado dos costumes estabelecidos, se não pela Lei
da Prescrição, a esse tipo de Velho Cavalheiro que o havia
expropriado. A América é livre, naturalmente; mas para que uma
tradição se firme, alguns deverão assumir o papel daqueles algarismos
que ficam à direita da vírgula, a parte decimal que se repete
infinitamente. Nem todos os heróis são feitos de aço e ouro. Aqui
mesmo temos um herói que empunha armas de ferro, mal revestido
de prata e latão.
O Velho Cavalheiro conduziu seu protegido anual ao restaurante, e
depois à mesa onde o banquete sempre era servido. Foram logo
reconhecidos.
“Lá vem o velho”, comentou um garçom, “que paga almoço para
aquele vagabundo todo ano”.
O Velho Cavalheiro sentou-se primeiro. E brilhava como uma
pérola em seu pedestal de futura Tradição Centenária. Os garçons
abasteciam a mesa com os pratos da ocasião e Stuffy – emitindo um
suspiro que foi confundido com um grunhido faminto – ergueu garfo
e faca e produziu para si próprio uma coroa de louros imperecíveis.
Jamais um herói tão valoroso lutou tanto para atravessar as linhas
inimigas. Peru, costeletas, sopas, legumes, tortas desapareciam tão logo
eram servidos. Já saciado ao chegar ao restaurante, o cheiro da comida
quase o levou a perder a honra, mas Stuffy se superou como um
verdadeiro cavalheiro. Ele viu o olhar de felicidade benemérita no
rosto do Velho Cavalheiro – uma felicidade maior que qualquer
brinco-de-princesa ou Ornithoptera amphrisius poderiam trazer – e não
teve coragem de fazê-la desvanecer.
Depois de uma hora, Stuffy recostou-se na cadeira. Tinha vencido a
batalha.
“Muito obrigado, senhor”, disse ofegante, parecendo o vazamento
numa tubulação de vapor. “Muito agradecido pela fartura.”
E então se levantou com dificuldade, olhos vidrados, e seguiu em
direção à cozinha. Um garçom o girou feito um pião e apontou a saída.
O Velho Cavalheiro contou cuidadosamente o 1,30 dólar e deixou três
níqueis de gorjeta.
Separaram-se, como sempre, na porta do restaurante: o Velho
Cavalheiro foi para o sul; Stuffy, para o norte.
Depois de dobrar a esquina, Stuffy parou. Começou a arrancar as
roupas velhas à moda de uma coruja que solta penas e então desabou
na calçada feito um cavalo com insolação.
Quando a ambulância chegou, o jovem cirurgião e o motorista
reclamaram, baixinho, do peso daquele homem. Não havia cheiro de
uísque para justificar uma transferência à delegacia e, assim, Stuffy e
seus dois almoços foram levados para o hospital, onde o colocaram em
uma cama e o examinaram em busca de doenças estranhas, na
esperança de achar um problema que exigisse o bisturi.
E vejam só: uma hora depois chega outra ambulância trazendo o
Velho Cavalheiro. Foi colocado em outra cama, tinha cara de
apendicite, disseram.
Mas em seguida um dos jovens médicos encontrou no corredor
uma das jovens enfermeiras, de olhos bonitos, e os dois pararam para
conversar sobre os casos.
“Aquele senhor simpático ali”, contou o doutor, “ninguém diria
que é quase um caso de inanição. Família antiga, orgulhosa. Me disse
que não come nada há três dias”.
“Rua 81, um passinho à frente para o pessoal descer, por favor”, gritou
o pastor vestido de azul.
Um rebanho de cidadãos-ovelha espremeu-se para sair do trem
enquanto outra leva lutava para entrar. Ding-ding! O vagão de animais
da linha Manhattan Elevated seguiu seu rumo, sacolejante, e John
Perkins despareceu pelas escadas da estação em meio à massa recém-
liberta.
John andou devagar em direção ao seu apartamento. Devagar
porque no léxico do seu cotidiano não existia a palavra “talvez”.
Nenhuma surpresa aguarda um homem casado há dois anos e que
mora num quarto e sala. Ao caminhar, John Perkins vaticinava a si
próprio, com a desesperança melancólica dos membros do rebanho, a
conclusão inevitável de mais um dia marcado pela monotonia.
Katy iria esperá-lo na porta e dar-lhe um beijo com sabor de
chantilly gelado e doce de manteiga. Ele tiraria o casaco, sentaria na
poltrona dura feito pedra e leria, no vespertino, histórias de russos e
japoneses mortos pelo linotipo implacável. Para jantar, carne de
panela, salada temperada com molho próprio para limpar sapatos
(sem danificar o couro), ruibarbo cozido e um vidro de geleia de
morango envergonhado do certificado de pureza estampado no rótulo.
Depois do jantar, Katy mostraria o novo retalho da colcha incrível que
ela estava fazendo e que o entregador de gelo tinha cortado da própria
gravata. Às 7 e meia, eles espalhariam jornais sobre a mobília para
protegê-la do gesso que cairia do teto assim que o vizinho de cima, um
homem bem gordo, começasse os exercícios de fisiculturismo.
Exatamente às 8, Hickey & Mooney, da trupe de teatro de variedades
(ainda sem data para estrear) e moradores do apartamento da frente,
cederiam à influência suave do delirium tremens e começariam a atirar
cadeiras para o alto, movidos pela alucinação de que Hammerstein
estaria atrás deles com um contrato de 500 dólares por semana. E
então o cavalheiro que mora do outro lado do fosso de ventilação
começaria a tocar flauta; o vazamento noturno de gás invadiria
alegremente as ruas; o monta-cargas sairia dos trilhos; o zelador, mais
uma vez, ajudaria os cinco filhos da sra. Zanowitski a atravessar o Rio
Yalu; a dama com sapatos cor de champanhe desceria até o lobby, Skye
terrier a tiracolo, para colar o nome que usa às quintas-feiras na caixa
de correio e na campainha – e a rotina noturna do edifício Frogmore
estaria em pleno andamento.
John Perkins sabia que essas coisas aconteceriam. E sabia que às 8 e
quinze ele se encheria de coragem e pegaria o chapéu, e que sua
mulher faria um discursinho reclamando:
“Aonde você vai, me diga, John Perkins?”
“Acho que vou dar um pulo no McCloskey’s e jogar uma
sinuquinha com o pessoal”, ele responderia.
Nos últimos tempos, essa era a rotina de John Perkins. Entre 10 e
11 da noite, ele voltava para casa. Às vezes, Katy já estava dormindo;
mas em outras ocasiões esperava acordada, disposta a derreter no
cadinho de sua raiva um pouco mais do ouro que reveste o aço forjado
das correntes do matrimônio. Por essas e por outras, Cupido terá
muito o que explicar quando estiver diante do tribunal que fará justiça
às suas vítimas do edifício Frogmore.
Naquela noite, John Perkins encontrou o lugar-comum virado do
avesso ao chegar à sua porta. Nada de Katy com seu beijinho carinhoso
e adocicado. Os cômodos pareciam estar em completa desordem. As
coisas da mulher se espalhavam por toda parte. Sapatos no meio da
sala, prancha para alisar cabelo, tiaras, quimonos, pó de arroz, tudo
amontoado em cima de cadeiras ou da penteadeira… Aquilo não
combinava com Katy. Com o coração apertado, John viu que um
pente ainda segurava entre os dentes uma nuvem encaracolada de
cabelo castanho. Alguma urgência ou perturbação incomum deve ter
se apoderado da mulher, que sempre guardava meticulosamente essas
mechas em um pequeno vaso azul perto da lareira para um dia fazer
uma peruca.
Um pedaço de papel dobrado pendia do bico de gás por um
barbante. John o pegou. Era um bilhete da mulher, dizia o seguinte:
“Querido John,
Acabo de receber um telegrama contando que minha mãe está muito
doente. Vou pegar o trem das 4 e trinta. O meu irmão, Sam, vai me
encontrar na estação. Tem carne de carneiro na geladeira. Espero que não
seja amigdalite de novo. Pague o leiteiro, são 50 centavos. Ela passou muito
mal na primavera passada. Não esqueça de escrever para a companhia de
gás sobre o medidor. Suas meias boas estão na gaveta de cima. Amanhã
escrevo.
Com pressa,
Katy.”
“Com licença”, disse, “mas esse é o tipo de pergunta que não gosto
“Com licença”, disse, “mas esse é o tipo de pergunta que não gosto
de ouvir. Que diferença faz o lugar onde se nasce? É justo julgar um
homem com base no seu endereço postal? Eu mesmo já conheci gente
do Kentucky que odiava uísque, habitantes da Virgínia que não
descendiam de Pocahontas, nativos de Indiana que nunca tinham
escrito um romance, mexicanos que não usavam calça de veludo com
dólares de prata costurados na bainha, ingleses engraçados, ianques
perdulários, sulistas de sangue-frio, ocidentais obtusos e nova-
iorquinos ocupados demais para parar por uma hora na rua e observar
um quitandeiro maneta encher saquinhos de papel com cranberries.
Deixe que um homem seja apenas um homem e não o prejudique com
rótulos deste ou daquele canto”.
“Perdão”, respondi, “mas minha curiosidade não era
despropositada. Conheço o Sul e, quando a banda toca Dixie, gosto de
observar as reações. Formei uma crença de que o homem que aplaude
aquela canção com violência e um senso explícito de lealdade regional
ou é nativo de Secaucus, em New Jersey, ou do distrito que fica entre
Murray Hill Lyceum e o Rio Harlem, nesta cidade. Eu estava prestes a
testar minha crença com este cavalheiro quando você me interrompeu
com a sua própria… teoria mais ampla, eu diria”.
E então o jovem de cabelos pretos começou a falar comigo e ficou
claro que a sua mente também se movia por caminhos peculiares.
“Eu gostaria de ser uma flor de congonha”, disse de forma
misteriosa, “fincada no topo de um vale, e cantar Too-Ralloo-Ralloo”.
A conversa estava obscura demais; voltei-me a Coglan. “Já dei a
volta ao mundo doze vezes”, contou. “Conheço um esquimó em
Upernavik que manda trazer suas gravatas de Cincinnati e um pastor
de cabras no Uruguai que ganhou uma competição de palavras
cruzadas em Battle Creek sobre comidas de café da manhã. Alugo um
quarto no Cairo, no Egito, e outro em Yokohama, pelo ano todo.
Tenho chinelos me esperando numa casa de chá em Xangai e não
preciso dar instruções sobre como preparar meus ovos no Rio de
Janeiro ou em Seattle. Mundo pequeno. Que vantagem há em se
vangloriar por vir do Norte, do Sul, ou da mansão no vale, ou da
Avenida Euclid, em Cleveland, ou de Pike’s Peak, ou do Condado de
Fairfax, na Virgínia, ou de Hooligan’s Flats ou qualquer outro lugar?
O mundo será um lugar melhor quando deixarmos de lado essas
bobagens sobre cidadezinhas mofadas ou dez acres de terra pantanosa
só porque, por acaso, nascemos ali.”
“Você me parece ser um cosmopolita genuíno”, elogiei. “Mas
também desconfio que reprovaria o patriotismo.”
“Uma relíquia da idade da pedra”, respondeu, cordial. “Somos
todos irmãos – chineses, ingleses, zulus, patagões e os moradores da
região onde o Rio Kaw faz a curva. Um dia, esse orgulho mesquinho
por cidades, estados, regiões ou países sumirá do mapa e seremos todos
cidadãos do mundo, como deve ser.”
“Mas quando viaja por terras estrangeiras”, insisti, “seus
pensamentos não se voltam a um lugar especial, um lugar…”.
“Lugar nenhum”, interrompeu E. R. Coglan, ligeiro. “Essa massa
planetária esférica, ligeiramente achatada nos polos e conhecida como
Terra é o meu lar. Deparei em minhas viagens com vários cidadãos
deste país, e todos estavam sempre à procura do que já conheciam. Vi
homens nascidos em Chicago passeando sob o luar de Veneza e que, de
dentro das gôndolas, falavam orgulhosos dos canais de drenagem da
terra natal. Certa vez testemunhei um sulista dizendo ao rei da
Inglaterra, ao serem apresentados, e sem pestanejar, que sua tia-avó
materna descendia, por afinidade, dos Perkinses, de Charleston.
Conheci ainda um nova-iorquino que foi raptado por criminosos
afegãos. A família enviou o dinheiro do resgate e ele acabou por
retornar a Cabul com o agente. “O dinheiro veio do Afeganistão?”,
perguntaram os nativos por meio de um intérprete. “Até que não
demorou muito, não acha?”
“Oh, não sei…”, responde ele, e começa então a falar sobre um
taxista que trabalha na esquina da 6ª Avenida com a Broadway. “Essas
ideias não me seduzem. Não estou ligado a nada que tenha menos de
12 mil quilômetros de diâmetro. Se tiver de me rotular, sou E.
Rushmore Coglan, cidadão da esfera terrestre.”
Meu cosmopolita então acenou adieu e se retirou, acreditava ter
avistado um conhecido no meio do barulho e da fumaça. E assim fui
deixado na companhia da flor de congonha frustrada que, a essa
altura, afogado em Würzburger, já não tinha condições de expressar
suas aspirações de se empoleirar, melodioso, no topo de um monte.
Fiquei ali pensando sobre o meu autêntico cosmopolita e me
perguntando como pôde ter passado despercebido pelo poeta. Era uma
descoberta minha e eu acreditava nele. Como é mesmo o verso? “Os
homens ali nascidos viajam para toda parte em buscas eternas, mas se
apegam às suas cidades feito crianças às saias maternas.”
Isso não se aplicava a E. Rushmore Coglan. O mundo era sua…
Meus pensamentos foram interrompidos pelo barulho de uma
briga que acontecia do outro lado do café. Por sobre a cabeça dos
fregueses que estavam sentados, pude ver E. Rushmore Coglan
atracado em combate com alguém que me era estranho. Brigavam
entre as mesas feito titãs. Copos quebravam, homens agarravam o
chapéu e se levantavam para logo serem nocauteados. Uma morena
gritava. Uma loira cantava Teasing.
Meu cosmopolita defendia o orgulho e a reputação da Terra
quando os garçons cercaram os dois combatentes com sua conhecida
formação em “V” e arrastaram ambos para a rua.
Chamei McCarthy, um dos garçons franceses do lugar, e indaguei a
causa do conflito.
“O homem de gravata vermelha” (era o meu cosmopolita),
respondeu o garçom, “ficou irritado porque o outro sujeito zombou
das calçadas e do fornecimento de água da cidade dele”.
“Mas aquele homem é um cidadão do mundo, um cosmopolita!
Ele…”
“Ele disse que nasceu em Mattawamkeag, no Maine”, continuou
McCarthy, “e que não ia tolerar ninguém falando mal de lá”.
Em uma pequena região a oeste de Washington Square, as ruas
enlouqueceram e se repartiram em pequenas faixas chamadas places,
que formam ângulos e curvas incomuns. Uma rua pode ser travessa de
si mesma – e em mais de um ponto. Um artista descobriu que essas
vielas ofereciam uma oportunidade valiosa. Suponha que um
cobrador, em busca de receber o pagamento referente à compra de
tinta, pincel e telas, ao andar pelo bairro deparasse consigo próprio
fazendo o caminho inverso, e sem ter recebido um centavo!
Assim, rumo ao pitoresco Greenwich Village logo seguiu o povo das
artes em busca de janelas voltadas para o norte, frontões do século
XVIII, sótãos holandeses e aluguéis baratos. E então importaram
canecas de estanho e réchauds da 6ª Avenida, e tornaram-se uma
“colônia”.
No último andar de um predinho de tijolos de três andares, Sue e
Johnsy montaram um estúdio. “Johnsy” era apelido de Joanna. Uma
delas era do Maine; a outra, da Califórnia. Conheceram-se no
restaurante de um “Delmonico’s” na Rua Oito e descobriram tanta
compatibilidade em seus gostos por arte, salada de chicória e mangas
bufantes que o encontro resultou no estúdio em conjunto.
Isso aconteceu em maio. Em novembro, um resfriado diferente,
invisível, e que os médicos batizaram de pneumonia, passou a
espreitar a colônia, tocando um morador aqui, outro ali, com seus
dedos gélidos. No lado leste, o flagelo se espalhou com força, fazendo
vítimas às dezenas, mas avançou lentamente pelo emaranhado de
ruazinhas estreitas e cobertas de musgo conhecidas por places.
O sr. Pneumonia não era o que se poderia chamar de cavalheiro.
Uma mulher pequenina, com o sangue afinado pelos ventos da
Califórnia, não seria páreo para o velho trapaceiro sedento de sangue.
Mas Johnsy não escapou: caíra prostrada, mal se mexia na cama de
ferro pintado de onde olhava as pequenas janelas holandesas nos
fundos do prédio vizinho. Certa manhã, o médico de sobrancelhas
grisalhas e peludas chamou Sue no corredor.
“Ela tem uma chance, digamos, em dez”, falou enquanto
chacoalhava o termômetro de mercúrio. “E essa chance tem a ver com
vontade de viver. Esse hábito que as pessoas têm de se aliar ao coveiro
transforma a farmacopeia toda em uma grande bobagem. Sua amiga
decidiu que não vai ficar boa. Ela tem algum projeto em mente, algo
que a anime?”
“Ela gostaria de pintar a baía de Nápoles um dia”, respondeu Sue.
“Pintar?? Quero saber se ela tem algo em mente que valha mesmo
a pena – um homem por exemplo.”
“Homem?”, retrucou Sue, num tom anasalado de berimbau de
boca. “Será que um homem vale – não, doutor, nada assim que a
anime.”
“Bem, é a fraqueza então”, continuou o médico. “Farei tudo o que
a ciência, ou o que dela meus esforços alcançarem, permitir. Mas,
sempre que um paciente começa a contar o número de veículos de seu
cortejo fúnebre, subtraio 50% do poder curativo dos remédios. Se
conseguir que ela faça pelo menos uma pergunta sobre os novos estilos
de capas de inverno, garanto a ela uma chance em cinco – em vez de
uma em dez.”
Depois que o médico saiu, Sue foi para o ateliê e chorou até
transformar o delicado guardanapo de papel em uma maçaroca só.
Então encheu o peito e seguiu, pimpona, para o quarto de Johnsy com
uma prancheta de desenho e assobiando um ragtime.
Johnsy estava deitada e mal se mexia sob as cobertas, de onde
mirava a janela. Sue parou de assobiar achando que a amiga dormia.
Ajeitou a prancheta e começou a trabalhar em um desenho
encomendado para ilustrar um texto de revista. Jovens artistas abrem
caminho no mundo da Arte desenhando para revistas que publicam
textos de jovens escritores que estão abrindo caminho na Literatura.
“Este vestido aqui – é o único que tenho e que é adequado para este
“Este vestido aqui – é o único que tenho e que é adequado para este
lugar – comprei na O’Dowd & Levinsky, à prestação.
“Custou 75 dólares e foi feito sob medida. Paguei 10 dólares de
entrada e a loja vai me cobrar 1 dólar por semana até quitar tudo. Era
isso que eu tinha a dizer, sr. Farrington, exceto que meu nome é
Mamie Siviter, e não madame Beaumont, e agradeço pela sua atenção
comigo. Este dólar é para pagar a prestação do vestido que vence
amanhã. Agora acho que vou para o meu quarto.”
Harold Farrington escutou impassível a declaração da mais
adorável das hóspedes do Lotus. Quando ela terminou, Farrington
tirou um bloquinho do bolso do casaco e, com um pequeno lápis,
preencheu uma folha que estava em branco. Depois, arrancou a
página do bloquinho, jogou-a em direção da moça e pegou a nota de 1
dólar.
“Também preciso voltar ao trabalho amanhã”, disse, “mas posso
recomeçar já. Esse papel é um recibo no valor de 1 dólar. Sou cobrador
da O’Dowd & Levinsky há três anos. Não é engraçado como nós dois
tivemos a mesma ideia para as férias? Eu sempre quis ficar num hotel
de primeira. Economizei meu salário de 20 dólares por semana e
consegui. Escute, Mame, que tal irmos de barco até Coney no sábado à
noite?”.
O rosto da suposta madame Héloise D’Arcy Beaumont brilhou.
“Pode apostar que vou, sr. Farrington. A loja fecha ao meio-dia no
sábado. Acho que Coney vai ser muito bom, mesmo depois de
passarmos uma semana como ricos.”
Abaixo do terraço, a cidade abafada rosnava e zumbia na noite de
julho. Dentro do hotel Lotus, reinavam sombras suaves e refrescantes,
e o solícito garçom permanecia a postos junto às janelas baixas, pronto
para servir madame e seu acompanhante ao menor gesto.
Na porta do elevador, Farrington se despediu e madame se
preparou para a última subida. Mas, antes que a jaula silenciosa
chegasse, ele disse: “Pode esquecer de Harold Farrington, por favor.
McManus é meu nome, James McManus. Alguns amigos me chamam
de Jimmy”.
“Boa noite, Jimmy”, despediu-se madame.
Faça-me um favor, esmurre com força o olho do poeta quando ele
cantar louvores ao mês de maio. É um mês governado por
traquinagens e desvarios. Duendes e diabretes rondam os bosques em
flor; Puck e seu séquito de gnomos tomam conta da cidade e do
campo.
Em maio a natureza nos aponta o dedo, crítica, a nos lembrar que
não somos deuses, mas membros excessivamente vaidosos de sua
grande família. Ela nos recorda que somos irmãos do molusco que vai
virar sopa e também do burro; que somos rebentos diretos do amor-
perfeito e do chimpanzé, e não passamos de primos-irmãos das
pombas que arrulham, dos patos que grasnam, das criadas domésticas
e dos policiais que vemos nos parques.
Em maio, Cupido flecha às cegas – milionários se casam com
estenógrafas; sábios professores cortejam jovens que mascam chiclete,
usam avental branco e trabalham no balcão de restaurantes de comida
rápida; professoras severas obrigam rapagões malcomportados a ficar
na escola depois das aulas; moços carregando escadas adentram
sorrateiros os jardins onde Julietas esperam na janela, protegida por
treliças, já de malas prontas; namorados saem para dar um passeio e
voltam casados; senhores vestem polainas e borboleteiam perto da
Escola Normal; e até homens casados, desacostumados a sentimentos
de ternura e carinho, dão um tapinha nas costas da esposa e
resmungam: “Tudo bem, minha velha?”.
No mês de maio, que não encarna outra deusa salvo Circe, ao se
mascarar para o baile em homenagem à linda estação debutante, o
verão paralisa-nos a todos.
O velho sr. Coulson gemeu um pouco e se ajeitou em sua cadeira
para inválidos. Tinha um problema sério de gota em um dos pés, uma
casa perto do Parque Gramercy, meio milhão de dólares e uma filha. E
tinha também uma governanta, a sra. Widdup. O fato em si e o nome
merecem uma frase cada um. Pronto.
Quando maio cutucou o sr. Coulson, ele se tornou o irmão mais
velho da rolinha. Na janela, perto de onde se sentava, havia caixas com
narcisos, jacintos, gerânios e amores-perfeitos, cujos aromas a brisa
carregava para dentro do quarto. Logo irrompeu uma disputa renhida
entre o perfume floral e os vigorosos eflúvios do linimento usado
contra a gota. O linimento ganhou com folga, mas não a tempo de
evitar que as flores acertassem um direto no nariz do velho sr.
Coulson. Esse feiticeiro implacável e dissimulado, o mês de maio,
terminara seu trabalho.
Do outro lado do parque, distante das fossas olfatórias do sr.
Coulson, vinham outros odores – inconfundíveis, característicos,
marcas registradas da primavera e que emanam da parte da cidade que
fica acima do metrô, e só de lá. São os cheiros de asfalto quente,
cavernas subterrâneas, gasolina, patchuli, cascas de laranja, gases que
sobem pelo bueiro, frutas podres vindas de Albany, cigarros árabes,
argamassa e a tinta fresca dos jornais. Mas o ar que soprava para
dentro do quarto era doce e suave. Pardais ruidosos brincavam por
toda parte. Jamais confie em maio.
O sr. Coulson torceu as pontas de seus bigodes brancos, amaldiçoou
o próprio pé e sacudiu com força a sineta que ficava ao seu lado, em
cima da mesa.
Logo chegou a sra. Widdup. De aparência graciosa, encorpada,
tinha pele clara, 40 e poucos anos e parecia perspicaz.
“O Higgins saiu, senhor”, disse, com um sorriso sugestivo de
massagem vibratória. “Foi ao correio postar uma carta. Posso fazer
algo pelo senhor?”
“É hora da minha aconitina”, respondeu o sr. Coulson. “Prepare
para mim, o frasco está ali. Três gotas com água. Maldito Higgins!
Ninguém nesta casa se importa se eu morrer aqui nesta cadeira por
falta de atenção.”
A sra. Widdup suspirou alto.
“Não diga isso, sr. Coulson. Tem gente aqui que se preocupa mais
do que o senhor imagina. Disse treze gotas?”, perguntou.
“Três”, respondeu o velho Coulson. E então pegou o remédio e a
mão da sra. Widdup. Ela enrubesceu. Ah, sim, isso pode ser feito. Basta
prender a respiração e comprimir o diafragma.
“Sra. Widdup”, disse o sr. Coulson, “a primavera chegou entre nós”.
“E não é que chegou mesmo?”, rebateu a sra. Widdup. “O ar está
mais quente e tem anúncio de cerveja em cada esquina. E o parque
está todo florido de amarelo, rosa, azul. E sinto muitas dores nas
pernas e no corpo.”
“Na primavera”, citou o sr. Coulson, mexendo nos bigodes, “a
imaginação de um jovem… digo, a imaginação de um homem volta-se,
ligeira, para pensamentos de amor”.
“Minha nossa!”, exclamou a sra. Widdup, “é verdade, parece que
está no ar”.
“Na primavera”, continuou o velho Coulson, “a íris ganha mais
brilho; e a pomba, fulgor”.
“Conheço a Íris, ela é animada mesmo”, suspirou a sra. Widdup,
pensativa.
“Sra. Widdup”, disse o sr. Coulson com feição de dor, acusando
uma pontada no pé, “esta casa seria muito solitária sem a senhora. Já
sou um homem idoso, mas tenho uma soma confortável de dinheiro.
Se meio milhão de dólares em títulos do governo, mais a afeição
genuína de um coração que, se já não bate com o entusiasmo juvenil,
ainda é capaz de palpitar com verdadeira…”
O ruído alto de uma cadeira derrubada no cômodo ao lado
interrompeu a respeitável e inocente vítima do mês de maio.
Em seguida adentrou o recinto a srta. Van Meeker Constantia
Coulson, ossuda, confiante, alta, nariz empinado, frígida, bem-criada,
35 anos, a cara do Parque Gramercy. E colocou o binóculo de teatro. A
sra. Widdup rapidamente abaixou e arrumou a bandagem no pé do sr.
Coulson.
“Achei que o Higgins estivesse com você”, disse a srta. Van Meeker
“Achei que o Higgins estivesse com você”, disse a srta. Van Meeker
Constantia.
“O Higgins saiu”, explicou-lhe o pai, “e a sra. Widdup atendeu
minha chamada. Agora estou melhor, sra. Widdup, obrigado. Não,
não preciso de mais nada”.
A governanta se retirou, pálida, ante o olhar frio e inquisitivo da
srta. Coulson.
“O clima primaveril é excelente, não acha, filha?”, perguntou o
velho, ciente da culpa no cartório.
“Exatamente”, respondeu a srta. Van Meeker Constantia Coulson,
algo enigmática. “Quando a sra. Widdup sai de férias, papai?”
“Se não me engano, daqui a uma semana”, respondeu o sr.
Coulson.
A srta. Van Meeker Constantia ficou parada por um instante
defronte da janela que dava para uma pequena praça, iluminada pelo
suave sol da tarde. E, com os olhos de um botânico, mirou as flores –
as armas mais poderosas do insidioso mês de maio. Com a fria emoção
de uma Virgem de Colônia, suportou o ataque de serenidade etérea.
Os brandos raios de sol como que ricocheteavam, congelados, na
armadura fria de seu peito inabalável. O aroma das flores não
despertava sentimentos minimamente ternos nos rincões inexplorados
de seu anestesiado coração.
O gorjeio dos pardais impingia-lhe dor. Ela desdenhava do mês de
maio.
Mas, ainda que fosse impune aos ataques da estação, a srta. Coulson
era sagaz o bastante para reconhecer-lhe a força. Ela sabia que
senhores de idade e mulheres de quadril largo pulavam feito pulgas
amestradas naquele ridículo bonde chamado maio, o mais zombeteiro
de todos os meses. Já tinha ouvido histórias de cavalheiros idosos que
se casaram com governantas. Que coisa mais humilhante era esse
sentimento chamado amor!
No dia seguinte às 8 da manhã, quando o entregador de gelo tocou,
a cozinheira lhe disse que a srta. Coulson queria vê-lo no porão.
“Ora, ora, justo eu, o ‘Esquina da Olcott com Depew’, que nem
sequer tem nome?”, respondeu o entregador de gelo, admirado.
Como concessão, o rapaz abaixou as mangas da camisa, largou os
ganchos de gelo ao lado das plantas e entrou na casa. Quando a srta.
Van Meeker Constantia Coulson lhe dirigiu a palavra, ele tirou o
boné.
“Existe uma entrada nos fundos deste porão”, disse a srta. Coulson,
“que pode ser acessada pelo terreno vizinho, onde estão fazendo
escavações para construir um prédio. Quero que me traga, por essa
entrada e em duas horas, 500 quilos de gelo. Talvez precise de um ou
dois ajudantes. Vou mostrar onde quero que coloquem o gelo. E
também quero que entregue 500 quilos por dia, nos próximos quatro
dias, da mesma forma. A empresa pode colocar a encomenda na nossa
conta regular. E isto aqui é pelo trabalho extra.”
A srta. Coulson estendeu-lhe uma nota de 10 dólares. O entregador
de gelo se curvou, segurando o boné com as duas mãos para trás.
“Não se preocupe com isso, senhorita. Será um prazer ajudá-la no
que precisar.”
Viva o mês de maio!
Ao meio-dia, o sr. Coulson derrubou dois copos da mesa, quebrou a
sineta e gritou por Higgins, tudo ao mesmo tempo.
“Traga um machado”, ordenou o sr. Coulson, sardônico, “ou um
litro de ácido prússico, ou chame a polícia para me dar um tiro.
Qualquer coisa a morrer de frio!”.
“Parece que está esfriando mesmo, senhor”, disse Higgins. “Eu não
tinha reparado, vou fechar a janela.”
“Feche logo. E chamam a isso de primavera? Se continuar assim,
volto para Palm Beach. Esta casa parece um necrotério.”
Mais tarde, chegou a srta. Coulson, zelosa, querendo saber se o pai
melhorara da gota.
“Constantia”, disse o velho, “como está o tempo lá fora?”
“Ensolarado”, respondeu a srta. Coulson, “mas frio”.
“Parece que estamos no meio do inverno”, comentou o sr. Coulson.
“É um caso”, continuou Constantia, olhando distraída pela janela,
“de inverno que se deixa estender no colo da primavera, embora a
metáfora não seja das mais refinadas”.
Em seguida, ela saiu e caminhou pela lateral do parque em direção
à Broadway para fazer compras. E um pouco depois disso a sra.
Widdup entrou no quarto do inválido.
“O senhor me chamou?”, perguntou, cheia de covinhas. “Pedi que
o Higgins fosse à farmácia e acho que ouvi a sineta.”
“Não chamei, não”, respondeu o sr. Coulson.
“Receio ter interrompido o senhor ontem”, disse a sra. Widdup. “O
senhor estava prestes a dizer alguma coisa.”
“Como é possível”, perguntou o velho Coulson, sério, “que eu
esteja passando tanto frio nesta casa?”.
“Frio?”, disse a governanta. “Bem, agora que o senhor falou, está
frio mesmo aqui no quarto. Mas lá fora está quente, parece até junho.
E esse tempo faz o coração da gente pular fora do peito! A hera deitou
folhas no muro lateral da casa, a gente ouve os realejos tocando, vê as
crianças dançando nas calçadas… é a hora certa de dizer o que vai em
nosso coração. O senhor mesmo, ontem…”
“Mulher!”, rugiu o sr. Coulson, “é uma tola! Pago para que cuide
desta casa. Estou congelando em meu próprio quarto e a senhora me
entra aqui para falar de heras e realejos! Me arranje um casaco, já.
Feche todas as portas e janelas. Uma criatura velha, gorda,
irresponsável e burra como a senhora tagarelando sobre primavera e
flores no meio do inverno! Quando o Higgins voltar, diga-lhe que me
traga ponche de rum quente. E agora saia!”.
Mas quem pode empanar o brilho do mês de maio? Ela pode até ser
malandra e capaz de perturbar a mente de um homem são; mas nem
toda a astúcia de uma virgem nem uma montanha de gelo
armazenado serão suficientes para que maio abaixe a cabeça perante a
cintilante galáxia dos meses.
Ah, sim, a história não acabou.
REVISÃO
Ricardo Jensen de Oliveira
PROJETO GRÁFICO
Mayumi Okuyama
VERSÃO DIGITAL
Antonio Hermida
H451c
Henry, O., 1862-1910
Contos [recurso eletrônico] / O. Henry ; seleção, apresentação e tradução Jayme da Costa Pinto. – 1. ed. –
São Paulo: Carambaia, 2022.
recurso digital; 2 MB
22-80916
CDD: 813
CDU: 82-34(73)
EDITORIAL
Graziella Beting (diretora editorial)
Livia Deorsola (editora)
Laura Lotufo (editora de arte)
Kaio Cassio (editor-assistente)
Pérola Paloma (assistente editorial/direitos autorais)
Lilia Góes (produtora gráfica)
Editora Carambaia
Av. São Luís, 86, cj. 182
01046-000 São Paulo SP
contato@carambaia.com.br
www.carambaia.com.br
Table of Contents
Folha de Rosto
Um escritor de fino trato, por Jayme da Costa Pinto
Man about town ou enquadrando o savoir-faire
Primavera à la carte
A visão da boleia
Uma história inacabada
A vida amorosa de um corretor da bolsa
Aluga-se quarto
A reabilitação de Jimmy Valentine
A namorada gastadeira
Dois cavalheiros e o dia de Ação de Graças
O pêndulo
Um cosmopolita no café
A última folha
A receita perdida
De passagem pela Arcádia
O alegre mês de maio
O conde e o convidado das bodas
O perfil encantado
Uma tragédia no Harlem
Nasce um nova-iorquino
Créditos